Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

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Tradu~o

ALVARO CABRAL

1. Estrutura social 2. Institui~Oes sociais 3. Sociologia 4.Sociologia polftica 1. Titulo. II. Strie.

Dado.'> lntemacionais deCa~ na PubJical;:iio (CIP)(Camara Brasileira do Livro, SF, Brasil)

I6

1719293340

47475159697579859197

109

129129136

IXXI

XIII

II. Consciencia, selfe encontros sociaisReflexividade, consciencia discursiva e pniticao inconsciente, tempo, memoria .Erikson, ansiedade e confian,aRotiniza,ao e motiva,ao .Presen,a, co-presen,a e integra,ao socia!.. .Goffinan: encontros e rotinasSerialidadeFala, reflexividadePosicionamento ,.. ", .. " , , ,.. ,.. , , .Notas eritieas: Freud sobre lapsus linguae .

I. Elementos da teoria da estrutura~iio

o agente, a agencia .Agencia e poder .Estrutura, estrutura~iio .A dualidade da estrutura .Formas de institui,ao .Tempo, 0 corpo, encontros

indice

PrefaeioAbreviaturasIntroduriio

III. Tempo, espa~o e regionaliza~iio .Tempo-geografia .Comentarios cnticos ,.. ,.. ,.. , ,.. " .. ,, ..

1

CDD-301indices para catlilogo sistematico:

1. Sociedade : Sociologia 301

Giddens, Anthony

A conslirui~iio da socicdadc I Anthony Giddens : tradu~iio Alva­ro Cabral, - 2' cd. - Sao Paulo: Martins Fontes, 2003. _ (Bibliotecauniversal)

Revisao da tradu~o

Mitsue, Morissawa

Revisao graticaCoordenafiio de Mauricio Balthazar Leal

Produ~iognificaGaaldo Alves

Pagina~iolFoto1itos

Studio 3 Desenvolvimenro Editorial

Titulo original: The constilution of society.Bibliografia.ISBN 8S-336-1781-X

1" edi9iooutubro de 1989

2' edi~aojunho de 2003

Tftulo original: THE CONSTITUTION OF SOCIElY.

Copyright © Anrhony Giddens, 1984.

Copyright © 1989. Livraria Martins Fontes Editora Ltda ..

Sao Paulo, para a presenu edifao

03-2751

Todos os direitos desta edir;ao para 0 Brasil reservados JLivraria Martins Fontes Editora Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho, 3301340 01325-000 Sao Paulo SP BrasilTel, (11) 32413677 Fax (11) 3105.6867

e-mail: [email protected] http://www.martinsjomes.com.br

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V. Mudauc;a, evoluc;ao e poder 267Evo1ucionismo e teoria social........... 269Adaptac;ao 274Evoluc;ao e Hist6ria 278Analise da mudanc;a social....................................... 287Mudanc;a e poder 30INotas eritieas: Parsons sabre evolur;iio 310

VI. A teoria da estruturac;ao, pesqulsa empirica e cri-tica social 331Vma reiterac;ao de conceitos basicos 331A analise da conduta estrategica 339Conseqiiencias impremeditadas: contra 0 funciona-1ismo 345A dualidade da estrutura............................................ 351o problema da coerc;ao estrutural.............................. 358

Modos de regionalizac;ao .Regi5es da frente, regi5es de trasAbertura e self .Regionalizac;ao generica .Tempo, espac;o, contextoContra 0 "micro" e 0 "macro": integra98.o social ede sistemaNotas eritieas: Foucault sabre distribuir;iio de tem­po e de espar;o

IV. Estrutura, sistema, reproduc;ao socialSociedades, sistemas sociaisEstrutura e coerc;iio: Durkheim e outros .Tres sentidos de "coerc;ao"Coerc;ao e reificac;aoo conceito de principios estruturaisEstruturas, propriedades estruturaisContradic;aoFazendo a hist6ria .Notas eritieas: "soeiologia estrutural" e individua­lismo metodolagieo

Blau: uma versao da sociologia estrutural... .Vma altemativa? Individualismo metodo16gico .

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163

171

191192199205211213218227235

243243251

I

Contradic;ao e 0 estudo empirico do conflito .Estabilidade e mudanc;a institucionalJuntando os fios da meada: teoria da estruturac;ao eformas de pesquisaConhecimento mutua versus senso comumGeneralizac;6es em ciencia socialAs conotac;5es praticas da ciencia socialNotas eritieas: eieneia social, histaria e geografia ...

Glassario de terminologia da teoria da estruturar;iio .Bibliografia

366377

385394404409418

439445

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Prefacio

Venho procurando hi algum tempo, e atraves de numero­sas publica95es, estabelecer uma abordagem da ciencia socialque se afaste de maneira substancial das tradi95es existentesdo pensamento social. Este volume fornece urn agregado des­ses escritos anteriores, apresentando-os no que espero sejauma forma desenvolvida e coerente. a termo vago "aborda­gem" da ciencia social realmente transmite muito bern 0 queentendo como sendo as implica95es metodol6gicas da teoriada estrutura9ao. Na ciencia social, pelas raz5es consideravel­mente detalhadas nas piginas que se seguem, os esquemasconceptuais que ordenam e informam processos de investiga­9ao da vida social sao, em grande parte, 0 que e e para queserve a "teoria". Nao quero dizer com isso, obviamente, que afinalidade da teoria social nao seja elucidar, interpretar eexplicar caracteristicas substantivas da conduta humana. En­tendo que a tarefa de estabelecer e validar generaliza95es ­nao diria "leis" - e apenas uma entre virias outras prioridadesou metas da teoria social. A tarefa de construir conjuntos degeneraliza95es estavelmente firmadas, que e (talvez) a liga­~ao entre as esfon;os das ciencias naturais, nao euma ambi­9aO de grande importiincia para esta. au, pelo menos, e 0 queproponho.

Muitas pessoas foram bastante generosas para examinar ecomentar os primeiros rascunhos do livro ou contribuiram, deoutro modo, muito diretamente para dar-lhe a forma final. Gos­taria de manifestar minha gratidao em particular as seguintes:Sra. D. M. Barry, John Forrester, Diego Gambetta, Helen Gib-

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x A CONSTITW9AO DA SOCIEDADE

son, Derek Gregory, David Held, Sam Hollick, Geoffrey Ingham,Robert K. Merton, Mark Poster, W G. Runciman, QuentinSkinner, John B. Thompson e Jonathan Zeitlin.

A.G.janeiro de 1984

II

Abreviaturas

CCHM A Contemporary Critique of Historical Materialism,vol. 1 (Londres, Macmillan/Berkeley, University ofCalifornia Press, 1981)

CPST Central Problems in Social Theory (Londres, Mac­millan/Berkeley, University ofCalifornia Press, 1979)

CSAS The Class Structure ofthe Advanced Societies, edi91iorevista (Londres, Hutchinson/Nova York, Harper &Row, 1981)

NRSM Ni?W Rules ofSociological Method (Londres, Hutchin­son/Nova York, Basic Books, 1976)

PCST Profiles and Critiques in Social Theory (Londres, Mac­millan/Berkeley, University ofCalifornia Press, 1982)

SSPT Studies in Social and Political Theory (Londres, Hut­chinson/Nova York, Basic Books, 1977)

Todos de autoria de Anthony Giddens

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Introdufiio

o pano de fundo deste livro deve ser encontrado numaserie de significativos desenvolvimentos ocorridos nas cien­cias sociais ao longo dos ultimos quinze anos. Eles concentra­ram-se, em parte substancial, na teoria social e relacionam-seespecialmente com a mais denegrida e mais provocadora dasciencias sociais: a sociologia. Por sua propria natureza, a so­ciologia e propensa apolemica. Entretanto, durante urn perio­do consideravel apos a Segunda Guerra Mundial, sobretudono mundo de lingua inglesa, houve urn amplo consenso a res­peito de sua natureza e tarefas, bern como as das ciencias so­ciais como urn todo. Epossivel dizer que houve urn terrenocentral compartilhado tambem por perspectivas rivais, urn ter­reno no qual podiam ser travadas batalhas intelectuais. Nesselapso de tempo, a sociologia foi urna area de crescimento aca­demico, urn t6pico com reputa~ao crescente, apesar de se con­servar notoriamente impopular em muitos circulos. No planointemacional, era dominada pela sociologia norte-americana,e na teoria social a influencia de Talcott Parsons foi acentua­da'*. 0 prestigio desfrutado pelas ideias de Parsons pode serretrospectivamente exagerado - muitos consideravam desinte­ressante seu gosto pela abstra9iio e pela obscuridade, e ele tevecontra si urn razoavel contingente de criticos e detratores.Entretanto, The Structure ofSocial Action, cuja primeira edi­9iiO data do final da decada de 1930, mas so se tomou ampla­mente conhecida no periodo do pos-guerra, foi em mais de urn

* As referencias podem ser encontradas app. XLI-XLII.

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aspecto uma obra fundamental para a forma,ao da sociologiamoderna. Nela, Parsons estabeleceu uma linbagem sistemati­ca para a teoria social, baseada numa interpreta,ao do pensa­mento europeu do seculo XIX e come,os do atual. As obras deDurkheim, Max Weber e Pareto preponderavam, mas Marx de­sempenbava um papel deveras secundario. Os escritos da ge­ra,ao de 1890-1920 tinbam supostamente superado Marx emtodos os aspectos importantes, filtrando 0 que era valioso edescartando 0 refugo.

o livro tambem estabeleceu urn enfoque da teoria socialde um tipo muito defmido, combinando uma versao refinadade funcionalismo e uma concep,ao naturalista de sociologia.Os escritos subseqiientes de Parsons desenvolveram essas ideiascom considerave1 minucia, enfatizando que, embora a a9iio hu­mana tenba atributos muito especiais e distintivos, a cienciasocial compartilha, de urn modo geral, a mesma estrutura logi­ca da ciencia natural. Escrevendo e trabalhando ele proprionum contexto americana, a tentativa de Parsons de localizar deforma precisa as origens de seu pensamento na teoria socialeuropeia serviu realmente para refor,ar a posi,ao dominanteda sociologia norte-americana. Pois Durkheim, Weber e Paretoforam considerados precursores do desenvolvimento do "siste­ma de coordenadas da a,ao", que ganbaria sua plena expressaoem Parsons e seus colegas. A sociologia pode ter suas princi­pais origens teoricas na Europa, mas a elabora,ao ulterior damateria foi uma tarefa amplamente transferida para 0 outrolado do Atlfmtico. Curiosamente, esse resultado foi obtido itcusta do reconbecimento concomitante da importfmcia das con­tribui,oes norte-americanas para a teoria social; G. H. Meadrecebeu pouquissima aten,ao em The Structure ofSocial Action,como Parsons viria mais tarde a admitir. Ate hoje, porem, exis­tern compendios de teoria social ou "teoria sociologica" prove­mentes dos Estados Unidos, que come,am com os pensadoreseuropeus classicos, mas depois dao a impressao de que a teoriasocial na Europa estancou subseqiientemente - qualquer novoprogresso nessa area e visto como um assunto puramente norte­americana.

XVXIV A CONSTITUly40 DA SOCIEDADE

IINTRODUr;10

Entretanto, mesmo nos limites dos debates que derivamdiretamente dos escritos de Parsons, algumas das mais destaca­das contribui,oes foram europeias. 0 marxismo tern sido hitmuito tempo urna influencia bern mais importante na culturaintelectual europeia do que na norte-americana, e alguns dosmais argutos criticos de Parsons inspiraram-se tanto em Marxquanto em leituras de Weber, bern diferentes daque1as que Par­sons fizera. Dahrendorf, Lockwood, Rex e outros, de visoessemelhantes, consideraram 0 conteudo teorico da obra de Par­sons muito mais seriamente do que seus criticos radicais norte­americanos (C. Wright Mills e, depois, Gouldner). 0 primeirogrupo considerou as contribui,oes de Parsons de grande im­portfmcia, mas unilaterais, por desprezarem fenomenos que elereputava primordiais em Marx: divisao, conflito e poder declasses. Seus membros nao eram marxistas, mas admitiam apossibilidade de uma fusao de conceitos de Parsons com outrosde Marx. Embora houvesse muitas inova,oes importantes den­tro do marxismo durante esse periodo - como 0 ressurgimentodo interesse no "jovem Marx", as tentativas de fusao do mar­xismo com a fenomenologia e, subseqiientemente, do marxis­rnO com 0 estruturalismo -, elas nao eram muito conhecidaspor aqueles que se intitulavam "sociologos", inclusive na Eu­ropa. Os que se consideravam sociologos e marxistas eram pro­pensos a partilhar os pressupostos basicos do funcionalismo edo naturalismo, 0 que constitui uma das razoes de se ter encon­trado um terreno comum tao ample para debate.

As fissuras nesse terreno comum se abriram de modo no­tavelmente subito, no final da decada de 1960 e come,o da de1970, para logo se aprofundarem muito. Nao hit duvida de quesuas origens foram tanto politicas quanto intelectuais. Mas,quaisquer que tenbam sido, tiveram 0 efeito de dissolver, emgrande parte, todo consenso que tivesse existido antes acercado modo como a teoria social devia ser abordada. Em seu lugarsurgiu uma desconcertante variedade de perspectivas te6ricasconcorrentes, nenbuma delas capaz de reconquistar plenamen­te a preeminencia desfrutada antes pelo "consenso ortodoxo",Tornou-se evidente para os que trabalham em sociologia que,

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• Vernota app. XLI-XLII.

durante todo esse tempo, tinba havido, de fato, menos consen­so sobre a natureza da teoria social do que muitos imaginavam.Algumas tradi,oes de pensamento, como 0 interacionismosimb6lico, tinbam gozado sempre de consideravel apoio, semnecessidade de tomar de assalto a cidadela do consenso orto­doxo. Outras escolas de pensamento, que se desenvolveram emgrande parte separadamente do corpo principal das cienciassociais, foram levadas a serio pela primeira vez, incluindo afenomenologia e a teoria critica dos fil6sofos de Frankfurt.Algumas tradi,oes que pareciam agonizantes receberam umnovo impulso. Embora Weber tivesse side influenciado pelatradi,ao hermeneutica e incorporasse a sua obra 0 principalconceito por ela postulado, 0 de verstehen, a maioria dos pen­sadores ligados a sociologia certamente nao consideraria a"henneneutica" como parte de seu lexico. Mas, parcialmenteem conjunto com a fenomenologia, as tradi,oes interpretativasno pensamento social voltaram de novo ao primeiro plano.Finalmente, outros estilos de pensamento, como a filosofia dalinguagem, foram adotados e inseridos de varias maneiras nateoria social.

Com esses desenvolvimentos, 0 centro de gravidade notocante as contribui,oes inovadoras para a teoria social voltoua deslocar-se para a Europa*' Tornou-se obvio que uma impor­tante parcela do trabalho teorico mais interessante estava sendoai desenvolvida - e em sua maioria em outras linguas que nao 0

ingles. A teoria social europeia estava, e esta, nao s6 viva, maspulsando com grande vigor. Equal e 0 resultado desses movi­mentos? Pois a perda do terreno central antes ocupado peloconsenso ortodoxo deixou aparentemente a teoria social numairremediavel desordem. Nao obstante a balbtirdia criada porvozes te6ricas rivais, epassivel discernir em meio a ela certostemas comuns. Um deles liga-se ao fato de a maioria das esco­las de pensamento em questiio - com notaveis exce,oes, comoo estruturalismo e 0 "pos-estruturalismo" - enfatizar 0 caraterativo, reflexivo, da conduta humana. Quer dizer, elas estao uni-

das em sua rejei,ao da tendimcia do consenso ortodoxo de vero comportamento humane como 0 resultado de for,as que osatores nao controlam nem compreendem. Ademais (e issoinclui 0 estruturalismo e 0 "pos-estruturalismo"), elas atribuemum papel fundamental a linguagem e as faculdades cognitivasna explica,ao da vida social. 0 usa da linguagem esta embuti­do nas atividades concretas da vida cotidiana e, num certo sen­tido, e parcialmente constitutivo dessas atividades. Finalmente,reconbece-se que 0 declinio da importancia das filosofiasempiristas da ciencia natural tem implica,oes profundas tam­bem para as ciencias sociais. Nao se trata apenas do caso de asciencias social e natural estarem muito mais distantes uma daoutra do que imaginavam os defensores do consenso ortodoxo.Vemos agora que uma filosofia da ciencia natural deve levarem conta justamente aqueles fenomenos em que as novas esco­las de teoria social estao interessadas - em especial, a lingua­gem e a interpreta,ao de significado.

Ecom esses tres conjuntos basicos de questoes, e suas co­nexoes mutuas, que se ocupa a teoria da estrutura,ao, tal comoa exponbo no presente livro. "Estrutura,ao" e, na melhor dashipoteses, um termo detestavel, embora seja menos deselegan­te no contexte galico donde provem. Nao fui capaz de pensarnuma palavra mais cativante para as ideias que desejo transmi­tiro Ao elaborar os conceitos da teoria da estrutura,ao, nao pre­tendo apresentar uma ortodoxia potencialmente nova parasubstituir a antiga. Mas a teoria da estrutura,iio e sensivel asdeficiencias do consenso ortodoxo e a significa,ao dos desen­volvimentos convergentes acima citados.

No caso de haver qualquer duvida acerca da terminologiaaqui usada, permito-me sublinbar que emprego a expressao"teoria social" para abranger questoes que sustento serem dointeresse de todas as ciencias sociais. Essas questi5es relacio­nam-se com a natureza da a,ao humana e do selfatuante; como modo como a intera,ao deve ser conceituada e sua rela,aocom as institui~5es; e com a apreensao das conota90es pniticasda analise social. Em contrapartida, entendo que a "sociologia"nao e uma disciplina generica que se ocupa do estudo das so-

XVIIINTRODU<;AOA CONSTlTUJ<;A-O DA SOCIEDADEXVI

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XVIIIsocial digna de credito. Pelo contrano, 0 prosseguimento dapesquisa social pode, em principio, tanto projetar luz sobrecontroversias filos6ficas quanto fazer justamente 0 inverso.Em particular, pense ser errado inclinar a teoria social de ummodo excessivamente inequivoco para 0 lado das questoes abs­tratas e altamente generalizadas de epistemologia, como se qual­quer desenvolvimento significativo em ciencia social tivesseque aguardar uma solu,ao efetiva daquelas.

Sao necessanas algumas considera~oes sabre a "teoria"em teoria social. Existem certos sentidos freqiientemente atri­buidos a "teoria" nas ciencias sociais dos quais pretendo man­ter uma consideravel distancia. Ha uma concep,ao que gozavade popularidade entre alguns dos participes do consenso orto­doxo, embora ja nao seja tao amplamente sustentada hoje emdia. Trata-se da id6ia - infJuenciada por certas versoes da filo­sofia 16gico-empirista da ciencia natural - de que a Unica for­ma de "teoria" digna desse nome 6 aquela exprimivel como umconjunto de leis ou generaliza,oes dedutivamente relaciona­das. Esse tipo de no,ao acabou sendo de aplica,ao muito limi­tada, mesmo no ambito das ciencias naturais. Se 6 que pode serrealmente sustentada, sera apenas no que diz respeito a certasareas da ciencia natural. Quem desejar aplica-Ia a cienciasocial deve reconhecer que (por enquanto) nao existe teorianenhuma; sua constru,ao 6 uma aspira,ao adiada para urn fu­turo remoto, um objetivo a ser perseguido antes de constituirparte concretadas buscas atuais das ciencias sociais.

Embora essa ideia tenha alguns adeptos mesmo hoje, estamuitissimo distante de qualquer coisa a que, em meu entender,a teoria social poderia ou deveria aspirar - por razoes que seapresentarao com bastante clareza no corpo do presente livro.Mas existe uma versao mais fraca dessa ideia que ainda exerceinegavel infJuencia sobre urn grande contingente de seguidorese que pede uma discussao urn pOlleD mais extensa, meSilla oes­te contexto introdutorio. Trata-se da ideia de que a "teoria" emteoria social deve consistir essencialmente em generaliza,oespara possuir urn conteUdo explanat6rio. De acordo com talponto de vista, muito do que passa por ser "teoria social" con-

A CONSTITUl(:A'O DA SOCIEDADE

ciedades humanas como um todo, mas aquele ramo da cienciasocial que concentra seu foco particularmente sobre as socie­dades modemas ou "avan,adas". Tal caracteriza,ao disciplinarsubentende uma divisao intelectual de trabalho, nada mais doque isso. Conquanto existam teoremas e conceitos que perten­cern distintamente ao mundo industrializado, nao ha como algochamado de "teoria sociologica" possa distinguir-se com clare­za dos conceitos e preocupa,oes mais gerais da teoria social.Em outras palavras, a "teoria sociologica" pode, se assim sequiser, ser considerada, mais genericamente, wn ramo da teoriasocial, sem manter contudo uma identidade totalmente separa­da. Este livro esUi escrito com uma nitida inclinayao sociologi­ca, no sentido de que minha tendencia 6 concentrar-me em ma­terial especialmente relevante para as sociedades modemas.Mas, como uma introdu,ao a teoria da estrutura,ao, ele tam,bern se propoe ser, em substancial grau, uma formula,ao dastarefas da teoria social em geral e, no mesmo sentido, 6 "teo­ria". Quer dizer, 0 foco incide sobre a compreensao da "agen­cia" humana e das institui90eS sociais.

"Teona social" DaD e uma expressao que tenha algumaprecisao, mas, apesar de tudo, 6 muito util. Tal como a repre­sento, a "teoria social" envolve a anillise de questoes que reper­cutem na filosofia, mas nao 6 primordialmente um esfor,ofilos6fico. As ciencias sociais estarao perdidas se nao foremdiretamente relacionadas com problemas filos6ficos por aque­les que as praticam. Pedir aos cientistas sociais que estejamatentos para as questoes filosoficas nao e 0 mesmo que lan,ara ciencia social nos bra,os daqueles que poderiam pretender serela inerentemente mais especulativa do que empirica. A teoriasocial tern a tarefa de fomecer concep,oes da natureza da ativi­dade social humana e do agente humane que possam ser colo­cadas a servi,o do trabalho empirico. A principal preocupa,aoda teoria social e identica as das ciencias sociais em geral; aelucida,ao de processos concretos da vida social. Sustentarque os debates filos6ficos podem contribuir para essa empresanao significa supor que tais debates necessitam ser resolvidosde modo concludente antes que se possa iniciar uma pesquisa

rI INTRODU(:AO XIX

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siste mais em esquemas conceptuais do que (como deveria ser)em "proposi,oes expIanat6rias" de urn tipo generalizante.

Dois problemas tern de ser aqui separados. Urn diz respei­to it natureza da explica,ao nas ciencias sociais. Considerareiponto pacifico que a explica,ao e contextual, 0 esclarecimentode indaga,oes. Ora, poder-se-ia sustentar que as Unicas inda­ga,oes competentes na ciencia social sao as de urn tipo muitogenerico, as quais, portanto, s6 podem ser respondidas por re­ferencia a generaliza,oes abstratas. Mas tal ideia tern poucoque a recomende, urna vez que nao ajuda a aclarar a importan­cia explicativa de muito do que os cientistas sociais (ou, a res­peito disso, os cientistas naturais tambem) fazem. A maioriadas perguntas "por que?" nao necessitam de urna generaliza,aopara serem respondidas, nem as respostas implicam logica­mente que deva existir alguma generaliza,ao ao aleance dasvistas, que poden; ser invocada para servir de suporte a elas.Tais observa,oes tornaram-se lugar-comurn na literatura filo­sMica, e nao tentarei alongar-me sobre elas. Muito mais con­troversa e urna segunda proposi,ao que defendo e desenvolvoneste livro: a de que a descoberta de generaliza,oes nao e atotalidade nem a finalidade suprema da teoria social. Se os pro­ponentes da "teoria como generaliza,ao explanat6ria" confina­ram estreitamente demais a natureza da "explica,ao", eles agra­varam ainda mais 0 eITO quando deixaram de efetuar uma in­vestiga,ao suficientemente acurada do que e, e deve ser, a ge­neraliza,ao em ciencia social.

As generaliza,oes tendem para dois pOlos, com urna esca­la e variedade de possiveis tonalidades entre eles. Algumassustentam-se porque os pr6prios atores as conbecem - sob al­gurna forma - e as aplicam em seu desempenbo. 0 observadorcientista social nao tern, de fato, de "descobrir" essas generali­za,oes, embora possa dar-Ihes urna nova forma discursiva. Ou­tras generaliza,oes referem-se a circunstilncias, ou aspectos decircunstilncias, as quais sao ignoradas pelos agentes e que"atuam" efetivamente sobre estes, independentemente do que osagentes possam acreditar que tern pela trente. Aqueles a quechamarei de "soci610gos estruturais" tendem a interessar-se

apenas pela generaliza,ao nesse segundo sentido - na verdade,e isso 0 que se pretende dizer quando se afirma que a "teoria"em teoria social deve compreender generaliza,oes explanat6­rias. Mas 0 primeiro sentido e tao fundamental para a cienciasocial quanto 0 segundo, e cada forma de generaliza,ao e va­riavel com rela,ao it outra. As circunstilncias em que as genera­liza,oes sobre 0 que "acontece" aos agentes prevalecem saomutaveis no tocante ao que eles podem aprender a "fazer acon­tecer" de modo inteligente. Disso deriva 0 (logicamente aber­to) impacto transformativo que as ciencias sociais podem tersobre 0 seu "objeto de estudo". Mas dai tambem decoITe 0 fatode que a descoberta de "leis" - isto e, de generaliza,oes do se­gundo tipo - e apenas urna preocupa,ao entre outras que saoigualmente importantes para 0 conteudo te6rico da cienciasocial. Entre essas outras preocupa,oes destaca-se 0 forneci­mento de meios conceptuais para analisar 0 que os atores sa­bern acerca das razoes por que atuam como atuam, especial­mente quando ou ignoram (discursivamente) que as conbecemou, em outros contextos, carecem de tal conbecimento. Essastarefas revestem-se de urn carater primordialmente hermeneuti­co, mas constituem parle inerente e necessaria da teoria social.A "teoria" envolvida na "teona social" nao consiste apenas, nemmesmo primordialmente, na formula,ao de generaliza,oes (dosegundo tipo). Tampouco os conceitos desenvolvidos sob arubrica "teoria social" sao constituidos somente por aquelesque podem ser inseridos em tais generaliza,oes. Muito pelocontrano, esses conceitos devem ser relacionados com Qutrosreferentes it cognoscitividade dos agentes, aos quais estao ine­vitavelmente vinculados.

A maioria das controversias estimuladas pela chamada"conversao lingiiistica" (linguistic turn) em teoria social e pelosurgimento de filosofias da ciencia p6s-empiristas tern sido decarater fortemente epistemol6gico. Por outras palavras, inte­ressam-se de forma predominante por questOes de relativismo,problemas de verifica,ao e falsifica,ao etc. Por mais significa­tivas que elas possam ser, a concentra,ao nas questOes episte­mol6gicas desvia a aten,ao dos interesses mais "ontoI6gicos"

xx A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE

rI

INTRODU9AO XXI

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da teoria social, e e primordialmente nestes que a teoria da es­trutura,ao se concentra. Em vez de se preocuparem com dispu­tas epistemologicas e com a questao de saber se qualquer coisacomo "epistemologia", em sua acep,ao consagrada pelo tem­po, pode ou nao ser realmente formulada, sugiro itqueles quetrabalham em teoria social que se empenhem, em primeiro Ju­gar e acima de tudo, na reeJabora,ao de concep,ces de ser hu­mano e de fazer humano, reprodu,ao social e transforma,aosocial. De primordial importitncia a esse respeito e urn dualis­mo que estit profundamente estabelecido na teoria social, urnadivisao entre objetivismo e subjetivismo. 0 objetivismo era urnterceiro -ismo caracterizando 0 consenso ortodoxo, em conjun­to com 0 naturalismo e 0 funcionalismo. A despeito da termi­nologia de Parsons do "quadro de referencia da a,ao", nao haduvida de que em seu esquema teorico 0 objeto (sociedade)predomina sobre 0 sujeito (0 agente humano cognoscitivo).Outros, cujas iMias poderiam ser associadas a esse consenso,foram muito menos sofisticados a esse respeito do que Par­sons. Ao atacarem 0 objetivismo - e a sociologia estrutural _,aqueles influenciados pela hermeneutica ou pela fenomenolo­gia puderam por a nu importantes deficiencias desses pontosde vista. Mas, por sua vez, inclinaram-se nitidamente para 0

subjetivismo. 0 divisor conceptual entre sujeito e objeto socialpermanecia tao profundo como sempre.

A teoria da estrutura,ao baseia-se na premissa de que essedualismo tern de ser reconceituado como dualidade - a duali­dade da estrutura. Embora recouhecendo 0 significado da "con­versao lingiiistica", nao se trata de uma versao de hermeneuticaou de socioJogia interpretativa. Embora admitindo que a socie­dade nao e cria,ao de sujeitos individuais, esm distante de qual­quer concep,ao de sociologia estrutural. A tentativa de formu­lar urna descri,ao coerente da atividade hurnana e da estruturaexige, porem, urn considenlvel esfor,o conceptual. Vma expo­si,1[o dessas ideias e oferecida no capitulo de abertura, para sermais desenvolvida ao longo do livro. Conduz diretamente aoutros temas principais, em especial 0 que envolve 0 estudo derela,ces de tempo e espa,o. As propriedades estruturais dossistemas sociais so existem na medida em que formas de con-

duta social sao cronicamente reproduzidas atraves do tempo edo espa,o. A estrutura,ao de institui,ces pode ser entendidaem fun,ao de como acontece de as atividades sociais se "alon­garem" atraves de grandes extensces de espa,o-tempo. In­corporar 0 espa,o-tempo no iimago da teoria social significarepensar algumas das divisces disciplinares que separam asociologia da historia e da geografia. 0 conceito e analise dehistoria e particularmente problemitico. Na verdade, este li­vro poderia ser corretamente descrito como uma extensa refle­xao sobre urna celebre e frequentemente citada frase que seencontra em Marx. Comenta Marx que "os homens [permi­tam-nos dizer imediatamente: os seres hurnanos] fazem suapropria historia, mas niio a fazem como querem; nao a fazemsob circunstancias de sua escolha..."*. Bern, assim acontece.Mas que diversidade de problemas complexos de analise so­cial acaba sendo desvendada por esse pronunciamento aparen­temente inocuo!

* A frase encontra-se nos panigrafos iniciais de a 18 Brumario de LuisBonaparte. Foi escrita Duma veia polemica; aqueles que sao ignorantes dehist6ria, diz Marx, podem ser condenados a repeti-Ia, talvez ate em tomjoco­so. A cita9ao exata no original ea seguinte: "Die Menschen machen ihre eige­ne Geschichte, aber sie machen sie nieht aus freien Stlicken, nieht unterselbstgewahlten, sondem unter unmittelbar vorgefundenen, gegebenen unduberlieferten Umstanden. Die Tradition aller toten Geschlechter lastet wie einAlp auf dem Gehime der Lebenden. Und wenn sie eben damit bescha.ftigtscheinen, sich und die Dinge urnzuwiilzen, noch nicht Dagewesenes zu schaf­fen, gerade in solchen Epochen revolutioniirer Krise beschworen sie angstlichdie Geister der Vergangenheit zu ihrem Dienste herauf, entlehnen ihnenNamen, Schlachtparole, Kostiim, urn in dieser alterhrwiirdigen Verkleidungund mit dieser erburgten Sprache die neue Weltgeschichtsszene aufzufiihren"(Marx e Engels. Werke. Berlim, Dietz Verlag 1960, vol. 8, p. 115). ["Os ho­mens fazem sua propria historia, mas nao a fazern como querem; nao a fazemsob circunstancias de sua escoIha, senao sob aquelas com que se defrontam di­retamente, apresentadas e transmitidas pelo passado. A tradicao de todas asgeracoes mortas aflige como urn pesadelo 0 cerebro dos vivos. Ee precisamentequando parecem ocupados em revolucionar-se a si mesmos e as coisas, em criaralgo que nunea existiu, justamente nessas etJocas de crise revoluciomiria, os ho­mens chamam angustiadamente em seu socorro os espiritos do passado, apos­sando-se dos sens nomes, gritos de guerra e trajes, a tim de se apresentarernnessa linguagern ernprestada nanova cena da hist6ria universal."] (N. do T.)

XXIIIINTRODUi;:JO

-,-

A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADEXXII

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Ao formular esta descri9ao da teoria da estrutura9ao, naotive a menor relutancia em apoiar-me em ideias oriundas defontes completamente divergentes. [sse podera parecer a al­guns urn ecletismo inaceitavel, mas eu nunca consegui temeresse tipo de obje9ao. Existe urn inegavel conforto em trabalhardentro de tradi90es estabelecidas de pensamento - sobretudo,talvez, em face da grande diversidade de abordagens com quese defronta correntemente quem esta fora de urna tradi9ao qual­quer. 0 conforto de pontos de vista estabelecidos pode, entre­tanto, servir faci/mente de cobertura para a pregui9a intelec­tual. Se as ideias sao importantes e esclarecedoras, muito maisimportantes do que sua origem e estar capacitado para delinea­las de modo a demonstrar a utilidade delas, mesmo nurn qua­dro de referencia que podera ser inteiramente diferente daqueleque ajudou a engendra-las. Assim, por exemplo, admito a exi­gencia de que 0 sujeito seja descentrado e considero isso bisi­co para a teoria da estrutura9ao. Mas nao aceito que isso impli­que a evapora9ao da subjetividade nurn universo vazio de si­nais. Pelo contnmo, consideramos que as pniticas sociais, aopenetrarem no espa90 e no tempo, estiio na raiz da constitui9aodo sujeito e do objeto social. Admito 0 significado central da"conversao linguistica" introduzida especialmente pela feno­menologia hermeneutica e pela filosofia da linguagem ordina­ria. Ao mesmo tempo, porem, sustento que essa expressao e,em certa medida, enganadora. Os mais importantes desenvol­vimentos no tocante it teoria social nao estao Jigados a urnaconversao em dire9ao it linguagem quanta a urna visao alteradada interse9ao entre dizer (ou significar) e fazer, oferecendourna nova concep9ao de praxis. A transmuta9ao radical da her­meneutica e da fenomenologia iniciada por Heidegger, e asinova90es do Wittgenstein do ultimo periodo constituem os doisprincipais marcos de urn novo caminho. Mas avan9ar nessecaminho significa precisamente recha9ar qualquer tenta9aopara tomar-se urn discipulo de corpo e alma de urn ou outrodesses pensadores.

Permitam-me oferecer agora urn resurno da organiza9aodeste livro. Tendo apresentado no primeiro capitulo urn esb090

XXVXXIV A CONSTITUU;:AO DA SOCIEDADE INTRODUr;:AO

dos principais conceitos envolvidos na teoria da estrutura9ao,dou inicio, no segundo capitulo, it parte mais substantiva dovolume com uma discussao sabre a consciencia, 0 inconscientee a constitui9ao da vida cotidiana. Os agentes ou atores hurna­nos - uso indistintamente urn e Dutro termo - tern, como aspec­to inerente do que fazem, a capacidade para entender 0 que fa­zem enquanto 0 fazem. As capacidades re£lexivas do ator hu­mana estao caracteristicamente envolvidas, de urn modo conti­nuo, no £luxo da conduta cotidiana, nos contextos da atividadesocial. Mas a re£lexividade opera apenas parcialmente numnivel discursivo. 0 que os agentes sabem acerca do que fazeme de por que 0 fazem - sua cognoscitividade como agentes ­esta largamente contido na consciencia pratica. Esta consisteem todas as coisas que os atores conhecem tacitamente sobrecomo "continuar" nos contextos da vida social sem serem ca­pazes de lhes dar urna expressao discursiva direta. 0 significa­do de consciencia pratica e urn dos temas principais do livro, ecurnpre distingui-la da consciencia (discursiva) e do incons­ciente. Embora aceitando a importiincia de aspectos inconscien­tes da cogni9ao e da motiva9ao, nao penso que possamos estarsatisfeitos com algumas das ideias mais convencionalmenteestabelecidas a esse respeito. Adoto uma versao modi(icada dapsicologia do ego, mas empenho-me em relaciona-Ia direta­mente com 0 que, sugiro eu, e urn conceito fundamental da teo­ria da estrutura9ao - 0 conceito de rotiniza,Go.

A rotina (tudo 0 que e feito habituaJmente) constitui urnelemento bisico da atividade social cotidiana. Uso a expressao"atividade social cotidiana" num sentido muito literal, nao na­quele mais complexo e, em meu entender, mais ambiguo, quese tomou fami,1iar atraves da fenomenologia. 0 termo "cotidia­no" condensa exatamente 0 cariler rotinizado que a vida socialadquire it medida que se estende no tempo e no espa90. A natu­reza repetitiva de atividades empreendidas de maneira identicadia apos dia e a base material do que eu chamo de "carilerrecursivo" da vida social (nome que, segundo entendo, designaa recria9ao constante das propriedades estruturadas da ativida­de social - via dualidade de estrutura - a partir dos proprios

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XXVIII

"macroestruturais". 0 chamado estudo "microssocio16gico"nao se ocupa de uma realidade que e, de certa maneira, maissubstancial do que aquela que interessa a analise "macrosso­ciologica". Mas tampouco, pelo contrario, a intera,ao emsitua,oes de co-presen,a e simplesmente eremera, em contras­te com a solidez de institui,oes em grande escala ou estabeleci­das de longa data. Cada ponto de vista tern seus proponentes,mas eu vej0 essa divisao de opiniao como vazia, e como umaversao ligeiramente mais concreta do dualismo em teoriasocial ja mencionado. A oposiyao entre "micro" e "macro" emelhor reconceituada no que se refere ao modo como a intera­,ao em contextos de co-presen,a esta estruturalmente implica­da em sistemas de ampla distancia,ao de tempo-espa,o - poroutras palavras, ao modo como tais sistemas abrangem grandessetores espa,o-temporais. E isso, por sua vez, e melhor investi­gada como urn problema da conexao entre a integra,ao social ea integra,ao de sistema, tal como defino esses termos. Mas urncorolario vital tern de ser adicionado a isso. A rela,ao entreintegra,ao social e integra,ao de sistema nao pode ser apreen­dida num nivel puramente abstrato; a teoria do urbanismo e-lheessencial, pois so com 0 advento das cidades - e, em temposmodernos, com 0 urbanismo do "ambiente criado" - torna-sepossivel urn desenvolvimento significativo da integra,ao desistema.

Eprecise realmente ter muito cuidado com 0 conceito de"sistema social" e a no,ao associada de "sociedade". Eles soaminocentes e sao provavelmente indispensaveis se usados commedidas adequadas de cautela. "Sociedade" tern urn util signi­ficado duplo, no qual me ap6io - descrevendo urn sistema li­mitado e a associa,ao social em geral. A enfase sobre a regio­naliza,ao ajuda a lembrar que 0 grau de "sistemidade" em sis­temas sociais efiuito variavel e que as "sociedades" raramentetern fronteiras facilmente especificaveis - ate, pelo menos, in­gressarmos no mundo modemo das na,oes-Estados. 0 funcio­nalismo e 0 naturalismo tendem a encorajar a aceita,ao irrefle­tida das sociedades como entidades claramente delimitadas edos sistemas sociais como unidades dotadas de elevada inte-

A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE

vidade decorrentes de propriedades fisicas do corpo e dos am­bientes em que os agentes se movimentam. A referencia a essesfatores e apenas urn dos aspectos em que a sociologia podeobter proveito dos escritos de geografos. Urn outro e a interpre­ta,ao do urbanismo, 0 qual, argumento eu, tern urn papel bisi­co a desempenbar na teoria social; e, e claro, urna sensibilidadegeral a espa,o e lugar e de impOitincia ainda maior.

Goffinan da considecivel importfulcia a regionaliza,ao deencontros, e, para mim, a no,ao de regionaliza,ao e urna dasmais significativas para a teoria social. Ela foi sempre urnapreocupa,ao principal dos escritos de geografos, mas desejoencara-la como urn conceito nao tao puramente espacial comoeles habitualmente a veem. A natureza localizada da intera,aosocial pode ser utilmente examinada em rela,ao com os dife­rentes locais atraves dos quais as atividades cotidianas dosindividuos sao coordenadas. Os locais nao sao apenas lugares,mas cenarios de intera,ao; conforme Garfinkel demonstrou,de modo particularmente persuasivo, os cenarios sao usadoscronicamente - e, em grande parte, de maneira tacita - por ato­res sociais para confirmar 0 significado em atos comunicati­vos. Mas os cenanos tamb"m sao regionalizados de forma queinfluenciam substancialmente 0 carater serial dos encontros esao influenciados por este. A "fixidez" de tempo-espa,o tam­bern significa normalmente fixidez social; 0 carater substan­cialmente "dado" dos milieux fisicos da vida cotidiana entrela­,a-se com a rotina e e profundamente influente nos contornosda reprodu,ao institucional. A regionaliza,ao tamb"m tern for­te ressonancia psicologica e social no que diz respeito ao"ocultamento" a visao de alguns tipos de atividades e de pes­soas, e a"revelayao" de outros. Encontramos aqui de novo urnimportante ponto de conexao entre ideias aparentemente dispa­res: as de Goffinan e as de Foucault. Ambos atribuem grandeimportancia as linbas social e historicamente flutuantes entreocultamento e revela,ao, confinamento e exposi,ao.

Penso ser urn engano considerar os encontros em circuns­tancias de co-presen,a como sendo, de algum modo, a basesobre a qual se constroem propriedades sociais maiores ou

INTRODU9AO XXIX

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gra,ao interna. Pois tais perspectivas, mesmo quando rejeita­das as metaforas orgiinicas diretas, tendem a ser intimas aliadasde conceitos biol6gicos; e estes tern sido geralmente formula­dos com referencia a entidades claramente derivadas do mundoque as circunda e dotadas de evidente unidade interna. Mas,com muita freqiiencia, as "sociedades" nao sao nada disso. Paraajudar a explicar isso, proponho as expressoes "sistemas inter­sociais" e "extremidades do tempo-espayo", em referencia adiferentes aspectos de regionaliza,ao que atravessam sistemassociais reconhecivelmente distintos como sociedades. Usoessas no,oes extensamente tambem na avalia,ao de interpreta­,oes de mudan,a social, no capitulo 5.

Ao formular a teoria da estrutura,ao, desejo furtar-me aodualismo associado com 0 objetivismo e 0 subjetivismo. Masalguns criticos ponderaram que nao e dado suficiente peso afatores enfatizados pelo primeiro desses conceitos, sobretudo arespeito dos aspectos coercitivos das propriedades estruturaisde sistemas sociais. Para mostrar que nao e esse 0 caso, indicocom algum detalhe 0 significado atribuivel a "coer,ao" emteoria social e como os varios sentidos que podem ser dados aotermo sao entendidos na teoria da estrutura,ao. 0 reconheci­mento da natureza e importiincia da coer,ao estrutural nao im­plica sucumbir as atra,oes da sociologia estrutural, mas tam­pouco aceito, como procurei deixar claro, um ponto de vistapr6ximo do individualismo metodol6gico. Na conceitua,ao dateoria da estrutura,ao, "estrutura" significa algo diferente deseu uso habitual nas ciencias sociais. Apresento tambem umconjunto de outros conceitos que gravitam em tomo do deestrutura, e esfor,o-me por mostrar por que sao necessanos. 0mais importante deles e a ideia de "principios estruturais", quesao caracteristicas estruturais de sociedades globais ou totali­dades sociais; tambem procuro mostrar que e atraves da no,aode principios estruturais que 0 conceito de contradi,ao podeser especificado, de maneira mais proveitosa, como pertinenteit analise social. Essas n090es, uma vez mais, nao podem serexpressas de forma puramente abstrata, de modo que as exami­no com referencia a tres importantes tipos de sociedade que

XXXI

xxx A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE

-rINTRODU!;:A-O

podem ser destacadas na hist6ria humana: culturas tribais, so­ciedades divididas em classes e na,oes-Estados modemas as­sociadas a ascensao do capitalismo industrial.

A men,ao de hist6ria relembra a senten,a de que os sereshumanos fazem a Hist6ria. 0 que e exatamente isso que desfazem - 0 que significa "hist6ria" neste caso? A resposta naopode ser expressa numa forma tao convincente quanto a maxi­ma original. Existe, e claro, uma diferen,a entre Hist6ria comoeventos que transcorrem e hist6ria como registro escrito des­ses eventos. Mas isso nao nos leva muito longe. Hist6ria, noprimeiro sentido, e temporalidade, eventos em sua dura,ao.Somos propensos a associar a temporalidade a uma seqiiencialinear, e assim, a Hist6ria, pensada dessa maneira, eassociadaa movimento numa dire,ao discemivel. Mas isso pode muitobem ser uma forma culturalmente criada de pensar 0 tempo;mesmo que nao seja, temos ainda assim de evitar a equa,ao de"hist6ria" com mudan,a social. Por essa razao vale a pena falarde "historicidade" como um sentido definido de vida nummundo social constantemente exposto a mudan,a, no qual amaxima de Marx e parte de uma consciencia cultural geral, naoum teorema peculiar a pensadores sociais especialistas. A his­t6ria como registro escrito da Hist6ria tambem apresenta seuspr6prios dilemas e enigmas. Tudo 0 que terei a dizer a respeitodeles e que nao se caracterizam pela precisao; nao nos permi­tern efetuar distin,oes claras, bern definidas, entre hist6ria eciencia social. Problemas hermeneuticos envolvidos na descri­,ao exata de formas divergentes de vida, a interpreta9i!o de tex­tos, a explica,ao de a,ao, institui,oes e transforma,ao social ­tudo isso e compartilhado por todas as ciencias sociais, incluin-

do a hist6ria.Como deveremos, pois, abordar 0 estudo da mudan,a so-

cial? Procuro mostrar que a busca de uma teoria de mudan,asocial (quando "teoria" significa, neste caso, a explica,ao damudan,a social por referencia a um s6 conjunto de mecanis­mos, como os velhos favoritos evolucionistas de adapta,ao esele,ao diferencial) e uma tarefa condenada. Esta contaminadapela mesma especie de deficiencias 16gicas que se associam

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mais geralmente a suposi9ao de que as ciencias sociais podemdescobrir leis universais de conduta humana. As especies deentendimento ou conhecimento que os seres humanos tern desua propria "historia" sao, em parte, constitutivas do que essahist6ria e e das influencias que atuam para muda-Ia. Contudo, eimportante dar especial aten9ao critica ao evolucionismo por­que, em uma versao OU Dutra, foi muito influente nUIna varie­dade de areas da ciencia social. Entendo por "evolucioni-Bmo",quando aplicado as ciencias sociais, a explica9ao da mudan9asocial em termos de esquemas que envolvem as seguintes ca­racteristicas: uma serie irreversivel de estlidios atraves dos quaisas sociedades se modificam progressivamente, ainda que naose sustente que cada sociedade deve passar por todos eles a fimde atingir os superiores; uma certa liga9ao conceptual com asteorias biol6gicas da evolu9aO; e a especifica9ao de direciona­lidade ao longo dos estactios indicados, quanta a urn dado crite­rio ou a criterios, como crescente complexidade ou expansaodas for9as de produ9ao. Vma serie de obje90es pode ser apre­sentada contra essas ideias, tanto a respeito de seus demeritosintrinsecos quanta em termos de implica90es secundanas queo evolucionismo quase inevitavelmente tende a trazer em suaesteira, embora nao sejam logicamente ocasionadas por ele. a"materialismo historico", penso eu, euma versao do evolucio­nismo de acordo com esses criterios, em pelo menos uma dasmuitas maneiras como esse discutido termo tern sido entendi­do. Se interpretado desse modo, 0 materialismo hist6rico ma­nifesta mais geralmente muitas das limita90es principais e se­cundarias das teorias evolucionistas, e tern de ser rejeitado pe­las mesmas razoes.

Como nao penso ser possivel comprimir a "Hist6ria" nostipos de esquemas favorecidos pelo evolucionismo, em geral,ou pelo materialismo hist6rico, mais especificamente, faloantes de desconstrui-los do que de reconstrui-Ios. Quero dizercom isso que as descri90es de mudan9a social tern de adotaruma forma substancialmente diferente do evolucionismo; naoM merito algum em tentar meramente remodela-Ias urn pouco.Alem dos conceitos ja apresentados, fa90 uso de dois outros: 0

XXXIIlXXXII A CONSTITU1(:AO DA SOCIEDADE INTRODU<;AO

de "episodio" e 0 de "tempo mundial" (0 primeiro e devido aGellner, 0 segundo a Eberhard). Toda a vida social pode ser re­presentada como uma serie de episodios; os encontros em cir­cunstancias de co-presen9a tern certamente uma forma epis6­dica. Mas, neste contexto, refiro-me principalmente a proces­sos de mudan9as em grande escala, nos quais existe algum tipode reorganiza9ao institucional, como a forma9ao de cidadesem sociedades agranas ou ados primeiros Estados. as epis6­dios podem certamente ser proveitosamente comparados entresi, mas sem se abstrair por completo 0 contexto de suas ori­gens. A influencia do tempo mundial e importante precisamen­te para se apurar ate que ponto os epis6dios sao, de fato, com­paniveis. 0 "tempo mundial" diz respeito as conjunturas varia­veis na Hist6ria que podem afetar as condi90es e os desfechosde episodios aparentemente similares e a influimcia do que osagentes envolvidos sabem sobre tais condi90es e desfechos. Pro­curo indicar 0 valor analitico dessas n090es, usando como ilus­tra9ao teorias de forma9ao do Estado.

A teoria da estrutura9ao nao sera de muito valor se naoajudar a esclarecer problemas de pesquisa empirica, e no capi­tulo final abordo essa questao, que sustento ser inseparavel dasimplica90es da teoria da estrutura9ao como uma forma de criti­ca. Nao tento empunhar um bisturi metodologico, isto e, naoacredito que exista qua/quer coisa na 16gica ou na substiinciada teoria da estrutura9ao que proiba de alguma forma 0 uso decertas tecnicas especificas de pesquisa, como os metodos decoleta de dados, questionanos etc. Algumas considera90es apre­sentadas sao importantes para 0 modo de aplica9ao de determi­nadas tecnicas a questoes de pesquisa e para a interpreta9ao deresultados, mas este e um assunto urn tanto diferente. as pon­tos de liga9ao da teoria da estrutura9ao com a pesquisa empiri­ca dizem respeito a elabora9ao das implica90es 16gicas doestudo de uma "materia" da qual 0 pesquisador ja e uma parte ea elucida9ao de conota90es substantivas das n090es essenciaisde a9ao e estrutura. Alguns dos pontos que formulei no nivelabstrato de teoria aplicam-se diretamente no nivel de pesquisa.Vma parte consideravel da teoria social, em especial a associa-

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da a sociologia estrutural, tratou os agentes como muito menoscognoscitivos do que realmente sao. Os resultados disso po­dem ser facilmente discernidos no trabalho empirico, no tocan­te ao fracasso em obter informa,ao que permita 0 acesso a totalcognoscitividade dos agentes de pelo menos duas maneiras. 0que os atores estao aptos a dizer acerca das condi,oes de suaa,ao e da de outros e sintetizado se os pesquisadores nao reco­nbecerem a possivel importiincia de uma gama de fenomenosdiscursivos a que eles proprios, como atores sociais, certamen­te prestariam aten,ao, mas que sao com freqiiencia simples­mente desprezados na pesquisa social. Trata-se de aspectos dodiscurso que, na forma, sao refrata-rios it sua tradw;ao comoenunciados de cren,a proporcional ou que, como hurnor ouironia, derivam seu significado menos do conteudo daquiloque e dito do que do estilo, modo de expressao ou contexto deverbaliza,ao. Mas curnpre adicionar a isso urn segundo fatorde maior importancia: a necessidade de reconhecimento dosignificado da consciencia pnitica. Quando 0 que os agentesconhecem a respeito do que fazem esta restrito ao que eles po­dem dizer sobre isso, em qualquer estilo discursivo, urna areamuito vasta de cognoscitividade e simplesmente subtraida davisao. 0 estudo da consciimcia pratica deve ser incorporado aotrabalho de pesquisa. Seria urn erro supor que os componentesnao-discursivos da consciencia sao necessariamente mais difi­ceis de estudar empiricamente do que os discursivos, muitoembora os proprios agentes, por defini9iio, nao possam comen­ta-Ios diretamente. 0 inconsciente, por outro lado, apresentaurna ordem inteiramente diferente do problema, exigindo, porcerto, tecnicas de interroga,ao distintas das envolvidas na pes­quisa social descritiva.

o funcionalismo foi surnamente importante nas cienciassociais, devido nao s6 asua preeminencia como urn tipo de teo­riza,ao, mas tambem ao estimulo empirico que forneceu. Asorigens do trabalho de campo em antropologia sao mais ou me­nos conterminas ao impacto do funcionalismo, e na sociologiatambem 0 pensamento funcionalista ajudou a gerar urn corposignificativo de trabalho de pesquisa. Penso ser essencial com-

XXXVXXXIV A CONSTfTUIr;A-O DA SOCIEDADE INTRODUr;AO

preender os atrativos do funcionalismo a esse respeito, emboracontinuando a sustentar que, no plano conceptual, sua influen­cia foi sobremaneira perniciosa. 0 funcio~alismo enfatizoufortemente 0 significado das conseqiiencias impremeditadasda a,ao, sobretudo na medida em que estas ocorrem de modoregular e estao envolvidas, portanto, na reprodu,ao de aspectosinstitucionalizados de sistemas sociais. Os funcionalistas esti­veram inteiramente certos em promover essa €mfase. Mas eperfeitamente possivel estudar conseqiiencias impremeditadassem 0 uso de conceitos funcionalistas. Alem disso, a designa­,ao do que nao e premeditado ou intencional com rela,ao asconseqiiencias da a,ao so pode ser empiricamente apreendidode forma adequada se os aspectos premeditados ou intencio­nais da a,ao forem identificados, e isso significa, urna vezmais, operar com uma interpreta,ao de agencia mais refinadado que e normalmente admitido por aqueles que se inc1inampara as premissas funcionalistas.

Na teoria da estrutura,ao, considera-se "estrutura" 0 con­junto de regras e recursos implicados, de modo recursivo, nareprodu,ao social; as caracteristicas institucionalizadas de sis­temas sociais tern propriedades estruturais no sentido de que asrela,oes estiio estabilizadas atraves do tempo e espa,o. A "es­trutura" pode ser conceituada abstratamente como dois aspec­tos de regras: elementos normativos e codigos de significa,ao.Os recursos tambem sao de duas especies: recursOS impositi­vos, que derivam da coordena,ao da atividade dos agentes hu­manos, e recursos alocativos, que procedem do controle deprodutos materiais ou de aspectos do mundo material. 0 que eespecialmente util para a orienta,ao da pesquisa e 0 estudo,primeiro, das interse,oes rotinizadas de praticas que consti­tuem os "pontos de transforma,ao" nas rela,oes estruturais; e,segundo, dos modos como as praticas institucionalizadas esta­belecem a conexao entre a integra,ao social e a integra,ao desistema. Quanto ao primeiro desses temas de estudo, para darurn exemplo, pode-se demonstrar como a propriedade privada,urn conjunto de direitos de posse, pode ser "traduzida" em au­toridade industrial, ou modos de sustenta,ao do controle admi-

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nistrativo. Em reIa,ao ao segundo, 0 que tern de ser empirica­mente determinado e ate que ponto as praticas localizadas e es­tudadas nurna determinada gama de contextos convergem en­tre si de modo a ingressarem diretamente na reprodu,ao do sis­tema. Eimportante, neste caso, estar atento para 0 significadodos locais como cemirios de interse,ao; nao ha razao nenhurnapara que os sociologos nao adotem algurnas das tecnicas depesquisa estabelecidas pelos geografos, inclusive as tecnicasgraficas de tempo-geografia, a fim de estuda-los.

Se as ciencias sociais sao entendidas como eram durante 0

periodo de dominio do consenso ortodoxo, suas realiza,Desnao impressionam, e a importiincia da pesquisa social para ques­toes pniticas parece razoavelmente escassa. Pais as ciencias na­turais ou, pelo menos, as mais avan,adas dentre elas, possuemleis precisamente especificadas e geralmente aceitas, em con­junto com urn ample repertorio de observa,Des empiricas in­discutiveis que podem ser explicadas em termos dessas leis. Aciencia natural articulou-se com capacidades tecnologicasespantosas, tanto destrutivas quanta construtivas. Aos olhos da­queles que adotariam diretamente para a ciencia social 0 mode­10 da ciencia natural, a primeira e certamente superada de lon­ge pela segunda. Tanto cognitiva quanta praticamente as cien­cias sociais parecem nitidamente inferiores as ciencias natu­rais. Mas, ao se aceitar que a ciencia social nao deve mais con­tinuar sendo uma especie de replica da ciencia natural e que,em certos aspectos, eurn empreendimento de natureza inteira­mente divergente, pode-se entao defender uma visao muito di­ferente de suas realiza,Des e influencia relativas. Nao existemleis universais nas ciencias sociais nem haven! nenhuma - nao,antes de tudo, porque os metodos de verifica,ao empirica se­jam urn tanto inadequados, mas porque, como ja assinalei, ascondi,Des causais envolvidas em generaliza,Des sobre a con­duta social humana sao inerentemente instaveis com reIa,ao aoproprio conhecimento (ou cren,as) que os atores tern sobre ascircunstiincias de sua propria a,ao. A chamada "profecia auto­realizadora", a concretiza,ao de algo como simples efeito deter sido esperado, a cujo respeito Merton e outros esCreveram,

e urn caso especial de urn fenomeno muito mais generico nasciencias sociais. E urna intera,ao interpretativa mutua entreciencia social e aquelas cujas atividades constituem seu objetode estudo - urna "dupla hermeneutica". As teorias e descober­tas das ciencias sociais nao podem ser mantidas totalmenteseparadas do universo de significado e a,ao de que elas tratam.Mas, por sua parte, as atores leigos sao te6ricos sociais, cujasteorias ajudam a constituir as atividades e institui,Des que saoo objeto de estudo de observadores sociais especializados oucientistas sociais. Nao existe urna clara linha divisoria entre areflexao sociologica esclarecida levada a efeito por atores lei­gos e as diligencias similares por parte de especialistas. Naoquero negar que existam linhas divisorias, mas elas sao inevita­velmente vagas, e as cientistas sociais nao tern urn monopolioabsoluto sobre as teorias inovadoras nem sobre as investiga­,Des empiricas do que estudam.

Talvez tudo isso possa ser tornado por certo. Mas talveznao se possa aceitar, a partir desses comentarios, a ado,ao deuma visao das realiza,Des e do impacto das ciencias sociaisdistinta da acima indicada. Como poderia ser seriamente suge­ride que a ciencia social tern tido tanta ou mais influencia sobreo mundo social quanta a ciencia natural sobre 0 mundo mate­rial? Penso, de fato, que esse ponto de vista pode ser mantido­embora, e claro, tal compara,ao nao possa ser precisa, em vir­tude das proprias diferen,as entre 0 que esta envolvido emcada caso. A questao e que a reflexao sobre processos sociais(teorias e observa,Des sobre eles) continuamente penetra, sol­ta-se e tarna a penetrar 0 universo de acontecimentos que elesdescrevem. Nao existe tal fenomeno no mundo de naturezainanimada, 0 qual e indiferente a tudo 0 que os seres hurnanospossam pretender saber a seu respeito. Considerem-se, porexemplo, as teorias de soberania formuladas pelos pensadoreseuropeus do seculo XVII. Elas resultaram da reflexao sobre - edo estudo de - tendencias sociais nas quais foram, por sua vez,realimentadas. Eimpossivel aponlar urn moderno Estado sobe­rano que nao incorpore urna teoria discursivamente articuladado moderno Estado soberano. A tendencia aCentuada a urna

XXXVI A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE1

INTRODUr;:AO XXXVII

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expansao da "automonitora,ao" politica por parte do Estado ecaracteristica da modemidade no Ocidente em geral, criando 0

clima social e intelectual a partir do qual discursos especializa­dos, "profissionais", da ciencia social se desenvolveram, masque ambos tambem expressam e fomentam. Certamente poder­se-ia fazer algum tipo de argumenta,ao favoravel il pretensaode que essas mudanps, nas quais a ciencia social esteve cen­tralmente envolvida, se revestem de urn carater muito funda­mental. Ao lado delas, as transforma,oes da natureza realiza­das pelas ciencias naturais nao parecem tao maci,as.

Refletindo urn pouco mais sobre tais considera,oes, pode­mos ver por que motivo as ciencias sociais podem parecer naogerar urna soma considenivel de conhecimentos originais, etambem por que teorias e ideias produzidas no passado podemconservar, de modo aparentemente paradoxal, urna pertinenciaaos dias de hoje que as concep,oes arcaicas das ciencias natu­rais nao possuem. As melhores e mais interessantes ideias nasciencias sociais a) participam na promo,ao do clima de opi­niao e dos processos sociais que lhes dao origem, b) eslilo emmaior ou menor grau entrela,adas com teorias em usa que aju­dam a constituir aqueles processos e c) e improvilvel, portanto,que sejam claramente distintas da reflexao ponderada que ato­res leigos empregam, na medida em que discursivamente arti­culam, ou se aperfeic;oam sabre, teorias em uso.

Esses fatos tern conseqiiencias, sobretudo para a sociolo­gia (il qual eles sao na maioria nitidamente pertinentes), queafetam 0 prosseguimento da pesquisa empirica e a formula,aoe recep,ao de teorias. No tocante il pesquisa, eles significamque e muito mais dificil do que no caso da ciencia natural "sus­tentar" a aceita,ao de teorias enquanto se buscam meios de ascomprovar apropriadamente. A vida social segue em frente;teorias, hipoteses ou descobertas interessantes ou potencial­mente praticas podem ser levantadas na vida social de tal modoque as bases originais em que poderiam ser testadas tenham sealterado desta ou daquela maneira. Hil muitas e complexas per­muta,oes possiveis de mutua sustenta,ao neste caso, as quaisse combinam tambem com as dificuldades inerentes ao contro-

Ie de variaveis, il replica de observa,oes e outros dilemas meto­dologicos em que as ciencias sociais podem encontrar-se. Asteorias na ciencia natural sao originais, inovadoras etc., ate 0

ponto em que colocam em queslilo aquilo em que tanto atoresleigos quanta cientistas profissionais acreditavam previamenteacerca dos objetos ou eventos a que elas se referem. Mas asteorias nas ciencias sociais tern de ser de algum modo baseadasem ideias que (embora nao necessariamente formuladas porelas em termos discursivos) ja sao sustentadas pelos agentes aque se referem. Uma vez reincorporadas na a,ao, sua qualida­de original podera perder-se; elas podem tomar-se excessiva­mente familiares. A no,ao de soberania e teorias associadas doEstado eram surpreendentemente novas quando foram formu­ladas pela primeira vez; hoje, tomaram-se em certa medidaparte integrante da propria realidade social que ajudaram aestabelecer.

Mas por que algumas teorias sociais conservam seu vi,omuito depois de passadas as condi,oes que ajudaram a produ­zi-Ias? Por que, agora que estamos familiarizados com 0 con­ceito e a realidade da soberania do Estado, as teorias seiscentis­tas do Estado continuam a ter tanta relevilncia para a reflexaosocial ou politica hodiema? Por certo, exatamente porque con­tribuiram para a constitui,ao do mundo social em que vivemosagora. 0 que chama nossa aten,ao e 0 fato de que sao reflexoessobre urna realidade social que elas tambem ajudam a consti­tuir e que esta distanciada, e ao meSilla tempo permanece sen­do parte, de nosso mundo social. As teorias nas ciencias natu­rais, que foram substituidas por outras que curnprem melhor amesma fun,ao, nao interessam il pritica corrente da ciencia.Nao pode ser esse 0 caso quando essas teorias ajudaram a cons­tituir 0 que elas interpretam ou explicam. A "historia de ideias"talvez possa ser justificadamente considerada de importanciamarginal para 0 cientista natural praticante, mas e muito maisdo que tangencial para as ciencias sociais.

Se sao corretas, essas pondera,oes levam diretamente auma considera93.0 da ciencia social como critica - como envol­vida de maneira pratica com a vida social. Nao nos podemos

XXXVIII A CONSTITUlr;:AO DA SOCIEDADEl

INTRODUr;:JO XXXIX

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XL

1. Seria urn eITO, eclaro, supar que a influencia de Parsons esta confi­nada no passado, imaginar que esse autor foi esquecido como eleproprio certa vez sugeriu ter acontecido a Spencer pOlleD depois desua morte. Pelo contrario, uma das tendencias mais visiveis oa teo­ria social hodierna e0 papel primordial desempenhado por concep­r;oes inferidas mais ou menos diretamente de Parson~. Poderiamoscitar, a titulo de exemplo, os escritos de Luhmann e Habermas, oaAlemanha, Bourricauld, na Fran9a, e Alexander e outros, nosEstados Unidos. Nao pretendo discutir em detalhes essa literatura,mas talvez valha a pena explicar urn pouco por que nao simpatizomuito com aqueles aspectos de tais autores que se basearam forte­mente em ideias de Parsons. Todos os escritores em questao criti­cam veementemente as conexoes de Parsons com 0 funcionalismo,do qual Luhmann procurou provavelmente reter mais do que osoutros. Neste aspecto, estou de acordo com eles, como este livrodeveci deixar bastante claro. Mas, em outros, por razoes que tam­bern serno docurnentadas extensamente nas piginas que se se­guem, penso ser necessario fazer uma ruptura radical com teore­mas parsonianos. Urn importante aspecto disso refere-se ainfiltra­9ao da influencia de Max Weber atraves dos escritos de Parsons.Tenho side freqiientemente qualificado de "weberiano" por cnti­cos que consideram isso urna especie de defeito irreparivel. Aocontrmo deles, nao encaro 0 termo como urn estigma, urn rotulodesonroso, mas tampouco 0 aceito como corretamente aphcado ameus pontos de vista. Se me apoio em Weber, e de urn iingulo berndiferente daquele adotado pelos autores acima citados. Assim, 0

Weber de Haberrn.s (t.lvez surpreendentemente) tende • ser deurn estilo parsoniano, preocupado sobretudo com a racionaliza9aode valores e com a "diferencial social", retratadas como processosgeneralizados de desenvolvimento. A vida social nao e descritaaqui atraves das lentes que eu preferiria tomar emprestadas de We­ber, quando se interessa pelas multiplas priticas e lutas de atoresconcretamente localizados, pelo conflito e choque de interessessecionais, e pela territorialidade e violencia de forma90es politicasau Estados.

Parsons considerava-se urn "teorico d.a a9ao" e chamou asuaversao de ciencia social 0 "quadro de referencia da a9ao". Mas,como procurei mostrar minuciosamente em outro trabalho (verNRSM, capitulo 3), a que eu aceitaria como concep,ao satisf.t6ri.

XLI

Referencias

INTRODUr;:A'O

I

i'I

A CONSTITUf(;:A'O DA SOGEDADE

contentar com a versao "tecnoI6gica" da critica proposta peloconsenso ortodoxo, uma concep,ao que deriva do modelo daciencia natural. A visao tecnol6gica da critica pressup6e que a"critica interna" da ciencia social - as avalia90es criticas queaqueles que trabalham nas ciencias sociais fazem das opini6esuns dos outros - gera sem complicayoes uma "critica externa"das cren,as leigas que podem ser a base da interven,ao socialpnitica. Mas, dada a significa,ao da "dupla hermeneutica", ascoisas sao muito mais complexas. A formula,ao da teoria criti­ca nao e uma oP9iio; as teorias e descobertas nas cienciassociais sao suscetiveis de ter conseqiiencias pniticas (e politi­cas) independentemente de 0 observador sociol6gico ou 0 es­trategista politico decidir que elas podem ou nao ser "aplica­das" a uma dada quesmo pnitica.

o presente livro nao foi nada facil de escrever e, ate certoponto, provou ser refratano a ordena,ao normal de capitulos. Ateoria da estrutura,ao foi formulada, em parte substancial,atraves de sua pr6pria "critica intema" - a avalia,ao critica deuma variedade de escolas de pensamento social geralmenteconcorrentes. Em vez de deixar alguns desses confrontos criti­cos se imiscuirem nas principais se,6es do texto, tratei de in­clui-Ios como apendices aos capitulos com os quais se relacio­nam mais diretamente. (Do mesmo modo, as notas associadasa cles seguem-se as que pertencem aos capitulos pertinentes.)o leitor que queira acompanhar a linha principal de argumentodo livro sem interrup,6es pode saltar os apendices e suas res­pectivas notas. Entretanto, eles sedo de interesse para quemestiver interessado em apreciar como os pontos de vista que de­fendo diferem dos de outros ou na elabora,ao de temas trata­dos de forma condensada no ceme de cada capitulo. Vma va­riedade de neologismos e usada no livro, os quais constam doglossano colocado no final.

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de 39.3.0 (e outras noc;oes afins, especialmente as de intenc;oes erazoes) nao sera encontrado oa obra de Parsons. IS50 nao se deve,como alguns eritices sugeriram, ao fato de uma enfase ulteriorsabre 0 funcionalismo e a teona de sistemas ter ameac;ado sufocaruma preocupac;ao anterior com 0 "voluntarismo". 0 motivo estaem que a ideia de voluntarismo apresentava-se viciada desde a ori­gem. No pensamento de Parsons, 0 voluntarismo sempre estevevinculado aresolw.;ao do "problema da ordem", por ele concebidocomo a coordenac;ao de vODtades individuais potencialmente de­sintegradoras. A resolw;ao se da atraves da demonstrac;3.o de queos atores internalizarn, como motivos, as valores compartilhadosde que depende a coesao social. 0 pedido de uma explica~ao daa~ao acaba fundindo-se com a exigencia de ligar uma teoria "psi­cologica" de motiva~ao com uma interpreta~ao Hsociologica" dascaracteristicas estruturais de sistemas sociais. Pouca ou nenhumamargem conceptual e deixada para 0 que eu enfatizo como a cog­noscitividade de atores sociais,'enquanto constitutiva, em parte, depr:iticas sociais. Nao penso 'Llle qualquer ponto de vista que sejafortemente ancorado em Parsons possa enfrentar satisfatoriamenteessa questao, no proprio amago dos interesses da teoria social,segundo eu os concebo neste livro.

Se aqueles que tern grande debito para com Parsons hoje naose consideram funcionalistas e rejeitaram a inclina~ao funcionalis­ta do pensamento parsoniano em maior ou menor grau, eles aindaencampam outras ideias relacionadas amaioria das versoes do fun­cionalismo. Estas incluem: urn fascinio pelo "consenso de valor"ou pelas ordens simbolicas, acusta dos aspectos pr:iticos mais coti­dianos da atlvidade social; a tendencia a supor que as sociedadessao unidades facilmente distiilguiveis, asemelhan~a dos organis­mos biol6gicos; e a predile~ao por teorias de estilo evolucionista.Considero cada uma dessas enfases seriamente enganosa e apre­sentarei fortes reservas a respeito delas. Nao pode haver duvidassobre 0 refinamento e a importancia da obra de alguns autores queatualmente se empenham em desenvolver a obra de Parsons pornovos caminhos, especialmente Luhmann e Habermas. Mas pensoser tao necessano repudiar as novas vers5es do parsoniapismoquanto as variedades, estabelecidas h:i mais tempo, da sociologiaestrutural nao-parsoniana.

L

XLIIA CONSTlTUlr;:A-O DA SOCIEDADE

Ii Capitulo I

Elementos da teoria da estruturariio

Ao oferecer uma exposi9ao preliminar dos principais con­ceitos da teoria da estrutura9ao'* sera util come9ar pelas divi­soes que separaram 0 funcionalismo (inclusive a teoria de sis­temas) e 0 estruturalismo, par urn lado, da hermeneutica e dasvarias formas de "sociologia interpretativa", por outro. 0 fun­cionalismo e 0 estruturalismo tem algumas semelhan9as nom­veis, apesar dos contrastes de outro modo acentuados existen­tes entre eles. Ambos tendem a expressar urn ponto de vista na­turalistico e se inclinam para 0 objetivismo. 0 pensamento fun­cionalista, de Comte em diante, via particularmente a biologiacomo a ciencia que fornece 0 modelo mais pr6ximo e maiscompativel para a ciencia social. A biologia foi considerada for­necedora de urn guia para conceituar a estrutura e 0 funciona­mento de sistemas sociais, assim como para analisar processosde evolu9ao via mecanismos de adapta9ao. 0 pensamento es­truturalista, especialmente nos escritos de Levi-Strauss, foihostil ao evolucionismo e isento de analogias biol6gicas. Nestecaso, a homologia entre ciencia social e ciencia natural e pri­mordialmente cognitiva, na medida em que se supoe que cadauma expressa caracteristicas similares da constitui9aO globalda mente. 0 estruturalismo e 0 funcionalismo enfatizam forte­mente a preeminencia do todo social sobre suas partes indivi­duais (isto e, seus atores constituintes, sujeitos hurnanos).

Em tradi90es hermeneuticas de pensamento, e claro, .asciencias sociais e naturais sao consideradas radicalmente dis-

* As referencias podem ser encontradas a pp. 44-6.

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crepantes. A hermeneutica foi a base daquele "humanismo"contra 0 qual os estruturalistas se opuseram de modo tao vigo­roso e persistente. No pensamento hermeneutico, tal comoapresentado por Dilthey, 0 abismo entre sujeito e objeto socialalean,a sua amplitude maxima. A subjetividade e 0 centro pre­viamente constituido da experiencia de cultura e historia, e comotal fornece 0 fundamento basico das ciencias sociais ou huma­nas. Fora do dominic da experiencia subjetiva, e alheio a ela,esta 0 mundo material, governado por rela,oes impessoais decausa e efeito. Enquanto para aquelas escolas de pensamentoque tendem para 0 naturalismo a subjetividade foi encaradacomo uma especie de misterio, ou quase como um fenomenoresidual, para a hermeneutica 0 mundo da natureza e que eopaco - 0 qual, diferentemente da atividade humana, somentepode ser apreendido desde fora. Nas sociologias interpretati­vas, e concedida primazia it a,ao e ao significado na explica,aoda conduta humana; os conceitos estruturais nao sao notavel­mente conspicuos e nao se fala muito de coer,ao. Para 0 funcio­nalismo e 0 estruturalismo, entretanto, a estrutura (nos sentidosdivergentes atribuidos ao conceito) tern primazia sobre a a,ao esuas qualidades restritivas sao fortemente acentuadas.

As diferen,as entre esses pontos de vista sobre a cienciasocial tern sido freqiientemente consideradas epistemologicas,quando, de fato, sao tambem ontologicas. A questao e como osconceitos de a,ao, significado e subjetividade devem ser espe­cificados e como poderiam ser relacionados com as no,oes deestrutura e coer,ao. Se as sociologias interpretativas se assen­tam, por assim dizer, num imperialismo do sujeito, 0 funciona­lismo e 0 estruturalismo, por seu lado, propoem urn imperialis­mo do objeto social. Uma de minhas principals ambi,oes naformula,ao da teoria da estrutura,ao e por urn fim a cada urndesses esfor,os de estabelecimento de imperios. 0 dominic ba­sico de estudo das ciencias sociais, de acordo com a teoria daestrutura,ao, nao e a experiencia do ator individual nem a exis­tencia de qualquer forma de totalidade social, mas as praticassociais ordenadas no espa,o e no tempo. As atividades sociaishumanas, it semelhan,a de alguns itens auto-reprodutores na

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I.[

2A CONSTITUIt;A-O DA SOCIEDADE

1i ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAt;AO

natureza, sao recursivas. Quer dizer, elas nao sao criadas poratores sociais mas continuamente recriadas par eles atraves dosproprios meios pelos quais eles se expressam como atores. Emsuas atividades, e atraves destas, os agentes reproduzem ascondi,oes que tornam possiveis essas atividades. Entretanto, aespecie de "cognoscitividade" apresentada na natureza, na formade programas codificados, e distante das aptidoes cognitivasexibidas por agentes humanos. Ena conceitua,ao da cognosci­tividade humana e em seu envolvimento na a,ao que procurotomar para uso proprio algumas das principais contribui,oesdas sociologias interpretativas. Na teoria da estrutura,ao, umponto de partida hermeneutico e aceito na medida em que sereconhece que a descri,ao de atividades humanas requer fami­liaridade com as formas de vida expressas naquelas atividades.

Ea forma especificamente reflexiva da cognoscitividadedos agentes humanos que esta mais profundamente envolvidana ordena,ao recursiva das praticas sociais. A continuidade depraticas presume reflexividade, mas esta, por sua vez, so e pos­sivel devido it continuidade de praticas que as tornam nitida­mente "as mesmas" atraves do espa~o e do tempo. Logo, a "re­flexividade" deve ser entendida nao meramente como "auto­consciencia", mas como 0 carater monitorado do fluxo conti­nuo da vida social. Ser um ser humane e ser urn agente inten­cional, que tern razoes para suas atividades e tambem esta apto,se solicitado, a elaborar discursivamente essas razoes (inclusi­ve mentindo a respeito delas). Mas termos tais como "proposi­to" ou "inten<;8.o", "razao", "motivo" etc. tern de ser tratadoscom cautela, porquanto 0 seu uso na literatura filosOfica ternsido muito freqiientemente associado a um voluntarismo her­meneutico, e porque eles retiram a a,ao humana da contextua­lidade de espa,o-tempo. A a,ao humana ocorre como uma du­rtie, um fluxo continuo de conduta, it semelhan,a da cogni,ao.A a,ao intencional nao se compoe de um agregado ou serie deinten,oes, razoes e motivos isolados. Assim, e util falar de re­flexividade como algo assentado na monitora,ao continua daa,ao que os seres humanos exibem, esperando 0 mesmo dosoutros. A monitora,ao reflexiva da a,ao depende da racionali-

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za,iio, entendida aqui mais como urn processo do que comourn estado, e como inerentemente envolvida na competenciados agentes. Uma ontologia de tempo-espa,o como constituti­va de priticas sociais e basica para a concep,iio de estrutura­,iio, a qual comera a partir da temporalidade e, portanto, nurncerto sentjdo, da "hist6ria".

Essa abordagem s6 muito parcimoniosamente pode apoiar­se na filosofia anaHtica da a,iio, entendida a "a,iio" no sentidocomurnente dado pela maioria dos autores anglo-americanoscontemporaneos. A "a9ao" DaD euma comhina.;ao de "atos";os "atos" sao constituidos apenas por urn momento discursivode aten,iio a duree da experiencia vivida. Tampouco se podediscutir a "a,iio" do corpo, de suas media,oes com 0 mundocirculante e da coerencia de urn self atuante. Aquilo a quechamo de urn modelo de estratificariio do selfatuante envolvetratar a monitora,iio reflexiva, a racionaliza,iio e a motiva,iioda a,iio como conjuntos de processos incrustados2• A raciona­lizaryao da a.;:ao, referente a"'intencionalidade" como processo,e, como as Gutras duas dimensoes, uma rotina caracteristica daconduta hurnana exercida de forma reconhecida. Em circuns­tancias de intera,iio - encontros e epis6dios - a monitora,iioreflexiva da a,iio incorpora tipicamente, e uma vez mais roti­neiramente, a monitorar;ao do cemirio cude essa intera<;3.0 sedesenrola. Como indicarei mais adiante, esse fenomeno e basi­co para a interpola,ao da a,ao dentro das rela,oes espa,o-tem­porais do que designarei por "co~presen,a". A racionaliza,aoda a,iio, dentro da diversidade de circunstancias de intera,iio,constitui a principal base sobre a qual a "competencia" genera­lizada dos atores e avaliada por outros. Deve ficar claro, po­rem, que a tendencia de alguns fil6sofos de equiparat razoes e"compromissos normativos" tern de ser combatida: tais com­promissos abrangem somente urn setor da racionaliza,iio daa,iio. Se isso nao for entendido, niio compreenderemos que asnormas se apresentam como fronteiras "fatuais" na vida social,para as quais siio possiveis varias atitudes manipulat6rias. Urnaspecto de tais atitudes, embora relativamente superficial,encontra-se na observa,ao banal de que as razoes que os atores

oferecern discursivamente para 0 que fafem podem divergir daracionaliza,ao da a,iio quando realmente envolvida no fluxode conduta desses atores.

Essa circunstancia tern sido urna freqiiente fonte de preo­cupa,iio para fil6sofos e observadores da cena social - poiscomo poderemos ter a certeza de que as pessoas nao dissimu­lam a respeito das razoes para suas atividades? Mas isso e deinteresse relativamente pequeno comparado com as vastas"areas cinzentas" existentes entre dais estratos de processosinacessiveis a consciencia discursiva dos atores. 0 grande vo­lume dos "estoques de conhecimento", na frase de Schutz,ouque eu prefiro designar por conhecimento mutuo incorporadoem encontros, nao e diretamente acessivel a consciencia dosatores. A maior parte desse conhecimento e pritico por nature­za: e inerente a capacidade de "prosseguir" no ambito das roti­nas da vida social. A linha entre consciencia discursiva e cons­ciencia pratica e flutuante e permeavel, tanto na experiencia doagente individual quanta no que se refere a compara,oes entreatores em diferentes contextos da atividade social. Contudo,DaD ha barreira entre estes, como as que se observam entre 0

inconsciente e a consciencia discursiva. a inconsciente incluiaquelas formas de cogni,ao e de impulsao que estao au total­mente impedidas de consciencia ou somente aparecem naconsciencia de forma distorcida. Os componentes motivacio­nais inconscientes da ar;ao, como sugere a teoria psicanalitica,possuem urna hierarquia intema que lhes epr6pria, uma hierar­quia que exprime a "profundidade" da hist6ria de vida do atorindividual. Ao dizer isto, nao quero dar a entender urna aceita­,iio incondicional dos teoremas-chave dos escritos de Freud.Devemos estar prevenidos contra duas formas de reducionismoque esses escritos sugerent ou promovem. 'vma delas e umaconcepYiio redutiva das institui,oes, a qual, ao procurar mos­trar 0 fundamento das institui!;oes no inconsciente, nao deixacampo suficiente para a opera,ao de for,as sociais autonomas.A segunda forma e urna teoria redutiva da consciencia, a qual,querendo mostrar quanta da vida social e govemado por cor­rentes sombrias fora do alcance da consciencia dos atores, niio

!

4 A CONSTfTUJr:;A-O DA SOCfEDADE

lELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAr:;AO 5

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Figura 1

o agente, a agencia

pode apreender adequadamente 0 nive! de controle que os agen­tes estao caracteristicamente aptos a manter de modo reflexivosobre sua propria conduta.

7ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAr;AO

fratura na competencia que poderia, de fato, ser intencionaI.Assim, nao perguntaremos comurnente a urna outra pessoa porque se empenha nurna atividade que e convencional para 0gropo ou cultura de que 0 individuo e membro. Tampouco ecostume pedir urna explica9ao se OCOrre urn lapso para 0 qualparece improvavel que 0 agente possa ser tido por responsavel,como os trope90s na adrninistra9ao do corpo (ver a discussaode "Upa!", pp. 95-6) ou 0 lapsus linguae. Se Freud esta certo,entretanto, esses fenomenos poderiam ter urn fundamento logi­co, se bern que isso so raramente seja percebido pelos perpetra­dores desses atos falhos ou por outros que os presenciam (verpp. 109-23).

Eu distingo a monitora9ao reflexiva e a racionaliza9aO daa9ao de sua motiva9ao. Se as raz5es se referem aos motivos daa9ao, estes, por sua vez, referem-se as necessidades que a insti­gam. Entretanto, a motiva9ao nao esta tao diretamente vincula­da a continuidade da a9ao quanto sua monitora9ao reflexiva ouracionaliza9ao. Ela refere-se mais ao potencial para a a9ao doque propriamente ao modo como a a9ao e cronicamente exe­cutada pelo agente. Os motivos tendem a ter urna influenciadireta na a9ao apenas em circunstiincias relativamente inco­muns, situa95es que, de algum modo, quebram a rotina. Emsua grande maioria, os motivos fornecem pIanos ou programasglobais - "projetos", na terminologia de Schutz - no litnbitodos quais urna certa gama de condutas sao encenadas. Muitode nossa conduta cotidiana nao e diretamente motivada.

Embora atores competentes possam quase sempre infor­mar discursivamente sobre suas inten95es ao - e raz5es para ­atuar do modo que atuam, podem nao fazer necessariamente 0mesmp no tocante a seus motivos. A motiva9ao inconsciente euma caracteristica significativa da conduta hurnana, embora euindique mais adiante algumas reservas a respeito da interpreta­9aO de Freud da natureza do inconsciente. A n09ao de cons­ciencia pratica e fundamental para a teoria de estrutura9ao. Eaquela caracteristica do agente ou sujeito hurnano para a qual 0estruturalismo tern sido particularmente cego'. Mas 0 mesmotern acontecido com outros tipos de pensamento objetivista.

A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE6

o modelo de estratifica9ao do agente pode ser representa­do como na Figura I. 0 monitoramento reflexivo da atividade euma caracteristica cronica da a9ao cotidiana e envolve a con­duta nao apenas do individuo mas tambem de outros. Quer di­zer, os atores nao so controlam e regulam continuamente 0

fluxo de suas atividades e esperam que outros fa9am 0 mesmopor sua propria conta, mas tambem monitoram rotineiramenteaspectos, sociais e fisicos, dos contextos em que se movem. Porracionaliza9ao da a9ao entendo que os atores - tambem rotinei­ramente e, na maioria dos casos, sem qualquer alarde - man­tern urn continuo "entendimento teorico" das bases de sua ati­vidade. Como mencionei, possuir tal entendimento nao deveser equiparado a apresenta9ao discursiva de razoes para deter­minados itens de conduta, nem mesmo a capacidade de especi­ficar tais raz5es discursivamente. Entretanto, 0 que agentescompetentes esperam dos outros - e esse e 0 principal criteriode competencia aplicado na conduta cotidiana - eque os atoressejam habitualmente capazes de explicar a maior parte do quefazem, se indagados. Perguntas freqiientemente formuladas porfilosofos acerca de inten95es e raz5es sao normalmente apre­sentadas por atores leigos apenas quando alguma conduta eespecificamente enigmatica ou entao quando hi urn "lapso" ou

condi90es . (1 mOn!tora9ao reflexlVa da 898:0~ : ?onsequ~~ciasnao-reconhecldas : : Impremedltadas

da 898:0 * raclonallzar;ao da aQao 'VI da aQao, ,~ motlvaQao da 8980 I, ,~--------------------,

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Somente na fenomenologia e na etnometodologia, dentro dastradi,oes sociologicas, encontramos detalhados e sutis trata­mentos da natureza da consciencia pratica. Com efeito, siio es­sas escolas de pensamento, em conjunto com a filosofia da lin­guagem ordinaria, as responsaveis pelo esclarecimento dasdeficiencias das teorias ortodoxas da ciencia social a esse res­peito. Niio pretendo que a distin,iio entre consciencia discursi­va e consciencia pratica seja rigida e impermeavel. Pelo con­trario, a divisiio entre as duas pode ser alterada por nurnerososaspectos da socializa,iio e das experiencias de aprendizagemdo agente. Niio ha barreiras entre esses dois tipos de conscien­cia; ha apenas as diferen,as entre 0 que pode ser dito e 0 que,de modo caracteristico, e simplesmente feito. Existem barrei­ras, porem, centradas principalmente na repressiio, entre a cons­ciencia discursiva e 0 inconsciente.

Conforme e explicado em ouira parte do livro, proponhoesses conceitos em lugar da tradidonal triade psicanalitica deego, superego e id. A distin,iio freudiana de ego e id niio podedar conta tranqiiilamente da analise da consciencia pratica, aqual carece de abrigo teorico na teoria psicanalitica, assimcomo nos outros tipos de pensamento social previamente indi­cados. 0 conceito de "pre-consciente" talvez seja a no,iio maisproxima da consciencia pratica no repertorio conceptual dapsicanalise, mas, em seu uso geral, significa claramente algodiferente. Em lugar de "ego" e preferivel falar de "eu" (comofez Freud, e claro, no alemiio original). Esse uso niio impede 0

antropomorfismo, no qual 0 ego e retratado como urna espe­eie de mini-agente; mas, pelo menos, ajuda'a come~ar a reme­dia-lo. 0 uso de "eu" desenvolve-se a partirdo posicionamentodo agente em encontros sociais e esta-Ihe associado dai emdiante. Enquanto urn termo de tipo predicativo e "vazio" deconteiido, em compara,iio com a riqueza das autodescri,oes do

A CONSTITUf(;:/lO DA SOCIEDADE 9

ator que implicam 0 "mim". 0 completo dominio das rela,oesde "eli", "mim", "til", quando aplicadas reflexivamente no dis­curso, e de importancia decisiva para a competencia em forma­,iio de agentes que estiio aprendendo a linguagem. Uma vezque niio uso 0 termo "ego", e evidentemente preferivel dispen­sar tambem "superego" - urn termo de todo modo tosco. Aexpressao "consciencia moral" serve perfeitamente bern comoseu substituto.

Todos esses conceitos referem-se ao agente. E 0 que dizerda natureza da agencia? Isto pode ser ligado com uma novaquestiio. A duree da vida cotidiana ocorre como urn fluxo dea9ao intencional. Entretanto, os atos tern conseqiiencias im­premeditadas; e, como foi indicado na Figura I, estas podemsistematicamente realimentar-se para constituirem as condi­,oes niio reconhecidas de novos atos. Assim, uma das conse­qiiencias normais de eu falar ou escrever de urn modo corretoem ingles e contribuir para a reprodu,iio da lingua inglesacomo urn todo. 0 fato de eu falar Ingles corretamente e in­tencional; a contribui,iio que dou para a reprodu,iio da linguaniio e. Mas como formularemos 0 que siio as conseqiienciasimpremeditadas?

Admite-se com freqiiencia que a agencia hurnana so podeser definida em termos de inten,oes, ou seja, para que urn itemdo comportamento seja considerado urna a,iio, e preciso que 0

realizador tenha a inten,iio de 0 manifestar, caso contrario 0

comportamento em questiio e apenas urna resposta reativa.Essa visiio deriva certa plausibilidade, talvez, do fato de haveralguns atos que niio podem ocorrer a menos que 0 agente tenhaessa inten,iio. 0 suicidio e urn caso ilustrativo. Malgrado os es­for,os conceptuais de Durkheim em contrario, so e possiveldizer que 0 "suicidio" ocorreu quando se constatou algum tipode inten,iio de precipitar a autodestrui,iio. Uma pessoa que saido meio-fio da cal,ada e e atropelada por urn carro niio podeser qualificada de "suicida" se 0 evento foi acidental; e algoque acontece ao individuo e niio algo que 0 individuo faz.Entretanto, 0 suicidio niio e tipico da maioria dos atos huma­nos, no que se refere a inten,oes, na medida em que se pode di-

-]. ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURA(:/lO

A

~

consci€mcia discursiva

consci€mcia pratica

motivos (nconscientesJcogniyao

8

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zer que ocorreu somente quando seu perpetrador quis que ocor­resse. A maioria dos atos nao tern essa caracteristica.

Alguns fil6sofos argumentaram, porem, que para urnevento que envolve urn ser hurnano ser considerado urn exem­plo de agencia e necessario, pelo menos, que 0 que a pessoa fazpossa ser descrito como intencional, mesmo que 0 agente este­ja enganado acerca dessa descri,ao. Urn oficial nurn submari­no puxa urna alavanca com a inten,ao de mudar 0 curso, mas,em vez disso, tendo acionado a aIavanca errada, afunda 0

Bismarck. Ele fez algo intencionalmente, embora nao 0 queimaginara, mas desse modo 0 Bismarck foi a pique atraves desua agemcia. Se alguem derrama intencionalmente cafe, pen­sando erradamente tratar-se de eM, derramar 0 cafe e urn atodessa pessoa, ainda que nao cometido intencionalmente; sobwna Dutra descri~ao, como "derramar 0 chei", e intencional4.

(Na maioria dos casas, "derramar" alguma coisa tende a suge­rir que 0 ato nao e intencional. Eurn deslize no decorrer de umaa,ao em que a pessoa esm procurando fazer algo totalmente di­ferente, por exemplo, passar a xicara de eM para as maos deoutra pessoa. Freud afirrna que quase todos esses deslizes com­portamentais, como 0 lapsus linguae, sao na realidade incons­cientemente motivados. Isso, e claro, coloca-os sob descri,5esintencionais vistos de urn outro angulo.)

Mas ate mesmo 0 ponto de vista segundo 0 qual, para serconsiderado urn exemplo de "agencia", urn evento deve ser in­tencional somente sob uma ou outra descri,ao e errado. Eleconfunde a designa,ao de "agencia" com a dota,ao de descri­,5es de atos'; confunde a monitora,ao continua de urna a,aoque os individuos executam com as propriedades definidorasdessa a,ao como tal. "Agencia" nao se refere as inten,5es queas pessoas tern ao fazer as coisas, mas a capacidade deras pararealizar essas coisas em primeiro lugar (sendo por isso que"agencia" subentende poder: cf. uma defini,ao de agente doOxford English Dictionary como "alguem que exerce poder ouproduz urn efeito"). "Agencia" diz respeito a eventos dos quaisurn individuo e 0 perpetrador, no sentido de que ele poderia,em qualquer fase de urna dada seqiiencia de conduta, ter atuado

de modo diferente. 0 que quer que tenha acontecido nao 0 teriase esse individuo nao tivesse interferido. A a,ao eurn processocontinuo, urn fIuxo, em que a monitora,ao refIexiva que 0 indi­viduo mantem e fundamental para 0 controle do corpo que osatores ordinariamente sustentam ate 0 fim de suas vidas no dia­a-dia. Sou 0 autor de muitas coisas que nao tenho a inten,ao defazer e que posso nao querer realizar, mas que, nao obstante,fat;o. Inversamente, pode haver circunstiincias em que pretendorealizar alguma coisa, e a realizo, embora nao diretamente atra­yes de minha "agencia". Tomemos 0 exemplo do cafe derrama­do. Supondo-se que urn individuo, A, era urn espirito maliciosoe pregava urna pe,a, colocando a xicara nurn pires num talangulo que, quando alguem a pegasse, 0 mais provavel e que 0

cafe derramasse. 0 individuo B pega a xicara, que logo entor­na. Seria correto dizer que 0 que A fez provocou 0 incidente ou,pelo menos, contribuiu para sua ocorrencia. Mas A nao derra­mou 0 cafe; foi B quem 0 derramou. 0 individuo B, que naopretendia derrama-Io, 0 fez, foi 0 agente ativo; 0 individuo A,que pretendia ver 0 cafe derramado, nao 0 derramou.

Mas 0 que e fazer alguma coisa nao intencionalmente? Ediferente de provocar conseqiiencias nao intencionalmente?Considere-se 0 chamado "efeito de acordeao" da a,ao'. Urn in­dividuo aciona urn interruptor para ilurninar urn Auarto. Em­bora seja urn ato intencional, 0 fato de que acender a luz alertaurn gatuno nao e. Supondo que 0 gatuno fuja rna abaixo, sejainterceptado por urn policial e, depois de processado, passe urnano na cadeia para cumprir senten,a por arrombamento dedomicilio, tudo foi conseqiiencia nao intencional do ato deacionar 0 interrnptor da luz? Quais foram as coisas que 0 indi­viduo "fez"? Mencionarei urn exemplo adicional, extraido deuma teoria de segrega,ao etnica'. Urn padriio de segrega,aoetnica poderia desenvolver-se, sem qualquer dos envolvidospretender que isso acontecesse, da seguinte maneira, que podeser ilustrada por analogia. Imagine-se urn tabuleiro de xadrezque tern urn jogo de pe,as de 5 pence e urn jogo de pe,as de 10pence. Elas estao distribuidas ao acaso no tabuleiro tal comoindividuos poderiam estar nurna area urbana. Presume-se que,

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TELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAC;:AO 11

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embora nao sintam hostilidade em relayao ao outro grupo, osmembros de cada grupo nao querem viver num bairro ondeestao etnicamente em minoria. No tabuleiro de xadrez cadapeya e movimentada ate encontrar-se numa posiyao tal quepelo menos 50% das peyas vizinhas sejam do mesmo tipo. 0resultado e urn padrao de extrema segregayao. As peyas de10 pence acabam sendo uma especie de gueto no meio das de5 pence. 0 "efeito de composiyao" e urn resultado de urn agre­gada de atos - sejam os de movimentar peyas no tabuleiro ouos de agentes nurn mercado de im6veis -, cada urn dos quais eintencionalmente executado. Mas 0 resultado final nao e pre­tendido nem desejado por ninguem. E, por assim dizer, urnfeito de todos e de ninguem.

Para compreender 0 que e fazer algo de forma nao inten­cional, temos de deixar claro, em primeiro lugar, como "inten­cional" deve ser entendido. Defino esse conceito como 0 quecaracteriza urn ato que seu perpetrador sabe, ou acredita, queteni uma determinada qualidade ou desfecho e no qual esseconhecimento e utilizado pelo autor para obter essa qualidadeou desfecho". Se a caracterizayao de "agencia" dada acima ecorreta, temos de separar a questao do que urn agente "faz"daquilo que e "pretendido" ou os aspectos intencionais do quee feito. "Agencia" refere-se a fazer. Acionar 0 interruptor daluz foi algo que 0 agente fez, e alertar 0 ladrao foi tambem algoque 0 agente fez. Nao foi intencional se 0 ator ignorava que 0

ladrao estava na casa ese, por alguma razao, embora soubesseda presenya do ladrao, 0 agente nao desejou usar esse conheci­mento para alertar 0 intruso. Atos nao intencionais podem serconceptualmente separados das consequencias involuntariasdas ayoes, embora a distinyiio nao importe sempre que 0 focode interesse seja a relayao entre 0 intencional e 0 nao intencio­nal. As consequencias do que os atores fazem, intencionalmen­te ou nao, sao eventos que nao teriam acontecido se eles tives­sem se comportado de modo diferente, mas cuja realizayao naoesta ao alcance do poder do agente (independentemente dequais eram suas intenyoes).

Penso ser possivel dizer que todas as coisas acontecidas aoassaltante depois de acendida a luz foram consequencias im­premeditadas do ato, urna vez que 0 individuo em questiioignorava a presenya do ladrao e, por conseguinte, iniciou asequencia nao intencionalmente. Se existem complexidadesnisso, elas tern a ver com 0 fate de urn ate aparentemente trivialpoder deflagar eventos cada vez mais distanciados dele notempo e no espayo, e nao com a premeditayao ou nao dessasconsequencias pelo perpetrador do ate original. Geralmente everdade que quanta mais as consequencias de urn ate se distan­ciam no tempo e no espayo do contexte original desse ato, me­nos provavel e que essas consequencias sejam intencionais ­mas isso, evidentemente, e influenciado pelo alcance da cog­noscitividade que os atores possuem (ver pp. 105-8) e pelo po­der que sao capazes de mobilizar. 0 habitual seria pensarmossdbre 0 que 0 agente "faz" - em contraste com as consequen­cias decorrentes do que foi feito - em termos dos fenomenosque 0 agente tern mais ou menos sob seu controle. Na maioriadas esferas da vida, e das formas de atividade, 0 ambito do po­der de controle limita-se aos contextos imediatos de ayao ouinterayao. Assim, diriamos que acender a luz foi algo que 0

agente fez, e provavelmente tambem alertar 0 ladrao, mas quenao causou a captura deste pela policia nem a condenayiio a urnano na cadeia. Embora fosse possivel que tais eventos naotivessem acontecido naquele momento e local sem 0 ate deacionar 0 interruptor, sua ocorrencia dependeu de muitos outrosresultados contingentes para eles serem algo que 0 ator originaltenha "feito".

Os fil6sofos consumiram grandes quantidades de tintatentando analisar a natureza da atividade intencional. Mas, doponto de vista das ciencias sociais, e dificil exagerar a impor­tiincia das conseqiiencias involuntarias de uma conduta inten­cional. Merton fomeceu a que talvez seja a discussao classicada questao". Sublinha ele, de forma inteiramente correta, que 0

estudo das conseqiiencias impremeditadas e fundamental parao empreendimento sociol6gico. Urn dado item da atividadepode ter conseqiiencias a) nao significativas ou b) significati-

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vas, e c) singularmente significativas ou d) multiplamente sig­nificativas. 0 que e julgado "significativo" dependeri da natu­reza do estudo em empreendimento ou da teoria em desenvol­vimento". Entretanto, Merton prossegue depois conjugando asconseqiiencias involuntirias com a analise funcional, uma ini­ciativa conceptual que, embora convencionalmente aceita naliteratura sociologica, desejo rejeitar. E importante entender,em especial, que a analise de conseqiiencias impremeditadasnao torna compreensiveis (ao contrario do que Merton afirma)as formas ou padroes aparentemente irracionais de condutasocial. Merton contrasta a atividade intencional (fun,oes mani­festas) com suas conseqiiencias impremeditadas (fun,oes la­tentes). Urn dos objetos da identifica,ao de fun,oes latentes emostrar que atividades sociais aparentemente irracionais po­dem, no fim de contas, nao ser tao irracionais assim. Is80 e0mais provavel de acontecer, segundo Merton, no caso de ativi­dades ou priticas duradouras. Estas podem freqiientemente serrejeitadas como "supersti90es", "irracionalidades", "mera iner­cia de tradi,ao" etc. Entretanto, na opiniao de Merton, se des­cobrimos que elas possuem urna fun,ao latente - urna conse­qiiencia ou conjunto de conseqiiencias impremeditadas queajudam a assegurar a continua reprodu,ao da pritica em ques­tao -, entao demonstramos que nao sao tao irracionais.

Assim, urn cerimonial, por exemplo, "pade cumprir a fun­,ao latente de refor,ar a identidade do grupo ao propiciar urnaocasiao peri6dica em que seus membros dispersos se relinempara realizar uma atividade comum"ll. Mas eurn equivQco su­por que tal demonstra,ao de urna rela,ao funcional forneceurna razao para a existencia de urna pratica. 0 que esta sendomais ou menos sub-repticiamente introduzido aqui e urna con­cep,ao de "razoes da sociedade" com base nas necessidadessociais imputadas. Assim, se entendemos que 0 grupo "neces­sita" do cerimonial para sobreviver, consideramos que a manu­ten,ao deste ultimo deixa de ser irracional. Mas dizer que aexistencia de urn estado social A necessita de urna pritica so­cial B para ajuda-lo a sobreviver em forma reconhecivelmentesemelbante e colocar urna questao que tera entao de ser respon-

dida, pois ela propria nao e a resposta. A rela,ao entre A e B naoe anatoga arela,ao que existe entre carencias ou necessidadese inten,oes no ator individual. No individuo, as carencias cons­titutivas dos impulsos motivacionais do ator geram urna rela­,ao dinamica entre motiva,ao e intencionalidade. Nao e esse 0

caso dos sistemas sociais, exceto quando os atores se compor­tam com conhecimento do que entendem por necessidadessociais l2

Depois destas observa,oes, nao hi como discordar da en­fase de Merton sobre a importilncia de conectar conseqiienciasimpremeditadas da a,ao com priticas institucionalizadas,aquelas que estao profundamente enraizadas no tempo e no es­pa,o. Isso representa 0 mais importante entre tres principaiscontextos de pesquisa - separiveis uns dos outros apenas ana­liticamente - nos quais a influencia das conseqiiencias impre­meditadas pode ser analisada. Urn e 0 tipo de exemplo acendera luz/alertar 0 assaltante/causar a fuga do assaltante/etc. 0 inte­resse do pesquisador, neste caso, esta na acurnula,ao de even­tos derivados de urna circunstancia iniciadora, sem a qual essaacumula,ao nao teria sido observada. A analise de Max Weberdos efeitos da batalha de Maratona sobre 0 desenvolvimentosubseqiiente da cultura grega, e, por conseguinte, da fprma,aoda cultura europeia em geral eurn caso pertinente, assim comosua discussao das conseqiiencias do disparo da bala que matouo arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo". A preocupa­,ao e com urn conjunto singular de eventos, remontados ate asorigens e analisados contrafatualmente. 0 pesquisador pergun­tao "0 que teria acontecido aos eventos B, C, D, E. .. se A naotivesse ocorrido?" - procurando assim identificar 0 papel de Ana cadeia ou seqiiencia.

Urn segundo tipo de contexto que podera ser focalizadopelo analista social e aquele em que, em vez de urn padrao deconseqiiencias impremeditadas, iniciadas por urn tiDieD evento,existe urn padriio resultante de urn complexo de atividades indi­viduais. A discussao sobre a segrega,ao etnica, mencionadaacima, e urn exemplo disso. Ai, urn "resultado final" definido econsiderado 0 fenomeno a ser explicado, e demonstra-se que

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esse resultado final deriva como conseqiiencia impremeditadade urn agregado de cursos de conduta intencional. 0 tema daracionalidade tende a emergir novamente aqui, embora destavez nao exista nenhuma obje,ao l6gica a fazer-Ihe. Como oste6ricos do jogo sublinharam de modo convincente, 0 resultadode urna serie de a,oes racionais, empreendidas separadamentepor atores individuais, pode ser irracional para todos eles". Os"efeitos perversos" sao apenas urn tipo de conseqiiencia impre­meditada, embora seja verdade, sem duvida, que as situa,oesem que eles ocorrem revestem-se de particular interesse".

o terceiro tipo de contexte em que podem ser tra,adas asconseqiiencias impremeditadas e aquele apontado por Merton:quando 0 interesse do analista recai sobre os mecanismos dereprodu,ao de pniticas institucionalizadas. Neste caso, as con­seqiiencias impremeditadas da a,ao formam as condi,oes re­conhecidas de a,ao ulterior nurn cicio de feedback nao reflexi­vo (la,os casuais). 18. sublinhei que nao e suficiente isolar asrela,oes funcionais a fim de explicar por que ocorre esse feed­back. Como acontece, entao, que ciclos de conseqiiencias naointencionais realimentem-se para promover a reprodu<;ao so­cial por longos periodos de tempo? De maneira geral, isso naoe dificil de analisar. Atividades repetitivas, localizadas numcontexto unico de tempo e espa,o, tern conseqiiencias regulari­zadas, impremeditadas pelos que se empenham nelas, em con­textos espa,o-temporais mais ou menos "distantes". 0 queacontece nessa segunda serie de contextos influencia, portanto,direta ou indiretamente, as condi,oes ulteriores de a,ao no con­texto original. Para entender 0 que esta acontecendo, nao saonecessarias outras variaveis explanat6rias alem daquelas queexplicam por que os individuos sao motivados a empenhar-seem pr<iticas sociais atraves do tempo e do espa,o, e que conse­qiiencias advem. As conseqiiencias nao intencionais sao regu­larmente "distribuidas" como urn subproduto do comporta­mento regularizado reflexivamente sustentado como tal porseus participantes.

Qual e a natureza da conexao 16gica entre a,ao e poder?Embora as ramifica,oes da questao sejam complexas, a rela­,ao basica envoIvida pode ser facilmente apontada. Ser capazde "atuar de outro modo" significa ser capaz de intervir nomundo, ou abster-se de tal interven,ao, com 0 efeito de in­fluenciar urn processo ou estado especifico de coisas. Issopressupoe que ser urn agente e ser capaz de exibir (cronica­mente, no fluxo da vida cotidiana) urna gama de poderes cau­sais, incluindo 0 de influenciar os manifestados por outros. Aa,ao depende da capacidade do individuo de "criar urna dife­ren,a" em rela,ao ao estado de coisas ou curso de eventospreexistente. Urn agente deixa de 0 ser se perde a capacidadepara "criar uma diferen9a", isto e, para exercer alguma especiede poder. Muitos casos interessantes para a analise social gra­vitam em torno dos limites do que pode ser considerado a,ao ­quando 0 poder do individuo e limitado por uma gama de cir­cunstancias especificaveis". Mas e de primordial importanciareconhecer que as circunsHincias de coeryao social, em que asindividuos "nao tern escolha", nao podem ser equiparadas coma dissolu,ao da a,ao como tal. "Nao ter escolha" nao significaque a a,ao foi substituida por rea,ao (como quando uma pes­soa pestaneja se urn movimento rapido e feito perto de seusolhos). Isso poderia parecer tao 6bvio que nao precisaria se­quer ser dito. Mas algumas escolas muito proeminentes de teo­ria social, associadas principalmente com 0 objetivismo e coma "sociologia estrutural", nao reconheceram essa distin,ao.Elas partiram do pressuposto de que as coer,oes atuam comofor,as na natureza, como se "nao ter escolha" fosse equivalentea ser irresistivel e incompreensivelmente impelido por pres­soes mecanicas (ver pp. 247-50).

Colocando essas observa,oes de urn outro modo, pode­mos dizer que a a,ao envolve logicamente poder no sentido decapacidade transformadora. Nesse sentido, pelo significadomais abrangente de "poder", 0 poder e logicamente anterior itsubjetividade, it constitui,ao da monitora,ao reflexiva da con-

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Agenda e poder

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duta. Vale a pena enfatizar esse ponto, porque as concep90esde poder nas ciencias sociais tendem a refletir fielmente 0 dua­lismo de sujeito e objeto a que nos referimos antes. Assim,"poder" e definido, com muita frequencia, em termos de inten­9ao ou de vontade, como a capacidade de obter resultados de­sejados e pretendidos. Outros autores, por contraste, entre elesParsons e Foucault, veem 0 poder como, acima de tudo, urnapropriedade da sociedade ou da comunidade social.

A questao nao e eliminar urn desses tipos de concep9ao acusta do outro, mas expressar a rela9ao entre eles como urnacaracteristica da dualidade da estrutura. Em minba opiniao,Bachrach e Baratz estao certos quando, em sua muito conheci­da discussao do assunto, dizem que 0 poder tern duas "faces"(nao tres, como declara Steven Lukes)". Eles representam es­sas faces como a capacidade de atores de colocar em vigordecisoes que preferem, por urn lado, e como a "mobiliza9ao detendencias" que esta embutida nas institui90es, por outro. Issonao e totalmente satisfat6rio porque preserva urna concep9aode poder soma-zero. Em vez de usar a terminologia deles, po­demos expressar a dualidade de estrutura nas rela90es de poderda seguinte maneira. Os recursos (focalizados via significa9aoe legitima9ao) sao propriedades estruturadas de sistemas so­ciais, definidos e reproduzidos por agentes dotados de capaci­dade cognoscitiva no decorrer da intera9ao. 0 poder nao estaintrinsecamente ligado a realiza9ao de interesses secionais.Nessa concep9ao, 0 uso do poder nao caracteriza tipos especi­ficos de conduta, mas toda a a9ao, eo poder nao e em si mesmourn recurso. Os recursos sao vefculos atraves dos quais 0 podere exercido, como urn elemento rotineiro da exemplifica9ao daconduta na reprodu9ao social. Nao devemos conceber as estru­turas de domina9ao firmadas em institui90es sociais como sede algurna forma produzissem laboriosamente "corpos d6ceis"que se comportam como os autonomos sugeridos pela cienciasocial objetivista. 0 poder em sistemas sociais que desfrutamde certa continuidade no tempo e no espa90 pressupoe rela90esregularizadas de autonomia e dependencia entre atores ou cole­tividades em contextos de intera9ao social. Mas todas as for-

Estrutura, estrutura9ao

mas de dependencia oferecern alguns recursos por meio dosquais aqueles que sao subordinados podem influenciar as ativi­dades de seus superiores. Ea isso que chamo de dialhica docontrole em sistemas sociais.

19ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA9AO

Passemos agora ao ceme da teoria da estrutura9ao: osconceitos de "estrutura", "sistema" e "dualidade de estrutura".A n09ao de estrutura (ou "estrutura social"), e claro, goza degrande destaque nos escritos da maioria dos autores funciona­listas e emprestou seu nome as tradi90es do "estruturalismo".Mas em nenburn caso isso e conceituado de urna forma maisbern adaptada as exigencias da teoria social. Os autores funcio­nalistas e seus criticos deram muito mais aten9ao a ideia de"fun~ao" do que ade "estrutura" e, conseqiientemente, esta ul­tima tendeu a ser usada como urna n09ao recebida. Mas naopode haver duvida sobre 0 modo como "estrutura" e usualmen­te entendida pelos funcionalistas e, de fato, pela vasta maioriados analistas sociais - como uma especie de "padronizac;ao"das rela90es sociais ou dos fenomenos sociais. Com frequen­cia, isso eingenuamente concebido em termos de imagens vi­suais, analogas ao esqueleto ou morfologia de urn organismo

, ou as vigas-mestras de urn edificio. Tais concep90es estao inti­mamente ligadas ao dualismo de sujeito e objeto social: "estru­tura" apresenta-se nesse caso como "externa" a a9ao humana,como uma fonte de restri9ao a livre iniciativa do sujeito inde­pendentemente constituido. Tal como foi conceituada no pen­samento estruturalista e p6s-estruturalista, por outro lado, an09ao de estrutura e mais interessante. Ela e caracteristicamen­te concebida, ai, niio como urna padroniza9ao de presen9as, mascomo urna interse9ao de presen9a e ausencia; os c6digos subja­centes tern de ser inferidos de manifesta90es superffciais.

Essas duas ideias de estrutura talvez pare9am, a primeiravista, sem nenhuma relac;ao entre si, mas, de fato, ambas serelacionam com importantes aspectos da estrutura9ao de rela-

-/A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE

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ca urn evidente risco de interpreta,ao erronea devido a certosusos dominantes de "regras" na literatura filosOfica.

I) As regras sao pensadas freqiientemente em liga,ao comjogos, como prescri,oes formalizadas. Aquelas envolvidasna reprodu,ao de sistemas sociais nao sao geralmente dessetipo. Mesmo as que sao codificadas como leis estao sujeitas,de forma caracteristica, a urna diversidade muitissimo maiorde contesta,oes do que as regras de jogos. Embora 0 usodestas ultimas, como 0 xadrez etc., enquanto prototipico daspropriedades governadas por regras de sistemas sociais, sejafreqiientemente associado a Wittgenstein, mais importante eo que Wittgenstein tern a dizer sobre os jogos de crian,asenquanto exemplifica,ao das rotinas da vida social.

2) As regras sao freqiientemente tratadas no singular, como sepudessem estar relacionadas com exemplos ou casos especi­ficos de conduta. Mas isso e sumamente enganoso se enca­rado como anaIogo ao funcionamento da vida social, na qualas pniticas sao sustentadas em associa.;:ao com conjuntosmais ou menos livremente organizados.

3) As regras nao podem ser conceituadas separadamente dosrecursos, os quais se referem aos modos pelos quais as rela­,oes transformadoras sao realmente incorporadas a produ­,ao e reprodu,ao de praticas sociais. Assim, as propriedadesestruturais expressam formas de daminariia e pader.

4) As regras subentendem "procedimentos met6dicos" de inte­ra,ao social, como Garfinkel, em especial, deixou bern cla­ro. Elas entrecruzam-se tipicamente com praticas na contex­tualidade de encontros localizados: a gama de considera­,oes ad hoc que esse autor identifica esta cronicamente en­volvida com a exemplifica,ao de regras e e fundamentalpara a forma de tais regras. Todo ator social competente,acrescente-se, e ipso Jacta urn te6rico social no nlvel daconsciencia discursiva e urn "especialista metodo16gico"nos nlveis de consciencia pratica e discursiva.

5) As regras possuem dois aspectos, e e essencial distingui-Iosconceptualmente, urna vez que alguns escritores filosOfi-

21ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAr;:AO

lA CONSTITUlr;:A'O DA SOCIEDADE

,oes sociais, aspectos que, na teoria da estrutura,ao, sao apreen­didos mediante 0 reconhecimento de uma diferencia,ao entreos conceitos de "estrutura" e "sistema". Ao analisar rela,oessociais, temos de reconhecer tanto urna dimensao sintagmati­ca, a padroniza,ao de rela,oes sociais no tempo-espa,o envol­vendo a reprodu,ao de praticas localizadas, quanta urna dimen­sao paradigmatica, envolvendo uma ordem virtual de "modos /de estrutura,ao" recursivamente implicados em tal reprodu,ao.Nas tradi,oes estruturalistas, M habitualmente ambigiiidadesobre se as estruturas se referem a uma matriz de transforma­,oes admissiveis dentro de urn conjunto ou a regras de trans­forma,ao que govemam a matriz. Eu trato a estrutura, pelomenos em seu significado mais elementar, como referente atais regras (e recursos). Eenganoso, porem, falar de "regras detransforma,ao", porque todas as regras sao inerentemente trans­formacionais. Assim, a estrutura refere-se, em analise social,as propriedades de estrutura,ao que permitem a "delimita,ao"de tempo-espa,o em sistemas sociais, as propriedades que pos­sibilitam a existencia de praticas sociais discemivelmente se­melhantes por dimensoes variaveis de tempo e de espa,o, e lhesemprestam uma fanna "sistemica". Dizer que estrutura euma"ordem virtual" de rela,oes transformadoras significa que ossistemas sociais, como praticas sociais reproduzidas, nao tern \"estruturas", mas antes exibem "propriedades estruturais", eque a estrutura s6 existe, como presen,a espa,o-temporal, emsuas exemplifica,oes em tais praticas e como tra,os mnemicosorientando a conduta de agentes hurnanos dotados de capacida-de cognoscitiva. Isso nao nos impede de conceber as propriedadesestruturais como hierarquicamente organizadas em termos deextensao espa,o-temporal das praticas que eles recursivamenteorganizam. As propriedades estruturais mais profundamente em­butidas, implicadas na reprodu,ao de totalidades sociais, chamade principias estruturais. Aquelas praticas que possuem a maiorextensao espa,o,temporal, dentro de tais totalidades, podem serdesignadas como instituiroes.

Falar de estrutura enquanto "regras" e recursos, e de estru­turas enquanto conjuntos isolaveis de regras e recursos, impli-

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Muitos outros exemplos poderiam, eclaro, ser oferecidos,mas estes servirao no presente contexto. No exemplo 3, H re_gra" e mais ou menos equivalente a habito ou rotina. 0 sentidode "regra" e bastante fraco, porquanto nao pressupae geral­mente algurna especie de preceito subjacente a que 0 individuoesta obedecendo nem qualquer san,ao aplicavel para escoraresse preceito; esimplesmente algo que a pessoa faz de maneirahabitual. 0 habito e parte da rotina, e darei muita enfase aimportancia da rotina na vida social. As "regras", tal como asentendo, certamente incidem sobre numerosos aspectos da pril­tica rotineira, mas uma pnhica rotineira nao euma regra.

Os casos I e 4 pareceram a muitos representar dois tipos deregra: a constitutiva e a reguladora. Explicar a regra que gover­na 0 xeque-mate no xadrez edizer algo sobre 0 que participa dapropria cria,ao do xadrez como jogo. A regra de que os operil­rios devem bater 0 ponto a urna determinada hora, por outrolado, nao ajuda a definir em que consiste 0 trabalho; ela especi­fica como este deve ser exercido. Como diz Searle, as regrasreguladoras sao comurnente parafraseadas na forma "Fazer X"ou "Se Y, fazer X". Algumas regras constitutivas terao esse ca­rilter mas a maioria tera a forma "X vale como Y" ou "X valecomo Y no contexto C"I8. A existencia de algo suspeito nessadistin,ao, como referente a dois tipos de regra, eindicada pelainadequa,ao etimologica do termo "regra reguladora". Afinal,a palavra "regulador" ja subentende "regra": sua defini,ao nodicionilrio e "0 que controla por meio de regras". Eu diria que Ie 4 expressam, na verdade, antes dois aspectos de regras do quedois tipos variantes de regra. 0 exemplo I e certamente parte doque 0 xadrez e, mas, para os enxadristas, ele tern propriedadessancionadoras ou "reguladoras"; refere-se a aspectos do jogoque devem ser observados. Mas 0 exemplo 4 tarnbem possuiaspectos constitutivos. Talvez nao participe da defini,ao do queseja "trabalho", mas certamente entra na de urn conceito como"burocracia industrial". Os exemplos I e 4 dirigem a nossa aten­,ao, na realidade, para dois aspectos das regras: seu papel naconstitui,ao do significado e sua estreita conexao com san,aes.

A CONSTITU1I:;AO DA SOCIEDADE

cos, como Winch, sao propensos a fundi-los. Por urn lado,as regras relacionam-se com a constitui,ao de significado e,por outro, com 0 sancionamento dos modos de condutasocial.

Apresentei 0 usa acima de "estrutura" para ajudar a desfa­zer 0 carater fixo ou meciinico que 0 termo epropenso a ter nousa sociologico ortodoxo. Os conceitos de "sistema" e de "es­trutura,ao" curnprem muito da fun,ao que geralmente eatri­buida a "estrutura". Ao propor urn emprego de "estrutura" quepodera parecer, a primeira vista, muito distante das interpreta­,aes convencionais do termo, nao pretendo sustentar que ver­saes mais vagas sejam completamente abandonadas. "Socie­dade", "cultura" e uma gama de outras formas da terminologiasociologica podem ter usos duplos que criam dificuldadessomente em contextos em que ha uma diferen,a na naturezadas declara,aes que os empregam. Do mesmo modo, nao te­nho qualquer obje,ao especial a se falar de "estrutura de clas­se", "a estrutura das sociedades industrializadas", etc., quandoessas expressaes se propaem indicar, de urn modo geral, carac­teristicas institucionais relevantes de urna sociedade ou g~made sociedades.

Uma das principais proposi,aes da teoria da estrutura,aoeque as regras e os recursos esbo,ados na produ,ao e na repro­du,ao da a,ao social sao, ao mesmo tempo, os meios de repro­du,ao do sistema (a dualidade de estrutura). Mas como inter­pretar essa afirma,ao? Em que sentido e Hcito afirmar que,quando me dedico as minhas tarefas cotidianas, minhas ativi­dades incorporam e reproduzem, digamos, as institui,aes glo­bais do capitalismo moderno? Que regras estao sendo aquiinvocadas, em todo 0 caso? Consideremos os seguintes exem­plos possiveis do que sao regras:

I) "A regra que define 0 xeque-mate no xadrez e...";2) Uma formula: an =n' +n - I;3) "Como regra, R levanta-se todos os dias as 6 horas";4) "E uma regra que todos os operilrios devem bater seu ponto

as 8 horas da manha".

fELEMENTOS DA TEORJA DA ESTRUTURA(:AO 23

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"O~'=''-'OD'~'~D' I "f~~'"' ITO",' 0"",_,-,"24

o exemplo 2 podera parecer 0 menos promissor como urnaforma de conceituar "regra" que possua alguma rela9ilo com"estrutura". Na verdade, argumentarei, trata-se do mais apropria­do entre os quatro. Nilo quero com isso dar a entender que a vidasocial possa ser reduzida a urn conjunto de principios matema­ticos, 0 que esta muito longe de meu modo de pensar. Querodizer que esta na natureza das formulas 0 fato de podermosrevelar do melhor modo qual e 0 sentido analiticamente maisefetivo de "regra" em teoria social. A formula an ~ n 2 + n - I eextraida do exemplo de Wittgenstein de jogos nurnericos". Umapessoa escreve uma seqiiencia de numeros; uma segunda ela­bora a formula, fornecendo os numeros que se seguem. 0 que eurna formula desse tipo e 0 que significa entende-Ia? Entende­la nilo e expressa-Ia. Pois uma pessoa poderia expressa-Ia sementender' a serie; alternativamente, e possivel compreender aserie sem ser capaz de dar expressilo verbal aformula. Com­preender nilo e urn processo mental acompanhando a solU9ilodo enigma que a seqiiencia de numeros apresenta - pelo me­nos, nao e urn processo mental no sentido em que 0 e ouviruma melodia ou trase declamada. Esimplesmente ser capaz deaplicar a formula no contexto e do modo corretos, a fim de con­tinuar a serie.

Uma formula e urn procedimento generalizavel: generali­zavel porque se aplica a uma vasta gama de contextos e oca­sioes; urn procedimento porque permite a continua9ilo metodi­ca de uma seqiiencia estabelecida. Silo as regras lingiiisticasassim tambem? Penso que sim - muito mais do que os tipos deregra de que nos fala Chomsky. E isso parece tambem harmo­nizar-se com os argumentos de Wittgenstein ou, de qualquerforma, com uma possivel interpreta9ilo dos mesmos. De acor­do com Wittgenstein, "compreender uma Iinguagem significadominar uma tecnica"20. Isso pode ser traduzido da seguintemaneira: 0 usa da Iinguagem e primordialmente metodologico,e as regras da linguagem silo procedimentos metodicamenteaplicados que estilo envolvidos nas atividades prliticas da vidacotidiana. Esse aspecto da linguagem e muito importante, em­bora quase nunca receba grande destaque por parte da maioria

25

dos seguidores de Wittgenstein. As regras "enunciadas" como osexemplos I e 4 silo interpreta90es de atividade, assim como serelacionam com tipos especificos de atividades: todas as regrascodificadas adotam essa forma, uma vez que conferem expres­silo verbal ao que supostamente e feito. Mas as regras silo pro­cedimentos de a9ilo, aspectos da praxis. Epor referencia a issoque Wittgenstein resolve 0 que ele, em primeiro lugar, estabe­Ieee como urn "paradoxo" de regras e acompanhamento de re­gras. 0 paradoxo esta em nilo se poder dizer que algum cursode a9ilo e guiado por urna regra, porque todo curso de a9ilo podeser tra9ado de modo a concordar com essa regra. Entretanto, seesse e 0 caso, tambem e verdade que se pode fazer com quetodo e qualquer curso de a9ilo conflite com essa regra. Temosaqui urn mal-entendido, uma confusilo entre a interpreta9ilo ouexpressilo verbal de uma regra e a obediencia a ela".

Encaremos as regras da vida social, portanto, como tecni­cas ou procedimentos generalizaveis aplicados no desempe­nho/reprodu9ilo de prliticas sociais. As regras formuladas ­aquelas que recebem expressilo verbal, como canones de lei,normas burocrliticas, regras de jogos etc. - silo, pois, interpre­ta90es codificadas de regras como tais. Devem ser aceitas nilocomo regras exemplificadoras em geraI, mas como tipos espe­cificos de regra formulada, os quais, em virtude de sua formu­la9ilo aberta, assumem varias qualidades especificas".

Ate agora, essas considera90es oferecern apenas urna abor­dagem preliminar do problema. Como e que as formulas se re­Iacionam com as praticas de que os atores sociais se ocupam, eem que tipos de formulas estamos mais interessados para osfins gerais de analise social? Quanto aprimeira parte da per­gunta, podemos dizer que a consciencia de regras sociais, ex­pressa sobretudo na consciencia prlitica, e 0 proprio >imago da­quela "cognoscitividade" que caracteriza especificamente osagentes humanos. Como atores sociais, todos os seres hurnanossao altamente "instruidos" no que diz respeito ao conhecimen­to que possuem e aplicam na produ9ilo e reprodu9ilo de encon­tros sociais cotidianos; 0 grande volume desse conhecimento e,em sua maioria, de carliter mais prlitico do que teorico. Como

Page 33: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Schutz e muitos outros sublinharam, os atores empregam es­quemas simbolizados (formulas) no decorrer de suas atividadesdiarias para resolver rotineiramente as situa90es da vida social.a conhecimento do procedimento, ou 0 dominio das tecnicasde "fazer" atividade social, e metodologico por defini9ao. Querdizer, tal conhecimento nao especifica todas as situa90es queum ator podera defrontar, nem poderia faze-Io; ele proporcionaa capacidade generica de reagir a uma gama indeterminada decircunstilncias sociais e de influencia-Ias.

as tipos de regras que se revestem da maior importilnciapara a teoria social estao circunscritos a reprodu9ao de praticasinstitucionalizadas, isto e, praticas mais profundamente sedi­mentadas no tempo-espa90". As principais caracteristicas dasregras pertinentes as questoes gerais de analise social podemser descritas da seguinte maneira:

Por regras de algum modo intensivas entendo as formulasconstantemente invocadas no decorrer das atividades do dia-a­dia, que entram na estrutura9ao de grande parte da textura davida cotidiana. As regras da linguagem tern esse carater. Mastambem e 0 caso, por exemplo, dos procedimentos utilizadospor atores na organiza9ao do revezamento em conversa90es ouem intera9ao. Eles podem ser contrastados com regras que,embora tenham talvez urn escopo mais amplo, tern urn impactoapenas superficial sobre boa parte da textura da vida social.Esse contraste e importante, quando menos pelo fato de sercomumente aceito como ponto pacifico pelos cientistas sociaisque as regras mais abstratas - por exemplo, a lei codificada _sao as mais influentes na estrutura9ao da atividade social. Euproporia, entretanto, que muitos procedimentos aparentementetriviais seguidos na vida diana exercem uma influencia maisprofunda sobre a generalidade da conduta social. As demais ca­tegorias devem ser mais ou menos obvias. A maioria das regrasenvolvidas na produ9ao e reprodu9ao de praticas sociais saoapenas tacitamente apreendidas pelos atores: eles sabem como

A CONSTITUl<;A-O DA SOCIEDADE 27ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA<;AO

"prosseguir". Aformula~ao discursiva de uma regra ja eumainterpretariio dela e, conforme assinalei, pode em si e de simesma alterar a forma de sua aplica9ao. Entre as regras quenao sao apenas discursivamente formuladas, mas formalmentecodificadas, 0 caso tipico e 0 das leis. As leis, e claro, estao en­tre os tipos mais fortemente sancionados de regras sociais, enas sociedades modemas elas tern grada90es formalmente des­critas de retribui9ao. Contudo, seria um grave erro subestimara for9a de san90es informalmente aplicadas em rela9ao a umavariedade de praticas cotidianas corriqueiras. A parte tudo 0mais que se possa pensar ter sido demonstrado pelos "experi­mentos com confian9a" de Garfinkel, uma coisa pelo menos ecerta: eles mostram a for9a extraordinariamente irresistivel econvincente de que estao investidas caracteristicas aparente­mente secundarias da resposta coloquial".

As qualidades estruturadoras das regras podem ser estru­turadas, em primeiro lugar, em rela9ao a forma9ao, manuten­9ao, termino e reconstitui9ao de encontros. Embora uma varie­dade impressionante de procedimentos e taticas seja usada pe­los agentes na constitui9ao e reconstitui9ao de encontros, epossivel que os particularmente importantes sejam os envolvi­dos na manuten9ao da seguran9a ontologica. as "experimen­tos" de Garfinkel sao certamente relevantes nesse aspecto. Elesindicam que as prescri90es envolvidas na estrutura9ao da inte­ra9ao diaria sao muito mais fixas e restritivas do que possamparecer, dada a desenvoltura com que sao ordinariamente obe­decidas. Isso se deve certamente ao fato de as respostas ou atosdesviantes que Garfinkel ensinou a seus "experimentadores"terem perturbado 0 senso de seguran9a ontologica dos "sujei­tos" pela corrosao da inteligibilidade do discurso. Violar ouignorar regras nao e, evidentemente, a Unica maneira pela qualpodem ser estudadas as propriedades constitutivas e sanciona­doras de regras intensivamente invocadas. Mas nao ha duvidade que Garfinkel ajudou a desvendar um campo extraordina­riamente rico de estudo - realizando a "alquimia do sociologo",a "transmuta9ao de qualquer fragmento de atividade social co­mum numa esclarecedora publica9ao"".

I

fracamente sancionado

fortemente sancionado

informal

formalizadodiscursivo

tacito

26

intensivo

superficial

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Distingo "estrutura" como termo generico de "estruturas"no plural e ambas das "propriedades estruturais de sistemas so­ciais"26. "Estrutura" refere-se nao s6 a regras envolvidas na pro­ducao e reproducao de sistemas sociais, mas tambem a recur­sos (sobre os quais eu nao disse muito ate agora, mas 0 farei embreve). Como acontece comurnente com seu uso nas cienciassociais, 0 termo "estrutura" tende a ser ligado com os aspectosmais duradouros dos sistemas sociais em mente, e nao queroperder essa conotacao. Os mais importantes aspectos da estru­tura sao as regras e os meios recursivamente envolvidos eminstituicoes. As instituicoes sao, por definicao, os aspectosmais duradouros da vida social. Ao falar das propriedades es­truturais dos sistemas sociais refiro-me as suas caracteristicasinstitucionalizadas, proporcionando "solidez" atraves do tem­po e do espaco. Uso 0 conceito de "estruturas" para chegar asrelacoes de transformacao e mediacao que constituem as "cha­ves de circuito" subjacentes as condicoes observadas de repro­ducao de sistema.

