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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Giovânia Alves Costa Corpo: possibilidades para pensar e ensinar filosofia. O philodrama como experiência de formação Rio de Janeiro 2008

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação

Giovânia Alves Costa

Corpo: possibilidades para pensar e ensinar filosofia.

O philodrama como experiência de formação

Rio de Janeiro

2008

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ /REDE SIRIUS / CEH/A

C 837 Costa, Giovânia Alves.

Corpo: possibilidades para pensar e ensinar filosofia. O philodrama como experiência de formação / Giovânia Alves Costa. – 2008

135 f

Orientador: Walter Omar Kohan Dissertação (Mestrado). Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Faculdade de Educação.

1. Educação – Filosofia - Teses. 2. Corpo e Alma (Filosofia) - Teses. 3. Subjetividade - Teses. I. Kohan, Walter Omar. II Universidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Título.

CDU 37.01

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Giovânia Alves Costa

Corpo: possibilidades para pensar e ensinar filosofia O philodrama como experiência de formação

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos curriculares obrigatórios para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Aprovado em_____________________________________

Banca Examinadora: _________________________________

______________________________________

Prof. Dr. Walter Omar Kohan (Orientador)

Faculdade de Educação da UERJ

______________________________________

Profª. Drª. Marisa Lopes da Rocha

Faculdade de Psicologia da UERJ

______________________________________

Prof. Dr. Reuber Gerbassi Scofano

Faculdade de Educação da UFRJ

Rio de Janeiro

Abril de 2008

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Giovânia Alves Costa

Corpo: possibilidades para pensar e ensinar filosofia.

O philodrama como experiência de formação

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação

em Educação da Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos curriculares

obrigatórios para a obtenção do título de Mestre

em Educação.

Orientador: Walter Omar Kohan.

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Rio de Janeiro

2008

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Para o Fred, com todo meu amor,

e a todos os jovens que a escola “não dá conta”.

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Agradecimentos.

A todo o grupo que participou do 3º encontro de El nagual, principalmente

Max e Fabiana. Obrigada pelas falas e ajuda nas traduções.

À Fabiana Martins, Joel e Sérgio Rafael pela força nas transcrições e

com a impressora.

Aos amigos queridíssimos: Joana, Sérgio, Geórgia, Leonardo, Bernardo,

Gabriel, Filipe e François pelas correções e conversas sempre inspiradoras e

claro, pelos bons momentos que passamos juntos.

À Ingrid Müller, pelo exemplo de como estudar.

À Siomara e Vera, pelas aulas e bom astral que deixam no corredor.

À Nilda Alves, pelo presente do livro com que iniciei a pesquisa.

Ao Arlindo, pela sua leveza, ajuda no Lattes e tudo o mais.

Ao Marcelo, pela companhia na aventura inspiradora de Canudos.

À Lígia, por agüentar dividir o espaço na fase “alterada”.

Ao Luizinho, pela ajuda na formatação e prontidão para o que der e vier.

À minha família que bancou o encontro com a filosofia em uma grande

virada da vida.

À Cláudia e Rodrigo pela ajuda na revisão e em todo o resto.

À Sônia Nassim por ter me acolhido quando tudo escureceu.

Ao Salmo, pelo carinho e prontidão em ajudar e pela beleza da sua arte

que sempre me surpreende.

Ao Tamas, por seu carinho e cuidados durante toda a pesquisa.

Ao Anand Chaman, por me ajudar a aprender a respirar e por me curar.

Ao Ricardo Sassone, pelos caminhos que abriu para minhas reflexões

Ao Walter, que me levou até a cachoeira no 2º El nagual. O apoio desse

gesto e a confiança que senti foi o que me deu força para continuar até o fim.

A Capes pelo privilégio de receber para estudar.

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Quando você tenta se projetar centrado no ápice do corpo não pode escrever um livro sobre isso. Um livro corporal tem que se escrever a cada vez que o encontro pode se atualizar. Corpos distintos, situações distintas, afetividades distintas.. A gente pode escrever, mas no momento que escreve a coisa morreu.1

1 R. Sassone, 2007.

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RESUMO

Costa, Giovânia Alves. Corpo: possibilidades para pensar e ensinar filosofia. O

philodrama como experiência de formação 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2008.

O presente trabalho nasce do incômodo da compreensão de corpo como uma

substância separada e inferior à alma. Da inquietude de uma atriz que se tornou professora de

filosofia e que cotidianamente esbarra em corpos uniformizados e quase invisíveis dentro da

escola. Vinda de uma formação artística em dança e teatro me perguntava com Spinoza: o que

pode um corpo? Essa reflexão opera um deslocamento do dualismo — separação corpo e

alma como substâncias distintas — que coloca o corpo como fonte de erro, para uma

perspectiva na qual o corpo é uma força, um movimento, ou melhor, o encontro das forças

que agem e nos lançam em um modo próprio de ser. O encontro das forças afetivas se dá no

que chamamos de ‘atmosfera’, a partir do conceito de José Gil no seu estudo sobre a

possibilidade de traçar um plano de imanência a partir da dança. Ao buscar relacionar

linguagem corporal e atmosfera chego a um indizível, a algo antes de qualquer compreensão.

A algo que é fundamento da experiência. Mas a modernidade nos lançou numa roda de

eventos cotidianos que se acumulam e a autoridade de narrá-los, vivenciá-los se foi. Isso é a

destruição da experiência, segundo Agamben. Essa pesquisa é atravessada pela idéia de

recuperar a experiência pensada como impossibilidade e ao mesmo tempo como a busca da

linguagem. Experiência como a condição de se aprender a falar, como a infância do homem

que se dá continuamente. Esse trabalho tem como objetivo pensar o corpo numa específica

relação com a filosofia investigando uma proposta de estética aplicada — philodrama — que

propõe jogos dramáticos e transposições de textualidade para a compreensão de conceitos

filosóficos. A formação de professores infantes que re-aprendam formas de sair do silêncio,

sair da impossibilidade de se expressar — ou da expressão já pronta nos livros e que não nos

pertence — e criar novos significados, recriando condições para que o acontecido possa ser

narrado. O que pode o corpo? Como pode a filosofia na escola trabalhar no sentido de

contribuir para uma ‘escuta’ do corpo-próprio possibilitando novas formas de sociabilidade e

de subjetividade que possam se contrapor a instrumentalização do corpo ou a idéia do corpo

como produto de consumo?

Palavras chaves: formação-corpo-experiência

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RESUMEN

Costa, Giovânia Alves. Cuerpo: posibilidades para pensar y enseñar filosofía. El philodrama como experiencia de formación 2008. Disertación (Maestría en Educación) – Programa de Posgrado en Educación, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2008.

El presente trabajo nace de la incomodidad que surge ante la comprensión del

cuerpo como una sustancia separada e inferior al alma. De la inquietud de una actriz que

se tornó profesora de filosofía y que cotidianamente se depara con cuerpos uniformados

y casi invisibles dentro de la escuela. Proviniendo de una formación artística en danza y

teatro me preguntaba con Spinoza: ¿qué puede un cuerpo? Esa reflexión opera un

desplazamiento del dualismo — separación cuerpo y alma como sustancias distintas —

que coloca el cuerpo como fuente de error, hacia una perspectiva en la cual el cuerpo es

una fuerza, un movimiento, o mejor dicho, el encuentro de las fuerzas que actúan y nos

lanzan a un modo propio de ser. El encuentro de las fuerzas afectivas se da en lo que

llamamos ‘atmósfera’, partiendo del concepto trabajado por José Gil en su estudio sobre

a posibilidad de trazar un plano de inmanencia a partir de la danza. Al buscar relacionar

lenguaje corporal y atmósfera llego a un indecible, a algo antes de cualquier

comprensión, a algo que es fundamento de la experiencia. Mas la modernidad nos lanzó

en una rueda de eventos cotidianos que se acumulan y la autoridad de narrarlos,

vivenciarlos desapareció. Eso es la destrucción de la experiencia, según Agamben. Esta

investigación está atravesada por la idea de recuperar la experiencia pensada como

imposibilidad y al mismo tiempo como a búsqueda del lenguaje. Experiencia como la

condición de aprender a hablar, como la infancia del hombre que se da continuamente.

Este trabajo tiene como objetivo pensar el cuerpo en su específica relación con la

filosofía investigando una propuesta de estética aplicada — philodrama — que propone

juegos dramáticos y transposiciones de textualidad para la comprensión de conceptos

filosóficos. La formación de profesores infantes que re-aprendan formas de salir del

silencio, de salir de la imposibilidad de expresarse — o de la expresión ya hecha de los

libros y que no nos pertenece — y de crear nuevos significados, recreando condiciones

para que lo acontecido pueda ser narrado. ¿Qué puede el cuerpo? ¿Cómo puede la

filosofía en la escuela trabajar en el sentido de contribuir a una ‘escucha’ del cuerpo-

propio posibilitando nuevas formas de sociabilidad y de subjetividad que puedan

contraponerse a la instrumentalización del cuerpo o a la idea del cuerpo como producto

de consumo?

Palabras clave: formación-cuerpo-experiencia.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................... 1

1. CORPORALIDADE. ........................................................................................ 5

1.1 — Linguagem Corporal. ............................................................................. 6

1.2 — Corpo na Perspectiva Dualista/Transcendente. ...................................... 9

1.3 — Corpo na Perspectiva Monista/Imanente ............................................. 13

1.4 — Atmosfera ............................................................................................. 18

1.5. — Experiência .......................................................................................... 21

1.6. — Philodrama .......................................................................................... 24

2. O NÚCLEO DE ESTUDOS FILOSÓFICOS DA INFÂNCIA -NEFI- E A

SUA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO. ...................................................................... 31

2.2— RELATO DAS ATIVIDADES DE EL NAGUAL. .............................. 36

2.2.1 — Apresentação (incluindo os jogos de integração e percepção).......... 41

2.2.2 — Argila (construção coletiva de obra e de sentido). ............................ 43

2.2.3 — Violência ........................................................................................... 45

2.3. — Desenhos e textos poéticos ................................................................. 49

3. ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO .............................. 62

3.1— Apresentação ......................................................................................... 62

3.2 — Argila .................................................................................................. 72

3.3.1 — Sobre os desenhos. ............................................................................ 84

3.3.2 — Performance ..................................................................................... 89

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 95

4.1 — E na escola? ........................................................................................ 104

BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 106

ANEXO I — Descrição de uma experiência de formação. .............................. 108

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INTRODUÇÃO

O espaço ficcional representa e relaciona os horizontes possíveis nos

quais se inscreve todo o processo de compreensão. A marca dramática plasma-se numa alteração no estado das coisas que é o mundo, para

projetar-se nesse outro mundo, que é o mundo da obra, ao produzir-se o movimento ficcional.2

Sentar e escrever. Traduzir o pensamento em palavras. Na minha frente a tela

sem voz não funciona como interlocutor. É necessário a “viagem para dentro”, buscar

palavras ao invés de gestos. Não posso dançar, nem dramatizar uma dissertação. É

necessário escrever. Discursar sem se perder. Buscar argumentos.

Nessa introdução me lanço em primeira pessoa tentando manter a estreita

relação com a voz interior que ecoa no meu corpo, tema da minha pesquisa: Mas busco

pensar o corpo numa específica relação: com a filosofia, com a sala de aula, numa

relação professore aluno que doravante tratarei como relação ensinante3.

Penso o corpo não como um objeto, mas como presença em sala de aula. Corpos

vivos que interagem. Busco relações que me ajudem a recuperar e revelar um mundo

pela experiência de estar nele, mais do que pensar sobre ele. Experiência de escuta, não

com os ouvidos, mas com todos os sentidos. Sensações que abrem percepções que se

dão inteiras. Assim, o olhar pode ser toque que se estende e aquece a pele. A escuta

pode ser do silêncio, ou da própria respiração que conduz aos movimentos

imperceptíveis do corpo, micro-movimentos que nos mantêm em equilíbrio.

Esta introdução se faz necessária para situar de onde falo. Essa reflexão é o

encontro do fazer-teatral4 e do pensar-filosofia. Dois mundos que se encontraram e

abrem possibilidade para algum outro.

Num palco, eu sou o outro. A representação é uma re-significação, onde a ficção

é a verdade-teatro. Uma verdade gerada no campo da arte, onde a idéia do texto

(abertura-mundo) acontece no corpo e na voz do ator, fazendo do espaço cênico o

2 SASSONE, Ricardo. “Filosofia e teatro: as estratégias de teatralização como contribuição à transmissão de conteúdos filosóficos”. In: KOHAN, Walter (org.) Ensino de Filosofia.Perspectivas. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. p.124. 3 G. Ferraro, “A escola dos sentimentos”. Rio de Janeiro: UERJ, 07/05/2005. Palestra 4 Trabalho como atriz, profissional, desde 1983.

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acontecimento. Ali, no palco, em mim, encontram-se a eternidade do personagem

(corpo-ausente) e o instante que a vida deste acontece “encarnado” no meu corpo de

artista. Faz-se presente o ausente e a ficção é, então, mais verdadeira do que a própria

realidade. Desvela uma verdade que até então não existia. No fazer-teatral, não me

restrinjo à realidade. Esta passa a ser fruto de um processo criativo que me afeta. O real

é, na verdade, um exercício de possibilidades.5 É isto a “realização”, isto é, o tornar-se

real dos entes, o que perfaz ao mesmo tempo a sua verdade em sentido originário.

Mas, a reflexão acerca do fazer teatral é essencialmente diferente do fazer

teatral. Neste não me pergunto sobre o processo, antes do pensar, me movimento. Na

reflexão, busco entender até mesmo o que pergunto. Num palco, o pensamento em

movimento inaugura meu ‘ser-no-mundo’.

Aqui, vivo uma nova experiência. Busco a filosofia. Aventura de uma reflexão

que conduza a uma outra perspectiva. Jogo o jogo de uma nova vida e apresento os

resultados de um caminhar.

Pergunto-me se o fazer filosofia na escola, principalmente no ensino médio pode

se beneficiar dos jogos teatrais, tanto para a compreensão de certos conteúdos como na

própria formação do professor que se adapta, se sensibiliza para a relação singular,

corpo a corpo, que se dá em sala de aula. O problema que se revela não pode ser lido

como uma questão de conteúdo e sim de comportamento, algo que se dá antes, entre

aluno e professor para que se efetive a relação de troca que caracteriza a relação

ensinante.

A prática do ensino de filosofia, na sua maioria, ainda está presa à

discursividade. O que é cobrado dos alunos são habilidades cognitivas e lingüísticas

como se estas estivessem separadas do corpo e não vinculadas a hábitos adquiridos.

Tentamos transmitir ou criar um ambiente propício à produção de pensamentos

emancipadores, mas ao mesmo tempo contribuímos para o que Foucault chama de

docilização dos corpos 6 — corpos que permanecem sentados no esforço de ouvir e

entender palavras.

Será possível tomar da prática teatral algo que remeta ao estatuto próprio da

filosofia? Como integrar teatro e filosofia? Trata-se de algo diferente do

5 Em Ser e Tempo, Heidegger afirma que “mais elevada do que a realidade está a possibilidade”

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2000. § 7, p. 69. 6 Cf. VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p.77.

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teatroeeducação, prática consolidada desde os anos 60 por grupos e autores

importantes. Nele, os conteúdos estão nas peças montadas. A relação é de conteúdos,

não de experiência. Algumas outras possibilidades se apresentam: a) representar textos

filosóficos através de peças teatrais; esta opção é bastante popular entre os professores

de filosofia do ensino médio, em particular a partir dos Diálogos de Platão, como

Apologia de Sócrates e A República (em especial, “A alegoria da caverna”); b)

problematizar filosoficamente textos teatrais ou ainda peças representadas. Contudo,

este trabalho pensa em outra direção: em que medida a reunião entre teatro e filosofia

ajuda a pensar e afirmar “outra” relação entre corpo e pensamento que a dominante nas

instituições educacionais, nas relações “ensinantes”.

Dentre tantos autores da tradição filosófica, privilegiamos alguns que ajudam a

pensar o ensino de filosofia, suas dificuldades, possibilidades, especificidades. Foi

necessário recortar, selecionar os encontros bons, potentes, desafiantes e nutrientes do

trabalho. A linha principal está dada por Spinoza que inspira Nietzsche que inspira

Deleuze que inspira José Gil. Uma linha mais específica está dada pelo “philodrama”,

que Ricardo Sassone propõe como metodologia de intervenção estética aplicada.

No primeiro capítulo apresento conceitos como corpo, linguagem corporal,

atmosfera, experiência (acontecimento), e o próprio philodrama. Nesse caminho, se faz

necessário contrapor ao conceito de corpo como substância distinta da alma —que é a

forma que a escola trata os corpos dos alunos — à noção de corpo-próprio na

perspectiva da imanência.

No segundo capítulo apresento o grupo de pesquisa no qual esta dissertação se

insere — Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFI) —, o teatrólogo e filósofo Ricardo

Sassone que coordenou o encontro de formação de professores do NEFI, que constitui o

trabalho de campo estudado nesta dissertação. Esse capítulo traz também o relato desse

encontro, que teve lugar entre os dias 04 a 08 de abril de 2007 na Reserva El Nagual,

em Magé, RJ .

No terceiro capítulo analiso a experiência de formação narrada, buscando na

metodologia do philodrama indicadores para pensar a possibilidade do pensamento em

ação que o conceito oferece. Estratégias usualmente consideradas não-filosóficas são

usadas como critérios para pensar o ensino de filosofia e suas possibilidades. A partir de

critérios como o tempo das atividades, o espaço utilizado e a ‘escuta’ no trabalho

coletivo. A análise busca problematizar em que sentido o philodrama trabalha o corpo

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e seus limites e possibilidades para provocar, através do corpo, uma experiência de

pensamento.

No quarto e último capítulo apresento algumas considerações finais dessa

investigação sobre corpo, filosofia e educação.

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1. CORPORALIDADE.

É decisivo quanto ao destino do povo e da humanidade, que se comece a cultura a partir do lugar correto — não a partir da ‘alma’

(como era a superstição fatídica dos sacerdotes e semi-sacerdotes): o lugar correto é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto segue

daí 7.

O presente capítulo afirma uma reflexão sobre o corpo e seu papel no

desenvolvimento da relação ensinante. Para essa reflexão, inicialmente, será apresentada

uma concepção de linguagem corporal e conceitos como corpo, atmosfera e experiência

(acontecimento)e o próprio philodrama, que constitui o trabalho de campo desta

pesquisa. Esse caminho se faz necessário para contrapor ao conceito de corpo como

substância distinta da alma —que é a forma que a escola trata os corpos dos alunos — à

noção de corpo-próprio na perspectiva da imanência. Trata-se de um deslocamento de

uma forma de pensar, o qual é importante para buscar estratégias que possam criar

novas possibilidades de compreensão de conceitos a partir de vivências, de experiências

que operem deslocamentos no próprio pensar. Trata-se, em última instância, de pensar o

corpo – com o corpo – de “outra” maneira.

7 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Aforismo 47. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 106.

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1.1 — Linguagem Corporal.

Normalmente, entende-se linguagem corporal como um conjunto de gestos que

produzem sentidos. O corpo é percebido como um vetor de comunicação, entendendo

comunicação como um processo de interação no qual compartilhamos informações,

idéias e emoções. A comunicação pode ser realizada de forma verbal ou não-verbal,

estando a linguagem corporal entre as formas não verbais.

Já é relativamente difundido em nossos dias o reconhecimento de certos padrões

gestuais que constituiriam a linguagem do corpo.

O senso comum utiliza largamente a idéia de uma gramática corporal, mas

considero isso uma simplificação da cinética — como também é chamada a linguagem

corporal. Não nos parece simples que haja estruturas de linguagem corporal que

transcendam as contingências culturais. Não tenho notícia de nenhuma expressão ou

posição corporal que tivesse o mesmo significado em todas as culturas. Não há gestos

ou movimentos corporais que possam ser considerados como símbolos universais. Toda

cultura tem seu repertório gestual. Um estudo sério da cinética vai muito além da mera

classificação e o termo linguagem corporal não se refere apenas a um dicionário gestual.

Alguns comportamentos corporais têm significados culturalmente reconhecidos, mas só

podem ser percebidos a partir da análise das estruturas padronizadas do sistema de

movimentos corporais, de como se manifesta numa situação social particular. Essa linha

de interpretação valoriza o significado da cultura como elemento padronizador.

Nesse sentido, concordo com essa interpretação, a partir da qual, posso afirmar

que a cultura padroniza a postura corporal, o movimento e a expressão facial. É claro

que um movimento corporal não pode traduzir sozinho um significado da mensagem. É

necessário que esse movimento seja inserido num contexto, e o mesmo gesto pode ter

significados diferentes, em diferentes sociedades.

Essa concepção de linguagem corporal, ainda que saindo de uma padronização

universal e colocando-a em um contexto cultural, insere-se dentro de uma forma de

pensar que limita o corporal ao biológico, reduzindo as significações possíveis do termo

ao mecanicismo próprio da modernidade, que coloca o corpo praticamente como

antônimo do conceito de alma, sendo essa considerada até mesmo como prisioneira do

corpo. Essa visão é parte do processo de rompimento entre corpo e alma, operado pela

tradição filosófica desde Platão e que ao longo dos séculos configurou uma perspectiva

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hegemônica constituindo-se num paradigma onde o corpo é algo objetivo que o “eu”,

sujeito pensante, possui.

Na tentativa de re-conceituar linguagem corporal, recuso esquemas que analisam

os a vida humana modelados por um tipo de pensamento que nasce dessa separação.

Busco sair da dualidade corpo e alma, busco um novo olhar que tente superar a

separação sujeito-objeto. A significação de linguagem corporal que uso se diferencia se

diferencia da apresentada anteriormente e que identifico como parte do paradigma

filosófico clássico e moderno de compreensão de mundo que doravante tratarei como

dualismo.

Os mapas conceituais da filosofia da excisão já não resultam úteis. Precisamos de novas cartografias e acima de tudo, novas formas de cartografar: devemos procurar outros instrumentos conceituais e criar novas ferramentas que permitam uma movimentação sobre territórios fluidos 8.

Nietzsche trava seu duelo com a metafísica platônica, de onde herdamos o que o

autor considera o desprezo ao corpo9. Ele pensa o corpo como um fio condutor para

chegarmos a novos modos de ser. O que Nietzsche aponta é que não é possível situar o

pensamento longe do corpo. O corpo é o ‘ser-próprio’. A partir dessa perspectiva indico

minha compreensão de linguagem corporal dentro de uma constelação conceitual que

tenta dar conta de um corpo vivo e não um corpo objeto. Um corpo que me surpreende

por que é através dele que experimento a vida.

Linguagem corporal não pode se limitar a algo que ganha significado depois da

experiência. O que posso pensar sobre o meu corpo, ou ainda, o que posso pensar com o

meu corpo, não deve se destacar da experiência, antes, é fundamento dessa. Algo se dá

entre os corpos, modo de uma substância única10 que acontece mediado por todas as

codificações sócio-culturais, e que narra a nós mesmos e aos outros, afetos que nos

atravessam e determinam formas de pensar.

Linguagem corporal é um meio do corpo produzir e transmitir suas reflexões e

não um conjunto de códigos que obedecem a um sentido dado a priori pelo pensamento.

8 NAJMANOVICH, Denise. Pensar/ Viver a corporalidade para além do dualismo. In: GARCIA, Regina (Org.). O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: DP &A, 2002, p.93. 9 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. RJ: Civilização Brasileira, 2006. p.59. 10 SPINOSA, Benedictus de, Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica , 2007. P. 13. Definição III “Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, Isto é, aquilo cujo conceito não exige outra coisa do qual deva ser formado”.

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Faz-se necessário então, apresentar os demais conceitos que me ajudam a

construir esse olhar, a saber: corpo, atmosfera e experiência.

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1.2 — Corpo na Perspectiva Dualista/Transcendente.

Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais (...) reputá-las-ei como vãs e como falsas. 11

A concepção de corpo mais comum pode ter raízes no racionalismo cartesiano,

no qual o corpo é uma máquina comandada pelo pensamento. Esse sentido se insere

num projeto de mundo que se vincula a um pensamento laico sobre a natureza, abrindo

espaço para as verdades científicas. A investigação cartesiana é pela possibilidade do

conhecimento e nesse caminho ele nos apresenta uma ontologia configurada a partir de

duas substâncias distintas: res-cogitas e res-extensa. Extensão (corpo) e pensamento

(alma), respectivamente.

Em uma de suas principais obras, Meditações, Descartes adverte sobre o perigo

dos sentidos como fonte de conhecimento. Farei um breve percurso da investigação

cartesiana que coloca os sentidos (corpo) como fonte de erro e, portanto, não confiável.

Na primeira meditação, Descartes não tenta estabelecer nenhuma verdade. O que

ele busca é se livrar de velhas opiniões tomadas como verdadeiras. Ele quer ter o

espírito livre de preconceitos para partir em busca de um conhecimento verdadeiro que

possa ser fundamento para um conhecimento científico. Como seria impossível

considerar uma a uma as opiniões que até então eram tidas como conhecimento,

Descartes vai até as fontes de conhecimento e examina-as, questionando sobre a

validade do que sabemos através de tais fontes. As fontes que ele considera são: os

sentidos, a imaginação e o intelecto (alma).

O primeiro aspecto da dúvida é com relação ao conhecimento das propriedades

das coisas particulares que temos através dos sentidos. Ora, o doce que sinto em um

vinho não corresponde ao sabor que outro possa perceber. Os sentidos erram e podem

nos enganar. E, para Descartes, se estes nos enganam uma única vez não é possível

confiar neles. Através dos sentidos não temos consenso em relação às propriedades das

coisas particulares. Temos somente uma sensação ilusória das propriedades dos objetos.

Nesse momento, Descartes não está colocando em questão a existência das

coisas, e sim, o conhecimento que possamos ter delas. A dúvida cartesiana não é uma

questão prática e sim uma garantia teórica.

11DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção “Os Pensadores”. p.107.

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Se os sentidos nos enganam em relação à propriedade das coisas, ainda assim, é

certo que nos referimos a algo quando emitimos ilusórias opiniões. Podemos discordar

se o vinho é doce ou não, mas ainda assim, estamos nos referindo ao vinho. Ou seja,

tenho razão para duvidar que as coisas sejam tais como eu percebo, mas isso não é

suficiente para duvidar da existência dessas coisas. A existência dos objetos singulares

escapa ao argumento do erro dos sentidos. Ele introduz, ainda para verificar o

conhecimento dado pelos sentidos, a hipótese do sonho.

O sonho é uma percepção sensível. Dormindo, temos sonhos que nos parecem

reais. Quando durmo, sonho e percebo coisas que não são ‘reais’, não existem de fato.

Será que isso não acontece também na vigília? Nenhuma segurança podemos ter sobre

isso, afirma Descartes. Dessa forma, o consenso sobre a existência de coisas que

percebemos em vigília, e que tinha escapado do erro dos sentidos — em relação às

propriedades particulares que percebemos — é também colocado em questão. Os

sentidos não podem nos fornecer nenhum conhecimento sobre a existência, nem sobre

propriedades particulares dos objetos que pensamos existir.

Descartes busca um ponto indubitável12 que possa considerar seguro para

continuar sua investigação sobre a possibilidade e os limites do conhecimento. Ele nos

apresenta o argumento do Cogito – penso, logo existo. O pensamento é o ponto

arquemediano, indubitável que Descartes encontra. Mesmo que haja um Deus

enganador que me faça ter idéias falsas, é a mim que ele engana. Mas como isso pode se

dar se ele havia nos levado na primeira meditação à radicalização da dúvida e nos

persuadido de que nada existia? Se me persuadi é porque pensei que isso estava correto.

Ou seja, “eu” não posso ser “nada” enquanto pensar que “sou algo”. O pensamento se

autoverifica. Até mesmo quando duvido, é pelo pensamento que a dúvida se dá. O ato

de pensar é inquestionável. Desse ato é possível concluir o “eu existo”. Eu sou, eu

existo.

Mas qual a natureza deste “eu” que existe? Na segunda meditação este “eu” não

é o homem tal como conhecemos. Não é o animal racional tal qual acostumamos

aceitar. É somente uma coisa que pensa. E esta coisa que pensa é um estado de

consciência que se apresenta em modos de pensamento. Penso que duvido, penso que

amo, penso que imagino, penso que sinto. Ou seja, parece que sinto. Com isso,

Descartes não está afirmando o que havia negado na primeira meditação. Apenas diz

12 Idem, p. 99.

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que pensamos que sentimos. Somente o pensamento está fora da dúvida, não o ato.

Temos um acesso imediato ao pensamento, este é uma consciência.

O corpo — e qualquer coisa que se apresenta aos sentidos — está ainda em

suspenso, nada podemos afirmar sobre sua existência. No entanto, posso afirmar que

sou algo que pensa. Descartes não afirma que este algo não é corpo, ainda nada sabe

sobre o que é o corpo.

O argumento do Cogito nos conduz e nos deixa na ordem da razão. Há um eu

revelado, mas nada a não ser o pensamento como substância pode ser assegurado. Se do

corpo ainda é possível duvidar, não posso mais duvidar do pensamento. O pensamento

(razão, alma) se autoverifica cada vez que tento não pensar; então, se o corpo existir, ele

deve ser distinto da alma, pelo menos em essência. Por termos acesso prioritariamente

ao pensamento, Descartes conclui que o intelecto é mais facilmente conhecido que o

corpo.

Na terceira meditação temos a diferença entre a realidade objetiva da idéia e a

realidade formal da idéia. Descartes afirma a realidade objetiva como existente na

mente. Isso garante que algo exista, ainda que somente no pensamento. Esse algo é a

idéia. Mais à frente, na quinta meditação ele retoma a existência das idéias que nos

aparecem como claras e distintas no pensamento e relembra-as como diferentes em

relação às suas origens. Podem vir da imaginação e então serão fictícias, ou serão inatas

e por isso verdadeiras. As idéias inatas, residem exclusivamente no entendimento e não

dependem nem dos sentidos nem da vontade. Temos desde sempre a disposição natural

para possuí-las. Já as fictícias dependerão do arbítrio, da vontade que é uma faculdade

ativa. As idéias inatas, claras e distintas, não são inventadas por nós, mas produzidas

pelo entendimento sem recurso à experiência. Elas subsistem no nosso ser, em algum

lugar profundo da nossa mente, e somos nós que temos liberdade de as pensar ou não.

Representam as essências verdadeiras, imutáveis e eternas, razão pela qual servem de

fundamento a todo o saber científico.

Descartes considera que podemos chegar ao conhecimento por intuição ou por

dedução. Pela primeira forma concebemos idéias claras e distintas, simples. Pela

segunda, idéias claras e distintas compostas. Tenho através dessas operações mentais —

intuição e dedução — após eliminar a dúvida do Deus enganador, a garantia de que

posso conhecer. A teoria das naturezas verdadeiras e imutáveis consiste em um método

para distinguir entre as idéias que me aparecem como claras e distintas, as idéias que

naturalmente tenho a disposição para produzir, das idéias que forjo pela minha

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imaginação. Quais são as idéias inatas? Para Descartes são fundamentalmente os

conceitos matemáticos e a idéia de Deus.

Esse percurso por algumas passagens fundamentais da obra cartesiana,

Meditações, se fez necessário para indicar uma “condição metafísica implícita”, que

permanece para as verdades elementares e até mesmo para o Cogito. A dificuldade que

o problema apresenta é para a possibilidade da ciência. Todo o projeto cartesiano

caminha nessa direção. Há presente em sua obra uma intenção de verdade que será

enfim garantida pelo Deus cartesiano. Mas ainda que tal Deus não seja o da fé e sim,

provado pela razão, não escapamos de um ‘ser-todo-poderoso’ que ultrapassa toda

medida por mim compreendida. Algo de obscuro permanece maculando a perfeição e

essa obscuridade necessita da veracidade divina para desaparecer. Desse paradigma é

que aprendemos um conceito de corpo que é produtor do erro, da ilusão, da culpa e do

pecado.

Descartes só consegue demonstrar a realidade do mundo empírico apelando para a veracidade de deus e a sua incapacidade para a mentira. Essa mesma veracidade divina é utilizada por Eurípides (...) é a tarefa do famoso deus ex-machina.13

Na perspectiva dualista o corpo é um ‘outro’, algo que não faz parte da essência

humana. O homem tem um corpo por ser composto. O corpo é um empecilho à sua

libertação total, é uma prisão da alma, que é a substância superior. Não queremos cair

em uma inversão dessa primazia, dando ao corpo essa superioridade, mas sair da

transcendência que o dualismo nos lança por propor um adiamento da vida, e colocar a

perfeição no intangível, no mundo eterno que virá ao nos libertarmos do corpo que nos

aprisiona e nos faz errar.

O dualismo filosófico que afirma um mundo verdadeiro em contraposição a um

mundo aparente tem suas origens já na Antigüidade clássica com diversas vertentes ao

longo da história da filosofia. Escolhemos nesse item Descartes como nome

exemplificador dessa concepção e no próximo buscaremos em Nietzsche a idéia do

corpo na imanência. Ciente de que Nietzsche toma como principal opositor não

Descartes, mas o Platonismo e o cristianismo, considero que, para essa pesquisa, a

crítica que Nietzsche faz do corpo como objeto, do corpo que é um ‘outro’,

transvalorando-a para um corpo próprio, é fundamental para efetuar o deslocamento

13 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Tradução. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.82.

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desejado. Diria que por esse caminho busco uma reorientação de uma imagem de

pensamento situada diretamente sobre a imagem anterior, do dualismo. Por essa razão,

escolhi Nietzsche para iniciar a aproximação do conceito de corpo que me interessa.

Spinoza, um dos principais opositores de Descartes, aparecerá um pouco mais à frente.

1.3 — Corpo na Perspectiva Monista/Imanente

Eu sou corpo e nada mais; a alma é apenas uma palavra para algo no corpo.14

A dicotomia imperativa da modernidade tem na noção de corpo que Nietzsche

desenvolve uma crítica que nos tira da transcendência e nos traz à imanência. Imanência

esta que também foi na modernidade defendida pelo príncipe dos filósofos, como diz

Deleuze ao se referir a Spinoza. Mas creio que não resta dúvida a nenhum leitor que o

senso-comum do século XX e XXI, ao qual pertencemos, é ainda cartesiano.

Nietzsche foi um crítico fundamental dos alicerces da modernidade para o qual o

projeto cartesiano é vencedor inquestionável. Ele propõe a desconstrução dos valores

modernos, entre eles a transcendência escamoteada no projeto científico da teoria do

conhecimento. O excesso de valor atribuído à razão, em detrimento do corpo, dos

instintos, gerou o niilismo, relação doentia do homem moderno com a própria vida.

Nietzsche afirma, ao contrário de Descartes, uma atitude ativa da existência do

homem num mundo onde Deus morreu. O homem Nietzscheano é um novo homem e

sua existência só pode ser pensada em relação com a imanência. O pensamento

Nietzscheano visa a desconstrução do modo de ser do homem moderno. Ele afirma uma

transvaloração dos valores, entre eles o corpo, e com essa uma nova forma de se

relacionar com a vida.

O corpo não é visto como matéria e sim como uma multiplicidade de forças.

Corpo não é uma substância, não é a parte sensível em oposição à inteligível. É antes

um fio condutor da vida. É uma força, um movimento, ou melhor, o encontro das forças

que agem e nos lançam em um modo próprio de ser. Assim saímos da idéia de uma

natureza humana, de uma essência do homem, para o homem visto como

multiplicidade, regido por vontades de potência.

14 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. . RJ: Civilização Brasileira, 2006, p.59.

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Ao re-valorizar o corpo, Nietzsche retoma a terra como fundamental na relação

com o homem. Nega qualquer valor transcendente, de além mundo e denuncia isso

como uma doença para os que necessitam de consolo:

Foram os doentes e os moribundos que menosprezaram o corpo e a terra e inventaram as coisas celestes e as gotas de sangue redentor; mas até esses venenos doces e lúgubres os foram buscar no corpo e na terra! 15

Pela transcendência, o corpo criatura, ou máquina, culpado pelos erros do

homem só pode ser conduzido pelo pensamento que a ele é superior. O corpo imanente,

nascido da terra, pensa o pensamento. Pensamos enquanto somos. Não é possível uma

suspensão dos sentidos. O caminho da suspensão dos sentidos, ainda que meramente

teórico, nos conduz a uma filosofia com um projeto específico de mundo, uma filosofia

que busca verdades.

