GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN - estacio.br · O Direito processual penal, o direito penal, a...
Transcript of GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN - estacio.br · O Direito processual penal, o direito penal, a...
UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN
HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL
Rio de Janeiro 2008
GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN
HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.
Orientador: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck
Rio de Janeiro 2008
VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
A dissertação
HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL
elaborada por
GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado em Direito como requisito parcial à obtenção do título de
MESTRE EM DIREITO
Rio de Janeiro, 10 de julho de 2008.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________ Prof. Dr. Lenio Luiz Streck
Presidente Universidade Estácio de Sá
_____________________________________ Prof. Dr. xxxx
Universidade Estácio de Sá
_____________________________________ Prof. Dr. xxxx
Universidade xxx
À minha família pelo apoio incondicional.
AGRADECIMENTOS
Aos meus amados filhos Caio Gabriel Vicentin e Gabriela Vicentin, esperança de um
futuro melhor.
À minha esposa Maieli Cristiane Cavalheiro Vicentin, fiel companheira de momentos
felizes e tristes.
Ao Professor Lenio Luiz Streck pelo brilhantismo de suas obras, sábias e excelentes
orientações e sugestões apontadas para elaboração deste trabalho.
À Universidade Estácio de Sá e Universidade do Oeste de Santa Catarina –
UNOESC pela oportunidade de estudo proporcionada.
RESUMO
HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL. Gláucio Wandré Vicentin.
Lenio Luiz Streck (ORIENTADOR). (Universidade Estácio de Sá).
As conquistas da legalidade têm alimentado um ideal de certeza e segurança jurídicas no direito. No entanto, diante de problemas complexos da vida social moderna, surgiram entendimentos, baseados em teorias metafísicas, que admitem causas supralegais no direito penal para fins de justificantes e exculpantes de comportamento. A hermenêutica filosófica, rompendo com o paradigma metafísico apresenta-se para proporcionar uma adequada compreensão dessas situações chamadas de supralegais, sem violação do princípio da legalidade. Têm-se como objetivo geral: apresentar uma solução condizente com o Estado Democrático de Direito para as situações de supralegalidade no direito penal brasileiro e como objetivos específicos: apresentar a evolução histórica dos modelos de Estado Moderno e sua relação na proteção dos direitos fundamentais; entender a relação do direito com a moral e com a justiça para uma prestação jurisdicional penal adequada; estudar os sistemas processuais penais e princípios de garantia do processo penal; apresentar as principais teorias sobre o pensamento jurídico moderno; estudar a teoria hermenêutica filosófica; analisar a possibilidade de se adotar causas chamadas supralegais na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito, a partir da compreensão hermenêutica. A pesquisa vincula-se à área de concentração denominada direito público e evolução social e à linha de pesquisa acesso à justiça e efetividade do processo do programa de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá. A pesquisa é do tipo bibliográfica, pois se consulta livros, periódicos, legislação e jurisprudências, disponibilizados na forma impressa ou eletrônica - internet. Fiel à compreensão hermeneutica – que é um modo de ser e não um método – a presente pesquisa foi construída a partir da análise histórica e teórica sobre os assuntos delineados e as conclusões produzidas a partir da compreensão do autor. Como resultado da pesquisa, tem-se que a atual conjuntura do Estado Democrático de Direito é conseqüência das experiências de modelos absolutistas, liberais e sociais. A constituição (1988) abriga um rol extenso de direitos fundamentais, necessários para uma adequada (re)leitura da legislação infraconstitucional, e tem força vinculante para o exercício dos poderes executivo, legislativo e judiciário. O Direito processual penal, o direito penal, a constituição, a hermenêutica e o garantismo possuem afinidades para implementação do Estado Democrático (e Social) de Direito. A partir da idéia de compreensão o sentido apresenta-se como fusão de horizontes numa perspectiva produtiva e não reprodutiva. O pressuposto metafísico do método cede espaço para a realidade/faticidade, onde cada momento é único para interpretar/aplicar o direito. Os preconceitos do intérprete aparecem como condição de possibilidade sem que hajam atos arbitrários ou discricionários porque ele está, obrigatoriamente, vinculado aos critérios de validade do ordenamento jurídico. O problema na adoção dos chamados direitos supralegais está na concepção positivista que soluciona casos difíceis através da discricionariedade do juiz. Visto sob a perspectiva hermenêutica, falar em supralegalidade é um equívoco porque a compreensão de totalidade, com base em valores normativos do sistema, soluciona a questão sem recorrer à discricionáriedade e decisionismo que levam à arbitrariedade.
(PALAVRAS-CHAVE) hermenêutica filosófica, direitos supralegais e processo penal constitucional ou democrático.
ABSTRACT
HERMENEUTICS AND PROVISION JURISDICTIONAL: THE PROBLEM OF (UN) ADMISSIBILITY OF RIGHTS SUPRALEGAL IN BRAZIL. Gláucio Wandré Vicentin. Lenio Luiz Streck (ORIENTED). (Universidade Estácio de Sá).