Responderei agora a pergunta que formulei originalmen­te: de que maneira e possivel dizer que a conduta de atoresindividuais reproduz as propriedades estruturais de coletivida­des maiores? A questao e, ao mesmo tempo, mais facil e maisdiffcil de responder do que parece. Nurn nivel16gico, a respos­ta nao passa de urn truismo. Quer dizer, embora a existenciacontinuada de grandes coletividades ou sociedades nao depen­da, evidentemente, das atividades de qualquer individuo emparticular, elas manifestamente deixariam de existir se todos osagentes envolvidos desaparecessem. Num nivel substantivo, aresposta a pergunta depende de questoes ainda por tratar - asconcernentes aos mecanismos de integracao de diferentes tiposde totalidade social. Esempre 0 caso de que a atividade cotidia­na de atores sociais ap6ia-se e reproduz aspectos estruturais desistemas sociais mais amplos. Mas as "sociedades" - comodeixarei claro - nao sao necessariamente coletividades unifica­das. A "reproducao social" nao deve ser equiparada aconsolida­cao da coesao social. A localiza,ao de atores e de coletivida­des em diferentes setores ou regiOes de sistemas sociais mais

Resumamos nossa argurnenta,ao ate aqui. A estrutura,como conjuntos de regras e recursos recursivamente organiza­dos, esta fora do tempo e do espa,o, exceto em suas exemplifi­cayoes e coordenar;ao como trar;os mnemicos, e emarcada poruma "ausencia do sujeito". Os sistemas sociais em que a estru­tura esta recursivamente implicada, pelo contrano, compreen­dem as atividades localizadas de agentes humanos, reproduzi­das atraves do tempo e do espa,o. Analisar a estrutura,ao de

abrangentes influencia fortemente 0 impacto mesmo de suaconduta mais habitual sobre a integra,ao das totalidades so­ciais. Neste ponto, atingimos os limites de exemplos lingiiisti­cos que poderiam ser usados para ilustrar 0 conceito da duali­dade de estrutura. Epossivel obter consideravel esclarecimen­to para os problemas de analise social a partir do estudo dasquantidades recursivas da fala e da linguagem. Quando produ­zo urna expressao gramatical, ap6io-me nas mesmas regras sin­taticas que essa expressao ajuda a produzir. Mas falo a "mes­rna" linguagem dos outros locutores de minha comunidade lin­giiistica; todos compartilhamos das mesmas regras e praticaslingiiisticas, oferecernos ou tomamos uma gama de varia,oesrelativamente secundirias. NaG e necessariamente esse 0 casodas propriedades estruturais de sistemas sociais em geral. Masesse e urn problema que nao esta relacionado com 0 conceitode dualidade da estrutura como tal. Relaciona-se com 0 modocomo devem ser conceituados os sistemas sociais, especial­mente as "sociedades".

29

Estruturayao

Condicoes governandoa continuidade ou1ransmuta9ao deestruturas e, portanto,a reprodu9ao desistemas sociais

Sistema(s)

Relacoes reproduzidasentre atores oucoletividades,organizadascomo praticas sociaisregulares

Estrutura{s}

A dualidade da estrutura

Regras e recursos, auconjuntos de rela90esde transformacao.organizados comopropriedades desistemas sociais

r '~M,~mDmOM' ill'm=~",A CONSTITUl9AO DA SOCIEDADE28

Page 35: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

sistemas sociais significa estudar os modos como tais sistemas,fundamentados nas atividades cognoscitivas de atores localiza'dos que se apoiam em regras e recursos na diversidade de con­textos de a,ao, sao produzidos e reproduzidos em intera,ao.Crucial para a ideia de estrutura,ao e 0 teorema da dualidadeda estrutura, 0 qual esta logicamente subentendido nos argu­mentos acima apresentados. A constitui,ao de agentes e estru­turas nao sao dois conjuntos de fenomenos dados independen­temente - urn dualismo -, mas representam uma dualidade. Deacordo com a no,ao de dualidade da estrutura, as propriedadesestruturais de sistemas sociais sao, ao mesmo tempo, meio eIfim das praticas que elas recursivamente organizam. A estrutu-fa nao e"extema" aos individuos: enquanto traltOS rnnemicos eexemplificada em praticas sociais, e, num certo sentido, mais"intema" do que extema as suas atividades, num sentido dur­kheimiano. Estrutura nao deve ser equiparada a restri,ao, acoer,ao, mas e sempre, simultaneamente, restritiva e facilita­dora. Isso, e claro, nao impede que as propriedades estrutura­das de sistemas sociais se estendam, no tempo e no espa,o, paraalem do controle de quaisquer atores individuais. Tampoucocompromete a possibilidade de que as teorias de sistemas so­ciais dos proprios autores, que eles ajudam a constituir e a re­'constituir em suas atividades, possam reificar aqueles siste­mas. A reifica,ao das rela,oes sociais, ou a "naturaliza,ao"discursiva das circunstancias e produtos historicamente contin­gentes da a,ao humana, e uma das principais dimensoes daideologia na vida sociaF'.

Ate as mais rudimentares formas de pensamento reifica­do, entretanto, deixam intata a significa,ao fundamental dacognoscitividade de atores humanos, pois esta baseia-se menosna consciencia discursiva do que na consciencia pritica. 0 co­nhecimento de conven,oes sociais, de si mesmo e de outrosseres humanos, pressuposto na capacidade de "prosseguir" nadiversidade de contextos da vida social, e detalhado e impres­sionante. Todos os membros competentes da sociedade saoimensamente talentosos nas realiza,oes priticas de atividadessociais e habeis "sociologos". 0 conhecimento que eles pos-

suem nao e secundario para a padroniza,ao persistente da vidasocial, mas faz parte dela. Esta enfase e absolutamente neces­saria para evitarem os erros do funcionalismo e do estruturalis­mo, erros que, suprimindo ou reduzindo as razoes dos agentes- a racionaliza,ao da a,ao como cronicamente envolvida naestrutura,ao de praticas sociais -, procuram as origens de suasatividades em fenomenos que esses agentes ignoram28

• Mas eigualmente importante evitar cair-se no equivoco oposto deabordagens hermeneuticas e de varias versoes da fenomenolo­gia, as quais tendem a considerar a sociedade a cria,ao plasticade sujeitos humanos. Cada uma dessas abordagens e versoes euma forma ilegitima de redu,ao derivada de uma falta de con­ceitua,ao adequada da dualidade da estrutura. De acordo coma teoria da estrutura,ao, 0 momenta da produ,ao da a,ao etambem um momenta de reprodu,ao nos contextos do desem­penho cotidiano da vida social, mesmo durante as mais vioIen­tas convulsoes ou as mais radicais formas de mudan,a social.Nao e correto encarar as propriedades estruturais de sistemassociais como "produtos sociais",ja que com isso tende-se a su­gerir que atores pre-constituidos se reUnem, de alguma forma,para cria-Ias". Ao reproduzirem propriedades estruturais, pararepetir uma Frase usada anteriormente, os agentes tambemreproduzem as condi,oes que tomam possivel tal a,ao. A estru­tura nao tern existencia independente do conhecimento que osagentes possuem a respeito do que fazem em sua atividadecotidiana. Os agentes humanos sempre sabem 0 que estiio fa­zendo no myel da consciencia discursiva, sob alguma forma dedescri,ao. Entretanto, 0 que eles fazem pode ser-Ihes inteira­mente desconhecido sob outras descri,oes, e talvez conhe,ammuito pouco sobre as conseqiiencias ramificadas das ativida­des em que estao empenhados.

A dualidade da estrutura e sempre a base principal dascontinuidades na reprodu,ao social atraves do espa,o-tempo.Por sua vez, pressupoe a monitora,ao reflexiva (e a integra,ao)de agentes na duree da atividade social cotidiana. Mas a cog­noscitividade humana e sempre limitada. 0 fluxo da a,ao pro­duz continuamente conseqiiencias que nao estavam nas inten-

30A CONSTfTUl9A'O DA SOCIEDADE

rELEMENTOS DA TEORJA DA ESTRUTURA9A'O 31

Page 36: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

,oes dos atores, e estas tambem podem formar condi,oes nao­reconhecidas de a,ao, nos moldes de um feedback. A historiahumana e criada por atividades intencionais, mas nao constituium projeto deliberado; ela se esquiva persistentemente dos es­for,os para coloca-la sob dire,ao consciente. Contudo, essastentativas sao continuamente feitas por seres humanos, que agemsob a amea,a e a promessa da circunstiincia de serem Unicascriaturas que fazem sua "historia" no conhecimento desse fato.

A teoriza,ao de seres humanos acerca de sua a,ao signifi-ca que, assim como a teoria social nao foi uma inven,ao de teo­ricos sociais profissionais, tambem as ideias produzidas poresses teoricos tendem inevitavelmente a ser realimentadas den­tro da propria vida social. Urn aspecto disso e a tentativa demonitorar e, por esse meio, controlar condi,oes altamente ge­neralizadas de reprodu,ao do sistema - urn fenomeno de gran-de importancia no mundo contemporaneo. Para se apreende­rem conceptualmente tais processos monitorados de reprodu­,ao, temos de fazer certas distin,oes pertinentes ao que sao sis- )\temas sociais enquanto praticas reproduzidas em cenarios de \intera,ao. As rela,oes implicadas ou tomadas reais em siste­mas sociais sao, e claro, amplamente variaveis em termos de \seu grau de "imprecisao" e permeabilidade. Mas, uma vez ad- \mitido isso, podemos reconhecer dois niveis no que diz respei- )1

to aos meios pelos quais urn elemento de "sistemidade" e obtidona intera,ao. Urn deles e 0 geralmente manifesto no funciona­lismo, como foi anteriormente mencionado, quando a interde­pendencia e concebida como urn processo homeostatico seme­lhante aos mecanismos de auto-regula,ao que operam no inte- !rior de urn organismo. Nao pode haver obje,ao a isso enquanto~

for reconhecido que a "imprecisao" da maioria dos sistemassociais toma muito remoto 0 paralelo orgiinico e que esse modorelativamente "'mecanizado" de reprodu~ao de sistema nao e0

Unico encontrado em sociedades humanas. A reprodu,ao dosistema homeostatico na sociedade humana pode ser vista co­mo envolvendo a opera,ao de la,os causais, em que uma gamade conseqiiencias impremeditadas da a,ao realimenta-se parareconstituir as circunstiincias originadoras. Mas em muitos con-

Formas de institui,ao

A divisao das regras em modo de constitui,ao significati­va au intencional e em sam;5es normativas, junto com 0 can­ceito de recursos - fundamental para a conceitua,ao de poder-,acarreta varias implica,oes que precisam ser explicitadas".Aquilo a que chamo de as "modalidades" da estrutura,ao servepara esclarecer as principais dimensoes da dualidade da estru­tura em intera,ao, relacionando as capacidades cognoscitivasdos agentes a caracteristicas estruturais. Os atores ap6iam-s

e

nas modalidades da estrutura,ao na reprodu,ao de sistemas deintera9ao, reconstituindo, justamente por isso, suas proprieda­des estruturais. A comunica9i\o de significado em intera,ao,

33

Integra980 de sistema

Reciprocidade entre atores aucoletiv"ldades atraveS do tempo­espago ampliado

Reciprocidade entre atores emcontextos de co-presenga

Integratyao social

ELEMENTOSDA TEORIA DA ESTRUTURA(:AO

textos da vida social ocorrem processos de "filtragem de infor­ma,ao seletiva", pelos quais atores estrategicamente colocadosprocuram reflexivamente regular as condi,oes globais de re­produ,ao do sistema, seja para manter as coisas como estiio,

seja para muda-Ias30•

A distin,ao entre la,os causais homeostaticos e auto-reIla9i\o reflexa na reprodu,ao do sistema deve ser complementapar mais uma e ultima: aquela entre integra,ao social e Integ ­,ao de sistema" . 0 termo "integra,ao" pode ser entendido coimplicando reciprocidade de praticas (de autonomia e depen­dencia) entre atores ou coletividades". Portanto, integra,ao so­cial significa "sistemidade" no nivel da intera,ao face a face. Aintegra,ao de sistema refere-se a conexoes com aqueles que es­tao fisicamente ausentes nO tempo ou no espa,o. Seus meca­nismos certamente pressupoem os da integra,ao social, mas elessao tambem distintos, em alguns aspectos-chave, daqueles en­

volvidos em rela,oes de co-presen,a.

A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE32

Page 37: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

As dimensoes da dualidade da estrutura estao retratadasna Figura 2". as atores humanos sao capazes nao so de moni­torar suas proprias atividades e as de outros na regularidade daconduta cotidiana, mas tambem de "monitorar essa monitora­95.0" na consciencia discursiva. as "esquemas interpretativos"sao os modos de tipifica,ao incorporados aos estoques deconhecimento dos atores, aplicados refIexivamente na susten­ta,ao da comunica,ao. as estoques de conhecimento a que osatores recorrem na produ,ao e reprodu,ao de intera,oes Sao osmesmos mediante os quais estao aptos a fazer contas, apresen­tar razoes etc.". A comunica,ao de significado, como OCorre

35ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAr;:AO

com todos os aspectos da contextualidade da a,ao, nao tern deser vista meramente como acontecendo "no" tempo-espa,o. asagentes incorporam rotineiramente caracteristicas temporais eespaciais de encontros em processos de constitui,ao de signifi­cado. A comunica,ao, como elemento geral de intera,ao, e umconceito mais abrangente do que inten,ao comunicativa (isto e,o que um ator "quer" dizer ou fazer). Vma vez mais, existemduas formas de reducionismo a evitar aqui. Alguns filosofostentaram derivar teorias globais de significado ou comunica­,ao a partir da inten,ao comunicativa; outros, em contraparti­da, supuseram que esta ultima e, na melhor das hipoteses, mar­ginal it constitui,ao das qualidades significativas da intera,ao,sendo 0 "significado" regido pela ordena,ao estrutural de sis­temas de signos. Na teoria da estrutura,ao, porem, ambos osconceitos sao considerados de interesse e importiincia equiva­lentes, aspectos mais de uma dualidade do que de um dualismomutuamente exclusivo.

A ideia de "responsabilidade" no ingles cotidiano ofereceuma expressao convincente it interse,ao de esquemas e normasinterpretativos. Ser "responsitvel" pelas proprias atividades eexpor as razoes para elas e fornecer as bases normativas pelasquais elas podem ser "justificadas". Componentes normativosde intera,ao sempre gravitam em torno das rela,oes entre osdireitos e as obriga,5es "esperadas" dos participantes numagama de contextos de intera,ao. as corligos formais de conduta,como, por exemplo, os encerrados em lei (nas sociedades con­temporiineas, pelo menos), exprimem usualmente alguma es­pecie de simetria alegada entre direitos e obriga,oes, sendo unsajustifica,ao de outras. Mas tal simetria nao existe necessaria-

1mente na prittica, fen6meno que importa sublinhar, pois tanto 0

"funcionalismo normativo" de Parsons quanta 0 "marxismo es­truturalista" de Althusser exageram 0 grau em que as obriga­,5es normativas sao "internalizadas" pelos membros de socie­dades". Nem um nem outro ponto de vista incorpora uma teoriade ~ao que reconhe,a os seres humanos como agentes dotados decapacidade cognoscitiva, monitorando refIexivamente 0 fIuxode intera,ao reciproca. Quando os sistemas sociais sao conce­bidos primordialmente do ponto de vista do "objeto social", a

~

[norm-a:----0----

o-...._;) Isanyao Io

_m __ .. ·>1 poder!<-..

Figura 2

o

I signiflcaqao k"·,,,,·,,·:.-1 dominay.3.o k...__ m __ .)I legitimaq.9.o Il' t:\ '"

-·esq~~-m~-· .. * .interpretativo ~!c:?i'!~~:!~:---._;;;::------- l'

Icomunicacao 1<-..

34

interayao

estrutura

(modalidade)

A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE

cumpre sublinhar, so analiticamente e sepanivel da opera,aode san,oes normativas. 1sso e obvio, por exemplo, na medidaem que 0 proprio usa da linguagem e sancionado pela proprianatureza de seu carater "publico"". A propria identifica,ao deatos ou de aspectos da intera,ao - sua descri,ao precisa, her­meneuticamente baseada na capacidade de urn observador de"prosseguir" numa forma de vida - implica 0 entrela,amentode significado, elementos normativos e poder. 1sso fica maisdo que evidente nos nao raros contextos da vida social em queos fenomenos sociais "sao" e 0 modo como sao conveniente­mente descritos sao contestados. A consciencia de tal contesta­,ao, de caracteriza,oes de atividade divergentes ou sobrepos­tas, e uma parte essencial do "conhecimento de uma forma devida", embora isso nao fique claro nos escritos de autorescomo Winch, que trata as formas de vida como unificadas econsensuais35.

Page 38: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Estrutura(s) Dominic te6rico Ordem institucional

Legitima9ao I Tearia da reguJac;:ao normativa I Instituic;:oes legais

Significagao I Tearia da codificatyao I Ordens simb61icasIModos de dis­curso

37ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAr;:ifo

As estruturas de significa9ao tern sempre de ser apreendi­das em conexao com domina9ao e legitima9ao. Vma vez maisisso conduz a influencia penetrante do poder na vida social.Existem certas posi90es que tern de ser cuidadosamente defini­das aqui. Assim, algumas questoes pertinentes foram postasem evidencia pela critiea de Habermas a Gadamer e subse­qiientes debates". Entre outras coisas, Habermas criticou aconeep9ao de Gadamer de "tradi90es" lingiiisticamente satura­das por nao ter conseguido demonstrar que redes de significa­do incorporam diferenciais de poder. A critica e bastante vali­da, mas Habermas desejou desenvolver 0 ponto no sentido demostrar a importiincia de formas "sistematicamente distorci­das" de comunica9ao. Nessa base, porem, ele foi incapaz deintegrar satisfatoriamente 0 conceito de poder com wna teoriainstitucional. "Domina9ao" nao e 0 mesmo que estruturas designifica9ao "sistematicamente distorcidas" porque a domina­9aO - como eu a concebo - e a pr6pria condi9ao de existenciade cOdigos de significa9ao"'. "Domina9ao" e "poder" nao podemser considerados unicamente em termos de assimetrias de dis­tribui9ao, mas tern de ser reconbecidos como inerentes na as­socia9ao social (ou, diria eu, na a9ao hwnana como tal). Assim- e neste ponto devemos tambem levar em conta as implica­90es dos escritos de Foucault -, 0 poder nao e wn fenamenoinerentemente nocivo nem apenas a capacidade de "dizer nao";a domina9ao tampouco pode ser "transcendida" em alguma es­pecie de suposta sociedade do futuro, como tern sido aspira9aocaracteristica de, pelo menos, algumas correntes do pensamentosocialista.

Quais sao as conota90es da alega9ao de que a semanticatern prioridade sobre a semi6tica e nao 0 inverso? Elas podemser apontadas, penso eu, atraves de wna compara9ao entre asconcep90es estruturalista e p6s-estruturalista de significado,por wna parte, e aquela que pode ser derivada do Wittgensteindos ultimos tempos, por outra". A base de wna teoria do signi­ficado na "diferen9a", na qual, segundo Saussure, nao existem"valores positivos", leva quase inevitavelmente a wna concep­9ao que acentua a primazia da semi6tica. 0 campo de signos,

I

1

A CONSTITUIr;:A'O DA SOCIEDADE36

enfase aeaba reeaindo sobre a influencia penetrante de wnaordem legitima normativamente coordenada como wn deter­minante global ou "programador" de conduta social. Tal pers- ~pectiva mascara 0 fate de que os elementos normativos de sis­temas sociais sao alega90es contingentes que tern de ser sus- !tentadas e "levadas em conta" atraves da mobiliza9ao efetivade san90es nos contextos de encontros reais. As san90es nor­mativas expressam assimetrias estruturais de domina9ao, e asrela90es daqueles que lhes estao sujeitos nominalmente podemser de vanas especies diferentes de expressoes dos compromis­sos que essas normas supostamente engendram.

A concentra9ao na analise das propriedades estruturais desistemas sociais, cumpre destacar, e urn procedimento validasomente se for reeonhecido como colocando wna epoche na _mantendo em suspensao a - conduta social reflexivamente mo­nitorada. Sob tal epoche, podemos distinguir tres dimensoes es­truturais dos sistemas sociais: significa9ao, domina9ao e legiti­ma9ao. As conota90es da analise dessas propriedades estrutu­rais sao indicadas no quadro seguinte. A teoria da codifica9aopressuposta no estudo de estruturas de significa9ao deve vol­tar-se para os extraordinarios avan90s em semi6tica registradosem decadas recentes. Ao mesmo tempo, temos de estar preve­nidos contra a associa9ao da semi6tica com 0 estruturalismo ecom as deficiencias deste Ultimo em rela9ao aanalise da agen­cia hwnana. Os signos s6 "existem" como 0 veiculo e 0 resulta­do de processos comunicativos em intera9ao. As concep90esestruturalistas da linguagem, em comwn com discussoes simi­lares de legitima9ao, tendem a considerar as signos como aspropriedades dadas da fala e da eserita, em vez de examinar seuembasamento recursivo na comuniea9ao de significado.

Dominar;80 I Tearia da autorizatySo de recursos I Institui90es politicasTeana da aJocalfao de recursos InstituiyCies econ6micas

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as grades de significado, sao criados pela natureza ordenada dediferen,as que compreendem c6digos. a "mergulho no c6digo"- donde e dificil ou impossivel reemergir para 0 mundo da ati­vidade e do evento - e uma tatica caracteristica adotada por auto­res estruturalistas e p6s-estruturalistas. Esse mergulho, porem,e inteiramente desnecessario se entendermos 0 carater relacio­nal dos c6digos que geram significado a ser localizado na orde­na,ao de praticas sociais, na pr6pria capacidade de "prosseguir"na multiplicidade de contextos da atividade social. Essa e umadescoberta que 0 pr6prio Wittgenstein seguramente fez, embo­ra contra urn pano de fundo filosMico muito diferente, quandoele abandonou alguns dos principais parametros de seus escri­tos iniciais. Enquanto sua analise anterior de linguagem e sig­nificado termina em paradoxa - urna especie de truque indianada corda, retirando a escada depois que ela foi escalada _, suaconcep,ao ulterior cinge-se ao terreno das praticas sociais roti­neiras. Ate mesmo as rela,oes semi6ticas mais complicadastern urn embasamento nas propriedades semiinticas geradas pelaspropriedades govemadas por regras das atividades cotidianas.

Na terminologia indicada no quadro a pp. 36, os "signos"implicitos em "significa,ao" nao devem ser equiparados a "sim­bolos". Muitos autores tratam os dois termos como equivalentes,mas eu considero os simbolos, interpolados em ordens simb6­licas, como urna dimensao principal do "agrupamento" de ins­titui,oes". as simbolos coagulam os "excedentes de significa­do" implicitos no carater polivalente dos signos; eles unemaquelas interse,oes de c6digos que sao especialmente ricas emdiversas formas de associa,ao de significados, operando aolange dos eixos da metafora e da metonimia. As ordens simbO­licas e os modos de discurso associados sao urn importantelocus institucional da ideologia. Entretanto, na teoria da estru­lura,ao, a ideologia nao constitui urn "tipo" particular de ordemsimb6lica ou forma de discurso. Nao se pode desligar "discursoideol6gico" de "ciencia", por exemplo. A "ideologia" refere-seunicamente aquelas assimetrias de domina,ao que ligam a sig­nifica,ao alegitima,ao de interesses secionais".

sendo S=signific8yao, D = dominayao, L=legitimayao

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Ordens sirnb61icas/modos de discursoInsti1uiyoes politicasInstitui90es econ6micasIns1ituiyoes legais

S-D-Lo (aut)-S-Lo (aloc)- S-LL-D-S

ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA9AO

A partir do caso da ideologia, podemos ver que as estrutu­ras de significa,ao sao separaveis da domina,ao e da legitima­,ao s6 analiticamente. A domina,ao depende da mobiliza,aode dois tipos distinguiveis de recurso. as recursos alocativosreferem-se a capacidade - ou, mais precisamente, a formas decapacidade transformadora - gerando controle sobre objetos,bens ou fen6menos materiais. as recursos autoritirios refe­rem-se a tipos de capacidade transformadora gerando controlesobre pessoas ou atores. Pode ser que algumas formas de recur­sos alocativos (como materias-primas, terra etc.) pare,am teruma "existencia real" de urn modo que, segundo afirmei, aspropriedades estruturais como urn todo nao possuem. No senti­do de ter uma "presem;a" espa90-temporal, de certa maneira eesse obviamente 0 caso. Mas sua "materialidade" nao se rela­ciona ao fato de que tais fen6menos convertem-se em recursos,da forma como emprego aqui 0 termo, somente quando incor­porados a processos de estrutura,ao. a carater transformacio­nal dos recursos e logicamente equivalente a, assim como ine­rentemente vinculado aexemplifica,ao de, c6digos e san,oesnormativas.

A classifica,ao de ordens institucionais acima oferecidadepende da resistencia ao que tern sido, por vezes, qualificadocomo conceitos "substantivistas" das institui90es "econ6micas","politicas" e outras. Podemos conceber da seguinte maneira asrela,oes envolvidas:

As concep90es "substantivistas" pressupoem diferencia­,ao institucional concreta dessas viirias ordens. Quer dizer,sustenta-se, por exemplo, que a "politica" s6 existe em socie­dades que possuem formas distintas de aparelho do Estado, eassim por diante. Mas 0 trabalho de antrop610gos demonstra de

A CONSTfTUI9AO DA SOCfEDADE38

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modo bastante efetivo que existem fenomenos "politicos"­relacionados com a ordena,iio das rela,oes de autoridade _ emtodas as sociedades. 0 mesmo se aplica as outras ordens insti­tucionais. Temos de ser especialmente cuidadosos na conceitua­,ao do "economico", mesmo tendo sublinhado que isso naopressupae a existencia de uma "economia" claramente diferen­ciada. Verificou-se uma forte tenctencia, em parte da literaturaeconomica, a "extrair" conceitos de culturas tradicionais ques6 possuem significado no contexto das economias de merca­do. 0 "economico" nao pode ser adequadamente definido, pelomenos de fonna generica, como referente a lutas por recursosescassos". Isso seria algo como definir 0 poder unicamente porreferencia a lutas secionais. A principal caracteristica do "eco­nomieo" nao ea escassez de recursos como tal, e muito menosainda as lutas ou divisoes secionais em tomo da distribui,ao. Aesfera do "economico" e dada, antes, pelo papel inerentementeconstitutivo dos recursos alocativos na estmtura,ao de totali- I'dades sociais. Outras notas de advertencia devem ser acrescen­tadas nesta altura. Ao sustentar-se que todas as sociedades vi­vern amea,adas pela possibilidade de escassez material, fica-seapenas a urn passo de se supor que os conflitos em tomo decarencia de recursos constituem 0 motor fundamental da mu­dan,a social, como acontece em pelo menos algumas versaesdo materialismo hist6rico e tambem em muitas teorias nao­marxistas. Mas esse pressuposto e logicamente deficiente, de­pendendo geralmente de uma fonna especiosa de raciociniosfuncionais, e empiricamente falso".

Tempo, 0 corpo, encontros

Para concluir esta resumida exposi,ao de abertura, pode­mos retomar ao tema do tempo e da Hist6ria. Como a finitudedo Dasein e como "a infinitude do surgimento do ser partir donada", 0 tempo talvez seja 0 aspecto mais enigmatico da expe­riencia humana. Nao foi por nada (sic) que 0 fil6sofo que tentouenfrentar 0 problema da maneira mais fundamental, Heidegger,

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a usar uma tenninologia da mals assustadoraidade. Mas 0 tempo, ou a constitui,ao da experiencia no

'tempo-espa,o, e tambem um aspecto banal e evidente da vidahumana cotidiana. A verdadeira essencia da enigmatica nature­za do tempo reside, em parte, na falta de "ajustamento" entrenossa lida nao problematica com a continuidade da condutaatraves do espa,o-tempo e seu carater inefavel quando con­frontado filosoficamente. Nao tenbo qualquer pretensao espe­cial de elucidar esse assunto, 0 "problema de Santo Agostinho".Mas a questao fundamental da teoria social, como eu a entendo- 0 "problema de ordem" concebido de um modo totalmentealheio a fonnula,ao de Parsons quando cunhou essa expressao -,consiste em expor como as limita,oes da "presen,a" individualsao transcendidas pela "extensao" das rela,oes sociais atravesdo tempo e do espa,o.

A duree da vida cotidiana, nao e fantasioso demais afir­mar, funciona de modo algo semelhante ao que Levi-Strausschama de "tempo reversivel". Se 0 tempo "como tal" (seja issoo que for) e reversivel ou nao, os eventos e rotinas da vida coti­diana nao possuem urn f1uxo de mao linica. As expressaes "re­produ,ao social", "recursividade" etc. indicam 0 carater repeti­tivo da vida cotidiana, cujas rotinas sao fonnadas em termos dainterse,ao de dias e esta,aes passageiros (mas continuamenteretomando). A vida cotidiana tern uma dura,ao, um f1uxo, masnao leva a parte nenhuma; 0 pr6prio adjetivo "cotidiano" e seussinonimos indicam que 0 tempo, neste caso, e constituido ape­nas em repeti,ao. A vida do individuo, em contraste, e nao s6finita mas irreversivel, "ser para a morte". "18to emorte, marrere sabe-lo. Isto e a Viuva Negra, morte" (Lowell). 0 tempo, nestecaso, e 0 tempo do corpo, uma fronteira de presen,a muitodiferente da evapora,ao do tempo-espa,o inerente a dura,aoda atividade cotidiana. Nossas vidas "passam" em tempo irre­versivel com a passagem da vida do organismo. 0 fato de quefalamos do "ciclo vital" subentende a existencia de elementosde repeti,ao tambem ai. Mas 0 cicio vital e realmente urn con­ceito que pertence asucessao de gerac;oes e, assim, aterceiradimensao de temporalidade acima indicada. Eo a duree "supra-

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1l.2, ._

Tempo, 0 corpo, encontros

Para concluir esta resurnida exposi,ao de abertura, pode­mos retornar ao tema do tempo e da Hist6ria. Como a finitudedo Dasein e como "a infinitude do surgimento do ser partir donada", 0 tempo talvez seja 0 aspecto mais enigmatico da expe­riencia hurnana. Nao foi por nada (sic) que 0 fil6sofo que tentouenfrentar 0 problema da maneira mais fundamental, Heidegger,

41ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAr;:AO

foi compelido a usar uma terminologia da mais assustadoraobscuridade. Mas 0 tempo, ou a constitui,ao da experiencia notempo-espa,o, e tambem urn aspecto banal e evidente da vidahurnana cotidiana. A verdadeira essencia da enigmatica nature­za do tempo reside, em parte, na falta de "ajustamento" entrenossa lida nao problematica com a continuidade da condutaatraves do espa,o-tempo e seu carater inefavel quando con­frontado filosoficamente. Nao tenbo qualquer pretensao espe­cial de elucidar esse assunto, 0 "problema de Santo Agostinbo".Mas a questao fundamental da teoria social, como eu a entendo- 0 "problema de ordem" concebido de urn modo totalmentealheio a formula,ao de Parsons quando cunbou essa expressao-,consiste em expor como as limita,oes da "presen,a" individualsao transcendidas pela "extensao" das relar;:oes sociais atravesdo tempo e do espa,o.

A duree da vida cotidiana, nao e fantasioso demais afir­mar, funciona de modo algo semelhante ao que Levi-Strausschama de "tempo reversivel". Se 0 tempo "como tal" (seja issoo que for) e reversivel ou nao, os eventos e rotinas da vida coti­diana nao possuem urn fluxo de mao linica. As express6es "'re­prodw;:ao social", "recursividade" etc. indicam 0 canlter repeti­tivo da vida cotidiana, cujas rotinas sao formadas em termos dainterse,ao de dias e esta,oes passageiros (mas continuamenteretornando). A vida cotidiana tern urna dura,ao, urn fluxo, masnao leva a parte nenhuma; 0 pr6prio adjetivo "cotidiano" e seussin6nimos indicam que 0 tempo, neste caso, econstituido ape­nas em repeti,ao. A vida do individuo, em contraste, e nao s6finita mas irreversivel, "ser para a morte". "Isto emorte, morrere sabe-lo. Isto e a Viuva Negra, morte" (Lowell). 0 tempo, nestecaso, e 0 tempo do corpo, urna fronteira de presen,a muitodiferente da evapora,ao do tempo-espa,o inerente a dura,aoda atividade cotidiana. Nossas vidas "passam" em tempo irre­versivel com a passagem da vida do organismo. 0 fato de quefalamos do "ciclo vital" subentende a existencia de elementosde repeti,ao tambem ai. Mas 0 cicio vital e realmente urn con­ceito que pertence asucessao de geral;oes e, assim, aterceiradimensao de temporalidade acima indicada. Ea duree "supra-

IA CONSTITUIr;:A-O DA SOClEDADE

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modo bastante efetivo que existem fenomenos "politicos" _relacionados com a ordena,ao das rela,oes de autoridade - emtodas as sociedades. 0 mesmo se aplica as outras ordens insti­tucionais. Temos de ser especialmente cuidadosos na conceitua­,ao do "economico", mesmo tendo sublinbado que isso naopressupoe a existencia de uma "economia" claramente diferen­ciada. Verificou-se uma forte tendencia, em parte da literaturaeconomica, a "extrair" conceitos de culturas tradicionais ques6 possuem significado no contexto das economias de merca­do. 0 "economico" nao pode ser adequadamente definido, pelomenos de forma generica, como referente a lutas por recursosescassos". Isso seria algo como definir 0 poder unicamente porreferencia a lutas secionais. A principal caracteristica do "eco­n6mico" nao ea escassez de recursos como tal, e muito menosainda as lutas ou divisoes secionais em torno da distribui,ao. Aesfera do "economico" e dada, antes, pelo papel inerentemente ,constitutivo dos recursos alocativos na estrutura,ao de totali- 1/dades sociais. Outras notas de advertencia devem ser acrescen­tadas nesta altura. Ao sustentar-se que todas as sociedades vi­vern amea,adas pela possibilidade de escassez material, fica-seapenas a urn passo de se supor que os conflitos em torno decarencia de recursos constituem 0 motor fundamental da mu­dan,a social, como acontece em pelo menos algumas versoesdo materialismo hist6rico e tambem em muitas teorias nao­marxistas. Mas esse pressuposto e logicamente deficiente, de­pendendo geralmente de urna forma especiosa de raciociniosfuocionais, e empiricamente falso".

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xiva da conduta, fixada na consciencia prMica. As rela,oes emcondi,oes de co-presen,a consistem no que Goffinan denomi­nou apropriadamente enconfros, esvaindo-se atraves do tempoe do espa,o. Ninguem analisou os encontros mais argutamenteque 0 proprio Goffinan, e apoiar-me-ei substancialmente emsua obra em algo do que se segue. A importiincia da obra deGoffinan deve-se, em nao pequena medida, it sua preocupa,aocom a ordena,ao temporal e espacial da atividade social. Ele eurn dos poucos autores sociologos que tratam as rela,oestempo-espa,o como fundamentais para a produ,ao e reprodu­,ao da vida social, em vez de erguer "fronteiras" para a ativida­de social, uma tarefa que pode ser seguramente deixada para"especialistas" - geografos e historiadores. Mas aqueles quetrabalham na area nominalmente separada da geografia deramsuas proprias contribui,oes independentes. Assim, proporeinao so que 0 tempo-geografia de Hiigerstrand (com apropriadacorrigenda critical oferece formas de analise significativas paraa teoria da estrutura,ao, mas tambem que algumas das ideiasenvolvidas complementam as concep,oes de Goffinan maisdiretamente.

As rela,oes com aqueles que estao fisicamente ausentes,como eu disse, envolvem mecanismos sociais distintos do queesm envolvido em contextos de co-presen,a. Temos de tratar aquide algumas questoes basicas acerca da estrutura,ao das insti­tui,oes. Elas apresentam um aspecto "lateral" destas - espe­cialmente no mundo modemo, dada a tremenda expansao dodistanciamento tempo-espa,o da atividade social na era con­temporiinea. Mas tambem suscitam, uma vez mais, 0 problemade "historia", uma vez que os outros ausentes incluem gera90espassadas cujo "tempo" pode ser muito diferente do daquelesque sao, de algum modo, influenciados pelos residuos de suasatividades. Essas questoes serao 0 alvo de meu interesse noscapitulos finais.

A CONSTITUH;AO DA SOCIEDADE

individual" da existencia a longo prazo das institui,oes, a lon­gue duree do tempo institucional.

duree da experiencia cotidiana: "tempo reversive!" tItempo de vida do individuo: "tempo irreversive!"

longue duree de institui90es; "tempo reversivel" t

o tempo reversivel das institui,oes e a condi,ao e 0 resul­tado das pniticas organizadas na continuidade da vida diana, aprincipal forma substantiva da dualidade da estrutura. Naoseria verdadeiro, entretanto, Como ja mencionamos, dizer queas rotinas da vida diana constituem 0 "alicerce" sobre 0 qual asformas institucionais da organiza,ao social sao edificadas notempo-espa,o. Pelo contrano, cada uma participa na constitui­,ao da outra, assim como ambas entram na constitui,ao do selfatuante. Todos os sistemas sociais, nao importa quao formida­veis ou extensos, expressam-se e sao expressos nas rotinas davida social cotidiana, mediando as propriedades fisicas e sen­soriais do corpo humano.

Essas considera,oes sao de grande importfulcia para asideias expostas nas partes subseqiientes deste livro. 0 corpo eo "locus" do selfativo, mas 0 selfnao e, obviamente, apenasuma extensao das caracteristicas fisicas do organismo que e 0

seu "portador". Teorizar 0 selfsignifica formular uma concep­,ao de motiva,ao (ou sera essa a minha tese) e relacionar amotiva,ao com as conexoes entre as qualidades inconscientes econscientes do agente. 0 selfnao pode ser entendido fora da"Historia"- significando "Historia", neste caso, a temporalida_de de prMicas humanas, expressas na interpola,ao mutua dastres dimensoes que distingui.

Apresentei anteriormente a no,ao de co-presen,a comreferencia especifica it integra,ao social. 0 estudo da intera,aoem circunstiincias de co-presen,a e um componente basico dainclusao do tempo-espa,o numa so categoria, que e condi,ao eresultado da associa,ao social humana. A "sistemidade" e aquiobtida em grande parte atraves da rotineira monitora,ao refle-

ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURA (:AO 43

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44A CONSTITUI(:A'O DA SOCIEDADE

Referencias

1. Para discussoes mais detalhadas dos conceitos basicos da teoriada estrutura9ao, remeto 0 leitor para as NRSM, especialmente oscaps. 2 e 3; os CPST; e a CCHM, caps. I e 2.

2. CPST, pp. 56-7.3. CPST, cap. 1.

4. Davidson, Donald "Agency". In: Essays on Actions and Events.Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 45.

5.NRSM,cap.2.

6. Feinberg, Joel. "Action and responsibility". In: Black, Max. Phi­losophy in America. Ithaca, Cornell University Press, 1965. Sobreo problema do que sao "conseqiil~ncias", ver: Bergstrom, Lars. TheAlternatives and Consequences ofActions. Estocolmo, Almqvist,1966.

7. Schelling, Thomas. "On the ecology of mieromotives". The Pu­blic Interest, vol. 25, 1971; "Dynamic models of segregation".Journal ofMathematical Sociology, vol. 4, 1971. Ver tambem 0

estudo de Boudon, Raymond. The Unintended Consequences ofSocial Action. Londres, Macmillan, 1982, pp. 43 ss.

8. NRSM, p. 76.

9. Merton, entretanto, efavoravel ao tenne "imprevistas", em vez deconseqiiencias "nao-intencionais" au "impremeditadas". Em minhaanalise, "intenc;:ao" pressup6e 0 conhecimento das provaveis con­seqiiencias da ac;:ao e, portanto, previsao. Eclaro, pode-se preverque alguma coisa aconteceni sem se premeditar seu acontecimento,mas nao se pode pretender 0 acontecimento de algo sem sua pre­visao. Merton, R. K. "The unanticipated consequences ofpurpo­sive social action". American Sociological Review, vol. 1, 1936;idem, "Manifest and latent functions". In: Social Theory and So­cial Structure. Glencoe, Free Press, 1963.

10. Merton, R. K. "Manifest and latent functions", cit., p. 51.11. Ibidem, pp. 64-5.

12. Para uma discussao mais compJeta, ver CPST, cap. 6.13. Weber, Max. The Methodology of the Social Sciences. Glencoe,Free Press, 1949.

14. Olson, Mancur. The Logic ofCollective Action. Cambridge, Mass.,Harvard University Press, 1965; Boudon, R. The Unintended Con­sequences ofSocial Action, cit.; Elster, Jon. Logic and Society,Contraditions and POSSible Worlds. Chichester, Wiley, 1978; Elster,Jon. Ulisses and the Sirens. Cambridge, Cambridge UniversityPress, 1979.

ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA9AO

15. Boudon, R. The Unintended Consequences ofSocial Action, cit.,cap. 2.

16. Para desenvolvimento deste ponto, ver: "Power, the dialect ofcontrol and class structuration".ln: Giddens, Anthony e Macken­zie, Gavin. Social Class and The Division ofLabour. CambridgeUniversity Press, 1982.

17. Bachrach, Peter e Baratz, Morton S. "The two faces of power".American Political Science Review, vol. 56, 1962; Power andPoverty. Nova York, Oxford University Press, 1970; Likes, Steven. Power, a Radical View. Londres, Macmillan, 1974. Para dis­eussiio adicional desses pontos, ef. CPST, pp. 88-94.

18. Searle, John R. Speech Acts. Cambridge, Cambridge UniversityPress, 1969, pp. 34-5.

19. Wittgenstein, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Black-well, 1972, p. 59.

20. Ibidem, p. 81.21. Ibidem.22. Ibidem.23. CPST, pp. 80 ss.24. Garfinkel, Harold. "A conception of, and experiments with, 'trust

as a condition of stable concerted actions". In: Harvey, O. 1. Mo­tivation and Social Interaction. Nova York, Ronald Press, 1963.

25. Goffman, Erving. Frame Analysis. Nova York, Harper, 1974, p. 5.26. Em NRSM, eu niio tinha apreeiado a necessidade de distinguir

"estrutura" de «estruturas", e usei este ultimo tenno de forma dis­plicente, como sinonimo do primeiro.

27. CPST, pp. 195-6.28. Cf. Bhaskar, Roy. The Possibility ofNaturalism. Brighton, Har­

vester, 1979, cap. 2.29. Ibidem, p. 48.30. Cf. ibidem, pp. 78-9. Distingo ai tres niveis de "sistemidade" que

para fins de simplificac;:ao, foram aqui reduzidos a dois.31. Essa distinc;:ao foi introduzida na literatura por David Lockwood,

que, no entanto, empregou-a de urn modo algo diferente do meu;cf. Lockwood, David. "Social integration and system integra­tion".ln: Zollschan, George Z. e Hirsch, W. Explorations in SocialChange. Londres, Routledge, 1964.

32. Minha formula~ao do conceito de "integra~ao de sistema" emCPST, p. 77, era ambigua. Nao deixei claro se a separac;:ao daintegrayao social da integrac;:ao de sistema dependia de uma dis­tinc;:ao entre co-presen~a e ausencia em relac;:5es sociais, Oll entre

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A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE

vinculos que ligam os atores em contraste com os que ligam cole­tividades. Tal como a usc agora, a novae refere-se ao primeirodesses dais conjuntos de contrastes, mas, em todo 0 caso, elessobrepoem-se em boa parte, de modo que a falba nao tern maioresconseqilencias.

33. CPST, cap. 2.

34. Cf Ziff, Paul. Semantic Analysis. Ithaca, Cornell University Press,1960.

35. Cf Pitkin, Hanna F. Wittgenstein and Justice. Berkeley, Univer­sity ofCalifornia Press, 1972, pp. 241-64.

36. Para este estilo de representa~ao dessas rela<;6es, sou devedor aDerek Gregory; ver seu livro: Regional Transformation and In­dustrial Revolution. Londres, Macmillan, 1982, p. 17.

37. Marsh, Peter et alii. The Rules ofDisorder. Londres, Routledge,1978. P. 15 passim.

38. NRSM, pp. 108-10.

39. Habennas, liirgen. Zur Logik der Soziaiwissenschafien. Tubin­gen, Siebeck & Mohr, 1967; "On systematically distorted com­munication". Inquiry, vol. 13, 1970.

40. Cf 0 meu "Harbermas' critique ofhermeneutics", em SSPT.41. Ver CPST, pp. 33-8.

42. RicoeUf, Paul. "Existence and hermeneutics". In: The Conflict ofInterpretations. Evanston, Northwestern University Press, 1974.

43. Para urna elabora~iio desta posi~iio, ver CPST, cap. 5. As ordens eos modos simb6licos do discurso constituem os aspectos "eulturais"de sistemas sociais. Mas, como no caso de "sociedade" e "hist6­ria", recorro ao tenno "cultura" para preencher uma dupla obriga­(fao. Assim, falarei de "cuIturas", de urn modo geraI, como urntenno intercambiavel com "sociedades", se bern que em algunscontextos tenha de ser conferida rnais precisao a esses tennos.

44. Cf. Polanyi, Karl et alii. Trade and Market in the Early Empires.Nova York, Free Press, 1957, pp. 243-70 passim.

45. Minhas razoes para essas alegal;oes sao apresentadas com certodetalhe em CCHM, sobretudo na "Introdu~iio" e no cap. 3.

Capitulo II

Consciencia, self e encontros sociais

Neste capitulo procurarei curnprir varios objetivos. Emprimeiro lugar, examinarei alguns problemas conceptuais basi­cos apresentados pela conexao entre os principais conceitos dateoria da estrutura9ao e urna interpreta9ao da natureza do in­consciente. Eles giram em tomo de questoes sobre qual sera amelhor maneira de conceituar 0 self, especialmente 0 "eu" doagente reflexivo. Passarei em seguida para urna descri~ao decomo podem ser representadas as bases psicol6gicas do entrela­9amento de consciente e inconsciente, utilizando em particularos escritos de Erikson. Mas urna parte importante de meu argu­mento sera 0 fato de essa descri~iio suscitar imediatamentequestoes de natureza social relacionadas com 0 caniter rotinizadoda vida cotidiana. Mediante uma analise de "situa90es cnticas",nas quais as rotinas siio radicalmente rompidas, tentarei indicarcomo a monitorac;ao reflexiva de encontros em circunstanciasde co-presen~a coordena-se geralmente com componentes in­conscientes da personalidade. Isso levara diretamente a urn exa­me de alguns dos insights que podem ser extraidos de Goflinanacerca da intera9ao entre agentes co-presentes. A preocupa~ao

com 0 corpo, enquanto 0 locus do selfatuante e posicionado emtempo-espa~o,e0 tema de concatena9ao decisivo do materialdiscutido e analisado.

Reflexividade, consciencia discursiva e pratica

Freud divide a organiza~iio psiquica do individuo em tres,divisoes essas representadas em ingles pelos infelizes termos

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Poderiamos supor que 0 "eu" e 0 agente. Entretanto, issoconstitui cerlamente urn equivoco, ainda que figure como pres­suposto ou proposi9ao central de escolas inteiras de filosofia,incluindo 0 cartesianismo e a filosofia mais recente de G. H.Mead. Os escritos de Mead certamente ajudarn a elucidar osprocessos que culminam no surgimento de urn "self" como urn~'mim". Mas 0 "eu" aparece nos escritos de Mead como 0 DU­cleo determinado da agencia e, por conseguinte, suas origenspermanecem sempre obscuras. Para relacionar 0 "eu" a agen­cia, e necessario seguir 0 desvio sugerido pelos estruturalistascom rela9ao a descentra9ao do sujeito, sem chegar a conclu­soes que tratam 0 sujeito simplesmente como urn signa dentrode urna estrutura de significa9iio. A constitui9iio do "eu" soocone mediante 0 "discurso do Outro" - isto e, atraves da aqui­si9ao da linguagem -, mas 0 "eu" tern de ser relacionado ao

teriza9ao mais geral de Freud das tarefas do ego. 0 ego tern atarefa de "autopreserva9ao", que ele executa "aprendendo aproduzir mudan9as no mundo externo em seu proprio benefi­cio"'. Mas que self 0 ego defende? Sua vantagem e tambem aminba vantagem?

Ora, urna tatica tradicional entre os interpretes de Freud eaceitar a existencia de enganosos usos antropomorficos nos es­critos de Freud, mas sustentando que eles podem ser dissipadosse entendermos 0 id, ego e superego como referentes a "proces­sos" ou "for9as". Mas isso, na realidade, nao ajuda muito, poistais conceitos nao nos permitem apreender adequadarnente anatureza da agencia hurnana. Freud, obviarnente, mencionafluxos hidraulicos, bloqueios de energia etc. Mas tais conceitosevocam 0 tipo de concep9ao mecimica das origens da condutahurnana associada as mais simplistas formas de objetivismo.Parte do problema e 0 usa dos termos ego, superego e id (querem sua formula9ao alema original ou em sua versao inglesa),cada urn dos quais tern alguma conota9ao de agencia; cada urne urn mini-agente no interior do agente como tal. Descartar ostermos "id" e "superego" ajuda, mas isso tern de ser comple­mentado pelo reconhecimento do carilter distintivo de das Ich,o "eu".

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"id", "ego" e "superego". Nao acredito que esses termos sejamparticularmente iiteis e por isso os substitui pela triplice divi­sao sugerida no modelo de estratifica9ao; sistema de segur

an9a

basica, consciencia pnitica e consciencia discursiva. Nao querodizer que essas expressoes fazem paralelo direto com as no­90es freudianas. Os pIanos intersecionais dos esquemas e nor­mas interpretativos que os atores utilizam na constitui9ao desua conduta esmo inseridos em todas as tres dimensoes da per­sonalidade. Mas certarnente 0 "eu" (das Ich) esta no niicleo doque a consciencia discursiva engloba e exige conceptualmenteconsideravel aten9ao. Podemos abordar as questoes envolvidasdescrevendo algumas das dificuldades apresentadas pela divi­sao freudiana da personalidade, especialmente na medida emque elas apontam para problemas de "agencia"'*.

Freud, e claro, considerou 0 individuo como agente, mas,Com freqiiencia, tarnbem falou do id, ego e superego comoagencias dentro do individuo. Em seus escritos anteriores adecada de 1920, Freud usou freqiientemente as expressoes dasIch para referir-se a pessoa total, bern como para designar umaparte da mente. Essas mudan9as de usa tarnbem se aplicam ao"superego", as vezes diferen9ado de uma outra n09ao, a de"ego-ideal". Inconsistencias e transi90es terminologicas pare­cern indicar aqui algumas complica90es conceptuais bern maissignificativas. Suponbarnos que das Ich seja uma subdivisaoda mente. Como pode entao Freud dizer coisas tais como 0 ego"decide sobre 0 repiidio da ideia incompativel"'? Sen! a deci­Sao do ego uma especie de processo em miniatura da decisaodo agente? Isso, por certo, nao faz muito sentido. Freud tarn­bern escreve, por exemplo, sobre 0 "desejo de dormir" do ego,se bern que, enquanto 0 sono ocone, ele "permanece de servi­90" a fim de se proteger contra as piores emana90es do incons­ciente, de "vigiar" 0 sono do sonhante. E suscitada a mesmaespecie de questOes. De quem e 0 sono que 0 ego deseja? 0 doagente? 0 seu proprio? De quem e 0 despertar que 0 "vigia"protege? E assim por diante. Considere-se, finalmente, a carac-

* As referencias podem ser encontradas a pp. 123-8.

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corpo enquanto esfera de a9iio. A palavra "eu" e, em termos lin­giiisticos, um "cambiante": a contextualidade do "posiciona­mento" social determina quem e um "eu" em qualquer situa9iiode conversa. Embora possamos ser propensos a pensar no "eu"como relacionado com os mais ricos e mais intimos aspectos denossa experiencia, e, de certo modo, um dos vocabulos maisvazios na linguagem'. Pois 0 "eu" refere-se unicamente a quemesta falando, 0 "sujeito" de uma senten9a ou elocu9iio. Urn agen­te que dominou 0 uso de "eu", como diz Mead, tambem domi­nOll 0 usa de "mim" - mas s6 atraves do dominic concomitantede uma linguagem sintaticamente diferenciada. Pois tenho desaber que sou um "eu" quando falo para "voce", mas que voce eurn "eu" quando fala para "mim", e que eu sou urn "voce" quan­do fala para mim... e assim por diante. A questiio niio e apenasque esses usos pressup5em aptid5es lingiiisticas de uma especiemuito complicada, mas tambem que eles acarretam um controleramificado do corpo e um conhecimento desenvolvido de como"prosseguir" na pluralidade de contextos da vida social.

o reconhecimento da importfuJcia essencial da monitora9iioreflexiva da conduta na continuidade cotidiana da vida socialniio significa refutar 0 significado das fontes inconscientes decogni9iio e motiva9iio. Mas envolve prestar alguma aten9iio adiferencia9iio que separa "consciente" de "inconsciente".

o uso na linguagem inglesa comum fomece-nos, pelo me­nos, uma orienta9iio geral para isso. Referimo-nos aconscien­cia, por vezes, como equivalente do que poderiamos chamar de"sensibilidade"'. Assim, alguem que adormece ou leva uma pan­cada na cabelYa "cai na inconsciencia" ou "fica inconsciente".Neste caso "inconsciente" significa algo diferente de seu usofreudiano ortodoxo, e a "consciencia" com a qual e contrastadotern urn sentido muito amplo. Ser "consciente", nesse sentido,e registrar uma gama de estimulos circundantes. Nada existe deespecificamente reflexivo quanto aconsciencia assirn entendida.a sentido no qual as seres humanos "perdem" e "recuperam" aconsciencia e diretamente aplicavel tambem aos animais supe­riores. Essa n09iio de consciencia refere-se evidentemente aosmecanismos sensoriais do corpo e a seus modos "normais" de

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funcionamento, e e pressuposta pelos conceitos de conscienciatanto pratica quanta discursiva.

A palavra "consciente" e llsada, algumas vezes, em refe­rencia a circunstancias nas quais as pessoas prestam aten9ao aeventos que se desenrolam avolta delas de maneira a relacio­na-Ios com sua atividade, Por outras palavras, refere-se amoni­tora9iio reflexiva da conduta por agentes humanos, amplamen­te no sentido do que tenho chamado de consciencia pratica,Assim, por exemplo, um professor pode estar "consciente" doque as crian9as nas primeiras filas da sala estao fazendo, mas"inconsciente" em rela93.0 as outras, nag filas do fundo, quecome9aram a tagarelar umas com as outras. 0 professor podeestar sendo desatento, mas nao esta inconsciente naquele senti­do do individuo que "perdeu a consciencia". Se esse sentido de"consciente" tern sua contraparte entre animais, nao edefinidode modo tao sem ambigiiidade quanta no sentido mais elemen­tar de consciencia acima citado. Urn terceiro sentido de "con­ciente", rotulado por Toulmin como "expressividade", corres­ponde aproximadamente a consciencia discursiva'. Usando 0exemplo dado por Toulmin, pode-se dizer que urn homem deneg6cios, que obtem dinheiro de urn cliente com falsos pretex­tos, comete uma "fraude deliberada e consciente", Por outrolado, se a mesma conseqiiencia resulta de forma muito inad­vertida das atividades do homem de neg6cios, sem que este es­teja ciente disso, ele tornau-se "inconscientemente" 0 instrumento do transtomo financeiro do outro. Neste caso, 0 agentetern de "pensar" sobre 0 que esta fazendo para que a atividadeseja levada a efeito "conscienternente". Neste sentido, "cons­ciencia" pressup5e estar 0 sujeito apto a fazer um relato coeren­te de suas atividades e das raz5es que as motivaram.

o inconsciente, tempo, memoria

Eclaro que 0 sentido psicanalitico de "inconsciente" ternalgo a ver com um contraste Ira,ado entre ele e esse terceirosignificado de "consciente", um contraste com aquilo que defi-

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Essas observa,oes indicam que memoria e percep,ao es­tiio intimamente Iigadas. Vale a pena subIinhar que as teoriasda percep,iio tendem a dividir-se em torno de urn eixo de sub­jetivismo versus objetivismo. Urn tipo de ponto de vista tendea enfatizar, de modo quase kantiano, 0 papel do perceptor comoprocessador do que, de Dutra maneira, sena urn vazio informe7

.

Uma opiniiio oposta sustenta que a percep,ao e organizadapela forma previamente dada do mundo objetiv08

• As tentativasde superar essa divisiio destacaram a importancia do tempo, eda diferencia,iio espacial, na percep,iio. Tal como as inten,oes,razoes etc., a percep,iio nao e urn agregado de "percep,oes"distintas, mas urn fluxo de atividade integrada com 0 movi­mento do corpo no tempo-espa,o. A percep,ao e organizadaatraves de esquemas de previsao, mediante os quais 0 indivi­duo preve a nova informa,iio que chega enquanto, simultanea­mente, procede it digestiio mental da velha. Ela envolve nor­malmente 0 continuo movimento ativo dos olhos e geralmenteda cabe,a, mesmo quando 0 corpo est" em repouso. Como osesquemas sao previsoes, eles constituem, como diz urn autor,"0 veiculo por meio do qual 0 passado afeta 0 futuro", 0 que e"identico aos mecanismos subjacentes da memoria"'. Podemuito bern ser que 0 tato, habitualmente considerado 0 maishurnilde dos sentidos e certamente 0 menos estudado de todos,forne,a a maioria das pistas para 0 entendimento da percep,iioem geral. 0 tato niio possui urn locus perceptivo claramentedeIimitado, como 0 olho; a informa,iio tatil que chega nao eordenada atraves de qualquer mecanismo especifico no siste­ma nervoso; 0 uso do tato e parte obvia do movimento manipu­latorio do corpo nos contextos de sua a,iio. Uma caracteristicaimpressionante da maior parte da Iiteratura sobre percep,aosensorial, alem disso, e tratar os sentidos como se eles funcio­nassem separados uns dos outros. Foi observado que virtual­mente todos os estudos experimentais da percep,iio envolvemsomente urn sentido'". A artificiaIidade disso e demonstrada atepelo mais superficial eXame da natureza da vida cotidiana, naqual a continuidade de atividades integra persistentemente osvarios sentidos.

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A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE

ni como consciencia discursiva. Consciencia discursiva signi­fica ser capaz de por coisas em palavras. 0 "inconsciente" nateoria psicanalitica refere-se ao oposto disso - ser incapaz dedar expressiio verbal aos impulsos da a,iio.

Para exemplificar ainda melhor, entretanto, a no,iio de"inconsciente" como "0 inconsciente", enecesscirio fazer algunscomentarios sobre memoria, urna vez que memoria e lingua­gem siio manifestamente muito proximas. Proponho defendera tese de que "0 inconsciente" so pode ser entendido em termosde memoria, e de que isso, por sua vez, significa examinarmuito cuidadosamente 0 que e memoria. Reaparecem aqui to­das as questiies de teoriza,iio da temporaIidade sobre cujo sig­nificado insisti antes.

I) Prima facie, pOder-se-ia supor que memoria refere-se sirnples­mente ao passado - a experiencias preteritas, cujos vestigios outra,os permanecem, de algum modo, no organismo. A a,iioOCOITe enlilo na espacialidade do presente, apoiando-se emlembranps do passado, sempre que elas se fa,am necessariasou desejadas. Uma reflexiio de momento demonstraci a inade­qua,iio desse ponto de vista. 0 "presente" niio pode ser dito ouescrito sem que se desvane,a no passado. Se 0 tempo nao elUna sucessao de "presentes", mas "estar presente" [presen­cingJ no sentido atribuido por Heidegger a essa expressiio, en­lilo a memoria e urn aspecto do estar presente.

2) Poder-se-ia imaginar que a memoria e, sobretudo, urn dispo­sitivo de lembran,a - urn modo de recuperar informa,iio oude "relembrar". Este ponto de vista e inteiramente compati­vel com a ideia de que 0 passado esm claramente separadodo presente, porque a memoria pode entiio ser consideradacomo chamar 0 passado de volta ao presente. Mas se descar­tarmos esta visiio niio sera mais plausivel definir a memoriacomo a recorda,iio de coisas passadas. 0 titulo de Proustdeve certamente ser lido como urn comentario ironico justa­mente a esse tipo de concep,iio ingenua. Recordar niio eirrelevante, obviamente, para a memoria, mas DaD designa 0que amemoria e.

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A percep,ao depende, pois, da continuidade espacial e tem­poral, ativamente organizada como tal pelo perceptor. a princi­pal ponto de referencia nao tern de ser 0 sentido singular nem 0

perceptor contemplativo, mas 0 corpo em seus envolvimentosativos com os mundos material e social. as esquemas percepti­vos sao formatos neurologicamente baseados mediante osquais a temporalidade da experiencia e continuamente proces­sada. Tal processamento pode, por sua vez, ser entendido comoinerentemente envolvido na monitora,ao reflexiva da a,ao emgeral. Parece impossivel negar que 0 bebe recem-nascido pos­sui urn equipamento perceptivo inato. Por outras palavras, eletern nao so os orgaos sensoriais como esquemas neurologica_mente estabelecidos, que the permitem responder seletivamen_te ao mundo circundante, mesmo que essa seletividade sejarelativamente rudimentar em compara,ao com a que se desen­volve mais tarde. Existe urn considemvel nUmero de provas deque os bebes respondem com movimentos da cabe,a na dire,aode sons, seguem visualmente objetos em movimento e esten­dem os bra,os para eles. "Olhar na dire,ao dos sons"ja envolve,e claro, a integra,ao dos sentidos". as recem-nascidos ja ava­liam isso em termos de urna diferen,a de tempo entre respostasacusticas nos dois ouvidos, levando ao movimento da cabe~ paraurna ou outra dire,ao. Tais respostas, e claro, tomam-se maisprecisas com 0 desenvolvimento psicologico e motor subse­qiiente; as crian,as levam muito tempo para aprender as artesde lidar conceptualmente com objetos que sairam do campo devisao. Denominar ou identificar objetos nao e, evidentemente,apenas urna questao de dar rotulos a fen6menos cujas qualida­des ja sao conhecidas. Denominar alguma coisa corretamente eestar apto a falar sobre ela corretamente, 0 que significa carac­terizar suas propriedades: relaciona-Ia com urna especie de obje-tos comparaveis, diferenciando_os de outras especies". Comrela,ao a isso, podemos entender os atrativos e as Iimita,6es doconceito de Gibson de "propicia,ao". Segundo Gibson, todosos usos ou atividades que os objetos possibilitam _ propiciamao ator hurnano - sao diretamente perceptiveis. Esse ponto devista tern a vantagem de sublinhar 0 canlter pmtico de atividades

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CONSCIl:NCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

perceptivas, mas nao indica sua conexao com as designa<;5esconceptuais de objetos, as quais provavelmente sao cultural­mente variaveis.

Se a percep,ao for entendida como urn conjunto de dispo­sitivos de arranjo temporal, formado pelos movirnentos e orien­ta,6es do corpo, e formando-os, nos contextos de seu compor­tamento, poderemos entender, por conseguinte, a importiinciada aten,ao seletiva na conduta cotidiana. Em todo e qualquercontexto de atividade, estao se passando muito mais coisas doque aquilo a que 0 ator assiste, acontecirnentos ou qualidadesque the escapam it aten,ao. Como ocorre isso? A respostacomum e que 0 material redundante e filtrado. Mas isso e intei­ramente enganoso, pois sugere uma tentativa ativa de rejei,aodo material redundante. Entretanto, a sele,ao e urn processomais positivo do que negativo; expressa os envolvirnentos ati­vos de agentes com seus respectivos ambientes. Consideremoso seguinte e muito debatido experimento". As grava,oes em fitade duas mensagens faladas separadas e diferentes sao fomeci­das simultaneamente a sujeitos experimentais, urna para cadaouvido e com igual volume de som. as sujeitos sao instruidospara escutar somente uma das mensagens e repeti-la it medidaque a ouvem. Eles nao tiveram dificuldade em fazer isso e, emgeral, nao "ouviram" nada da mensagem altemativa. A situa­,ao experimental e interessante porque espelha 0 que os agen­tes fazem a maior parte do tempo quando co-presentes comoutros em situa90es nas quais mais de uma conversa esta sedesenrolando. as resultados experimentais foram amplamenteinterpretados em termos de filtros de informa,ao negativa".Por outras palavras, a informa,ao redundante e supostamenteimpedida de chegar aos centros corticais superiores - tern sidosugerida a existencia de mecanismos neurais definidos quecontrolariam esse processo. Mas acontece que esse tipo de teo­ria nao so trata 0 individuo como urn receptor de input essen­cialmente passivo, como tambem depende de uma dissocia,aoinsustentavel entre percep,ao e memoria, pois supoe-se que,embora percebamos tudo em nosso ambiente, em qualquer mo­mento dado, boa parte do que e percebido e "bloqueado" - muito

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Os organismos sao ativos: eles fazem algumas coisas e dei­xam outras por fazer. Para collier uma mar;a cia irvore nao precisa­mos descartar todas as outras; simplesmente nao as apanbamos.Uma teona cia coleta da mar;a teria muito a expIicar (Como equedecidimos qual delas queremos? Como guiamos a mao ate ela?Como a colhemos?), mas DaD teria de especificar, em absoluto, urnmecanismo para manter longe das maos as mar;as nao desejadas. 16

rapidamente "esquecido"". Como sublinhou Neisser, a suposi­,ao e de que qualquer uso de informa,ao alguns milesimos desegundo apos ter sido registrada ja nao depende mais da per­cep,ao, mas da memoria. Essa opiniao nao e conceptualmenteconvincente nem empiricamente plausivel. Se a percep,ao e Con­siderada 0 que os agentes fazem, como parte de Suas atividadestemporal e espacialmente situadas, nao M a necessidade de pos­tular a existencia de qualquer mecanisme de bloqueio.

Se 0 "presente" nao e cortado do fluxo de a,ao, a "memo­ria" nada mais pode ser senao urn modo de descrever a cognos­citividade de agentes humanos. Se a memoria nao designa a"experiencia passada", tampouco a consciencia (em qualquerdos tres sentidos acima mencionados) expressa 0 "presente".Aquilo de que uma pessoa esta "conscia" nao pode ser fixadonum determinado ponto no tempo. Precisamos distinguir, por­tanto, entre consciencia, como conhecimento sensorial (0 primeiroe mais geral sentido do termo acima mencionado), memoria,como a constitui,ao temporal da consciencia, e recorda,ao, co­mo 0 meio de recapitular experiencias passadas de modo a fo­caliza-las na continuidade da a,ao. Se a memoria se refere aesse dominio temporal tao inerente na experiencia humana, en­taD a consciencia discursiva e a pnltica referem-se a mecanis­mos psico/6gicos de recordm;iio, conforme utilizados em eon­textos de a,ao. A consciencia diseursiva implica as formas darecorda,ao que 0 ator e capaz de expressar verbalmente. A cons­eieneia prMica envolve a recorda,ao a que 0 agente tern acessona duree da ac;ao, sem ser capaz de expressar 0 que assim"sabe". 0 inconsciente refere-se a modos de recorda,ao a queo agente nao tern acesso direto porque existe uma "barreira"

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negativa de algum tipo inibindo sua incorpora,ao nao-mediadana monitora,ao reflexiva da conduta e, mais particularmente,na conseiencia discursiva. As origens da barreira sao de doistipos afins. Em primeiro lugar, como as mais primitivas expe­rieneias do bebe, dando forma ao sistema de seguran,a basico,por meio do qual a ansiedade e canalizada ou controlada, ante­datam a competencia lingiiistica diferenciada, e provavel quepermane,am dai em diante "fora dos limites" da conscieneiadiscursiva. Em segundo lugar, 0 inconsciente contem recalca­mentos que inibem a formula,ao discursiva.

No que diz respeito it defini,ao conceptual, estas observa­,oes estao moderadamente de acordo com 0 uso caractensticode Freud de "consciente" e de "0 inconsciente". Mas a tese deque a maioria das atividades cotidianas nao sao diretamentemotivadas significa questionar 0 modelo de motiva,ao comque Freud tipicamente trabalhou. Para Freud, todas as ativida­des humanas sao motivadas, inc1uindo (por exemplo) banalida­des ou "erros" aparentes como 0 /apsus linguae. Ele se interes­sou, com freqiiencia, precisamente em demonstrar que feno­menos supostamente "acidentais" tern sua origem, de fato, emmotivos (inconscientes). Nao existe nenhuma razao para sequestionar a qualidade esc1arecedora dos inSights de Freud emtais materias. Mas pretender que todo e qualquer ate ou gesto emotivado - significando que the pode ser associado urn "moti­vo" definido - nao faz mais sentido do que tratar a a,ao comoenvolvendo urna seqiiencia de inten,oes ou razoes. Ha urnafalha logica, aqui, na no,ao simplificada da natureza da a,aohurnana. Como tenho dito com freqiiencia, a a,ao nao pode serconceituada satisfatoriamente como urn agregado de atos. Con­centrando-se principalmente em "segmentos" demarcados es­pecificos do comportamento (sintomas neuroticos), os escritosde Freud tendem, de modo inevimvel, a expressar urna concep,aotao deficiente de a,ao. Mas, em vez de supor que todo "ato"tern urn "motivo" correspondente, temos de compreender 0

termo "motivac;ao" como processual. 0 significado concretodisso e que 0 inconsciente so raras vezes incide diretamente so­bre a monitora,ao reflexiva da conduta. E as conexoes envolvi-

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das tampouco dependem unicamente de mecanismos psicolo­gicos dentro da personalidade do ator individual; elas sao me­diadas pelas rela90es sociais que os individuos mantem naspriticas de rotina de suas vidas cotidianas.

Vma pequena elabora9ao desse ponto fomece algo comouma transi9ao entre a discussao desenvolvida ate aqui, nestecapitulo, e 0 que se segue mais adiante. Os principais teoremasque desejo propor dizem 0 seguinte. A vida comum do dia-a­dia - em maior ou menor grau, de acordo Com 0 contexto e oscaprichos da personalidade individual - envolve uma seguran­fa ontol6gica, que expressa uma autonomia do controle corpo­ral no ambito de rotinas previsiveis. As origens psicologicas daseguran9a ontologica serao encontradas nos mecanismos decontrole da ansiedade basica (conforme indicado por Erikson,cujas ideias discuto no proximo subcapitulo), hierarquicamen_te ordenadas como componentes da personalidade. A gera9aode sentimentos de confian9a nos outros, como 0 elemento maisprofundo do sistema de seguran9a basica, depende substancial­mente de rotinas previsiveis e diligentes, estabelecidas por fi­guras parentais. Desde muito cedo, a crian9a da e recebe con­fian9a. Quando se torna mais autonoma, entretanto, a crian9aaprende a importiincia do que sao, nos termos de Goffinan, os"dispositivos protetores", os quais sustentam a mutualidadeimplicita na confian9a atraves do tato e de outras formulas quepreservam a aparencia extema dos outros. A seguran9a ontolo­gica e protegida por tais dispositivos, mas mantida de modomais fundamental pela propria previsibilidade da rotina, algoque e radicalmente perturbado em situa90es criticas. A anula­9ao de moldes habituais de atividade pela angustia, que naopode ser adequadamente contida pelo sistema de seguran9a ba­sica, e especialmente uma caracteristica de situa90es criticas.

eriticar a terminologia de Freud de "agencia" e selfcom­porta numerosas implica90es. 0 "eu" e uma caracteristica es­sencial do monitoramento reflexivo da a9ao, mas nao deve seridentificado com 0 agente nem com 0 self Entendo por "agente"ou "ator" 0 sujeito humano total, localizado no tempo-espa90corporeo do organismo vivo. 0 "eu" nao tern imagem, como 0

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A CONSTITUIr;A'O DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

selftern. 0 self, entretanto, nao e uma especie de mini-agenciadentro do agente, Ea soma daquelas formas de recorda9ao pormeio das quais 0 agente caracteriza reflexivamente "0 que"esta na origem de sua a9ao, 0 selfe 0 agente enquanto caracte­rizado pelo agente. Self, corpo e memoria estao, portanto, inti­mamente relacionados.

Erikson: ansiedade e confian9a

As teorias que salientam os elementos inconscientes docomportamento humano tendem freqiientemente a adotar pers­pectivas objetivistas. Nao e dificil perceber por que, pois 0objetivismo, como muitas explica90es do inconsciente, trata amonitora9ao reflexiva da a9ao como mera espuma na superfi­cie da atividade humana, cujas verdadeiras origens estiio situadasem outra parte. Ao apresentar uma descri9ao (algumas caracte­risticas) do inconsciente e das rela90es sociais, nao acompa­nharei aquelas versoes da psicanaJise estruturalista, associadasespecialmente a Lacan, que estiio agora em yoga em algunsmeios. Embora os escritos de Lacan contenham inegavelmentealgumas ideias de grande interesse, em minha opiniao elas ex­pressam uma concep9ao empobrecida do agente semelhante agerada pelo "marxismo estruturalista"". Lacan foi um dos queestiveram a frente dos ataques contra a obra dos chamados "psi­cologos do ego" dentro da psicanalise. Essas polemicas tiveramexilo num grau substancial, uma vez que a obra de Sullivan,Horney, Erikson, Kardiner e outros encontra-se agora como quenuma certa obscuridade. Penso que algumas das contribui90esdesses autores, entretanto, conservam uma importancia muitoconsideravel e nelas me apoiarei em algo do que se segue.

Criticas, "revisionismos" e "ortodoxias" autoprofessadastern proliferado na teoria psicanalitica desde os primeiros anosdeste seculo, a exemplo do que tern acontecido com 0 marxis­mo, Os psicologos do ego, porem, associaram-se a dnas princi­pais linhas de desenvolvimento no que conceme as formula­90es "classicas" da psicanaJise nos escritos de Freud. Por umlado, adotaram a perspectiva promovida por Anna Freud, isto e,

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esclareceu suficientemente 0 limiar essencial no desenvolvi­mento da crian,a que deriva da fase do dominio sintatico dalinguagem, uma transi,ao na vida do individuo, como Chomskydemonstrou, cujas conseqiiencias podem ser identificadas combastante facilidade, mas cujas origens permanecem torturante­mente obscuras,

Em todas as sociedades, 0 cuidado inicial da crian,a e do­minado por urn s6 agente, quase sempre a mae biol6gica. As fa­ses iniciais do desenvolvimento da personalidade podem sercaracteristicamente associadas as resolu,oes de necessidadesou tensoes decorrentes de tra,os fisicos do organismo. Mas pa­rece quase certo que Freud comprimiu-as num esquema exces­sivamente determinista, e requer-se Dutro, mais flexivel, paradar conta das varia,oes entre e dentro das sociedades, Podemosdizer que a mais antiga intera,ao entre 0 bebe e sua mae estainserida no desenvolvimento do "inconsciente": nem 0 "movi­mento corporal" nem 0 "controle corporal" sao muito seme­lhantes aos sentidos em que ambos sao envolvidos na "ayao",no caso do membro adulto da sociedade. Se concordamos comErikson, podemos distinguir tres sucessivas polaridades asso­ciadas atransforma,ao do corpo num instrumento de atua,aono mundo. A primeira polaridade, e a mais antiga, e a de "con­fianya basica" versus "desconfianya basica". a recem-nascidoe urn feixe de impulsos, que tern certos mecanismos homeosta­ticos de ajustamento geneticamente dados, existente num am­biente estranho; as atividades da mae proporcionam assistenciae prote,ao. A "confian,a" (concebida aqui como urn tra,o depersonalidade) e entendida como tempo-espa,o psicologica­mente vinculat6rio pelo despertar inicial de urn sentido de queausencia nao significa deser,ao, A diniimica psicol6gica subja­cente a interse,ao de presen,a e ausencia tern seu ponto de ori­gem no corpo, nas necessidades corporais, em seus modos desacia,ao e controle,

Como Erikson comenta, "a primeira realiza,ao social dacrianya e, portanto, sua disposiyao de perder a mae de vista semque isso the cause angustia ou raiva desmedidas, pelo fato de amae ter se tornado tanto uma certeza interna quanta uma previ­sibilidade externa". Previsibilidade, continuidade, uniformidade

61CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTITU/(;:Jo DA SOCIEDADE

argumentaram que a preocupa,ao de Freud com a repressao e 0

inconsciente levou-o a subestimar os componentes mais cogni­tivos, racionais, do agente. Por outro lado, foram influenciadospelos escritos de analistas sociais, sobretudo dos antrop6logos,os quais demonstram a nitida diversidade de modos humanosde vida social. Os escritos culturais de Freud - seja qual for aimportiincia que ainda possam conservar, em alguns aspectos _estavam essencialmente ligados ao evolucionismo da antropo­logia do seculo XIX. Estar conscio dessa diversidade significatambern reconhecer a variedade de diferentes formas de orga­niza,iio da familia, e, por conseguinte, de socializa,ao primitiva,existentes. 0 reconhecimento desses dois conjuntos de fatores,considerados a urn tempo, significa fazer substanciais desviosdas no,oes mais tradicionais da teoria psicanalitica, emboranao acarrete adotar um relativismo cultural desenvolvido; hiiprocessos de desenvolvimento da crian,a e de personalidadeadulta comuns a todas as sociedades humanas. Erikson expres­sa isso em Childhood and Society da seguinte maneira:

A psicamilise esta implementando na atualidade 0 estudodo ego [...]. Esta transferindo a importincia que atribuia ao estu­do concentrado das condi~5es que entorpecem e deformam 0

ego individual para 0 estudo das raizes do ego na organizacyaosocial. [...] A longa infancia faz do hornem urn virtuose tecnico emental, mas tambem deixa nele urn duradouro residue de imatu­ridade emocional. 18

Erikson e Sullivan sao talvez as duas figuras mais destacadasentre aquelas que preservaram certos elementos universais dadescri,ao original de Freud das fases de desenvolvimento psi­cossexual, embora adotando, ao mesmo tempo, contribui,oesderivadas das ciencias sociais. Ap6io-me nas ideias deles _ em­bora parcimoniosa e criticamente - no que se segue. Baseadotanto em seu trabalho clinico quanto no estudo a que procedeude uma gama de culturas, Erikson distinguiu uma serie de eta­pas do desenvolvimento da personalidade num periodo que caidesde a inrancia ate a idade adulta. Sua discussao da naturezadas inclina,oes motivacionais e capacidades mentais da crian­,a pequena e extremamente persuasiva. Mas penso que ele nao

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Becker, e "0 sentimento positivo de cordialidade pessoal volta­do para a inquiri,ao e sabotagem potencial dos outros"'".

Como base de urn sistema de administra,ao de tensao, apolaridade confian,a/desconfian,a e organizada em torno derela,5es entre proje,ao e introje,ao como mecanismos da per­sonalidade. A introje,ao infantil, segundo Freud, assimila a bon­dade externa e a certeza interna; a proje,ao trata urn dano inter­no como malevolencia externa21 • Esses mecanismos, baseadoseles proprios na identifica,ao, acabam sendo recobertos porvarias formas psiquicas mais maduras. Mas retornam ao pri­meiro plano em situa,5es de extrema amea,a ou crise. Subse­qiientemente, a matura,ao fisica do corpo prepara 0 terrenopara a transi,ao a urna nova fase do desenvolvimento. Eriksonsugere que a melhor maneira de entender isso nao e em termosde urn deslocamento de zonas de prazer na superficie do corpo,como queria Freud, embora as fixa,5es possarn vir a centrar-senelas. "Agarrar" e "soltar" sao obviamente aplicaveis ao con­trole de excre,5es corporais, mas expressam-se de urn modomuito mais generico atraves das maos e dos bra,os. "Agarrar"e "soltar" sao os correlatos comportarnentais da principal polari­dade em que essa nova etapa se centra: autonomia versus duvidaou vergonha. Tal como na fase anterior, com a qual pode manter­se nurna rela,ao de tensao generalizada, a polaridade pode serresolvida de urn modo relativamente benigno ou mais dilacera­dor. Agarrar como urn modo ivido de reten,ao pode representarurna auto-absor,ao cruel ou ser urn padriio de cuidado expressan­do autonomia. Do mesmo modo, soltar pode ser urna expressaohostil de impulsos agressivos ou urna atitude rnais descontraidade "deixar passar", de "deixar acontecer". Parece importante en­fatizar 0 significado da psicodinfunica da vergonha em contrastecom a culpa. Multos psicanalistas, seguindo as sugest5es dadaspor Freud, trataram a vergonha como especificarnente ligada aomedo de exposi,ao genital. Isso ajuda certarnente a indicar urnaspecto da ansiedade, acerca da "aparencia" corporal, que (comosern indicado brevemente) Goffinan mostrou ser tao importante.Mas 0 fenomeno da vergonha e certarnente multo rnais penetran­te do que os comentirios de Freud nos levariam a crer".

63CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTlTUI9A-O DA SOCIEDADE

fornecem ''urn sentimento rudimentar de identidade do ego quedepende [...] do reconhecimento de que existe urna popula,aointerna de sensa,5es e imagens recordadas e previstas firme­mente correlacionadas com a popula,ao exterior das coisas epessoas conhecidas e previsiveis"". "Confian,a" iguala-se aquia seguran,a e, desde muito cedo, sugere Erikson, traz urna mu­tualidade explicita a ela; ha, pelo menos, urn sentimento inci­piente de "ser digno de confian,a" associado aextensao gene­ralizada da confian,a ao outro. Nao, e claro, que a forma,aoinicial de confian,a ocorra sem conflito ou tensao. Pelo contri­rio, realiza-se contra urna base de anglistia difusa, cujo contro­Ie se insinua como a mais generalizada origem motivacional daconduta hurnana. A intera,ao entre 0 bebe e a mae insere 0 indi­viduo humano em crescimento num nexo do qual, para melhorou para pior, nao ha dai em diante como escapar. A mae e urnagente Gi urn representante do "outro generalizado") que, aocuidar do bebe, implicita urn direito social nisso, que prenunciaas san,5es normativas associadas a forma,ao subseqiiente derela,5es sociais. A anglistia da ausencia dissolve-se atraves dasrecompensas da co-presen,a, deitando as bases da dialetica docompromisso e do descompromisso em que a diversidade dosencontros se fundamenta. A expansao da autonomia da crian,a,ancorada no controle do corpo como urn veiculo de a,ao (quesofre urna transforma,ao maci,a com 0 dominio da linguagem),amplia e integra simultaneamente essa dialetica. Cada indivi­duo tern 0 direito - variando em contelido de mUltiplas manei-ras em diferentes contextos - de manter urna dismncia dos ou­tros, preservando a privacidade corporal e integridade do self.Mas 0 self tern de submeter-se ao compromisso social, dadoque isso e feito com a devida deferencia ao reconhecimentoajuizado das necessidades dos outros. A crian,a ainda ignoraisso, bern como Sua conexao com a face*. A face, como diz

* Talvez seja oportuno Iembrar que, a1em de sinonimo de "rosto", "cara","fisionomia", "expressao fisionomica", "aparencia extema", "fachada" etc"

comum a ambos as idiomas, face tern em ingles conota~aes inexistentes emnosso idioma, as quais 0 autor faz referencia: arnor-proprio, dignidade, presti­gia, como em express6es Correntes como to lose jace (perder prestigio),facesaving (salvar as aparencias) etc. (N. do T.)

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64A CONSTITWr;:Jo DA SOCIEDADE

o predominio de sentimentos de vergonha ou duvida eindicado pela freqiiencia com que estar "envergonhado" e ter­mos companlveis ("mortificado", "hurnilhado" etc.) ocorrem naconversa9iio comum. A ideia, sugerida por alguns autores, deque a culpa e "privada" enquanto a vergonha e "publica" pare­ce dificil de sustentar. A vergonha penetra nas raizes da auto­estima e e evidente que esta intimamente relacionada com aexperiencia algo mais moderada de "embara90" ou "constran­gimento". Vergonha e constrangimento estiio localizados psi­cologicamente na interse9iio de compromisso e descompro_missa, 0 fracasso em "reaIizar" certos aspectos do desempenhopor ter sido "apanhado" em descuido ou negligencia de variasmaneiras. Diferente da "culpa", a "vergonha" e 0 "constrangi_mento" captam ambos os lados dos encontros; quer dizer, osdois ultimos termos podem ser usados pelo individuo a respeitode Sua propria conduta ou da de outros. Eu posso estar enver­gonhado de mim mesmo, de algo que fiz, ou constrangido comisso. Mas tambem posso envergonhar_me da conduta de outrem,assim como ficar constrangido em raziio disso. Parecemos de­tectar aqui urna diferen9a entre as duas em090es. Estar enver­gonhado com 0 comportamento de uma outra pessoa indica aexistencia de urn vinculo com ela, assinalando urn certo reco­nhecimento de associa9iio com ou ate de responsabilidade porela. Ficar constrangido por alguem, em vez de expressar urnalheamento em rela9iio a sua conduta, revela, na verdade, urnacerta curnplicidade com ele, urna simpatia por alguem que foidesnecessariamente "exposto".

E especialmente interessante, a luz da preocupa9ilo deGoffinan com acontecimentos anaJogos, assinalar que Eriksonliga a vergonha na crian9a (com fortes tra90S residuais no siste­ma de seguran9a do adulto) a postura corporal e as regioes"frontal" e "posterior" do corpo. Podemos ver ai urn modo peloqual a teoria de reten9ilo anal, de Freud, pode ser expressa nu­rna forma muito mais socializada. As regioes "da frente" e "detras", em que os encontros ocorrem, e em cujo contexto asocasi5es sociais sao encenadas, talvez se relacionem direta­mente com a experiencia mais primitiva da regionaliza9iio an-

CONSCIPNCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

terior/ posterior do corpo. Manter a "frente" (as aparencias) navida social significa evitar as ansiedades provocadas pela ver­gonha, e a perda da "frente" (do amor-proprio) leva precisamen­te avergonha ou constrangimento. Para a crianya, "atnis" sig­nifica "0 traseiro":

o continente negro do pequeno ser, uma area do calpa que padeser magicamente dominada e efetivamente invadida per aquelesque poderiam atacar-lhe 0 pader de autonomia... Essa etapa,portanto, passa a ser decisiva para a proporc;ao de arnOT e odio,de cooperac;ao e voluntariedade, de liberdade de auto-expressaoe sua supressao. De urn sentimento de autocontrole sem perdade amor-pr6prio resulta urn sentimento duradouro de boa vonta­de e orgulho; de urn sentimento de perda do autocontrole e desupercontrole extemo resulta wna propensao duradoura para aduvida e a vergonha. 23

A terceira fase, aquela que culmina no dominio (e coincidecom ele) da linguagem sintaticamente desenvolvida, focalizauma polaridade de iniciativa versus culpa. Ea fase da transi9iioedipiana, a qual, sejam quais forem suas obscuridades e comple­xidades, apresenta-se como uma fase universal de crise no de­senvolvimento psicologico hurnano. No que se refere ao corpo,emarcada pelo dominio de uma postura ereta e do movimentoambulatorio nessa postura, bern como pelo amadurecimento dagenitalidade infantil. 0 potencial dramarico dessa fase, para 0desenvolvimento posterior da personalidade, e dado pela con­jun9iio da exigencia de repressiio do apego inicial a miie (nosrapazes e nas meninas) com as capacidades que se tornam par­te desse processo, na medida em que coincide com urn enormesaIto para a frente nas aptidoes lingiiisticas. Eurna fase de ini­ciativa, porque a realiza9iio da transi9iio edipiana permite a crian­9a 0 controle interno necessario para se aventurar longe dosconfins imediatos da familia e estabelecer rela90es com seuspares. Mas isso econseguido ao pre90 da repressiio, que, emcertos individuos e em algumas circunstancias, pode acarretarmutila90es em formas de ansiedade derivada da culpa.

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66A CONSTITW9AO DA SOCIEDADE

Pais aqui a crian~a divide-se para sempre. Os fragmentosdo instinto, que antes haviam intensificado 0 desenvolvimentode seu corpo e de sua mente infantis, tomam-se agora divididosem uma conformac;ao infantil, que perpetua a exubenincia dospotenciais de desenvolvimento, e uma confonnac;ao parental,que sustenta e aumenta a auto-observac;:ao, a auto-orientac;:ao e aautopunic;:ao.24

67CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

A Figura 3 indica que as sucessivas fases pressupoem pro­por90es variaveis de independencia e dependencia, combina­90es de modos corporais e mecanismos psicoI6gicos. Se esti­vesse em debate a descri9ao de diferen9as individuais, issoimplicaria refletir sobre 0 conteudo dos retangulos vazios, osquais seriam preenchidos na medida em que fixa90es oumodos de regressao infantis exercem uma influencia profundasobre a motiva9ao do comportamento.

A investiga9ao sobre 0 desenvolvimento infantil sugere,com certa enfase, que a forma9ao de capacidades de a9ao aut5­noma combina-se estreitamente com a compreensao dos outroscomo agentes. Tres etapas principais na forma9ao de conceitosde "agencia" podem ser distinguidas, coincidentes com as fasesdescritas por Erikson. Uma ea do reconhecimento do que foidenominado "agencia simples" - a de que outros podem inter­vir causalmente numa seqiiencia de eventos ao ponto de os mo­dificar25

• A percep9ao pela crian9a de que seu corpo e um locusde a9ao acompanha a atribui9ao de qualidades identicas aoscorpos de outros. Desde muito tema idade, ela reage de modosdiferentes em sua intera9ao com os outros "que Ihes parecemagentes", embora os aspectos da conduta de tais figuras, as quaisresponde, sejam relativamente simples e nitidos26

• Outros agen­tes, entretanto, ainda sao tratados instrumentalmente, comouma especie de objeto no meio ambiente, e nao como seresfisicamente separados do self, que podem ir embora e retomar.A competencia emocional associada a confian9a parece estarintimamente ligada a compreensao cognitiva de "agencia" co­mo uma propriedade de distintos seres. Mas a generaliza9ao depropriedades especificamente "humanas" antes atribuidas so­mente a determinadas figuras parentais, aos agentes humanos,marca a transi9ao para uma terceira etapa.

Vigotski, entre outros, demonstrou a estreita rela9ao en­tre habilidades locomotoras (0 dominio do corpo como locusde a9ao) e 0 dominio sint<itico da linguagem. Sua obra respondemuito pouco ao "problema chomskyano" - como e que a crian­9a, de modo relativamente subito, consegue coordenar estrutu­ras sintaticas com hito? -, mas elucida importantes aspectos

32

Figura 3

iniciativaversusculpa

autonomiaversus

vergonha, dUYida

confianya basicaversus

desconfianya

.

Em cOnjunto, essas tres fases representam um movimentoprogressivo na dire9ao da autonomia, que deve ser entendidacomo 0 estabelecimento da capacidade de monitora9ao reflexi­va da conduta. Mas "autonomia" nao significa abandonar osestimulos provocadores de ansiedade ou os modos de enfrentaransiedade que compreendem 0 sistema de seguranp da perso­nalidade adulta. Os componentes motivacionais da personali­dade infantil e da adulta derivam de uma orienta9ao generaliza­da para a evita9ao da ansiedade e a preserva9ao da auto-estimacontra a "enchente" de vergonha e culpa. Podemos pressuporque os mecanismos do sistema de seguran9a permanecem numnivel inconsciente, porque sao pre-lingiiisticos _ embora a faseedipiana seja precisamente 0 periodo em que a crian9a aprendea constituir-se como urn "eu".

III LocomotorGenital

II MuscularAnal

J OralSensorial

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da associa,ao de agencia e fala. 0 usa da linguagem, de formadiferenciada, depende da expansao da "inteligencia pratica" dacrian,a - por outras palavras, de aspectos definidos da cons­ciencia pnitica". Pode-se sugerir que 0 desenvolvimento da"inteligencia prMica" acelera-se a partir do periodo da resolu­,ao da terceira fase no esquema de Erikson, porquanto envolvea explora,ao do corpo como urn veiculo de a,ao. Mas 0 surgi­mento inicial da "inteligencia pnltica" data dos primeirosmovimentos explorat6rios do bebe; 0 dominio da fala sintMicaconverge com 0 aurnento do dominio pnitico na fase decisivade desenvolvimento. Eimpressionante verificar ate que pontose assemelham algumas das observa,oes de Vigotski, sobre 0

que para urn adulto pareceria ser uma "dissocia,ao" entre falae conduta, e as feitas por Merleau-Ponty, a respeito de pacien­tes portadores de lesao cerebral (ver pp. 75-9). Por exemplo, urnacrian,a pode ser capaz de executar urna tarefa bastante comple­xa somente com a condi,ao de ir descrevendo verbalmentecada movimento a medida que prossegue. As crian,as, comomuitos "doentes mentais", nao tern a menor relutiincia em falarpara si mesmas em publico - fenomeno esse que tern de ser dis­tinguido da identifica,ao piagetiana de "fala egocentrica".

Tendo recorrido consideravelmente a Erikson, talvez devadeixar claro que a apropria,ao que fiz de algumas de suasideias pretende ser estritamente limitada e idonea. Penso que asareas menos interessantes da obra de Erikson sao justamenteaquelas pelas quais ele talvez tenha ganho maior celebridade _as relacionadas com a forma,ao da "identidade do ego" e coma importiincia das etapas de desenvolvimento da personalidadeque se estendem ate a adolescencia e mais alem. Erikson criticaa formula,ao de Freud acerca do "ego" e suas rela,oes com a so­ciedade

28

• Isso deve-se em parte as suas inadequabilidades so­ciol6gicas. Freud apoiou-se em textos sociol6gicos surnamenteinadequados (como as discussoes de seu tempo em torno dapsicologia de massa) em seus escritos. Ao mesmo tempo, 0

metodo psicanalitico era baseado em hist6rias de casos indivi­duais. Entre uma coisa e outra existe urn grande abismo. Ne­nhurna descri,ao satisfat6ria de urna sociedade diferenciada

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Rotiniza,iio e motiva,iio

Em vez do conceito de identidade do ego, usarei no que sesegue as iMias de Erikson sobre as origens e a natureza da

CONSClENClA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

foi elaborada por Freud ou por muitos de seus epigonos; "0

conceito de organizariio social e sua rela,ao com 0 ego indivi­dual" foi "posto de lado pelos encomios em defesa da existen­cia de 'fatores sociais"'''. 0 conceito do ego foi assim estabele­cido por Freud, sublinha Erikson, em rela,ao a seus opostos nanatureza ca6tica da massa enos instintos primevos do id. A fimde tentar levar em conta a sensibilidade moral escudada dosseres hurnanos, Freud introduziu 0 conceito de superego ou egoideal- concebendo-o, lambem, entretanto, em termos, princi­palmente, de urn fardo que 0 ego tern de suportar. Erikson quiscontrabalan,ar essa enfase unilateraL Em vez de nos concen­trarmos no que e negado a crian,a pela organiza,ao social,deveriamos interessar-nos tambem em apurar como a crianyase beneficia dela e conceder maior aten,ao a influencia detipos diferenciados de organiza,ao sociaL A no,ao de Eriksonde identidade do ego tern 0 prop6sito de completar os concei­tos psicanaliticos tradicionalmente estabelecidos".

Estou francamente de acordo com os comentarios criticosde Erikson a respeito de Freud. Mas 0 termo "identidade do ego"nao e dos mais satisfat6rios. 0 termo "ego", conforme indi­quei, realiza urn excessivo trabalho conceptual em teoria psica­nalitica. 0 de "identidade do ego" tende apenas a avolurnar asconfusoes ja existentes. 0 pr6prio Erikson admite que 0 termotern pelo menos quatro conota,oes. Por vezes, refere-se a urnsentido "consciente" de identidade individuaL Tambem podesignificar "empenho inconsciente por urna continuidade do cara­ter pessoal", Urn terceiro significado e "urn criterio para os pro­cedimentos silenciosos de sintese do ego". Urn quarto sentido e"a manuten,ao de urna solidariedade interior com os ideais e aidentidade do grupo"31, Poder-se-ia assinalar que nenhurna dessasacep,oes, tomadas isoladamente, e especialmente compreensivel-muito menos 0 conceito que engloba todas elas!

A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE68

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70A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE

autonomia corporal e da confian9a. Sugerirei que um sentidode confian9a na continuidade do mundo objetivo e no tecido daatividade social depende de certas conexoes especificaveis en­tre 0 agente individual e os contextos sociais atraves dos quaisesse agente se movimenta no deeorrer da vida cotidiana. Se 0

sujeito so pode ser apreendido atraves da constitui9ao reflexivade atividades dimas em priticas sociais, nao podemos entendera mecanica da personalidade separada das rotinas da vida dodia-a-dia, atraves das quais 0 corpo passa e que 0 agente pro­duz e reproduz. 0 conceito de rotinizarao, baseado na cons­cieneia pritica, e vital para a teoria da estrutura9ao. A rotinafaz parte da continuidade da personalidade do agente, na medi­da em que percorre os caminhos das atividades cotidianas, edas institui90es da sociedade, as quais so 0 sao mediante suacontinua reprodu9ao. Um exame da rotiniza9ao, devo afirmar,dota-nos de uma chave-mestra para explicar as formas caracte­ristieas de rela9ao do sistema de seguran9a bisica com os pro­cessos reflexivamente constituidos inerentes ao cariter episo­dico dos encontros.

Podemos sondar a natureza psicologica da rotina conside­rando os resultados de situa90es em que os modos estabelecidosde vida diaria habitual sao drasticamente abalados ou rompi­dos - estudando as que podemos ehamar de "situa90es criti­cas". Ha um sentido no qual as situa90es criticas, para indivi­duos espeeificos ou grupos de individuos, estao elas mesmasinseridas na regularidade da vida social pela propria naturezada interse9ao entre 0 processo ou "cicIo" vital do individuo, aduree da atividade, por um lado, a longue duree das institui­90es, por outro. Sao essas as crises tipicamente marcadas por

ritos de passagem, come9ando para 0 individuo com 0 nasci­mento e terrninando com a morte. Entretanto, na medida em queformam uma parte intrinseca da continuidade da vida social,muito embora sejam descontinuidades para os individuos, taissitua90es tendem a revestir-se de um cariter definitivamenterotinizado.

Entendo por "situa90es critieas" as eircunstancias de dis­jun9ao radical de tipo imprevisivel, que afetam uma quantida-

CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

de substancial de individuos, situa90es que amea9am ou des­troem as certezas de rotinas institucionalizadas. Estou interes­sado, neste ponto, nao na analise das origens sociais de tais eir­cunstfulcias, mas em suas conseqiiencias psico16gicas e no queessas conseqiiencias indicam acerca da generalidade da vidasocial rotineira. Como analisei situa90es criticas de forma bas­tante detalhada em outro trabalho", mencionarei aqui apenasuma delas - uma famosa descri9ao de um episOdio infame dahistoria recente. Ea descri9ao e analise de Beltelheim, em TheInformed Heart, das experiencias do autor e de outras em Da­chau e Buchenwald. Nos campos de coneentra9ao, escreve ele,"'vi ocorrerem fapidas mudan9as, e nao so no comportamentocomo tambem na personalidade; incrivelmente mais rapidas e,com freqiiencia, muito mais radicais do que qualquer que fossepossivel por tratamento psicanalitico"33. A experiencia do cam­po de eoncentra9ao nao foi mareada apenas pelo confinamen­to, mas tamb"m pela extrema ruptura de formas habituais devida cotidiana, decorrente das condi90es brutalizadas de exis­tencia, da sempre presente amea9a ou realidade da vioIenciados guardas, da escassez de alimento e outras provisoes ele­mentares para a manuten9ao da vida.

As mudan9as de personalidade descritas por Beltelheim ­vivenciadas por todos os prisioneiros que estiveram intemadosno campo de concentra9ao por alguns anos - obedeciam a umacerta seqiiencia de estagios. Essa seqiiencia era com muita evi­dencia regressiva. 0 proprio processo de prisao inicial era trau­mitico para a maioria dos reclusos. Arrancados ao convivio dafamilia e dos amigos, geralmente com pouca ou nenhuma adver­tencia previa, muitos prisioneiros foram submetidos a torturadurante seu transporte para os campos. Os de classe media ouprofissionais liberais, que em sua maioria nao tinham tidoqualquer contato anterior com a policia ou com 0 sistema deprisao, tiveram a maior perturba9ao nas fases iniciais de trans­porte e de "inicia9ao" na vida do campo de concentra9ao. Se­gundo Beltelheim, os suicidios que ocorreram na prisao e notransporte confinaram-se principalmente a dse grupo. A vastamaioria dos recem-aprisionados, entretanto, procurava distan-

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tudo 0 que 0 futuro pudesse reservar-Ihes. Deixavam de se com­portar como agentes hurnanos, evitando 0 contato de olhar comDutrOS, fazendo apenas movimentos corporais primarios earrastando-se para andar. Esses homens e mulheres nao tarda­ram a morrer. Somente as prisioneiros que conseguiram man­ter algurna pequena esfera de controle em suas vidas diitrias,que ainda consideravam como "'suas", puderam sobreviver.Como diz Bettelheim, eles preservaram "0 principal suporte deurna humanidade radicalmente reduzida, mas ainda presente".Nao obstante, eram incapazes de evitar urna serie de atitudesinfantis, uma diminui9ao muito acentuada do senso de tempo,da capacidade de antever, bern como oscila90es bruscas de hu­mor em resposta a acontecimentos inteiramente triviais.

Todas essas coisas referem-se ao comportamento de pri­sioneiros que tinham estado em campos de concentra9ao pornao mais de urn ano (inclusive 0 proprio Bettelheim). Os "pri­sioneiros veteranos", sobreviventes de varios anos nos campos,apresentavam urn comportamento diferente. Haviam perdidopor completo qualquer orienta9ao quanta ao mundo la fora etinham, por assim dizer, se reconstituido como agentes inte­grando-se na vida do campo como participantes dos propriosrituais de degrada9ao que, quando prisioneiros recem-chega­dos, haviam considerado tao abjetos. Com freqiiencia, eramincapazes de recordar nomes, lugares e eventos de suas vidaspregressas. 0 resultado final, observado na maioria dos velhosprisioneiros, mas nao em todos, era urna personalidade recons­trulda, que se baseava na identifica9ao com os proprios opres­sores, os guardas do campo. Os velhos prisioneiros macaquea­yam as atividades de seus carcereiros, nao meramente para pro­curar agradar-lhes mas tambem, sugere Bettelheim, por causade uma introje9ao dos valores normativos dos SS.

Como devemos interpretar esses acontecimentos? A se­qiiencia de estitgios parece bastante clara (embora nao apresen­tada desse modo pelo proprio Bettelheim). A ruptura e 0 ata­que deliberadamente sistemittico its rotinas habituais da vidaproduzem urn alto grau de ansiedade, urna elimina9ao das res­postas socializadas associadas it seguran9a da administra9ao

'1

72A CONSTITUlr;:A-O DA SOCIEDADE

ciar-se psicologicamente das pavorosas pressoes da vida nocampo, tentando manter os modos de conduta associados its suasvidas pregressas. Mas isso provou ser impossive!. A "iniciati­va", que Erikson diz estar no mlcleo da autonomia de a9ao hu­mana, foi muito rapidamente corroida; a Gestapo, em certamedida, for90u deliberadamente os prisioneiros a adotarem urncomportamento infantil.

A grande maioria dos prisioneiros perambulava pelo camposem uma flagela9iio publica, mas a ameaca gritada de que iriamreceber 25 chicotadas nas costas soava em seus ouvidos muitasvezes por dia... Amea9as como essas, e tambem as impressoeslan9adas aDS prisioneiros tanto pelos SS como pelos capatazesprisioneiros, relacionavarn_se quase excIusivamente aesfera anal."Merda" e "eu" eram tao comuns que raramente urn prisioneiroera tratado de Dutra fenna.34

Os guardas exerciam urn controle rigoroso, mas delibera­damente ernitico, sobre a higiene pessoal, no sentido tanto daelimina9ao quanto do asseio gera!. Todas essas atividades eramefetuadas em publico. Os campos de concentra9ao destruiramvirtualmente toda a diferencia9ao entre regioes da "frente" e de"tras", convertendo a segunda, fisica e socialmente, nurna preo­cupa9ao central da vida no campo.

Bettelheim atribui especial enfase it imprevisibilidade geraldos eventos nos campos de concentra9ao. 0 sentimento de auto­nomia da a9ao que os individuos POSsuem nas rotinas comunsda vida cotidiana, em contextos sociais ortodoxos, era quasecompletamente dissolvido. 0 sentido de "futuro", em que a dureeda vida social ordinariamente ocorre, era destruido pelo caratermanifestamente contingente ate mesmo da esperan9a de que 0

dia seguinte chegaria. Por outras palavras, os prisioneiros vi­viam em circunstitncias de radical inseguran9a ontologica:"eram as tarefas absurdas, a falta de tempo para si mesmos, aincapacidade de fazer pIanos devido its subitas mudan9as nasnormas do campo, que eram tao profundamente destrutivas

35•

Alguns prisioneiros tornavam-se "cadaveres ambulantes" (oschamados Muse/miinner) porque se rendiam fatalisticamente a

CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 73

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A CONSTlTUI9A-O DA SOCIEDADE

do corpo e a wna estrutura previsivel da vida social. Tal sUTto deansiedade expressa-se em modos regressivos de comportamen_to, atacando os alicerces do sistema de seguran9a bisica funda­do na confian9a manifestada em rela9ao aos outros. Aquelesque estao mal equipados para enfrentar essas pressoes sucwn­bern e afundam. Alguns sao capazes de manter wna esfera mi­nima de controle e auto-estima que lhes permite sobreviver porwn periodo mais longo. Mas, finalmente, pelo menos na maio­ria dos prisioneiros veteranos, tern lugar wn processo de "res­socializa9ao" em que wna atitude de confian9a (limitada e su­mariamente ambivalente)", envolvendo a identifica9ao comfiguras de autoridade, e restabelecida. Vma tal seqiiencia deinlensificada ansiedade, regressao, seguida de wna reconstru­9ao de padroes tipicos de a9ao, apresenta-se nwna gama desitua90es criticas em contextos muito diversos, como as rea­90es a estar sob fogo inimigo, no campo de batalha, duranteprolongados periodos de tempo, interrogat6rios for9ados e tor­tura em prisoes e outras condi90es de extrema pressao".

A vida social cotidiana normal, em contraste _ em maiorou menor grau, de acordo com 0 contexto e os caprichos dapersonalidade individual -, envolve wna seguran9a ontol6gicafundada nwna autonomia do controle corporal, dentro de roti­nas e encontros previsiveis. 0 caniter rotinizado dos caminhosque os individuos Jiercorrem no tempo reversivel da vida coli­diana simplesmente DaD "acontece". E"feito acontecer" pelasmodos de monitora9ao reflexiva da a9ao que os individuos sus­tentam em circunstancias de co-presen9a. A "submersao" demodos habituais de atividade pela ansiedade, que nao pode seradequadamente contida pelo sistema de seguran9a bisica, eespecificament~ wna caracteristica de situa90es criticas. Navida social ordinana, os atores tern urn interesse motivado emmanter as formas de tato e "repara9ao" que Goffinan analisa comtanta acuidade. Entretanto, isso nao se deve ao fato de a vidasocial ser wna especie de contrato mutuamente protetor que osindividuos celebram voluntariamente, como sugere Goffmanocasionalmente. 0 tato e wn mecanismo por meio do qual osagentes estao aptos a reproduzir as condi90es de "confian9a"

CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

ou seguran9a ontol6gica em cujo iimbito podem ser canaliza­das e administradas as tensoes mais primitivas. Epor essa razaoque se pode dizer que muitas das caracteristicas especificas doencontro cotidiano nao sao diretamente motivadas. Pelo con­trano, existe wn compromisso motivacional generalizado deintegra9ao de pniticas habituais atraves do tempo e do espa90.

Presen9a, co-presen9a e integra9iio social

As rotinas da vida cotidiana sao fundamentais ate mesmopara as mais elaboradas formas de organiza9ao da sociedade.No decorrer de suas atividades diarias, os individuos encon­tram-se uns com os outros em contextos situados de intera9ao- intera9ao com outros que estao fisicamente co-presentes.

As caracteristicas sociais de co-presen9a estao estribadasna espacialidade do corpo, em orienta9ao para os outros e parao pr6prio self experienciador. Goffman dedicou consideravelaten9ao a analise desse fenomeno, especialmente com referen­cia a "face", mas talvez as reflexoes mais significativas sobre 0assunto se encontrem em Merleau-Ponty. Passarei a conside­ra-las, ja que elas nos levam diretamente as observa90es deGoffman. 0 corpo, sublinha Merleau-Ponty, nao "ocupa" tem­po-espa90 exatamente no mesmo sentido em que os objetos ma­teriais 0 fazem. De acordo com ele, "0 contoroo do meu corpoe wna fronteira que as rela90es espaciais comuns nao crn­zam"". Isso se deve ao fato de que 0 corpo, e a experiencia domovimento corporal, e 0 centro de formas de a9ao e de percep­9ao que realmente definem sua unidade. As rela90es espa90­temporais de presen9a, centradas no corpo, nao estao ajustadasa wna "espacialidade de posi9ao", nas palavras de Merleau­Ponty, mas a wna "espacialidade de situa9ao". 0 "aqui" do cor­po nao se refere a wna serie determinada de coordenadas, masa situa9ao do corpo ativo orientado para suas tarefas. Numalinha de ideias semelhantes a de Heidegger, diz ele: "Se meucorpo pode ser uma 'forma' e se pode haver, diante dele, figu­ras privilegiadas contra pIanos de fundo indiferentes, isso ocorre

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em virtude de ele estar polarizado por suas tarefas, de sua exis­/lincia em dire,ao a elas, de seu enfeixamento de si mesmo napersegui9ao de seus objetivos; a imagem do corpo e, em ultimainstancia, urna maneira de afirmar que meu corpo esta nomundo."39

As observa90es de Goldstein e outros sobre pacientes comlesoes cerebrais fornecem uma ilustra9ao concreta de como eisso

40• Assim, alguns desses individuos nao sao capazes de exe­

cutar movimentos que abstraiam do milieu visualmente presen­te. Vma pessoa pode apontar para uma parte do corpo somentese puder observar 0 movimento executado e tocar realmenteessa regiao. A partir de observa90es como essas torna,se evi,dente que, embora sejam ambos fenomenos aparentemente "po­sicionais", "toear" DaO e 0 meSilla que "apontar". A diferen.;:aindica a importiincia do espa90 Corporal como urn campoextraordinariamente complexo de matrizes de a9ao habitual. 0paciente com lesao cerebral, solicitado a realizar urn dado mo­vimento do corpo, assume uma posi9ao geral do corpo todo afim de executar a tarefa. Esta nao se reduz, como no individuonormal, a urn gesto minimo. Assim, solicitado a fazer urna sau­da9ao, 0 paciente assume uma postura formal do corpo todo _o individuo s6 consegue fazer 0 gesto adotando a situa9ao ge­neralizada a que 0 movimento corresponde. 0 individuo nor­mal, em contrapartida, ve a situa9ao como urn teste ou urnarepresenta9ao. De acordo com Merleau-Ponty, ele esta "usandoo corpo como urn meio de representar"". E0 dilema do pacienteque fornece mais insight sobre a integra9ao ordinaria do corpona duree de atividade, pois este s6 opera, e e entendido comourn "corpo" por seu possuidor, nas contextualidades da a9ao. Apergunta de Wittgenstein: "Qual e a diferen9a entre eu erguer 0bra90 e meu bra90 subir?", gerou aqui muitas dificuldades, in­dependentemente de ele ter querido ou nao que a perguntaatraisse nossa aten9ao, pois ela parece tratar como tipico ape­nas esse caso de teste ou de representa9ao; e a teoria da a9aopode entao ser considerada, de maneira equivocada, dependen-te de contrastes entre "movimentos" e "a<;5es", enquanto ope­ra90es distintas, e nao da contextualidade espa90-temporal daatividade corporal no f1uxo da conduta diaria.

o corpo, evidentemente, nao e uma unidade indiferencia­da. Aquilo a que Gehlen chama de postura "excentrica" dosseres humanos - mantendo-se ereta e "voltada para fora" emdire9ao ao mundo - e 0 resultado, sem duvida, da evolu9aobiol6gica. Nao precisamos transpor 0 bio16gico nurna formapresurnidamente paralela de evolu9ao social para ver as impli­ca90es disso para os processos sociais humanos em circunstan­cias de co-presen9a. Nos seres hurnanos, a face nao e simples-

77CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

Tal atividade do corpo, no f1uxo da a9ao, e imediatamenteenvolvida na seguran9a ontol6gica ou atitude de "confian9a"para com a continuidade do mundo e do selfimplicita na dureeda vida cotidiana. 0 paciente com lesao cerebral requer urnminucioso exame fisico de urn objeto antes de este poder seridentificado como, digamos, uma "chave". Os individuos nor­mais s6 se dedicariam a urn tal exame de urn objeto em cir­cunstiincias incomuns - quando, por exemplo, estivessem par­ticipando de urna brincadeira na qual ha razoes implicitas parasuper que os objetos talvez nao sejam 0 que parecem. A conti­nuidade da vida ordinaria seria impossivel se tentassemos sub­meter todos os objetos a tao detalhada inspe9ao. Por ai vemosque a "cl;iusula de et cetera" de Garfinkel aplica-se nao apenaslilinguagem ou Ii conversa9ao, mas tambem a atividades cor­porais em rela9ao fisica com 0 mundo externo. Tudo isso esta,por sua vez, intrinsecamente envolvido com 0 tempo e 0 senti­do de tempo. Permitam-me citar de novo Merleau-Ponty:

Enquanto, na pessoa normal, todD acontecimento relacio­nado a movimento OU impressao tatil faz a consciencia eviden­ciar grande numero de intem;:6es que carrem do carpa, comocentro de a<;ao virtual em dire<;ao seja do proprio corpo, seja doobjeto, no paciente, por Dutro lado, a impressao tatil permaneceopaca e encoberta. [... ] A pessoa normal conta com 0 passivel,que adquire assim, sem abandonar sua posic;ao de possibilidade,algo como uma realidade. No caso do paciente, porem, 0 campoda realidade limita-se ao que e encontrado na forma de contatoefetivo ou esta relacionado a esses dados por algum processo ex­plicito de deduc;ao.42

A CONSTITUl9A'O DA SOCIEDADE76

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78A CONSTITUI<;Jo DA SOCIEDADE

mente a origem fisica aproximada da fala, mas a area dominantedo corpo na qual estao escritas as complexidades da experien­cia, do sentimento e da inten,ao. De maneiras banais, mas muitosignificativas, nas rela,oes sociais humanas a face intluencia adistribui,ao espacial dos individuos em circunstiincias de co­presen,a. a posicionamento "em face" do outro oli de outrosque estao sendo objetivados assume nitida importiincia, quan­do comparado com 0 posicionamento na maioria das socieda­des animais. as nillneros de pessoas que podem participar dire­tamente de encontros face a face sao inerentemente estritamen­te limitados, exceto naqueles tipos de situa,ao em que um oupoucos individuos se dirigem a uma multidao ou a um publicoasua frente. Mas tais circunstancias, eclaro, exigem que osque estao na multidao ou no publico renunciem ao continuocontato face a face entre si. A primazia da face como meio deexpressao e de comunica,ao tern implica,oes morais, muitas dasquais foram argutamente dissecadas por Goffinan: Voltar as cos-tas a alguem que esta falando e, na maioria das sociedades (tal­vez em todas?), urn gesto de indiferen,a ou de desdem. Alemdisso, a maioria das sociedades (todas?) tendem a reconheceruma semelhan,a lingiiistica entre a face enquanto referente itfisionomia, e a face que concerne it manuten,ao da auto-esti_rna. Sem duvida, existe uma serie de culturas, como a chinesatradicional ou setores dela, que conferem especial enfase it pre­serva,ao da face na maioria dos contextos. Sem duvida, tam­bern, isso pode ter algo a ver com a famosa diferencia,ao feitapor Benedict e outros entre as cUlturas da "vergonha" e da"culpa", ainda que essa diferencia,ao pare,a ter side tra,adade forma excessivamente tosca. Mas aspectos da preserva,ao esalva,ao da face sao quase certamente genericos para toda umadiversidade de contextos transculturais de encontros sociais.

as temas gemeos do controle do corpo em campos dea,ao em co-presen,a e da intluencia penetrante da face saoessenciais para os escritos de Goffinan como um todo. Comodevemos entender 0 termo "co-presen,a"? De acordo com

Goffinan, e tambem com meu emprego aqui, Co-presen,a estaestribada nas modalidades perceptivas e comunicativas do corpo.

CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

As condi,oes chamadas por Goffinan "condi,oes plenas de co­presen,a" sao encontradas sempre que os agentes "sentem es­tar suficientemente proximos para serem percebidos em suaa,ao, seja esta qual for, incluindo sua experiencia de rela,aocom outros, e para serem percebidos nesse sentir ser percebi­dos"". Embora as "condi,oes plenas de co-presen,a" existamsomente no contato nao-mediado entre aqueles que estao fisi­camente presentes, na era moderna sao possibilitados contatosmediados, que permitem algumas das intimidades da co-pre­sen,a, pelas comunica,oes eletronicas, mais destacadamentepelo telefone". Nas sociedades contemporaneas, e em diferen­tes formatos em outras culturas, 0 espa,o contido numa sala _com exce,oes, como as recep,oes, em que toda a casa pode ser"aberta" - define usualmente as fronteiras de co-presen,a. Eclaro que existem muitos "lugares publicos", como as multi­does que se acotovelam nas mas etc., em que nao existe uma cla­ra circunscri,ao fisica das condi,oes de co-presen,a.

Coffman: encontros e rotinas

Como Goffman se dedicou tao persistentemente it analisedas rotinas da vida cotidiana, seus escritos oferecem muitosesclarecimentos acerca do carater da integra,ao social. Muitosequivocos em rela,ao aos escritos de Goffinan precisam serrebatidos antes de seus insights serem desenvolvidos mais pro­veitosamente. Ele tern de ser resgatado aqui do importunocerco de seus admiradores. Goffman e freqiientemente consi­derado um observador idiossincratico da vida social, cuja sen­sibilidade para as sutilezas do que eu chamei de conscienciapratica e consciencia discursiva deriva mais de uma combina­,ao de inteligencia penetrante e de um estilo leve, um tantobrincalhiio, do que de uma abordagem coordenada da analisesocia145

• Essa visao esumamente enganadora e uma das razoesde Goffinan MO ser geralmente reconhecido como um teoricosocial de consideravel estatura. Quero afirmar, em todo caso,que os escritos de Goffinan possuem um carater altamente sis-

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mente a origem fisica aproximada da fala, mas a area dominantedo corpo na qual estao escritas as complexidades da experien­cia, do sentimento e da inten9ao. De maneiras banais, mas muitosignificativas, nas rela90es sociais humanas a face influencia adistribui9ao espacial dos individuos em circunstancias de co­presen9a. a posicionamento "em face" do outro OIi de outrosque estao sendo objetivados assume nltida Importancia, quan­do comparado com 0 posicionamento na maioria das socieda­des animais. as nUmeros de pessoas que podem participar dire­tamente de encontros face a face sao inerentemente estritamen­te limltados, exceto naqueles tipos de situa9ao em que um oupoucos individuos se dirigem a uma multidao ou a um publicoIi sua frente. Mas tais circunstancias, e claro, exigem que osque estao na multidao ou no publico renunciem ao continuocontato face a face entre sl. A primazia da face como meio deexpressao e de comunica9ao tern imp1ica90es morais, muitas dasquais foram argutamente dissecadas por Goffinan: Voltar as cos­tas a alguem que esta falando e, na maioria das sociedades (tal­vez em todas?), urn gesto de indiferen9a ou de desdem. Alemdisso, a maioria das sociedades (todas?) tendem a reconheceruma semelhan9a lingiiistica entre a face enquanto referente Iifisionomia, e a face que concerne Ii manuten9ao da auto-esti­rna. Sem duvida, existe uma serie de culturas, como a chinesatradicional ou setores dela, que conferem especial enfase Ii pre­serva9ao da face na maioria dos contextos. Sem duvida, tam­bern, isso pode ter algo a ver com a famosa diferencia9ao feitapor Benedict e outros entre as culturas da "vergonha" e da"culpa", ainda que essa diferencia9ao pare9a ter sido tra9adade forma excesslvamente tosca. Mas aspectos da preserva9ao esalva9ao da face sao quase certamente genericos para toda umadiversidade de contextos transculturais de encontros sociais.

as temas gemeos do controle do corpo em campos dea9ao em co-presen9a e da influencia penetrante da face saoessenciais para os escritos de Goffinan como um todo. Comodevemos entender 0 termo "co-presen9a"? De acordo comGoffinan, e tambem com meu emprego aqui, co-presen9a estaestribada nas modalidades perceptivas e comunicativas do corpo.

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Goffman: encontros e rotinas

CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

As condi90es chamadas por Goffinan "condi90es plenas de co­presen9a" sao encontradas sempre que os agentes "sentem es­tar suficientemente proximos para serem percebidos em suaa9ao, seja esta qual for, incluindo sua experiencia de rela9aocom outros, e para serem percebidos nesse sentir ser percebi­dos"". Embora as "condi90es plenas de co-presen9a" existamsomente no contato nao-mediado entre aqueles que estao fisi­camente presentes, na era moderna sao possibilitados contatosmediados, que permitem algumas das intimidades da co-pre­sen9a, pelas comunica90es eletronicas, mais destacadamentepelo telefone". Nas sociedades contemporiineas, e em diferen­tes formatos em outras culturas, 0 espa90 contido numa sala ­com exce90es, como as recep90es, em que toda a casa pode ser"aberta" - define usualmente as fronteiras de co-presen9a. Eclaro que existem muitos "lugares publicos", como as multi­does que se acotovelam nas mas etc., em que nao existe uma cla­ra circunscri9ao fisica das condi90es de co-presen9a.

Como Goffman se dedicou tao persistentemente Ii analisedas rotinas da vida cotidiana, seus escritos oferecern muitosesclarecimentos acerca do carater da integra9ao social. Muitosequivocos em rela9ao aos escritos de Goffman precisam serrebatidos antes de seus insights serem desenvolvidos mais pro­veitosamente. Ele tern de ser resgatado aqui do importunocerco de seus admiradores. Goffman e freqiientemente consi­derado urn observador idiossincritico da vida social, cuja sen­sibilidade para as sutilezas do que eu chamei de conscienciapritica e consciencia discursiva deriva mais de uma combina­9ao de inteligencia penetrante e de um estilo leve, um tantobrincalhao, do que de uma abordagem coordenada da analisesocia145

. Essa visao esumamente enganadora e uma das razoesde Goffinan nao ser geralmente reconhecido como um teoricosocial de consideravel estatura. Quero afirmar, em todo caso,que os escritos de Goffinan possuem um carater altamente sis-

A CONSTITUJ(;:JO DA SOCIEDADE78

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as vidas das pessoas. Nao se pode dizer que tal acusa,ao aGoffman - na medida em que e urna acusa,ao - seja inteira­mente injustificada. Mas a critica de Gouldner tambem revela,urna vez mais, exatamente aquele dualismo que, como sugerianteriormente, e tao predominante nas ciencias sociais. A fixi­dez das formas institucionais nao existe a despeito, ou fora, dosencontros da vida cotidiana, mas esta irnplicita nesses rnesrnosencontros.

A evanescencia dos encontros expressa a temporalidadeda duree da vida cotidiana e 0 carater contingente de toda aestrutura,ao. Mas Goffman apresenta alega,oes muito persua­sivas favoraveis a tese de que 0 "desvanecimento" inerente aordena,ao sintagmiitica da intera,ao social e coerente com umafixidez de forma muito marcada na reprodu,ao social. Em­bora, ate onde chega meu conhecimento, ela nao afirme issoem parte alguma, penso que seus escritos revelam caracteristi­cas de co-presen,a encontradas em todas as sociedades, por mui­to pertinentes que esses mesmos escritos possam ser, de fato,para a identifica,ao de novas caracteristicas na era contempo­ranea. A obra de Goffman contem urn espelho que reflete mui­tos mundos, nao apenas urn. Ao usar ideias nela formuladas,nao quero, porem, endossar in toto as enfases do proprio autor.

Os escritos de Goffman abrangem urna importante contri­bui,ao para a explora,ao das rela,oes entre a consciencia dis­cursiva e a consciencia pnltica nos contextos de encontros. En­tretanto, ele tern muito pouco a dizer acerca do inconsciente, epode ate, de fato, rejeitar a ideia de que tal fenomeno tern quaI­quer importancia na vida social. Alem disso, suas analises deencontros pressupoem a existencia de agentes motivados, emvez de investigar as origens da motiva,ao hurnana, segundo aqueixa de muitos de seus criticos. A omissao e seria e constituiurna das principais razoes (sendo a outra 0 desinteresse nos pro­cessos a longo prazo de transforma,ao institucional) de a obrade Goffman suscitar como que urna sensa,ao de "vazio". Poisqual seria 0 motivo de os agentes, cuja monitora,ao reflexivada conduta e descrita com tanta sutileza, obedecerem as rotinasque seguem? A pergunta poderia ser respondida, ate certo ponto,

I'

A CONSTlTUlI;:AO DA SOClEDADE

tematico, e e isso, em nao pequeno grau, que lhes da sua for,aintelectual. Urn outro equivoco, que 0 proprio Goffman se em­penhou arduamente em desfazer, esta em considerar seus escri­tos importantes apenas para Ulna forma de "'microssociologia",que pode ser nitidamente separada das quest5es "macrossocio­logicas". Urn modo muito mais interessante de abordar asobras de Goffman e trata-las como estando empenhadas emmapear detalhadamente as interse,oes de presen,a e ausenciana intera,ao social. Os mecanismos de integra,ao social e desistema, repetimos, interligam-se necessariamente. Os escritosde Goffman sao, sem duvida, importantes para ambos, mesmoque ele mantenha uma atitude cautelosa em rela,ao aos pro­blemas do processo ou desenvolvimento institucional a Iongoprazo.

Finalmente, supoe-se com freqiiencia que os escritos deGoffman estao nao so confinados, em sua relevancia, as socie­dades contemporaneas, mas expressam diretamente caracteris­ticas de conduta peculiarmente modemas, ate mesmo distinti­varnente norte-americanas. Assim, Gouldner, comentando a obrade Goffman, diz:

ela fusa 0 epis6dico e ve a vida somente como ela evivida numaestreita circunferencia interpessoaI, a-historica e nao-institucio­nal, uma existencia para a16m da Hist6ria e da sociedade. (...Jreflete 0 novo mundo, no qual uma camada da nova classe me­dia ja deixou de acreditar que 0 trabalho irduo seja uti! ou que 0

exito depende da aplica93.0 diligente. Nesse novo munde existeurn sensa aguda de irracionalidade das rela90es entre a realiza­<tao individual e a magnitude da recornpensa, entre a contribui9aoreal e 0 ajuste social. E 0 mundo dos astros de alto pre90 deHollywood e dos mercados de a90es, cujos pre90S geram escas­sa rela9ao com seus ganhos.46

Gouldner contrasta explicitamente esse ponto de vistacom 0 que ele chama de uma abordagem "estrutura!", em detri­mento do primeiro. 0 mundo social que Goffman retrata nao eapenas culturalmente especifico, mas ocupa-se apenas do tran­sitorio, nao das formas institucionais duradouras que moldam

CONSCIENClA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 81

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83CONSCI!;NCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

empenhou mais do que ninguem em elucidar, dificilmente podeser exagerada". Assim, os Iingiiistas tern procurado, com muitafreqiiencia, analisar problemas semiinticos ou em f\ml'ilo da com­petencia Iingiiistica "interna" de locuto~es individuais, ou exa­mirnndo as propriedades de atos isolado~ da fala, mas 0 "fecha­mento de significado" das terminologias polivalentes da lin­guagem cotidiana realizado no discurso s6 pode 'ser apreendidose estudarmos a ordenal'ilo contextual de conversas inteiras.

As reunioes podem ter urna forma muito imprecisa e tran­sit6ria, como a de urna troca fugaz de "olhares amistosos" oude saudal'oes nurn corredor. Aos contextos mais formaiizadosem que ocorrem,reunioes pode ser dado 0 nO)lle de ocasioessociais. Estas envolvem urna pluralidade de individuos. Silotipicamente limitadas com bastante nitidez no tempo e no espa­1'0, e empregam, com freqiiencia, formas especiais de equipa­mento fixo: disposil'oes formalizadas de mesas e cadeiras etc.Vma ocasiilo social propicia 0 "contexto social estruturador"(expressilo de Goffinan) em que muitas reunioes "silo susceti­veis de se formar, dissolver e re-formar, enquanto urn padrilode conduta tende a ser reconhecido como 0 apropriado e (fre­qiientemente) 0 oficial ou propositado"'". Toda urna variedadede aspectos rotinizados da vida diaria, como 0 dia de trabalhonuma fAbrica ou escrit6rio, faz parte desse genero. Mas tam­bern existem muitas ocasioes sociais mais irregulares, incluin­do festas, bailes, eventos esportivos e urna grande diversidadede outros exemplos. Obviamente, urn setor do espal'0 fisicopode simultaneamente ser 0 local de diversas ocasioes sociais,cada uma delas envolvendo multiplas ·reunioes. Mas e muitomais freqiiente a existencia de "uma ocasiilo social'predomi­nante" normativamente sancionada II qual outras estilo suposta­mente subordinadas num determinado setor do tempo-espal'o.

As caracteristicas contextuais de reuniOes, quer estas ocor­ram ou nilo em ocasioes soci~is, podem ser divididas em duasformas principais. A interal'ilo nao focalizada refere-se a todosaqueles gestos e sinais que podem ser comunicados entre indi­viduos simplesmente por causa de sua co-presenl'a nurn con­texto especifico. Nesse caso, as propriedades fisicas do corpo e

encontros (envolvimentos face a face)rotinas (epis6dios)

[co-presencaJreuni6esocasi6es sociaisinteracao nao-focalizadajnteratyao focaJizada:

82A CONSTITUII;:AO DA SOCIEDADE

se fosse 0 caso de os individuos retratados por Goffinan seremrepresentados, de maneira voluntarista, como agentes cinicosque se adaptam a determinadas circunstiincias sociais de modopuramente calculado e tatico. Mas, embora muitos tenham in­terpretado Goffinan dessa maneira, nilo e essa a principal im­plical'ilo que desejo extrair do terreno de estudo que ele inau­gurou. A enfase sobre a prevaIencia do tato em encontros so­ciais, a reparal'ilo de tensoes no tecido social e a manutenl'iloda "confianl'a" sugerem, sobretudo, urna preocupal'ilo predo­minante com a protel'ilo da continuidade social, com os meca­nismos intimos da reprodul'ilo social.

Goffinan desenvolve urna tipologia dos contornos de inte­ral'ilo, e eu empregarei muitos de seus conceitos, modifican­do-os urn pouco, no que se segue. A gama de conceitos pode serapresentada assim:

As reunioes referem-se a agrupamentos de pessoas, com­preendendo duas ou mais, em contextos de co-presenl'a. Por"contexto" (Goffinan prefere 0 termo "situal'ilo") entendo aque­las "faixas" de tempo-espal'o no ambito das quais as reunioesocorrem. Quem quer que ingresse nessa faixa de tempo-espal'otorna-se "disponivel" para entrar na reuniilo ou pode ate for­ma-la, se ela for de carater didatico. As reunioes pressupoem 0monitoramento reflexivo mutua da conduta na, e atraves da,Co-presenl'a. A contextualidade das reunioes e vital, de maneiramuito intima e integral, para tais processos de monitoral'ilo. 0contexto inc1ui 0 ambiente fisico de interal'ilo, mas nilo e mera­mente algo "em que" a interal'ilo ocorre (ver pp. 138-40). Aoconstituirem a comunical'ilo, os atores ap6iam-se rotineira­mente em aspectos do contexto, inc1uindo a ordem temporal degesto e conversal'ilo. A importancia disso para a formulal'ilo do"significado" em gestos e na conversal'ilo, como Garfinkel se

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Serialidade

85CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

do corpo quanto da manuten,ao ou regras ou conven,oes. Emterceiro lugar, os encontros sao sustentados, sobretudo, pelafa/a, pela conversa,ao cotidiana. Na analise da comunica,ao designificado em intera,ao, mediante 0 uso de esquemas inter­pretativos, 0 fenomeno da fala tern de ser considerado com mui­ta seriedade, porquanto esta constitutivarnente envolvido em en­contros. Em ultimo, deve ser examinada a organiza,ao contex­tual dos encontros, uma vez que a mobiliza,ao de tempo-espa,oe 0 "fundamento" de todos os elementos acima. Empreendereiesta ultima tarefa em termos de varias no,oes basicas, as de"presen,a-disponibilidade", de "local" e a de rela,ao de "ocul­tarnento/revela,ao". Nao examinarei estes ultimos tres concei­tos no presente capitulo; prefiro ocupar-me deles mais adiante.·

as encontros sao fenomenos seqiienciados, interpoladosna serialidade da vida cotidiana e, no entanto, conferindo for­ma a essa mesma serialidade. As propriedades sistematicas deencontros podem ser atribuidas a duas principais caracteristi­cas: abertura e encerramento, e altemancia. Examinarei breve­mente cada uma delas. A duree da vida diaria, tal como e vividapor cada individuo, e urn fluxo continuo de atividade, somenteinterrompida (mas com regularidade) pela relativa passividadedo sono. A duree da atividade pade ser "parentetizada"ou "con­ceptualmente segmentada", como diz Schutz, por urn momentoreflexivo de aten,ao por parte do sujeito. Eo isso 0 que acontecequando alguem e solicitado por urn outro a fomecer "uma ra­zao" ou "razao" para, ou de algurn modo explicar, certas carac­teristicas de sua atividade. Mas a duree da vida cotidiana tam­bern e "parentetizada" pela abertura e pelo encerrarnento de en­contros. Nas palavras de Goffinan, "pode-se falar, pois; de abrire fechar parenteses temporais e de demarcar parenteses espa­ciais"". Aficionado como e do uso de metaforas e analogiasdramal1irgicas, Goffinan fomece como exemplo os expedientesempregados na abertura e encerrarnento de espetaculos tea-

A CONSTITUH;:JO DA SOCIEDADE

o alcance limitado do posicionamento da face constituem im­portantes restri,oes. A consciencia generalizada da presen,ade outros por parte dos atores pode variar sutilmente numavasta extensao espacial, incluindo ate os que estao atras deles.Mas tais "sugesWes do corpo" sao muito difusas em compara­,ao com as possiveis, e sao cronicarnente utilizadas na intera­,ao face a face. A intera,ao focalizada, por seu turno, Ocorrequando dois ou mais individuos coordenam suas atividadesmediante urna continua interse,ao da expressao facial e da voz.Por muito que os participantes possarn monitorar tudo 0 maisque esta acontecendo na reuniao mais vasta, a intera,ao focali­zada em algurna parte introduz urna divisoria entre eles e todosos outros co-presentes. Vma unidade de intera,ao focalizada eurn envolvimento face a face ou urn encontro. as enContros saoo fio condutor da intera,ao social, a sucessao de envolvimentosCom outros ordenados no ilmbito do cicio diario de atividade.Embora Goffinan nao inclua isso formalmente em seu esque­ma de conceitos, penso ser muito importante enfatizar 0 fato deque os encontros ocorrem tipicamente como rotinas. 18to e, 0que pelo angulo do momento fugaz poderia parecer breves etriviais permutas assume muito mais substiincia quando vistocomo inerente a natureza interativa da vida social. A rotiniza­,ao de encontros e de grande significa,ao na medida em quevincula 0 encontro fugaz areproduc;ao social e, assim, it "fixi­dez" aparente das institui,oes.