O que analiso é uma proposta de “pensar com todo o seu ser”. É abandonar a

idéia do pensamento situado dentro da cabeça, determinado seja por idéias inatas, seja

por faculdades inatas. Abandono totalmente a possibilidade de suprimir os sentidos e os

afetos para que o pensamento possa ser conhecido. Antes, cada pensador parte de uma

situação concreta e essa situação envolve seu estado corporal, envolve todos os afetos

que o atravessam.

Não somos batráquios pensantes, nem aparelhos de objetivação e máquinas registradoras com vísceras congeladas: devemos parir constantemente nossos pensamentos de forma dolorosa e dar-lhes maternalmente tudo o que temos de sangue, de coração, de alegria, de paixão, consciência, destino e fatalidade.16

Isso revela um modo de ser que parte de um envolvimento afetivo com o corpo-

próprio. Mas, o que seria esse envolvimento? No século XX houve um crescente

interesse pelo corpo expresso pelo cuidado com a saúde. O aconselhamento de práticas

de exercícios caminha a passos largos no início do século XXI sustentado pelas novas

tecnologias que criam, a cada dia, novos aparelhos e novas técnicas para cuidar do

corpo. Esses indicadores parecem caminhar no sentido de uma valorização do corpo,

mas não se desembaraçam da postura dualista. O cuidado com o corpo prescrito como

necessário para ser saudável ainda está no paradigma de uma razão que determina o que

15 Idem, p.47 16 NIETZSCHE, A Gaia Ciência. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 13.

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é melhor para o corpo. O corpo é um objeto a ser cuidado. Como objeto se tornou

mercadoria e é isso que é explorado pelo mercado da moda e da manutenção da

juventude através de um corpo bem cuidado.

Adotar uma perspectiva não-dicotômica é repensar a corporalidade. O corpo,

nessa nova perspectiva, não pode ser visto como um recipiente que contém um sujeito

pensante. Não é algo que nos protege ou separa do mundo, e sim ponto de encontro das

forças da vida. Nesse sentido, não partimos de novas teorias do corpo, pois o próprio

teorizar é, em si, uma cisão. Uma divisão que fala sobre algo diferente de quem fala,

como se fossemos espectadores da vida e não viventes. Por isso, essa valorização do

corpo-objeto que tem como premissa “eu (substância inteligível) habito um corpo e

devo cuidar dele” não interessa no presente trabalho. Busca-se não tanto “pensar” o

corpo e sim o corpo que pensa.

A utilização que faço do termo linguagem corporal é um esforço para se ir além

da comunicação não verbal entre os corpos, tentando estabelecer uma consciência do

corpo-próprio e a expressividade. Corpo e alma como modos de uma substância única

na qual não há ordem de prioridade. Como isso se dá?

Spinoza 17 nos ensina que temos a ilusão de finalidade na nossa ação. Agimos

como se pudéssemos “perseguir” o que imaginamos ser bom para nós. Essa ilusão de

um “fim” é uma idéia e enquanto idéia é um modo de pensar, mas um modo que retira

do homem a potência de agir. Os desejos nada mais são do que um modo de pensar

causado por forças externas, por idéias imaginativas. Quando imaginamos que somos

autônomos estamos no estado de servidão. E assim, agindo na direção que o desejo dita,

diminuímos nossa potência, pois ficamos submetidos a causas externas separadas de nós

e da nossa alma. Nesse estado, a alma está fora da sua potência própria, não está

“pensando” por si mesma.

E se não pensa por si mesma, de onde surgem tais idéias na alma? A alma para

Spinoza é uma idéia do corpo18. E alma e corpo são modos dos atributos pensamento e

extensão da única e infinitamente infinita substância existente. Entre esses atributos

existe um paralelismo19, ou seja, tudo que acontece em um acontecerá necessariamente

no outro sem que exista nenhuma relação de causalidade entre eles.

17 SPINOSA, Benedictus de, Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica , 2007, p.65 18 Idem, p. 97. 19 Idem, p.87.

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A relação corpo-alma não é de causalidade, ela se dá imediatamente, pois ambos

são expressões finitas da natureza naturante. Corpo e alma estão sob as mesmas leis e

princípios ainda que expressos de modos distintos.20

Essa idéia é fundamental para entendermos que uma idéia não pode vencer uma

paixão. Mesmo que seja uma idéia adequada, verdadeira. Somente um pathos: o que nos

toca, nos afeta — poderá vencer outro. 21

Ao identificar o corpo como campo de forças ganhamos a possibilidade de

através de uma percepção do corpo e do mundo aumentar a potência de agir. Se uma

idéia não é capaz de vencer um afeto, a mera consciência do regime afetivo do corpo,

por si só, não estimula a mudança de um padrão de ação passivo para outro ativo. É

necessário trazer essa consciência para um regime de produção criativa. Ou seja, não se

trata somente de valorizar os afetos, as paixões, e sim, de, pela consciência que

podemos ter do desejo — não da “querência” que seria cair na ilusão de um desejo a

partir de uma finalidade como se tivéssemos o conhecimento das causas — mas a

consciência do desejo como agenciamento 22 — sermos capazes de estimular a ação em

favor das paixões alegres.

A concepção dualista que sustenta a divisão do homem em corpo e alma como

sendo duas substâncias distintas, ainda é o paradigma filosófico que dita muitos

fundamentos da educação e esse é um dos motivos pelos quais o corpo ainda é

compreendido como elemento acessório no processo educativo. Esse desprezo pelo

corpo se refere à forma de apreensão dos conteúdos que privilegia o intelecto. Para

Foucault o corpo no processo educativo ocupa um outro papel. O corpo é visado e

adestrado de forma a favorecer um projeto de mundo cientificista. Um projeto de mundo

marcado pela produtividade.23 A escola ao considerar o corpo como fonte de erro

despreza os afetos e esses são constitutivos do processo de conhecimento.

20 Idem, p.87. 21 Idem, p.167. 22 DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista concedida a Claire Parnet. Paris: Montparnasse, 1999. DVD. (1999a) 23 A educação dos corpos ou a docilização dos corpos, segundo Foucault, operada pela sociedade disciplinar, é um projeto consciente e ao contrário de um desprezo, a escola e demais instituições disciplinares fazem do corpo seu objeto e buscam tornar o corpo produtivo. A questão passa ser: Produtivo para quem ou para o que?

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A paixão mais fundamental, a paixão mais útil e alegre é a paixão pelo

conhecimento.24 O projeto disciplinar da escola que torna o corpo obediente e produtivo

para atender a leis externas, mas passivo no sentido de perceber seus afetos e agir no

sentido de desenvolver a potência humana é o caminho oposto da liberdade e autonomia

ideais tão caros à educação.

Crio essa relação para trazer para o ensino de filosofia que é tema dessa

pesquisa, a liberdade, o impacto sensitivo e a força estética É isso que me traz para uma

zona de fronteira entre arte e filosofia e abre indefinições e possibilidades diversas para

a relação ensinante. E aqui vou me aproximando da interface dessa pesquisa que versa

sobre filosofia e educação na busca de estratégias que levem a escola a se reinventar

para que se sustente na contemporaneidade. Estratégias que tentam articular

pensamento, linguagem e ação. Possibilidades de valorizar o corpo-próprio em busca

de consciência dos desejos, dos agenciamentos de forma a ampliar as possibilidades do

corpo de consciência e sua capacidade de agir.

Cabe perguntar o que se passa com essas instituições, em especial com a instituição educativa, e qual há de ser a estratégia que permita preservar funcionalmente esses espaços que, fora do marco em que se legitimaram, provavelmente terão que ‘se reinventar’.25

No cruzamento da filosofia com a educação, a passagem da perspectiva dualista

e transcendente para a perspectiva imanente do conceito ‘corpo’ possibilita pensar em

novas constituições para a relação ensinante. Em uma sala de aula sou um ‘ser-próprio’,

criativo, desejante. Os alunos também. A perspectiva da imanência que rejeita o

dualismo me permite pensar a sala de aula como algo mais criativo do que a simples

transmissão de conteúdos. Estamos ali, mais do que transmitindo algo. Estamos nos

contagiando. Isso me remete a idéia do teatro, da performance. O espetáculo é vivo

como o é uma aula. Um corpo ao contato de outro corpo se multiplica, se torna coletivo.

O que acontece no espaço que o dualismo quer como vazio e as paixões teimam em

ocupar? Como perceber ‘atmosferas’ criadas entre os corpos que habitam um mesmo

meio?

24 SPINOZA, Benedictus de. Tratado da reforma da inteligência. Tradução de Lívio Teixeira. São Paulo, Martins Fontes, 2004 .p.5 -13. 25 R. Sassone. “A intervenção “estético-pedagógica” e sua fundamentação no marco de uma estética aplicada no contexto institucional-curricular.”. In: KOHAN, Walter O. (org.) Políticas do ensino de filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p.116.

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Em seguida apresento o conceito de atmosfera de José Gil quando pensa a dança

como a construção de um plano de imanência, para nos ajudar a refletir sobre a relação

ensinante.

1.4 — Atmosfera

A atmosfera liberta forças inconscientes acoitadas no fundo dos corpos que tem sua maneira própria de dizer o sentido, sem recurso a representações.26

A partir de algumas idéias apresentadas por José Gil, no livro Movimento Total,

estabeleci uma ponte do estudo da noção de corpo na dança para o estudo das ciências

humanas e claro, dentro delas, a educação. Gil nos fala da ‘atmosfera’ que se compõe de

pequenas percepções, como um meio de forças afetivas 27. Ele constrói esse conceito a

partir da dança num diálogo com Deleuze e Nietzsche e propõe a dança como um meio

de traçar um plano imanente.

O que seria esse deslocamento, essa passagem de uma perspectiva transcendente

e dualista para uma perspectiva imanente, necessária na colocação ou modificação do

problema “corpo”? O que seria o plano de imanência necessário para essa mudança do

olhar e modo de ser?

Para J.Gil, a construção de um plano de imanência se dá no plano dançado, a

partir da relação do bailarino com o espaço. O espaço aqui não é mais objetivo, é o

espaço do corpo, é o corpo tornado espaço. Dessa forma, o bailarino dança no interior

do seu corpo e sempre com o fim primeiro de vencer o peso. Num movimento dançado

está sempre presente a possibilidade teórica de verter todo o peso em energia. Esta

transformação seria a passagem do peso real para o peso virtual específico de cada

bailarino. Lembremos que Gil está pensando com Deleuze para quem o virtual e o real

não estão dissociados. Afinal, se por um lado, o virtual expõe o intensivo, campo

especulativo pré-subjetivo e pré-objetivo, o qual é composto por uma multiplicidade de

instâncias ainda informais (as diferenças, as singularidades), por outro, o atual relata o

empírico, aquilo que é o extenso; em outras palavras, o campo dos objetos já formados,

a dimensão própria da consciência, da linguagem, das soluções, do vivido e das

26 GIL, José, Movimento Total. Lisboa: Relógio D' água, 2001 p.148. 27 Idem, p.153.

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experiências possíveis comuns. Conforme Deleuze: “Todo objeto é duplo, sem que suas

duas metades se assemelhem, sendo uma a imagem virtual e, a outra, a imagem atual.

Metades desiguais ímpares” 28. Para Deleuze o virtual não se opõe ao real, ele é tão real

quanto o atual.

Claro que o peso virtual nunca será efetivamente alcançado. Mas nessa busca o

bailarino deixa de ter o peso como obstáculo e se torna leve. O corpo do bailarino não

está nunca numa postura natural. Porque ele adota uma postura artificial é que se torna

imagem, matéria para criação de formas. O bailarino se equilibra nessa postura. Esse

equilíbrio se constrói com uma concentração específica. O equilíbrio é então um jogo de

força onde entra um “elemento espiritual”, a consciência. J. Gil chama esse equilíbrio de

virtual. Este se forma num jogo de forças que se equivalem. Há nesse movimento uma

ação do “espírito sobre o corpo”. A consciência, que não é meramente reflexiva, age

sobre o corpo e sobre si mesma. Ela se altera à medida que observa a ‘pequena dança’,

que são os movimentos microscópios do corpo que o mantêm de pé, no equilíbrio

virtual. Esses movimentos não são voluntários, mas podem ser observados. A

observação, entre outros fatores, leva a um estado de consciência que se produz a partir

de uma tensão das fibras, num esforço muscular específico. A concentração elimina o

corpo exterior e possibilita o “ver de dentro”. O bailarino cria um mapa interior.

A observação das forças que agem sobre o corpo tece um plano de imanência

levando a consciência do corpo a se tornar corpo de consciência. Essa passagem resulta

inspiradora. Essa não é a forma comum de pensar a consciência. Habitualmente,

consciência é o que cremos que controla o sentido e os comportamentos, mas nesse

sentido, a consciência de si é um entrave para o movimento. Quando deixamos a

consciência invadir o corpo e ser invadida pelo movimento, entramos na zona das

pequenas percepções dos movimentos virtuais. Nesse ponto é que acessamos o

movimento interior, vivido. E o vivido se situa entre o sentido e o pensado. Interior e

exterior se tornam co-extensivos. Assim, a consciência que se deixa invadir pelo

movimento é o pensamento que se move numa osmose criada pela atenção — a-tensão

que anula a dualidade corpo e pensamento. No movimento dançado não há mais hiato

entre corpo e pensamento. Passamos do pensamento do corpo ao corpo de pensamento

quando permitimos que os movimentos invadam o espaço da consciência. Esse é o

caminho que J. Gil nos apresenta como sendo o da construção de um plano de

28 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 337.

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imanência. No plano de imanência a consciência não é mais um estado do intelecto e

sim um estado de energia.

Essa energia do e no pensamento se contagia, se cruza, estabelecendo pontes

entre os corpos, comunicações especificas da linguagem corporal. Antes que qualquer

conteúdo conceitual possa ser elaborado, isso já se deu, já atravessou a atmosfera e

possibilita a emergência de um novo pensamento porvir.

A atmosfera é o conjunto de pequenas percepções que escapam à consciência

reflexiva, mas que estão presentes no que chamamos de corpo de consciência.

Abrindo o conceito de ‘atmosfera’ para além da dança 29 acredito que novas

relações com o corpo-próprio podem ser apreendidas para que forças de afeto não

passem despercebidas. Cada corpo é um espaço, exala um espaço, cria uma ‘atmosfera’.

As forças de afeto que nos atravessam e criam as “atmosferas” na dança, também se dão

por onde nos movemos. Corpos retraídos tendem a se fechar e criar “atmosferas” mais

densas. Numa sala de aula, além dos conteúdos, estamos nos contagiando. Há processos

de captura de corpos, de afetos. Nesses processos, muitas vezes é impossível definir que

tipo de contágio está se dando. Os fenômenos corpóreos estão sendo continuamente

refeitos em novos agenciamentos que nos permitem, sempre, novas perspectivas de

mundo.

Atmosfera é, então, mais que um meio. É parte dos corpos na medida em que é

prolongamento dos corpos no espaço. Falamos normalmente da atmosfera carregada de

um lugar, ou de uma atmosfera agradável numa sala. O sentido aqui usado não se

distancia muito dessa percepção comum. Basta ser alargada e não cair na armadilha da

transcendência como se a atmosfera criada pelos corpos fosse alguma obra do além ou

de energias externas a nós. É a exalação do corpo no espaço objetivo carregando-o de

forças de atração ou de repulsão. A ‘atmosfera’ acaba sendo autônoma dos próprios

corpos. Dizemos que os envolve. “A atmosfera é aérea” 30. Emanando dos corpos e

sobre eles agindo, os aproxima, distancia, e mesmo à distância os faz estar em contato.

É como se cada movimento ressoasse no espaço objetivo e fizesse ecoar movimentos

em outros corpos. E como estamos no plano de imanência, pensando com Spinoza,

somos modos da substância única e determinados pelo paralelismo. Se movimentos de

um corpo produzem movimentos em outros, produzimos e trocamos na ‘atmosfera’ os

29 A forma que J. Gil o utiliza no livro Movimento Total se aplica diretamente à dança através da qual ele descreve o traçar de um plano de imanência. 30 J. Gil, op. cit., p. 147.

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contágios de pensamentos também. O deslocamento de um modo é o deslocamento do

outro modo. A atmosfera é também uma atmosfera de pensamento.

O movimento de pensamento que é, no pensamento de cada bailarino, o movimento dos corpos, encadeia-se, tece-se, antecipa os gestos e os pensamentos que vêm — só um corpo de pensamento pode garantir a consciência e a unicidade de movimentos, porque só ele pode criar um plano de movimento de pensamento.31

Pensar a sala de aula como um espaço de comunicações entre corpos, um espaço

atravessado de forças afetivas, altera a relação que temos com o conhecimento. A

compreensão que temos do que é o corpo, ou do que pode um corpo, nas palavras de

Spinoza, nos lança na roda das paixões. Nos coloca frente aos desejos, da imaginação,

das percepções originárias que podem contribuir para que a relação ensinante sirva-se

de estratégias estéticas para que se constitua. A experiência que é o acontecimento

“sala de aula” está sempre carregada da ‘atmosfera’ e nos cabe intuir se queremos

pensar e atuar dentro da perspectiva imanente. Uma relação ensinante que não despreze

as paixões, os sentidos, os afetos, mergulha nesse meio de forças afetivas que aqui

chamamos de atmosfera. A atmosfera que se cria é determinante para a experiência que

se abre.

Mas experiência também é uma palavra gasta e pode ser compreendida em

vários contextos, por isso agora dedico a expor o conceito e como o uso.

1.5. — Experiência

Há tanta experimentação como experiência do pensamento em filosofia quanto na ciência, e nos dois casos a experiência pode ser

perturbadora, estando próxima do caos 32. Usamos a palavra experiência, em geral para falar de algo pelo qual passamos.

Num dicionário etimológico encontramos uma definição já consagrada: “Experimentar

é, pois, operar sobre o real com o objetivo de conseguir um conhecimento”.33. Nessa

definição, a idéia reaparece dando a impressão de que experiência é algo que fazemos e

pelo qual vamos acumulando conhecimento. Nessa pesquisa a proposta é problematizar

31 J. Gil, op. Cit., p.151. 32 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia ? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p. 166. 33 CASTELLO, Luís A. Oculto nas palavras: dicionário etimológico para ensinar e aprender. Tradução de Ingrid Müller. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 46.

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esse sentido consolidado pela tradição, desde um plano de imanência que desloque o

sentido de acumulação que está presente de forma dominante na idéia de experiência.

A busca de um novo sentido tem a ver com a idéia de percurso e movimento que

está presente na etimologia de experiência. Por isso, utilizaremos a palavra “evento”

para dar lugar a esse sentido comum de acumulação e “acontecimento” para dar conta

de uma experiência que não acumula, mas permite um deslocamento, um movimento,

uma viagem.

A relação entre os conceitos: linguagem corporal e atmosfera leva a um

indizível, a algo que está situado num antes “ontológico” de qualquer compreensão e

que sustenta a possibilidade transformadora da experiência.

Para pensar sobre as possibilidades e impossibilidades de uma experiência, mais

especificamente de uma experiência de pensamento, que é a proposta do trabalho de

campo dessa pesquisa, vale considerar uma idéia de Giorgio Agamben a respeito da

destruição da experiência. Experiência não é, para o autor, algo que nos é dado a fazer,

não é algo possível de ser transmitido. Para o autor, pensar na experiência supõe

também pensar numa complexa relação entre infância, linguagem e experiência. Pela

importância que ela tem para a presente pesquisa, a apresentamos a seguir:

Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como foi privado de sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo. 34

Agamben dá a possibilidade de pensar a subjetividade – neste caso, a infância -

para além ou aquém da cronologia dos primeiros anos. Abre a infância para uma

condição humana que nos acompanha a vida toda: a da ausência e a busca da linguagem

constituindo assim o lugar próprio de uma forma de pensar a experiência. A

impossibilidade de ter vivências significativas, de vivermos em meio a uma pobreza de

fatos cotidianos extenuantes, que o autor apresenta como impossibilidade de nos

apropriarmos dos eventos cotidianos e narrá-los, é também a impossibilidade de um

lugar para a infância, que é o lugar da experiência propriamente dita, ou melhor, uma

condição para a experiência.

34 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 21.

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A partir dessa conexão entre experiência e infância, como condição da vida

humana, a experiência será aqui pensada como possibilidade de dar significado ao que

nos rodeia em qualquer idade, de nos apropriarmos do acontecido de forma

significativa, de colocarmos todo o corpo no sentido de uma compreensão nova. Essa

compreensão não deve se limitar à razão, à cognição, mas propiciar um modo próprio e

singular de viver, para cada ser humano, para cada infante que habita toda vida.

Assim, experiência, segundo Agamben, não se relaciona com o conhecimento

acumulado, mas sim com autoridade. Dessa forma, a expropriação da experiência desde

a modernidade passa pelo declínio da autoridade. Autoridade entendida como a

possibilidade de narrar o acontecido. Não se trata de narrar um conteúdo, um

conhecimento, mas de vivenciá-lo. Narrar não de fora, não em uma repetição

automática adquirida dos livros. Não se consegue autoridade como narrador sem a

vivência, sem passar pelo acontecimento dando significação própria a ele.

Esse sentido de experiência denuncia o projeto científico da modernidade que

produz o sujeito de conhecimento. Ali, os conhecimentos são produzidos sempre fora do

sujeito, acumulativos e não vivenciados.

A idéia de possibilitar uma experiência de pensamento que atravessa o projeto

de pesquisa que este trabalho analisa vai ao encontro da busca da infância em uma

íntima relação com a linguagem. A infância é a impossibilidade e ao mesmo tempo a

busca da linguagem. A infância nos permite sair do silêncio, sair da impossibilidade de

se expressar — ou da expressão já pronta nos livros e que não nos pertence — e criar

novos significados, recriando condições para que o acontecido possa ser narrado. A

infância é abertura para novas significações.

Seguimos Agamben na sua definição de experiência como a própria infância do

homem e na infância como a condição de se aprender a falar. Não nos referimos ao ato

desse aprendizado, mas o estado que o torna possível e significativo. Como humanos

essa experiência nunca se esgota. Dá-se continuamente, “nunca acaba nossa experiência

(infância) da e na linguagem” 35.

35 KOHAN, Walter. Da minoridade à maioridade: Filosofia, experiência e afirmação da infância. In: _____. Infância. Entre Educação e Filosofia. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2003, p.244. 237-256.

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1.6. — Philodrama

Eu concebo o philodrama como encenamento do conceito 36.

Para concluir esta apresentação teórica dos conceitos que norteiam o presente

trabalho, apresentaremos o philodrama, proposta de uma estética aplicada por parte do

diretor teatral e filósofo argentino Ricardo Sassone. Na sua intervenção, Sassone parte da

construção de uma cartografia eidético-corporal: o somatograma. Este é construído com

a participação dos atores – participantes 37 que estão jogando o philodrama. O

somatograma é um mapa corporal que será utilizado como máquina poética e dele

partem diferentes estruturas textuais chamadas de conceitogramas. Como jogo

dramático, essa construção coletiva se propõe a ser realizada a partir de critérios de

liberdade e normatividade.

O sujeito da ação indagará, em seu próprio comportamento, as suas escolhas a partir de dois pontos: pessoal e projetiva e seu impulso será o motor da ação. [...] O mapa corporal deve ser lido como um mapa fantasmático “no qual se articulam” um todo “e suas partes”. Distintos conceitos colocam-se em jogo: limite, fronteira, alvo, escala, distância, referência, próximo, distante etc. Esses conceitos podem ser interpretados e remetidos a uma estrutura passível de ser abordada a partir dos opostos, dramatizada em antagonismos.38

Essa metodologia é chamada de philodrama 39 e se constitui em diversas

estratégias de jogos dramáticos que buscam materializar, na cena, uma idéia. É um

ponto de encontro da filosofia com estratégias de dramatização, 40 passando pela

representação imagética. A relação entre o falar e fazer, entre o fazer e o pensar está

presente na concepção do philodrama.

Através dos jogos dramáticos o autor recorre a recursos de improvisação e

dramatização orientados sob a perspectiva de que todo “falar algo” é necessariamente

um “fazer algo”. Os jogos propostos têm foco no corpo e no som da voz como parte do

36 R. Sassone, 2007. 37 Ator é todo participante de um jogo, ficcional, ou não. 38 SASSONE, Ricardo. “Filosofia e teatro: as estratégias de teatralização como contribuição à transmissão de conteúdos filosóficos”. In: KOHAN, Walter O. (org.) Ensino de filosofia. Perspectivas. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p.130. 39 SASSONE, Ricardo. “Hacia la configuración del philodrama”. In: Kohan Walter O. (org ) Teoría y Práctica en filosofía con niños y jóvenes. Buenos Aires: Novedades Educativas:, 2006, p-131-157. 40 O philodrama se inspira na sociometria e no psicodrama, de Jacobo L. Moreno. Moreno define o Psicodrama como sendo: “a ciência que busca a verdade com ajuda de métodos dramáticos”. O objetivo da sociometria de Moreno é fazer um diagnóstico das estruturas sociais e para isso ele cria um suporte de terapias social para investigar as relações que se foram entre os grupos (Sassone, idem, p. 140).

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corpo e também com a palavra que é maior estruturação desse som. A palavra faz parte

do jogo de linguagem, considerado por Sassone o maior jogo de todos os jogos. O

philodrama é uma possibilidade de trabalhar um conceito a partir do encontro com o

corpo-próprio.

A proposta tende a indagar o trânsito entre a inscrição de um percepto do corpo, mediando o afeto até a elevação do conceito O marco teórico que vamos trabalhar tem esse recorrido, sim? Conceito, entanto, percepto e afeto.41

As estratégias das dinâmicas propostas caminham para a descrição de um

pensamento em ação, em movimento. O pensamento em movimento caracteriza uma

forma de estar no mundo, uma forma de ser que possibilita uma criação não

mediatizada, particular, numa produção de novas subjetividades, ou melhor, novas

formas de ser.42

A linguagem corporal é parte do philodrama. O corpo é uma possibilidade de

intercomunicação imediata. A dramatização se torna importante na proposta, porque

trabalha com a materialidade do corpo a partir da pergunta — o que afeta o corpo? —

que está na base dos distintos modos de ser que adotamos. Ao adotarmos um

determinado modo de ser nos tornamos sujeitos, máscaras sociais. O “philodrama

pretende desmascarar, tomar uma perspectiva da máscara e mascarar novamente”.43

Para entender a proposta do philodrama é fundamental perceber que o horizonte

de ficcionalidade do fato teatral exige uma passagem que Sassone chama de critério de

denegação. O critério de denegação é um deslocamento da referência do mundo da vida

para o mundo da obra de arte. É a instauração do mundo da ficcionalidade, é o ‘como

se’ que atua na passagem da vida cotidiana para o mundo da obra. O teatro produz

assim uma verdade singular. Verdade essa que deve sua condição ao momento de sua

existência, e por isso é um acontecimento. No teatro a verdade é gerada no espaço da

representação. “O teatro considerado como ato da idéia remete a uma verdade teatral

que em si mesma é um acontecimento”.44

41 R. Sassone, 2007. 42 A troca do termo subjetividade para modo de ser é uma provocação para que a idéia se distancie ainda mais do conceito de sujeito. Ainda que entenda que subjetividade já seja um conceito que se contrapõe ao de sujeito e o alarga, estou no esforço de enfrentar a resistência da linguagem em busca de novas paisagens, novas imagens que possam auxiliar a compreensão do corpo não como um objeto, mas, num sentido de ponto de encontro dos afetos, dores, prazeres. Corpo vivo, nunca paralisado, sempre em movimento como condição necessária para a possibilidade de ser no mundo. 43 R. Sassone, 2007. 44 R. Sassone, op. cit., 2002, p. 120.

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Essa verdade-teatro é uma passagem da virtualidade da idéia para a atualidade

da idéia na cena teatral. Essa passagem se dá na materialidade do corpo do ator que é o

ponto de encontro do personagem ─ corpo-ausente na eternidade ─ com o corpo

presente do ator. O encontro da eternidade e o instante configura uma dimensão da

experiência da verdade teatral.

Essa experiência nasce da relação entre o fazer e o pensar. O pensamento em

cena é um pensamento em ação e caracteriza a possibilidade do ator45 assumir-se como

enunciador do discurso. O pensamento em ação, em movimento, se dá no corpo-próprio,

em um corpo capaz de criar um mundo não-mediatizado.

Sassone inicia a exposição do que é o philodrama visitando a Poética e a

Metafísica de Aristóteles. O autor parte do entendimento de téchne como um saber que

se relaciona com o porquê, ou seja, um saber com conhecimento de causa que tende a

realização de uma poíesis (produção) ou de uma práxis (ação). A partir da separação

conceitual de poíesis e práxis, a arte aparece como uma poíesis que se faz a partir do

conhecimento emanado de uma tékhne.

A proposta do philodrama se enquadra no campo da estética aplicada e por isso

o autor dessa metodologia opera um deslocamento para introduzir a estética no campo

da filosofia prática. Ele se opõe à concepção de poética que tem a beleza como categoria

central. Considera que a questão da especificidade da estética nada tem a ver com o

critério de beleza já que essa categoria é vazia em termos de esteticidade. Com esse

deslocamento ele pretende abordar distintas dimensões do estéthos em relação à forma

do conteúdo e a forma da expressão de uma obra. Toda obra é realizada em um contexto

específico, assim o fazer poético se inscreve como parte das questões sociais e é

determinado pelas práticas socais que nele se projetam. Esse caminho é percorrido para

afirmar que o critério de gosto e estilo correspondem a codificações culturais.

O que Sassone busca é estabelecer condições para a interface entre o teatro e a

filosofia e, nesse marco, o philodrama é uma intervenção estético-pedagógica. A

dimensão estético-poética considera a articulação de expressividades artísticas diversas:

plástica, literária, musical, dança organizadas no marco de um acontecimento, de uma

experiência de pensamento. O cruzamento dessas diversas séries expressivas é a

performance. O contexto da sala de aula é lido pelo autor como um espaço performático

45 A palavra ator não se refere aqui à função do artista na sua atividade profissional das artes cênicas e sim pretende designar qualquer indivíduo que participa dos jogos dramáticos

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e que pode se beneficiar de qualquer uma dessas séries ou de todas simultaneamente.

Assim, Sassone desenha uma relação entre teatro-performance, filosofia e pedagogia.

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Lendo a sala de aula como performance, tiramos o professor do lugar de

enunciação de um determinado discurso (conteúdo), para o espaço da cena teatral-

performática que é participativa. Na cena teatral, a improvisação se impõe a partir de

certas regras necessárias ao jogo cênico. Essas regras são passíveis de modificação a

partir do desenvolvimento da cena. No espaço da sala de aula, os performers tanto

discentes quanto docentes, estão em cena. E estar em cena é ter o corpo presente. Esse

corpo é ponto zero de qualquer referência quando se inscreve no espaço-tempo. Ele é

continuamente atravessado pelos fluxos afetivos, pela ‘atmosfera’ que emana dele

mesmo e dos demais corpos presentes.

Nessa linha de pensamento, Sassone busca a diferença entre a representação que

é associada ao campo ficcional e a apresentação que é associada ao campo pedagógico

da performance. A conseqüência da ação no espaço da sala de aula é indissociável do

campo da ética. Para o enriquecimento das estratégias performáticas teatrais que sirvam

para indicar ao docente perspectivas de criar e analisar sua intervenção pedagógica, o

autor desenha um dispositivo interdisciplinar entre filosofia e teatro-performance para o

desenvolvimento de uma possível experiência de pensamento e apropriação dos

discursos sobre os acontecimentos que nos atravessam. A esse dispositivo ele chama de

philodrama.

Una experiencia que nos permita establecer um espacio de elucidación de conceptos filosóficos, indagando acerca de la forma em que tales marcas se manifestan, acerca de la replicancia de tales inscripciones em esa caja de resonancia primordial que es el cuerpo. 46

Como hipótese de trabalho ele recorre à relação re-conhecer-sentir. Nela, o

philodrama se desdobra numa série de dimensões que lhe conferem sentido:

1- Ele se propõe a indagar sobre o ‘ser-no-corpo’ a partir de 04 momentos:

Sentir- reconhecer-conhecer- sentir;

2- A partir da relação vivido-narrado, ele estabelece uma correlação entre o

mundo cotidiano e o mundo da obra. O philodrama é um dispositivo que se situa

no mundo da obra e para sua efetivação é necessário, antes de tudo, que se

estabeleça entre os participantes da experiência o critério de denegação

apresentado anteriormente e que se refere à entrada no mundo da ficcionalidade,

no mundo do ‘como se’ que nos lança na verdade-teatral;

46 SASSONE, Ricardo. “Hacia la configuración del philodrama”. In: Kohan Walter O. (org ) Teoría y Práctica en filosofía con niños y jóvenes. Buenos Aires: Novedades Educativas, 2006, P.141.

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3- O mundo cotidiano se inscreve no campo da imediatez e o do mundo da

obra se inscreve no campo da mediação, da representação. A estrutura básica de

uma performance é conformada na seqüência “reunião-representação-dispersão”

que, por sua vez, se afirma numa estrutura dramática de ruptura, crise, ação

corretiva e reintegração

4- A constituição de um espaço-problema: um cruzamento entre uma série

constitutiva e construtiva da corporalidade e a série dos discursos que a

atravessam.

Para experimentar esses aspectos, Sassone propõe uma metodologia

philodramática. Trata-se de uma estratégia que não se fecha em passos totalmente pré-

determinados, mas que se serve de determinadas regras como propiciadoras da

experiência. Elas são:

a- Parte-se de um tema, proposto como espaço problema. Por exemplo, o medo

constituído histórico e culturalmente a partir das marcas deixadas no corpo;

b- O espaço problema é problematizado desde a lógica dos afetos. No caso

considerado, o medo à miséria, medo do outro, medo de doenças, medo da

violência, medo de algo mais se traduz em três perguntas: o que me afeta?

Porque me afeta? Como me afeta? Essas perguntas, a partir do tema se

inscrevem como marcas no corpo. O corpo é um território da imagem;

c- O passo seguinte é a construção de um mapa fantasmático corporal que permita

espacializar a imagem inconsciente do corpo. Os participantes são divididos em

grupos e constroem uma cartografia eidético-corporal. A proposta é trabalhar

com as ressonâncias que os medos deixam no território corporal. Essa

cartografia é um primeiro exercício de escritura textual. Essa operação se destina

a passar do sistema de rastros da memória corporal para se efetivarem em

intensidades afetivas registradas em uma representação imagética;

d- Máquina poética: a partir da cartografia criada visualmente é criada uma

decodificação através de textos poéticos. Esses textos são trabalhos

posteriormente em fragmentos no que Sassone denomina de edição corporal de

um texto poético que se realiza cruzando aleatoriamente a série literária com as

séries corporais, considerando a emissão dos textos originais segundo distintos

registros corporais: intensidade da voz, ritmo, velocidade

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e- Nova re-escritura se opera. Os textos produzidos pela máquina poética devem

ser organizados em estruturas dramáticas. Nesse momento se gera o

conceptograma que é a colocação em cena do conceito, o logocena. Esse é o

momento da relação re-conhecer─conhecer. Aqui se dá o pensamento em ação

em uma articulação com as performances de diferentes atores, em um sistema

aberto determinado pelo critério de denegação e que na inter-relação dos

participantes redefine a ação de cada um possibilitando novas formas de

enunciação que acontecem no cruzamento conhecer ─ pré-sentir e se alinham a

relação pré-sentir─ sentir encerrando o círculo proposto para ser colocado em

cena. A premissa ‘falar é fazer’ se efetiva nessa interatividade e a elucidação do

conceito trabalhado pode se dar a partir da intervenção estético-pedagógica

realizada.

f- Etapa final da proposta: elaboração conceitual do material gerado em todos os

passos da metodologia no que o autor denomina logoanalise. A logoanalise é

uma análise pragmática do discurso realizado prioritariamente a partir de

categorias filosóficas.

g- Relatório da experiência a partir dos critérios metodológicos empregados.

Apresentados os princípios teóricos e metodológicos que norteiam o

philodrama, estamos em condições de apresentar, no próximo capítulo, um trabalho

desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Filosóficos da Infância (NEFI/UERJ) e

coordenado por R. Sassone que teve a oportunidade de colocar em prática uma

experiência philodramática, em busca de criar condições de possibilidade ou de pensar

as condições de impossibilidade de uma experiência de pensamento.

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2. O NÚCLEO DE ESTUDOS FILOSÓFICOS DA

INFÂNCIA -NEFI- E A SUA EXPERIÊNCIA DE

FORMAÇÃO.