Defini a integra,ao social Como sistemidade em circuns­tiincias de co-presen,a. Vanos fenomenos se propoem como osmais imediatarnente relevantes para a constitui,ao da integra,aosocial assim definida. Em primeiro lugar, a fim de se apreendera conexao dos encontros com a reprodu,ao social estendendo_se ao longo do tempo e do espa,o, cumpre destacar como osencontros sao formados e reformados na duree da existenciadiana. Em segundo lugar, devemos procurar identificar osprincipais mecanismos da dualidade da estrutura por meio dosquais os encontros estao organizados em - e atraves de _ inter­se,oes da consciencia pratica e da consciencia discursiva. 1sso,por sua vez, tern de ser explicado em termos tanto do controle

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Nos (e urn numero considenivel de eles) temos a capacida­de e a inc1inac;:ao para usar a atividade concreta, real _ atividade

trais. Para assinalar 0 inicio de uma pe,a teatral, soa uma cam­painha, as luzes apagam-se e 0 pano de boca sobe. Na conclu­silo, as luzes do audit6rio acendem de novo enquanto 0 pano cai.A maioria das ocasi5es sociais apresenta algum tipo de expe­diente para indica,ilo formal de abertura e encerramento _ umacaracteristica de ocasi5es rituais tanto em culturas tradicionaisquanta na grande variedade de ocasi5es sociais mais secularesque caracterizam as sociedades contemporiineas. A parenteti­za,ilo de .cerim6nias de inicia,ilo, por exemplo, assinala tipica­mente uma mudan,a dramittica na forma de conduta dentro doquadro da ocasiilo - indicando os marcadores, por assim dizer,uma transferencia do profano para 0 sagrado. Caillois demons­trou isso em rela,ilo aos paralelos entre as esferas da religiilo edo "drama", bern como das influencias diretamente hist6ricasexercidas sabre essas esferas50.

Pode-se arriscar a conjetura de que os parenteses tendem aser considerados pelos atores cotidianos particularmente im­portantes quando as atividades que Ocorrem durante 0 encon­tro, ou numa ocasiilo social, silo tratadas pelas partes envolvi­das como particularmente divergentes das expectativas nor­mais da vida cotidiana. Goffinan da 0 seguinte exemplo: parafazer um exame medico, ou para servir de modelo numa aulade arte, 0 individuo nilo COStuma se desnudar ou tomar a se ves­tir na presen,a dos outros. 0 ato de se despir e de se vestir, emparticular, permite que 0 corpo seja subitamente exposto e es­condido, marcando assim as fronteiras do epis6dio e transmi­tindo a mensagem de que as a,5es estilo claramente separadasde conota~5es sexuais ou outras que, de outro modo, poderiamser-lhes athbtiidas. Isso faz parte do que Goffinan chama de"fixa,ilo do tom" dos encontros e sugere uma estreita conexilocom as discuss5es de Wittgenstein sobre 0 entrela,amento deformas de vida. A ocorrencia de encontros, assinalados e dota­dos de urn "matiz" ou ethos social definido, leva em coma astransforma,5es de uma multiplicidade de epis6dios em "tipos"divergentes.

87CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

que e intrinsecamente significativa - como urn modelo sabre 0

qual sao marcadas as transforma<;:oes para divertimento, sirnula­9aO, experimento, repeti<;:ao, sonha, fantasia, ritual, demonstrar;ao,analise e caridade. Essas sombras vividas de acontecimentos saoajustadas adequadamente ao mundo em curso, mas naa do modoestreito que se verifica na atividade literal, ordinaria. 51

A maioria dos encontros que compreendem a serialidadeda vida social tern lugar ou fora (no tempo-espa,o) ou contra 0

PanO de fundo das reuni5es observadas em ocasi5es sociais. Osenvolvimentos face a face em muitos desses contextos nilo im­plicam fechamentos claros que eliminem toda a intera,ilo comnilo-participantes. Em tais circunstiincias, a monitora,ilo refle­xiva do corpo, do gesto e do posicionamento e caracteristica­mente usada para produzir um "fechamento convencional doenvolvimento"52. Quer dizer, wna "barreira" normativamente san­cionada separa os envolvidos no encontro dos outros que estiloco-presentes. Eurn trabalho cooperativo, no qual os participan­tes no envolvimento face a face e os circunstantes - freqiiente­mente envolvidos, e claro, em seus pr6prios compromissos comoutros grupos - mantem uma especie de "inaten9ao cortes" emrela,ilo uns aos outros. Goffinan indica varios modos comoisso pode ser realizado e como pode ser deslocado. Como emtodas as areas de mutua monitora9ao da intera9ao, existem ca­racteristicas de extraordinaria complexidade ate mesmo na ma­nifesta,ilo de "inaten,ilo". Assim, espera-se geralmente doscircunstantes que nilo s6 nilo explorem uma situa,ilo de proxi­midade de presen,a, por meio da qual poderiam acompanhar 0

que esta acontecendo em outros envolvimentos face a face,mas que tambem demonstrem ativamente a inaten,ilo.lsso podeser problematico. Pois se a inaten,ilo for excessivamente estu­dada 0 efeito podera sugerir que 0 individuo estara, de fato,bisbilhotando.

E possivel todo tipo de complica,ilo desses fen6menos.Em muitas circunstancias urn individuo padenl estar interessa­do em escutar 0 conteUdo de urn encontro e, para tanto, simularmuito deliberadamente a inaten,ilo. Contudo, esse comporta­mento corre 0 risco de ser notado, devido a urn artificialismo

A CONSTITW(:AO DA SOCIEDADE86

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de postura ou a uma serie de outros tra<;os passiveis de denun­ciar 0 que esta acontecendo. Nao se deve interpretar os comen­tanos acima como uma sugestao (0 que muitos interpretes deGoffinan sao propensos a fazer) de que a maioria das comple­xidades maravilhosamente sutis da intera<;ao sao estudadas oucinicamente manipulativas. A situa<;ao e justamente a oposta.o impressionante nas habilidades de intera<;ao exibidas pelosatores na produ<;ao e reprodu<;ao de encontros e seu embasa­mento na consciencia prMica. Inerente it estrutura<;ao de en­contros e 0 tato e nao 0 cinismo. Embora 0 conteUdo do que etido como "prova de tato" possa variar imensamente, a impor­tancia do tato em sociedades ou culturas de resto muito dife­rentes e incontestavel. Acordo conceptuallatente entre partici­pantes em contextos de intera<;ao, 0 tato parece ser 0 principalmecanismo a sustentar a "confian~a" ou seguran<;a onto16gicadurante longos periodos de tempo-espa<;o. 0 tato na sustenta­<;ao do fechamento do envolvimento convencional toma-se cla­ramente acentuado em circunstancias que amea<;am romper talencerramento. Assim, em espa<;os muito restritos, como os ele­vadores, e virtualmente impossivel manter uma postura de naoouvir. Na sociedade anglo-americana, pelo menos, a tendenciaem tal situa<;ao e de suspender a comunica<;ao, com apenas, tal­vez, urn comentario ocasional que indica estar 0 encontro sus­penso e nao desfeito. Do mesmo modo, se tres pessoas estaofalando e urna e interrompida para atender urn chamado telefO­nico, as outras nao podem simular completa desaten<;ao e po­dem prosseguir com uma especie de conversa<;ao hesitante, ca­penga". Contextos de encontros como esses podem expressardiretamente assimetrias de poder. Assim, se, digamos, dois in­dividuos nurn elevador prosseguem em sua conversa, indiferen­tes ao ambiente de proximidade manifestamente estreita comoutros passageiros, pode muito bem ser que eles assim de­monstrem itqueles que sao seus subordinados ou inferiores suaindiferen<;a it manuten<;ao de cortes inaten<;ao num tal contex­to. Entretanto, poderiio, apesar de tudo, trair urna certa preocupa­<;ao pelo desvio de uma norma que seria comumente observada

89CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

e, por conseguinte, falar ate mais alto do que 0 fariam em outras

circunstancias.Os encontros envolvem "abrir espa<;os", no que se refere

tanto it posi<;ao dos corpos em rela<;ao um ao outro, dentro efora da regiao do envolvimento face a face, quanto ao espa<;a­mento serial das contribui<;5es para 0 encontro, em termos deserialidade ou altemitncia. A abertura de espa<;os colaborativanurn local e obviamente relevante para a segmenta<;ao de en­contros (e, como tentarei indicar mais adiante, esta sujeita aoque Hagerstrand chama de "restri<;5es de acoplamento" e "res­tri<;5es de acondicionamento"). As san<;5es normativas genera­lizadas que influenciam a proximidade aceititvel de individuosem lugares publicos variam transculturalmente, tal como as queafetam os limites do contato corporal aceitavel entre pessoasem diversos contextos". Mas 0 espa<;amento pode ser efetiva­mente organizado somente dentro dos limites da facilidade decomunica<;ao - nao tao amplo, a ponto de os participantes teremde gritar, nem tao proximos que os tra<;os da expressao facial,que ajudam a monitorar a sinceridade e autenticidade da fala,nao possam ser observados. Os envolvimentos face a face, quan­do Dutros estao co-presentes, ocorrem quase sempre com urncerto desvio do corpo em rela<;ao aos que nao estao participandono envolvimento, e a disposi<;ao dos corpos e tal que nao existebarreira fisica para a livre troca de olhares ou contato visual.lsso pode ser dificil de conseguir em situa<;5es de aglomera<;ao,nas quais ha muito movimento - por exemplo, numa festa ounurn trem superlotado. Em tais contextos, pode ocorrer urncerto relaxamento transitorio das san<;5es que ordinariamentecontrolam a excessiva mobilidade dos membros do corpo. Umapessoa pode, de maneira bem aceitavel, balan<;ar 0 corpo nessasitua<;ao, se ao mesmo tempo fica claro para os outros que 0

faz com a finalidade de manter 0 contato ocular nurn envolvi­mento em que 0 posicionamento dos outros amea<;a bloquear avisao. Tais movimentos podem ser executados de forma exage­rada, de fato, indicando assim aos outros que 0 ator esta cons­cio de que esse movimento corporal seria geralmente considerado insolito ou extravagante. A alternancia em encontros tem

A CONSTITUI(,:A-O DA SOCIEDADE88

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sido muito estudada por autores de tendencia etnometodol6gi_ca", cuja obra e freqiientemente considerada trivial, avalia9aoessa deveras miope. A altemancia, contudo, tern suas raizes naspropriedades mais genericas do corpo hurnano e expressa, porconseguinte, aspectos fundamentais da natureza da intera9ao.Alem disso, ela e urna caracteristica importante do carater se­rial da vida social, estando assim ligada ao carater geral da re­produ9ao social. Trata-se de urna forma de "restri9ao de aco­plamento", resultante do simples mas elementar fato de que 0principal meio de comunica9ao dos seres humanos em situa­90es de co-presen9a - a fala - e urn veiculo de "ordem sim­ples". A conversa desenrola-se sintagmaticamente no fluxo daduree da intera9ao e, como apenas urna pessoa pode falar de cadavez para que 0 intuito comunicativo seja realizado, as contri­bui90es para os encontros sao inevitaveImente seriais. Assi­nale-se que 0 estudo empirico de conversas mostra que elas ternuma forma muito menos simetrica do que se poderia SUpor. Acondu9ao da altemancia raramente acontece de tal maneira queos participantes concluam suas frases. Verifica-se uma pletorade fenomenos de hesita9ao; os Iocutores interrompem urn aooutro no que estao dizendo, de modo que nao existem divisoesclaras assinalando quando e a vez de cada urn falar etc."

A altemancia pode aplicar-se tanto il serialidade de encon­tros quanto il intera9ao entre agentes dentro de encontros, etambem estar estreitamente ligada a diferenciais de poder. To­das as organiza90es envolvem a coordena9ao da intera9ao emfluxos de rela90es espa90-temporais "canalizados" atraves decontextos e locais regularizados (ver pp. 140 ss). Assim, 0 pro­cesso de organiza9ao de julgamentos na vida cotidiana do tri­bunal tern urn carater serial formalizado, em que urn caso e ou­vido, e segmentado como uma ocasiiio social definida, enquantoas partes envolvidas nos casos seguintes fazem fila na sala deespera adjacente. Ha inlimeros exemplos semeIhantes em so­ciedades de amplo distanciamento espa90-temporal. Neste pon­to, a discussiio da serialidade por Sartre tern uma conexiio dire­ta com as aparentes triv;Alidades da altemancia coloquial. Eleassinala que urn exemplo banal de serialidade, a fila para tomar

91CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

urn onibus, pode ser usado para demonstrar 0 acoplamentomutuo de rela90es espa90-temporais de presen9a e ausencia:

Esses individuos isolados formam urn grupe, na medidaem que esmo todos na mesma calr;ada, a qual os protege do tnifegoque cruza a prar;a em diversas direr;oes, na medida em que elesestao agrupados em toma do mesma ponto de 6nibus etc. [...JTOdDS, OU quase todas, sao trabalhadores e usuarios regulares doservir;o de 6nibus; conhecem os honirios e a frequencia dos oni­bus dessa linha; e, por conseguinte, aguardam 0 mesmo 6nibus,digamos, 0 das 7:49. Esse objeto, na medida em que dependemdele (avarias, atrasos, acidentes), eo alvo do interesse atual des­ses individuos. Mas esse interesse atual - urna vez que todosvivem no mesmo bairro - remete a estruturas mais completas emais profundas de seu interesse geral: melhorias nos transportespublicos, congelamento do pre<;o das passagens etc. 0 onibusque eles aguardam une-os, sendo 0 interesse deles, como indivi­duos que nessa manha tern assuntos a tratar na rive droite; mas 0

fato de ser 0 das 7:49 e de interesse deles como usuarios; tudoesta temporahzado: 0 viajante reconhece-se como urn residente(quer dizer, reporta-se aos cinco ou dez anos previos) e, depois,o onibus toma-se caracterizado por seu etemo retorno diario (erealmente a mesmo 6nibus, com os mesmos motorista e cobra­dor). 0 objeto assume uma estrutura que supera sua pura exis­tencia inerte; como tal, e dotado de urn futuro e de urn passadopassivos, e estes fazem-no apresentar-se aos passageiros comourn fragmento (insignificante) do destino deles.57

Fala, reflexividade

As contribui90es mais notaveis de Goffman para 0 entendimento da sustenta9iio e reprodu9iio de encontros tratam darela9iio entre 0 controle reflexivo do corpo - isto e, a automoni­tora9iio reflexiva de gestos, movimentos e posturas corporais ­e a coordena9iio mutua da intera9iio atraves do tato e do respei­to pelas necessidades e solicita90es de outros. A prevalencia dotato, confian9a ou seguran9a ontologica, e obtida e mantida poruma desconcertante gama de habilidades que os agentes exi-

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bern na produ,ao e reprodu,ao da intera,ao. Tais habilidadesalicer,am-se, primordialmente, no controle normativamente re­gulado dos que poderiam parecer ser, ainda mais do que a alter­nancia, os mais insignificantes e minusculos detalhes do movi­mento ou da expressao corporal. Isso e facilmente demonstra­do quando essas habilidades estao ausentes ou comprometidas,genericamente, nos "doentes mentais", e transitoriamente noslapsos corporais e verbais.

Para Goffman, a "doen,a mental", inclusive as mais seriasformas de "distilrbio psicotico", esti exemplificada sobretudopela incapacidade, ou relutancia, de aceitar a diversidade de mi­nusculas (embora nada triviais) formas de monitora,ao do mo­vimento e do gesto corporais, os quais constituem 0 nucleonormativo da intera,ao cotidiana. A loucura e urn agregado de"impropriedades situacionais"'". 0 comportamento psicotico di­verge da (ou colide ativamente com a) ordena,ao publica derela,oes tempo-espa,o atraves do corpo e seus veiculos, por meiodos quais os seres humanos "se entendem mutuamente" emcircunstancias de co-presen,a. 0 "doente menta]" nao se ajustaao extremamente firme (e continuo) controle corporal exigidode "individuos normais"; ele nao respeita as complexidades dasformulas que regem a forma,ao, manuten,ao e quebra ou sus­pensao de encontros nem contribui para as multiplas formas detato que preservam a "confian,a"". Raramente se espera que osindividuos estejam "apenas" co-presentes em reunioes, e nuneaIhes e permitido atuar desse modo em encontros. A monitora­,ao reflexiva da a,ao, em contextos de co-presen,a, exige umaespecie de "vigilancia controlada": na expressao de Goffinan,os atores tern de "exibir presen,a". Isso e exatamente 0 que naofazem muitos "pacientes mentais" - desde aqueles em estadode evidente estupor catatonico ate os que se movimentam so­mente de modo meciinico, como se fossem impelidos por algu­rna fanta, em vez de serem agentes humanos comuns60

A exibi,ao de presen,a assume formas engenhosamentedeliberadas, mas esti indiscutivelmente exemplificada, em pri­meiro lugar, na consciencia pritica. Considerem-se a aparenciapessoal e as marcas visiveis de vestuirio e adomos corporais.

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A linguagem corporal, portanto, ediscurso convencionali­zado. Devemos ver que e, alem disso, normativo. Ou seja, existe

CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

A preocupa,ao com a aparencia e manifesta, por exemplo, noesmero com que urn individuo seleciona e combina tipos devestuario ou adomos em rela,ao a participa,ao em determina­dos contextos de atividade, Mas seria urn grande equivocosupor que esse esmero e 0 modo prototipico de sustenta,ao dalinguagem corporal. Mais bisica, mais complexa, e a monito­ra,ao cronica do arranjo da roupa, em rela,ao a postura corpo­ral, na presen9a de outros. Assim, os "pacientes mentais" podemsentar-se descuidadamente, as roupas em desalinho e amassa­das; as mulheres podem nao observar a expectativa geral nassociedades ocidentais de manter as pernas unidas quando ves­tern saias, e assim por diante. Hi uma diferen,a fundamentalentre os boemios ou vagabundos, que desprezam ou zombamdas conven,oes da sociedade em suas formas de vestir e modosde conduta, e os "doentes mentais". Isso porque as expectativasnormativas em que se baseiam 0 controle e aparencia corporaisnao dizem respeito simplesmente aos adomos ou aos parame­tros gerais do comportamento motor, mas precisamente a espe­cie de "controle sistematico" que simultaneamente "'sustenta"e demonstra agencia.

o fato de essa automonitora,ao cronica ser necessaria edenunciado pela importancia difundida das "regioes posterio­res" - observada em contextos variaveis em todas as socieda­des -, nas quais 0 controle da postura corporal, dos gestos e dovestuario pode ser, num certo grau, relaxado. Mas ate mesmoquando esti sozinho urn individuo pode manter a apresentabili­dade, pois alguem que seja inadvertidamente surpreendido em"desapromo" revela aos outros certos aspectos do selfque tal­vez so sejam revelados em tais momentos". A questao e quemanter a condi,ao de "ser visto como urn agente capaz" e in­trinseca aquilo que a agencia e, e que os motivos que promo­vern e refor,am essa conexao como inerente a reprodu,ao daspriticas sociais sao os mesmos que ordenam a propria reprodu­,ao. 0 cariter fortemente sancionado desses fenomenos e des­tacado com nitidez nas seguintes observa,oes:

A CONSTITU[I;AO DA SOCIEDADE92

../'---

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Muitos "pacientes mentais" desprezam ou tern dificuldadeem adotar as normas associadas a abertura e encerramento deencontros. Assim, urna pessoa na enfermaria de urn hospitalpsiqui<itrico pode reter urn dos enfermeiros nurn encontro, pormais que 0 enfermeiro de indica,oes de que deseja afastar-se.o paciente pode perseguir 0 enfermeiro de perto, por mais de­pressa que este caminhe, e ate tentar acompanM-lo ao transpora porta na extremidade da enfermaria, cujo regime e de isola­mento. Nesse ponto, 0 enfermeiro podera ter de impedir fisica­mente 0 paciente de agami-Io e segui-Io talvez escapando comenergia a preensao do outro. Tais eventos, caracteristicos da vidacotidiana nas enfermarias, tendem a contradizer 0 pressupostode comunidade geraI de interesse que a administra,ao desejaordinariamente apresentar. 0 precipitado afastamento final doenfermeiro exemplifica circunstiincias que, no mundo exterior,s6 tern probabilidade de ocorrer quando 0 individuo que tentadesvencilbar-se nos mesmos moldes esm demonstrando rejei,aoa urn forte vinculo moral - por exemplo, urna rela,ao de amor- reivindicado pelo perseguidor. Obviamente, uma implica,aocomo essa nao esta necessariamente ausente no "paciente men­tal" da enfermaria do hospital psiquiatrico. De fato, muitos ele­mentos aparentemente bizarros de encontros entre 0 individuosao e 0 louco parecem representar "experimentos" que 0 ulti­mo executa nos quadros de referencia usuais dos encontros.Como diz R. D. Laing, os "esquizofrenicos" talvez sejam apro­priadamente considerados aqueles que, no nivel da conscienciapratica e em sua conduta real, encaram seriamente algumas dasquestoes que os fil6sofos formulam hipoteticamente na solidaode seus estudos. Eles preocupam-se realmente e constroem suas

atividades em tome de solu,oes heterodoxas para perguntascomo "Em que sentido sou urna pessoa?", "0 mundo s6 existena medida em que eu 0 percebo?" etc," Mas a maioria das "ati­vidades experimentais" do louco relacionam-se, de modo sig­nificativo, com as disposi,oes e as san,oes normativas associa­das as complexidades do controle corporal nas imedia,oes dosencontros, Os "experimentos com a confian,a" de Garfinkelduplicam alguns dos sentimentos dissonantes de inquieta,aoque os individuos "normais" vivenciam quando as rotinas davida diaria sao questionadas64

,

Muitas dessas considera,oes aplicam-se a fala como 0 vei­culo discursivo do prop6sito comunicativo em contextos de co­presen,a, 0 exame de "gritos de rea,ao" (formas de elocu,aoque nao sao fala) pode proporcionar urna transi,ao apropriadapara 0 estudo da fala, Tais gritos demonstram urna vez mais queas caracteristicas aparentemente triviais e "espontiineas" da con­duta humana sao, na verdade, rigorosa e normativamente orde­nadas. Os gritos de rea,ao transgridem as san,oes normativascontra nao se falar soziOOo em pUblico. Considera-se "Upa!"".Poderiamos ter "Upa!" como puro reflexo, urna resposta medi­nica como urna piscada de olbos quando alguem aproxima brus­camente a mao do rosto de outrem. Mas essa rea,ao aparente­mente involuntaria presta-se a urna detalhada analise em termosde ~ao e do corpo, Quando alguem exclama "Upa!" ao deixarcair ou ao derrubar alguma coisa, poderia parecer, a primeiravista, que 0 som anuncia urna perda de controle, atraindo assima aten,ao para urna inferencia indesejada, urna perturba,ao nasformas rotineiras de controle que indicam a a,ao reflexivamen­te monitorada. Na verdade, a excIama,ao mostra a outros que aocorrencia em questao e urn mera acidente, pelo qual 0 indivi­duo nao pode ser responsabilizado. Ela e usada pelo agentepara indicar que 0 lapso e tao-somente isso, urn evento momen­tiineo e contingente, e nao a manifesta,ao de uma incompeten­cia mais generalizada ou de algum intento opaco. Mas por trasdisso ha tambem uma serie de outras sutis grada,oes e possibi­lidades. A excIama,ao e usada - e sabe-se disso - somente em si­tua,oes de urna falha de somenos importiincia, nao naquelas de

f,95CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTITUlf:;:A-O DA SOCIEDADE

tipicamente lima obrigayao de transmitir certa informa<;ao quan­do na presen<;a de Dutros e Dutra de nao transmitir outras impres­soes. [...] Embora urn individuo possa pararde falar, ele nao padeparar de cornunicar atraves da linguagem do corpo. [...] Para­doxalmente, 0 modo como ele pade dar 0 minima de informa<;aosabre si mesmo - embora isso ainda seja apreciavel _ consisteem ajustar-se e atuar como se espera que as pessoas de seu gene­ra atuem.62

94

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96

Posicionamento

I I

b

97

Conforme enfatizei, os sistemas sociais estao organizadoscomo praticas sociais regularizadas, mantidas em encontrosque se dispersam no tempo-espa90. Entretanto, os atares cujaconduta constitui essas praticas estao "posicionados". Todos osatores estao posicionados ou "situados" no tempo-espayo, viven­do ao longo do que Hiigerstrand chama de seus percursos espa­90-temporais, e tambem no plano relacional, como a propriaexpressao "posiyao social" sugere. Os sistemas sociais 56 exis­te na - e atraves da - continuidade de pniticas sociais, esvain­do-se no tempo. Mas algumas de suas propriedades estruturaissao bern caracterizadas como rela90es "posi9ao-pratica"'". Asposi90es sociais sao constituidas estruturalmente como inter­se90es especificas de significa9ao, domina9ao e legitima9aoque se relacionam com a tipifica9ao dos agentes. Uma posi9aOsocial envolve a especifica9ao de urna "identidade" definida nu­rna rede de rela90es sociais, sendo essa identidade, porem, uma"categoria" it qual uma certa gama de sanyoes normativas econcemente.

que indica que as conversa90es sao episodios com come90 efim no tempo-espa90. As normas da fala dizem respeito nao soao que e dito, a forma sintitica e semiintica das elocu90es, mastambem as ocasioes rotinizadas da fala. As conversa90es, ou uni­dades de fala, envolvem dispositivos padronizados de aberturae encerramento, assim como dispositivos para proteger e exibiras credenciais que dao aos locutores 0 direito de contribuir parao dialogo. 0 proprio termo "parentetizar" representa urna inser­9aO estilizada de fronteiras na escrita. Permitam-me deixar comGoffman a ultima palavra no parentese que esta se9ao consti­tui. 0 que e fala, do ponto de vista da intera9ao? "E urn exem­plo daquele arranjo pelo qual os individuos se juntam e alimen­tam assuntos que exigem uma aten9ao ratificada, conjunta ecorrente, exigencia que os instala e os reline numa especie demundo mental e intersubjetivo."67

CONSClENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTlTU1<;A-O DA SOCIEDADE

grave calamidade. Por conseguinte, por mais espontanea e ime­diata que possa ser, ela demonstra cuidado e aten9ao para as im­plica90es da ocorrencia subita e indica, pois, competencia totalque sobrepuja 0 que e por isso exibido como urn simples deslize.

Mas hil mais. "Upa!" pode ser interpretado como urn avisoaos outros. As casualidades sempre OCorrem num milieu de co­presen9a, e e aconselhilvel que os outros nas vizinban9as tomemcuidado. Quando alguem sofre urn acidente de pouca monta, aexclama9ao pode partir, as vezes, de urn participante e nao doindividuo que 0 sofreu. Ela soa talvez como uma advertencia,transmitindo ao mesmo tempo a garantia de que 0 deslize naosera tratado pelo observador como algo que compromete a Com­petencia do outro como agente responsave!. Trata-se normal­mente de urn Som breve e rispido. Mas, em algumas situa90es, 0"u" podera ser mais prolongado. Assim, alguem pode ampliaro Som para cobrir parte de uma tarefa ou empreendimento emque urn momento Particularmente arriscado tern de ser supera­do para que sua execu9ao seja coroada de exito. Ou urn paipode emitir urn prolongado "Upa!" quando brinca com 0 filhopequeno, jogando-o e apanhando-o no ar; 0 som serve paracobrir a fase em que a crian9a pode sentir urna perda de controle,tranqiiilizando_a e, ao mesmo tempo, ajudando-a talvez a faci­litar Sua compreensao crescente dos gritos de resposta".

Resulta, portanto, que essa eXclama9ao nao esta tao dis­tante da fala quanto se poderia Supor inicialmente, ja que elaParticipa exatamente daquele cariter publico da comunica9ao,ocorrendo com praticas, 0 qual Wittgenstein identificou comofundamento do usa linguagem. A luz da discussao precedenteneste capitulo, deve ficar claro que a contextualidade da lin­guagem ordinaria nao e urn "problema" para falantes leigosnem para a analise filosOfica. A contextualidade da fala, talcomo a da postura corporal, do gesto e do movimento, e a basesobre a qual tais fenomenos sao coordenados como encontrosque se estendem no tempo-espa90. Falar e urna caracteristicaintrinseca de quase todos os encontros e tambem apresentasemelhan9as de forma sistemica. A fala manifesta-se usual­mente como conversa9ao. "Conversa9ao" admite urn plural, 0

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mentar da estrutura9iio de encontros. Ele envolve aqui muitas esutis modalidades de movimento corporal e gesto, assim comoo movimento mais geral do corpo atraves de setores regionaisde rotinas diarias, 0 posicionamento de atores nas regiaes deseus cursos espa90-temporais cotidianos e, evidentemente, seuposicionamento simultiineo no ambito da regionaliza9ao maisampla de totalidades sociais e dentro de sistemas intersociaiscujo alcance de difusao converge com a distribui9iio geopoliti­ca dos sistemas sociais em escala global. A importiincia do po­sicionamento nesse sentido muito rudimentar esci estreitamenteIigada, como e obvio, ao nivel de distanciamento espa90-tem­poral das totalidades sociais. Naquelas sociedades em que aintegra9ao social e a de sistema siio mais ou menos equivalen­tes, 0 posicionamento esta apenas tenuemente graduado. Masnas sociedades contemporiineas os individuos sao posiciona­dos nurna gama cada vez mais ampla de zonas - em lares, 10­cais de trabalho, bairros, cidades, na90es-Estados e urn sistemamundial -, todas elas apresentando caracteristicas de integra­9aO de sistema que relacionam de forma crescente os detalhessecundarios da vida cotidiana com os fenamenos sociais de ex­tensiio tempo-espa90 maci9a.

o posicionamento nos cursos espa90-temporais da vidadima, para todos os individuos, e tambem 0 posicionamento den­tro do "cicio vital" ou curso vital. A forma9ao de um "eu" tal­vez seja baseada no narcisismo original de uma "fase de espe­lho" no desenvolvimento da personalidade. A crian9a forma acapacidade de tomar-se um agente reflexivo mediante 0 posi­cionamento do corpo em rela9iio Ii sua imagem, A propria co­nota91io do "eu" como um deslocador relaciona necessariamen­te 0 selfcom 0 posicionamento dentro da serialidade de discur­so e a91io, 0 posicionamento ao longo do curso vital esci, e claro,sempre intimamente relacionado com a categoriza91io da iden­tidade social. "lnIancia" e "idade adulta", entre algumas outrasformas passiveis de gradua91io etaria, sempre combinam crite­rios biologicos e sociais de envelhecimento. 0 posicionamentodiferencial no curso vital e a mais importante condi91io restriti­va influenciando a importancia fundamental da familia na con-

98A CONSTITUI(:A-O DA SOCfEDADE

Desde Linton, 0 conceito de posi9iio social passou a sercomumente associado ao de papel, e este ultimo tern recebidomuito mais considera9iio e anaIise do que 0 primeiro". Niiopretendo recapitular essa discussiio, mas apenas enfatizar algu­mas reservas acerca da n09iio de papel. 0 conceito esta relacio­nado com dois pontos de vista aparentemente opostos, cada urndos quais provoca em mim certo constrangimento. Urn e 0 deParsons, em cuja teoria 0 papel e fundamental como 0 ponto deliga9iio entre motiva9iio, expectativas normativas e "valores".Essa versao do conceito de papel esta por demais vinculada aoteorema parsoniano da dependencia da integra9ao social emrela9iio ao "consenso de valor" para ser aceitavel. 0 outro e 0ponto de vista dramatUrgico defendido por Goffinan, sobre 0qual voltaremos a falar no proximo capitulo, pois atingimosaqui 0 limite de suas ideias. As duas concep90es poderiam pa­recer antaganicas, mas, na realidade, possuem uma afinidadebern definida. Ambas tendem a enfatizar 0 carater "dado" dospapeis, servindo assim para expressar 0 dualismo de a9iio e es­trutura caracteristico de tantas areas da teoria social. 0 roteiroesta escrito, 0 palco montado e os atores desempenham 0 melhorque podem os papeis preparados por eles. A rejei9iio de taispontos de vista nao significa prescindir inteiramente do concei-to de papel, mas implica aceitar 0 "posicionamento" dos atorescomo ideia mais importante. Para fins de defini9ao, adotarei aformula9iio que ofereci nurna obra anterior. Uma posi9iio so­cial pode ser considerada urna "identidade social" portadora deuma certa gama (urn tanto difusamente especificada) de prer­rogativas e obriga90es que 0 ator, ao qual e conferida essa iden­tidade (ou a quem "incumbe" essa posi9iio), pode ativar ouexecutar: essas prerrogativas e obriga90es constituem as pres­cri90es de papel associadas a essa posi9ao".

o termo "posi9ao" explica-se mais como ''posicionamen_to", 0 que da ao segundo a condi9ao de explorar urn rico filiiode significados. Os atores estiio sempre posicionados em rela­9iio aos tres aspectos da temporalidade em tomo dos quais estaconstruida a !eoria da estrutura9iio. 0 posicionamento dos agen­tes em circunstiincias de co-presen9a e urna caracteristica ele-

CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 99

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100101CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

te, a importancia da obra de Goffman para a teoria da estrutura­9ao. Toda intera9ao social e urna intera9ao situada - situada noespa90 e no tempo. Pode ser entendida como a ocorrencia irre­gular mais rotinizada de encontros, esvaindo-se no tempo e noespa90, e nao obstante reconstituida constantemente em dife­rentes areas do tempo-espa90. As caracteristicas regulares ourotineiras de encontros, tanto no tempo quanto no espa90, re­presentam caracteristicas institucionalizadas de sistemas sociais.A rotina funda-se na tradi9ao, costume ou babito, mas e urngrave erro supor que esses fenomenos nao precisam de expli­ca9ao, que sao simplesmente formas repetitivas de comporta­mento executadas "sem pensar". Pelo contrilrio, como Goffman(juntamente com a etnometodologia) ajudou a demonstrar, 0carater rotinizado da maior parte da atividade social e algo quetern de ser continuamente "trabalhado" por aqueles que a ali­mentam em sua conduta no dia-a-dia. Vma das mais gritanteslacunas nos escritos de Goffman e a ausencia de uma descri9aoda motiva9ao. Nas se90es precedentes, procurei remediar issosugerindo que confian9a e tato, como propriedades basicas queos participantes levam para os encontros, podem ser interpreta­dos em termos da rela9ao entre urn sistema de seguran9a basi­ca, a manuten9ao (na praxis) de um senso de seguran9a ontolo­gica, e a natureza rotineira da reprodu9ao social que os agenteshabilidosamente organizam. A monitora9ao do corpo, 0 con­trole e uso do rosto no face work, eis os fatores fundamentaispara a integra9ao social no tempo e no espa90.

Ede primordial importii.ncia sublinhar 0 fato de que umateoria da rotina nao tern de ser considerada igual a urna teoriada estabilidade social. A preocupa9ao da teoria da estrutura9aoe com a "ordem" como a transcendencia do tempo e do espa90nas rela90es sociais hurnanas; a rotiniza9ao tem urn papelessencial na explica9ao de como isso ocorre. A rotina persisteatraves da mudan9a social ate a de tipo superlativamente dra­matico, mesma que, evidentemente, alguns aspectos de rotinastidos como certos possam ficar comprometidos. Os processosde revolu9ao, por exemplo, sem duvida perturbam habitual­mente as atividades cotidianas de multidoes de pessoas que sao

A CONSTITUI9A'O DA SOCIEDADE

juga9ao de reprodu9ao fisica a social. Vma sociedade humanaem que todos os membros nascessem como uma unica coorteetilria seria impossivel, urna vez que 0 bebe humano tern urnperiodo tao longo de dependencia mais ou menos completadaajuda de seus familiares mais velhos".

Mas e a interse9ao entre essas formas de posicionamento ea assurnida na longue duree das institui90es que cria a estruturabasica global do posicionamento social. Somente no contextodessa interse9ao, dentro de priticas institucionalizadas, podemser adequadamente apreendidos os modos de posicionamentoespa90-temporal, em rela9ao a dualidade da estrutura. Pareceque em todas as sociedades os criterios mais abrangentes deatribui9ao de identidade social sao a idade (ou faixa etaria) e 0genero. Mas embora seja comum na literatura sociologica falarde papeis proprios da idade, papeis proprios do genero etc., deurn modo generico, nao seguirei esse uso. A identidade socialconferida por idade ou genero - e outras caracteristicas supos­tamente "atributivas", como a pigmenta9ao da pele - tende aser 0 foco de tantos aspectos da conduta que empregar 0 termo"papel" para descreve-los e enganador e superficial". A n09aode papel, conforme foi sublinhado por intimeros criticos de seuemprego generalizado nas ciencias sociais, so possui algumaprecisao conceptual se aplicada em contextos de intera9ao so­cial, nos quais estao formulados Com relativa clareza os direi­tos e obriga90es normativos associados a urna identidade espe­cifica. Como suas origens dramarurgicas indicam, e validofalar de papel somente quando existem cenilrios estabelecidosde intera9ao, nos quais a defini9ao normativa de modos "espe­rados" de conduta e fortemente pronunciada. Tais cenilrios ouambientes de intera9ao sao sempre virtualmente dotados de urnlocal ou tipo de local especifico, no qual ocorrem encontros re­gularizados em condi90es de co-presen9a". Cenilrios dessetipo tendem a ser associados a urn circulo mais delineado e maisfechado de rela90es do que se verifica em sistemas sociais co­mourntodo.

o "posicionamento" atinge 0 que chamarei de as contex­tualidades da intera9ao e permite-nos compreender, diretamen-

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"I

CONSCItNCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

cunstancias e situa,oes, de modo a poderem responder da ma­neira apropriada a tudo que "esteja acontecendo". Alguem quedescobre que 0 que esta acontecendo num determinado tempoe lugar e, digamos, uma festa podera adotar uma conduta dotipo conveniente, mesmo que alguns aspectos dos contextos naolhe sejam familiares. A maior parte da obra de Goffinan tratadas regras que permitem a realiza,ao de transi,oes entre estru­turas primcirias e secundarias. Assim, as "chaves" em transfor­ma,oes sao as formulas por meio das quais uma atividade queja e significativa numa estrutura primaria recebe urn significa­do numa secundaria". Por exemplo, uma luta pode ser "brinca­deira", urn comentano aparentemente serio, uma '"piada". Masexatamente 0 mesmo tipo de analise poderia ser feito para indi­car as regras envolvidas em transi,oes entre diferentes estrutu­ras primarias.

Nao seria pertinente continuar detalhando neste contextoa anaIise de Goffman da estrutura,ao. Em vez disso, considera­rei brevemente 0 significado que a formula,ao discursiva deregra pode ter, recorrendo a urn trabalho diferente, 0 de Wieder,sobre "dar 0 cOdigo"". A pesquisa de Wieder descreve os re­sultados de urn estudo de observa,ao participante numa unida,de residencial para reabilita,ao de prisioneiros em regime de Ii­berdade condicional. Os reclusos falaram da existencia de regrasde conduta a que chamavam de "cOdigo". 0 cOdigo era explici­tamente verbalizado, mas, e claro, nao tinha a formaliza,ao es­crita, dado ser estabelecido e coordenado pelos presos, naopelos funcionanos. Ao que parece, nenhum recluse podia reci­tar todas as maximas que compunham 0 cOdigo, mas todos eramcapazes de mencionar algumas, e discutia-se 0 cOdigo com fre­qiiencia. Era constituido por regras como: nao "dedurar"(denunciar outros reclusos aos funcionanos); nao admitir culpaou confessar a responsabilidade por um ate definido como ile­gitimo pelos funcionarios; nao roubar de outros reclusos; re­partir com os outros quaisquer presentes ou beneficios quepudessem ser recebidos, e assim por diante. Os funcionariostambem conheciam 0 cOdigo e faziam usc dele em suas rela­,oes com os reclusos. Como diz Wieder, ele "era usado como

A CONSTITUlr;:A'O DA SOCIEDADE

envolvidas pelo fervor da revolta ou sao as vitimas infelizes deeventos sociais em cuja deflagra,ao nao participaram. Mas enaquelas circunstiincias em que 0 tecido da vida cotidiana eftontalmente atacado e sistematicamente deformado _ comonos campos de concentra,ao - que 0 poder da rotina softe umaquebra substancial. Mas ate mesmo nesses casos, como Bet­telheim demonstra tao bern, as rotinas, incluindo as abomimi­veis, acabam sendo restabelecidas.

E esclarecedor ver as regras implicitas em encontros,como Goffinan sugere, agrupadas em estruturas ou "esque­mas". Epossivel considerar que a estrutura,ao fomece a orde­na,ao de atividades e significados por meio dos quais a segu­ran,a ontologica e mantida no desempenho das retinas diarias.As estruturas sao conjuntos de regras que ajudam a constituir eregular as atividades, definindo-as como de uma certa especiee sujeitas a uma determinada gama de san,oes. Sempre que osindividuos se reunem num contexto especifico, deftontam-se(e, na grande maioria das circunstiincias, respondem sem amenor dificuldade) com a pergunta: "0 que esta acontecendoaqui?" E improvavel que essa pergunta admita uma respostasimples, visto que em todas as situa,oes sociais pode havermuitas coisas "acontecendo" simultaneamente. Mas os partici­pantes da intera,ao a formulam caracteristicamente no nivel daprlitica, orientando Sua conduta para ados outros. Ou, se a for­mulam discursivamente, e em rela,ao a um aspecto particularda situa,ao que parece intrigante ou perturbador. A estrutura,ao,como constitutiva de encontros (e limitada por estes), incuteum "sentido" as atividades em que os participantes se envolvem,tanto para eles quanta para outros. Isso inclui a compreensao"literal" de eventos, mas tambem os criterios pelos quais se expli­ca que 0 que esta acontecendo e humor, recrea,ao, teatro etc.

As estruturas primanas da atividade diana podem ser vis­tas como aquelas que geram linguagens "literais" de descri,aotanto para participantes leigos em encontros quanta para obser­vadores sociais. Elas variam amplamente em Sua precisao efechamento. Seja qual for seu nivel de organiza,ao, permitemaos individuos classificarem uma pluralidade imensa de cir-

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porais de atividade. As rela90es sociais dizem respeito ao "po­sicionamento" dos individuos dentro de um "espa90 social" decategorias e vinculos simb6licos. As regras envolvidas em po­si90eS sociais tratam normalmente das especifica90es de direi­tos e obriga90es importantes para as pessoas com determinadaidentidade social ou pertencentes a uma certa categoria social.Os aspectos normativos de !ais regras, por outras palavras, siloparticularmente pronunciados, mas todas as caracteristicaspreviamente enunciadas das regras tambem Ihes silo apliciiveisElas podem, por exemplo, ser tacitamente obedecidas em vezde discursivamente formuladas. Existem muitos casos dessesna literatura antropol6gica, entre eles 0 das culturas em queexiste casamento de primos cruzados unilaterais. Embora osmembros dessas culturas tenham obviamente algumas ideiasque poem em vigor a respeito de quem casa com quem, as re­gras de elegibilidade a que estilo, de fato, obedecendo em seucomportamento silo mais tacitas do que explicitas.

Goffinan demonstra que a integra9ilo social depende deprocedimentos reflexivamente aplicados de agentes cognosci­tivos, mas nilo indica, de modo efetivo, os limites dessa cog­noscitividade nem as formas que esta assume. Quero apresentaraqui uma pergunta: em que sentido os agentes silo "cognosciti­vos" acerca das caracteristicas dos sistemas sociais que produ­zem e reproduzem em sua a9ilo?

Vamos pressupor que "conhecimento" seja igual a umaconsciencia acurada au valida - nao me refiro a "convic9ao",porque as convic90es silo apenas um aspecto da cognoscitivi­dade. Nilo faz sentido tratar a consciencia priitica como exaus­tivamente constituida por convic90es ou cren9as propositivas,embora alguns elementos assim pudessem, em principio, serformulados. A consciencia priitica consiste no conhecimentodas regras e taticas mediante as quais a vida social e constituidae reconstituida atraves do tempo e do espa90. Os atores sociaispodem estar errados uma parte do tempo sobre 0 que possamser essas regras e taticas - caso em que seus erros podem vir Iitona como "impropriedades situacionais". Mas, se realmenteexiste alguma continuidade na vida social, a maioria dos atores

105CONSC/ENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTITUI9A-O DA SOC/EDADE

um esquema de interpreta9ilo de grande amplitude, que 'estru­turava' 0 ambiente em que viviam"76. Mas, como 0 autar tam­bern sublinha, sua verbaliza9ilo significava que era invocado demaneiras como as regras implicitamente formuladas nilo podemser. Formava um "vocabulario de motivo", mediante 0 qualfuncionarios e reclusos interpretavam a90es, especialmente asdesviantes ou problematicas. Nilo era tratado simplesmentecomo uma descri9ilo do que era tacitamente reconhecido; pelocontnirio, as circunstancias em que se recorria ao c6digo po­diam ser alteradas pelo fato de invoca-Io. "Dar 0 c6digo" signi­ficava, como soa a frase, nilo s6 dar informa90es sobre 0 queera 0 c6digo, mas tambem repreender severamente quem 0transgredisse; esse fato exibia 0 c6digo como um mecanismode controle, sendo essa exibi9ilo parte da maneira como, defato, ele funcionava como tal. Eu sugeriria que isso e caracte­ristico das "interpreta90es de regras" discursivamente ofereci­das em muitos contextos sociais.

As regras aplicadas reflexivamente em circunstancias deco-presen9a nunca silo limitadas em suas implica90es a encontrosespecificos, mas servem Ii reprodU9ilo dos padroes de encon­tros atraves do tempo e do espa90. As regras da linguagem, daestrutura9ilo primaria e secundaria, da conduta da intera9ilointerpessoal, aplicam-se todas a vastos setores da vida social,embora nilo possam ser interpretadas como necessariamentecoextensivas com qualquer "sociedade" dada. Neste ponto, te­mos de prestar alguma aten9ilo Ii diferencia9ilo conceptualentre "intera9ilo social" e "rela90es sociais" (embora eu nemsempre seja particularmente cuidadoso em separa-las no que sesegue). A intera9ilo social refere-se a encontros em que os indi­viduos se envolvem em situa90es de co-presen9a e, por conse­guinte, Ii integra9ao social como um nivel dos elementos biisi­cos por meio dos quais as institui90es dos sistemas sociais siloarticuladas. As rela90es sociais estilo certamente envolvidas naestrutura9ilo da intera9ilo, mas tambem constituem os princi­pais elementos na edifica9ilo, em tomo dos quais as institui­90es se articulam em integra9ilo de sistema. A intera9iio dependedo "posicionarnento" dos individuos nos contextos espa90-tem-

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deve estar certa a maior parte do tempo; quer dizer, eles sabemo que estao fazendo e comunicam com hito seu conhecimentoa outros. A cognoscitividade incorporada as atividades pr:lticasque constituem a maior parte da vida cotidiana e uma caracte­ristica constitutiva (juntamente com 0 poder) do mundo social.o que e conhecido do mundo social por seus atores constituin­tes nao esta separado do mundo deles, como no caso do conhe­cimento de eventos ou objetos na natureza. Comprovar exata­mente 0 que e que os atores conhecem, e como aplicam esseconhecimento a sua conduta pratica (empreendida tanto poratores leigos quanta por observadores sociais), depende do usodos mesmos materiais - uma compreensao de prMicas recursi­vamente organizadas - donde sao derivadas as hipoteses sobreesse conhecimento. A medida de sua "validade" e fomecidapela avalia9ao do quanto os atores sao capazes de coordenarsuas atividades com outros, de tal maneira que os objetivosvisados por seu comportamento sejam atingidos.

Existem, e claro, diferen9as potenciais entre 0 conheci­mento das regras e tMicas da conduta pratica nos milieux emque 0 agente se movimenta e 0 conhecimento daquelas que seaplicam em contextos remotos de sua experiencia pessoal. Ateque ponto as habilidades sociais do agente !he permitem adesenvoltura imediata em contextos culturalmente estranhos ealgo obviamente variavel, certamente como 0 e 0 entrela9amen­to de diferentes formas de conven9ao que expressam fronteirasdivergentes entre culturas ou sociedades. Nao e apenas no co­nhecimento - ou nas afirma90es de cren9a -, que conseguemformular discursivamente, que os agentes mostram possuir umaconsciencia de condi90es mais amplas da vida social do queaquelas em que suas proprias atividades ocorrem. Freqiien­temente, ena maneira como as atividades de rotina sao executa­das, por exemplo, que atores em circunstiincias de acentuadainferioridade social tomam manifesto seu conhecimento cons­ciente de sua opressao. Os escritos de Goffman estao repletosde comentarios sobre esse tipo de fenameno. Mas, em outrosaspectos, quando falamos do "conhecimento que os atores tern desuas sociedades" (e de outras), a referencia e a consciencia dis-

1) os meios de acesso dos atores ao conhecimento, em virtudede sua localiza9ao social;

2) os modos de articula9ao do conhecimento;3) as circunstiincias referentes a validade das afirma90es de

crenr.;a interpretadas como "conhecimento";4) os fatores relacionados com os meios de dissemina9ao do

conhecimento disponivel.

107CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

cursiva. Nao existe aqui diferen9a logica entre os criterios devalidade em termos dos quais as afirma90es de cren9as ou con­vic90es (hipoteses, teorias) serao julgadas por membros leigosda sociedade e por observadores sociais.

Quais sao - num plano geral, pelo menos - os tipos de cir­cun.stiincia que tendem a influenciar 0 nivel e a natureza da "pe­netra9ao" dos atores sociais nas condi90es de reprodu9ao dosistema? Eles incluem os seguintes fatores:

Obviamente, 0 fato de todos os atores se movimentaremem contextos localizados, dentro de totalidades mais amplas, li­mita seu conhecimento de outros contextos, dos quais nao pos­suem uma vivencia direta. Todos os atores sociais conhecemmuito mais do que tiveram alguma vez a possibilidade de vi­venciar diretamente, em virtude da sedimenta9ao da experien­cia na linguagem. Mas os agentes cujas vidas se passam nums6 tipo de milieu podem ser mais ou menos ignorantes do queacontece em outros. Isso aplica-se num sentido nao so "lateral"- no sentido de separa9ao espacial -, mas tambem "vertical"em sociedades mais vastas. Assim, aqueles que pertencem a gru­pos de elite podem conhecer muito pouco a respeito de comovivem outros em setores menos privilegiados e vice-versa. En­tretanto, vale a pena mencionar que a segrega9ao vertical demilieux tambem e quase sempre uma segrega9ao espacial. Noitem 2 acima, pretendi referir-me tanto a ate que ponto as afir­ma90es de cren9a sao ordenadas em termos de "discursos" glo­bais quanta a natureza de diferentes discursos. Caracteristicodas pretensoes mais cotidianas, mais senso comum, de conhe­cimento e serem elas formuladas de urn modo fragmentario,

A CONSTITU19A-O DA SOCIEDADE106

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deslocado. Nao e apenas 0 "primitivo" que e urn bricoleur:grande parte da fala do dia-a-dia entre membros leigos de to­das as sociedades baseia-se em pretensoes de conhecimentoque sao dispares ou nunca foram examinadas. Entretanto, 0

surgimento de discursos da ciencia social influencia claramentetodos os niveis de interpreta,ao social nas sociedades em queela se tornou influente. Goffinan tern urn vasto publico que naose limita a seus colegas profissionais da sociologia.

No que se refere ao item 3, e suficiente sublinhar que osindividuos podem operar com falsas teorias, descri,oes ou ex­plica,oes tanto dos contextos de sua pr6pria a,ao quanta dascaracteristicas de sistemas sociais mais abrangentes. Existemfontes 6bvias de possivel tensao entre consciencia pcitica e cons­ciencia discursiva. Elas podem ser de origem psicodinamica,em repressoes que separam ou confundem as razoes pelasquais as pessoas agem como agem e 0 que elas estao inclinadasou aptas a dizer acerca dessas razoes. Mas, obviamente, podemexistir pressoes sociais mais sistematicas, que podem influen­ciar 0 tanto que as falsas cren,as sao sustentadas pelos mem­bros de uma sociedade acerca das caracteristicas dessa socie­dade. Particularmente influentes com respeito ao item 4, equase desnecessario dizer, sao as rela90es existentes, hist6ricae espacialmente, entre a cultura oral e os veiculos de comuni­ca,ao escrita, impressa e eletr6nica. Todas estas ultimas moda­lidades influenciaram nao s6 os estoques de conhecimento dis­ponivel, mas tambem os tipos de conhecimento produzidos.

108 A CONSTlTUl9AO DA SOCIEDADE Notas criticas: Freud sabre lapsus linguae

Como exemplo de algumas das no,oes analisadas nestecapitulo proponho considerar interpreta,oes de lapsus linguaeem discurso. Aquilo a que Freud chama de "parapraxis" (Fehl­leistungen) refere-se nao s6 a deslizes verbais, mas a toda umaserie de atos sintomaticos, tais como escrever, ler e ouvir errado,e 0 esquecimento temporario de nomes e outros itens. Freudtrata esses atos como pertencentes a uma s6 classe, parcial­mente porque os termos que os designam tern urna raiz similarem alemao, come,ando todos com a silaba rer- (Versprechen,Verlesen, Verhoren, Vergessen). Todas as parapraxis envolvemerros, mas a maioria deles sao aparentemente sem importanciae sem significa,ao duradoura nas atividades dos individuosque os cometem. Segundo Freud, "s6 raramente urn deles,como a perda de urn objeto, atinge algurn grau de importinciapratica. Tambem por essa razao, eles atraem pouca aten,ao,nao ocasionam mais do que tenues emol;oes etc."I*. De fata,ele tenta demonstrar que essas infra,oes corriqueiras fornecemindica,oes de caractensticas essenciais da psicodinamica dapersonalidade.

Se as parapraxis formam realmente uma Unica classe deerros ou nao, eis algo que nao me preocupo em discutir aqui.Concentrar-me-ei somente no lapsus linguae. Empregando urnaclassifica,ao estabelecida pelo lingiiista Meringer e por Mayer,urn psiquiatra (de cujas opinioes, quanta ao mais, discorda),Freud menciona os seguintes tipos de erro verbal: transposir;oes

* As referencias podem ser encontradas a pp. 128.

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correta por uma pessoa, reconheceu-o imediatamente sem a me­nor hesita~ao.0 esquecimento nao deve ser explicado em termosde qualquer coisa distinta sobre 0 proprio nome do pintor ou dequalquer aspecto psicologico do contexto no qual Freud estavatentando recordlt-lo. Este estava tao familiarizado com urn dosnomes substitutos, "Botticelli", quanta com "Signorelli", e muitomais familiarizado com "Signorelli" do que com 0 outro nomeequivocado que the ocorreu, "Boltraffio". Esse fato aconteceudurante urna conversa casual com urn estranho, nurna viagem deRagusa, na Dahruicia, para urn local da Herzegovina.

Freud fez a seguinte analise do fenomeno. 0 esquecimentodo nome estava relacionado com 0 tema precedente da conver­sa. Antes de Orvieto ser mencionado, ele e seu companheiro deviagem falavam a respeito dos costumes das popula~oes turcasque viviam na Bosnia e em Herzegovina. Freud descrevera aooutro a atitude fatalista com que os turcos abordam a doen~a ea morte. Se urn medico lhes diz que nada pode ser feito parasalvar alguem que esti doente, a resposta deles e: "Herr [Se­nhor], que posso eu dizer? Sei que, se pudesse, 0 senhor 0 sal­varia.") As palavras "Bosnia", "Herzegovina" e Herr possuemuma associa~ao inconscientemente gravada com "Signorelli","Botticelli" e "Boltraffio". Urn segundo episodio e inteiramen­te ligado ao primeiro na mente de Freud. Em contraste com suaresigna~ao diante da morte, os turcos dao mostras de grandeagitac;ao e desespero quando sofrem transtomos sexuais. Assim,urn deles the dissera: "Sabe, Herr, se isso acabar, a vida deixade ter qualquer encanto." Freud suprimira esse episodio de seurelato, por nao desejar discorrer sobre urn assunto tao delicadocom urn estranho. Por isso desviou sua aten~ao de pensamen­tos que poderiam ter sido suscitados em sua mente pelos temasda morte e da sexualidade. Ele recebera recentemente uma noti­cia deveras lamentavel, durante uma breve estada em Trafoi,urna pequena aldeia do Tirol. Urn de seus pacientes, a quemdedicara consideravel aten~ao e que padecia do que costumavareferir-se como uma "perturbac;ao sexual incunivel"\ suicida­ra-se. A semelhan~a das palavras "Trafoi" e "Boltraffio" indi­cou que esse evento se fizera sentir psicologicamente, apesarde sua decisao de nao 0 mencionar.

IIICONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTITUl9AO DA SOCIEDADE

("Milo de Venus" em vez de "Venus de Milo"); pre-sondnciasou antecipOl;oes (es war mir aufder Schwest... aufder Brust soschwer - Schwest e uma palavra inexistente); p6s-sondnciasou persevera,oes (ich fordere Sie auf, auf das Who! unseresCheft auftutossen, em vez de anzustossen); contamina,oes (ersetzt sich aufden Hinterkopf, urna combina~ao de er setzt sicheinen KopfaufCom er steUt sich aufdie Hinterbeine); e substi­tui,oes (ich gebe die Priiparate in den Briefkasten, em vez deBriitkasten)'.

Meringer tentou explicar esses tipos de erros em termos defases de excita~ao neural. Quando urn emissor profere a pri­meira palavra de uma frase, deflagra-se urn processo de excita­~ao, ligado it expectativa da forma da elocu~ao. Esse processotern, por vezes, 0 efeito de perturbar sons subseqiientes da elo­cu~ao. Alguns sons sao fisicamente mais intensos e podemafetar outros sons ou palavras. Para descobrir a fonte do !apsuslinguae temos, portanto, de procurar aqueles sons ou verbal i­za~oes de valencia flsica mais alta. Urn modo de fazer isso, deacordo com Meringer, e considerar 0 que esti envolvido na bus­ca de uma palavra esquecida, como 0 nome de alguem. 0 pri­meiro som a retomar it consciencia e sempre aquele que apresen­tava maior intensidade antes de a palavra ter sido esquecida.Trata-se, com freqiiencia, por exemplo, do som critico na palavraou na vogal que e particularmente acentuada. Freud nao conside­rou isso muito importante. No caso de palavras esquecidas, rara­mente e verdade que 0 som inicial ou a vogal acentuada seja 0

primeiro a ser recordado. as emissores podem, por vezes, acre­ditar ser esse 0 caso mas, de fato, estao geralmente errados;Freud afIrma que, na grande maioria dos casos, 0 som inicialque 0 locutor profere ao tentar recordar a palavra e 0 errado.

Como exemplo desse ultimo fenomeno ha a famosa dis­cussao feita por Freud a respeito de seu proprio lapso de me­moria relativo ao nome do pintor Signorelli. Falando a respeitodos afrescos das "Quatro Ultimas Coisas", Ressurrei~ao dosMortos, Juizo Final, Infemo e Ceu, na catedral de Orvieto, Freudviu-se incapaz de recordar 0 nome do artista. Em vez de desco­brir 0 nome de que estava tentando lembrar-se, so podia pensarnos nomes "Botticelli" e "Boltraffio". Ao ser-lhe dito 0 nome

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Urn mecanismo semelhante a esse, continua Freud, existenos casos de lapsus linguae. Os erros verbais podem ser do tipoanalisado por Meringer e Mayer, quando urn componente deuma frase influencia urna outra, ou do exemplo analisado porFreud, em que as influ€mcias que produzem 0 erro provem defora da frase pronunciada e de suas circunstancias imediatas.Ambos os tipos de erros tern suas origens nurna especie de"excitayao", mas, num casa, ela einterior it frase ou asitua<;aoem que as palavras sao proferidas, no outro, e-lhes exterior.Somente no primeiro existe qualquer possibilidade de explicar 0

lapsus linguae em termos de urn mecanismo ligando mutua­mente sons e palavras, de modo que influenciem a articula,ao.Alem disso, sujeito a urn exame mais minucioso, 0 primeiro, defato, evapora-se. Os lapsos verbais que parecem, it primeiravista, ser simplesmente 0 resultado de urn "efeito de contato desons", na realidade mostram, numa investiga,ao mais ampla,depender de influencias externas (isto e, motivadas).

Freud enurnera muitos exemplos de lapsos verbais, incluin­

do os seguintes:

1) Por parte de uma paciente: "Fecho-me como urn Tassenmes­cher [palavra inexistente]. .. quer dizer, Taschenmesser (ca­nivete)." Freud reconhece a existencia de dificuldades dearticula,ao com a palavra, mas aponta 0 erro it paciente e as­socia-o com urn nome que suscita angustias inconscientes.

2) Uma outra paciente, indagada sobre como estava seu tio,responde: "Nao sei, agora s6 0 vejo inflagranti." A frase queela pretendia era en passant. A expressao usada erradamen­te relacionava-se, como ficou provado, com urn epis6dio nopassado da paciente.

3) Umjovem dirige-se a urna senhora na rna com estas palavras:"Se me permite, Madame, eu gostaria de a begleit-digen."Ele quer acompanhf!-la (begleiten) mas receia que sua pro­posta a ofenda (beleidigen). Tal como no caso "Signorelli",uma inten,ao oculta - nao ser a solicita,ao inteiramente ino­cente por parte do homem - redunda num lapsus linguae in­conscientemente motivado.

CONSCI!;NCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

TrafOi~

(Pensamentos reprimidos)

Figura 4

Marte e sexualidade

~tticelli 80 Itraffio

Her)zegovina e @"snia

Herr,) que posso eu dizer? etc.

Signorlelli

A CONSTITUIr;:Jo DA SOCIEDADE

Tendo estabelecido essa conexao, afirma Freud, jf! nao eramais possivel considerar 0 esquecimento de "Signorelli" urnaocorrencia acidental; tratava-se de algo (inconscientemente)motivado. 0 elemento que Freud optou deliberadamente pornao mencionar foi deslocado para urn outro elemento, 0 nomedo pintor.

As conex5es estabelecidas neste caso' indicam que 0 no­me "Signorelli" se dividira em dois. Urn dos pares de sflabas,"elli", Ocorre de forma inalterada nurn dos dois nomes que acu­diram it mente de Freud. 0 outro envolveu-se numa cadeia deliga,5es por meio da tradu,ao de "Signor" por "Herr". Ocor­feu um deslocamento entre os nomes "Herzegovina e Bosnia"- dois lugares freqiientemente citados juntos na mesma frase.A maioria das conex5es que produziram 0 esquecimento foiforjada abaixo do nivel da consciencia. 0 tema suprimido e osfatores que fizeram acudir it mente os nomes substitutos naotern quaisquer liga,5es manifestas. As semelhan,as envolvidasdependem em parte de sons comuns que as palavras pOssuem,mas que s6 podem ser conjugados quando compreendemos queo esquecimento eurn resultado da repressao. Nem todos os ca­sos de esquecimento de nomes, eclaro, sao dessa especie: "Apar de casos simples, em que nomes pr6prios sao esquecidos,existe urn tipo de esquecimento motivado por repressao.'"

~

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114

* "0 que ebern concebido ! Anuncia-se claramente / E as palavras paradize-lo! Chegam facilmente." (N. do T.)

I) "Ao encerrar nosso 'TV Church of the Air', permitarn-melembrar a todos os nossos telespectadores que 0 tempo fere

liS

Ce qu'on con~oit bienS'annonce clairementEt les mots pour Ie direArrivent aisement. 8*

A motiva9ao inconsciente existira em todos os casos delapsus linguae? Freud acredita que sim, "pois toda vez que seinvestiga urn exemplo de lapsus linguae logo surge uma expli­ca9ao desse tipo"'.

Comparemos agora essa visao de Freud do lapsus linguaecom a de Goffinan da fala radiofOnica" - uma compara9ao quepoderia parecer nada promissora, mas e realmente muito ins­trutiva para a teoria da estrutura9ao. Os interesses de Goffinanem seu exame sao muito divergentes dos de Freud e, em vez deseguir os temas de sua propria argumenta9ao, tentarei dissecarsuas implica90es para uma avalia9ao dos pontos de vista deFreud sobre erros de fala. A !ocu9ao de radio e TV e substancial­mente diferente da conversa9ao comum, mas justamente poressa razao permite consideravel insight naquelas circunstan­cias. Os locutores nao sao os autores dos scripts que declamarnao microfone. Sua fala ocorre como parte de seqiiencias pre­viamente planejadas, das quais nao tern liberdade de afastar-se,salvo em pequenos detalhes. Ao mesmo tempo, espera-se quetransmitarn uma impressao de "fala original", mantendo vivauma impressao de espontaneidade no que dizem. Satisfazer es­ses requisitos inconsistentes e dificil, uma vez que eles tern derecitar seus textos de modo tecnicarnente livre de erros. A tare­fa do locutor e "a produ9ao de uma fala espontanea aparente­mente impecavel"ll.

Entretanto, os locutores de radio e TV cometem 0 lapsuslinguae. Entre os exemplos citados por Goffinan e f<icil encon­trar alguns casos enumerados por Meringer e Mayer:

CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTlTU/(:A-O DA SOCIEDADE

4) Durante uma reuniao ardorosamente disputada, 0 presidentediz: "Varnos agora slreiten (discutir) 0 ponto quatro da agenda"(em vez de schreiten = passar para). A verdadeira ideia doorador, que ele intenta suprimir, manifesta-se em seu equi­voco verbal.

S) Perguntam a alguem: "Em que regimento seu filho esta ser­vindo?" A resposta e: "No 42? de Marder" (assassinos), emvez de "Marser" (morteiros).

6) Vma senhora exprimiu certa vez, numa roda social, a se­guinte opiniao: "Sim, uma mulher tern de ser bonita, se qui­ser agradar aos homens. 0 homem tern muito mais sorte.Desde que tenha seus cinco membros em ordem, nao precisade mais nada!" Este e urn dos numerosos exemplos do queMeringer e Mayer charnararn de contarnina90es, mas queFreud considera serem casos ilustrativos do processo psico­logico de condensa9ao. A declara9ao constitui a fusao dedois modos semelhantes de expressao: "Desde que tenhaseus quatro membros direitos" e "Desde que tenha todosos seus cinco sentidos". Assinala Freud que, como no caso detantos lapsos verbais, 0 comentario da boa senhora poderiapassar muito bern por um chiste. A diferen9a reside simples­mente em se a pessoa proferiu conscientemente ou nao aspalavras emitidas.

7) ReanaIise de urn dos exemplos de Meringer e Mayer: Es warmir aufder Schwest... aufder Brust so schwer. Isto nao podeser adequadamente explicado pela expectativa de sons. 0lapsus linguae deve ser provavelmente interpretado em fun­9aO de uma associa9ao inconsciente entre Schwester (irma),Bruder (irmao) e talvez Brust der Schwester (seio da irma).

Conclui Freud: "Deve existir uma razao para todos os erroscometidos ao falar.'" Isso inclui outras formas de perturba9aoda fala, alem dos lapsos verbais, como a gagueira. Todos essesfenomenos sao sintomas de conflito interno que se manifestacomo deforma90es da fala. Freud afirma que os disturbios dafala nao se manifestam em circunstancias em que 0 individuoesta fortemente empenhado, como num discurso bern prepara­do ou numa declara9ao de arnor.

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116

mal pronunciadas ou substituidas nao parecem simplesmentealternativas nao-especificas para aquelas que deveriam ter sidoproferidas. Sao embara,osas em rela,ao aopiniao que, em prin­cipia, 0 locutor devera veicular; algumas tern '''conota90esdemasiado verdadeiras", para as quais Freud chama a aten,ao;e outras possuem urn carater obviamente sexual. Mas conside­remos duas outras formas de deslizes na fala radiof6nica:

I) "Tums Ihe darn alivio instantfuleo e Ihe garantira uma noitesem indigestiio nem mal-estar... Por isso experimente Tums eva dormircom um grande... [0 locutorvira a pagina] sorriso."

2) "Chegou 0 momento, senhoras e senhores, de apresentarnosso eminente convidado desta noite, a notivel conferen­cista e lider social, Sra. Elma Dodge [intromete-se a ima­gem do Super-Homem]... que e capaz de transpor edificiosnum Unico saito."

3) Uma emissora local de TV, transmitindo uma luta de boxe noMadison Square Garden, interrompeu 0 programa para anun­ciar a morte de um politico local. Ao cortar de volta para a

117

I) "As senhoras que tiverem a amabilidade de vir ate aqui e dropoff suas roupas receberao pronta aten,ao" (drop off tantopode significar "deixar suas raupas", numa lavanderia, porexemplo, como "tirar suas roupas"; portanto, esta segundaconotal;ao significaria urn convite as "senhoras para se des­pirem, em cujo caso receberiam pronta aten9ao").

2) "Gente, experimente nossas confortaveis camas! Eu pessoal­mente stand behind qualquer que vendemos" (stand behindtanto pode significar "responsabilizar-se" como "ficar atras").

3) "0 produto do saque e 0 carro foram arrolados como rouba­dos pela Policia de Los Angeles" (em vez de "0 produto dosaque e 0 carro foram arrolados pela Policia de Los Angelescomo roubados").

4) "E aqui em Hollywood corre 0 boato de que a antiga estrelaesta esperando seu quinto filho num mes" (em vez de "Eaqui em Hollywood... esta esperando para dentro de urn messeu quinto filho").

CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTITUIi:;AO DA SOCIEDADE

todas as curas" (em vez de "cura todas as feridas"; transpo­si,ao ou troca acidental de letras ou palavras).

2) "Voces estiio ouvindo a mucous de Clyde Lucas" (mucous emvez de music; pre-sonancia).

3) "E agora entra em campo pelos Reds 0 numero 44, FrankFuller,futiliry infielder" (em vez de utiliry infielder, base re­serva no beisebol; persevera,ao).

4) "Esta e a rede Dominio da Canadian Broad Corping Cas­tration" (em vez de Canadian Broadcasting Corporation;contamina,ao).

5) "Acaba de nos chegar a noticia de que uma blonde [Ioura] defabrica,ao caseira explodiu esta manha no Teatro Roxy"(blonde em vez de bomb; substitui,ao).

Ha tambem numerosos exemplos proximos daqueles enu­merados por Freud, como:

I) "Viceroys... se voce aprecia a good chocke" (= uma boa sufo­ca,ao, em vez de a goodsmoke = urn born cigarro).

2) "Bata a gema do ovo e depois adicione leite, depois va acres­centando aos poucos a farinha peneirada. A medida que formexendo, podera ver como a mistura esta sickening" (= re­pugnante, em vez de is thickening = ficando espessa).

3) "E agora, telespectadores, aqui esta 0 convidado especial de'TV Matinee', que todos estivamos aguardando -0 autor, con­ferencista de fama mundial, um homem do mundo, 0 ele­gante senhor... hum... 0 senhor... Oh! Como e, diabos, 0 seunome?"

4) "E assim, amigos, nao deixem de fazer uma visita ao restau­rante de Frankie, para um jantar com elephant food" (= co­mida de elefante, em vez de elegantfOod =comida refinada).

Muitos desses deslizes sao humoristicos" e refor,am ade­quadamente a tese de Freud de que os chistes e os lapsos ver­bais tern estreita afinidade. Embora nao seja possivel demons­trar isso diretamente, tais exemplos ajustam-se de muito pertoainterpreta,ao que ele faz da parapraxis verbal. As palavras

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118

Eimportante reconhecer que, na fala "normal" nao significa"perfeito". A nonna para a fala espontinea edemonstravelmenteimperfeita. A conversa<;ao caracteriza-se per freqiientes pausas,sons de hesita<;ao, falses comer;os, articula<;oes erroneas e corre­<;oes. [...] Em circunstancias cotidianas, simplesmente nao Quvi­mes muitos dos nossoS proprios lapsos verbais nem os cometidospelos Qutros. So epossivel discemi-los na fala corrente se adotar­mes urn modo especializado de escuta de "revisor de provas". 13

Na maioria das circilllstancias das conversas no dia-a-diae muito dificil, de [ato, distinguir os lapsos verbais da naturezafragmentada de virtualmente todo discurso que se desenrola.Como sublinha Goffinan, para que urna deterrninada expressaooral seja testada como "falha" ou "defeituosa", ela tern de serde urn tipo que 0 locutor alteraria se come,asse a proferi-la denovo (ou, e claro, uma que realmente e alterada ou "corrigi­da"). Nao adianta identificar lapsos verbais por referencia a urnmodelo idealizado de enuncia,ao OU discurso. Alem disso,para entender 0 carater da [ala cotidiana, temos de atenlar paraoutros tipos de [altas que podem intervir. Quais sao as implica­

,oes disso?

~

119

foram da situa,ao terapeutica. No fim de contas, 0 encontro te­rapeutico dificilmente podera ser considerado um exemplo dediscurso comum melhor do que a fala radioffinica. As palavrasdo paciente sao tratadas como tendo uma significa,ao especial,a ser cuidadosamente investigada. Em segundo lugar, os locuto­res de radio e TV sao especialistas na produ,ao de [ala impeca­vel, e espera-se que 0 sejam pela propria natureza da profissaodeles. A principal tarefa do apresentador e recitar 0 script quelhe e fornecido de modo claro e fluido. Somente quando reco­nhecemos ate que ponto e distinta e incomurn essa fala relati­vamente impecavel, e que podemos come,ar a apreciar as con­tingencias da fala corrente do dia-a-dia. Participantes leigos elingiiistas consideram geralmente a fala cotidiana muito mais"perfeita" e "ordenada" do que de fato e. Resurnindo 0 trabalhorecente sobre 0 estudo empirico de conversa,oes, Boomer e La­ver comentam:

CONSClENClA. SELF E ENCONTROS SOCIAlSA CONSTITUJ(;XO DA SOCIEDADE

luta, 0 narrador estava dizendo: "Nao foi urn golpe muitoforte, amigos!"

Nestes casos nao M lapsus linguae envolvido, mas elesassurnem tambem a forma de parapraxis. Algo saiu errado noque 0 locutor pretendia dizer. a segundo grupo de exemplos einteressante porque, se nao conhecessemos as circunstanciasem que ocorreram, pareceria que continham apenas tipicas de­clara,oes "demasiado francas". Nenhurn motivo pode ser impu­tado para elas, a menos que os editores dos programas respon­saveis pelos cortes de urn programa para urn outro tivessem or­ganizado de algurn modo (conscientemente ou nao) as seqiien­cias, a fim de se obterem os efeitos observados. A primeira cate­goria de deslizes e mais dificil de interpretar. Pode ser que setrate de ambigiiidades inconscientemente motivadas. Mas issoparece improvavel. A maior probabilidade esta em que seu ca­rater ambiguo passasse despercebido por locutores e ouvintesse elas fossem proferidas no ambito de conversas correntes, nodia-a-dia. A questao nao e apenas a de seus significados ambi­guos nao serem evidentes de imediato, mas a de, na conversa­,ao cotidiana, outros significados que nao os pretendidos pelosinterlocutores tenderem a ser eliminados pelas caracteristicascontextuais da conversa. as locutores, no caso, esmo aptos a di­rigirem-se a pessoas especificas com quem estao envolvidos,pre-selecionando palavras e frases, para evitar a inclusao deleituras alternativas possiveis. Mas os de radio e televisao naopodem fazer isso, porque falam para urna audiencia generalizada,nao estando essa audiencia co-presente com eles.

Ora, seria claramente um erro considerar a fala radiofoni­ca como tipica da fala em geral. Ha duas razoes para explicarpor que os lapsos verbais se destacam muito mais na fala radio­ffinica do que nas conversas do dia-a-dia. Em primeiro lugar, 0

discurso nao tern lugar entre comunicantes co-presentes. Desem­bara,ado de outros sinais, 0 que e dito torna-se urn fenomenomais "testemunhavel" do que quando esta inserido nas ativida­des cotidianas. Isso tambem e verdadeiro no caso de muitosexemplos de lapsos verbais dados por Freud, filtrados como

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Em primeiro lugar, no tocante aos lapsos verbais, pode serargumentado que Meringer e Mayer nao estavam tao longe daverdade quanta Freud tendia a indicar. Fromkin demonstrouque a pronuncia,ao errada de palavras manifesta propriedadessemelhantes as caracteristicas da produ,ao verbal "correta"".Isso nao prova que essas falhas nao sejam provocadas por esti­mulos inconscientes, mas sugere nao haver geralmente "inter­rup,ao" na monitora,ao reflexiva da produ,ao da fala que ne­cessite for,osamente ser invocada para explicar os lapsos ver­bais. Os fen6menos de pre-soniincias e persevera,oes, segundose presume, tambem estao diretamente vinculados a monitora­,ao reflexiva da fala. As palavras devem ser caracteristicamentetransferidas do cerebro para a articuIa,ao como agrupamentosordenados de modo sintagrruitico, pois caso contrario tais pertur­ba,oes da fala nao ocorreriam.

Uma segunda e vasta categoria de falhas nao se refere aprodu,ao verbal individual, mas ao revezamento dos interlocuto­res. Urn locutor pode come,ar a falar antes que 0 outro concluao que esta dizendo, "sobrepondo-se-Ihe" ou interrompendo-odiretamente; os dois participantes poderao come,ar a falar si­multaneamente; cada urn deles podera recuar ligeiramente emsua fala, produzindo urn hiato indesejavel no fluxo convencio­nal. Tal como no caso dos erros de verbaliza,ao individual, amaloria de tais disjun,oes passa completamente despercebidapor locutores envolvidos em conversa,ao ordinaria. Eles s6 sao"ouvidos" quando, por exemplo, urn segmento de fala e regis­trado para que se Ihes possa deliberadamente prestar aten,ao.Tambem nesse caso a conversa do dia-a-dia difere da fala ra­diof6nica, em que sobreposi,oes, duplos sentidos etc. sao mui­tos perceptiveis. Nas conversas, a sobreposi,ao ocorre com gran­de freqiiencia, de modo que urn interlocutor esta come,ando afalar enquanto 0 outro esta terminando. Mas os participantes fil­tram-nas para que as contribui,oes de cada urn para a conversasejam ouvidas como segmentos separados de discurso.

Em terceiro lugar, a fala defeituosa que e reconhecida comotal envolve usualmente procedimentos corretivos iniciados sejapelo locutor, seja pelos ouvintes. A corre,ao por outros parece

relativamente rara, em parte porque muitas imperfei,oes quesao deslizes fonol6gicos ou sintaticos, quando julgados a partirde urn modelo gramatical idealizado, nao sao ouvidos comotais, mas, tambem em parte, porque 0 tata eexercido a respeitodo que poderia ser interpretado como incompetencia dos locu­tores. 0 trabalho corretivo realizado por estes diz quase semprerespeito mais as dificuldades de revezamento do que aos lap­sos de linguagem.

Estas observa,oes dizem-nos muita coisa sobre a naturezada conversa cotidiana e confirmam-nos que as parapraxis ver­bais nao podem ser interpretadas contra urna concep,ao ideali­zada de fala "correta", A fala dos locutores radiofOnicos diferedo uso cotidiano da linguagem, na medida em que se aproximadessa concep,ao. A fala e as atividades dos locutores de radio etelevisao, quando estao no ar, avizinham-se, de fato, de como avida social hurnana seria se realmente fosse como os retratosque os cientistas sociais objetivistas fazem dela. A maior partedo que e dito foi programado antes da transmissao ou da apre­senta,ao nO video, e s6 pode ser modificado marginalmentepelo agente que obedece ao script. 0 ator apresenta-se, nestecaso, meramente como urn "portador" de padr5es previamenteestabelecidos de organiza,ao social - ou, como diz Goffinan,urn "animador", uma "caixa de ressonancia da qual saem asfalas"", A vasta maioria de situa,oes de fala (e de intera,ao ver­bal) nao sao, simplesmente, desse tipo. 0 carMer "solto" oudefeituoso da fala do dia-a-dia, ou do que se apresenta como talquando comparado com urn modelo idealizado, e realmentegenerico em seu carMer, na medida em que se insere na praxishurnana. Por outras palavras, 0 notavel nao e a falta de poli­mento tecnico na fala, mas 0 fato de as conversas e a (semprecontingente) reprodu,ao da vida social nao terem absolutamen­te nenhuma simetria de forma, Na intera,ao do dia-a-dia, oselementos normativos envolvidos na comunica,ao verbal comoa produ,ao de "boa fala" dificilmente constituirao alguma vezo principal interesse instigador dos participantes. Pelo contra­rio, a fala esta saturada com as solicita,oes e exigencias prati­cas da alua,ao rotineira da vida social.

120 A CONSTITUlt:;AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 121

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Aceitar isso significa remodelar a concep~ilo de Freud,Segundo este, todo lapsus linguae tem uma origem motivada epoden;, em principio, ser explicado, se dispusermos de sufi­ciente conhecimento da constitui~ilo psicol6gica do individuoem questilo, Discernimos claramente ai um quadro implicito defala bem ordenada, da qual os lapsos verbais levam 0 locutor aafastar-se. 0 ponto de vista que eu defendo inverte, com efeito,essa concep9ao. A fala "bern ordenada", no contexte das con­versa~oes do dia-a-dia, pelo menos, e orientada para os envol­vimentos motivacionais gerais dos locutores no decorrer desuas atividades pniticas. A "fala carreta", em cornum com mui­tos outros aspectos de tais atividades, nile e em geral motivadadiretamente - a menos que 0 individuo seja urn locutor de radioou televisilo, Cumpre sublinhar, entre parenteses, que a pertur­ba~ilo da fala pode ocasionalmente ser assim motivada. Em cir­cunstilncias de luto, por exemplo, uma pessoa enlutada quemantivesse padroes ordinarios de produ,ilo verbal poderia serconsiderada urn cora~ilo empedemido e sem sentimentos.Quando existem san~oes sugerindo que as pessoas devem ma­nifestar agita~ilo emocional, as perturba~oes ou as altera,oesna normalidade da fala podem ser uma forma de "revelar" taisestados 16

Se a maioria das formas particulares de uso da linguagemnile silo diretamente motivadas, entilo segue-se que a maioriados lapsos verbais nile podem ser atribuidos amotiva~ilo in­consciente. Onde e que isso nos deixa, pois, a respeito da teoriade Freud das parapraxis verbais? Eu faria a seguinte sugestilo:a interpreta~ilo de Freud s6 se aplica provavelmente em cir­cunstancias algo diferentes daquelas que ele tinha em mentequando a formulou. Na opiniilo dele, os lapsos verbais tendema ocorrer sobretudo em situa~oes fortuitas ou rotineiras, quandonada de importante esta na dependencia do que e dito, Em taisocasi5es, e muito provavel que ocarra, por assim dizer, uma"iITUp~ilo" do inconsciente, perturbando as falas produzidas porurn locutor. Eu sustento que, nessas ocasioes - as quais consti­tuem amaior parte da vic'la social-, as elementos inconscientessilo, na realidade, os menos propensos a influenciar diretamente

Referencias

Consciencia, self e encontros sociais

123CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS

1. Uma analise especialmente litil dessas dificuldades encontra-seem: Thalberg, Irving. "Freud's anatomies ofthe self'. In: Wolheim,Richard. Freud, A Collection of Critical Essays. Nova York,Doubleday, 1974. Uma versao revista desse ensaio foi publicadaem: Wolheim e Hopkins, James. Philosophical Essays on Freud.Cambridge, Mass., Cambridge University Press, 1982.

2. Citado em Thalberg, "Freud's anatomies ofthe self", cit., p. 156.3. Freud, S. An Outiline ofPsychoanalysis. Londres, Hogarth, 1969,

pp.56-7.4, Strawson, P. F. The Bounds ofSense. Londres, Methuen, 1966, pp.

162-70; Anscombe, G. E. M. "The first person". In: Guttenplan,Samuel. Mind and Language. Oxford, Blackwell, 1972; Mackie,

o que e dito, A rotiniza~ilo, envolvendo 0 continuo e repetido"sulcar" de procedimentos familiares em circunstancias de subs­tancial seguran~a ontol6gica, e a principal condi~ilo da efetivamonitora~ilo reflexiva pelos seres humanos de suas atividades.A ansiedade a respeito da forma real do discurso s6 sera inten­sificada quando 0 ator tiver interesse especifico em que aquiloque tem a dizer seja "exatamente correto", lsso e 0 que os locuto­res de radio e televisilo tem de fazer, Provavelmente e esse 0

caso nurna declara~ilo de amor, diferentemente da suposi~ilo deFreud. Podemos facilmente compreender 0 exemplo de "Signo­relli" e 0 esquecimento de nomes pr6prios geralmente comoum fenomeno motivado. Os nomes pr6prios tem urna signifi­ca~ilo especial que outras palavras nile possuem. Pronunciarerradamente 0 nome de alguem ou chamar alguem pelo nomeerrado causa urna ofensa pessoal, 0 que nile sucede no caso deoutras extravagiincias de pronuncia, Assim, existe urna valori­za,iio especial em mencionar nomes de forma correta, e issotalvez signifique que recordar nomes incide mais imediata­mente sobre as fontes de ansiedade do que outros itens lingiiis­ticos. Conforme sublinhei, algo semelhante aplica-se tambemao encontro terapeutico.

IA CONSTITUI<;:AO DA SOCIEDADE122

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6. Ibidem, pp. 60-1.7. Ver: Bruner, 1. S. Beyond the Information Given. Nova York,

Norton, 1973.8. Gibson, J. S. The Ecological Approach to Visual Perception.

Boston, Houghton Mifflin, 1979.9. Neisser, Ulric. Cognition and Reality. Sao Francisco, Freeman,

1976, p. 22. Ver tambem idem. Memory Observed. Sao Francisco,Freeman, 1982; Shotter, John. "Duality of structure' and 'inten­tionality' in an ecological psychology". Journalfor the Theory ofSocial Behaviour, vol. 13, 1983.

10. Neisser, Cognition and Reality, cit., p. 29.11. Wertheimer, M. "Psychomotor coordination of auditory and vi­

sual space at birth". Science, vol. 134, 1962.12. Neisser, Cognition and Reality, cit., p. 72.13. Cherry, E. C. "Some experiments on the recognition of speech,

with one and two ears". Journal of the Accoustical Society ofAmerica, vol. 25,1953.

14. Treisrnan, A. M. "Strategies and models of selective attention".Psychological Review, vol. 76, 1969.

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16. Neisser, Cognition and Reality, cit., pp. 84-5.17. CPST, pp. 120-3.18. Erikson, Erik H. Childhood and Society. Nova York, Norton,

1963, pp. 15-16. [Edi,ao brasileira: Infdncia e sociedade. Trad.de Gildasio Amado. Zahar Editores, 1971.]

19. Ibidem, p. 247.20. Becker, Emest. The Birth and Death of Meaning. Nova York,

Free Press, 1962, p. 95.21. Ver lambom: Erikson, Childhood and Society, cit., p. 249; Sullivan,

Harry Stack. The Interpersonal Theory of Psychiatry. Londres,Tavistock, 1955, cap. 4. Nao aceito a assen;ao de Erikson de queesses fen6menos psico16gicos podem ser diretamente relaciona­dos com a forma de instituivoes sociais.

22. Piers G. e Singer, M. B. Shame and Guilt. Springfield, Addison,1963. Repito aqui algumas observayoes originalmente feitas emrela,ao it teoria do suicidio; cf. SSPT, p. 393, nota 32.

23. Erikson, Childhood and Society, cit., p. 251.24. Ibidem, p. 256.25. Wolf, Dennie. "Understanding others: a longitudinal case study of

the concept of independent agency". In: Fonnan, George E. Actionand Thought. Nova York, Academic Press, 1982.

26. Brazelton, T. B. et alii. "The origins of reciprocity". In: Lewis, M.e Rosenblum, L. The Infant's Effects on the Caregiver. Nova York,Wiley, 1974.

27. Vigotski, L. S. Mind in Society. Cambridge, Harvard UniversityPress, 1978. pp. 20 ss.

28. Erikson, Erik H. Identity, Youth and Crisis. Londres, Faber & Fa­ber, 1968, cap. 5 [Edi<;ao brasileira: Identidade,juventude e crise.Trad. de Alvaro Cabral, Zahar Editores, 1972.]; idem. Identity andthe Life Cycle. Nova York, Intemational Universities Press, 1967.

29. Erikson, Identity and the Life Cycle, cit., p. 19.30. Ver ibidem, cap. 3: "The problem ofego-identity".31. lbidem,p. 102.32. Ver CPST, pp. 123-8.33. Bettelheim, Bruno. The Informed Heart. Glencoe, Free Press, 1960,

p. 14. a trabalho de Goffman sobre "institui,5es totais" coincideem muitos pontos com a amilise apresentada por Bettelheim. Ver:Goffman. Asylums. Harmondsworth, Penguin, 1961. [Edi<;ao bra­sileira: Manicomios, prisoes e conventos. Trad. de Dante MoreiraLeite. Editora Perspectiva, 1974.]

34. Bettelheim, The Informed Heart, cit., p. 132.35. Ibidem, p. 148.36. "Como os velhos prisioneiros tinham aceito, ou sido foryados a

aceitar uma dependencia infantil da SS, muitos deles pareciamquerer sentir que pelo menos algumas das pessoas que estavamaceitando como figuras onipotentes eramjustas e bondosas." (ibi­

dem, p. 172).37. Ver os exemplos coligidos em: Sargant, William. Battlefor the

Mind. Londres, Pan, 1959.38. Merleau-Ponty, M. Phenomenology ofPerception. Londres, Rout­

ledge, 1974. [Ediyao brasileira: Fenomenologia da percep9Q,o.Trad. de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Livraria MartinsFontes Editora Ltda., I~ edi<;ao, 3~ tiragem, 1999.]

39. Ibidem, p. 101.40. Goldstein, L. Language and Language Disturbances. Nova York,

Grune & Stratton, 1948.41. Merleau-Ponty, Phenomenology ofPerception, cit., p. 104.

124 A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADEI

CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 125

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42. Ibidem, p. 109.43. Goffman, Erving. Behaviour in Public Places. Nova York, Free

Press, 1963, p. 17; idem. Interaction Ritual. Londres, Allen Lane,1972,p.1.

44. Cf. Pool, Ithie1 De Sola. The Social Impact of the Telephone.Cambridge, Mass., MIT Press, 1981. [Edi<;ao brasileira: Os efei­tos sociais do telefone. Trad. de Hamar Faul. In: 0 telefone:ontem, hoje e amanhd. Ed. de Telecomunica90es Brasileiras S.A.- Te1ebras, 1979.]

45. Parece ser essa a n09ao predominante, por exemplo, na maioriadas contribui90es para: Ditton, Jason. The View from Goffman.Londres, Macmillan, 1980. Vertambem: Macintyre, A1asdair. AfterVirtue. Londres, Duckworth, 1981, pp. 108-9. Cf. Harre, R. e Se­cord, P. F. The Explanation ofSocial Behaviour. Oxford, Blackwell,1972, cap. 10.

46, Gou1dner, Alvin W. The Coming Crisis of Western Sociology.Londres, Heinemann, 1971, pp. 379-81.

47. CPST,pp. 83-4passim.48. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., 18.49, Goffinan, Erving. Frame Analysis. Nova York, Harper, 1974, p. 252.50. Caillois, Roger. Man, Play and Games. Londres, Thames & Hud­

son, 1962; ver tambem a famosa obra de: Huizinga, Jan. HomoLudens. Londres, Routledge, 1952.

51. Goffman, Frame Analysis, cit., p. 560. Nao discutirei aqui asquestoes epistemo16gicas mencionadas, mas dificilmente resolvi­das nesse livre de Goffrnan. Elas tern muito em comum com aspondera90es de Schutz sobre a natureza das "realidades multi­plas" e com muitas outras correntes da filosofia modema a respei­to das implica90es aparentemente relativistas da media9ao deestruturas de significado. Ver NRSM, cap. 4.

52. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., pp. 156 ss.53. Ibidem.

54. Esse tema, e claro, tern side rnuito explorado. A obra mais conhe­cida e a de Hall, Edward T. The Silent Language. Nova York,Doubleday, 1959; ver tambem, do mesmo autor: The Hidden Di­mension. Londres, Bodley Head, 1966.

55. Sacks, Harvey e Schegloff, Emmanuel A. "A simplest systema­tics for the organization of tum-talking in conversation". Langua­ge, vol. 50, 1974.

56. Cf. Psathas, George. Everyday Language: Studies in Ethnometho­dology. Nova York, Irvington, 1979.

57. Sartre, Jean-Paul. Critique ofDialectical Reason. Londres, NewLeft Books, p. 259.

58. Goffman,Interaction Ritual, cit., pp. 141 ss.59. Habennas, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt,

Suhrkamp, 1981, voU, se<;ao 3.60. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., p. 25.61. Cf. a discussao geral de polidez em: Brown, Penelope e Levinson,

Stephen. "Universals in language use: politeness phenomena". In:Goody, Esther N. Questions and Politeness. Cambridge, Mass.,Cambridge University Press, 1978.

62. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., p. 35. Cf. Blacking,John. The Anthropology of the Body. Londres, Academic Press,1978.

63. "Considero privadas diversas sensa90es fisicas. Se queimei 0 bra­90, considero pessoal a dor e publica a visao da queimadura. Nemsempre e assim. Ha quem julgue poder realmente sentir a doralheia ou pensar diretamente os pensamentos alheios, e creia queoutras pessoas possam senti! 0 que ela sente fisicamente, ou pensarseus pensamentos." Laing, R. D. Selfand Others. Londres, Penguin,1971, p. 34. [Edi<;ao brasi1eira: 0 eu e os outros. 4 '. ed. Trad. deAurea Weissenberg. Editora Vozes, 1978.]

64. Garfinkel, Harold. "A conception of, and experiments with, 'trust'as a condition of stable concerted actions". In: Harvey, O. 1. Mo­tivation and Social Interaction. Nova York, Ronald Press, 1963.

65. Goffman, Erving. Forms of Talk. Oxford, Blackwell, 1981, pp.101 ss.

66. Ibidem, p. 103.67. Ibidem, pp. 70-1.68. Bhaskar, Roy. The Possibility ofNaturalism. Brighton, Harves­

ter, 1979,pp. 51-2.69. Para urn exemplo recente - entre muitissimos outros - ver: Biddle,

Bruce 1. Role Theory. Nova York, Academic Press, 1979.70. CPST, p. 117.71. Ibidem.72. Urn ponto frequentemente sublinhado na controversia sobre teo­

ria do papel na Alemanha, duas decadas atras. Uma contribui93.0que conserva seu interesse e: Tenbriik, F. H. "Zur deutschen Re­zeption der Rollenana1yse". Kainer Zeitschriftfur Soziologie, vol. 3,1962.

73. Cf. Thrift, Nigel. "Flies and germs: a geography of knowledge".In: Gregory, Derek e Urry, John. Social Relations and SpatialStructures. Londres, Macmillan, 1984.

126 A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 127

--l

Page 86: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Notas eri/leas: Freud sabre lapsus linguae

74. Cf. Labov, William. "Rules for ritual insults". In: Sudnow, David.Studies in Social Interaction. Nova York, Free Press, 1972.

75. Wieder, D. Lawrence. "Telling the code". In: Turner, Roy. Ethno­methodology. Hannondsworth, Penguim, 1974.

76. Ibidem, p. 149.

I. Freud, S. Introductory Lectures on Psychoanalysis. Harrnonds­worth, Penguin, 1974, 1975 p. 51.

2. Meringer, R. e Mayer, C. Versprechen und Ver/esen. Vierra, 1895.3. Freud, S. The Psychopathology ofEveryday Life. Hannondsworth,

Penguin, 1975, p. 39.4. Ibidem, p. 40 [po 15].5. Originahnente publicado no artigo de Freud: "The physical mecha­

nism offorgetfulness" (1890); vera Standard Edition, vol. 3.6. Freud, S. The Psychopathology ofEveryday Life, cit., p. 44 [pp.

16-7].7. Ibidem, p. 135 [po 107].8. Boileau, Artpohique, apud ibidem, p. 148.9. Freud, Introductory Lectures on Psychoanalysis, cit., p. 71.

10. Goffinan, Erving. "Radio talk: a study of the ways of our errors".In: Forms ofTalk. Oxford, Blackwell, 1981.

II. Ibidem, p. 242.12. Foram selecionados, sem duvida, por essa razao. A maior parte do

material de Goffman provem de coler;5es de "mancadas" organi­zadas por Kennit Schafer, como Prize Bloopers (Greenwich,Fawcett, 1965).

13. Boomer, Donald S. e Laver, John D. M. "Slips of the tongue".British Journal ofDisorders ofCommunication, vol. 3, 1968, p. 2.

14. Fromkin, Victoria A. "'The non-anomalous nature of anomalousutterances". Language, vol. 47,1971.

15. Goffinan, Forms ofTalk, cit., p. 226.16. Conforme indicado por Goffman, ibidem, pp. 223 ss.

No capitulo precedente, concentrei-me na especifica9aode certas qualidades psicologicas do agente e na analise daintera9ao em situa90es de co-presen9a. 0 posicionamento dosatores em contextos de intera9ao e 0 entrela9amento dessescontextos sao elementares para tais propositos. Mas, para mos­trar como essas materias se relacionam com aspectos maisamplos de sistemas sociais, e necessario considerar como ateoria social deve enfrentar - de urn modo filosOfico mais con­creto do que abstrato - a "situabilidade" da intera9ao no tempoenoespa90.

A maioria dos analistas sociais trata 0 tempo e 0 espa90como meros ambientes de a9ao e aceita irrefletidamente a con­cep9ao de tempo que, enquanto tempo cronometravel, e carac­teristico da modema cultura ocidental. Com a exce9ao dos re­centes trabalhos de geografos - sobre os quais voltaremos afalar daqui a pouco - os cientistas sociais nao foram capazes deconstruir seu pensamento em tomo dos modos como os siste­mas sociais sao constituidos atraves do espa90-tempo. Confor­me indiquei antes, a investiga9ao dessa questao e urna impor­tante tarefa imposta pelo "problema de ordem", tal como foiconceituado na teoria da estrutura~ao. Nao eurn tipo Oil "area"especifica da ciencia social que pode ser explorada ou descar­tada avontade. Trata-se da propria essencia da teoria social, talcomo interpretada a partir da n09ao de estrutura9ao, e tambemdeve ser vista, por conseguinte, como de importfulcia muito con-

Tempo-geografia

Capitulo III

Tempo, espafo e regionalizaftioA CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE128

Page 87: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

* As referencias podem ser encontradas a pp. 187-90.

I) A indivisibilidade do corpo humane e de outras entidades vi­vas e inorganicas nos milieux da existencia humana. A cor­poralidade impoe limita,oes estritas as capacidades de mo­vimento e de percep,iio do agente humano.

siderivel para a conduta da pesquisa empirica nas cienciassociais.

Felizmente, niio precisamos abordar novamente essas ques­tOes. Nestes ultimos anos, ocorreu uma notavel convergenciaentre a geografia e as outras ciencias sociais, em resultado doque os geografos, apoiando-se nas vanas tradi,oes estabelecidasda teoria social, deram contribui,oes significativas para 0 pen­samento social. A bern da verdade, cumpre dizer que a maiorparte de tais escritos, embora contenham ideias de aplica,iiogeral, permanece desconhecida da maioria dos que trabalhamnas restantes ciencias sociais. Algumas dessas contribui,oesencontram-se na obra de Hagerstrand, mas niio esmo confinadas,em absoluto, a seus escritos e aos de seus colegas imediatos'*Em analises anteriores da teoria da estrutura,iio, mencionei 0

significado dessa abordagem sem a confrontar diretamente outentar sublinhar suas limita,oes. Mas e 0 que farei agora nestaexposi,iio ampliada.

o tempo-geografia, tal como formulado por Hagerstrand,adota como ponto de partida 0 proprio fen6meno que tenhoenfatizado bastante: 0 carater rotinizado da vida cotidiana. Porsua vez, isso esm ligado a caracteristicas do corpo humano,seus meios de mobilidade e comunica,iio, e sua trajetoria atra­Yes do "cicio vital" - e, portanto, ao ser humane como "projetobiogrMico". Conforme mencionei antes, 0 estudo de Hager­strand baseia-se principalmente na identifica,iio das fontes decerceamento da atividade humana produzido pela natureza docorpo e pelos contextos fisicos em que a atividade ocorre. Essecerceamento fornece as "fronteiras" globais que limitam 0

comportamento no tempo-espa,o. Hagerstrand formulou-as devanas maneiras diferentes, mas sua enfase caracteristica recaisobre os seguintes fatores2:

131TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALIZAr;:AO

Essas cinco facetas da "realidade tempo-geografica", se­gundo Hagerstrand, expressam os eixos materiais da existenciahumana e estiio subjacentes em todos os contextos de associa­,iio em condi,oes de co-presen,a'. Examinados como recursos(e assim, diria eu, implicados na gera,iio e na distribui,iio depoder), tais fatores condicionam as redes de intera,iio formadaspelas trajetorias da vida diaria, semanal, mensal e total dos in­dividuos em suas intera,oes reciprocas. As trajetorias de agen­tes, de acordo com Hagerstrand, "tern de se acomodar sob aspressoes e as oportunidades que decorrem de sua existenciacomum no espa,o e tempo terrestre"4.

A concep,iio de tempo-geografia generalizada de Hager­strand originou-se numa serie de estudos de lange prazo de urndistrito na Suecia. A area em questiio dispunha de estatisticasdemogrMicas abrangentes, habilitando-o a localizar todos osindividuos que ali tinham vivido e os que tinham entrado esaido da area durante um periodo de cerca de cern anos. Orde­nando esses dados como biografias, Hagerstrand procurou ana-

2) A finitude da dura,iio da vida do agente humano como um"ser para a morte". Esse elemento essencial da condi,iiohumana da origem a certos parametros demogrMicos inevi­taveis de intera,iio no tempo e no espa,o. Por essa raziio,seniio por outra, 0 tempo e urn recurso escasso para 0 atorindividual.

3) A capacidade limitada dos seres humanos de participar emmais de uma tarefa simultaneamente, conjugada ao fato deque toda tarefa possui uma dura,iio. A altemancia exempli­fica as implica,oes desse tipo de limita,iio.

4) 0 fato de que 0 !I).ovimento no espa,o e tamb"m movimentono tempo.

5) A limitada "capacidade de acondicionamento" do tempo-es­pa,o. Dois corpos humanos nunca podem ocupar 0 mesmoespa,o ao mesmo tempo; os objetos fisicos tern essa mesmacaracteristica. Portanto, qualquer zona de tempo-espa,o podeser analisada em fun,iio de restri,oes impostas aos dois ti­pos de objeto que podem ser acomodados dentro dela.

A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE130

Page 88: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

lisa-los como se compusessem trajet6rias de vida no tempo­espa90, que podiam ser mapeadas usando-se uma forma parti­cular de nota9ao. Os padroes tipicos de movimento de indivi­duos, por outras palavras, podem ser representados como arepeti9ao de atividades de rotina atraves dos dias ou de perio­dos mais longos de tempo-espa90. Os agentes movimentam-seem contextos fisicos cujas propriedades interagem com suascapacidades, dadas as restri90es acima apontadas, ao mesmotempo que aqueles interagem uns com os outros. As intera90esde individuos movendo-se no tempo-espa90 compoem "feixes"(encontros ou ocasioes sociais, na terminologia de Goffman)que se re(mem em "esta90es" ou localiza90es espa90-temporaisdefinidas, dentro de regioes circunscritas (por exemplo, casas,mas, cidades, estados, sendo 0 limite externo do espa90 terres­tre a Terra como um todo - exceto para 0 esporadico viajanteespacial na era atual de alta tecnologia). Os dinamicos "mapasespa90-temporais" de Hiigerstrand sao de interesse definitivo efornecem uma forma grMica de releviincia para situa90es mui­to alem daquelas para que foram usadas ate agora.

As Figuras Sa e Sb mostram isso em sua forma mais sim­ples. Dois individuos, digamos, vivem urn quilometro afasta­dos urn do outro num bairro; seus percursos espa90-temporaisao longo do dia poem-nos em contato num encontro de curtadura9ao, digamos, num restaurante ou cafe, ap6s 0 que as res­pectivas atividades divergem de novo. Se as atividades dianas de

1A CONSTITUlr:;:AO DA SOCIEDADE 1 TEMPO, ESPAr:;:O E REGIONALlZAr:;:AO132

espayo

Co-Joca<;.9.0 no tempo-espa«d

Figura Sa

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Tempo-espayo tridimensional

Figura 5b

133

urn individuo especifico sao registradas, e facil construir umacaracteriza9ao grosso modo delas, na medida em que elas com­preendem trajet6rias no tempo e no espa90. Como retrato deuma trajet6ria de vida, isso envolveria padroes generalizados demovimento espa90-temporal dentro do "cicio vital". Uma pes­soa pode viver na casa de seus pais, por exemplo, ate estabeleceruma nova residencia ao casar. Isso pode estar associado comuma mudan9a de emprego, de tal modo que 0 lar e 0 local detrabalho, como "esta90es" ao longo da trajet6ria diaria, sofremuma altera9ao. A mobilidade dentro do mercado habitacional,a separa9ao marital ou a progressao na carreira, entre outrosinlimeros fatores possiveis, podem influenciar as trajet6rias devida tipicas.

Os encontros em que os individuos participam nas trajet6­rias de vida dianas estao sujeitos a restri90es derivadas da listaacima indicada. Hiigerstrand reconhece, e claro, que os agentesnao sao meros corpos dotados de mobilidade, mas seres inten­cionais com prop6sitos ou 0 que ele chama de "projetos". Osprojetos que os individuos procuram realizar, para que sejamconcretizados, tern de utilizar os recursos inerentemente limi­tados de tempo e espa90 a fim de superar as restri90es quedefrontam. As "restri90es de capacidade" sao as do tipo acimaindicado, Algumas afetam primordialmente a distribui9ao detempo: por exemplo, a necessidade de dormir ou de comer a in­tervalos regulares assegura certos limites para a estrutura9aodas atividades cotidianas, As "restri90eS de acoplamento" refe­rem-se aquelas que condicionam as atividades empreendidascom outros. 0 volume de tempo-espa90 disponivel para um in­dividuo num dia e urn prisma delimitando a prossecu9ao deprojetos. Os prismas de conduta diana nao sao apenas fronteirasgeograficas ou fisicas, mas tern "paredes espa90-temporais portodos os lados". Suas dimensoes, e claro, tambem sao fortemen­te influenciadas peio grau de convergencia tempo-espa90 nosmeios de comunica<;ao e transforma<;ao acessiveis aos agentes.

A n09ao de convergencia de tempo-espa90 foi introduzidapor outro ge6grafo, Janelle, para referir-se a "retra9ao" de distiin­cia em fun9ao do tempo necessano para mover-se entre dife-

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rentes localiza,oes·. Assim, 0 tempo preciso para viajar da Cos­ta Leste para a Costa Oeste nos Estados Unidos, em termos demeios existentes, pode ser calculado da seguinte maneira. Ape,a viagem levaria mais de dais anos; a cavalo, oito meses; emdiligencia ou carro,a, quatro meses; por estrada de ferro, em1910, quatro dias; pelas linhas aereas regulares de hoje, cincohoras; pelo mais veloz transporte a jato, pouco mais de duashoras. A convergencia de tempo-espa,o pode ser plotada paradescrever os limites exteriores de prismas diarios. Entretanto, eobvio que existem importantes discrepancias entre e dentro decomunidades sociais em fun,ao das restri,oes II mobilidade e co­munica,ao que afetam diferentes grupos e individuos. A seria­lidade e 0 revezamento esmo incorporados na maioria <las formasde transporte. Assim, por exemplo, urn trem expresso pode ligarduas cidades num tempo de tres horas. Mas a disponibilidadede lugares pode ser limitada, mesmo para aqueles que podem eestao dispostos a pagar. Alem disso, se urna pessoa perde urntrem, e possivel que por varias horas so haja trens locais atepassar 0 proximo expresso, dando II convergencia de tempo­espa,o urn carater "palpitante"'. Finalmente, para os que vivemna maioria das sociedades, e para a maior parte dos dias na vidade urn individuo, a mobilidade tern lugar dentro de prismas detempo-espa,o relativamente restritos.

Palm e Pred fornecem urn exemplo, entre muitos que exis­tern na literatura, de aplica,ao das ideias de Hiigerstrand: aoprisma diario de "Jane", urna mae solteira". A Figura 6 ofereceurna representa,ao do prisma das atividades cotidianas de Jane.Esta nao pode sair de casa para 0 trabalho antes de urna certahora do dia, porque seu filho depende dela para a alimenta,aoe outras necessidades, e porque a linica creche acessivel aindanao esm aberta. Nao tendo carro, por conseguinte, ela enfrentaseveras limita,oes de capacidade e de combina,ao para atingiras duas "esta,oes" da creche (C I ) e de seu local de trabalho(TI)' Sua escolha de empregos e condicionada por essas restri,oese, reciprocamente, 0 fato de ela ter poucas chances de adquirirou manter urna ocupa,ao bern paga refor,a as outras restri,oesque defronta no percurso de seu caminho ao longo do dia. Ela

Hiigerstrand realizou urn esfor,o especial no sentido deempregar 0 tempo-geografia para apreender a serialidade dastrajetorias de vida ou "biografias" dos individuos. Uma biogra­fia, diz ele, e composta de "experiencias e eventos mentais in­temos", "relacionados com a intera9ao entre corpo e fenome­nos ambientais"'. A conduta da vida cotidiana de urn individuoacarreta que ele se associe sucessivamente com conjuntos deentidades procedentes dos cenarios de intera,ao. Essas entida­des sao: outros agentes, objetos indivisiveis (qualidades mate­riais solidas de milieu de a,ao), materiais divisiveis (ar, agua,minerais, produtos alimentares) e dominios. Os dominios refe-

r135

espayoC2 T2L

Figura 6

T, Cj

n~'... --....

tempo

TEMPO. ESPAC;O E REGJONALIZAC;JO

tern de ir apanhar seu filho no meio da tarde, antes de a crechefechar, e esta por isso efetivamente restringida a urn empregode meio periodo. Suponhamos que ela tenha dois empregospara escolher, urn mais bern pago e oferecendo a oportunidadede usar urn carro (Tz) que Ihe possibilitara levar 0 filho a urnacreche (Cz) mais distante de casa. Ao optar pelo emprego maisbern remunerado, ela descobre que 0 tempo consurnido condu­zindo 0 carro ate II creche, indo e vindo do trabalho e depoisvoltando para casa (L), e superior ao que necessita para realizaroutras tarefas imprescindiveis, como fazer compras, cozinhar ecuidar da casa. Portanto, ela pode sentir-se "for,ada" a deixar 0

emprego, aceitando urna alternativa menos bern paga, de meioperiodo, mas muito perto de casa (T ,).

A CONSTlTUJ(;JO DA SOCIEDADE134

Page 90: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Comentarios criticos

1) 0 acondicionamento de materiais, artefatos, organismos e po­pula~6es humanas em assentamentos espar;o-temporais;

2) 0 acondicionamento de atividades consumidoras de tempoem escalas de tempo da popula<;3.o;

3) 0 acondicionamento de feixes de varios tamanhos, quantida­des e dura96es no sistema de popula93.0, ista e, fonnar;3.o degrupos devido as limita<;oes aindivisibilidade e continuidadedos individuos. 1O

137TEMPO, ESPAr;:O E REGIONALlZAr;:AO

pessoa comum" sobre a organiza9ao total de sistemas sociais",Mas 0 tempo-geografia tern algumas deficienci.s muito niti­das, algumas das quais, assim espero, foram postas em eviden­cia no que foi ate agora discutido neste livro.

As principais reservas que se deve ter acerca do tempo­geografia sao as seguintes. Em primeiro lugar, ele opera comurna concep9ao simplista e deficiente do agente hurnano. Aosublinhar a corporalidade do ser hurnano em contextos de tem­po-espa90 estruturados, as ideias de Hiigerstrand condizem es­treitamente com as que procurei desenvolver antes. Mas eletende a tratar os "individuos" como constituidos independente­mente dos cenanos sociais em que passam suas vidas cotidianas.Os agentes sao considerados seres intencionais, no sentido deque suas atividades sao guiadas pelos "projetos" que se esfor­9am por realizar. Mas a natureza e origem dos projetos fica porexplicar. Em segundo lugar, as analises de Hiigerstrand ten­dem, portanto, a recapitular 0 dualismo da a9ao e da estrutura,embora de forma bastante original, devido a sua preocupa9aoprimacial com 0 tempo e 0 espayo. "Esta90es", "dominios" etc.sao tidos como dados, como a resultado de processos nao-in­terpretados de forma9ao e mudan9a institucional. Nao causaestranheza que, nesse tipo de ponto de vista, seja dada pouca en­fase ao carater essencialmente transformador de toda a9ao hurna­na, mesmo em suas formas mais completamente fotinizadas.Em terceiro lugar, nao se justifica ficar exclusivamente con­centrado nas propriedades restritivas do corpo, em seu movimen­to atraves do tempo-espa90. Como eu disse, todos os tipos derestri9ao constituem tamb"m tipos de oportunidade, meios depossibilitar a a9ao, 0 modo especifico pelo qual Hiigerstrandse inclina a conceituar "restri9ao" denuncia, alem disso, a exis­tencia de urn certo elemento de dependencia cultural em seuspontos de vista. Pois as limita90es de capacidade, de conjuga9aoetc. sao tipicamente discutidas por ele em termos de seu fun­cionamento como recursos escassos. Nao e dificil ver aqui,urna vez mais, urna possivelliga9ao com urna versao do mate­rialismo hist6rico. Ha mais do que urna sugestiio, nos escritosde Hiigerstrand, da n09ao de que a .loca9ao de recursos escas-

A CONSTITUlr;:A-O DA SOClEDADE136

rem-se ao que eu prefiro chamar de regionaliza9ao do tempo­espa90: 0 movimento de trajet6rias de vida atraves de cenanosde intera9ao que tern vanas formas de demarca9ao espacial.Mas as propriedades dos dominios podem ser submetidas a es­tudo direto em termos de limita90es de combina9ao que urnadada distribui9ao de "esta90es" e "feixes de atividade" cria paraa popula9ao total, cujas atividades estao concentradas nessesdominios. Assim, a natureza dos padroes sociais em intera9aodentro dos dominios de tempo-espa90 e limitada pela organiza­9aO global das limita90es de capacidade e combina9ao. Exis­tern limita90es "ecoI6gicas" que, como Carlstein tentou mos­trar em detalhe, derivam de tres modos de "acondicionamento":

o interesse do tempo-geografia para a teoria da estrutura­9aO e evidente, por certo". 0 tempo-geografia diz respeito asrestri90es que dao forma as rotinas da vida cotidiana e compar­tilha com a teoria da estrutura9ao uma enfase sobre a impor­tancia do cariter pritico das atividades dianas, em circunstan­cias de co-presen9a, para a constitui9ao da conduta social.Estamos aptos a come9ar dissecando a estrutura9ao de tempo­espa90 dos cenanos de intera9ao que, por mais importantesque sejam os escritos de Goffinan, tendem a apresentar-se nes­ses escritos como milieux dados da vida social. A concentra9aode Hiigerstrand sobre as priticas sociais cotidianas e muitopronunciada e clara; ele deseja USar 0 tempo-geografia, insisteem afirmar, para compreender "0 impacto do dia normal da

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, com=,<:,o0' ='~D' I '~ro. '~'<;O"'",0",=<:'0138

sos do eorpo e seus meios tern urn efeito determinante sobre aorganiza9ao de institui90es sociais em todos os tipos de socie­dade. Em minha opiniao, isso s6 e urna proposi9ao viavel nocaso de sociedades contemporaneas, nas quais se estimula e va­loriza 0 uso "eficiente" de recursos". Finalmente, 0 tempo-geo­grafia envolve apenas urna teoria do poder debilmente desen­volvida. Hiigerstrand fala de "limita90es de autoridade", queassocia as de capacidade e eombina9ao. Mas elas sao formula­das em termos vagos e invocarn urna concep9ao de soma-zerode poder como fonte de limita90es a a9ao. Por outro lado, se 0poder e concebido como generativo, as "limita90es" de que falaHiigerstrand sao todas modalidades para engendrar e sustentaras estruturas de domina9ao.

Para desenvolver tais ideias mais adequadamente em rela­9ao a considera90es exploradas nos capitulos anteriores destelivro, teremos de atentar de novo para a n09ao de "Iugar", talcomo e usada comumente pelos ge6grafos. 0 tempo-geografiade Hiigerstrand sugere urna critiea muito efetiva de "Iugar", noque se refere a demonstra9ao da importiincia, ao estudar-se aconduta social hurnana, da analise da organiza9ao do tempo­espa90. Mas ele se ocupa muito mais com a integra9ao da tem­poralidade na teoria social; nao submete as n090es de lugar oulocaliza9ao a urn rigoroso exame conceptual e usa esses termosde modo relativarnente superficial. 0 termo "Iugar" nao pode serusado em teoria social simplesmente para designar urn "pontono espa90", como tarnpouco podemos falar de pontos no tem­po como urna sucessao de "agoras". 0 que isso significa e queo conceito de presen9a - ou, melhor, de mutualidade de presen­9a e ausencia - tern de ser explicado em termos tanto de sua es­pacialidade quanta de sua temporalidade. Ao desenvolver a teo­ria da estrutura9ao, apresentei duas n090es que se revestem dealgurna importancia aqui: refiro-me aos conceitos de local e deacessibilidade da presen~a envolvidos nas rela90es entre inte­gra9ao social e integra9ao sistemica14.

Os locais referem-se ao usa de espa90 a fim de fomecer oscenarios da interar;ao; estes, por sua vez, sao essenciais paraespecificar sua contextualidade. A constitui9ao de locais certa-

139

mente depende dos fenomenos especialmente destacados porHiigerstrand: 0 corpo, seus meios de mobilidade e comunica9ao,em rela9ao as propriedades fisicas do mundo cireundante. Oslocais asseguram boa parte da "fixidez" subjacente as institui­90es, embora nao exista urn sentido claro no qual eles "deter­minem" essa "fixidez". Eusualmente possivel designar locaisem fun9ao de suas propriedades fisieas, seja como caracteristi­cas do mundo material ou, mais comumente, como combina­90es destas com artefatos humanos. Mas e urn erro supor queos locais podem ser descritos exclusivamente nesses termos - amesma forma de erro cometido pelo behaviorismo a respeitoda descri9ao da a9ao humana. Uma "casa" e apreendida comotal somente se 0 observador reconhecer que eurn Hdomicilio"com urna serie de outras propriedades especificadas pelos modosde sua utiliza9ao na atividade hurnana.

Os locais podem variar desde urn quarto nurna casa, a es­quina de urna rna, 0 pavimento de urna fabrica, aldeias e cida­des, ate as areas territorialmente demarcadas e ocupadas porna90es-Estados. Mas eles sao, tipicamente, regionalizados emseu interior, e as regi5es sao de importancia crucial na consti­tui9aO de contextos de intera9ao. Permitam-me desenvolver urnpouco mais a n09ao de contexto. Uma das razoes para 0 usa dotermo "local" em vez de "Iugar" esta em que as propriedadesdos cenarios sao empregadas de modo cronico por agentes naconstitui9ao de encontros atraves do espa90 e do tempo. Urnelemento 6bvio disso e 0 aspecto fisico do que Hagerstranddesigna por "esta90es" - isto e, "lugares ou pontos de parada",nos quais a mobilidade fisica das trajet6rias dos agentes e sus­pensa ou reduzida por toda a dura9ao de encontros ou ocasioessociais - enquanto locais em que se cia a interse9ao de atividadesde rotina de diferentes individuos. Mas as caracteristicas doscenarios tambem sao usadas, rotineiramente, para constituir 0

conteudo significativo da intera9ao: a demonstra9ao das mUlti­plas maneiras como isso ocorre situa-se entre as mais impor­tantes contribui90es de Garfinkel e de Goffman. Assim, 0 con­texto liga os componentes mais intimos e detalhados da intera-

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140

90S de emergencia incessantemente disponiveis, como guinchosde autom6veis, chaveiros, juizes de turno para arbitrar fian'1as,linhas diretas para assistencia a drogados, envenenados e suici­das. Embora diferentes individuos participem nesses eventos emturnos, as organiza~5es envolvidas estao continuamente ativas. 15

o estudo de Zerubavel da organiza,ao de tempo de urnhospital moderno, onde 0 zoneamento e rigorosamente contro­lado, e pertinente neste ponto. A maioria dos servi,os de assis­t':ncia medica no hospital que ele estudou e executada por pes­soal de enferrnagem em regime rotativo. A maioria dos enfer­meiros trabalha por periodos fixos em alas diferentes, percor­rendo sucessivamente os diversos setores hospitalares, e sendotambem escalados para trabalhar em turnos diurnos e noturnosalternados. 0 cicio de movimento entre enferrnarias coincidecom 0 cicio de trabalho entre dia e noite, de modo que quandoalguem muda de plantao, muda tambem para outro setor. Aprograma,ao dessas atividades e complexa e detalhada. Enquan­to 0 trabalho do pessoal de enfermagem e regulado em perio­dos padronizados de quatro semanas, 0 rodizio de internos eresidentes e variavel. Os rodlzios das enferrneiras come,amsempre no mesmo dia da semana, e como sao de 28 dias, naocoincidem com meses do calenditrio. As atividades das equipesde auxiliares, por outro lado, sao organizadas em fun,ao dosmeses do calendario e, portanto, principiam em diferentes diasdasemana.

As zonas semanais e diarias tambem sao meticulosamentecolocadas em categorias. Muitas rotinas ocorrem a intervalosprecisos de sete dias, especialmente as que envolvem pessoalde enferrnagem. As "folgas" das enfermeiras tambem sao cal­culadas contra urna tabela semana!. Elas podem ser distribui­das em varios segmentos tornados separadamente, mas cadaum destes tern de ser urn multiplo de sete dias, come,ando nurndomingo e terrninando nurn sabado, a fim de se coordenar coma rotatividade das atividades de trabalho. Entretanto, os "diasda semana" naD sao identicos aos dias do "fim de semana" por­que, embora funcionando numa base continua, muitos tipos deservi,o sao reduzidos no hospital durante 0 final da semana.

-,.

141r "WO, ,,,'CO"romN,=a,A CONSTITUlI:;AO DA SOCIEDADE

,ao its propriedades muito mais amplas da institucionaliza,aoda vida social.

A "regionaliza,ao" deve ser entendida nao meramente co­mo localiza,ao no espa,o, mas como referente ao zoneamentodo tempo-espa,o em rela,ao its pritticas sociais rotinizadas. As­sim, uma casa particular e urn local que constitui uma "esta­,ao" para urn vasto conjunto de intera,aes no decorrer de urndia tlpico. Nas sociedades contemponmeas, as casas estao re­gionalizadas em andares, corredores e camodos (salas e quar­tos). Mas os varios camodos da casa estao zoneados de mododiferente no tempo e no espa,o. Os camodos do andar terreosao caracteristicamente mais usados nas horas do periodo diur­no, ao passo que os quartos de dormir sao para onde os indivi­duos se "retiram" anoite. A divisao entre dia e noite, em todasas sociedades, costumava ser talvez a mais fundamental de­marca,ao de zonas entre a intensidade da vida social e sua des­contra,ao - ordenada tambem, obviamente, pela necessidadedo organismo hurnano de periodos regulares de sono. 0 perio­do noturno era uma "fronteira" de atividade social tao demar­cada quanta qualquer fronteira espacial terit alguma vez sido.Continua sendo, por assim dizer, urna fronteira que s6 estitesparsamente estabelecida. Mas a inven,ao de modos podero­sos e regularizados de ilumina,ao artificial ampliou notavel­mente as potencialidades de cenarios de intera,ao durante 0 pe­riodo noturno. Como assinalou urn observador:

Modos de regionaliza,30

A ultima grande fronteira da imigracao humana esta ocor­renda no tempo: uma ampliacao da atividade vigil do come90 aofim das 24 horas do dia. Ha mais trabalho fabril com multiplosturnos, mais cobertura policial, mais usa do telefone a qualquerhora do dia ou da noite. Ha mais hospitals, farrnacias, voas deaviao, moteis, restaurantes "abertos 24 horas", pastas de gasoli­na, ofieinas mecanicas, servicos de locacao de autom6veis, boli­ches e emissoras de radio em atividade permanente. Hi mais servi-

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Figura 7

Uma classifica,ao util dos modos de regionaliza,ao pode­ra ser oferecida pela Figura 7. Entendo por "forma" de regiona­liza,ao a forma das fronteiras que definem a regiao. Na maio­ria dos locais, as fronteiras que separam regiiies tern indicado­res fisicos ou simbolicos. Em contextos de co-presen,a, esses

'\

143TEMPO. ESPAr;O E REGIONALIZAr;AO

indicadores podem permitir que regiiies adjacentes sejam per­meadas por urn maior ou menor nfunero de caracteristicas de"presen,a". Como foi mencionado, em reuniiies sociais a regio­naliza,ao de encontros e usualmente indicada apenas pela pos­tura e posicionamento do corpo, pelo tom da voz etc. Em mui­tas dessas reuniiies, como episodios regionalmente circunscri­tos, os encontros podem ser quase todos de dura,ao muitocurta. Paredes entre quartos, por outro lado, podem demarcar aregionaliza,ao de tal modo que nenhurn dos meios ordinariosde co-presen,a pode penetrar. Eclaro que onde as paredes saofinas podem ocorrer varias especies de interrup,iies ou emba­ra,os ao fechamento de encontros. Aries, Elias e outros apon­taram as maneiras como a diferencia,ao intema das casas dagrande massa da popula,ao, desde 0 seculo XVIII, estiveraminter-relacionadas com aspectos em mudan,a da vida familiare da sexualidade". Antes daquele seculo, as casas dos pobres,na Europa ocidental, tinham freqiientemente urn linico ciimo­do, quando muito dais, nos quais eram vistas varios arranjospara uso comum, inclusive para dermir. As imponentes casasda aristocracia tinham nurnerosos saliies e quartos, mas esteshabitualmente eram ligados diretamente, sem os corredores que,nas casas modemas, permitem tipos de privacidade dificeis deobter outrora em todas as classes da sociedade.

A regionaliza,ao pode incorporar zonas de grande varia,aoem extensao e escala. Regiiies de grande extensao sao aquelasque se dilatam amplamente no espa,o e profundamente no tem­po. Eclaro, a interse,ao de "extensiies" de espa,o e tempo podevariar, mas as regioes de considenivel extensao tendem neces­sariamente a depender de urn alto grau de institucionaliza,ao.Todas as regiiies, tal como sao aqui definidas, envolvem exten­sao tanto no tempo quanto no espa,o. Por vezes, "regiao" podeser usada em geografia para referir-se a urna area fisicamentedemarcada num mapa das caracteristicas fisicas do meio am­biente material. Nao e esse 0 significado que atribuo ao termo,o qual, conforme usado aqui, envolve sempre a conota9ao daestrutura,ao da conduta social atraves do tempo-espa,o. Assim,existe urn forte grau de diferencia,ao regional, em termos derela,iies de classe e de varios outros criterios sociais, entre 0

A CONSTITUJ(;AO DA SOCIEDADE142

duragao

Como os laboratorios estao fechados, por exemplo, 0 pessoaldo hospital sabe que nao pode obter alguns tipos de analises.Procura-se admitir 0 menor nfunero possivel de pacientes eevita-se iniciar novos programas de tratamento para os intema­dos existentes, nos fins de semana. Sabados e domingos saogeralmente dias "sossegados"; a segunda-feira e 0 mais atare­fado. No dia-a-dia da vida hospitalar, a altemancia de "dia" e"noite" assemelha-se it divisao da semana em dias da semana efim de semana. Como 0 autor assinala, devido ao fate de quetrabalhar it noite ainda e considerado incomurn e requer urnesfor,o excepcional, 0 termo usado para Ihe fazer referencia enight duty. Nao existe 0 termo correspondente day duty".

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Regiiies da frente, regiiies de tras

Norte e 0 SuI na Gra-Bretanha. 0 Norte nao e apenas uma areageograficamente delimitada, mas tambem uma area dotada detra90S sociais distintos e estabelecidos desde longa data. Por"carater" de regionaliza9ao entendo os modos como a organi­za9ao tempo-espa90 de locais e ordenada dentro de sistemassociais mais abraogentes. Assim, em muitas sociedades, 0 "Iar",o domicilio, foi 0 foco fisico de rela90es de familia e tambemde produ9ao, esta levada a efeito ou em setores do pr6prio do­micilio ou em hortas ou parcelas de terra de cultivo. Entre­tanto, 0 desenvolvimento do capitalismo modemo acarretouurna diferencia9ao entre 0 lar e 0 lugar de trabalho, diferencia­9ao essa que teve consideraveis implica90es para a organiza9aoglobal dos sistemas de Produ9aO e outras importantes caracte­risticas institucionaisdas sociedades contemporaneas.

145TEMPO, ESPAt:;O E REGIONALlZAt:;AO

aoteriormente como caracteristica da era moderna, Mas a sepa­ra9ao mais radical de relevancia na hist6ria moderna (cujasimplica90es estao hoje muito longe de estar esgotadas) foi aque ocorreu entre os meios de comunica9ao, gra9as ao desen­volvimento dos sinais eletronicos, e os meios de traosporte,tendo estes Ultimos envolvido sempre, de uma forma ou de outra,a mobilidade do corpo humano. A inven9ao do telegrafo ele­tromagnetico por Morse marca uma transi9ao tao distintiva nodesenvolvimento cultural humaoo quanta aroda ou qualquerDutra inovac;ao tecnica.

Os diferentes aspectos da regionaliza9ao de locais acimaindicados configuram de varias maneiras a natureza da dispo­nibilidade de presen9a. Assim, os camodos de uma casa podemassegurar a manuten9ao de encontros em diferentes partes doedificio sem intromissaes mutuas, propiciaodo uma simetriaparticular, talvez, com as rotinas do dia para aqueles que as de­sempenham. Mas a vida em estreita proximidade dentro da casatarnbem significa, obviamente, elevada disponibilidade de pre­sen9a: a co-presen9a e obtida e maotida com muita facilidade.Prisoes e manicomios sao freqiientemente associados a con­tinuidade for9ada de co-presen9a entre individuos que nao es­tao normalmente acosturnados a tais rotinas de vida cotidiana.Os reclusos que compartilham a mesma cela raras vezes esta­do livres da presen9a urn do outro dia e noite, Por outro lado, 0"pader disciplinar" das pris5es, manicomios e outros tipos de"institui9ao total" baseia-se no rompimento da engrenagem dedisponibilidade de presen9a nas rotinas de trajet6rias dimas"de fora". Assim, aos mesmos reclusos que sao fon;:ados aco­presenc;a continua nega-se 0 acesso a encontros faceis com QU­

tros grupos na prisao, muito embora esses outros possam estarfisicarnente apenas do outro lado das paredes da cela, 0 "isola­mento" for9ado de presos em rela9ao ao "mundo exterior", li­mitando as possibilidades de co-presen9a para os que se encon­tram dentro de urn unico local, e, evidentemente, urna caracte­ristica definidora de uma "instituic;ao total".