O NEFI é um espaço de ensino, pesquisa e extensão composto por professores e

alunos (de graduação e pós-graduação) da UERJ. Ele alimenta um projeto integrado de

análise crítica da área da filosofia para crianças e da relação entre filosofia e ensino, que

compreende um grupo sistemático de estudos, elaboração, produção e tradução de

textos, alimentação de um banco de dados bibliográfico sobre ensino de filosofia 47 bem

como publicações internas e externas. O NEFI preocupa-se com as relações entre

filosofia e infância, em pelo menos dois sentidos: a infância como um conceito pensado

de diversas formas na história das idéias filosóficas; e o exercício de pensar filosófico

pela infância. Importa destacar que, nos dois sentidos, a infância pode ser pensada não

apenas como uma etapa da vida, mas também como uma possibilidade da experiência.

Para propiciar espaços que alimentem essa infância no ensino, na pesquisa e na

extensão, o NEFI organiza colóquios, cursos de formação e encontros nacionais e

internacionais, numa área de interface entre filosofia, educação e infância.

Assim, o NEFI tem o propósito de criar condições de possibilidade para a

experiência no sentido aqui apresentado, incorporando desejos, paixões, ritmos, corpos,

sensações. Essas experiências surgem do cruzamento da infância, história e linguagem,

o se propõem a pensar e criar possibilidades para o nascimento de professores infantes.

Professores infantes são eles mesmos capazes de dar significações às suas vivências,

recuperam em si algumas condições de contar, de narrar o que experienciam sem a

pretensão de transmitir saber, mas de propiciar encontros de pensamento. São

professores que extrapolam as velhas formas de reprodução de conteúdos aprendidos

com e pela razão moderna e criam novos significados no e para o que falam. Esses

significados surgem do que vivem, do que experimentam. A experiência é vivida como

possibilidade para a transformação de si antes do que a legitimação do que se conhece.

47 Cf. www.filoeduc.org/base

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Nesse intuito, o grupo organiza todos os anos uma experiência de Formação, em

condições que permitam um certo isolamento do bombardeio cotidiano dos eventos

próprios de uma cidade como o Rio de Janeiro. A experiência acontece numa Reserva

Ecológica, El Nagual, onde os participantes se retiram em busca de um silêncio que

talvez permita outra relação com a linguagem, desde a lógica do acontecimento.

O professor e pesquisador do Instituto de Artes do Espetáculo da Universidade

de Buenos Aires, Ricardo Sassone, foi o coordenador do curso de formação de

professores do NEFI em 2007. Ele propõe uma intervenção “estético-pedagógica”. Sua

fundamentação se baseia na noção de estética aplicada para a compreensão de conceitos

filosóficos e no conceito philodrama, apresentado no capítulo anterior.

O presente capítulo trata das observações feitas a partir da coleta de dados do

material do campo do curso promovido pelo NEFI, durante a Semana Santa, entre os

dias 04 a 08 de abril de 2007. Apresenta os participantes, os procedimentos, a

organização do material de análise e a interpretação qualitativa dos dados. A abordagem

qualitativa faz parte da tentativa de captar do campo uma realidade dinâmica que não

caberia em coletas de dados quantitativos até mesmo por algumas limitações da própria

pesquisa. O foco do campo é o philodrama e a investigação passa pela análise das

condições de possibilidades e impossibilidades para o fomento de experiências de

pensamento.

O método de coleta de dados foi o do registro em mídia eletrônica no suporte

DVD e da observação participativa a partir da decupagem do material gravado e

também de algumas anotações escritas que contribuíram para essa análise. A gravação

não seguiu nenhum roteiro prévio. Foi realizada a partir do desenrolar das seqüências

das dinâmicas. Eu mesma operei a câmera de gravação. O material gravado totaliza 20

horas distribuídas em 40 mini-dvds de meia-hora. O universo da pesquisa é exatamente

o curso promovido pelo NEFI durante a semana Santa em El nagual. No total foram 30

participantes, me incluindo no grupo. Mas não participei diretamente de nenhuma

atividade a não ser o registro do curso.

A primeira etapa do trabalho de campo foi a gravação completa do curso. A

segunda etapa que considero já a pré-analise se constituiu na transcrição das falas e

observações das imagens coletadas.

A última etapa refere-se à análise das transcrições à luz da fundamentação

teórica do primeiro capítulo, tentando responder a questão proposta sobre as condições

de possibilidade e impossibilidade de uma experiência, no caso da metodologia criada

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por Ricardo Sassone, o philodrama. Apoiamo-nos na técnica de análise de conteúdo,

proposta por Bardin48 para o tratamento dos dados. Essa técnica nos conduz para o foco

qualitativo da pesquisa e nos afasta do rigor das avaliações quantitativas. O conteúdo

nos serve como resposta direta à questão investigada nos permitindo perceber conteúdos

não expressos diretamente pela linguagem verbal, mas registrados e também, vividos

por mim pesquisadora participante, ou melhor, participativa já que eu mesma não fiz

parte de nenhum dos grupos apesar de estar presente tempo integral nas atividades.

No início do curso formaram-se, segundo o critério do acaso proposto pelo

coordenador, 06 grupos entre os participantes. A identificação dos grupos será por

ordem numérica, não coincidente com a numeração dada durante o curso.

Terminada a pré-analise (transcrições dos Dvds), elegi 02 dos 06 grupos

formados pelo coordenador como fio condutor da parte final da análise. A escolha dos

grupos se deu segundo dois critérios:

a) O resultado do processo: um dos grupos escolhidos não conseguiu levar o

processo até o fim e não apresentou nenhum resultado aparente como performance. Para

investigar as condições de possibilidade e impossibilidade de uma experiência, esse

grupo me pareceu fundamental para avaliar a relação entre processo e resultado. É

possível esperar ou antecipar um resultado do que chamamos de experiência de

pensamento? A hipótese apareceu na pré-análise e a mantive. A formação do grupo um

era variada contando com professores de filosofia, literatura e trabalhos burocráticos. A

faixa etária dos participantes desse grupo varia entre 19 e 50 anos.

b) O outro grupo escolhido entre os cinco restantes era o que tinha mais forte na

fala dos seus participantes a noção do coletivo. Foi um grupo marcado pela diversidade

e companheirismo presente na fala e na solidariedade corporal durante a apresentação

dos trabalhos. A formação do grupo 02 também foi variada contando com professores

de filosofia, literatura, sociologia e a presença de dois atores.

Faço algumas observações sobre os demais grupos não estudados

especificamente:

48 BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1985.

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Grupo 03- Composto por pessoas com formação em filosofia. Faixa etária entre

25 e 51 anos. As conversas eram animadas, as discussões intensas, mas tiveram bastante

dificuldade de consenso. Nas falas aparece certa dificuldade de trabalhar em grupo.

“Eu me senti de fato violentada pelo meu limite, eu queria fazer o meu traço, e eu não queria que ninguém se metesse e pintavam por cima.” “Acho que a discussão no grupo... na verdade a gente não chegou a uma definição para a qual estivéssemos plenamente satisfeitos” “Então fizemos três definições...”. “Começamos discutindo sobre como estaria representado, sobre que dimensões poderiam ter, que níveis e ficamos bastante tempo até conseguir.Na verdade teve um lado interessante nisso que nós conseguimos conversar bastante, trocamos uma série de idéias e impressões e propostas diferentes, experimentamos, rascunhamos algumas idéias e acabamos chegando numa que, não sigo que foi um consenso absoluto, mas foi um resultado.” “Hoje na parte da criação da performance acho que falamos muito e eu sinto que tive um pouco de dificuldade para passar para o fazer e deixar o falar”. “O clima foi muito ruim, eu não seria tão benéfico, assim, para mim, sinto muito decepcionar, para mim foi muito ruim o clima do trabalho”. “Às vezes é muito difícil abrir mão das idéias, sim, porque a gente está tentando segurar a idéia por uma tentativa real de tentar lidar, de experimentar toda potencia possível na hora do pensar, mas acho que esse é um problema...”. “Até onde eu posso contestar o outro para saber, para poder participar de um ato criativo coletivo? E inclui também uma questão da liberdade – até onde eu posso violar minha própria idéia”.

Grupo 04- Composto por diferentes formações e faixa etárias entre 19 e 50 anos.

Nenhum conflito registrado e na fala de uma das integrantes o grupo foi “paz e amor”.

Mas na avaliação dos trabalhos uma jovem estudante de filosofia desabafou sobre a

dificuldade de dizer não. Uma presença muito forte no grupo acabou por exercer uma

liderança e o caráter de coletividade do jogo proposto pode ter sido enfraquecido.

“Mas eu acho que aconteceu tudo porque existia muita confiança mesmo. A idéia da Tânia foi uma idéia ótima e a gente seguiu e começou a alimentar e tudo foi acontecendo muito facilmente mesmo”. “Eu acho que houve uma aceitação do que é que estava acontecendo, sem grandes expectativas”. “Agora, eu fico me perguntando, por exemplo, é um grupo da paz? É, sim, acho que seja, mas, por exemplo, eu via algumas pessoas incomodadas, às vezes, no grupo e isso não era exposto. Então, até que ponto esse grupo é da paz mesmo ou é de pessoas que guardam o que elas sentem por uma questão de estar num grupo, por uma questão de não conseguir se expor, por outras questões que não são só do grupo? Eu digo, eu acho que isso em alguns momentos aconteceu com todo mundo lá no grupo, né, que eu senti...”

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“Às vezes a gente fala tanto de corpo – eu senti os corpos querendo explodir, tensos e isso não era exposto. Então, acabou sendo um grupo da paz porque a gente conseguiu respeitar a idéia do outro, mas eu fico me perguntando: será que a gente respeitou sempre a nossa idéia, como é que foi”? “Os grupos colocaram aqui na roda uma tensão que foi explicitada, e o nosso grupo eu senti que foi uma tensão que ficou para as pessoas, não foi posto na roda”. “Tem que investir a sua vida e acho que não fizemos isso. Então, é fácil quando você deixa fazer alguma coisa que vai ficar razoável, sim? Mas se estamos criando criar uma experiência estética, tem que fazer um pouco mais”.

Grupo 05- Composto por professores de filosofia. Faixa etária variando entre 30

e 52. Com elaborações sucintas sobre o trabalho e bastante criativas. Mas nos relatos

poucas informações sobre o processo. Nenhum participante falava em nome do grupo.

Essa observação me leva a pensar em um processo que somou bem as individualidades.

Mas penso que um grupo é mais do que a soma das partes. É algo mais que se constitui

ou não. Exceto por uma estrangeira, os demais já se conheciam e são amigos bem

próximos. Na fala de uma participante “se gostarem” foi fundamental para o grupo

trabalhar bem. Pouco material nos relatos para refletir sobre o processo que

atravessaram durante o curso.

“Sou eu que vou falar? A gente não conversou sobre a concordância da definição e do trabalho que fizemos”. “Quando a gente diz que tudo é violência...acho que alguns colegas talvez não concordem, mas pra mim não posso dizer que a violência é um raio cair em cima de mim, violência é uma coisa humana”. “A gente tinha muitas diferenças, mas o grupo funcionou bem...não sei se porque a gente se conhecia ou... a forma que a gente argumenta foi aceitável para o grupo”. “Mais do que se conhecer, o nosso grupo se gostava, é diferente, porque tem pessoas que eu conheço e com as quais eu não gostaria de trabalhar”. “Eu acho que talvez teve mais a ver com a disposição do Jair e da Paula que parecem muito acostumados a ouvir, muito acostumados, muito amáveis”.

Grupo 06- Composto por estudante de pedagogia, professores de filosofia, artes e

informática. Faixa etária entre 20 e 45 anos. Um homem e quatro mulheres. Tiveram

bastante dificuldade durante o processo e chegaram a apresentar um resultado, mas o

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coordenador considera que a performance apresentada estava na linha do psicodrama49 e

não do philodrama.

“Pra mim já tava muito difícil participar, da performance, eu não queria como hoje de manhã e foi muito difícil participar do exercício lá fora, mas eu tentei fazer um esforço interno, pra que eu não deixasse o grupo,” “A idéia se foi, então pensamos, o que faremos, e aí novamente do nada, foram surgindo outras idéias, até chegarmos a uma pseudo-solução que queríamos fazer uma apresentação circular”. “E eu irritadíssimo falei” vai! ... assim extremamente irritado com a situação...fui pensando sobre todo o processo e cheguei a conclusão, chega de violência. Eu não vou fazer mais nada, não vou apresentar”. “Essa própria violência que foi exercida e sofrida dentro do grupo, nós poderíamos então fazer disso a performance”, “E eu achei muito próprio pra o que tava acontecendo, então eu falei ótimo até que enfim (...) eu vou dar vazão a isso e vou empurrar vocês e vou embora'”. “que eu teria que buscar uma raiva um sentimento mais forte pra depois destruir aquela forma e então fiquei ali fazendo aquilo por fora mostrando minha raiva minha impaciência”. “Apresentar aquele conflito, alguma questão, exatamente alguma coisa, alguma questão, em relação ao que estava acontecendo no interior do grupo”.

Concentraremos a atenção nos grupos 01 e 02 na parte mais específica do

philodrama, quando estivermos já dentro do espaço–problema: violência. Inicialmente

apresentaremos os jogos de interação considerando a totalidade dos grupos participantes

do curso. Estabelecemos três critérios para guiar a análise do campo: espaço; tempo e

escuta. A forma como essas categorias aparecem durante o trabalho será investigada no

dia-a dia do campo.

2.2— RELATO DAS ATIVIDADES DE EL NAGUAL.

E esta é minha proposta, uma situação circular (...) estar aqui implica aceitar jogar, nos introduzir no jogo, na possibilidade de nos

expressarmos no jogo, de sermos criativos no jogo.50

A III experiência de formação do NEFI aconteceu na reserva de El Nagual51,

município de Magé, no Estado do Rio de Janeiro. Pelo terceiro ano consecutivo o grupo

elegeu esse espaço para as atividades do núcleo. A escolha se dá pela infra-estrutura do

local que abriga 30 pessoas em quartos coletivos e oferece uma excelente alimentação.

49 A técnica do psicodrama não se refere a trabalhar conceitos e sim, emoções. Sassone se inspira na proposta de Moreno, mas o philodrama se diferencia do psicodrama na forma e na intenção. 50 R. Sassone, 2007. 51 Em vários momentos o nome da reserva aparecerá como o próprio nome do curso.

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Mas também, e principalmente, pela beleza da reserva El Nagual que abre portas para a

reflexão. O cenário é de grande beleza: um rio passa atrás do centro de convivências que

funcionou como principal sala de trabalho para o curso e os participantes podem se

banhar nos intervalos. Uma pequena cachoeira massageia os que até lá vão para relaxar

entre uma e outra atividade. O ritmo de trabalho intenso permitiu uma visita a grande

cachoeira da reserva que se encontra há menos de 20 minutos da pousada, o que foi

feito pela estrada de terra que corta a reserva. Como a maioria dos participantes atua em

salas de aula, a data escolhida foi a semana santa por se tratar de um feriado prolongado.

O curso teve duas versões anteriores, em 2005 e 2006. Na edição de 2007 os

pedidos a priori para o grupo pelo coordenador foram o de levar roupas leves que

possibilitassem trabalhos corporais, um texto poético que deveria ser memorizado e

material de sucata. Além disso, na página de divulgação do encontro estava indicada

uma bibliografia básica que incluía artigos do próprio Sassone. As informações com a

indicação de leituras prévias foram repassadas para todos os participantes.

Os objetivos do curso foram descritos da seguinte forma:

*Contribuir para a formação permanente de professores da educação básica da

rede pública e privada de ensino;

* Sensibilizar profissionais da educação sobre a importância da problematização

de suas práticas e concepções teóricas;

* Explorar o lugar do corpo no pensar;

* Experimentar técnicas e ferramentas corporais que propiciam um diálogo

aberto entre os participantes;

* Criar condições para a introdução de alunos de educação básica no campo da

reflexão filosófica;

* Propiciar situações para o ensino de filosofia nos âmbitos de educação formal

e não formal;

• Vivenciar o questionamento, a investigação de conceitos e a criação de

novas formas de pensar através de uma prática filosófica coletiva.

O grupo foi composto por professores e estudantes de filosofia, brasileiros na

maioria. Mas a presença de professores argentinos, chilenos e da América do Norte

criou uma diversidade e possibilitou um intercâmbio. Havia também estudantes de

graduação de pedagogia e de pós-graduação em filosofia e educação. Os participantes

latinos que vieram somente para o curso falavam sempre na sua língua matrena. Outros,

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já radicados no Brasil, falavam em português e ajudavam em um ou outro termo não

compreendido. No total foram 30 participantes. Na tabela abaixo alguns dados do

grupo. As informações foram fornecidas no ato da inscrição para o curso. Os nomes são

reais, mas toda autoria dos trabalhos foi retirada e a divisão dos grupos não identifica

seus componentes.

NOMES Idade/ sexo. Profissão Páis Lígia 24/ Feminino Professora de filosofia / Mestranda

em Educação Brasil

Thays 21/ Feminino Estudante de Pedagogia Brasil Fabiana 19/ Feminino Estudante de Pedagogia Brasil Ingrid 53/ Feminino Professora de filosofia e doutoranda

em educação. Brasil

María José 35/ Feminino Professora de filosofia /Mestre em Educação

Argentina

Helena 32/ Feminino Professora de filosofia Brasil Joana 31/ Feminino Professora de filosofia e atriz Brasil Silene 38/ Feminino Pedagoga Brasil Marina 56/ Feminino bancária /professora de filosofia Brasil Maria da Penha 45/ Feminino Professora de Ciências Sociais Brasil Ellen 43/Feminino. Educadora / doutoranda em

educação Brasil

María Paula 38/ Feminino Psicóloga Chile Mariana Gestora educacional Tânia 47/ Feminino Professora Universitária Brasil Beatriz Fabiana 38/ Feminino Professora/Mestranda em educação Argentina Bernardina 45/ Feminino. Professora/ doutoranda em

educação Brasil

Priscila 22/ Feminino Estudante de pedagogia Brasil Jason Professor / Mestre em Educação EUA Arlindo 41/ Masculino Professor de filosofia / Mestrando

em Educação Brasil

Marcelo 37/ Masculino Professor de filosofia Brasil Maximiliano 36/ Masculino Mestre em Educação Argentina Sergio 43/ Masculino

Professor de artes/ Doutorando em Educação

Brasil

Jair 42/ Masculino

Professor de Filosofia / doutorando em educação

Brasil

Reginaldo 51/ Masculino Músico/ Terapeuta e doutorando em filosofia

Brasil

Edson Maciel 45/ Masculino Professor de Ciências Sociais Brasil Valdir Nunes 49 / Masculino Professor de literatura Brasil Javier 31/ Masculino Professor de Filosofia. Argentina Marina 48/feminivo Professora de Filosofía Argentina Giovânia 41/ Feminino Professora de filosofia e atriz Brasil Rogério 27/Masculino ator Brasil

As atividades aconteceram de quarta-feira à noite até domingo pela manhã. Os

trabalhos começavam às 8 horas da manhã com uma parada de 01:30 para almoço, o

que acontecia em geral, por volta de 12:30. As tardes foram bem intensas, e um pequeno

intervalo para o lanche permitia que o trabalho se alongasse até depois do escurecer. O

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término das atividades do dia se dava pelo horário do jantar que não podia ser

modificado e acontecia às 20:00. Mas o período após o jantar era também aproveitado

em pequenos grupos de conversas.

Para chegar até a reserva a organização marcou um encontro geral na UERJ e a

maioria fez o percurso até a reserva em um ônibus locado para esse fim. Alguns

preferiram ir de carro particular. Pelas condições da estrada, o ônibus não chega até a

pousada, e a parte final do percurso é feita a pé, enquanto as malas são levadas em uma

Kombi da própria pousada. Na noite de quarta-feira, 04 de abril, o grupo estava quase

completo. Dois integrantes ainda eram esperados. Por motivos profissionais viriam de

carro particular na manhã seguinte. O clima era de muita animação e cordialidade. O

riso era fácil, a beleza do lugar era elogiada. Alguns deram o primeiro mergulho na

piscina para relaxar e abrandar o calor enquanto a organização definia os grupos nos

quartos.

Ricardo Sassone, o coordenador, pediu que nos dirigíssemos ao espaço de

convivência — uma grande sala de madeira e janelas de vidro — tão logo estivéssemos

instalados. O pedido foi atendido com uma alegria ruidosa indicativa de curiosidade e

expectativa. Na quarta-feira, às 18:55 todos os presentes estavam no espaço de

convivência e o coordenador iniciou uma dinâmica de apresentação que durou 2 horas.

Na quinta-feira, as propostas de trabalho foram de integração do grupo, reconhecimento

do corpo no espaço, percepção do corpo do outro, coordenação motora, tato,

modelagem com argila, construção e desconstrução de sentidos coletivamente. Na

sexta-feira pela manhã houve uma retomada dos exercícios de desconstrução e

construção de sentidos a partir de séries aleatórias, mas a reflexão retomou a atividade

da tarde anterior, o trabalho com argila. Nesse dia o coordenador fez a colocação do

tema que seria trabalhado: violência.

Uma vez conformados os seis grupos se mantiveram até o final. A formação dos

grupos se deu aleatoriamente, ao final de uma atividade. O coordenador deu a cada

participante dispostos em uma grande roda um número de 01 a 06. Em seguida, todos os

que tinham o mesmo número se identificaram e passaram a fazer parte do mesmo grupo.

Essa distribuição foi feita um dia antes dos trabalhos em grupo começarem o que

acarretou certa confusão, pois um participante se dizia ser número seis e insistiu para

fazer parte de tal grupo. Sendo assim, um dos grupos ficou com apenas 04 participantes.

Foi distribuído papel, canetas, lápis de cor e de ceras variados. Os grupos tiveram a

liberdade de escolher as cores que queriam trabalhar e ao longo dos trabalhos o material

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foi sendo trocado pelos grupos de maneira informal. Inicialmente, cada um devia

desenhar uma silhueta humana em uma folha A-4 e fazer nela uma imagem que deveria

ser a representação originária do conceito proposto pelo coordenador. A representação

da violência se dividiu em algumas etapas:

Primeiramente, um desenho individual. Em seguida, cada um deveria fazer uma

descrição oral do desenho para o grupo todo. Na seqüência, deveriam transpor a

imagem construída para um texto poético e em seguida fazer uma leitura do texto. Cada

participante deveria também formular até 05 perguntas considerando como espaço-

problema, o que é violência. Ao final, cada grupo deveria selecionar três respostas e

expor todo esse processo para o grande grupo. A etapa seguinte foi a criação coletiva de

uma figura abstrata da violência. Assim que a figura ficou pronta, foram convidados a

elaborar, também coletivamente, uma definição para violência. Apresentaram primeiro a

figura e depois a definição do grupo. Esse trabalho sobre a violência foi realizado entre

a tarde de sexta-feira e a noite de sábado. Ao final, cada grupo preparou outra obra,

chamada de mapa, a partir do qual criou-se uma performance. O mapa foi também uma

figura abstrata construída coletivamente, em uma primeira etapa para colocar o conceito

em cena.

Os trabalhos sobre o conceito ‘violência’ não aconteceram de forma contínua.

Na manhã de sábado o coordenador resolveu incorporar um texto da peça OS

SERTÕES, do teatro Oficina UZONA que dois participantes tinham visto em São Paulo

e comentado com ele na noite de sexta-feira. Levou então, todas as pessoas para uma

clareira ao lado da pousada e retornou com dinâmicas de percepção corporal

trabalhando jogos que envolviam os 04 elementos: terra, água, fogo e ar. A essa

atividade chamarei de clareira, em alusão ao local onde ela aconteceu. A clareira durou

toda a manhã de sábado. Foi um momento de muita força do grupo. A tarde de sábado

foi dedicada novamente ao conceito violência.

As atividades realizadas eram sempre seguidas de uma grande roda onde todos

os participantes podiam se manifestar livremente, sem inscrição de falas (na maioria das

vezes) ou com inscrições informais quando o número de pessoas que queriam se

manifestar era maior. Não havia também nenhum limite de tempo para as falas. Esses

momentos de reflexão são chamados pelo coordenador de logoanalise e é exatamente o

que caracteriza o encontro da filosofia com o teatro dentro da metodologia proposta por

ele. Escolhi dentre as atividades realizadas, algumas para posterior análise. São elas:

• Apresentação (incluindo os jogos de integração e percepção)

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• Argila (construção coletiva de obra e de sentido).

• Violência (tema proposto para o encontro e desmembrado em várias

etapas de trabalho). Esse foi o eixo principal dos trabalhos.

Dentro do item violência, analisarei dois grupos no 3º capítulo dessa pesquisa. A

escolha se deu pensando na busca de possibilidades e impossibilidades de uma

experiência. Claro que os trabalhos dos demais grupos não são irrelevantes para a

pesquisa. Todo o material foi transcrito e decupado e dele retirei todos os dados da

pesquisa.52. Nesse capítulo, relato apenas as atividades que considerei mais relevantes

para a análise.

A atividade da clareira foi realizada em um espaço diferente das demais e se

constituiu em jogos de sentido, energias corporais que nos atravessam pelas percepções

que temos dos 04 elementos - fogo, terra, água e ar – essa atividade não será analisada

por problemas técnicos. Na gravação há falhas que podem comprometer a análise, pois

somente parte da atividade foi possível de ser registrada. Também fica fora desse relato

a atividade de confecção das máscaras e a reflexão final feita no domingo, antes da

partida do grupo de El nagual. Considero que por problemas de tempo, a atividade das

máscaras não foi realizada a contento e a reflexão final é mais pobre do que a reflexão

da noite de sábado, onde realmente se fechou uma etapa. No domingo, as falas são

pouco espontâneas e “politicamente corretas”.A reflexão mais interessante sobre o curso

e a proposta se deu na noite de sábado, na grande roda que deveria refletir sobre as

performances.

2.2.1 — Apresentação (incluindo os jogos de integração e percepção) 53

A atividade primeira do grupo foi um caminhar internalizando o específico do

movimento. Em seguida, a introdução de um ritmo marcado por um metrônomo. O

caminhar passou a ser acompanhado de sons. Esse exercício está entre as dinâmicas que

chamo de ‘integração do grupo’. Tanto o caminhar, quanto a colocação de sons

acompanhando os movimentos dentro de um ritmo buscam ampliar a percepção do

corpo e do espaço que trabalhariam nos dias seguintes. A apresentação dos participantes

foi feita dentro dessa dinâmica ainda na primeira noite.

52 Uma descrição detalhada dos passos pode ser lida no anexo 01. 53 Itens do 01 ao 12.1 e 14 da descrição - Anexo 01.

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No dia seguinte, quinta-feira, a dinâmica começou a partir dos textos que os

participantes elegeram a pedido do coordenador. Alguns o tinham memorizado, outros

não. Não era fundamental que os textos estivessem decorado. Os participantes

começaram a falar internamente os textos e a um toque do coordenador projetavam o

som. Uma polifonia tomou conta da sala. Aconteceu, em seguida, uma dinâmica com

duas cadeiras. Um participante sentava em uma e projetava repetidamente uma imagem

do texto eleito por ele, em seguida uma outra cadeira de costas para ele era ocupada e

outra imagem expressa em uma determinada frase passava a acompanhar a primeira. Os

textos inicialmente sem nenhuma relação um com o outro ganhavam novos sentidos

quando sobrepostos aleatoriamente. Abaixo as falas de cinco participantes que eram

repetidas inúmeras vezes e em séries aleatórias como exemplo.

A sua boca anda falando mentiras. Prego é uma coisa indiscutível Poesia é voar pra fora da asa. Prego é uma coisa indiscutível. Não ter conhecimento é um bem supremo. Prego é uma coisa indiscutível. Não ter conhecimento é um bem supremo. O segredo da busca é que não se acha.

Para terminar a dinâmica o coordenador pediu que cada participante falasse três

palavras que traduzissem a impressão do primeiro encontro. As palavras citadas foram:

encontro, palavra, corpo, alegria e diferença, curiosidade, olhar do outro e descontração,

coragem, encontro e humor, acaso, não-expressão, dificuldade, novo, desejo e

experimentar, intuição e aventura, expressão, suspensão e resolução, movimento,

descoberta, troca, sorriso, esvaziamento e sorvete, emoção e singularidade, entrada,

exterior e ouvir, confiança, reconstrução e pensamento, fertilidade, idéia e aliança,

formação, desaprender, performance, construção, reconstrução e imagem, reencontro,

caminho, diálogo, grupo, alethéia, jogo, abertura, acaso, escuta, silêncio, linguagem,

experiência, entrada, saída, humildade, percepção, reconfiguração, como fazer, escuta,

outro, carinho, cansaço, curiosidade e ansiedade, outro, eu e quem, proximidade,

distância e expectativa, silêncio, corpo e palavra.

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2.2.2 — Argila (construção coletiva de obra e de sentido).

A atividade iniciou-se com o comando de amassar a argila para descarregar

tensões. 2/3 do grupo não tinham nenhum contato anterior com argila. Colocaram uma

mesa no centro do salão, um pouco de água e de argila. Poucos cabiam ao redor da

mesa, alguns se revezavam, outros aguardavam que a argila fosse preparada. O

coordenador mostrou a forma de amassar, pediu que retirassem um pouco da argila

preparada e fizessem uma forma sem se fixarem em um objeto específico. Deveriam

tentar deixar a forma se impor a partir dos movimentos do corpo com o material. Muitas

brincadeiras, alto nível de ruído no espaço. O coordenador pediu que trabalhassem de

olhos fechados e fizessem primeiramente uma bola. Com os olhos fechados o nível de

barulho diminuiu. A partir da bola que consistia em deixar a argila mais homogênea

possível, deviam criar diferentes objetos a partir de pontos de toque diferentes. O

coordenador fala em ponto de toque e não pontos de vista, o que é fundamental na

proposta, pois diferencia a possibilidade da consciência ser invadida pelos movimentos

da consciência que conduz os movimentos. Os sentidos se ampliam e a relação com o

corpo-próprio se potencializa. Quando terminaram o objeto, ainda de olhos fechados,

foram orientados a descrever, em voz alta, o que tinham feito e somente então abrir os

olhos. Esses objetos foram colocados em um forno de cerâmica, mas os participantes

foram avisados que as possibilidades dos objetos se manterem inteiros era pequena.

Realmente a maioria dos objetos não resistiu à alta temperatura. O objetivo da atividade

não era o produto final, e sim o processo.

Em uma segunda etapa com a argila, criaram individualmente outras formas e

deveriam retornar essa forma para a mesa fazendo uma espécie de “escultura de todos”,

que o coordenador chamou de forma fundamental. “A totalidade do grupo deveria fazer

a pele da escultura”. Quando todos os objetos tivessem se somado à forma fundamental,

o grupo deveria falar sobre a obra coletiva como se essa estivesse exposta em um

museu. O discurso a ser construído deveria ser uma explicação da “obra de arte” ali

exposta.

Durante a atividade percebemos diferentes graus de envolvimento do grupo. A

escuta ao comando de se deixar levar pelos movimentos para que a forma se revelasse

não encontrou no espaço a atmosfera propícia. Faltou silêncio, faltou concentração. Na

parte final da atividade, o discurso sobre a obra formada foi realizado em meio a

brincadeiras e empurrões de quem deveria falar primeiro ou na seqüência. As séries

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discursivas que se formaram não se conectavam com a obra. A atividade virou uma

grande brincadeira. O jogo ficou comprometido, pois uns empurravam outros para

começar a fala.

Nenhuma correção sobre as brincadeiras foi pedida pelo coordenador. Qualquer

discurso era possível. Esse foi o discurso que o grupo conseguiu produzir naquele

momento. A logoanalise dessa etapa não se referiu à atividade diretamente. Uma

pergunta sobre o valor estético do que tinham produzido conduziu à discussão para o

que é uma obra de arte que se prolongou por horas. Poucos no grupo participaram com

falas na roda. Muitos demonstravam claramente cansaço com a longa discussão teórica

e cochilavam. Somente no dia seguinte, aconteceu uma reflexão que levantou as

diferentes motivações e problemas dessa atividade.

Explicação teórica do philodrama.

Ao encerrar a logoanalise que tratou da atividade da argila, o coordenador

apresentou o philodrama, mas falas como as que colocamos a seguir demonstram que a

parte teórica da metodologia não foi compreendida pelos participantes. O coordenador

não insistiu, abandonou os papéis e partiu diretamente para a atividade..

“Pode repetir eu não entendi?” “Ricardo eu não to entendo muito bem você poderia falar um pouco mais do percepto”? “a gente mergulhou na questão do esquema e várias vezes não só, assim, eu me perdia no meio do esquema, como eu percebi que algumas pessoas também não conseguiram se encontrar e a gente caiu numa prática e eu não consegui atingir essa grau muitas vezes de “linkar” o esquema com a atividade que a gente estava fazendo “

Esse momento me levou a conversar com diversas pessoas e pude observar que a

maioria não tinha lido a bibliografia indicada para o curso. Ou seja, grande parte do

grupo foi para El Nagual sem saber no que consistia o curso. As atividades do NEFI

foram o elemento catalizador para o encontro. A programação do curso centrada no

philodrama e distribuída aos participantes com bastante antecedência e que incluía uma

determinada bibliografia não foi devidamente focalizada pelos participantes. A maioria

não tinha lido nada a respeito antes do início do curso. As exceções eram algumas

pessoas do NEFI, especificamente seis, que conheciam o coordenador do curso e

haviam participado de atividades com ele, no Brasil ou na Argentina. Elas eram as

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únicas que já tinham tido algum nível de acesso à metodologia. Essa observação talvez

ajude a entender algumas resistências que foram sendo formadas ao logo do curso e que

aparecem claramente na logoanalise final.

2.2.3 — Violência

Considerado como espaço problema, o conceito de violência foi o eixo principal

dos trabalhos. Durante essa atividade, vários materiais gráficos foram produzidos. Ao

final desse relato o leitor poderá acompanhar a produção dos grupos.

a- A questão da violência foi o tema da experiência proposta a ser desenvolvida

pelo philodrama durante o curso de El nagual. Como percebemos a questão da

violência histórica e culturalmente, e como ela se constitui na experiência social.

O tema deveria ser abordado desde as marcas deixados no corpo-próprio,

intercalados pelos discursos e metáforas que o atravessam. Ou seja, o que

chamamos de violência e como a representamos.

b- Proposto o tema foi pedido para que cada um desenhasse sobre um esboço do

corpo humano imagens que pudessem explicitar a compreensão individual sobre

violência. Após essa primeira representação imagética, cada um fez uma

descrição oral da imagem. Na seqüência, fizeram 05 perguntas individuais sobre

o tema e um texto poético a partir da sua imagem de violência. Ao final, o gruo

deveria eleger 03 perguntas somente. A elaboração do desenho é denominada de

cartografia ‘eidético-corporal’. È uma dimensão sensível e visual da experiência.

Uma projeção codificada na imagem pictórica, no sentido de sentir ─ re-

conhecer. Trata-se de trabalhar com as ressonâncias que a violência possa der

deixado como marcas no corpo-próprio.54

c- As etapas relatadas acima tem como marco a idéia do corpo como um

território da imagem. A primeira instância, dos desenhos individuais é uma

forma de buscar em si uma representação originária da compreensão do tema

proposto. A elaboração individual desses desenhos é a construção de um mapa

fantasmático corporal. Com a representação desse mapa o philodrama se propõe

54 Os mapas são parte de uma experiência que atua no real. Não são uma representação inconsciente, antes são conectados com a possibilidade de desbloqueio da consciência reflexiva por atuar no nível da representação originária. Dessa forma, a confecção dos mapas pretende ser uma conexão para o corpo sem órgãos e isso só pode ser dar com a abertura do plano do que denominamos corpo de consciência.

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espacializar as imagens inconscientes do corpo, os efeitos e fluxos de sensações

que na representação imagética ganham forma, dimensão e cores. Os mapas

revelam alguma materialidade corporal das fantasias depositadas no corpo.

Para nosotros, este es un primer ejercicio de escritura en que el generamos cierta textualidad (...) el proceso significa tambíen acceder a la dimensión de la multiplicidad en la que se inscribe el proceso de desterritorialización-líneas de fuga-desde esse territorio primordial que es el cuerpo, para reterritorializarse- línea de segmentariedad y estratificación- em el espacio del somatograma”. 55

d- A primeira transposição de textualidade foi do desenho para a oralidade. O

comando foi: expor sua imagem e falar sobre ela. Na descrição as codificações e

sobrecodificações que apareceram no mapa corporal eram explicitadas.

e- Máquina poética: A partir da materialidade dos desenhos foi gerado um texto

poético abrindo uma nova transformação textual que passou pela decodificação

da representação originária e nova decodificação. Os textos poéticos

caracterizam a passagem do espaço visual para uma série literária.

f- Após a descrição e leitura dos textos poéticos, bem como a colocação das três

perguntas escolhidas dentro do grupo sobre o que é violência, foram convidados

a fazer coletivamente uma obra pictórica sem usar elementos figurativos,

somente abstratos. Em seguida foi pedido para que elaborassem uma definição

também o mais abstrata possível de violência. O suporte para esse desenho

também foi de uma ou duas folhas A 4. A definição deveria ser escrita atrás da

folha desenhada.

g- Em uma grande roda foi feita a apresentação dos desenhos abstratos e das

definições. Uma das definições gerou uma contestação que levou a uma

discussão semântica sobre a relação da violência com a natureza e a cultura.

h- Na etapa seguinte, cada grupo deveria realizar uma nova passagem. Deveriam

construir nova obra coletiva que foi denominada de mapa da violência e a partir

dele preparar uma performance, uma re-escritura da obra em pequenas estruturas

dramatizadas.

i- Nessa etapa, um dos grupos chegou a fazer o desenho coletivamente, mas não

conseguiu fazer a passagem para a performance e por isso não chegaram ao

resultado do processo. A logoanalise acabou se tornando um debate sobre o

55 R. Sassone, op. cit., 2006, p. 149.

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desenvolvimento do curso até aquele momento. A discussão do processo, e a

colocação dos problemas não somente desse grupo, mas também de um outro

que chegou a um resultado classificado pelo coordenador como psicodrama 56 e

não philodrama ocuparam todo o tempo da reflexão que foi interrompida pelo

adiantado da noite. A discussão evidenciou algumas resistências ao trabalho

realizado e acabou por interromper o fluxo da metodologia e o passo seguinte

que seria a passagem do conceito a cena. Nesse momento é que se construiria os

conceitogramas, evidenciando-se a passagem da relação re-conhecer ─

conhecer.

j- Na manhã seguinte, por insistência de parte do grupo cada participante

confeccionou uma máscara, mas não houve tempo para a colocação dos

personagens (mascaramento) em cena. O que aconteceu foi somente uma

apresentação dos personagens criados a partir da sucata levada. Deixo a fala do

coordenador sobre o que tinha elaborado como cronograma terminar esse relato:

O que tínhamos que ter feito e o que não fizemos pelo problema de tempo ou de aplicação do tempo... tem que concluir com a mascarada... e depois a coisa seria mais ou menos assim... as máscaras tem personagens da nossa fantasia e eles podem inter-atuar.(...) Deveriam fazer cenas com as máscaras. Esses desenhos vão colocando a energia dos personagens em conexão. Depois poderiam trocar de máscaras. Uma máscara elege um para trocar e a troca é de máscara é de nível de energia.

No terceiro capítulo proponho-me a analisar o evento El nagual e tentar

encontrar na metodologia do philodrama indicadores para pensar a possibilidade do

pensamento em ação, do pensamento em movimento que o conceito oferece. Tentando

estabelecer critérios para pensar o ensino de filosofia e suas possibilidades em aberto

para estratégias consideradas não-filosóficas, como o teatro, por exemplo, usarei

critérios como o tempo das atividades, o espaço utilizado e a escuta. A análise busca em

que medida o philodrama trabalha o corpo e qual o impacto das atividades propostas. O

desenvolvimento ou não da proposta até o conceitograma será minimizado e

consideraremos o fim da experiência a exatidão do acontecido. O que me interessa são

56 Segundo o coordenador o grupo colocou em cena suas angústias, sem relação com a proposta. Fez uma cena fora dos critérios de denegação. Ali não era “como se”, não estavam no mundo da obra e sim expurgando emoções do mundo cotidiano. Isso caracteriza os jogos do psicodrama de Moreno, ao qual o philodrama se filia, mas com objetivos bastantes distintos.

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as condições de possibilidade e impossibilidades de uma experiência de pensamento que

possa ter sido extraída do evento El nagual.

Antes de passar para análise das atividades, apresentamos a produção visual e as

transposições literárias que os grupos realizaram.

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2.3. — Desenhos e textos poéticos

GRUPO 0 1

1 2

3 4

5

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Textos Poéticos Grupo 01 01- O observador atento Ouvindo a sua respiração dentro de um corpo sem marcas de

violência... no vazio. Deixando ser tomado pelo domínio da

mãe do mundo. De repente... escuta o grito de seus filhos

dominados pelo medo. Presas... derrotados pela violência.

o grito é muito forte e a mãe se sente impotente frente a fragilidade dos seus filhos. Obs: esse texto não foi disponibilizado ao final do trabalho. Retiramos a poesia da transcrição_ fala muito baixa e perdesse algo.

02. Como escribo mi FLOR, como la digo Sin la F de foca Sin la L de Leon Sin lo O de oso Sin la R de rueda ? Que fui obligadaa repetir hasta el hatozgo

? Em mi moderno de primor grado Como escribo mim FLOR, como la digo Sin el perfume violento Del jasmim o la

lavanda Sin el placer de pisar los hojos secas Del

otóno Hasta destruirlas Sin la posibilidad de que em girasol de

van gogh Me que los ojos Violência más violência dentro de mi

FLOR Delineando sus contornos

03-Silêncio Não me permitiram... Ver com os meus próprios olhos Fui sempre obrigada a ver com os olhos alheios Não me permitiram... Ouvir com os meus próprios ouvidos Fui sempre obrigada a ouvir Com ouvidos que não me pertenciam Não sei... Se o que sai da minha boca me pertence Nem sei se é verdade ou mentira Só sei... Que o gosto pela vida me foi tirado Tirado de uma forma tão brutal Que afetou o meu coração Não dou risada nem choro mais Apenas me conformo e aceito Não sabendo até quando Vou continuar a me silenciar

04-CADEADO Uma sede infernal

Denuncia a minha Vontade de viver Sacia-me prazerosamente Minha pele etiquetada Anuncia o valor Da minha existência Homem, vida Esvaída De um valor pessoal Pessoalidade comprometida Com a chave violenta De uma fechadura Em bronze Em ferro Em cobre, cultura Trancafiando as minhas caras ( carros) Na multidão ilusória Do meu conviver

05- NO MIRAR.... NO HABLAR.... NO SENTIR... MUJER OBJETO No mira No habla No sinete MU.JER.OB. JE.TO.

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GRUPO 02

6 7

8 9

10

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Textos Poéticos Grupo 02 06-A violência Via corpo Via crucis Via as horas Via as coisas Via as vidas E no que via Via de novo Via novo Via outra via E Via mais Via vias Via veias Via articulações Via além Da vítima Via Além Do estigma Via além Da dor E já nem havia mais aquele ardor .....

07-Mundo moderno Países Estado moderno Sistemas republicanos Igualdade, fraternidade e liberdade Sistemas Promessas Democracia Esperanças Vida Homem moderno Desejos Poder Dinheiro Propriedade Cidades grandes Ricos e pobres (Des) Igualdades ganância (Des) valorização banalização Vida Armas Tiros Morte Há outro possível A vida é Im- possível?

08-Cuerpo, vacio, violento- ausencia Violenta-ausencia, vacío cuerpo Vacio, ausência cuerpo-violento Ausência, vacío violento cuerpo Violencia tu cuerpo- violento Vacio Es Ausência

09-Los senos sangram Y singram O grotesco da beleza oprimida O dinheiro, o trabalho. A Vida! Se exprime Vacia el corazón Rumo ao nada

10-Nossa sexta-feira santa " Chagas... vejo as suas sangrando como pode mais de 2000 anos depois não haver fibrina que coagule seu sangue? Meu pequeno menino Tão poderoso Ainda vítima de u plano maior. Evoé!

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GRUPO 03

11 12

13 14

15

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Textos poéticos Grupo 03 11-Homem, tenso, vive! Vive vazio e longe, De vidro faz sua redoma De vidro é sua proteção Afasta a todos e fere Tensiona, oprime, reprime E não percebe o quanto origina as suas dores Se é pra afastar Que afaste a grana, A ânsia de grana Afaste também os barulhos E queira se for capaz O outro, o amor, o verde E o devir

12-A polícia do teu medo Enquadra, agarra, racha, rompe, prende Farpa, corta, amarra, atropela. Teu rosto tua garganta tua voz teu coração Teu estômago Tienes borrado el vientre? Estala teu chicote de libertação.

13-Eis-me aqui! Um desconhecido de mim mesmo Quantas imagens e não sou Diz-me quem és? Tu que vês em mim Eis-me! Sou fragmento do ser Vivo interminável Violação Mas, ainda sou Eis-me aqui E quão longe estou Mas, eis-me aqui! Vivo, vivo, e morro Em mim

14-Um bloco vermelho e sólido Está em minha cabeça Já não penso Não há espaço pra idéias Fluxo, circulação Só a fúria, o medo, a cegueira A aporia Tento erguer meu pé e me mover Mas não posso Está preso Acimentado junto às ruas da minha cidade Minhas mãos formigam de desejo Querem quebrar este solo que me suga Limpar minha mente E tingir de novas cores o meu mundo O seu mundo Mas eles não podem Não conseguem Algo as retêm Nada elas conseguem segurar Reter, transformar Vácuo Meu corpo grita Meu corpo dói Mas estou só E não sei o que fazer

15-O mar respira As águas lambem Uma e outra vez As pedras dormidas

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GRUPO 04

16 17

18 19

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Textos poéticos Grupo 04 violência é vida que explode fere cria

Para os olhos Óculos de não-ver Para as mãos Laços de impedir Para o coração Correntes de aprisionar Para o sexo Tramas de luz para conter .... mas na boca vermelha a moça resiste em meio ao mar lágrima

Com minha boca trancada Eu sou marcado Para desaparecer Neste mundo violento Até desenhos soltam lágrimas

SOCO NA BOCA DO ESTÔMAGO GRITO DA BOCA DO ESTÔMAGO MEDO DO SOCO GRITO DE MEDO SOCO DO GRITO A VIDA GRITA SEU APRISIONAMENTO PALAVRA, DOR, AMOR ESPERANÇA EM DESABALADA FUGA BUSCANDO O SOL

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GRUPO 05

20 21

22 23

24 25

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Textos poéticos Grupo 05 Soy, no soy, soy, no soy, soy, no soy, soy… Caleidoscópia Si lo decido yo Vacio, muerte, fractura de hueso, Si lo decides tu

As mãos suam segurando as chaves As mãos suam segurando as chaves As mãos suam segurando as chaves As mãos fechadas de medo

DE cima a baixo A cruz na cabeça encadeada Boca? Tapada No peito Proibida A parada Bocetapau no cadeado Ao pé do pé aprisionado

Vida viagem Via, violência, violeta, vil Vil-o-le(n) ta vi-aja(n)-te haveria de juntar cacos dessa via? Só há ruínas Só há vida

Esse desenho tb é da paula. Pode a violência Ser a Tendência De uma aparência Construída com eloqüência Sem nenhuma abrangência Mas com suficiência Ou pertinência Própria da maledicência? Seria o final De uma essência Transmutada em existência Anunciando certa benevolência Que não perde a cadência Necessária a independência? E se fosse luminiscência Que se relacionasse a ascendência Á descendência Própria de uma consciência Que clamo por experiência?

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GRUPO 06

26 27

28 29

30

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Textos poéticos Grupo 06

Hombre quebrado Trak! Madera sin savia Mútiples despojos Astillas Cenizas de hombre Fenix de vida

UMA PRISÃO DE DENTRO AO FORA E FORA AO DENTRO JÁ NÃO AGUENTO MAIS... ESTOU FRACO! PRECISO

PENSAR.

Inscreves em mim a tua força

Desterritorializas meus esforços

Ruptura, violência, sede

Breves instantes

Em que meu corpo resiste e cede

És tu a morte

Ou uma de suas faces

A mente..

Ninho de serpente. Essas se alimentam

de sangue. Espalhando veneno e ao invés de

adormecer... adrenalina.

Também pudera!

Navalha na carne e chagas mais...

bem mais profundas... visualizadas na

janela da alma. Raios negros.

Silêncio

Há um grito no silêncio

Há silêncio em nosso grito

Um eco que invade

A imensidão do nada

Há um grito que invade

O nada do eterno ser

O ser que cada um

Quer ser

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2.3.1—Desenhos coletivos

Grupo 01 Grupo 02

31

32

Grupo 03 Grupo 04

33

34

Grupo 06

35

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3. ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO

3.1— Apresentação

Quarta-Feira.

O comando foi bastante claro. Caminhar sem falar como se estivessem em meio

a uma multidão Em um determinado momento, indicado por um som emitido pelo

coordenador, os participantes deveriam parar e começar a se apresentar a quem

estivesse em frente. O uso de uma sirene e de um metrômetro para sinalizar os tempos

da dinâmica são os primeiros indicadores de que o comando seria bastante preciso. O

grupo apresentou certa dispersão. As imagens mostram conversas paralelas e risos. Não

houve nenhuma correção do comando pedindo maior concentração. O objetivo era

integrar o grupo.

Nesse primeiro momento, percebi que o número de pessoas pensado para o

encontro estava excessivo. O limite tinha sido dado pela capacidade de acomodação nos

quartos, mas os trabalhos corporais, como aqueles das primeiras atividades

necessitavam de um espaço maior. A sala de convivência se mostrou pequena para vinte

e nove adultos caminharem por ela ao mesmo tempo. Pequenos esbarrões, traçados

repetidos do caminhar indicam isso e certamente contribuíram em alguma medida para a

dispersão. Durante o caminhar, foi dado um comando para que ao ouvirem um som (a

sirene, o sino ou palmas) deveriam parar em frente a alguém e se apresentar. Algumas

pessoas já se conheciam, mas não foi dada nenhuma indicação para que recusassem um

rosto conhecido. Depois de 04 rodadas as pessoas falaram para o grupo os encontros

que tiveram estabelecendo assim uma apresentação geral. Em uma breve reflexão sobre

como o grupo tinha percebido o momento de apresentação surgiram algumas questões

que apontarei na seqüência a partir de algumas falas significativas que elegi.

“Porque será que a gente fala logo o nome, quem tem filho fala ‘tenho tantos filhos’, sou de tal lugar e trabalho com isso”. São quatro referências de identificação mesmo: nome, profissão, família e local de onde eu venho”. “A gente se apresenta sempre como supostas figuras (...) com supostas bagagens que você traz lá de fora: eu sou assim, eu faço isso, eu faço aquilo. E eu fiquei pensando: e se eu começar a tirar essas coisas todas

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sobre o que sou, o que vai sobrar? E aí, eu acho que para mim, é uma experiência de desfazer ...o que sou, essas coisas todas...” “Eu senti como se fosse um certo ritual, um ritual de que “estamos chegando”, estamos chegando próximo um do outro, mas é curioso... Essa parte de falar, de como cada um se coloca, parece a parte menos interessante, também, deu um certo cansaço.” “Eu fiquei pensando que é curioso a gente se apresentar a partir dessas coordenadas: nome, onde mora, o que você faz e a referência da família... O que a gente escolhe falar... Porque a gente não fala assim... Que gosta de banana, que prefere verde, detesto triângulos? Por que a gente escolhe essas coisas? Por que a gente acha que a gente é o que a gente faz, o nome que a gente tem e a família”? “As pessoas perguntavam: você é o que? O que você faz? E eu ficava pensando em como é que eu ia mostrar para essa pessoa o que eu sou, porque dificilmente eu paro para pensar ‘o que eu sou’?”. Eu sou uma estudante, eu sou uma pessoa com alguns amigos, de tal e tal maneira... Então, para mim foi legal também para parar e pensar não só no outro, mas também em mim. Achei isso bem legal”. “E na roda eu acho que a gente foi construindo as pessoas, na verdade, porque um falava um pouco, daí o outro acrescentava e o outro falava ‘ah, lembrei disso’. Nisso, a gente partiu de poucas coisas e foi montando um ‘quebra-cabeça das pessoas’ aos poucos”.

É interessante notar que os personagens sociais que somos são questionados já

na dinâmica de apresentação. Lembremos que, nas palavras de Sassone, o philodrama

trata de “desmascarar para depois mascarar novamente”. A dinâmica de apresentação do

curso consegue trazer essa questão à tona. A cultura gera uma organização de

comportamentos que são apreendidos ao longo da vida e que os grupos sociais acabam

por determinar certas posições onde cada um executa o seu papel. 57

Diferentemente de uma apresentação tradicional, na qual cada um fala de si

reforçando as visões já estabelecidas pelos jogos sociais, a dinâmica proposta, ao fazer

com que as atenções sobre si mesmo fossem desviadas na busca de seguir comandos

variados, o que exige certa concentração e impede que se planeje o que vai se falar criou

a possibilidade do quebra-cabeça apontado na última fala transcrita. O personagem

social foi percebido e de certa forma descolado dos sujeitos deixando-os mais livres

para o jogo que começava a ser jogado. As individualidades foram questionadas. A

apresentação na forma que foi realizada permitiu o início do ato-teatral, ficcional,

fazendo com que cada um ali presente se visse ‘sendo’ na fala de outros. Essa forma

ficcional possibilita a interrogação pelo o ato-real da apresentação. Possibilita um olhar

57 SARBIN, Theodore. Role Theory, apud COURTNEY, Richard. Jogo, teatro e pensamento. São Paulo: Perspectiva, 1980. p 233. "Um papel é uma seqüência padronizada de ações ou feitos apreendidos, desempenhados por uma pessoa em uma situação de interação".

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que amplie o universo de quem joga. No jogo-ficcional recriamos o mundo e a nós

próprios. Colocar a apresentação de cada um na fala de quatro pessoas ajudou à

percepção dessa construção que cada um é.

A finalização da dinâmica foi o pedido de três palavras que traduzissem a

impressão do primeiro encontro. Entre essas palavras encontrei apenas três ─

dificuldade, cansaço e não expressão ─ que podem ser indicadoras de alguma

resistência ao trabalho que se seguiria. A maioria traduz a expectativa da novidade.

Alguns exemplos significativos: descontração, coragem, experimentar, confiança,

singularidade reconstrução, fertilidade, diálogo, experiência, expectativa, escuta.

A escolha das palavras se deu de forma diferente a partir do critério tempo: os

primeiros a se expressarem tiveram que se valer de uma imediatez e com isso as

palavras não buscavam uma racionalização entre si. Nos últimos percebemos que o

tempo do pensamento reflexivo alterou essa percepção e os participantes tentavam

elaborar uma idéia com o conjunto de palavras eleitas. A partir do sexto participante é

possível notar isso. Isso não invalida a expressividade e podemos perceber que para

algumas pessoas mesmo tendo mais tempo para “elaborarem”, a imagem traduzida não

tem a busca da racionalização. O décimo participante cita: sorriso, esvaziamento e

sorvete. Pela não relação explicita das palavras, ele deve ter mantido as imagens

primeiras conservando a imediatez do comando. O mesmo não se apreende no vigésimo

a falar: escuta, silêncio e linguagem.

Essa observação inicia a categoria tempo para pensar o encontro. Tempo de

forma objetiva. O tempo dado às atividades, o tempo de cada um regulado por um

comando externo, o tempo de uma mesma proposta que por ser aplicada a um grande

grupo repercute em fragmentos diferentes para que cada um se relacione com o

comando alterando a possibilidade de uma relação imediata e pré-reflexiva sobre os

objetos em questão.

A ‘fuga geográfica’ do bombardeio cotidiano pensada inicialmente como

condição de possibilidade para novas percepções não se desvencilhou da questão

produtividade entendida como fazer o máximo possível dentro de limites pequenos de

tempo. O ritmo de trabalho desde a primeira noite foi intenso. Muitas atividades

corporais seguidas de longas falas individuais e colocações dentro do grupo.

Produtividade máxima foi o que essa atividade perseguiu. A última fala do coordenador

apontava para a continuação das atividades depois do jantar na quarta-feira, o que foi

descartado devido ao cansaço do grupo.

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A busca de um espaço que possibilite mais a reflexão deve ir além de um lugar

geográfico especifico. Talvez seja um não-lugar que permita o encontro que buscamos

como a possibilidade da linguagem, da infância, da experiência. O não-lugar seria a

possibilidade do envolvimento com os movimentos infinitos do pensamento. Se há

algum caminho que abra essa porta, não é necessariamente a mudança territorial

geográfica, mas a desterritorialização, no sentido deleuziano.

Assim, considero que nessa primeira noite fizemos a filosofia na sua forma

primeira, pensada desde a Grécia. A sociabilidade, o prazer de se associar e o gosto pela

opinião58. Mas a passagem do território El nagual para a terra59 ainda não tinha

encontrado espaço dentro do tempo produtivo que aconteceu nessa primeira noite.

Com essa observação antecipo um problema que apareceu somente mais tarde:

como o tempo individual de percepção de si, do outro, do espaço objetivo e a

necessidade de obedecer a comandos externos podem se conciliar de forma a criar

possibilidades ou impossibilidades para a experiência?

Na parte final da preparação do grupo seis enquanto lidavam com as

dificuldades já relatadas, o grupo um entrou na sala e uma participante pediu para eles

saírem daquele espaço porque eles estavam precisando ensaiar lá.

Grupo 06- “Quando começamos a ter uma idéia mais coesa no grupo, chega o grupo, que se achou mais importante do que o nosso...entrou no recinto, e falou ‘olha nós precisamos desse espaço pra ensaiar, vocês podem ir lá pra fora?”

O grupo seis, contrariado, cedeu o espaço e a reclamação chegou bem depois. Na

hora da sensação, os afetos que incomodaram foram “varridos para debaixo do tapete”.

O que aponto com essa observação é a necessidade de conectar a percepção com a

expressão em uma afirmação da força que lhe atravessa. Para pensar o corpo nesse

movimento é fundamental afirmá-lo como um vetor positivo. É no encontro das forças

que a experiência se dá. Não falo em consenso, mas sim da possibilidade de se afirmar

como potência criativa continuamente.

Quinta-Feira.

58 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 116. 59 Nos referimos a forma como Deleuze considera o pensar. Para ele pensar não é algo que se dá entre um sujeito e um objeto e sim entre território e terra. O pensamento se desterritorializa e territorializa. A desterritorialização se dá na passagem do território para a terra e voltamos a nos re-territolizar, da terra para o território.

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Foi estabelecida uma dinâmica para a apresentação dos textos poéticos pedidos

para os participantes: Lorca, Brecht, Adélia Prado, T S Elliot, Mário Quintana, Manoel

de Barros, Cecília Meireles, Pablo Neruda e Carlos Drummond figuraram entre os

autores escolhidos. Mas, as poesias em si, na sua totalidade, pouco representaram para a

atividade. O objetivo era exatamente a possibilidade de desmistificar o texto. Falado em

fragmentos e por repetições, cada participante era tratado como um instrumento de uma

orquestra e entrava e saia ao comando do coordenador-maestro. O que se formou na sala

foi uma polifonia com as séries de fragmentos dos diversos textos. Novos e inesperados

sentidos foram criados a partir do acaso proposto pela dinâmica.

Inicialmente os participantes estavam sentados e de olhos fechados, depois

foram dispostos dois a dois de costas, em duas cadeiras. A troca de um, e depois de

outro reforçava as diferenças de sentido que ganhavam assim bastante movimento.

Ao final dessa etapa, o comando foi para que todos caminhassem pela sala na

continuidade do trabalho de percepção do espaço e do corpo do outro. Escolheram uma

palavra que tivesse uma imagem significativa do texto original trazido por cada um e a

trocaram entre si falando-a alto um em frente ao outro. Cada troca de atividade era

marcada por um som que o coordenador emitia indicando que os tempos eram

controlados por ele. Exercícios de velocidades diferentes para o caminhar e

alongamentos com sons foram sugeridos. Ficou evidenciado, mais uma vez, que o

espaço físico da sala era inadequado para o número de pessoas. O alongamento também

aconteceu sem nenhuma orientação. Cada um se mexia intuitivamente, sem certo ou

errado.

Ficou evidente a dificuldade motora de alguns. As diferenças de “sensibilidades

corporais” que o grupo apresentou é um indicativo da diferença de “conhecimento” que

cada um tinha das suas potencialidades corporais e nas diferenças potenciais de cada

corpo ali presente. Alguns, mais especificamente dois atores, um músico e duas

professoras de filosofia se destacavam pela concentração dos movimentos. Parte da

atividade foi dedicada a um alongamento máximo do corpo. Deveriam pegar uma

energia do solo e elevar ao máximo, criando com o corpo uma ponte entre a terra e o

céu. Esse foi um raro momento de silêncio do grupo. Apesar de nem todos se

esforçarem por atingir o máximo que o corpo poderia dar — o que pode ser um

indicador da diferença de percepção apontada anteriormente e não uma falta de

envolvimento do participante.

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A caminhada proposta depois desse alongamento foi orientada para que fosse

“criativa”. Esse havia sido o comando. Porém a percepção foi de pouco contato com a

criatividade corporal. Os passos “criados”, na maioria, não tinham qualquer

organicidade. Eram pulos ou frutos de uma deficiência imaginária. Mas não era o quão

criativo cada participante deveria ser que estava em jogo e sim, a capacidade individual

de perceber o que estava fazendo. O exercício era de concentração sobre seus

movimentos. Assim, a dinâmica se seguiu com velocidades diferentes para esses

movimentos. Ao toque do sino foi pedido também para que acompanhassem um outro

caminhar, treinando a percepção do corpo do outro. Infelizmente, como alguns passos

se tornaram pulos foi necessário parar a atividade porque o chão da sala de trabalho era

de gesso e os saltos poderiam provocar algum acidente.

Antes da mudança de espaço para continuidade das atividades, o coordenador

pediu uma primeira reflexão. Considero essa etapa como parte da logoanalise. No artigo

que apresenta o philodrama, “Hacia la configuración del philodrama”.(Sassone, 2006)

a logoanalise é apresentada dentro da metodologia como o ponto de encontro da

filosofia com a dramatização. A leitura do artigo sugere a logoanalise na parte final do

trabalho. Como citado anteriormente, o philodrama tem espaço para regras novas de

acordo com as especificidades de cada grupo. No curso de El nagual, a logoanalise se

deu após cada atividade. A pergunta deixada para reflexão foi:

O que aconteceu com os seus corpos a partir das hipóteses de trabalho?

Nas respostas, a questão do espaço foi levantada pela primeira vez. Porque

estavam na sala de convivência fechada se tinham ido até a reserva para estar em um

ambiente que pudesse produzir algo diverso do que o das salas de aula? Também foi

citado o problema do espaço ser pequeno para tantas pessoas:

“Eu senti falta da terra, de repente fazer lá fora”. “Mas eu hoje estava lá atrás, então eu seguia a altura do som dos colegas e eu perdi o contato com a musica”.

Fora essas reclamações do espaço que podem ter sido influenciadas pela parada

da atividade em seu fluxo, os comentários foram de admiração sobre a desmistificação

dos textos e surpresa de alguns pela possibilidade de se formar sentidos a partir de séries

aleatórias.

“Parecia que eu estava andando em uma conjunção de poesias, andando e vindo poemas, entrando sentindo, foi um momento muito forte”.

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“Usamos o corpo e a palavra de maneira que não era normal e a palavra recebeu outras dimensões, como ritmo e esse exercício para frente e para trás e esse trabalho como uma desestruturação do corpo de linguagem e o corpo mais ricos e mais próximos para poder trabalhar com eles ”. “Eu vim com um poema para mim, e aqui eu percebi que esse momento não era meu coisa nenhuma, ele era para ser dividido e para construir esse momento que agora a gente está vivenciando”. “Quando eu vi, não era mais o meu texto, já não era o que eu pensava e transpassava e a outra coisa muito bacana que aconteceu e que na hora que a gente estava jogando isso para o corpo não só o meu texto foi para o corpo ... várias imagens foram sei lá... subconscientemente jogadas para o corpo das pessoas.” “O encontro hoje me propiciou um certo desencontro que foi interessante também, entre o tempo do significado de algo a partir da mentalização que o tempo do próprio corpo, e sua linguagem e suas outras formas de manifestação” “Hoje o sentido surgiu da repetição do sem sentido, ou seja, parece que na repetição do sem sentido há uma forca que produz sentido e eu acho que seria interessante se aprofundar nisso”. “Eu pensei na forca da palavra que permite de algum modo estar acoplada ao movimento corporal”.

Começa a aparecer nas falas à construção de um discurso coletivo, de

pertencimento a um grupo. Os poemas antes individualizantes, escolhidos previamente,

passam a ser parte de um novo sentido ali construído. Os textos poéticos foram

utilizados por não remeter a um sentido exato, mas sim a uma circulação de imagens. O

texto poético está no campo das metáforas e por isso deixa o sentido em suspenso

criando possibilidades para a abertura de novas compreensões que se dão a partir do

jogo proposto.

A máquina poética do philodrama começa a se formar a partir do encontro do

acaso com o texto. O texto existe em um livro, mas precisa de alguém para que se

atualize, para que possa participar em uma linha de vida. A palavra decorar, hoje vista

com desconfiança pela educação, vista como repetição banal traz no seu campo

semântico o afeto. Decorar é passar pelo coração.60 Decorar é se apropriar de um texto,

internalizá-lo. A memória ocupa um papel importante nesse processo, mas mesmo se a

memória falha, quando nos apropriamos de um texto somos capazes de transmiti-lo de

alguma forma se nos deixarmos levar por um fluxo de imagens. O corpo mede a

inscrição de um texto e permite certas expressões do texto. O que se troca, o que se

60 Antenor Nascentes. Dicionário Etimológico Resumido. Instituto Nacional do Livro, MEC, 1966: Do latim. cor "coração".Os antigos consideravam o coração como sede, não só da sensibilidade, mas também da inteligência.

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expressa são energias textuais, são as imagens do texto impregnadas em nós. A troca

dessas imagens pelos participantes criava sentidos frágeis, que tão logo eram

construídos, eram também desconstruídos.

“Aí aparece o tema da diferença, repetição e diferença, e a novidade do velho. Acredito que podemos afirmar um conceito de vida recuperando a novidade do que já é transitado e nos faz criar a dimensão criativa que é o que vamos explorar.”61

A atividade seguinte aconteceu em um espaço aberto dando mais liberdade de

movimento aos participantes. Ela se constituiu na elaboração de partituras corporais

acompanhadas de fragmentos do texto original. Algumas pessoas foram escolhidas para

realizar o exercício. Somente nove pessoas participaram diretamente, as demais

observavam os que estavam no centro do círculo. Em alguns momentos o grupo foi

convidado a repetir a partitura criada pelo participante que realizava o exercício sob o

comando direto do coordenador que nessa etapa assumiu o papel de ‘diretor de teatro’.

O que se buscava na dinâmica era perceber que o condicionamento corporal leva a

distintas qualidades de expressão. Para o coordenador estar no centro da roda

executando o exercício, ou como observador, são apenas distintos níveis de

participação.

“Então o olhar é ativo, é participativo, é muito importante e quando eu estou olhando estou participando de outra forma, mas participo. Então, ninguém fica fora de uma proposta de trabalho como essa que estamos aqui fazendo. Acho que tem que ter isso claro: são diferentes níveis de participação...” 62

Nesse momento, algumas considerações durante o exercício acabam por criar

certa ambigüidade sobre algumas posições que o coordenador defende: ele falou que

esse tipo de exercício poderia ser feito com qualquer texto, Kant inclusive, mas

anteriormente havia defendido a escolha dos textos poéticos por serem metafóricos e

permitirem que o sentido fique em suspenso. Também em relação ao que ele chama de

condicionamento corporal surgem dúvidas, na medida em que ele defende que a técnica

pode ser realizada por quaisquer pessoas mesmo sem ter uma preparação corporal

prévia.

61 R. Sassone, 2007. 62 Idem.

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“Procurar a máxima heterogeneidade do grupo, porque essa heterogeneidade é a única capaz de garantir a homogeneidade da tarefa, então isso é muito importante”.

Mas no decorrer da demonstração de resistência corporal feita com uma

participante que além de professora é também atriz ele comentou:

“Acho que seria muito difícil de fazer se você não tem um treinamento prévio... o que eu fiz com ela por exemplo, esse nível de energia que transmitiu”

O que parece é que o exercício pode ser feito sem requisitos, mas que uma

preparação específica permite rendimentos diferenciados. O último comentário surgiu

após a troca de partitura corporal de alguém com treinamento artístico para alguém sem

nenhum treinamento. As imagens mostram a segunda olhando para a primeira todo o

tempo, com dificuldade de internalizar o movimento, com dificuldades de coordenação

motora. O que ela fazia era copiar o movimento do outro e não escutar o seu corpo-

próprio. Mas ao final, apesar das dificuldades que apresentou para realizar o exercício a

fala da segunda participante foi:

“Eu tive a experiência que sempre me inquietou...da palavra encarnada, ou seja, da palavra incorporada.”

Embora possa se aceitar que pessoas sem treinamento façam os exercícios, é

evidente que uma formação que permita uma intimidade e conhecimento dos limites e

possibilidades que cada um tem, auxilia o entendimento da proposta. Assim, uma

formação de professores que inclua o teatro e a dança é fundamental para professores

que pretendam dar outro espaço ao corpo na sua prática. Talvez isso possibilite que o

corpo vivo esteja mais presentificado nas relações. Talvez isso possibilite que o corpo

vivo esteja mais presentificado nas relações. Diferentes graus de participação, como o

coordenador sugere, sempre estarão presentes, posto que cada corpo tem seus limites e

suas especificações. Condicionamentos prévios liberam o corpo para execuções

automatizadas facilitando a coordenação motora e permitindo assim graus de

participação maiores. Para a configuração do philodrama, a composição de um grupo

diverso abre possibilidades outras, mas não é possível em uma tarde oferecer aos

participantes uma vivência satisfatória dos elementos que o coordenador trabalhou:

resistência, velocidade, coordenação e emissão de voz acompanhada de movimentos.

Claro que a percepção de cada um se altera ao tentar realizar a dinâmica e não é o

quanto se faz ‘bonito’ que interessa, mas ficou evidente que um condicionamento prévio

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é altamente desejável para melhor entendimento da proposta. Contudo, o coordenador

defende a não necessidade de alguma técnica, insistindo na importância maior do

processo poético sobre o técnico. Eis suas palavras:

“O mundo de criação é uma partitura de mundo de possíveis. Alguns se atualizam, mas cada vez que se faz uma repetição temos uma diferença, temos também uma inflação de mundos possíveis e a técnica e importante, mas não e pra mim o foco absoluto do processo criativo... o foco está no processo poético antes que no técnico. Técnica é o fazer com o conhecimento de causa. Poesis é o fazer pra um projeto destinado à contemplação”.

Em seguida transcrevo algumas falas que nos permitem acompanhar o

desenvolvimento da percepção do grupo em relação aos trabalhos.

“Foi uma energia demoníaca, senti um pouco disso aqui eu acho que algumas pessoas criaram esse tipo de energia, aonde podemos sentir a energia dele ou dela, foi bem poderoso”. “Você compartilha diversas experiências permitindo que aconteça uma possibilidade”. “A repetição leva a encontrar um ponto de emoção que muitas vezes pelo processo do corpo que nem ele está falando... você vai mexendo na partitura corporal e experimentando sensações (...) tem vezes que a emoção vem através do desgaste corporal que daí do fundo do poço tu tira aquilo “. “Aquela expressão meio misteriosa do ser som, e aquilo vira algo técnico e vai se misturando, mas não esquecemos a mistura que desfaz, se desconstrói (...) aquilo que nos fazermos se torna uma técnica que se quebra e se refaz. Aí nos estamos de alguma maneira nos desfazendo e refazendo outra vez e estamos aqui de novo”. “Uma experiência fascinante perto do próprio corpo e das dimensões que podemos alcançar entre o corpo a palavra”. “Acho que ele não ensinou a técnica, mas mesmo assim foi uma experiência técnica e outra coisa, eu acho impressionante, eu acredito que podemos encontrar esse espetáculo um bilhão de vezes e sempre ter uma experiência diferente com isso nunca ter um mesmo sentido, uma mesma experiência de se explicar. No mesmo mundo tem infinitos números de possibilidades”. “Eu me pergunto essa forma essa expressão como um técnico assim sabe se a experiência técnica a experiência artística esta feita de técnica e alem da técnica o que mais, assim o que e possível, qual a relação entre a técnica e a expressão artística”.