A importilncia da regionaliza9ao para a estrutura9ao desistemas sociais pode ser ainda mais salientada se observarmoscomo 0 zoneamento e realizado em diferentes cenarios, "Face"

A CONSTITUIt:;A-O DA SOCIEDADE144

Urn aspecto do carater da regionaliza9ao e 0 nivel de dis­ponibilidade de presen9a (presence-availability) associada aformas especificas de local. A n09ao de "disponibilidade depresen9a" e urn complemento essencial da de co-presen9a. 0"estar junto"da co-presen9a requer meios pelos quais os atoressociais possam 'Juntar-se". 0 tempo-geografia de Hiigerstraodcharna nossa aten9ao para alguns dos fatores tipicamenteenvolvidos aqui. As comunidades de elevada disponibilidadede presen9a em todas as culturas, antes de apenas alguns secu­los atras, eram agruparnentos de individuos em estreita proxi­midade fisica. A corporalidade do agente, as limita90es amobilidade do corpo nas trajet6rias da duree da atividade dia­ria, juntarnente com as propriedades fisicas do espa90, assegu­ravam que isso assim fosse. Os meios de comunica9ao eramsempre identicos aos de transporte. Mesmo com 0 usa de cava­los velozes, navios, marchas for9adas etc., a grande distilnciade espa90 significava sempre longa distilncia de tempo. Amecaoiza9ao do transporte foi 0 principal fator que levou asformas espetacuiares de convergencia tempo-espa90 apontada

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e "frente"estao relacionadas, antes de mais nada, com 0 posicio­namento do corpo em encontros. A regionaliza,ao do corpo, taoimportante para a psicanaIise - a qual, na frase de Lacan, ex­plora "aberturas na superficie" do corpo -, tern uma contrapar­tida espacial na regionaliza,ao dos contextos de intera,ao. Aregionaliza,ao encerra zonas de tempo-espa,o, permitindo essefechamento que sejam mantidas rela,aes distintivas entre asregiaes "da frente" e "de tras", as quais sao empregadas pelosatores na organiza,ao da contextualidade da a,ao e da manu­ten,ao da seguran,a ontologica. 0 termo "fachada" ajuda, emalgum ponto, a designar as conexaes entre regiaes da frente ede tras'". Sugere, porem, que os aspectos frontais da regionali­za,ao sao inerentemente inautenticos e tudo 0 que e real ousubstancial esta escondido atras da fachada. A discussao deGoffman sobre as regiaes da frente e de tris tambem tende aapresentar a mesma implica,ao: tudo 0 que esta "encoberto" ex­pressa os sentimentos reais daqueles que desempenham urnpapel "de frente". Embora, obviamente, possa ser com frequen­cia esse 0 caso, penso que esbarramos aqui nas limita,aes domodelo dramamrgico utilizado por Goffinan, especialmente emseus primeiros escritos, e verificamos uma vez mais as conse-

A menos que a pessoa esteja deprimida, sao os Qutros que sequeixam de sua falta de autenticidade ou sinceridade. Econside­rado patognomonico da estrategia caracteristica do histerico que

147TEMPO. ESPAr;O E REGIONALlZAr;AO

quencias da falta de urna interpreta,ao geral da motiva,ao dasrotinas da vida cotidiana. Se os agentes fossem apenas atoresnurn palco, escondendo seus verdadeiros eus atras das mascarasque adotassem para a ocasiao, 0 mundo social estaria, na ver­dade, em grande parte, vazio de substancia. De fato, por quedeveriam dar-se ao trabalho de dedicar a aten,ao que dedicama tais performances? Os atores no teatro autentico tern, afinal,urna motiva,ao para impressionar as plateias com a qualidadede seus desempenhos, uma vez que, como profissionais, saoespecialistas nessas performances. Mas essa e urna situa,ao mui­to particular, nao uma que seja, de fato, tipica da vida social.Considera-la como tal e cometer 0 mesmo erro que 0 proprioGoffman identifica ao analisar a fala. A "fala sem erros" do lo­cutor de telejomal e excepcional e esta vinculada il suposta des­treza de alguem que se especializa na produ,ao de fala fluente;na maioria dos contextos da vida cotidiana, os agentes nao es­tao motivados para produzir esse tipo de fala.

A manuten,ao da seguran,a ontologica nao poderia serconseguida se as regiiies frontais nao fossem mais do que fa­chadas. Toda a vida social seria, no dizer de Sullivan, uma bus­ca desesperada de montar "opera,aes de seguranp" que recupe­ram urn sentido de auto-estima na encena,ao de rotinas. Aquelesque sentem dessa maneira exibem, de forma caracteristica,moldes de ansiedade de urn tipo extremo. Eprecisamente por­que existe, em geral, urn profundo, embora generalizado, en­volvimento afetivo nas rotinas da vida cotidiana, que os atores(agentes) nao se sentem ordinariamente atores (artistas), ape­sar da semelhan,a terminologica entre esses termos. 0 teatropode desafiar a vida social por sua propria imita,ao em panto­mima. Epresumivelmente isso 0 que Artaud quis dar a enten­der ao dizer: "0 verdadeiro teatro sempre me pareceu 0 exerci­cio de urn terrivel e perigoso ato, no qual, ademais, esta erradi­cada a ideia de teatro e de performance [.. .]"19. Considere-setambem a discussao que Laing faz sobre 0 histerico:

Figura 8

A CONSTfTUlr;A-O DA SOCfEDADE

fechamento

regiao da frente

abertura

146

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5uaS ac;5es sejam falsas, histri6nicas, teatralizadas. Por DutrO lade,o histerico insiste com freqiiencia em que seus sentimentos saoreais e sinceros. Somas nos que os achamos irreais. E0 histericoquem insiste na seriedade de sua inten<;ao de suicidar-se, en­quanta nos falamos de urn mero "gesto" suicida sem conseqiit~n­cias. Ele queixa-se de sentir-se despedac;ado. E ejustamente namedida em que nao 0 sentimos despedac;ado, mas simulando audando a entender issa, que nos 0 designamos histerico. [...)20

Assim, a diferencia,ao entre regioes da frente e de tras naocoincide, em absoluto, com a divisao entre 0 fechamento (en­cobrimento, oculta,ao) de aspectos do selfe sua abertura (reve­la,ao, divulga,ao). Esses dois eixos da regionaliza,ao operamnum complicado nexo de possiveis rela,oes entre significado,normas e poder. As regioes de tras formam claramente, comfreqiiencia, urn significativo recurso que tanto os poderososquanto os menos poderosos podem utilizar reflexivamente paramanter urn distanciamento psicologico entre suas propriasinterpreta,oes dos processos sociais e as prescritas por normas"oficiais". Tais circunstancias sao suscetiveis de se aproxima­rem consideravelmente daquelas em que os individuos sentemestar representando papeis em que realmente nao "acreditam".Mas e importante separar dois tipos de situa,ao em que issopode subsistir, porque apenas urna deJas se aproxima bastanteda metMora teatral. Em todas as sociedades existem ocasioessociais que envolvem formas rituais de conduta e expressao oral,nas quais sao fortes as sansoes normativas que regulam 0 "de­sempenho correto". Esses episodios sao de ordinario regional­mente separados do resto da vida social e diferem desta especifi­camente por requererem homologia de desempenho de ocasiaopara ocasiao. Parece que, especialmente nessas circunstlncias, osindividuos sao passiveis de sentir que estao "desempenhandopapeis" nos quais 0 self est:\ apenas marginalmente envolvido.Nesse caso, h:\ grande probabilidade de que ocorra tensao no esti­10 e continuidade do desempenho, e 0 eslilo pode ser muito maisacentuado do que na maior parte da atividade social cotidiana.

As regioes de tras envolvidas em ocasioes sociais rituali­zadas talvez se assemelhem muito, com freqiiencia, aos "basti­dores" de urn teatro ou as atividades off-camera das produ,oescinematograficas e televisivas. Mas esses bastidores podemmuito bern ser 0 "proscenio" no que se refere a extensao dasrotinas comuns da vida social e as conven,oes sociais ordina­rias. Pois esses tipos de ocasiao envolvem desempenhos fixospara publicos, embora nao haja a necessaria implica,ao de queos que estao nas regioes de tras sejam capazes de moderar asusuais cortesias de tato ou "repara,ao". 0 nivel de fechamentoentre regioes da frente e de IDS e, entretanto, provavelmente mui­to elevado, ja que ele implica, muitas vezes, que quanto maisritualizada for a ocasiao, mais tera de ser apresentada como urnconjunto aut6nomo de eventos, no qual os acessorios dos basti­dores sao mantidos inteiramente fora das vistas do publico oudos observadores. Eimportante sublinhar que a distin,ao entreatividades "privadas" e "publicas" envolve muito mais do quese podera depreender da natureza dessas categorias, que apa­rentemente se excluem umas as outras. As ocasi5es rituais sao,distintivamente, eventos prototipicamente publicos, envolvendocom freqiiencia "figuras publicas". Mas seus bastidores naoconstituem urna "esfera privada": as principais figuras do even­to talvez fiquem ainda menos a vontade quando, ao deixarem aarena cerimonial, se movimentarem entre seus inferiores, osindividuos que estao meramente "nos bastidores".

As ocasioes rituais parecem, em sua maior parte, nitida­mente diferentes da gama de circunstilncias nas quais as regioesde tras sao zonas onde os agentes recuperam formas de autono­mia que sao comprometidas ou tratadas em contextos frontais.Sao freqiientemente situa,oes em que sao impostas san,oesaos atores cujo compromisso com aquelas normas emarginalou inexistente. As formas de fechamento e abertura que permi­tern aos agentes desviarem-se dessas normas, ou desrespeita-Ias,sao importantes caracteristicas da dialetica de controle em si­tua,oes que envolvem vigiliincia. Conforme sublinhei em outra

149

Abertura e self

TEMPO. ESPA90 E REGIONALIZA9AOA CONSTITUl9A-O DA SOClEDADE148

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Eu estava trabalhando em urn dos lades do carro, e a tampado porta-malas fechou de repente, provocando apenas escoria­90es na cabeca do colega que trabalhava aminha frente. Ecomose estivesse venda agora a cena. Ele parou de trabalhar e olhOll asua volta para ver se alguem 0 estava observando. Eu fingi naoestar oIhando para ele... e ele entao agarrou a cabeca. A gentepodia ver 0 que 0 camarada estava pensando: "Born, vou cairfora e descansar urn pOlleD de tudo isto." Cambaleou e pude ve­lD olhando asua volta. Voce sabe como eaquila na seeao de pin­tufa. Etinta por tudo quanto elado. Ele nao era trouxa para cairno meio da tinta... de modo que foi cambaleando mais uns dezmetros ate cair corn urn gemido sobre alguns fardos. Tudo aqui-

parte, a vigilancia liga dois fen6menos afins: 0 cotejo de infor­ma~ao usada para coordenar atividades sociais de subordina­dos e a supervisao direta da conduta desses subordinados. Emcada urn desses aspectos, 0 advento do Estado modemo, comsua infra-estrutura capitalista-industrial, distinguiu-se por urnavasta expansao da vigilancia". Ora, por sua propria natureza, a"vigilancia" envolve abertura, tornar visivel. A acumula~ao deinforma~ao revela os padroes de atividade daqueles aos quaisessa informa~ao se refere, e a supervisao direta mantem aber­tamente tal atividade sob observa~ao a fim de a controlar. Aminimiza~ao ou manipula~ao de condi~oes de abertura esta,pois, de ordinario, nos interesses daqueles cujo comportamen­to esta sujeito a vigilancia - cuja extensao depende do grau dedesinteresse ou nocividade que ha no que esses individuos saochamados a fazer em tais cenarios.

As regioes de tras em, digamos, cenarios de se~oes fabrisincluem "recantos acess6rios" - cantinas, banheiros, etc. -, as­sim como as intricadas zonas de deslocamento do contato comsupervisores, que os opecirios podem conseguir mediante movi­mentos e posturas corporais. As descri~oes do usa de tal zo­neamento a fim de controlar acessorios do cenario (e assimsustentar moldes de autonomia nas rela~oes de poder) sao inu­meras na literatura da sociologia industrial. Por exemplo, aquiesta urn operario falando a respeito de urn incidente caracteris­tico nurna fabrica de automoveis:

151TEMPO, ESPAr;O E REGlONALlZAr;AO

As atitudes derrogatorias para com os individuos investi­dos de autoridade sao, e claro, extremamente comuns em taissitua~oes. Entretanto, 0 incidente acima descrito sublinha 0 fatode que urna a~ao maliciosa desse tipo nem sempre esta confi­nada a regiao de tras, a atividades realizadas longe da presen~a

daqueles que sao os alvos.o zoneamento regional de atividades em muitos contextos

desse genero relaciona-se estreitamente com a serialidade dosencontros no tempo-espa~o. Mas, repetimos, nao converge cla­ramente com urna divisao entre atividade privada e atividadepublica. 0 operario nao fez a menor tentativa de esconder deseus colegas que 0 ate de simula~ao de acidente grave tinha porobjetivo escapar temporariamente as pressoes da linha de mon­tagem. Tais diferencia~oes frente/atras - as quais ocorrem co­murnente em circunstfulcias de acentuados desequilibrios depoder - podem distinguir-se, em geral, daquelas em que asconven~oes situacionais da intera~aoestao enfraquecidas ou sepermite que degenerem. Essas sao as situa~oes em que a frente,os detalhesde controle corporal e alguns procedimentos de "re­para~ao" da solicitude para com os outros podem ser todosrelaxados. Pelo menos urna conota~ao de "privacidade" e0 iso­lamento regional de urn individuo - ou de individuos, pois aprivacidade nao parece implicar inevitavehnente' a solidao - dasexigencias ordinarias da monitora~aode a~ao e:gesto, median­te 0 qual a expressao de tipos "infantis" de conduta pode ocor­rer. 0 zoneamento do corpo parece estar associado na maioriadas sociedades (em todas?) ao de atividades no tempo-espa~o

nas trajetorias do dia dentro de determinados locais. Assim, 0

ate de comer OCOffe geralmente em cenarios definidos em tem-

10 era divertido abe9a. Urn dos colegas viu 0 cara cair e parou alinha. 0 supervisor veio correndo. "Quem mandou parar a linha?"Pos a linha em funcionamento de novo e tivernos de trabalhar.Com menos urn. Levaram urn tempao para tirar 0 cara dali. Naoconseguiam fazer a maca chegar ate onde ele estava. Mais demeia hora se passou antes de 0 apanharem. Ali estava ele estira­do ao comprido, abrindo vez por outra urn olho para espiar rapi­damente asua volta: "0 que e que esta acontecendo?"22

A CONSTITUIr;AO DA SOCIEDADE150

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irreverencia, comentarios sexuais abertos, formas elaboradas demalestar, [...Jvestuario informal e chocante, postura relaxada empe ou sentado, usc de linguagem dialetal ou de cala-a, resmungare gritar, agressividade jocosa e zombaria infantil, falta de respei­to pele Dutro em atos secundarios mas potencialmente simb6li­cos, auto-envolvimentos fisicos banais, como sussurrar, assobiar,mascar, mordiscar, arrotar e flatulencias24 •

Longe de representar urna diminui,ao de credito, esses tipos decomportamento poderao ajudar a refor,ar a confian,a basicana presen,a de intimos, construida originalrnente em rela,ao asfiguras parentais. Eles sao man:ados nao So pela especie desurto de ansi'ldade pravocado por situa,oes criticas, mas tam­bern pelo inverso - a dissipa,ao de tensoes resultantes das exi­genciaS de rigido contrOle corporal e gestual em outras esferasda vida cotidiana.

pos definidos, e tambem e "publico" no sentido estrito de en­volver reunioes de membras da familia, amigos, colegas de tra­balho etc. Vestir-se ou enfeitar-se pode nao ser universalmentetratado como atividade "privada", mas pelo menos na maioriadas culturas assim parece ser considerado. Apesar das afirma­,oes de Elias de que a atividade sexual era realizada aberta­mente na Europa medieval", a sexualidade genital parece estar~oneada em todos os lugares como urn fenomeno da regiao detras, com muitas varia,oes, e claro, em moldes de comporta­mento publico e privado intersecionados.

Erazoavel supor que as interse,oes entre regionaliza,ao eas expressoes de cuidado corporal estao vinculadas intricada­mente a manuten,ao do sistema de seguran,a basica. As regioesde tras, que permitem ao individuo 0 isolamento completo dapresen,a de outros, podem ser menos importantes do que aque­las que permitem a expressao do "comportamento regressivo"em situa,oes de co-presen,a. Essas regiOes podem permitir

153TEMPO. ESPA<;O E REGIONALlZA<;AO

Regionaliza,ao generica

As diferencia,oes entre fechamenfo e abertura, regi5es dafrente e de tras, aplicam-se a grandes periodos de tempo-espa,o,nao so nos contextos de co-presen,a. Evidentemente, e impra­vavel que sejam reflexivamente monitorados de forma diretapor aqueles a quem afetam, embora isso possa acontecer. Aregionaliza,ao dentra de areas urbanas, em sociedades con­temporaneas, tern sido bastante estudada desde 0 trabalho pio­neiro dos sociologos Park e Burgess, de Chicago. Na maioriadas sociedades ocidentais, 0 zoneamento das cidades em bair­ras com caracteristicas sociais acentuadamente diferentes efortemente influenciado pela opera,ao dos mercados imobilia­rios e pelas separa,oes entre moradias de propriedade indivi­dual e setores habitacionais controlados pelo Estado. as bair­ras podem nao ser tao simetricamente zoneados quanta sugeri­ram alguns dos analistas urbanos "ecologicos", mas sua distri­bui,ao tern a conseqiiencia de criar varios tipos de contrastesfrente/atras. As areas industriais, nas cidades setentrionais daInglaterra, foram outrora as configura,oes mais visiveis doambiente construido - por assim dizer, fabricas e usinas orgu­lhosamente exibidas. Mas a tendencia do planejamento urba­no, em allOS recentes, tern side a de encarar essas areas comodesagradaveis a vista, como regioes de tras a serem escondidasem enclaves fechados ou transferidas para os arredores dascidades. as exemplos podem ser facilmente multiplicados. aacesso daqueles que vivem em setores mais prosperas dos mer­cados imobiliarios a transferencia relativamente facil de pra­priedade esta subentendido na "fuga para os subUrbios", con­vertendo os centros das cidades de regioes de exibi,ao frontalem regioes de tras, caracterizadas pela decadencia urbana, evi­tadas pelas "classes respeitaveis". E possivel tomar "invisi­veis" as areas de gueto por seu fechamento regional em bairrosde taxas muito baixas de transferencia de prapriedade e de mo­bilidade diaria para dentro e para fora. Como sempre, vitiostipos de fenomenos tempo-serie estiio subentendidos em tal re­gionaliza,ao espacial.

A CONSTlTUI<;AO DA SOClEDADE152

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Figura 9

A regionaliza9ao atraves de grandes extensoes de tempo­espa90 tern sido analisada por nurnerosos autores em termos deno~6es familiares, como "desenvolvimento desigual" l e de dis­tin90es entre "centro" (ou "nucleo") e "periferia", Essas no­90es, entretanto, podem ser aplicadas a toda a gama dos cena­rios de locais, dos grandes aos pequenos, Em vez de examinaraqui 0 tema do desenvolvimento desigual, farei a diferencia9aode centro e periferia relacionando-a com a inser9ao no tempo,Se a economia mundial e as cidades tern seus centros, isso tam­bern ocoue com as trajet6rias dimas de atores individuais, Emsociedades modernas, pelo menos para a maioria dos indivi­duos do sexo masculino, 0 lar e 0 local de trabalho formam osdois principais centros em que as atividades do dia tendem aestar concentradas, Os locais tambem tendem a estar regional­mente centrados, Alguns comodos nurna casa, como os quartospara h6spedes, por exemplo, podem ser usados apenas "perife­ricamente"~

As distin90es centro/periferia tendem com freqiiencia aser associadas it continuidade do tempo", Aqueles que ocupamcentros "estabelecem-se" como tendo controles sabre recursosque lhes permitem manter diferencia90es entre eles pr6prios eos que estao nas regioes perifericas, Os estabelecidos podemempregar varias formas de fechamento social" para manter a

Tempo, espa90, contexto

155TEMPO, ESPA90 E REGIONALIZA9AO

Permitam-me a esta altura oferecer urn resurno dos princi­pais pontos tratados ate aqui neste capitulo, Estivemos focali­zados na contextualidade da vida social e das institui90es so­ciais. Toda a vida social ocoue em - e e constituida por - inter­se~6es de presenc;a e ausencia no "escoamento" do tempo e na"transforma9ao gradual" do espa90. As propriedades fisicas docorpo e os milieux nos quais ele se movimenta inevitavelmenteconferem avida social urn carater serial, e limitam os modosde acesso a outros "ausentes" atraves do espa90, 0 tempo-geo­grafia fornece urn importante modo de nota9ao da interse9aode trajet6rias tempo-espa90 na atividade do dia-a-dia. Mas eleprecisa ser inserido numa teoriza9ao mais adequada tanto doagente quanta da organiza9ao dos cenarios de intera9ao. Aopropor as ideias de local e de regionaliza9ao, quero formularurn esquema de conceitos que ajudem a classificar a contextua­lidade como inerentemente envolvida na conexao de integra­9aO social e de sistema28

distancia de outros que sao efetivamente tratados como inferio­res ou "estranhos".

As na90es industriais "estabelecidas" do "nucleo" ociden­tal mantem urna posi9ao central na economia mundial, combase em sua precedencia temporal sobre as sociedades "menosdesenvolvidas", A regionaliza9ao geopolitica do sistema mun­dial pode ser cambiavel - com, por exemplo, as transferenciasde centros de produ9ao manufatureira para zonas outrora peri­fericas no Oriente -, mas 0 fator de prioridade no tempo influen­ciou ate agora de forma decisiva a preeminencia no espa90, Emna90es-Estados, a regionaliza9ao centro/periferia parece estarassociada em toda parte it existencia de "estabelecimentos" quese situam no nucleo da estrutura9ao das classes dominantes",Obviamente, existe uma variedade de rela90es complexas en­volvidas nesses fenomenos, e eu ofere90 esses exemplos comopuramente ilustrativos,

A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE

I estabelecidos I

regi6es regi6escentrais perifericas

Iestranhos I

154

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As tecnicas grificas desenvolvidas em tempo-geografia japrovaram sua fecundidade em muitas areas de pesquisa. Naoexiste razao alguma para que aqueles que trabalham numagama de campos nas ciencias sociais nao adotern e adaptem 0

metodo de nota,ao de Hiigerstrand. Mas as limita,oes de tem­po-geografia, como indicamos acima, tambem devem certa­mente ser levadas em conta. Alem disso, 0 "tempo marcado pelore16gio" nao deve ser aceito simplesmente como uma dimen­sao indiscutivel da constru,ao de modelos topogrificos, masser ele proprio considerado uma influencia socialmente condi­cionada sobre a natureza das trajetorias de tempo-espa,o per­corridas por atores em sociedades modernas. Essa questiio tal­vez pare,a ser uma banalidade, mas realmente esta muito longede 0 ser. 0 que se coloca nao sao apenas diferentes meios decalcular e medir 0 tempo, mas formas divergentes da estrutura­,ao das atividades diarias.

Considere-se, por exemplo, 0 amplamente conhecido es­tudo de Bourdieu do tempo e da medi,ao do tempo em Cabilia.Nessa regiao, considera-se que 0 ano corre do outono para 0

verao e 0 dia das primeiras horas da noite para 0 meio-dia. Esseesquema expressa, porem, uma concep,ao de tempo como eter­na recorrencia, 0 que, par sua vez, e parte da composir;ao basi­ca das atividades do dia-a-dia. A noite e, simbolicamente, umtempo de morte, marcado por tabus regulares - contra tomarbanho, entrar em contato com extensoes de agua, olhar numespelho, nntar os cabelos ou tocar em cinzas29 • A manha nao eapenas 0 "romper do dia", mas um triunfo na luta entre 0 dia ea noite: estar "na manha" e estar aberto para a luz, para os bene-

ficios que Ihe estao associados. A "abertura" do dia e, pois, umtempo para sair, quando as pessoas deixam suas casas a fim detrabalhar nos campos. Levantar cedo significa colocar-se sobauspicios favoraveis, "homar os anjos". Nao significa apenasuma transi,ao no tempo, mas tambem uma regulariza,ao deeventos e praticas. Nao obstante, 0 potencial criativo do dia deveser fomentado pela magia, ou oUtras for,as malignas podemintervir, sobretudo apos 0 zenite da ascensao do sol, ja que,depois disso, 0 dia entra em declinio, assinalando 0 retorno imi­nente da decadencia e deteriora,ao da noite, "0 paradigma detodas as formas de declinio"".

Com esse exemplo em mente, permitam-me desenvolveralgumas das principais no,oes consideradas neste capitulo,adotando como ilustra,ao a escolaridade em sociedades con­temporaneas. Nao hi duvida de que 0 mapeamento dos padroesde tempo-espa,o obedecido por alunos, professores e pessoaladministrativo numa escola e um recurso topologico util com 0

qual come,ar 0 estudo dessa escola. Contudo, em vez de usaras formas exatas de representa,ao formuladas por Hiigerstrande seus colaboradores, proponho enfatizar 0 "tempo reversivel"da conduta rotineira cotidiana. Hiigerstrand retrata habitual­mente as trajetorias tempo-espa,o como tendo um movimento"linear" ao longo do dia. Mas uma representa,ao mais apuradado carater repetitivo da vida social cotidiana sera fornecida seconsiderarmos que a maioria dos trajetos de espa,o-tempo dia­rios envolvem um "retorno". Em vez de se adotar a forma daFigura lOa, poderiamos tomar como exemplar a da Figura lOb.

A Figura lOa e do tipo preferido por Hiigerstrand, no qualolhamos 0 tempo-espa,o "lateralmenle" e a seta do "tempo"tra,a uma sequencia temporal especifica (geralmente equiva­lente ao dia de trabalho). Proponho que nao se abandone essetipo de nota,ao, mas que seja complementado - conceptual­mente, por certo, se nao figurativamente - com a Figura lOb,na qual olhamos, por assim dizer, "de cima para baixo" em vezde lateralmente. As linhas marcadas com as setas referem-seao montante de tempo, medido cronologicamente, consumidono movimento entre "esta,oes", no decorrer de um determina-

156 A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE

percursos espa90-temporais diarios

distribuiry8,O de encontros

regionallza9ao de locais

contextualizaryao de regi6es

intersecao de locais

l ."

TEMPO. ESPAr;O E REGlONALlZAr;AO 157

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do dia, por um individuo tipico; 0 grau de alongamento dosblocos indica quanta tempo e consumido num local especifico.Assim, 0 dia de uma crian,a durante 0 ano letivo assemelha-seao esquema indicado no diagrama. A crian,a pode passar tresperiodos distintos no lar (L) - dormindo ai, desde a noite ate demanha cedo, ai regressando depois da escola (E), no fim datarde, e regressando ai de novo apes ter ido ao cinema (C), nocome,o da noite. Alguns aspectos do dia da crian,a sao, semdtivida, marcadamente rotinizados (a viagem de ida e volta daescola), ao passo que outros (ida ao cinema), nao tanto. astipos de atividades mais rotinizados podem ser representadoscomo um perfil de trajetos tempo-espa,o inseridos em temporeversivel.

Nos termos de Hiigerstrand, uma escola e uma "esta,ao"situada nos percursos convergentes tra,ados por grupos deindividuos no decorrer do dia. Ele esta certo ao sublinhar queas condi,oes que possibilitam aos individuos reunirem-se numtinico local nao podem ser aceitas como cabais, mas precisamser examinadas diretamente. Mas um local e, evidentemente,mais do que urn mero ponto de parada. A tendencia das "esta­90es" ede serem caixas-pretas, por assim dizer, no tempo-geo­grafia, porque 0 principal foco recai sobre 0 movimento entreelas. A escola, vista como um tipo de organiza,ao social, con­centrada num local de caracteristicas fisicas definidas, terncaracteristicas que podem ser entendidas em fun,ao de tres

159TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALlZAr;:AO

aspectos basicos: a distribui,ao de encontros atraves do tempoe do espa,o ocorrendo dentro dela, a regionaliza,ao interna queexibe e a contextualidade das regioes assim identificadas.

As escolas modernas sao organiza,oes disciplinares, e seustra,os burocraticos claramente influenciam e sao influenciadospelas regioes que elas contem. Como todas as formas de orga­niza,ao disciplinar, elas funcionam dentro de fronteiras fecha­das, estando seus limites fisicos claramente separados da inte­ra,ao cotidiana que se desenrola do lado de fora. Uma escola eurn "recipiente", que gera poder disciplinar. A natureza fechadada vida escolar possibilita uma estrita coordena,ao dos encon­tros seriais em que os escolares estao envolvidos. as segmen­tos de tempo consumidos pelas crian,as em seu interior estaoespacial e temporalmente fechados por completo a encontrosexteriores potencialmente importunos. Mas isso tambem e ver­dade, pelo menos habitualmente, com rela,ao as divisoes entrediferentes classes. As escolas estiio internamente compartimen­tadas. Pode haver nelas algumas areas, e alguns momentos, emque tendem a ocorrer formas heterogeneas ou imprecisas deintera,ao - por exemplo, no inicio e no final de uma aula. Mas,na maior parte, a distribui,ao dos encontros contrasta de ma­neira notoria com ados setores da vida social em que a regula­,ao normativa de atividade e mais solta. A distribui,ao espa­cial disciplinar faz parte do carater arquitetural das escolas,tanto na separa,ao das salas de aula quanta nos intervalos regu­lares entre as carteiras que freqiientemente se verificam dentrodelas. Nao M dtivida de que divisoes espaciais desse generofacilitam a especifica,ao e a aloca,ao rotinizada de tarefas.

a horario escolar e fundamental para a mobiliza,ao deespa,o como trajetos espa,o-temporais coordenados. as admi­nistradores escolares nao enfrentam normalmente os mesmosproblemas de "acondicionamento" de seus congeneres em hos­pitais. Mas, como todas as organiza,oes disciplinares, as esco­las operam com uma economia precisa de tempo. Ecertamentecorreto apontar as origens da disciplina escolar, em parte, naregula,iio de tempo e espa,o possibilitada por uma transi,iiogeneralizada para 0 "tempo cronometrico". A questiio nao esta

Figura lOb

espar;o

c/o\jJ'~

espayo

espal(o

A CONSTITUIr;:A-O DA SOCfEDADE

espayo

Figura lOa

158

tempo

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Soa a campainha das nove haras; cerca de meia classe estapresente, a maioria lendo livros. 0 professor entra com passos fir­mes: "Born dia... ah, excelente,ja retiraram os livros." 0 profes­sor senta-se asua mesa, acomoda-se, retira a lista de presen9as.Nesse meio tempo, a maior parte das outras crian9as entrou na

em que 0 uso geral de relogios facilita as divisoes exatas dodia, mas, isso sim, em que 0 tempo entra nas atribui,oes de cal­culo da autoridade administrativa.

As caracteristicas contextuais das salas de aula, enquantoprincipais "areas de aplica,ao" do poder disciplinar, variam mui­to, obviamente. Mas em formas mais rigidas de distribui,aoespacial, a especifica,ao de posicionamento do corpo, movi­menta,ao e gestos, esta geralmente organizada com precisao.o posicionamento espacial de professor e alunos, no contextode urna sala de aula, e muito diferente do da maioria das outrassitua,oes em que ocorrem envolvimentos face a face. Comefeito, ele denota que haveria urn colapso do controle do pro­fessor se assim nao fosse. As aparentes minucias de postura emobilidade corporal para as quais Goffinan chama a aten,aoestao, urna vez mais, longe de ser incidentais neste caso.

A sala de aula, tal como a escola, e urn "recipiente de po­der", mas nao urn que meramente produza "corpos doceis" emgrande quantidade. Os contextos de co-presen,a, conforme jaenfatizei, podem ser descritos como cenarios, e estes tern deser reflexivamente ativados por figuras de autoridade no pro­cesso de fazer com que essa autoridade conte. A disciplina atra­Yes da vigiW.ncia constitui urn veiculo importante para gerar 0

poder; nao obstante, ela depende de urna complacencia maisou menos continua daqueles que sao seus "suditos". A obten­93:0 dessa complacencia e, em si mesma, urn cometimento fni­gil e contingente, como todo professor sabe. 0 contexto discipli­nar da sala de aula nao e apenas urn "pano de fundo" para 0 quese desenrola na classe; estil mobilizado dentro da dialetica decontrole. Vma classe escolar e urn envo1vimento face a face quetern de ser reflexivamente administrado, como qualquer outro.

Considere-se 0 seguinte fragmento de intera,ao, descrito ediscutido por Pollard:

o que e que estil acontecendo neste caso? Temos de reco­nhecer, como 0 professor, que a chamada reveste-se de urn sig­nificado particular para a ordena,ao das atividades do dia. Eurn indicador que assinala a abertura dos parenteses numencontro e a primeira salva disparada numa batalha diariamen­te travada entre professor e aluno. Aquele reconhece ser essa aprimeira ocasiao para testar 0 estado de ilnimo das crian,as, eestas fazem 0 mesmo a respeito dele. A manuten,ao do contro­Ie de dire,ao pelo professor depende de se assegurar que ascrian,as assurniram as rotinas envolvidas no cenario da sala deaula. Espera-se que as crian,as, ao entrarern pela manha, sen­tem-se nos lugares que Ihes foram designados, retirem de suas

161

sala. As que chegaram par ultimo conversam, trocam figurinhasde futebolistas, olham ocasionalmente de soslaio para 0 professor.

PROFESSOR: - Muito bern, vamos fazer a chamada. Apres­sem-se e tratem de sentar-se, voces, maniacos do futebol... JiI. seique 0 Manchester United voltou aperder.

TORCEDORES DO MANCHESTER UNITED: - Ah, sim?Mas e1es ainda sao melhores do que 0 Liverpool.

PROFESSOR (tom sarcastico na voz): - Reahnente? Deveser todo 0 espinafre que eles nao comem. Born... Martin... Doreen...Alan... Mark ifaz a chamada e as crian{:Qs vGo respondendo).

Uma crian<;a chega atrasada, expressao cabisbaixa, e cami-nha para 0 seu lugar.

As outras olham para ela e nem.CRIANCA: - Ei, Duncan, 0 que eque estil. fazendo?PROFESSOR: - Duncan, venha ate aqui. Voce esti atrasa-

do de novo; tres minutos de atraso para ser exato. Por que?DUNCAN: - Desculpe, senhar.PROFESSOR: - Eu perguntei "Por que?"DUNCAN: - Adormeci.PROFESSOR: - Bern, e agora, esti icordado?(As Gulras crian{:Qs riem).DUNCAN: - Estou, sim senhor.PROFESSOR: - Nesse case, ficaril mais tres minutos depois

das quatro, e espero que nao adorrne<;a outra vez depois disso.Mais risos. Duncan senta-se. 0 professor terrnina a cha­

mada31•

TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALIZAr;:AO

Ti

A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE160

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162

Contra 0 "micro" e 0 "macro":integra9iio social e de sistema

As considera90es acima revestem-se de certa importiinciano exame das rela90es entre integra9ao social e integra9ao desistema. Nao emprego os termos mais familiares, estudo "mi-

163TEMPO, ESPA<;:O E REGIONALIZA<;:A-O

9ao interna da escola e em sua situa9ao de local dentro deoutros locais. Dentro da escola, a concentra9ao de autoridadedisciplinar em salas de aula isoladas e a condi9ao do alto nivelde controle sobre 0 posicionamento corporal e a atividade quepode ser realizada. Mas essa circunstancia tambem atua contraa supervisao direta do inspetor. 0 diretor esta investido de"autoridade" sobre 0 pessoal docente, mas essa autoridade naopode ser exercida nos mesmos moldes em que os professores seempenham em controlar a conduta das crian9as em suas clas­ses. Portanto, as escolas tendem a possuir urna "linha dupla"nitidamente oposta de autoridade. 0 controle que os professo­res procuram exercer sobre seus alunos e imediato, envolvendoa continua presen9a face a face do professor com as crian9as. Asupervisao da atividade dos professores, entretanto, e necessa­riamente indireta e processa-se por outros meios. Pode-se ar­riscar a conjetura de que somente em organiza90es em que umaconsidenivel soma de autonomia e concedida em rela9ao asu­pervisao direta torna-se possivel manter uma linha graduada deautoridade. A natureza fechada da escola, e sua clara separa9aoem tempo e espa90 do que se passa em locais circunjacentes,tambem inibe, porem, 0 controle oriundo do exterior. Assim,inspetores podem visitar as escolas regularmente para fiscali­zar seu funcionamento; juntas de curadores e associa90es depais podem fazer sentir seu peso para influenciar orienta90espoliticas que ajudem a modelar a vida da escola. Mas e intrin­seco do poder disciplinar que 0 que se passa no "recipiente depoder" da escola possui urn grau significativo de autonomiaem rela9ao as proprias agencias exteriores cujas caracteristicase atitudes expressa.

A CONSTITUII;:AO DA SOCIEDADE

bolsas os livros de leitura e os coloquem sobre os tampos dascarteiras, e respondam achamada. Pollard interpreta os grace­jos e provoca90es do professor como urna performance frontal,com a qual pretende fixar 0 tom do dia como de trabalho coo­perativo. Entretanto, essa estrategia tem seus riscos, como eindicada pela resposta a entrada tardia de urna das crian9as.Um outro sente-se capaz de "mexer" com 0 retardatitrio. 0 pro­fessor reconhece imediatamente ser esse 0 primeiro teste dodia, com respeito ao qual sua autoridade superior deve ser de­monstrada. A reprimenda a Duncan em tom bem-hurnoradomescla urn apelo com a firmeza, urna tMica que os risos dascrian9as provaram ser bem-sucedida. Assim, os acontecimen­tos do dia tiveram seu prosseguimento. Se 0 professor tivessesido mais abertamente disciplinador e punido com muito rigoro faltoso, a rea9ao teria sido julgada severa demais pelo restodas crian9as. Entao, 0 resultado poderia ter sido urna escalada deamea9a e puni9ao menos eficaz do que 0 "pacto de esfor90s"que professor e alunos concluiram implicitamente como partede uma atmosfera de maior coopera9ao.

A propria natureza das salas de aula, nas quais a maioriadas coisas que professores e alunos fazem sao visiveis a uns eoutros, indica que as regioes de tris possuem geralmente umaforte defini9ao temporal e espacial. Para crian9as, elas situam-sealgures, ao longo das estreitas fronteiras temporais entre clas­ses, quer estas envolvarn ou nao 0 movimento fisico de urnasala de aula para outra. Embora 0 peso da disciplina normal­mente recaia sobretudo sobre as crian9as, ele e por vezes sentidode maneira mais opressiva pelos professores. Estes contamnormalmente com urna regiao de tras para a qual podem reti­rar-se, a sala dos professores, na qual as crian9as ordinaria­mente nao entram. A sala dos professores e, sem duvida, urnlugar para desabafar e relaxar, mas, tambem, onde as tMicas deensino tendem a ser interminavelmente discutidas, formuladase reformuladas.

Eda natureza das organiza90es disciplinares que a intensi­dade da vigiliincia interna iniba 0 controle direto do exterior.Isso constitui urn fen6meno que pode ser visto na regionaliza-

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crossociol6gico" e estudo "macrossocioI6gico", por duas raz5es:uma, porque esses dois generos de estudo silo com freqiienciamutuamente contrapostos, com a implica,ilo de que temos deescolher entre eles, considerando que urn e, de algum modo,mais fundamental do que 0 outro. Na recusa deliberada deGoffinan de se preocupar com quest5es de organiza,ilo e hist6­ria social em grande escala, por exemplo, parece despontar aideia de que a realidade essencial da vida social sera encontra­da no que ele designa as vezes por microssociologia. Por outrolado, os defensores de abordagens macrossociol6gicas silo pro­pensos a considerar que os estudos da atividade social no dia-a­dia silo dedicados a aprecia,ilo de trivialidades; as questoesmais siginificativas silo as de mais amplo espectro. Mas essetipo de confronto ecertamente urna guerra simulada, se equechegou a ser ao menos isso. De qualquer modo, nilo penso quecaiba discutir se urn estudo tern prioridade sobre 0 outro. Umasegunda razilo pela qual a divisilo micro/macro tende a suscitarassocia,oes infelizes esta em que, mesmo quando nilo existeconflito entre as duas perspectivas, urna lamentavel divisilo detrabalho tende a produzir-se entre elas. Considera-se que a mi­crossociologia esta interessada nas atividades do "agente livre",cuja elucida,ilo pode ser seguramente confiada a pontos devista tais como os do interacionismo simb6lico ou da etnome­todologia; ao passo que se pressupoe ser 0 dominio da macros­sociologia 0 da analise das restri,oes estruturais que fixamlimites a livre atividade (ver pp. 246 ss). Deixei anteriormentebern claro qu~ tal divisilo de trabalho leva a conseqiiencias que,na melhor das hip6teses, silo sumamente enganosas.

Por que seria considerada tilo problematica, por tantos au­tores, a questilo da rela,ilo entre os estudos "microssocioI6gico"e "macrossocioI6gico"? Presumivelmente, 0 principal motivo ea divisilo conceptual de trabalho a que acabei de fazer referen­cia. Refor,ada por urn dualismo filos6fico, requer urna refor­mula,ilo mais radical da teoria do que a maioria dos autorespode ou esta disposta a considerar. Sera uti! para 0 desenvolvi­mento deste ponto urna aprecia,ilo breve de uma das mais inte­ressantes analises recentes da questilo, a oferecida por Collins".

Sublinha esse autor que 0 cisma entre abordagens micro e ma­crossociol6gicas, tal como estes termos silo ordinariamente en­tendidos, acentuou-se muito ao longo da Ultima decada. Enquantoque a teoria social era dominada pelo funcionalismo e pelo mar­xismo, ou por alguma combiml,ilo de ambos, as rela,oes so­ciais em situa,oes de co-presen,a silo tipicamente vistas comodeterminadas, de forma substancial, por fatores inais amplos,"estruturais". Entretanto, liderada em especial pela etnometodo­logia, a microssociologia converteu-se nurn vicejante campode interesse, no qual os pressupostos das abordagens acima ternsido analisados de maneira bastante radical. Na opiniilo deCollins, "a mais recente microssociologia radical e, epistemo­l6gica e empiricamente, muito mais completa e profunda doque qualquer metodo previo. [...] Eu sugeriria que 0 esfor,ocoerentemente desenvolvido para reconstituir a macrossocio­logia sobre microfunda,oes radicalmente empiricas e 0 passocrucial na dire,ilo de urna ciencia sociol6gica mais bem-suce­dida"33.

Segundo Collins, 0 caminho adequado para esse avan,o eatraves de urn programa de "microtradu,ilo" de "fen6menos es­truturais". Ede esperar que essa tradu,ilo resulte em teorias comurna base empirica mais forte do que as macrossociol6gicasexistentes. Aqueles que se preocupam com as questoes macros­sociol6gicas silo convidados a nilo abandonar seus esfor,os,mas reconhecendo que seu trabalho e teoricamente incompleto.Aos olhos de Collins, existem apenas tres "macrovariaveis pu­ras": tempo, espa,o e numero. Assim, urn conceito como "cen­traliza,ilo da autoridade" pode ser traduzido para explica,oesde microssitua,oes - de que modo atores sociais situados exer­cern realmente a autoridade em contextos descritiveis. Entre­tanto, as "macrovariaveis puras" participam como 0 nUmero desitua,oes desse tipo, no tempo e no espa,o. "Por conseguinte,resulta com freqiiencia que as variaveis estruturais silo a sim­ples quantidade de pessoas em vanos tipos de microssitua,oes.""A "realidade social" e, portanto, "microexperiencia"; sao asagrega,oes temporais e especiais nurnericas dessa experienciaque constituem 0 nivel macrossociol6gico de analise. As quali-

-I165TEMPO. ESPA90 E REGlONALlZA9AOA CONSTITU[(;AO DA SOCIEDADE164

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dades "estruturais" de sistemas sociais sao, diz Collins, os "re­sultados" da conduta em microssitua,oes, na medida em quenao dependem de nfunero, tempo e espa,o.

Embora 0 conceito de Collins de "variaveis estruturais"seja algo semelhante ao defendido por Blau (ver pp. 243-6),Collins questiona, com toda a razao, a especie de versao de"sociologia estrutural" proposta por aquele e muitos outros au­tores, Mas, em outros aspectos, 0 ponto de vista de Collins edeficiente. Como tenho sistematicamente acentuado, tratar 0

tempo e 0 espa~o como "variaveis" erepetir 0 erra caracteristi­co da maior parte das formas de ciencia social ortodoxa. Alemdisso, por que pressupor que a "estrutura" e relevante somentepara as questoes macrossociol6gicas? Tanto na acep,ao maisprecisa quanto na mais vaga do termo que distingui, a atividadeem microcontextos tern propriedades estruturais fortementedefinidas. De fato, reputo ser essa uma das principais teses sus­tentadas com exito pela pesquisa etnometodol6gica, Ademais,por que sustentar que 0 tempo, como "variftvel", so erelevantepara as preocupa,oes macrossociol6gicas? A temporalidade e taoinseparavel de urn pequeno segmento de intera,ao quanto damais longa das longues dUrlies. Finalmente, por que propor queas propriedades estruturais consistem apenas em tn,s dimen­soes: tempo, espa,o e nfunero? A razao, suponho, esta em queCollins ainda tern em mente que a "estrutura" deve referir-se aalgo "fora" das atividades de agentes sociais para que tenhaalgum sentido na ciencia social. A dispersao no tempo e no es­pa,o parece ser 0 OOico fenomeno que resta, dado que Collinsaceita boa parte das criticas formuladas por aqueles a quem elechama de "microssoci61ogos radicais" contra os conceitos co­letivos com que seus antagonistas macrossociol6gicos usual­mente operam,

Mas a mais importante confusao na abordagem de Collinseo pressuposto de que os "macroprocessos" sao os "resultados"da intera~ao em "microssitua~oes". Segundo ele, 0 "macronf­vel" consiste apenas em "agrega90es de microexperiencias".Ora, pode-se concordar em que as generaliza,oes nas cienciassociais sempre pressupoem - e fazem, pelo menos, referencia

implicita as - atividades intencionais de agentes humanos. Naose segue dai, porem, que 0 que e descrito como 0 "macronivel"tenha uma existencia um tanto posti,a, Isso apenas nos leva devolta a guerra simulada. As institui,oes sociais nao sao expli­caveis como agregados de microssitua,oes" nem totalmente des­critiveis em termos que se referem a tais situa,oes, se entender­mos estas como circunstancias de co-presen,a. Por outro lado,os padroes institucionalizados de comportamento estao pro­fundamente implicados ate nas mais fugazes e limitadas das"microssituac;oes".

Exploremos essa linha de pensamento indicando por quemotivo a distin,ao micro/macro nao e particularmente util. 0que e uma "microssitua,ao"? A resposta poderia ser esta: euma situa,ao de intera,ao confinada no espa,o e no tempo ­aparentemente, 0 ponto de vista de Collins, Mas isso nao ajudagrande coisa. Pais nao s6 as encontros "deslizam" no tempo,mas tambem, assim que come,amos a nos interessar em apurarcomo eles sao conduzidos por seus atores participantes, ficaclaro que nenhum fragmento de intera,ao - mesmo que aberta­mente isolado num parentese temporal e espacial - pode serentendido de forma independente. A maioria dos aspectos deintera,ao esta sedimentada no tempo e s6 se lhes pode atribuirurn sentido se considerarmos seu carater rotinizado e repetitivo.Alem disso, a diferencia,ao espacial do "micro" e do "macro"torna-se imprecisa logo que come,amos a examina-Ia, pois aforma,ao e a re-forma,ao de encontros ocorre necessariamen­te em extensoes espaciais mais vastas do que as envolvidas emcontextos imediatos de intera,ao face a face. Os trajetos tra,a­dos por individuos no decorrer do dia rompem alguns contatosao deslocarem-se espacialmente para formar outros, os quaissao depois desfeitos, e assim por diante.

Aquilo de que normalmente se fala sob a epigrafe de pro­cessos micro/macro e 0 posicionamento do corpo no tempo­espa90, a natureza da intera9ao em situa95es de co-preselll;a e aconexao entre essas situac;5es e influencias "ausentes", rele­vantes para a caracteriza,ao e explica,ao da conduta social.Esses fenomenos - as preocupa,oes basicas, de fato, da teoria

166 A CONSTITUlI;AO DA SOCIEDADE

'IV'

TEMPO, ESPAI;O E REGIONALlZAI;AO 167

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Edificil [para nos hoje] imaginar uma situar;ao oode a Of­

dem formal do universo pudesse ser reduzida a urn diagrama de

rA CONSTITUJI;:AO DA SOClEDADE TEMPO, ESPAC;:O E REGIONALlZAC;:AO

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da estrutura<;ao - sao mais bern considerados como referentesas rela<;oes entre a integra<;ao social e a integra<;ao de sistema.Ora, algumas das questi5es em pauta no debate micro/macrosao problemas conceptuais relacionados com a velha contro­versia em torno do individualismo metodologico. Vou deixa­las de lado ate 0 proximo capitulo. Outros aspectos, entretanto,nao repousam em considera<;oes unicamente conceptuais. Elesso podem ser resolvidos mediante a analise direta de tipos par­ticulares de sociedade. Como as sociedades diferem em seusmodos de articula<;ao institucional, tam1?em e licito esperar quevariem os modos de interse<;ao de presen<;a e ausencia queintervem em sua constitui<;ao. Farei urna breve introdu<;ao des­se assunto aqui, apresentando ao mesmo tempo material a sermais amplamente abordado no proximo capitulo.

A integra<;ao social diz respeito a intera<;ao em contextosde co-presen<;a. As conexoes entre as integra<;oes social e desistema podem ser tra<;adas no exame dos modos de regionali­za<;ao que canalizam, e sao canalizados por, percursos tempo­espa<;o adotados pelos membros de urna comunidade ou socie­dade em suas atividades cotidianas. Tais percursos sao forte­mente influenciados por (e tambem reproduzem) parametrosinstitucionais basicos dos sitemas sociais em que estao impli­cados. As sociedades tribais (ver pp. 214, 218) tendem a apre­sentar uma forma densamente segrnentar, sendo a comunidadealdea, de muito longe, 0 mais importante local em cujo ambito,os encontros sao constituidos e reconstituidos em tempo-espa­<;0. Nessas sociedades, as rela<;oes de co-presen<;a tendem adominar as influencias de uma especie mais remota. Faz senti­do dizer que existe nessas sociedades algo como urna fusao dasintegra<;oes social e de sistema. Mas, obviamente, essa fusaonunca e completa: virtualmente todas as sociedades, nao im­porta quaD pequenas ou aparentemente isoladas, existem emconexao pelo menos frouxa com '''sistemas intersociais" maisvastos.

Como vivemos hoje nurn mundo onde a comunica<;ao ele­tronica e tida como certa, vale a pena enfatizar a que e, alias,uma caracteristica obvia das sociedades tradicionais (de todas

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as sociedades, realmente, ate pouco mais de urn seculo atras).Refiro-me, simplesmente, a que todos os contatos entre mem­bros de diferentes comunidades ou sociedades, nao importasua extensao, envoIvern contextos de co-presen<;a. Uma cartapodera chegar de urn outro ausente, mas, e claro, tern de serfisicamente levada de urn lugar para outro. Viagens muito lon­gas eram realizadas par categorias especializadas de pessoas ­marinheiros, militares, comerciantes, misticos e diversos aven­tureiros - no mundo tradicionaI. Sociedades nomades erravamatraves de extensas areas de terra. As migra<;oes populacionaiseram comuns. Mas nenhum desses fenomenos ahera 0 fato deque os contextos de co-presen<;a eram sempre os principais"contextos veiculadores" da intera~ao.

o que tornou possivel a maior "extensao" espa<;o-tempo­ral envolvida no que chamarei de sociedades divididas em classesfoi, sobretudo, 0 desenvolvimento das cidades. Estas estabele­cern urna centraliza<;ao de recursos - especialmente os admi­nistrativos - que propicia maiar distanciamento tempo-espa<;odo que era 0 caso dpico nas ordens tribais. A regionaliza<;ao desociedades divididas em classes, por muito complicada quepossa ser em seus detalhes, forma-se sempre em torno das co­nexoes, tanto de interdependencia quanto de antagonismo, entrea cidade e 0 campo,

Somos propensos a usar 0 termo "cidade" de modo abran­gente em referencia tanto aos povoamentos urbanos em socie­dades tradicionais quanta aos, convergentes com a forma<;ao eexpansao do industrialismo capitalista. Mas esse uso obscureceo termo, se tornado para significar simplesmente que, nos tem­

·pos modernos, isso e mais verificado - isto e, que 0 urbanismode hoje constitui apenas urna versao mais densa e mais espraiadado que havia antes. As contextualidades de cidadestradicionaissao, em muitos aspectos, diferentes das do urbanismo moder­no. Rykwert, por exemplo, destaca a forma simbolica que mui­tas cidades tinham, em partes m\lito afastadas do mundo, antesdos tempos modernos:

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170 A CONSTITUJ(;AO DA SOCIEDADE

duas coordenadas que se cruzam num ponto. Entretanto, foi exa­tamente isso que aconteceu na Antiguidade: 0 romano, ao cami­nhar ao lange do cardo, sabia que seu caminho era 0 eixo emtome do qual 0 Sol girava, e que se ele seguisse 0 decumanus,estava acompanhando 0 curso do Sol. Todo universo e seu signi­ficado podiam ser conjeturados a partir de suas institui90es civi­cas - de modo que ele se sentia em casa nele. 35

Poderiamos dizer que tais cidades nao existem mais em tempoe espa<;o comodificados". A compra e venda de tempo, en­quanto tempo de trabalho, e certamente uma das caracteristicasmais distintivas do capitalismo modemo. As origens da regula­<;ao temporal precisa do dia talvez se encontrem ao repicar dosino do mosteiro, mas e na esfera do trabalho que sua influen­cia se enraizou de tal maneira que se propagou a sociedadecomo urn todo. A co-modifica<;ao do tempo, orientada para osmecanismos da produ<;ao industrial, elimina a diferencia<;ao decidade e campo caracteristica das sociedades divididas emclasses. A industria modema e acompanhada pela propaga<;aodo urbanismo, mas seu funcionamento nao e fixado em qual­quer tipo particular de area. Por outro lado, a cidade tradicionalconstitui 0 principal/oeus de poder disciplinar em sociedadesdivididas em classes e, como tal, e separada do campo - commuita freqiiencia, fisica e simbolicamente separada pelas mu­ralhas citadinas. Em conjunto com a transforma<;ao do tempo,a co-modifica<;ao do espa<;o estabelece urn "meio ambientecriado", de caniter muito distinto, expressando novas formasde articula<;ao institucional. Essas novas formas de ordem ins­titucional alteram as condi<;6es da integra<;ao social e sistemicae mudam, portanto, a natureza das conex6es entre 0 proximo eo remoto no tempo e no espa<;o.

Notas criticas: Foucault sobre distribuifiiode tempo e de espafo

As varias discuss6es feitas por Foucault sobre as origensdo poder disciplinar demonstram uma persistente preocupa<;aocom a distribui<;ao temporal e espacial. Segundo ele, 0 poderdisciplinar tern como foco a manipula<;ao do corpo, consideradoessencialmente como urna rruiquina que pode ser primorosamenteafinada. As formas de administra<;ao associadas as organiza­<;6es disciplinares que proliferaram do seculo XVIII em diantesao diferentes da mobiliza<;ao maci<;a de for<;a de trabalho veri­ficada nos projetos em grande escala nas civiliza<;6es agrarias.Esses projetos - constru<;ao de estradas, de templos, de monu­mentos publicos etc. - envolveram freqiientemente imensoscontingentes de pessoas. Mas suas atividades eram coordena­das apenas de forma rudimentar. As novas formas de disciplinasao precisamente talhadas na medida dos movimentos, gestos eatitudes do corpo individual. Em vez da disciplina monastica,que e urn de seus principais precursores historicos, as novastecnicas de poder ligam a disciplina diretamente com a utilida­de. 0 controle do corpo e parte da nova "anatomia politica" e,como tal, diz Foucault, aurnenta 0 rendimento corporal en­quanta reduz tambem a independencia de orienta<;ao do corpo.

A disciplina so pode avan<;ar atraves da manipula<;ao dotempo e do espa<;o. Requer habitualmente fechamento, uma es­fera de opera<;6es completamente fechada. Foucault exploramuito 0 conceito de "confinamento", a separay3.o mais ou me­nos for<;ada de individuos do resto da popula<;ao nos primeiroshospitais, em manicomios e em prisoes. Entretanto, outras or­ganiza<;6es disciplinares menos abrangentes envolvem tambem

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* As referencias podem ser encontradas a pp. 190.

e fixados horarios para as visitas. Assim, 0 "espa90 terapeuti­co" foi desenvolvido a partir da distribui9ao do espa90 "admi­nistrativo e politico"'*'

A compartimenta9ao do espa90 ocorreu em circunstiinciasalgo diferentes nas fabricas do final do seculo XVIII. Nestecaso, a tendencia foi tambem a de distribuir os individuos nurnespa90 demarcado, mas essa distribui9ao tinha de ser dirigidapara a coordena9ao de maquinaria. Assim, a disposi9ao doscorpos no espa90 devia corresponder as exigencias tecnicas daprodu9ao. Mas essa "articula9ao do espa90 de produ9ao" tam­bern pode ser comprovadamente impregnada de poder disci­plinar. Foucault cita a manufatura Oberkampf, em Jouy, comourn exemplo. Ela foi construida como urna serie de oficinasidentificadas de acordo com 0 tipo de opera,ao de produ9ao.Toussaint Barre projetou 0 maior dos edificios, 0 qual tinhalID metros de comprimento, com tres andares. No terreo exe­cutava-se a xilogravura. Havia 132 mesas, instaladas em duasmas no sentido do comprimento da oficina; dois empregadostrabalhavam em cada mesa. Os supervisores circulavam paracima e para baixo no corredor central, estando assim aptos afiscalizar 0 processo de fabrica9ao, em geral, e as atividades decada trabalhador individual, em particular. Os trabalhadorespodiam ser comparados por sua rapidez e produtividade, e suasatividades eram mutuamente correlacionadas. Distribuindo ostrabalhadores de acordo com estritos principios de classifica­9ao, cada parte da tarefa podia ser caracterizada e relacionadacom distintos movimentos do corpo. As doutrinas de FrederickTaylor nao sao muito mais do que urna formula9ao tardia dopoder disciplinar que acompanhou a ascensao da industria emgrande escala hit mais de urn seculo.

o carater do espa,o disciplinar, segundo Foucault, derivaprimordialmente nao da associa9ao de uma organiza9ao comurn peda90 especifico de territorio, mas do arranjo espacial.Linhas, colunas, intervalos murados e medidos sao suas carac­teristicas distintivas. Nao e qualquer parte particular do edifi-

173r ,,~, ,~"O"''''''OM''"A CONSTlTUI<;A-O DA SOCIEDADE

o fechamento. Os fatores que levam ao estabelecimento deareas fechadas podem variar, mas 0 resultado final esemelhanteem todas elas, em certa medida porque modelos semelhantesforam seguidos pelos individuos e pelas autoridades responsa­veis por estabelece-Ias. 0 fechamento e uma base generalizadade poder disciplinar, mas por si so insuficiente para permitir aadministra,ao detalhada dos movimentos e atividades do corpo.Isso so pode ser realizado atraves da divisao regional ou "com­partimenta,ao" interna. Cada individuo tern seu "lugar proprio"em qualquer momento particular do dia. A compartimenta,aodo tempo-espa,o disciplinar tern, pelo menos, duas consequen­cias: ajuda a evitar a forma,ao de grandes grupos, que poderiamser uma fonte de forma,ao de vontade independente ou de opo­si,ao, e propicia a manipula,ao direta de atividades individuais,evitando 0 fluxo e a indetermina,ao que os encontros casuaistendem a manifestar. 0 que esta aqui envolvido, segundo Fou­cault, e urn "espa,o analitico", no qual os individuos podem serobservados e avaliados, e suas qualidades, medidas. A compar­timenta,ao do espa,o analitico pode ter sido influenciada peloexemplo da cela monastica, mas tambem se originou, com fre­quencia, das formas arquiteturais que foram estabelecidas parafins puramente praticos. Na Fran,a, 0 hospital naval em Ro­chefort serviu de modelo. Foi instalado como parte de urna ten­tativa para enfrentar as molestias contagiosas disseminadas numporto apinhado de nurnerosos grupos de pessoas envolvidas naguerra ou no comercio. Controlar a propaga,ao de doen,asimplicava outras especies de regulamenta9ao fiscalizadora depopula95es em triinsito - 0 controle dos militares sobre os de­sertores e da administra,ao local sobre 0 fluxo de mercadorias,ra95es e materias-primas. Isso redundou na pressao pelo rigo­roso controle do espa90, 0 que envolveu primeiramente os cui­dados a serem dispensados a mercadorias valiosas, em vez daorganiza,ao dos seres hurnanos. Mas a pratica de etiquetar mer­cadorias, classificando-as e controlando sua distribui9ao, foimais tarde aplicada a pacientes. Registros de casos come9arama ser arquivados. 0 numero total de pacientes era cuidadosa­mente regulado; foram impostas restri95es a seus movimentos

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"disciplinados". Entretanto, nas for9as armadas, passou a seraplicado tao ordinariamente quanta e hoje, mais relacionadocom urn modo global de regulamenta9ao do que com 0 proprioprocesso de instru9ao'.

A cronometragem das atividades e mais do que sua subor­dina9ao a intervalos temporais medidos. E talvez a condi9aomais basica da "coordena9ao do corpo e do gesto". 0 poderdisciplinar nao consiste unicamente na imposi9ao de controlesobre gestos especificos, mas e maximizado quando os gestosse relacionam com 0 posicionamento do corpo como urn todo.o uso eficiente do corpo significa que nada permanece ociosoou em uso; a aten9ao deve ser totalmente concentrada no atoem que 0 individuo esta envolvido. Urn corpo disciplinado eurn corpo treinado: nesse sentido, poderiamos dizer que persistea acep9ao tradicional de "disciplina". 0 posicionamento docorpo e 0 principal fator mediador entre duas sequencias tem­poralmente articuladas. Uma e a dccomposi9ao do gesto numaserie cronometrada de movimentos, especificando as partes docorpo a serem usadas. Assim, Mauricio de Orange decompos 0manuseio do mosquete nurna serie de 43 movimentos separados,o do pique em 23, coordenados no ambito de urna fonna9ao desoldados numa unidade de batalha'. Entretanto, as varias partesdos objetos manuseados tambem sao especificadas e integra­das com 0 gesto. A cronometragem e essencial para isso, umavez que os armamentos e a maquinaria passaram a ser cada vezmais projetados para operar de modo sequencial, sendo cadapasso em sua opera9ao um requisito previo para 0 que sera feitoa seguir. 0 poder disciplinar depende nao apenas da explora9aode materiais previamente dados, mas tambem do estabeleci­mento de urn "elo coercitivo com 0 aparelho de produ9ao".

A cronometragem tambem se estende atraves da progres­sao de carreiras. Foucault compara duas fases no desenvolvi­mento da escola-fabrica dos Gobelinos. A manufatura foi cria­da por decreto real de 1667; urna escola para aprendizes foi pla­nejada como parte do esquema. 0 superintendente dos edificiosreais selecionaria sessenta crian9as bolsistas para participa9aona escola, sendo 0 processo educacional organizado de acordo

175TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALlZAr;:A-OA CONSTITWr;:A-O DA SOCIEDADE

cio que importa, mas sua fonna relacional global. A sala deaula exemplifica esse fenomeno. No seculo XVIII, na Fran9a eem outros paises, as classes passaram a ser divididas, de modointervalado, em filas delimitadas com clareza e separadas ex­ternamente por urn sistema de corredores de liga9ao. Trata-sede divisoes tanto curriculares quanta espaciais. Os individuosmovem-se atraves de tais compartimentos, nao s6 no decorrerdo dia como tambem durante suas carreiras educacionais.

A disciplina depende da divisao cautelosa do tempo, as­sim como do espa90. Afinal de contas, 0 mosteiro foi urn dosprimeiros lugares a ter 0 dia temporalmente regulado de ma­neira precisa e ordenada. As ordens religiosas foram mestres nocontrole met6dico do tempo, e sua intluencia, difusa ou maisdireta, era sentida por toda a parte. Como na maioria dos as­pectos do poder disciplinar, 0 exercito fornece urna iIustra9aoadequada. Os soldados foram desde longa data treinados paramarchar em fonna90es regulares. Os holandeses foram pionei­ros na cronometragem precisa de manobras militares'. No finaldo seculo XVI, desenvolveu-se urn metoda no exercito holan­des mediante 0 qual as tropas eram treinadas de fonna progra­mMica para manobrar ordenadamente, enquanto mantinhamurn ritmo certo e continuo de fogo. Isso era conseguido gra~sil medi9ao do tempo requerido para os varios movimentos docorpo. 0 metodo foi mais tarde aplicado aos gestos envolvidospara carregar, disparar e voltar a carregar as armas, e a muitosoutros aspectos da organiza9ao militar. De fato, foi em rela9aoa esses desenvolvimentos que 0 tenno "disciplina" sofreu umamudan9a de significado. Em seu sentido original, referia-se aurn processo de aprendizagem e era considerado urn tra90 dos

Ao organizar "celulas", "lugares" e "filas", as disciplinaseriam espa<;:os complexos que sao simultaneamente arquitetu­rais, funcionais e hienirquicos. Sao espa<;os que fornecem posi­'foes fixas e permitem a circula<;:ao; eriam segmentos individuaise estabelecem liga<;:6es operacionais; marcam Iugares e indicamvalores; garantem a obediencia de individuos mas tambem umamelhor economia de tempo e gesto. 2

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I) A divisao das vidas cronologicamente, de modo que fases dedesenvolvimento sejam especificamente cronometradas. As­sim, 0 periodo de treinamento pode ser separado com clarezade urna carreira propriamente dita. Dentro dele podem serdemarcadas etapas de evolu9ao, em cuja seqiiencia todos osque recebem instru9ao devem progredir.

com as diretrizes tipicas da aprendizagem de corpora9ao. asalunos eram, em primeiro lugar, responsabilidade de urn mes­tre-artesao, cumprindo depois urn aprendizado de seis aoos.Seguiam-se mais quatro anos de servi90 de aperfei90amento,ao termino dos quais eles eram submetidos a urn exame; seaprovados, estavam aptos a instalar suas proprias oficinas. Raviaai urn processo difuso de traosmissao de conbecimento, envol­vendo urna permuta de servi90S entre mestres e aprendizes. Aorgaoiza9ao temporal das vidas dos aprendizes - pelos padroesdo que se seguiria - era moderada. Cerca de setenta anos apos acria9ao da escola, urn novo tipo de treinamento foi iniciado paraos aprendizes; era, aotes de tudo, complementar dos modos deprocedimento usados; baseava-se nurna cuidadosa organiza9aoserial do tempo. As criao9as frequentavam a escola duraote duashoras por dia. Dividiam-se as classes de acordo com a habilida­de e a experiencia previa. As tarefas distribuidas eram executa­das de forma regular, avaliadas pelo professor, e os mais aptosrecebiam premios. as resultados dos exames a que todos osalunos se submetiam definiam 0 progresso de uma classe aoutra, e registrava-se 0 comportamento diario num livro contro­lado por professores e seus assistentes que era periodicamenteexaminado por urn inspetor.

A escola dos Gobelinos foi urn exemplo de urna tendenciageral na educa9ao setecentista; nas palavras de Foucault, urnaexpressao de uma "nova tecnica para encarregar-se do tempodas existencias individuais". As disciplinas "que analisam 0 es­pa90, decompoem e reorgaoizam as atividades" tambem ternde ser concentradas de modo a possibilitar "a soma e a capitali­za9ao do tempo"'. Quatro metodos podem ser usados para isso:

177

2) As fases separadas de treinamento e a "carreira" - palavraque desse modo abrange apenas seu sentido modemo - sub­sequente podem ser orgaoizadas de acordo com urn plaooglobal. A educa9ao tern de ser libertada da dependencia per­sonalizada que a rela9ao entre mestre e aprendiz acarreta. aplano educacional tern de ser formulado em termos impes­soais, sempre que possivel desmembrado em suas opera90esmais elementares, as quais sao enilio facilmente aprendidaspor quem estiver recebendo a instru9ao.

3) Cada urn dos segmentos temporais deve ser concluido comurn exame, 0 qual nao so garante que todos os individuos sesubmeterao ao mesmo processo de instru9ao, mas tambemos diferencia em termos das capacidades relativas de cadaurn. as varios exames envolvidos na busca de urna carreirasao graduados para que cada urn possa ser realizado comexito antes de 0 aprendiz poder passar a urn outro.

4) Tambem podem ser designados diferentes niveis de treina­mento para a realiza9ao de oficios hierarquizados. Assim, naconclusao de cada serie, alguns individuos podem ser con­tratados e encaminbados para urn determinado grau, enquao­to outros continuarao para obter graus superiores. Cada in­dividuo esta envolvido nurna serie temporal par meio daqual seu cargo ou nivel e definido.

TEMPO, ESPAr;:O E REGIONALIZAr;:AO

A "seriac;ao" de atividades sucessivas torna passivel todourn investirnento de dura,ao pelo poder: a possibilidade de urncontrale detalhado e de uma intervenc;ao regular (de diferencia­c;ao, correc;ao, puni9ao, eliminac;ao) em carla momento do tem­po; de caracterizac;ao e, portanto, de usc dos individuos de acor­do com 0 nivel nas series per que tern de passar; de acumulac;aode tempo e atividade, de sua redescoberta, totalizada e utilizavelnUID resultado final, que ea capacidade fundamental de urn indi­viduo. A dispersao temporal eanulada para produzir urn lucro,dominando assim uma durac;ao que de Dutro modo escaparia aapreensao de cada urn. a poder ediretamente articulado com 0

tempo, assegura 0 seu controle e garante 0 seu uso.7

A CONSTITUJ(;:JO DA SOCIEDADE176

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analisados de forma direta; 0 Estado e examinado "sintomati­camente", mediante formas aparentemente mais marginais deorganiza,ao, hospitais, manicnmios e prisoes. Entretanto, emcada autor hi urna forte enfase sobre 0 surgimento de novostipos de poder administrativo, gerados pela organiza,ao con­centrada de atividades hurnanas atraves de sua especifica,ao ecoordena,ao precisas. A primeira vista, 0 tema da transforma­,ao do tempo e do espa,o parece estar ausente nos escritos deWeber, e vale a pena indicar de que modo e possivel mostrarque suas ideias 0 incorporaram. Reconhece-se que ele e maislatente do que manifesto. Considere-se primeiro 0 tratamentode Weber da natureza da modema empresa capitalista. 0 quediferencia 0 "capitalismo racional" das formas precedentes? E,sobretudo, seu carater eslivel, regular. Os tipos preexistentes deempresa capitalista tern lugar de maneira esporadica, vacilante,atraves do tempo e do espa,o. 0 capitalismo racional envolve aforma,ao de rel"9oes regularizadas de mercado atraves do es­pa,o, algo que so pode vir a tomar-se bern desenvolvido com aconstitui,ao de urn Estado burocratico, 0 qual garante nao soos direitos de propriedade, mas tambem outras institui,oes essen­ciais, mais destacadamente uma forma regularizada de cambiode papel-moeda.

Mas 0 controle do tempo e igualmente necessario. A em­presa capitalista racional e aquela que esta apta a funcionar demodo estavel e ordenado. A enfase de Weber sobre a importiinciada contabilidade por partidas dobradas para 0 desenvolvimentodo capitalismo modemo e facilmente compreensivel nesses ter­mos. Essa forma de escritura,ao possibilita a continua contabi­liza,ao de capital, durante longos periodos de tempo, a qualconsiste na avalia,ao e verifica,ao de oportunidades de lucro.Isso significa proceder a uma avalia,ao comparativa do ativo docome,o de urna transa,ao ou empreendimento com 0 de umadata posterior. A lucratividade depende, entre outros fatores,da capacidade de predizer eventos futuros e de os sujeitar a cil­culos. A contabilidade por partidas dobradas e urna especie demaquina do tempo, porque expressa e simultaneamente permi­te a quantifica,ao de unidades por referencia as quais 0 desem­penho de urna empresa pode ser julgado em "tempo ordenado"".

A CONSTITUl9A-O DA SOC/EDADE

Assim, os metodos disciplinares refletem uma compreen­sao especifica do tempo, que constitua urna escala de intervaloigual. Na seria,ao do tempo, propoe Foucault, existe urn proce­dimento que corresponde ao mapeamento de espa,o comparti­mentado para atividades corporais: isso e "exercicio". Exercicioe a imposi,ao de treinamento fisico regular e graduado do corpo,objetivando urn estado final de aptidao - "aptidao" referente aoestado de prepara,ao do corpo, mas tambem a uma capacidadegeneralizada de execu,ao das tarefas designadas. A ideia e apratica de exercicio tiveram origens religiosas, porem conver­teram-se num tema secular da maioria das organiza,oes disci­plinares. 0 exercicio exige participa,ao regular ao longo do tem­po e atua sobre partes especificas do corpo. Expressa direta­mente 0 significado do controle do corpo, em rela,ao a outroscorpos, 0 que e essencial para a disciplina como urn todo. 0corpo e tratado como uma parte movente num composto maisamplo. A disciplina, em surna, demonstra as seguintes caracte­risticas principais: e "celular" (em termos de distribui,ao espa­cial); e "organica" (codificando as atividades de acordo comprocedimentos programados); e "genetica" (com rela,ao as fa­ses seriais); e e "combinatoria" (unindo atividades humanascomo os trajetos de uma maquina social). Foucault cita Guibert:

o Estado que descrevo tera uma administra<;ao t'mica, id6­nea e facilmente controlada. Sera semelhante aquelas grandesmaquinas que, por meios que nada tern de complicados, produ­zero grandes efeitos; a for9a desse Estado brotani de seu propriovigor e sua prosperidade, de sua propria prosperidade. Reprova­rei aquele preconceito comum segundo 0 qual SOmas levados aimaginar que as imperios estao sujeitos a uma lei imperiosa dedeclinio e mina.

Ha urna semelhan,a obvia entre a visao de Foucault do po­der disciplinar e a analise de Max Weber da burocracia moder­na. 0 foco de seus respectivos escritos e diferente, por certo.Weber concentra-se na "area estrategica crucial" da burocra­cia: 0 Estado e seus escritorios administrativos. Na obra de Fou­cault, por outro lado, os mecanismos do Estado raramente Sao

TEMPO. ESPA90 E REGIONALIZA9A-O 179

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o controle do tempo e caracteristico da burocracia em ge­ral, nao apenas das empresas de capital. A contabilidade porpartidas dobradas e urn expediente que "empilha" eventos pas­sados, assim como preve os futuros. As regras burocriticastambem sao urn modo de fazer isso. As burocracias modemas,afirma Weber, nao poderiam existir sem 0 cotejo de documen­tos que sao registros do passado e prescri,oes para 0 futuro _os "arquivos". Estes nao sao apenas docurnentos dos procedi­mentos burocniticos; eles exemplificam esses procedimentos epossibilitam 0 funcionamento continuo e regular do qual depen­de a disciplina burocnitica. Costumam ser organizados dentrode escrit6rios especificos e fazem parte do que confere a cadaescritorio, numa burocracia, seu caniter distinto. Urn "'escrit6­rio" eurn cena-rio fisico, assim como urn patamar numa hierar­quia administrativa. Embora Weber quase nao toque nesseponto, a distribui,ao fisica de escrit6rios nas burocracias e umacaracteristica distintiva de tais organiza,oes. A separa,ao fisi­ca deles, em se,oes ou reparti,oes, isola cada urn de todos osoutros e confere urn certo grau de autonomia aos que traba­lham em seus recintos; e tambem serve como poderoso indica­dor de hierarquia.

Weber tambem sublinha a importiincia da separa,ao entreo escrit6rio Ii 0 domicilio do trabalhador'. Uma das principaiscaracteristicas da burocracia esta no fato de a vida profissionaldo funcionario ser segregada do lar e da vida familiar. As f6r­mulas impessoais de disciplina burocrMica sao aplicadas muitomais efetivamente quando somas de dinheiro e equipamentosincorporados Sao mantidos separados das posses privadas dosfuncionarios, quando os vinculos pessoais ou de parentesco naosao a base de tomadas de decisoes OU de nomea,oes, e quandoos assuntos referentes it familia e it casa se distinguem dos as­suntos de neg6cios. Weber deixa bern claro que a separa,aocompleta entre 0 lar e 0 local de trabalho s6 se verifica no Oci­dente modemo. Mas tambem poderiamos assinalar a importiin­cia da diferencia,ao de locais para fazer a distin,ao entre asesferas de opera,ao de varios tipos de organiza,ao burocrMica.Quem duvidar da influencia da diferencia,ao entre espa,o e

cenario, para moldar e refletir padroes sociais, deve refletir so­bre a posi,ao da "City" na Gra-Bretanha. Sua separatividadeespacial em rela,ao ao centro da "industria" e sua concentra­,ao absoluta nurna area especifica expressam importantes ca­racteristicas institucionais da sociedade da qual ela e parte (verpp. 377-85).

Poderemos agora retomar a Foucault. Nesta breve disserta­,ao, nao estou interessado em avaliar os erros e acertos hist6ri­cos de sua exposi,ao ou em sondar as deficiencias te6ricas quepossam ser percebidas nas ideias gerais em que ela se ap6ia.Quero apenas acrescentar urn ponto ou dois it sua interpreta,aoda rela,ao do poder disciplinar com modalidades de tempo eespa,o. Come,arei com as considera,oes apresentadas no para­grafo precedente em referencia a Weber. Foucault trata as orga­niza,oes disciplinares tal como sao sintetizadas pela prisao epelo manicomio - "institui,oes totais", na frase de Goffinan;"institui,oes completas e austeras", na caracteriza,ao que Fou­cault adotou de Beltard. "A prisao", como observa Foucault, "naotern exterior nem brechas; nao pode ser interrompida, excetoquando a tarefa esta totalmente concluida; sua a,ao sobre 0 in­dividuo deve ser ininterrupta: urna disciplina crescente [...]confere poder quase total sobre os prisioneiros; possui seus me­canismos intemos de repressao e puni,ao: uma disciplina des­potica"lO. Eibricas, escrit6rios, escolas, quarteis e Dutros contex­tos onde a vigiliincia e 0 poder disciplinar atuam nao sao, emsua maioria, como aquelas institui90es, admite Foucault, semdesenvolver esse ponto. Entretanto, trata"se de urna observa,aocom certa importiincia, porquanto as "institui,oes completas eausteras" sao mais a exce,ao do que a regra dentro dos princi­pais setores institucionais das sociedades modemas. Nao seinfere dai que, pelo fate de as prisoes e manicomios maximiza­rem 0 poder disciplinar, tais institui,oes expressam mais clara­mente a natureza desse poder do que outras organiza,oes menosabrangentes.

A viagem para 0 trabalho (ou a escola) provavelmente in­dica tanto acerca do carater institucional das sociedades mo­demas quanto as organiza,oes carcerarias. A separa,ao tempo-

180 A CONSTITUII;AO DA SOCIEDADE

I

TEMPO. ESPA90 E REGIONALIZA9AO 181

Page 113: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

espayo de diferentes setores da vida social pode, na verdade, sera condiyao do funcionamento em grande escala do poder disci­plinar. A maioria das crianyas freqiienta a escola apenas duran­te uma parte do dia e em certos periodos do ano. Alem disso,dentro do dia escolar, a disciplina e freqiientemente observadaem suas formas mais severas somente naqueles periodos defi­nidos de tempo em que ha "liyoes" ou "aulas". Nao ha duvidade que 0 poder disciplinar s6 pode ser sistematicamente geradopela "aglomerayao" de seres humanos em cenarios especificose fisicamente demarcados. Mas certamente Weber esta com arazao quando diz que a disciplina administrativa e mais eficazquando outros aspectos das vidas dos individuos sao separadosdela, pois ela envolve a aplicayao regularizada de criterios deconduta que nao se coadunam com a realizayao de atividadesem outras esferas da vida. Isso nao se deve apenas aos fatoresque ele menciona, mas tambem anatureza "automatica" da dis­ciplina. Foucault depara dificuldades a esse respeito. A questaonao consiste somente em que os seres humanos resistem a sertratados como automatos, 0 que Foucault aceita; a prisao e urnlocal de luta e resistencia. Trata-se sobretudo do fato de que os"corpos" de Foucault nao sao agentes. Ate as mais rigorosasformas de disciplina pressupoem que os que lhes estao subme­tidos sao agentes humanos "capazes", senda essa a razao deeles terem de ser "educados", ao passe que as ffiaquinas sao me­ramente projetadas. Mas, a menos que estejam sujeitos amaisextrema privayao de recursos, os agentes capazes sao susceti­veis de se submeterem adisciplina unicamente durante partesdo dia - geralmente como uma concessao em troca de recom­pensas que derivam de se ficar liberto dessa disciplina em outrosperiodos.

Nesse aspecto, a leitura de Goffman sobre "instituiyoestotais" pode ser mais instrutiva do que a de Foucault, pois 0 pri­meiro sublinha que 0 ingresso em prisoes ou manicomios ecomprovadamente diferente de se movimentar entre outros ce­nilrios em que 0 individuo podera passar partes do dia. As "ins­tituiyoes totais", em virtude de seu carater abrangente, impoemuma disciplina totalizante aos que ne1as sao intemados. 0 "ajus-

Portanto, existe incompatibilidade entre as instituic;oes to­tais e a estrutura basica de pagamento pelo trabalho de nossasociedade. As instituic;oes totais sao tambem incompativeis comDutro elemento decisivo de nossa sociedade: a familia. A vidafamilial eas vezes contrastada com a vida solitilria, mas, na rea­lidade, urn contraste mais adequado poderia ser feito com a vidaem grupo, pois aqueles que comem e dormem no trabalho, comurn gropo de companheiros de servi90, dificilmente podem man­ter uma existencia domestica significativa. ll

Foucault considera os procedimentos de investigayao dodireito penal, da psiquiatria e da medicina como ilustrativos danatureza do poder disciplinar em geral, especialmente quandoaplicados no ambito das organizayoes carcerarias. Mas, umavez mais, as "instituiyoes totais" destacam-se neste aspectocomo diferentes dos percursos da vida cotidiana dos que estaodo lado de fora. Aquilo a que Goffman chama de "territ6rios doself" sao ali violados de urn modo que nao se aplica aos que vi­vern fora de seus muros. Quatro caracteristicas principais das"instituiyOes totais" podem ser mencionadas em relayao a isso.

183TEMPO. ESPAr;:OE REGIONALlZAr;:AO

tamento" a essas circunstancias irnplica e, de ordinario, conduzdiretamente a urn processo de degradayao do self, pelo qqal 0

recluso e despojado de todos os sinais de identidade pessoal, aomesmo tempo que os componentes ordinarios da autonomia deayao sao maciyamente restringidos. Cumpre dizer que as "ins­tituiyoes totais" expressam aspectos de vigilancia ~ disciplinaencontrados em outros contextos nas sociedades modernas e,no entanto, tambem se colocam em relevo contra estes. As"instituiyoes totais" envolvem geralmente 0 que Goffman cha­ma de "morte civil" - a perda do direito de voto e de envoIvi­mento em outras formas de participayao politica, de deixardinheiro em testamento, preencher cheques, contestar umaayao de div6rcio ou adotarurn filho. Mas, alem disso, os reclu­sos nao possuem, simplesmente, esferas separadas de atividadeem que as recompensas negadas nurn setor possarn ser busca­das num outro. 0 comentario de Goffman sobre a questao e

muito pertinente:

A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE182

Page 114: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Em organiza,oes carcerarias, 0 significado da dialetica docontrole ainda e consideravel. Existem contextos em que essaautonomia especificameute caracteristica do agente humano ­a capacidade de "ter atuado de outra maneira" - esta seriamen-

1) Os metOdos de interrogat6rio transgridem freqiientemente 0

que a maioria da popula,ao encara como legitima prerroga­tiva de "reserva de informa,ao" acerca do eu e acerca docorpo. Por outras palavras, os dados sobre as caracteristicase a conduta preterita dos reclusos - os quais seriam freqiien­temente considerados desabonadores ,por eles e pelos ou­tros, e protegidos pela supressao ou pelo tato - sao compila­dos em dossies it disposi,ao do quadro administrativo.

2) Ha urna dissolu,ao das fronteiras entre fechamento e aberturaque ordinariamente servem para proteger urn sentimento deseguran,a ontol6gica. Assim, pode ser que a excre,ao, a ma­nuten,ao da higiene e da aparencia nao s6 tenbam de ser rea­lizadas publicamente, mas tambem fiquem sujeitas ao con­trole de outros.

3) Com freqiiencia, hi rela,oes for,adas e continuas com outros.Por conseguinte, assim como para as atividades relaciona­das com 0 asseio pessoal, tampouco existem regioes de trasem que setores da vida social possam estar livres das exi­gencias disciplinares feitas em outras regioes. Tal comoBettelheim, Goffman assinala que, em "institui,oes totais",os seres humanos sao reduzidos a estados de dependenciainfantil12

4) A seria,ao temporal de atividades, a curto e a longo prazo, eespecificada e controlada. Os reclusos, os internados, naopossuem "tempo livre" ou "urn tempo s6 deles", como ostrabalhadores. Alem disso, aqueles que se submetem a exa­mes seriais ou passaro por esta.gios seriais de uma carreirano mundo exterior tambem esmo aptos, nonnalmente, a com­pensa-los com outras unidades temporais de padrao diferente.A distribui,ao temporal de casamento e cria,ao dos filhos,por exemplo, e iniciada separadamente daquelas pertencen­tes a outras esferas da vida.

te reduzida. As formas de controle que os reclusos procuramexercer sobre suas vidas no dia-a-dia tendem a concentrar-sesobretudo na prote,ao contra a degrada,ao do self. A resisten­cia e certamente urna dessas formas e, sem davida, uma ques­tao importante que, em certa medida, se impoe, seja qual for apolitica que 0 pessoal administrativo adote na implementa,aodos procedimentos disciplinares. Mas varias outras formas derea,ao podem ser identificadas. Elas incluem 0 que Goffmanchama de "coloniza,ao", a constru,ao de urn mundo toleravelnos intersticios do tempo e espa,o administrados, e de "afasta­mento situacional", arecusa, por assim dizer, em continuar com­portando-se como se espera de urn agente capaz. Mas prova­velmente 0 mais cornuro entre prisioneiros, assim como entreos "doentes mentais", e simplesmente "ficar frio" e "se virarcomo puder". Goffman descreve adequadamente essa condu­ta como "uma combina,ao algo oportunista de ajustamentossecundarios, conversao, coloniza,ao e lealdade para com 0 gru­po de internados. [...]""

Nao hi davida, como multos estudos sociol6gicos demons­traram, de que tais grupos de reclusos podem exercer conside­ravel controle sobre as atividades do dia-a-dia, mesmo nas or­ganiza,oes carcerarias mais rigorosamente disciplinadas. Masos moldes de controle exercidos por subordinados em outroscontextos, como 0 do trabalho, sao possivelmente mais nume­rosos devido a uma forma adicional de contraste desses con­textos com os carceranos, que esta no interesse dos superioreshierarquicos em submeter ao seu controle autoritario as ativi­dades desses subordinados para a execu,ao de tarefas designa­das. Em prisoes ou manic6mios, a "disciplina dos corpos" equase uma descri,ao do que ocorre; 0 pessoal administrativonao esta preocupado em produzir urn esfor,o de colabora,aocom vistas it atividade produtiva, ao contrario do que acontecenos locais de trabalho e nas escolas, em que os gerentes tern deobter por meios persuasivos urn certo nivel de performance dostrabalhadores. Neste caso eles se preocupam nao s6 com a dife­rencia,ao de tempo-espa,o e com 0 posicionamento dos cor­pos, mas tambem com a coordena,ao da conduta dos agentes,

185TEMPO, ESPA(:O E REGIONALlZA(:AO

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Page 115: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

cujo comportamento precisa ser canalizado de formas definidaspara produzir resultados cooperativos. Os corpos de Foucaultnao tern rostos. Em circunstancias de vigiliincia no local de tra­balho - onde a vigiliincia significa supervisao direta, em qual­quer caso -, a disciplina envolve urna soma consideravel de"trabalho face a face" e 0 exercicio de estrategias de controleque tern, em parte, de ser elaboradas por agentes no proprioato. 0 "acondicionamento" no tempo-espa,o de agrupamentosde individuos em locais confinados, onde pode ser efetuada umasupervisao continua em circunstancias de co-presen9a, ternobviamente enorme importiincia para a gera,ao de poder disci­plinar. Mas a exigencia de trabalharem em colabora,ao paraconseguirem algurn tipo de resultado produtivo da aos agentesuma base de controle sobre as opera,5es cotidianas do local detrabalho que pode enfraquecer a eficacia da supervisao. Super­visores e gerentes estao lilo conscientes disso quanto qualquerurn e, com freqiiencia, ap6iam-se nessa consciencia para 0 tipode politica disciplinar que adotam". Algumas das formas decontrole acessiveis aos trabalhadores num espa,o disciplinarsolidamente integrado (par exemplo, a possibilidade de inter­romper ou paralisar todo urn processo de produ,ao) nao existeonde uma for,a de trabalho esta desagregada no tempo e noespa,o.

Permitam-me apresentar urn comentario final sobre Fou­cault e Goffinan. Ambos os autores tern como urn dos temaspredominantes de suas respectivas obras 0 posicionamento e adisciplina do corpo. Tal como Foucault, Goffman tambem ex­plorou extensamente as questoes sabre a natureza da "loucura".A preocupa,ao comurn de ambos com as organiza,5es carcera­rias poderia levar-nos a perder de vista as diferen,as em suasrespectivas concep,5es da loucura. A perspectiva de Goffinanquestiona radicalmente a de Foucault no que diz respeito as rela­,5es entre "insanidade" e "razao". Foucault argumenta que aqui­la a que chamamos de "loucura" - OU, acompanhando 0 triunfoda metMora medica, "doen,a mental" - foi criado em temposrelativamente recentes. Loucura e 0 lado sombrio, suprimido,seqiiestrado, da consciencia e da paixao hurnanas, que 0 llu-

Referencias

Tempo, espar;o e regionalizar;a.o

187TEMPO, ESPA90 E REGIONALIZA9AO

1. Ver Hagerstrand, T. "Space, time and human conditions". In:Karlqvist, A. Dynamic Allocation of Urban Space. Farnborough,Saxon House, 1975; Gregory, Derek. Ideology, Science and Hu­man Geography. Londres, Hutchinson, 1978; "Solid geometry:notes on the recovery of spatial structure" .In: Carlstein, T. et alii.Timing Space and Spacing Time. Londres, Arnold, 1978; Carlstein,T. Time Resources, Society and Ecology. Lund, Department ofGeography, 1980; Pred, Alan. "The choreography of existence:comments on Hagerstrand's time-geography". Economic Geo­graphy, vol. 53,1977; Parkes, Don e Thrift, Nigel. Times. Spacesand Places. Chichester, Wiley, 1980; Thrift, Nigel. "On the determi­nation of social action in space and time". Society and Space, vol. 1,1982.

minismo e 0 pensamento modemo sao incapazes de conceberde qualquer outro modo salvo como "nao-razao". Nas culturastradicionais ou, pelo menos, na Europa medieval, afolie conti­nha sua propria razao, permitindo algo como urn acesso diretoa Deus. Mas em meados do seculo XVII e dai em diante, "aloucura deixou de ser, nas margens do mundo, do homem ou damorte, uma figura escatologica; a escuridao em que os olhosda loucura foram treinados, da qual nasceram as formas do im­possive!, evaporou-se [...]"". Mas talvez essa concep,ao invis­ta a !oucura de uma grandeza que ela nao tern e nunca teve. Aocolocar a loucura como a outra face da razao, ela pode expres­sar apenas aquelas teses iluministasque simula depreciar. Podemuito bern ser que as pistas para 0 carater da loucura ou, emsuas roupagens modemas, da "doen,a mental" nao se encon­trem na extravagiincia de falsas cren,as, alucina,5es, vis5es deoutros mundos, mas nas caracteristicas muito mais comuns daimpropriedade corporal e gestual. A incapacidade social, naourn misterioso acesso a urn continente perdido de nao-razao,podera expressar sua natureza real.

II

A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE186

,

Page 116: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

2. Hagerstrand, T. "Space, time and human conditions", cit.; cf. tarn­bern: Parkes, Don e Thrift, Nigel. Times, Space and Places, cit.,pp,247-8,

3. Pred, Alan. "The impact of technological and institutional inno­vations of life content: some time-geographies observations".Geographical Analysis, voL 10, 1978.

4. Hagerstrand, T. Innovation as a Spatial Process. Chicago, Chica­go University Press, 1967, p. 332; cf. tambom: Hawley, Amos H.Human Ecology. Nova York, Ronald Press, 1950, caps. 13-5;Ericksen, E. Gordon. The Territorial Experience. Austin, Uni­versity ofTexas Press, 1980.

5. Segundo Parkes, Don e Thrift, NigeL Times, Spaces and Places,cit., p. 245.

6. Janelle, D. G. "Spatial reorganisation: amodel and concept". Annalsa/the Association ofAmerican Geographers, vol. 58,1969, e ou­tros artigos pelo mesmo auter.

7. Forer, P./n: Carlstein, T. et alii. Timing Space and Spacing Time,cit.

8. Palm, R. e Pred, A. "A time-geographic perspective on problemsof inequality for women". In: Lanegran, D. A. e Palm, R. An In­vitation to Geography. Nova York, McGraw-Hill, 1978.

9. Hagerstrand, T. "Survival and arena: on the life-history ofindivi­duals in relation to their geographical environment". In: Carlstein,T. et alii. Timing Space and Spacing Time, cit., vol. 2, p. 123.

10. Carlstein, T. "Innovation, time-allocation and time-space pac­king", ibidem, p. 159; Carlstein, T. Time Resources, Society andEcology, cit.

11. Cf. Carlstein, T. "The sociology of structuration in time andspace: a time-geographic assessment ofGidden's theory". SwedishGeographical Yearbook, Lund, Luod University Press, 1981.

12. Hagerstrand, T. "What about people in regional science?". Papersofthe Regional Science Association, vol. 24, 1970, p. 8.

13. CCHM, capitulo 5.14. Ibidem, pp. 161 ss.; CPST, pp. 206-10.15. Melbin, M. "The colonisation of time". In: Carlstein, T. et alii.

Timing Space and Spacing Time, cit., vol. 2, p. 100.16. Zerubavel, Evitar. Patterns ofTime in Hospital Life. Chicago, Uni­

versity ofChicago Press, 1979, p. 22; cf. lambem: Clark, P. A. "Areview of the theories of time and structure for organisationalsociology". University ofAston Management Centre Working Pa­pers, n. 248, 1982; ZerubaveI, Evilar. Hidden Rythms. Chicago,

University of Chicago Press, 1981. Poderiamos assinalar que,enquanto "ano", "mes" e "dia" tern vinculos com eventos naturais,"semana" nao tern; cf. Colson, F. H. The Week. Cambridge, Cam­bridge University Press, 1926.

17. Aries, P. Centuries ofChildhood. Harmondsworth, Penguin, 1973;Elias, Norbert. The Civilising Process. Oxford, Blackwell, 1978.

18. Hall, Edward T. The Hidden Dimension. Londres, Bodley Head,1966, p. 98.

19. Artaud, Antonin. Le theatre et la science. Paris, SeuiI, 1947, p. 98.20. Laing, R. D. Self and Others. Harmondsworth, Penguim, 1971,

p. 52. [Edi9ao brasileira: 0 eu e os outros, Editora Vozes, 4~ edi­,ao,1978.]

21. CCHM,p. 169.22. Benyon, Huw. Working for Ford. Londres, Allen Lane, 1973,

p.76.23. Elias, Norbert, op. cit., vol. 1.24. Goffman, Erving. The Presentation of Seif in Everyday Life.

Nova York, Doubleday, 1959,p.128.25. Cf. Elias, N. e Scotson, J. The Established and the Outsiders. Lei­

cester, University ofLeicester Press, 1965.26. Weber, Max. Economy and Society. Berkeley, University of Ca-

lifornia Press, 1978, vol. 1, pp. 341-4.27. CSAS, cap. 9.28. CCHM, cap. 5 passim.29. Bourdieu, Pierre. Outline of a Theory of Practice. Cambridge,

Cambridge University Press, 1977, pp. 143-52.30. Ibidem, p. 153.31. Pollard, Andrew. "Teacher interests and changing situations of

survival threat in primary school classrooms". In: Woods, Peter.Teacher Strategies. LondIes, Croom Helm, 1980.

32. Collins, Randall. "Micro-translation as a theory-building strategy".In: Knorr-Cetina, K. e Cicourel, A. V. Advances in Social Theoryand Methodology. Londres, Routledge, 1981. Ver lambom: idem."On the micro-foundations of macro-sociology". American Jour­nal ofSociology, vol. 86,1981. Para os pensamentos de Goffmansobre 0 assunto - apresentados numa conferencia que, lamentavel­mente, ele nao viveu 0 bastante para proferir - ver: "The interac­tion order". American Sociological Rc;.view, vol. 48, 1973.

33. Ibidem, p. 82.34. Ibidem, p. 99.

188 A CONSTITUIr;A'O DA SOCIEDADE TEMPO, ESPAr;O E REGIONALIZAr;A'O 189

Page 117: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Notas criticas: Foucault sabre distribuit;iio de tempo e de espat;o

35e Rykwert, Josephe The Idea oja Towne Londres, Faber & Faber,1976, p. 202.

36. CCHM, cap. 5.

I. Foucault, M. Discipline andPunish. Harmondsworth, Penguin, 1979,pp. 143-4.

2. Ibidem, p. 148.3. Cf. Feld, Maury D. The Structure oj Violence. Beverly Hills,

Sage, 1977, pp. 7 SSe

4. Ibidem, p. 7.

5. Doom, Jacques van. The Soldier and Social Change. BeverlyHills, Sage, 1975, p. II.

6. Foucault, M. Discipline andPunish, cit., p. 157.7. Ibidem, p. 160.8. Weber, Max. Economy and Society. Berkeley, University ofCa-

lifomia Press, 1978, pp. 86-94.9. Ibidem, p. 957.

10. Foucault, M. Discipline and Punish, cit., pp. 235-6.II. Goffin'll, Erving. Asylums. Harmondsworth, Penguin, 1961, p. 22.

[Edi~iio brasileira: Manicomios, prisoes e conventos. Editora Pers­pectiva, 1974, p. 22.J

12. Ibidem, p. 33 [po 31 da edi9ao brasileira].13. Ibidem, p. 64 [po 62 da edi9ao brasileira].14. Cf. Friedman, Andrew L. Industry and Labour. Londres, Mac­

millan, 1977.15. Foucault, M. Folieetderaison. Paris, Pion, 1961, p. 51. A preocupa­

<;ao de Foucault com exclusao, seqiiestra9ao etc. nao eacompanhadade uma preocupa<;ao com os proprios excluidos, que aparecemapenas como figuras indistintas. Assim, em sua analise do casodo homicida Pierre Riviere, 0 proprio personagem mal se destaca dodepoimento discutido, °qual etratado apenas como urn "episodiodiscursivo". A descri9ao de Carlo Ginzburg da cosmologia de Men­nochio, urn herege do seculo XVI, oferece uma compara9ao sig­nificativa a esse respeito. Ver: Foucault, M. et alii. Moi, PierreRiviere... Paris, PIon, 1973; Ginzburg, Carlo. The Cheese and theWorms. Londres, Routledge, 1989, pp. xvii-xviii passim.

Tentarei aqui assegurar-me de que as principais linhas dopresente estudo nao fiquem desagregadas dernais na mente do lei­tor, resurnindo 0 proposito geral das se90es precedentes do livro.Na tearia da estrutura9ao, urna serie de dualismo ou oposi90esfundamentais para outras escolas de pensamento social sao re­conceituados como dualidades. 0 dualismo "individuo" e "so­ciedade", em particular, e reconceituado como a dualidade agen­cia e estrutura. Ate 0 momento, concentrei-me principalmenteno desenvolvimento de urna serie de conceitos que servem paraelucidar a que 0 "individual' ecomo agente reflexivo, ligandolreflexividade com posicionamento e co-presen9a. Entretanto, adiscussao da regionaliza9ao come9a apontando 0 caminho nosentido de mostrar como esses interesses se entrecruzam com 0estudo de sistemas sociais estendidos sobre vastos lapsos detempo-espa90. Portanto, 0 passo seguinte consiste em observarem maior detalhe 0 conceito de sociedade, considerado pormuitos a principal unidade de analise nas ciencias sociais. 0 ter­mo precisa ser examinado cuidadosamente, e proporei a conve­niencia de evitar alguns usos por completo.

Em certas tradi90es da teoria social, 0 conceito de socie­dade esta caracteristicamente ligado de modo direto ao de coer­9ao. De fato, a tendencia dos defensores da sociologia estruturale de considerar a coer9ao de alguma forma como a caracteristi­ca definidora dos fenomenos sociais. Rejeitando esse ponto devista, tentarei esclarecer a asser9ao de que as propriedades es­truturais dos sistemas sociais sao simultaneamente facilitadorase coercivas, e especificarei como deve ser entendida a "coer9ao

Capitulo IV

Estrutura, sistema, reprodufiio social

e!

,A CONSTITUf(;:A-O DA SOCIEDADE190

Page 118: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Sociedades, sistemas sociais

Efacil ver que, no uso comurn, 0 termo "sociedade" terndois sentidos principais (entre outras coisas, enquanto "socieda­de" na acep,ao de "alta sociedade"): urn abrange a conota,aogeneralizada de intera,ao ou "associa,ao social"; 0 outro e ano,ao de que "urna sociedade" constitui urna unidade, com fron­teiras que a distinguem de outras que a circundam, A ambigui­dade do termo envolvendo esses dois sentidos emenos infeliz doque parece, pois as totalidades sociais nem sempre tern frontei­ras claramente demarcadas, embora estejam tipicamente asso­ciadas a formas definidas de local. A tendencia a supor que associedades, como totalidades sociais, sao unidades de estudo

estrutural". 1880, por sua vez, envolve indicar como muitos con­ceitos associados com 0 de "estrutura" poderiam ser mais bernformulados. Contudo, essa formula,ao nao pode ser desenvolvi­da inteiramente num nlve! conceptual. Assim como fornecialguma substiincia a discussao de agencia e self na forma deuma descri,ao da motiva,ao, apresentarei tambem uma classi­fica,ao e interpreta,ao de tipos sociais para substanciar a ana­lise de propriedades estruturais. Isso, par sua vez, leva-nos devolta a questaes de "historia", 0 que preparara 0 caminho paraurn exame de problemas de analise da mudan,a social no capi­tulo seguinte.

Urn livro tern urna forma sequencial, que pode ser superada,em certa medida, "circulando para dentro e para fora" de urna se­rie de questaes encadeadas, mas que tern, inevitavelmente, cadaurna delas, seu proprio espa,o de apresenta,ao. Aluz da aborda­gem que fiz no Capitulo I, penso que, embora as se,aes sobreagente e co-presen,a precedam no texto as relacionadas com sis­temas sociais mais amplos, nao se presurnira que estou concep­tualmente "come,ando com 0 individuo" ou que para mim osindividuos sejam reais de urn modo que as sociedades nao 0 sao.Nao aceito qualquer desses pontos de vista, como as "Notas criti­cas" em apendice a este capitulo devem deixar bern claro.

193

* As referencias podem seT encontradas a pp. 260-3.

ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIAL

facilmente definiveis foi influenciada por numerosos e nocivospressupostos nas cii'mcias sociais, Urn deles e a propensao paraentender "sistemas sociais" em estreita rela,ao conceptual comos sistemas biologicos, os corpos de organismos biologicos.Sao muito poucos os que hoje usam analogias orgiinicas diretas nadescri,ao de sistemas sociais, como era a tendencia de Durkheim,Spencer e muitos outros pensadores sociais do seculo XIX.Mas os paralelos implicitos continuam sendo muito comuns,mesmo entre aqueles, por exemplo, que falam de sociedadescomo "sistemas aberlos". Urn segundo fator e a preponderiin­cia do que eu chama de "modelos desdobraveis" ou "endoge­nos" nas ciencias sociais1*, os quais pressupoem que as princi­pais caracteristicas estruturais de uma sociedade, governandotanto a estabilidade quanto a mudan,a, sao internas a essa so­ciedade. Ebastante evidente a razao pela qual isso se liga comfrequencia ao primeiro tipo de concep,ao: imagina-se que associedades tern propriedades analogas as que controlam a for­ma e 0 desenvolvimento de urn organismo. Finalmente, cum­pre mencionar a tendencia generalizada de estender a todas asformas de totalidade social caracteristicas que, de fato, sao es­pecificas das sociedades modernas enquanto na,aes-Estados.As na,aes-Estados tern fronteiras territoriais clara e precisamen­te delimitadas, mas outros tipos de sociedade, de muito longeas mais numerosos na Historia, nao as tem2

.

A resistencia a esses pressupostos pode ser facilitada sereconhecermos que as totalidades sociais so sao encontradasdentro do contexto de sistemas intersociais distribuidos ao lon­go das extremidades do tempo-espa~o (ver pp, 287-9). Todasas sociedades sao sistemas sociais e, ao mesmo tempo, consti­tuidas pela interse,ao de multiplos sistemas sociais. Estes podemser totalmente "internos" as sociedades ou transpor as linhasdivis6rias entre 0 "interior" e 0 "exterior", fonnando uma diver­sidade de possiveis modos de conexao entre totalidades sociaise sistemas intersociais. Os sistemas intersociais nao saO imagi-

II

A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE192

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E importante voltar a enfatizar aqui que a expressao "sis­tema social" nao deve ser entendida como designando somentefeixes de rela90es sociais cujas fronteiras estao assinaladas

mirios e envolvem caracteristicamente formas de rela9ao entresociedades de diferentes tipos. Jodas estas podem ser estudadascomo sistemas de domina9ao'em termos de rela90es de auto­nomia e dependencia vigentes entre eles. As "extremidades dotempo-espa90" lJ'ferem-se a jnterconexoes, e a diferenciais de po­der, encontrados entre distintos tipos sociais, incluindo os sis­temas intersociais.

Em suma, as "sociedades" sao, pais, sistemas sociais que"se destacam" em baixo-relevo de urn fundo constituido portoda uma serie de outras rela90es sistemicas, nas quais elas es­tao inseridas. Destacam-se porque principios estruturais defi­nidos servem para produzir urn "aglomerado de institui90es"global especificavel atraves do tempo e do espa90. Esse aglo­merado e a primeira e mais bisica caracteristica identificadorade uma sociedade, mas foram assinaladas outras tambem'. Es­tas incluem:

I) Vma associa9ao entre 0 sistema social e urn local ou territo­rio especifico. as locais ocupados por sociedades nao saonecessariamente areas fixas. As sociedades nomades erramem percursos tempo-espa90 de tipos variaveis.

2) A existencia de elementos normativos que envolvem a pre­tensao de legitima ocupa9ao do local. as modos e estilos detais pretensoes de legitimidade podem, e claro, ser de muitostipos e ser contestados em maior ou menor grau.

3) A preponderiincia, entre os membros da sociedade, de senti­mentos de que possuem alguma identidade comum, COmoquer que esta se expresse ou se revele. Esses sentimentospodem ser manifestos tanto na consciencia pritica quanta naconsciencia djscursiva e nao pressup5em urn "consenso devalor". as individuos podem estar conscios de pertencer aurna coletividade determinada sem concordar em que issoseja necessariamente correto e apropriado.

195ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIAL

com clareza, separando-os de outros. a grau de "sistemidade"e muito variavel. "Sistema social" tendia a ser uma expressaofavorita dos funcionalistas, que raramente abandonaram porcompleto as analogias organicas, e dos "teoricos do sistema",que tinham em mente ou sistemas fisicos OU, uma vez mais,alguns tipos de forma9ao biologica. Admito que urna das prin­cipais caracteristicas da teoria da estrutura9ao seja considerarproblematicos a extensao e 0 "fechamento" de sociedades notempo e no espa90.

A tendencia a adotar as na90es-Estados como formas"tipicas" da sociedade, por referencia as quais outras podemser avaliadas, e tao forte na literatura da teoria social que vale apena desenvolver este ponto. as tres criterios acima mendona­dos aplicam-se diferencialmente em varios contextos sociais.Considere-se, por exemplo, a China tradicional nurna data rela­tivamente recente, cerca de 1700 da nossa era. Ecomurn entreos sinologistas falar-se de "sociedade chinesa" nesse periodo.Sob esse rotulo, os estudiosos analisam fenomenos como asinstitui90es do Estado, a pequena nobreza rural, unidades eco­nomicas, padroes de familia etc., considerando tudo isso con­vergente com urn sistema social global especificavel, a "China".Mas a "China", assim designada, refere-se apenas a urn peque­no segmento do territorio que urn funcionario do govemo teriaconsiderado a terra dos chinese';.. De acordo com sua perspecti­va, existia somente uma sociedade na Terra, centrada na "Chi­na" enquanto capital da vida cultural e politica, mas dilatando­se de modo a incluir urna diversidade de barbaros nas areas lim!­trofes exteriores. Embora estes ultimos atuassem como se fos­sem agrupamentos sociais distintos dos chineses, eles eramconsiderados oficialmente pertencentes a China. as chinesesde 1700 incluiam no conceito de "China" 0 Tibete, a Birmaniae a Coreia, porquanto estavam, em certos aspectos, ligados aocentro. Existe urna base para a n09ao mais restrita de "China"adotada pelos historiadores e cientistas sociais ocidentais. Masmesmo a aceita9ao de que havia urna "sociedade chinesa" dis­tinta em 1700, separada do Tibete etc., significa geralmentecolocar sob essa designa9ao varios milhOes de grupos etnica­mente dist!ntos do sui da China. Essas tribos consideravam-se

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A CONSTITUIr;:A'O DA SOCIEDADE194

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independentes e detentoras de seus proprios orgaos de govemo.Elas eram, contudo, continuamente molestadas por represen­tantes governamentais chineses, que as tratavam como perten­centes ao Estado central.

As modernas na,oes-Estados ocidentais sao unidades admi­nistrativas altamente coordenadas no plano intemo, quandocomparadas as sociedades agrarias em maior escala. Levemosagora 0 exemplo urn pouco mais para mis, para a China doseculo V, e indaguemos que vinculos sociais poderiam existirentre urn campones chines da provincia de Ho-nan e a classedominante T'o-pa. 0 campones estava no mais baixo nivel daordem hirarquica, do ponto de vista dos membros da classedominante. Mas suas rela,oes sociais eram muito distintas domundo social do T'o-pa. A maioria de seus contatos seria comoutros, na familia nuclear e extensa: muitas aldeias compu­nham-se unicamente de membros da linhagem. Os camposestavam costumeiramente organizados de tal modo que osmembros de grupos de linhagem raras vezes se encontravamcom alguem que nao fosse seu afim no decorrer do dia de tra­balho. 0 campones teria visitado aldeias vizinhas, e talvez umacidade da regiao, apenas em duas ou trIOs ocasioes por ano. Napra,a do mercado de uma aldeia ou cidade vizinha, ele teriaencontrado outras classes ou categorias de pessoas - artifices,mercadores, artesaos e urn funcionilrio subaltemo da adminis­tra,ao estatal, a quem ele pagaria os impostos. Durante toda asua vida, com toda a probalidade, nunca tera visto um T'o-pa.Os funcionarios locais, que visitavam a aldeia, teriam de rece­ber quotas de cereal ou tecido. Mas 0 aldeao provavelmenteevitaria quaisquer outros contatos com 0 funcionalismo dosescaloes superiores, se algum dia eles fossem iminentes, poispoderiam potencialmente significar escaramu,as com a justi­,a, prisao ou servi,o militar for,ado.

As fronteiras reconhecidas pela administra,ao T'o-pa naoteriam coincidido com a extensao das atividades do agricultor,se este estivesse em certas areas no Ho-nan. Durante todo 0

periodo T'o-pa, numerosos camponeses e agricultores manti­veram contatos com membros de seus clas que viVlam do outrolado da fronteira, nos estados meridionais. Mas aqueles que

No seculo XIX, encontramos na provincia de Yun-nan 0 do­minic politico de uma burocracia que era controlada por Pequime representava 0 govemo "chines". Havia aldeias e cidades nasplanicies, habitadas por Qutros chineses que interatuavam comos representantes do govemo e, em certa medida, se identificavam

nao tivessem tais contatos tratariam os de alem-fronteira comomembros de seu proprio povo e nao como estrangeiros de umoutro estado. Suponhamos, porem, que encontrassem alguem daprovincia de Kan-su, no noroeste do Estado T'o-pa, Essa pes­soa seria tratada como completamente estranha, mesmo queestivesse trabalhando ao !ado deles nos campos, falaria outralingua (provavelmente urn dialeto mongol ou tibetano), vestir­se-ia de maneira diferente e teria costumes distintos. Tanto 0

campones qlianto 0 forasteiro provavelmente nao teriam cons­ciencia de que ambos fossem "cidadaos" do imperio T'o-pa,

Os sacerdotes budistas da epoca tambem representavamalgo fora do comum. Mas, com a exce,ao de uma pequenaminoria, diretamente nomeada pela nobreza T'o-pa, a fim deservir em seus templos oficiais, eles tinham da mesma formaescasso contato com a classe dominante. 0 local deles, ondesuas vidas estavam concentradas, era 0 mosteiro, mas apresen­tavam extensas redes de re!a,oes sociais, que iam desde a AsiaCentral ate 0 suI da China e a Coreia, Os mosteiros abrigavampessoas de origem etnica e lingiiistica muito diferente, reuni­das por seus objetivos religiosos comuns. Sua erudi,ao distin­guia essas pessoas de outros agrupamentos sociais, Os sacer­dotes budistas cruzavam as fronteiras estaduais sem restri,oes,indiferentes aqueles de quem eram nominalmente "suditos".Contudo, nao eram considerados estranhos a sociedade chine­sa, como aconteceu a comunidade arabe de Cantao no periodoT'ang, A admipistra,ao estatal lratava essa comunidade, em al­guns aspectos, como pertencente a sua juridis,ao, requerendodela 0 pagamento de impostos e instalando reparti,oes espe­ciais para lidat com seus membros, Mas tambem se reconheciaque ela pertencia a uma ordem social separada e, por conse­guinte, nao estava no mesmo nivel de outras dentro do dominiodo Estado, Urn exemplo final:

197ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr:;AO SOCIALA CONSTITUII:;AO DA SOClEDADE196

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Ao pensar em unidades maiores do que Estados imperiais,temos de evitar cair no etnocentrismo, algo tao facil de aconte­cer. Somos hoje facilmente propensos a falar da "Europa" comourna entidade sociopolitica distinta, por exemplo, mas isso fre­qtientemente resulta de uma leitura da Hist6ria as avessas. Co­mo sublinharam muitos historiadores interessados em perspec­tivas mais amplas do que as concentradas em na90es ou mesmo"continentes", se 0 complexo de sociedades que se estendempor toda a Afro-Eurasia fosse dividido em dois, nao faria muitosentido urna separa9ao entre a Europa como uma por9ao (0"Ocidente") e 0 resto como 0 "Oriente". A bacia mediterranica,por exemplo, era urna unidade hist6rica antes do Imperio Ro­mano e durante centenas de anos subseqtientemente. A india,deslocando-se para 0 Oriente, marcou urna disjun9ao culturalmaior do que a das varias terras do Oriente Medio com aquelasque confinam com a "Europa"; e houve urna descontinuidadeainda maior com a China. Como expressou laconicamente urnhistoriador, "0 Himalaia foi ainda mais eficaz do que 0 Hindu­Kush"'. As diferen9as entre importantes "areas culturais" eram,com freqtiencia, nao muito menos marcadas do que as existen­tes entre as unidades que reconheceriamos ordinariamente como

Estrutura e coer9ao: Durkheim e outros

urn importante inconveniente no paradigma de Giddens eque osaspectosfacilitadores cia estrutura nao sao suficientemente con­trabalan9ados pelos aspectos coercivos. as principios de limita-

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A maioria das formas de sociologia estrutura1, de Durkheimem diante, foram inspiradas pela ideia de que as propriedadesestruturais da sociedade formam influencias coercivas sobre aa9ao. Em contraste com essa concep9ao, a teoria da estrutura­9ao baseia-se na proposi9ao de que a estrutura e sempre tantofacilitadora quanta coerciva, em virtude da rela9ao inerenteentre estrutura e agencia (agencia e poder). Esui tudo muitobern, poderia dizer urn crhico ~ e alguns, de fato, disseram' -,mas essa concep9ao nao sacrifica, de fato, qualquer coisa se­melhante a "coer9ao" estrutural no sentido dado por Durkheim?Falar de estrutura como coerciva e facilitadora nao sen! fazerseu elogio sem substancia? Pois na teoria da estrutura9ao a"estrutura" e definida como regras e re<:ursos. Talvez seja facilver como a estrutura, nesse sentido, est:! implicada na gera9aode a9ao, mas as coisas nao sao rno evidentes quando a coer9aointervem, pois parece nao haver maneira de sustentar a "exter­nalidade" dos fen6menos sociais em rela9ao a atividade indivi­dual. Essa n09ao deve ser defendida, poder-se-ia sugerir, sejamquais forem as lacunas nos escritos dos principais responsaveispor afirma-Ia. Assim, Carlstein observa:

ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODU<;AO SOCIAL

"sociedades". A regionaliza9ao de amplo espectro nao deveriaser tratada como simplesmente composta de rela90es agrega­das entre "sociedades". Esse ponto de vista possui alguma vah­dade quando aplicado ao mundo modemo de na90es-Estadosinternamente centralizados, mas nao quando se fala de eras an­teriores. Assim, para alguns fins, toda a zona afro-eurasiana podeser tratada como urna unidade. A "civiliza9ao", de 6000 a.c.em diante, nao se desenvolveu apenas enquanto cria9ao de cen­tros divergentes; foi, em certos aspectos, uma continua expan­sao de "para fora" da zona afro-eurasiana como urn todo'.

A CONSTITUI<;AO DA SOCIEDADE

com este. Mas nas encostas das montanhas havia outros gropos,teoricamente tambem suditos cia China, mas vivendo suas pr6­prias vidas, ate onde Ihes era permitido, e tendo seus propriosvalores e institui90eS, inclusive seu proprio sistema economico.A intera<;ao com os chineses que viviam no vale era minima erestrita avenda de Ienha e compra de sal e texteis. Finalmente,havia com freqiiencia urn terceiro gropo no topa das montanhas,tarnbem com suas pr6prias institui<;oes, lingua, valores e reli­giao. Podemos, se quisennos, contornar essas condi<;oes qualifi­cando essa gente de "minorias". Entretanto, quanta mais recua­do for 0 periodo estudado, mais se verifica que essas aparentesminorias eram, oa verdade, sociedades auto-suficientes, autono­mas, apenas vagamente ligadas entre si, as vezes, por vinculoseconornicos e ocasional intera9aO; 0 relacionarnento dessas so­ciedades com 0 poder dorninante era tipicamente 0 de urn suditocom 0 conquistador no fmal de uma guerra, seodo minimos oscontatos de ambos os lados.4

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Argumentarei aqui, porem, que a teoria da estrutura,aonao minimiza, de maneira nenhuma, a importancia dos aspec­tos coercivos da estrutura. Mas a "coer,ao", tal como e discuti­da na sociologia estrutural, tende a apresentar numerosos senti­dos (a terminologia de Durkheim, com 0 valor que tern, oscilourealmente entre os termos contrainte' e coercition); e a "coer­,ao" nao pode ser considerada a unica qualidade definidora de"estrutura".

Na teoria da estrutura,ao, a estrutura sempre foi concebi­da como uma propriedade dos sistemas sociais, "contida" empriticas reproduzidas e inseridas no tempo e no espa,o. Os sis­temas sociais estiio organizados hienirquica e lateralmente den­tro de totalidades sociais, cujas institui,oes formam "conjuntosarticulados". Se esse ponto for ignorado, a no,ao de "estrutura"na teoria da estrutura,ao revela-se mais idiossincrasica do querealmente e. Uma das circunstancias que Durkheim geralmenteassocia a coer,ao (tambem sugerida na cita,ao de Carlstein)depende da observa,ao de que a longue duree de institui,oestanto precede quanto ultrapassa as vidas dos individuos nasci­dos numa determinada sociedade. [sso nao s6 e inteiramentecompativel com a teoria da estrutura,ao, como tambem inerenteem sua pr6pria formula,ao - embora a "socializa,ao" do indi­viduo na sociedade deva ser vista como envolvendo urn proces­so temporal mutuo, conectando os "ciclos vitais" da crian,a e

das figuras parentais. Em seus primeiros escritos, Durkheimenfatizou os elementos coercivos da socializa,ao, mas depoisele passou, de fato, a perceber com clareza cada vez maior quea socializa,ao funde a coer,ao com a facilita,ao. [sso e facil­mente demonstrado no caso da aprendizagem de uma primeiralingua. Ninguem "escolhe" sua lingua patria, embora aprendera fali-la envolva elementos definitivos de submissao. Comoqualquer lingua cerceia 0 pensamento (e a a,ao) no sentido deque pressupoe uma serie de propriedades articuladas e gover­nadas por regras, 0 processo de aprendizagem lingiiistica fixacertos limites a cogni,ao e a atividade. Mas, na mesma ordemde ideias, a aprendizagem de uma lingua tambem expande imen­samente as capacidades cognitivas e praticas do individuo.

Urn segundo contexto em que Durkheim tende a falar decoer,ao tampouco oferece dificuldades l6gicas para a teoria daestrutura,ao. Entretanto, temos de ser cuidadosos para evitaralguns dos dilemas que as pr6prias analises de Durkheim fazemsurgir nesse ponto. As totalidades sociais, sublinha ele, nao s6preexistem e sobrevivem aos individuos que as produzem emsuas atividades, mas tambem se expandem no espa,o e no tem­po para alem de qualquer agente considerado singularmente.Nesse sentido, as propriedades estruturais dos sistemas sociaissao certamente exteriores as atividades do "individuo". Na teoriada estrutura,ao, 0 essencial desse ponto pode ser assim apre­sentado. As sociedades humanas, au as sistemas sociais, naoexistiriam, em absoluto, sem a agencia humana. Mas nao setrata de que os agentes, ou autores, criam sistemas sociais: elesos reproduzem ou transformam, refazendo 0 que ja esta feito nacontinuidade da praxis'. A medida de distanciamento tempo­espa,o e importante aqui. De modo geral (embora, por certo,nao universalmente), e verdade que quanto maior for 0 distan­ciamento tempo-espa,o de sistemas sociais - quanto mais suasinstitui,oes se fixam com firmeza no teplpo e no espa,o - tantomais eles resistem a manipula,ao ou mudan,a por qualqueragente individual. Esse significado de coer,ao tambem estaacoplado a facilita,ao. 0 distanciamento tempo-espa,o fechaalgumas possibilidades de experiencia humana, ao mesmo tempoque abre outras.

200 A CONSTITUIr;AO DA SOCIEDADE

vaa sao pouquissimos e, ao dizer isto, nao me refiro simplesmen­te as coer~5es morais-Iegais-normativas de natureza social enfa­tizadas por Durkheim e Parsons, isto e, as estruturas de legitimi­<;:ao. Refiro-me, outrossim, as coer~oes basicas de mediafQO e

limitafQO de recursos que tern suas ralzes em certas realidadesbi6ticas e fisicas da existencia. Sem duvida, a estrutura tambemdeve implicar limites avaria<;:ao e acontingencia em sistemassociais (sistemas socioambientais). Eclaro, existe margem paraa varia<;:iio e a criatividade humana. A Hist6ria provou repetidasvezes como a aplica<;:ao de ideias e inven<;:oes em todos os domi­nios da pratica altera a estrutura recebida. Mas esta ultima emaci<;:amente inclinada para 0 passado e impoe uma severa sele­9ao as coisas que sao produzidas e reproduzidas. [...]8

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ESTRUTURA, SISTEMA. REPRODUr;AO SOCIAL 201

Page 123: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Quando fa90 meu papel de innao, marido ou cidadao, quan­do satisfaco os compromissos que assumi, cumpro deveres queestiio definidos, para alem de mim e de meus atos, no direito enos costumes. Mesmo quando esmo de acordo com meus proprios

A formula,ao dessa questao pelo proprio Durkheim, porem,e insuficiente, porque enunciada na terminologia do que viria aser chamado por numerosos autores de as "propriedades emer­gentes", Assim, Durkheim comenta:

A dureza do bronze naq vern do cobre, do estanho ou dochumbo, que serviram para fonmi-Io e sao corpos moles e due­teis, mas sim de sua mistura. A fluidez da agua, suas proprieda­des de slistento e olltras nao se encontram nos dais gases que acompoem, mas na substancia complexa resultante de sua asso­ciac;ao. Apliquemos esse principia asociologia. Se, como nosdaD par certo, essa sintese sui generis que constitui teda socie­dade da origem a fenomenos novos, diferentes dos que ocorremnas consciencias isoladamente, efon;oso admitir que esses fatosespecificos residem na propria sociedade que os produz e naoem suas partes, quer dizer, em seus membros. Sao, portanto, nes­se sentido, exteriores a consciencia dos individuos enquanto tais,do mesmo modo que os aspectos distintivos da vida sao exterioresas substancias quimicas que compoem 0 ser vivo. IO

203

sentimentos e sinto arealidade deles dentro de mim, esta nao dei­xa de ser objetiva, pais esses deveres nao foram estabelecidospor mim. [... ]11

o ponto aqui e que os "fatos sociais" tem propriedadesque confrontam cada individuo particular como caracteristicas"objetivas" que limitam 0 ambito de a,ao desse individuo, Elesnao sao apenas externos mas tambem externamente definidos,incorporados no que outros fazem ou no que consideram certoe adequado fazer,

Certamente ha algo de correto quanta a essa pretensao,mas Durkheim foi impedido de expressa-Ia de modo satisfato­rio por causa das ambiguidades acerca da no,ao de externali­dade, Ao ligar externalidade e coer,ao, sobretudo em seus es­critos mais antigos, ele quis refor,ar uma concep,ao naturalistade ciencia sociaL Por outras palavras, quis buscar apoio para aideia de que existem aspectos discerniveis da vida social go­vernados por for,as analogas as que operam no mundo mate­riaL E claro, a "sociedade" nao e manifestamente externa aosatores individuais exatamente no mesmo sentido em que 0 meioIhes e externo, Assim, 0 paralelo resulta ser, na melhor dashipoteses, um tanto vago, e uma preocupa,ao a respeito subsis­tiu incomodamente na obra subsequente de Durkheim, de parcom 0 reconhecimento de que a "faticidade" no mundo sociale, em certos aspectos basicos, um fenomeno muito diferente da"generosidade" da natureza.

Durkheim concentrou-se sobretudo nas coer,oes sociaisem suas varias discussoes da natureza da sociologia. Entretan­to, como Carlstein sublinhou muito corretamente - e como euacentuei antes, apoiando-me no tempo-geografia de que ele pro­prio se ocupa -, as coer,5es fundamentais sobre a a,ao estaoassociadas as influencias causais do corpo e ao mundo mate­riaL Ja assinalei que essas coer,5es sao consideradas de impor­tancia essencial na teoria da estrutura,ao, Capacidade e restri­,5es de acoplamento, dentro de cenarios materiais definidos,"selecionam" (como ele disse) de fato as possiveis formas deatividade em que os seres humanos se envolvem, Mas essesfenomenos tambem sao, ao mesmo tempo, caracteristicas faci-

ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIALA CONSTITUJ(;AO DA SOCIEDADE202

Transcrevi esta passagem com alguma extensao porque emuito conhecida e tem sido frequentemente citada como umaformula,ao particulannente persuasiva, Os sistemas sociaispossuem propriedades estruturais que nao podem ser descritasem termos de conceitos pertinentes aconsciencia dos agentes.Mas os atores humanos, como "agentes competentes" reconhe­civeis, nao existem separados uns dos outros como 0 cobre, 0estanho e 0 chumbo, Eles nao se reunem ex nihilo para formaruma nova entidade gra,as a sua fusao ou associa,ao, Nesteponto, Durkheim confunde uma concep,ao hipotetica de indi­viduos num estado natural (oilo maculados pela associa,ao comoutros) com processos reais de reprodu,ao sociaL

Uma terceira circunstancia em que a '''coen;ao'' aparecenos escritos de Durkheim esta em justaposi,ao com 0 escopode a,ao do agente. Ele da 0 seguinte exemplo, entre outros:

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litadoras de a~ao. Alem disso, como acentuei, existem importan­tes deficiencias nas formula~5es usuais de tempo-geografia.

Os aspectos acima de coer,ao/facilita~ao nao sao a mes­rna coisa que (nem sao redutiveis a) opera,5es de poder na vidasocial. De fato, a sociologia de Durkheim pode ser consideradairremediavelmente falha a respeito da ausencia de uma concep­~ao de poder distinta das propriedades coercivas generalizadasdos "fatos sociais". Consideremos uma ultima e celebre passa­gem de Durkheim, Diz ele que a coer,ao e

intrinsecamente uma caracteristica dos fatas [sociais]. [... ] a pro­va disso eque ela se afirrna assim que teota resistir. Se teota vio­lar as regras do direito, elas reagem contra mim de modo a impe­dir minha ac;ao, se aioda for passivel. Altemativamente anulamou tomarn minha ac;ao ajustada it nonna, case ja tenha sido exe­cutada, mas seja reparavel; ou fazem corn que eu seja punido porela, se nao hOllver fonna de reparac;ao. [... ] Noutros casas, acoen;:ao emenos violenta, mas nao deixa de existir. Se nao mesubmeto as convenc;5es ordinarias, se meu modo de vestir naoleva em conta os costumes seguidos em meu pais e em minhaclasse social, 0 riso que provoco e 0 distanciamento em que mecoloco produzem, ainda que de maneira mais atenuada, os mes­mos efeitos de uma puni9ao propriamente dita12•

A coer~ao refere-se aqui a estrutura~ao de sistemas sociaiscomo formas de poder assimetrico, em conjun,ao com 0 qualuma serie de san,5es normativas podem ser aplicadas contraaqueles cuja conduta e condenada, ou desaprovada, por outros.Como indica 0 enunciado de Durkheim, as coer,5es geradaspor diferentes tipos de recurso podem variar desde a coer~ao

fisica nua e crua ate os metodos muito mais sutis de produzirsubmissao. Mas nao traz beneficio nenhum fazer com que essesignificado da coer,ao se mescle aos outros, Alem disso, comosublinhei com firmeza, 0 poder nunca e meramente uma coer­~ao, mas esti na propria origem das capacidades dos agentesde realizar as a~5es pretendidas.