O coordenador faz um fechamento e menciona algumas atividades que não

chegaram a acontecer: a confecção das máscaras ainda naquele dia, uma atividade

olfativa e a observação da estrelas a partir de mapas do céu que uma participante tinha

levado. Esse é um forte indício da disponibilidade do coordenador em considerar o

acaso na sua metodologia e tentar incorporar o que os participantes levaram. Mas

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também é um indicador de que o tempo das atividades precisava ser revisto. A

observação das estrelas não fazia parte diretamente da proposta e não aconteceu. A

experiência com o olfato também não e não podemos precisar o quanto ela se alinharia

ao philodrama. A confecção das máscaras, fundamental para o mascaramento e a

colocação dos personagens em cena só aconteceu no último dia, ou seja, 02 dias depois

dessa atividade. Antes de encerrar, o coordenador fez uma divisão aleatória dos

participantes em seis grupos de trabalhos para as atividades posteriores.

O problema levantado entre tempo e produtividade permanece, mas não aparece

ainda no discurso de forma explícita. Muitas atividades que foram pensadas para o

encontro não se efetivaram. Isso parece ser um indicador de que o tempo previsto e a

ordem das atividades não foram bem estabelecidos, o que acabou impossibilitando a

apresentação total da metodologia.

3.2 — Argila 63

Quinta –feira à tarde e sexta-feira pela manhã.

Na parte da tarde, a proposta foi trabalhar com argila. Ainda todo o grupo, sem a

divisão promovida na parte da manhã:

“Vamos trazer uma mesa pra colocar argila. Vocês vão pegar uma quantidade de argila e vão amassar, amassar, descarregando as tensões. Uma prática muito interessante pra fazer. Depois cada um de vocês vai fazer uma forma, depois vamos reunir as formas aqui no centro, fazendo uma espécie de escultura de todos e a totalidade do grupo vai fazer a pele da escultura”.

A atividade propunha trabalhar o tato ao contato com a textura da argila. A

construção de uma forma deveria passar pela categoria: foco. O foco é um nível de

atenção que cada um deve dedicar ao trabalho. Parte da atividade foi realizada de olhos

fechados. Quando a forma de cada um estivesse terminada, os participantes deveriam

compor uma obra coletiva, e produzir um discurso sobre ela como se estivessem em um

museu. Cada um tomava o lugar do guia artístico e falava sobre a obra exposta,

completando o discurso do anterior.

A reflexão que se seguia a essa atividade que durou toda a tarde caminhou para o

que seria uma obra de arte — uma interessante discussão, mas que não nos interessa no

âmbito deste trabalho. Na parte da manhã do dia seguinte, atividade voltou a ser com os

textos poéticos, que foram repetidos em fragmentos sobrepostos. Mas na grande roda

63 Itens 13. e do 14.6 ao 14.11 da descrição- Anexo 01.

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que se seguia a essa atividade repetida, o coordenador fez uma observação sobre o

desvio da pergunta na noite anterior.

“A pergunta não é o que nós pensamos porque a estética? E sim... a pergunta era o que aconteceu, o que tinha acontecido com a experiência de cada um, passando pelo corpo, no contato com o material, com a forma, com... o ajuntamento da forma, as conexões, enquanto as eleições sobre a forma até... até que... em um momento a forma impõe”.

Essa colocação levou a uma logoanalise sobre a atividade com a argila que se

misturou com a logoanalise da atividade da manhã.

A repetição de fragmentos dos textos poéticos com as imagens específicas que

cada um falava e o grupo repetia parece ter gerado um cansaço no grupo que passava

por aquela dinâmica pela terceira vez. Credito a essas repetições e a logoanalise que se

segui um princípio de enfraquecimento do grupo, um início de não compreensão do

jogo, de não disponibilidade, de resistência que até aquele momento não havia

aparecido. Muito tempo do curso foi dedicado a essa parte da dinâmica (repetições dos

fragmentos) ainda que sempre com energias diferenciadas. Mas a repetição desse passo

contribuiu para a insuficiência de tempo para levar o curso até a colocação do conceito

em cena. Retomemos para a atividade da argila que será na seqüência levada para a

logoanalise.

Dez pessoas já tinham trabalho com argila. Os restantes nunca tinham sentido

aquela textura. O grupo desde o inicio do trabalho esteve desconcentrado. O comando

“focalizar” não foi apropriado pelo grupo. Ao invés de produzir sua forma

individualmente, falavam o tempo todo, queriam ver as formas dos outros. Comentários

sobre o estranhamento da textura predominavam no início, mas brincadeiras variadas

dominaram o tempo da atividade.

O coordenador pediu para que em determinado momento fechassem os olhos.

Houve uma diminuição do ruído das falas, mas o pedido gerou angústia em alguns que

pediam insistentemente para abrir os olhos. Mesmo assim, o coordenador não pedia

silêncio, deixava a atividade fluir de acordo com as manifestações do grupo. Nessa

atividade, a escuta ao jogo proposto não aconteceu. É interessante observar que o

coordenador não repetia o comando, deixava o grupo no seu entendimento próprio e

depois o fato foi trabalhado na logoanalise. Ali, foram discutidas as condições do grupo

que impossibilitaram a experiência dentro do jogo proposto.

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As condições impossibilitaram a experiência porque essa consistia na percepção

de uma textura e na construção coletiva de uma obra a partir dos objetos individuais

para em seguida produzirem um discurso sobre a obra. Principalmente a última etapa

ficou prejudicada pela desconcentração do grupo que naquele dia não conseguiu

estabelecer o critério de denegação. O estabelecimento desse critério é fundamental para

a passagem que o philodrama se propõe, do mundo cotidiano para o mundo da obra. Ali

estariam mais uma vez desconstruindo um sentido primeiro, mais precisamente, uma

forma primeira, para construir novos sentidos a partir da obra coletiva e de um discurso

construído ao acaso e dentro do mundo da obra — ‘como se’ estivessem em um museu.

Não entraram no mundo da obra, não jogaram o jogo proposto. Isso fica evidenciado

nas falas:

“Eu acho que faltou, nos faltou,... problematização desse tema. Não que faltou vocabulário. Sobrou vocabulário para tão pouca problematização. Faltou tempo para abrir um conceito, para trabalhar com tranqüilidade e assim tanto faz pra nos compreendermos, quanto para escutarmos... Mas esse movimento talvez precise um tempo que a gente não tá... não tá dedicando”. “A atividade da manhã foi muito forte, muito intensa e a da tarde não foi tão bem aproveitada pelo grupo, eu achei”. “O tato talvez seja muito mais difícil pra gente. A fala, a visão, a audição. O movimento... por mais que seja difícil sair do cotidiano é um pouco mais próximo... do que o tato”.

O critério tempo aqui novamente aparece como sendo de produtividade. Muita

coisa sendo feita sem condições de se aproveitar o que as atividades geravam.

“Quando o Ricardo propôs a idéia de que alguém fizesse uma explicação do que era aquilo. E como foi muito assim em cima da hora... sem uma preparação que eu senti falta, foi talvez de ter tido algum espaço para preparar um pouco. Porque mesmo é... sei lá, um músico quando improvisa, ele não improvisa a partir do nada”. “Aquele momento ali com a obra de arte, era um momento muito rico, era um momento de brincar com o conceito, sei lá? Até brincar mesmo... deixar jogar, assim. E eu penso que a gente perdeu... eu penso que a gente perdeu um pouco essa dimensão, da seriedade do jogar. E talvez isso tenha afetado todo o restante da atividade”. “Houve uma confusão interna entre o que era um jogo, o que era uma brincadeira e eu não consegui sustentar a seriedade da fantasia. Aquilo que era para ser um ficcionalmente sério”. “... alguns dispersaram, acho que foi um conjunto de fatores”. “Eu acho que o que aconteceu com o jogo de ontem é que o jogo estava frouxo.... assim.... pra muitos de nós é que o jogo não era suficientemente combinativo”.

A escuta ao comando foi perdida. O critério de denegação não foi efetivado. O

que era para ser um jogo virou uma brincadeira. Exatamente no momento de produzir

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um discurso o grupo “escapou” evidenciando uma dificuldade de construção da

narrativa a partir de uma experiência e não de algum conteúdo apreendido.

“A gente faz Filosofia. Somos suspeitos constantemente de fazer isso que a gente estava brincando de fazer. Sendo que a seriedade estava aí”. “Eu sinto que essas regras são frouxas pra mim. Eu... é... são frouxas, deixam soltas demais. Do mesmo jeito quando você intervém com a fala numa roda você se sente chamado a intervir, eu não me sinto chamada, eu não preciso dizer assim... tomara que não seja a minha vez... porque eu não tenho sabe... nem é... a... eu não sinto força nenhuma para fazer isso... eu não poderia me comprometer com isso...”. “Quais são as regras que chamam, que convidam que envolvem o desejo, que incitam e quais ....e.... e imagino que é muito difícil... colocar o corpo em jogo, colocar a voz em jogo, o tato...é... não é assim... tem uma diferença enorme nos antecedentes de cada um de nós.” “Senti falta na parte mais teórica, vamos dizer assim... da recuperação. da conceitualização, faltou silêncio, faltou problema, faltou que a gente queria o conceito... mas faltou esse ponto do conceito que se torna vital,... quer dizer, faltou à compreensão, por mais silenciosa do conceito. Não sei se uma questão de tempo,... é uma questão de mirá-lo...”. “Há um ponto que um jogo, ultrapassa o campo só da brincadeira ou da regra e se torna vital. Se diz alguma coisa,... que modifica, que possibilita a experiência (...) há um ponto que faz com que isso seja significativo”.

A experiência necessita de uma integridade que não necessariamente se

relaciona com seriedade no sentido de falta de humor, mas sim, na seriedade de se

lançar no jogo inteiramente. De estar consigo mesmo, de buscar caminhar na direção de

uma consciência do que está acontecendo com o corpo-próprio. De perceber as

dificuldades, de entender o tempo, de perceber resistências, de aprender a escutar o

corpo-próprio.

“Queria registrar a distância que eu percebi entre... a experiência e o comentário após a própria experiência”. “Nós não soubemos, juntos, é... valorizar o comentário dessa experiência que foi grandiosa. Aquele problema poderia ser também levado para criança. E levando para criança aconteceria?... será que elas fariam o que nós fizemos? Porque nós deixamos o problema em meio de caminho”. “O humor é assim... um afeto potentíssimo para trabalhar. Eu... recorro muitíssimo o humor, mas eu acho que há diferentes graus de humor, a minha objeção não foi que a gente tenha... é... pelo fato da gente ter rido. Não é isso! Acho que se criou uma atmosfera. de um determinado tipo de humor, sabe? De uma determinada espécie dentro do gênero humor. Que era assim... não da leveza, mas da leviandade.... Não foi uma coisa solta, foi uma coisa frouxa”.

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As falas transcritas apontam para o critério de denegação que é um compromisso

com a ficcionalidade. A passagem do mundo da vida para o mundo da obra é um jogo

delicado e qualquer invasão do mundo cotidiano pode destruir a obra. O critério de

denegação ao se constituir precisa estabelecer um espaço adequado para a verdade

ficcional. Para que isso se estabeleça é necessário uma anulação de certos códigos

cotidianos. Temos que separar, proteger o mundo da obra. São regras constitutivas do

jogo. Ampliações dos gestos cotidianos, repetições que não possíveis no mundo

cotidiano, mas desejáveis no mundo da obra estão nesse universo. No mundo da obra há

uma abertura de expectativas que não precisam ser cumpridas, bastam existir como

razão para que se possa colocar a questão em cena, para se questionar a razão da cena.

Na atividade com a argila a passagem não se efetivou. Alguns fatores podem ser

considerados. A escuta ao que foi pedido não se deu. A descontração do grupo foi

demasiada. Alguns participantes fizeram do jogo uma mera brincadeira e acabaram

arrastando os demais. Era uma etapa que trabalhava exatamente com a possibilidade de

construção de um discurso improvisado, prática que a maioria realiza cotidianamente,

em particular, sobre assuntos de seu domínio. A exposição de como cada um constrói

esse discurso foi evitada levando o jogo para o “riso frouxo”, repetindo a fala de uma

das participantes. O tempo de preparação, apontado por duas pessoas evidencia a

necessidade desse público falar após uma elaboração racional e na impossibilidade

dessa racionalização, pois a imediatez que era parte do jogo lançou o grupo em uma

‘agitação’ desviante.

Observamos por essa atividade a importância do estabelecimento do critério de

denegação e elegemos isso como uma condição fundamental para a possibilidade da

configuração da experiência do philodrama.

3.3 — Violência 64

Sexta-feira à tarde.

A constituição do espaço problema foi a questão inicial da atividade seguinte,

exposta a partir da fala do coordenador

(...) pesquisar quais são as marcas que estão refletidas do originário no primário e que estão sendo consideradas na base de conceitos que a gente tem em relação com o campo da filosofia prática. Conceitos associados à ação (...) eu gostaria de trabalhar o conceito de

64 Itens 15,16,17,19 e 20 da descrição- Anexo 01.

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violência... Como é que a violência chega no seu campo semântico e pode trabalhar com a marca que na corporalidade presumidamente deixou.

Os materiais foram distribuídos e os grupos formados na tarde anterior passaram

a trabalhar simultaneamente. Interessante notar que todos os seis grupos se mantiveram

na sala de convivência. Não houve busca de espaços mais propícios ou mais

confortáveis. Simplesmente receberam os materiais e se espalharam pelo chão da sala

para começar o primeiro desenho. Em outro momento, quando foram convidados a

ocupar novos espaços, cinco dos seis grupos o fizeram. A não mobilidade desse

momento é um indicador da docilidade dos corpos que seguem comandos ou se mantêm

na inércia. Nenhum participante de nenhum grupo se dispôs a buscar, sem o comando

específico, sem a “autorização” do coordenador, um espaço próprio para atividade. Ali

estavam e ali permaneceram. A primeira parte foi fazer o desenho que refletisse as

marcas da violência. Os desenhos foram individuais em uma folha A 4.

A atividade de desenhar sobre a silhueta se relaciona à codificação. As

determinações culturais nos codificam e sobrecodificam, criam imagens superpostas. O

corpo é submetido a essas codificações. A não percepção dessa codificação deixa-nos

presos a um conjunto de códigos apreendidos e não refletidos. As codificações do corpo

são as normas, as regras que usamos para ocultar o corpo-próprio. Mesmo a cultura

fashion que os corpos exibem na moda é uma forma de codificação e, portanto, de

ocultamento do corpo.

Ao propor que desenhassem no papel as marcas da violência na silhueta de um

corpo, o coordenador oferece a possibilidade de lançar em um suporte sensível marcas

pictóricas da constituição da violência no corpo-próprio. À constituição do espaço

problema e ao desenvolvimento da atividade de representação imagética podemos

relacionar os conceitos de Lacan. “Originário é o que corresponde com o real de Lacan, o

primário com o imaginário e o secundário com o simbólico” 65

A atividade se vale de associações livres e abre possibilidade das codificações se

inscreverem no campo imaginário, gerador de imagens. Somente depois, o nível

secundário é acessado. O secundário é a ascensão ao conceito. O corpo, pela sua

imediatez se relaciona com o nível originário.

65 R. Sassone, 2007.

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Estamos falando de sentimentos, imagens e conceitos. A imagem é a expressão

de um percepto, uma forma de perspectivar a materialidade de algo, de um objeto, de

um afeto. O percepto está inserido em uma vivência do perceber. A criação ou

compreensão de um conceito por esse trajeto é a tentativa de trabalhar esse conceito

associando-o a uma vivência.

O passo do philodrama que propõe a representação imagética pesquisa quais são

as marcas que estão refletidas nos campos originário e primário e que estão na base de

conceitos que se relacionam com as ações, posto que estamos na ordem de uma filosofia

prática.

O início da atividade dos desenhos começou em uma grande brincadeira. Nesse

momento o coordenador interferiu:

“Tem uma dimensão de concentração que é importante pra o

trabalho”.

Várias perguntas se seguem em relação às partes formais da atividade: é para

colocar o nome? Tem que ter o número do grupo? Pode desenhar com qualquer cor?

Pode ter palavras?

As falas abaixo são o primeiro indício que a questão da escuta, da obediência aos

comandos começa ser questionada.

“Acho que estou sendo levada pra um lugar que eu não gosto. Então, acho que estamos mexendo muito com esse limite.” “No meu desenho eu não me retratei eu quis retratar aquele que me violenta, vamos dizer assim, incorporado numa pessoa”.

Terminado o desenho fizeram uma descrição oral para o grande grupo. Fazer o

desenho, descrever e depois expor o desenho e sua descrição nos ajuda a perceber a

passagem de uma dimensão afetiva do conceito para sua dimensão simbólica. Do

pictórico para o literário notamos que as pessoas passaram a se referir ao conceito

violência situando-o em determinada circunstância.

Não existe uma violência geral. O que existe é uma violência inscrita em uma

determinada rede da vida. O exercício possibilita entrar em contato com esse

entendimento e verificar que pontos estão fixando para conceituar violência. A imagem

por ser mais originária tem uma potência que a fala não tem. A tematização─ partir da

vivência pelo suporte imagético ─ foi atravessada por uma vivência, um

acontecimento.

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“A imagem tem uma linguagem num nível perto do originário. Constituição do eu. A imagem tem conexão com o originário. Não tenho acesso ao originário, mas tenho acesso a conseqüências de coisas que estão inscritas no originário”.66

Depois da descrição foi pedido para que transcrevessem a imagem para um texto

poético. Esse passo do philodrama é uma tentativa de penetrar na instância secundária

da constituição do processo. Antes de apresentarem os textos poéticos foi solicitado

também que trocassem entre si 05 perguntas individuais sobre o que é violência com o

foco na força da pergunta e não em uma possível resposta. Nenhuma atividade surgiu

dessas perguntas. Elas foram somente elaboradas.

A hipótese que o coordenador trabalha nos parece ser a de que não temos acesso

ao originário, mas é possível termos acesso a conseqüências de coisas que estão

inscritas no originário. O que ele sugere é que se trabalhe o mais próximo da imediatez,

de uma forma que a imagem possa “ surgir” e não ser construída.

Ressalto a importância de se afastar a consciência reflexiva para que a proposta

possas ser viabilizada. Será isso possível? J. Gil nos coloca a possibilidade de traçarmos

um plano de imanência a partir do movimento dançado, num grau de concentração

específica que possibilite que a consciência seja invadida pelos movimentos. A

construção de uma imagem é corporal. O braço que segura o pincel é uma extensão do

corpo que se movimenta. A postura que escolhemos para desenhar também. Tudo isso

contribui para que o acesso às conseqüências e marcas do que está inscrito no campo

originário de percepção possa se expressar o mais livremente possível.

Nesse momento é que considero o critério ‘escuta’ fundamental. Escuta como

abertura para o comando, para as regras do jogo. E aqui começaram as diferenças de

percepção, as dificuldades e conseqüentemente as resistências ao jogo proposto que na

minha hipótese contribuíram para que alguns grupos encontrassem dificuldade para a

conclusão do processo.

Invoco novamente a intimidade com esse tipo de metodologia e as energias que

nelas são descarregadas. As imagens mostram diferentes relações com a folha em

branco. A imediatez para muitos era perdida em demorados olhares para a folha em

branco, aguardando uma idéia. A criatividade não foi considerada um critério. Todos

trabalharam com materiais diferentes e por isso em nenhum momento foi feito qualquer

66 Idem.

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comentário de comparação entre os desenhos, mas o receio do julgamento do outro

aparece em algumas falas. O silêncio não aconteceu em nenhum momento da atividade.

Os grupos terminaram a atividade em momentos bem diversos. Durante a apresentação

dos trabalhos as brincadeiras continuaram e nova intervenção do coordenador se fez:

“Por favor, eu vou pedir a vocês que não façam comentários”.

O grupo dois se manteve mais concentrado. Não que não participassem do ruído

da sala. Era um grupo bastante ruidoso, mas escolherem um canto da sala para trabalhar

e conversavam entre si e não com outro grupo.

Na atividade seguinte, cada grupo deveria fazer em conjunto um desenho

utilizando no máximo meios expressivos não figurativos. Faltando cinco minutos para o

término dessa etapa, o coordenador avisou que estava se esgotando o tempo.

Brincadeiras sobre a regulação do tempo são claramente ouvidas e acompanhadas de

risos.

“Isso é que é violência... não queremos tempo para acabar...”.

Não ter muito tempo coincide com a idéia primeira de fazer, ou seja, da tentativa

de minimizar a razão reflexiva pelo movimento, pela ação. Mas cada grupo teve tempos

diferentes. Não foi um critério rigoroso. Os grupos acabavam em diferentes momentos.

Os tempos diferentes para o término da atividade se referem tanto à elaboração de da

obra quanto ao tempo de racionalização que cada grupo levou ‘discutindo’ o que iam

fazer.

Ao terminarem o desenho deveriam colocar na parte de trás do suporte uma

definição de violência buscando também a maior abstração possível.

Durante a fala do primeiro grupo, um participante faz a observação de que a

definição estar na parte de trás do suporte facilitava a apresentação do desenho, o que

provocou um comentário do coordenador bastante indicativo da sua forma de conduzir a

metodologia:

“Por isso eu indiquei colocar a definição atrás... para poder ler e apresentar... está tudo coordenado aqui”.

A fala do grupo dois se dá sempre na terceira pessoa do singular e alguns

elementos do grupo se revezaram na figura de ‘relator’ do grupo. Todos participaram.

O integrante que ficou mais calado exerceu a tarefa de segurar o desenho para que os

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demais pudessem discorrer sobre a obra facilitando o trabalho corporal de quem falava

da imagem. Na apresentação, a relatora falava sempre em nome do grupo: “Eu coloquei

aqui em tópicos o que o grupo discutiu”. Essa é uma pequena fala que retrata a forma que o

grupo começou a trabalhar. As imagens mostram o restante do grupo bastante atento ao

desenrolar do relatório e outros participantes, além da relatora, fazendo contribuições

com pequenas intervenções no relatório, completando-o.

“Estamos trabalhando a idéia de ausência e presença. E isso que nós tentamos colocar aqui”. “Começamos já desde o inicio... com uma a discussão grande sobre a cor...”. “E quando colocou o primeiro desenho em preto e então começamos a discutir se seria presença ou ausência”. “Discutimos bastante se a violência seria melhor percebida na ausência ou na presença. E chegamos a pensar que então não deveríamos estar excluindo as coisas”

Na fala do grupo um começam a aparecer as especificidades do processo que

estamos investigando como condições de impossibilidade para que o resultado da

atividade seguinte se concluísse.

“Bem... Na verdade o nosso desenho da carga que ficou em cada um. A gente foi desenhando... até riu porque... não teve uma combinação”. “Aquilo que ficou em cada um... a gente foi expressando.” “A definição foi uma grande discussão entre (ri) sobre... as questões lingüísticas aqui (ri) uma grande discussão entre (ri) sobre... as questões lingüísticas aqui (ri)”. “Foi a violência encarnada. A discussão do grupo”. “Mas saiu um texto que assim... é nosso”.

Em seguida deram a definição. Somente duas pessoas do grupo falaram. Os

demais integrantes não se manifestaram.

No grupo cinco aparecem as falas que identifiquei na primeira parte desse

capítulo como sendo falas individuais dentro do grupo:

“Sou eu que vou falar? A gente não conversou sobre a concordância da definição e do trabalho que fizemos”. “Vou responder pelo grupo... Eu acho que a gente estava pensando em potência do ponto de vista que não distingue cultura e natureza”. Eu só queria voltar um pouco atrás aqui porque nós não havíamos realmente discutido o desenho e a definição.

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O grupo três não chegou a uma definição e acabaram apresentando três

definições que podem ser lidas no item 16.1 da descrição.

“Acho que a discussão no grupo... na verdade a gente não chegou a uma definição para a qual estivéssemos plenamente satisfeitos”.

No grupo quatro somente uma integrante apresentou o relatório. Outros

participantes falaram bem depois, mas participando da discussão de outros grupos.

A apresentação das definições gerou bastante polêmica provocada por distintas

compreensões teóricas dentro do grupo e não diagnosticadas. Também, a essa altura do

curso, mini-grupos se formavam. Os afetos e desafetos se manifestavam nas rodas de

conversa, na mesa de refeição, nos passeios. Enfim, afinidades que aproximam ou

distanciam as pessoas dentro de qualquer convivência. Mas nenhum desagrado foi

exposto durante as atividades de reflexão do grupo até esse momento: coisas latentes

sobre pontualidade, disponibilidade, concentração, dispersão, apareciam nos bate-papos,

por vezes interrompidos com a chegada do equipamento de gravação, mas construídos

sem constrangimento longe da câmera. Nas rodas de logoanalise se limitavam a fazer

discussões teóricas. As discussões mais agressivas como a que aconteceu na roda das

definições têm a ver com ‘afetos latentes pedindo para virem a tona’.

O coordenador leu uma definição de violência:

“E eu vou ler agora uma definição de violência primária para, depois problematizar contrastando esta definição com a totalidade de definições que estamos aqui considerando: A violência primária em consideração com o ser humano é uma ação mediante a qual se impõe ao dispositivo psicofísico do outro, um pensamento, uma eleição, uma ação motivada, em o desejo do que o impõe apoiado pelo objeto que corresponde para o outro a categoria de necessário”.

Em nenhum momento retomamos a essa definição para confrontá-la com as

demais, de acordo com o enunciado. Também voltou a mencionar a confecção das

máscaras:

“E depois na última atividade da noite, vamos construir as máscaras, vamos tentar construir as máscaras da violência”.

Porém, a própria dinâmica do trabalho levou ao coordenador a adiar novamente

essa tarefa. O coordenador manifestou seu desejo de levar o trabalho até a reflexão da

violência no campo educacional.

Eu vou adiantar uma coisa, quando se chegarmos ao momento do encerramento, eu desejo colocar a violência no campo educacional, o espaço de reflexão, que é importante para todos nós. A violência na

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situação da aula, na situação institucional e na situação supra-institucional.

Percebemos nessa fala do coordenador que a proposta caminhava para a

colocação de um conceito — no caso a violência — inscrito em uma determinada rede

da vida. Mas esse momento não chegou a se concretizar efetivamente no desenrolar do

processo. O grupo não parece acompanhar os comandos do coordenador. A discussão

foi sobre ser ou não a violência moral, ser ou não a violência uma ação humana. O

coordenador pede:

“Agora eu peço que a gente reflita sobre o experimentado hoje, por favor. A gente tem que refletir sobre o que, tinha feito isso sim? Isso é parte da proposta sim ”?

Mas a discussão teórica continua. Indicador de certa dificuldade de falar sobre o

sentir, o perceber o que aconteceu a partir do corpo-próprio. As falas que se sucedem

são a construção de um diálogo a partir da fala do outro e não do sentir.

“Eu fiquei pensando um pouco na intervenção da Priscila.” “Gostei da formulação das perguntas achei que tudo suscitou muitos pensamentos sobre a questão da violência. E sobre outras questões...”. “Qual é a potencialidade disso, porque é interessante...Temos que colocar aqui em palavras... Pensar de um jeito e não de outro... Mas temos que ter condições para colocar em palavras aqui, e essa dimensão de passar do afetivo para o pensamento”.

Essa última fala transcrita, traz à tona essa dificuldade de forma consciente. Nas

anteriores é evidenciada pelo discurso sobre outra coisa que não o solicitado.

A última etapa das construções pictográficas também foi coletiva. Foram

distribuídas duas folhas de papel pardo para cada grupo e pedido que fizessem uma obra

coletivamente. O coordenador chamou a essa última obra de “mapa da violência”. Desse

mapa deveriam passar para a performance, ou seja, pequenas estruturas dramáticas.

Faço aqui uma divisão: o item 3.3.1 desse capítulo trata da relação do

philodrama com o corpo e para isso buscamos uma possibilidade de pensar o corpo na

construção das imagens que o philodrama propôs. Daremos especial atenção ao papel

da escuta, segundo uma análise de R. Barthes.

No item 3.3.2 retomamos a pergunta sobre a possibilidade ou impossibilidade de

uma experiência de pensamento utilizando os grupos um e dois como exemplares de

diferentes relações com os critérios que nos guiam, em especial nesse caso, a escuta.

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3.3.1 — Sobre os desenhos.

Os desenhos gerados não são apresentados como objetos de arte. São grafismos

dentro de uma prática estética em um processo interdisciplinar. Não é parte dessa

pesquisa deter-se na expressão gráfica dos desenhos para uma análise mais detalhada,

mas é importante notar que o estágio de desenvolvimento artístico dos participantes cria

uma polifonia de sentidos. Os desenhos não foram analisados na sua criatividade. São

considerados partes de um processo ‘criativo-comunicacional’, que busco relacionar

diretamente com a relação ensinante. Tanto do ponto de vista de compreensão de

conteúdos como no da formação de professores.

O conceito proposto como tema é o ponto de partida para uma série de

transposições de linguagem. As codificações primeiras, ou seja, as representações das

marcas da violência inscritas no corpo funcionam como disparador e coluna estruturante

do trabalho. Não há uma oposição entre o verbal e o visual. O que se busca é uma

relação que permita ir desvelando memórias corporais. Sair do espaço de pré-

compreensão para o da compreensão conceitual de forma vivenciada e não meramente

teorizada.

As imagens da violência na narrativa visual correspondem aquilo que é visto e

percebido por um ângulo exclusivo do ponto de vista de cada um. Cada desenho traduz

uma compreensão singular ainda em alguns desenhos possam aparecer elementos

comuns.

Nos desenhos, o discurso visual nasce de um espaço problema definido, no caso

a violência. Essa é pré-sentida em contexto verbal e extraverbal, dentro do qual

incluímos a linguagem corporal.

A imaginação, as idéias imaginativas que produzimos, é função do corpo. Talvez

possamos pensar a imaginação como uma instância de ‘estruturas’ que nos afetam.

Formas da cultura influenciando essas representações imagéticas de objetos ou

narrativas.

Essa capacidade do corpo de evocar imagens, aonde se apóia o simbólico, não

pode dar uma totalidade de sentido de um conceito. Esse se relaciona com outros

conceitos em rede Assim, na série de transposições textuais que o philodrama opera se

realiza uma trajetória de ‘energia’, de atmosfera. A variedade de cenas representadas

pelos desenhos exemplifica a diversidades de formas existentes na pré-compreensão, no

pré-sentir, no pré-conhecer.

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O que podemos falar sobre o que conhecemos não é a exatidão de um

pensamento, posto que vivemos sensorialmente em espaços pré-conceituais. As relações

com as imagens do dia-a-dia são construídas individualmente e na forma como cada um

apreende a realidade e a internaliza como memória. A compreensão de um conceito se

dá inicialmente de forma singular.

Aprendemos a estabelecer certas representações do mundo através de registros

corporais que nos permitam lidar com o prazer ou a dor nascidas da ‘realidade’. Na

expressão estética o reconhecimento do conceito passará também por um processo de

experimentação.

O movimento de organizar as imagens despertadas pelo tema acontece de modo

mais livre ou caótico do que a construção do discurso verbal estruturado. Memória,

imagens, entendimento, metáforas, cores chegam misturados, fragmentados.

Na transposição primeira — a descrição — a linguagem se organiza. Essa

organização também é parte do processo criativo que busca organizar e dar forma aos

signos da linguagem visual. Uma lógica da linguagem ganha o sentido para que possa

ser assimilada no convívio social. A criatividade pela expressão imagética possibilita

ampliações de entendimentos, de sentidos que poderão ser responsáveis por novas

formas de ser-no-mundo. A capacidade especulativa em torno de um conceito é um

modo cognitivo do pensamento que busca relações e possibilidades por diversos

caminhos. O philodrama se mantém aberto no cruzamento da singularidade para a

passagem da linguagem verbal.

Os desenhos individuais, como representação da compreensão de violência de

cada um resulta da ‘escuta’ e capacidade de imediatez que alguém possa se permitir.

Barthes define a especificidade da escuta ao descrever o ouvir como um fenômeno

fisiológico e o escutar como um ato psicológico. O autor aponta que a escuta se define

pela intenção do ouvinte. Ele propõe três tipos de escuta. No primeiro, o ouvinte dirige

a sua audição para índices, equiparando os sentidos do homem e dos animais. A escuta

como um alerta. No segundo, o que se tenta captar são signos, como na leitura. Nessa

escuta elaborada ocorre uma decifração dos códigos de uma linguagem. No terceiro tipo

a escuta ocorre na relação entre os interlocutores, como afirma Barthes:

(este tipo de escuta), não visa – ou não espera – signos determinados, Classificados: não aquilo que é dito, ou emitido, mas aquele que fala, Aquele que emite: deve ser desenvolvida em um espaço intersubjetivo, em

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Que ‘escuto’ na verdade quer dizer ‘escuta-me’; a escuta apodera-se, pois, Para transformá-la e lançá-la sem cessar no jogo da transferência, de uma Significância geral, que já não é concebível sem a intervenção do inconsciente.67

Estamos falando desse terceiro tipo de escuta e com um certo deslocamento.

Considero aqui a possibilidade da escuta do corpo-próprio. Entendo escuta como uma

audição afetiva, destacada do auditivo biológico. Escuta como uma função da

inteligência corporal, seleção e percepção imediata. Escuta que leva a corpo de

consciência, ao corpo-mente sem prioridade do modo de pensamento sobre o modo

extensivo. O processo cognitivo dessa escuta se dá no imaginário que se apropria das

informações sensíveis e as transforma em simbolismo. O corpo entra nesse processo

como provedor dessas imagens. O contexto e a cultura funcionam, no caso do

philodrama, como demarcadores da extensão da influência dessa capacidade de escuta

nos desenhos, propiciando tendências mais conceituais ou mais perceptivas.

Assim a construção de um mapa corporal participa da tentativa primordial do

homem de “tradução do real”. O desenho sempre esteve presente nas diferentes épocas e

culturas nessa mediação entre o que alguns chamam de psiquismo e o ‘real’. Se

pensarmos que um desenho se insere dentro do universo da linguagem, devemos

considerar que somente através de um repertório limitado de códigos poderemos ter o

entendimento de uma mensagem veiculada por ele. Os desenhos apresentados são

representações e passam por uma qualificação semântica e sintática da comunicação

visual.

Substantivos tornam-se objetos, personagens. Os adjetivos se qualificam pelas cores, tamanhos, intensidades dos traços na escolha e configuração dos elementos. Verbos podem conduzir o posicionamento e relações entre as figuras e assim por diante. 68

67 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Tradução de Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 217. 68 Alencar, Salmo Dansa. O começo é o fim pelo avesso: a transposição da narrativa oral para o desenho infantil / Dissertação de mestrado orientador: Gustavo Amarante Bomfim–Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Artes e Design.2004.

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No processo criativo do philodrama, por exemplo, o elemento central será

sempre o participante, que ao desenhar, constrói e explora suas percepções. Aquilo que

descobre no percurso é assimilado como novo repertório cognitivo. O fazer o desenho é

parte de um aprendizado que se fundamenta no fazer estético. O desenho é então

ferramenta e produto da atividade.

A linguagem visual utilizada para codificar, projetar e sinalizar a compreensão

primeira de violência se estende como re-formuladora dos signos para novos

entendimentos do mundo. Na transposição da textualidade visual para a descrição as

qualidades sintáticas e semânticas dos desenhos tornam-se possibilidades na narrativa

que se segue em relação ao conceito, tornando-se assim ampliadoras de sentido.

Há uma dupla via de significação própria da transposição, uma vez que a

decodificação da linguagem visual retorna sempre para a linguagem verbal. Por um lado

o sentido subjetivo que a palavra atribui à imagem ou inversamente o sentido objetivo

que a imagem atribui à palavra. Mas, a essa altura se faz necessário criar uma ponte

entre a linguagem visual e a linguagem corporal que é meu ponto de partida.

Para investigarmos em que medida o philodrama se relaciona com a linguagem

corporal temos a premissa de uma inexistência de uma gramática do corpo e também da

imagem. Isso nos faz perceber que a linguagem verbal será sempre limitada para

descrever e analisar plenamente uma imagem ou um movimento. Parece existir um vão

entre a criação e qualquer análise dessa expressão.

Partimos de uma compreensão de linguagem corporal que não se limita a um

léxico gramatical. Isso nos coloca um novo problema, a impossibilidade (dificuldade)

de linguagem sem uma analogia com a linguagem verbal.69 É pela linguagem verbal que

podemos nomear, descrever, narrar, de forma a nos fazermos ser compreendidos. Mas

esse não é o foco dessa etapa da minha pesquisa e deixo esse problema para

investigações posteriores. Vamos à relação do philodrama com a linguagem corporal na

produção do desenho.