Cada uma das virias formas de coer~ao tambem e, pois,de diversas maneiras, urna for~a de facilita~ao. Elas servem para

205

Considerarei, em primeiro lugar, 0 significado de coer~ao

com respeito a coer~ao material e a associada a san~5es, e pas­sarei depois a estrutural. 0 que e coer,ao quando falamos dosaspectos coercivos do corpo e de sua localiza,ao em contextosdo mundo material? 0 termo refere-se, nesse caso, evidente­mente, aos limites que as capacidades fisicas do corpo huma­no, somadas as caracteristicas relevantes do ambiente fisico,imp5em as op~5es viiveis ao dispor dos agentes. A indivisibi­lidade do corpo, a finitude do tempo de dura,ao da vida e asdificuldades de "acondicionamento" no tempo-espa~o, desta­cadas por Hiigerstrand, sao outros tantos exemplos de tais limi-

abrir certas possibilidades de a~ao, ao mesmo tempo que res­tringem ou negam outras. E importante enfatizar esse ponto,porque mostra que aqueles (incluindo Durkheim e muitos ou­tros) que alimentaram a esperan~a de descobrir urna identidadedistintiva para a "sociologia" na identifica~ao da coer~ao es­trutural envolveram-se nurn empreendimento inutil. Explicita­mente ou nao, a tendencia desses autores foi de enxergar nacoer~ao estrutural uma fonte de causa~ao mais ou menos equi­valente a opera,ao de for~as causais impessoais na natureza, 0raio de "a,ao livre" dos agentes e restringido, por assim dizer,por for,as externas que fixam limites estritos ao que eles po­dem realizar, Quanto mais a coer~ao estrutural esti associada aurn modelo da ciencia natural, paradoxalmente, maior a liber­dade do agente - dentro de qualquer espa~o de a,ao individualdeixado aberto pela interven,ao da coer,ao, Por outras pala­vras, as propriedades estruturais dos sistemas sociais sao comoas paredes de urn quarto de onde 0 individuo nao pode fugir,mas em cujo interior ele consegue movimentar-se a vontade, Ateoria da estrutura~ao substitui esse ponto de vista por outroque sustenta estar a estrutura implicita nessa mesma "liberdadede a~ao" que e tratada como categoria residual e inexplicadanas virias formas de "sociologia estrutural",

ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODU,AO SOCIAL

Tres sentidos de "coefl;ao"

A CONSTITUJ(;JO DA SOCIEDADE204

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tes. As capacidades sensoriais e comunicativas do corpo huma­no sao ainda outros. Estamos tao habituados a trata-Ias comoqualidades facilitadoras que e necessario proceder como que aurna reviravolla conceptual para deixar claro que tambem saocoercitivas. Obviamente essas coer90es nao sao totalmente"'dadas", de uma vez por todas; a inven9ao da comunicayao ele­tronica, por exemplo, alterou a rela9ao preexistente entre a pre­sen9a e os meios sensoriais do corpo. Entre as categorias acimamencionadas, a coen;:ao, nesse sentido, ea (mica que nao den­va do impacto que as atividades ou liga90es sociais dos atoresexercem sobre as de outros atores. A capacidade fisica e as res­tri90es de acoplamento sao limites para as vidas sociais viaveisque as pessoas podem levar.

a procedimento tempo-geogrifico, de come9ar a analisesocial partindo da identifica9ao de coer90es fisicas, e certa­mente util se determinadas qualifica90es forem levadas em conta.Uma, como ja disse, esta em que as propriedades fisicas docorpo e seus milieux materiais de a9ao sao tanto facilitadoresquanta coercivos, e esses dais aspectos tern de ser estudadosjuntos. Uma outra esta em que a identifica9ao de coer90es fisicasnao fomece combustivel para alimentar e defender urna inter­preta9ao materialista da vida social. Todos os seres humanostern de defrontar as coer90es do corpo, seus meios de mobili­dade e comunica9ao. Mas disso nao se segue que os modos deenfrentar essas coer90es tenham, de algurn modo, uma influen­cia mais fundamental sobre a atividade social do que a deoutros tipos de coer9ao. .-/

Voltando ao poder enquanto fonte de coer9ao, curnpre su­blinhar que ele e 0 meio de conseguir que as coisas sejam fei­tas; em definitivo, e tanto facilitador quanto coercivo. as as­pectos coercivos do poder sao experimentados como sanr8esde vinos tipos, indo desde a aplica9ao direta da for9a ou da vio­lencia, ou a amea9a disso, ate a expressao moderada de desa­prova9ao. As san90es so muito raramente assurnem a forma decompulsao a que aqueles que as sofrem sao totalmente incapa­zes de resistir, e mesmo isso pode acontecer apenas por urn brevemomento, como quando uma pessoa fica fisicamente desam-

parada sob 0 jugo de outra ou de outras. Todas as outras san­90eS, par mais opressivas e abrangentes que possam ser, reque­rem algum tipo de aquiescencia por parte daqueles que se Ihessuhmetem - 0 que ea razao para 0 alcance mais ou menos uni­versal da dialetica de controle. Esse e urn terreno bastantefamiliar. Ate mesmo a amea9a de morte e desprovida de qual­quer peso, exceto no caso de 0 individuo assim amea9ado valo­rizar, de algurna forma, a vida. Dizer que urn individuo "naotinha outra allemativa que agir de tal e tal maneira", numa si­tua9ao tal significa, evidentemente: "Dado 0 seu desejo de naomorrer, a unica altemativa que the restou foi agir como agiu." Eclaro, quando a amea9a apresentada por urna san9ao nao e taoletal, a submissao podera depender mais de mecanismos da cons­ciencia do que do medo de qualquer san9ao - algo, de fato, aque Durkheim conferiu consideravel enfase ao falar sobre"san.;oes marais". No caso das san90es, existem, obviamente,importantes assimetrias na rela9ao coer9ao/facilita9ao. A coer­9ao de uma pessoa e a facilita9ao de urna outra. Entretanto,como foi demonstrado pelas criticas as teorias de soma-zero,tais assimetrias nao esgotam, em absoluto, 0 aleance do con­ceito de poder.

Devemos ter em mente, por urn lado, 0 sentido urn tantovago que os tennos como "aquiescencia", "complacencia" ou"submissao" tendem a ter e, por outro, 0 fato de que, de formaalguma, toda "aquiescencia" nurn dado conjunto de rela90es depoder e diretamente motivada. Aquiescer nurn determinado cursode a9ao poderia ser interpretado como a aceita9ao conscientedeste e ate mesmo a aceita9ao "voluntiria" das rela90es de podermais amplas nas quais ele se insere. Entendida desse modo, aaquiescencia cobriria apenas urna pequena e relativamente mar­ginal propor9ao de casos em que a conduta de urn ator ou agrega­do de atores se adequa ao desejo ou interesse de outros. Geral­mente as san90es so sao muito "visiveis" quando algum tipo detransgressao especificada realmente ocorre ou e percebida comosuscetivel de ocorrer. Com freqiiencia, as rela90es de poder estaoprofundamente enraizadas em modos de conduta tidos por certospor aqueles que os adotam, muito especialmente no comporta­mento rotinizado, 0 qual e apenas difusamente motivado.

206 A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADEESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;JO SOC/AL 207

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o que e, pois, a coer9ao estrutural? Vma vez que a coer9aoresultante de san90es forma urna categoria a parte, os outros pon­tos de Durkheim fundem-se nurn s6, se forem minuciosamenteexaminados. Dizer que a sociedade preexiste as vidas de cada urnde seus membros individuais, em qualquer momenta dado, signi­fica apenas identificar urna fonte de coer9ao, na medida em quesua preexistencia limita, de certo modo, as possibilidades abertasa eles. Enfatizar que os individuos estao contextualmente situa­dos em rela90es sociais de maior ou menor extensao significaapenas, similarmente, identificar urna fonte de coer9ao, quandose mostra ate que ponto isso limita suas capacidades, Em cadacaso a coer9ao provem da existencia "objetiva" de propriedadesestruturais que 0 agente individual e incapaz de mudar. Tal comono caso das qualidades coercivas das san90es, a coer9ao estrutu­ral e mais bern descrita como a JlXar;iio de limites agama deopr;oes a que urn ator, ou pluralidade de atores, tern acesso numadada circunstdncia au tipo de circunstancia.

Consideremps 0 exemplo dado por Durkheim, 0 do cum­primento de obriga90es contratuais, ou de urn tipo particular decontrato, como 0 de trabalho. 0 contrato obviamente envolvesan90es legais rigorosamente definidas, mas deixemo-las con­ceptualmente de fora. As rela90es contratuais da industria mo­derna colocam 0 individuo diante de urn conjunto de circUnS­tincias que limitam as 0P90eS disponiveis de a9ao. Marx dizque os trabalhadores "devem vender-se" - ou, mais exatamen­te, vender sua for9a de trabalho - aos patroes. Esse "devem" dafrase expressa urna coer9ao que deriva da ordem institucionalda moderna empresa capitalista que 0 trabalhador defronta. Haapenas urn caminho de a9ao aberto para 0 trabalhador destitui­do de propriedade: vender sua for9a de trabalho ao capitalista.Quer dizer, existe para ele uma 1\nica op<;ao viavel, dado quepossui a motiva9ao de desejar sobreviver. A "oP9ao" em ques-

A CONSTITUII;AO DA SOCIEDADE

tao poden\ ser tratada como 1\nica ou como urn conjunto multiplode possibilidades, Ou seja, urn trabalhador pode ter a sua esco­Iha mais de uma oferta de emprego no mercado de trabalho. 0ponto de vista de Marx, porem, e de que essas 0P90es sao efeti­vamente de urn s6 tipo. No que concerne as recompensas queoferecern ao trabalhador e de outras caracteristicas da rela9aotrabalhador-empregador, todo trabalho assalariado e efetiva­mente 0 mesmo - e supostamente se torna ainda mais assimcom 0 crescente desenvolvimento do capitalismo.

Todas as propriedades estruturais de sistemas sociais ternuma "objetividade" similar vis-a-vis com 0 agente individual.o grau em que essas qualidades sao coercivas varia de acordocom 0 contexto e a natureza de qualquer sequencia dada dea9ao ou segmento de intera9ao. Por outras palavras, as 0P90esviaveis ao alcance dos agentes podem ser maiores do que nocaso do exemplo do contrato de trabalho. Permitam-me reafir­mar uma vez mais 0 teorema segundo 0 qual todas as proprie­dades estruturais dos sistemas sociais sao tanto facilitadorasquanta coercivas, As condi90es do contrato de trabalho capita­lista podem favorecer substancialmente os patroes em compa­ra9ao com os trabalhadores, Mas estes, como ficaram despro­vidos de propriedade, dependem dos recursos que os patroesfornecem. Ambos os lados derivam seu sustento da rela9ao ca­pital-trabalho assalariado, por mais assimetrica que ela possa ser.

Esta analise nao invalida os tipos de alega90es que os cien­tistas sociais e os historiadores podem fazer ao falarem de "for­9as sociais" sem referencia as raz5es au intenl;oes dos agentes.Na analise institucional e licito estabelecer conexoes regulari­zadas que sao colocadas de maneira "impessoal", Suponhamos,a titulo de ilustra9ao, que isolemos uma rela9ao entre mudan9atecnol6gica e padroes de organiza9ao administrativa em firmascomerciais. 0 uso crescente da tecnologia de microchips, diga­mos, poderia ser comprovadamente associado a urna dissolu­9ao parcial de formas mais rigidas de autoridade hierirquica. A"for9a social" envolvida neste caso nao e como urna for9a danatureza. As generalizac;oes causais nas ciencias sociais pres­supoem sempre uma "mistura" tipica de conseqiiencias preme­ditadas e impremeditadas de a9ao, com base na racionaliza9ao

209ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;A-O SOCIAL

T

Coerr;ao estrutural

Coerc;:ao resultante daconteldualidade da ac;:ao,ista e, do carater "dado",de propriedadeses1ruturais vis~a-vis comalares situados

Sam;ao (negativa)

Coerc;:eo resultante derespostas punitivas porparte de alguns agentesem relayao a outros

208

Coery8.0 material

Coen;:ao resultante docarater do mundomaterial e dasqualidades ffsicasdo corpo

Page 127: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

da conduta, "implicada" no nivel da consciencia discursiva auno da consciencia pr:itica. A mudan,a tecnol6gica nao ealgoque ocorre independentemente dos usos dados a tecnologiapelos agentes, dos modos caracteristicos de inova,ao etc. Ees­tranho que muitos soci610gos estruturais, que estao perfeita­mente aptos a aceitar isso - que a tecnologia nao muda em e desi meSma (como poderia ser?) -, nao parecem enxergar queexatamente 0 mesmo se aplica as for,as sociais que vinculam amudan,a tecnol6gica a fenomenos tais como as hierarquiasgerenciais. Seja como for, se como resultado principalmente deurn planejamento consciente ou se de urn modo mais ou menoscompletamente impremeditado por qualquer dos envolvidos,os atores modificam sua conduta e a de outros de tal forma aremodelar os modos de rela,oes de autoridade - supondo-se quea conexao e, de fata, genuinamente causal.

Por que eque algumas for,as sociais tern urn aspecto apa­rentemente '''inevitavel'' para eles? Eporque, em tais situa<;oes,ha poucas op,oes abertas aos atores em questao, supondo-seque se comportam racionalmente - neste casa, "racionalmente"significa alinbar de modo efetivo os motivos com os resultadosfinais da conduta envoivida, seja ela qual for. Quer dizer, elestern "boas razoes" para 0 que fazem, razoes que os soci610gosestruturais provavelmente aceitam mais implicitamente do queexplicitamente atribuir-lhes. Como essas boas razoes implicamuma escolha entre altemativas viaveis muito limitadas, a con­duta dos atores podera parecer impulsionada por algurna for,aimplacavel semelhante a uma for,a fisica. Existem muitas for­,as sociais a que os atores, numa acep,ao expressiva dessafrase, "sao incapazes de resistir". au seja, nada podem fazer arespeito delas. Mas "nada podem" significa, neste caso, que elesnao sao capazes de fazer outra coisa que se sujeitarem as ten­dencias em questao, sejam elas quais forem, dados os motivosou as metas que lhes inspiram a a,ao.

Admito como uma das principais implica,oes dos pontosprecedentes a inexistencia de urna entidade que constitua urntipo distinto de "explica<;ao estrutural" nas ciencias sociais; ta­das as explica,oes envolverao, pelo menos, referencia implici­ta ao comportamento deliberado, racional, dos agentes e a sua

Coer,ao e reifica,ao

interse,ao com aspectos facilitadores e coercivos dos contex­tos social e material desse comportamento. Duas restri,oesprecisam ser acrescentadas a essa observa,ao: uma relacionadacom 0 caniter historicamente mutavel da coen;ao; a Dutra, como fenomeno da reifica,ao.

211

A natureza da coer,ao ehistoricamente variavel, bern comoas qualidades facilitadoras geradas pelas contextualidades daa,ao humana. Evariavel em rela,ao as circunstancias materiaise institucionais da atividade, mas tambem as formas de cog­noscitividade dos agentes acerca dessas circunstancias. A com­preensao disso e uma das principais proezas do pensamentomarxista, quando nao reincidiu no objetivismo. Quando issoocorreu, tomou-se apenas, do ponto de vista metodol6gico, maisuma versao da sociologia estrutural, insensivel aos multiplossignificados que, cumpre reconbece-Io, a coer,ao possui emanalise social. Por que existe tal insensibilidade? A resposta,penso, emuito clara. Esta geralmente associada aqueles tiposde pensamento social que supoem ser a finalidade das cienciassociais desvendar leis da atividade social que tenham urn statussemelhante ao das leis cientificas naturais. Presume-se queprocurar as fontes da "coen;ao estrutural" emais au menos amesma coisa que apurar as condi<;oes regidas por leis, as quaisestabelecem limites aliberdade de a,ao. Isso, para muitos auto­res, eexatamente onde'a "sociologia" encontra seu papel en­quanta empreendimento distintivo entre as outras ciencias so­ciais. Mas, de acordo com 0 ponto de vista aqui sugerido, produzuma forma de discurso reificado inadequado as reais caracte­risticas dos agentes hurnanos.

A "reifica,ao" tern sido entendida de formas muito diver­sas na literatura da teoria social. Entre esses usos divergentes,tres sentidos caracteristicos podem ser mais comurnente dis­cemidos. Urn deles eurn sentido animista, em que as rela,oessociais sao atribuidas caracteristicas personificadas. Uma ver-

ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIALA CONSTITUlr;:AO DA SOCIEDADE210

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sao disso encontra-se na celebre analise de Marx do "fetichis­mo da mercadoria", na qual compara as rela90es da mercadoriacom as "regioes nebulosas do mundo religioso", Tal como nareligiao, "as produ90es do cerebro humano se apresentarn comoseres independentes dotados de vida e estabelecem rela90esentre eles e com a ra.;a humana", 0 mesma ocorre no "mundo,dasmercadorias" com os "produtos saidos das maos dos homens"",Urn outro sentido em que 0 termo reifica9ao e freqiientementeempregado refere-se as circunstancias em que os fen6menossociais tomam-se dotados de propriedades caracteristicas decoisas, que eles, de fato, nao possuem. Uma vez mais, existeuma respeitavel extra9ao dessa cunhagem em Marx: "No valorde troca, a conexao social entre pessoas e transformada numarelayao entre coisas. [... ]"14 Finalmente, 0 termo "reificar;ao" eusado, por vezes, para designar caracteristicas das teorias so­ciais que tratam os conceitos como se fossem os objetos a quese referiram, ao atribuir propriedades a esses conceitos,

o segundo desses sentidos e 0 que adotarei, mas ele nao eaceitavel tal como se apresenta, porque subentende que a quali­dade de ser "proprio de coisa" nao necessita de qualquer expli­ca9ao adicional e porque nao esclarece que a reifica9ao e uman09ao discursiva. 0 conceito nao deve ser entendido simples­mente em referencia a propriedades dos sistemas sociais quesao "objetivamente dadas" no tocante a atores situados, especi­ficos. Pelo contririo, ele deve ser visto como referente a for­mas de discurso que tratam essas propriedades como "objetiva­mente dadas" do mesmo modo como 0 sao os fen6menos natu­rais. Isto e, 0 discurso reificado refere-se a "faticidade" comque os fen6menos sociais confrontam os atores individuais demodo a ignorar como sao produzidos e reproduzidos atraves daagencia humana15

• Assim, a reifica9ao nao deve ser interpreta­da como 0 significado de "proprio de coisa" em tal conota9ao;antes, diz respeito as conseqiiencias de pensar nesses termos,quer esse pensar perten9a aqueles que se intitulam cientistassociais ou a membros leigos da sociedade. 0 "modo reificado"deve ser considerado uma forma ou estilo de discurso, no qualas propriedades dos sistemas sociais sao vistas como tendo amesma fixidez pressuposta nas leis da natureza.

As implica90es das se90es precedentes deste capitulo po­dem ser descritas da seguinte maneira. A coer9ao estrutural naose expressa em termos das implacaveis formas causais que ossociologos estruturais tern em mente quando tanto enfatizam aassociayao de "estrutura" com "coen;ao". As coer90es estrutu­rais nao operam independentemente dos motivos e razoes dosagentes para 0 que fazem. Nao podem ser comparadas com 0efeito de, digamos, urn tenemoto que destroi uma cidade e seushabitantes sem que eles possam fazer nada. Os 1\nicos objetosmoventes em rela90es sociais humanas sao os agentes indivi­duais, que empregam recursos para fazer as coisas acontece­rem, intencionalmente ou nao. As propriedades estruturais desistemas sociais nao atuam ou "agem sobre" alguem como asfor9as da natureza, para "compelir" 0 individuo a comportar-sede urn modo particular. (Para discussao mais ampla dos proble­mas da pesquisa empirica, ver pp. 358-66.)

Entretanto, existe uma serie de n090es adicionais perti­nentes aquestao da "estrutura" em analise social, e elas reque­rem especial considera9ao. Examina-las-ei abordando pela ordemas seguintes questoes: como deve ser desenvolvido 0 conceitode "principio estrutural"? Que niveis de abstra9ao podem serdistinguidos no estudo das propriedades estruturais de sistemassociais? De que modo os diversos sistemas sociais se articulamdentro de totalidades sociais?

Na identifica9ao dos principios estruturais, 0 exame ternde retroceder do frontal para 0 mais substantivo. Lembrarei,para come9ar, urn dos elementos principais da teoria da estru­tura9ao, apresentado no primeiro capitulo, 0 "problema da or­dem" nessa teoria e 0 problema de como se cli, nos sistemassociais, a "liga9ao" de tempo e espa90, incorporando e inte­grande presen9a e ausencia. Is80, por sua vez, esta intimamentevinculado a problemitica do distanciamento tempo-espa90: 0"estendimento" dos sistemas sociais ao longo do tempo-espa­90, Assim, os principios estruturais podem ser entendidoscomo os principios de organiza9ao que permitem formas reco-

212 A CONSTITUlf:;AO DA SOCIEDADE

ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr:;AO SOCIAL

o conceito de principios estrutnrais

213

Page 129: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

nhecivelmente consistentes de distanciamento tempo-espa90com base em mecanismos definidos de integra9ao social. Apoian­do-me numa serie de estudos comparativos e historicos", pro­ponho uma classifica9ao de tipos de sociedade em tres:

Esse esquema e descrito com algum detalhe em A Con­temporary Critique ofHistorical Materialism; farei agora ape­nas um rapido comentario a respeito". Em sociedades tribaisou pequenas culturas orais, 0 principio estrutural dominanteopera ao longo de um eixo que relaciona tradi9ao e parentesco,inserindo-se no tempo e no espa90. Nessas sociedades, os meiosde integra9iio social e de sistema sao os mesmos, dependendo

Simbiose de cidade e campo

215

preponderantemente da intera9ao nos cenirlos de locais de altadisponibilidade de presen9a. Eo claro que varios subtipos dife­rentes de sociedade podem ser distinguidos dentro dessa cate­goria geral. Devo enfatizar que nao e minha pretensao apresentaressa classifica9ao como um esquema evolucionista sub-repti­cio. As culturas orais nao devem ser entendidas como socieda­des em que a integra9ao de sistema "ainda nao" se desembara­90U da integra9ao social. Como Levi-Strauss, mais do que nin­guem, fez por deixar bern claro, as sociedades tribais - nas quaisa humanidade tern vivido, salvo numa pequena fra9ao de suahistoria - sao substancialmente divergentes das "civiliza90es"de qualquer tipo. A inven9ao da escrita, tao estreitamente liga­da it forma9ao de Estados e classes, altera 0 carater do tempocomo experiencia vivida, pelos proprios meios com que permi­te uma expansao do distanciamento tempo-espa90.

o principio estrutural dominante da sociedade divididaem classes - a qual, obviamente, inclui tambem uma serie desubtipos - encontra-se ao longo de um eixo que correlaciona asareas urbanas com seus hinterlands rurais. A cidade e muitomais do que urn mero milieu fisico. Eo urn "recipiente de arma­zenagem" de recursos administrativos em tomo do qual saoconstruidos os Estados agririos. A diferencia9ao de cidade ecampo e 0 instrumento da separa9ao entre integra9ao social ede sistema, embora uma e outra nao sejam necessariamentecoincidentes, pois a rela9ao simbiotica de cidade e campo podeassumir varias formas'8. Nas sociedades divididas em classes,as priticas tradicionais e as rela90es de parentesco, ate mesmo asidentifica90es tribais, mantem-se muito preeminentes. 0 Es­tado nao consegue penetrar profundamente em costumes loca­lizados, e 0 poder militar puro e simples constitui urn dos prin­cipais esteios do oficialismo para "conter" as regioes mais afas­tadas, onde 0 controle administrativo direto e especialmentefraco. A sociedade dividida em classes e marcada, entretanto,por um certo destrin9amento das quatro esferas institucionaisanteriormente distinguidas (p. 39). A organiza9ao do Estado,com seus funcionirios, e separada em parte dos procedimentoscaracteristicos da atividade economica; existem codigos for-

ESTRlYTURA. SISTEMA. REPRODur;1.0 SOCIAL

(FusaO dasintegrac;:oessocial e desistema)

(Diferencia9aodas integra90essocial e desistema)

(DiferenCia9aodas integra90essocial e desistema)

A CONSTfTUIr;A-O DA SOCfEDADE

Bandos ou aldeias

TradiC80 (praticascomunitarias)

ParentescoPolitica - poder militarInterdependencia

economica (baixaintegrac;:ao laterale vertical)

o "meio ambiente criado"

Rotinizac;:aoParentesco (familia)FiscalizacaoPolitica - poder militarInterdepend€mcia

economica (elevadaintegrac;:ao laterale vertical)

{

Tradiyao (praticascomunitarias)

ParentescoSanc;:oes grupais

214

SOC1EDADE TRIBAL(culturas orais)

ESTADO{

ESTADO

Organizar;ao de focaldominante:

saCIEDADE DIVIDfDAEM CLASSES

OrganiZ8r;ao de local dominante:

SOCIEDADE DECLASSES(Capitalismo)

Organizar;ao de local dominante:

Page 130: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

mais de leis e puni9ao, e fazem-se sentir modos de coordena­9ao simbolica, baseados em textos escritos.

o capitalismo moderno nao e urn tipo de "civiliza9ao" en­tre Guffos, e nao assinala urn desenvolvimento evolucionista "apartir" das sociedades divididas em classes. Como 0 primeirotipo genuinamente global de organiza9ao social em toda a Ris­toria, ele tem suas origens nurna dupla descontinuidade no de­senvolvimento do Ocidente. Existem divergencias de lange prazona forma9ao do Ocidente, em compara9ao com as outras prin­cipais "civiliza90es", durante urn periodo de uns dais milenios;a Europa continuou sendo um "sistema de Estados", e nenhurncentro imperial dominante foi restabelecido em seu seio apos adesintegra9ao do Imperio Romano. Dentro dessa ampla diver­gencia, entretanto, foi introduzida uma serie de grandes des­continuidades em rela9ao a outros tipos de sociedade, em vir­tude das revolu90es politica e industrial interligadas a partir doseculo XVIII em diante. 0 principio estrutural distintivo das so­ciedades de classes do capitalismo moderno sera encontrado naseparayao das institui90es estatais e econ6micas, ainda queestas se mantenham interligadas. 0 tremendo poder economicogerado pela utiliza9ao de recursos de aloca9ao para urna ten­dencia generica no sentido do progresso tecnico e acompanha­do por uma enorme expansao do "a1cance" administrativo doEstado. A fiscaliza9ao - a codifica9ao de informa9ao pertinen­te a administra9ao das popula90es suditas, mais a supervisaodireta por funcionarios e administradores de todos os tipos ­torna-se urn mecanismo decisivo para favorecer 0 abandono dosistema baseado na integra9ao social. As priticas tradicionaisforam dispersadas (sem desaparecerem por completo, e claro)sob 0 impacto da penetra9ao de procedimentos administrativoscodificados na vida cotidiana. Os locais que fornecem os cena­rios para a intera9ao em situa90es de co-presen9a passam porurn importante conjunto de transmuta90es. A antiga rela9ao ci­dade-campo e substituida pela expansao crescente de urn "meioambiente criado" ou fabricado.

10: possive! formular urna classifica9ao de sistemas inter­sociais - de um modo geral, pelo menos - em termos de classi­fica9ao de tipos de sociedade dada acima, como segue:

Sociedades divididas em ]Sociedades tribais Sistemas mundiais imperiais classes

Cumpre assinalar que esta classifica9ao nao e simetricaem rela9ao a cronologia historica. A menor categoria figurati­vamente - os sistemas de sociedades tribais - e de longe amaior em termos de dura9ao. Os sistemas intersociais envol­vendo sociedades tribais, entretanto, sempre foram relativa­mente fragmentarios, no sentido de que ficaram confinados notocante as suas configura90es no tempo-espa90. Dominaram 0mundo durante a maior parte da historia humana, mas nao for­maram "sistemas mundiais" na acep9ao de Wallerstein l9

. Querdizer, as "civiliza90es" desenvolveram centros de poder queinfluenciaram vastos segmentos do globe e "dispararam" 0 pro­cesso de rapida mudan9a social. Contudo, os sistemas mundiaisimperiais so existiram em rela9ao instavel com urna diversida­de de formas de sociedades tribais e, com freqiiencia, sucumbi­ram aos ataques ou pressoes de tais sociedades. A fase de eco­nomia mundial capitalista primitiva foi transitoria na Ristoria,nao durando mais de dois seculos. Entretanto, existiu nela umavariedade maior de tipos de sociedade inter-relacionadas doque em qualquer outro periodo antes ou depois. Pois desdeentao a crescente ascendencia das sociedades capitalistas oci-

217

Economia capi1alista mundialcontemporanea (sistemamundial de naryoes-Estados)

] Sistemas "pre-hist6rico" e fragmentario

]

Economia mundial capi1aJistaprimitiva

Sociedades capitalista'sSociedades socialistasestatais

Sociedades capitalis1asSociedades divididasem classesSociedades tribais

$ociedades divididasem classes$ociedades tribais

"Parses emdesenvolvimento"

Sociedades 1ribais

Bloeos de [superpo­tencias

ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;AO SOCIALA CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE216

Page 131: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Estruturas, propriedades estruturais

A identifica9iio de principios estruturais, e suas conjuntu­ras em sistemas intersociais, representa 0 nivel mais abrangente

I) principias estruturais: principios de organiza9iio de totali­dades sociais;

2) estruturas: conjuntos de regras e recursos envolvidos na ar­ticula9iio de sistemas sociais;

3) propriedades estruturais: caracteristicas institucionalizadasdos sistemas sociais, estendendo-se ao longo do tempo e doespa90.

219

de analise institucional. Quer dizer, a analise desses principiosrefere-se a modos de diferencia9iio e articula9iio de institui90esatraves do tempo-espa90 de maior "profundidade". 0 estudo deconjuntos estruturais, ou estruturas, envolve 0 isolamento de dis­tintos "grupos" de rela90es de transfonna9iio/media9iio impli­citos na designa9iio de principios estruturais. Os conjuntos es­truturais siio fonnados pela mutua conversibilidade das regrase dos recursos envolvidos na reprodu9iio social. As estruturaspodem ser analiticamente distinguidas dentro de cada urna dastres dimensoes de estrutura9iio, significa9iio, legitima9iio e do­mina9iio, ou atraves de todas estas. Apresentarei alhures umailustra9iio" sobre a qual farei agora urn comentario algo maisextenso. Trata-se do exemplo de propriedade privada na analisede Marx do capitalismo moderno.

Consideremos 0 que esta envolvido no seguinte conjuntoestrutural:

propriedade privada : moeda :capital: contrato de trabalho : lucro

As rela90es estruturais aqui indicadas demarcam urna dasmais fundamentais transmuta90es envolvidas no surgimentodo capitalismo e, por conseguinte, contribuem significativa­mente para a estrutura9iio global do sistema. No feudalismo(em minha tenninologia, urn entre outros tipos de sociedadedividida em classes), a propriedade privada dos meios de pro­dU9iio baseava-se predominantemente na posse de terra, e estaera limitada por numerosas restri90es no que concerne a alie­nabilidade. Naquilo que diz respeito a essas rela90es de con­versiio, elas estavam confinadas a setores marginais da econo­mia. No capitalismo, em contrapartida, a propriedade privadados meios de produ9iio assume urna farma diferente - a terrapassa a ser somente urn tipo entre outros recursos mobilizadosdentro da produ9iio - e urna diversidade de bens torna-se livre­mente alienavel. Essencial nesse processo, demonstrou Marx,e a universaliza9iio da forma de mercadoria. A condkiio para

ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODU<;AO SOCIALi

A CONSTITUl<;A-O DA SOCIEDADE218

dentais, desafiada somente pelas de socialismo de Estado", emtennos de seu poder industrial e militar, destruiu ou corroeuimplacavelmente as sociedades tribais e divididas em classes, asquais talvez estejam desaparecendo para sempre da face da Terra.o sistema mundial contemporiineo, pela primeira vez na historiahurnana, e aquele em que a ausencia no espa90 ja niio impede acoordena9iio de sistema. Sera necessario sublinhar, uma vez mais,que 0 desenvolvimento do sistema mundial de na9iio-Estado naoe coetiineo com a expansiio da coesiio e do consenso? Pois osmesmos desenvolvimentos que criaram de imediato essa fonnadistintivamente modema de sociedade, a na9iio-Estado, e seu en­volvimento nurn sistema global de novo tipo, tambem geraram,ao mesmo tempo, cismas que, na era nuclear, amea9am a propriasobrevivencia da hurnanidade como urn todo".

Conforme enfatizei antes, 0 conceito de estrutura pode serusado de urn modo tecnico e de urn modo mais geral. Entendidacomo regras e recursos, a estrutura esta repetidamente suben­tendida na reprodu9iio de sistemas sociais e e totalmente fun­damental para a teoria da estrutura9iio. Se usada de urn modomais impreciso, pode-se falar dela em referencia as caracteris­ticas institucionalizadas (propriedades estruturais) das socie­dades. Em ambos os usos, "estrutura" e urna categoria genericaenvolvida em cada urn dos conceitos estruturais abaixo indicados:

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tal universaliza,ao e urn desenvolvimento completo de urnaeconomia moneta-ria. A maeda, diz Marx, e"a forma metamor­foseada de todas as outras mercadorias, 0 resultado da aliena­,ao geral deJas"". A moeda (ou dinheiro = D) representa, porumlado, urna mercadoria vendida (M) e, por outro, urna mercado­ria a ser comprada. D-M e uma compra, mas, ao mesmo tempo,e M-D, urna venda: "a metamorfose final de urna mercadoria ea primeira metamorfose de outra" ou, como disse Quesnaysabre a mesma coisa em suas Maximes generales, "vendre estacheter" [vender e comprar]. A diferencia,ao de mercadoriasem mercadorias e dinheiro nao dissolve as diferen,as materiaisentre mercadorias; desenvolve, diz Marx, urn modus vivendi,"urna forma em que podem existir lado a lado"".

M-D-M, a mais simples forma de circula,ao de mercado­rias, constitui 0 ponto de partida do capital. Em contraste com apropriedade fundiaria do feudalismo, 0 capital adota primeiro aforma do dinheiro - 0 capital do comerciante e do usmmo. A pri­meira distin,ao entre dinheiro e capital e simplesmente umadiferen,a na rela,ao de transforma,ao envolvida, expressa comoD-M-D. Esta formula expressa a transforma,ao de dinheiro emmercadorias e de mercadorias de novo em dinheiro - por outraspalavras, comprar a fim de vender. 0 dinheiro que sofreu essatransforma,ao passou a ser capital. Tal como a outra rela,ao, aD-M-D envolve duas fases ligadas de transmuta,ao. Na primei­ra, 0 dinheiro e convertido numa mercadoria; na segunda, a mer­cadoria volta a ser convertida em dinheiro. Mas a combina,aodessas fases, argumenta Marx, "constitui lUll s6 momento", peloqual urna mercadoria e comprada para ser vendida. Poderia pare­cer como se tivesse ocorrido urna simples troca de moeda pormoeda - mais ou menos, de acordo com 0 exito ou nao da transa­,ao. Mas quando a moeda se transformou em capital, passou porurn "movimento caracteristico e original" de tipo muito distintodaquele de, digamos, urn campones que vende trigo e usadinheiro assim adquirido para comprar roupas. As transforma­,oes envolvidas em D-M-D, comparadas com M-D-M, diferemmuito mais do que na mera diferen,a na "dire,ao" da troca.

A diferen,a esta em que, na rela,ao M-D-M, a moeda econvertida num valor de usa, 0 qual e entao "consurnido". Na

forma oposta, D-M-D, a moeda nao e despendida; ela e "passa­da adiante" - 0 segredo da transforma,ao da moeda em capital.Na forma M-D-M, 0 mesmo elemento monetario muda delugar duas vezes, completando a transa,ao. Mas ocorre 0 con­trario na rela,ao D-M-D: neste caso, nao e a moeda que mudaduas vezes de mao, mas a mercadoria. A transmuta,ao de moedaem capital depende da renova,ao da opera,ao, de seu "reflu­xo", 0 qual somente a reJa,ao D-M-D possibilita. Assim, D-M­D deveria ser mais precisamente escrito como D-M-D', comourn processo expansionista. A circula,ao de mercadorias pas­sou a estar desligada neste caso de uma rela,ao direta com 0

valor de uso. 0 capital nao transaciona em valores de usa, masem valores de troca.

Entretanto, D-M-D' tanto pode representar capital mer­cantil como capital industrial. Por conseguinte, e tao-somente a"formula geral do capital". Vma rela,ao estrutural adicionalesta subentendida no desenvolvimento do capital industrial oumanufatureiro, aquele que, tal como a natureza alterada da pro­priedade privada, pressupoe urn importante processo de mudan­,a social. Essa rela,ao e a possibilidade da transforma,ao docapital em trabalho e vice-versa, algo que pressupoe urna ex­propria,ao maci,a dos trabalhadores do controle de seus meiosde produ,ao, de modo que eles tern de oferecer sua for,a detrabalho para venda no mercado a fim de obter seu sustento. Afor,a de trabalho e uma mercadoria que tern, entre outras ca­racteristicas, a de ser uma fonte da cria,ao de valor. 0 contratode trabalho capitalista esta inerentemente envolvido na trans­forma,ao da moeda num equivalente da for,a de trabalho. "Es­sa rela,ao nao tern uma base natural, e tambem sua base socialnao e comum a todos os periodos historicos. Eclaramente 0

resultado de urn desenvolvimento historico passado, 0 produto demuitas revolu,oes econ6micas, <:fa extin,ao de toda urna seriede formas mais antigas de produ,ao social."" Assim, 0 isola­mento de tal conexao ajuda a diagrl.osticar UTI\a das caracteristi"cas estruturais essenciais da nova forma institucional constitui­da pelo capitalismo. 0 fato'de a for,a de trabalho ser uma mer­cadoria nao e especificado na "formula geral do capital".

220 A CONSTITUIC;AO DA SOCIEDADE1,

ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUC;AO SOCIAL 221

Page 133: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Nao existe um ponto definido de separa,ao entre os tresniveis de abstra,ao distinguidos no diagrama acima. A especi­fica,ao de conjuntos estruturais, conforme indicado anterior­mente, e de importancia bilsica para a elabora,ao de principiosestruturaisglobais, mas uma tarefa funde-se obviamente com aoutra. 0 mesmo vale para 0 mais baixo nlvel de abstra,ao, 0

isolamento de elementos ou eixos de estrutura,ao. Distinguirelementos de estrutura,ao preserva a epoche da analise institu­cional, mas traz 0 nivel de estudo para mais perto do examedireto de rela,6es de co-presen,a. A fim de preservar a conti­nuidade com a discussao precedente, prosseguirei examinandoo ponto de vista de Marx a respeito de uma importante caracte­ristica da produ,ao capitalista: a divisao do trabalho. E umaanalise com a qual estou predominantemente de acordo, embo­ra meu principal proposito seja aqui ilustrativo".

·-0 contrato de trabalho capitalista pressup6e que 0 empre­gador e 0 trabalhador "encontram-se no mercado" em circunstan­cias em que cada urn e "formalmente livre". Esse e um aspectobasico das rela,5es de classe do capitalismo. Urn ecomprador,o outro urn vendedor da for,a de trabalho. 0 "dono" desta ven­de-a somente por urn periodo definido, e assim tambem 0 em­pregador a "adquire". A escravatura, em que algumas pessoassao donas de outras, nao permite a mercadorifica,ao da for,ade trabalho. 0 valor desta, em comum com 0 de outras merca­dorias, e governado pelo tempo de trabalho envolvido em suaprodu,ao e, por conseguinte, pelo que e solicitado para garantira sobrevivencia fisica daqueles que fornecem trabalho. A trans­forma,ao do aluguel da for,a de trabalho em lucro depende, eclaro, da gera,ao de mais-valia. 0 "tempo de trabalho necessa­rio" e 0 cedido para a manuten,ao da fonte de for,a de traba­lho, 0 trabalhador; 0 trabalho excedente e a fonte de lucro.

A CONSTITUlf:;:AO DA SOCIEDADE 223ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUi;AO SOCIAL

Marx procura mostrar que a divisao do trabalho esta inti­mamente vinculada a natureza da manufatura e, portanto, asrela,6es estruturais descritas nos paragrafos precedentes destecapitulo. A divisao do trabalho liga as caracteristicas estrutu­rais mais amplas do capitalismo, conforme previamente identi­ficadas, com a organiza,ao mais proxima da empresa industrial.A manufatura, uma caracteristica saliente do capitalismo queavan,ou para alem do comercio, esta associada a dois modosde surgimento de oficinas. Urn e a reuniao, sob 0 controle deurn determinado empregador, de trabalhadores com diferentesqualifica,6es num local especifico. Estas sao coordenadas nafabrica,ao de urn so produto. Mas tal coordena,ao tende tam­bern progressivamente a retirar aspectos das qualifica,6es ori­ginalmente possuidas pelos trabalhadores, culminando na frag­menta,ao de tarefas em processos "detalhadps", "cada urn dosquais se cristaliza na fun,ao exclusiva de urn determinado tra­balhador, sendo a manufatura, como urn todo, executada peloshomens em conjunto"". Urn segundo modo em que a manufa­tura se produz e, de certa forma, 0 inverso disso. :E a reuniaonum local de um numero de trabalhadores que executam todosa mesma tarefa, fabricando cada trabalhador 0 artigo completo.Entretanto, as "circunstancias externas", diz Marx, levam amudan,as na mesma dire,ao daquelas que ocorrem no primei­ro tipo de cenario. Portanto, 0 trabalho e redistribuido; em vezde trabalhadores todos ocupados da mesma forma lado a lado,as opera,6es sao decompostas em tarefas detalhadas, organiza­das de modo cooperativo. A forma final e, assim, a mesma emambos os casos: "um mecanismo produtivo cujas pe,as sao se­res humanos"28.

A divisao do trabalho detalhada e de suma importilncia paraa organiza,ao da empresa capitalista sob multiplos aspectos.Aumenta as oportunidades de fiscaliza,ao direta da for,a detrabalho e a consolida,ao da disciplina de trabalho. Mas tam­bern expressa e possibilita a conexao do trabalho, como fon;ade trabalho, com a tecnologia da produ,ao mecanica. Pois 0 "tra­balhador encarregado do detalhe" executa urn numero circuns­crito de opera,6es repetitivas que podem ser coordenadas com

1

]

;,'09ra,'osocial/sistemica

l' princfpios es1ruturais

I

conjuntos estru1urais (estruturas)

elementos Jeixos de estruturayao

222

nlvel deabstrayao

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os movimentos de processos mecanizados de produ,ao. A divi­sao do trabalho dentro da empresa nao e simplesmente urn as­pecto ou extensao da existente fora dela. A "divisao do traba­lho na sociedade" depende da compra e venda de produtos dediferentes setores da industria, ao passo que a de dentro da em­presa deriva da venda da for,a de trabalho de uma pluralidadede trabalhadores a urn empregador que a aplica de forma coor­denada.

A divisao do trabalho dentro de uma oficina implica a au­toridade absoluta do capitalista sabre os hornens, estes simplesmembros de urn mecanisme total que lhe pertence; a divisaosocial do trabalho pressupoe produtores de mercadorias inde­pendentes, que apenas reconhecem a autoridade da concorren­cia. [...] Emuito caracteristico [acrescenta Marx, de modo caus­tieD] que os apologistas entusiastas do sistema fabril nao tenhamnada mais condenatorio contra a organizacao geral de trabalhosocial do que 0 fato de esta parler tamar a sociedade uma imensafabrica. 29

Analisar a divisao do trabalho desse modo e elucidar umeixo de estrutura,ao que vincula a forma interna da empresa

'com aspectos mais amplos da totalidade social, indicando aomesmo tempo contrastes com a "divisao do trabalho na socie­dade". Evidentemente, essas rela,5es poderiam ser explicadascom muito maior detalhamento. Na amilise institucional, issoenvolve pormenorizar as rela,5es de transforma,ao/media,aoimplicadas no "agrupamento" de pniticas institucionalizadasatraves do espa,o e do tempo. Entretanto, uma vez que abando­namos a epoche da analise institucional, todas as rela,5es estru­turais acima indicadas, em qualquer nivel, tern de ser examina­das como condi,5es de reprodu,ao do sistema. Elas a ajudam aselecionar caracteristicas basicas dos circuitos de reprodufaoimplicitos no "estendimento" de institui,5es ao longo do espa,oe do tempo. Analisar circuitos de reprodu,ao, deve ficar claro,nao e equivalente Ii mera identifica,ao de fontes de estabilidadesocial. Serve, na verdade, para indicar algumas das principaisformas de troca envolvidas na transi,ao de urn tipo de totalida-

225

I

H propriedades estruturais:H principios estruturais:media9ao/lransforma98,O dominios institucionais

I

II monitora98,O reflexivaI da a98,O

Figura 11

de social para um outro. 0 que "deve acontecer" para ocorreremcertas condi,5es de reprodu,ao do sistema coloca-se comouma questao contrafatual, nao como uma versao dissimulada defuncionalismo.

Urn circuito de reprodu,ao pode ser esbo,ado num dia­grama (ver a Figura 11):

dualidade deestrutura

A reintrodu,ao da dualidade da estrutura significa aban­donar 0 tempo-espa,o virtual da analise institucional, reen­trando desse modo na "Hist6ria". Todas as propriedades estru­turais de sistemas sociais, para repetir urn tema dominante dateoria da estrutura,ao, constituem 0 veiculo e 0 resultado dasatividades contingentemente realizadas de atores situados. Amonitora,ao reflexiva da a,ao em situa,5es de co-presen,a e aprincipal caracteristica de ancoragem da integra,ao social,mas tanto as condi,5es quanta os resultados da intera,ao si­tuada estendem-se muito alem dessas situa,5es enquanto tais.Os mecanismos de "estendimento" sao variaveis, mas nas so­ciedades modernas tendem a envolver a pr6pria monitora,aoreflexiva. Isto e, compreender as condi,5es da reprodu,ao do sis­tema passa a ser parte daquelas condi,5es de reprodu,ao dosistema como tais.

Podemos pesquisar essas observa,5es mais concretamen­te retornando ao conjunto estrutural discutido antes. As duas

ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIALA CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE224

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transfonna,oes opostas mas complementares, M-D e D-M, soocorrem, e claro, atraves das atividades de compradores e ven­dedores atuando numa serie de cenarios divergentes. SegundoMarx, a rela,ao M-D-M coloca tres drama/is personae em cor­rela,ao. 0 dono de uma mercadoria entra em contato com urndetentor de dinheiro, tornando-se 0 dinheiro "sua fonna-equi­valente transitoria". A moeda, 0 "tenno final da primeira trans­muta,ao", e a origem da terceira, a compra de uma outra mer­cadoria30

, Mas, como Marx afirma, isso einsatisfat6rio, pais asrela,oes estruturais nao sao isomorficas para os atos de indivi­duos correspondentes que os personificam. Ejustamente nessastendencias da argumenta,ao de Marx que se pode ver dondeAlthusser deriva a corrobora,ao textual para a visao de que osagentes humanos nac:la mais sao do que "suportes" para os mo­dos de produ,ao. Alem disso, tambem e facil ver como seme­lhante estilo de analise resvala no funcionalismo. Pois se as re­la,oes entre propriedades estruturais, uma vez isoladas, sao tra­tadas como tendo SUa propria "dinfunica interna", mais comonecessidades funcionais do que como condi,oes continuamentereproduzidas, as atividades de individuos historicamente situa­dos parecem, de fato, algo redundantes. As condi,oes globaisde reprodu,ao do sistema nao sao, em absoluto, "garantidas"pelas rela,oes estruturais de que dependem (de modo contrafa­tual). A analise dessas rela,oes no tempo-espa,o virtual tampou­co explica por que ocorrem. Isso significa que e sumamenteimportante mudar a orienta,ao conceptual quando se passa detal analise para 0 estudo das condi,oes de reprodu,ao do sistema.

Entendo por circuitos de reprodu,ao os "trajetos" clara­mente definidos de processos que realimentam suas fontes,quer tal feedback seja ou nao reflexivamente monitorado poragentes em posi,oes sociais especificas. Quando Marx usa 0

tenno "circuitos de capital" parece ter algo desse tipo emmente; contudo, quero referir-me as condi,oes reais de repro­du,ao social, ao passo que ele usa as vezes 0 termo em referen­cia ao que chamei de conjuntos estruturais. Os circuitos dereprodu,ao podem sempre ser utilmente examinados em ter­mos da regionaliza,ao de locais. Nao hoi mal nenhum em pen-

Contradi9ao

227

sar em tais circuitos como tendo alga em comum com os cir­cuitos eletranicos, os quais podem ser tra,ados num displayvisual - as tecnicas graficas de tempo-geografia poderiam, defato, ser relevantes neste ponto. Os circuitos de reprodu,aoassociados ao conjunto D-M-D' - como 0 proprio Marx deixaclaro - dependem realmente de longos processos de mudan,anao apenas no interior das sociedades mas tambem numa esca­la internacional. A concentra,ao da popula,ao em areas urba­nas de recente expansao (e internamente transformadas) cons­titui urn desses processos de mudan,a. Mas tao importantequanta qualquer desses processos e a mecaniza,ao do trans­porte, a tremenda expansao dos meios de comunica,ao a partirdo final do seculo XVIII e 0 desenvolvimento da comunica,aoeletranica desde a inven,ao do codigo Morse,

Observa-se comumente que 0 conceito de contradi,aodeveria pennanecer urn conceito logico, em vez de ser aplicadoa analise social. De fato, e possivel ver consideravel justificati­va para tal julgamento, porque 0 tenno e freqiientementeempregado de modo tao vago que nao tern qualquer liga,aocom a contradi,ao em logica. Entretanto, uma vez usado comcerto cuidado, penso que ele e indispensavel em teoria social.Proponho usa-lo em dois sentidos: 0 de "contradi,ao existen­cial" e 0 de "contradi,ao estrutural". Cada urn deles preservaalguma cojJtinuidade com 0 uso logico do tenno, embora naoseja uma extensao direta desse uso,

Por contradi,ao existencial refiro-me a urn aspecto ele­mentar da existencia humana em rela,ao com a natureza oucom 0 mundo material. Poder-se-ia dizer que existe urn antago­nismo de opostos no proprio amago da condi,ao humana, nosentido de que a vida esta implieada na natureza e no entantonao e dela e e destacada dela. Os' seres humanos emergem do"nada" da natureza inorg1inica e desaparecem de volta a esseestado estranho do inorg1inico. Isso poderia parecer ser urn tema

ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUi;:AO SOCIALA CONSTITUIi;:AO DA SOCIEDADE226

Page 136: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

francamente religioso e, como tal, pertencer ao dominio priva­tivo da teologia e nao ao da ciencia socia!. Mas considero-o, defato, de grande interesse analitico, embora nao tente desenvol­ver aqui essa asser,ao.

A contradi,ao estrutural refere-se as caracteristicas consti­tutivas das sociedades hurnanas. Sugiro que os principios estru­turais operam em contradi,ao. 0 que quero dizer com isso e queeles funcionam em termos reciprocos mas, no entanto, tambemse contraditam". Nesse sentido, a "contradi,ao" pode ser aindadividida em duas. Por contradi,5es primarias refiro-me aquelasque entram na constitui,ao de totalidades sociais; por contradi­,5es secunditrias entendo as que dependem de contradi,5es pri­marias ou se originam nestas. Nao pretendo com isso apresentarsimplesmente urna serie abstrata de distin,5es; elas tern de serrelacionadas com 0 estudo dos tipos de sociedade acima descri­tos. 0 conceito de contradi,ao estrutural faz referencia a urnacaracteriza,ao especifica do Estado. Exceto no caso da socieda­de tribal, 0 Estado e considerado 0 foco (embora nao, como tal,tambem a origem) da contradi,ao estrutural primaria.

Dos tres tipos de sociedade que distingui, as sociedadestribais sao as que vivem em mais intima rela.;:ao com a nature­za. Nao me refiro com isso a seu desenvolvimento tecnologicoOU, pelo menos, naa so a ele. Nas sociedades tribais, as sereshurnanos vivem intimamente uns com os outros, em condi,5esde co-presen,a e dentro dos ritrnos da natureza em sua condutacotidiana; mas tambem integram 0 mundo natural cognitiva­mente com suas atividades. Do ponto de vista das civiliza,5es ­em especial a do Ocidente moderno - isso e algo para ser vistoapenas negativamente, urn fracasso em ascender a urn nivel su­perior nurna escala cognitiva. Levi-Strauss expressa esse fatomuito bern quando comenta: "Podemos dizer que a Antropologia[...] interessa-se por sociedades nao"civilizadas, sem urn sistemade escrita e pre ou nao-industrial em tipo." Entretanto, em al­guns aspectos, as sociedades "modemas" e que deviam serdefinidas em termos negativos. Nossas rela,5es mutuas saoagora apenas ocasional e fragmentariamente baseadas na "ex­periencia generica", na "apreensao" concreta de uma pessoa "por

uma outra"32. A "mundivisao" ffiitica e os modos de representa­,ao que emprega servem para estabelecer homologias entrec~di95es naturais e sociais OU, mais exatamente, possibilitama equipara,ao de contrastes significativos encontrados em di­ferentes pIanos: 0 "geografico, meteorologico, zoologico, bo­tanicD, tecnico, social, ritual, religioso e filos6fico"33.

Os mitos sao mediadores cognitivos da contradi,ao exis­tencia!. Isso significa que, no mito, os temas de incesto, de se­xualidade, de vida e morte sao explorados e "explicados" paraaqueles que os contam e aqueles que os escutam. Se as socie­dades tribais sao culturas frias - que nao sao apanhadas numfluxo de mudan,a no qual suas institui,5es estao engrenadas ­naG eporque estejam parcamente "adaptadas" anatureza, co­mo diriam as teorias evolucionistas, Pelo contrario, e porqueessas institui,5es se entremisturam com a natureza de modoimediato e envolvente. A contradi,ao existencial expressa-sediretamente, por assim dizer, naquelas institui,5es em virtudedo papel fundamental do parentesco e da tradi,ao. As rela,5es deparentesco sao 0 principal formato em torno do qual se cons­troi aquela "'apreensao' concreta" dos individuos de que falaLevi-Strauss, Tambem constituem 0 meio pelo qual a vida eproduzida - ou, no sentido original do termo, reproduzida, Atradi,ao, por outro lado, e a fonte da inje,ao de significadomoral no tempo reversivel da vida cotidiana; imersa nela, a fi­nitude da existencia individual e interpolada dentro de uma di­mensao de intemporalidade mora!. Nao ha necessidade de re­tratar tais circunstancias da vida social como urn idilio alaRousseau; 0 ponto e que, quer na vida pastoril e bucolica pri­mitiva, quer em culturas orais, expressa diretamente a proximi­

dade de humanidade e natureza.

ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIAL 229

Preeminencia da con1radiyao estruturalForma de Estado: nayao·Estado

Preeminencia da con1radi~ao exis1encialAusencia de Estado

Contradi~ao estrulural/contradi~ao

existencialForma de Estado: rela~ao c"ldadelcampo

SOCIEDADE DE CLASSE(Capi1alismo)

SOCIEDADE TRIBAL(Cul1uras orais)

SOCIEDADE DIVIDIDA EM CLASSES

A CONSTITUJr;A-O DA SOCIEDADE228

Page 137: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

As culturas tribais sao de cariter segmentado, Quer dizer,consistem em centros multiplos de alta disponibilidade de pre­sen,a, em que as fronteiras entre diferentes "sociedades" naosao usualmente assinaladas com clareza. Nesses sistemas des­centralizados, a contradi,ao estrutural inexiste. A contradi,aoexistencial delineia os contornos do mundo natural. A contra­di,ao estrutural e assinalada pela ascensao do Estado, 0 qual,por sua vez, esta associado sobretudo il forma,ao de cidades.Nao estou dizeIido que 0 Estado se baseie simp)esmente "na"cidade. Pelo contrario, as cidades sao recipientes de poder que,em conjun,ao COm suas rela,oes com 0 campo, geram 0 nexoestrutural da forma do Estado. A contradi,ao existencial een­fraquecida pela introdu,ao da contradi,ao estrutural, mas naointeiramente dissolvida. A cidade eurn milieu estraMo il natu­reza e, portanto, ajuda a promover atitudes e sistemas simbOlicosdiscrepantes dos que se aliam a elementos e eventos naturais.Sua muralha pode simbOlica e materialmente isolar 0 milieu ur­bano do exterior. Mas as cidades tradicionais s6 poderiam exis­tir por meio de suas transa,oes com seus hinterlands agnirios.Seus tra,ados internos e arquitetura ainda mantinbam estreitasconexoes COm 0 ambiente natural, geralmente em conjuntocom simbolos tradicionalmente estabelecidos. Em cidades tra­dicionais, como se mencionou antes, a distribui,ao de areas e 0

alinbamento de edificios expressavam, com freqiiencia, distin­,oes cosmol6gicas sagradas.

Nao me proponbo oferecer aqui urn exame do Estado oudas origens do poder estatal". Basta dizer que sustento ser 0 "Es­tado primitivo" uma forma,ao contradit6ria na acep,ao se­guinte. 0 Estado, expressando a rela,ao cidade-campo, repre­senta urn novo tipo de principio estrutura! que contradiz 0 antigo,embora dependendo ainda dele. A rela,ao simbi6ticalantagoni­ca entre cidade e campo e a forma especifica dessa contradi,aoestrutura!. Como recipientes de poder, as cidades geram dina­mismo potencial de urn novo tipo na "Hist6ria", ou seja, rom­pem com 0 carater "a-hist6rico" das culturas frias. Nas socie­clades divididas em classes, a "economia" nao e, de modo tipico,claramente distinta da organiza,ao politica, e 0 sentido em que

o Estado pretende representar a sociedade como urn todo e 0

menor. 0 poder deste nao perdeu sua conexao com a contradi­,ao existencial e esti simbolizada em forma persistentementereligiosa. 0 Estado pode ter escapado il tradi,ao no sentido deestar apto a inovar mediante 0 uso do poder consolidado. Masdeve, nao obstante, submeter-se continuamente il tradi,ao deurn outro modo, porque as cren,as e priticas tradicionais con­servam sua influencia por toda parte, fora dos principais cen­tros de concentra,ao das agencias estatais. Na medida em queo poder do Estado depende da vigilancia, esta concentra-se pri­mordialmente nos locais fisicos das agencias estatais: 0 pala­cio, os templos e os edificios administrativos.

o surgimento de sociedades baseadas no Estado aheratambem 0 ambito e 0 ritmo da "Hist6ria" ao estimular contra­di,oes secundarias. 0 Estado da origem ou, pelo menos, acen­tua grandemente as rela,oes sociais ao longo de consideriveisextensoes de tempo e espa,o. [sso significa que, ao mesmo tem­po que geram e consolidam 0 poder centralizado, "atraindo"varios aspectos da atividade socikl para seu ambito, os Estadosestimulam 0 desenvolvimento de outros vinculos e interliga­,oes que atravessam os dominios social e territorial sobre osquais reivindicam soberania. Nesse contexto, a contradi,aoestrutural refere-se il soberania do Estado sobre urna dada areaterritorial, que eantagonica e, no entanto, depende de proces­sos que atravessam aquela esfera de jurisdi,ao e envolvem di­ferentes mecanismos. Estes incluem as rela90es extemas comoutros Estados, mas tambem a existencia de empresas comer­ciais, grupos religiosos, comunidades intelectuais etc. entre­cruzados.

As contradi,oes secundarias associadas il forma,ao dasmodernas na,oes-Estados, cujo desenvolvimento esti entrela­,ado com 0 do capitalismo industrial enquanto estilo de empre­sa economica, sao substancialmente diferentes das de eras pre­vias. A conexao entre capitalismo e na,ao-Estado, como argu­mentei nurn outro trabalho", nao e meramente fortuita. Paraexpressar a questiio de modo bern simplificado, as na,oes-Es­tados sao os novos recipientes de poder quesubstituem as cida-

230 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE

rESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIAL 231

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des. A transforma,ao da rela,ao cidade-campo mediante 0 sUf­gimento de "ambientes criados" - exemplificados 'pelo (masnao limitados ao) "meio ambiente construido" do urbanismomoderno - eparte integrante da forma,ao da na,ao-Estado. 0carater transmutado do espa,o e do tempo e essencial para aforma,ao politica do Estado e para a "economia" diferenciada.Esse processo de transmuta,ao separa a contradi,ao estruturalda existencial, e a primeira adquire agora primazia sobre a segun­da. Em poucas palavras, isso significa que a organiza,ao socialhumana deixa de ter qualquer simetria com a natureza; estatorna-se urn meio para a expansao da produ,ao. A supressao dequestoes e problemas existenciais nao e, nem pode ser, inteira­mente completa. Na verdade, sao fundamentais para as contra­di,oes estruturais introduzidas pelo capitalismo e fazem partedo que Ihes confere seu potencial peculiarmente explosivo36.

A contradi,ao primaria de (na,ao-)Estado capitalista seraencontrada no modo pelo qual uma esfera "privada" da "socie­dade civil" e criada pela esfera "publica" do Estado, mas sepa­rada desta e em tensao com ela. Eurn eITO supor que a socieda­de civil constitui tudo 0 que se situa fora da al,ada do Estado,se a definirmos como 0 conjunto de institui,oes que precedemo dominio do poder do Estado e nao estao incorporadas a este.As origens do Estado moderno sao tambem as origens da esfe­ra da sociedade civil- pelo menos e 0 que desejo afirmar, em­bora deixe aqui expressa essa ideia como mera asser,ao por agora.A sociedade civil e 0 setor dentro do qual OCOITe a acurnula,aQ decapital, alimentada pelos mecanismos de pre,o, lucro e investi­mento nos mercados de trabalho e de bens. Portanto, considOroque a contradi,ao entre sociedade civil e Estado esta, pelomenos, em paralelo com a formula,ao classica da contradi,aocapitalista entre "apropria,ao privada" e "produ,ao socializada".o Estado capitalista, enquanto urn centro "socializante" repre­sentando 0 poder da comunidade em geral, depende de meca­nismos de produ,ao e reprodu,ao que ele ajuda a criar mas Ihesao contrapostos e antagonicos.

A contradi,ao secundaria, na nova ordem global introdu­zida pelo advento do capitalismo moderno, esta concentrada na

entre atores ou grupos, qual seja a forma em que possa ser tra­vada.ou as fontes mediante as quais possa ser mobilizada. Se acontradi,ao ~ urn conceito estrutural, 0 conflito nao 0 e. Con­flito e contradi,ao tendem a coincidir porque este segundoconceito expressa as principais "linhas de fratura" na constitui­,ao estrutural dos sistemas sociais. A razao para essa coinci-

233

Luta entre atores au coletividades expres­sas como praticas sociais definidas

Disjunryao de princfpios estruturaisda organiz8yao do sistema

Conflito

Contradiyao(estrutural)

tensao entre a internacionaliza,ao do capital (e dos mecanis­mos capitalistas como urn todo) e a consolida,ao interna dasna,oes-Estados. Eprovavelmente porque essa tensao gera im­pulsos em dire,oes diferentes que a maioria das escolas de teo­ria social considerou as conexoes entre capitalismo e na,ao­Estado nada mais do que urn acidente hist6rico. De fato, a ten­dencia dominante no pensamento social foi a de ver as na,oes­Estados como pouco mais do que epifenomenos de (ou comomeros impedimentos para) a propensao natural da produ,aocapitalista de dissolver diferen,as poiiticas e culturais. Nao edificil detectar as origens desse tipo de concep,ao no pensa­mento social do seculo XIX. Elas estao na economia poiiticaclassica e em seu principal oponente, 0 marxismo. Para ambos,apesar de suas importantes divergencias em outros aspectos, asrela,oes economicas desvendam a verdadeira origem das for­ma,oes poiiticas, e a mudan,a economica e a fonte primordialde transforma,ao do mundo moderno. Essa concep,ao nao veque a separa,ao do "economico", como urna esfera de continuae rapida mudan,a, tern como sua condi,ao necessaria 0 poderdo Estado moderno. 0 Estado moderno eintrinsecamente, naoapenas contingentemente, uma na,ao-Estado, existindo nurnmundo de outras na,oes-Estados.

Qual e a rela,ao, analiticamente expressa, entre contradi­,ao e conflito, urna vez que ambos os termos sao usados comfreqiiencia simultaneamente? Entendo por conflito a luta real

ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODUC;:XO SOCIALA CONSTITUII;XO DA SOCIEDADE232

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dencia esta em que as contradi90es tendem a envolver divisoesde interesses entre diferentes agrupamentos ou categorias depessoas (incluindo classes, mas nao limitadas a elas). As con­tradi90es expressam estilos de vida e distribui90es de oportuni­dades de vida diverg~ntesem rela9ao a possiveis mundos que 0

mundo real revela como imanentes. Se a contradi9ao nao gerainevitavelmente conflito, e porque sao variaveis ao extremo 'IS

condi90es em que os atores esmo nao somente ,oljscientes deseus interesses, mas tambem aptos e motivados para agir deacordo com eles. Ecorreto dizer, por exemplo, que a existenciada divisao de classes pressupoe oposi9ao de interesses (assimcomo interesses comuns). Mas as condi90es em que 0 conflitode classes ocorre nao sao, por certo, diretamente inferidas des­sa observa9ao. Assim, em Estados agrarios ou sociedades divi­didas em classes, °conflito entre classes dominantes e classessubordinadas e relativamente raro; isso se deve principalmenteao fato de haver muito pouco contato entre elas que fomecesseos contextos em que 0 conflito poderia realmente ocorrer".

De acordo com as concep90es que delineei acima, a pree­minencia da contradi9ao existencial e caracteristica daquelassociedades mergulhadas nurn tempo reversivel tradicional:mente sancionado - sociedades que "nao tern hist6ria". 0 sur­gimento da contradi9ao estrutural (cujas origens nao estou preo­cupado em tentar explicar aqui) "aquece" processos de mudan­9a social. Mas e apenas com 0 desenvolvimento do capitalismomodemo que esses processos ficam "incandescentes". Compa­rados com 0 mundo modemo, com seus extraordinarios indicesde prolongada transforma9ao social, os imperios tradicionais eoutros tipos de Estado parecem marcados mais por urna ausen­cia de mudan9a do que 0 inverso. 0 que Marx considerou sercaracteristico do "modo asiatica de produy,ao" e mencionou,num tom desdenhoso, como estagna9ao social e econ6mica, ede fato urna caracteristica distinta de todas as sociedades agra­rias de grande escala de todo tipo. Como foi assinalado por urnobservador, He a ausencia relativamente dominante de impor­tantes mudan<;as sociais e econ6micas" que caracteriza as for­mas variantes de sociedade existentes na face da hist6ria mun­dial ate uns dois ou tres seculos atras".

Distinguirei dois tipos principais de coletividade, de acor­do com a forma das rela90es que participam de sua reprodu9ao.Chama-Ias-ei de associat;8es e organizat;8es, e separa-Ias-eidos movimentos sociais. Nas associa90es, como em todos ossistemas sociais, a reprodu9ao social ocorre na (e por meio da)conduta regularizada de agentes capazes. Os cenanos de intera­9ao em que ocorrem os encontros de rotina sao reflexivamentemonitorados por seus atores constituintes na reprodu9ao de re­la90es de papel mutuamente vinculadas. Mas embora tal moni­tora9ao seja a condi9ao de sua reprodu9ao, ela nao assume aforma de uma tentativa ativa de controlar ou de alterar as cir­cunstiincias de reprodu9ao. A tendencia e de existir urna estreitaconexao entre modos tradicionais de legitimidade e 0 predomi­nio de associa90es. A tradi9ao e mais do que urna forma parti­cular da experiencia de temporalidade; representa a ordem mo­ral "do que se passou antes" na continuidade da vida cotidiana.Eurn erro supor que a tradi9ao, mesmo na mais fria das cultu­ras frias, seja inteiramente refratana amudan9a ou adiversifi­ca9ao da conduta. A caracteriza9ao que Shils faz da tradi9ao eprovavelmente muito apropriada: ele a ve como "0 movimentode gotas de chuva nurna vidra9a. [...] urna corrente ondulat6ria deagua, deslizando obliquamente vidra9a abaixo, entra em conta­to com urna outra corrente que se desloca nurn Angulo diferente.Fundem-se, por breves momentos, numa unica corrente, que sedecompoe em duas outras, cada qual podendo dividir-se de novo,se a vidra9a for suficientemente grande e a chuva bastante in­tensa"39. 0 que a metafora nao transmite, porem, e 0 proprioaspecto de tradi9ao que alicer9a a rotina em "sociedades tradi­cionais". A esse respeito, Levi-Strauss esta certamente corretoao enfatizar que a tradi9ao e 0 veiculo do tempo reversivel queliga a duree da vida cotidiana alongue duree das institui90eS.

A distin9ao entre associa90es, por urn lado, e entre as or­ganizac;oes e os movimentos sociais, por Dutro, coincide comuma Dutra nos modos de reproduc;ao, que descrevi no primeirocapitulo. Organiza90es e movimentos sociais sao coletividades

234 A CONSTITUIr;:AO DA SOClEDADEr

ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL

Fazendo a hist6ria

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em que a regula,ao reflexiva das condi,oes de reprodu,ao dosistema prepondera na continuidade das praticas cotidianas.Organiza,oes e movimentos sociais encontram-se caracteristi­camente em segmentos das sociedades divididas em classes ­e, com efeito, marcam em certa medida sua separa,ao das so­ciedades tribais. Pois a auto-regula,ao reflexiva, como proprie­dade das coletividades, depende do cotejo de informa,ao quepode ser controlada de modo a influenciar as circunstancias dereprodu,ao social. 0 controle da informa,ao, por sua vez, de­pende da armazenagem de informa,ao de uma especie distintadaquela a que se tern acesso pela recorda,ao individual, nosmitos au hist6rias contadas au na consciencia pnitica da "tradi­,ao vivida". A inven,1io da escrita, 0 modo principal de cotejoe a armazenagem de informa,ao em sociedades divididas emclasses, marca uma disjun,ao radical na Historia. [sso e verda­de nao so porque as formas de armazenagem e recupera,ao deinforma,ao geradas pela escrita permitem uma expansao dodistanciamento tempo-espa,o, mas tambem porque a naturezada "tradi,ao" se alterou, mudando 0 sentido em que os sereshumanos vivem "na" Historia. As sociedades divididas em clas­ses sempre mantiveram uma base fortemente tradicional, 50­

bretudo fora da esfera relativamente restrita das cidades. Asobras de filosofos da China pre-Ch'in conceberam a interse,aode passado e presente como uma rel~ao moveI, na qual nao soo "presente" penetra no "passado" e vice-versa, mas tambem aHistoria e mais "plana" do que linear. Quer dizer, ela penetralateralmente no tempo, em vez de "para tras". A vida era repre­sentada como governada pelos Ii, ou rituais tradicionais, conti­nuamente transmitidos. Segundo Hsun Tzu, "passado e presen­te sao a mesma coisa. As coisas sao as mesmas em especie,embora prolongadas num extenso periodo, e continuam tendoo mesmo principio"". Nao obstante, a introdu,ao da escritasignifica que a tradi,ao torna-se visivel como "tradi,ao", ummodo especifico, entre outros, de fazer coisas. A "tradi9ao" quee conhecida como tal deixou de ser uma base de costume con­sagrado pelo tempo para converter-se num fenomeno discursivoaberto it interroga,ao.

No que se refere it "Hist6ria", vale a pena reverter, nesteponto, it senten,a de Marx segundo a qual os seres humanos"fazem Historia". Nao foi meramente uma extravagancia inda­gar antes 0 que e que e"feito" aqui, conforme nos mostra 0

debate entre Sartre e Levi-Strauss. Todos os seres humanosvivem na Historia, no sentido de que suas vidas se desenrolamno tempo, mas isso elas tern em cornum com tadas as coisasexistentes. Como pratica reflexivamente fundada, a sociedadehumana e distinta da animal, mas isso dificilmente explica, emsi e por si mesma, 0 que e"Hist6ria" au 0 que existe de especi­fico na historia humana. Sugerir que uma resposta a essasquestoes tern de ser "historica" nao contem qualquer paradoxo,visto que, e claro, a palavra "historia" aproveita-se de dois sig­nificados: a ocorrencia de eventos no decorrer do tempo e anarra,ao ou explica,ao desses eventos. 0 fato de hoje em diasermos propensos a elidir os dois sentidos expressa algumascaracteristicas fundamentais da era contemporanea e indica no­vamente que extraordinarias complexidades subjazem it propo­si,ao inocente de que os seres humanos "fazem Historia". Poissua elucida,ao pressupoe uma descri,ao filosMica do tempo.Retornamos aqui a algumas das questoes que abordei logo nasse,oes iniciais deste livro, em rela,ao it teoria da estrutura,ao.

A analise de Levi-Strauss do "pensamento selvagem" iden­tifica com argucia algumas das questoes relevantes. Em To­tem/sm, ele mostra um paralelo entre 0 conceito de Bergson daduree e as ideias "comuns a todos os Sioux, desde os Osage, nosuI, ate os Dakota, no norte, de acordo com as quais coisas eseres nada mais sao do que formas materializadas de continui­dade criativa"41. A tentativa de Bergson de formular uma filoso­fia do tempo, tal como as no,oes mais poderosas de Heidegger,pode ser considerada um esfor,o para escapar it concep,ao"linear" ou "unitaria" de tempo expressa na Weltanschauungda moderna cultura ocidental. Bergson quer apreender a dureecomo algo que une 0 continuo e 0 descontinuo, a ordem dediferen9as que constitui a "realida5ie". Do mesma modo, na cos­mologia dos Sioux, tal como e descrita numa can,ao:

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236 A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;AO SOCIAL 237

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Thompson esta certo, sem duvida, ao ver nisso uma antecipa­9ao de Marx, como muitos outros viram. Mas considerar Vicourn precursor direto de Marx significa ignorar caracteristicasde seu pensamento que preservam urna visao divergente detempo e de "experiencia". Thompson rejeita de passagem 0 que

Foram os pr6prios homens que fizeram este mundo de na­\=oes, embora sem 0 pleno conhecimento dos resultados de suasatividades. No entanto, ele eeste mundo, provindo sem duvidaalguma de uma mente freqiientemente diversa e, por vezes,totalmente contraria e sempre superior a esses fins particularesque os pr6prios homens se tinham prefixado. [...] 0 que feztudoisso foi na verdade a mente, dado que 0 fizeram os homens cominteligencia. Nao se trata de destino, porque 0 fizeram por escolha.Nem foi acaso, porque, assim sempre agindo, chegam perpetua­mente aos mesmos resultados44.

Nessa versao de "hist6ria", como explical;ao de eventos, 0 tem­po e associado nao a mudan9a social, mas a repeti9ao; nao acapacidade dos seres humanos de transformar 0 mundo outransfonnarem-se a si mesmos, mas a seu envolvimento com anatureza.

Se "hist6ria", na frase "as seres humanos fazem Historia",significa a conjun9ao de urna concep9ao linear de tempo com aideia de que, atraves da expansao do conhecimento de seu pas­sado, os agentes podem mudar seu futuro, trata-se de urnan09ao que se origina em Vico. Com efeito, os escritos de Vicopoderao ser vistos como 0 tra90 de uniao entre uma compreen­sao mais antiga de tempo e continuidade, e urna, mais nova,emergente. Assim, numa celebre passagem - citada e endossa­da por Thompson" - Vico afirma:

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chama de "tentativa do proprio Vico para atribuir ao processouma inteligibilidade ciclica", preferindo concentrar-se em "suaexpressao soberba de processo" quando argurnentar ser "esseponto donde todo 0 pensamento hist6rico sistematico deve par­tir"", Mas a "inteligibilidade ciclica" e fundamental para as con­cep90es de Vico, e so urn "pensamento historico" relativamen­te recente adotou como seu ponto de partida a "Hist6ria comoprocesso".

Organiza90es e movimentos sociais modernos operamnum mundo social em que a retirada dos deuses e a dissolu9aOda tradi9ao criam as condi90es em que a auto-regula9ao refle­xiva se manifesta como Hist6ria - e como sociologia, A eramodema, dominada pela ascensao do capitalismo no Ocidente,nurn escasso periodo de poucos seculos, esta marcada pelo pre­dominio da historicidade, percep9ao consciente do "movimen­to progressivo" da sociedade, moldado por essa mesma cons­ciencia, aquela "intui9ao de historia do mundo", a cujo respeitoescreveu Spengler, 0 cotejo, analise e recupera9ao de informa­9aO que estimula e expressa a historicidade sao possibilitados,em primeiro lugar, pelo desenvolvimento da imprensa e da al­fabetiza9ao em massa; e, em segundo lugar, pela inven9ao dosmeios eletronicos de comunica9ao. Cada urn desses processosexpandiu 0 distanciamento tempo-espa90 pela "aliena9ao" dacomunica9ao em circunstiincias de co-presen9a, Qualquer tex­to escrito ficou distanciado de seu autor; a imprensa e, em suamaior parte, urna extensao quantitativa de tal distanciamento.Os meios eletronicos separam a presen9a no tempo da presen9ano espa90, urn fenomeno de importancia decisiva para as for­mas contemporiineas de coletividade.

As organiza90es e os movimentos sociais sao 0 que Tou­raine chama de "unidades de tomada de decisao"", utilizandocertas forynas tipicas de recurSOs (autoritarios e alocativos) noambito de formas discursivamente mobilizadas de f1uxo de in­forma9ao. 0 estudo dos movimentos sociais tern estado nitida­mente sub-representado dentro das ciencias sociais, em com­para9ao com a vasta literatura dedicada as numerosas elabora­90es concorrentes da "teoria da organiza9ao". Parece haver pou-

ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIALrA CONSTITUJ(;:AO DA SOCIEDADE

Tudo que se movimenta, de vez em quando, aqui e ali, fazparadas. 0 passaro, quando vaa, para num Jugar para fazer seuninho e num outro para repousar de seu VQo. Urn homem, quan­do caminha, para quando quer. E assim deus parou. 0 sol, que etao brilhante e bela, eurn dos lugares oode ele parou. A lua, asestrelas, as mentes, com elas esteve. As arvores, os animais, to­dos sao onde ele parou. [... J42

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Thompson esta certo, sem duvida, ao ver nisso uma antecipa­,ao de Marx, como muitos outros viram. Mas considerar Vicourn precursor direto de Marx significa ignorar caracteristicasde seu pensamento que preservam urna visao divergente detempo e de "experiencia". Thompson rejeita de passagem 0 que

Foram os pr6prios homens que fizeram este mundo de na­90es, embora sem 0 pleno conhecimento dos resultados de suasatividades. No entanto, ele e este mundo, provindo sem duvidaalguma de uma mente freqiientemente diversa e, por vezes,totalmente contraria e sempre superior a esses fins particularesque os proprios homens se tinham prefixado. [...] 0 que fez tudoisso foi na verdade a mente, dado que 0 fizeram os homens cominteligencia. Nao se trata de destino, porque 0 fizeram por escolha.Nem foi acaso, porque, assim sempre agindo, chegam perpetua­mente aos mesmos resultados44 •

Nessa versao de "historia", como explical;aO de eventos, 0 tem­po e associado nao a mudan,a social, mas a repeti,ao; nao acapacidade dos seres hurnanos de transfonnar 0 mundo outransforrnarem-se a si mesmos, mas a seu envolvimento com anatureza.

Se "hist6ria", na frase "os seres humanos fazem Historia",significa a conjun,ao de uma concep,ao linear de tempo com aideia de que, atraves da expansao do conhecimento de seu pas­sado, os agentes podem mudar seu futuro, trata-se de urnano,ao que se origina em Vico. Com efeito, os escritos de Vicopoderao ser vistos como 0 tra,o de uniao entre uma compreen­sao mais antiga de tempo e continuidade, e uma, mais nova,emergente. Assim, numa celebre passagem - citada e endossa­da por Thompson" - Vico afirma:

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Tudo q~e se movlmenta, de vez em quando, aqui e ali, faz f chama de "tentativa do proprio Vico para atribuir ao processop~adas. 0 passaro, quando voa, para num lugar para fazer seu i . ... . ,.,,' "nmho e num outro para rep d 'U h uma mtehglblhdade clchca , prefenndo concentrar-se em sua

ousar e seu voo. m omem quan-do caminha, para quando quer. E assim deus arou.0;' , expressao soberba de processo" quando argurnentar ser "esse_ . p so , que e d d d h' .' . .. d

tao bnlhante e belo, eurn dos lugares onde ele parou. A lua as ponto on e to 00 pensamento Istonco sIstematIco eve par-estrelas, as mentes, com elas esteve. As arvores, os animais, 'to- tir"4S. Mas a "inteligibilidade ciclica" efundamental para as con-dos sao onde ele parou. [...]42 cep90es de Vico, e so urn "pens~ento historico" relativamen­

te recente adotou como seu ponto de partida a "Historia comoprocesso" .

Organiza,oes e movimentos sociais modernos operamnum mundo social em que a retirada dos deuses e a dissolu,aoda tradi,ao criam as condi,oes em que a auto-regula,ao refle­xiva se manifesta como Hist6ria - e como sociologia. A eramoderna, dominada pela ascensao do capitalismo no Ocidente,nurn escasso periodo de poucos seculos, esta marcada pelo pre­dominio da historicidade, percep,ao consciente do "movimen­to progressivo" da sociedade, moldado por essa mesma cons­ciencia, aquela "intui,ao de hist6ria do mundo", a cujo respeitoescreveu Spengler. 0 cotejo, analise e recupera,ao de infonna­,ao que estimula e expressa a historicidade sao possibilitados,em primeiro lugar, pelo desenvolvimento da imprensa e da al­fabetiza,ao em massa; e, em segundo lugar, pela inven,ao dosmeios eletr6nicos de comunica,ao. Cada urn desses processosexpandiu 0 distanciamento tempo-espa,o pela "aliena,ao" dacomunica,ao em circunstancias de co-presen,a. Qualquer tex­to escrito ficou distanciado de seu autor; a imprensa e, em suamaior parte, urna extensao quantitativa de tal distanciamento.Os meios eletr6nicos separam a presen,a no tempo da presen,ano espa,o, urn fen6meno de importancia decisiva para as for­mas contemporaneas de coletividade.

As organiza,oes e os movimentos sociais sao 0 que Tou­raine chama de "unidades de tomada de decisao"", utilizandocertas fOl:mas tipicas de recursos (autoritanos e alocativos) noambito de formas discursivamente mobilizadas de fluxo de in­fonna,ao. 0 estudo dos movimentos sociais tern estado nitida­mente sub-representado dentro das ciencias sociais, em com­para,ao com a vasta literatura dedicada as nurnerosas elabora­,oes concorrentes da "teoria da organiza,ao". Parece haver pou-

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cas acima e, eclaro, 0 milenarismo nao desaparece com 0 fimda Idade Media. Mas podemos dizer, com alguma confian9a,que a maioria dos movimentos sociais mais recentes difere detodas elas, com exce9ao da segunda e, nao raras vezes, da ter­ceira49

• Os movimentos sociais modemos sao quase exclusiva­mente deste mundo e de car:\ter invariavelmente oposicionista.Eles estao situados nos mesmos "campos de historicidade" dasorganiza90es e associa90es que defrontam.

a movimento dos trabalhadores pode nao fornecer a solu­~ao para "0 enigma da Historia", como Marx previu, mas, emcertos aspectos, e prototipico dos movimentos sociais contem­poraneos. No circuito da reprodu9ao capitalista anteriormenteexaminado, a "forc;a de trabalho" aparece como uma mercado­ria a ser "traduzida" em outras mercadorias. Entretanto ela naoe, evidentemente, uma mercadoria como qualquer outra, asmovimentos dos trabalhadores tern sua origem nas formas de"controle defensivo" por meio das quais os operarios procuramobter urn certo grau de dominio sobre as circunstancias em queIhes sao negados direitos de participa9ao nas decisoes que osafetam. Na medida em que os movimentos dos trabalhadoresforam impregnados de socialismo, e mais particularmente demarxismo, eles incorporaram a historicidade de modo diretono ambito de suas atividades, Esses movimentos foram anima­dos pelo mesmo nexo de ideias das organiza90es capitalistascontra as quais se op6em. Reformistas ou revolucionarios, preo­cuparam-se em promover, embora de urn modo igualit:\r:io, aque­las mesmas for9as de produ9ao que seus oponentes procuramdesenvolver mediante a acurnula9ao de capita!. Eneste ponto,porem, em que 0 movimento dos trabalhadores deixa de exem­plificar os movimentos sociais modernos em gera!. Para Marxele devia acarretar urna reforma completa da totalidade social,aluando em nome do interesse geral contra os interesses secio­nais expressos pelas divisoes de classes. as limites dessa visaotomaram-se cada vez mais evidentes, nao s6 por causa do fra­casso do proletariado em fazer a revolu9aoso ou da tendencia dereduzir todos os interesses secionais, mas exatamente devidoao desvendamento das raizes historicas da propria historicida-

241ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIAL

r

I

A CONSTiTUH;AO DA SOClEDADE

ca justificativa para isso, nurn seculo em que as revolu90es e oschoques de doutrinas rivais orientadas para a mudan9a socialradical tern sido tao proeminentes, e nao se pode deixar de con­cordar com Touraine e outros quando afirmam corretamenteque as n090es de organiza9ao e movimento social sao de impor­tancia equivalente na era modema. as movimentos sociais po­dem ser conceptualmente diferenciados dos movimentos popu­lacionais, migra90es etc. precisamente porque supoem urn altograu de auto-regula9ao reflexiva. as movimentos sociais po­dem ser convincentemente definidos como "empreendimentoscoletivos para estabelecer urna nova ordem de vida"". Dife­rentemente das organiza~oes, as movimentos sociais DaD ope­ram, de modo caracteristico, dentro de locais fixos, e 0 posicio­namento dentro deles nao possui a clareza de defini9ao asso­ciada a "papeis".

A caracteriza9ao de movimentos milenarios na Europamedieval feita por Cohn ajuda a indicar alguns dos elementosdistintivos dos movimentos sociais no periodo moderno. Se­gundo ele, esses movimentos sao inspirados pela fantasia deurna salva9ao que sera

a) coletiva, no sentido de que tern de ser fruida pelos fieis co­mourn grupo;

b) terrena, no sentido de que tern de ser realizada na Terra enao em algurn ceu de outro mundo;

c) iminente, no sentido de que tern de chegar em breve e subi­tamente;

d) total, no sentido de que e para transformar profundamente avida na Terra, pelo que a nova gra9a nao sera uma simplesmelhoria no presente, mas a propria perfei9ao;

e) realizada por agencias conscientemente vistas como sobre­naturais48 .

A obra de Cohn tern sido citada com tal freqiiencia queurna certa cautela se faz necessaria contra 0 excesso de genera­liza9ao baseada nela. Nem todos os movimentos sociais medie­vais podem ser facilmente descritos em fun9ao das caracteristi-

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de. Nossa era e urna que alimenta duvidas radicais acerca dasrealiza95es guiadas pela ciencia e pela inova9ao tecnol6gica,urna era em que a historicidade perde sua antiga e indiscutidapreeminencia.

Do mesmo modo, a empresa capitalista e, em alguns as­pectos, tipica das organiza95es modemas e uma das principaisfontes de inova9ao gerando as circunstiincias em que elas nas­ceram. Tal como analisado por Marx, 0 capitalismo e urn modode produ9ao em que a auto-regula9ao reflexiva dentro da empre­sa - fen6meno elucidado pela demonstra9ao de Weber do sig­nificado da contabilidade por partidas dobradas para a firmacapitalista - nao e acompanhada por urn controle reflexivo so­bre a vida econ6mica como urn todo. Entretanto, como Webertambem fez mais do que ninguem por esclarecer, a auto-regu­la9ao reflexiva adquire impulso em muitos setores da vidasocial. Ai teside uma das mais profundas quest5es que defron­tamos hoje. Sera a expansao de uma diversidade de diferentesformas de organiza9ao - em que as condi95es de reprodu9aosao reflexivamente monitoradas - urn meio de emancipa9aodos modos preestabelecidos de domina9ao exploradora? Naoha duvida de que Marx acreditava ser esse 0 caso no contextode sua previsao da derrubada revolucionaria do capitalismopelo socialismo. Mas os criticos e os adversarios de Marx, deWeber a Foucault, fomeceram excelentes motivos para trataresse principio basico do marxismo com cautela, quando naocom franco ceticismo.

242A CONSTITUI9Jo DA SOCIEDADE Notas criticas: "sociologia estrutural" e

individualismo metodoltigico

Blau: uma versao da sociologia estrutural

Existem fortes conex5es entre uma enfase sobre a "abor­dagem estrutural", tal como e usada pelos que escrevem foradas tradi95es do estruturalismo, e 0 objetivismo nas cienciassociais. Alguns temas afloram continuamente nas obras daque­les que julgam ter adotado tal abordagem. Ai se incluem, emespecial, as ideias durkheimianas de que "as sociedades saomais do que a soma de seus individuos constituintes" e (umaconcep9ao que ja critiquei) as propriedades estruturais saoqualidades de sistemas sociais que devem ser definidos exclu­sivamente em fun9ao de sua influencia coerciva sobre os atoressociais. As "abordagens estruturais" tambem tendem a subli­nhar a dura9ao no 'tempo e a extensao no espa90. As estruturassao "supra-individuais" no sentido de que sobrevivem ao agen­te individual e se expandem muito alem do ambito da atividadede agentes individuais'*. Estas considera95es, obviamente, so­brep5em-se consideravelmente aos temas de minha analiseprecedente neste livro. Mas ha tambem algo de urn elementoepistemol6gico freqiientemente envolvido. Pois muitas vezes esustentado, ou suposto, que examinar caracteristicas estrutu­rais da atividade social e demonstrar influencias causais sobrea conduta humana anaIogas its que operam na natureza.

Assim, Wallace identifica a "diferen9a crucial" entre 0 queele designa por "teoria estruturalista social" e "teoria acionista

* As referencias podem ser encontradas a pp. 263-5.

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social" da seguinte maneira: "a teoria estruturalista social trataa intencionalidade e outros fatores orientacionais subjetivos co­mo, no minima, secundarios e, no maximo [?], irrelevantes paraa explicac;ao de fen6menos sociais. [...]"'. A rudeza com queesse ponto de vista e expresso nada tern de incomum. Atente-separa urna recente exposic;ao apresentada por Mayhew de acor­do com essa mesma orientac;ao. Ele identifica os interesses pro­prios da sociologia como "estruturais". As estruturas referem-sea redes de relac;6es, e tais redes podem e devem ser analisadassem qualquer alusao as caracteristicas dos individuos. Diz ele: "nasociologia estrutural, a unidade de analise e sempre a rede social,nunca 0 individuo"'. Uma "abordagem estrutural" esti aqui vin­culada, como ocorre freqiientemente, ao endosso de urna formaurn tanto rudimentar de behaviorismo. Mayhew argumenta que osestruturalistas "nao empregam conceitos subjetivistas como in­tenc;ao ou finalidades em suas analises'''.

Blau desenvolveu uma versao mais sofisticada de ideiassemelhantes em varias publicac;6es recentes, e seus pontos devista sao, sem duvida, representativos de urn segmento subs­tancial da opiniao sociologica'. Tal como a maioria dos autoressociologicos anglo-sax6nicos, ele nada tera de comum com aconcepc;ao de estruturalismo de Levi-Strauss ou com pontos devista afins. Entretanto, tambem esta cuidadosamente separadodo funcionalismo, propondo urna noc;ao de estrutura "despojadade suas mais amplas conotac;6es culturais e funcionais ate ficarreduzida as suas propriedades essenciais"'. Aceitando que 0

conceito de "estrutura" tern sido usado de varias maneiras pordiferentes autores, ele sublinha que em geral todos concordamem que, em sua acepc;ao mais elementar, 0 termo refere-se, dealgum modo, a posic;6es sociais e a relac;6es entre posic;6es so­ciais. Conforme foi especificado por Blau, a ciencia social es­trutural interessa-se pelos parametros de distribuic;6es popula­cionais, nao pelos atores como tais. Urn "panlmetro estrutura}"e qualquer criterio de categorizac;ao de agregados de indivi­duos pertinente a posic;6es sociais que os individuos poderiamocupar. Ele explica isso da seguinte maneira:

Assim, falamos da estrutura etaria de uma popula<;ao, daestrutura de parentesco de uma triba, da estrutura de autoridadede uma organiza<;3.o, da estrutura de poder de uma comunidade eda estrutura de classes de uma sociedade. NaG se trata de tipos deestrutura social, mas tao-somente de seus elementos analiticos,distinguindo posi<;oes sociais numa unica dimensao. As diferen­tes posi<;oes geradas por urn 56 para.metro sao necessariamenteocupadas por diferentes pessoas - urn individuo ehomem ou mu­lher, velho ou jovem, rico ou pobre -, mas 0 caso difere para po­sh;5es geradas por varios parametros, pOfque a mesma pessoaocupa simultaneamente posi95es em diferentes parametros. [...JAs estruturas sociais refletem-se em diversas formas de diferen­cia9ao, as quais devem ser mantidas analitfcamente distintas.

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A tarefa de estudar parametros estruturais, segundo Blau, de­limita 0 interesse distintivo da sociologia.

E possivel distinguir dois tipos de parlimetro estruturaLOs "parametros nominais" sao laterais, separando uma dadapopulac;ao em categorias, como genero, religiao ou rac;a; os "pa­rlirnetros graduados" sao hierarquicos, diferenciando os indivi­duos ao longo de uma escala e incluem, por exemplo, riqueza,renda e educac;ao. Urn dDs principais objetivos do estudo estru­tural consiste em examinar a relac;ao entre esses parlimetros, namedida em que estao associados a grupos de interac;ao. Quandoexiste consideravel diferenciac;ao ao longo de urn ou outroparametro, a possibilidade de se formarem tais grupos de inte­rac;ao sera menor. Assim, os pariimetros podem ser analisadosde modo a explicar as formas e os graus de diferenciac;ao eintegrac;ao sociaL Blau descreve como urn "determinista estru­tural", alguem "que acredita que as estruturas das posic;6es so­ciais objetivas entre as quais as pessoas est1io distribuidas exer­cern influencias mais fundamentais sobre a vida social do que osvalores e normas culturais"", Seu proposito e explicar as varia­c;6es nas caracteristicas estruturais das sociedades, nao os fato­res pertinentes as atitudes, crenc;as ou motivos individuais. A ana­lise estrutural, nesse sentido do termo, assinala Blau, pode serrealizada sem se investigarem as caracteristicas globais de

sociedades.

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Entretanto, ele representa algumas asser90es que sao apli­caveis a essas caracteristicas. Assim, por exemplo, observa queem pequenas culturas orais 0 parentesco e 0 principal eixo estru­tural coordenador de diferencia9ao e integra9ao. As sociedadesindustrializadas, em contrapartida, caracterizam-se pela "hete­rogeneidade multiforme", a interse9ao complexa de parame­tros estruturais, produzindo diversas formas de associa9ao egrupos de intera9ao. Na era atual, acrescenta Brau, verifica-seuma considenivel consolida9ao estrutural nas sociedades oci­dentais - de fato, de acordo com sua versao pessoal da crescenteamea9a de uma ordem social "unidimensional"".

Com base nesses conceitos, Blau tenta formular 0 que elechama de uma teoria dedutiva da estrutura social, que parte deproposi90es envolvendo dados analiticos muito simples (porexemplo, 0 tamanho de agregados ou grupos) e sobre essa baseconstr6i generaliza90es mais complexas. Alguns dos pressu­postos envolvidos, diz ele, dependem de "principios essencial­mente psicoI6gicos". Cita, como exemplo, a generaliza9ao deque as pessoas preferem associar-se a outras que tern tra90Ssemelhantes aos delas. As propriedades estruturais analisadasnao podem, porem, ser diretamente derivadas de tais teoremaspsicol6gicos. A teoria dedutiva de Blau e urn neg6cio compli­cado, envolvendo muitas dezenas de generaliza90es acerca dos"efeitos estruturais", desde as maravilhosamente banais ("pes­soas que se associam nao s6 com os membros de seus propriosgrupos, mas tambem com os de outros"), passando pelas mo­deradamente interessantes, embora muito discutiveis ("descen­traliza9ao da autoridade numa associa9ao aumenta a associa­9aO informal entre 0 pessoal administrativo"), ate as provocati­vas, mas talvez substancialmente equivocadas ("as altas taxasde mobilidade promovem a mudan9a estrutural"). SegundoBlau, "a teoria e sociol6gica no sentido especifico de que ex­plica padroes de rela90es sociais em termos de propriedades daestrutura social, nao em termos das SUposi90es formuladas,sejam estas derivaveis ou nao de principios psico16gicos. Anatureza das formula90es 16gicas empregadas toma as explica­<;oes estruturais"lo.

As concep90es de Blau sao, em alguns aspectos, idiossin­crMicas, mas, em sua maior parte, exemplificam as ambi90esda "sociologia estrutural", de urn modo geral. Ele expressa deforma convincente 0 sentimento persistente compartilhado pormuitos de que a sociologia pode e deve ser separada de maneiraclara de outras disciplinas vizinhas, em especial da psicologia.Defende com energia a tese de que 0 que da distintividade asociologia e sua preocupa9ao especifica nao s6 com a estruturasocial mas tamb"m com as formas pelas quais propriedadescoercivas da estrutura se fazem sentir no tocante a conduta dosindividuos. De acordo com Brau, tanto a formula9ao da analiseestrutural quanta a explica9ao estrutural nao precisam fazerreferencia a "valeres ou normas". Neste ultimo aspecto, eleparece divergir de Durkheim, mas em outros 0 que tern a dizerpoderia ser considerado uma versao recente de um manifestodurkheimiano. 0 exame das deficiencias de seu ponto de vistaserve simultaneamente para reiterar caracteristicas da teoria daestrutura9ao antes mencionadas e para ajudar a assinalar as­pectos da "estrutura" e das "propriedades estruturais" segundodesejo entender esses conceitos.

Existem alguns tra90s interessantes e instrutivos nas ideiasde Blau. Ele contoma 0 funcionalismo e evita identificar a ana­lise estrutural com alguma influencia inexplicada que a socie­dade "como um todo" tern sobre seus membros individuais. Re­conhece que as sociedades nao sao totalmente uniformes ­quer dizer, uma das finalidades do estudo estrutural deve ser ade mostrar exatamente que niveis de integra9ao podem ser des­cobertos dentro de agrupamentos sociais e entre cles. Nao obs­tante, as limita90es de tal concep9ao de "sociologia estrutural"sao pronunciadas.

A abordagem de Blau confunde a necessidade de distin­guir a influencia de propriedades estruturais das explica90espsicol6gicas da conduta, por um lade, com a asser9ao de que osparametros estruturais podem ser definidos independentementede "valores", "nonnas" OU "tradi<;oes culturais", por DutrO. Pre­sume-se que seu programa de descoberta da "influencia inde­pendente que a estrutura de posi90es sociais numa sociedade

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ou comunidade exerce sobre rela,oes sociais" sera realizado"independentemente de valores culturais e motivos psicologi­cos"". Mas a redu,ao a generaliza,oes psicologicas.nao e amesma coisa que a formula,ao em termos de valores ou signi­ficados culturais. Estes ultimos fazem refereneia il tarefa inevi­tavelmente hermeneutica da gera,ao de descri,oes sociais,parasitarias dos conceitos dos agentes que ajudam a constitui­las. Urn equivoco caracteristico dos defensores da sociologiaestrutural e confundir duas acep,oes diferentes nas quais anatureza "objetiva" das propriedades estruturais pode ser con­traposta a "subjetividade". Os parametros estruturais, como Blauos define, sao "nao-subjetivos" no sentido de nao poderem serdescritos em termos de predicados individuais. Mas niio po­dem ser "nao-subjetivos" no sentido de nao poderem de modoalgum ser caracterizados independentemente das "tradi,oesculturais", nas quais este termo se refere aos significados dosagentes. Assim, Blau considera "estruturais" as categorias deparentesco. Mas estas dependem, manifestamente, de concei­tos e discrimina,oes empregados por atores. 0 proprio termo"posi,ao", tao basico para a no,ao de estrutura de Blau, envolveclaramente conceitos dos agentes. As posi,oes sociais, comotodos os outros aspectos dos "parametros estruturais", so exis­tern na medida em que os atores fazem discrimina,oes em suaconduta baseadas na atribui,ao de certas identidades a outros.

A no,ao de que 0 estudo de parametros estruturais econ­vergente com 0 carater especial da sociologia poderia ser plau­sivel se algumas propriedades causais definidas lhes estives­sem associadas, fazendo assim convergir a "explica,ao socio­logica" com a "explica,ao estrutural". Mas as rela,oes causaissupostamente em a,ao sao obscuras - embora obviamente sepresuma que elas operam de algum modo fora do alcance dasrazoes que os agentes poderiam ter para fazer 0 que fazem.Assim, Blau propoe a generaliza,ao de que 0 tamanbo crescen­te de uma organiza,ao produz maior diferencia,ao interna e,por conseguinte, eleva a propor,ao de pessoal administrativonela contido. Segundo ele, essa rela,ao pode ser apreendida"sem se investigarem os motivos dos individuos nas organiza-

,oes"", Mas, quando Blau a desenvolve, percebe-se que essaproposi,ao e falsa. Se a implica,ao fosse que certos motivostipicos podem ser pressupostos por quem teoriza, e ser enun­ciados se necessario, a asser,ao poderia ser defendida. Masnao eisso 0 que Blau tern em mente, Ele deixa bern claro sersua opiniao que a especifica,ao de motivos (e razoes ou inten­,oes) e realmente irrelevante para os fatores envolvidos nageneraliza,ao. E isso nao everdade, em absoluto, Pelo contril­rio, a espeeifica,ao faz-se necessaria precisamente para suaexplica,ao causaL A maior propor,ao de administradores ten­dera a verificar-se quando os atores reagem ao que consideramser novos problemas e questoes apresentados pelo aumento dasdimensoes organizacionais 13

:E passivel que, num exame mais minucioso, as generali­za,oes "estruturais" apresentadas por Blau resultem serJ6rmu­las que as atores usam para produzir as resultados indicados.Se nada sabemos sobre 0 que os proprios agentes acreditamestar fazendo - porque esse tipo de informa,ao econsideradodistinto da analise de efeitos estruturais -, nao podemos avaliara probabilidade de que as coisas sejam realmente assim. Aque­les que administram organiza,oes possuem suas proprias teo­rias em usa sabre elas e podem, na verdade, estar ao correnteda literatura academica sobre 0 assunto. Considere-se a propo­si,ao de que a descentraliza,ao da autoridade em organiza,oesaumenta as associa,oes informais entre 0 pessoal administrati­YO. Como acontece com a generaliza,ao sobre tamanho e dife­rencia,ao interna, ela presume conseqiiencias intencionais queos agentes tern raz5es para provocar OU, alternativamente, 0 re­sultado pode ter sido amplamente impremeditado. Para 0 obser­vador social eesseneial saber qual e0 caso concreto para eluci­dar 0 que estil havendo. Pelo menos alguns dos agentes envol­vidos poderao estar atuando illuz das proprias generaliza,oesque Blau identifica, Ebern possivel que uma politica de des­centraliza,ao seja seguida especificamente com a finalidadede aumentar certos tipos de assoeia,ao informal entre diferentescategorias de administradores.

Esses comentarios demonstram que a "abordagem estru­tural" das ciencias sociais nao pode ser separada de um exame

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248 A CONSTITUJf;AO DA SOCIEDADE

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dos mecanismos de reprodu,ao socia!. E perfeitamente corre­to, e claro, enfatizar que a sociedade nao e uma cria,ao de ato­res individuais e que as propriedades estruturais de sistemassociais permanecem alem da vida dos individuos. Mas a estru­tura, ou as propriedades estruturais, ou as "parametros estrutu­rais", so existem na medida em que ha continuidade na repro­du,ao social no tempo e no espa,o. E essa continuidade, porsua vez, so existe nas (e atraves das) atividades reflexivamentemonitoradas de atores situados, tendo uma serie de conseqiien­cias premeditadas e impremeditadas. Permitam-me repetir: umacategoria distintiva de "explicafaO estrutural" ecoisa que naoexisle; tudo 0 que ha e uma interpreta,ao dos modos pelos quaisvarias formas de coer,ao influenciam a a,ao humana. Nada hade misterioso acerca do que significa "influencia" neste caso.Veja-se a generaliza,ao de que elevadas taxas de mobilidadepromovem a mudan,a estrutura!. Podemos provavelmente su­por que as altas taxas de mobilidade nao sao, em grande parte,intencionais e que as mudan,as por elas induzidas tampouco 0

sao, embora possa acontecer, por exemplo, de uma politicaeducacional ser estabelecida a fim de estimular a mobilidade e,por conseguinte, os fatos fazerem parte de um processo reflexi­vamente monitorado. Suponhamos, porem, que a mobilidadeem questao nao seja intencional, como as das mulheres - umamobilidade ocupacional ascendente - e que a "mudan,a estru­tural" promovida revela-se nas taxas mais altas (ou mais bai­xas) de divorcio. Podemos investigar ai as influencias causais,mas somente conhecendo os motivos e as raz5es dos envol­vidos - esposas, maridos e outros. Epossivel que as mulheresde sucesso em suas carreiras profissionais passem menos tem­po no lar do que na circunstiincia adversa, culminando em ten­sao (nao intencional) no relacionamento conjugal; que elas vejamo casamento como pOllea importante, comparado ao sucessono trabalho; que os maridos se mostrem ressentidos com 0 exitode suas esposas etc., ou uma combina,ao de tudo isso para di­ferentes individuos.

I) "Atomismo social truistico." E0 ponto de vista que defendeque 0 fato de os fenamenos sociais so poderem ser explica­dos em termos da analise da conduta de individuos I: eviden­te em si meSillO. Assim, diz Hayek: "nao existe Dutro cami­nho para uma compreensao dos fenamenos sociais a nao ser

251ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODU(:,i,O SOCIAL

Vma alternativa? Individnalismo metodol6gico

As concep,5es de "explica,ao distintivamente estrutural"em sociologia tern tido desde longa data urn inimigo natural noindividualismo metodologico. 0 debate entre as duas posi,5ese, de certo modo, a contrapartida metodologica ao dualismo desujeito e 0 objeto social que caracterizou a ontologia das cien­cias sociais. Embora Max Weber tenha sido adotado frequente­mente como "sociologo estrutural", ele apontou com bastanteclareza suas preferencias pessoais. Numa carta escrita naomuito antes de sua morte, observou: "Se me tornei urn sociolo­go [...] foi principalmente a fim de exorcizar 0 espectro de con­cep,5es coletivas que ainda sobrevive entre nos. Por outras pa­lavras, a propria sociologia so pode originar-se de a,5es de urnou mais individuos isolados e deve adotar, portanto, metodosestritamente individualistas."" A a,ao humana, como diz Weberem Economia e sociedade, "s6 existe enquanto comportamen­to de urn ou mais seres humanos individuais"15. 0 debate emtorno de que teses poderiam, de fato, estar sendo formuladaspor Weber e outros "individualistas metodologicos" alongou­se muito, mas existe, sem duvida, uma genuina diferen,a de opi­niao entre eles e os "sociologos estruturais". Os detalhes podemser complexos, mas as linhas gerais sao relativamente simples.Os individualistas metodologicos concordam com a opiniaoque enunciei acima: a busca de "explica,ao estrutural" I: futil etalvez atl: nociva.

Acompanharei agora uma das mais influentes abordagensdas quest5es suscitadas por varias vers5es do individualismometodologico. Lukes discute e procura "tornar inocua" cada umadas que ele considera suas principais express5es". As doutrinasque advogam 0 individualismo metodologico envolvem uma oumais das seguintes teses.

A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE250

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Todos esses quatro elementos pareceriam encontrar-se no tan­tas vezes citado enunciado de Watkins sobre 0 que ele chamade "principio do individualismo metodologico":

De acordo com esse principia, os constituintes basicos domundo social sao pessoas individuais que agem de modo maisou menos apropriado aluz de suas disposir;oes e compreensaode sua situar;ao. Teda situa<;ao social, instituir;ao ou evento com­plexo resulta de uma configurar;ao particular de individuos, suasdisposir;5es, situar;oes, crenr;as e recursos e ambientes fisicos.Pade haver explica90es inacabadas ou parciais de fen6menossociais de larga escala (digamos, a inflayao) em tennos de Qutrosfen6menos de larga escala (digamos, 0 pleno emprego); mas 56teremos chegado a explicar;5es fundamentais desses fen6menosde larga escala quando tivennos deduzido uma explical;ao deles apartir de enunciados sobre as disposil;oes, crencas, recursos einter-relacoes de individuos. (Os individuos poderao pennaneceranonimos, eapenas disposil;oes tipicas etc. ser-Ihes atribuidas.)19

253ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUt:;AO SOCIAL

A estrategia de bombardeamento de Lukes, constituidapor argumentos destinados a "desarmar" 0 individualismo me­todologico, coloca pelotoes em duas frentes. Nenhuma das te­ses mencionadas nas quatro categorias acima tern a menorplausibilidade quando examinada minuciosamente. Como aprimeira e truistica (quer dizer, trivialmente verdadeira), naovern ao caso. Dizer que a "sociedade consiste em pessoas" cons­titui "uma proposi9ao banal sobre 0 mundo", a qual e "analiti­camente verdadeira, isto e, em virtude do significado das pala­vras"". 0 segundo, terceiro e quarto pontos sao demonstravel­mente falsos. 0 fato de a descri9ao ou amilise de rela90es deparentesco, como as designadas por "casamento entre primos",nao poder ser realizada sem referencia acognoscitividade deagentes humanos nao acarreta que tais rela90es possam serdescritas apenas em termos dos predicados dos individuos. Seo ponto 3 implica, de algum modo, que so os individuos sao di­retamente observaveis, ele incorre em erro - embora nao hajarazao nenhuma, em qualquer caso, para sustentar a proposic;ao,associada ao behaviorismo, de que somente 0 que e observavele real. Podemos nao ser capazes de observar os elementos queBlau tern em mente quando fala de parametros estruturais, mascertamente observarnos fenornenos .~ociais em circunstanciasde co-presen9a, como a forma9ao e encena9ao de encontros.Finalmente, 0 ponto 4 e coberto pelo que eu disse antes: nao haescassez de generalizac;5es nas ciencias sociais, ernbora elasnao tenham a mesma forma logica que as leis universais naciencia natural.

Esses argumentos, admite Lukes, ainda nao tomam ino­cuo 0 individualismo metodologico. Nem mesmo atacam suaprincipal for9a, que diz respeito aexplica9ao. A asser9ao maisimportante na cita9ao de Watkins, e talvez tambem na de Hayek,encontra-se na declara9ao de que as "explica90es finais" de fe­nornenos sociais tern de envolver as "disposic;oes, crenc;as, re­cursos e inter-rela90es de individuos". E ai que Lukes senteresidir 0 poder potencialmente explosivo do individualismo me­todologico, cujo detonador precisa ser delicadamente desarma­do e removido. 0 que sao as "disposi90es etc." dos individuos?

A CONSTITUlt:;A-O DA SOCIEDADE252

mediante nosso entendimento das a90es individuais dirigi­das para outras pessoas e guiadas pelo comportamento quese espera deJas"" (uma formula9ao proxima, de fato, da de­fini9ao de Weber de "a9ao social").

2) A ideia de que todas as afirma90es sobre fen6menos sociais- como a exposi9ao de Blau de parametros estruturais _podem ser reduzidas, sem perda de significado, a descri90esdas qualidades dos individuos. Essa ideia negaria qualquersentido ao que Blau diz sobre "estrutura"; ele estaria sim­plesmente agregando propriedades de individuos.

3) A asser9ao de que so os individuos sao reais. Assim, pareceser sustentado por alguns autores que todos os conceitosreferentes a propriedades de coletividades ou sistemas sociais(poderiamos uma vez mais citar, como exemplo, os "para­metros estruturais") sao modelos abstratos, constru90es dosteoricos, de algum modo que a n09ao de "individuo" nao e.

4) A alega9ao de que nao pode haver leis nas ciencias sociais,exceto na medida em que existam leis sobre as disposi90espsicologicas de individuos'".

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E 0 que e, em todo caso, a "explica,ao"? Quanto a esta ultima,Lukes pOde demonstrar com relativa facilidade que muitos pro­ponentes do individualismo metodologico tern em mente urnano,ao francamente restrita do que seja (isso e igualmente vali­do para Blau e a maioria dos soci610gos estruturais). Explicar eresponder a urn "por que" e, com freqiiencia, isso envolve tor­nar urn determinado fenomeno social inteligivel simplesmenteno sentido de fomecer dele uma caracteriza,ao exata21 • Nestecaso, a explica,ao funciona, por assim dizer, na (ou em tomo da)linha de base da natureza necessariamente hermeneutica dasciencias sociais. E inegavelmente importante enfatizar que a"explica,ao" compartilha da contextualidade de toda atividadesocial, seja esta relativa as indaga,oes de atores leigos ou deobservadores sociologicos. Entretanto, concentremo-nos no sig­nificado mais restrito dessa palavra como algo relacionadocom a formula,ao nao apenas de generaliza,oes, mas de gene­raliza,5es causais - por outras palavras, aquelas que nao afir­mam simplesmente que urna rela,ao de tipo abstrato prevaleceentre duas categorias ou classes de fenomenos sociais mastambem identificarn as conex5es causais envolvidas.

Em que sentido essas conexoes causais se relacionam ne­cessariamente com os individuos? Segundo Lukes, em algu­mas vers5es do individualismo metodologico as qualidades dosindividuos invocadas nas explica,5es sao tra,os fisiologicos doorganismo ou necessidades organicarnente dadas. Mas resultaque essas explica,5es sao totalmente implausiveis. Ninguempode apresentar qualquer coloca,ao que reduza os fenomenossociais a propriedades organicas. Logo, essas formas de indivi­dualismo metodologico sao, no maximo, alega,5es hipoteti­cas; nao tern rela,ao direta de especie alguma com os materiaisde estudo dos cientistas sociais. Em outras interpreta,5es doindividualismo metodologico, porem, ou as caracteristicas atri­buidas a individuos e incorporadas em explica,5es nao excluema possibilidade de outras analises estruturais, ou essas caracte­risticas sao cobertas pela refuta,ao do item 3 acima e envol­vern, de fato, caracteriza,5es sociais (estruturais), de qualquermodo. Logo, 0 individualismo metodologico foi neutralizado.

Aqueles que defendem urn reducionismo envolvendo caracte­risticas fisiologicas do organismo nao podem fazer valer suasalega,5es em qualquer coisa relacionada com a pratica real dasciencias sociais, mas outros nao conseguem encontrar quais­quer propriedades dos individuos que nao sejarn irredutivel­mente "contaminadas" pelo social.

Neste ponto Lukes abandona a questao. Nao penso que is­so seja suficiente: temos de formular as quest5es de urn modoalgo diferente. Entretanto, antes de retomar alguns dos aspec­tos que ficararn pendentes na exposi,ao de Lukes, sera instruti­vo fazer referencia a alguns problemas muito semelhantes sus­citados num outro quadrante - na polemica entre Thompson eAnderson acerca do carater do marxismo". Thompson consi­dera desde longa data os conceitos estruturais como suspeitos,sem os rejeitar por completo, e enfatiza sistematicamente aimportii.ncia do estudo da textura e variedade da agencia hurna­na. Assim, ao descrever os pontos de vista que dao base a suaanalise do desenvolvimento de classes na Inglaterra, nos secu­los XVIII e XIX, ele comenta: "a classe e definida por homensenquanto vivem sua propria historia e, afinal, essa e sua unicadefini,ao"". Durante uma prolongada polemica contra Althus­ser e seus seguidores - provocando urna resposta em dimen­s5es de livro por parte de Anderson -, Thompson detalha asimplica,oes de seu ponto de vista. Nao tentarei caracterizar 0debate como urn todo, mas mencionarei apenas alguns aspec­tos pertinentes.

Althusser e censurado por Thompson - corretamente, emminha opiniao" - por apresentar urna descri,ao deficiente daagencia hurnana e urna concep,ao deterministica de estrutura.Os seres hurnanos sao vistos nao como agentes conscientes,mas apenas como "esteios" de modos de produ,ao. Aquilo quecharnei de "deprecia,ao do ator leigo" e expresso por Thomp­son de maneira mais abrupta. Althusser, e a maioria dos outrosassociados ao estruturalismo ou ao funcionalismo, "partem damesma 'antropologia latente', do mesmo pressuposto ulterioracerca do 'Homem' - de que todos os homens e mulheres (exce­to eles proprios) sao remalados idiolas"". A vida social, ou a

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A polemica entre Thompson e Anderson nao e conclusiva,em absoluto, mas e uti! coloca-la lado a lade com 0 debatemais abstrato acerca do individualismo metodol6gico. Esteultimo parece largamente esgotado, mas a vivacidade da pole­mica entre Thompson e Anderson demonstra claramente queas questoes nao estao mortas. Existe um sentido muito impor­tante no fato de nao poderem estar. Cada investiga9ao realizadanas ciencias sociais ou na hist6ria esta envolvida em relacionara a9ao a estrutura, em tra9ar, explicitamente ou nao, a conjun­9ao ou as disjun90es de conseqiiencias premeditadas ou impre­meditadas da atividade, e em verificar como elas afetam 0 des-

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da palavra, por exemplo, liga-se diretamente ao empirismo, noqual ela e urn registro passive de eventos no mundo, algo muitodistante das conota90es ativas do termo que Thompson desejaacentuar. Alem disso, em nenhum momenta este disseca efeti­vamente a rela9ao entre a9ao e estrutura. Isso e verdade atemesmo no que diz respeito a seu livro mais importante, TheMaking of the English Working Class, que abre com um para­grafo celebre: "A classe trabalhadora nao nasceu como 0 sol nahora marcada. Estava presente em sua pr6pria cria9ao", e suaforma9ao "deve tanto aagencia quanta ao condicionamento"28.Mas, a despeito dos aplausos que a obra recebeu com justi9a,sublinha Anderson, ela nao resolve realmente as questoes as­sim suscitadas.

ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL

Pois se a afirmayao da co-detennina<;ao de agencia e neces­sidade devesse ser corroborada, precisariarnos ter, no minime,uma explora<;ao conjunta da reuniao e transfonna<;ao objetivas deurna for9a de trabalho pela Revolu,iio Industrial, e da gennina,iiosubjetiva de urna cultura de classe em resposta a ela. [...] [Mas] aadvento do capitalismo industrial na Inglaterra eurn sombrio pa­no de fundo para 0 livro, em vez de urn objeto de analise diretopor si s6. [... ] Os ritmos e as pausas temporais irregulares, e as dis­tribui<;oes e deslocarnentos espaciais desiguais da acumula<;ao decapital entre 1790 e 1830 marcaram inevitavelmente a composi­<;ao e 0 caniter do proletariado ingles nascente. Contudo, nao en­contrararn lugar nesta descri<;ao de sua forrna<;ao. 29

A CONSTITUf(;AO DA SOCIEDADE

hist6ria humana, diz Thompson, deveria ser entendida como"pr<itica humana sem mestre". Isso significa que os seres hu­manos atuam deliberada e conscientemente, mas sem poderantever ou controlar as conseqiiencias do que fazem. Para en­tender como isso acontece, precisamos de urn termo que foiomitido em Althusser: e 0 que Thompson simplesmente desig­na por "experiencia humana"26, A experiencia ea conexao entre"estrutura" e "processo", 0 verdadeiro material da analise so­cial ou hist6rica. Thompson sublinha que esse ponto de vistanao 0 aproxima do individualismo metodol6gico. De fato, eleaponta uma certa afinidade entre este e 0 marxismo de Althus­ser. Pois este autor acredita que as "estruturas" s6 existem nointerior de dominios te6ricos, nao na pr6pria realidade, e essapostura, portanto, assemelha-se ao nominalismo dos individua­listas metodol6gicos. Mas ainda, afinal, nao e facil enxergarexatamente ate que ponto as ideias de Thompson sao distintasdo individualismo metodol6gico. Muitas das passagens em suaobra, nas quais ele caracteriza suas concep90es gerais, asseme­lham-se as ideias de Watkins acima citadas. Assim, ao voltar afalar do conceito de classe, ele insiste: "Quando falamos deuma classe, estamos pensando num grupo vagamente definidode pessoas que comparti!ham das mesmas categorias de intes­ses, experiencias sociais, tradi9ao e sistema de valores, que ternuma disposi,do para comportar-se como uma classe, para de­finir-se a si mesmas em suas al;oes e em sua consciencia emrela9ao a outros grupos de pessoas em termos de classe.""

Ha muito de atraente nas ideias de Thompson, mas Ander­Son nao teve dificuldade em descobrir nelas algumas deficien­cias. Quando aquele fala de "pessoas" e da primazia da "expe­riencia", de que modo esses termos aparentemente transparen­tes devem ser entendidos? Ao enfatiza-los, ele pretende clara­mente acentuar 0 significado da agencia humana no fazer aHist6ria. Mas 0 que e "agencia" permanece inexplicado, ape­sar da profusao de exemplos hist6ricos que Thompson ofereceem seus trabalhos originais e mediante sua critica a Althusser."Experiencia" - como sabemos pelas tentativas de Dilthey deexplicar Erlebnis - e um termo notoriamente ambiguo. Urn uso

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tino de individuos. Nenhum malabarismo com conceitos abs­tratos podeni substituir 0 estudo direto de tais problemas noscontextos reais de intera,ao. Pois as permutas de influenciassao intennimiveis, e naD existe urn sentido em que a estrutura"determine" a a,ao ou vice-versa. A natureza das coer,oes a queos individuos estao sujeitos, os usos que eles dao as capacida­des que possuem e as formas de cognoscitividade que revelamsao todos eles manifestamente variaveis do ponto de'vista his­t6rico.

o esclarecimento conceptual pode pelo menos ajudar, su­gerindo como essas materias poderao ser mais bern abordadas.o que liga os argumentos de Thompson aos de Watkins e ou­tros e que ambos ap6iam seus argurnentos, de forma urn tantoexcessiva, numa concep9ao intuitiva, naG teorizada, do '''indivi­duo" ou "agente". Eles estao inteiramente justificados em sus­peitar das aspira,oes da "sociologia estrutural", quer esta adotea forma oferecida por Blau ou a elaborada por Althusser. 0individualismo metodol6gico nao e, como Lukes sugere, in6­cuo a respeito dos objetivos que os "soci610gos estruturais" sepropoem alcan,ar. Os individualistas metodol6gicos estao er­rados, na medida em que afirmam que as categorias sociaispodem ser reduzidas a descri,oes em termos de predicados in­dividuais. Mas eles estao certos ao desconfiar de que a "socio­logia estrutural" elimina ou, pelo menos, subestima radicalmen­te a cognoscitividade dos agentes humanos, e tern razao eminsistir que as "fon;as sociais" sao sempre nero mais nem menosdo que combina,oes de conseqiiencias premeditadas ou impre­meditadas da a,ao empreendida em contextos especificaveis.

A "sociologia estrutural" e 0 individualismo metodol6gi­co nao sao alternativas, de modo que rejeitar uma seja aceitar aoutra. Em certos aspectos, como diz Lukes, 0 debate entre osdois lados e vazio. A questao e descartar alguns dos termos dodebate enquanto se desenvolvem outros mais alem do que foifeito por qualquer de seus participantes. 0 que 0 "individuo" enao pode ser considerado 6bvio. Nao se trata aqui de compararpredicados mas de especificar como sao os agentes hurnanos _algo que tentei fazer com rela,ao aos conceitos basicos da teo-

ria da estrutura,ao. lsso pressupoe 0 abandono da equipara,aode estrutura e coer,ao. A rela,ao entre facilita,ao e coef9ao podeser facilmente exposta nurn nivel16gico, dado urn ponto inicialna no,ao da dualidade da estrutura. Hist6ria nao significa "pni­ticas hurnanas sem mestre". Ea temporalidade de praticas hu­manas, modelando e sendo modelada por propriedades estrutu­rais, dentro das quais diversas formas de poder sao incorpora­das - de forma alguma urna mudan,a de frase tao nitida, maspenso que seja colocada com maior precisao.

Uma outra questao suscitada pelo debate sobre 0 individua­lismo metodol6gico: as coletividades sao atores? 0 que signi­fica dizer, por exemplo: "0 governo decidiu adotar a politicaX"? Ou: "0 governo atuou rapidamente diante da amea,a derebeliao"? Varias distin,oes precisam ser delineadas nesteponto. As descri,oes de a,ao, como mencionei num capituloanterior, nao devem ser confundidas com a designa,ao de agen­cia enquanto tal. Tanto elas quanta os relatos de intera,ao naopodem ser dados puramente em termos de predicados indivi­duais. Mas s6 os individuos, seres que possuem uma existenciacorp6rea, sao agentes. Se as coletividades ou grupos nao saoagentes, por que as vezes falamos como se fossem, como nosexemplos acima? Somos propensos a faze-Io quando existe urngrau significativo de monitora,ao reflexiva das condi,oes dereprodu,ao social, do tipo relacionado especialmente com asorganiza,oes, embora nao exclusivo delas. "0 governo decidiuadotar a politica X" e urna descri,ao sintetica de decisoes to­madas por individuos, mas, normalmente, em alguma especiede consulta mutua ou quando a orienta,ao politica resultante enormativamente obrigat6ria. As decisoes tomadas por governosou outras organiza,oes podem nao representar 0 resultado de­sejado de tudo, ou 0 resultado mais desejado de todos, daque­les que participam nelas. Em tais circunstancias, faz sentidodizer que os participantes "decidem" (individualmente) "deci­dir" (coletivamente) sobre urn dado curso de a,ao. Quer dizer,os membros individuais de urn governo podem concordar emconsiderar-se obrigados a respeitar 0 resultado de urna reuniaodo qual discordam ou 0 teor de urna proposta contra a qual VOla-

258 A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL 259

Page 153: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Referencias

Estrutura, sistema, reprodu(:iio social

261ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODUt;:AO SOCIAL

do sociol6gico. Trad. de M. Garrido Torres. Sao Paulo, Abril Cul­tural, 1973, pp. 380-1. Col. "Os Pensadores", vol. XXXII!.]

11. Ibidem, pp. 50 e 52 [po 389 da ed. brasileira].12. Ibidem, pp. 2-3 [po 390 da ed. brasileira].13. Marx, Karl. Capital. Londres, Lawrence & Wishart, 1970, p. 72.

Vma discussao instrutiva dessa questao figura em: Rose, Gillian.The Melancholy Science. Londres, Macmillan, 1978, cap. 3.

14. Marx, Karl. Grundrisse. Harrnondsworth, Penguin, 1976, p. 157.15. Yer CPST, cap. 5.16. Preparado para a reda9ao de CCHM, mas nao na versao final ai

incluida.17. A classifica,ao tambem deixa em aberto a possibilidade de outros

tipos - por exemplo, sociedade socialista de Estado, distinta docapitalismo e, e claro, de outras fonnas de organiza9ao da socie­dade que possam desenvolver-se concebivelmente no futuro.

18.0 ponto de vista expresso em CCHM, p. 164, "A cidade e 0 locusdos mecanismos que produzem a integra9ao de sistema", esta for­mulado de modo algo inadequado. Alem disso, nao quero trans­mitir a ideia de que a rela9ao cidade-campo e unitciria Oll singular;pelo contnirio, e heterogenea e complexa quando considerada ageneralidade das sociedades.

19. Wallerstein, Immanuel. The Modern World-System. Nova York,Academic Press, 1974; cf. Spengler: "Nao eridiculo opor urn.hist6ria 'modema' de alguns seculos, e essa hist6ria localizada,para todos os fins, na Europa Ocidental, aumahist6ria 'antiga', quecobre muitos milenios - despejando, alias, nessa 'hist6ria antiga'toda a massa de culturas pre-helenicas, nao exploradas nem orde­nadas, como mero apendice?" (Spengler, Oswald. The Decline ofthe West. Londres, Allen & Unwin, 1951, p. 38).

20. Cf. nota 2 acima.21. Cf. meu ensaio "The nation-state and violence".22. CPST, pp. 104-5.23. Marx, K. Capital, cit., p. 11 O.24. Ibidem, pp. 110 e 103.25. Ibidem, p. 168.26. Para uma versao anterior de alguns desses pontos, ver DSCA, cap. 6.27. Marx, K. Capital, cit., vol. 1, p. 337.28. Ibidem, p. 338.29. Ibidem, p. 356.30. Ibidem, p. Ill.31. CPST, pp. 141 ss.

A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE260

ram, mas que recebeu 0 apoio da maioria. B importante com­preender que "0 governo decidiu..." ou "0 governo aluou..." saodeclara,oes sinteticas, porque, em algumas situa,oes, pode im­portar muito quais individuos foram os principais iniciadoresou executores das decisoes tomadas (ou nao tomadas) e dasorienta,oes politicas seguidas, sejam elas quais forem.

1. CPST, pp. 222-5.2. CCHM, cap. 8

3. Ibidem, pp. 45-6. Minhas considera,5es aqui modificam apenasligeiramente minha versao anterior desse problema. Para cutras se­,5es em que nos apoiamos aqui, vertambem pp. 157-64 e 166-9.

4. Acompanhei de perto a analise de Eberhard nos paragrafos prece­dentes: Eberhard, Wolfram. Conquerors and Rulers. Leiden, Brill,1965, p. 9passim.

5. Hodgson, Marshall G. S. "The interrelations ofsocieties in history".Comparative Studies in Society andHistory, vol. 5, 1962-3, p. 233.

6. Gailey, H. A. A History ofAfrica. 1800 to the Present. Nova York,Houghton-Mifflin, 1970-2,2 vols.; Grousset, Rene. The Empireofthe Steppes. New Brunswick, Rutgers University Press, 1970.

7. Carlstein, T. "The sociology of structuration in time and space: atime-geographic assessment of Gidden's theory". Swedish Geo­graphical Yearbook. Lund, Lund University Press, 1981; Layder,Derek. Structure, Interaction and Social Theory. Landres, Rout­ledge, 1981; Thompson, 1. B. Critical Hermeneutics. Cambridge,Cambridge University Press, 1981; Archer, Margaret S. "Morpho­genesis versus structuration: on combining structure and action".British Journal ofSociology, vol. 33, 1982.

8. Carlstein, 1. "The sociology of structuration in time and space",cit., pp. 52-3. Yer tambOm: Critical Hermeneutics. Cambridge,Cambridge University Press, 1981, pp. 143-4.

9. Bhaskar, Roy. The Possibility ofNaturalism. Brighton, Harves­ter, 1979,p. 42.

10. Durkheim, Emile. The Rules ofSociological Method. Londres:Macmillan, 1982, pp. 39-40. [Edi,ao brasi1eira: As regras do meto-

Page 154: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

262263

1. Cf. Boudon, Raymond. The Uses ofStructuralism. Londres, Hei­nemann, 1971. [Edi9ao brasileira: Para que serve a noriio de es­trutura? Trad. de Luis Costa Lima, Edi,ao Eldorado, 1974.]BoudoD categoriza urn certo mimero de uscs divergentes do con­ceito. Para urn conjunto de abordagens alga diferentes, ver: Blau,Peter M. Approaches to the Study of Social Structure. Landres,Collier-Macmillan, 1975.

2. Wallace, Walter L. "Structure and action in the theories ofCole­man e Parsons". In: Blau, P. M. Approaches to the Study ofSo­cial Structure, cit., p. 121.

3. Mayhew, Bruce H. "Structuralism versus individualism", partes 1e 2. Social Forces, vol. 59, 1980, p. 349.

4. Ibidem, p. 348.5. Blau, Peter M. Inequality and Heterogeneity. Nova York, Free

Press, 1977; "Structural effects". American Sociological Review,vol. 25, 1960; "Parameters of social structure". In: Blau, P. M.Approaches to the Study ofSocial Structure, cit.;"A macrosocio­logical theory of social structure". American Journal ofSociolo­gy, vol. 83, 1977.

6. Inequality and Heterogeneity, cit., p. ix.7. "Parameters ofsocial structure", cit., p. 221.8. Inequality and Heterogeneity, cit., p. 246.9. '''Parameters of social structure", cit., pp. 252-3. "0 que coloca essa

amea<;a ea posi<;ao dominante de organiza<;oes poderosas na so­ciedade contemporanea, como 0 Pentigono, a Casa Branca e gigan­tescos conglomerados. A tendencia tern sido a de crescente con-

Nolas criticas: "socialagia estrutural"e individualismo metodol6gico

ESTRUTURA, SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL

46. Touraine, Alain. The Self-Production of Society. Chicago, Uni­versity of Chicago Press, 1977, p. 238.

47. Blumer, Herbert. "Collective behaviour". In: Lee, Alfred M. Prin­ciples ofSociology. Nova York, Barnes & Noble, 1951, p. 199.

48. Cohn, Norman. "Mediaeval millenarianism: its bearing upon thecomparative study ofmillenarian movements", In: Thrupp, SilviaL. Millenial Dreams in Action. Haia, Mouton, 1962, p. 31.

49. Cf. Banks, 1. A. The Sociology of Social Movements. Londres,Macmillan, 1972, pp. 20-1 passim.

50. Gorz, Andre. Farewell to the Working Class. Londres, Pluto, 1982.

A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE

32. Levi-Strauss, Claude. Structural Anthropology. Londres, Allen La­ne, 1968, pp. 365-6. [Edi,ao brasileira: Antropologia estruturalTrad. de Chaim Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro, TempoBrasileiro,1967.]

33. Levi-Strauss, Claude. The Savage Mind. Londres, Weidenfeld &Nicolson, 1966, p. 93.

34. Essa e uma preocupa<;ao essencial de Between Capitalism andSocialism.

35. CCHM, caps. 7, 8 e 9. Tambem nao considero aqui a questiiomuito importante (analisada igualmente em CCHM) das rela,oesentre 0 capitalismo, 0 Estado e as divis6es de classes.

36. Urn tema desenvolvido mais completamente em Between Capi­talism and Socialism.

37. Ver: Kautsky, John H. The Politics ofAristocratic Empires. Cha­pel Hill, University ofNorth Carolina Press, 1982: "Se urna clas­se econcebida como urn agrupamento em conflito com uma Dutraclasse, enHio, na verdade, aristocracias e campesinatos DaD saoclasses, em absoluto" (p. 75).

38. Ibidem, pp. 5-6. Ver lambem: Claessen, Henri J. M. e Skalnik,Peter. The Early State. Haia, Mouton, 1978.

39. Shils, Edward. Tradition. Londres, Faber & Faber, 1981, p. 280.40. Waley, Arthur. Three Ways ofThoughtinAncient China. Londres,

Allen & Unwin, 1939, p. 38. Para urna discussao mais ampla, ver:Pocock, 1. G. "The origins of the study of the past". ComparativeStudies in Society andHistory, vol.4, 1961-2.

41. Levi-Strauss, Claude. Totemism. Londres, Merlin, 1964, p. 98.42. Ibidem. Levi-Strauss tambem observa: "A lingua Dakota nao

possui uma palavra para designar 0 tempo, mas pade expressar denumerosas maneiras os modos de ser em dura<;ao. Para 0 pensa­mento Dakota, de fato, 0 tempo constitui uma dura<;3.o em que amedi,ao nao intervem: e urn 'bern livre' ilimitado" (p. 99). Inte­ressantes observa~5es pertinentes a essas quest6es sao feitas em:Schintlholzer, Birgit. Die AUj/6sung des Geschichtbegrijft imStrukturalismus. Harnburgo, 1973 (disserta,ao de doutoramento).