Na produção de um desenho, a visão se alia ao tato e ao movimento corporal na dimensão da marca que, aliado ao percurso de aproximação e recuo do olhar possibilita percorrer desde particularidades de um ponto até a totalidade.panorâmica de uma paisagem. Essa cinestesia - sensibilidade propioceptiva, sentido de

69 Essa reflexão nos leva para a passagem de uma linguagem particular para uma linguagem social, ou pela impossibilidade de uma linguagem particular. Tema relevante e que pretendo desenvolver em estudos posteriores. No nível dessa pesquisa não me sinto preparada para discutir esse problema específico da filosofia da linguagem.

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percepção de movimento, peso, resistência e posição - tem influência decisiva no desenho. A sensibilidade e o contato com o instrumento, durante o ato, é total, o lápis torna-se uma extensão do corpo e nesse momento a materialidade do papel, lápis e do corpo tornam-se como um sistema de códigos.O material responde, dialoga com o autor; a resistência, o tamanho, a lisura respondem à força, à continuidade, à repetição e à posição, estabelecendo, pela proximidade, uma relação de intenções e limites. A composição do desenho lida com a simultaneidade e integração entre a sensibilidade do tato, a inteligência do olhar e a fisicalidade - movimento do corpo.”70

Percebemos que a articulação mental necessária para as transposições textuais

faz retornar a dimensão intelectual do olhar e perdesse a imediatez do corpo e a sua

sensibilidade proprioceptiva. Deste modo, o entendimento do movimento — agora

transformado em imagem — corre o risco de ser parcial, estratificado, carente da

expressão corporal que se dá somente pela atmosfera.

A representação artística e a descrição posterior colocam na fala do narrador

uma formulação onde o participante vai escolher, retirar, experimentar e avaliar com

critérios próprios o discurso que articula. Devemos considerar também as influências do

outro tanto na construção do desenho, como na análise do discurso. Por isso, a escolha

de um tratamento mais particularizado ou estereotipado da imagem tem uma relação

direta com a capacidade de articular percepções e entendimentos, e até mesmo com

diferenças técnicas.

A articulação da linguagem corporal e visual para o processo cognitivo é uma

possibilidade de vivência relacionada à prática artística e educacional, sem relação com

os sistemas das escolas de arte. As analogias entre as formas e a subversão das funções

e significados fazem parte do jogo criativo. Mas o que interessa não são as diferenças

técnicas entre os desenhos e sim, as diferentes narrativas que se relacionam de forma

circular e alimentam a relação entre teoria e prática, entre conhecimento e vivência.

O espaço no qual esse processo acontece inspira um olhar onde a questão da

subjetividade emerge como fator de diferenciação demarcando as diferentes caligrafias

e séries literárias. No caminhar do philodrama passamos por sete níveis de transposição

70 S. D. Alencar, O começo é o fim pelo avesso: a transposição da narrativa oral para o desenho infantil. 2004. Dissertação de Mestrado, PUC: Rio de Janeiro.

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textual. Desenho individual, descrição oral, texto poético, desenho abstrato, definição,

mapa da violência e estrutura dramática — ou performance.

Percorrer esse trajeto significa tentar compreender a circularidade que configura

a pesquisa. O conceito — espaço problema: violência — é disparador e a ele

retornarmos na performance.

Entender o conceito de violência, mas entendê-lo de forma ampla, porque há uma violência constitutiva, há uma violência que tem a ver com as mediações que construímos. 71

3.3.2 — Performance 72

Os grupos quando terminarem de fazer os mapas tem que desenhar agora uma performance grupal para apresentarem o percurso com alguma informação que seja relevante em seus mapas. Mas tem que ensaiar. Vai pra o outro lado. Lá pra baixo.73

Incentivados pelo comando, os grupos buscaram espaços alternativos para

ensaiar a apresentação que é chamada de performance dentro da metodologia. Em

nenhum trabalho anterior foi pedido para que os grupos permanecem no mesmo espaço,

mas sem o comando nenhum grupo tinha ainda se deslocado. A partir do comando,

houve uma natural dispersão e somente um dos grupos permaneceu na sala de

convivência.

O grupo um pareceu não ter entendido bem a proposta. Temos imagens nas

quais os integrantes do grupo questionam o coordenador sobre as premissas para o

trabalho: entendimento do que seria uma máquina poética, se deveria ter uma produção

de texto ou deveria ser improvisado.

“Temos que produzir um texto...”.

“Podemos mexer com a premissa ”?

“Mas a produção de texto... Nos somos de texto... Porque pode ser de

movimento...”

71 R. Sassone, 2007. 72 Itens 19 e 20 da descrição- Anexo 01. 73 R. Sassone, 2007.

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A primeira resposta de do coordenador é:

Texto dramático feito pra por ser em cena...

Mas a dúvida parece permanecer.

É o que você está pedindo agora?

O coordenador tenta responder. Outros integrantes interferem com outras

questões. Um integrante de outro grupo toma a palavra do coordenador e tenta

solucionar a dúvida do outro grupo produzindo uma intermediação indesejável para um

processo de aproximação a partir de uma vivência própria. Mas o coordenador não

interferiu.

Passam em seguida a trabalhar para apresentação da performance. A preparação

de nenhum grupo foi acompanhada na íntegra. O registro foi feito com somente uma

câmera e por isso o material coletado são fragmentos das preparações. Feita as

apresentações houve um pequeno intervalo e na volta a logoanalise final para a qual o

coordenador pediu:

Vou fazer uma proposta a vocês de falar especificamente do ponto de vista do fazer, por em ação, o conceito, coisas. O que fizemos todos juntos... depois... sobre os problemas e as condições de impossibilidade para fazer, é muito importante pra nós, vamos focalizar as coisas, as produções quando são fluidas. Produções que podem acontecer e desenvolver... também é importante para a nossa tarefa compreender quando não dá pra resolver.

A logoanalise que se seguiu foi uma longa discussão que tangenciou o fazer, o

processo, mas que também se abriu para as dificuldades de acompanhar o ritmo dos

trabalhos, um cansaço, um não entendimento das regras, um desabafo de alguns sobre

estarem sendo “guiados” demais. Isso pode ser melhor acompanhado na descrição.

Como exposto anteriormente, dois grupos serão acompanhados nessa etapa da

análise. A seguir, algumas falas da reflexão final dos integrantes de ambos os grupos

eleitos que elucidam os critérios adotados.

Grupo 01-

“As dificuldades apontadas aqui vão aparecer no âmbito da minha compreensão, individual e as meninas que quiserem se colocar, cada uma eu acho interessante, mas vou tentar ser ao máximo parcial... a

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filosofia não deu conta de tratar com o bombardeio de idéias, eu senti que a filosofia em nosso grupo foi, não sei, incompetente, foi incompetente, em nosso grupo, de lhe dar com as diferentes e idéias e diferentes comportamentos”. “Agora acredito assim, e reforço a palavra aqui mencionada no sentido de que é preciso que cada um aqueles mais veteranos que estejam já acostumados ao encontro enfim, tenha esse cuidado com a diferença no sentido do comportamento, da fala, da compreensão do que venha a ser filosofia, enfim, para que as coisas aconteçam, que seja um encontro com mais prazer, não com menos”. “Houve uma grande confusão entre processo e resultado, processo e resultado”. “Nós partimos pra discutir o fazer, o pensar e o avaliar, nós fomos pra avaliação dos problemas... avaliamos, discutimos, achamos que tínhamos chegado a conclusões, tanto achamos que voltamos para terminar de preparar a performance, quando chegamos à performance, percebemos que nós não tínhamos avaliado, outro equívoco não sei se filosófico ou... não sei se comportamental mesmo do ser humano da nossa condição, enfim não sei, mas nós não conseguimos dar conta de que o problema não tinha sido resolvido na nossa discussão anterior ao jantar”. “O problema apontado no grupo não foi qualificado, porque eu já tô me perguntando” será eu o grande problema do grupo? “Tem outros aí se perguntando” será eu também sou o grande problema do grupo?”Assim ficou... o problema não foi qualificado e fato, é isso que eu tinha q colocar”. “Não me preocupa tanto não trazer nenhum resultado, sinceramente, talvez o grande tema seja esta questão de êxito, que sempre acaba se impondo a vida não tem nada a ver com êxito.” “A questão de pensar sobre a diferença, quão diferente... com quanta diferença agente pode lidar, ou que tipos de diferenças a gente ta preparado pra lidar, pra mim é um das questões que se coloca”. “A questão do produto final, é outra questão que aparece em algum momento, surgiu o do grupo, o grupo não tinha feito, a performance pra apresentar, mas em algum momento apareceu a necessidade outras atividades tínhamos conseguido produzir alguma coisa para apresentar, mas o grupo desse meu ponto de vista já não estava funcionando bem, e hoje foi como que fez uma explosão ... e a questão foi colocada, mas a relação do processo com o produto agora me pergunto se quando você tem um produto muito interessante é fruto de um processo muito interessante.?” “Também eu vivenciei como dificuldade desde é já pessoal né? Desde de colocar ou como se colocar num grupo em que você não está se se sentido cômoda, confortável... você tem essa sensação e ao mesmo tempo tem a idéia prévia de que todo mundo pode trabalhar em grupo, você tem que poder trabalhar em grupo, eis a questão, mas você não consegue”.

Grupo 02:

“O grupo acolheu... pelo menos o que nós estendemos dos comandos foi falar o mínimo não na hora da discussão da construção das questões, mas, por exemplo, na hora da representação. O Ricardo falou” não falamos, fazemos “e penso que foi muito fundo. Tivemos hoje, discutimos muito a questão da ausência, da presença e isso foi

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importante para o nosso grupo. Em diversos momentos estávamos incompletos, uma hora um foi ao banheiro, uma hora outro sumiu, uma hora outro foi ver a foto, mas sempre voltávamos e pensamos que a ausência foi muito produtiva pro nosso trabalho, e quando um não tava a gente tinha que fazer sem ele, e quando ele entrava ele tinha que dar conta da ausência dele” “Penso que também o fazer tinha muito com o nosso conceito, e penso que foi maravilhoso, foi muito fluido, cada um botava uma pecinha, sugeria uma pecinha, fazia alguma coisa”. “Fiquei pessoalmente muito satisfeita com todo o processo”. “Pensava e o outro fazia, como se pensasse sem falar na mesma coisa”. “A harmonia do grupo foi muito interessante, e não havia muita combinação expressa, mas havia um encaixe de coisas de falas desde o início até o último momento”. “Muito interessante, tudo se encaixando, e um falava uma coisa e eu completava aquela idéia que completava com outra e de repente... Percebi nos outros grupos a dificuldade de chegar nisso, e eu queria justamente naquele momento ... Pra gente foi tão fácil”. “E eu fico me perguntando se não influi nisso metodologicamente a quantidade de pessoas, a heterogeneidade do grupo, ou mesmo o uso das palavras, as terminologias numa discussão coletiva, porque os conceitos que nós estamos tentando trabalhar, estávamos tentando trabalhar a partir de outros”.

Considero que a dificuldade do grupo um de apresentar a performance como

resultado final do processo se deve ao tipo de escuta que aconteceu com o grupo. Fica

evidenciado pelas falas que o grupo dois aceitou a regra do jogo de se lançar e buscar a

imediatez que a proposta exigia. Fazer! O grupo um ‘racionalizou’ tentando achar um

consenso. Buscou um entendimento pela razão, compreendida na perspectiva dualista.

Tentou decidir sobre o que fazer. Dessa forma a consciência se manteve somente

reflexiva. O não “se lançar ao fazer” não criou possibilidade de fazerem a passagem

para o corpo de consciência. A definição dos dois grupos é exemplar dessa postura. A

definição deveria acompanhar a idéia de máxima abstração possível começada no

desenho coletivo.

Definição do grupo 01-

A violência é um movimento que se materializa no processo civilizatório de cultura e de linguagem. É uma afecção na forma da produção e da repressão no fluxo das relações, autorizado pelas sociedades em seus diferentes tempos históricos e sujeitos. Essa violência se manifesta nas diferentes instituições e legitima-se como ação que se quer educadora e formadora de sujeitos.

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Definição do grupo 02-

A violência é a experiência da erupção da ausência na presença

Consideramos que o grupo um não se permitiu — por resistências individuais ou

por forças liberadas na ‘atmosfera’ — a passagem para um corpo de consciência, onde o

movimento, o fazer, determina essa possibilidade. Possibilidade de entramos em zonas

de movimentos imperceptíveis que nos conduzam e provoque, o deslocamento da

compreensão de corpo como um objeto para uma possibilidade de percepção e ser no

corpo-próprio. Sem considerar nenhum mérito psicológico ou dificuldades individuais

para participar de trabalhos em grupo, compreendo as resistências como forças

imobilizadoras que atuam no não-lugar, no espaço que se dá antes da linguagem, na

busca dessa, na busca pela infância. Forças essas que podem ter atuado como vetores de

impossibilidade para a experiência.

A título de conclusão da pergunta sobre as possibilidades e impossibilidade de

uma experiência de pensamento aponto o se dispor a jogar e o saber fazê-lo como

questões importantes. Entendo a disposição como uma condição para qualquer jogo e o

saber jogar como a capacidade de ampliar a relação do corpo-próprio com a

expressividade seja ela motora ou verbal. Ao me referir à expressividade verbal não é o

“falar bem”, o dom da oratória, mas a capacidade de conectar sentimentos e palavras,

ainda que essas sejam insuficientes para traduzir tudo aquilo que sentimos. Clarice

Lispector nos ilumina nessa idéia quando pergunta: “Se recebo um presente dado com

carinho por pessoa de quem não gosto - como se chama o que sinto? 74

Expressar bem passa por uma desconstrução dos hábitos que ajude a sair do

politicamente correto, do uso simplesmente educado de se expressar, da política da

“minha liberdade termina onde começa a do outro” e entrar na zona de afirmação das

potências da vida. È criarmos possibilidades de estar ‘presente’ consigo e com os outros

e construir coletivamente novos sentidos que possam ser orientadores de novas formas

de ser. É aprender a sermos criativos no jogo. “Viver é muito perigoso” ! 75

Assumindo esse risco, na introdução me lancei em primeira pessoa, tentando

manter a estreita relação com a voz interior que ecoa no meu corpo, na busca de um

74 LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 300. 75 G. Rosa. Grande Sertão: Veredas. 35ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p 70.

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sentido que talvez só possa ser encontrado fora da lógica, em um não-lugar. Na

conclusão, volto a me lançar sinalizando uma particular visão do corpo na escola.

No quarto e último capítulo apresento algumas considerações como conclusão

dessa investigação sobre corpo, filosofia e educação.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento meditante brilha através das regiões essenciais da experiência como uma aurora que preserva a noite para que o

dia advenha- e tudo isso como se não fosse nada. 76

Este capítulo apresenta um ponto de vista bastante particular da visão dos corpos

com os quais cruzo diariamente dentro da escola em que trabalho, e que não é muito

diferente de qualquer outra. Visão particular, pois faz parte do que na introdução

indiquei como um caminho próprio da aproximação com a filosofia. Em seguida, faço

algumas observações buscando respostas para as perguntas que surgiram ao longo do

trabalho.

Buscar respostas não é exatamente dá-las. Esta pesquisa se encerra, após dois

anos, em um estágio primeiro que é o do desenvolvimento de uma forma de expressão,

a escrita. É necessário aprender a escrever. Discursar sem se perder. Buscar argumentos.

Filosofar. Foi esse exercitar que me trouxe até aqui. Deixo os verbos no infinitivo para

manter a relação com a ação no pensamento.

Eu quero descobrir ‘o corpo’. O que me interessa fundamentalmente é o corpo. E atualmente eu já sei que é mais do que o corpo [...] Então por trás da coisa corporal, é o que vem de mais profundo que interessa. 77

Essa pesquisa nasce da inquietude de meu encontro tardio com a filosofia. A

introdução conta um pouco dessa história. Vim do mundo das artes no qual, na maioria

das vezes, se trabalha de pé no chão, sentindo o seu próprio suor na pele e o cheiro do

colega ao lado. Um mundo onde excessos podem virar dores, sangue. Onde a

inquietude corporal é percebida como “muita energia”, de uma forma positiva, onde

uma compreensão do movimento a ser feito se dá no músculo que o fará e a totalidade

76HEIDEGGER, Martin. Esboços tirados do ateliê. Neuer Zürcher Zeitun, 26 de setembro de 1959. Tradução de Antônio Abranches. O Nó Górgio. Jornal de metafísica, literatura e artes. RJ.2001. Dezembro.a. I,n..I, p.16. 77 Fala de Lígia Clark com terapeutas descrita no catálogo do projeto “Lygia Clark, do objeto ao acontecimento”. O projeto, criado por Suely Rolnik, foi uma retrospectiva da artista apresentada em várias instituições de 1979 a 1999, entre elas, o Paço Imperial do Rio de Janeiro. Cf. Clark, 1998.

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dessa compreensão se dá na repetição que de repente possibilita “chegar lá”. Tinha a

idéia de um continuum em mim e considerava isso o “normal”. Depois de anos sem

nunca refletir sobre o que seria pensar, o que seria pensamento, inicio uma formação em

filosofia e encontro uma outra realidade. Nesse mundo não havia suores, não havia

sangue. Esse mundo pedia a imobilidade, a concentração quase estática e tive

dificuldade de entender porque o pensamento é pensado apenas dentro da cabeça. O que

sei que penso, e até o que eu não sei que penso, acontecem no corpo inteiro.

No início dos estudos, estranhei o desprezo ao corpo dado pela filosofia desde a

antiguidade. Quando cheguei a autores como Spinoza e Nietzsche achei ter encontrado

uma valorização do corpo e a eles me lancei. Mas, ainda assim, era sentada que eu

estudava. As partes do corpo mais usadas além dos olhos eram a ponta dos dedos e as

nádegas. Outras dores chegaram. Mas eram dores diferentes. As de antes, das aulas de

dança, produziam um certo prazer, as de depois, da escrivaninha, eram má postura

civilizatória. Passei a trabalhar sentada e ter a impressão de uma raquitização muscular

das partes inferiores do corpo.

Nesse duelo interno para tentar entender mundos tão distantes e que disputam o

entendimento do que nos rodeia, me transformo em professora de filosofia do ensino

médio. Na escola, ao observar o corpo dos meus alunos, achava que as expressões deles

não eram compreendidas ou nem sequer notadas. Corpos retraídos que mal cabiam nas

carteiras. Corpos silenciados pelas práticas autoritárias. Corpos presos em horários fixos

sem que pudessem se movimentar. Ao encontrar um aluno fora da escola mal o

reconheci e percebi que na escola aquele corpo uniformizado ficava invisível.

Nunca consegui sentar durante uma aula e a surpresa chegou também por ai. Dar

aula é uma atividade física, não meramente intelectual. Saio exausta de um dia de

trabalho como se tivesse corrido uma maratona. Enquanto saio, em meio a uma

exaustão nada prazerosa do meu corpo, o que vejo são corpos libertos fora da sala de

aula. Corpos que se largam em cima dos outros nos bancos do pátio, corpos que se

requebram ao som do funk dos pequenos aparelhos de áudio que os alunos carregam

consigo, sem esquecer de levar para a escola, como esquecem os livros. Convidada

pelos alunos a ir a um baile funk em um sábado de dezembro de 2004, no bairro Rio das

Pedras, na cidade do Rio de Janeiro, vi meninos e meninas que nunca abriram a boca em

sala de aula vibrarem cantando. Meninos dançando com meninos, se tocando, meninas

com meninas. As aulas que abordei o preconceito como tema, entre eles o sexual,

pareciam ter perdido o sentido.

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Enfim, no pátio, na rua, no baile, os corpos dos meus alunos pareciam existir. Na

sala de aula parecia ser um grande fardo a produzir calor. Do lado de fora da escola o

grito “estou aqui”, me olhem. Dentro, o silêncio do desinteresse. Barulho, levantar da

carteira, movimento é chamado de indisciplina.

As dificuldades iniciais da prática passaram por essas questões. Eu mesma,

inquieta demais, não conseguia e nem achava que eles precisassem ficar quietos, mas

estávamos em uma instituição que exigia isso. Além da dificuldade de se relacionar com

os corpos presentes, como fazê-los se expressarem, se minha voz precisava ecoar com a

matéria que seria cobrada na prova? Ao mesmo tempo, outras dificuldades específicas

da disciplina não demoraram em se manifestar.

É possível ensinar filosofia? A Filosofia, como disciplina escolar, não deve ser

entendida como mera transmissão de conhecimentos. Isso não quer dizer que a

disciplina não tem conteúdo. O conhecimento da história da filosofia no segmento da

educação básica é importante, mas não creio que devemos nos contentar somente com

isso.78

Em busca de melhoria da prática de lecionar, o desprezo pelo corpo, próprio das

teorias filosóficas que defendem o dualismo, e que ainda constituem o paradigma

filosófico que dita as normas e regras dentro da instituição escolar, passou a ser objeto

de uma reflexão contínua. A visão do corpo como fonte de erro precisava ser

questionada na tentativa de buscar alguma estratégia de fazer o corpo dos alunos

presente dentro da escola como o é fora dela.

As aulas na escola, excetuando-se a educação física,79 privilegiam uma

acumulação de saberes. O intelecto é o que deve ser exercitado, enquanto os corpos

devem permanecer passivos.80 Os alunos permanecem sentados e ouvem. Nessa

imobilidade irreal exigida pelas instituições e internalizada por nós, professores, que a

tentamos driblar colocando-os sentados em círculos, por exemplo, talvez esteja parte

das causas que deixa nebuloso o processo educativo e que acaba por elevar os

indicadores de fracasso escolar. Daí o esforço por buscar nas correntes filosóficas, que

78 G. Obiols. Uma introdução ao ensino de filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p.13. Guillermo Obiols indica três teorias pedagógicas para o ensino de filosofia. a) a teoria dos conteúdos. b) o construtivismo. c) uma concepção crítico-filosófica do papel do professor. Reconheço as três teorias como igualmente válidas e defendo a necessidade de uma melhor formação do professor de filosofia para transitar entre elas de acordo escolhas próprias e pertinentes à prática individual e ao público específico que ele trabalha. 79 Mas que também vê o corpo como um "objeto", ou seja, se apóia na tradição dualista. 80 Como já mencionado, essa passividade do corpo é o resultado do projeto disciplinar que se insere e tem seu papel na construção de “corpos produtivos”, na perspectiva Foucaultiana.

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afirmam que somos corpo ao invés de termos um corpo, apoio teórico para repensar o

corpo no processo de conhecimento.

A relação alunos-professores e o espaço da sala de aula acontece objetivamente

e subjetivamente. A percepção de cada um se dá a partir de sua vivência, a partir do

corpo-próprio O conjunto das percepções se traduz em uma consciência. Lembro que

aqui, consciência se distancia da tradição dualista que a compreende como exterior ao

corpo. Falamos do corpo de consciência e da atmosfera que emana dos corpos, ao

mesmo tempo em que os envolve.

Vivemos mergulhados em um mar de informações. As disciplinas mal dão conta

dos conteúdos históricos espremidas nas horas-aula de 50 minutos. A escola tenta dar

conta de formar ou informar sobre um mundo ao qual parece pertencer palidamente,

mas vai se tornando cada vez mais distante, como um fantasma da modernidade. Nos

termos da análise que G. Deleuze faz de M. Foucault, trata-se da passagem da sociedade

disciplinar para a sociedade de controle. 81.

Os educadores, apesar de sensibilizados pela necessidade de mudanças na sua

prática, muitas vezes não se encontram em condições de superar as dificuldades

oriundas da sua formação. Educação a distância é um tema de crescente importância nas

políticas públicas. A necessidade de agrupamento dos alunos num mesmo espaço parece

perder o sentido galopantemente. Investimentos financeiros pesados são feitos nessa

direção. E nós, professores da rede pública nesse início do século XXI, o que podemos

fazer para tornar nossa prática menos massacrante? Menos frustrante? A pergunta se

coloca nas rodas de conversa e cada professor busca suas estratégias. Modelos não

cabem. Nessa busca, a corporalidade me guia. Parto das artes e a elas retorno na

circularidade da vida.

Para Deleuze, a arte é a resistência à sociedade de controle:

Existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. 82

81 Michel Foucault analisa dois tipos de sociedades: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. A sociedade de soberania é situada até a época de Napoleão, depois disso, entramos nas sociedades disciplinares que se caracterizam pelas instituições de enclausuramento, entre elas, a escola. Mas Foucault, não parou por aí. Mesmo que as instituições disciplinares persistam, ainda que palidamente, entramos na era da sociedade de controle (termo de William Burroughssocie). Nesse tipo de sociedade as instituições de enclausuramento não serão mais necessárias. Cf. G. Deleuze, Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p.220. 82 G. Deleuze, 1999b, p. 4.

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A definição de filosofia para Deleuze se aproxima da arte, nos remete à criação.

Filosofar é criar conceitos.83 Mas conceitos não se criam com um simples gesto, em um

movimento único da mente. Não dependem de um querer, nascem antes da necessidade

de se encontrar uma solução para algum problema. Problemas que não podem ser

revisitados mas sim, experienciados a partir do agora.84

Nessa perspectiva é necessário abrir-se e abrir a escola para estratégias que

possam criar cada vez mais espaço de possibilidade de experiências de pensamento, ou

talvez, criar novos espaços que auxiliem o professor a ser infante, que tragam para a

relação ensinante algo que devolva a autoridade do narrador que ecoa no espaço da sala

de aula.

A relação entre corpo e filosofia, entre ensino de filosofia e práticas artísticas,

norteou essa dissertação na busca do que seria o envolvimento afetivo com o corpo-

próprio. Elegemos como critério fundamental para esse entendimento um deslocamento

da postura dualista e a negação de valores transcendentes. Pensar o corpo-próprio não é

uma forma de teorizar. Deve, necessariamente, passar por vivências. Vivências

significativas que se traduzam como experiência, como busca da linguagem, como

infância. O interesse foi pelas condições de possibilidade para se efetuar a passagem da

consciência que temos do corpo para um corpo de consciência.

J. Gil nos aponta um caminho interessante quando traça um plano de imanência

a partir do movimento dançado. A observação das forças que agem sobre o corpo tece

um plano de imanência levando a consciência do corpo a se tornar corpo de

consciência.

Entendo que há uma dimensão de concentração que chamei de atenção (a-

tensão) por remeter a uma dimensão específica do corpo possível de ser atingida quando

nos presentificamos, ou seja, quando estamos inteiros no movimento — esse modo de

ser, determinado por um certo nível de energia é fundamental para deixar a consciência

ser invadida pelos movimentos corporais e pode, então, efetivar a passagem para o que

chamamos de corpo de consciência.

Para não reproduzir a forma dominante do discurso filosófico e ficar sentada

numa cadeira, investiguei uma experiência de formação específica, com base no

83 G. Deleuze; F. Guattari, O que é a filosofia?Tradução de Bento Prado Júnior. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 10. 84 “O conceito é uma solução, mas o problema reside em suas condições de consistência intensional”. Idem p.105

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philodrama, que certamente dá um outro lugar ao corpo e pensa diferentemente da

tradição dominante a relação corpo-pensamento. O philodrama mais que uma

metodologia é um jogo. O critério de denegação é a regra primeira desse jogo.

Tentamos durante o curso, um caminho para a compreensão de um determinado

conceito — violência — a partir de práticas artísticas. Essas possibilitaram vivências

que envolvem o corpo, as relações de grupo, o acaso, o espaço, o tempo, a escuta.

Quando nos lançamos num mundo ficcional modificamos nossa relação com o corpo,

incorporamos o acaso na formas de significação de mundo, criamos novas

possibilidades de ser e estar no mundo.

No mundo cotidiano desempenhamos papéis e esses são apreendidos. A

representação de um determinado papel, no palco, ou em um espaço de aula, envolve

todo o corpo: gestos, fala, vestuário, posturas, estilos, uso de determinados materiais etc.

A ausência de habilidades para determinados papéis compromete certas funções e nos

perguntamos o porquê da ausência da preocupação com o corpo (e incluo a fala nessa

corporalidade) na formação de professores.

A maioria dos participantes da experiência pesquisada não tinha formação

artística específica. O coordenador defende que não é necessário nenhum trabalho

anterior, mas o que observamos foi que a atenção necessária para que se estabeleça o

critério de denegação pode ser ampliada por hábitos que a formação artística traz. Isso

não significa necessariamente freqüentar aulas de arte, mas a intimidade com o jogo

dramático que pode ser praticado em qualquer espaço. A falta de uma formação em

artes não inviabiliza a proposta, mas a presença dessa lhe outorga uma potência

singular, posto que o tempo de um curso como o que aqui foi analisado é por demais

curto para que os participantes possam perceber e desconstruir estruturas corporais

adquiridas no cotidiano.

Pensar o philodrama em relação com a linguagem corporal, na forma que a

concebemos, coloca a sala de aula como um espaço performático. O que o autor da

metodologia propõe é uma forma de intervenção–pedagógica. Assim a pesquisa se torna

ação. Uma performance é sempre mediada pelo corpo. A sala de aula se situa dentro

desse contexto de interação necessária entre corpos, num contexto de interação afetiva.

Nós, professores da educação básica, em geral, temos dificuldades de “controlar os

corpos” dos adolescentes. Mas o que talvez seja preciso é aprender a “atentar para os

próprios corpos”, pois como eles, ainda sabemos pouco do que nosso corpo pode. Não

aprendemos a conhecê-lo, a percebê-lo, a lidar com ele, a ter consciência dos afetos que

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o atravessam e nos lançam em determinados modos de ser. Na perspectiva de encontrar

um caminho para o envolvimento afetivo com o corpo-próprio o atentar diz respeito a

um jogo complexo entre aprender a “controlar-se” e, a uma só vez, a descontrolar-se. É

se liberar dos condicionamentos físicos habituais para abrir espaço a novas condições

para o pensamento. Essa é uma prática que uma estética aplicada, como a que propõe o

philodrama, poderia trazer para o ensino de filosofia na educação básica. Nessa prática

formativa, a escuta, o olhar e os sentidos em geral ocuparão um importante papel para

nos ajudar a fazer uma leitura da sala de aula e dos corpos que a habitam. Se

conseguirmos prestar atenção ao corpo dos alunos na interação afetiva que se dá no

espaço da sala de aula podemos achar fontes potentes para diversas formas de trabalho.

Por exemplo: estar atento a uma forma de andar abre caminho para novas possibilidades

de pensar o movimento. A forma como cada um caminha, a energia que é desprendida

nesse caminhar tem a ver com as possibilidades expressivas de cada um e, dessa forma,

condiciona o campo do que cada um pode pensar.

A educação, num certo sentido, é violência. Ela tem sempre a pretensão de

ampliar limites. E ampliar os limites estabelecidos é uma violência. A violência da

criação como a própria arte enquanto é também ruptura de limites.Porém, em uma sala

de aula não estamos no mundo do “como se”, de um jogo que nos conduz a um mundo

ficcional. Estamos no mundo cotidiano e é nesse espaço que precisamos nos recriar,

conhecer os limites próprios e alheios. Nesse processo, o corpo pode ser um guia. Como

me colocar? Qual é o meu lugar? Essas perguntas são válidas tanto para os alunos

quanto para os professores: podemos ter compreensões “energéticas” mais intensas do

outro para efetivar uma troca mais potente na relação ensinante?

Talvez, um episódio de nossa experiência de pesquisa exemplifique essas idéias.

Durante o curso de El nagual, em uma das atividades que não foi analisada por questões

técnicas, 85 ocorreu um evento interessante: uma das participantes, estudante de

pedagogia, se lançou na atividade corporal e o nível de energia que ela tinha

surpreendeu a todos. A percepção do grupo sobre ela antes da atividade era a de uma

jovem tímida por ser alguém de poucas falas. No entanto, na atividade ao ar livre ela se

mostrou extremamente ativa e arrojada a ponto de comover algumas pessoas do grupo

que relataram isso.

85 Clareira.

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“Não sei muito bem onde que isso tocou, mas a figura da xxxx Como, “olha, eu não sei nada” e quase abandonada como uma criança, assim, fisicamente, o Ricardo carregando ela para o centro com a violência necessária para arrastar ela para o centro, mas com a contenção também necessária para ela ter a coragem de enfrentar esse momento”.

“A tensão da pessoa vencendo uma resistência, enfrentado suas próprias limitações, e não no sentido de artificialidade, mas muito verdadeira. A tensão verdadeira e isso sim que me comove...”

Então, foi lindo isso, eu acho que sintetiza muito o momento que estou a viver. Acho que esse momento da xxxxx exprimida (...) Um suco, beber desse suco. (...)”

Muitos dos participantes ficaram comovidos pela sua entrega corporal no evento

narrado. Para muitos, foi surpreendente tamanho desprendimento corporal. Porém, para

a própria jovem, ao contrário da “primeira vez” que ela estaria vivendo no julgamento

dos demais, o que ela experienciou foi uma mexida nas suas memórias corporais.

Quando mais nova, tinha feito por alguns anos aulas de dança e gostava muito dessa

forma de expressão. O que ela relata é exatamente a passagem da consciência reflexiva

para o corpo de consciência

No dia anterior, quando ele chamou para a roda, eu tinha essa vontade dele me chamar, sabe? Mas eu tinha medo do julgamento, eu tenho, sabe, essa coisa do outro... Então acho que foi importante para mim essa experiência, foi conseguir naquele momento esquecer o outro, sabe?... esquecer o julgamento do outro, não pensar no que eu iria fazer, não planejar... porque esse planejar seria uma coisa para agradar o outro. Então foi uma coisa que, realmente... como se meu espírito estivesse se comunicando diretamente com os comandos dele, entende? Passar pelo racional não passou, tipo, “ai meu deus, será que eu estou fazendo papel de ridícula fazendo essa posição, fazendo esse movimento,... será que eles estão rindo de mim?” Nessa hora, sabe, foi um vácuo necessário, porque se não tivesse havido o vácuo, porque eu acho que se não tivesse o vácuo eu acho que paralisava, não conseguiria fazer. Foi sem pensar, porque como eu falei, como se fosse o corpo que estivesse espontaneamente querendo fazer esse movimento, sabe? E como se ele falasse “dessa vez, mente, você não vai me atrapalhar”, como se a todo momento tinha esse tabu... Por exemplo, o espírito queria se expressar, mas vinha a mente e começava com aquelas angustias, com aquelas coisas e eu falava “não, como assim... e eu paralisava”. E naquele momento não sei o que houve, eu não me senti em mim, sabe? Foi uma coisa como se eu tivesse mesmo deixado meu corpo, deixado o comando agir sobre a energia que tem em mim.

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Percebemos como a intervenção do coordenador foi importante para auxiliar a

fazer essa passagem. O trabalho corporal nos faz deparar com os limites. Talvez se ela

fosse escrever não tocaria no limite, não despertaria as forças de uma memória que

carrega e que de repente a fez “ser notada”. Quando penso nos corpos a produzir calor

nas salas de aula, penso em quanta energia pode estar dormindo nos alunos, pedindo

para sair. Construir estratégias para a relação ensinante que contemplem o corpo nos

pode fazer deparar com os limites, e é nesse espaço que podemos aprender a nos

descontrolar e a ultrapassar limites, do corpo, do pensamento, do corpo-pensamento.

Cada um tem os seus. O movimento é sempre um movimento particular e o explorá-lo

significa aprender a respeitar as singularidades.

Para que isso seja possível em El nagual encontrei como condição de

possibilidade principal para a experiência uma certa relação com a escuta. A capacidade

de atender não somente a si como as regras do jogo. A sensibilidade para colocar o

próprio corpo em relação com o corpo dos outros. A disposição para pensar com outros

de verdade, atendendo a “alteridade” dos outros corpos pensantes.

Considero, primeiramente, que um dos principais fatores que contribuíram para

que o curso não se completasse com a ‘mascarada’ e o ‘conceito em cena’ foi a

desatenção de grande parte do grupo sobre o que iriam fazer durante o curso. O

coordenador e criador do philodrama têm na sua forma de trabalho regras bastante

claras e explícitas. A temática do curso era conhecida, a bibliografia básica estava

disponível. Apesar das regras, o acaso e novos materiais foram incorporados no trabalho

indicando que o comando não era autoritário. Com tudo, alguns participantes

manifestaram decepção simplesmente por ter que cumprir regras, como se fosse

possível jogar um jogo em que cada um se dê a si mesmo suas próprias regras. Uma

forma clara de manifestar dificuldade de ‘escuta’ e da possibilidade do próprio jogo

seguir acontecendo plenamente.

Em segundo, a relação com o tempo entre o fazer e o falar sobre o fazer esteve

marcada por tensões. O coordenador do curso considera que “falar algo” é

necessariamente um “fazer algo”. Mas as discussões eram longas e “esfriavam” a

energia liberada pelos trabalhos corporais. Talvez a forma específica em que foi

aplicada a metodologia do philodrama durante o curso de El nagual - com uma

logoanalise após cada etapa da atividade - possa ter contribuído para isso. Também

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houve um excesso de atividades para um período curto de tempo, o que não ajudou a

romper uma lógica da produtividade na qual estamos inseridos pelas pressões

cotidianas. Mudar de espaço geográfico deve possibilitar também, um novo olhar sobre

o tempo. Preencher o tempo com atividades contínuas pode ser um fator de

impossibilidade para a experiência de pensamento que buscamos e que talvez necessite

de silêncio e ócio.

4.1 — E na escola?

A influência da escola no desenvolvimento e expressão da criança é valorizada

como fundamental na orientação no mundo através da linguagem. A passagem da

oralidade para o grafismo e para a linguagem verbal é parte do aprendizado escolar. O

processo de alfabetização contribui para a perda da espontaneidade corporal assim como

cria repertórios comuns da caligrafia do desenho. As expressões mediadas pela cultura

assumem um caráter estereotipado à medida que a linguagem escrita vai sendo

assimilada. O resultado pode ser notado na repetição gestual condicionada pelos “bons

modos” da civilização, ou pela presença de palavras no desenho para assegurar a

significação. A uniformização parece ser perseguida ao invés da construção do que

poderiam ser distintos modos de ser. A uniformidade que a escola opera não valoriza a

diferença, a singularidade.

Mas é também na escola, exatamente pelo seu papel determinante em relação à

criatividade, que a singularidade da expressão poderia ser melhor preservada. A partir

de diferentes estratégias para a relação ensinante, os ganhos da cultura poderiam

também potencializar a linguagem corporal e visual auxiliando a construção de

expressões de um mundo plural e diversificado.

Essa pesquisa não apresenta nenhum caminho que não seja possível de ser

traçado em um ambiente escolar. O espaço objetivo pode ser recriado. Do ponto de vista

educacional, tanto a prática de dar aulas, como a preparação para essa atividade, têm

muito a se beneficiar com os estudos desenvolvidos por R. Sassone. A estrutura do

philodrama expõe problemas e é isso que a torna atraente. Mas deixo o próprio autor e

coordenador da experiência fechar com suas próprias palavras o trabalho que ele ajudou

a nascer entre a inspiração artística e a transpiração que me trouxe até aqui.

Temos problemas para assumir pensamento e corpo, em uma mínima estrutura psíquico-física. Então, ninguém pode dizer que aqui não plantamos um problema, é interessantíssimo... A filosofia do corpo, um campo de meu interesse - não somente do meu, temos muitos

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filósofos que se ocuparam do corpo e muitos que falaram dessa intensidade do corpo, dessa unidade, e isso está oculto. Ninguém pensa nas condições de enunciação desses discursos, pensa somente na dimensão de seu pensamento. Um conceito remonta a uma percepção e a um afeto altamente filosófico. Agora estamos perspectivando o corpo, não é que seja fácil assumir onde tenho o meu corpo, o que faço com meu corpo. Então, essa proposta desvela o corpo, desvela o que nossas determinações culturais sobrecodificaram. Então, se dá para pensar isso e vocês correm o risco de ter acesso a esse plano de conceitualização do corpo, acho que é muito legal.

FIM.

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ANEXO I — Descrição de uma experiência de formação.

Carta de boas vindas aos participantes.

Querid@ participante, Seja bem-vind@ a: “Filosofia, educação e infância. Experiências de philodrama”. Aqui

estão em jogo a filosofia, a educação e a infância. Este é um jogo, mas não é uma brincadeira. As peças mudam na medida em que são jogadas, as combinações criam novas peças, as peças antigas podem se perder para sempre depois de uma jogada audaz. As regras estão desde o início; são propostas, neste caso, por Ricardo e Walter. Não são imutáveis, claro. Trata-se de formas para potenciar o jogo da filosofia, educação e infância. Os motivos, pressupostos e alcances de uma experiência são que as regras nos ajudem a nos tornar outra, outro, a cada movimento.

Vamos conseguir jogá-lo? Quem sabe? Só podemos dizer que o desejamos. Por isso estamos aqui. Mas vale notar algumas condições: este é um jogo que só se joga realmente desde dentro. Jogo difícil de jogar, jogo impossível de ensinar, de explicar, de interpretar. O que se ganha neste jogo? Quem ganha ao final? Ganha alguém? Não estamos certos, talvez ganhemos mais incertezas frente ao que antes nos parecia necessário.

Temos aqui pessoas de lugares diferentes, com histórias diversas, que se aproximaram talvez procurando coisas distintas. Este é um convite para jogarmos juntos, para tentar fazer com que essas interfaces produzam algo de interessante. Um detalhe: não falamos todos a mesma língua. Também isso constitui para nós uma aposta: a de que a diferença ajuda a jogar o jogo do pensamento, tanto a diferença na língua, quanto a diferença no pensamento. Sejamos hospitaleiros dessa diferença, não a temamos, não a espantemos... também com ela podemos aprender.

Decidimos realizar nossa reunião em El Nagual visando criar um clima de tranqüilidade, uma sensibilidade, uma certa intimidade para nosso jogo. O ritmo do jogo será intenso, mas consideramos que o marco que nos rodeia fornecerá energia, estímulo e inspiração. Esperamos que você goste do lugar tanto como nós gostamos ao escolhê-lo.

Nos coordenadores deste curso, Ricardo e Walter, estamos à sua disposição. Todos os participantes do encontro, com apoio dos coordenadores, serão responsáveis por algumas partidas do jogo. Serão 7 grupos com 4 integrantes cada um. Estes espaços de apresentação que vocês coordenarão em grupo não são para avaliação nem para ver quem faz melhor, apenas são para que todos possamos ter a oportunidade de participar das diversas formas através das quais pode acontecer uma experiência de filosofia com outros. Em todo momento vamos tentar experimentar nosso pensamento de forma cooperativa. O que tentaremos fazer é sempre uma e a mesma coisa: jogar o jogo do pensamento: pensar! Pensar a experiência e experienciar o pensar. Contem conosco para isso.

Um esclarecimento: este curso não pretende habilitar ninguém para nada. Não é um curso de habilitação. É uma experiência de formação. Consideramos que, em educação e em filosofia, cada pessoa decide o que faz e como o faz. O que nós oferecemos é um espaço para acompanhar àqueles que compartilhem os sentidos afirmados nesta experiência.

Mais uma vez, bem-vind@. É verdade, parece que nesses dias vamos trabalhar bastante. Curioso jogo este que nós fará trabalhar. Mas, quem sabe, talvez no final, tenhamos nos desprendido de alguma coisa, mudado alguma regra, aprendido mais uma vez como se fosse a primeira, encontrado o que antes não tínhamos encontrado e já não buscaremos mais da mesma maneira.

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04/04- Quarta-feira-Noite

Aqui em El Nagual enfrento o desafio de decidir o que será registrado, qual o

recorte do olhar que será registrado. Cheguei primeiro que todos na sala. Ajeito o tripé,

tento um plano geral. Não quero perder nada. Ansiedade por estar em uma posição

nova. Não mais em frente à câmera, mas por trás dela. Sei o quanto será definitivo esse

olhar eletrônico que ganha status de verdade. Abro também um caderno para fazer

observações. Divido-me entre a vontade de fazer a dinâmica e a escolha do melhor

ângulo. Lido com a dificuldade técnica de operar a câmera. Não é mais ensaio. Tudo

começa a acontecer e o olho da câmera precisa ser dirigido. Uma técnica deve ser

colocada em prática. Minha participação será a do olho da câmera.

As pessoas vão chegando aos poucos. Sozinhas, em pequenos grupos, em

duplas. Ainda não registro nada. Faço as ligações, os testes de luz, de som. Tenho ajuda

de alguns, curiosidade de outros. Enfim, estamos todos lá. Os ensaios com a câmera

ajudaram e ela está agora ligada. Optei por um plano quase geral. Perco os detalhes, mas

tenho a sala quase toda em quadro.

às 18:55. É dada a largada oficial.

1. O comando foi: caminhar sem falar.

Um caminhar internalizando o específico do movimento. Deviam Caminhar sem

olhar para os outros, como em meio a uma multidão de desconhecidos. Em

seguida, com o uso de um metrônomo, caminharam a partir da marcação de um

ritmo. Contar até dez, depois projetar a voz com sons aleatórios.

Durante esse caminhar, a partir de um determinado momento, deveriam começar

a dinâmica de apresentação. A um determinado comando sonoro deviam se

apresentar a quem estivesse na frente no momento da parada: coordenadas de

apresentação-Nome, onde mora, o que faz e referências de família. O exercício

foi repetido quatro vezes.

Em seguida, fizeram um círculo em pé e cada um apresentou os companheiros

com quem tinha conversado. Uns completavam a apresentação dos outros, posto que

cada um se apresentou para quatro pessoas.

Essa dinâmica foi marcada por um clima de comunhão e abertura. Os rostos e

falas eram alegres.

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1.1- Grande roda 01: Cada um falou sua impressão e reflexão sobre o momento

anterior. A percepção do exercício foi positiva e ajudou a integrar o grupo. Reflexões

sobre a forma como nos apresentamos, o porquê de determinadas categorias e não

outras serem mais utilizadas, o que escolhemos dizer, que hipóteses tecemos sobre o

outro a partir de determinadas informações. Nessa reflexão apareceu o jogo dos

comportamentos sociais, dos atores sociais que entram em cena no encontro com o

outro. Na fala de um dos participantes: um jogo de fantasia sobre o outro.

1.2- Como encerramento dessa primeira atividade, foi solicitado aos

participantes que repetissem o nome e dessem três palavras chaves: As palavras citadas

foram: encontro, palavra, corpo, alegria e diferença, curiosidade, olhar do outro e

descontração, coragem, encontro e humor, acaso, não-expressão, dificuldade, novo,

desejo e experimentar, intuição e aventura, expressão, suspensão e resolução,

movimento, descoberta, troca, sorriso, esvaziamento e sorvete, emoção e singularidade,

entrada, exterior e ouvir, confiança, reconstrução e pensamento, fertilidade, idéia e

aliança, formação, desaprender, performance, construção, reconstrução e imagem,

reencontro, caminho, diálogo, grupo, alethéia, jogo, abertura, acaso, escuta, silêncio,

linguagem,experiência,entrada, saída, humildade, percepção, reconfiguração, como

fazer, escuta, outro, carinho,cansaço, curiosidade e ansiedade, outro, eu e quem,

proximidade, distância e expectativa,silêncio, corpo e palavra.

Foram duas horas prazerosas, divertidas e apesar de exausto o grupo continuava

animado durante o jantar.

05-05. Quinta-feira- Manhã.

Início: 8:30

O grupo acordou cedo e logo após o café da manhã concentrou-se no espaço de

convivência.

2-Sentados e recostados nas paredes da sala os participantes foram convidados a

ouvir uma música suave, de olhos fechados. Permaneceram em silêncio ouvindo a

música até que o coordenador pediu para que cada um retomasse o texto poético que

tinham selecionado para o encontro. Alguns ficaram preocupados, pois não tinham o

texto memorizado. Mas essa preocupação não durou muito. Não era importante que os

textos estivessem decorados e sim, deixar o texto poético fluir internamente. No

primeiro momento, nenhuma voz se ouvia. O comando foi para que a cada toque que o

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coordenador desse no corpo de cada um, esse integrante deveria começar a falar o texto

exatamente do lugar que estava internamente. Ou seja, deveriam ficar repetindo o texto

em pensamento e ao sentir o toque, projetar a voz. Foi pedido para que falassem bem

alto. Clima de relaxamento e concentração. Os toques do coordenador determinavam se

o texto seria projetado ou internalizado. Um toque e começava a projeção e em algum

momento, outro toque e o texto voltava a ser internalizado.

2.1- O coordenador pediu que enquanto não tocasse quem estivesse falando, a

pessoa deveria continuar a falar seu texto. Dessa forma vozes múltiplas passaram a

serem ouvidas. Cada um vai foi entrando como um instrumento em uma orquestra,

formando uma polifonia. O ritmo foi crescendo e muitos passaram a falar ao mesmo

tempo.

2.3- Em seguida, o coordenador levantou as pessoas, uma a uma, puxando-as

pela mão, posto que ainda estavam de olhos fechados. O comando não foi falado,

simplesmente indicado corporalmente. A roda se pôs de pé. Polifonia. Nenhum texto

podia ser ouvido individualmente. Foram diminuindo o som até parar totalmente.

2.4- deveriam abrir os olhos e caminhar pela sala falando o texto.

2.5- Ao toque de um sino pararam. Deveriam selecionar uma imagem

significativa dentro do texto. Com essa imagem e a frase, ou palavra, que a traduzia

voltaram a caminhar. A idéia era capturar essa imagem. Voltaram a caminhar cada um

com sua palavra-imagem.

2.6-Intercambiar com as palavras dos outros. Uma troca de imagens. Parados

frente a frente faziam essa troca. O acaso foi a tônica nesse encontro. Não houve

escolhas. Ao toque do sino deviam trocar com quem estava mais próximo. Repetiram

algumas vezes.

2.7-Foram convidados a fazer um círculo. No centro duas cadeiras. Um

participante sentava em uma cadeira e a outra cadeira deveria ser ocupada

aleatoriamente por outro integrante. Falavam suas imagens em voz alta. O coordenador

foi trocando os falantes das cadeiras. Os estrangeiros falavam em sua própria língua.

Sentidos inesperados foram criados a partir das seqüências aleatórias dos textos e as

imagens sobrepostas. Risos acompanharam o exercício.

2.8- O jogo passou a ser escolher dentro da imagem dada por quem estava na

cadeira, uma única palavra e continuar a contrapor as imagens. Todos deveriam repetir a

palavra que escolheram. Ainda na dinâmica com as cadeiras, um a um falava sua

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imagem e podia ouvir o grupo repetir a palavra que cada um considerou mais

significativa.

2.9- Voltaram a caminhar. Primeiro em silêncio. Depois falando alto a palavra-

imagem própria escolhida no passo 2.5. Deviam seguir dois comandos fazendo uma

relação dos textos com a música. Som aumentava, palavras deviam subir de tom.

Baixava a música,sons das palavras também diminuíam. O ritmo se acelerou,

descontração, risos, mas bastante energia para o trabalho. Ao som do metrômetro,

caminhavam. Quando a música não estava tocando o texto devia ser interno.

3- Comando: respirar e alongar soltando sons no espaço. Em seguida deviam

fazer uma roda e continuar o alongamento de todo o corpo. Não foi dada uma orientação

específica pra esse alongamento. Cada um seguiu sua própria necessidade.

4- Deviam pegar uma bola imaginária de calor e oferecer a outro parceiro. Pegar

outra e continuamente oferecer, trocando a energia, trocando o calor. O grupo se

concentrou e passou a ser mover lentamente para executar o comando. Tocavam-se, ou

melhor, quase se tocavam, pois a troca era de calor. Na experimentação, a delicadeza se

fez necessária.

5- Tocou o sino e foi pedido para que pegassem a energia do solo e levassem até

o espaço. E vice-versa, em duas forças. Os movimentos foram bem lentos A idéia era

fazer do corpo um nexo entre o alto e o chão. “Somos uma articulação entre esses

espaços”, falou o coordenador. Deviam tentar tocar o mais alto possível e rodar para os

dois lados com os braços pa ra cima, deixando o corpo se expressar em sons.

Relaxamento Final.

6- Em roda falaram os nomes dos parceiros à esquerda e a direita.

7- Comando: caminhar de forma criativa. De todas as formas. Cada um devia

eleger uma partitura para o seu caminhar agregando um som. Os primeiros passos e

sons foram bem primitivos, como um ritual indígena. Formas de apreensão dos

movimentos dos colegas podiam ser repetidas. Depois de um tempo, ao encontrar um

caminhar que considerasse interessante deviam seguir a pessoa que o criou como a um

líder.

Obs-Foi necessário interromper o exercício devido a problemas com a sala que não podia ter

vibrações porque o chão de gesso.

8- Um jogo de velocidades foi proposto. A cada toque do sino deviam fazer o

movimento mais lento e em cinco tempos ficarem estáticos. Em seguida, deviam

recuperar o movimento na sua velocidade normal também em cinco tempos. A

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introdução do fator tempo e velocidade no movimento levou a uma maior concentração

do grupo e denunciou pequenas dificuldades de coordenação motora de alguns

participantes.

9- comando: respirar e soltar sons como relaxamento para fechar a atividade.

Até esse momento as atividades propostas foram de integração entre o grupo e

contato com o próprio corpo no espaço. A observarão, tanto ao vivo, quando do material

gravado indica diferentes graus de intimidade corporal. O grupo é bastante heterogêneo,

tanto em idade, quanto em formação, seja acadêmica, seja corporal. A forma de lidar

com os “comandos” já se diferencia. Alguns executam o que foi pedido sem maiores

dificuldades de entendimento. Outros apresentam maiores dificuldades de concentração

e perdem o que foi pedido ou executam de acordo com um entendimento próprio. Uma

característica do coordenador também se faz notar: ele quase nunca repete o comando.

Deixa o grupo bastante livre para executar da forma que a “escuta” se deu.

Passaremos agora, para uma breve descrição da logoanalise sobre as atividades

iniciais. Essas reflexões aconteceram na sala de convivência. No mesmo espaço que os

trabalhos corporais. Os participantes sentaram-se, deitaram e conversavam entre si, sem

que isso constituísse algo fora do esperado pelo coordenador. Também, em relação à

pontualidade para o início dos trabalhos houve diferenças. Mas quando o número de

integrantes era significativo os trabalhos se iniciavam. Alguns chegavam atrasados e se

incorporavam ao que o grupo estava fazendo. Não houve cobrança desse quesito. Pelo

menos declarada. Mas o fato é que, não foi dito, mas notado e mais tarde foi explicitado

por uma participante. As ausências eram sentidas pelo grupo e começaram a criar

‘atmosferas’, que mais tarde viriam à tona nas discussões. As reflexões aconteceram,

exceto uma no dia seguinte, na sala de convivência. Doravante chamarei essa atividade

de Grande Roda.

10-Grande Roda 01- O que aconteceu hoje com seus corpos a partir das

hipóteses de trabalho? Essa pergunta foi lançada ao grupo.

O trabalho corporal apareceu nas falas como sendo fundamental para as

compreensões de si e da prática profissional. Colocar o corpo em movimento é re-

elaborado nas falas como uma experiência forte, emocional. A troca de intimidade o

trabalho provocou e a percepção que a atividade da manhã (item 2 a 9) tinha sido,na

“verdade”, o primeiro trabalho do grupo foram marcas dos relatos. A diferença entre a

forma que cada um tratou o pedido de levar um texto memorizado e a forma que um

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novo sentido apareceu no trabalho grupal também ganhou destaque. Os novos sentidos

que foram criados contribuíram para a percepção de que o grupo é mais do que a soma

das partes. A reflexão caminhou levantando a possibilidade de reunir corpo e palavra

distintamente da forma usual. Tornar a linguagem do corpo mais rica, mais próxima.

Um processo de desestruturação do corpo e da linguagem. Uma nova oportunidade de

se apresentar, de se conhecer o outro de uma forma mais imediata. Alguma forma

possível de falar como cada que cada um é do que a mera apresentação dos nomes e o

que faz. É o outro que te conhece. Papéis fazem parte do jogo social. Na 1ª forma de

apresentação, da noite anterior, a razão parecia mais importante. Convenções

aprendidas, uma forma habitual de se manifestar. Outras formas podiam ser mais livres.

Nos trabalhos com poesia algo passou ao nível da emoção. A divisão dos poemas trouxe

uma dimensão de grupo. Os novos sentidos que se formaram causaram uma profunda

impressão no grupo. A sensação de que o texto ganhava mais energia ao “ir para o

corpo” foi citada, bem como a possibilidade de um encontro com o próprio corpo.

Repetição, sentido e sem-sentido A mudança de significado do texto. O tempo

do texto ao ser mentalizado e o tempo do próprio corpo. Como surge um sentido? O que

dá sentido a uma experiência, a uma vida? Vários sentidos surgiram da “falta de

sentido” Foi percebido uma força na repetição que produz outros sentidos. A palavra

poética se permite estar acoplada no movimento corporal mais facilmente na observação

do coordenador e por isso essa linguagem foi usada.

10.1Agora, transcrevo, não literalmente, partes das falas do Coordenador 86 que

são introdutórias da sua proposta e dos conceitos que foram trabalhados.

“Nas falas pareceu comparação entre as formas de apresentação do dia anterior e da

manhã. Como me nomeio? O que me afeta? E com o que me junto? Isso está na base da

identidade. Nomear-se implica em aderir a uma máscara. O philodrama pretende desmascarar

tudo, e tomar uma perspectiva da máscara e mascarar novamente. Personagem vem de máscara.

Persona, máscara. O espaço do curso é o de encontro e reencontro buscando novos focos de

percepção. A categoria focalizar é importante no trabalho. Quando me nomeio está presente

como me focalizo. Onde coloco o 1º plano, o 2º ... ou será que focalizo os detalhes? No

philodrama é importante a memória para reconstituir-se.” Memória de outro que me pode

constituir, sou parte de um relato de outro “.A linguagem corporal é parte do philodrama. O

86 As falas foram "editadas", sendo o recorte feito no interesse de apresentar a metodologia proposta. Mas nada foi acrescentado.

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corpo é uma possibilidade de intercomunicação imediata, espontânea. A visão da dramatização

é muito importante porque trabalha com essa materialidade do corpo. Eu figuro para que outro

possa configurar e a partir da configuração de outro, reconfiguro... E esta é minha proposta, uma

situação circular e deixo claro que estamos aqui porque queremos estar, e demais estar aqui

implica aceitar jogar, nos introduzir no jogo, na possibilidade de nos expressarmos no jogo, de

sermos criativos no jogo. Trabalharemos com jogos que tem a ver com o foco do corpo...jogos

que tem a ver com o som como parte do corpo e com a voz como uma estruturação do som, e

finalmente com a palavra que é a maior a estruturação. A palavra forma parte de um jogo de

todos os jogos, que é o jogo de linguagem, e seguimos jogando com as palavras.

A proposta tende a indagar, este trânsito entre a inscrição do percepto do corpo,

mediando o afeto até a elevação ao conceito. O marco teórico que vamos trabalhar tem esse

recorrido, sim? Conceito, entanto, percepto e afeto.

Decidimos trabalhar com o texto poético, porque o texto poético é em sua linguagem,

objeto. Não remete a um sentido, remete a circulação de imagens e energia textual. Remete ao

campo metafórico, a construção metafórica, ou seja, o sentido é algo em suspenso no texto

poético”.

Tempo de trabalho: aproximadamente 2h 05'.

Intervalo: lanche. Alguns preferem brincar na piscina, conversam em grupos...

Mudamos de espaço: ar livre coberto

11-. Mudamos de espaço. Os participantes foram convidados a irem a um local

aberto, localizado debaixo da sala de convivência. Lá as movimentações podiam ser

mais livres. O coordenador colocou uma música bem alegre e ritmada. O grupo brincou

e riu Descontraído. Dançaram em pares.

11.1- Em seguida foi pedido para que fizessem uma roda e dançassem nela. Os

movimentos deviam ser coordenados. A coreografia propunha uma cruzada de pés.

Bastante dificuldade motora de alguns em realizar a troca de pés proposta. Aos poucos

se acertaram e a roda fluiu. O clima foi de cooperação entre os participantes.

Terminaram o exercício ofegantes e alegres. Bateram palmas.

11.2. Foram convidados a ouvir uma música como exemplo de criatividade com

a voz. Espalharam-se pelo espaço. A maioria fechou os olhos para ouvir o som. Aos

poucos, alguns começaram a brincar com a voz.

11.3- Deviam escolher uma palavra do texto e trabalhar na mesma sintonia da

música. Focalizar a palavra no corpo. Na primeira parte do exercício o corpo devia ficar

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parado e depois se movimentar. Um sino tocou várias vezes. O grupo se concentrou. A

música trazia uma voz muito aguda. As pessoas se sentaram. A energia corporal que é

perdida nesse “descansar sentada” não foi indicada. Nada foi dito em relação a isso pelo

coordenador. O comando não pareceu ter sido bem entendido, mas ninguém fez

nenhuma pergunta. O coordenador pediu para que passasse a voz para o corpo todo.

Levantaram e começaram a se mexer enquanto faziam sons. O exercício foi cortado

pelo sino.

11.4-O coordenador escolheu um dos participantes e pediu uma hipótese de

movimento e a palavra escolhida. O escolhido criou uma seqüência e falou a palavra

imitando o som da música.

11.5- Foi pedido para que o texto poético, sem entonação, fosse falado na

mesma partitura corporal da fase anterior.

11.6- Todos deviam repetir a partitura corporal do participante que fez o

exercício. Não deviam se incomodar com o que fazer com o corpo. A premissa do

coordenador era de que o corpo sabe o que deve fazer. O texto devia ser interno. Outro

participante fez a demonstração.

11.7- Mais uma foi escolhida e executou a partitura corporal do 1º participante.

Depois essa partitura foi repetida foi repetida com os demais.

11.8- O coordenador falou sobre a diferença entre ilustração e sustentação.

Clichês. Pedia para que sustentassem a palavra e não a ilustrassem. É uma nova

inscrição vivencial de um texto poético quando um poema nos mobiliza. O clichê faz o

contrário. Ilustra o texto com uma energia que não é própria.

11.9-Outro participante começa uma nova rodada de exercício com um poema

de Lorca. O coordenador orientou no sentido de que deviam se concentrar em

transmitir a própria energia e não a vivência do poeta.

11.10-O coordenador propôs expandir a hipótese do movimento ou concentrar.

Energia se projetando ou se introjetando.

11.11- O participante continuou o exercício com o poema de Lorca. A idéia de

projetar ou introjetar a energia levou a uma contenção do movimento. A Idéia era

dificultá-lo, criar uma resistência corporal e continuar falando.

11.12- O Coordenador explicou que o condicionamento corporal levava a

expressão a distintas qualidades, mas afirmou ser esse tipo de exercício possível de ser

feito com textos de Kant ou de Lorca.

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11.13-Uma nova música, bastante repetitiva, foi colocada. Todos deviam se

concentrar na escuta. Em seguida, foi pedido para que “projetassem” o corpo.

Começaram a se mexer. O coordenador escolheu a partitura de uma integrante com

bastante domínio corporal e recomeçou o trabalho. Todos repetiram a partitura da

participante, selecionada pelo coordenador, até aprenderem os movimentos. A música

foi colocada novamente. O texto devia ficar interno. Os movimentos eram simples e

bem executados pela autora da partitura. Em seguida ela começou a colocar voz. Falou

todo o poema. Sua presença foi forte. Os demais assistiram

11.14- Outro participante entrou na roda e fez a partitura anterior. Recomeçaram

as trocas.

11.15- Todos novamente com a música. Andaram emitindo sons. Poucos

movimentos corporais durante o caminhar.

11.16- Novo participante e nova rodada de trocas.

11.17- A nova participante dentro da roda tentava aprender a partitura para

repeti-la. O autor daquela partitura ajudou a colega a compreender onde tinha

contenção no movimento. Ela começou a falar seu texto com a partitura aprendida.

11.18- O coordenador misturou as partituras de alguns que fizeram o exercício.

11.19- Mais dois pares fizeram o exercício

11.20- O Coordenador falou da possibilidade de expressar textos diferentes

numa mesma partitura. Obs-aqui ele considera que um trabalho corporal prévio é facilitador da

expressão.

11.21- Uma nova música, alegre e ritmada, é colocada, Todos dançaram. Depois

de um tempo o coordenador pediu para que repetissem a forma que estavam dançando

em câmera lenta. Deviam buscar a memória corporal. Depois, colocaram o texto para

fora, ainda em câmera lenta com o corpo.

11.22- Na seqüência foi pedido para que fechassem os olhos e continuassem. O

desafio dos olhos fechados era para perceber o corpo dos companheiros. Fechar os olhos

potencializou a percepção sinestésica. A lentidão pode ajudar no controle do movimento

e na perecepção. Foram incentivados a fazer bem lento

12- Grande roda 02- A reflexão dessa atividade foi à relação entre a técnica e o

fazer artístico. A repetição dos exercícios executados foi percebida como necessária

para uma desconstrução e novas construções.

12.1-O coordenador introduziu conceitualmente o que chama de critério de

denegação: “passagem“do mundo da vida cotidiana ao mundo da vida extra-cotidiana”.

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Colocou também a diferença entre poesis e teckné e a pergunta: o que é real? Não para

ser respondida, mas pensada. Na concepção que o coordenador apresentou ser artista

começa na nomeação: sou artista. É da vontade, de um ato comunicacional de vontade

de expressão que se faz uma artista. Passar para a simbolização é parte da criação

artística. Essa seria a diferença do ritual onde não “se faz de conta”. Dos rituais posso

me apropriar da forma, o conteúdo faz parte de outro fenômeno. Depois dessa fala, o

coordenador encerrou as atividades da manhã e foram todos almoçar.

05-05. Quinta-feira- tarde

13. Argila. Foi colocado em uma mesa um grande pedaço de argila e uma bacia

com água. Cada um devia pegar um pedaço de argila e amassá-lo, descarregando as

tensões.

13.1- A proposta foi de uma vivência com o tato. Deviam trabalhar a textura.

Começaram a falar muito. O grupo tinha diferentes graus de intimidade com o material.

Muitos nunca tinham tocado em argila.(10 pessoas). Alguns se incomodaram em sujar a

mão. Falas de “gastura” foram comuns.

13.2- O coordenador deu algumas dicas técnicas de como deviam amassar a

argila. Nesse momento, os que não tem essa experiência prestam atenção, outros

continuam a amassar o seu pedaço. Deviam fazer uma bola. Alguns participantes fazem

formas diferentes da solicitada.

13.3- Foi repetido o comando de que deviam fazer uma bola com o acréscimo de

fecharem os olhos. Ao fecharem os olhos, deviam buscar aguçar do tato. Sentir o peso

da bola, a textura. Com os olhos fechados o grupo ficou em silêncio

13.4- Ainda de olhos fechados deviam fazer uma outra forma. Deviam buscar

distintos pontos de toque. Não diferentes pontos de vista e sim, de toque, de tato. Usar a

imaginação para pensar a forma.

13.5- De olhos fechados deviam descrever a forma que fizeram. Falaram todos

juntos.

13.6- Angústia de um dos participantes que pediu insistentemente para abrir os

olhos. Outros o acompanharam no pedido.

13.7- Abriram os olhos, viram as formas. Algumas muito diferente do que os

autores tinham descrito.

13.8- Em seguida, deviam encontrar um parceiro e descrever a forma para ele.

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13.9-Essa descrição para os colegas devia ser repetida com mais de um

participante. Saíram em busca de interlocutores para fazer a descrição. Como todos

trabalhavam juntos, num mesmo espaço e o tempo das descrições era simultâneo o

barulho das vozes é intenso. Brincadeiras, risos comentários sobre a forma que o outro

tinha feito.

13.10- Foi colocada na mesa inicial do trabalho uma das formas feitas que foi

escolhida aleatoriamente pelo coordenador. Foi pedido para que visse essa peça como a

pedra fundamental de uma escultura. Cada um devia, ao seu tempo, colocar a sua peça

acoplada a ela. A contribuição devia ser espontânea, cada um no seu tempo e sem

buscar necessariamente uma forma conhecida. Assim, construiriam uma obra

coletivamente .

13.11-Quando a obra foi finalizada, uma participante foi convidada a falar sobre

ela como se estivesse guiando um grupo num museu, numa exposição de obras de arte.

O guia seria trocado ao longo da atividade.

13.12- Brincadeiras, risos. Participantes foram escolhidos pelos demais para

fazerem o papel de guia. Alguns se retiraram do espaço. Não conseguiram articular um

discurso convincente sobre a obra realizada.

13.13- grande roda 03- Essa logoanalise aconteceu no espaço aberto e coberto,

o mesmo espaço onde a atividade foi realizada. A pergunta para a reflexão era como

tinham se sentido durante aquela experiência, mas a discussão caminhou para a estética.

Foi uma longa discussão na qual poucos se manifestaram. O interesse dos que se

mantiveram na discussão era pela forma, sobre o que é arte, o que é o mercado da arte.

Quem define quem é o artista? Quem define o que é arte? Antes de encerrar as

atividades, o coordenador deu um número, de 01 a 06 a cada participante e em seguida

os dividiu em grupos. Todos os que tinham o mesmo número seriam de um mesmo

grupo.

06-05. Sexta-manhã

14- Voltamos para o espaço de convivência da pousada. O coordenador sugeriu

duas perguntas para que refletissem internamente: o que fiz? Não o que a gente tem

feito, mas o que eu fiz. A outra pergunta foi: como eu estou. De olhos fechados ouviram

uma música suave enquanto o tempo dado a essa reflexão durou.

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14.1-O coordenador leu um poema de Fernando Pessoa — autopsicografia —

enquanto permaneciam de olhos fechados. O coordenador elegeu um outro poema, em

espanhola e misturou os dois poemas, nas duas línguas. O autor do poema em espanhol

não foi identificado.

14.2-Comando: “Misturar os textos ao azar”. Escolham frases do texto que

trouxeram e que seja relevante pra vocês. Alguma situação afetiva fez com que

elegessem essa parte para ser colocada em situação. Coloquem o texto “fora” na

tentativa de construir uma comunidade de comunicação com os colegas de outras

línguas. Podiam começar quando quisessem, espontaneamente Podiam trocar ou

reforçar imagens.

14.3- Quando começaram os exercícios, cada um falou sua frase-imagem e todos

os demais repetiram. O exercício lembrava um jogral. Repetiam o que era falado antes.

Falavam lentamente. Muitos se mantiveram de olhos fechados.

14.4- O coordenador sugeriu um exercício poético com o próprio nome. Deviam

repetir o nome: debaixo sou eu. A idéia foi colocar em perspectiva a escuta do próprio

nome.

14.5- retornaram as repetições a partir de trechos que o coordenador falava.

14.6- Grande Roda 03- O Coordenador chamou a atenção para o desvio da

pergunta da noite anterior: “eu perguntei o que aconteceu com a experiência de cada um

e acabamos falando da questão estética, que sem dúvida é um problema importante, mas

essa não havia sido a pergunta. O objetivo era repassar o que aconteceu e não o que

pensavam sobre a experiência estética. O que aconteceu com a experiência de cada um

passando pelo corpo, passando pelo material, pelo alongamento da forma, a eleição da

forma até o momento que a forma se impõe”.

Então, pediu que retomassem novamente a reflexão sobre o que tinha acontecido

com o corpo de cada um e também sobre a primeira parte do trabalho — sobre o

movimento, o texto poético a expressão.

14.7- Os depoimentos começaram. Foram bastante variados. Prazer e desprazer.

A repetição dos textos poéticos remeteu a uma participante, o ritual cristão. Outros

notaram que o movimento não dava suporte para a fala. Uma guerra entre o gesto que

está incorporado na maneira de cada um. Os comportamentos sociais, os hábitos. A

possibilidade de desconstruir o condicionamento corporal com exercícios simples de

desconstrução. Assumir o gestual de outro foi difícil e isso foi percebido como um

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problema para o trabalho com o outro. O gestual que é do outro se tornava no corpo

uma outra possibilidade, não o mesmo.

Observações de que faltou ao grupo problematização. Esclarecimento dos

conceitos. Faltou tempo para abrir o conceito. Algumas falas:

“Na argila eu trabalhava com emoções, sentimentos. Não sabia como ou o que estava fazendo. Daí a discussão posterior era outra coisa diferente do que eu experienciei.”

“Faltou preparação para a improvisação. O riso foi um escape porque eu estava confusa com o jogo. Não sustentei a seriedade da fantasia”.

Surgiu a diferença semântica entre jogo e brincadeira. Jogo tem regras. Mas as

regras é que constituem o jogo.

“Ontem, o jogo estava frouxo. Não era convidativo. O humor poderia ser levado às últimas conseqüências”.