43. Thompson, E. P. The Poverty ofTheory. Londres, Merlin, 1978,pp. 86 e 291.

44. Vieo, G. The New Science. Ithaca, Cornell University Press, 1968,pp. 382, 1108. [Edi,ao brasileira: Principios de (uma) ciencianova. Trad. Antonio de Almeida Prado. Sao Paulo, Abril Cultu­ral, 1974, p. 184. Col. "as Pensadores", vol. XX.]

45. Thompson, J. B. The Poverty ofTheory, cit., p. 86.

""~

Page 155: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

centra~ao de recursos economicos e humanos, e de poderes delesderivados em gigantescas organiza~6es e seus altos executivos, 0

que implica uma crescente consolida<;ao de irnportantes recursose fonnas de poder. [...J"

IO. Inequality and Heterogeneity, cit., p. 246.11. "A macrosociological theory of social structure", cit., p. 28.12. Blau, Peter M. "A fonnal theory of differentiation in organiza­

tions". American Sociological Rewiew, vol. 35, 1970, p. 203.13. Este ponto e apresentado em: Turner, Stephen P. "Blau's theory

of differentiation: is it explanatory?". Sociological Quarterly,vol. 18, 1977. Algumas dessas quest6es sao ventiladas de novoem Blau, P. M.: "Comments on the prospects for a nomothetictheory of social structure". Journal for the Theory of SocialBehaviour, vol. 13, 1983. Ver, tambem, no mesma volume, urnextraordinano artigo de Mayhew sabre "Causality, historical par­ticularism and other errors in sociological discourse". A contri­bui<;ao de Blau continua revelando as deficiencias que ja indi­quei: 1) elementos henneneuticos na fonnula9ao de conceitos deanalise social sao suprimidos em favor da ideia de que "0 objetivoda sociologia e estudar a influencia do <ambiente social' sobre as<tendencias observaveis das pessoas' " (p. 268); 2) a referencia amotivos, razoes e inten90es dos agentes e persistentemente equi­parada apsicologia, relegada a urn dominio separado dos interes­ses da "sociologia"; 3) urna versao de urna desacreditada filosofiada ciencia natural, em que a "explica9ao" e vista como necessa­riamente vinculada a"teoriza9ao nomotetico-dedutiva" (p. 265),eaceita sem discussao; 4) nenhuma considerayao efeita apossi­bilidade de que, mesmo se a filosofia da ciencia natural assimsubentendida fosse aceitavel, 0 carater de "leis" em ciencia socialseria fundamentahnente diferente das leis da natureza; 5) 0 pontode vista esti. todo ele envolto na conhecida mas erronea alegayaode que a ciencia social, em comparayao com a ciencia natural, estaem suas fases iniciais de desenvolvimento. Blau aceita a inexis­tencia, "pelo menos ate aqui", de "leis detenninisticas em sociolo­gia" (p. 266). Mas ele expressa fe em que elas serao urn dia desco­bertas - certamente nao podemos descartar essa possibilidade,porque a "teoria nomotetica da estrutura social ainda se encontra,sem duvida, num estadio muito rudimentar" (p. 269).

14. Citado em: Moromsen, Wolfgang. "Max Weber's political socio­logy and his philosophy of world history". International SocialScience Journal, vol. 17, 1965, p. 25. Eclaro, e discutivel ate que

ponto os escritos substantivos de Weber foram guiados por esseprincipio.

15. Weber, Max. Economy and Society. Berkeley, University of Ca­lifornia Press, 1978, vol. 1, p. 13.

16. Lukes, Steven. "Methodological individualism reconsidered". In:-. Essays in Social Theory. Londres, Macmillan, 1977.

17. Hayek, F. A. Individualism and Economic Order. Chicago, Uni­versity of Chicago Press, 1949, p. 6.

18. Lukes tambem identifica urna conota9ao adicional do individua­lismo metodo16gico, uma doutrina de "individualismo social" que(ambiguamente) afirma que a sociedade tern como seu objetivo 0

bern de individuos" (Lukes, S. "Methodological individualismreconsidered", cit., pp. 181-2).

19. Watkins, 1. W. N. "Historical explanation in the social sciences".In: Gardiner, P. Theories ofHistory. Glencoe, Free Press, 1959.

20. Lukes, S. "Methodological individualism reconsidered", cit., p. 178.21. Cf. NRSM, cap. 4.22. Thompson, E. P. The Poverty ofTheory. Londres, Merlin, 1978;

Anderson, Perry. Arguments within English Marxism. Londres,Verso, 1980.

23. Thompson, E. P. The Making of the English Working Class.Hannondsworth, Penguin, 1968, p. 40.

24. CPST, cap. 1passim.25. Thompson, E. P. The Poverty ofTheory, cit., p. 148.26. Ibidem, p. 30.27. Ibidem, p. 295. Grifo no original.28. Thompson, E. P. The Making ofthe English Working Class, cit.,

p.9.29. Anderson, P. Arguments within English Marxism, cit., pp. 32-4.

265ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODU!;AO SOCIALA CONSTITUI!;AO DA SOCIEDADE264

'"

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'" As referencias podem ser encontradas a pp. 323-9.

Capitulo V

Mudanfa, evolufiio e poder

Uma grande propor9ao da ciencia social, tanto na sociolo­gia academica quanta no marxismo, baseou-se no pressupostode que e possivel fonnular teoremas de causa9ao estrutura! queexplicarao a detennina9ao da a9ao social em gera\'*' A maioria

nfvel de generalidade

1evoluyao social

determinayao estrutural

materialismo hist6rico

Quero apresentar neste capitulo argumentos favonlveis itdesconstru,iio de toda uma gama de teorias de mudan9a social,especialmente as de urn tipo evolucionista, e it reconstru,iio danatureza do poder como inerente it constitui9ao da vida social."Desconstruir" teorias de mudan9a social significa negar apossibilidade de realiza9ao de algumas das mais acariciadasambi90es da teoria social - incluindo as do "materialismo his­torico". Isso nao implica fazer a alega9ao relativamente fraca deque tais teorias nao podem ser conoboradas pelas provas dis­poniveis. Envolve urn argumento muito mais forte e mais con­trovertido: 0 de que elas estao equivocadas a respeito dos tiposde explica9ao de mudan9a social possiveis. Uma desconstru­9aO de teorias de mudan9a social pode ser procedida atraves detres series de considera90es de generalidade progressivamentedecrescente, como abaixo:

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das versoes de determina,ao estrutural esta ligada a tese de queas ciencias sociais podem revelar leis universais, leis essas queidentificam os efeitos das coer,oes estroturais. Uma dada ocor­rencia ou tipo de comportamento seria comprovadamente urnexemplo de uma lei geral, tendo sido especificadas certas con­di,oes limitrofes para a vigencia da lei. A "determina,ao" aquiequipara-se a uma forma especifica de determinismo. 0 cha­mado debate sobre a "lei de cobertura" explorou esse tipo dequestao com certo detalhe e, sem entrar diretamente nele, bastadizer aqui que tal concep,ao e inteiramente incompativel como carater das generaliza,oes nas ciencias sociais que descreviantes (ver tambem pp. 404-9)'. Negar que uma explica,aogeral da determina,ao estrutural possa ser obtida e adotar urnapostura em rela,ao a qual boa parte deste livro e pertinente'.

Algumas teorias de mudan,a social estao ligadas as con­cep,oes acima. Tem-se pensado as vezes, por exemplo, que exis­tern leis universais governando a mudan,a social e que urnateoria de mudan,a social deve ser organizada em torno delas.Mas ha muitas tentativas de explicar a mudan,a que, emboranao postulem leis, especificam certos principios limitados dedetermina,ao de mudan,a que se sustenta serem aplicados demaneira universal. Entre esses principios, as concep,oes evolu­cionistas tern sido de longe as mais salientes.

o "evolucionismo", e claro, nao pode ser facilmente cate­gorizado, uma vez que uma variedade de pontos de vista dife­rentes foram associados ao termo, e a popularidade das con­cep,oes evolucionistas tern aurnentado e declinado nas cienciassociais no decorrer do tempo. A segunda metade do seculo XIXfoi certamente 0 ponto alto do evolucionismo na teoria social,inspirado em consideravel grau pelas descobertas de Darwinna biologia4

• As no,oes evolucionistas mostraram subseqiien­temente urna tendencia para sairem da moda, sobretudo entreos antrop610gos, que em sua maioria foram fortemente influen­ciados por uma OU Dutra interpreta9ao do "'relativismo cultu­ral". Mas tais no,oes retiveram alguns defensores na antropo­logia, e 0 evolucionismo permaneceu sistematicamente domi­nante na arqueologia. No mundo anglo-sax6nico, a ascensao

EvoIucionismo e teoria social

269

Muitas teorias da evolu,ao formam exemplos primordiaisdo que chamei de modelos "end6genos" ou "expansiveis" demudan,a e critiquei anteriormente. Esses tipos de teoria evolu­cionista estiveram, de fato, estreitamente relacionados com 0funcionalismo - sendo urn exemplo notavel as obras de Comte -,e a separa,ao entre funcionalismo e evolucionismo introduzidapor Malinowski e outros deveria, talvez, ser encarada mais comouma aberra,ao do que como urn estado natural de coisas. Asmetaforas organicas forneceram, com freqiiencia, a rela,ao en­tre os dois. Uma planta ou organismo contem em si urna traje­t6ria de crescimento, urn desdobramento de potencialidades la­tentes. Neste caso, a mudan,a e entendida como governadapelos mecanismos envolvidos nesse desdobramento, sendo associedades consideradas unidades claramente limitadas. Sus­tenta-se que as condi,oes externas acentuam ou detem proces­sos de crescimento, mas sao na realidade urn pano de fundocontra 0 qual os mecanismos de mudan,a operam. Alguns mo­delos evolucionistas trataram a mudan,a como inerentementelenta e curnulativa. Assim, Durkheim considerou a revolu,aopolitica agita,ao na superflcie da vida social, incapaz de darorigem a transforma,oes importantes da sociedade, porque aevolu,ao das institui,oes sociais basicas e sempre necessaria­mente lenta'. Mas as concep,oes expansiveis de mudan,a naosao certamente estranhas a teorias que propoem que a evolu,aoavan,a atraves de processos de transi,ao revolucionana. Asconcep,oes de Marx representam urn exemplo. 0 principalmotor da mudan,a social, no esquema que Marx descreve no"Prefacio" de Contribui~iio acritica da economia politica, ea

do funcionalismo, liderado por Malinowski e Radcliffe-Brown,na antropologia, e depois por Merton e Parsons, na sociologia,foi responsavel, em certa medida, pelo eclipse do pensamentoevolucionista, embora seu renascimento tivesse side mais tardeiniciado pelo pr6prio Parsons'.

MUDANr:;A. EVOLUr:;AO E PODERA CONSTITUlr:;AO DA SOCIEDADE268

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Quer se use ou nao 0 adjetivo "bioI6gico", 0 principia deevolw;ao esta firmemente estabelecido como pertinente ao mun­do das coisas vivas. [...JTais conceitos basicos da evoluyao ouvaria~ao organica, selec;ao, adaptar;ao, diferenciaviio e integrar;ao

l

pertencem ao centro de nossa preocupa9ao, quando apropriada­mente ajustados a urn assunto social e cultural. (Parsonst

A evoluc;iio pede ser considerada urn interesse em determi­nar farmas, processos e fun<;6es que reaparecem periodicamen­te. [...] A evolu,iio cultural pode ser vista como urn tipo especial

expansiio das for,as de produ,iio no seio de urn determinadotipo de sociedade. Nurn dado ponto, essa expansiio niio podemais ser contida dentro das institui,oes existentes da socieda­de, redundando num processo de revolu,iio, apos 0 qual 0

mesmo processo volta a ocorrer'. As origens da mudan,a de­vern ser encontradas nas propriedades tendenciais das sociedadesde classes, as quais contem as "sementes de sua propria trans­formal;ao".

Como deve ser entendido 0 termo "evolu,iio"? A palavraprov.om do latim evolutia, derivado de e- ("fora de") e volutus("enrolado"). Usava-se em referencia ao desenrolamento delivros em pergaminho. 0 conceito niio era aplicado em algoque se parecesse com sua acep,iio modema antes do final dos.oculo XVII, quando passou entiio a signil'icar urn processoordenado de mudan,a, passando por varios estadios discemi­veis. Comte foi urn dos primeiros pensadores sociais importan­tes a fazer extenso uso da no,iio, e sua formula,iio niio .0 muitodiferente daquelas propostas subseqiientemente por muitos au­tores (incluindo Parsons, ver pp. 310-23). A varia,iio de tipossociais, sua diferencia~ao e sintese, promovendo a "ordem comcontinuidade" - foram esses os temas de Comte. "Nenhumaordem real pode estabelecer-se nem, sobretudo, durar se niiofor plenamente compativel com 0 progresso; nenhurn grandeprogresso podera efetivamente realizar-se se niio tender, emultima instiincia, para a evidente consolida,iio da ordem.',g

Mencionarei algumas defini,oes mais recentes de evolu­,iio social ou cultural, selecionadas de modo mais ou menosaleatorio:

271

de reconstru<;ao hist6rica au uma metodologia au abordagemespecial. (Steward)'"

A evolw;ao (natural au social) eurn processo de automanu­tenc;ao, autotransformac;ao e autotranscendencia, direcional notempo e portanto irreversivel, 0 qual, em seu curso, gera todas asnovidades, maior variedade, organizac;ao mais complexa, niveismais elevados de compreensao e atividade mental carla vez maisconsciente. (Huxley)'l

A evolw;ao pade ser definida como uma sequencia tempo­ral de fonnas: uma forma desenvolve-se a partir de Dutra; a cul­tura avanc;a de urn estagio para DutrO. Nesse processo, 0 tempo eurn fator tao integrante quanta a mudanc;a da fonna. 0 processoevolucionista e irreversivel e nao-repetitive. [... ] 0 proces­so evolucionista esemelhante ao processo historico, ou difusio­nista, na medida em que ambos sao temporais e, portanto, irre­versiveis e nao-repetitivos. Mas diferem no fato de 0 primeiroser de carater nomotetico e 0 segundo, idiognifico. [... ] Por certo,o processo evolucionista tern sempre lugar algures e num conti­nuum temporal, mas 0 tempo particular e 0 lugar particular naosao significativos. 0 que conta e a sequencia temporal de for­mas. (White)"

Em suas esferas biologica e cultural, a evolw;ao move-se si­multaneamente em duas dire90es. Por urn lado, cria a diversida­de atraves da modifica9ao adaptativa: fonnas superiores resul­tam das inferiores e as ultrapassam. A primeira dessas dire90es ea Evolu9ao Especifica, e a segunda, a Evolu9ao Geral [... ] umataxonomia diferente torna-se necessaria para examinar essesdois aspectos da evolu9ao. Preocupado com as linhas de descen­dencia, 0 estudo da evolU(;:ao especifica emprega a classifica9aofilogenetica. Na perspectiva evolucionista geral, a enfase trans­fere-se para 0 carater do proprio progresso, e as fonnas sao c1as­sificadas em estadios ou niveis de desenvolvimento sem referen­cia il filogenia. (Sahlins)"

Existem significativos pontos de varia,iio entre essas for­mula,oes. 0 que Sahlins chama de "evolu,iio especifica", porexemplo, .0 a ilnica acep,iio de evolu,iio reconhecida por Steward,que rejeita diretamente, de fato, a "evolu,iio geral". Mas as de­fini,oes tendem a ter certos tra,os comuns, declarados ou impli-

MUDAN!;A. EVOLU!;A-O E PODERA CONSTITUII;AO DA SOCIEDADE270

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citos, e podem ser utilizadas para caracterizar como uma teoriaou abordagem tern de ser para merecer ser chamada de "evolu­cionista". Considero ponto pacifico que "evolu9ao" e mais doque um termo casualmente aplicado (para 0 qual nao pode ha­ver obje9ao), sin6nimo de "desenvolvimento" ou "mudan9a".Para que a "teoria evolucionista" nas ciencias sociais tenha urnsignificado distinto, direi eu, ela devera mostrar as seguintescaracteristicas (nao pense que sejam arbitranas ou demasiadofortes).

Em primeiro lugar, deve existir, pelo menos, alguma pres­suposta continuidade conceptual com a evolu9ao biologica.Como as defini90es acima deixam claro, esse e um criterio quemuitos, mas nao todos, dos que se consideram teoricos evolu­cionistas sao propensos a enfatizar. Euma afirma9ao que fazsentido, pois ainda que se originasse primordialmente no pen­samento social e nao na biologia, foi esta ultima que conferiu a"evolu9ao" uma designa9ao bastante precisa e elaborou umadescri9ao das transforma90es evolucionistas - que elucida aevolu9aO sem usar qualquer n09ao teleologica. Usar 0 termo"evolw;ao" nas ciencias sociais eurn tanto gratuito, se nao tiverpelo menos algumas conexoes com 0 vocabulano conceptualque ficou estabelecido na biologia. Nao se segue dai que umacompleta correspondencia conceptual seja necessaria ou dese­jave!. 0 evolucionismo ou, de qualquer forma, 0 darwinismotern sido recentemente alvo de vigorosos ataques na esfera daciencia natural, e e concebivel, senao inteiramente prov3.vel,que seja descartado nesse campo ao mesmo tempo que conti­nua sendo sustentado no dominic da ciencia socia!.

Em segundo lugar, 0 evolucionismo social deve especifi­car algo mais do que apenas uma progressao de mudan9a comrela9ao a certos criterios propostos, sendo esse "algo" um me­canismo de mudan9a. Este ponto precisa ser examinado comalguma minucia por causa de sua importancia. Alguns evolu­cionistas tendem a acreditar que, para defender 0 conceito deevolu9ao em teoria social, e suficiente mostrar que ocorreu umaprogressao, com rela9ao a um certo item ou itens sociais, no de­correr da Historia, desde 0 mais remoto periodo do qual temos

273MUDAN<;A. EVOLU<;AO E PODER

provas da existencia de uma sociedade humana ate a era mo­dema. Assim, por exemplo, White construiu urn indicador deevolu9ao com base na produ9ao de energia. As sociedades ou,na terminologia de White, os "sistemas culturais" variam en­quanta meios de utilizar a energia. Algumas sao mais eficazesa esse respeito do que outras. Diferentes sistemas culturais po­dem, portanto, ser classificados ao lange de uma escala, com­parando-se os coeficientes derivados da rela9ao entre 0 mon­tante de energia utilizada e consumida, e 0 nllinero de sereshumanos envolvidos nesses sistemas". De Comte e Spencer emdiante, os pensadores evolucionistas referiram-se acrescentecomplexidade, diferencia9ao etc. Eclaro, "evolu9ao" poderiaser usada apenas com referencia a tal progressao, abstraida dotempo e do espa90. Pode ser justificavel dizer, por exemplo,que as culturas pequenas, orais, estao num dos extremos de umcontinuum de consumo e distribui9ao de energia (ou distancia­mento tempo-espa90), e as sociedades modemas, industrializa­das, no outro. Tampouco ha dificuldade em sustentar a asser9aode que certos desenvolvimentos tecnicos, ou formas de organi­za9ao social, sao requisitos previos para outros. Nesse sentido,"evolu9ao" e indiscutivel como conceito. Mas usa-Io dessemodo nao e explicar coisa alguma com rela9ao a mudan9a so­cial nem satisfaz 0 criterio de ter uma afinidade razoavelmenteestreita com a evolu9ao biologica.

Em terceiro lugar, deve ser especificada uma seqiiencia deestactios de desenvolvimento social, na qual 0 mecanismo demudan9a esteja vinculado asUbstitui9ao de certos tipos ou as­pectos de organiza9ao social por outros. Esses estactios podemser dispostos na forma de evolu9ao especifica ou de evolu9aogeral, ou de alguma especie de combina9ao das duas. Nao sedeve inferir sorrateiramente disso que a progressao em tal esca­la evolucionista signifique progresso segundo criterios morais,exceto na medida em que isso seja explicitamente justificadode alguma forma. Como enfatizarei adiante, as teorias evolu­cionistas sao altamente propensas a fundir "progressao" com"progresso", devido a pressupostos etnocentricos que, emboranao estejam, provavelmente, subentendidos de modo lo&!co noevolucionismo, sao muito dificeis de evitar na priltica.

A CONSTITUJ<;A-O DA SOCIEDADE272

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Adapta,ao

Usado nurn contexto social, 0 conceito de adapta,ao podeprovar-se caracteristicamente: I) vazio, ou seja, tao amplo evago em seu significado a ponto de tomar-se mais perturbadordo que esclarecedor, ou 2) implicado nurna pretensao de expli­ca,ao funcionalista especiosa e logicamente deficiente, ou 3) en­volvido na afirma,ao de tendencias diniimicas em sociedadeshurnanas que sao demonstravelmente falsas.

Quanto ao primeiro ponto, a no,ao de adapta,ao pode serusada de modo razoavelmente preciso na biologia, donde deri­va", quando seu significado usual deve referir-se a modos pelos

275MUDANI:;A. EVOL UI:;AO E PODER

quais 0 pool genetico de organismos e influenciado pela intera­,ao com 0 meio ambiente como resultado de tra,os de sobrevi­vencia seletiva. A "adapta,ao" talvez possa ser formulada demodo convincente na ciencia social se tomada como urn rotulageral referente it gama de processos pelos quais os seres hurna­nos respondem a caracteristicas de seus ambientes fisicos e asmodificam. Assim, Rappaport define 0 termo como "0 proces­so pelo qual organismos ou grupos de organismos, mediantemudanyas sensiveis em seus estados, estruturas ou composi­,5es, mantem a homeostase em si mesmos e entre eles mesmos,diante das flutua,5es ambientais de curto prazo e das mudan­,as de longo prazo na composi,ao ou estrutura de seus ambien­tes"". Entretanto, e caracteristico do pensamento social evolu­cionista ampliar tanto esse uso que 0 termo torna-se irremedia­velmente amorfo. Por exemplo, Harding inicia seu estudo daadapta,ao definindo 0 conceito como "a aquisi,ao e conserva,aode controle sobre 0 meio ambiente", 0 que e francamente incon­testavel. Mas depois acrescenta que, na teoria evolucionista, aadapta,ao nao se refere apenas it rela,ao entre sociedades e na­tureza, mas tambem ao "ajustamento mutuo de sociedades".

A adapta<;ao anatureza moldani a tecnologia de wna culturae, derivativamente, seus componentes sociais e ideo16gicos. En­tretanto, a adapta<;ao a Qutras culturas pade modelar a sociedadee a ideologia, as quais, per sua vez, atuam sabre a tecnologia edeterminam seu rome futuro. 0 resultado total do processo adap­tativo ea produc.;:ao de urn todo cultural organizado, uma tecno­logia, sociedade e ideologia integradas, interatuando com a in­fluencia seletiva dual da natureza, por urn lado, e 0 impacto deculturas alheias, por outrO.I~

A adapta,ao tornou-se simplesmente, neste caso, uma no,ao atal ponto difusa que inclui todas as possiveis fontes de influen­cia sobre a organiza9ao e a transforma9ao sociais!

Esse tipo de uso e inteiramente caracteristico das teoriasevolucionistas nas ciencias sociais (comparar, por exemplo, como uso do conceito por Parsons, abordado nas pp. 319-20). Asraz5es disso sao bastante claras. Quando a "adapta,ao" e espe-

A CONSTITUII:;A-O DA SOCIEDADE274

Em quarto lugar, identificar urn mecanismo de mudan,asocial significa explicar a mudan,a de algurn modo que se apli­que a todo 0 espectro da hist6ria humana, nao como urn meca­nismo exclusivo de mudan,a mas como 0 dominante. Nao h:\duvida nenhuma quanta ao principal candidato neste caso, poisele ocupa algurn lugar em virtualmente todas as teorias evolu­cionistas, por muito que elas possam diferir em outros aspec­tos. Trata-se da "adapta,ao" - significando geralmente adapta­,ao ao meio ambiente material.

Nem todas as descri,5es de mudan,a social que depen­dem do conceito de adapta,ao sao evolucionistas, uma vez quepodem nao estar em conformidade com os tres criterios ante­riores. Mas a no,ao de adapta,ao e tao importante nas teoriasevolucionistas que, sem ela, todas perdem a maior parte de suafor,a 16gica, de sua irrefutabilidade". Portanto, faz sentido sus­tentar que, se na explica,ao de mudan,a social 0 conceito deadapta,ao resulta ser destituido de valor (como afirmarei), 0

evolucionismo e privado de boa parte de seus interesses. Masprocurarei tambern explorar dois outros caminhos criticos deataque as teorias evolucionistas: elas for,am a hist6ria humanaa entrar nurn molde no qual nao se ajusta descritivamente e ten­dem a estar associadas, embora nao inevitavelmente, a urn cer­to nilmero de corolanos infelizes.

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cificada com urn certo grau de precisao - como na formula,aode Rappaport - e quando aquilo a que se e adaptado tambemesta claramente delimitado, a no,ao e manifestamente inade­quada como mecanismo geral de mudan,a social. Se ambientesignifica "ambiente natural" e se "adaptar-se" a ele significa res­ponder a mudan,as distingiiiveis nesse ambiente, de maneirasque tenbam esse efeito de modificar tra,os orgiinicos ou so­ciais existentes, nesse caso a "adaptac;ao" e uma noc;ao sim­plesmente restrita demais para constituir urn candidato fidedig­no a tal mecanismo. S6 poden\. tomar-se plausivel pelo desdo­bramento de urn ou de ambos os aspectos de seu significado _incluindo-se outras sociedades (isto e, 0 "ambiente social") notermo "ambiente" e/ail incluindo-se como "adaptac;ao" quaisquerprocessos sociais que pare,am favorecer as probabilidades demanter uma sociedade nurna certa forma estavel. Entretanto,urna vez feito isso, 0 conceito toma-se tao vago que perde suautilidade para explicar qualquer coisa.

Em segundo lugar, e freqiientemente devido a seu caratervazio, conforme expresso em tais formula,oes, que a no,ao deadapta,ao figura com tanta assiduidade em "explica,oes" espu­rias. Pouco adianta, na verdade, afirmar que aquelas socieda­des ou tipos de sociedade que sobreviveram durante urn certoperiodo de tempo, porque sobreviveram, precisavam ter sobre­vivido. Mas e exatamente a isso que se reduzem, com freqiiencia,as explica,oes que envolvem "adapta,ao". Assim, e comurnpropor que a sobrevivencia de urn item social pode ser explica­da em termos de sua capacidade adaptativa superior. Mas comoa capacidade adaptativa e entendida? Em termos comparaveiscom os mencionados acima - todos os elementos que precisamser invocados para que esse item persista, enquanto urn outronao. Entretanto, quando "adapta,ao" e entendida de modo maislimitado, as explica,oes oferecidas tendem a ser igualmentedefeituosas, incorporando versoes do funcionalismo". Urn exem­plo tipico de boa parte da literatura pertinente, com considera­vel influencia substantiva, e 0 seguinte, extraido de G. H. Chil­de, que

parte do fate 6bvio de que 0 homem nao pede viver sem comer.Logo, uma sociedade 56 pede existir se seus membros puderemgarantir alimento suficiente para se manterem vivos e se repro­duzirem. Qualquer sociedade, em que crenc;as ou instituic;oes ra­tificadas cortaro completamente 0 suprimento alimentar (como,poe exemplo, se todes os camponeses egipcios tivessem se senti­do obrigados a trabalhar 0 ano inteiro construindo uma superpi­rfunide) ou slispendem a reprodm;ao (como uma convic~ao uni­versal e fanatica da virtude do celibato 0 faria), estaria condena­da a ter uma vida breve. Nesse caso limitador, e mais do que6bvio que 0 suprimento alimentar deve exercer um controle finalna deterrninar;ao ate de crenr;as e ideais. Presumivelmente, por­tanto, os metodos para assegurar 0 sustento exercem, afinal, umcontrole similar mais concretamente. Ede esperar que 0 modocomo as pessoas ganham seu sustento "'determine", a longo pra­20, suas crenr;as e instituir;oes.20

Entretanto, 0 que e 6bvio para Childe nao decorre, em absoluto,de sua premissa. Identificar urna exigencia funcional de umasociedade ou item social nao acarreta nenhurna implica,ao, emsi e de si mesmo, sobre sua influencia real na configura,ao dasinstitui,oes que satisfazem essa exigencia.

Passando a ultima das tres caracteristicas acima, a adapta­,ao obteria for,a de explana,ao se fosse encontrada urna dinii­mica que interpretasse com exito a diversidade e a sucessaodos principais tipos de sociedade hurnana na Hist6ria. As teo­rias evolucionistas mostram-se ai empiricamente insuficientes.Se fosse 0 caso de haver algum tipo de impulso motivacionalgeneralizado para os seres humanos se "adaptarem" progressi­vamente de urn modo mais eficaz a seus ambientes materiais,haveria urna base de sustenta,ao para a teoria evolucionista.Mas tal compulsao e inexistente21

• Altemativamente, poder-se­ia supor que urna especie de equivalente da sele,ao naturalseria encontrada com rela,ao as sociedades humanas. Foi cer­tamente isso 0 que supuseram muitos evolucionistas do seculoXIX. Spencer preferiu "sobrevivencia dos mais capazes" emvez de "sele~ao natural", mas a ideia e a mesma. Ele interpre­tou "sobrevivencia" menos como resultado da satisfa,ao deexigencias materiais de urn dado ambiente do que como levar a

277MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODERA CONSTITUlr;:A-O DA SOCIEDADE276

I'I

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278

pensar sabre as questoes humanas sem a imagem [...J de urncrescimento ascendente e universal. [...JAparentemente essa erauma conclusao natural decorrente do modelo da hist6ria ociden­tal, a qual era geralmente tratada como a hist6ria da humanida­de. A hist6ria ocidental oferece a impressao de uma certa conti­nuidade e urn certo e persistente impulso ascendente - ou, de qual­quer modo, assim parecia e assim passou a ser ensinada. Emer-

279MUDAN9A, EVOLU9A-O E PODER

esta em que a natureza reflexiva da vida social humana subver­te a explica<;ao da mudan<;a social em termos de qualquer con­junto simples e soberano de mecanismos causais. Travar co­nhecimento com 0 que se passa "na" Hist6ria toma-se nao s6uma parte inerente do que seja "hist6ria", mas tambem urnmeio de transformar a "Hist6ria",

A teoria evolucionista em biologia depende de postuladosda independencia da origem das especies e da imutabilidadedas especies exceto mediante muta<;ao, Essas condi<;oes nao seaplicam ahist6ria humana, As "sociedades" simplesmente naopossuem 0 grau de "fechamento" que as especies tern, Os bi6­logos podem responder com bastante facilidade apergunta: 0

que e que evolui? Mas nao existe uma "unidade de evolu<;ao"prontamente acessivel na esfera das ciencias sociais23

. la. trateidesse ponto (pp. 192-9), mas e conveniente repeti-Io aqui. Osevolucionistas falam habitualmente da evolu<;ao ou de "socie­dades" au de "sistemas culturais", com 0 pressuposto de queaquelas que estao mais avan<;adas sao apenas versoes diferen­ciadas das menos avan<;adas, Mas 0 que constitui uma "socie­dade" ou "cullura" varia com os pr6prios tra<;os sobre os quaisos pensadores evolucionistas tendem a concentrar-se. 0 debateentre evolucionistas e "difusionistas" s6 ajudou a encobrir esseproblema, na medida em que tendeu a tratar sociedades ou cul­luras como entidades distintas, diferindo primordialmente noque diz respeito a suas aprecia<;oes divergentes das fontes demudan<;a que as afetam.

A hist6ria humana nao e, para usar a expressao de Gellner,uma "hist6ria de crescimento mundial", Como observaGellner, durante dois seculos foi dificil para qualquer pessoanoOcidente

A CONSTITU[(;AO DA SOCIEDADE

melhor militarmente em face de outras sociedades. A forma<;aode sociedades cada vez maiores mediante a guerra, diz Spencer,"e um processo inevitavel pelo qual as variedades de homensmais bern adaptados a vida social suplantam as menos adapta­das"". Mas se esse tipo de ponto de vista esta sendo hoje ampla­mente descartado, mesmo entre os evolucionistas, e por s6lidasrazoes empiricas. A influencia da guerra sobre a mudan<;a so­cial e bastante real. Mas a for<;a militar, simplesmente, nao terno valor explicativo geral necessario para converter a "adapta­93.0" num mecanismo evolucionista via-vel. Assim que come9a­mos adicionando outros fatores, entretanto, estamos de volta asitua<;ao em que 0 conceito explica tudo e nao explica nada.

Evolu~ao e Hlstoria

A hist6ria nao tern um "formato" evolucionista, e a tenta­tiva de enquadra-la em um pode ser seriamente danosa. Enu­merei tres raz5es pelas quais a hist6ria humana nao se asseme­lha a urn modelo evolucionista da especie e quatro perigos emque incorre 0 pensamento evolucionista nas ciencias sociais. Amaior parte do terreno foi bern estudado pelos criticos do evo­lucionismo desde 0 seculo XIX em diante, mas talvez valha apena explicar esses itens em detalhe. Urn "formato" evolucio­nista - urn tronco com ramos, au uma trepadeira, em que estaointegradas a passagem do tempo cronol6gico e a progressaodas especies - e uma metMora inadequada para analisar a so­ciedade humana.

Os seres humanos fazem sua hist6ria no conhecimentodessa hist6ria, isto e, como seres reflexivos que cognitivamentese apropriam do tempo em vez de meramente 0 "viver". 0 pon­to e bastante banal, mas figura usualmente nas discussoes deevolucionistas somente em rela<;ao com a questao de saber seexiste ou nao uma ruptura entre os proto-humanos e 0 Homosapiens. Quer dizer, consideram-no simplesmente algo novoadicionado aos processos evolucionistas existentes - mais urnfator complicando a sele<;ao natural. 0 n6 da questao, entretanto,

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A viagem do Beagle simbolizou, por assim dizer, as expedi,oesque colocaram os europeus em contato com diversas e ex6ticasculturas, agrupadas e categorizadas nurn esquema abrangente, noqual 0 Ocidente se situava naturalmente no topo. Nao M sinaisde que os esquemas evolucionistas estejam hoje livres dessetipo de etnocentrismo. Onde se podera encontrar, na ciencia so­cial ocidental, um esquema desses que coloque a india tradicio­nal no topo da escala? Ou a China antiga? Ou, no que diz respei­to ao assunto, a india ou a China modemas?"

Entretanto, nao M necessidade de formular tais perguntas- as quais, como e6bvio, nao sao logicamente impermeaveisem termos de suas pemiciosas implica,oes para as teorias evo­lucionistas - para mostrar que a Hist6ria nao e urna "hist6ria decrescimento mundial". A hist6ria do Homo sapiens e mais pre­cisamente retratada da seguinte maneira. Ninguem pode estarsegura de quando 0 Homo sapiens apareceu pela primeira vez,mas 0 certo e que, na maior parte do periodo durante 0 qual osseres hurnanos tem existido, eles viveram em pequenas socieda­des ca,adoras e coletoras e houve escassa progressao discemi­vel no tocante a mudan,as quer sociais quer tecnol6gicas: urn"estado estavel" seria urna descri,ao mais exata. Por razoes quepermanecem altamente controversas, nurn determinado ponto

surgiram as "civiliza,oes" divididas em classes, primeiro na Me­sopotamia, depois em outras regioes. Mas 0 periodo relativa­mente curto de hist6ria desde entiio nao e marcado pela conti­nua ascensao da civilizal;aO; harmoniza-se mais com 0 quadrode Toynbee de ascensao e queda de civiliza,oes, e suas rela,oesconflitantes com os dominios tribais. Esse modelo terminoucom 0 advento da primazia global do Ocidente, um fenomenoque da a"Hist6ria" um cunho muito diferente de tudo 0 queaconteceu antes, truncada por um minusculo periodo de doisou tres seculos. Em vez de ver 0 mundo modemo como umaacentua,ao ulterior das condi,oes existentes em sociedadesdivididas em classes, e muito mais esclarecedor ve-lo comotendo realizado urna cesura no mundo tradicional, que ele pa­rece corroer e destruir de forma irremediavel. 0 mundo mo­demo nasceu antes da descontinuidade do que da continuidadecom 0 que aconteceu antes. A tarefa da sociologia e explicar damelhor forma possivel a natureza dessa descontinuidade - a es­pecificidade do mundo introduzido pelo advento do capitalis­mo industrial, originalmente localizado e fundado no Ocidente.

Concluirei esta se,ao enumerando sucintamente quatroperigos que 0 pensamento evolucionista atrai - que, para seremevitados da forma mais eficaz, pedem um rompimento radicalcom esse pensamento. Sao os que designarei como: 1) com­pressao unilinear; 2) compressao homol6gica; 3) ilusao norma­tiva e 4) distor,ao temporal.

o primeiro perigo, a compressao unilinear, significa a ten­dencia dos pensadores evolucionistas de comprimir a evolu,aogeral na evolu,ao especifica. Assim, 0 feudalismo precede 0

capitalismo na Europa e constitui 0 nexo social a partir do qualeste ultimo se desenvolve. Ele e, portanto, nurn certo sentidopelo menos, 0 precursor necessirio do capitalismo. 0 feudalis­mo sera, entiio, urn "estidio" geral na evolu,ao do capitalismo?26Certarnente que nao, embora existam vers5es do marxismo, etambem outras escolas de pensamento social, que defendamesse ponto de vista.

Por compressao homol6gica, 0 segundo perigo, refiro-meatendencia de alguns autores de imaginar que existe urna ho-

fr

280 A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE

gindo dos vales dos rios do Oriente Medio, a hist6ria da civiliza­~ao parece ser uma de crescimento continuo e essencialmenteascendente, s6 interrompido ocasionalmente por patamares oumesmo retrocessos: a Hist6ria pareceu avan~ar pouco a poucono litoral mediterraneo, galgando depois a costa atlantica, comas coisas ficando cada vez melhores. Imperios orientais, os gre­gos, os romanos, a cristandade, a Idade Media, a Renascen9a, aReforma, a industrializa9ao e a luta pela justi9a social (... ] aHist6ria conhecida, com variantes especialmente nos detalhesmais recentes, de tensoes e antecipa9ao, tudo isso e bastante fa­miliar e ainda forma a imagem do pano de fundo da Hist6riapara a maioria das pessoas. (... ] 0 quadro, e claro, combinou-secom 0 evolucionismo biol6gico, e a vit6ria do darwinismo pare­cia arrematar a questao. Duas disciplinas inteiramente indepen­dentes, a hist6ria e a biologia, fomeciam aparentemente partesdiferentes da mesma curva continua.24

MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODER 281

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mologia entre os estadios de evolu,ao social e 0 desenvolvi­mento da personalidade individual. Vale a pena examinar essatendencia, pelo menos com algum detalhe, porque, embora naodependa diretamente dos postulados do evolucionismo discuti­dos ate aqui, esta, nao obstante, associada com muita freqiien­cia ao pensamento evolucionista. Em termos simples, supoe-seque as pequenas culturas orais se distinguem por formas decogni,ao, afetividade ou conduta encontradas unicamente nosestadios iniciais do desenvolvimento do individuo em socieda­des mais evoluidas. 0 nivel de complexidade da organiza,aoda sociedade, por exemplo, seria supostamente refletido pelode desenvolvimento da personalidade. Urn correlato desse pon­to de vista esta em que a crescente complexidade da sociedadeimplica urn grau elevado de repressao do afeto. a mal-estar nacultum, de Freud, e 0 locus classicus de tal ponto de vista. Freudusa 0 termo "civiliza,ao" para referir-se Ii "soma total das rea­liza,oes e regras que distinguem nossas vidas das dos nossosancestrais animais e que servem a dois propositos: proteger 0

homem contra a natureza e ajustar suas relac;oes mutuas"27. Aoacentuar com enfase 0 progressive controle sobre 0 mundo ma­terial, 0 estudo de Freud de "civiliza,ao" - uma no,ao a cujorespeito muito mais poderia ser dito - apresenta algumas afini­dades muito fortes com 0 materialismo historico. Talvez naoseja tao surpreendente quanta parece Ii primeira vista, pois, quealguns marxistas tenham assimilado outros aspectos da con­cep,ao de Freud de desenvolvimento social.

A tentativa de Marcuse de ligar a interpreta,ao freudianade "civiliza,ao" a uma cdtica do modo capitalista de produ,aoassimila os aspectos fundamentais do ponto de vista de Freud.A transmuta,ao do "homem animal" em "ser humano" represen­ta um movimento do barbarismo primitivo para a civiliza,ao:

Elias sublinha certas caractedsticas especificas do Ocidentemodemo, mas elas estiio fundamente submersas num evolucio­nismo generalizado. Nas ~'sociedades menos complexas" existeum autocontrole individual inferior, maior expressao esponta­nea de emo,ao etc. As pessoas em tais sociedades sao urn pou­co como crianc;as, espontaneas e vohlveis.

Se esse ponto de vista e incorreto, como acredito que seja,ha toda uma variedade de implica,oes que podem ser aduzidasno tocante Ii natureza do capitalismo modemo e ao potencial deliberta,ao que ele possa conter'°. Mas por que esta errado e que

Marcuse so difere de Freud ao supor que a "Iuta com a nature­za", que constitui a base da existencia material humana, podeser aliviada pelas for,as produtivas geradas pela ordem econo­mica do capitalismo, mas nao capazes de expressao humani­zante no seio dessa ordem.

Uma utiliza,ao comparavel de Freud, embora despojadada visao de uma reconstitui,ao radical da sociedade, sera en­contrada nos escritos de Norbert Elias. Elias constroi sua teoriamuito diretamente em tomo do teorema de que a crescentecomplexidade da vida social acarreta necessariamente a cres­cente repressao psicologica:

283MUDAN(:A. E VOL U(:AO E PODER

Desde 0 mais recuado periodo da historia do Ocidente ate 0

presente, as fun<;:5es sociais tomaram-se cada vez mais diferen­ciadas sob a pressao da competi<;:ao. Quanto mais diferenciadasse tomavam, maior ficava sendo 0 numero de fun<;:oes e, assim,o de pessoas de quem 0 individuo depende em todas as suasac;5es. [...JQuando urn numero cada vez major de pessoas preci­sa afinar sua conduta pela de outras, a teia de ac;5es deve serorganizada de urn modo cada vez mais rigoroso e preciso. [... ] 0individuo e compelido a regular sua conduta de maneira cadavez mais diferenciada, constante e estavel. [... ] A teia de a<;:5estoma-se tao complexa e tao extensa, 0 esfor<;:o para comportar-se"corretamente" dentro deJa tao grande, que ao lado do autocon­trole consciente do individuo e firmemente estabelecido urn apa­relho de autocontrole que funciona as cegas.29

Para

satisfacao adiadarestricao do prazeresforrt0 (trabalho)produtividadesegurancal3

A CONSTlTUJ(;:AO DA SOCIEDADE

De

satisfar;ao imediataprazeralegria (atividade ludica)receptividadeausencia de repressao

282

n

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arriscado a esse respeito. Possui urn som eticamente neutra,como se "capacidade adaptativa" superior fosse ipso facto su­perioridade com rela9ao a tra90S sociais normativamente supe­riores. Entretanto, quando aplicado a sociedades humanas, 0termo e quase sempre sinonimo de puro e simples poder. Em­bora 0 adagio de que 0 poder nao confere 0 direito seja antigo,ele e freqiientemente esquecido pelos te6ricos evolucionistascomo conseqiiencia de seu pr6prio evolucionismo".

Finalmente, por distor9ao temporal, 0 quarto perigo, en­tendo a propensao dos pensadores evolucionistas para suporemque a "Hist6ria" s6 pode ser escrita como mudan9a social, queo decorrer do tempo e sinonimo de mudan9a, a confusao de"historia" com "historicidade".

o materialismo hist6rico e uma forma de evolucionismo?Com certas reservas, podemos dizer que e, se 0 termo for en­tendido de determinada maneira. Suponbamos 0 "materialismohist6rico" entendido num sentido muito gera!. 0 termo assimempregado pode referir-se a ideia, enunciada na cita9ao "osseres humanos fazem hist6ria", de que a vida social humana eformada e reformada na praxis - nas atividades praricas leva­das a efeito no decorrer da vida cotidiana. Eexatamente essa aespecie de ideia que procurei defender ao expor os principiosbasicos da teoria da estrutura9ao. Mas "materialismo hist6ri­co" e mais comumente usado, sobretudo entre aqueles que seintitulam marxistas, numa acep9ao muito mais definida e quecertamente encontra consideravel apoio textual em Marx. Eaquele "materialismo hist6rico" que se baseia no esquema dedesenvolvimento da sociedade esb09ado por Marx e Engelsnas primeiras paginas de A ide%gia a/ema e do Manifesto co­munista, e exposto de forma sucinta e brilhante por Marx no"Prefacio" de Contribui!;ao acritica da economia politica.

As ideias estabelecidas nessas fontes combinam com to­dos os principais criterios pelos quais identifiquei 0 evolucio­nismo, e tambem comportam algumas de suas nocivas implica­90es secundarias. Everdade que Marx, por vezes, escrevia comose estivesse produzindo nada mais do que uma hist6ria da Eu­ropa ocidenta!' Mas ele nao estava certamente escrevendo ape-

285MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODERA CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE

tipo de perspectiva deve substitui-lo? Temos de olbar, em algumaparte, para as descobertas da antropologia moderna, as quaiscertamente dissipam a ideia de que as "sociedades primitivas"sao primitivas em qualquer aspecto, salvo 0 de sua tecnologiamateria!. 0 estudo da linguagem talvez forne9a aqui uma linbabasica. Nao existe simplesmente uma correla9ao discernivelentre a complexidade lingiiistica e 0 nivel de "avan90" materialde diferentes sociedades. Esse fato indicaria, em si mesmo, serimprovavel a existencia de quaisquer diferen9as gerais de orga­niza9ao psiquica entre culturas orais, por urn lado, e "civiliza­90es", por outro. Devemos ser cuidadosos ate com a suposi9aode que as civiliza90es sao mais complexas do que as culturasorais. As civiliza90es - mas sobretudo aquela forma especificade ordem global introduzida pela ascendencia do Ocidente nosultimos dois seculos - envolvem maior distanciamento espa90­temporal do que as culturas orais. Agrupam segmentos maisextensos de tempo (provavelmente) e de espa90 (certamente).Entretanto, algumas caracteristicas de atividade social encon­tradas em culturas orais, como as associadas as institui90es deparentesco, sao excepcionalmente complexas. Eclaro, poder­se-ia sublinbar que a concep9ao de Freud, e a de outros que ado­taram uma posi9ao similar, centra-se na repressao do afeto, ouna relativa falta dela, em culturas orais. Mas as provas existen­tes nao sustentam, simplesmente, a proposi9ao de que tais cul­turas estao universalmente associadas a espontaneidade da ex­pressao emociona!. Algumas culturas orais (como os psic610­gos do ego, entre outros, procuraram demonstrar) tern proibi­90es morais muito fortes, que cobrem toda uma gama de con­dutas dianas, e as repressoes inculcadas no treinamento decrianl;(as podem ser muito severas31 •

Por tendencia da teoria evolucionista a ilusao normativa, 0terceiro perigo, entendo a inclina9ao para identificar 0 podersuperior, economico, politico ou militar, com superioridademoral numa escala evolucionista. Tal inclina9ao esta intima­mente relacionada, sem duvida, com as conotac;5es etnocentri­cas do evolucionismo, mas nao eexatamente a mesma coisa. aconceito de adapta9ao e, uma vez mais, aleat6rio e ate mesmo

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nas urn ensaio intetpretativo a respeito de urna das esquinas domundo. Seu esquema de desenvolvimento, envolvendo a socie­dade tribal, 0 mundo antigo, 0 feudalismo, 0 capitalismo, maiso modo asiatico de produyao, constitui urn quadro de referen­cia evolucionista, no qual a adaptayao, a guisa de expansao dasforyas de produyao, desempenba 0 papel principal. Por que aforma asiatica de sociedade e "estagnante" em comparayaocom 0 Ocidente? Porque nao permite 0 desenvolvimento dasforyas de produyao para alem de urn certo ponto. Seria urnerro, e claro, aproximar excessivamente Marx. de outras ver­soes do evolucionismo do seculo XIX, apesar de toda a suaadmira9ao por Darwin. Sua preocupayao com a crescente do­mina9ao da natureza conseguida por seres humanos exprimeuma versao da n09ao de adaptayao que nao e essencialmentediferente de muitos outros usos da ideia. Mas existe em Marxuma dialetica hegeliana invertida, desvirtuada de forma a cabernum certo formato desenvolvimentista, que nao possui urnanalogo direto nas teorias evolucionistas mais ortodoxas.

o evolucionismo de Marx e urna "hist6ria de crescimentomundial" e mostra as deficiencias da compressao unilinear e dadistor9ao temporal. Mas deve-se fazer-lhe obje9ao principal­mente em termos do papel que atribui aos mecanismos adapta­tivos. A versao de Childe do materialismo hist6rico pode, emalguns aspectos, ser peculiarmente tosca, mas tern a virtude depor a descoberto pressupostos que, com freqiiencia, sao formu­lados de modo mais sub-repticio. 0 fato de que os seres huma­nos devem sobreviver nos ambientes materiais em que vivemnada nos diz sobre se 0 que eles fazem para sobreviver desem­penba ou nao urn papel dominante na transforma9ao social.

Nao penso que seja possivel reparar as deficiencias dateoria evolucionista em geral ou do materialismo hist6rico emparticular". Epor isso que falo na desconstru9ao de ambos. Poroutras palavras, nao podemos substitui-las por urna teoria deforma similar. Ao explicar a mudan9a social, nenbum mecanis­mo {mico e soberano pode ser especificado; nao existem chavesque descerrem os misterios do desenvolvimento social hurnano,reduzindo-os a uma f6rmula unitaria, ou que respondam pelas

Analise da mudan9a social

principais transi90es entre tipos de sociedade de tal maneiratambem,

287

Exame de conjunturas a luz da "Historia" reflexiva­mente monitorada

Delineamento de modos de mudan9a ins1itucionalde forma campara-vel

Indica9ao de conex6es entre sociedades de lipoestru1ural diferenciado

Especificaryao de rela90es entre to1alidades socials

Analise de modos de articulayao instltucional

Extremidades de tempo­espayo

Tempo mundial

Sistemas intersociais

Caracterizary6es epis6dicas

Principlos estruturais

Toda a vida social e episOdica, e eu reservo a nOyaO de epi­s6dio, como a maioria dos conceitos da teoria da estruturayao,para aplid-la a toda a gama de atividade social. Caracterizarurn aspecto da vida social como urn epis6dio e ve-lo como urncerto nfunero de atos ou eventos com urn come90 e urn fimespecifidveis, envolvendo assim uma determinada seqiiencia,Ao falar de episOdios em larga escala refiro-me a seqiienciasidentificaveis de mudanya afetando as principais institui90esdentro de urna totalidade social, ou envolvendo transi90es entretipos de totalidade social. Tomemos como exemplo 0 surgimen­to de Estados agnmos, Tratar a forma9ao de urn Estado comourn episOdio significa penetrar analiticamente na "Hist6ria",

As considera90es precedentes nao significam que nao pos­samos generalizar acerca da mudanya social nem subentendemque devamos renunciar a todos os conceitos gerais em cujostermos a mudan9a poderia ser analisada. Cinco conceitos saoparticularmente pertinentes a esse respeito. Mencionei tres ­principios estruturais, extremidades de tempo-espa90 e sistemasintersociais - no capitulo anterior. Quero acrescentar-lhes ago­ra as n090es de caracterizQ9iio epis6dica (ou, mais sucinta­mente, episOdios) e de tempo mundial".

MUDAN9A, EVOLU9A'O E PODERA CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE286

nI

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ou seja, identificar certos elementos como marcando a abertu­ra de urna seqiiencia de mudan,a e descrever essa seqiienciacomo urn processo de transmuta,ao institucional. A forma,aodo Estado tern de ser estudada no contexto do envolvimento deuma sociedade preexistente em rela,ces intersociais mais am­plas (sem esquecer, e claro, as formas endogenas de mudan,a),examinadas no contexte dos principios estruturais implicitosnas totalidades sociais pertinentes. Assim, a acumula,ao deexcedentes de produ,ao por parte de comunidades aldeas espa­cialmente proximas em areas de elevada fertilidade potencialpode ser urn tipo de ""drao que culmina no surgimento de urnEstado que combina aquelas comunidades sob urna (micaordem de administra,ao. Mas e apenas urn padrao entre outros.Em muitos casos, a coordena,ao do poder militar usado coerci­vamente para estabelecer urn aparelho estatal rudimentar e 0

fator mais importahte. Os Estados agranos sempre existem aolange da extremidade de tempo-espa,o em rela,ces inc6modasde simbiose e contlito com (e domina,ao parcial sobre) as so­ciedades tribais circundantes, assim como, e claro, com outrosEstados, que podem lutar pela hegemonia sobre uma determi­nada area. lnsistir em que a mudan,a social seja estudada em"tempo mundial" e enfatizar a influencia de formas variaveisde sistema intersocial sobre as transi,ces episooicas. Se toda avida social e contingente, toda a mudan,a social e conjuntural.Quer dizer, depende de conjun,ces de circunstancias e eventosque podem diferir em natureza de acordo com varia,ces decontexto, quando 0 contexto (como sempre) implica a monito­ra,ao retlexiva, pelos agentes envolvidos, das condi,ces em queeles '''fazem hist6ria".

Podemos categorizar modos de mudan,a social em termosdas dimensces representadas abaixo, as quais se combinam naavalia,ao da natureza de formas especificas de episOdio. Ao ana­lisar as origens de urn episodio, ou serie de episodios estudadosde modo comparativo, varias especies de considera,ao sao or­dinariamente relevantes. No mundo modemo, a expansao dodistanciamento tempo-espa,o de sistemas sociais, 0 entrela,a­mento de diferentes modos de regionaliza,ao envolvidos emprocessos de desenvolvimento desigual, a preeminencia de con-

289

tradi,ces como caracteristicas estruturais de sociedades", a pre­ponderancia da historicidade como for,a mobilizadora da or­ganiza,ao e transmuta,ao social - todos esses fatores e outrosmais fomecem urn pano de fundo para se avaliarem as origens

particulares de urn episOdio,Ao referir-me aO tipo de mudan,a social envolvida nurn

episodio, pretendo indicar em que medida ele e intensivo e ex­tensivo _ quer dizer, com que profundidade uma serie de mu­dan,as desintegra ou remodela urn alinhamento existente deinstitui,ces e qual a amplitude atingida por tais mudan,as. Umaideia pertinente neste ponto, que foi por mim descrita com al­gum detalhe num outro trabalho", e a de que pode haver "Ii­miares criticos" de mudan,a caracteristicos de transi,oes entretipos sociais globais. Urn conjunto de mudan,as relativamenterapidas pode gerar urn momentum de desenvolvimento de lon­go prazo, sendo este possivel somente se certas transforma,oesinstitucionais essenciais forero realizadas inicialmente. "Mo­mentum" refere-se arapidez com que a mudan~a ocorre emrela,ao a formas especificas de caracteriza,ao episodica, en­quanto "trajetoria" diz respeito a dire,ao da mudan,a, como se

mencionou antes.Vejamos brevemente 0 problema do smgimento de Estados

agriirios a fim de ilustrar os conceitos que acabam de ser apre­sentados. Em que medida 0 desenvolvimento de tais Estadospode ser considerado urn tipo (mico de episOdio? Ate mesmouma pergunta de tao inocua aparencia pode resultar muito mais

I tipo I

\ momentum \ \ I trajet6ria I

MUDAN(:A, EVOLU(:/iO E PODERA CONSTITUf(;/iO DA SOCIEDADE288

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dificil de responder do que e sugerido pela relativa simplicidadeda maioria das teorias apresentadas a respeito de tais Estados _por exemplo, que eles tern suas origens em guerras, em pianosde irriga,ao, nallapida aQurnula,ao de excedentes de produ,aoetc. Fazer uma c~racterizayao epis6dica, como mencionei, sig­nifica tomar urn certo nillnero de decisoes conceptuais: sobreque forma social constitui 0 "ponto de partida" de uma presu­lljida seqiiencia de mudan,a, sobre qual e a trajet6ria tipica dedesenvolvimento e onde se supoe que esteja 0 "ponto final".

Em primeiro lugar, poderiamos registrar que 0 termo "Es­tado" e ambiguo. Pode referir-se a forma geral de urna "socie­dade baseada no Estado" ou as institui,oes govemamentais deurn tipo definido dentro de tal sociedade. Para sirnplificar a ques­tao, usarei "Estado", para este fim, no sentido da segunda des­sas altemativas. 0 problema de caracteriza,ao inicial tomar-se,pois, 0 de decidir quais os principais contrastes a serem procura­dos quando se justapoem circunstancias nas quais existem cer­tas institui,oes politicas aquelas em que tais institui,oes ine­xistem. Essa questao parece admitir urna resposta, embora naoindiscutivel. Segundo Nadel, podemos supor que urn Estadoexiste quando as seguintes condi,oes se verificam: a) 6rgaoscentralizados de govemo, associados a b) legitimo controle ter­ritorial e c) uma distinta elite ou classe dominante, detentora demodos definidos de treinamento, recrutamento e atributos destatus". Tal formula,ao, ou uma muito semelhante, foi adotadapor muitos e eminentes contribuintes para este campo, mormenteno caso do estudo classico de Fortes e Evans-Pritchard". Qual ea contraparte, 0 tipo de situa,ao social a partir da qual 0 Estadose desenvolve? Poder-se-ia pensar que a resposta e 6bvia: associedades que nao possuem institui,oes estatais, conformeacima definidas. Mas as coisas nao sao, de fato, tao 6bvias, ousomente 0 sao se aplicarmos de maneira irrefletida urn modeloend6geno. Pois nao e provavelmente habitual que institui,oesestatais se desenvolvam no seio de uma "sociedade" ja consti­tuida que permanece mais ou menos inalterada. Pelo contrario,o desenvolvimento de Estados funde com muita freqiiencia en­tidades sociais previamente inarticuladas e pode, ao mesmo tem­po, fragmentar outras que existiram antes.

Temos de levar esse ponto em conta quando distinguimosEstado de supremacias. Pode ser que estas ultimas sejam geral­mente as antecessoras dos primeiros (e subsistam quando osEstados sao destruidos ou desmoronam), mas urn raras vezesderiva simplesmente da ~'expansao" ou "diferenciay8.o intema"do outro, A distin,ao entre Estados e supremacias nao e tao fa­cil de estabelecer quanto, segundo parece, tern sido freqiiente­mente suposto na literatura antropol6gica, A base normal dadistin,ao esta relacionada com a centraliza,ao. Em contrastecom os Estados, as supremacias possuem urna serie de detento­res de cargos equivalentes, subordinados ao chefe; esses cargosdispoem mais ou menos do mesmo poder e status, Nao ha duvidade que essa distin,ao ajuda a ordenar os materiais empiricos im­portantes. Nao obstante, a linba divis6ria pode ser colocada demaneira variavel. Considere-se, por exemplo, 0 caso do Taiti". Aiexistiam grupos end6genos de descendencia, estratificados emcerto grau pelo status e pela responsabilidade politica. Os che­fes, presididos por urn chefe supremo, eram extraidos das cama­das superiores desses grupos em diferentes partes da ilha. Masmereciam esses grupos ser chamados de "Estados"? Claessendiz que sim40, mas Oliver, 0 autor que mais esfor,os dedicou aoestudo da antiga sociedade taitiana, diz que nao4l

,

A diferen,a de opiniao e menos empirica do que concep­tuaL Eimportante porque sintomatica das dificuldades envol­vidas em especificar classes de objetos sociais, Minha opiniaoe a de que Claessen adota criterios demasiado imprecisos paraa existencia de Estados. Eevidente que os criterios de classifi­ca,ao e a atribui,ao de mecanismos definidos de articula,aoinstitucional nao sao questiies independentes. Nao se pode par­tir de uma taxonomia teoricamente neutra e mais tarde injetar­lhe urna interpreta,ao te6rica, Assim, na base de urna investi­ga,ao de 21 "Estados primitivos", Claessen afirma nao existirassocia,ao especifica entre tais Estados e 0 urbanismo. Mas,de fato, quase todos os exemplos citados para se chegar a essaconclusao pertencem a sua categoria de "Estados incipientes", osquais me parecem ser mais adequadamente designados comosupremacias42 .

290 A CONSTITUI(:AO DA SOClEDADE MUDAN(:A, EVOLU(:AO E PODER 291

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Como deveremos especificar a trajetoria de mudan,a a serobservada? Tal como e formulada na literatura existente, essapergunta e respondida freqiientemente nao so dentro de um qua­dro endogeno de referencia, mas tambem considerando premis­sas implicitamente evolucionistas. Quer dizer, e apresentada deurn modo unidirecional, tendo unicamente a ver com 0 desen­volvimento de Estados, enquanto a existencia do Estado e con­siderada 0 ponto final do processo. Mas por que razao conside­rar eXclusivamente, mesmo primordialmente, dessa maneira osepisodios que envolvem Estados agnirios? 0 desenvolvimentode urn Estado numa certa regiao coincide amiude com a disso­lu,ao ou 0 enfraquecimento de outros, vizinhos, quando nao e,talvez, 0 fator desencadeante desse processo. A dissolu,ao deEstados e uma ocorrencia nao menos comum do que sua for­ma,ao inicial, e h:\ poucos argumentos logicos que justifiquema concentra,ao num processo com exclusao do outro - sobretu­do quando se verifica repetidamente estarem ambos interliga­dos. Eu estaria propenso, portanto, a caracterizar a questao daseguinte maneira. Ao compreendermos os processos de mudan­,a institucional que afetam os Estados agnirios, estamos pro­curando analisar as condi,oes que originam as rela,oes cruza­das entre supremacias e formas estatais.

Expressa desse modo, deveria ficar claro por que motivotal posi,ao esti em discordancia com a usual concentr~aonas"origens" do Estado. Tampouco surpreende que a vasta litera­tura sabre as "origens" do Estado nao tenha apoiado os variostipos de generaliza,ao abrangente freqiientemente tentada. Es­ses tipos definem-se em fun,ao das diversas for,as causais quetenham recebido prioridade43

• Provavelmente as mais influen­tes sao aquelas que enfatizam os fatores demognificos, a guerrae 0 crescimento das for,as de produ,ao. Os escritos de Childetiveram um substancial impacto sobre as teorias que se encon­tram na terceira dessas categorias; na arqueologia, sua obra foiprovavelmente uma fonte mais importante de influencia mar­xista do que os escritos dos proprios Marx e Engels. As teoriasdesse tipo tendem a ser fortemente evolucionistas e a pressuporque as "origens" do Estado estao associadas ou it pura mudan,a

293292 A CONSTITUJ(;JO DA SOCIEDADE MUDANr;:A, EVOLUr;:JO E PODER

tecnologica ou it acumula,ao da produ,ao excedente. Quandotais no,6es nao redundam em falsas "explica,6es" funcionalis­tas, elas sao simplesmente incompativeis com os dados empiricos,Existem alguns casos que estao perto de satisfazer os requisi­tos - quer dizer, quando a acumula,ao de excedentes precede 0

desenvolvimento de urn Estado e quando uma classe dominan­te emergente "impulsiona" no sentido da forma,ao do Estado,Mas esses sao casos excepcionais". As fases de forma,ao doEstado estao com freqiiencia ligadas il produtividade e riquezadeclinantes, e nao 0 inverso, se bern que, por vezes, mercado­rias e outros bens possam ser saqueados em areas circundantes,

A Hteoria da guerra" atraiu muitos adeptos porque, se exis­te um aspecto dos Estados agrarios (e industrializados) que emais ou menos cronico, este e a participa,ao em guerras. Aversao do evolucionismo de Spencer, e claro, atribuiu grandesignificado il guerra antes do desenvolvimento da idade indus­trial. A guerra esti, em definitivo, muito comumente envolvidana forma,ao e desintegra,ao de Estados - 0 que, como sublinhei,e freqiientemente urn so e mesmo processo. Mas uma coisa edizer que os Estados se dedicam amiude a atividades belicas,outra e afirmar que tais atividades desempenham urn papeldominante ou determinante nas origens desses Estados; e aindauma outra coisa e dizer que elas desempenham esse papel naforma,ao (ou declinio) de todos os Estados agranos. 0 primei­ro enunciado nao sofre obje,6es. 0 segundo e, na melhor dashipoteses, apenas parcialmente valido. 0 terceiro e simples­mente erroneo. As teorias demognificas nao tiveram muito maisexito. Etas geralmente sugerem que 0 aumento de popula,ao, 0

resultado de crescentes taxas de natalidade em popula,oes cujoespa,o vital disponivel e relativamente limitado, cria press6esque levam il centraliza,ao da autoridade e il diferencia,ao depode!"", Por certo, as sociedades de base estatal sao maiores,muitissimo maiores, com freqiiencia, do que as ordens tribais,As teorias demograficas estiio quase sempre associadas il ideiade que a "revolu,ao neolitica" estimula 0 aumento populacional,levando il forma,ao do Estado. Mas isso nao funciona num ni­vel geral nem num mais especifico. 0 inicio do neolitico estadistante do desenvolvimento de quaisquer sociedades de base

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estatal conhecidas. Em termos mais especificos, nao se segueque aqueles Estados que se formaram em areas fisicamenteconfinadas resultaram sempre de Urn acumulo de pressao po­·pulaciona!. Existem alguns casos que parecem concordar razoa­velmente bern com a teoria, mas muitos outros nao. Assim,examinando a forma,ao de Estados no vale do Mexico e naMesopotamia, Dumont chega it conclusao de que 0 crescimen­to populacional nao pode explicar 0 desenvolvimento de for­mas de Estado, embora 0 primeiro esteja associado ao segun­do". Outra investiga,ao indica que a popula,ao pode declinarno periodo anterior it forma,ao do Estado".

Algumas descri,oes da forma,ao do Estado enfatizam ou­tras rela,oes entre sociedades alem das belicas. Nesse sentido,Polanyi estudou 0 impacto do comercio de longa distanciasobre 0 desenvolvimento de Estados'". Que seja do meu conhe­cimento, ninguem propos isso como teoria generalizada de for­ma,ao do Estado; se alguem 0 fizesse, ela teria ainda menoshito do que as acima mencionadas. Esse tipo de ponto de vistachama pelo menos a aten,ao para aspectos da importiincia desistemas intersociais em processos de forma,ao e decadenciado Estado. Entretanto, a men,ao nem de guerra nem de comer­cio defronta a questao analitica da natureza dos sistemas inter­sociais. Como sublinhei no capitulo previo, nao adianta pensarem tais sistemas unicamente como uma serie de rela,oes ligan­do totalidades sociais claramente delimitadas. Estudar tais sis­temas significa, ao mesmo tempo, descartar a suposi,ao de quea questao do que uma "sociedade" e consente uma respostarapida e faci!. Considere-se de n,ovo 0 genero de exemplo estu­dado por Eberhard. Numa so arena geografica podem existirnumerosas sociedades em proximidade fisica relativamente es­treita, mas sem muito contato direto entre elas, embora estejamtodas nominaI-ou realmente submetidas ao dominio politico deum centro49

• Em contrapartida, podem existir em tal arenaagrupamentos interligados cuja localiza,ao no tempo-espa,oapresenta grandes diferen,as - e esse urn dos fenomenos quetenho em mente ao falar de "extremidades de tempo-espa,o".Assim, tal como na China tradicional, na india mongol a gran­de massa de agricultores indianos nao tinha virtualmente qual-

quer contato com os mongois. Seus idiomas, costumes e reli­giao eram diferentes, Os grandes mercadores s6 perifericamen­te faziam parte da "sociedade mongol", mas a maioria de seuscontatos e filia,oes com grupos estava distribuida ao longo degrandes distancias, as quais iam de urn extremo ao outro dosubcontinente e abrangiam todo 0 Oriente Proximo, 0 mesmopodia ser dito a respeito dos sacerdotes, que pertenciam a asso­cia,oes que se estendiam sobre todo 0 subcontinente e, porvezes, para alem dele,

Nao nos deveria surpreender 0 fato de encontrarmos as mes­mas lendas populares e fabulas tradicionais em todo 0 OrienteProximo, em algumas partes da Asia meridional e, finalmente,na costa chinesa de Fu-kien, sem que os verifiquemos nas Fili­pinas nem na ilha de Hainan. As tribos Miao em Kui-chou pre­servaram durante seculos seus pr6prios costumes, cren.;as e len­das, apesar de haver colonias chinesas instaladas a apenas algunsquilometros, nas quais outros costumes, crenr;as e lendas erampropagados. Nesses lugares, chineses e Miao niio interatuavamcomo regra, exceto nos campos da explora9ao econ6mica ou daagressao militar. Mas os Miao em Kui-chou podiam ter os mes­mos costumes que os Miao no Vietna, porque - como podemosprovar freqiientemente - alguns contatos eram mantidos mesmoatraves de grandes distancias e por longos periodos. 50

295

Os pontos apresentados ate agora sugerem que as teoriasdas "origens" do Estado tendem a sofrer de deficiencias resul­tantes da caracteriza,ao de episOdios numa forma endogena e/ouevolucionista e da falta de exame da organiza,ao e mudan,a desociedades no contexto de sistemas intersociais. Mas a isso epreciso acrescentar a falta de aten,ao ao impacto do "tempomundial", Somando tudo isso, podemos chegar a discernir que 0

tipo de teoria freqiientemente considerado como explica,ao das"origens do Estado" nao passa de uma quimera, Ao aludir it in­f1uencia do "tempo mundia)", nao quero dar a entender a dispo­si,ao de eventos ou acontecimentos num calendario da historiado mundo. Refiro-me a duas coisas mencionadas por Eberhardem seu uso da expressao (embora elas nao sejam por ele distin­guidas com clareza), Cada uma diz respeito a fatores que limi-

MUDANr;:A, EVOLUr;:A'O E PODER

ff

A CONSTITUIr;:A'O DA SOCIEDADE294

r

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I) crescimento ou pressilo populacional;2) guerra, conquista ou a arnea,a de urna coisa ou outra;3) progresso tecnologico ou a produ,ilo de urn excedente;4) ideologia ou legitima,ilo;5) a influencia de Estados ja existentes51 •

Embora estes elementos sejarn oferecidos como se fossem"fatores" de equivalentes status logico, 0 elemento 5 e, de fato,diferente dos demais. Considera-Io seriamente significa en­frentar todas as questoes que mencionei anteriormente a res­peito dos sistemas intersociais, extremidades de tempo-espa,o e"tempo mundial". Esimplesmente absurdo comprimi-Ios numtinieD "fatar" adicional a ser somado aos outros mencionados.

Podemos come,ar a desembrulhar alguns dos problemasenvolvidos, considerando a distin,ilo introduzida por Fried, e lar-

297

garnente adotada desde entilo, entre Estados "pristinos" e "se­cundarios"S2. Estados pristinos ou primitivos silo aqueles que sedesenvolvem em areas onde nenhuma forma estatal existiuantes; Estados secundarios silo os que se desenvolvem emareas onde existiram outros anteriormente ou que ainda podemser encontrados nas proximidades. As diferen,as entre uns e ou­tros fornecem, pelo menos, urn eixo principal em "tempo mun­dial" e estimularn diretarnente as rela,oes intersociais. Creioque minhas considera,oes previas indicaram que a identifica­,ilo empirica de Estados primitivos e extremarnente diflcil.Nilo e possivel definir esses Estados como aqueles que se for­maram em ambientes geograficamente isolados. Pois a in­fluencia de formas de organiza,ilo politica das quais simples­mente "se tern noticia" ebastante para fazer de urn Estado urnEstado secundano. Assim, 0 Egito do Antigo Reino e conside­rado, por vezes, urn Estado primitivo com base em que, ao queparece, desenvolveu-se num milieu geograficamente protegido(embora as provas arqueologicas a esse respeito sejam, de fato,muito escassas). Mas tudo 0 que isso significa e que se desco­nhece ter ai existido qualquer forma estatal previa. 0 impactode Estados mesopotilmicos preexistentes certamente nilo podeser desprezadoSJ

A ila,ilo que desejo aduzir e que as categorias de Estadosprimitivos e secundarios silo sumarnente instaveis. Exemplosde Estados primitivos silo diflceis de apontar e, na natureza docaso, Dunea conseguiremos estar certos de que casas aparente­mente candidatos plausiveis a pertencer a essa categoria sejammais do que isso. Pois pode acontecer, e claro, que vestigios deinfluencias anteriores tenharn simplesmente desaparecido. Dairesulta certamente que, embora nilo exista barreira para a espe­cula,ilo sobre os modos de desenvolvimento de Estados primi­tivos, pode ser surnamente enganoso considerar 0 que se conhe­ce a respeito deles como base para teorizar acerca dos processosde forma,ilo do Estado em gera!. Com muito maior probabili­dade e muito mais proveitoso considerar os "Estados secunda­rios" como prototipicos - quer dizer, Estados que se desenvol­vern nurn mundo, ou em regioes do mundo, onde ja existem

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tam as generaliza,oes que poderiam ser feitas acerca de tiposde episodio. Vma refere-se a conjunturas, a outra Ii influencia dacognoscitividade humana sobre a mudan,a social. Entendo por"conj'lUlturas" a interaf;ao de influencias que, num determinadotempo e lugar, silo relevantes para urn dado episOdio - nestecaso, a forma,ilo ou 0 declinio do Estado. A conjuntura de cir­cunstiincias em que urn processo de desenvolvimento ocorrepode ser muito diferente da de urn outro, mesmo que seus "re­sultados" - por exemplo, a consolida,ilo de urn tipo similar deaparelho estatal - sejarn semelhantes. Para se entender comoisso pode ocorrer, e essencial considerar a reflexividade huma­na - e isso e exatarnente 0 que muitas teorias de forma,ilo doEstado nilo fazem. As condi,oes conjunturais poderiam ser tra­tadas como comparaveis com as "condi,oes limitrofes" das leis,nilo fosse 0 caso de que elas podem ingressar no pensamento e,por conseguinte, na conduta de atores hurnanos que estilo cons­cientes delas.

Adotando fragmentos de cada urna das teorias mencionadasacima, Claessen e Skalnik enurnerarn os seguintes elementos co­mo pertinentes para a explica,ilo da forma,ilo do Estado, emboranem sempre eles sejam encontrados, afirmam esses autores, e suaimportiincia relativa possa variar de caso para caso:

['

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Estados ou forma,oes politicas possuidoras de urn considera­vel grau de centraliza,ii<!~

Num mundo de Es.tados ja existentes niio hi dificuldadesem explicar a acessibilidade da ideia do Estado, ou de modelosde forma,iio de Estados, que possa ser seguida por lideres am­biciosos e seus sequitos. Estamos todos familiarizados com 0

fato de que os lideres do Japiio, em tempos recentes, decidiramdeliberadamente - embora apos uma boa dose de pressiio ex­terna por parte do Ocidente .. adotar um certo modelo de de­senvolvimento industrial derivado da experiencia europeia enorte-americana previa. Embora esse exemplo seja, sem duvi­da, incomum, na medida em que as mudan,as iniciadas foramsubitas e de extraordinario alcance, dificilmente se pode dizerque so em epoca recente seres humanos num determinado con­texto se preocuparam em imitar ou adotar os de um outro contex­to com 0 intuito de contrabalan,ar seu poder ou influencia. Poroutras palavras, as etapas envolvidas na forma,iio do Estadonunca foram provavelmente ignoradas por aqueles que desempe­nharam papeis de destaque nesse processo. Basta cOIUeturar queos construtores de Estados estiveram quase sempre conscios dosprincipais aspectos da natureza e base do poder das forma,oespoliticas centralizadas para explicar muita coisa sobre 0 modocomo os Estados nasceram e declinaram. Niio temos de imaginarque tenha sido sempre comum para individuos ou agrupamentoster em mente pIanos organizacionais gerais com vistas a mudan-,a social e depois dedicar-se a tarefa de implementa-los. Este e,em grande parte, um fenomeno da era moderna.

Como poderia ser, pois, uma teoria de forma,iio do Estadoremodelada nesses termos? Em primeiro lugar, cumpre lem­brar que a a,iio de "for,as sociais" generalizadas pressupoemotiva,iio especificavel por parte dos que siio influenciadospor elas. Por exemplo, falar de "expansiio populacionaI" comocausa contribuinte da forma,iio do Estado envolve certos pa­droes motivacionais que instigam especies definidas de rea,iioa essa expansiio (e implicitas em sua produ,iio). Em segundolugar, a influencia do "tempo mundiaI" significa ser provavel aexistencia de consideraveis diferen,as com rela,iio as princi-

Figura 12

299

conflitos ou guerras comgrupos circunvizinhos

expansao da popul3yao

1pressao sobre os recursos

1coordenayao da populayao

,'dita 1 ......!ormagao do Eslado / )' processos concomitan1es

de dissoluyao do Estado

A teoria de Carneiro poderia ser tomada como exemplo.Uma suarepresenta,ao formal pode sercomo a Figura 12. Esseautor enfatiza a importiincia da guerra na origem dos Estados.Mas ela e mais ou menos cronica em sociedades de todos ostipos, diz ele, e nao, portanto, uma explica,ao suficiente daforma,ao do Estado. A guerra tende a conduzir a forma,ao deEstados, quando os envolvidos estao confinados em areas fisicamente circunscritas de terra agricola, como os vales do Nilo,Tigre-Euffates e Indo, 0 Vale do Mexico ou os das montanhas edo litoral do Peru. Em tais circunstancias, as opera,oes deguerra podem chegar a criar uma pressao sobre recursos escas­sos, quando a migra,ao para fora da area tern poucas probabili­dades de ocorrer. Os modos de vida estabelecidos ficam sobtensao, induzindo alguns grupos a buscar a ascendencia militarsobre outros e estimulando tentativas de centralizar 0 controlede produ,ao. 0 crescimento populacional tende a ser um fator

MUDAN9A. EVOLU9A"O E PODER

pais influencias sobre a forma,iio do Estado; uma explica,iiogeral que servira em alguns casos niio se ajustara a outros. Issonao significa que generaliza,oes acerca da forma,ao do Estadocomo um tipo de episodio sejam desprovidas de valor. Entre­tanto, serao provavelmente aplicaveis a uma gama de contextose periodos historicos mais limitada do que os autores da maio­ria das teorias mais proeminentes tiveram em mente.

A CONSTITW9AO DA SOCIEDADE298

I1.-

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300

Mudan~a e poder

Quem refletir sobre a frase "os seres humanos fazem aHist6ria", sobretudo dentro do mais vasto ambito dos escritosde Marx, sera inevitavelmente levado a considerar as questoes deconflito e poder. Pois, na concep,ao de Marx, a realiza,ao dahist6ria ocorre nao apenas em rela,ao ao mundo natural mastambem mediante as lutas que alguns seres humanos travamcontra outros em circunstancias de domina,ao. Desconstruir 0

materialismo hist6rico significa descartar alguns dos princi­pais parametros em fun,ao dos quais Marx organizou sua obra.Mas, no caso do poder e de sua rela,ao com 0 conflito - de urnmodo algo paradoxal -, 0 que se faz necessano e um esfor,o dereconstru,ao. Vejamos por que deve ser assim.

Vma obje,ao relativamente superficial, embora de manei­ra alguma insignificante, its vanas observa,oes de Marx sobreconflito e domina,ao poderia ser a de que elas exageram muitoa importancia da luta de classes e das rela,oes entre classes na

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cren,a de que, nao possuindo esse carater, alguma coisa estaerrada nela. Os Estados nem sempre se desenvolvem em areasgeograficas fisicamente confinadas. A fim de cobrir tais casos,Carneiro introduz 0 conceito do que chama "concentra,ao derecursos". Quando os recursos naturais estiio especialmente con­centrados em qualquer area determinada, as pessoas tendem aser atraidas para essa area, resultando num congestionamentopopulacional dentro dela. Vma vez existindo uma popula,aorazoavelmente densa na area em questiio, as condi,oes estaodadas para 0 padrao de desenvolvimento do Estado. Contudo,ao ser assim ampliada, a teoria deixa de parecer tao plausivel, ee certamente preferivel concluir que ela abrange apenas certostipos de casos de forma,ao do Estado, nao todos. Emuito im­portante, e claro, procurar descobrir onde se situam exatamenteos limites de sua validade. Mas 0 fato de que a teoria serve paraelucidar apenas uma certa gama de casos nao quer necessaria­mente dizer que, do ponto de vista 16gico, ela seja defeituosa.

MUDANc,:A. E VOL Uc,:AO E PODER

!

II

A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE

contributivo sumamente importante, tanto na estimula,ao deconflitos em torno dos recursos quanta na promo,ao da centra­liza,ao da autoridade administrativa". Todo urn vale acabarafinalmente por ser unificado sob uma 1'mica supremacia, a qual,com a concentra,ao cada vez maior de recursos administrati­vos, se tornara distinguivel como Estado. 0 Estado pode entaodilatar suas pr6prias fronteiras conquistando e absorvendo ospovos circunvizinhos. Eneste ponto (embora Carneiro nao 0

diga explicitamente) que a teoria pressupoe a primazia de cer­tos tipos de motivos - podemos acrescentar, a provavel influenciade estrategias, modelos ou influencias difusas de formas polfti­cas preexistentes. Epreciso inferir que, em face da pressao sobreos recursos e os modos de conduta estabelecidos, os envolvi­dos nao alteram tais modos de conduta para renovar a coopera­,ao social. A divisao desigual de recursos nao decorre mecani­camente da pressao populacional. As tendencias ao fortaleci­mento do controle centralizado tampouco ocorrerao em talsitua,ao, quer isso seja desejado ou nao. 0 mais provavel e queelas envolvam algum tipo de entendimento reflexivo das "ne­cessidades sociais" por parte de atores empenhados numa polf­tica que fortalece tal controle, embora os resultados concretospossam nao ser os pretendidos.

Como e comum em boa parte da literatura antropol6gica earqueol6gica pertinente, as iMias de Carneiro sao apresentadascomo uma teoria da "origem do Estado". A frase tende normal­mente a referir-se a Estados primitivos, embora isso nao fiquetotalmente claro naquilo que 0 autor tern a dizer. Penso ser maisproveitoso, por razoes ja mencionadas, afastarmo-nos da distin­,ao entre Estados primanos e secundarios. Exatamente 0 mesmomodelo que Carneiro trata como implicado na "origem" do Es­tado pode ser tambem um processo de dissolu,ao ou fragmen­ta,ao polftica. A teoria de Carneiro e interessante e foi expostacom elegancia, mas disso nao se segue que, para ser defendida,tenha de ser aplicavel a todos os casos conhecidos de forma,aode Estado, mesmo sendo possivel distinguir facilmente os Es­tados primitivos dos secundanos. 0 autor admite poderem serapontados casos em que a teoria parece nao servir. Entao, tentamodifica-Ia de maneira a conferir-Ihe aplica,ao universal, na

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o poder nao e, como tal, urn obstaculo aliberdade ou aeman­cipa~ao, mas seu proprio veiculo - embora seja urna insensatez,obviamente, ignorar suas propriedades coercivas. A existenciade poder pressupoe estruturas de domina~ao por meio das quaiso poder que "flui suavemente" em processos de reprodu~ao so­cial (e e, por assim dizer, "invisivel") opera. 0 desenvolvimen­to de for~a ou sua amea~a nao e, pois, 0 caso tipico de uso dopoder. Sangue e furia, 0 calor da batalha, 0 confronto direto decampos rivais - nao sao essas, necessariamente, as conjunturashistoricas em que os efeitos mais importantes e de maior alcan­ce do poder sao sentidos ou estabelecidos.

Dito isto, e necessano, porem, separar a teoria da estrutu­ra~ao de ambos os caminhos variantes percorridos por Parsonse por Foucault. Ao associar 0 poder aos chamados "fins coleti­vos", Parsons sacrifica parte do insight de que 0 conceito depoder nao tern qualquer rela~ao intrinseca com 0 de interesse.Se 0 poder nao tern conexao logica com a realiza~ao de interes­ses secionais, tampouco a tem com a de interesses ou "fins"coletivos. Mais substantivamente, a concentra~ao de Parsonsno consenso normative como alicerce da integra~ao de socie­dades leva-o a subestimar seriamente a importiincia da contes­ta~ao de normas; e das multiplas circunstancias em que a for~a

e a violencia, e 0 medo delas, estao diretamente envolvidas naaprova~ao da a~aose. A reabilita~ao do conceito de poder porFoucault, por outro lado, so e conseguida acusta de sucurnbir aurna distor~ao nietzschiana em que 0 poder e aparentementeanterior averdade. Em Foucault, assim como em Parsons, em­bora por diferentes razoes, 0 poder nao esta relacionado comouma descri~ao satisfatoria de agencia e cognoscitividade, en­quanto implicadas na "constru~aoda Historia".

Para urn maior desenvolvimento dessas vanas observa~oes,

quero examinar numerosos aspectos do poder no iimbito doquadro conceptual de referencia da teoria da estrutura~ao.Umapreocupa~ao primordial deve ser a questao de como 0 poder egerado. Temos, com efeito, de considerar muito seriamente aasser~ao de Parsons de que 0 poder nao e urna quantidade esta-

303MUDAN(:A. EVOLU(:AO E PODERA CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE

Historia. 0 que quer que a "Historia" seja, por certo ela nao eprimordialmente "a historia das lutas de classes", e a domina~aonao se baseia, em algum sentido generico, na domina~ao declasse, mesmo em "ultima instiincia". Urn problema mais fun­damental, entretanto, e 0 conceito de poder pressuposto, emborararamente receba expressao direta, nos escritos de Marx. Comefeito, Marx associa poder (e 0 Estado, como sua consubstan­cia~ao) Com cisma, com uma divisao de interesses entre clas­ses. Assim, poder esta ligado a conflito e e representado comocaracteristica somente das sociedades de classes. Se Marxdesenvolveu uma formidavel analise e denuncia da domina~aonas sociedades divididas em classes e capitalistas, 0 socialismoapresenta-se como uma sociedade em que a domina~ao e trans­cendida. A esse respeito, 0 marxismo e 0 socialismo, de modomais generico, como foi percebido por Durkheim", tern muitoem comum Com seu oponente do seculo XIX, 0 liberalismo uti­litano. Todos participam de uma "fuga do poder" e todos vin­culam 0 poder, inseparavelmente, a conflito. Como 0 poder emMarx esta alicer~ado no conflito de classes, ele nao apresentaqualquer amea~a especifica na sociedade prevista do futuro: adivisao de classes sera superada como pressuposto da inicia~aodessa sociedade. Para os liberais, porem, que negam a possibi­lidade de realiza~ao dessa reorganiza~ao revolucionaria da so­ciedade, a amea~a do poder e onipresente. 0 poder assinala aexistencia de conflito e a potencialidade de opressao; assim, 0

Estado deve estar organizado de maneira a minimizar seu aI­cance, restringindo-o atraves do parcelamento do poder de for­ma democfatica56.

Uma teoria reconstruida do poder partiria da premissa deque tais perspectivas sao insustenmveis. 0 poder nao esta ne­cessariamente vinculado a conflito no sentido quer da divisaode interesses quanto da luta ativa, e nao e intrinsecamente opres­sivo. A artilharia critica provocada pela analise do poder porParsons" nao nos deve levar a ignorar os corretivos hasicos queele ajudou a introduzir na literatura. 0 poder e a capacidade deobter resultados; se estes se encontram ou nao ligados a inte­resses puramente secionais nada tern a ver com sua defini~ao.

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ser muito importante demonstrar a importiincia paralela dosrecursos autoritarios. Pais, tal como 0 marxismo, ainda somosprisioneiros da era vitoriana, na medida em que, antes de maisnada, pensamos na transforma9ao do mundo material comofor9a motivadora generica da historia humana.

Eclaro que a acumula9ao de recursos alocativos esta es­treitamente envolvida com 0 distanciamento tempo-espa90,com a continuidade das sociedades ao longo do tempo e doespa90 e, assim, com a gera9ao de poder. Os ca9adores e cole­tores dispoem de poucos meios de armazenamento de viveres eoutros requisitos materiais, e utilizam 0 armazem gratuito danatureza para prover suas necessidades 0 ano inteiro. Eles de­pendem, de uma forma muito imediata, da generosidade danatureza - urn fata que, entretanto, DaD implica necessariamen­te empobrecimento. Alem disso, atividades rituais, cerimoniaise religiosas ordinariamente avultam muito mais do que as exi­gencias materiais relativamente limitadas da vida cotidiana. Emcomunidades agrarias, pelo menos, e empregado algum tipo detecnologia produtiva, e 0 armazem que 0 mundo natural fome­ce e ampliado de varias maneiras que facilitam a "expansao"de rela90es sociais atraves do tempo-espa90. Quer dizer, sao cul­tivadas diferentes safras sazonais, produtos sao armazenadosonde isso e tecnicamente possivel, permite-se que a terra sejaalqueivada, a fim de se proteger a capacidade produtiva da so­ciedade a longo prazo etc. Em sociedades divididas em classespode haver um desenvolvimento adicional da produtividadeagraria per capita, embora nem sempre seja esse 0 caso quandocomparado ao de comunidades camponesas menores. Os siste­mas de irriga9ao e outras inova90es tecnicas geralmente naoaumentam a produtividade media tanto quanta regularizam ecoordenam a produ9ao. Em Estados agrarios mais vastos, aarmazenagem de alimentos e de outros bens pereciveis toma­se da maior importancia. No capitalismo modemo, a compra evenda de bens manufaturados e tao fundamental para a existen­cia social quanta a troca de toda a gama de outras mercadorias:nao e exagerado dizer que a expansao do capitalismo para for­mar urna nova economia mundial nao teria sido possivel sem 0

MUDAN(:A. EVOLU(:AO E PODER

1 Organizacao do tempo-espaCo social(constituicao temporal-espacial de ca­rninhos e regr6es)

2 Producaolreproduyao do corpo (orga­nizayao e relacao de seres humanos emassociacao mutua)

Recursos autoritarios

304A CONSTlTUI(:A-O DA SOCIEDADE

tica mas, sim, expansivel, em rela9ao a formas divergentes depropriedade sistemica, embora nao adote as ideias por ele ela­boradas ao explorar as implica90es dessa asser9ao.

Proponbo que a n09ao de distanciamento tempo-espa90 estaligada de forma muito direta a !eoria do poder. Ao explorarmosessa conexao, podemos desenvolver algumas das principaiscaracteristicas da domina9ao como propriedade expansivel dossistemas sodais. Conforme descrevi no capitulo de aoertura, 0poder e gerado na (e atraves da) reprodu9ao de estruturas dedomina9ao. Os recursos que constituem as estruturas de domi­na9ao sao de duas especies: alocativos e autoritarios. Qualquercoordena9ao de sistemas sociais no tempo e no espa90 envolvenecessariamente uma combina9ao definida desses dois tipos derecursos, os quais podem ser classificados assim:

Recursos alocativoS

1 CaracteriS1icas materiais do meio am­biente (materias-primas, fantes de po­der material)

2 Meias de producao/reprodUl;:ao mate­rial (instrumentos de produyao, tecno.logia)

3 Bens produzidos (artefatos criados pelainterayao de 1e 2) 3 Organizacao de oportunidades de vida

(constituiyao de oportunidades de auto­desenvolvimento e de auto-expressao)

Nao se trata de recursos fixos; formam os meios do cara­ter expansivel do poder em diferentes tipos de sociedade. Asteorias evolucionistas sempre foram propensas a dar a priorida­de aos recursos da coluna da esquerda, as vmas especies de re­cursos materiais empregados na "adapta9ao" ao meio ambien­teo Mas, como foi indicado em meu exame precedente, os auto­ritmos sao rigorosamente tao "infra-estruturais" quanta osalocativos. Nao quero, em absoluto, negar a influencia do habi­tat natural circundante sobre os padroes de vida social, 0 im­pacto que tipos importantes de inven9ao tecnol6gica podemproduzir ou a importilncia dos recursos de poder material quepodem estar disponiveis e submetidos ao uso humano. Mas hamuito tempo vern sendo convencional enfatizar isso, e penso

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306 307

'11

A CONSTITUlI:;/iO DA SOCIEDADE

desenvolvimento de uma serie de tecnicas para a preserva9ao earmazenagem de bens pereciveis, sobretudo de alimentos". Poroutro lado, 0 capitalismo tambem gera - e e dependente de _taxas de inova9ao tecnica, conjugadas com urna utiliza9aomaci9a de recursos naturais, nurn plano totalmente diferente detudo 0 que aconteceu antes.

Descrita dessa maneira, a historia hurnana pareceria (e foifreqiientemente feita para parecer) uma seqiiencia de expan­soes das "for9as de produ9ao". 0 aumento dos recursos mate­riais efundamental para a expansao do poder, mas os recursosalocativos nao podem ser desenvolvidos sem a transmuta9aode recursos autoritarios, e estes ultimos sao, sem duvida, pelomenos tao importantes quanta os primeiros no fornecimento de"alavancas" de mudan9a social. A organiza9ao de tempo-espa­90 social refere-se as formas de regionaliza9ao dentro (e atra­ves) das sociedades, em fun9ao das quais sao constituidos ospercursos espa90-temporais da vida cotidiana. As comunida­des de ca9a e coleta, e os relativamente poucos casos de cultu­ras n6mades maiores, sao as unicas sociedades cuja organiza­9ao espa90-temporal global implica movimento regular detodo 0 grupo atraves do tempo-espa90. 0 termo "linicas" estadeslocado neste contexto, pois as sociedades de ca9adores ecoletores foram a mais tipica forma de organiza9ao social huma­na na Terra ate tempos muito recentes. A fixa9ao espacial _ aatribui9ao de locais para "ambientes construidos" definitivos,especialmente na forma de cidades - assinala uma nova etapana historia hurnana.

A segunda categoria de recursos autoritarios, a produ­9ao/reprodu9ao do corpo, nao deve ser igualada a categoria 2na classifica9ao de recursos alocativos. Eclaro, os meios dereprodu9ao material sao necessarios a reprodu9ao do organis­mo hurnano; durante a maior parte da historia hurnana, limitesmateriais de varias especies contiveram 0 crescimento globalda popula9ao. Mas a coordenafiio de quantidades de pessoasreunidas numa sociedade e sua reprodu9ao no tempo constituiurn recurso autoritario de urn genero fundamental. 0 poder naodepende somente, e claro, do tamanho de urna popula9ao reu-

MUDAN9A, EVOLU9/io E PODER ;

nida numa ordem administrati~. Mas as dimensoes da organi­za9ao do sistema constituem uma contribui9ao muito signifi­cativa para a gera9ao de poder. As vanas caracteristicas coercivase facilitadoras do corpo, sobre as quais discorri no capitulo III,sao importantes aqui - nol verdade, sao a base sobre a qual osrecursos administrativos, nesse sentido, devem ser analisados.Entretanto, temos de acrescentar a esses fatores a categoria deoportunidades de vida, urn fenomeno que tampouco e, de modoalgum, puramente dependente da produtividade material de umasociedade. A natureza e a escala do poder gerado por recursosautoritarios dependem nao so da disposi9ao dos corpos, regio­nalizados em percursos espa90-temporais, mas tambem dasoportunidades de vida abertas aos agentes sociais. "Oportuni­dades de vida" significa, em primeiro lugar, as probabilidadesde pura sobrevivencia para os seres humanos em diferentes for­mas e regioes de sociedade. Mas tambem sugere toda a gama deaptidoes e capacidades que Weber tinha em mente quando in­troduziu 0 termo. Daremos apenas urn exemplo: a alfabetiza­9ao em massa. Vma popula9ao alfabetizada pode ser mobilizada,e mobilizar-se, atraves do tempo-espa90 de modos muito dis­tintos dos caracteristicos de culturas predominantemente orais.

H. me referi a importancia da armazenagem de recursosalocativos como veiculo da expansao da domina9ao, um temafamiliar na literatura da teoria evolucionista. Muito menos co­nhecida, mas de importancia essencial na gera9ao de poder, e aannazenagem de recursos autoritarios. ~~Arrnazenagern" eurnmeio de "ligar" 0 tempo-espa90 envolvendo, no nivel da a9ao,a administra9ao inteligente de urn futuro projetado e a recorda9ao

de urn tempo passado. Nas culturas orais, a memoria hurnana evirtualmente 0 linico repositorio de armazenagem de informa­9ao . Entretanto, como vimos, a memoria (ou recorda9ao) seraentendida nao so em rela9ao as qualidades psicologicas deagentes individuais, mas tambem como inerente it recursividadeda reprodu9ao institucional. Neste caso, a armazenagemja pres­supoe modos de controle tempo-espa90, assim como urna ex­periencia fenomenal do "tempo vivido", e 0 "recipiente" que ar­mazena recursos autoritarios e a propria comunidade.

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dade de visao permite uma gama mais vasta de respostas coor­denadoras ao meio circundante e, assim, possui grande valoradaptativo. A visao nao surgiu apenas numa parte do reino ani­mal, mas aconteceu independentemente em especies de molus­cos, insetos e vertebrados. Os 6rgaos visuais desses grupos naosao de urna tinica forma anatomica e nao podem ser considera­dos como pertencentes a urn s6 processo evolutivo, mas a visaoparece ser urn requisito previa para todos os niveis superioresde evolu,ao biol6gica.

o potencial biol6gico de seres hurnanos para a evolu,aosocial depende dos universais evolutivos das maos e do cere­bro. Possuir dedos dotados de movimentos independentes e urnpolegar oposto permite urna extraordinaria variedade de mani­pula,oes de objetos em conjunto com bra,os equipados de arti­cula,oes m6veis. 0 cerebro humano e tao mais desenvolvidodo que os de outras especies que torna possivel 0 dominio demodos de atividade e de cogni,ao desconbecidos entre os ani­mais inferiores, sobretudo a capacidade de cria,ao e uso da lin­guagem. Esses tra,os facultam aos seres humanos vantagensadaptativas sobre as demais especies. 0 conceito de adapta,ao,afirma Parsons, e essencial tanto para a evolu,ao biol6gicaquanta para a social. A adapta,ao, diz ele, nao deve ser enten­dida simplesmente como 0 ajustamento passivo de uma dadaespecie ou tipo de sistema social a condi,oes ambientais, masinduir fatores de sobrevivencia mais ativos. A adapta,ao deurn "sistema vivo" pode envolver uma "preocupa<;ao ativa com 0

dominio ou a capacidade para mudar 0 meio ambiente de modoa satisfazer as necessidades do sistema, assim como a aptidaopara sobreviver em face de suas caracteristicas inalteraveis"'.Isso significa freqiientemente a capacidade para enfrentar urnaserie de desafios ambientais e, em especial, as circunstanciasque provocam incerteza. Urn universal evolutivo, em suma, equalquer tra,o orgiinico ou social que aurnente as capacidadesadaptativas a longo prazo de urn sistema vivo nurn grau tal quese torna urn requisito previa para niveis superiores de desen­volvimento. Existe somente urna diferen,a importante entre osuniversais evolutivos biol6gicos e sociais: os primeiros nao sao

Notas criticas: Parsons sabre evo/Ufiio

Embora nas UltiIllas decadas vigorosos defensores de urnponto de vista evolucionista, como Leslie White, tenbam apare­cido, seria provavelmente verdadeira a afirma,ao de que a obradeles nao teve urn impacto substancial sobre 0 pensamento te6ri­co nas ciencias sociais. Ede algum interesse, portanto, que urndos maiores contribuintes para esse pensamento, Talcott Parsons,tenba procurado insuflar vida nova ateoria evolucionista, aindaque apenas no desenvolvimento ulterior de sua obra. Como aconcep,ao de Parsons do evolucionismo mobilizou, de fato,consideravel apoio, examina-Ia-ei agora em detalhe.

A evolu,ao social, argurnenta Parsons, e uma extensao daevolu,ao biol6gica, mesmo que dependente de mecanismossubstancialmente diferentes. Nao ha razao nenhurna para suporque existe uma subita ruptura entre a evolu,ao biol6gica e asocial. 0 "divisor de aguas entre 0 suburnano e 0 hurnano", ex­pressao cunhada por Parsons, assinala urna fase nurn processode desenvolvimento a longuissimo prazo. Ambas as formas deevolu,ao podem ser entendidas em termos de universais _ "uni­versais evolutivos". Urn universal evolutivo, na terminologiade Parsons, e qualquer tipo de desenvolvimento "suficiente­mente importante para favorecer a evolu,ao" que tenba a pos­sibilidade de se manifestar em mais de urna ocasiao em dife­rentes condi,oes'* A visao e apresentada como urn exemplo deurn universal evolutivo na esfera do mundo orgiinico. A capaci-

* As referencias podem ser encontradas a pp. 329-30.

MUDAN9A. EVOLU9AO E PODER 311

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passiveis de difusao, enquanto os segundos 0 sao. Assim, ascondi,6es em que se origina urna vantagem adaptativa podemser diferentes daquelas que facilitam sua adapta,ao ulterior poroutros agrupamentos sociais.

Os seres hurnanos vivem em sociedades e criam culturas.Os aspectos simbOlicos da cultura, como Parsons os descreve,sao vitais para a adapta,ao. 0 "simbolo" substitui 0 gene comoprincipal componente organizador da evolu,ao social. Emborabaseadas nurn conjunto de capacidades orgiinicas gerais, as qua­lidades simbOlicas dos sistemas sociais tern de ser aprendidasde novo por cada gera,ao. As "orienta,6es culturais" nao seimplementam como os programas geneticos. A comunica,ao ea base da cultura e a linguagem base da comunica,ao. Assim, alinguagem e urn universal evolutivo elementar; nao existe so­ciedade hurnana conhecida que nao possua uma linguagem.Segundo Parsons, os sistemas de simbolos tern urn papel diretivona organiza,ao social, de urn modo geral, e na mudan,a social.Isso e porque eles esmo no topo de uma hierarquia cibemeticanas sociedades hurnanas. No "esquema de a,ao" de Parsons, elessituam-se acima do sistema social, da personalidade e do orga­nismo. 0 meio ambiente fisico condiciona ou fixa limites paraos modos de conduta formados no seio das sociedades, mas e 0

sistema cultural que mais diretamente os regula'.Em suas mais antigas formas, cultura e mais ou menos si­

nonimo de religiao. A religiao, argurnenta Parsons, e urn dosquatro universais evolutivos encontrados "ate no mais simplessistema de a,ao". Os outros sao a comunica,ao atraves da lin­guagem, 0 parentesco e a tecnologia: "a presen,a desses quatrouniversais constitui 0 minimo que pode ser dito para designaruma sociedade como verdadeiramente humana"'. Eles relacio­nam-se com as propriedades globais da a,ao e, portanto, com 0

quadro geral de referencia da evolu,ao biologica. A evolu,aofora dos mais elementares tipos de sistema de a,ao pode seranalisada como urn processo de diferencia,ao progressiva, 0

qual se refere a especializa,ao funcional. A diferencia,ao podelevar - embora nao inevitavelmente - a crescente capacidadeadaptativa com rela,ao a cada fun,ao especifica, que e separada,

urn processo de "promo,ao adaptativa". A orienta,ao de acor­do com a qual a diferencia,ao se processa pode ser descritanestes termos. Dada a natureza cibemetica dos sistemas sociais,essa orienta,ao deve ser june/anal. A crescente complexidadede sistemas, na medida em que esta nao se deve apenas a seg­menta,ao, envolve 0 desenvolvimento de subsistemas especia­lizados a respeito de fun,6es mais especificas na opera,ao dosistema como urn todo e de mecanismos integrativos que inter­relacionam os subsistemas funcionalmente diferenciados'. Essessubsistemas - manuten,ao do padrao, integra,ao, constitui,aopolitica e economia - sao a base da analise de Parsons.

Nos tipos mais simples de sociedade, a sociedade primiti­va, os quatro subsistemas revelam apenas urn nivel muito baixode diferencia,ao. As sociedades primitivas caracterizam-se porurn sistema especifico de "simbolismo constitutivo", 0 qualconfere ao grupo urna identidade cultural definida, distinta dade outros grupos. Tal simbolismo esta sempre diretamenteligado a rela,6es de parentesco - por exemplo, na forma de urnmito de deuses ancestrais que teriam fundado a comunidade.o mito une 0 grupo e fomece urn quadro interpretativo de refe­rencia para enfrentar as exigencias do mundo natural e as amea­,as oriundas deste. Vma das caracteristicas distintivas das so­ciedades primitivas consiste em que 0 simbolismo constitutivoesta envolvido de modo abrangente nas varias esferas da vida.Participa das atividades religiosas, morais e tecnologicas, per­meando-as e tomando-as parte de urna unidade social coesa.Parsons (tal como Durkheim) cita como exemplo as sociedadesaborigenes da Australia. A organiza,ao social dessas socieda­des australianas consiste quase totalmente em rela,6es de pa­rentesco enos modos como elas se articulam com as praticastotemicas, as rela,oes de troca e as transa,oes com 0 meio am­biente. Os aspectos econ6micos destas ultimas sao da "especiemais simples", dependendo da cava e da coleta de bagos, raizese varias especies de insetos comestiveis. Os grupos tribais dis­tribuem-se por territorios bastante vastos e, embora 0 simbolis­mo constitutivo de cada urn deles tenha urna referencia territo­rial definida, nao existem fronteiras territoriais claramente

313MUDAN9A, EVOLU9AO E PODERA CONSTlTUl9A-O DA SOCIEDADE312

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passiveis de difusao, enquanto os segundos 0 sao. Assim, ascondi,oes em que se origina urna vantagem adaptativa podemser diferentes daquelas que facilitam sua adapta,ao ulterior poroutros agrupamentos sociais.

Os seres hurnanos vivem em sociedades e criam culturas.Os aspectos simb6licos da cultura, como Parsons os descreve,sao vitais para a adapta,ao. 0 "simbolo" substitui 0 gene comoprincipal componente organizador da evolu,ao social. Emborabaseadas nurn conjunto de capacidades orgiinicas gerais, as qua­lidades simb6licas dos sistemas sociais tern de ser aprendidasde novo por cada gera,ao. As "orienta,oes culturais" nao seimplementam como os programas geneticos. A comunica,ao ea base da cultura e a linguagem base da comunica,ao. Assim, alinguagem e urn universal evolutivo elementar; nao existe so­ciedade humana conhecida que nao possua uma linguagem.Segundo Parsons, os sistemas de simbolos tern urn papel diretivona organiza,ao social, de urn modo geral, e na mudan,a social.Isso e porque eles estao no topo de uma hierarquia cibemeticanas sociedades hurnanas. No "esquema de a,ao" de Parsons, elessituam-se acima do sistema social, da personalidade e do orga­nismo. 0 meio ambiente fisico condiciona ou fixa limites paraos modos de conduta formados no seio das sociedades, mas e 0

sistema cultural que mais diretamente os regula'.Em suas mais antigas formas, cultura e mais ou menos si­

nanimo de religiao. A religiao, argumenta Parsons, e urn dosquatro universais evolutivos encontrados "ate no mais simplessistema de a,ao". Os outros sao a comunica,ao atraves da lin­guagem, 0 parentesco e a tecnologia: "a presen,a desses quatrouniversais constitui 0 minimo que pode ser dito para designaruma sociedade como verdadeiramente hurnana"'. Eles relacio­nam-se com as propriedades globais da a,ao e, portanto, com 0

quadro geral de referencia da evolu,ao biol6gica. A evolu,aofora dos mais elementares tipos de sistema de a,ao pode seranalisada como urn processo de diferencia,ao progressiva, 0

qual se refere it especializa,ao funcional. A diferencia,ao podelevar - embora nao inevitavelmente - it crescente capacidadeadaptativa COm rela,ao a cada fun,ao especifica, que e separada,

urn processo de "promo,ao adaptativa". A orienta,ao de acor­do com a qual a diferencia,ao se processa pode ser descritanestes termos. Dada a natureza cibemetica dos sistemas sociais,essa orienta,ao deve ser funcional. A crescente complexidadede sistemas, na medida em que esta nao se deve apenas it seg­menta,ao, envolve 0 desenvolvimento de subsistemas especia­lizados a respeito de fun,oes mais especificas na opera,ao dosistema COmo urn todo e de mecanismos integrativos que inter­relacionam os subsistemas funcionalmente diferenciados'. Essessubsistemas - manuten,ao do padrao, integra,ao, constitui,aopolitica e economia - sao a base da analise de Parsons.

Nos tipos mais simples de sociedade, a sociedade primiti­va, os quatro subsistemas revelam apenas urn nivel muito baixode diferencia,ao. As sociedades primitivas caracterizam-se porurn sistema especifico de "simbolismo constitutivo", 0 qualconfere ao grupo urna identidade cultural definida, distinta dade outros grupos. Tal simbolismo esta sempre diretamenteligado a rela,oes de parentesco - por exemplo, na forma de urnmito de deuses ancestrais que teriam fundado a comunidade.o mito une 0 grupo e fomece urn quadro interpretativo de refe­rencia para enfrentar as exigencias do mundo natural e as amea­,as oriundas deste. Uma das caracteristicas distintivas das so­ciedades primitivas consiste em que 0 simbolismo constitutivoesta envolvido de modo abrangente nas varias esferas da vida.Participa das atividades religiosas, morais e tecnol6gicas, per­meando-as e tomando-as parte de urna unidade social coesa.Parsons (tal como Durkheim) cita como exemplo as sociedadesaborigenes da Austrilia. A organiza,ao social dessas socieda­des australianas consiste quase totalmente em rela,oes de pa­rentesco enos modos como elas se articulam com as priticastotemicas, as rela,oes de troca e as transa,oes com 0 meio am­biente. Os aspectos econamicos destas ultimas sao da "especiemais simples", dependendo da ca,a e da coleta de bagos, raizese varias especies de insetos comestiveis. Os grupos tribais dis­tribuem-se por territarios bastante vastos e, embora 0 simbolis­mo constitutivo de cada urn deles tenha urna referencia territo­rial definida, nao existem fronteiras territoriais claramente

312 A CONSTITUI<;:AO DA SOCIEDADE MUDAN<;:A, EVOLU<;:AO E PODER 313

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314

Numa frente extraordinariamente vasta e relativamente in­dependente de variar;5es culturais particulares, os lideres politi­cos devem ter, a longo prazo, naD s6 suficiente pader mas tambem

tura religiosa desenvolvida, legitimando a posi9ao do rei e pro­movendo a solidariedade social.

Entretanto, as sociedades primitivas avan9adas ainda per­tencem a primeira fase da evolu9ao distinguida por Parsons. Asegunda e a das sociedades "intermedias", as quais contem doissubtipos, as "arcaicas" e as "intermedias avanc;adas". Ambas es­tao associadas a existencia da escrita. As sociedades arcaicassao caracterizadas apenas pelo que Parsons chama de "escritade oficio", isto e, a escrita usada principalmente para a contabi­lidade administrativa e para a codifica9ao de preceitos magicose religiosos. Ler e escrever e prerrogativa de pequenos grupossacerdotais e nao parte da educa9ao geral da classe ou classesdominantes. 0 Egito Antigo oferece urn exemplo de sociedadearcaica. Vma sociedade desse tipo possui urna ordem religiosa"cosmologica", a qual generaliza e sistematiza 0 simbolismoconstitutivo mais do que em comunidades primitivas. Tern urnaparelho politico e administrativo, separado em certa medidadas fun90es e obriga90es religiosas. As sociedades arcaicas ternqualidades adaptativas superiores as das primitivas, porque con­centram a responsabilidade funcional nos dominios do religio­so e do politico. Esses fatores sao ainda mais desenvolvidos notipo de sociedade intermedia avan9ada, que consiste em "impe­rios historicos" como os de Roma e da China. Todos oles esti­veram profundamente envolvidos com as "religioes mundiais"a cujo respeito escreveu Weber. Caracterizam-se pela escalamaci9a de suas inova90es culturais como resultado de impor­tantes "avan90s filosOficos" que distinguem entre 0 mundo sa­grado e 0 mundo material; os reis deixam de ser deuses.

A legitima9ao cultural especializada e urn universal evolu­tivo que recebeu defini9ao nitida com 0 advento dos imperioshistoricos. Seu foco e politico, dado que constitui 0 meio deconsolida9ao da autoridade govemamental. "Satisfazer a neces­sidade de legitima9ao" subentende 0 surgimento de lideres po­liticos especializados, em aditamento ao soberano.

315MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODER

1

A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE

demarcadas entre os diferentes grupos. Embora as rela90es deparentesco sejam de essencial importiincia, nao existe diferen­cia9ao vertical entre unidades aparentadas; nenhum conjuntode clas tern acentuadamente maior poder, riqueza ou proemi­nencia religiosa do que qualquer outro. As sociedades austra­lianas sao funcionalmente diferenciadas por genero e por ida­de, mas, quanta ao mais, consistem em agrupamentos segmen­tares equivalentes, ligados por la90s de parentesco.

As sociedades mais primitivas, como os grupos australia­nos, podem distinguir-se do "tipo primitivo avan9ado". A tran­si9ao e marcada pelo colapso da equivalencia entre grupos deparentesco. Isso pode acontecer quando urn grupo consegueassegurar recursos que the permitem controlar a forma9ao dela90s matrimoniais; esses recursos podem ser entao usados paraacurnular riqueza material e outras bases de poder. Vma ten­dencia a diferencia9ao vertical da sociedade substitui 0 caratermais igualititrio das sociedades mais simples. A mudan9a eco­nomica esta associada a tal processo: a residencia fixa, a pro­dU9ao agricola ou pastoril substituem os procedimentos maiserrantes da ca9a e da coleta. Nao existe ainda uma "economia"diferenciada, mas a produtividade material intensificada gerapressoes economicas no sentido da consolida9ao dos direitosde propriedade e da estabilidade do controle territorial. Comoquer que smja, a estratifica9ao e 0 primeiro e mais basico uni­versal evolutivo na transi9aO das sociedades de mais para menosprimitivas. A estratifica9ao tende, antes de mais nada, a emer­gir mediante a eleva9ao de urna linhagem a urna posi9ao privi­legiada; 0 individuo mais velho dessa linhagem adota, entao,geralmente, 0 titulo de monarca. As sociedades primitivas avan­9adas sao consideravelmente mais heterogeneas do que suasprecursoras, envolvendo oposi90es etnicas, religiosas e outras,assim como divisoes de classes. as reinos africanos, como 0

Zulu, sao os principais exemplos de sociedades desse tipo. Par­sons admite que no reino Zulu, e em outros que se Ihe asseme­lham, 0 poder militar era de grande significa9ao na formula9ao econsolida9ao da ordem social. Mas ele salienta que provavel­mente de muito maior importiincia foi a forma9ao de urna cul-

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Urn segundo universal evolutivo e 0 surgimento da organi­za,ilo burocnitica. Aceitando a tese de Weber sobre a indispen­sabilidade da burocracia para a efetiva mobiliza,ilo do poderem grande escala, Parsons argumenta que as sociedades inter­medias avan,adas mostram uma grande expansilo da coordena­,ilo administrativa do govemo, far,as armadas e outros setoresinstitucionais diferenciados. Urn terceiro universal introduzidopelos imperios historicos e 0 usa da moeda em rela,ilo as trocasmercantis. Segundo Parsons, as trocas mercantis constituemum sistema de poder que evita alguns dos "dilemas" do poderpolitico. Em ultima analise, 0 poder politico depende de san­,6es punitivas impostas por urn corpo administrativo; 0 dinhei­ro compartilha de algumas das qualidades do poder pOlitico,mas e urn recurso mais generalizado que se propaga tanto entreas "consumidores" quanta entre as "produtores", urn recursoque emancipa as pessoas da lealdade a grupos politicos especi­ficos e dos vinculos atributivos de parentesco. Mas esses tres uni­versais evolutivos pressup6em todos um quarto: "uma ordemnormativa e universalista altamente generalizada"', exemplifi­cada num sistema de direito. Entretanto, isso coloca-nos no li­miar da modemidade, porque alguns imperios historicos de­senvolveram organiza,ilo burocnitica e mercados num grau bas­tante elevado sem uma companivel amplia,ilo de formas dedireito generalizado.

o desenvolvimento do Ocidente moderno, a suprema for­ma evolutiva no esquema de Parsons, esm relacionado com duassociedades-"viveiros" que exerceram uma influencia especifi­ca de enorme aleance: Israel e Grecia. (Urn comentario sinto­matico neste ponto e 0 seguinte: "0 budismo e, de longe, 0 maisproeminente complexo cultural mencionado ate aqui que tevesua mais profunda influencia fora da sociedade em que se ori­ginou. Mas porque nao conduziu para a modemidade e porqueteve pouco significado basico para a sociedade ocidental, nilo 0

317316

A CONSTITUIr;XO DA SOCIEDADE

a legitima~ao do mesmo. [...] A combina~ao de padroes cultu­rais diferenciados de legitima~ao com agencias socialmente di­ferenciadas e0 aspecto essencial do universal evolutivo de legi­tima<;ao. 6

MUDANr;A, EVOLUr;XO E PODER

examinamos detalhadamente."') Como foi que algumas dascaracteristicas culturais dessas duas sociedades se difundiramtilo extensamente e tilo longe de seus pontos de origem? E 0 quetomou possiveis as inova,6es culturais que elas produziram?Quanto a segunda destas interroga,6es, Parsons argumenta que,de fato, somente pequenas sociedades com grau razoavel deindependencia politica poderiam ter dado origem a tanta novi­dade culturaL Isso nao poderia ter ocorrido em vastos imperios,com enorme extensilo territorial e uma variedade de interessesconcorrentes, 0 primeiro problema e resolvido precisamentepela subsequente perda de independencia par parte de ambasas sociedades: suas inova,6es culturais foram adotadas por im­portantes camadas no seio de entidades sociais maiores. Asculturas judaica e grega foram absorvidas predominantementepar "classes eruditas", nilo por grupos politicos dominantes;subseqiientemente, essas influencias culturais tornaram-se as"principais amarras sociais" das tradi,6es estabelecidas no Oci­dente, 0 tipo modemo de sociedade surgiu nessa "area evoluti­va singular", oOcidente'.

o surgimento da sociedade ocidental, afirma Parsons,representa urn novo e decisivo avan,o na capacidade adaptati­va, em compara,ao com as sociedades intermedias, As caracte­risticas do Ocidente, que permitem maiar diferencia,ilo do quepodia ser realizado antes, incluem 0 maior desenvolvimento demercados, a universalizac.;ao da lei e a associa9ao democniticaenvolvendo direitos de cidadania para a massa da popula,ilo,Somadas, essas caracteristicas refor,aram ainda mais a conso­lida,ao da "unidade territorial" de sociedades que possuiamsuas proprias e nitidas fronteiras. 0 desenvolvimento do direitouniversalizado pode ser descrito atraves da articula,ao do Di­reito Romano, no continente, com 0 direito consuetudimirio, naInglaterra. 0 segundo e sumamente importante em termos defacilita,ao da liberdade de contrato e de prote,ao da proprieda­de privada, E, afirma Parsons, "a mais importante marca dis­tintiva da sociedade modema"; a ordem juridica inglesa "foium pre-requisito fundamental da ocorrencia inicial da Revolu­,ao Industrial"". Foi tambem a condi,ao do desenvolvimento dademocracia de massa, Por sua vez, a democracia e a condi,ao

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318

do corpo (urn cerebro volumoso e neurologicamente complexo,postura vertical etc,) foram a condi9ao previa para 0 desenvol­vimento da sociedade hurnana. 0 desenvolvimento inicial daassocia9ao e cultura social humana foi provavelmente urn tra90de sobrevivencia propicio ao exito evolutivo do Homo sapiens.Mas 0 que resulta disso se nao levarmos em conta 0 atrativoestetico de uma teoria que explica 0 desenvolvimento biol6gicoe social com urn Unico conjunto de conceitos? A resposta e: nada.A evolu9ao biol6gica est" relacionada com as mudan9as nahereditariedade, nos tra90s geneticos de sucessivas gera90es;elas sao explicadas economica e efetivamente por urn pequenonfunero de mecanismos relativamente simples, A evolu9aO so­cial diz respeito as rela90es entre sociedades hurnanas e 0 am­biente material, assim como entre tais sociedades. A caracteri­za9ao de "evolu9ao" nao pode ser corretamente atribuida aesses fenomenos, nem urna dada sequencia de mudan9as podeser explicada em termos "evolucionistas", a menos que se de­monstre a opera9ao de mecanismos similares. A teoria de Par­sons e tipica das descri90eS evolucionistas ao argumentar comose tal demonstra9ao fosse dada pelo fato (indiscutivel) de que aevolu9ao biol6gica esteve interligada com 0 desenvolvimentoinicial da cultura hurnana. 0 que deveria ser mostrado com evi­dencia e tornado como se fosse urna fonte de evidencia.

o conceito de adapta9ao que Parsons introduz e tao vago etao abrangente quanta qualquer outro na literatura, embora naoseja por isso atipico, A adapta9ao, ele deixa bern claro, ternalgo a ver com a "sobrevivencia" e com a intera9ao com 0mundo material, mas nao est", de modo algum, limitada a isso.Est" mais amplamente ligada a redu9ao da incerteza - urnaideia que Parsons adotou da teoria dos sistemas, assim como ada infIuencia cibernetica de simbolos e valores. Mas como "in­certeza" nao e definida em parte alguma, a tese ou e concep­tualmente tao difusa que se torna virtualmente inutil ou, se vol­tada mais para urn conteudo empirico definido, parece ser, namelhor das hip6teses, implausivel. Suponhamos que adotemosos dois sentidos que Parsons pode ter em mente: a redu9ao dasincertezas acerca dos caprichos da natureza e a redu9ao de in­certezas com rela9ao a eventos futuros, Nem urn nem outro pare-

319MUDAN9A, EVOLU9AO E PODER

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A CONSTfTUl9A-O DA SOCIEDADE

para 0 exercicio efetivo do poder numa sociedade altamentediferenciada. As sociedades que nao se tornam democniticas,incluindo as '''organizal;5es totalitirias comunistas", nao teraoas vantagens adaptativas daquelas que se democratizaram. Quesociedade avan90u mais, ate hoje, no longo caminho evoluti­yo? Os Estados Unidos, ora! Uma consoladora, ainda que naoparticularmente original, conclusao para urn soci610go norte­americana, ap6s urn imponente estudo da evolu9ao hurnanacomo urn todo l 1.

Isso soa como aquela especie de conclusao que acaba porgranjear urn mau nome para a sociologia... pelo menos no restodo mundo. Poderia ser tentador ignoni-la com base na restri9aoque Parsons adiciona a conclusao de sua obra sobre evolu9ao:que 0 leitor nao deve preocupar-se demais com os detalhes desua argurnenta9ao, pois 0 que importa e "a ideia do universalevolutivo e seu embasamento na concep9ao de capacidade adap­tativa generalizada"". De modo geral, eu acatarei, de fato, essarecomenda9ao, mas, como indicarei, a aprova9ao dos EstadosUnidos por Parsons est" inteiramente de acordo com sua ver­sao de pensamento evolucionista.

A teoria de Parsons satisfaz todos os criterios que mencio­nei como distintivos do evolucionismo. Ele deixa bern claroque a evolu9ao e mais do que "hist6ria", e sua exposi9ao defen­de que a evolu9ao social e a bio16gica estao conceptual e subs­tancialmente ligadas. A conhecida n09ao de adapta9ao faz denovo sua apari9ao. Parsons especifica a progressao em que est"mais interessado (a diferencia9ao de institui90es) e oferece urnainterpreta9ao global da mecanica de mudan9a que depende dainfIuencia "cibernetica" de valores e simbolos. Tambem apon­ta muitas das fraquezas secundirias do pensamento evolucio­nista e nao presta a suficiente aten9ao as advertencias para evi­tar os acidentes aos quais as teorias evolucionistas estao sujei­tas com tanta frequencia.

Parsons atribui considenivel importancia a ideia de que aevolu9ao social e urna extensao da evolu9ao biol6gica. Ora, exis­te obviamente urn sentido em que essa tese e indiscutivel. Afi­nal de contas, parece ser 0 caso de que as caracteristicas fIsicas

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ce sequer avan,ar inequivocamente com os tipos de sociedadeque Parsons retrata de acordo com a sua escala evolucionista, efiuito menos contribuir para a "sobrevivencia" diferencial de­les. 0 controle crescente sobre 0 meio ambiente material, pro­duzido pelo desenvolvimento tecnol6gico ou a manipula,ao derecursos autoritanos, DaD esinonimo, em absoluto, de incertezareduzida dos resultados. Urn agricultor tecnologicamente mais"eficiente", por exemplo, pode ser mais vulneravel a varia,oesclimiticas do que urn ca,ador e coletor. Quanto a redu,ao defuturas imprevisibilidades, quem podera supor que 0 mundo noqual vivemos hoje, com suas taxas maci,as, embora flutuantes,de mudan,a tecnol6gica e econ6mica, com suas incertezas po­liticas e a presen,a de urn arsenal nuclear, e menos incerto doque 0 mundo da hurnanidade paleolitica?

Alem disso, 0 mecanismo condutor da evolu,ao, que Par­sons liga a crescente capacidade adaptativa de seus universosevolutivos - 0 controle cibernetico produzido pelo simbolismoconstitucional -, e, sem duvida, nada convincente. Parsons es­tabelece essa abordagem, evidentemente, em oposi,ao cons­ciente ao materialismo hist6rico, e a outras teorias que ele con­sidera assemelharem-se a esta, ao sustentarem que a tecnolo­gia, ou a organiza,ao economica de urn modo mais geral, saoas for,as principais que influenciam a mudan,a social. Mas talabordagem nao e mais plausivel do que as teorias que ela con­testa. Uma vez mais, urn argumento por analogia parece serconfundido com a produ,ao de evidencia. Em sistemas de con­trole mecanicos, os controles ciberneticos de baixa energia po­dem governar movimentos envolvendo urn dispendio muitomaior de energia. Parsons compara entao isso com 0 controledo gene sobre a sintese proteica e outros aspectos do metabo­lismo celular, como se este ultimo exemplo desse, de algummodo, mais peso a seu argurnento sobre a influencia controla­dora do "simbolismo constitutivo" sobre a mudan,a social. 0suposto paralelo conceptual desempenha uma dupla fun,ao.Recorre-se a ele como urna fonte da tese da posi,ao controla­dora de simbolos e valores, mas depois Parsons tambem escre­ve como se esse paralelo ajudasse igualmente, de algum modo,a validar essa tese.

321

Suponhamos que fosse 0 caso de que 0 esquema de capa­cidade adaptativa mais a influencia "cibernetica" do simbolismoconstitutivo forneceu urn quadro explicativo geral para a evolu­,ao social mais ou menos analogo aquele por meio do qual osbi610gos explicam a evolu,ao natural. 0 problema do que sig­nifica "sobrevivencia", no caso das sociedades humanas, umaquestao que deve ser conjugada, em certa medida, com a doque uma "sociedade" e, exigiria ainda muito mais aten~ao do quea dedicada por Parsons. Na evolu,ao biol6gica, sobrevivenciae extin,ao sao alternativas claras e incompativeis, estando vin­culadas as condi,oes que deterrninam a reprodu,ao diferen­cial. Uma popula,ao que nao pode efetivamente lutar pelosinputs ambientais de que necessita nao pode transmitir seus ge­nes e, por conseguinte, extingue-se. Mas nao existe urn analogoreal para essas circunstiincias no mundo social. Se a capacidadeadaptativa e definida tao amplamente de modo a incluir a mo­biliza,ao para a guerra, as unidades sociais, com freqiiencia,nao logram "adaptar-se", na medida em que sao subjugadas oudestruidas por outras. Mas tipos inteiros de sociedade nao seextinguem usualmente desse modo. Alem disso, se colonizadasou subordinadas a outros grupos, em vez de serem extintas,forrnas preexistentes de organiza,ao social continuam amiudeexistindo sob uma aparencia reconhecivelmente similar, nurncontexto social alterado. A questao de saber se conseguiram ounao "sobreviver" gravita entao bastante em torno do que sedecidir que e uma "sociedade" ou a unidade apropriada de ana­lise para 0 estudo evolucionista. Parsons esquiva-se em grandeparte a questao ao incorporar urna resposta para ela em suaclassifica,ao das sociedades. Eurn sinal de inferioridade evo­lutiva a ausencia de fronteiras claramente definidas nas "socie­dades primitivas"B. Uma visao alternativa da materia, entretan­to, seria a de que a defini,ao do que deve ser considerado uma"sociedade" distinta e mais dificil de formular do que Parsonssupoe - ate, pelo menos, nos avizinharmos da era das moder­nas na,oes-Estados.

A teoria de Parsons exemplifica quase todas as tendenciasdanosas a que, conforme sugeri, as explica,oes evolucionistas

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estao tipicamente sujeitas. Ela apresenta, aparentemente semapreens5es, uma "hist6ria de crescimento mundial", cai na com­preensao unilinear e quase faz do que chamei de ilusao norma­tiva uma virtude deliberada. Sintomitica da "histaria de cresci­mento mundial" de Parsons e a discussao apresentada de "socie­dades primitivas". Parsons menciona en passant que as socieda­des aborigenes da Australia estao "entre as mais primitivas so­ciedades conbecidas"" sem muita elabora,ao adicional. Pensanelas como 0 extremo inferior da escala, em termos, como dei­xou claro, da falta de diferencia,ao, do baixo desenvolvimentoda economia e da preeminencia do parentesco nessas sociedades.E quanta Ii complexidade do sistema de parentesco, Ii riquezadas produ,oes culturais australianas nas esferas do ritual e daarte? Nao lhes e feita virtualmente qualquer men,ao, porqueParsons pratica a tipica elisao evolucionista entre "primitivis­rno" em certas dimens6es, como atecnologia, e "primitivismo"das sociedades como um todo. E 0 que dizer da tremenda di­versidade de pequenas culturas orais que existiram ao longo dotempo e do espa,o, corretamente enfatizada pelos "relativistasculturais"?15 Se Parsons estivesse unicamente preocupado emformular uma concep,ao de evolu,ao geral (isto e, se ele naofosse absolutamente um evolucionista, em meu entendimentodo termo), talvez sua falta de referencia a tal diversidade, e aofato de que essas sociedades dominaram a maior parte da hista­ria humana, pudesse ser justificada. Mas ele tambem esm cer­tamente interessado na evolu,ao especifica, tentando indicar aprincipal dire,ao de mudan,a pela qual as "sociedades primiti­vas" se transformaram em "sociedades primitivas avan<;adas" eestas em sistemas do tipo "intermedio".

A compressao unilinear e evidente na descri,ao por Parsonsdo impacto das sociedades-"viveiros", onde se verifica umaacentuada altera,ao nas formas de sua discussao. Enquanto,em rela,ao a tipos evolutivos antecedentes, Parsons se debru,asobre vastos periodos da Histaria, ao analisar a ascensao doOcidente sua discussao torna-se inevitavelmente mais estreitaem sua enfase. Nada tern de convincente, por certo, supor queas heran,as culturais de Israel e da Grecia possuem necessaria-

ReferenciasMudan~a, eva/urao e pader

1. Por vezes, "determina9ao" toma-se urn outro nome para urn obje­tivismo que procura explicar a conduta prirnordialmente atravesda coen;ao estrutural. Wright, por exemplo, procura identificar "umaserle de distintas relac5es de determinacao" baseadas oum "esque-

323MUDAN(:A. EVOLU(:AO E PODER

mente maior poder adaptativo do que outras contribui,oes quepudessem ter sido recebidas de outras areas. 0 fato de queaquelas foram incorporadas Ii cultura europeia nada indica sobreseu valor evolutivo, como Parsons tinha anteriormente especi­ficado. Neste ponto, ele atribui Ii "necessidade evolutiva" (aalega,ao de que um tipo de organiza,ao social apresenta tra,osque tern de aparecer antes que urn tipo "superior" possa surgir)o significado de "necessidade histarica" (a circunstancia deque, como os elementos designados tornaram-se parte inte­grante da sociedade europeia, as coisas "devem" ter acontecidodessa maneira).

Finalmente, a ilusao normativa. A ideia de Parsons de quemeio milhao de anos de histaria humana culminam no sistemasocial e politico dos Estados Unidos seria mais do que leve­mente ridicula se nao se harmonizasse claramente com sua "his­taria do crescimento mundial". Qualquer que seja 0 atrativoespecioso que possa ter, este foi-Ihe dado por sua conexao como tema da crescente capacidade adaptativa associada Ii evolu­,ao. Embora Parsons possa alegar que sua interpreta,ao e estri­tamente anaHtica e nao contem implica,oes avaliatarias, tal naoe palpavelmente 0 caso. Se, por exemplo, "democracia" e defi­nida de um modo especifico, COmo mais ou menos equivalentea "democracia liberal, conforme exemplificada pela ordem po­litica dos Estados Unidos", e se "democracia" e convertida numuniversal evolutivo para sociedades no mais alto nivel de evo­lu,ao, entao que outra conclusao pode haver senao aquela queParsons extrai? Mas e tao vazia quanto a maioria dos principiosdo evolucionismo tende a ser.