“Talvez falte silêncio no pensamento, naquele ponto que torna atividade transformadora”.

“O entrar no jogo é uma questão. A repetição, por exemplo, me remeteu a isso também. Me pergunto: quais as regras que me convidam, que me incitam ao jogo? Sem forças não posso me comprometer colocar a voz em jogo, o tato. Os antecedentes são diferentes, isso já é um complicador”.

“Faltou silêncio, faltou problema. Há um ponto onde o jogo ultrapassa a brincadeira e se torna vital”.

“Distância entre a experiência e o comentário sobre a experiência”

14.8- O coordenador chamou a atenção para conceitos que ele trabalha:

“Estamos falando exatamente do critério de denegação. O compromisso com a verdade ficcional. A invasão do mundo cotidiano pode destruir o mundo da obra. Onde está instalado esse critério? Tem que separar tem que se constituir numa condição de possibilidade para a expressão. É... A expressão criativa, artística. O mundo da obra demanda uma proteção, sem ruídos. Na outra parte da experiência, a da repetições. Eu não busco intercalar sentidos e sim intercalar materialidades dos textos. Deixar fluir, aquém e além da intelectualização, buscar conexões fluidas de imagens”.

14.9- A diferença idiomática entre jogo e brincadeira apareceu na fala do

coordenador. No espanhol não há essa separação entre brinquedo e jogo. Ele buscava

entender. “O que separa? Talvez sejam as regras constitutivas do jogo. O phlilodrama é um

jogo. Repetimos para perceber diferenças. São regras constitutivas de trocas, de intercâmbio”.

No trabalho corporal essa regra é fundamental. Na vida cotidiana não se repete

sistematicamente a não ser temporalmente situada. No mundo da obra a repetição tem

um efeito de estranhamento. Efeito de separação interna e uma hesitação para se pensar.

Mas não é o mesmo. Cada repetição é distinta. É um efeito de desterritorialização.

Como uma participante tinha comentado que a atividade tinha lembrado a ela “coisa de

igreja”, o coordenador pergunta: “porque disse isso? Porque se lembrou disso. E de onde

vem a memória. Possivelmente no seu corpo.”

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14.10-. Sobre certa dificuldade que os participantes apresentaram na atividade

com a argila, no momento de desfazer a forma que tinha construído individualmente

para compor uma coletiva, o coordenador perguntou convidando para a reflexão sobre o

tema da desconstrução.

Vocês tiveram resistência, no primeiro momento de destruir o que tinham feito. Porque?

Qual o status do que eu tinha feito? A destruição forma parte do fazer? Para fazer outra coisa temos que destruir algo que tem capacidade de se recriar como outra coisa?

14.11- A forma com que alguns forçaram os colegas a se apresentarem fugindo

ao comando da espontaneidade foi identificada como um problema. “O desejo deve ser

espontâneo para propiciar a experiência. A brincadeira deve ser espontânea. Ou a do tipo escola,

onde se sente obrigada a participar?”

Intervalo para almoço:

06-05. Sexta-tarde

15- O coordenador apresentou um esquema sobre a configuração do philodrama

de foram mais conceitual. Foi dado a cada participante uma pasta com algumas folhas.

Muitos não conseguiram acompanhar a explicação e o coordenador desistiu da

explicação teórica e partiu novamente para a prática.

15.1- O coordenador elegeu a violência como um espaço-problema: “como a

violência chega no seu campo semântico e pode trabalhar com a marca que na corporalidade

presumidamente deixou”. A partir desse momento, os trabalhos passariam a ser com os

grupos definidos anteriormente.

15.2.- Cada um deveria pegar uma folha branca em formato A4, colocar o nome

e o número do grupo. Deviam fazer um desenho sobre o contorno de uma silhueta

humana para estabelecer mapas corporais da violência.

15.3- Os Grupos trabalharam desenhando sobre o chão da sala. Vozes se ouviam

para validar o entendimento do comando. Falas e risos. Não foi um ambiente de muita

concentração.

15.4- O coordenador chamou a atenção sobre a concentração ser importante.

Em vários momentos, o coordenador dava novas informações sobre o processo do

trabalho. Por exemplo.O conceito sobrecodificação, na perspectiva de Deleuze. “Toda

nossa determinação cultural está codificando e sobre codificando muitas coisas. Entre elas o

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corpo. Mas não somente o corpo, como também a sobrecodificação do corpo. Devem trabalhar

pintando, desenhando, colocando palavras que tem a que ver com essas coisas. Como cada um

acha que a violência sobrecodifica esse corpo. Qual é uma possível marca pictórica, pictográfica

desse desenho da violência. Trabalhem em associação livre. Conexão com imagens. A

representação pictórica tem a ver com texturas. Também pode ter palavras”.

15.5- Cada participante trabalhou individualmente desenhando sobre a silhueta

humana. Ao acabarem essa etapa, foram convidados a mostrar para o pequeno grupo os

desenhos antes de fazerem a exposição na grande roda. A exposição na grande roda foi

a primeira transposição textual, do desenho para uma descrição oral.

15.6- Em seguida voltaram a trabalhar nos pequenos grupos e deviam efetuar

nova transposição. Dessa vez, do desenho para um texto poético e apresentar

inicialmente somente para o seu grupo. Depois cada participante fez cinco (05)

perguntas sobre o que é a violência. O grupo elegeu três perguntas dentre todas para

colocar na grande roda. O coordenador chamou a atenção para que o fato de que a força

do intercâmbio deveria estar na pergunta e não na resposta. O interessante seria a

colocação da pergunta. Foi pedido também que o grupo apresentasse um pequeno

relatório da discussão interna que aconteceu para a decantação das perguntas.

Trabalharam bem concentrados. O nível de ruídos na sala não foi alto

15.7-. Cada um leu seus textos poéticos na grande roda e em seguida, um relator

escolhido pelo grupo informou sobre o processo que tiveram e apresentou as perguntas.

15.8- Apresento nesse item as perguntas dos grupos:

Grupo 01.

1-A violência é um conceito que se materializa no processo civilizatório, de cultura e de linguagem?

2-Como pensar a diferença e semelhança que aproxima a violência da criação?

3-sou violento, se sou, quando?

Grupo 02.

1-O que se mostrar e o que se oculta por trás do conceito de violência?

2-Violência é uma relação de poder?

3-Qual é a relação entre violência e ausência?

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Grupo 03.

1-O que viola a violência?

2-Quando é violência

3-Es posible pensar a violência como um elemento vital?

Grupo 04.

1-é possível pensar a violência como linguagem? Daí pensarmos numa estética da violência?

2-a nossa filosofia de morte determina nossa filosofia de violência?

3-Essa violência que é subliminar, que se expressa é....no rigor do pai educar um filho pra o bem dele...

é,....de... essa violência que faz com que os corpos sigam um padrão estético definido... essa violência que

está subliminar nos canis da mídia. Como ela age sobre a gente, no sentido de tirar nossa potência...como

enfrentar isso?

Grupo 05

1-A qué lhamamos violência? ( nascimento, raiba, erotismo, dor, muerte, ensénar)

2-As crianças são capazes de violência? ( es apropriado hablar de viviolencia em caso de los ninos

3-qual es la realción entre violência e poder?

Grupo 06.

1-Em que medida a violência se restringiria a violar o território do outro?

2-Cuálles seriam las consecuencias prácticas de violar el território de outro?

3- haveria a condição de "ser humano" sem a presença da violência?

16.-A próxima etapa das atividades foi a construção coletiva de uma figura

abstrata sobre o mesmo tema: violência. Depois de terminada a figura, o grupo

precisava discutir e chegar a uma definição sobre o que é violência e escrevê-la na parte

de trás do desenho O desenho devia ser construído pelo grupo sem consenso, sem

discussão, sem palavras. A primeira imagem seria a geradora e cada um deveria

desenhar aos poucos partes que iriam integrar, potencializar a imagem. O mesmo

processo da argila. O clima foi descontraído e alegre. Não houve silêncio em nenhum

momento. O coordenador estabeleceu tempo para atividade e ao avisar que faltavam

apenas 5 minutos. Brincadeiras sobre a violência de determinar um tempo são

formuladas.

“isso é que é violência”. “Não queremos tempo para acabar”.

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Houve um breve intervalo porque o jantar estava servido, mas nessa noite as

atividades foram retomadas depois do jantar.

16.1- Após o jantar, cada grupo elegeu um representante para mostrar o desenho

e ler a definição a que tinham chegado. Sendo o desenho abstrato não se pedia uma

explicação, mas podiam falar do processo para fazer uma relação entre a apresentação

da definição e representação do desenho. Apresento as definições de cada grupo.

Grupo 01.

A violência é um movimento que se materializa no processo civilizatório de cultura e de

linguagem. É uma afecção na forma da produção e da repressão no fluxo das relações, autorizado pelas

sociedades em seus diferentes tempos históricos e sujeitos. Essa violência se manifesta nas diferentes

instituições e legitima-se como ação que se quer educadora e formadora de sujeitos.

Grupo 02.

A violência é a experiência da erupção da ausência na presença

Grupo 03.

1-(um fluxo) uma força que se exerce sobre alguma coisa que quer permanecer em sua

identidade.

2-Um ato que contraia a vontade

3-efeito destrutivo do encontro de forças

Grupo 04.

Violência como constitutiva da natureza humana.

O grupo discutiu sobre ser a violência uma força que ora se coloca a serviço da construção e de

produção criativa e ora está dirigida p/ o ato destrutivo. Concluímos que tratá-se da mesma força

pulsional cuja expressão se condiciona pelo contexto.

Grupo 05

Violência é barrar potências.

Grupo 06

Violência é algo que acontece pra além da esfera da representação

16.2- Durante a apresentação das definições surgiram perguntas sobre a

definição do grupo 05, seguida de contestações. Foi questionado se contestar fazia parte

do jogo. Surgiu uma polêmica.

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16.3-Intervenção do coordenador. Como o grupo partiu para uma discussão

bastante calorosa o coordenador tomou a palavra e disse:

“uma questão de ordem: eu desejo que quando vocês... é claro que podem colocar uma dúvida sobre a definição...a coisa é... que a divisão tem que circular. Vamos tratar de evitar a contraposição de idéias que de repente não estão aclarando o campo semântico da definição. Sim.? Podemos aprofundar em conceitos da definição.”

16.4.Novas polêmicas surgiram durante as apresentações das definições. Seria a

violência um ato humano ou se aplica também à natureza? A violência é somente

destrutiva ou também pode ser criativa?Qual relação da violência com a dor e o prazer?

Violência se relaciona com a identidade pessoal? Alguns consideraram que a discussão

caminhava pra uma moralização da violência. Seria um problema moral, ou mais que

isso: exclusivamente moral? A violência seria algo que nos constitui ou algo que vem

do outro?

16.5. O coordenador encerrou essa etapa que apesar de não ter sido apresentada

como uma grande Roda, pois era somente a apresentação de uma etapa dos trabalhos,

acabou se constituindo numa logoanalise Ele chamou a atenção para o fato de ter

aparecido o conceito de força, mas não o conceito de não-violência. Encerrou com a

seguinte fala:

“Esse é um campo interessante para pesquisar no sentido de que essa afetação tem relação com a ação humana e a ação humana com conceitos morais em sentido restrito. Tudo o que o ser humano faz como normativa é constituído da moral. E a pesquisa do campo da moral desde o ponto de vista ético, então acho que é importante considerar que para nós, é muito importante, é interessante pesquisar dentro da ação humana. Gostaria de chegar no fechamento, a violência no campo educacional”.

16.06 Um participante fez ainda um aparte. “Que não podemos esperar que a

discussão seja apenas um concordar, uma grande harmonia. Na verdade é um momento

tremendo”.

16.07. O coordenador retomou a palavra e ainda falou sobre a dimensão afetiva

de um conceito e a dimensão perceptual de um conceito. Da força da imagem.

17.Grande Roda 04. A logoanalise feita nessa grande roda trouxe á tona

questões de possibilidade e dificuldades para o trabalho em grupo. A diferença do

trabalho corporal em si e a passagem para a discussão, para o verbal. A sensação de

alguns integrantes que se colocaram foi de que a vitalidade da experiência se perdia na

fala. Elementos como a quantidade de pessoas, a heterogeneidade do grupo, o uso das

palavras e suas diferenças semânticas para cada um apareceram como “dificultadores”

para a construção de uma “comunidade de investigação”.

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Também surgiu nas falas à idéia do grupo como suporte afetivo, como condição

de possibilidade para o trabalho. Mas também no grupo circulam os vetores de poder. A

fala é um poder constituído e na grande roda se fazia necessário negociar o sentido. Isso

seria a dimensão performática do grupo. A heterogeneidade, segundo o coordenador,

deve ser buscada ao máximo para garantir maior homogeneidade. A atividade se

encerrou com a fala do coordenador:

“A pesquisa philodramática não deve caminhar para uma batalha conceitual, antes disso

é a tentativa de estabelecer a relação entre as determinações corporais que um conceito inscreveu nos momentos originais. No caso, a violência. Isso inscreve a pesquisa na linha da filosofia prática.”

07.05- Sábado-manhã.

18. Atividade da clareira: por questões técnicas não será analisada. Mas é

importante ser citada, pois caracteriza a adesão de um material que foi incorporada

dentro de uma proposta bastante estruturada, mas que essa adesão indica que há espaço

para o acaso.

O coordenador levou o grupo para um espaço entre as árvores perto da pousada

e iniciou uma série de dinâmicas corporais que envolviam a energia dos 04 elementos:

água-terra-fogo e a partir de um texto da peça OS SERTÕES, dirigida por José Celso

Martinez Correa, do teatro OFICINA UZONA. As pessoas foram convidadas a

representar a energia dos quatro elementos com o corpo (incluindo a fala em sons

aleatórios) Alguns se entregaram ao exercício enquanto outros, por inibição ou algum

outro motivo não possível de ser mensurado se ausentavam da roda.

Uma jovem estudante de pedagogia chamou bastante atenção do grupo. De

temperado mais quieto, revelou durante o trabalho corporal uma energia inesperada pelo

grupo e se tornou o foco nas conversas que se seguiram as atividades.

07.05-Sábado –tarde.

19. O comando foi para que fizessem um mapa da violência. Foi dado a cada

grupo, duas folhas de papel pardo e deviam construir coletivamente o mapa da

violência. Esse percurso foi o início do ‘encenamento’. O objetivo final seria a

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encenação do conceito. A proposta começava mais uma vez pela imagem devido a força

dessa, segundo o coordenador.

19.1. A partir do material pictográfico deveriam compor uma performance para

apresentarem o percurso com alguma informação que fosse relevante em cada mapa.

Deveriam ensaiar e fazer uma apresentação.

19.2. Segundo o coordenador, o processo devia partir de uma premissa. Uma

hipótese de trabalho. A premissa deveria ser temática e podiam desafiá-la com

perguntas. Pergunta sobre ação, personagens, espaço, tempo dramático, temporalidade,

estrutura dialógica. Esse sistema de perguntas conduz a um conjunto de entradas e

saídas que seria de um possível texto, a ser improvisado ou não. Um texto de trabalho.

Um work in progresss. Esse deveria ser visto como um texto de aproximação. A

improvisação tinha seu espaço. Alguns integrantes não entenderam bem o comando e se

dirigiram ao coordenador para esclarecimentos. Outros interferiram e a explicação não

foi concluída. Os grupos se dispersaram em busca de outros espaços para ensaiar.

Apenas um grupo permaneceu na sala de convivência.

19.3- Os grupos apresentaram a performance. Um dos grupos (a ordem dos

grupos apresentada na pesquisa é diferente da seqüência do evento) não apresentou a

performance, pois não tinham conseguido concluir o processo de criação por problemas

internos.

20. Grande Roda 05 -Foi pedido para que os grupos falassem sobre o que tinha

acontecido analisando as condições de possibilidade e impossibilidade que se

apresentaram ao longo do processo. Depois dessa colocação, aconteceu uma longa

rodada de depoimentos, alguns bastante emocionados sobre as dificuldades e liberdades

que tinham surgido. Faço um pequeno resumo dos relatos dos grupos, obedecendo a

ordem que os apresento na dissertação.

Grupo 01- um integrante falou da dificuldade de entendimento que o grupo teve

e considerou que a filosofia não deu conta de lidar com as diferenças que o grupo

apresentou. Retomou o tema do cuidado. “Cuidado com a diferença, no sentido do

comportamento, da fala, da compreensão do que venha a ser filosofia, enfim, para que as coisas

aconteçam, que seja um encontro com mais prazer, não com menos”. Confusão entre processo

e resultado, pois não conseguiram chegar a uma estrutura de grupo que permitisse

chegar a um resultado. “Qual teria sido o problema?”, perguntavam-se sem conseguir

qualificar. Surgiu o tema da diferenças. Até com quanta diferença conseguimos lidar?

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Um resultado interessante é fruto de um processo interessante? Ou não? Na fala de outra

participante:

“Temos uma idéia prévia de que todos podem trabalhar em grupo, mas não

conseguimos”

Grupo 02- falou sobre a obediência ao comando. Falar o mínimo e executar. O

grupo buscou seguir essa orientação. A incorporação da ausência de alguns integrantes,

pois nem todos estavam presentes o integralmente nas várias etapas da atividade,

acabou por potencializar o trabalho, pois a ausência foi incorporada no próprio trabalho.

Realmente, a idéia de ausência apareceu na definição de violência desse grupo. O grupo

considerou o trabalho fluido. Trabalharam bem e se deixaram levar pelo fazer, tentando

racionalizar o mínimo possível. Uma experiência de construção foi o tom do relato.

Grupo 03: Falaram da energia necessária de doação para um trabalho em grupo

e da dificuldade de obedecer a um comando. Como compor as diferentes idéias?

Cansaço, limite físico. Mas também vivenciaram uma curiosidade, uma abertura para a

experimentação. Para um dos integrantes o clima tinha sido ruim do desenho até a

performance. A dificuldade estava, na sua percepção, na dificuldade individual de

alguns em ter que abrir mão de suas idéias.

“Quem quer levar sua idéia até o fim deve escrever um livro. Porque a lógica de uma

experiência como essa é que o outro vá destruir o que eu faço – esse é o problema'. Um espaço

de desconstrução e não de preservação de idéias. Desfazer a idéia do outro, desfazer o feito do

outro faz parte da problematização. Um problema de graus e de tensão. Quanto mais

estruturado, melhor estruturado está um pensamento, menos possibilidade tem de entrar em

relação com o outro, com se fosse uma relação inversamente proporcional e tem a ver com isso

que falaram de estar por fora”.

O que apareceu nas falas foi uma reflexão sobre o que é pensar, sobre o que é o

pensamento. Expressaram-se sobre isso de formas diferentes:

“Pensar junto significa compartilhar uma parte do processo de pensar, mas não todo processo de pensar. Se queremos compartilhar tudo esbarramos nesse problema, ou não podemos dar ao máximo que temos ao pensamento, ou acabamos dando tudo e saindo fora.”

“Em alguns momentos eu tenho a sensação de não estar pensando, Ricardo”, que estou acompanhando apenas seu pensamento, o qual eu acho muito bom.”

“Qual a amplidão possível de uma proposta? Quanto uma proposta resiste a uma diferença”?

Surgiu emoção durante uma fala sobre ser as relações feitas não apenas das

idéias, são feitas também das emoções e dos sustentos. Mas o participante interrompeu a

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fala evitando que a emoção fosse mais exposta. Sua questão era saber até onde se pode

contestar o outro para poder participar de um ato criativo coletivo?

Grupo 4- Grupo “paz e amor”, na fala de uma integrante. Na fala de outro: O que cada um queria podia fazer, mas o resultado não agradou a quem fez essa segunda colocação. Outra participante pergunta: o que é um grupo da paz? A pergunta abre a reflexão: “É, sim, acho que seja, mas, por exemplo, eu vi algumas pessoas incomodadas no grupo e isso não era exposto. Então, até que ponto esse grupo é da paz mesmo ou é de pessoas que guardam o que elas sentem por uma questão de estar num grupo, por uma questão de não conseguir se expor, por outras questões que não são só do grupo?Então, acabou sendo um grupo da paz porque a gente conseguiu respeitar a idéia do outro, mas eu fico me perguntando: será que a gente respeitou sempre a nossa idéia, como é que foi? Algumas vezes eu fiquei extremamente incomodada e eu não sabia reagir a isso, aí eu levantada, eu olhava para cima, enfim... Acho que muitas pessoas fizeram isso. Porque o que todos os grupos colocaram aqui na roda foi uma tensão que foi explicitada, e o nosso grupo eu senti que foi uma tensão que ficou para as pessoas, não foi posto na roda, né? Cada um sentiu uma coisa, um tinha um medo, o outro não gostou, o outro achando que não era por aí e ficava por isso mesmo. Então, é de como as singularidades se interagem e de como essas singularidades se mostram num grupo ou não se mostram.”

Outro participante interferiu: “Tem que investir a sua vida e acho que não fizemos isso. Então, é fácil quando você

deixa fazer alguma coisa que vai ficar razoável, sim? Mas se estamos criando criar uma experiência estética, tem que fazer um pouco mais”.

O pouco tempo dado à atividade parece ter resultado em tensão para outros

grupos e nesse a opção de um trabalho mais fácil se impôs pelo pouco tempo.

Grupos 05- Falaram da pressão individual que cada um passa ao trabalhar em

grupo. A participante que relatou o processo considera que uma forma de diminuir as

pressões individuais é não se sentir responsável pelo resultado. O descompromisso mais

do que o compromisso é fundamental, na perspectiva dela.

Também foi apontada a diferença entre a discussão teórica e o fazer.

Para uma das participantes foi importante a composição do grupo. O fato de

esse grupo ser composto praticamente por pessoas que já conheciam (somente uma

participante não era conhecida dos demais antes de El nagual) e ter pessoas bem

amáveis fizeram toda a diferença para ela. Outra participante traz a questão do afeto

como fundamental para o trabalho em grupo. “Não basta conhecer e sim gostar das

pessoas”.

Grupo 06: Falaram da frustração de abrir mão de uma idéia própria por não ter

sido bem aceita no grupo. Um dos integrantes fez um longo relato sobre as dificuldades

do grupo e particularmente das dele. Alegou inclusive problemas pessoais que acabaram

interferindo e fazendo-o oferecer resistências as atividades iniciais do curso. Mas apesar

das dificuldades acabaram conseguindo um produto final.

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O coordenador chamou a atenção para que uma performance tem um jogo,

regras constitutivas e que o processo desse grupo tinha elementos psico-dramáticos que

descaracterizam o critério de denegação e o resultado ficou então como psicodrama e

não philodrama.

O coordenador fechou a logoanalise com uma fala sucinta:

“Uma palavra para refletir, depois, amanhã poderemos retomar iso. A palavra é enquadre, enquadramento. Se você não sabe o que é enquadre, então não pode fazer trabalhos no campo grupal, é um desconhecimento”.

O professor Walter Kohan, coordenador do NEFI esteve presente em El nagual

na primeira parte do curso, nos jogos de integração e alguns jogos da desconstrução de

sentidos dos textos poéticos. Depois se ausentou e retornou na tarde de sábado.

Participou da última etapa das atividades. Assistiu a apresentação dos grupos e a grande

roda que se seguiu. O clima dessa grande roda foi bastante tenso, apesar de partes bem

cômicas que provocaram muitos risos. Após a breve fala do coordenador o fechamento

da noite foi dado pelo professor Walter da qual transcrevo alguns trechos. Em seguida à

fala dele, alguns participantes fizeram pequenas intervenções antes de fechar a roda.

Walter: “Eu tenho, assim, uma sensação interessante: pela primeira vez me sinto de fora de

algumas coisas que fazemos... Mas eu queria falar, pelo menos, de três coisas que percebi aqui e me ajudam a pensar. Uma é a questão da experiência... uma palavra que falamos muito, hoje e sempre... e a experiência tem condições ...e eu penso que a experiência tem condições de possibilidade e de impossibilidade. Ou seja, têm condições que possibilitam a experiência e têm condições que impossibilitam a experiência. Eu não sei quais são as condições nem de possibilidade nem de impossibilidade.... mas eu penso que aqui tem acontecido bastante das duas, tenho tido muitos exemplos das duas. Cada um refletirá... Mas acabo de ouvir confissões de impossibilitações da experiência, ou seja, frases inteiras nas quais a posição do sujeito mostra uma postura que impossibilita qualquer forma de experiência, sendo a experiência algo que se propõe ultrapassar um limite. A experiência não se dá no ar, não se dá no vazio, no vazio eu não posso pensar, eu não posso agir. A experiência... de verdade... se dá quando eu consigo transpassar alguns limites. Quando eu consigo pensar o que não pensava. Mas o que não pensava não é o vazio (...) É o que não pensava porque estava fora dos meus limites de pensamento. Então, eu não penso quando alguém me diz o que eu tenho que pensar, mas também não penso quando eu não tenho nenhum limite sobre o qual afirmar o pensamento (…) além disso, nós apostamos em uma coisa que também não sabemos se é possível, que é a experiência de pensar com o outro, que é o mais complicado. É claro, é muito mais fácil se sentar sozinho, pensar em casa (...) Em tudo caso, coloca-se para nós a pergunta sobre quais são as condições de experiência com o outro? O que é o mínimo indispensável para poder entrar na experiência?

A experiência de pensar com o outro exige, minimamente, sair do lugar (...) Experiência tem a ver com pelo menos três palavras: percurso, perigo e poros – caminho, ligado a aporia, ausência de caminho. Ou seja, experiência tem a ver com movimento, com percurso, com se deslocar, com sair do lugar e ir para outro. Tem a ver com que isso é perigoso, se de fato se faz, se não se finge, se fazemos com a vida, com o corpo, de verdade. E tem a ver que com que isso

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abre caminhos, mas também pode mostrar a impossibilidade de caminho, ou seja, ausência de andar, pode mostrar que não há para onde ir. Nem sempre abrir o pensamento à experiência mostra saídas ou mostra produtos maravilhosos.

Sobre a questão das regras, (...) é evidente que isso tem regras, tem pressupostos, tem sentidos. E a idéia nossa era, ou é, experimentar um jogo que tem regras e ver o que isso dá, o que isso mostra, mas para isso temos que jogar o jogo... É difícil avaliar o jogo ao mesmo tempo em que se joga. Você primeiro joga, depois que joga diz o que te pareceu esse jogo, a sensação é que “bom, para isso eu tenho jogar e cumprir mínimas regras”, mas parece que isso está sendo muito difícil, porque são regras que envolvem não apenas o que acontece, mas, sobretudo o que acontece quando nós nos abrimos ao outro e isso é sempre um desafio. (...) Que nós tenhamos tanta dificuldade para aceitar algumas regras eu penso que diz também respeito ao que essas regras nos levaram – aos limites que chegaram a forçar as reações que forçaram. O que aconteceu com mais de um grupo (...) um de não conseguir jogar e dois de quase chegar ao limite de não chegar a jogar, eu penso que isso mostra, ao contrário do que poderia parecer, a efetividade do jogo, a intensidade. Alguma coisa não é indiferente, alguma coisa mexe muito para gerar essa reação... É mais fácil fazer de conta que jogamos do que explicitar o que de fato explicitou-se. Ou seja, alguns El Nagual mais “harmoniosos” que fizemos até agora podem ser muitos menos interessantes do que esse El Nagual que provocou esse tipo de coisas. Isso tem a ver com a lógica da experiência. A questão é se de fato nós conseguimos tirar um pouco dessa extraordinária força de autocentrismo, de impossibilidade de sair do lugar, de ver não apenas o que acontece conosco, mas o que está acontecendo fora”.

Sassone toma novamente a palavra. “Essa proposta tem uma dimensão sumamente complexa, é a dimensão da introdução

do corpo no jogo dramático. Essas reações são constitutivas do jogo dramático, se você não pode instituir um critério de ficcionalidade, um critério de denegação, não fica claro onde a gente está projetando a ação na via cotidiana e quando está projetando uma ação criativamente no mundo da obra, e não está claro isso, temos problemas muito graves. As regras constitutivas que eu estou falando para você têm a ver com o cuidado de vocês, dá para entender? São trabalhos que põem em jogo o corpo, e o corpo tem intensidades muito importantes, que às vezes pode-se controlar, às vezes não. Então, se você joga fora desses limites, lamentavelmente, fora desses limites está vazio. Então, você pode modificar os limites, isso é parte das regras constitutivas do jogo teatral, pode expandir os limites. Agora se você salta do outro lado do limite, ali não tem nada”.

Walter: “Essas tais regras do jogo, que eu percebi aqui, são regras que ao mesmo tempo abrem o

espaço do pensamento. Aqui o pensamento trabalha sobre seu próprio limite. Ou seja, nas atividades de hoje, do grupo, o que tinha que era a tal da regra que era tão

limitante? Que tinha que se reunir em grupo e produzir um mapa a partir de um conceito (...) Ou seja, são regras fundamentais, regras que instrumentam um certo percurso para andar nesse jogo da experiência do pensamento, mas que depende de como o grupo, ou quem recebe as regras trabalha, aplica essas regras. São regras necessárias para que um jogo filosófico-pedagógico aconteça”.

Uma participante: “Não entendi em que as regras não podiam ser também desconstruídas – só que tem um

limite que é a impossibilidade de jogar. Se você desconstrói de fora não dá para jogar. . Eu não vi dessa forma a regra... E o que eu acho, assim, as pessoas tem muita

dificuldade de se relacionar com as regras. “Vamos ali pra um café de 20 min” e não se voltava nunca. As pessoas que estão aqui são muito racionais, trabalham somente da cabeça para cima

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do pescoço para cima, e a dificuldade enorme de um corpo sem órgãos, as pessoas lêem Deleuze, mas as pessoas não conseguem colocar aquilo na prática! Aqui, eu entendi que a proposta não era essa. Em alguns momentos de avaliação eu tentei dizer isso, assim, eu acho que colocar o corpo junto, desconstruir, inverter a proposta – primeiro faz, depois pensa. Isso é uma proposta que inclusive nos possibilita pensar diferente e não repetir só o que Deleuze diz, só o que Nietzsche diz, e não só repetir, repetir, repetir, sem a diferença. E o Ricardo dizia “Faz. Não fala, faz, faz, faz”, e algumas pessoas resistiram profundamente a isso. Então, mas houve uma disponibilidade para jogar, houve uma disponibilidade de cumprir as regras nesse sentido. “Não pensa”, assim, conosco também aconteceu: bota o papel na frente, começamos a teorizar, o que vai o que não vai e chega o Ricardo e diz “não, faz, faz” e fizemos. Eu vi grupos com papel em branco – horas depois, em branco, não tinha um risco, ninguém fez nada, nesse sentido, ninguém se propôs a ir “vamos primeiro, sei lá, a gente rabisca”. No nosso grupo teve uma coisa, assim, de chegar um momento, assim “não usa signo muito batido, não usa” e alguém não tinha visto e botou e alguém falou “ah, mas esse...” e aí a gente “ah, então vamos descontruir!” E desconstruiu, pronto... “Eu tinha uma entrega, acho que talvez a diferença fosse essa”.

Outra participante fala da experiência do seu grupo de forma emocionada. Na

fala abaixo, encontrei uma síntese do sentimento que ela vivenciou.

“Discutimos idéias e não pessoas, mas as pessoas estão por trás das idéias. Você está na sua idéia”.

Sassone: “Eu acho que se a gente pode ter um marco de referência para a proposta. Isso é muito

interessante, porque gera muita liberdade. Temos problemas para assumir pensamento e corpo, em uma mínima estrutura psíquico-física. Então, ninguém pode dizer que aqui não plantamos um problema, é interessantíssimo... A filosofia do corpo, um campo de meu interesse - não somente do meu, temos muitos filósofos que se ocuparam do corpo e muitos que falaram dessa intensidade do corpo e essa unidade, e isso está oculto, ninguém pensa nas condições de enunciação desses discursos, somente pensa na dimensão de seu pensamento. Conceito remonta a uma percepção e a um afeto altamente filosófico. Agora estamos perspectivando o corpo, não é que seja fácil assumir onde tenho o meu corpo, o que faço com meu corpo. Então, essa proposta desvela o corpo, desvela o que nossas determinações culturais” sobrecodificaram “. Então, se dá para pensar isso e vocês correm o risco de ter acesso a esse plano de conceitualização do corpo, acho que é muito legal... Mas se não, não tem nada de grave, mas se dá para pensar em desvelamento disso é muito interessante”.

A grande roda que deveria fazer a reflexão sobre as performances acabou por se

tornar a reflexão do curso, da proposta do curso. Por isso considero aqui o fechamento

da proposta a ser analisada. A discussão acabou tarde da noite. Algumas pessoas

dirigiram-se ao coordenador e ao professor Walter e pediram para que as máscaras

fossem feitas na parte da manhã de domingo. Assim, na manhã seguinte as máscaras

foram confeccionadas com o material de sucata que havia sido pedido para que os

participantes levassem e outros materiais encontrados no depósito de reciclagem da

pousada. Em seguida, descrevo brevemente as demais atividades somente a título de

complemento.

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21- Confecção das máscaras. Cada participante construiu uma máscara com o

material de sucata que tinha sido levado. Foi pedido para que relacionassem o

personagem da máscara com um dos elementos trabalhados na clareira: água, terra, fogo

e ar.

21.1-Ritual de apresentação das máscaras. “Em-marcarar”, Sentaram-se em

círculo e um a um iam colocando a máscara em frente a um espelho. Em seguida

apresentava sua máscara para o grupo fazendo um desfile dentro da roda e falando sobre

quem era o seu personagem.

21.2 Todos mascarados em pé em uma grande roda falaram os poemas. Que

tinham sido trabalhados.

21.3- O coordenador falou como despedida um poema. Autor não identificado.

22. Grande roda 06: agradecimentos em geral. Abaixo algumas transcrições da

falas finais de alguns participantes.

“Foi intenso de verdade. Tanto foi que em alguns momentos nós não conseguimos chegar a resultados, e fingir ou maquiar, geralmente, chegasse a resultados mais fáceis muito mais facilmente. Se não chegamos é porque fomos verdadeiros”.

“Estou saindo diferente, mexido. Com as minhas leituras infetadas porque as leituras de vocês me fizeram isso. E o mais interessante é que eu volto melhor, muito melhor do que eu entrei aqui”.

“E também eu pude viver aqui algo que eu teorizo. A intensidade do tempo. Que não tem uma relação direta com a extensão do tempo. Eu acho que só isso que é capaz de possibilitar encontros tão intensos, de pessoas tão distantes assim...”

“O curso foi intenso demais e essa intensidade faz parte do que o que a gente busca... a proposta do Ricardo é muito intensa e ele conseguiu tirar de nós limites que desconhecemos. O que deu foi uma coisa muito potente que não sei se estamos em condições de pensar e eu inclusive não consigo suportar no meu corpo. Agradeço a possibilidade de ter estado aqui e ficam muitas coisas pra pensar”.

“Agradeço a disponibilidade de todos se mostrarem disponíveis para jogar o jogo. Uma oportunidade da gente se conhecer, conhecer o corpo do outro, expor as nossas dificuldades... achei fundamental... entrar em contato... ultrapassando barreiras”

“Alguns quadros desse curso eu não vou esquecer...”

Fala final do Sassone:

“Não é fácil por o corpo em situação. Não é fácil brindar abertura do corpo dito num

espaço de experimentação e poder se confiar em um coordenador. Vocês tiveram a possibilidade de fazer isso. Eu tenho a sensação de que todo encontro, todo curso deveria começar quando termina. Esse momento está finalizando o aquecimento. Esse momento de deixar as coisas. Mas Também é importante afastar-se... a gente fala de uma coisa que é o pensar. A experiência é experimentar o pensar. Acontece que quando esse pensar está estritamente relacionado com o corpo, o corpo demanda ação e ação não pode passar por outro lado que não seja pelo corpo. Nesse caso, da filosofia prática. Nesse caso a experiência demanda transitar (...) Lamentavelmente, não tivemos um piso energético para atravessarmos juntos esse fazer.

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Eu recupero a dimensão do afeto na filosofia! A filosofia é pensamento, mas pensamento é afeto. E a gente tem que entender isso... esse pensamento que começa com uma série de especulações e termina com o pensamento que se pensa a si mesmo...mas esse ai é o pensamento de Deus e eu não gostaria de estar nesse lugar. Muito obrigado”.

Depois dessa fala o grupo se dispersou. Cada um pegou sua máscara pra levar de

recordação e iniciamos os preparativos para o retorno do grupo.

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