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A CONSTITUI(:AO DA SOClEDADE322

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rna diferenciado de causalidade estrutural compativel com a teo­ria marxista". Ele distingue varios modos de detennina~ao, maseu mencionarei apenas dais para transmitir 0 sabor do que Wrighttern a dizer: "limita9ao estrutural" e "seleyao". A primeira refere-seaos modos como as propriedades estruturais das sociedades fixamlimites para 0 que e passivel dentro dessas sociedades. Assim,afinna Wright, a "estrutura economica" do feudalismo limita a for­ma do Estado que se observa em sistemas feudais. Enquanto umademocracia representativa com sufragio universal era "estrutural­mente impassivel" dentro do feudalismo, uma considecivel varie­dade de fonnas de Estado ecompativel corn as ordens feudais. A"seleyao" refere-se "aqueles mecanismos sociais que concreta­mente determinam series de resultados ou, no caso extremo [?],resultados especificos, dentro de uma gama estruturalmente limi­tada de possibilidades". Wright liga "sele,ao" com a determina,aode "conjunturas hist6ricas especificas". No feudalismo, economiae Estado relacionam-se de modo a delinear as formas de divisaode classes que ocorrem, com estas tornando-se expressas comolutas concretas entre gropos definidos.

A n09ao de "determina9ao" e, neste ponto, ambiguamente for­mulada. Quando Wright fala da determina,ao de "resultados es­pecificos" ou de "conjunturas hist6ricas", ele tern em mente apa­rentemente uma acep9ao muito generalizada do tenno. Assim en­tendida, a concep9ao de Wright envolveria urna especie totalmentedesenvolvida de detenninismo estrutural, uma versao de "socio­logia estrutural" em que a conduta humana deve ser explicada co­mo 0 resultado de causas sociais. Mas outras observa90es feitaspor Wright sugerem que ele nao deseja adotar tal ponto de vista.As caracteristicas estruturais de sistemas sociais, como indica suaprimeira categoria, fixam limites dentro dos quais uma serie inde­tenninada de resultados pode acontecer. Neste caso, "detennina­9ao" significa "COer9aO" e nao discrimina entre os varios sentidosque, como sugeri, esse termo caracteristicamente engloba. Repetin­do, "estrutura" nao pode ser identificada com "COer9aO", e os as­pectos coercivos das propriedades estruturais nao podem ser vis­tos como uma fonna generica de "causalidade estrutural". Comoesses pontos ja foram tratados, nao ha necessidade de nos alon­garmos mais sobre eles. Ver: Wright, Erik Olin. Class, Crisis andthe State. Londres, New Left Books, 1978, pp. 15-18.

2. Cf CPST, pp. 230-3.3. NRSM, cap. 2.

4. Nisbet sublinhou, entretanto, que 0 evolucionismo social e 0 bio­16gict) tambem se desenvolveram separadarnente e que "e urnadas rnais serias concep90es erroneas de boa parte da literaturamodema sobre a hist6ria do pensamento social que 0 evolucionis­rno social do seculo XIX foi simplesmente uma adapta9ao dasideias do evolucionismo biol6gico, sobretudo as de Charles Darwin,ao estudo de institui90es sociais" (Nisbet, Robert. A Social Chan­ge and History. Londres, Oxford, 1969, cap. 5).

5. Parsons, Talcott. "Evolutionary universals in society". In: Desai,A. R. Essays on Modernism of Underdeveloped Societies. Born­bairn, Thacker, 1971; Societies, Evolutionary and ComparativePerspectives. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1966.

6. Cf. "Durkheim's political sociology".!n: SSPT7. Marx, Karl. "Preface" a A Contribution to the Critique ofPoli­

tical Economy.!n: Marx, Karl e Engels, Friedrich. Selected Writings.Londres, Lawrence & Wishart, 1968.

8. Comte, Auguste. Physique sociale. Paris, Hermann, 1975, p. 16.9. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives, cit., p. 2.

10. Stewart, Julian H. Theory ofCulture Change. Urbana, Universityof Illinois Press, 1955, p. 248.

II. Huxley, Julian. "Evolution, cultural and biological".!n: Thomas,William C. Current Anthropology. Chicago, University of Chica­go Press, 1956,p. 3.

12. White, Leslie A. The Evolution ofCulture. Nova York, McGraw­Hill, 1959,pp. 29-30.

13. Sahlins, Marshall D. e Service, Elman R. Evolution and Culture,Ann Arbor, University of Michigan Press, 1960, pp. 12-13. Paraoutras defini90es, ver, entre outros, os seguintes: Childe, V. Gordon.The Progress ofArchaeology. Londres, Watts, 1944; Dobzhansky,Theodosius. Mankind Evolving. New Haven, Yale University Press,1962; Tax, Sol. The Evolution of Man. Chicago, University ofChicago Press, 1960. Manners, Robert A. Process and Pattern inCulture. Chicago, Aldine, 1964. Meggers, Betty J. Evolution andAnthropology: a Centennial Appraisal. Washington, Anthropo­logy Society, 1959; Stebbins, L. The Basis ofProgressive Evolution.Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1969; White,Leslie A. "Difusion vs. evolution: an anti-evolutionist fallacy".American Anthropologist, vol. 44, 1945; Alland, Alexander. Evolu­tion and Human Behaviour. Garden City, Natural History Press,1967; Chappel, Eliot D. Culture and Biological Man. Nova York,Holt, Rinehart & Winston, 1970; Stocking, George W. Race, Cultureand Evolution. Nova York, Free Press, 1968.

324 A CONSTITUIt:;A-O DA SOCIEDADE

1MUDANt:;A, EVOLUt:;JO E PODER 325

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14. White, Leslie A. "Evolutionary stages, progress and the evalua­tion of cultures". Southwestern Journal ofAnthropology, vol. 3,1947; The Evolution ofCulture, cit., cap. 2.

15. Para discussoes importantes, ver Bennett, John W. The Ecologi­cal Transition. Nova York, Pergamon Press, 1976; Alland, Ale­xander. Adaptation in Cultural Evolution. Nova York, ColumbiaUniversity Press, 1970; Appley, M.-H. Adaptation-Level Theory:A Symposium. Nova York, Academic Press, 1971; Cohen, J. Manin Adaptation. Chicago, Aldine, 1968; Boughey, Arthur S. Man andthe Environment. Nova York, Macmillan, 1971; Dubas, Rene. ManAdapting. New Haven, Yale University Press, 1965; Munson, Ro­nald. Man and Nature. Nova York, Felta, 1971; Theodorson, Geor­ge A. Studies in Human Ecology. Nova York, Row, Peterson,1961; Vayda, Andrew P. Environment and Cultural Behaviour.Nova York, Natural History Press, 1969; Eldredge, Niles e Tatter­sall, Ian. The Myths ofHuman Evolution. Nova York, ColumbiaUniversity Press, 1981.

16. Entretanto, ha bi6Iogos que contestariam issa. Assim, Ehrlich eoutros: "Por causa da aplicar;ao extrernamente vaga do termo'adaptar;ao' na literatura biologica, talvez fosse sensato abando­na-lo por completo" (Ehrlich, Paul R. et alii. The Process ofEvolution. Nova York, McGraw-Hill, 1974, p. 337).

17. Rappaport, Roy A. "Ritual, sanctity and cybernetics". AmericanAnthropologist, vol. 73, 1971, p. 60. Para comentarios criticos,ver: Whyte, Anne. "Systems as perceived". In: Friedman, J. eRowlands, M. J. The Evolution afSocial Systems. Pittsburgh, Uni­versity ofPittsburgh Press, 1978.

18. Harding, Thomas G. "Adaptation and stability". In: Sahlins, M.D. e Service, E. R. Evolution and Culture, cit., pp. 45 e 48.

19. Cf. Luhmann, Niklas. "Funktion und Kausalimt". In: Soziologis­che Aujkliirung. Colonia-Opladen, 1970, vol. I.

20. Childe, V. Gordon. "Prehistory and Marxism". Antiquity, vol. 53,1979, pp. 93-4. (Este artigo foi originalmente escrito na decada de1940, mas nao publicado em vida de Childe.)

21. CCHM, cap. 3. Nao vejo como a seguinte afirrna,ao de Lenskipossa ser defendida: "Como urna especie, uma sociedade hurnanae urna popula9ao 'isolada', cujos membros compartilham de urnpool de infonna9ao e estao, portanto, presos a urn percurso evolu­tivo comum" (Lenski, Gerhard. Human Societies. Nova York,McGraw-Hill, 1970, p. 60). Para comentarios criticos, ver: UIz,Pamela 1. "Evolutionism revisited". Comparative Studies in So­cietyandHistory, vol. 15, 1973.

327326

A CONSTITUlI:;AO DA SOCIEDADE

--r''1

MUDAN9A. EVOLU9AO E PODER

22. Spencer, Herbert. The Principles ofSociology. Nova York, Apple­ton, 1899, vol. 2, p. 110.

23. Cf. Renfrew, Colin. "Space, time and polity". In: Friedman, J. eRowlands, M. J. The Evolution ofSocial Systems, cit.

24. Gellner, Ernest. Thought and Change. Londres, Weidenfeld &Nicolson, 1964,pp. 12-13.

25. Naipaul, V. S. India, a Wounded Civilization. Harrnondsworth,Penguin, 1976.

26. Sahlins, M. D. "Evolution: specific and general". In: Sahlins, MD. e Service, E. R. Evolution and Culture, cit., pp. 30-1.

27. Freud, S. Civilization and its Discontents. Londres, Hogarth, 1969,pp.26.

28. Marcuse, Herbert. Eros and Civilization. Nova York, Vintage,1955, p. 26 [Edi,ao brasileira: Eros e civilizafiio. Trad. de AlvaroCabral, Zahar Editores, 1968, p. 34.]

29. Elias, Norbert. The Civilising Process, vol. I, The History ofManners. Oxford, Blackwell, 1978, vol. 2, pp. 232-3.

30. Aprofundo alguns desses temas em Between Capitalism and So­cialism, vol. 2 de CCHM.

31. Ver alguns dos exemplos discutidos em: Kardiner, A. The Indlvidual and His Society. Nova York, Columbia University Press,1939.

32. Talvez valha a pena voltar a enfatizar que esse e urn dos perigosdo evolucionismo, nao sua implica9ao l6gica. Habennas e urnautor que'discutiu esse e fiuitos outros pontos acerca do evolu­cionismo de urn modo esclarecedor e, como sempre, de modo argu­to. Ver: Habennas, Jiirgen. Communication and the Evolution ofSociety. Boston, Beacon, 1979, esp. os caps. 3 e 4; "Geschichteund Evolution". In: Zur Rekonstruktion des historischen Mate­rialismus. Frankfurt, Suhrkarnp, 1976.

33. Como faz Cohen em sua recente e filosoficamente requintadainterpreU!:9ao do materialismo hist6rico: Cohen, G. A. Karl Marx'sTheory ofHystory, a Defence. Oxford, Clarendon Press, 1978.

34. Tomei de Eberhard 0 segundo desses conceitos. Ver: Eberhard,Wolfram. Conquerors and Rulers. Leiden, Brill, 1965.

35. CCHM, cap. 10.36. CSAS; CPST, pp. 228 ss.37. Nadel, S. F. A Black Byzantium. Londres, Oxford University Press,

1942.38. Fortes, M. e Evans-Pritchard, E. E. African Political Systems. Lon­

dres, Oxford University Press, 1940.

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39. Oliver, Douglas L. Ancient Tahitian Society. Honolulu, Univer~

sity ofHawaii Press, 1974.40. Claessen, Henri 1. M. "The early state in Tahiti". In: Claessen,

Henri J. M. e Skalnik, Peter. The Early State. Haia, Mouton, 1978.41. Oliver, D. L. Ancient Tahitian Society, cit.42. Claessen, Henri 1. M. "The early state: a structural approach". In:

Claessen, H. 1. M. e Skalnik, P. The Early State, cit.43. Ver: Cohen, Ronald. "State origins: a reappraisal". In: Claessen,

H. J. M. e Skalnik, P. The Early State, cit.; Carneiro, Robert L. "Atheory of the origin of the state", Science, n. 169, 1970; Fried,Morton H. The Evolution ofPolitical Society. Nova York, Ran­dom House, 1967; Koppers, W. "L'origine de I'etat. 6'h Inter­national Congress ofAnthropological and Ethnological Sciences.Paris, 1963, vol. 2; Krader, Lawrence. Formation of the State.Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1968; Lenski, G. Power andPrivilege. Nova York, McGraw-Hill, 1966; Lowie, Robert. TheOrigin of the State. Nova York, Harcourt Brace,1927; Senrice,Elman R. Origins of the State and Civilization. Nova York,Norton, 1975.

44. Cf. Service. E. R. Origins ofthe State and Civilization, cit.45. Carneiro, R. L. "A theory ofthe origin ofthe state", cit.46. Dumont, Louis. "Population growth and cultural change". South­

western Journal ofAnthropology, vol. 21, 1965; Service, E. R.Origins ofthe State and Civilization, cit.

47. Wright, Henry T. e Johnson, Gregory. "Population, exchange andearly state formation in southwestern Iran". American Anthropo­logist, vol. 77,1975.

48. Polanyi, Karl. Trade and Markets in Early Empires. Glencoe, FreePress, 1957.

49. Eberhard, W. Conquerors andRulers, cit., pp. 9 ss.50. Ibidem, p. 10.51. Claessen, Henri 1. M. e Skalnik, Peter. "Limits, beginning and end

ofthe early state". In: The Early State, cit., p. 625.52. Fried, M. H. The Evolution ofPolitical Society, cit.53. Comparar as opinioes de Wilson e Kelley: Wilson, John A. The

Culture ofAncient Egypt. Chicago, University of Chicago Press,1951; Kelley, Allyn L. "The evidence for Mesopotamian influen­ce in pre-dynastic Egypt". Newsletter ofthe Society for the StudyofEgyptian Antiquities, vol. 4, p. 3, 1974.

54. Carneiro, R. L. "A theory ofthe origin of the state", cit.55. Durkbeim, Emile. Socialism. Nova York, Collier-Macmillan, 1962.

Notas criticas: Parsons sobre evolu(:iio

1. Parsons, Talcott. "Evolutionary universals in society". AmericanSocioiogical Review, vol. 29,1964, p. 339.

2. Ibidem, p. 340.3. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives. Englewood

Cliffs, Prentice-Hall, 1966, pp. 9-10.4. "Evolutionary universals in society", cit., p. 342.5. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives, cit., p. 24.

Vertarnbem: "The problem of structural change". In: Lidz, Victore Parsons, Talcott. Readings on Premodern Societies. EnglewoodCliffs, Prentice-Hall, 1972, pp. 52 ss.

6. "Evolutionary universals in society", cit., p. 346.7. Ibidem, p. 351.8. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives, cit., p. 95.9. Parsons, Talcott. The System of Modern Societies. Englewood

Cliffs, Prentice-Hall, 1971, p. 1.10. "Evolutionary universals in society", cit., p. 353.11. The System o/Modern Societies, cit., cap. 6.12. "Evolutionary universals in society", cit., p. 357.

329

56. Cf. Badie, Bertrand e Birnbaum, Pierre. Sociologie de I 'etat. Pa­ris, Grasset, 1979, pp. 189 ss.

57. Incluindo meu proprio comentario em: "'Power' in the writingsofTalcott Parsons". In: SSPT.

58. Cf lambem: Luhmann, Niklas. Trost and Power. Chichester, Wiley,1979, p. 127. Ele afirma: "A estreita associa,iio do poderoso como perigoso so erealmente adequada para as sociedades arcaicas eos modos arcaicos de pensar [... ]". Isso parece extraordinariamen­te otimista numa era nuclear.

59. Cf Frankel, Boris. Beyond the State. Londres, Macmillan, 1983.Este eurn dos poucos livros a enfatizar 0 significado da prodw;aoe preservar;ao de alimentos em massa para 0 desenvolvimento docapitalismo.

60. McLuhan, Marshall. The Gutenberg Galaxy. Londres, Routledge,1962.

61. CCHM, p. 96.62. Mumford, Lewis. "University city". In: Kraeling, Carl H. e Adams,

Robert M. City Invisible. Chicago, University of Chicago Press,1960, p. 7.

MUDANr;A, EVOLUr;JO E PODER

l,A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE328

Page 188: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

13. 0 carater vazio desse ponto de vista eevidente na seguinte trans­cri<;ao: "e [...Jclaro que nenhuma sociedade poderia atingir 0 quechamaremos de 0 nive! 'primitivo avanc;ado' da evolw;ao social,sem desenvolver de fronteiras relativamente nitidas. Assim, umafalta de fronteiras parece ser uma importante marca de primitivis­mo de uma sociedade" (Societies, Evolutionary and ComparativePerspectives, cit., pp. 37-8).

14. Ibidem, p. 36.

15. Nao e minha intenc;ao sugerir que a iinica escolha acessivel a res­peito das conota<;5es nonnativas da teoria social esta entre 0 rela­tivismo cultural, por urn lado, e 0 evolucionismo, por Dutro.

330 A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE

JCapitulo VI

A teoria da estruturafiio, pesquisaempirica e critica social

Uma reitera~aode conceitos basicos

Talvez seja util, neste ponto, recapitular algumas das Ideiasbasicas contldas nos capitulos precedentes. Farel um resumoutilizando um certo numero de itens; em seu conjunto, elesrepresentam os aspectos da teoria da estrutura,ao que incidemde modo mais geral sobre os problemas de pesquisa empiricanas ciencias sociais.

I) Todos os seres hurnanos sao agentes cognoscitivos. Issosignifica que todos os atores sociais possuem urn conslde­ravel conhecimento das condi,oes e conseqiiencias do quefazem em suas vidas cotidianas. Esse conhecimento nao einteiramente proposicional em carater nem incidental paraas atividades deles. A cognoscitividade incrustada na cons­ciencia pratica exibe urna extraordinaria complexldade ­uma complexidade que, com freqiiencia, pennanece com­pletamente inexplorada nas abordagens sociologicas ortodo­xas, sobretudo as associadas com 0 objetlvismo. Os atoressociais tambem sao ordinariamente capazes de descreverem tennos discursivos 0 que fazem e as razoes por que 0

fazem. Entretanto, em sua maior parte, essas faculdadesestao engrenadas no fluxo da conduta do dia-a-dia. A racio­naliza,ao da conduta so se converte na apresenta,ao dis­cursiva de razoes se os individuos forem solicitados poroutros a esclarecer por que atuaram de tal ou tal modo. Taisperguntas so sao normalmente formuladas, e claro, se a ati-

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vidade em questao for, de certa forma, desconcertante - separecer zombar da conven9ao ou afastar-se dos modos ha­bituais de conduta de uma determinada pessoa.

2) A cognoscitividade de atores humanos esta sempre vincu­lada, por um lado, ao inconsciente e, por outro, as condi­90es nao reconhecidas/conseqiiencias impremeditadas daa9ao. Algumas das tarefas mais relevantes da ciencia so­cial deverao ser encontradas na investiga9ao dessas fron­teiras, a importancia das conseqiiencias impremeditadas paraa reprodu9aO do sistema e as conota90es ideol6gicas quetais fronteiras possuem.

3) 0 estudo da vida cotidiana e essencial para a analise da re­produ9ao de pr<iticas institucionalizadas. A vida diaria einseparavel do carater repetitivo do tempo reversivel- comtrajetos trapdos ao longo do tempo-espa90 e associadoscom as caracteristicas coercivas e facilitadoras do corpo.Entretanto, ela nao deve ser tratada como a "funda9ao"sobre a qual se constroem as conexoes mais ramificadas davida social. Pelo contnirio, essas conex5es mais extensasdevem ser entendidas em termos de uma interpreta9ao daintegra9ao social e de sistema.

4) A rotina, psicologicamente ligada a minimiza9ao das fon­tes inconscientes de ansiedade, e a forma predominante deatividade social cotidiana. A maioria das praticas dimas naosao diretamente motivadas. As pr<iticas rotinizadas consti­tuem a expressao primordial da dualidade da estrutura comrela9ao a continuidade da vida social. No desempenho derotinas, os agentes alimentam um sentimento de seguran9aontol6gica.

5) 0 estudo do contexto, ou das contextualidades de intera­9aO, e inerente a investiga9ao da reprodu9ao social. 0 "con­texto" envolve 0 seguinte: a) as fronteiras espa90-tempo­rais (sendo usualmente marcos simb6licos ou fisicos) emtorno das faixas de intera9ao; b) a co-presen9a de atores,possibilitando a visibilidade de uma diversidade de expres­soes faciais, gestos corporais, linguagem e outros veiculosde comunica9ao; c) percep9ao consciente e usa desses fe-

nomenos reflexivamente para influenciar ou controlar 0fluxo de intera9ao.

6) Identidades sociais, e as rela90es posi9ao-pratica que Ihesestao associadas, sao "marcos" no tempo-espa90 virtual daestrutura. Elas estao associadas a direitos normativos, obri­ga90es e san90es que, dentro de coletividades especificas,constituem papeis. 0 uso de marcos padronizados, espe­cialmente relacionados com os atributos corporais de idadee genero, e fundamental em todas as sociedades, apesar dasgrandes varia90es transculturais que podem ser notadas.

7) Nenhum significado unitario pode ser dado a "coer9ao" naanalise social. As coer90es associadas com as propriedadesestruturais de sistemas sociais constituem apenas um tipoentre muitas outras caracteristicas da vida social humana.

8) Entre as propriedades estruturais de sistemas sociais, osprincipios estruturais sao especialmente importantes, umavez que especificam tipos globais de sociedade. Vma dasprincipais enfases da teoria da estrutura9ao esta em que 0grau de fechamento de totalidades sociais - e de sistemassociais em geral - e amplamente variavel. Existem grausde "sistemidade" nas totalidades sociais, como em outrasformas mais ou menos inclusivas de sistema social. Eessencial evitar a suposi9ao de poder ser facilmente defini­do 0 que uma "sociedade" e, n09ao que provem de uma eradominada por na90es-Estados com fronteiras bern delimi­tadas que usualmente se encontram na esfera de a9ao admi­nistrativa de govemos centralizados. Mesmo nas na90es­Estados existe, e claro, uma grande variedade de formassociais que cortam transversalmente as fronteiras das so­ciedades.

9) 0 estudo do poder nao pode ser visto como uma considera­9aO de segunda ordem nas ciencias sociais. 0 poder naopode ser, por assim dizer, acrescentado como um remendo,depois de terem sido formulados os conceitos mais basicosda ciencia social. Nao existe conceito mais elementar doque 0 do poder. Entretanto, isso nao significa que ele sejamais essencial do que qualquer outro, como e pressuposto

332

r··<'c

A CONSTITUJ(;:AO DA SOCIEDADE ' A TEORIA DA ESTRUTURAt;:AO 333

Page 190: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

334

* As referencias podem ser encontradas app. 433-6.

I) 0 estilo literano nao e irrelevante para a exatidao das des­cri,oes sociais. Isso e mais ou menos importante de acordocom a extensao em que uma determinada pesquisa social eetnogrMica - ou seja, e escrita com 0 objetivo de descreverurn dado milieu cultural para outros que nao 0 conhecem.

2) 0 cientista social e urn comunicador, apresentando redes designificado associadas com certos contextos de vida socialaqueles que estao em Dutros. Assim, as ciencias sociaisapoiam-se nas mesmas fontes de descri,ao (conhecimentomutuo) dos romancistas ou outros que escrevem relatos fic­cionais da vida social. Goffman e capaz, com a maior facili­dade, de entremear ilustra,oes ficcionais com descri,oesextraidas de pesquisas em ciencia social, porque ele procura,com muita freqiiencia, "exibir" as formas tacitas de conhe­cimento mutuo, mediante as quais as atividades priticas sao

335

caracteriza a ciencia social. 0 sociologo tern como campo deestudo fenomenos que ja sao constituidos como significativos.A condi9ao de "entrada" nesse campo e travar conhecimentocom 0 que os atores ja sabem, e tern de saber, para "prosseguir"nas atividades cotidianas da vida social". Os conceitos queobservadores sociologicos inventam sao conceitos de "segundaordem", na medida em que pressupoem certas capacidadesconceptuais por parte dos atores a cuja conduta eles se referem.Mas esta na natureza da ciencia social que eles podem tomar-sede "primeira ordem" se forem reservados apropria vida social.o que hi de "hermeneutico" na dupla hermeneutica? A pro­priedade do termo deriva do duplo processo de tradu,ao ouinterpreta,ao que esta envolvido. As descri,oes sociologicastern a tarefa de mediar as redes de significado dentro das quaisos atores orientam sua conduta. Mas tais descri,oes sao catego­rias interpretativas que pedem tambem urn esfor,o de tradu,aodentro e fora das redes de significado envolvidas em teoriassociologicas. Varias considera,oes relativas a analise socialestao ligadas a isto:

A TEORIA DA ESTRUTURA9JOA CONSTITUl9JO DA SOCIEDADE

naquelas versoes da ciencia social que cairam sob uma in­fluencia nietzschiana. 0 poder e urn dos varios conceitosprimanos da ciencia social, todos enfeixados em tomo dasrela,oes de a,ao e estrutura. Ele e 0 meio de conseguir queas coisas sejam feitas e, como tal, esta diretamente implici­to na a,ao humana. Eurn equivoco trata-Io como inerente­mente divisor, mas nao hi duvida de que alguns dos maisacerrimos conflitos na vida social sao corretamente vistoscomo "lutas pelo poder". Essas lutas podem ser vistas co­mo relacionadas com os esfor,os para subdividir recursosque geram modalidades de controle em sistemas sociais.Entendo por "controle" a capacidade que alguns atores,grupos ou tipos de atores tern de influenciar as circunstan­cias da a,ao de outros. Nas lutas pelo poder, a dialetica decontrole opera sempre, embora 0 uso que os agentes emposi,oes subordinadas podem fazer dos recursos a que ternacesso difira muito substancialmente entre contextos sociaisdistintos.

10) Nao hi mecanismo de organiza,ao social ou de reprodu,aosocial identificado por analistas sociais que atores leigosnao possam tambem conbecer e incorporar ativamente aoque fazem. Em nurnerosos casos, as "descobertas" dos so­ciologos so 0 sao para aqueles que nao estao nos contextosde atividade dos atores estudados. Como os atores fazem 0

que fazem por terem razoes para tanto, e natural quefiquem desconcertados quando observadores sociologicoslhes dizem que 0 que fazem deriva de fatores que lhes sao,de algum modo, exteriores. As obje,oes leigas a tais "des­cobertas" podem ter assim urna base muito solida. A retifi­ca,ao nao e, em absoluto, puramente caracteristica do pen­samento leigo.

Estes pontos sugerem urn certo nUmero de diretrizes paraa orienta,ao global da pesquisa social.

Em primeiro lugar, toda pesquisa social tern urn aspectonecessariamente cultural, etnogrMico ou "antropologico". Issoe uma expressao do que eu chamo de a dupla hermeneutica que

!,

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ordenadas, em vez de tentar mapear a distribui9ao real des­sas atividades.

3) A "descri9ao densa" sera requerida em alguns tipos de pes­quisa (sobretudo a de urn tipo maisetnognifico), mas naoem outros. Egeralmente desnecessiria quando as ativida­des estudadas tern caracteristicas generalizadas familiaresaqueles a cuja disposi9ao as "descobertas" sao postas, equando a principal preocupa9ao da pesquisa e com a analiseinstitucional, na qual os atores sao lratados em grandes agre­gados ou como "tipicos" em certos aspectos definidos co­mo tais para os prop6sitos do estudo.

Em segundo lugar, e importante na pesquisa social sersensivel as habilidades complexas que os atores possuem paracoordenar os contextos de seu comportamento cotidiano. Naanalise institucional, essas habilidades podem ser mais oumenos enquadradas, mas e essenciallembrar que tal enquadra­mento e totalmente metodol6gico. Aqueles que consideramque a analise institucional compreende 0 campo da sociologiain toto confundem urn procedimento metodol6gico com umarealidade ontol6gica. A vida social pode, com muita freqiien­cia, ser previsivel em seu curso, como esses autares propendema salientar. Mas sua previsibilidade, em muitos de seus aspec­tos, sao os pr6prios atores sociais que "fazem acontecer"; elanao acontece apesar das razoes que eles tern para a sua condu­tao Se 0 estudo de conseqiiencias impremeditadas e de condi­90es nao reconhecidas de a9ao constitui uma parte importanteda pesquisa social, cabe-nos sublinhar, nao obstante, que taisconseqiiencias e condi90es devem sempre ser interpretadasdentro do fluxo da conduta intenciona!. Temos de incluir aqui arela9ao entre aspectos reflexivarnente monitorados e aspectosimpremeditados da reprodu9ao de sistemas sociais, e 0 aspecto"longitudinal" de conseqiiencias irnpremeditadas de atos con­tingentes em circunstiincias historicarnente significativas de umaespecie ou de outra.

Em terceiro lugar, 0 analista social tambem deve ser sensi­vel a constitui9ao espa90-temporal da vida socia!. Em parte,

trata-se de urn pretexto para urn conubio disciplinar. Normal­mente, os cientistas sociais contentarn-se em deixar que os his­toriadores sejam os especialistas em tempo e os ge6grafos, es­pecialistas em espa90, enquanto eles mantem sua pr6pria iden­tidade disciplinar distinta, a qual, se nao e uma preocupa9aoexclusiva com a coer9ao estrutural, esta estreitamente ligada aurn enfoque conceptual sobre a "sociedade". Historiadores ege6grafos, por sua parte, mostraram-se bastante sollcitos emconsentir nessa disseca9ao disciplinar da ciencia social. Os pra­ticantes de uma disciplina, segundo parece, s6 se sentem segurosse puderem apontar uma nitida delimita9ao conceptual entreseus interesses e os dos autros. Assim, a "historia" pade servista como tendo por objeto de estudo as seqiiencias de eventosdispostos cronologicamente no tempo ou, talvez, de urn modoainda mais arnbiguo, "0 passado". A geografia, como gostarn dereivindicar fiuitos de seus representantes, encontra seu caraterdistintivo no estudo de formas espaciais. Mas se, como enfati­zei, as rela90es tempo-espa90 nao podem ser "arrancadas" daanalise social sem abalar todo 0 empreendimento, tais divisoesdisciplinares inibem ativarnente a abordagem de questoes dateoria social que sao significativas para as ciencias sociais comourn todo. Analisar a coordena9ao espa90-temporal de ativida­des sociais significa estudar as caracteristicas contextuais delocais onde os atores sociais se movimentam em seus percursoscotidianos e a regionaliza9ao de locais que se estendem atravesdo tempo-espa90. Como acentuei freqiientemente, tal analise einerente a explica9ao do distanciarnento tempo-espa90 e, porconseguinte, ao exame da natureza heterogenea e complexaadquirida per totalidades sociais mais vastas e pelos sistemasintersociais em gera!.

Para comentar as irnplica90es empiricas das considera90esprecedentes, considerarei vanos trabalhos de pesquisa separa­dos. No sentido de preservar urn grau de continuidade comexemplos que usei antes, tomarei como casos ilustrativos mate­rial relacionado com a educa9ao e com 0 Estado. Como 0 Es­tado modemo abrange, em todo lugar, tentativas de monitorar areprodu9ao institucional por meio da influencia sobre a natureza

337r m,m,"U,"mvMC"I

A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE336

Page 192: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

339

De acordo com a teoria da estrutura<;ao, sao possiveis doistipos de enquadramento metodol6gico em pesquisa sociol6gi­ca. Na analise institucional, as propriedades estruturais sao tra­tadas como caracteristicas cronicamente reproduzidas de siste­mas sociais. Na analise da conduta estrategica, 0 foco incidesobre os modos como os atores sociais se ap6iam nas proprie­dades estruturais para a constitui<;ao de rela<;6es sociais. Na medi-

A analise da conduta estrategica

338

[A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE I A TEORIA DA ESTRUTURA9AO

dos sistemas educacionais, essas duas "areas" de pesquisa es- . Alem disso, yOU querer conduzir a discussao numa dire<;ao quetao, de fato, estreitamente interligadas. 0 primeiro exemplo e I nao se costuma considerar estreitamente relacionada com osurn bern conbecldo estudo de submissao e de rebeliao numa problemas de trabalho empirico - indicando como a pesqmsaescola ~a classe trabalhadora na regiao das Midlands (lngla- social esta vinculada a critica social. Nas se<;6es finais desteterra). E de carater primordialmente etnografico e contrasta capitulo tentarei mostrar por que a teoria da estrutura<;ao ficar'neste aspecto, e no pais de origem, com 0 segundo exemplo: intrinsecamente incompleta se nao estiver ligada a uma con-urn estudo por levantamento estatistico da mobilidade educa- cep<;ao da ciencia social como teoria critica.cional na ltillia. 0 terceiro e 0 quarto exemplos baseiam-se em Talvez possa parecer, aprimeira vista, que estes ultimosmaterial empirico diretamente interessado nas atividades e en- aspectos se desenvolvem num plano muito diferente do examevolvimentos de Estados modemos. Urn descreve nao tanto urn da pesquisa empirica. Mas a liga<;ao e, de fato, muito estreita,determinado projeto de pesquisa, mas a obra de urn autor que pois nao se limitara a considerar apenas de que maneiras 0

tentou combmar 0 material empirico com uma explica<;ao te6- estudo empirico pode ser elucidado atraves dos conceltos de-nca do carater contradit6rio dos "Estados capitalistas". 0 outro senvolvidos nas partes precedentes deste livro. Toda a pesqmsarefere-se a urn trabalho especifico de pesquisa _ uma tentativa e conduzida em rela<;ao a objetivos explanat6rios explicitos oud: analise das origens da linba divis6ria entre "a City" e a "in- implicitos, e tern conseqiiencias praticas potenciais tanto paradustna", a qual tern sido urna caracteristica notavel da socieda- aqueles cujas atividades sao investigadas quanta para outros. Ade brit'nica durante uns dois seculos ou mais. elucida<;ao do carater desses objetivos e conseqiiencias nao e_ Usarei cada trabalho de pesquisa para ilustrar certas ques- facil, e requer a solu<;ao de alguns dos problemas criados con;

toes conceptuals parcialmente distintas. Para come<;ar, exami- 0 abandono de urn modelo diretamente baseado no recurso anarel 0 que considero ser, sob muitos aspectos, urn relat6rio forma 16gica da ciencia natural. Ao examinar esses problemas,exemplar de pesquisa, e apresentarei em detalhe muitas das esfor<;ar-me-ei por limitar tanto quanta possivel quaisquerp;incipais enfases empiricas que se relacionam com os princi- incurs6es no terreno da epistemologia. Meu prop6sito e anali-plOS baslcos da teoria da estrutura<;ao. Depois, concentrar-me- sar 0 que decorre da pretensao basica subjacente em toda a pes-ei em tres problemas especificos. Como deveremos analisar quisa social: a de que 0 pesquisador comunica novos conbeci-empiricamente a coer<;ao estrutural? Como poderemos dar mentos previamente inexistentes ou inacessiveis (em qualquersUbsta~cia empirica ano<;ao de contradi<;ao? E que tipo de pes- sentido) aos membros de uma comunidade social ou sociedade.qmsa e apropnado ao estudo da longue duree da mudan<;a ins-titucional?

Duas importantes restri<;6es devem ser feitas antes de pas­sarmos ao conteudo principal da discussao. Ao especificar al­gurn~s das ~iga<;6es entre a teoria da estrutura<;ao e a pesquisaempmca, nao me preocuparei com urna avalia<;ao das virtudese inconvenientes de diferentes tipos de metodo ou tecnica depesquisa, ou seja, nao procurarei analisar se a pesquisa etno­grafica e ou nao superior ao usc, digamos, de questionarios.Oferecerei, entretanto, alguns comentanos sobre a rela<;ao entreas chamadas pesquisa "qualitativa" e pesquisa "quantitativa".

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da em que se trata de uma diferenya de enfase, nao existe urnalinha divisoria nitida que possa ser trayada entre esses dois ti­pOS, e carla urn deles, crucialmente, tern de ser, em principia,completado por urna concentrayao na dualidade da estrutura. Aanalise da conduta estrategica significa dar primazia as cons­ciencias discursiva e pratica, e as estrategias de controle dentrode limites contextuais definidos. As propriedades instituciona­lizadas dos cenarios de interayao sao metodologicamente su­postas como "dadas". Temos de ter muito cuidado com isso, eclaro, pois tratar as propriedades estruturais como metodologi­camente "dadas" nao e afirmar que elas nao sao produzidas ereproduzidas atraves da agencia humana. Econcentrar a anali­se nas atividades contextualmente situadas de grupos definidosde atores. Sugerirei os seguintes principios como importantesna analise da conduta estrategica: a necessidade de evitar des­criyoes empobrecidas da cognoscitividade dos agentes; umadescriyao refinada da motivayao; e uma interpretayao da diale­tica do controle.

. I .A CONSTITU1I;AO DA SOCIEDADE , A TEORIA DA ESTRUTURAI;AO

INTEGRAC;:.i\O DE SISTEMA

341

Considere-se a pesquisa descrita por Paul Willis em seulivro Learning to Labour'. 0 autor interessou-se em estudar urngrupo de crianyas da classe trabalhadora numa escola localiza­da numa area pobre de Birmingham. Embora 0 grupo estudadofosse muito pequeno, a pesquisa de Willis e convincente emseus detalhes e sugestiva ao aduzir implicayoes que vao muitoalem do contexto em que 0 estudo foi realmente executado.Como tratarei de mostrar, harmoniza-se estreitamente com asprincipais implicayoes empiricas da teoria da estruturayao. 0que confere essas qualidades a pesquisa? Numa parte conside­ravel, pelo menos, a resposta esta em que Willis trata os rapa­zes envolvidos na pesquisa como atores que conhecem muito,discursiva e tacitamente, a respeito do ambiente escolar de quefazem parte, e em que ele mostra precisamente como suas ati­tudes rebeldes em relayao ao sistema de autoridade da escolatern certas conseqiiencias definidas e impremeditadas que afe­tam seus destinos. Ao deixarem a escola, eles vao ocupar em­pregos nao-qualificados e desestimulantes, facilitando assim areproduyao de algumas caracteristicas gerais da mao-de-obracapitalista industrial. A coeryao, por outras palavras, opera com­provadamente atraves do envolvimento ativo dos agentes inte­ressados, nao como alguma forya de que eles sao os recipientes

passivos.Consideremos, em primeiro lugar, a consciencia discursiva

e pratica, tal como erefletida no estudo de Willis. 0 autor deixaclaro que "os garotos" podem dizer muito acerca de suas opi­nioes sobre as relayoes de autoridade na escola e sobre por quereagem a ela do modo como reagem. Entretanto, essas capaci­dades discursivas nao assurnem apenas a forma de declarayoesproporcionais; 0 "discurso" tern de ser interpretado para incluirmodos de expressao que, com freqiiencia, sao tratados como de­sinteressantes na pesquisa socioI6gica - como 0 humor, 0 sar­casmo e a ironia. Quando urn dos "garotos" diz dos professores:"Eles sao maiores do que nos, eles representam urna instituiyaomaior do que nos..."3, esta expressando uma creuc;a proposicio­nal de urn genero conhecido por meio das respostas a perguntasapresentadas pelos pesquisadores em entrevistas. Mas Willis mos-

consciencia discursivaconsciencia praticainconsciente

Figura 13

l' analiseI institucional

dualidadeda estrutura

momento hermeneutico

monitora98.0 reflexiva da ayao ]

racionaJizayao da 898,0

motiva9ao

340

I amalise det conduta estrategica

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No nivel das consciencias discursiva e pr<itica, poderia pa­recer que as crian,as conforroistas - aquelas que mais ou menosaceitam a autoridade dos professores e suas metas educacio­nais, em vez de se rebelarem contra elas - seriam as que pos­suem mais conhecimentos acerca do sistema social vigente naescola. Entretanto, Willis demonstra que, em ambos os niveisde consciencia - a discursiva e a pr<itica - "os garotos" sabem

tra que 0 humor, a tro,a, 0 sarcasmo agressivo - elementos quesao a moeda corrente discursiva dos "garotos" - constituem ca­racteristicas fundamentais da "penetra,ao" sagaz, por partedeles, do sistema escolar. A cultura zombeteira dos "garotos"exibe urna compreensao muito completa da base da autoridadedo professor e, ao mesmo tempo, questiona diretamente essaautoridade ao subverter a linguagem em que ela normalmentese expressa. Como sublinha Willis, as varias modalidades dezombaria e irreverencia sao dificeis de gravar em fila e, sobre­tudo, de representar em letra de fOrma nos relat6rios de pesqui­sas. Mas essas, e outras forroas discursivas que raramente figu­ram em tais relat6rios, podem mostrar tanto sobre os modos deenfrentar ambientes sociais opressivos quanto os comentariosou respostas mais diretos. Nas palavras do autor:

o espac;o conquistado da escola e de suas regras pela gropoinformal eusado para a fonnac;ao e desenvolvimento de certashabilidades culturais dedicadas principalmente a "tirar urn sar­ro", 0 "sarro" eurn irnplemento rnultifacetado de extraordimiriaimportancia na cultura contra-escola [...Ja habilidade para pro­duzi-Io euma das caracteristicas que definern 0 garoto como urndos "garates" - "Nos podemos tirar sarro deles, eles nao podem·tirar sarro de nos." Mas tambem eusado em muitos Dutros con­textos: para derrotar 0 tedia e 0 merlo, para superar as provaC;oese os problemas - uma saida para quase tudo. Em muitos aspectos,o sarro e0 instrumento privilegiado do infonnal, assim como aordem, 0 mando, e do fonnal [... ] 0 sarro e parte de uma irreve­rente e devastadora rna conduta. A semelhanr;a de urn exercitode ocupar;ao da dimensao infonnal, invisivel, "os garotos" der­ramam-se pelos campos em busca de incidentes para se divertir,subverter e incitar. 4

343

mais do que os conformislas. Porque contestam ativamente asrela,aes de autoridade da escola, sao peritos em captar onde es­tao as bases das pretensaes de autoridade dos professores eonde atacar seus pontos fracos, como controladores da discipli­na e como personalidades individuais. A oposi,ao expressa-secomo uma continua e irritante resistencia contra 0 que os pro­fessores esperam e solicitam, a qual cessa geralmente a urn passodo confronto direto. Assim, espera-se que, na sala de aula, ascrian,as se sentem quietinhas em seus lugares, fiquem caladase se dediquem a seu trabalho. Mas "os garotos" sao todos mo­vimento e agita,ao, exceto quando 0 olhar severo do professorimobiliza urn deles transitoriamente; ficam tagarelando sub­repticiamente ou fazem comentarios que estao Ii beira da insu­bordina,ao direta, mas podem ser explicados satisfatoriamentese seus autores forem interpelados; eles esmo sempre fazendoalgurna outra coisa que nao 0 trabalho que lhes e pedido, mastem urna justifica,ao espuria na ponta da lingua quando saoquestionados. Eles inventaram "experimentos com confian,a"sem, ao que parece, terem lido Garfinkel: "Vamos manda-Ioplantar batalas quando entrar", "Vamos rir de tudo 0 que eledisser", "Vamos fingir que nao podemos entender 0 que ele diz einterrompe-lo 0 tempo todo com '0 que eque isso quer dizer?''''.

Como avaliar 0 conteUdo motivacional das atividades opo­sitoras dos "garotos"? [sso depende, em certa medida, de mate­rial que Willis nao se dispas a explorar diretamente. Mas eclaro que considerar "os garotos" agentes sagazes sugere umaexplica,ao para a motiva,ao deles diferente da implicita naopiniao "oficial", que os ve como "bademeiros" e "provocado­res" incapazes de apreciar a importiincia das oportunidadeseducacionais oferecidas pela escola - a contrapartida do socio­logues da "socializa,ao imperfeita". Os motivos que instigamsuas atividades e estao subjacen\es em suas razaes para faze­rem 0 que fazem nao podem ser explicados como resultado deuma compreensao deficiente do sistema escolar ou de suasrela,aes com outros aspectos dos milieux que sao 0 pano defundo de suas vidas. Pelo contrario, ejustamente por conhece­rem muita coisa a respeito da escola e dos outros contextos em

A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO

II,

A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE342

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que se movimentam que eles agem de tal maneira. Esse conhe­cimento pode ser usado primordialmente em suas atividadespraticas ou nurn discurso altamente contextualizado, emborano estudo de Willis "os garotos" se destaquem como muitomais articulados do que outros na escola provavelmente reco­nheceriam. Entretanto, os limites daquilo que sabem a respeitodas circunstiincias em que vivem sao bastante restritos. Elespercebem, certamente, que suas oportunidades de obter outracoisa a nao ser empregos inferiores e nada estimulantes saoescassas, e essa percep,ao influencia suas atitudes de rebeldiaem rela,ao it escola. Mas tern, na melhor das hipoteses, urnaconsciencia imprecisa de aspectos da sociedade mais vasta queinfluenciam os contextos de sua propria atividade. Poderia serplausivel inferir urn padrao motivacional geral subjacente - tal­vez em parte inconsciente - de urna tentativa de estabelecermodos de conduta que injetem algurn tipo de significado e decor num conjunto triste e descolorido de perspectivas de vidaque sao, mesma difusamente, precisamente vistas como tal.Nao podemos entender satisfatoriamente a motiva,ao dos "ga­rotos", se nao virmos que eles apreendem, embora de modoparcial e contextualmente confinado, a natureza de sua posi,aona sociedade6

.

Willis descreve de maneira muito arguta a dialetica de con­trole no ambito do cemirio escolar. Mas "os garotos" e seusprofessores sao especialistas na teoria e pnitica da autoridade,e seus respectivos pontos de vista quanto a suas necessidades eobjetivos formais sao profundamente opostos. as professoresreconhecem que necessitam do apoio das crian,as conformis­tas para fazer com que as san,oes a seu alcance tenham valida­de, e esse poder nao pode ser efetivamente exercido se as san­,oes punitivas tiverem de ser aplicadas com frequencia. a sub­diretor revela-se urn Mbil teorico parsoniano do poder quandocomenta que 0 funcionamento de uma escola depende princi­palmente da existencia de urn certo consenso moral, 0 qual naopode ser implantado it for,a nas crian,as. As san,oes punitivasso devem ser usadas como urn ultimo recurso, porque consti­tuem urn sinal do fracasso do controle efetivo e nao a base parao mesmo: "Voce nao pode ir decretando suspensoes a torto e a

345344 A CONSTITUl(:A-O DA SOCIEDADE

!

A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO

direito 0 tempo todo. A semelhan,a dos juizes de futebol nosdias de hoje, quero dizer que eles estao fracassando porque saorapidamente levados ao ultimo recurso [...] 0 cartao amarelo etirado do bolso do juiz it primeira infra,ao e, urna vez feito isso,ele tern de por 0 jogador para fora do campo ou ignorar tudo 0

mais que ele venha a fazer no jogo"'. as professores sabemdisso, e "os garotos" sabem que eles sabem. Por conseguinte,"os garotos" sao capazes de explorar a situa,ao em sua propriavantagem. Ao subverterem os mecanismos do poder discipli­nar na sala de aula, eles afirmam sua autonomia de a,ao. Alemdisso, 0 fato de que a escola e urn lugar onde passam apenasuma parte do dia e urna parte do ano e vital para a "contracultu­ra" que eles iniciaram. Pois e fora da escola, longe dos olharesdos professores, que podem ser livremente empreendidas a,oesque seriam anatema no cenario escolar.

Conseqiiencias impremeditadas: contra 0 funcionalismo

A pesquisa de Willis nao constitui apenas urn soberbo es­tudo emognifico de urn gropo informal dentro de urna escola; etambem urna tentativa de indicar como as atividades dos "garo­tos", dentro de urn contexto restrito, contribuem para a repro­du,ao de formas institucionais mais vastas. a estudo de Willise incomurn, comparado com urna boa parte da pesquisa social,porque ele sublinha que as "for,as sociais" operam atraves dasrazoes dos agentes e porque seu exame da reprodu,ao socialnao recorre a conceitos funcionalistas. Sua interpreta,ao da co­nexao entre a "contracultura" da escola e os mais amplos pa­droes institucionais, expressos concisamente, efonnulada nosseguintes termos. as modos antagonicos de comportamento dos"garotos" na escola levam-nos a querer deixar a escola paracome,ar a trabalhar. Querem a independencia financeira que 0

trabalho proporcionani; ao mesma tempo, entretanto, nao ternquaisquer expectativas especiais a respeito de outros tipos derecompensa que 0 trabalho poderia oferecer. A cultura agressi­va e trocista que eles desenvolveram no milieu escolar asseme­lha-se muito, na realidade, it cultura da flibrica nas situa,oes de

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trabalho para onde eles tendem a encaminhar-se ao abandonara escola. Por conseguinte, eles acham relativamente facil seuajustamento ao trabalho e estao aptos a tolerar as exigencias deurn labor mon6tono e repetitivo em circunstiincias que eles re­conhecem ser desagradaveis, quando nao inconciliaveis. Aconseqiiencia impremeditada e ironica da "parcial penetra,ao"deles nas limitadas oportunidades de vida que lhes sao acessi­veis e perpetuar ativamente as condi,6es que ajudam a limitarestas ultimas. De fato, por terem deixado a escola sem qualifi­ca,6es e ingressado num mundo de trabalho manual de baixonivel, urn trabalho que nao oferece perspectivas de carreira ecom 0 qual estao intrinsecamente descontentes, eles estao efe­tivamente encalhados ai para 0 resto de suas vidas ativas. "0garoto da classe trabalhadora e passivel de sentir que ja e tardedemais quando descobre a natureza trai,oeira de sua anteriorconfian,a. A celebra,ao cultural durou, poderia parecer, ape­nas 0 tempo bastante para despacha-Io atraves das portas fe­chadas da fabrica"" - ou, mais freqiientemente, hoje em dia,para urna vida de desemprego ou subemprego cronico.

Ora, tudo isso poderia ter sido enunciado nurn modo fun­cionalista e "explicado" em termos funcionais. Assim, poder­se-ia argurnentar que 0 capitalismo industrial "necessita" degrandes contingentes de pessoas para executar 0 trabalho ma­nual desestimulante ou para fazer parte de urn exercito indus­trial de reserva de desempregados. Portanto, a existencia dessaspessoas e"explicada" como uma resposta a essas necessidades,criadas, de qualquer modo, pelo capitalismo - talvez como re­sultado de algumas "for,as sociais" nao especificadas que taisnecessidades desencadeiam. as dois tipos de explica,ao podemser contrastados da seguinte maneira:

necessidade funcional

A CONSTITUl9/io DA SOCIEDADE 347

No tipo I, 0 genero de perspectiva desenvolvida por Willis,urn dado conjunto de atividades sociais (0 comportamento an­tagonico dos "garotos") e interpretado como a,ao intencional.Por outras palavras, e mostrado que essas atividades sao leva­das a efeito de modo intencional, por certas raz6es, dentro decondi,6es de cognoscitividade limitada. A especifica,ao des­ses limites permite ao analista mostrar como as conseqiienciasimpremeditadas das atividades em questao derivam do que osagentes fizeram intencionalmente. A interpreta,ao envolve umaatribui,ao de racionalidade e de motiva,ao aos agentes envol­vidos. as atores sociais tern raz6es para 0 que fazem, e 0 quefazem tern certas conseqiiencias especificaveis que eles nao pre­meditam. No tipo 2, sao quase inexistentes as tentativas de de­talhamento da intencionalidade da conduta dos agentes. Sup6e-seprovavelmente que a conduta e intencional de algurn modo,que ela tern, na terminologia de Merton, fun,6es manifestas.Mas em interpreta,6es funcionalistas isso geralmente nao econsiderado especialmente interessante, dado que a aten,ao estaconcentrada na atribui,ao de racionalidade a urn sistema social,nao a individuos. Presume-se que a intensifica,ao de urna ne­cessidade funcional do sistema tern valor explicativo, suscitan­do conseqiiencias que, de certo modo, satisfazem essa necessi­dade. A interpreta,ao funcional de Merton do ritual Hopi dachuva (ver pp. 14-15) ajusta-se exatamente a esse esquema. Ascaracteristicas intencionais da participa,ao Hopi no ritual saodescritas sumariamente - a "finalidade" etrazer chuva, e isso eo que ele nao faz. Aprimeira vista, portanto, a participa,ao nocerimonial e urna atividade irracional. Contudo, podemos identi­ficar urna necessidade funcional il qual 0 cerimonial corresponde,gerando uma conseqiiencia positivamente funcional. As socie­dades pequenas necessitam de urn sistema unitario de valoresque as mantenha coesas; a participa,ao no ritual da chuva re­fon;a tal sistema de valores ao reunir regularmente a comuni­dade em circunstiincias nas quais a adesao aos valores do grupopode ser publicamente afirmada.

Indiquei anteriormente por que 0 tipo 2 nao e 0 de explica­,ao adequada para as atividades em questao. Entretanto, Cohen

A TEORIA DA ESTRUTURA9/iO

I

conseqOenciafuncional

"//

(2) atividadessociais

"""':.::l.

346

(1) atividades conseqOelnciassociais impremeditadas

"""".:>1 /F//~;;J

8gaO intencional

Page 197: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

sugeriu recentemente um modo engenhoso mediante 0 qualessa interpreta9ao poderia ser resgatada9

• Para tanto, postulou 0

que ele chama de as "leis da conseqiiencia". A interpreta9ao 2nao euma explica9ao, porque nao fornece urn mecanismo li­gando 0 pressuposto de uma necessidade funcional as conse­qiiencias que se presumem resultarem dai para 0 sistema socialmais amplo em que estao envolvidas as atividades a serem ex­plicadas. Ao postular as "leis da conseqiiencia", estabelecemosgeneraliza90es para 0 efeito de que, toda vez que um dado itemsocial seja funcional para um outro, 0 primeiro item social temsua existencia corroborada. A assun9ao de uma instancia parti­cular de atividade social sob uma lei da conseqiiencia pode serconsiderada uma explica9ao funcionalista "nao-elaborada". Masas explica90es funcionalistas nao-elaboradas nao sao absoluta­mente explica90es e, alem disso, tem a perigosa propriedadecolateral de sugerir que existe um grau de coesao mais elevadodo que pode ser de fato 0 caso nos sistemas sociais a que se re­ferem. Dizer que 0 tipo 2 "nao e elaborado" e admitir ignoran­cia das conexoes causais que ligam 0 item social ou as ativi­dades em questao as suas conseqiiencias funcionais. 0 que se­riam essas conexoes, se descobertas? Elas seriam precisamentedo genero dado no tipo I - uma especifica9ao de a9ao ou tiposde intencional com resultados (ou tipos de) impremeditados.Por outras palavras, 0 elemento 2 s6 e viavel quando convertidono 1. Mas no 1einteiramente desnecessario usar 0 termo "fun­9ao". Esse termo "fun9ao" subentende alguma especie de qua­lidade teol6gica que os sistemas sociais possuiriam; sustenta-sea existencia de itens ou atividades sociais porque eles satisfa­zem necessidades funcionais. Mas, se 0 fato de terem resulta­dos funcionais nao explica a razao de suas existencias - s6 umainterpreta9ao de atividade intencional e conseqiiencias impre­meditadas 0 faz -, as atividades podem ficar mais facilmenteseparadas daqueles resultados do que as "leis de conseqiiencia"sugeririam. A conduta dos "garotos" leva a conseqiiencias fun­cionais para a reprodu9ao do trabalho assalariado capitalista,como resultado de sua "penetra9ao parcial" de suas circunstan­das de vidas. Mas essa "penetrac;ao muito parcial" l como Willisargumenta, pode ser potencialmente radicalizante para os indivi-

duos envolvidos, caso em que podera redundar em conseqiien­cias mais desintegradoras do que coesivas para 0 sistema socialmais amplo.

A obra de autores funcionalistas foi muito importante napesquisa social precisamente porque dirigiu a aten9ao para asdisparidades entre 0 que os atores pretendem fazer e as conse­qiiencias do que eles fazem. Mas podemos identificar, e tentarresolver, as quest5es envolvidas de modo menos ambiguo dis­pensando por completo a terminologia funcionalista. Ha tres ti­pos de circunstancias em que a linguagem funcionalista e co­mumente usada. Todos sao importantes em analise social, maspodem facilmente expressar-se em termos nao-funcionalistas.

Suponhamos uma descri9ao das descobertas de Willis nummodo funcionalista, da seguinte maneira: "A educa9ao, numasociedade capitalista, tem a fun9ao de alocar individuos paraposi90es na divisao ocupacional do trabalho." Em primeiro lu­gar, tal declara9ao e aceitavel se entendida como uma contrafa­tual implicita lO• Muitas asser90es funcionalistas, ou pretensas"explica90es", podem ser lidas desse modo. De fato, elas esta­belecem uma rela9ao que pede uma explica9ao, em vez de ex­plica-Ia. Podemos expressar a declara9ao de maneira diferente,sem usar "fun9ao", nos seguintes termos: "Para que a divisaoprofissional de trabalho seja mantida, 0 sistema educacional temde assegurar que os individuos sejam alocados diferencialmen­te em posi90es ocupacionais." A for9a de "tem de" e aqui con­trafatual; envolve a identifica9ao de condi90es que devem sersatisfeitas para que certas conseqiiencias ocorram. Estabeleceum programa de pesquisa, e, entendida como formulando umapergunta em vez de respondendo a uma, e inteiramente legiti­mao Mas 0 uso do termo "fun9aO" pode ser enganador porquesugere que 0 "tem de" refere-se a alguma especie de necessida­de que e uma propriedade do sistema social, gerando de algummodo for9as que produzem uma resposta (funcional) apropria­da. Poderiamos supor que resolvemos um problema de pesqui­sa quando tudo 0 que se fez realmente foi estabelecer um pro­blema a requerer pesquisa. Em segundo lugar, a declara9ao po­de ser interpretada como referente a um processo de feedback

348 A CONSTITUII:;AO DA SOClEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAr;AO 349

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que depende totalmente de conseqiiencias impremeditadas. Con­forme ji indicamos, dizer que a "educa,ao [...] tern a fun,ao dealocar individuos [...]" encobre as diferen,as entre aspectos pre­meditados e impremeditados da reprodu,ao social. Portanto,nao esta claro em tais declara,oes ate que ponto os processosem questao sao 0 resultado de "Ia,os causais" e em que medidaestao incorporados em processos do que chamei anteriormentede auto-regula,ao reflexiva. As necessidades sociais existemcomo fatores causais implicados na reprodu,ao social somentequando sao reconhecidas como tais por aqueles que sao envol­vidos em determinado momento, e influenciados por elas. 0sistema educacional em que "os garotos" estao envolvidos foisupostamente estabelecido a fim de promover a igualdade deoportunidades. Seus resultados substantivos, com rela,ao ilperpetua,ao da imobilidade, contrapoem-se a isso, mas eles naoforam planejados nesse sentido pelo ministerio da Educa,aoou qualquer outro argao diretivo do Estado. Se fossem ~ se aeduca,ao fosse deliberadamente organizada por poderosas en­tidades decisarias, a fim de perpetuar 0 sistema de classes -, 0

processo envolvido seria substancialmente diferente. Eclaro,tudo isso constitui uma materia complexa. Todos os sistemaseducacionais modemos envoIvern tentativas de regula,ao re­flexiva, as quais acarretam freqiientemente conseqiiencias querepercutem naqueles que iniciam politicas educacionais. Masdeixar essas complexidades por estudar e nao apreender as con­di,oes reais de reprodu,ao. 0 resultado pode ser alguma formade objetivismo - 0 que quer que aconte,a, e como resultado defor,as sociais tao inevitaveis quanta as leis da natureza. Al­temativamente, porem, poderia haver uma tendencia a aceitaruma especie de teoria da conspira,ao. 0 que quer que aconte,a,e porque alguem 0 planejou. Se a primeira altemativa, a con­cep9ao caracteristica do funcionalismo, esta associada anao­atribui,ao de suficiente importilncia il a,ao intencional, a se­gunda deriva do fato de nao se perceber que as conseqiienciasde atividades escapam cronicamente a seus iniciadores.

formas de totalidade social

distanciamento tempo-espayo

351

A dualidade da estrutura

rotinizay80 ----;:;.. propagaCao temporal alem dos contextosimediatos de interacao

interse~6es de regi6es ----:;;.. propaga~a.o espacial alem doscon1extos imediatos de interacao

A TEORIA DA ESTRUTURA<;A"O

Parto do principio de que ficou claro, a partir de minhasconsiderac;oes anteriores no presente livro, que 0 conceito dedualidade da estrutura, fundamental para a teoria da estrutura­,ao, esta subentendido nos sentidos ramificados que os termos"condi,oes" e "conseqiiencias" da a,ao tern. Toda intera,ao so­cial se expressa, em algum ponto, nas (e atraves das) contextuali­dades da presen,a corporal. Ao passar da anaIise da condutaestrategica para um reconhecimento da dualidade da estrutura,temos de come,ar "avan,ando cautelosamente de dentro parafora" no tempo e no espa,o. Isto e, precisamos tentar ver comoas praticas seguidas numa dada gama de contextos est1io implan­tadas em mais amplas esferas de tempo e de espa,o - em suma,temos de tentar descobrir suas rela,oes com praticas institucio­nalizadas. Continuando com a ilustra,ao extraida da obra Willis,ate onde "os garotos", ao desenvolverem uma cultura de oposi­,ao dentro da escola, se apaiam em regras e recursos mais larga­mente envolvidos do que nos contextos imediatos de sua a,ao?

Podemos especificar analiticamente 0 que esta envolvidoem fazer passagem conceptual da analise da conduta estrategi­ca para 0 exame da dualidade de estrutura conforme 0 esquemaabaixo (a analise institucional come,aria na outra extremidade,como a seta ascendente indica):

Transferir a analise das atividades situadas de atores estra­tegicamente localizados significa estudar, primeiro, as conexoesentre a regionaliza,ao de seus contextos de a,ao e forma maisamplas de regionaliza,ao; segundo, a incrusta,ao de suas ativi­dades no tempo ~ em que medida elas reproduzem praticas, ou

A CONSTITUI<;A"O DA SOCIEDADE350

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aspectos de pniticas, que estao estabelecidas desde longa data;terceiro, os modos de distanciamento tempo-espa90 que ligamas atividades e rela90es em questao a caracteristicas das socie­dades globais ou sistemas intersociais.

Willis fomece urna analise muito perspicaz de alguns des­ses fenomenos, embora sua terminologia seja diferente. A hie­rarquia formal da escola, e claro, incorpora modos de condutae expectativas normativas amplamente disseminados por dife­rentes setores da sociedade, embora fortemente influenciados pordivisoes de classes. A escola, como urn local, esta fisicamenteseparada do local de trabalho e temporalmente separada daexperiencia de trabalho no tempo de vida das crian9as. Emboraa escola e 0 local de trabalho compartilhem de padroes globaisde poder disciplinar nao sao meramente aspectos de uma Unicaforma institucional. Como sublinha Willis, a disciplina da esco­la possui urn tom fortemente moralizado, 0 qual esta faltandono local de trabalho. A disciplina escolar consubstancia urn "pa­radigma educacional abstrato, mantendo e reproduzindo 0 queele toma possivel"". 0 carater moral desse eixo de autoridade,ou as pretensoes normativas nas quais ele esta focalizado,influencia a natureza da subcultura rebelde. Em seu manifestodesprezQ pelas minucias das rotinas escalares, "as garotos"fazem mais do que se desviarem, do ponto de vista do compor­tamento, daquilo que se espera deles; eles mostrarn sua rejei9aoas prerrogativas morais em que a autoridade dos professoressupostamente se assenta. Os recursos ao alcance do pessoal do­cente quando procuram afirmar sua autoridade, entretanto, en­volvem ao mesmo tempo mais do que essas reivindica90es delegitima9ao. 0 pessoal docente sao "centros de recursos" paraa distribui9ao de conhecimentos, reconhecidos como mercado­ria escassa pelas crianc;as confonnistas, senao pelos "garotos",e e ele quem tern 0 controle mais direto sobre a regulariza9aodo tempo e 0 espa9amento de atividades que compoem a orga­niza9ao das aulas e dos horarios escolares como urn todo. Eclaro, em tudo isso 0 pessoal docente apoia-se indiretamente nasformas firmemente estabelecidas de sustenta9ao institucionalda sociedade mais vasta12.

Por sua parte, as atitudes e a conduta dos "garotos" nao sao,por certo, totalmente inventadas de novo por eles; na verdade,eles apoiam-se nurn fundo de experiencias estabelecido em suasvidas fora da escola e desenvolvido historicamente no seio dascomunidades da classe trabalhadora em geral. As crian9as quese afastam das normas e do comportamento esperado do am­biente escolar sao capazes de usar esse fundo de experiencia.Ao transformar elementos dele e ao faze-los influir no milieuescolar, ajudam a reproduzir essas mesmas caracteristicas nocontexto mais amplo, embora 0 usem de modo inovador, naode maneira mecilnica. 0 bairro e a rua fomecem as formas sim­b6licas de cultura jovem que saO tambem, mais diretamente, afonte de temas articulados na cultura contra-escolar. Willis tam­bern menciona a importiincia de historias relatadas por adultosacerca da vida na fabric a, sobretudo as referentes as atitudesem face da autoridade. Os pais ajudam a transmitir a cultura daclasse trabalhadora a seus filhos, mas, obviamente, nem todoseles se comportam de maneira identica ou compartilham dasmesmas opinioes. Alem disso, existe urn consideravel grau deajustamento independente de perspectivas entre pais e filhos.Alguns pais expressam atitudes muito semelhantes as dos "ga­rotos", enquanto Dutros reprovam com veemencia 0 comporta­mento deles. Ainda outros, que desconfiam dos valores da es­cola ou lhes sao hostis, tern filhos rigorosamente ajustados aospadroes esperados de conduta escolar. 0 interciimbio entre asatividades dos "garotos" e as influencias da sociedade mals vasta,por outras palavras, e "produzido" por todos os envolvidos.

Como fenomeno social reflexivamente monitorado, 0 sis­tema escolar nacional faz uso da pesquisa sociologica e da psi­cologia. Ambas se infiltraram na organiza9ao pratica dessa es­cola (sem duvida, os professores estiio hoje inteiramente fami­liarizados com 0 proprio estudo de Willis). Houve urn movi­mento no sentido de uma perspectiva algo mais "progressista"no tocante a organiza9ao do curriculo e a orienta9ao do ensinona sala de aula. Urn dos principais contextos em que "os garo­tos" entram em contato direto com a pesquisa academica deri­vada da sociedade mais vasta e em rela9ao a orienta9ao voca-

352 A CONSTITUIi;AO DA SOCIEDADE A TEORJA DA ESTRUTURAi;AO 353

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Ao suscitar a questao da for,a de trabalho, fomece-se urnaconexao com as rela,oes de transforma,ao/media,ao que exa­minei ilustrativamente no capitulo V. Nao voltarei a cobrir denovo esse terreno, mas indicarei simplesmente como as rela­,oes estruturais envolvidas podem ser elaboradas analitica-

Os processos infonnais e fonnais da escola sao obviamen­te vitais na preparar;ao da fon;:a de trabalho de urn certo modo,mas 0 lar, a familia, 0 bairro, os meios de comunicac;ao de massae a experiencia da classe trabalhadora nao-produtiva em geralsao igualmente vitais para sua reprodti';:ao continua e aplicayaodiana ao processo de trabalho. Num sentido inverso, e impor­tante avaliar 0 grau em que a fibrica; em suas dimensoes objeti­vas e na cultura de oposir;ao que desenvolve, reage aos locaisnao-produtivos da reproduc;ao da forc;a de trabalho e os influen­cia em certo sentido, de modo que, como vimos na cultura dacontra-escola, poderi haver um circulo invisivel e freqiiente­mente impremeditado de significado e direc;ao que atua, em ulti­ma instancia, para preservar e manter uma configurac;ao - tal­vez, uma vez mais, desviando-se profundamente das intenc;oes dapolitica oficial. 13

355A TEORIA DA ESTRUTURA<;AO

"desanimador" - tiio desalentador quanta 0 presente -, desprovi­do de qualquer das qualidades progressistas associadas a no,aoessencialmente classe media de urna carreira. Nao estiio interes­sados em escollier determinados empregos, e deixam-se maislevar para 0 que estiio fazendo do que consideram deliberada­mente urn leque de alternativas e depois optam por urna dentreelas. "as garotos", como Willis deixou claro, entregam-se a urnavida de trabalho generalizado. Nao tern em mente qualquer no,aode "trabalho generalizado". Motivados pelo desejo de obter osmelhores salmos que puderem imediatamente e pelo pressupos­to de que 0 trabalho e essencialmente desagradavel, e na condutaque eles refletem esse compromisso, essa entrega ao trabalho.

Encarado, portanto, num quadro de referencia tempo­espa,o mais amplo, ha urn processo de regenera,ao da culturada classe trabalhadora que ajuda a dar origem as (e concretiza­se atraves das) atividades situadas de grupos como "os garo­tos". Comenta Willis:

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A CONSTITUJ(;AO DA SOClEDADE

cional, que hoje constitui urn requisito legal a ser cumprido portodas as escolas. A orienta,ao de carreira e influenciada, sobre­tudo, pela teoria psicologica e pelos testes psicologicos, e e le­vada muito a serio dentro da escola. Como mostra Willis, ape­sar de urna certa aura igualitma, a orienta,ao vocacional refletefortemente os valores e_aspira,oes da classe media. Centradosno "trabalho", os pontos de vista promulgados tendem a con­trastar vigorosamente com as atitudes e ideias sobre trabalhoque - em sua concep,ao propria - "os garotos" captaram dospais e de outros no bairro e na comunidade. Zombam ou mos­tram-se indiferentes ao material fomecido nas aulas sobre car­reiras profissionais. Mas essa rea,ao nao e simplesmente nega­tiva. Eles acham que possuem uma percep,ao intuitiva do ver­dadeiro carater do trabalho que e negada as crian,as confor­mistas - e talvez possuam. As conformistas tern de fazer as coi­sas Com esfor,o, mediante a aquisi,ao de qualifica,oes, porquenao tern esperteza para fazer melhor. A sobrevivencia no mun­do do trabalho exige energia, determina,ao e percep,ao dasmelhores oportunidades.

Nao e dificil perceber como essas ideias, captadas e elabo­radas nos ambientes de trabalho da classe operaria estabeleci­da, ajudam a mergulhar "os garotos" nesses mesmos ambientesquando deixam a escola. As fontes de descontinuidade com asnormas "oficiais" da escola oferecern, em certa medida, naooficialmente, continuidade com os contextos de trabalho. Eo acultura da contra-escola que fomece a principal orienta,ao se­guida pelos "garotos" quando vao trabalhar. Com frequencia,nas opinioes dos rapazes e de seus pais, existe urna conexaodireta entre as rela,oes de autoridade na escola e no trabalho,fomecendo vinculos cognitivos e emotivos entre os dois muitodiferentes dos sancionados "oficialmente" por ambos. Podemosver nisso uma base de experiencia temporalmente estabelecidadesde longa data e espacialmente muito vasta, renovada devarias maneiras por carla gera93.o para quem os rnundos sociaisdispares e fisicamente separados da escola e do trabalho estaoligados. As opinioes dos "garotos" em rela,ao a escola orien­tam-nos em rela,ao ao futuro, mas eles veem 0 futuro como

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propriedade privada: dinheiro: capital: contrato de trabalho: autoridade industrial

propriedade privada : dinheiro :vantagem educacional : posj~ao ocupacional

mente em fun,ao das atividades situadas da cultura contra-es­cola. Outros conjuntos estruturados, alem daquele previamentediscutido, envolvidos na reprodu,ao do capitalismo industrialcomo totalidade social, podem ser representados da seguintemaneira 14

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357A TEORIA DA ESTRUTURA<;:AO

lhador livre; e livre sob urn duplo ponto de vista. 0 trabalhadordeve dispor, como pessoa livre, de sua for,a de trabalho comomercadoria sua; por outro lado, deve nao ter outra mercadoriapara vender, estar desprovido e livre em todos os sentidos dapalavra, isto e, nao possuir nada do que e preciso para a realiza­,ao de sua for,a de trabalho"". Ora, 0 "deve" poderia ser inter­pretado como (ou subentender) uma "explica,ao" funcionaldos fen6menos em questiio, como se a asser,ao explicasse porque estes ocorrem. Existem certamente fortes inclina,oes fun­cionalistas na formula,ao de Marx de alguns dos argumentosbasicos em sua descri,ao do desenvolvimento capitalista. Masconcordemos em interpretar 0 "deve" do modo que sugeri serincontestavel, apresentando uma questao a ser respondida. Es­sas quesWes podem ser formuladas em rela,ao nao apenas asorigens mais remotas do capitalismo, mas tambem a sua conti­nuada reprodu,ao como ordem institucional global- nao exis­tern for,as mecanicas que assegurem essa reprodu,ao de diapara dia ou de gera,ao para gera,ao.

o que a pesquisa de Willis ajuda a indicar, nos contextossituados de a,ao dos "garotos", e como as rela,oes estruturaisacima identificadas sao sustentadas nessa a,ao e reproduzidaspor esta. Devido a sua "penetra,ao muito parcial" do sistemaescolar, de sua indiferen,a para com 0 carater de trabalho e, noentanto, de sua disposi,ao para ingressar no mundo do traba­lho, "os garotos" constituem-se como "for,a abstrata de tra­balho". A suposi,ao de que todo trabalho e 0 mesmo confirmaas condi,oes de permutabilidade da for,a de trabalho estrutu­ralmente envolvida no contrato de trabalho capitalista. Existeaqui urna certa qualidade patetica, porquanto, se a descri,ao deWillis e valida, a cultura oposicionista dos "garotos" leva-osefetivamente a integrar suas atividades mais estreitamente, emalguns aspectos, com as institui,oes da ordem a que se opoemdo que os conformistas. Entretanto, na propria complexidadedessa rela,ao podemos ver a importiincia de nao tentar mera­mente "subtrair" a a,ao da estrutura ou vice-versa - por outraspalavras, de resistir ao dualismo de objetivismo e de subjetivismo.As atividades situadas do "garotos", complicadas como sao em

A CONSTITUf(;:AO DA SOClEDADE356

As transforma,oes do lado esquerdo do primeiro conjuntosao as mesmas anteriormente analisadas. Entretanto, a conver­sibilidade das propriedades estruturais para 0 lado direito dependedo modo como 0 contrato de trabalho e "traduzido" em autori­dade industrial. Como Marx mostrou bastante detalhadamente,a forma do contrato de trabalho capitalista 6 muito diferentedos vinculos de vassalagem que existiam entre 0 senhor e 0

servo na ordem feudal. 0 contrato de trabalho capitalista 6 urnarela,ao economica entre empregador e empregado, 0 encontrode dois agentes "formalmente livres" no mercado de trabalho.Um aspecto principal da nova forma de contrato de trabalho 6que 0 empregador nao contrata "0 trabalhador", mas a for,a detrabalho do empregado. A equivalencia da for,a de trabalho eessencial- tal como 6 a fomecida pelo veiculo de troca unitariado dinheiro - para as transforma,oes estruturais envolvidas naexistencia do capitalismo industrial como tipo generico de sis­tema de produ,ao. 0 trabalho abstrato 6 quantificavel em uni­dades equivalentes de tempo, fazendo as tarefas qualitativa­mente diferentes que os individuos executam nos varios ramosde industria intercambiaveis para 0 empregador. 0 contrato detrabalho 6 transformado em autoridade industrial atraves dopoder econ6mico que os empregadores, como classe, podemexercer sobre os trabalhadores, uma vez que a imensa maioriadestes ultimos esta destituida de propriedade.

Segundo Marx, para que essas rela,oes existam, "6 preci­so que 0 possuidor de dinheiro encontre no mercado 0 traba-

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o problema da coer,ao estrutural

Passemos agora il questao da coer,ao estrutural. Nesteponto, despe,o-me dos rapazes da escola de Harnmertown. Naoquero com isso sugerir que a pesquisa etnografica, como a exe­cutada por Willis, e refrataria il aprecia,ao desse problema.Pelo contrario, muito do que Willis disse pode ser entendidoprecisamente como uma investiga,ao sutil e teoricamente refi-

relayao ao entrela9amento de conseqih~ncias intencionais e im­premeditadas, sao apenas uma fra,ao minuscula de um proces­so global e maci,amente complexo de reprodu,ao institucional.Chegaremos il mesma conclusao se considerarmos 0 lado di­reito do outro conjunto estrutural, as caracteristicas institucio­nais contribuindo para a conversibilidade da vantagem educa­cional em posi,oes ocupacionais diferenciadas. Existem algumasrelativamente diretas em que a posse de dinheiro pode ser con­vertida em vantagem educacional, que por sua vez pode ser tra­duzida em posi,ao ocupacional privilegiada. Assim e possivelcomprar educa,ao em estabelecimentos particulares, gerandopossibilidades maiores de obten,ao de recompensas profissio­nais do que as acessiveis aos que freqiientam as institui,oes edu­cacionais estatais. Mas a tradu,ao de uma para a outra envolve,em sua maior parte, circuitos de reproduyao muito mais com­plexos.

A identifica,ao de conjuntos estruturais e urn recurso mui­to util para conceituar algumas das principais caracteristicas deuma dada ordem institucional. Mas, como enfatizei antes, asestruturas referem-se a uma ordem virtual de rela,oes, fora dotempo e do espa,o. As estruturas existem somente em suaexemplifica,ao nas atividades cognosciveis de sujeitos huma­nos situados, os quais as reproduzem como propriedades estru­turais de sistemas sociais incrustados em extensoes de tempo­espa,o. Portanto, 0 exame da dualidade da estrutura envolvesempre estudar 0 que denominei anteriormente as dimensoesou eixos da estrutura,ao.

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nada, bem·como empiricamente rica, sobre a natureza da coer,aoetnogrilfica. Mas tampouco desej 0 afirmar que os estudos etno­grilficos tern qualquer primazia sobre outros tipos de investiga­,ao social e, para fins de analise institucional, estamos comfreqiiencia (embora nao inevitavelmente) interessados em agre­gados muito maiores do que aqueles que podem ser examina­dos, confortavelmente, em termos etnogrilficos. Permitam-me,pois, mudar de pais e de estudos de pesquisa, e usar como basede discussao uma pesquisa realizada sobre oportunidades edu­cacionais no Piemonte, noroeste da Italia". A pesquisa informaos resultados de um questionario e de entrevistas efetuadascom alunos do segundo grau, envolvendo um total de cerca de3 mil individuos. Os entrevistados na maior das duas partes dapesquisa eram todos jovens que tinham come,ado a procurartrabalho havia nao mais de um ano antes de serem contatados.

Assim, a pesquisa aborda temas muito semelhantes aos doestudo de Willis, em especial as atitudes em rela,ao il escola eao trabalho. Tambem exemplifica aspectos da monitora,ao re­flexiva da reprodu,ao do sistema por parte do Estado, tao ca­racteristica das sociedades contempor1ineas. Os entrevistadosestavam todos inscritos em listas organizadas de acordo comuma lei aprovada pelo Parlamento, cujo objetivo era ajudar osegressos da escola a encontrarem emprego. Essa lei ofereciabeneficios aos empregadores que admitissem jovens recem­saidos de escolas, criassem varias formas de treinamentos noemprego etc. 0 proprio programa de pesquisa era parte da ten­tativa das autoridades para influenciar reflexivamente as condi­,oes de reprodu,ao social. Era patrocinado pelo governo italia­no, em parte em resposta ao resultado bastante surpreendenteda politica anterior em rela,ao aos jovens que terminavam suaescolaridade. 0 governo tinha oferecido seiscentos empregosmuito bern pagos ajovens que haviam concluido 0 curso secun­dario e estavam sem trabalho, pelo periodo de um ano. Entre­tanto, um tef90 daqueles a quem os empregos foram oferecidosrecusaram-nos. Essa rea,ao desconcertou os que haviam ini­ciado essa politica, pois acreditavam, segundo parece, que osdesempregados aceitariam qualquer emprego razoavelmente

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bern pago que lhes fosse oferecido. Para investigar 0 assunto,eles financiaram 0 estudo.

Gambetta, 0 autor do relat6rio da pesquisa, analisa seu ma­terial de modo a relaciona-Io nitidamente com questoes decoer9ao estrutural. Diante de varias 0P90es educacionais, inda­ga ele, os individuos sao "impelidos" para elas ou "saltam"sobre elas? Em que sentido, se algum existe, ha for9as seme­Ihantes as descritas pelos "soci610gos estruturais" que impelemos individuos para cursos especificos de a9ao? Em primeirolugar, Gambetta organiza os resultados da pesquisa de modosemelhante ao de urna miriade de outros estudos em que essetipo de ponto de vista foi adotado. Assim, por exemplo, pode­se mostrar que os antecedentes de classe influenciam a naturezada escolha educacional. Vma crian9a da "classe alta" tern qua­tro vezes mais chances de chegar a educa9ao universitaria doque urna crian9a de background "proletario". 0 que e que taisdiferen9as nos dizem? Tal como se apresentam, elas nao indi­cam os mecanismos por meio dos quais sao produzidas as cor­rela90es observadas; e sejam quais forem as influencias res­ponsaveis, elas eslito longe de inequivocas em seus efeitos,pois muitas crian9as da classe alta nao ingressam no ensinosuperior, enquanto urna certa propor9ao de jovens da classe tra­balhadora 0 fazem. Nao obstante, tais observa90es indicamque ha mais 0P90eS educacionais influentes do que fatores quepossam ser efetivamente representados como. urn agregado dedecisoes tomadas separadamente. Analisando dados similaresobtidos nurna serie de estudos realizados, em sua maioria, naAmerica do Norte, Leibowitz demonstra que a variancia "ex­plicada" em anos completados de escolaridade em termos deantecedentes socioeconomicos situa-se entre 10% e 47%".

Claramente, essas conexoes sao apenas difusamente ex­pressas quando apresentadas na forma dessas correla90es gerais.Portanto, Gambetta procura examinar mais de perto as fontes devariiincia interclasses, controlando estatisticamente urn certonUmero de fatores possivelmente influentes. Feito 0 controle dasdiferen9as economioas, conforme indicadas pela renda da fa­milia da crian9a, assim como dos "recursos culturais", medi-

dos pelo nlvel de educa9ao dos pais, os resultados mostram quea profissao do pai - provavelmente 0 indicador empirico maiscomUIll de hist6rico de classe usado na pesquisa - ainda exerceconsideravel efeito sobre 0 destino educacional. Os resultadostambem indicam 0 processo seqiiencial de efeitos que ocorrem.As crian9as da classe trabalhadora sao mais suscetiveis de sereliminadas nurna fase relativamente precoce, em termos deevasao escolar na primeira oportunidade apresentada. Mas aque­las que permanecem tern maiores probabilidades de prosseguirate a universidade do que as de classes superiores que conti­nuam estudando; estas ultimas, por outras palavras, tern maioresprobabilidades de parar urna vez atingidas as fases mais avan9a­das do processo educacional. [sso sugere que as familias declasses superiores tendem, mais ou menos automaticamente, amanter seus filhos nas escolas para alem da idade usual de ter­mino da escolaridade. Por outras palavras, existem influenciasque "empurram" para cima, nao apenas para baixo, obrando con­tra as crian9as da classe trabalhadora. Os pais da classe traba­lhadora nao sao propensos a manter seus filhos em educa9ao amenos que haja algurna razao especial para tanto - uma crian9aexcepcionalmente talentosa, urna particularmente motivada parapermanecer na escola etc.

As crian9as da classe trabalhadora foram empurradas ousaltaram? Foram "retiradas da frente" por terem 0 que Willis cha­ma de uma "penetra9ao parcial" das oportunidades de vida quedeparam? Por urna analise estatistica adicional de seu material,Gambetta pode mostrar que as crian9as da classe trabalhadorasao consideravelmente mais senslveis a falta de sucesso educa­cional, antes da decisao inicial de prosseguir na escola ou dedeixa-Ia, do que as das classes superiores. [sso sugere que asfamilias e as crian9as da classe trabalhadora tern urna compreen­sao realista das dificuldades que enfrentam para prosseguir nosistema escolar. Podemos, pelo menos, arriscar uma interpreta­9ao dos motivos pelos quais essas crian9as, tendo permanecidona escola, apresentam menos probabilidades de abandona-la doque as outras. Para elas, e para seus pais, permanecer na escolaenvolve urn compromisso muito maior (a valores que lhes saO

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culturalmente "estranhos") do que no caso das classes superio­res. Os custos materiais tambem sao maiores, uma vez que, paraos pais, 0 custo marginal de manter uma crian9a na escola emais substancial do que para as familias mais abastadas. Vmavez assurnido 0 compromisso, M urn maior "investimento" cul­tural e material a ser protegido do que no caso das crian9as dasclasses superiores.

Presume-se que 0 conhecimento dos mercados de trabalho,assim como as atitudes para com 0 trabalho em geral, podeminfluenciar tais decisoes. Nesse ponto, Gambetta analisa urnaconcep9ao de comportamento nos mereados de trabalho queatraiu considenivel aten9ao na Italia: a "teoria do estacionamen­to". De acordo com essa ideia, a dura9ao da escolaridade tendea estar inversamente relacionada com as probabilidades de mo­bilidade social nas idades iniciais de termino da vida escolar. Afim de evitarem ficar desempregados, os alunos "estacionam"por mais tempo na escola. A explica9ao motivacional implicitana teona do estacionamento ea de que, ceteris paribus, 0 tra­balho e preferido it escola. as que propuseram a teoria" fize­ram uma descri9ao dos motivos e razoes dos atores sociais quee, em grande parte, implicita e "pouco consistente". Nao obs­tante, a teoria do estacionamento e interessante porque produzcertas possibilidades contra-intuitivas - por exemplo, indicaque a dura9ao da educa9ao, em certas circunstancias, pode estarinversamente relacionada com 0 nivel de desenvolvimento eco­nomico de urn bairro ou de uma regiao. Assim, Barbagli apu­rou que, na Italia como urn todo, a renda media per capita estapositivamente correlacionada com a taxa de freqiiencia escolarna faixa etaria de 11-15 anos. Por outro lado, a taxa de perma­nencia, apos a idade em que e legalmente passivel deixar a es­cola, esm correlacionada negativamente com a renda per capi­ta e com outras medidas de desenvolvimento economico regio­nal. Barbagli conclui que, em conseqiiencia das maiores difi­culdades em encontrar emprego, os que vivem nas provinciasmais pobres tendem a permanecer por mais tempo na escola".

Entretanto, como a teoria do estacionamento e "pouco con­sistente" em termos motivacionais, ela nao nos permite consi-

derar varias interpreta90es possiveis de tais resultados. Porexemplo, seria 0 padrao de permanencia na escola 0 mesmo senao houvesse possiveis beneficios economicos em decorrenciade mais demorada freqiiencia escolar? Neste ponto, a teoria doestacionamento sugeriria conclusoes diferentes das apresenta­das pelas teorias do "capital humano", as quais consideram asdecisoes educacionais em termos de custo-beneficio. A fim deavaliar essas possibilidades variantes, Gambetta correlacionoua decisao de permanecer em educa9ao ate 0 nivel universitariocom diferen9as economicas, na regiao do Piemonte. as resul­tados indicam que nao se trata apenas de uma questao de esco­Iha negativa, como a teoria do estabelecimento sugere; perma­necer constitui, em celia medida, uma decisao positiva, "esti­mulada" pelos atrativos das oportunidades que urna educa9aode alto nivel oferece. Mas as proprias teorias do capital huma­no estao excessivamente simplificadas em termos dos pressu­postos motivacionais que elas envolvem, como a pesquisa mos­tra. Alem disso, essas teorias nao conseguem apreender resul­tados impremeditados de urna pluralidade de cursos de a9ao se­paradamente considerados. Pode haver conseqiiencias perversasque resultem, sem que isso tenha sido intencionado, de deci­soes de prosseguir na educa9ao a fim de maximizar as recom­pensas profissionais ulteriores. Cada individuo poderia agir naexpectativa de beneficios mais elevados, mas, se urn nillnero ex­cessivo agir desse modo, os beneficios esperados evaporam-se".

A pergunta que Gambetta formulou originalmente - foramempurradas ou saltaram? -leva-o a ultrapassar os limites usuaisda sociologia estrutural. Ele esta apto a analisar seu materialempirico de maneira a mudar de urna perspectiva institucionalpara 0 estudo da conduta intencional. Seus sujeitos de pesquisasao mais do que meros "informantes sociologicos". Em vez dediscutir diretamente a analise que Gambetta fez de seus resul­tados, seguirei, entretanto, linhas de pensamento desenvolvi­das num capitulo anterior. Permito-me repetir 0 que disse pre­viamente acerca das coer90es sobre a a9ao. Em primeiro lugar,as coen;5es DaD "impelem" ninguem a fazer coisa nenhwna, seele ou ela nao tiver ja sido "estimulado". Por outras palavras,

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wna descri,ao da conduta deliberada esta subentendida meSmoquando as coer,oes que limitam os cursos de a,ao sao muitofortes. Em segundo lugar, as coe[\'oes sao de varios tipos. Nes­se caso, e importante distinguir entre a coer,ao que deriva desan,oes diferenciais e a coer,ao estrutura!. Em terceiro lugar,estudar a influencia da coer,ao estrutural em qualquer contextoparticular de a,ao subentende especificar aspectos relevantesdos limites da cognoscitividade dos agentes.

Consideremos essas questoes em ordem inversa. No que serefere ao terceiro ponto, e evidente que boa parte do que Gam­betta tem a dizer relaciona-se, de fato, com a identifica,ao doslimites da cognoscitividade dos agentes. Por exemplo, ele dedi­Ca consideravel aten,ao it especifica,ao do que pais e filhosprovavelmente sabem a respeito dos mercados de trabalho emSuas areas locais. Isso e manifestamente importante. 0 meSmopode ser dito da cognoscitividade no tocante ao milieu escolar.Um estudo de tipo estatistico nao pode produzir material com ariqueza de detalhes oferecida pela obra de Willis. Mas podemser feitas inferencias - e apoiadas no material de pesquisa, co­mo mostra Gambetta - sobre os tipos de conhecimentos que paise filhos provavelmente possuem do "valor monetario" da edu­ca,ao.

A respeito do segundo ponto, cumpre sublinhar a existen­cia de varias especies de san,oes que afetam a posi,ao dascrian,as; essas san,oes podem ser facilmente distinguidas apartir das fontes de coer,ao estrutura!. A escolaridade obriga­t6ria e a idade minima em que umjovem pode deixar a escolasao fixadas por lei. Por vezes, pais e filhos desprezam essa obri­ga,ao legal, sobretudo nas regioes da Itilia meridional, mas,para a maioria, ela fixa 0 quadro basico em cujo ambito sao to­mados os tipos de decisao analisados por Gambetta. As crian­,as tambem estao sujeitas a san,oes informais por parte dospais e de outras figuras na escola. Como os pais tem de susten­tar aqueles que, de sua progenie, permanecem na escola, dis­poem de uma forte san,ao economica para influenciar a deci­sao se seus filhos prosseguirao ou nao em seus estudos; evi­dentemente, e provivel que wna serie de outros mecanismos

sancionadores mais sutis tambem estejam envolvidos. Estudoscomo 0 de Willis tornam bastante 6bvio que wna variedade detais mecanismos existe igualmente no ambiente escolar.

Passarei agora, finalmente, it primeira questao. Identificara coer,ao estrutural nwn contexto especifico ou tipo de con­texto de a,ao pede que se considerem as raz6es dos atores em re­la,ao it motiva,ao que esta na origem das preferencias. Quandoas coer,oes restringem tanto a gama de alternativas (exeqiii­veis) que s6 wna op,ao ou tipo de op,ao fica disponivel a wnator, 0 pressuposto e de que este concluira nao valer a penafazer outra coisa senao aquiescer. A preferencia envoIvida e anegativa do desejo de evitar as conseqiiencias da nao-aquies­cencia. Se 0 agente "nao poderia ter atuado de outro modo" nasitua,ao, e porque existia somente uma op,ao, dadas as caren­cias desse agente. Isso nGO deve ser confundido, como tenhoenfatizado sistematicamente, com 0 "nao poderia ter sido feitode outra maneira" que marca a fronteira conceptual da a,ao; eexatamente essa a confusao que os soci610gos estruturais ten­dem a fazer. Quando existe uma Unica op,ao (viavel), a cons­ciencia de tallimita,ao, junto com as carencias, fornece a ra­zao para a conduta do agente. Epelo fato de a coer,ao - enten­dida como tal pelo ator - constituir a razao para essa conduta,que a elipse da sociologia estrutural e facilmente feita". As coer­,oes tambem participam, e claro, das razoes dos atores quandoesm envolvida wna gama mais ampla de op,oes. Uma vezmais, temos de ser cuidadosos nesse ponto. Os modelos formaisde preferencia ou de tomada de decisao, em qualquer conjuntodado de circunstiincias, oferecem wn modo analiticamente pode­roso de interpreta,ao das liga,oes entre propriedades estrutu­rais, mas nao substituem as investiga,oes mais detalhadas dasrazoes dos agentes que a pesquisa etnografica propicia. Con­sidere-se, wna vez mais, a conduta dos "garotos". Urn modelo"economico" torna indubitavelmente compreensivel a argu­menta,ao deles. Vendo que a educa,ao formal tern pouco a ofe­recer-lhes, no tocante a perspectivas de trabalho, eles decidemefetivamente cortar seus prejuizos saindo para trabalhar 0 maisdepressa possive!. Entretanto, essa representa,ao do comporta-

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Contradi93o e 0 estudo empirieo do eontlito

o aprofundamento dos topicos relacionados da educa9aoe do Estado proporciona urn fio material de continuidade quan­do se passa a considerar uma gama adicional de quest6es rele­vantes para 0 trabalho empirico. Sugeri, num capitulo anterior,que 0 conceito de contradi930 pode ser utilmente ligado a no­90es de propriedades estruturais e coer930 estrutural. Minhasconsidera90es nesse capitulo foram relativamente breves e al­tamente abstratas. Afirmei que a n09ao de contradi930 podereeeber urn sentido claro em teoria social, e que ela merece dis­tinguir-se da de conflito, na medida em que este ultimo termodenota alguma forma de antagonismo ativo entre atores e cole­tividades. rentarei agora defender essa afirma9ao num contexto

mento deles nada transmite das sutilezas ou da complexidadeque 0 estuOO de Willis revela.

o estudo de Gambetta diz respeito a influencia da coer9aoestrutural dentro da situa9ao imediata de a9ao encarada pelosque deixam a escola. Esse enfoque restrito justifica-se, semduvida, dada a natureza inevitavelmente confinada de qualquerpesquisa individual. Mas e obvio que a influencia de coer90esestruturais sobre 0 curso da a9ao em questao poderia potencial­mente ser examinada em muito maior profundidade. Assim,pOder-se-ia investigar como os motivos e processos de racioci­nio dos atores foram influenciados ou modelados por fatoresem sua educa9ao e por experiencias previas, e como esses fato­res, por sua vez, [oram influenciados por caracteristicas institu­cionais gerais da sociedade mais ampla. Entretanto, essas "for­9as sociais" poderiam, em principio, ser estudadas exatamentedo mesmo modo que os fenamenos diretamente envolvidos napesquisa de Gambetta. Por outras palavras, as coer90es estrutu­rais operam sempre atraves dos motivos e razoes dos agentes,estabelecendo (com freqiiencia de maneira difusa e tortuosa)condi90es e conseqiiencias que afetam 0P90eS abertas a outros,eo que eles querem das 0P90es que tern, sejam elas quais forem.

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empirico, preocupando-me unicamente com a que designei an­tes como "contradi9ao estrutural". As mais importantes e inte­ressantes das tentativas recentes de dar ao conceito de contradi­9ao urn conteudo empirico definido sao encontradas nas obrasde autores influenciados pela teoria dos jogos, que adotam umponto de vista explicitamente ligado ao individualismo metodo­16gico22

• Urn desses autores, Boudon, escreveu extensamentesobre educa9ao e politica estatal. A obra de um outro, Elster, euma das principais fontes em que Gambetta se apoiou no estu­do que acabamos de analisar.

Boudon e Elster associam a contradi9ao as conseqiienciasimpremeditadas da a9ao, uma subclasse dos "efeitos perversos"que podem resultar dos atos intencionais de uma pluralidade deindividuos. Elster distingue duas variedades de contradi9ao as­sim entendidas: a que envolve "contrafinalidade" e a que en­volve "subotimalidade"". A primeira dessas variedades estiassociada ao que Elster chama de falicia da composi9ao - 0ponto de vista erraneo de que 0 que e possivel para uma pessoa,num dado conjunto de circunstancias, e necessaria e simulta­neamente possivet para toda e qualquer outra pessoa nessas cir­cunstiincias. Por exemplo, 0 fato de que qualquer um pode de­positar seu dinheiro num banco e ganhar juros sobre ele naoimplica que todo mundo pode fazer 0 mesmo.

A tese de Elster e de que muitos exemplos da falicia decomposi9ao podem ser redescritos como envolvendo rela90essociais contradit6rias. As conseqiiencias contradit6rias resul­tam quando todo individuo num agregado de individuos atuade urn modo que, embora produza 0 efeito pretendido, se reali­zado isoladamente, cria um efeito perverso, se feito por todos.Se todo 0 publico numa sala de conferencias se poe de pe a fimde poder ver melhor 0 conferencista, ninguem, de fato, 0 veri.Se cada agricultor, numa dada irea, tenta adquirir mais terraderrubando irvores, resultando em erosao do solo devido ao des­matamento, todos acabarao com menos terra do que no come­90. Esses sao resultados que nao so ninguem pretende comotambem vao contra 0 que todos querem nessas situa90es; naoobstante, etes derivam de uma conduta cujo proposito e satisfa-

A TEORIA DA ESTRUTURA9AOA CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE366

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zer necessidades, que poderia satisfaze-las para individuos, naofosse 0 fato de tomar-se generalizada. Considere-se a discussaode Marx da tendencia de queda da taxa de lucro em economiascapitalistas24

• Em circunstancias em que a economia esta cres­cendo a um tal ritrno que absorve as fontes disponiveis de mao­de-obra, os sahirios tenderao a subir na propor,ao em que osempregadores experimentam escassez de for,a de trabalho ade­quada. Para contrabalan,ar isso, os empregadores introduzeminova,ces tecnicas para economizar custos de fabrica,ao. Em­bora um industrial possa derivar individualmente maior lucra­tividade de Uma tal resposta, 0 montante global de mais-valia e,portanto, de lucros na economia declina, uma vez que aumen­tou a razao de capital constante para capital variavel. Uma vezque todos, num determinado setor da economia, tenham intro­duzido a mesma inova,ao tecnol6gica, eles podem ficar todosnuma situa,ao pior do que estavarn antes.

o segundo tipo de rela,ao contradit6ria, a subotimalidade,e definido em termos da teoria dos jogos. E quando todos osparticipantes numa situa,ao te6rica de jogo optam por uma es­trategia de solu,ao, conhecedores de que os outros participan­tes tambem 0 farao, e de que todos poderiam ter obtido tanto, eate mais, se uma outra estrategia tivesse sido adotada. Em vezdo caso da contrafinalidade, os envolvidos estao cientes dosresultados aos quais 0 comportamento deles pode levar emvarias conjun,ces com a a,ao de outros. Suponhamos que agri­cultores que produzem uma determinada safra poderao obterlucros mais elevados se formarem um cartel. Se isso for feito,sera ainda mais lucrativo para 0 agricultor individual desprezaro acordo de cartel, a fim de ganbar a custa dele sem the estarvinculado. Como todos os agricultores estao cientes de queseria esse 0 resultado, nenbum cartel e estabelecido". Boudonaplicou uma interpreta,ao algo comparavel a pesquisa sobreeduca,ao e mobilidade social. Na decada de 1960, a educa,aosuperior expandiu-se em virtualmente todos os paises indus­trializados. Como os niveis educacionais subiram, cada vez maispessoas aceitaram empregos para os quais, de acordo com osrequisitos formais do trabalho envolvido, elas estavam notavel-

369368 A CONSTITUIr;AO DA SOCIEDADE A TEOR/A DA ESTRUTURAr;AO

mente superqualificadas. Em parte como rea,ao as frustra,cesassim incorridas, foi criado em muitos paises 0 que passou aser designado como educa,ao superior de "cicio curto" - istoe, cursos reduzidos oferecendo op,ces mais flexiveis a curtoprazo. Entretanto, muito poucos optaram por inscrever-se emtais cursos. Por que? Boudon sugere que 0 fracasso da educa­,ao de cicIo curto pode ser entendido em termos analogos aosdo dilema do prisioneiro - um resultado subotimal de deciscesracionais pela popula,ao estudantil no conbecimento de seuprovavel resultado. A pesquisa mostra que pessoas que escolhe­ram cursos de cicio curto tem, de fato, chances de obter empre­gos nao inferiores aos daqueles que seguiram cursos maisextensos e mais tradicionais. A maioria dos estudantes tamb"mparece estar consciente desse fato. Assim, poder-se-ia suporintuitivamente - como supos 0 govemo que os instituiu - queuma elevada propor,ao de estudantes escolheria os cursos decicio curto. Por muito obvio que isso possa parecer, assinalaBoudon, essa suposi,ao seria incorreta. As escolhas que os es­tudantes fazem dependem - tal como 0 dilema do prisioneiro ­do fato de que cada individuo esta escolhendo no conhecimen­to de que outros estao fazendo suas escolhas a partir do mesmoleque de altemativas. Os estudantes, na realidade, maximizarnsuas chances escolhendo a educa,ao a longo prazo, mesmosabendo que outros provavelmente pensam do mesmo modo emuito embora alguns individuos pudessem luerar mais se esco­lhessem a op,ao a curto prazo".

As formula,ces de Elster e Boudon sao atraentes, poispermitem que um significado claro seja dado a contradi,ao(embora 0 pr6prio Boudon nao use 0 termo) e indicam comopoderia ser concedido um contelido empirico a no,ao. As con­sequencias de atos intencionais sao contradit6rias quando elassao de tal modo perversas que a pr6pria atividade de procuraratingir um objetivo diminui a possibilidade de 0 alcan,ar. Asdificuldades com essa concep,ao de contradi,ao, entretanto,sao bastante 6bvias. Ela esta intimamente associada ao uso demodelos extraidos da teoria dos jogos. Ora, nao M dlivida deque os modelos te6ricos de jogos podem ser muito liteis na pes-

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quisa empirica, com rela9ao a sugestao de problemas a sereminvestigados e ao modo como os resultados das pesquisaspoderao ser interpretados. A obra de Boudon na area da socio­logia da educa9ao e um caso ilustrativo. Mas 0 ambito de apli­ca9ao da teoria dos jogos as ciencias sociais parece, nao obs­tante, limitado. Embora os modelos tearicos de jogos possamser elegantes e satisfatarios quando enunciados em termos abs­tratos ou matem:iticos, sua rela9ao com a conduta real e, comfreqiiencia, muito tenue.

As aplica90es empiricas de modelos tearicos de jogos saoas mais faceis de defender quando se encontram certas circuns­tancias particulares; quando tern de ser tomadas "decis5es" ca­tegaricas; quando as consciencias altemativas envolvidas saomuito facilmente especificadas; e quando as decisoes em ques­tao sao tomadas separadamente por um agregado de individuosnao em comunicac;ao mutua direta. Tais circunstancias sao des­cobertas com certa freqiiencia nas sociedades modemas, masexistem numerosos contextos da vida social que nao sao dessegenero. Se a liga9ao com a teoria dos jogos e uma fonte de li­mita9ao para esse tipo de abordagem do conceito de contradi­9ao, uma outra e a vincula9ao com 0 individualismo metodola­gico, explicitamente adotado por Elster, em particular. A conexaopode ser logicamente contigente, mas nao e dificil ver por queas duas tendem a juntar-se. A contradi9ao e situada por Elsterna disjun9ao entre atos individuais, empreendidos separadamen­te, e suas multiplas conseqiiencias. Esta amplamente limitadaao que chamei de analise de conduta estrategica. Nesse ponto devista, nao ha forma de entender a contradi9ao como implicadanas condi90es estruturais da reprodu9ao do sistema.

Eesse entendimento que eu defendo como tendo uma im­portancia para a teoria social maior do que a sugerida por Elstere Boudon, e como oferecendo maior margem para 0 trabalhoempirico. Nao quero questionar a importancia das ideias des­ses autores, mas, antes, complementa-Ias. Pode-se supor que osresultados contradit6rios do tipo que eles examinam estejam,com frequencia, sistematicamente ligados ao que denomineicontradi9ao estrutural. Desejo entender 0 conceito de contradi­9aO de um modo menos abstrato do que eles, alem de 0 separar

o terceiro ponto e um importante acrescimo aos dois pri­meiros, porquanto serve para evitar a implica9ao de um funcio-

1) "Ao pader politico e vedado organizar a prodw;ao de acordo comseus pr6prios criterios politicos." Em outras palavras, amplos seto­res cia organiza~ao economica sao coordenados, nao pelo governo,mas por atividades empreendidas no ambito das esferas "privadas"cia iniciativa econ6mica. A base institucional dessas esferas cleveser encontrada na propriedade privada e na "posse" secular da for­,a de trabalho.

2) "0 poder politico depende indiretamente - atraves dos mecanis­mos de tributac;ao e dependencia do mercado de capitais - do volu­me de acumulayao privada." Quer dizer, 0 Estado e financiadopela tributac;ao derivada de processos de desenvolvimento econo­mica que as agencias estatais nao controlam diretamente.

3) "Como 0 Estado depende de urn processo de acumula<;ao cuja or­ganiza<;ao estl! fora do seu alcance, todo detentor do poder estatalesta basicamente interessado em promover aquelas condi<;oes maispropicias aacumulac;ao."::H

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das premissas do individualismo metodol6gico. Ou seja, queroligar a n09ao de modo substantivo aos tipos gerais de totalida­de social que distingui antes, de tal forma que, embora possahaver numerosos exemplos de contradi9ao secundiria, eles sejamderivativos dos modos contraditarios dominantes em que associedades estao estruturadas. Entretanto, conforme as defini,as contradi90es estruturais primarias e secundirias ainda pre­servam 0 mesmo nucleo de significado que Elster da ao termo;as condi90es de reprodu9ao do sistema dependem de proprie­dades estruturais que atuam para negar os mesmos principiosem que se baseiam.

Como exemplo de algumas reflexoes pertinentes sobre acontradi9ao primaria de Estados capitalistas, referir-me-ei aalguns dos escritos de Offe sobre 0 assunto". Eles sao 16gica esubstantivamente compativeis - pelo menos, em alguns de seusprincipais aspectos - com as ideias que apresentei neste livro, egeraram uma consideravel soma de esclarecedores trabalhosempiricos. A forma institucional do Estado capitalista e descri­ta em fun9ao dos seguintes tra90s (entre outros):

A TEORJA DA ESTRUTURA9JOA CONSTfTUf(;JO DA SOCfEDADE370

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nalismo ingenuo. Deixou claro que os fen6menos identifica­dos nos dois primeiros pontos sao conhecidos dos que estao emagencias do Estado, os quais atuam aluz desse conhecimento.

Por que 0 Estado capitalista, assim caracterizado, e urnaforma social contradit6ria? Porque as pr6prias condi,oes quepossibilitam a existencia do Estado poem em a,ao (e depen­dem de) mecanismos que se opoem ao poder do Estado. A "apro­pria,ao privada", para usar a terminologia tradicional, pede"produ,ao socializada" ao mesmo tempo que a nega. Uma ou­tra forma de expressar isso - desenvolvida de maneira analiti­camente poderosa por Offe - consiste em dizer que, embora 0

Estado dependa da forma mercadoria, ele tamhem dependesimultaneamente da nega,ao da forma mercadoria. A mais di­reta expressao de mercadorifica,ao e a compra e venda devalores; quando os valores deixam de ser tratados como per­mutaveis em termos moneta-riDs, eles perdem seu carMer mer­cadorificado. A natureza contradit6ria do Estado capitalista ex­pressa-se nos avan,os e recuos entre mercadorifica,ao, desmer­cadorifica<;ao e remercadorifica,ao. Tomem-se como exemploso suprimento de servi<;os de assistencia asaude e de transpor­tes publicos. 0 estabelecimento da medicina socializada signi­fica desmercadorificar importantes aspectos da assistencia asaUde e organiza-los numa base diversa daquela em que existea questao de se os individuos que necessitam de tratamentopodem pagar por ele ou nao. Entretanto, aqueles que menosprecisam da medicina socializada - os segmentos mais afluen­tes da popula<;ao, que tendem a optar pela medicina privada, adespeito dos servi,os medicos publicos - tern de contribuir deforma desproporcional para seu financiamento, atraves da tri­buta,ao progressiva. Portanto, e provavel que exer<;am pressaono sentido de repor alguns servi<;os de medicina publica nurnabase comercial. 0 mesmo ocorre com 0 transporte publico. Osindividuos que pagam mais imposto, aqueles que mais contri­buem para 0 financiamento do transporte publico, sao os quefazem seus deslocamentos e viagens em carros particulares.Por conseguinte, 0 mais provavel e que ofere<;am resistencia aqualquer politica que trate 0 transporte publico como urn bern

geral para a comunidade, em vez de urn conjunto de servi<;oscomercialmente viaveis. Como os individuos das classes debaixa renda tern, por certo, opinioes contririas, a politica do go­verno poderi vacilar entre a desestatiza<;ao e a reestatiza<;ao detais servi,os quando sucessivos partidos, representando distin­tos interesses de classe, chegam ao poder".

A analise de Offe levanta de maneira incisiva e arguta 0 pro­blema da rela,ao entre contradi,ao e conflito, mas, antes deaborda-lo diretamente, quero ainda aprofundar 0 tema da contra­di,ao secundiria. As contradi,5es primarias podem estar ligadasnurna variedade de modos mais ou menos diretos as secundarias.Algumas podem ser de urn carMer muito geral, mas outras po­dem estar muito mais contextualizadas. Consideremos os se­guintes exemplos, escolhidos ao acaso na literatura sociol6gica.Sao exemplos de resultados perversos, mas penso poder ser ra­cionalmente afirmado que eles expressam contradi<;5es.

1) Urn estudo dos idosos e da provisao de beneficios suplementares.Nos Estados Unidos, os beneficios de urn segura suplementar fo­ram introduzidos a fim de melhorar as condi<;6es de vida de idososcom baixa renda. Mas essa medida teve 0 efeito de elevar 0 nivel derenda dessas pessoas de tal modo que passaram a receber algunsdaIares acima da faixa que as colDea como dependentes de assis­tencia medica estataL Por conseguinte, essa assistencia foi-Ihesnegada e, assim, fiuitos ticaram em situa~ao pior do que antes.

2) Urn estudo da policia. Na cidade de Nova York, a tim de reduzir 0

custo de horas-extras trabalhadas por policiais no quadro de pes­soal existente, patrulheiros adicionais foram colocados nas ruas.Entretanto, a principal fonte de horas-extras para os policiais e 0

processamento das deten90es. 0 numero crescente de policiais nasruas resultou na realiza9ao de mais pris5es e no concomitante re­crudescimento do trabalho burocnitico nas delegacias, exacerban­do assim a situa9ao que a nova politica supusera remediar.

3) Vma analise dos dismrbios urbanos em Detroit. Urn esfor90 emgrande escala foi realizado, no final da decada de 1960, para tentarimpedir uma repetiy3.o dos disrurbios nos guetos de Detroit, me­diante 0 fomecimento de beneficios de bem-estar social e oportu­nidades de emprego para os residentes naquelas areas desfavore­cidas. Entretanto, grande nu.mero de pessoas pobres fcram atraidas

373A TEORIA DA ESTRUTURA9AO

[

A CONSTITUH:;AO DA SOCIEDADE372

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· 1 .A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE I A TEORIA DA ESTRUTURA9AO374

para tais areas, vindas de fora, a tim de se beneficiarem dos pro­gramas oferecidos. Muitas delas [oram incapazes de encontrar em­prego na cidade e assim engrossaram ainda mais as fileiras dos de­sernpregados nos guetos, Outras foram ocupar empregos que, emoutras circunsmncias, poderiam ter sido dados a residentes croni­camente desempregados nessas areas. As condi<;6es diagnostica­das como favoraveis aeclosao de distlirbios foram desse modoaumentadas, em vez de reduzidaslO •

Tais exemplos servem para deixar clara a provivelliga,iioentre a contradi,iio estrutural, contradi,iio no sentido de Elstere Boudon, e a ocorrencia de conflito social. Em poucas palavras,quero apresentar a seguinte proposta: e provivel que a contra­di,iio esteja diretamente ligada ao conflito quando se seguemconseqiiencias perversas ou quando os envolvidos consideramprovivel que isso ocorra. Niio estou sugerindo que as contradi­,oes geram sempre conseqiiencias perversas OU que todas asconseqiiencias perversas sao contradit6rias. Mas a contradi<;aoe uma especie de perversidade estrutural e e provivel que pro­duza constantemente conseqiiencias perversas nos modos emque esti exposta na conduta de atores situados. Os resultadosperversos sao suscetiveis de gerar ressentimento e, portanto,uma mobiliza,iio pelo menos potencial para a luta, precisa­mente por causa de seus "efeitos de ricochete". Quer dizer, ascoisas estao piores do que estavam antes, em circunstanciasnas quais todos, ou a maioria dos envolvidos, podiam esperarque elas melhorassem. 0 estudo das conseqiiencias perversas deuma especie contraditoria e, pois, terreno fecundo para 0 exa­me das origens dos conflitos. Mas podemos ver que e muitolimitador identificar a contradi,iio com tais conseqiiencias perse; pois, por urn lado, a contradi,iio estrutural precisa niio acar­retar conseqiH~ncias perversas e, por outro, estas ultimas naosao as linicas circunstancias associadas acontradi~ao que podemestimular 0 conflito.

Pode-se dizer que as conseqiiencias perversas siio resulta­dos contingentes que podem ser provocados em circunstanciasde contradi,iio estrutural. Condi,oes estimulantes de conflito

375

mais genericas seriio encontradas na associa,iio entre contradi,iioe interesses coletivos. 0 capitalismo e uma sociedade de clas­ses, e a contradi,iio entre "apropria,iio privada" e "produ,iio so­cializada" esti encerrada em divisoes de classes que, por suavez, expressam interesses opostos. A articula,iio entre contra­di,oes e interesses pode variar, e claro. Mas e racional afirmarque quanta maior for a convergencia de contradi,oes, primi­rias e secundirias, mais haveri urn alinbamento preponderantede divisoes de interesses e mais provivel sera 0 desenvolvimen­to de conflitos abertos ao tango da "linba de fratura" dessascontradi,oes. Podemos sugerir a existencia de tres conjuntosde circunstiincias particularmente importantes para examinar arela,iio entre contradi,iio e conflito: a opacidade da a,iio, a dis­persiio de contradifoes e a preponderiincia de repressiio direta".Por "opacidade" de a,iio entendo, nos termos de Willis, 0 graude penetra,iio que os atores tern das qualidades contraditoriasdos sistemas sociais em que eles estiio envolvidos. 0 discerni­mento da natureza das contradi,oes pode iniciar uma a,iio diri­gida para a resolu,iio ou a supera,iio das mesmas. Mas seriaurn argumento especioso ligar tal discernimento somente amudan,a social. A contradi,iio e uma fonte de dinamismo, masuma compreensiio disso por parte de atores leigos pode promo­ver tentativas tanto para estabilizar urn determinado estado decoisas como para transformi-lo. A importiincia desse ponto esubstantivamente muito consideravel com rela,iio aos prog­nosticos de Marx sobre a suposta transi,iio do capitalismo parao socialismo. Marx sustentou que quando os membros da classetrabalhadora se aperceberem crescentemente da natureza con­traditoria da produ,iio capitalista, eles se mobilizariio para mu­m-la. Ele niio parece ter dado muito peso apossibilidade de gru­pos dominantes na sociedade adquirirem urna compreensiio dosistema suficientemente refinada para estabilizi-lo. 0 papel as­cendente do Estado pode ser visto precisamente nesses termos.o Estado niio e apenas colhido nos avan,os e recuos da contra­di,iio primiria; as agencias estatais podem procurar monitoraras condi,oes de reprodu,iio do sistema de maneira tal que se

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minimizem conflitos que, em Qutras circunstancias, poderiamamea,ar eclodir.

o grau de fusao ou dispersao de contradi,oes e suscetivelde variar de acordo corn dois principais conjuntos de condi,oes.Urn e 0 do "desenvolvimento desigual", 0 outro e 0 da regiona­1iza,ao. Nao e preciso dizer muita coisa acerca do conceito dedesenvolvimento desigual ou sobre suas aplica,oes empiricas.Ele esta geralmente associado ao pensamento marxista e, ernparticular, aos escritos de Trotsky e Lenin, mas sua elucida,aoe aplica,ao nao se limitaram, de modo nenbum, ao marxismo.Entretanto, a no,ao possui uma aplica,ao mais ampla do que setern ordinariamente reconhecido. Ela so e pensada habitual­mente ern rela,ao a processos de mudan,a ern grande escala;nao existe r02ao para que nao possa ser tambem util ern contex­tos espa,o-temporais mais restritos. A ideia de regionaliza,aoe certamente pertinente a este caso. Uma determinada "expan­sao" regional, ern conjunto corn taxas diferenciais de mudan,a,pode servir para produzir um feixe de contradi,oes e tambem,provavelmente, de conseqiiencias perversas. :E exatamente essaa especie de situa,ao, por exemplo, que Lenin diagnosticou comoa referente il Russia, apos 0 inicio do seculo XX. Entretanto,outras formas de regionaliza,ao podem produzir uma difusaoou segrnenta,ao de contradi,oes. Quando 0 caso e esse, 0 con­flito que ocorre e suscetivel de ser fragrnentado e retalhado, demodo que os desfechos de algumas lutas anulem os de outras.Por repressao direta entendo 0 uso da for,a ou a amea,a de seuuso para inibir 0 surgimento de luta ativa. 0 uso da for,a podeser normalmente considerado uma das expressoes da ocorren­cia de conflito, mas a amea,a de seu uso, ou certas exibi,oesMicas de for,a, tambem podem servir igualmente bern paraimpedir que as fontes de dissensao se manifestem como lutaaberta. Quem se sentir inclinado a argumentar que 0 controledos meios de violencia nao pode ser usado para amortecer con­flitos de tipo profundamente arraigado deve refletir sobre casoscomo 0 da Africa do SuI".

Examinaremos finalmente uma pesquisa que, ao contrariodas outras ja discutidas, foi diretarnente influenciada, ern certamedida, pela teoria da estrutura,ao. Trata-se da recente investiga­,ao por Ingham do papel da City na Gra-Bretanba durante os ulli­mos duzentos anos aproximadarnente;;. 0 problema empirico queo autor se dispos a estudar e como a City, 0 centro financeiro ba­seado ern Londres, manteve sua preeminencia sobre 0 capitalindustrial britiinico por um periodo tao extenso. A preocupa,aomais geral do estudo e corn a natureza do Estado moderno.

As organiza,oes que formam coletivamente a City, segun­do Ingham, dedicam-se principalmente a atividades que podemser descritas como "comerciais". Entre outras caisas, essas ati­vidades envolvem 0 financiamento do comercio, 0 seguro demercadorias e transportes, e transa,oes de cambio corn moedaestrangeira. Ocupam-se nao so das rela,oes entre a Gra-Bre­tanha e outros Estados, mas tambem das ramifica,oes do em­preendimento capitalista numa escala global. Extremamentesignificativo a esse respeito e 0 papel que a City desempenbouna administra,ao da moeda nacional como "moeda mundial",urn instrurnento de cambio internacionalmente valido. Inghamcritica as teorias que tratam esse centro financeiro como com­prometido corn 0 "capital financeiro". As atividades da Citysao certamente financeiras, no sentido de que estao vinculadasil circula,ao de capital, mas ela esta primordialmente interessa­da na corretagem sob todas as formas, na realiza,ao de lucrosatraves do fornecimento de servi,os de intermedia,ao entre osdiretamente envolvidos no uso produtivo do capital.

Ingham mostra que, para se entender adequadamente a so­brevivencia do poder da City desde 0 final do seculo XVIII, enecessario rejeitar 0 estilo endogeno de teoriza,ao, que domi­nou a literatura antecedente, e perceber como destacadas orga­niza,oes dentro desse centro financeiro reagiram a eventos po­liticos contingentes. Tanto Marx quanta marxistas recentes, co­mo Hilferding, procuraram explicar (ou justificar de maneiraaceitavel) 0 papel da City ern termos, principalmente, de con-

376 A CONSTITUlr;:A-O DA SOCIEDADET

A TEORIA DA ESTRUTURAr;:AO

Estabilidade e mudan,a institucional

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,. A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE I A TEORJA DA ESTRUTURA9AO378

cep,oes endogenas do desenvolvimento capitalista. Marx reco­nheceu, e comentou, as qualidades distintivas da City na vidaeconomica britiinica do seculo XIX, e analisou as origens des­sas qualidades em fun,ao de algumas das caracteristicas daeconomia britiinica quando se deslocou do dominio do capitalcomercial para 0 do capital industrial. Mas 0 desenvolvimentodo capitalismo industrial, segundo sua opiniao, nao tardaria adesalojar 0 capital comercial e bancirio dessa posi,ao central.Com 0 avan,o continuo da produ,ao industrial, 0 capital pro­dutivo passaria a predominar economica e politicamente sobrea "bancocracia" mais tradicionalmente estabelecida. A analisede Marx fornece, portanto, poucas indica,oes que permitam ex­plicar como aconteceu de 0 poder economico e politico da Cityter se mantido por tao longo tempo. 0 ponto de vista de Hil­ferding, elaborado em data bern mais recente, e igualmente im­perfeito. Segundo Hilferding, a forma,ao de "capital financei­ro" - a fusao dos negocios bancarios com a industria em gran­de escala - ocorreu nurn ritmo mais pausado na Gra-Bretanhado que em outros paises. Mas 0 mesmo processo acabaria ocor­rendo ai, tal como acontecera em outras sociedades. A suprema­cia britiinica na area da manufatura no seculo XIX permitiu queo pais ficasse temporariamente para tras; entretanto, a compe­ti,ao internacional garantiria que 0 mesmo padrao viria final­mente amanifestar-se34

.

Mas esse padrao nao surgiu. Por que nao? A tese de Inghame a de que a sociedade britanica moderna foi caracterizada naos6 como a primeira economia industrial, mas tambem comourn centro de transa,oes comerciais em escala mundial. As maisimportantes caracteristicas da City, argumenta Ingham, tern deser entendidas em rela,ao a natureza das na,oes-Estados. OsEstados tern suas proprias moedas, mas nao podem facilmentecontrolar seu fluxo fora de seus proprios territorios; alem disso,os valores e a estabilidade de diferentes moedas variam muito.A City tornou-se desde cedo - em parte, mas nao totalmente,devido a for,a industrial da Gra-Bretanha no seculo XIX - urncentro para uma forma aceita de "moeda mundial" e urna ca­mara internacional de compensa,ao para a liquida,ao de tran-

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sa,oes. 0 monopolio virtual que ela pOde obter sobre certos tiposde transa,ao comercial, somado a introdu,ao do padrao ouro­esterlino, dependeu de urna serie de condi,oes politicas. Estastern de ser discriminadas das fontes de supremacia industrialda Gra-Bretanha. A importiincia da City, e do esterlino, perdu­rou muito alem do momenta no qual a Grii-Bretanha foi a prin­cipal potencia industrial do mundo. No final da Primeira Guer­ra Mundial, os Estados Unidos tinham passado a ser a maisforte economia do mundo, mas, ao contcirio das expectativas demuitos nas decadas de 1920 e 1930, Nova York nao suplantouLondres como a principal camara de compensa,ao do mundo.

De acordo com a exposi,ao de Ingham, esses fenomenosdevem ser entendidos nos seguintes termos. No inlcio do secu­10 XIX, foi introduzida na Gra-Bretanha uma serie de reformasfiscais. A inten,ao dos reformadores era, principalmente, ten­tar fazer face as antigas dividas que 0 Estado tinha acurnulado,exacerbadas pelas guerras napoleonicas. 0 resultado, porem, foifavorecer uma concentra,ao de juros pecuniirios, nao partilha­dos com os empresarios industriais, nas institui,oes da City. Ariqueza crescente desse centro financeiro possibilitou a sobre­vivencia de certos setores da aristocracia, quando estes depara­ram a decrescente importancia da economia agraria que era suabase de poder. Como parte de urn "acordo de cavalheiros", oscomerciantes e banqueiros da City adquiriram, por sua vez, asexterioridades da aristocracia. Nao foi apenas urn tipo definidode poder de classe que foi incentivado pelos processos que afe­taram 0 desenvolvimento da City no seculo XIX; esses mesmosprocessos levaram a perpetua,ao e, na verdade, ao fortaleci­mento do capitalismo comercial "pre-industrial". A City estavafisicamente separada do norte industrial- urn formidavel exem­plo de regionaliza,ao! - permanecendo economica e politica­mente distinta dos centros de capitalismo industrial. Tornou-sefortemente centralizada sob 0 controle do Banco da Inglaterra,e 0 sistema bancario orientou-se, em primeiro lugar e acima detudo, para a manuten,iio do papel estavel do esterlino como aforma "confiavel" de moeda mundiallS

• Urn importante aspec­to adicional desse processo foi a politica fiscal do Estado com

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vistas a assegurar a validade formal do esterlino, que a atividadeestreitamente economica da City nao poderia, por si so, garantir.

o importante na aprecia,ao de Ingham do desenvolvimen­to economico e politico britanico, nesse contexto, de qualquermodo, nao .0 tanto saber se ela .0 valida ou nao, mas bern mais 0

ponto de vista teorico que expressa. Ao criticar os modelos en-ldogenos, a analise de Ingham evita 0 que poderia ser vistocomo 0 determinismo desenvolvimentista que esta incrustradoem muitas teorias sobre sociedades modernas. Para mim, essa.0 urna forma de pensar a mudan,a social que supoe que, nurndeterminado tipo de sociedade, existe somente "urn caminhopara a frente" que toda sociedade individual deve seguir, emalgum ponto, se ela for desse tipo. Assim, 0 "capitalismo indus­trial", como seria licito supor, tern certos padroes genericos dedesenvolvimento que sao repetidos em todas as sociedades quepossam ser assim caracterizadas. Se algumas nao exibem taispadroes, deve ser porque estao atrasadas; seu desenvolvimentofoi, por algurna razao, retardado. Esse pensamento tambem en­valve, com freqiiencia, uma certa versao do funcionalismo. Sedeterminados processos de desenvolvimento sao "necessarios"a uma sociedade, ou a urn tipo de sociedade, .0 porque sao fun­cionalmente requeridos por sua ordem institucional. As neces­sidades funcionais implicitas "explicam" por que urn certo ca­minho de desenvolvimento "deve" ser seguido. Curnpre enfati­zar, uma vez mais, que 0 "deve" so ejustificado, neste casa, seentendido num contexte contrafatual. Assim, poder-se-ia argu­mentar que 0 que "devia" ou "tinha de" acontecer na Gra-Bre­tanha, no inleio do seculo XX, era 0 abandono do papel comer­cial "obsoleto" da City em face das "necessidades" do capitalindustrial. Esse argumento .0, pelo menos, potencialmente elu­cidativo, se entendido em termos contrafatuais. Por outras pa­lavras, podemos formular a pergunta: quais foram as conse­qiiencias para 0 capital industrial do fato de ter side mantida aposi,ao de poder da City? Mas se admitirmos que 0 "deve" pos­sui for,a explanatoria, 0 resultado .0 urna barreira positiva aoentendimento de por que as coisas tomaram 0 rumo que toma­ram, como demonstra 0 estudo de Ingham de maneira cristalina.

A pesquisa distingue com exito urna outra tendencia asso­ciada a modelos endogenos. E0 pressuposto de que a socieda­de mais avan,ada em rela,ao a quaisquer caracteristicas sociaisque estejam sendo estudadas pode ser tratada como exemplarpara fins de pesquisa;o. Assim, no seculo XIX, a Gra-Bretanhafoi considerada por Marx, entre muitos outros, 0 espelho no qualoutras sociedades podiam ver urna imagem de seu proprio futu­ro; como 0 pais industrialmente mais avan,ado, a Gra-Bretanhaprenunciou desenvolvimentos que outros paises seriam for,a­dos a acompanhar. Muito compreensivelmente, poucos a con­siderariam desse modo nestas decadas finais do seculo xx...Mas 0 estilo de pensamento que esse ponto de vista representaten! desaparecido simultaneamente com a retirada da Gra-Bre­tanha para a obscuridade economica? Nao, em absoluto. Hojeem dia, sao os Estados Unidos, como a sociedade "economica­mente mais avan,ada", que preenchem urn papel comparavelna teoria social e na pesquisa - mesmo que raras vezes de modotao inequivoco quanta na versao de Parsons do evolucionismo.Ora, nao nego que possa ser util, para alguns fins, classificar associedades de acordo com seu nivel de desenvolvimento relati­vo a criterios de urna ou outra especie. Tambem .0 legitimo enecessario tentar especificar 0 que .0 generico para a ordem ins­titucional de diferentes sociedades. Mas a "pesquisa compara­tiva" deve ser 0 que 0 termo diz. Ou seja, temos de reconhecerque os processos "tipicos" de desenvolvimento so podem seravaliados por compara,ao direta entre diferentes sociedades,nao pela suposi,ao de que qualquer sociedade pode ser tratadacomo modele de urn processo de desenvolvimento endogeno.

A ascensao original da City a uma posi,ao de proeminen- \cia, como Ingham deixa bern claro, foi em grande parte urn ,resultado imprevisto de medidas fiscais instituidas por outras Irazoes. Portanto, 0 que para Marx, e para a maioria dos marxis­tas subseqiientes, pertencia somente as fases iniciais do desen­volvimento capitalista, corretagem comercial e usura, tomou-seuma caracteristica duradoura do capitalismo britanico. Precisa­mente porque a posi<;ao dominante da City foi gradualmentevinculada a seu papel como corretora para transa<;oes atraves

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380 A CONSTITU[(;AO DA SOClEDADE

1A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO 381

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1A CONSTlTUI(:AO DA SOCIEDADE i A TEORJA DA ESTRUTURA(:AO

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382

das fronteiras nacionais, 0 meSilla fen6meno nao tinha proba­bilidades de se repetir em outro pais. Mas se a posi,ao domi­nante que a City estabeleceu na primeira parte do seculo XIXfoi substancialmente impremeditada, a politica subsequente dedefesa e expansao de seu poder foi, usualmente, de urna especiemuito diferente. Ap6s 0 inicio do seculo XX, a economia brita­nica passou a enfrentar uma concorrencia intensificada porparte de outros paises industrializados e em vias de industriali­za,ao. Nessas circunstancias, a hegemonia economica da Cityviu-se seriamente amea,ada, interna e externamente. Em gran-de parte, como a analise de Ingham revela, a politica promovidapor grupos tanto na area bancaria quanta no ministerio da Fa- \zenda foi ativamente dirigida - com inegavel hito ~ para a defe- \sa do papel privilegiado das organiza,oes da City.

A pesquisa de Ingham mostra sensibilidade especial eprofunda para os problemas de "tempo mundial". A City veio aassurnir sua forma moderna em rela,ao a uma conjuntura defi­nida de eventos na primeira metade do seculo XIX. Sua persis­tencia como centro de atividades comerciais dependia da posi,aoda Grii-Bretanha como principal potencia industrial e do envol­vimento do pais numa expansao mundial das rela,oes capita­listas. Aqueles que levaram a cabo as reformas fiscais do co­me,o do seculo XIX acreditavam que os comerciantes, que ti­nham conseguido apoderar-se de urna substancial parcela docomercio outrora controlado por holandeses e franceses, seriamcapazes de consolidar 0 poderio economico britanico com basena combina,ao da politica de Livre Comercio com a adesao aoPadrao-Ouro. Huskissen, 0 presidente da Camara de Comercio,por exemplo, levantou compara,oes com a Veneza de seculospassados. A eficacia de tais influencias s6 foi possive!, entre­tanto, devido a alian,a de classes especifica descrita por Ingham.Alem disso, as condi,oes da consolida,iio inicial do poder daCity, conforme ele deixa claro, eram substancialmente diferen­tes daquelas que permitiram a manuten,ao desse poder em pe­riodos subsequentes. Durante 0 seculo XIX, 0 papel desse cen­tro financeiro na economia mundial tern uma base econ6micadireta no hito da Gra-Bretanha como produtor industrial. No

383

seculo XX, a situa,ao mudou; os setores "industrial" e "comer­cial" da economia britanica passaram a estar orientados paradiferentes conjuntos de envolvimentos. Foi a posi,ao da Citycomo corretora monetaria mundial, por essa altura ja interna­cionalmente estabelecida, que a habilitou a sustentar seu poder.Entretanto, por causa da mudan,a do conjunto de circunstan­cias, nos pianos nacional e internacional, sua prosperidade, nes­se periodo, talvez pressupusesse, na realidade, 0 relativo decli­nio da industria britanica.

o trabalho de Ingham demonstra que as condi,oes queinfluenciaram a ascensao da City, e que depois sustentaram seusprivilegios, sao substancialmente politicas. E provavelmentemelhor nao considerar a City uma "parte" do Estado, mas, in­terna e externamente, seu poder economico dependeu de modo )profundo de fatores politicos. Sua hegemonia no ambito da eco­nomia britanica foi estimulada pelos estreitos vinculos existen­tes entre a "bancocracia" e os niveis superiores do governo.Mas seu papel foi tambem vitalmente moldado por sua posi,aofocal nas atividades de corretagem em escala internacional. Eevidente que nenhuma concep,ao que trate 0 Estado como urnfenomeno unitario ou como uma especie de ator coletivo pode­ria abranger os materiais que Ingham analisa. Certas dimen­soes essenciais da orienta,ao politica - por exemplo, as refe­rentes ao Padrao-Ouro na decada de 1930 - afetaram fortementeo destino da City. Elas s6 podem ser entendidas de forma ade­quada em termos de adesoes e coalizoes variaveis entre agru- ~pamentos estrategicamente situados de individuos, tendo por ijvezes resultados que nenhurn deles pretendia.

Num plano mais geral, e possivel extrair li,oes da analisedo Estado moderno semelhantes as que indiquei decorrerem doestudo de Estados tradicionais. 0 estudo da "forma,ao do Es­tado", como procurei demonstrar, corre 0 risco de ser interpre­tado de forma seriamente erronea se for entendido de modoquase evolucionista ou em termos de no,oes endogenas. Vma"teoria" adequada do Estado tradicional ou moderno nao podeser vista como a maioria das que correntemente predominamna literatura. Em primeiro lugar, 0 nivel de generalidade que se

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pode presumir qUe tais teorias possuam epossivelmente muitomais baixo do que seus proponentes imaginam. Eclaro, paraque haja uma categoria geral como "Estado agnirio" ou "Es­tado capitalista", devem existir certas caracteristicas institucio­nais comuns que eles compartilhem, e disso pode ser inferidotambem que provavelmente tenham algumas tendencias dina­micas comuns. Mas demonstrar quais sejam elas nao e 0 mes-mo que explicar seqiiencias de desenvolvimento ou de mudan,aque ocorrem. Os tipos de conhecimento que certos individuosou grupos, sobretudo os mais poderosos, podem ter dessas ten­dencias dinamicas podem vir a integrar essas mesmas tenden­cias e a atuar para mode1<i-las de formas especificas. Fatoresque sao de importiincia determinada num tempo e lugar, ounurna certa conjuntura, podem tomar-se relativamente insigni- )ficantes alhures, em virtude da propria influencia que tiveramantes de mais nada. As condi,oes que originalmente favore- r

ceram 0 dominio da City sobre a industria nao eram as mesmasque permitiram mais tarde que essa posi,ao fosse mantida.

Alguns dos problemas suscitados pela natureza das teoriase generaliza,oes serao abordados nas se,oes que se seguem.Mas ao concluir esta parte da discussao, talvez convenha for­mular tambem urna questiio que pode ser provocada no espiritodo leitor pelos estudos empiricos que usei para ilustrar algunspontos criticos da teoria da estrutura,ao. 0 trabalho de Inghampoderi ter sido parcialmente influenciado por esses pontos, masos outros estudos analisados foram escritos de forma indepen­dente. Por que preocupar-se com no,oes incomodas como "es­trutura,ao" e 0 resto se pesquisas sociais de primeira categoriapodem ser feitas sem elas? Virios comentirios devem ser teci­dos em resposta a isso. As ideias incorporadas it teoria da es­trutura,ao permitem, do modo que tentei demonstrar, a realiza­,ao de vmas criticas e corre,oes muito basicas ao trabalho depesquisa analisado. Se isso evalido para 0 que considero seremexemplos de pesquisa de qualidade superior, hi razoes muitomais fortes para que essas criticas sejam dirigidas as pesquisas desofrivel qualidade. Alem disso, tudo que foi analisado na pes­quisa foi informado por uma seria e prolongada reflexao teorica

Juntando os fios da meada: teoria daestrutura,ao e formas de pesquisa

Examinei nas se,oes precedentes urna variedade de formasde pesquisa social que eimpossivel reunir sob uma s6 epigrafe.Isso significa que 0 trabalho de pesquisa e empreendido para

385

sobre as questoes investigadas. B talvez particularmente impor­tante sublinhar isso com rela,ao it obra de Willis. Poderiamosfacilmente retrati-la como nada menos - e nada mais - do queuma pe,a notavelmente arguta de etnografia. De fato, 0 livrode Willis contem urna substancial anilise teorica de problemas dereprodu,ao social, e nao pode haver duvida de que isso foi urnimportante estimulo para a pesquisa conduzida, assim comopara 0 modo de sua interpreta,ao. Dado que a discussao teoricade Willis segue linhas semelhantes, pelo menos em alguns as­pectos, aos pontos de vista que desenvolvi, nao e surpreendenteque seu trabalho de pesquisa fome,a uma fonte especialmenteelucidativa para examinar as implica,oes desses pontos de vista.

Entretanto, hi urn ponto a salientar que considero maisimportante do que esses. Nao existe, e claro, obriga,ao paraquem quer que efetue detalhada pesquisa empirica, num dadocenirio localizado, de acolher uma serie de no,oes abstratasque apenas atravancariam 0 que, caso contririo, poderia serdescrito com economia e em linguagem comum. Os conceitosda teoria da estrutura,ao, como no casu de qualquer perspectivate6rica concorrente, devem ser considerados, para muitos finsde pesquisa, nada mais do que recursos sensibilizadores. Querdizer, eles podem ser iiteis para se refletir sobre problemas depesquisa e para a interpreta,ao dos resultados de estudos. Massupor que estar teoricamente informado - obriga,ao de todosos que trabalham, em maior ou menor grau, na esfera das cien­cias sociais - significa sempre operar com uma por,ao de con­ceitos abstratos euma doutrina tao perniciosa quanto a que su­gere que podemos passar muito bern sem usar conceitos de

qualquer especie.

A TEORIA DA ESTRUTURAr;:JO

'1,

A CONSTITUfI:;JO DA SOCIEDADE384

""I

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A "inser,ao" metodol6gica do investigador no material queeo objeto de estudo pode ser feita em qualquer dos quatro niveisacima indicados. Toda pesquisa social pressup5e urn momentahermeneutico, mas a pressuposi,ao pode permanecer latentequando a pesquisa se ap6ia nurn conhecimento mutuo que naoprecisa ser exposto porque pesquisador e pesquisa habitam urnmilieu cultural comum. as mais eloqiientes defensores da pes­quisa quantitativa reprimem 0 significado essencial do nivel Iacima de duas maneiras. au consideram esse nivel mais pura­mente descrito do que explicativo, ou entao nao percebem queele participa da formul"9ao de seu trabalho de pesquisa. Mas apesquisa ligada ao nivel I pode ser explicativa e generalizante.Esta relacionada com a resposta a perguntas "por que?" que pro-

tentar elucidar muitas e diferentes quest5es, de acordo com anatureza dos problemas que 0 investigador Se prop5e esclare­cer. Ao indicar algumas das implica,5es da teoria da estrutura­,ao para a pesquisa empirica, nao quero sugerir a existencia deurn ilnico formato de pesquisa que todos devem doravante ado­tar. Isso e parte da questao de concentra,ao em estudos queforam, em sua grande maioria, empreendidos fora de qualquerinfluencia imediata dos conceitos que elaborei. Eu afirmei an­tes que nao me propus analisar a relevancia que a teoria daestrutura,ao pode ter ou nao para a avalia,ao de tipos especifi­cos de metodos de pesquisa - observa,ao participante etc. En­tretanto, e possivel e vale a pena observar mais genericamenteas tarefas de pesquisa social informadas pela teoria da estrutu­ra,ao e as conseqiiencias da discussao precedente dos traba­Ihos de pesquisa para 0 debate tradicional entre metodos "qua­litativos" e "quantitativos" em pesquisa social.

A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE 387

manam da inintegibilidade mutua de redes divergentes de sig­nificado. Naturalmente, tais quest5es surgem tanto nos varioscontextos de urna sociedade como entre sociedades. A pesqui­sa orientada primordialmente para problemas hermeneuticospode ter importancia generalizada, na medida em que serve paraelucidar a natureza da cognoscitividade dos agentes e, assim,suas raz5es para a a,ao, atraves de uma vasta gama de contex­tos de a,ao. Pe,as de pesquisa etnografica, como a de Willis ­ou como, digamos, a tradicional pesquisa de campo antropol6­gica em pequena escala numa comunidade -, nao constituemem si mesmas estudos generalizantes. Mas podem facilmentepassar a se-Io se executados em razoavel numero, de modo quesua tipicidade possa ser justificadamente determinada.

as aspectos hermeneuticos da pesquisa social nao sao ne­cessariamente esclarecedores para os sujeitos dessa pesquisa,uma vez que seu principal resultado e a elucida,ao de cenanosde a,ao considerados "milieux estranhos". Nao e esse 0 caso dainvestiga,ao da consciencia pratica, que significa 0 estudo doque agentes ja conhecem, mas, por defini,ao, normalmenteesclarece esse conhecimento para cles, se isso for expresso demodo discursivo, na metalinguagem da ciencia social. Somen­te para a etnometodologia a analise da consciencia priltica e urn"campo" circunscrito de estudo. Para todos os outros tipos depesquisa, a interpreta,ao da consciencia pnitica e urn elementonecessario, implicitamente entendido ou explicitamente enun­ciado, das caracteristicas mais amplas da conduta social.

Conforme sublinhei sistematicamente, a identifica,ao doslimites da cognoscitividade dos agentes em contextos variaveisde tempo e espa,o e fundamental para a ciencia social. En­tretanto, a investiga,ao do nivel 3 pressup5e urn considenivelconhecimento dos niveis 1,2 e 4. Sem cles, estamos de volta auma forma rudimentar de sociologia estrutural. a estudo dasconseqiiencias impremeditadas e condi,5es nao-reconhecidasda a,ao, conforme enfatizei quando examinamos a pesquisa deWillis, pode e deve ser realizado sem se usar a terminologiafuncionalista. a que e "impremeditado" e "nao-reconhecido",em qualquer contexto ou gama de contextos de a,ao, nao cons-

A TEORJA DA ESTRUTURA9AO

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(2)

(3)

(4)

lnvestigac;:ao de contexte e forma da consciencia pratica(0 inconscien1e)

Identificac;:ao de limites da cognoscitividade

ESpecificac;:ao de ordens inslitucionais

A EJucida~ao hermeneutica de redes de significado

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titui usualmente materia facil de descobrir. Nenhum estudo daspropriedades estruturais de sistemas sociais pode ser realizadocom exito, ou ter seus resultados interpretados, sem referenciail cognoscitividade dos agentes pertinentes - embora muitosproponentes da sociologia estrutural imaginem ser exatamenteisso 0 que define a provincia do "metodo socioI6gico".

o nivel4, a especifica~ao de ordens institucionais, envolvea analise das condi~oes de integra~ao social e sistemica atravesda identifica~ao dos principais componentes institucionais dossistemas sociais. Essas formas institucionais revestem-se desuma importancia quando, em termos de principios estruturaisdesignados, podem ser especificadas como "sociedades" glo­bais. Vma vez mais, porem, tive algumas dificuldades para en­fatizar que somente com muitas reservas a principal unidade deanalise na ciencia social pode ser chamada de "sociedade". Comfreqiiencia, as ordens institucionais interferem em decisoes quepodem ser reconhecidas entre sociedades globais.

E na rela~ao entre I e 2, por urn lado, e entre 3 e 4, poroutro, que freqiientemente se localiza uma divisao entre meto­dos "qualitativos" e "quantitativos". A predile~ao por metodosquantitativos tern sido, e claro, desde hi muito urna caracteris­tica dos atraidos para 0 objetivismo e a sociologia estrutural.De acordo com esse tipo de ponto de vista, a analise de condi­~oes da vida social que se estendem muito alem de quaisquercontextos imediatos de intera~ao e 0 objetivo primordial da cien­cia social, e a percep~ao da natureza "consolidada" dos com­ponentes institucionais da vida social pode ser melhor adquiri­da atraves da classifica~ao, da mensura~ao e dos metodos esta­tisticos. Obviamente, a ideia de que a preocupa~ao dominantedas ciencias sociais e a revela~ao de generaliza~oes semelhantesa leis sobre a conduta social esta intimamente relacionada comessa propensao. Ha neste ponto uma forte e, com freqiiencia,deliberada ressonancia da divisao "macro"/"micro". Aquelesque favorecem os metodos quantitativos como base principaldo que torna a ciencia social urna "ciencia" tendem a enfatizara primazia chamada "analise macrossocioI6gica". Os que advo­gam metodos qualitativos como fundamento da pesquisa empi-

DP: Meritissimo, solicitamos a formula~ao imediata da sen­tem;a e que se prescinda do relat6rio do funcionirio da con­dicional.

Juiz: 0 que diz 0 relat6rio?DP: Vma perra anterior por embriaguez e roubo. Nada serio.

Este e urn simples caso de furta em loja. Ele entrou noK-Mart com 0 intuito de roubar. Mas realmente 0 quetemos aqui eurn pequeno furta.

Juiz: E a promotoria 0 que tern a dizer?P: Nada a favor nem contra.

Juiz: Qualquer obje<;ao a uma senten<;a imediata?P: Nenhuma.

Juiz: Ha quanto tempo ele esta recluso?DP: Hi 83 dias.

luiz: Considerando que se trata de urn delito leve, pelo artigo 17do C6digo de Processo Penal, sentencio 0 acusado a no­venta dias em prisao distrital, descontado 0 tempo ja cum­pridO.37

rica nas ciencias sociais, per outro lado, enfatizam I e 2, a fimde apontar 0 carater necessariamente situado e significativo daintera<;ao social. Estes se inclinam, com freqiiencia, a mostrar­se diretamente hostis ao usc de metodos quantitativos na cien­cia social, escorados no argurnento de que a quantifica~ao e 0

uso do metodo estatistico impoem il vida social urna fixidezque ela, de fato, nao tern. Nao e diftcil discemir no conflitoentre essas posi~oes urn residuo metodol6gico do dualismo deestrutura e a~ao, e, mostrando que tal dualismo e espUrio, pode­remos dissecar melher algumas das implica~oes empiricas dadualidade da estrutura.

Para ver como isso ocorre, retomemos uma vez mais a esseconceito, nurn cenario empirico diferente daquele discutido ateaqui. Segue-se a transcri~ao de urn fragmento de intera~ao

numa sala de tribunal. Os envolvidos sao urn juiz, urn defensorpublico (DP) e urn promotor (P), e a interlocu~ao refere-se a urnpreso que se declarou culpado nurna acusa~ao de roubo cominvasao em segundo grau. A quesilio em discussao e a senten~a

a ser aplicada ao reu.

389A TEORIA DA ESTRUTURA9liO

1

A CONSTITUl9liO DA SOCIEDADE388

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Este fragmento situado de intera,ao, como qualquer outro,pode ser facilmente tornado para indicar como 0 que parece seruma troca de palavras trivial esta, de fato, profundamente im­plicado na reprodu,ao de institui,oes sociais. Cada fala na con­versa entre os participautes so e apreendida por eles (e pelo lei­tor) como significativa pela tacita invoca,ao de caracteristicasinstitucionais do sistema de justi,a criminal. Estas servem desuporte para cada interlocutor, que (corretamente) as presurnemcomo sendo de conhecimento mutuo na situa,ao. Note-se queo conteudo desse conhecimento mutuo supoe muitissimo maisdo que a mera percep,ao das taticas de "procedimento apro­priado" em tais casos, embora isso tambem esteja envolvido.Cada participante possui vastos conhecimentos sobre 0 que eurn "sistema legal", sobre procedimentos norrnativos de Direi­to, sobre 0 que presos, advogados e juizes fazem etc. Para que aintera,ao seja realizada, os participautes fazem uso de seu co­nhecimento da ordem institucional em que estao envolvidos,de modo a tornar essa intera,ao "significativa". Entretauto, aoinvocar a ardem institucional desse modo - e nQo existe Dutra

rnaneira de os participautes na intera,ao tornarem inteligivel ecoerente 0 que fazem, aos olhos uns dos outros -, eles contri­buem com isso para reproduzi-Ia. Alem disso, e essencial verque, ao reproduzi-la, eles tambem reproduzem sua "faticidade"como fonte de coer,ao estrutural (sobre eles proprios e sobreoutros). Tratam 0 sistema de justi,a como uma ordem "real" derela,oes, no ambito da qual sua propria intera,ao esta situada ea qual ela expressa. E e urna ordem "real" (isto e, estrutural­mente estavel) de rela,oes precisamente porque eles, e outroscomo eles em contextos afins e semelhantes, a aceitam comotal - nao necessariamente em sua consciencia discursiva, masna consciencia prMica incorporada ao que eles fazem.

Eimportaute nao confundir essa observa,ao com a famosasenten,a de W I. Thomas, segundo a qual se os atores "definemas situayoes como reais, entao elas sao reais em suas conse­quencias". A proposi,ao de Thomas sugere existir circunstanciasque nao sao, de fato, "reais" (isto e, ficticias ou imaginarias),e que, nao obstante, tern consequencias reais, pois as pessoas

acreditam nelas. Merton adotou isso como urn ponto de partidapara sua forrnula,ao da profecia auto-realizadora, na qual urn es­tado de coisas se concretiza pelo simples fato de ter sido auun­ciado ou profetizado. Ora, nao duvido em absoluto da impor­tancia da profecia auto-realizadora e de urna gama de fenome­nos ligados a ela. Mas ela nao e 0 prototipo da "faticidade" depropriedades estruturais contidas na dualidade da estrutura. Esseponto e mais sutil e mais profundo, ligando a pr6pria possibili­dade da inteligibilidade e coerencia mutuas da intera,ao situa­da a "faticidade" num nivel institucional de base ampla.

Assinale-se tambem como a "faticidade" da ordem insti­tucional esta intima e fundamentalmente ligada ao poder, queela expressa e facilita nos detalhes da intera,ao. Pois a "aceita,aocomo real", que esta embutida na continuidade mutuamente in­teligivel da intera,ao, e 0 proprio fundamento do sistema legalcomo uma expressao de modos de domina,ao. A "aceita,ao comoreal" consubstanciada em modos concretos de procedimentosnao significa claramente 0 mesmo que conceder discursiva­mente legitima9ao ao sistema, embora, eclaro, tampouco 0 im­pe,a. Como sistema de rela,oes de poder, a "aceita,ao comoreal" tern implica,oes muito mais profundas do que 0 poderdiferencial real que os agentes participantes sao capazes de !ra­zer para a intera,ao a fim de que seus pontos de vista sej am leva­dos em conta. Entretanto, e visivel que a sequencia da conversanao obedece as regras mais "democraticas" que as conversa­,oes entre pares ordinariamente exibem, e reflete diretamenteo poder diferencial. Assim, 0 juiz tern 0 direito de interrompero que os outros dizem, fazer deterrninados tipos de perguntas econtrolar a sequencia da interlocu,ao, urn direito que os outrosnao tern, pelo menos no mesmo grau. 0 fato de a conversa,aonao possuir urna forma convencional de revezamento dos inter­locutores adquire inteligibilidade em virtude do reconhecimen­to mutuo de que 0 juiz tern uma certa identidade social institu­cionalizada, conferindo-lhe prerrogativas e san,oes definidas.

Permitam-me formular isso num nivel mais geral para dei­xar suas conota,oes bern claras. Toda intera,ao social estasituada no interior de fronteiras tempo-espa,o de co-presen,a

r

390 A CONSTfTUI9A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 391

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Uma vez entendido plenamente este ponto, desaparece aideia de que existe urna nitida divisao ou uma necessaria oposi­<;ao entre metodos qualitativos e quantitativos. Eprovavel queas tecnicas quantitativas sejam requeridas, usualmente, quandose pretende investigar um grande numero de "casos" de um fe­nomeno, com rela<;ao a uma variedade restrita de caracteristi­cas designadas. Mas a coleta e interpreta<;ao de material quan-

o mundo social econstituido por ar;6es situadas, produzi­das em detenninadas situac;oes concretas, que sao acessiveis aosparticipantes para seu proprio reconhecimento, descric;ao e usccomo bases garantidas para novas inferencias e a<;6es tanto nes­sas mesmas ocasi6es quanta em subseqiientes. As ac;5es situadassao produzidas por meio de mecanismos de interayao sociallivresde contexto, sensiveis ao contexto, e a estrutura social eusadapor membros da sociedade para tomar inteligiveis e coerentessuas ayoes em detenninadas situayoes. Nesse processo, a estru­tura social eurn recurso essencial e produto da ayao situada; e aestrutura social ereproduzida como uma realidade objetiva quecoage parcialrnente a ayao. Emediante essa relayao reflexivaentre estrutura social e ayao situada que atransparencia de expo­siyoes [a inteligibilidade mutua da conduta] erealizada pela ex­plorayao da dependencia de contexto do significado. 38

(quer esta seja ou nao ampliada atraves de meios tais como car­tas, telefonemas etc.). Seu carater situado, como analisei emdetalhe nos capitulos I e II, esta diretamente envolvido com anatureza indiciadora da realiza<;ao com exito da comunica<;aomutuamente inteligivel. Mas 0 carater situado da intera<;ao naoconstitui urna barreira para aquela "fixidez" institucional de­monstrada por ordens institucionais atraves do tempo e do es­pa<;o. E sua pr6pria condi<;ao, exatamente como a existenciadaquelas ordens e a condi<;ao das mais transit6rias formas deencontro social ou conversa<;ao. A monitora<;ao reflexiva daconduta social e intrinseca a"faticidade" exibida pelas proprie­dades estruturais de sistemas sociais, nao algo marginal ou adi­cional a ela. Wilson expressou isso da seguinte maneira. Comoafirma<;ao da importancia do conceito da dualidade da estrutu­ra, eu nao poderia fazer melhor:

393

titativo depende de procedimentos metodologicamente identi­cos acoleta de dados de urna especie "qualitativa", mais inten­siva. Epor isso que 0 estudo de Gambetta pode ser usado parafocalizar alguns dos mesmos problemas investigados por Willis.Os dados do primeiro autor referem-se a urn grande nfunero deindividuos; 0 material do segundo autor, apenas a urn grupo re­duzido. 0 trabalho de Gambetta envolve 0 usa de uma bateria derefinados metodos de pesquisa, ao passo que 0 estudo de Willisconsiste inteiramente em informa<;oes etnograficas. Mas a pes­quisa do primeiro, nao menos do que a do segundo, pressupoeurna apreensao da a<;ao situada e de significados sem a qual ascategorias formais da metalinguagem te6rica empregada peloinvestigador nao teria sentido nem aplica<;ao. Todos os chamadosdados "quantitativos", quando examinados atentamente, resul­tam ser compostos de interpretacy5es "'qualitativas" - isto e, con­textualmente localizadas e indiciadoras - produzidas por pes­quisadores situados, codificadores, funcionarios govemamen­tais e outros. Os problemas hermeneuticos apresentados pelapesquisa etnografica tambem existem no caso de estudos quan­titativos, embora esses passam ser em grande parte "enterra­dos" pela extensao em que os dados envolvidos foram "traba­lhados". As tentativas de produzir medidas em termos de escalas,eliminar inclina<;oes seletivas, criar tecnicas coerentes de amos­tragem etc., situam-se dentro desses limites. Elas nao compro­metem logicamente, de maneira alguma, 0 uso de metodos quan­titativos, embora nos levem, sem davida, a apreciar a naturezados dados quantitativos de modo diferente do de alguns defen­sores da sociologia estrutural.

Os niveis I e 2 sao, assim, tao essenciais para entender 0 3e 0 4 quanta 0 inverso, e os metodos qualitativos e quantitativosdevem ser vistos como aspectos mais complementares do queantagonicos da pesquisa social. Uns sao necessarios aos ou­tros, se quisermos que a natureza substantiva da dualidade daestrutura seja "mapeada" em termos das fafmas de articulac;:aoinstitucional por meio das quais os contextos de intera<;ao saocoordenados em sistemas sociais mais abrangentes. Um pontoque precisa ser convincentemente acentuado e que os pesquisa-

A TEORJA DA ESTRUTURAf;AOA CONSTITUIf;A-O DA SOCIEDADE392

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Conhecimento mutuo versus senso comum

dores sociais devem estar atentos para os modos como os dadosquantitativos sao produzidos. Pois, diferentemente do movi­mento do merclirio dentro de urn termometro, os dados sociaisnunca sao apenas urn "indicador" de urn fenomeno independen­temente dado, mas sempre, ao mesmo tempo, exemplificamaquilo de que "tratam"- isto e, processos de vida social.

E6bvio que a pesquisa empirica falta urn fundamento 16­gico se ela nao gerar novos conhecimentos antes inexistentesou inacessiveis. Como tados os atores sociais vivem em con­textos situados no interior de periodos mais vastos de tempo­espa,o, 0 que enovidade para alguns desses atores nao eparaoutros - incluindo, entre esses outros, os cientistas sociais. E,evidentemente, nessas "lacunas de informa,ao" que a pesquisaetnografica tern sua importiincia especifica. Num sentido am­plo do termo, esse genero de pesquisa eexplanat6rio, porquantoserve para esclarecer enigmas apresentados quando individuosde urn cemirio cultural se encontram com os de urn Dutro que,em alguns aspectos, emuito diferente. A pergunta "Por que eque eles atuam (pensam) como atuam (pensam)?" eurn convitepara ingressar num milieu culturalmente estranho e compreen­de-lo. Para os que ja se encontram dentro desse milieu, comoWinch e muitos outros assinalaram, essa iniciativa pode nadater de inerentemente esclarecedor. Entretanto, muito da pesqui­sa social, em termos do material empirico que gera e das inter­preta,5es te6ricas a ela possivelmente vinculadas, tern conota­,5es criticas para as cren,as sustentadas pelos agentes sociais.Para investigar 0 que poderiam ser tais conota,5es, devemos con­siderar a questao seguinte: em que sentido as ciencias sociaisrevelarn novos conhecimentos e como tais conhecimentos pode­rao ligar-se a critica da falsa cren,a? Essas quest5es sao com­plexas, e nao tentarei tratar aqui senao de alguns de seus aspectos.

Os esfon;os cruciais das ciencias sociais, como os da cH~n­

cia natural, estao estreitamente ligados a adequa,ao 16gica e

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empirica de observa,5es relatadas e teorias a elas associadas.Como Schutz e muitos outros enfatizaram corretarnente, 0 ca­rater critico da ciencia social nesse sentido afasta-se normal­mente, de urna forma deveras abrupta, das cren,as e teorias emuso incorporadas a conduta da vida social cotidiana. Todos osatores sociais, epassivel dizer-se com corre¥ao, sao te6ricos so­ciais que alteram suas teorias a luz de suas experiencias e saoreceptivos a informa,ao que chega, a qual pode ser por elesadquirida ao fazerem isso. A teoria social nao e, em absoluto, aprovincia especial e isolada de pensadores academicos. En­tretanto, os atores leigos estao em geral preocupados, sobretudo, Icom a utilidade pratica do "conhecimento" que eles aplicarnem suas atividades cotidianas, e pode haver caracteristicas basi­cas da organiza,ao institucional da sociedade (incluindo a ideo­logia, mas nao limitadas a ela) que restrinjam ou distor,arn 0

que consideram ser conhecimento.E certamente 6bvio que 0 "modelo revelador" da ciencia

natural nao pode ser diretamente transferido para as ciencias so­ciais. As cren,as ditadas pelo senso comum acerca do mundonatural sao corrigiveis a luz das descobertas das ciencias natu­rais. Nao ha grandes dificuldades 16gicas para se entender 0 queesta acontecendo em tais circunstancias, embora possa haverbarreiras sociais ao acolhimento de iMias cientificasJ9

• Querdizer, as cren,as leigas estao sujeitas a corre,ao, na medida emque isso enecessario, pela entrada de novas teorias e observa­,5es cientificas. Conforme enfatizei, as "descobertas" das cien­cias sociais naD sao necessariamente novas para aqueles aosquais elas dizem respeito.

As quest5es envolvidas aqui tomaram-se bastante nebulo­sas em conseqiiencia dos avan,os e recuos entre as formula,5esobjetivistas e interpretativas da ciencia social. As primeiras fo­ram propensas a aplicar 0 modelo revelador de forma desinibi­da as ciencias sociais. Isto e, consideraram as cren,as ditadaspelo senso comurn e envolvidas na vida social corrigiveis semproblemas, em fun,ao do esclarecimento que as ciencias sociaispodem fomecer. Entretanto, aqueles que sao influenciados pelahermeneutica e pela filosofia da linguagem ordinaria estabele-

A TEORJA DA ESTRUTURA9AO'rommw,,"",=mw", 1394

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ceram poderosas obje,6es a esse ponto de vista rudimentar. Ascren,as ditadas pelo senso comum, tal como foram incorporadasao uso da linguagem e a a,ao cotidianos, nao podem ser trata­das como meros impedimentos para uma caracteriza,ao validaou veridica da vida social. Pois nao podemos absolutamente des­crever a atividade social sem conhecer 0 que seus atores consti­tuintes sabem, tanto discursiva quanto tacitamente. 0 empiris­mo e 0 objetivismo simplesmente suprimem toda a questao dagera,ao de descri,6es sociais atraves do conhecimento mutuoque observadores sociol6gicos e membros leigos da sociedadetern em comum". 0 problema consiste em que, tendo chegadoa essa conclusao, aqueles que advogam formas interpretativas daciencia social acham dificil ou impossivel manter aquela agu­deza critica na qual 0 tipo oposto de tradi,ao corretamente in­sistiu ao justapor ciencia social e senso comum. As tarefas daciencia social parecem, pois, limitadas precisamente a etnogra-fia - ao esfor,o hermeneutico da "fusao de horizontes"". UrnVatal paralisia da vontade critica e logicamente tao insatisfat6ria :"quanta 0 usa desordenado do modelo revelador.

Uma saida para esse impasse pode ser encontrada se dis­tinguirmos 0 conhecimento mutua do "sensa comum"42. 0 pri­meiro refere-se ao necessario respeito que 0 analista social deveter pela autenticidade da cren,a ou pela entree hermeneutica nadescric;ao da vida social. "'Necessaria" tern, na frase acima, for­,a l6gica. A razao por que, caracteristicamente, faz mais sentidofalar de "conhecimento", em vez de "cren,a", quando se falado modo como os atores descobrem seu caminho nos contextosda vida social, esta em que a gera,ao de descri,6es requer a pa­rentetiza,ao do ceticismo". As cren,as, tMicas e discursivas,tern de ser tratadas como "conhecimento" quando 0 observadorestit atuando no plano metodol6gico de caracteriza,ao da a,ao.o conhecimento mutuo, encarado como 0 modo necessario deobter acesso ao "objeto de estudo" da ciencia social, nao e cor­rigivel a Ill' de suas descobertas; pelo contritrio, e a condi,aopara se estar apta a apresentar "descobertas".

Edevido ao fato de 0 conhecimento mutuo ser predomi­nantemente tacito - condll'ido no nivel da consciencia pratica

- que nao fica tao 6bvio 0 fato de que 0 respeito pela autentici­dade da cren,a constitui uma parte necessaria de todo 0 traba­lho etnogritfico nas ciencias sociais. Os ataques condll'idospor aqueles influenciados pela fenomenologia e pela etnometo­dologia contra as concep,6es mais ortodoxas de ciencia socialtiveram, sem duvida, consideravel importitncia na elucida,ao danatureza do conhecimento mutuo. Mas, ao falarem sobre "sensocomum" ou termos equivalentes de modo difuso, eles nao se­pararam analiticamente a questao metodol6gica da questao cri­tica. Ao fazer a distin,ao entre conhecimento mutuo e sensocomum, e meu intuito reservar 0 segundo conceito para referir­me as cren,as proposicionais implicitas na conduta das ativida­des cotidianas. A distin,ao e predominantemente analitica; querdizer, 0 senso comum e conhecimento mutua tratado comocren,a falivel, nao como conhecimento. Entretanto, nem todoconhecimento mutuo pode expressar-se como cren,a proposi­cional- cren,a em que se trata de ceflos estados de coisas e naode outros. Alem disso, nem todas essas cren,as podem ser dis­cursivamente formuladas por aqueles que as alimentam.

Distinguir entre conhecimento mutuo e senso comum naosubentende que urn e outro sejam fases de estudo de facil sepa­ra,ao na pesquisa social. Em primeiro lugar, a linguagem des­critiva usada por observadores sociol6gicos e sempre mais oumenos diferente da usada por atares sociais leigos. A introdu­,ao da terminologia cientifica social pode (mas nao necessa­riamente) por em duvida cren,as discursivamente formuladas(ou, quando ligadas num conjunto, "teorias em uso") que osatores sustentam. Quando as descri,6es contestadas ja sao em­pregadas pelos agentes estudados, qualquer outra apresentadapor observadores, mesmo usando categorias de atores, e direta­mente critica de outras terminologias existentes que poderiamter sido usadas. 0 que de uma perspectiva e urn "movimento delibertayao" podera ser uma "organizayao terrorista" de umaoutra. A escolha de um termo em vez de outro implica, e claro,uma postura definida por parte do observador. Emenos ime­diatamente evidente que a escolha de um termo mais "neutro"tambem denuncia uma postura; seu usa indica ter sido assumi-

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da pelo observador uma distancia critica em rela,ao aos con­ceitos usados pelos atores diretamente envolvidos.

Em qualquer situa,ao de pesquisa pode haver cren,as acei­tas por participantes que se chocam tanto com as defendidaspelo observador que este expressa seu distanciamento critico de­les, mesmo num estudo, sob todos os demais aspectos, puramen­te emognifico. Urn antropologo nao sentini 0 menor receio emafinnar: "Os X obtem suas safras procedendo a semeadura emtodos os outonos", na medida em que e um conhecimento mutuoentre ele e os membros da cultura X que a semeadura numaepoca apropriada do ano produzira uma determinada safra. Masesse mesmo antropologo podera dizer: "Os X acreditam que suadan,a ritual provocani chuva", indicando a existencia de uma di­vergencia entre 0 que ele e os membros da cultura X acreditamser as condi~5es necessanas para a ocorrencia de chuva44•

Os exemplos mencionados no paragrafo acima indicamque ate mesmo a pesquisa social puramente etnografica - istoe, a pesquisa que respeita a meta limitada da reportagem des­critiva - e propensa a ter um momento critico. Embora nao com­prometa a distin,ao logica entre conhecimento mutuo e sensocomum, isso significa especificar mais diretamente 0 que estaenvolvido nesse momento critico, que em outros tipos de pes­quisa e geralmente desenvolvido de modo mais direto.

Devo enfatizar neste ponto as dimensoes modestas da dis­cussao que se segue. Analisar logicamente 0 que esta envolvi­do na acumula,ao de conhecimento mutuo e na critica da cren­,a ditada pelo senso comum suscita questoes de epistemologiaque nao caberia discutir aqui exaustivamente. As ideias que de­senvolverei na seqiiencia pretendem fornecer apenas um delinea­mento geral, 0 qual pressupoe uma concep,ao epistemologicadefinida sem a levar ao detalhamento. Quero afirmar a existen­cia de dais sentidos em que a ciencia social e importante para acritica das cren,as leigas interpretadas como senso comum (0que inclui a critica da ideologia, mas nao the confere prioridadeespecial). As atividades criticas em que os cientistas sociais seenvolvem, enquanto nucleo de tudo 0 que fazem, trazem impli­ca,oes para as cren,as alimentadas pelos agentes, na medida em

que se pode mostrar que estas nao tem validade ou sao inade­quadamente fundamentadas. Mas essas implica,oes sao especial­mente importantes quando as cren,as em questao sao incorpo­radas as razoes dos atores sociais para fazer 0 que fazem.Apenas algumas das cren,as que os atores possuem ou profes­sam sao parte das razoes por eles apresentadas para sua condu­tao Quando estas sao submetidas a critica, a luz das afirma,oesou descobertas da ciencia social, 0 observador social esta pro­curando demonstrar que elas nao sao boas.

A identifica,ao das razoes dos agentes esta normalmenteligada, de modo intimo, aos problemas hermeneuticos criadospela gera,ao de conhecimento mutuo. Sendo assim, cumpre dis­tinguir 0 que chamarei de "criterios de credibilidade" dos "cri­terios de validade" pertinentes a critica de razoes como boasrazoes. Os criterios de credibilidade referem-se aos de caraterhermeneutico usados para indicar como a apreensao das razoesdos atores elucida exatamente a que eles estao fazendo a luzdessas razoes. Os criterios de validade referem-se aos de eviden­cia fatual e entendimento teorico empregados pelas cienciassociais na avalia,ao de razoes como boas razoes. Considere-seo caso famoso das araras vermelhas, muito discutido na litera­tura antropologica. Os Bororo do Brasil Central dizem: "Nossomos araras vermelhas." Debatida por Von den Steinen, Dur­kheim e Mauss, entre outros, essa afirma,ao pareceu a muitosabsurda ou hermeneuticamente impenetravel. A questao foi,porem, recentemente tratada por um antropologo que teve a opor­tunidade de reinvestigar 0 assunto na fonte, entre os Bororo".Ele apurou que: a declara,ao e feita unicamente pelos homens;as mulheres Bororo tendem a conservar araras vermelhas comoseus animais de estima,ao; em varios aspectos, na sociedadeBororo, os homens sao peculiarmente dependentes das mulhe­res; e 0 contato com os espiritos e feito por homens e ararasvermelhas independentemente das mulheres. Parece plausivelinferir que "Nos somos araras vermelhas" e uma declara,ao naqual os homens comentam ironicamente sua divida para comas mulheres e, ao mesmo tempo, afirmam sua propria superio­ridade espiritual diante delas. A investiga,ao das razoes para a

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convincente (motivacional) na medida em que existe uma ra­zao para a a9ao. Quando ela informa sobre urn segmento ouaspecto de conduta em rela9ao ao mundo natural, mostrar que efalsa levara 0 agente (ceteris paribus) a mudar seu comporta­mento em quaisquer aspectos pertinentes. Se isso nao aconte­ce, a suposi9ao e de que: oiltras considera90es estao preponde­rando no espirito do agente; as implica90es da falsidade dacren9a sao mal-interpretadas; ou 0 ator nao aceita, de fato, quea falsidade tenha sido provada de forma convincente. Ora, saoas cren~as sociais, nao as relacionadas com a natureza, as ele­mentos constitutivos daquilo de que elas tratam. Segue-se daique a critica da falsa cren9a (ceteris paribus) e urna interven­,ao pratica na sociedade, urn fenomeno politico numa acep9aoampla do termo.

Como esse exame da cren9a se relaciona com a asser9aode que todos os atores competentes nao s6 sabem 0 que estaofazendo (sob uma descri9ao ou outra), mas devem faze-lo paraa vida social ter 0 cariiter que tern? A pergunta podera ser maisbern respondida por referencia a urn exemplo concreto. Con­sidere-se votar numa situa9ao de "uma pessoa, urn voto". Talpratica envolve claramente todos os eleitores potenciais saben­do 0 que e urn "voto", que s6 podem votar urna (mica vez e emseu nome pessoal etc. Somente quando os participantes sabemessas coisas, e atuam de modo apropriado, podemos dizer queexiste, realmente, 0 sistema "uma pessoa, urn voto". Ate queponto poder-se-a validamente dizer que esse fenomeno existe,se apenas uma certa propor9ao de pessoas tiver pleno conheci­mento de que os conceitos pertinentes sao urn problema her­meneutico? Dizer que os atores "devem" saber de sua a9aopara que a vota9ao exista e especificar 0 que conta como des­cri9ao valida da atividade. Entretanto, sem duvida, algumas pes­soas envolvidas poderao ignorar 0 significado de votar ou to­dos os procedimentos incluidos nurna vota9ao, bern como ainfluencia de seu ato no resultado da vota9ao. Generalizando,poderiamos dizer que quaisquer individuos podem cometer erroscom rela9ao as coisas envolvidas em qualquer aspecto de qual­quer conven9ao social. Mas nao se pode estar equivocado a maior

,A CONSTITUf(;AO DA SOCIEDADE

declara9ao ser feita ajuda a esclarecer a natureza desta. A in­vestiga9ao de criterios de credibilidade, com rela9ao a cren9asdiscursivamente formuladas, de qualquer modo, depende quasesempre do esclarecimento dos seguintes itens: quem as expres­sa, em que circunstancias, em que estilo discursivo (descri9aoliteral, metiifora, ironia etc.) e com que motivos.

A avalia9ao de criterios de validade e govemada exclusi­vamente pela conjun\=ao das criticas "interna" e "externa" ge­rada pela ciencia social. Quer dizer, os criterios de validade saoos de critica intema que considero serem substancialmente cons­titutivos do que a ciencia social e. 0 principal papel desta notocante a critica do senso comum esta na avalia9ao de razoescomo boas razoes em termos do conhecimento simplesmenteinacessivel a agentes leigos ou interpretado por estes de mododiferente do formulado nas metalinguagens da teoria social.Nao vejo nenhuma base para duvidar de que os padroes de cri­tica interna nas ciencias sociais transferem-se diretamente paraa critica extema neste aspecto. Trata-se de urna afirma9ao pe­rempt6ria, e e particularmente nesta conjuntura que se pressu­poe Urn ponto de vista epistemol6gico especifico. Presume-se,e eu presumo, ser possivel demonstrar que algumas afirma90esde cren9a sao falsas e outras verdadeiras, embora 0 que signifi­ca "demonstrar", neste caso, precise ser examinado com ames­rna minuciosidade quanto "falso" e "verdadeiro". Presume-se,e eu presumo, que a critica interna - os exames enticos a queos cientistas sociais submetem suas ideias e pretensas desco­bertas - e inerente ao que a ciencia social e como esfor90 cole­tivo. Pretendo correr 0 risco de cair no desfavor dos filosofica­mente sofisticados afirmando, sem mais delongas, que susten­to a validade de tais pressuposi90es. Num diferente contexto,porem, seria claramente necessario defender tais asser90es emconsideravel detalhe.

Penso que e possivel demonstrar a existencia de uma rela­9aO nao-contingente entre provar a falsidade de uma cren9a e asimplica90es priiticas para a transforma9ao da a9ao vinculada aela'". Criticar uma cren9a significa (logicamente) criticar qual­quer atividade ou priitica levada a efeito em fun9ao dela, e e

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esta se refere) pode, de fato, estar intimarnente ligado. Amaioria das "leis" ou generaliza90es mais conhecidas daEconomia neoclassica e constituida, poder-se-ia pensar, porenunciados cujo conhecimento nao alterara em nada as cir­cunstancias com que se relacionam. Isto e, depende de pa­droes de motiva,ao e raciocinio, por parte de agentes leigos,que muito improvavehnente se alterarao, nao importa 0 quan­to essas generaliza,oes se tomem familiares. Mas 0 desen­volvimento da ciencia economica desempenhou urn papelna cria,ao das pr6prias condi,oes em que se mantem asgeneraliza,oes em questao, promovendo uma postura previ­dente em rela,ao Ii expansao do capital etc. - fenomeno quediscutirei mais adiante.

3) Quando 0 novo conhecimento ou informa,ao e usado paramanter as circunstancias existentes. Is50, obviamente, padeacontecer ate mesmo quando as teorias ou descobertas en­volvidas, se utilizadas de deterrninada maneira, modificamo que descrevem. A apropria,ao seletiva de material cienti­fico social pelos poderosos, por exemplo, desvia esse mate­rial para fins muito diferentes daqueles que poderiam serservidos se ele fosse mais amplamente difundido.

4) Quando aqueles que procuram aplicar 0 novo conbecimentonao estao em situa,ao de 0 fazer de modo efetivo. Eevidenteque isso constitui, com freqiiencia, urna questao de acesso aosrecursos necessiirios para alterar urn conjunto existente decircunstiincias. Mas e preciso sublinbar tambem que a possi­bilidade de articular interesses discursivarnente e, geralmente,distribuida de modo assimetrico numa sociedade. Os que estaonos escal5es inferiores da sociedade provavelmente teraoviirias limita,oes em suas capacidades de formular discursi­vamente seus interesses, sobretudo os de mais longo prazo.Eles tern menos probabilidades do que os que se encontramem posi,oes superiores de transcender 0 carater situado - notempo e no espa,o - de suas atividades. Isso pode ser devidoa oportunidades educacionais inferiores, pelo carater maisconfinado de seus tipicos milieux de a,ao (nos termos deGouldner, eles tern mais probabilidades de ser "locais" do

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A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE ,

IIi,

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parte do tempo sobre 0 que se faz, sem ser visto como incom­petente por outros atores sociais; e nao existe urn s6 aspecto dequalquer conven,ao sobre 0 qual a maioria dos agentes possaestar errada a maior parte do tempo. Devemos, e claro, reconbe­cer outras possibilidades. Agentes posicionados em alguns seto­res de uma sociedade poderao ignorar completamente os acon­tecimentos de outros; atores poderao acreditar que os resulta­dos de suas atividades sao diferentes dos mostrados realmente;e a redescri,ao de urn contexto de a,ao nos conceitos da cien­cia social podeni representar as ocorrencias de maneiras diver­sas daquelas com que 0 agente esta familiarizado.

Podemos supor, repetindo, que 0 novo conbecimento desen­volvido nas ciencias sociais tera, habitualmente, implica,oestransformacionais imediatas para 0 mundo social existente.Mas 0 que e coberto por ceteris paribus?

Em que condi,oes isso sera diferente?

I) Mais obviamente, quando as circunstiincias descritas ou ana­lisadas tratam de eventos passados e se relacionam com con­di,oes sociais que ja nao vigoram. No caso em que se penseque isso permite, uma vez mais, uma distinc;ao nitida entrehist6ria e ciencia social, sublinbe-se que ate estudos pura­mente etnograficos de culturas mortas podem muito bern sertratados como esclarecedores de circunstiincias atuais, muitasvezes pelos pr6prios contrastes que revelam. Sem duvida,nao podemos dizer, em principia, que 0 conhecimento acer­ca de situa,oes nao mais existentes e irrelevante para outroscontextos nos quais esse conhecimento poderia servir debase de urn modo transformativo. A influencia do "cesarismo"na politica francesa do seculo XIX, satirizada por Marx, eurn born exemplo.

2) Quando a conduta em questao depende de motivos e raz5esque nao sao alterados por nova informa,ao tomada acessi­vel. Neste caso, as rela,oes envolvidas podem ser muito maiscomplicadas do que parece Ii primeira vista. 0 que pareceser dois conjuntos de fenomenos independentes (por exem­plo, 0 enunciado de urna generaliza,ao e as atividades a que

r

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Generaliza~iies em ciencia social

A vida social, em muitos aspectos, nao e um produto in­tencional de seus atores constituintes, embora a conduta no

que cosmopolitas) ou ainda porque os que ocupam posi,oessuperiores simplesmente dispoem de uma gama muito maiorde informa,ao acessive!. Tambem e improvavel que os dosescaWes inferiores tenbam acesso a um discurso coerente econceptualmente refinado em cujos termos seus interessespossam ser ligados as condi,oes de sua realiza,ao.

5) Quando 0 que e reivindicado como conbecimento resulta ser,em parte, falso. Ebastante 6bvio, por certo, que nao existe aconvergencia necessaria entre a validade de ideias ou obser­va,oes produzidas nas ciencias sociais e sua apropria,ao poratores leigos. Varias possibilidades derivam disso, incluindoaquela mediante a qual pontos de vista originalmente falsospodem tomar-se verdadeiros como resultado de sua propa­ga,ao (a realiza,ao de algo como simples efeito de sua pro­fetiza,ao). Nao se segue inevitavelmente que a ado,ao deconclusoes nulas seja inconseqiiente a respeito da condutaque pretendem descrever.

6) Quando 0 novo conbecimento e trivial ou desinteressante paraos atores aos quais faz referencia. Este caso e algo mais sig­nificativo do que poderia parecer, por causa das diferen,asque podem existir entre as preocupa,oes de atores leigos eas de observadores sociais. Nas palavras de Schutz, as con­veniencias dos cientistas sociais nao sao necessariamente asmesmas dos atores cujo comportamento procuram explicar.

7) Quando a forma do conhecimento ou da informa,ao geradainibe sua realiza,ao ou esconde certas maneiras pelas quaispoderia ser concretizada. 0 mais importante caso em ques­tao e, de longe, 0 da reifica,ao. Mas as possiveis implica­,oes que isso suscita tambem sao complexas. 0 discurso rei­ficado produzido nas ciencias sociais pode ter efeitos dife­rentes quando 0 discurso de atores sociais leigos tambem ecoisificado ou nao.

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dia-a-dia seja cronicamente levada a cabo de modo deliberado.Eno estudo das conseqiiencias impremeditadas da a,ao, comoenfatizei com freqiiencia, que serao encontradas algumas tare­fas mais caracteristicas das ciencias sociais. E tambem ai quese localiza a preocupa,ao maior dos cientistas sociais inclina­dos para 0 objetivismo e a sociologia estrutura!. Aqueles quefalam dos objetivos explanat6rios das ciencias sociais comovinculados a descoberta.de leis nao procedem assim quando osresultados sao mais ou menos completamente premeditados.Assim, por exemplo, os motoristas param regularmente, quan­do acende 0 vermelho no semaforo, e arrancam de novo, quandoacende 0 verde. Mas ninguem sugere que parar nos sinais detransito pode ser representado como uma lei de conduta socialhumana. As leis ai envolvidas sao de uma especie juridica. Osmotoristas sabem para que sao as luzes vermelhas, como se pre­sume que cles devem reagir segundo os c6digos de comportamen­to no transito, e quando param no vermelho ou seguem com 0verde sabem 0 que estao fazendo e fazem-no intencionalmente.o fato de tais exemplos nao serem mencionados como leis,muito embora 0 comportamento envolvido seja muito regular,indica que 0 problema das leis em ciencia social esta muito li­gada as conseqtiencias impremeditadas, condil;oes nao-reco­nhecidas e coer,ao.

Por "leis" os soci610gos estruturais entendem usualmenteleis universais do tipo que se pensa existir nas ciencias natu­rais. Ora, nao faltam os debates sobre se essas leis existem ounao, de fata, na ciencia natural e, se existem, qual eseu status16gico. Mas suponbamos sua existencia e admitamos a inter­preta,ao corrente de sua forma 16gica. As leis universais esta­belecem que quando quer que urn conjunto de condi,oes, espe­cificadas de um modo definido, seja encontrado, havera tam­bern um segundo conjunto de condi,oes onde 0 primeiro daorigem ao segundo. Nem todas as declara,oes causais, e claro,sao leis, bern como nem todas as rela,oes causais podem sersubordinadas a leis (conhecidas). Assim tambem, nem todos osenunciados de uma forma universal 0 sao. Hempel da urn exem­plo: "Todos os corpos que consistem em ouro puro tern uma

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"ON~=;"O0'""'0'0' T mo~o"=,m..,,o

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massa de menos de 100 mil quilogramas." Nao existe urn s6caso conhecido em que essa afirmayao nao se sustenta, mas, amenos que fosse descoberto algum mecanismo causal para ex­plicar por que isso deve ser assim, isso nao seria provavelmenteconsiderado um exemplo de uma lei". Ha leis universais nasciencias sociais? Se nao ha, entao por que tantos adeptos da so­ciologia estrutural colocaram tipicamente todos os seus trunfosnessa explica9ao? A resposta evidente aprimeira pergunta enao. Na ciencia natural ou, pelo menos, em algumas de suasprincipais areas, ha muitos exemplos de leis que parecem obe­decer ao tipo de lei universal. Na ciencia social - e eu incluiriatanto a economia quanta a sociologia neste julgamento - naoha urn s6 candidato que possa ser apresentado de forma indis­cutivel como exemplo dessa lei no dominio da conduta socialhumana. Como argumentei num outro trabalho", as cienciassociais naD sao retardatarias em comparayao com a ciencia na­tural. A ideia de que, com novas pesquisas, essas leis acabaraopor ser descobertas e, na melhor das hip6teses, profundamenteimplausivel.

Se elas naD existem, e nunea existirao, na ciencia social,por que e que tantos supuseram que esta devesse empenhar-sepor realizar essa quimera? Sem duvida, em grande parte devi­do a ascendencia das filosofias empiristas da ciencia naturalsobre as ciencias sociais. Mas isso certamente nao e tudo. Aquitambem se implica a suposi9ao de que 0 unico conhecimentoproveitoso acerca de atores ou institui90es sociais de interessedas ciencias sociais e aque!e que esses atores nao possuem elespr6prios. Disso vern a inclina9ao para reduzir a um minimo 0 co­nhecimento imputado a atores, ampliando assim 0 ambito deopera9ao de mecanismos causais que tern seus efeitos indepen­dentemente das razoes dos individuos para fazer 0 que fazem.Ora, se esse tipo de ponto de vista nao e viavel, em bases que exa­minei em certo detalhe ao longo deste livro, teremos de rever anatureza das leis em ciencia social. 0 fato de nela nao existiremleis universais conhecidas nao e apenas uma casualidade. Se ecorreto dizer, conforme argumentei, que os mecanismos causaisnas generaliza90es cientificas sociais dependem das razoes dos

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atores, no contexto de uma "trama" de consequencias premedi­tadas e impremeditadas de a9ao, podemos facilmente perceberpor que tais generaliza90es nao tern uma forma universal. 0conteudo da cognoscitividade dos agentes, a quest1io de como se"situa" e de qual e a validade do conteudo proposicional desseconhecimento - tudo isso influenciara as circunstiincias em queessas generaliza90es subsistem.

Correndo uma vez mais 0 risco de desconcertar 0 leitor dementalidade mais filosOfica, proponho simplesmente declararque as raz5es sao causas, aceitando que isso implica, sem duvi­da, uma explica9ao nao-humana de causalidade. Em termos maisadequados, usando a terminologia por mim introduzida: a ra­cionaliza9ao da a9ao esta causalmente implicada, de maneiracronica, na continua9ao das a90es do dia-a-dia". Por outras pa­lavras, ela e um elemento importante na gama de poderes cau­sais que um individuo, enquanto agente social, apresenta. Issoporque fazer algo por determinadas razoes significa aplicar umacompreensao do que "e requerido" num dado conjunto de cir­cunstiincias, de maneira a dar forma a qualquer coisa que sejafeita nessas circunstancias. Ter razoes para fazer alguma coisanaG e0mesma que fazer alguma coisa por certas razoes, e eessa diferen9a que cria 0 impacto causal da racionaliza9ao daa9ao. As razoes sao causas de atividades que 0 individuo "fazacontecer" como caracteristica inerente a ele ser um agente. Mascomo a monitora9ao reflexiva da a9ao e limitada, conformetenho freqiientemente insistido, existem fatores causais influen­ciando a a9ao sem atuar atraves de sua racionaliza9ao. Segue­se do que foi anteriormente dito que esses fatores sao de doistipos: influencias inconscientes e influencias que afetam as cir­cunstincias da a9ao, em cujo ambito os individuos levam aefeito sua conduta.

Essas segundas influencias sao, de longe, as mais impor­tantes para fins de analise social, mas, como "circunstancias ciaa9ao" e uma expressao muito generica, ela precisa ser explica­da em certo detalhe. Toda a9ao ocorre em contextos que, paraqualquer ator, incluem muitos elementos que este nao ajudou aproduzir nem possui qualquer controle significativo sobre oles.

.~

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Essas caracteristicas facilitadoras e coercivas dos contextos dea,ao incluem fenomenos materiais e sociais. Com rela,ao aosfenomenos sociais, e preciso salientar que 0 que para urn indi­viduo e urn aspecto controlavel do milieu social, para outrospode ser algo que "acontece" em vez de algo que se "faz acon­tecer". Muitas das caracteristicas mais delicadamente sutis,bern como as intelectualmente mais desafiadoras, da analisesocial derivam disso. Ora, e possivel admitir que todas as gene­raliza,oes abstratas nas ciencias sociais sao, explicita ou impli­citamente, enunciados causais. Mas, como me preocupei emenfatizar ao longo deste livro, importa muitissimo saber quetipo de reia,oes causais esta envolvido. Quer dizer, as situa,oesem que os participantes "fazem acontecer" urn resultado regu­larizado diferem substancialmente daquelas em que esse resul­tado "acontece" de urn modo nao pretendido por nenhurn parti­cipante. Como 0 conhecimento dos agentes sobre as condi,5esque influenciam a generaliza,ao e causalmente pertinente aela, essas condi,5es podem ser alteradas por mudan,as nesseconhecimento. A profecia auto-realizadora e urn, mas apenasurn, exemplo desse fenomeno.

Cabe aqui uma advertencia. Existem sempre condi,5es­limite para os efeitos de leis na ciencia natural. Mas elas naoafetam a rela,ao causal invariante que esta no nucleo das tare­fas explicativas pelas quais pode ser feita referencia illei. Nocaso de generaliza,5es em ciencia social, os mecanismos cau­sais sao inerentemente instaveis, e 0 grau de instabilidade de­pende de ate que ponto os seres aos quais a generaliza,ao se re­fere sao suscetiveis de apresentar modelos padronizados deraciocinio, de forma a produzir tipos-padrao de conseqiienciasimpremeditadas. Considere-se 0 tipo de generaliza,ao sugeri­do pelo estudo de Gambetta: "Quanto mais avan,ada estiver urnacrian,a da classe operaria nurn sistema educacional, menoressao as probabilidades de que ela desista de estudar, em compa­ral;ao com crian<;:as de Qutras classes sociais." Neste caso, asconseqiiencias impremeditadas apontavam para a forma,ao deurn padrao estatistico, 0 resultado de urn agregado de decis5esde individuos separados no tempo e no espa,o. Creio que nin-

As conota,iies praticas da ciencia social

As ciencias sociais, diferentemente da ciencia natural, es­tao inevitavelmente envolvidas nurna "rela,iio sujeito-sujeito"

409A TEORIA DA ESTRUTURAr;:AO

guem sugerira ser isso a expressao de uma lei universal; naoobstante, trata-se de urna generaliza,ao potencialmente escla­recedora. A rela,ao causal que ela pressup5e depende dos tiposde tomada de decisao especificadas por Gambetta. Mas, comoassinala esse autor, se os pais ou as crian,as (de qualquer dasclasses) chegam a conhecer a generaliza,ao, poderao incorpo­ra-la em sua avalia,ao da propria situa,ao que ela descreve e,portanto, em principio, enfraquece-la.

Podemos dizer, como muitos outros ja 0 fizeram, que asgeneraliza<;:oes nas ciencias sociais sao de carater "hist6rico",desde que tenhamos em mente os muitos sentidos assurnidospor esse termo. Nesta conota,ao particular, significa apenas queas circunstancias nas quais as generaliza90es se sustentam saotemporal e espacialmente circunscritas, na medida em que de­pendem de combina,5es definidas de conseqiiencias premedi­tadas e impremeditadas da a,ao. Sendo esse 0 caso, sera licitochamar de "leis" as generaliza,5es nas ciencias sociais? lssodepende inteiramente do rigor com que se deseje interpretar 0

termo. Em minha opiniao, como na ciencia natural a "lei" tendea estar associada a esfera das rela,5es invariantes, mesmo no casodaquelas que nao sao universais na forma, e preferivel nao usar 0

termo nesse campo do conhecimento. Em todo caso, e importan­Ie evitar a implica,ao dos defensores da sociologia estrutural deque as "leis" somente sao encontradas quando conseqiiencias im­premeditadas estao envolvidas de modo significativo com rela­,ao a determinada serie de fenomenos. Por outras palavras, asgeneraliza,5es sobre a conduta social hurnana podem refletirdiretamente maximas de a,ao deliberadamente aplicadas poragentes. Como sublinhei neste capitulo, ate que ponto isso e villi­do em qualquer conjunto especificado de circunstilncias tern deser urna das principals tarefas da pesquisa social.

A CONSTITUI(:AO DA SOCIEDADE408r

"I'"

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com aquilo de que se ocupam. As teorias e descobertas dasciencias naturais estao separadas do universo de objetos e even­tos a que dizem respeito. [sso assegura que a rela9ao entre co­nbecimento cientifico e 0 mundo objetal permanece sendourna rela9ao "tecnoI6gica", na qual 0 conbecimento acumuladoe "aplicado" a urn conjunto independentemente constituido defen6menos. Mas na ciencia social a situa9ao e diferente. Comodisse Charles Taylor: "Embora a teoria da ciencia natural tam­bern transforme a pr:itica, a pr:itica que ela transforma nao eaquilo de que a teoria se ocupa. [...] Pensamos nela como urna'aplica9ao' da teoria." Nas ciencias sociais, "a pr:itica e 0 obje­to da teoria. Nesse dominio, a teoria transforma 0 seu proprioobjeto"'". As implica90es disso sao muito consideniveis e tern aver com 0 modo como avaliamos as realiza90es das cienciassociais, assim como seu impacto pnitico sobre 0 mundo social.

Se aceitassemos 0 ponto de vista daqueles que supoem queas ciencias sociais devem ser imita.;:6es das ciencias naturais,nao hi duvida de que 0 ponto de vista anterior deveria ser con­siderado urn fracasso. A ciencia social nao apareceu no cenanocom os tipos de lei precisa encontrada nas areas mais refinadasda ciencia natural e, por razoes a que ja aludi, tampouco 0 farano futuro. Em face das circunstancias, pareceria que 0 fim daaspira9ao de criar urna "ciencia natural da sociedade" marca 0

fim da ideia de que as ciencias sociais poderao afetar "seu mun­do", 0 mundo social, no mesmo grau em que as ciencias natu­rais influenciaram 0 "delas", Durante gera90es, aqueles quepropuseram sociologias naturalistas fizeram-no com base na no­93:0 de que a ciencia social necessita "alcanc;ar" a ciencia natu­ral, intelectual e praticamente. Por outras palavras, sustenta-seque esta ultima superou comprovadamente a primeira em ter­mos de suas realiza90es intelectuais e, portanto, de suas conse­qiiencias praticas. 0 problema consiste, para as ciencias so­ciais, em recuperar 0 terreno perdido, a fim de aplicarem suasdescobertas ao controle dos eventos no mundo social, de urnmodo paralelo. 0 programa de Comte fundamentou-se nesse tipode criterio e dai em diante nunca mais deixou de ser sistemati­camente reiterado, de urna forma ou de outra.

411

A primeira vista, nada parece mais 6bvio que 0 fate de 0

impacto transformativo das ciencias naturais ter sido incompa­ravelmente maior do que 0 das ciencias sociais. A ciencia natu­ral tern seus paradigmas, suas descobertas merecedoras de con­cordancia unanime, 0 conbecimento de alta generalidade ex­presso com precisao matem:itica. Nela, os "fundadores" saoesquecidos ou olhados como os originadores de ideias que sopossuem urn interesse arqueologico. A fusao de ciencia e tec­nologia gerou formas de transforma9ao material na mais ex­traordinaria das escalas. Por outro lado, a ciencia social esta, aoque parece, cronicamente dilacerada por divergencias e anta­gonismos, incapaz de esquecer seus ~'fundadores", cujos escri­tos sao considerados de importancia permanente. Os govemosde hoje poderao ocasionalmente olhar para ela como fonte deinforma9ao para decis5es politicas; mas isso parece ser de con­seqiiencia trivial e marginal quando comparado com 0 impactoglobal da ciencia natural. 0 maior prestigio social de que estaultima desfruta, em compara9ao com as ciencias sociais, esta em

Como cientistas sociais, compartilhamos com todas as pes­soas razoavelmente educadas do mundo de uma compreensaogeral e perturbadora de que, em nosso campo de estudo, 0 pro­gresso emuito mais leota do que nas ciencias naturais. Sao asdescobertas e inven~5es destas ultimas que estao provocandoirresistiveis mudao<;as radicais oa sociedade, enquanto as 008­

sas, ate agora, foram muito mais pobres em conseqiiencias. Ha ernpropagayao uma insidiosa ansiedade acerca do perigoso hiatoinerente a esse contraste. Enquanto 0 poder do homern sobre anatureza esta aumentando depressa e, na verdade, acelerandorapidarnente, 0 controle do hornem sobre a sociedade, 0 que sig­nifica, em primeiro lugar, sobre as suas proprias atitudes e insti­tuir;oes, esta ficando muito para tras. Ern parte, pelo menos, issodeve-se ao mais lento ritmo no avanyO de nosso conhecimentosobre 0 homem e sua sociedade, 0 conhecimento que deve sertraduzido em ar;ao para arefonna social.5 1

A TEORIA DA ESTRUTURA9AO

o que se segue e urna formula9ao tipica de tal ponto devista, de urn autor que, alias, esta muito longe de ser urn segui­dor de Comte:

A CONSTlTUIi;:AO DA SOCIEDADE410

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Quando urn homem se torna principe por concessao dopova, ele cleve manter-se seu amigo, 0 que emuito faeil, poiseste deseja apenas nae ser oprimido. Mas quem se tomar princi­pe contra a opiniao popular, por concessao dos grandes, cleve,antes de mais, procurar conquistar 0 pova. Ser-Ihe-a facit iS50,

desde que se tenha ocupado em protege-Io. E, como os homens,quando recebern beneficios de quem s6 esperavarn 0 mal, seobrigam mais para com 0 benfeitor, toma-se 0 povo logo maisseu amigo do que se 0 principe tivesse side levado ao poder porvontade sua. 5~

o teorema de Maquiavel nao e apenas uma observa9aosobre 0 poder e 0 apoio popular em politica. Pretende ser e foiaceito como urna contribui9ao para 0 mecanismo de governo.Pode-se afirmar sem exagero que a pratica de governo nuncamais foi a mesma depois que os escritos de Maquiavel se torna­ram conhecidos. Sua influencia nao e faci! de descrever. "Ma­quiavelico" tornou-se urn termo pejorativo em parte por razoesque nao tern muito a ver com 0 conteUdo do que Maquiavelrealmente escreveu - por exemplo, devido ao suposto compor­tamento de governantes que £0 sua interpreta9ao pessoal aoque ele teve a dizer. Principios que podem ser aplicados porprincipes tambem 0 podem por aqueles que estiio submetidos

plena concordiincia com suas realiza90es e influencia materialmuito diferentes.

Mas estara correta essa 009ao convencional da ciencia so­cial como a rela9ao inferior? Pode-se dizer, pelo menos, que setorna muito menos facil sustenta-la se considerarmos 0 signifi­cado da dupla hermeneutica. As ciencias sociais, repetimos, naoestao isoladas de "seu mundo" do modo como as ciencias natu­rais estao do "delas". Isso certamente compromete a realiza9aode urn corpus distinto de conhecimento do tipo procurado poraqueles que adotam a ciencia natural como modelo. Entre­tanto, ao mesmo tempo, significa que as ciencias sociais parti­cipam da propria constitui9ao de "seu mundo" de urn modoque e vedado aciencia natural.

Considere-se 0 seguinte:

413

ao seu dominio e por outros que se lhes opoem. As conseqiien­cias praticas de panfletos como os de Maquiavel sao susceti­veis de ser tortuosas e ramificadas. Estao muito longe da situa­9aO na qual as descobertas das ciencias sociais sao cotejadas eavaliadas numa esfera (a "critica interna" de especialistas pro­fissionais) e simplesmente "aplicadas" nurna outra (0 mundoda a9ao pratica). Mas elas sao mais tipicas do destino do co­nhecimento cientifico-social do que 0 ultimo caso descrito.

Ora, a questao de saber se e justificado chamar Maquiavelde "cientista social" poderia ser discutida com base em queseus escritos precedem a era na qual se tornou sistematizada areflexao sobre a natureza das institui90es sociais. Suponhamos,porem, que examinemos 0 periodo mais recente, que com­preende as decadas finais do seculo XV111 e a parte inicial doseculo XIX. Foi a epoca, poder-se-ia argumentar, em que co­me90u a pesquisa empirica detalhada das questoes sociais.Alguns consideraram 0 periodo a primeira fase em que as cienciassociais receberam urna base comprobatoria que podia come9ar

a assemelhar-se ada ciencia natural. Entretanto, 0 impressio­nante e que as tecnicas de pesquisa desenvolvidas, e os "dados"gerados, tornaram-se imediatamente parte significativa da so­ciedade para cuja analise elas foram usadas. A abundiincia deestatisticas oficiais e sintoma e resultado material desse pro­cesso. Sua coleta foi possibi!itada pelo usa de metodos siste­maticos de pesquisa social. 0 desenvolvimento desses metodose inseparavel dos novos modos de controle administrativo pos­sibilitados pela coleta de estatisticas oficiais. Uma vez estabe­lecidas, estas ultimas propiciaram, por sua vez, novos tipos deanalise social- por exemp10, a pesquisa de padroes demografi­cos, criminalidade, divorcio, suicidio etc. Entretanto, a literatu­ra sobre esses topicos foi, por seu turno, reincorporada aprati­ca dos interessados na Produ9ao das estatisticas pertinentes. Aliteratura sobre suicidio, por exemplo, e largamente lida por jui­zes de inslru9ao, funcionmos judiciais e outros, inclusive aque­les que pensam em cometer ou cometem atos suicidas".

o desenvolvimento de metalinguagens teoricas e a espe­cializa9ao exigida pelo estudo intensivo de areas especificas da

A TEORIA DA ESTRUTURA!;AOA CONSTITW!;AO DA SOCIEDADE412

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Mas por que as formula,6es de Maquiavel devem perma­necer significativas hoje, e ser seriamente discutidas como per­tinentes as sociedades existentes, se foram absorvidas, de va­riadas maneiras, nessas sociedades? Por que os que trabalhamnas ciencias sociais DaD podem esquecer seus "fundadores",como os cientistas naturais fizeram? A resposta poderia ter aver precisamente com 0 carliter constitutivo das ideias que umpensador como Maquiavel formula e representa. Maquiavelfornece-nos os melos de ponderada reflexao sobre conceitos eprliticas que se tomaram parte da natureza da soberania, dopoder politico etc., em sociedades modemas. Ao estudar seusescritos, obtem-se uma percep,ao do que M de distinto no Es­tado moderno, porque ele escreveu num periodo relativamenteinicial de seu desenvolvimento. Tamhem nao M duvida de quedesvenda ou da uma forma discursiva especifica a principios

dos textos. Na Inglaterra, pensava-se geralmente que 0 autorfosse urn manancial de deprava,6es, antes de a primeira tra­du,ao inglesa de 0 principe serpublicada em 1640.

4) 0 tipo de discurso usado por Maquiavel em seus escritos foium elemento ou aspecto de mudan,as fundamentais nas or­dens juridica e constitucional de Estados modemos. Pensarsobre "politica" de um modo particular e substantivamentenovo era essencial para aquilo que a "politica" se tomou".

5) Um govemante que se pensasse ser urn seguidor de Maquia­vel, e tentasse govemar de acordo com preceitos maquiave­listas, talvez achasse mais dificil aplica-Ios do que um outroque nao fosse conhecido como tal. Por exemplo, os suditosde urn governante, que conhe,am 0 preceito de que um povotende a ser particularmente receptivo a favores concedidospor alguem que ele esperava ser urn opressor, poderao des­confiar justamente desses favores.

6) Maquiavel estava perfeitamente ciente da maioria dos pontosacima e advertiu explicitamente sobre algumas de suas impli­ca,6es em 0 principe. Portanto, muitos desses pontos toma­ram-se ainda mais complexos na medida em que a propriaconsciencia deles passou a fazer parte da atividade politica.

415A TEORIA DA ESTRUTURAr;AOA CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE

vida social evidentemente asseguram que as ciencias sociaisnao se tomem totalmente fundidas com seu "objeto de estudo".Mas, uma vez que se apreende como ecomplexa, intima e con­tinua a associa~ao entre analistas sociais "profissionais" e lei­gos, fica facil perceber por que 0 profundo impacto da cienciasocial sobre a constitui,ao de sociedades modernas permaneceoculto a visao. As "descobertas" da ciencia social, se realmentesao interessantes, nao podem permanecer enquanto tais por mui­to tempo; de fato, quanto mais esclarecedoras elas forem, maisprovavelmente serao incorporadas a a,ao e se tornarao, dessemodo, principios familiares da vida social.

As teorias e descobertas das ciencias naturais estao numarela,ao "tecnologica" com seu "objeto de estudo". Ou seja, ainforma,ao que geram tern significado prlitico enquanto "meio"aplicado para alterar um mundo de objetos e acontecimentosaut6nomo e independentemente dado. Mas as ciencias sociaisnao estao somente numa rela9ao "tecnoI6gica" com seu "obje­to de estudo", e sua incorpora,ao na a,ao leiga e apenas margi­nalmente "tecnologica". Muitas permutas possiveis de conhe­cimento e poder decorrem disso. Para demonstrar ser esse 0 caso,poderiamos retornar ao exemplo das observa,6es de Maquia­vel sobre a natureza da politica. Os topicos seguintes sao possi­veis envolvimentos e ramifica,6es dos escritos de Maquiavel:

I) Maquiavel pode, numa parte substancial, ter dado apenasuma certa forma de expressao ao que muitos governantes, esem duvida outras pessoas tambem, ja sabiam _ talvez atesoubessem algumas dessas coisas discursivamente, emboraseja improvavel que tenham sido capazes de expressa-Iastao incisivamente quanto 0 autor.

2) 0 fato de Maquiavel ter escrito esses textos introduziu urnnovo fator, assim que eles se tomaram acessiveis, 0 qual naoexistia antes quando as mesmas coisas eram conhecidas, seeram.

3) "Maquiavelico" tomou-se urn termo pejorativo entre aque­les que ouviam falar das ideias assumidas por Maquiavelsem ter necessariamente urn conhecimento em primeira mao

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de govemo que tern aplical'ao muito generalizada em Estados detodos os generos. Entretanto, a principal razao pela qual seusescritos nao tern "data" eque eles constituem uma serie de re­flexoes (estilisticamente brilhantes) sobre fenomenos que aju­daram a constituir. Sao formulal'oes de modos de pensamentoe al'ao pertinentes as sociedades modemas, nao so em suas ori­gens, mas tamb.om em sua forma organizacional mais perma­nente. Vma teoria arcaica da ciencia natural nao traz urn inte­resse particular, urna vez que outras melhores tenham surgido. Asteorias que se tomam parte de seu "objeto de estudo" (embora,talvez, em outros aspectos, resistindo a tal incorporal'ao) retemnecessariamente uma importancia que as teorias arqueologicasda ciencia natural nao possuem.

Promover 0 cariller critico da ciencia social significa favo­recer uma percepl'ao conceptual desenvolvida das conotal'oespniticas de seu proprio discurso. 0 fato de as ciencias sociaisestarem profundamente implicadas naquilo com que se ocu­pam sugere urn papel basico para a historia das id.oias. Assim,por exemplo, os estudos de Skinner a respeito do surgimento deformas modemas de discurso no Estado pos-medieval demons­tram como estas se tomaram constitutivas daquilo que 0 Es­tado .os>. Ao provar que a natureza do Estado modemo pressu­poe urn coletivo de cidadaos que sabe 0 que .0 e como funcionaesse Estado, Skinner ajuda-nos a ver Como .0 especifica e dis­tintiva essa forma de Estado e como ela esUi entretecida com asmudanl'as discursivas que passaram a fazer parte das praticassociais leigas.

As ciencias sociais nao podem fomecer conhecimento (re­levante) que possa ser "contido", pronto para estimular inter­venl'oes sociais apropriadas quando necessmo. Na ciencia na­tural, os crit.orios comprobatorios envolvidos na decisao entreteorias e hipoteses esmo (em principio e usualmente tambemna pratica, com excel'oes tais como 0 Lysenkoismo) nas maosde seus especialistas profissionais. Eles podem prosseguir coma tarefa de filtrar provas e formular teorias sem interrupl'ao domundo a que as provas e teorias se referem. Mas nas cienciassociais essa situa.;ao nao se observa - au, mais exatamente, obser-

417416

A CONSTITUl9A'O DA SOClEDADEA TEORJA DA ESTRUTURA9AO

va-se muito menos com relal'ao a teorias e descobertas que terno maximo a oferecer em termos de seu valor revelador. Estaconstitui grande parte da razao pela qual poderia parecer que asciencias sociais fomecem muito menos informal'ao de valorpara os criadores de diretrizes politicas do que as ciencias natu­rais. As ciencias sociais ap6iam-se necessariamente em muitodo que ja .0 conhecido dos membros das sociedades que elasinvestigam, e fomecem teorias, conceitos e conclusoes que se­rao reintroduzidos no mundo que descrevem. Os "hiatos" quepodem aparecer entre 0 aparelho conceptual do especialista eas descobertas das ciencias sociais, por urn [ado, e as prillicasinteligentes incorporadas a vida social, par outro, sao muitomenos claros do que na ciencia natural. Encaradas de urn pontode vista "tecnologico", as contribuil'oes praticas das ciencias so­ciais parecem ser, e sao, restritas. Entretanto, vistas em termosde sua infiltral'ao no mundo que analisam, as ramifical'oes pra­ticas das ciencias sociais foram, e sao, deveras profundas.

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A (mica entrada de urn historiador no passado epor meiodesses remanescentes. E a primeira preocupa<;ao de uma investi­ga<;ao hist6rica consiste em reuni-los desde oode se encontramdispersos no presente, recuperar 0 que podeni ter sido perdido,impor algum tipo de ordem a essa confusao, reparar os danos quepossam ter sofrido, reduzir sua fragmentac;ao, discemir suas re­lal;oes, reconhecer urn rernanescente em termos de sua prove­niencia e, assirn, determinar seu carater autentico como urn desem­penho passado de ordem pratica, ou filos6fica, ou artistica etc. J

marcada por nenhurna mudan9a perceptivel nem mesmo porurna sugestiio de movimento"'. Vejo urn homem passar capen­gando, com urna perna de pau. Ele e parte do "presente conti­nuo", a menos que eu 0 perceba nao como urn homem comurna perna de pau, mas como urn homem que perdeu sua perna.Tal consciencia do passado, argumenta Oakeshott, e suscitadanao por negligencia do presente, mas por urna interpreta9aoespecial do presente que atende ao que e evocado pela palavra"perdeu". 0 presente em compreensao hist6rica e composto detudo 0 que se reconhece como remanescentes ou reliquias de urn

"passado conservado":

Atraves dos fragmentos do passado que sobreviveram, 0historiador tenta recuperar aqueles aspectos do passado que se

esfumaram no tempo.Essa interpreta9ao da natureza da historia poder,,- ser en­

tendida de dois modos algo diferentes, concebendo a hist6riacomo empenhada em recuperar urn passado perdido ou comopreocupada com tecnicas especificas de hermeneutica textualde algum modo peculiar ao historiador. De acordo com a primei­ra interpreta9ao, a historia teria urn "objeto proprio de estudo"bern definido; de acordo com a segunda, sua caracteristica maisnotivel seria primordialmente metodol6gica. Mas nem urna nemoutra dessas interpreta90es tern muita plausibilidade quandoexaminada mais detalhadamente. Por "presente", como seuexemplo do individuo na esquina da rna deixa claro, Oakeshottentende algo proximo do que eu denominei "presen9a". Mas oslimites da presen9a sao tanto espaciais quanto temporais. A

419A TEORJA DA ESTRUTURA(:AONotas criticas: ciencia social, histOria e geografia

* As referencias podem ser encontradas a pp. 436-8.

Os historiadores, como eu disse, nao podem ser propriamen­te considerados especialistas numa dimensao de tempo, assimcomo os geografos tampouco podem ser vistos como especia­listas nurna dimensao de espa90. Essas divisoes disciplinares,como vulgarmente concebidas, sao expressoes concretas da re­pressao de tempo e espa90 em teoria social. Elas tern uma con­trapartida na ideia de que a ciencia social se ocupa de leis deuma natureza universal ou, pelo menos, altamente geral. Aquitemos a clara divisao tradicional entre ciencia social e historia:uma supostamente preocupada com a generaliza9ao, que e in­diferente a tempo e lugar; a outra analisando 0 desdobramentode eventos situados no tempo-espa90. Nao penso ser necessario,a luz das principais ideias que procurei desenvolver neste livro,alongar-me nurna explica9ao de por que essa ideia tradicional edestituida de valor.

Se os historiadores nao sao especialistas em tempo, noque fica a n09ao de que eles sao especialistas no estudo do pas­sado? Essa n095.0 enao 56, talvez, intuitivamente atraente, mastambem tern sido defendida por muitos historiadores eminen­tes, assim como por filosofos. Oakeshott explica 0 termo "pas­sado historico" da seguinte maneira'*. 0 mundo que urn indivi­duo percebe, diz ele, esta "inconfundivelmente presente". Es­tou postado no meio-fio de urna rna e observo 0 que se passa aminha volta. Enquanto ali estou, 0 tempo passa, mas eu assistoa urn "presente continuo", no qual "a passagem do tempo nao e

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recupera,ao interpretativa de um passado perdido nao pode serfacilmente separada - nem 0 deve ser - da elucida,ao interpre­tativa de diferen,as culturais disseminadas "Iateralmente" portoda a face do globo. Pois toda a analise dessa natureza envolvea coordena,ao do temporal e do espacial de modos sutis e intri­cados. 0 leitor que nao admite esse ponto nao tera muita sim­patia pela teoria da estrutura,ao, tal como a desenvolvi naspaginas precedentes. Se 0 ponto de vista de Oakeshott e consi­derado metodologico, por outro lado, subentende que 0 caraterdistinto da historia reside na competencia do historiador, en­quanta especialista na interpreta,ao de textos ou reliquiasremanescentes de eras passadas. Essa ideia recebe certamenteconsidenivel apoio entre as historiadores, e nao sem razao, paise por demais evidente que a leitura atenta e a elucida,ao de tex­tos ou reliquias materiais e uma preocupa,ao primordial dapesquisa historica. Muitos cientistas sociais poderiio tambemver uma divisao de trabalho entre historia e ciencia social deacordo com essa ideia; os atores nos quais 0 cientista socialesta interessado estao vivos e, portanto, epassivel ter comuni­ca,ao direta com eles; aqueles que interessam ao historiador,estando mortos, inviabilizam tal comunica,ao. A diferen,a eobviamente de grande importancia, nao so porque os vivos po­dem responder a perguntas enquanto os mortos nao podem, mastambem porque os vivos podem igualmente replicar. Quer di­zer, eles podem questionar ativamente, ou alterar sua alividadeem fun,ao de quaisquer "descobertas" que tenham sido difun­didas a respeito deles. Entretanto, nao se segue dai que possaser feita uma divisao proveitosa entre historia e ciencia socialde acordo com essa orienta,ao. Pois a maior parte da cienciasocial e feita em - e atraves de - textos e outros materiais "se­cund:\tios", tal como 0 e a historia. Os esfor,os que um cientis­ta social podera despender em comunica,ao direta com osagentes sujeitos de suas investiga,oes sao provavelmente exi­guos quando comparados com os que devem ser consumidosno trabalho com materiais textuais. Alem disso, ate que pontoexistem problemas interpretativos a ser resolvidos para que ostextos adquiram sentido - usando-os como exemplifica,oes e

421A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO

como descri,oes de um dado contexto de atividades - dependenao da "distancia" no tempo mas de quanto se pode extrair demateriais disponiveis, ainda que escassos, e do grau de diferen­,a cultural envolvido.

Portanto, se existem duas disciplinas cuja interse,ao en­volve os limites de presen,a, certamente sao a arqueologia e ahermeneutica: a primeira, porque esta e a disciplina por exce­lencia que se ocupa de reliquias ou remanescentes, a quinqui­lharia arremessada nas praias dos tempos modemos e ai deixadaquando as correntes sociais nas quais foi criada se escoaram; asegunda, porque todos os remanescentes de um "passado con­servado" tern de ser interpretados, sejam eles ceramicas ou tex­tos, e porque essa tarefa de recuperar 0 passado e conceptual emetodologicamente indistinguivel da interposi,ao de redes designificado encontrados em culturas coexistentes.

Se a ciencia social nao e, e nao pode ser, a historia do pre­sente, e se nao esta, nem pode estar, preocupada simplesmentecom generaliza,oes amargem do tempo e do espa,o, entao 0 quea distingue da historia? Penso que temos de responder comoDurkheim (embora adotando uma linha diferente de raciociniopara chegar a esse resultado): nada - quer dizer, nada que sejaconceptualmente coerente ou intelectualmente defensavel. Seexistem divisoes entre ambas as ciencias, elas sao divisoes subs­tantivas de trabalho; nao h:\ um cisma logico ou metodologico.Os historiadores especializados em determinados tipos de ma­teriais textuais, linguagens ou "periodos" nao estao livres deenvolvimento com os conceitos da teoria social e os dilemasque Ihes sao inerentes. Mas os cientistas sociais cujas preocu­pa,oes sao as teorias mais abstratas e gerais sobre a vida socialnao estao igualmente livres das exigencias hermeneuticas dainterpreta,ao de textos e outros objetos culturais. A pesquisa his­torica e pesquisa social e vice-versa.

Dizer isso ja deixou de ser, por certo, a heresia que foioutrora. Vejamos, em primeiro lugar, 0 que esteve acontecendodo lado da historia. Abrams resume as coisas muito bern quan­do diz acerca do trabalho de historiadores:

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o desenvolvimento realmente significativo dos ultimos vio­te anos foi a publicar;ao de urn solido acervo de trabalho hist6ri­co teoricamente autoconsciente, que progressivamente mostrouo que havia de absurdo nas concep90es de hist6ria anteriares,como alga que, de certa forma, nao estava, em principia, envol­vida no mundo tearieD das ciencias sociais. A mudanr;a social efeita por pessoas que fazem caisas novas. A medida que asobras-primas reconhecidas da disciplina da hist6ria vaa ficando,teoricamente, cada vez mais explicitas, e que a unidade do meto­da tearieo da hist6ria e da sociologia torna-se, desse modo, cadavez mais 6bvia, a insistencia continua de urn remanescente dehistoriadores profissionais em que a teoria nao faz parte de seuneg6cio torna-se cada vez mais firmemente a base efetiva da"institui~ao" da hist6ria e cada vez mais abertamente uma nos­talgia ineficaz.4

A expressao fundamental aqui e "unidade do metodo te6,rico". Os problemas da teoria social, de agencia, estrutura e for,mas de explica,ao, sao compartiIhados em geral por todas asciencias sociais, seja qual for a divisao de trabalho que, emoutros aspectos, possa existir entre eIas.

Stone escreveu perspicazmente sobre a influencia dasciencias sociais sobre a hist6ria nas duas decadas mencionadaspor Abrams'. Ele distingue virias maneiras pelas quais os en,voIvidos na "nova hist6ria" foram influenciados pelas cienciassociais. Os historiadores, ele concorda com Abrams, adquiri,ram maior consciencia de seu inevitivel envolvimento com ateoria social, isto e, passaram a aceitar que nao podem deixarinteiramente implicitas as pressuposi,oes te6ricas que guiamseu trabalho; ao expliciti-las, estao colocando sobre a mesacartas que anteriormente talvez preferissem manter escondidasnas maos. Outras contribui,oes das ciencias sociais foram maismetodoI6gicas. Metodos de quantifica,ao foram aplicados comalgum exito a wna serie de diferentes questoes hist6ricas _ wnfenomeno de importancia, quando menos devido ao uso de taismetodos constituir urn ponto de partida inteiramente novo emhist6ria.

Entretanto, com rela,ao a essas contribui,oes, houve umapressao contriria por parte dos interessados em impor as pre-

423A TEORIA DA ESTRUTURAt:;AO

tensoes da chamada "hist6ria narrativa". 0 debate entre os de­fensores da "nova hist6ria", por urn lado, e os proponentes da"hist6ria narrativa", por outro, pode ser, em alguns aspectosprincipais, perfeitamente visto como a versao dos historiadoresdo mesmissimo dualismo de a,ao e estrutura que tern assedia,do 0 desenvolvimento da ciencia social em gera!. Aqueles quefavorecem a hist6ria narrativa objetam quanta it maneira comoa "nova hist6ria" tende a oferecer descri,oes da conduta hwna,na, implicando que esta e 0 resultado de causas sociais fora dainfluencia dos atores envolvidos. Eles estao certos em assimproceder, pois 0 proveito de incluir na hist6ria estilos de teori,za,ao eivados de falhas desde a origem e suscetivel de ser estri,tamente limitado. Mas propor a "hist6ria narrativa" como alter,nativa da "hist6ria analitica", como se tivessemos que optarexclusivamente por wna em detrimento da outra, e certamenteurn equivoco.

Supostamente a hist6ria narrativa e a narra,ao de hist6­rias, no reconhecimento consciente da raiz comum que Hhist6ria"(history) tern com "hist6ria" (story) e do fato de que histoiresignifica ambas as coisas. As hist6rias contadas tern de harrno,nizar,se com as exigencias da prova fatual, mas 0 que lhes con,fere coesao e impoe a anuencia do leitor e a coerencia do enre­do, 0 modo pelo qual 0 cariler deliberado da atividade dos des,critos e transmitido e os contextos da atividade sao retratados.Assim, no decorrer de sua descri,ao do que e hist6ria narrativa,Elton observa: "Para que a a,ao possa ser entendida, seu cenirio,circunstancias e fontes devem ser evidenciados"6, uma afirma­,ao que nao sofre obje,oes. Conforme analisadas por Elton eoutros, narrativa e 0 que mencionei antes como etnografia saomais ou menos a mesma coisa. Mas se disso nao se segue que 0

uso de tecnicas etnogrificas deve estar inevitavelmente asso,ciado ao subjetivismo, tampouco se segue que a hist6ria narra,tiva tenha qualquer conexao 16gica com wna posi,ao te6ricaque rejeite conceitos estruturais. Os defensores da hist6ria nar,rativa estao plenamente justificados ao objetar contra a intro,du,ao indiscriminada dos conceitos de sociologia estrutural naobra de historiadores. Mas nao tern razao em supor que esses

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A tarefa do soci6logo efannular hip6teses gerais, promisso­ramente implantadas num quadro tearieD de referenda mais amplo,e testa-las. [...JA hist6ria deve ocupar-se cia analise do conjuntoespecifico de eventos ou processos. Onde 0 soci61ogo procura con­ceitos que abranjam uma variedade de determinadas categoriasdescritivas, 0 historiador devera manter-se atento aos acontecimen­tos reais e evitar afinna~5es que, atraves da vincula~ao do compor­tamento nurn tempo ou Jugar a urn comportamento em outro tem­po ou lugar, leva a uma diston;ao na descri~ao do que ocorreu noconjunto de circunstancias que esm sendo analisado. 7

conceitos possam ser totalmente ignorados. 0 que faz de umanarrativa uma "hist6ria" persuasiva nao eapenas a coerencia doenredo, mas, como diz Elton, a compreensao de "cemirio, cir­cunstancias e fontes" de a9ao. Entretanto, os cenarios e circuns­tancias em que a a9ao ocorre nao vern do nada; eles pr6priosprecisam ser explicados dentro do mesmo quadro 16gico emque tambem deve ser explicada a a9ao descrita e "compreendi­da". Eexatamente esse fen6meno que considero basico na for­mula9ao da teoria da estrutura9ao.

Consideremos brevemente 0 assunto pelo lado dos recentesdesenvolvimentos em ciencia social, concentrando-nos sobre­tudo na sociologia. Poderiamos dizer que a sociologia tern suasorigens na hist6ria modema, concebida como a analise das ori­gens e impacto do capitalismo industrial no Ocidente. Masquando tais problemas foram tratados pela gera9ao de autoressociol6gicos p6s-Segunda Guerra Mundial, eles renderam-sefreqiientemente as forrnas de evolucionismo que me interesseiantes em criticar. Deve ficar claro que 0 evolucionismo podefacilmente tomar-se mais urn inimigo da hist6ria do que 0 alia­do que superficialmente poderia parecer, pois encoraja urn des­respeito arbitrario a quest6es de detalhe hist6rico, ao introduzira for9a a hist6ria humana em esquemas previamente fixados.

Onde 0 evolucionismo nao fez grandes avan90S, houveurna tendencia muito forte de identificar a "sociologia", e suaseparayao da "hist6ria", precisamente naqueles termos queanteriormente considerei vazios. A descri9ao de Lipset a res­peito desse ponto de vista e caracteristica:

Mas 0 que essa divisao descreve e a que existe entre preocupa­90es generalizadoras e outras mais especificas, nao entre socio­logia e hist6ria".

o termo "sociologia" foi inventado por Comte e, ate tem­pos muito recentes, preservou em maior propor9ao uma forteconexao com 0 estilo de pensamento do qual ele foi urn repre­sentante lilo proeminente. Muitos que refutaram 0 evolucionis­mo e 0 funcionalismo associaram a sociologia, nao obstante, aalguns dos principios bitsicos do objetivismo. As "hip6teses ge­rais" de que fala Lipset sao comurnente consideradas tal comoas discuti acima, isto e, como leis que expressam rela90es cau­sais que funcionam de urn modo algo independente da voli9aodos agentes a cuja conduta elas se referem. Nao e apenas 0 con­traste entre 0 "nomotetico" e 0 "ideognifico" que os soci610gossao propensos a ter em mente neste caso. Se, como a sociologiaestrutural sugere, 0 carater distinto da sociologia deve ser en­contrado precisamente em sua preocupa9ao dominante com acoer9ao estrutural, pode ser aduzida a implica9ao de que oshistoriadores trabalham em mais estreito contato com as ativi­dades contextualizadas de agentes intencionais. Se e dessamaneira que os conceitos "socioI6gicos" sao entendidos quan­do introduzidos na hist6ria, e faeil perceber por que os defen­sores da hist6ria narrativa desconfiam deles e como podem de­fender 0 que interpretarn como "hist6ria", comparado com "so­ciologia". Ambas as partes fomecem apoio a uma dicotomiadisciplinar que nao faz qualquer sentido l6gico ou metodol6gico.

o que mudou, e esta mudando, a sociologia e, sem duvida,num consideravel grau, 0 declinio da hegemonia de que goza­ram outrora 0 objetivismo e 0 funcionalismo. A repressao dotempo em teoria social, tal como foi perpetrada pelos soci610­gos, de qualquer modo, tambem significou, definitivamente,uma repressao da hist6ria - tempo, hist6ria e mudan9a socialtendem a ser assimilados dentro do funcionalismo·. Mas eisque sobreveio tambem urn desapontamento com os dois tiposde tradi9ao que dominaram a anillise das sociedades industrial­mente avan9adas ate urnas duas decadas atras: a "teoria da so­ciedade industrial", por um lado, e 0 marxismo, por outro". No

425A TEOR/A DA ESTRUTURAt:;AOA CONSTITU[(;:AO DA SOCIEDADE424

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solutamente qualquer analise do desenvolvimento dos contex­tos institucionais em que a atividade social ocorre. Contudo,ambos fundamentam seus estudos nos eventos da vida cotidiana.o que os liga e uma preocupa9ao primacial com 0 tempo, naocomo dura9ao cronol6gica, mas como inerente as complexida­des da reprodu9ao social. Conforme tentei indicar, podemosaprender muito com Goffinan acerca do modo como se reprodu­zem as institui90es mais profundamente sedimentadas; Goffinannao e convenientemente visto como 0 te6rico do trivial ou doeremero. Per contra, Braudel nao deve ser visto como propo­nente do estudo de vastas extensoes hist6ricas, nas quais osatores individuais parecem ser os joguetes de irresistiveis cor­rentes sociais, uma "hist6ria determinista, fatalista"J3. A hist6riae a estrutura9ao de eventos no tempo e no espa90 mediante aintera9ao continua de agencia e estrutura, a interconexao danatureza mundana da vida diaria com as formas institucionaisque se estendem sobre imensos periodos de tempo e de espa90.

Ao assinalar as importantes convergencias atuais entre 0trabalho de historiadores e 0 de soci610gos, nao desejo sugerirunicamente que a hist6ria deveria tomar-se mais sociol6gica ea sociologia mais hist6rica. Ha mais do que isso em jogo. Umarecupera9ao de tempo e espa90 para a teoria social significateorizar a agencia, a estrutura e a contextualidade como 0 focopara os problemas de pesquisa em ambos.

Contextualidade significa tanto espa90 quanto tempo, eaqui podemos voltar-nos para a rela9ao entre geografia e socio­logia. A geografia e desde ha muito urn assunto menos afeito,no plano intelectual, do que a hist6ria e, na literatura, ha muitomenos estudos sobre a rela9ao entre geografia e sociologia doque sobre hist6ria e sociologia. Muitos soci610gos tern se preo­cupado em averiguar ate que ponto a "sociologia" e, ou deve ser,"hist6rica" - de modos diferentes, segundo seja entendido cadatermo -, mas, que seja de meu conhecimento, raros sentiram amesma inquieta9ao a respeito da geografia. Isso deve-se prova­velmente nao apenas a diferen9a de prestigio intelectual da his­t6ria e da geografia, mas tambem a maior transparencia que 0conceito de espa90 parece ter em compara9ao com 0 de tempo.

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A CONSTITUI9A'O DA SOCIEDADE

periodo ap6s a Segunda Guerra Mundial, ambas as tradi90esforam propensas a apresentar urn forte matiz evolucionista,assim como vanos dos tra90S secundirios que, como indiquei,estao associados ao evolucionismo. Em especial, a tendenciade ambas era substancialmente europocentrica. 0 desafio quea teoria da "dependencia" e do "sistema mundial" criou paraesses esquemas de desenvolvimento tern urn papel consideni­vel no ataque desencadeado contra os pressupostos europocen­tricos. Mas ha tambem provas claras do impacto da "nova his­t6ria", 0 qual indicou ser provavel que muitas das suposi90esque os soci610gos formularam acerca da Europa pre-capitalistaestavam basicamente erradas 1J•

Entretanto, os soci610gos tern muito mais a aprender dotrabalho dos historiadores do que a maioria esta atualmentepreparada para admitir. Poderiamos propor, como exemplo­chave, a obra de Braudel, exaltada entre os "novos historiado­res" mas ainda largamente desconhecida daqueles que suposta­mente trabalham com a "sociologia". Os escritos de Braudelmostram a influencia que, desde cedo, a sociologia, particular­mente a filtrada pelo grupo do L'anm!e soc/olog/que, exerceusobre 0 desenvolvimento da hist6ria na Fran9a. Em algunsaspectos, sem duvida, esses escritos refletem as deficienciasdas concep90es sociol6gicas do grupo. Mas tambem, em ou­tros aspectos, vao muito alem das limita90es desses pontos devista, e nao s6 em seu conteudo substantivo, mas igualmenteem seu refinamento teorico, revestem-se de grande interessepara a sociologia. 0 "diaJogo entre estrutura e conjuntura"" queBraudel quer captar e paralelo ao que eu procuro representar deurn modo mais detalhado na teoria da estrutura9ao. Braudel e 0historiador da longue duree, mas tambem esta explicitamenteinteressado em ligar 0 contingente e 0 curto prazo a institui­90eS que perduram em longos periodos de tempo.

Que autores poderao parecer mais distanciados urn do ou­tro, a primeira vista, do que Braudel e Goffinan? Figuras total­mente incompativeis, poder-se-a pensar, e mesmo mencionaros dois de urna vez parece levemente absurdo. Braudel estuda ahist6ria ao lange de varios seculos, enquanto Goffinan evita re-

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Depois, entretanto, as coisas mudaram sensivelmente. Aconvergencia perceptivel de pesquisas talvez nao seja tao grandequanta entre a historia e a sociologia, mas a geografia hurnanacertamente recuperou a maior parte da estreita associa,ao coma sociologia de que costumava desfrutar em gera,5es previas".A "nova geografia" da decada de 1960, tal como a "nova histo­ria", foi fortemente influenciada pela introdu,ao de metodosquantitativos provenientes de outras areas das ciencias sociais.A ideia de que a geografia esta primordialmente interessada noestudo da regionaliza,ao viu-se substituida por urna enfase maisabstrata sobre a forma espacial. Ecoando 0 fluxo de ideias emoutras esferas das ciencias sociais, a '"nova geografia" ja Sll­

curnbiu substancialmente as criticas de empirismo que tiveramurn impacto tao poderoso em todo 0 pensamento social e politi­co moderno. 0 resultado, porem, e que a obra de geografostern hoje tanto a contribuir para a sociologia quanto os sociolo­gos podem oferecer em troca. Pois a geografia humana acaboupor conter muitos dos mesmos conceitos e por envolver-se nosmesmos debates metodologicos da sociologia.

Nos capitulos precedentes, tentei deixar claro os que con­sidero serem alguns dos principais aspectos em que conceitosgeograficos podem incorporar-se a teoria da estrutura,ao. Naoquero sugerir, e claro, que a obra de Hagerstrand e seus segui­dores esgota 0 que a geografia tern a oferecer a sociologia. Mase especialmente relevante para a teoria da estrutura,ao porraz5es que procurei especificar. Oferece insights de naturezateorica, quando submetida a urna adequada avalia,ao critica,mas tambem tecnicas de pesquisa que podem ser diretamenteaplicadas ao trabalho empirico. 0 tempo-geografia oferece tresvantagens sobre as tecnicas estabelecidas de pesquisa social,com as quais, e claro, pode em qualquer caso ser combinado.Uma vantagem e que sensibiliza 0 trabalho de pesquisa para ascontextualidades da intera,ao, sobretudo na medida em queeStas se ligam aos aspectos fisicos dos milieux em que os atoresse movimentam. A maioria das pesquisas sociais, conforme pra­ticadas por soci610gos, tern sido avessa a examinar as conexaesentre aspectos fisicos e sociais de milieux, com as homosas

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A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE

A distancia espacial e obviamente facil de compreender e deenfrentar no plano conceptual, enquanto a distancia temporalnao 0 e. Poderia parecer que de tal argumenta,ao segue-se queo espa,o pode ser entregue aos geografos e que 0 estudo dasformas espaciais e relativamente sem interesse. Mas essa con­clusao seria superficial. Talvez a frase pare,a bizarra, mas osseres hurnanos "fazem sua propria geografia", tanto quanta "fa­zem sua propria historia". Ou seja, as configura,5es espaciaisda vida social Sao materia de tanta importancia basica para ateoria social quanto as dimens5es de temporalidade e, comotenho freqiientemente acentuado, para muitos fins e apropriadopensar mais em termos de tempo-espa,o do que tratar tempo eespa,o separadamente.

As raizes da geografia hurnana no final do seculo XIX ternalgo em comurn com as da sociologia. Como no caso da histo­ria, a geografia humana foi influenciada de maneira significa­tiva por Durkheim e os filiados a L'anm!e sociologique. Issovale tanto para Ratzel quanta para Vidal de la Blanche, talvezas duas figuras mais influentes na forma,ao inicial da geografia.o lema de Ratzel era "Die Menscheit ist ein StUck der Erde" [Ahumanidade e urn fragmento da Terra]", mas ele tambem enfa­tizou a importancia da organiza,ao social como urn fenomenoindependentemente estabelecido. Durkheim viu corretamentena obra de Ratzel urn "aliado potencial" para a concep,ao dasociologia tal como desejava desenvolve-Ia". 0 conceito de Vi­dal de genre de vie [genero de vida] expressa diretamente a in­fluencia de Durkheim. Tal como foram adotadas por LucienFebvre, as ideias de Vidal tiveram importante impacto na obrados historiadores franceses, entre eles Braudel". A concentra­,ao deste ultimo na area mediterranica como urn todo, em vezde nas fronteiras definidas por na,5es-Estados ou em designa­,5es politicas como "Europa", reflete fortemente a enfase deVidal. Subseqiientemente, porem, a influencia de Ratzel e Vidalna sociologia foi fraca. Nas decadas seguintes ao final da Se­gunda Guerra Mundial, sociologia e geografia enveredarampor dire,5es proprias e quase sempre separadas.

A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO 429

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exce90es da escola de Chicago e dos chamados teoricos "eco­logicos"". Vma outra vantagem e que dirige nossa aten9aopara 0 significado da rotiniza9ao das atividades cotidianas queestao no amago das institui90es sociais. A terceira e que, aodesenvolver a ideia da vida cotidiana como urna serie de per­cursos tempo-espa90 entrecruzados, 0 tempo-geografia ofere­ce urn modo de mapeamento e de analise de padroes de repro­dU9ao social".

A tentativa de substituir a n09ao de regionaliza9ao emgeografia por modelos mais abstratos de forma espacial e, emmeu entender, urn esfor90 equivocado. Nao penso ser util fazerda analise da regionaliza9ao a preocupa9ao especifica e pecu­liar da geografia. Como procurei enfatizar, a regionaliza9ao eurna n09ao que deveria ser vista como desempenhando urnpapel destacado em teoria social. A regionaliza9ao e mais bernentendida nao como urn conceito totalmente espacial, mas comourn que expressa 0 agrupamento de contextos no tempo-espa90.Como tal, e urn fenomeno de importiiocia decisiva para a so­ciologia, nos niveis teorico e empirico. Nenhum conceito ajudamais a remediar as enganadoras divis5es entre pesquisa "mi­cro-" e "macrossociologica"; nenhum conceito ajuda mais a re­bater a suposi9ao de que uma "sociedade" e sempre urna uni­dade com fronteiras nitidas e precisamente definidas. Os pro­blemas Com a n09ao de regionaliza9ao, tal como foi adotadapela sociologia, consistem: I) em que ela tern figurado primor­dialmente no ambito da sociologia urbana; 2) em que tern sidousada principalmente com referencia a bairros; e 3) em que asociologia urbana tern sido tradicionalmente entendida comourn "campo" da sociologia entre outros.

Cada urn desses usos deve ser questionado. Conforme pro­curei formula-la, a regionaliza9ao nao e certamente equivalen­te a "ciencia regional", mas, miD obstante, tern urn uso muitoamplo. A "sociologia urbana" e urn dos principais interessescompartilhados por geografos e sociologos e 0 dominio no qualtern sido mais profusas as permutas entre as duas disciplinas.Existem paralelos interessantes entre a obra de Vidal, baseadaprincipalmente em ambietltes rurais, e a da escola de Chicago,

431430A CONSTfTUIr;:A-O DA SOCIEDADE A TEOR/A DA ESTRUTURAr;:JO

baseada em ambientes urbanos. Park tinha conhecimento dosescritos da geografia hurnana francesa, embora pare9a ter ela­borado independentemente seus principais conceitos. Elamen­tavel que a influencia de Park tenha sido fortis sima a respeitoda ecologia urbana, marcada por urna concep9ao formalista deespa90 e enfatizando urn ponto de vista objetivista. Em suasobras ulteriores, Park aderiu an09ao de que, se pudermos "re­duzir todas as rela90es sociais a rela90es de espa90", poderemosconsiderar "a possibilidade de aplicar as rela90es hurnanas a logi­ca fuodamental das ciencias fisicas'~'. Mas, em seus primeirosescritos, ele enfatizou muito mais 0 bairro como urn fenomenocontextualizante, ordenado por tra90s sociais distintos e expres­sos como genres de vie. Eessa especie de enfase que precisa serretida, embora sendo mais vista como associada aregionaliza9aoem geral do que aos bairros urbanos em particular.

A sociologia urbana nao e meramente urn ramo da socio­logia entre outros. Eda maior irnportiiocia sublinhar isso e aoreconhece-Io progressos recentes na teoria urbana ajudaramainda mais a demolir algumas das divisoes entre geografia esociologia. Como indiquei anteriormente, urn exame da nature­za das cidades e de grande importiiocia na analise de questoescomurnente apresentadas como de carater puramente logico,incluindo em especial 0 problema micro/macro. 0 termo "cida­de" e aqui suscetivel de induzir em erro. Se as cidades desem­penharam praticamente em toda parte urn papel fundamentalna organiza9ao de sociedades de grande escala, em sociedadesdivididas em classes isso nao ocorreu. Na medida em que 0urbanismo modemo e expressao de urn novo tipo de organiza9aode tempo-espa90, ele esta em descontinuidade com as cidadestradicionais e suas origens coincidem com as do tipo capitalis­ta-industrial de sociedade. Nao e preciso concordar com todosos temas da obra de Castell para admitir que ele foi irnportantena transferencia de enfase, em teoria urbana, da "sociologiaurbana" para a importiincia generica do urbanismo para a teo­ria social". A analise do urbanismo, enquanto base do "ambientecriado", certamente ocuparia uma posi9ao principal em qual­quer programa empirico de estudo que a teoria da estrutura9ao

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432

Referencias

433A TEORJA DA ESTRUTURA9AO

1. Cf. NRSM, cap. 3.2. Willis, Paul. Learning to Labour. Famborough, Saxon House, 1977.

Teoria da estrutura9iio, pesquisa empirica e critica social

atividade, no iimbito de certas situa90es. As atividades huma­nas "tern lugar", mediante a apropria9ao e transforma9ao da na­tureza, em parte nenhuma tao evidente quanta no ambientecriado do urbanismo moderno.

A titulo de retribui9ao, 0 que os geografos podem apren­der com os sociologos? Talvez muito pouco, visto que nestesultimos anos os geografos passaram a estar ao corrente dosdebates e questoes em curso na sociologia. Uma contribui9aoque pode ser feita, entretanto, consiste em ajudar a desfazer asuposi9ao de que pode existiruma "ciencia do espa90 distinta".Na geografia humana, as formas espaciais sao sempre formassociais. Considere-se a asser9ao, representativa de um certo tipode literatura geografica, de que a geografia se interessa em es­tabelecer "as conexoes espaciais entre conjuntos de fatos, me­diante a descoberta de leis espaciais" e em elucidar "as conexoesentre as proprias leis, mediante a constru9ao de teorias espaciais,que sao os padroes ou sistemas no dominio dos problemasespaciais"25. Tais formulal;oes, eclaro, expressam uma concep9aode leis que descartei anteriormente como inadequada; repre­sentam uma tentativa de formar uma "lisica social num contex­to espacial"". Mals importante ainda, porem, elas supoem que 0espa90 tern sua propria natureza intrinseca, uma proposta logi­camente discutivel e empiricamente esteri!. 0 espa90 nao e umadimensao vazia ao lange da qual agrupamentos sociais vaosendo estruturados, mas deve ser considerado em fun9ao do seuenvolvimento na constitui9ao de sistemas de intera9ao. 0 mes­mo ponto formulado em rela9ao ahistoria aplica-se ageografia(humana): nao ha diferen9as logicas ou metodologicas entregeografia humana e sociologia!

A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE

pudesse ajudar a gerar sobre as sociedades industrializadashodiernas.

o que os sociologos podem aprender com a obra dos geo­grafos? Nao so a importancia da regionaliza9ao e das tecnicaspara estuda-la, mas tambem 0 significado do que os geografostradicionalmente chamam de lugar (mas eu prefiro chamar delocal) na reprodu9ao de praticas sociais. Os escritos de Predpodem ser citados como exemplo instrutivo, na medida em quecombinam 0 estudo empirico do urbanismo com uma perspec­tiva influenciada pelo tempo-geografia e pela teoria da estrutu­ra9ao". Como Pred corretamente sublinha, 0 conceito de cara­ter "situado" da intera9ao social so pode ser empiricamentedissecado de forma adequada se apreendermos como a "repro­dU9ao de determinadas institui90es culturais, economicas e po­liticas no tempo e no espa90 esta continuamente vinculada aa90es temporal e espacialmente especificas, conhecimentosacumulados e biografias de determinados individuos"". A coQ[­dena9ao dos percursos diarios de individuos dentro de umadada serie de locais, somada ao que alguns pesquisadores de­nominaram um "senso de lugar", constituem aspectos concreti­zados da dualidade da estrutura. A dialetica de "percurso dia­rio" e "percurso da vida" e 0 modo como a continuidade dabiografia do individuo se expressa na continuidade da reprodu­9ao institucional, assim como a expressa. Urn senso de lugarparece ser de grande importiincia na sustenta9ao da seguran9aontologica, precisamente porque fornece urn elo psicologicoentre a biografia do individuo e os locais que constituem os ce­narios dos percursos tempo-espa90 onde 0 individuo se movi­menta. Os sentimentos de identifica9ao com locais maiores _regioes, na90es etc. - parecem distinguiveis dos criados e refor­9ados pelos contextos localizados da vida cotidiana. Estes ul­timos sao provavelmente muito mais importantes com rela9aoIi reprodu9ao de continuidades institucionais em grande escalado que os primeiros". Pred sugere que a pesquisa deve exploraro duplo sentido que a expressao "ter lugar" pode adquirir. A ati­vidade social tern lugar em locals definidos, mas isso nao deveser entendido simplesmente como a ]ocaliza9ao passiva de tal

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Page 240: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

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434

3, Ibidem, p, 1L4, Ibidem, pp, 29-30,5, Ibidem, p, 33-6, Cf especialmente: ibidem, cap, 5,7, Citado em: ibidem, p, 64,8, Ibidem, p, 107,

9, Cohen, G, A Karl Marx's Theory ofHistory, a Defence, Oxford,Clarendon Press, 1978,

10. Neste ponto, baseio minha analise em "Commentary on the deba­te", urn debate sobre funcionalismo, em Theory and Society, 1982,voLII

II, Willis, P, Learning to Labour, cit, p, 66,12, Ibidem, pp, 68 ss,13, Ibidem, p, 107,14, Ver CPST, pp, 104-6,

15, Marx, KarL Capital, Londres, Lawrence & Wishart, 1970, voL I,p, 169, [Edi,ao brasileira: 0 Capital, Trad, de Ronaldo A SchmidtZaharEditores, 1967,pp, 30-L]

16, Relatado em: Gambetta, Diego, "Were they pushed or did theyjump?" Universidade de Cambridge, 1982, tese de doutorado,

I? Leibowitz, A. "Family background and economic success: a reviewof the evidence". In: Taubman, P. Kinometrics: Determinants ofSocioeconomic Success Between and Within Famities. Amsterdam,North HolIand, 1977-

18. Barbagli, M. Disoccupazione intellettuale e sistema sealas/ieo inItalia, Bolonba, 11 Mulino, 1974,

19, Ibidem; citado em: Gambetta, D, "Were they pushed or did theyjump?", cit, pp, 225-6,

20, Ibidem,pp, 243-4,2L NRSM, cap, 3,

22. Elster, Jon. Logic andSociety, Contradictions and Possible Worlds.Chichester, Wiley, 1978; idem, Ulysses and the Sirens, Cambridge,Cambridge University Press, 1979; Boudon, R, The UnintendedConsequences a/Social Action. LondIes, Macmillan, 1982.

23, Elster, J Logic and Society, cit, cap, 5,24, Ibidem, pp, 113-18,

25. Este e0 fenomeno que Olsen tomou muito conhecido; ver: Olson,Mancur. The Logic o/Collective Action. Cambridge, Mass.; Har­vard University Press, 1963,

26. Boudon, R. The Unintended Consequences 0/Social Action, cit.,cap. 4; os comentarios enticos sao feitos por: Elster, J. Logic andSociety, cit, pp, 126-7,

435

27. Ver especialmente 0 artigo hoje chlssico de Offe e Range: Offe,Claus e Ronge, Volker, "These on the theory of the state", NewGerman Critique, vol. 6, 1975.

28, Ibidem, p, 250,29. A propria pesquisa de Offe interessou-se especialmente pelos mer­

caqos de trabalho e educa,ao, Sua tese e a de que as politicas edu­eacionais e de treinamento sao fortemente influenciadas pelanecessidade percebida de promover a vendabilidade da fon;a detrabalho. As politicas de laissez-faire e "assistenciais do Estadode Bem-Estar" sao comparadas com as de "remercadorificayaoadministrativa", Ver: Offe, Claus, Strukturprobleme des kapita­listischen Staates, Frankfurt, Suhrkamp, 1972; idem, Berufsbil­dungsreform, Frankfurt, Subrkamp, 1975,

30. Cada urn desses tres easos provem de: Sieber, Sam D. Fatal Re­medies, Nova York, Plenum Press, 1981, pp, 60-I, 67-8, 85,

3L CPST, p, 144,32, Urn ponto assinalado por: Skocpol, Theda, States and Social Re­

volutions. Cambridge, Cambridge University Press, 1979, p. xii.33, Ingham, G, K Capitalism Divided? The City and Industry in Bri-

tain, Londres, Macmillan, 1984.34, Hilferding, Rudolf Finance Capital, Londres, Routledge, 1981,35, Ingham, G, C Capitalism Divided?, cit36. Critiquei essa tendencia em vanas fontes. Ver: Capitalism and

Modern Social Theory, Cambridge, Cambridge University Press,1971, cap, 15; CSAS, Introdu,ao; CPST, cap, 6,

37.0 exemplo provem de Thomas P. Wilson, a cuja obra sobre esseassunto sou grande devedor. Ver: "Qualitative 'versus' quantitativemethods in social research". Departament of Sociology, Univer­sity of California at Santa Barbara, 1983 (mimeo} Publicado naAlemanha pela revista: KiRner Zeitschri/t fUr Soziologie undSozialpsychologie, voL 34, 1982, Ver tambem: Maynard, Dou­glas W, e Wilson, Thomas P,: "On the reification of social struc­ture", In: McNall, Scott n e Howe, Gary N, Current Perspectivesin Social Theory. Greenwich, Conn., JAI Press, 1980, vol. 1.

38. Wilson, T. P. "Qualitative 'versus' quantitative methods in socialresearch", cit., p. 20.

39, Cf CPST, W 248-53,40. Winch, Peter. The Idea a/aSocial Science. Londres, Routledge,

19H4 L Gadarner, Hans-Georg, Truth and Method, Londres, Sheed & Ward,

1975,

Page 241: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

Notas criticas: cienela social, historia e geografia

I. Oakeshott, Michael. On History. Oxford, Basil Blackwell, 1983.2. Ibidem, p. 7.3. Ibidem, p. 32.

4. Cf. Abrams, Philip. Historical Sociology. Londres, Open Books,1982, p. 300.

437

5. Stone, Lawrence. The Past and the Present. Londres, Routledge,1981, pp. 16 sS.,passim.

6. Elton, G. R. The Practice 0/ History. Londres, Fontana, 1967,p.173.

7. Lipset. S. M. "History and sociology: some methodological con­siderations". In: Lipset, S. M. e Hofstadter, Richard. SociologyandHistory. Nova York, Basic Books, 1968, pp. 22-3.

8. Cf. Stinchcombe, Arthur L. Theoretical Methods in Social His­tory. Nova York, Academic Press, 1978.

9. Cf. "Functionalism: apres la lutte". In: SSPT.10. Ver: "Classical social theory and the origins of modem socio­

logy". In: PCST.II. Tilly, Charles. As Sociology Meets History. Nova York, Acade­

mic Press, 1981, pp. 37 ss.12. Braudet, F. The Mediterranean and the Mediterranean World in

the Age ofPhilip II. Londres, Fontana, 1973, vol. 2, p. 757.13. Stone, L. The Past and the Present, cit., p. 19.14. Ratzel, Friedrich. Anthropogeographie. Stuttgart, 1899, vol. I,

p.23.15. Durkheim, Emile. Critica de Anthropogeographie, vol.l. L 'annee

sociologique, vol. 3, 1898-9, p. 551. Entretanto, neste e em outroscomentirios, Durkheim tambem foi muito critico em re1a<;ao ao tra­balho de Ratzel.

16. Febvre, Lucien. A Geographical Introduction to History. Lon­dres, Routledge, 1950.

17. Cf., entre outros, Gregory Derek. Ideology, Science and HumanGeography. Londres, Hutchinson, 1978.

18. Ver, por exemplo: Hawley, Amos H. Human Ecology. Nova York,Ronald Press, 1950.

19. Algumas importantes aplica<;oes a esse respeito sao oferecidasem: Carlstein, T. Time, Resources, Society and Ecology. Lund, De­partment ofGeography, 1980.

20. Park, R. "Human ecology". American Sociological Review, vol.42, 1936, p. 2. E verdade que Park, poe vezes, moderou um POllCO

sua posi<;ao.21. Castells, Manuel. "Is there an urban sociology?" In: Pickvance,

C. G. Urban Sociology: Critical Essays. Londres, Tavistock, 1976,e outras publica<;oes. Cf. tambem os volumosos trabalhos de Hen­ri Lefebvre.

22. Ver especialmente: Pred, Allan. "Power, everyday practice and thediscipline ofhuman geography". In: Space and Time in Geography.

A TEORIA DA ESTRUTURAt;AOA CONSTITUIt;A-O DA SOCIEDADE436

42. CPST, pp. 250-3.43. NRSM, pp. 150-3.44. Ibidem.

45. Crocker,1. C. "My brother the parrot". In: Sapis. J. D. e Crocker,J. C. The Social Use a/Metaphor. Filadelfia, University ofPennsyl­vania Press, 1977; tambem discutido em: Sperber, Dan. "Appa­rently irrational beliefs". In: Hollis, Martin e Lukes, Steven. Ra­tionality andRelativism. Oxford, Blackwell, 1982.

46. Bhaskar, Roy. The Possibility a/Naturalism. Brighton, Harvester,1979, pp. 80 ss.

47. Hempel, Carl G. Philosophy a/Natural Science. Englewood Cliffs,Prentice-Hall, 1966, p. 55.

48. "Classical social theory and the origins ofmodem sociology". In:PCST.

49. Ver NRSM, cap. I,passim.

50. Taylor, Charles. "Political theory and practice". In: Lloyd, Chris­topher. Social Theory and Political Practice. Oxford, ClarendonPress, 1983, p. 74. Cf. lambem: MacIntyre, Alasdair. "The indis­pensability ofpolitical theory". In: Miller, David e Siedentop, Larry.The Nature 0/Political Theory. Oxford, Clarendon Press, 1983.

51. Myrdal, Gunnar. "The social sciences and their impact on so­ciety". In: Shanin, Teodor. The Rules a/the Game. Londres, Tavis­tock, 1972, p. 348.

52. Machiavelli, Niccoli>. The Prince. Hannondsworth, Penguin, 1961,p. 69. [Edi<;ao brasileira: 0 principe. Trad. de Livio Xavier, SaoPaulo, Abril Cultural, 1973, p. 46. Col. "as Pensadores", vol. IX.]

53. Ver: Atkinson, J. Maxwell. Discovering Suicide. Landres, Mac­millan, 1978.

54. Ver: Skinner, Quentin. The Foundations of Modern PoliticalThought. 2 vols. Cambridge, Cambridge University Press, 1978;idem. Machiavelli. Oxford, Oxford University Press, 1981.

55. Skinner, The Foundations a/Modern Political Thought, cit.

III

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Page 242: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

438Glossario de terminologia dateoria da estruturafiio

Analise social que caloca em slispensaoas institui90es como socialmente repro­duzidas, concentrando-se no modo peloqual os atores sociais monitoram reflexi­vamente 0 que fazem; no modo pelo qualos atores se ap6iam em regras e recursosna constituiyao da interayao.

Analise social que coloca em suspensaoas habilidades e a percepr;ao consciente deatores, tratando as instituir;oes como regrase recursos cronicamente reproduzidos.

Lar;os causais que tem um efeito de feed­back na reprodur;ao do sistema, quandoesse feedback esubstancialmente influen­ciado pelo conhecimento que os agentestem dos mecanismos de reprodur;ao dosistema e empregam para 0 controlar.

A designar;ao, para fins comparativos, defonnas de mudan9a institucional; os epi­s6dios sao seqiiencias de mudan9a tendourn inicio, urn curso de eventos e resulta­dos especificaveis, que podem ser compa­rados, em cerio grau, abstraidos de con­

textos definidos.

Caracterizar;ao epis6dica

Auto-regular;aoreflexiva

Analise institucional

Analise de condutaestrategica

Esta lista inc1ui neologismos Oli termos empregados de urn modo dife­rente do estabelecido pelo usc. Tern apenas 0 prop6sito de resumir for­mula90es oferecidas no texto e nae 0 de as elucidar ainda mais.

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I

A CONSTITUII;:JO DA SOCIEDADE

Lund, Gleerup, 1981; Thrift, Nigel e Pred, Allan. "Time-geogra­phy: a new beginning". Progress in Human Geography, vol. 5,1981; e Pred, Allan. "Structuration and place: on the becoming ofsense ofplace and structure of feeling". Journalfor the Theory ofSocial Behaviour, vol. 13, 1983.

23. Pred, A. "Structuration and place", cit., p. 46.

24. Buttimer, Anne e Seamon, David. The Human Experience ofSpace andPlace. Nova York, Sl Martin's Press, 1980; Tuan, Yi-Fu."Rootedness versus sense ofplace". Landscape, vol. 24, 1980.

25. Amedeo, D. e Colledge, R. G. An Introduction to Scientific Rea­soning in Geography. Nova York, Wiley, 1975, p. 35.

26. Gregory, Derek. Ideology, Science and Human Geography. Lon­dres, Hutchinson, 1978, p. 73.

II

Page 243: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

dos de modo a ajudar a descrever valida­mente 0 que fazem.

Os criterios a que os cientistas sociais re­correm para justificar suas teorias e des­cobertas, e para avaliar as de outros.

Critica das crenr;as e priticas de agentesleigos, derivada das teorias e descobertasda ciencia social.

o aparato cntico da ciencia social, pormeio do qual teorias e descobertas estaosujeitas a avaliar;a.o aluz de argumentoslogicos e ao fomecimento de provas.

o cariter bilateral do aspecto distributivodo poder (poder como controle); comoos menos poderosos adrninistram recursosde modo a lograrem exercer 0 controlesobre os mais poderosos em relar;oes es­tabelecidas de poder.

A extensao de sistemas sociais atraves dotempo-espar;o, com base nos mecanismosde integra~ao social e de sistema.

A estrutura como 0 meio e o·resultado daconduta que ela recursivamente organi­za; as propriedades estruturais de sistemassociais nao existem fora da ar;ao, mas es­tao cronicamente envolvidas em sua pro­dur;ao e reprodur;ao.

A interser;ao de duas redes de significadocomo parte logicamente necessaria daciencia social, 0 mundo social significa­tivo constituido por atores leigos e as me­talinguagens inventadas por cientistas so­ciais; hi uma "oscila~ao" constante de umarede para outra envolvida na pritica dasciencias sociais.

Dualidade da estrutura

Distanciamentotempo-espar;o

Dupla henneneutica

Dialetica de controle

Critica intema

Critica extema

Criterios de validade

GLOSsARlO DE TERMINOLOGIA DA TEORlA DA ESTRUTURAr;:Ao 441A CONSTITUlt;A-O DA SOCIEDADE440

Circuito de reprodw;ao Vma serie institucionalizada de rela¥oesde reprodw;ao, regida ou por layos cau­sais homeostaticos ou pcr auto-regula9aoreflexiva.

Cognoscitividade Tude que os atores sabem (creem) acercadas circunstancias de sua a9ao e da de ou­tras, apoiados na Produ9aO e reprodu<;aodessa a9ao incluindo tanto 0 conhecimen­to tacito quanta 0 discursivamente dispo­nivel.

Conhecimento mutuc Conhecimento de "como prosseguir" emformas de vida, compartilhado por atoresleigos e observadores soci61ogos; a condi­9ao necessaria de adquirir acesso a des­cri90eS validas de atividade social.

Consciencia discursiva 0 que os atores sao capazes de dizer, ouexpressar verbalmente, acerca das condi­90es sociais, incluindo especialmente ascondi~oes de sua propria a~a.o; conscien­cia que tern uma fonna discursiva.

Conscil~ncia pnitica 0 que os atores sabem (creem) acerca dascondi~oes sociais, incluindo especialmen­te as de sua propria a~ao, mas nao podemexpressar discursivamente; nenhuma bar­reira repressiva, entretanto, protege a cons­ciencia pritica, como acontece com 0 in­consciente.

Contextualidade 0 carMer situado da intera~ao no tempo­espar;o, envolvendo 0 encenamento da in­tera~ao, os atores co-presentes e a comu­nicar;ao entre eles.

Contradir;ao Oposir;ao de principios estruturais, de mo­do que cada urn depende do outro e, noentanto, nega 0 outro; conseqiiencias per­versas associadas a tais circunstancias.

Os criterios usados por agentes para for­necer razoes para 0 que fazem, apreendi-

Criterios decredibilidade

Page 244: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

GLOSsARIO DE TERMINOLOGIA DA TEORIA DA ESTRUTURAr;XO 443

11

442

Estrutura

Estrutura~ao

Estruturas

Extremidades dotempo-espa~o

Historicidade

•Integra<;:ao sistemica(ou de sistema)

Integra~ao social

Lal;os homeostaticos

A CONSTITUII;XO DA SOCIEDADE

Regras e recursos, recursivamente impli­cados na reprodU(;ao de sistemas sociais.A estrutura existe somente como tra<;:05de memoria, a base organica da cognos­citividade humana, e como exemplifica­danaa<;:ao.

A estrutura<;:ao de rela<;:oes sociais ao lon­go do tempo e do espa~o, em virtude dadualidade da estrutura.

Conjuntos de regras e recursos, implica­dos na articula9ao institucional de siste­mas sociais. Estudar estruturas, inclusiveprincipios estruturais, eestudar aspectosimportantes das rela95es de transfonna­9ao/media<;ao que influenciam a integra­<;ao social e sistemica.

Conexoes, conflituais Oll simbi6ticas, entresociedades de diferentes tipos estruturais.

A identificayao da hist6ria como mudan­ya progressiva, conjugada com a utiliza­yao cognitiva de tal identificayao a fim defavorecer essa mudanya. A historicidadeenvolve wna visao particular do que e"hist6ria", 0 que significa usar 0 conhe­cimento da hist6ria para mum-lao

Reciprocidade entre atores ou coletivida­des no tempo-espayo ampliado, fora decondiyoes de co-presenya.

Reciprocidade de praticas entre atoresem circunstancias de co-presenya, enten­dida como continuidades e disjunyoes deencontros.

Fatores causais que tern urn efeito defeedback na reproduyao do sistema, quan­do esse feedback e preponderantementeo resultado de conseqiiencias impreme­ditadas.

".

Local

Modelo de estratificayao

Monitorayao reflexivadaa~ao

Principios estruturais

Propriedades estruturais

Racionalizayao da ayao

Recursos alocativos

Recursos autoritarios

Vma regiao fisica envolvida como partedo cemirio de interayao, tendo fronteirasdefinidas que ajudam a concentrar a ayaonurn sentido ou outro.

Vma interpretayao do agente humano, su­blinhando tres "camadas" de cogni9aolmotiva9ao: consciencia discursiva, cons­ciencia pratica e 0 inconsciente.

o carater deliberado, ou intencional, docomportamento humano, considerado nointerior do fluxo de atividade do agente;a a9ao nao e urna serie de atos discretos,envolvendo urn agregado de inten90es,mas urn processo continuo.

Principios de organiza9ao de totalidadessociais; fatores envolvidos no alinha­mento institucional global de uma socie­dade ou tipo de sociedade.

Caracteristicas estruturadas de sistemassociais, sobretudo as institucionalizadas,estendendo-se ao lange do tempo e doespa~o.

A capacidade que atores competentes ternde se "manterem em cont." com as ba­ses do que fazem, da forma como 0 fazem,de tal modo que, se interrogados por ou­tros, podem fornecer razoes para suas ati­vidades.

Recursos materiais envolvidos na gera9aode poder, incluindo 0 ambiente natural eos artefatos fisicos; eles derivam do domi­nio humano sobre a natureza.

Recursos nao-materiais envolvidos na ge­ra9ao de poder, derivando da capacidadede tirar proveito das atividades de sereshurnanos; eles resultam do dominio dealguns atores sobre outros.

Page 245: Giddens, anthony. a constituição da sociedade (1)

444

Regionaliza<;ao

Rotiniza<;ao

Seguran,a ontologica

Sistema

Sistemas intersociais

Sociedade divididaem classes

Tempo mundial

A CONSTITUIi;:AO DA SOCIEDADE

A diferencia<;ao temporal, espacial ou es­paco-temporal de regi6es dentro de ou en­tre locais; a regionalizacao euma impor­tante 009ao para contrabalancar a supo­sicao de que as sociedades sao sempresistemas homogeneos, unificados.

o carMer habitual e aBsente da maior par­te das atividades da vida social cotidiana;a preponderancia de estilos e formas deconduta familiares, sustentando e sendasustentada por urn sensa de seguranca 00­

tol6gica.

A confianca em que os mundos natural esocial sao como parecem ser, incluindo osparametros existenciais b<isicos do selfeda identidade social.

A padronizaCao de relacoes sociais aolongo do tempo-espaco, entendidas comopriticas reproduzidas. Os sistemas so­ciais devem ser considerados amplamen­te variaveis em termos do grau de "siste­midade" que apresentam e raramentetern 0 tipo de unidade intema encontradaem sistemas fisicos e biol6gicos.

Sistemas sociais que cortam transversal­mente quaisquer linhas divis6rias existen­tes entre sociedades ou totalidades sociais,incluindo aglomerados de sociedades.

Estados agranos em que existe a divisaode classes de tipos discemiveis, mas ondeesta nao constitui a base principal doprincipio de organiza~ao da sociedade.

Conjunturas da hist6ria que influenciama natureza dos epis6dios; os efeitos dacompreensao de precedentes hist6ricos so­bre caracteriza90es episodicas.

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