The conquests of legality have fed a ideal certainty and security juridical in right. However, before the problems complex of modern social life, emerged understandings, based in metaphysics theories, admitting causes supralegal in criminal right for purposes of justifies and exculpantes of conduct. The philosophical hermeneutics, breaking the metaphysic paradigm present for to proportion adequate understanding these situation called supralegal, without violation the principle of legality. The general objective: to present a solution suitable with the State Democratic of Right for as situation supralegality in Brazilian criminal right and specific objectives: to present the historical evolution of models the Modern State and their relation in the protection of fundamental rights; understand the relation of right with morality and justice for a criminal jurisdictional provision adequar; with a justice for jurisdictional criminal provision adapt studying the systems criminal processual and principles of guarantee the criminal process; to present the main theories about the thought modern legal; study the philosophical hermeneutics theory; analysis the possibility to adopt causes called supralegal the current conjuncture of Democratic State of Right, from the hermeneutics comprehension. The research entail in the concentration area called public right and social evolution and the line of research access to justice and effectiveness of process the master's degree program in Right of Universidade Estácio de Sá. The research is bibliographical, because consultation books, magazines, legislation and jurisprudences, available in form imprint or electronic - internet. Faithful to hermeneutics comprehension– it is a way to are not a method – this research was built from the historical analysis and theoretical about the subjects outlined and conclusions produced from the comprehension of author. With result this research, has been that the current juncture of Democratic State of Right is consequence of experiences absolutists models, liberalist and social. The constitution (1988) harbors a role extensive of fundamental rights, necessary for a adequar (re)reading of legislation infraconstitucional, and have force linking for o exercise the executive power, legislative and judicial. The processual criminal right, criminal right, the constitution, the hermeneutics and garantism have affinity for implementation do State Democratic (and Social) of Right. With of idea of comprehension the meaning present with merger of horizon in perspective productive or not reproductive. The presupposition metaphysics of method cede space for the reality/faticidade, when the moment is unique for interpret/apply the right. The prejudices of interpreter appear with condition of possibility without that have acts arbitrary or discretionary because he is, obligatorily, entailed the criteria of validity of ordainment juridical. The problem in adoption of called rights supralegal is in positivist conception that solve hard cases through the discretion of judge. Seen in the hermeneutics perspective, speak in supralegality is a mistake because the comprehension of totality, based in values normative of system, solve a question without appeal to discricionariedade and desicionism that leading to arbitrariness.
(KEYWORDS) hermeneutics philosophical, rights supralegal and constitutional criminal process or democratic.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9
CAPÍTULO I
1 FORMAÇÃO DO ESTADO E LEGITIMIDADE CONSTITUINTE ......................... 12
1.1 CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO DO ESTADO: MODELOS ABSOLUTISTA, LIBERAL, SOCIAL E DEMOCRÁTICO............................................................................................. 13
1.2 LEGITIMIDADE CONSTITUINTE: QUEM DEVE SER O BENEFICIÁRIO DO CONTRATO SOCIAL? CONSTITUIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA NECESSÁRIA IMBRICAÇÃO PARA A PROTEÇÃO E GARANTIA DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS ................................. 32
CAPÍTULO II
2 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL ..... 39
2.1 FUNDAMENTOS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ADEQUADA ....... 40
2.2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, CONSTITUIÇÃO E PROCESSO PENAL: UMA APROXIMAÇÃO GARANTISTA ........................................................................... 51
2.3 PRINCÍPIOS DE GARANTIA NO PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO BRASILEIRO..................................................................................................................... 66
CAPÍTULO III
3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E (A NOVA) COMPREENSÃO DO MUNDO (E DO DIREITO)................................................................................................................... 79
3.1 PROLEGÔMENOS PARA OS APONTAMENTOS SOBRE UMA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA TRANSFORMADORA: (IN)EFETIVIDADE CONSTITUINTE NO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO........................................................................... 80
3.2 VIRAGEM ONTOLÓGICA: A FILOSOFIA A SERVIÇO DE UMA “NOVA” MANEIRA DE COMPREENDER O MUNDO E A DERRUBADA DO REINADO METODOLÓGICO COMO FONTE DA VERDADE......................................................... 90
3.3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA (TRANFORMADORA): VALORIZAÇÃO DO SER, LINGUAGEM E COMPREENSÃO COMO FATORES QUE DENUNCIAM O EQUÍVOCO DA HERMENÊUTICA TRADICIONAL PROCEDIMENTALISTA ............ 98
8
3.3.1 Utilização do método no direito.................................................................................. 99
3.3.2 Valorização do ser, linguagem e compreensão: pressupostos de uma resposta adequada .......................................................................................................................... 106
CAPÍTULO IV
4 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O COMPREENDER DAS JUSTIFICANTES E EXCULPANTES PENAIS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL JUSTA E DEMOCRÁTICA ........................................................................................................... 124
4.1 DIREITOS CHAMADOS SUPRALEGAIS NA TEORIA GERAL DO DELITO: CULPABILIDADE COMO FUNDAMENTO DA PENA E SITUAÇÕES DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA E ELIMINAÇÃO DA ANTIJURIDICIDADE PELO CONSENTIMENTO DO OFENDIDO.............................. 126
4.2 O EQUÍVOCO DO DISCURSO SOBRE OS CHAMADOS DIREITOS SUPRALEGAIS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: A COMPREENSÃO DAS EXCULPANTES E JUSTIFICANTES NA TEORIA DO DELITO COMO FUNDAMENTO PARA INTERPRETAÇÃO ADEQUADA................................................................................... 146
CONCLUSÃO................................................................................................................. 159
REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 164
INTRODUÇÃO
A hermenêutica filosófica é a concreta possibilidade de revolução no modo de
entender o mundo e também o direito. A partir da teoria hermenêutica são desveladas as
possibilidades do compreender o que proporciona uma interpretação adequada do direito –
visão de totalidade – que visa o pagamento da histórica dívida social vivenciada no período
moderno.
Os Estados modernos e neles a concepção de direito como instrumento regulador
dos comportamentos sociais está fortemente alicerçado sobre as bases da legalidade. Não resta
dúvida de que ela é uma das essenciais conquistas da humanidade, principalmente porque
representa freio ao arbítrio.
A teoria geral do delito evoluiu significativamente no último século, principalmente
na tentativa de solucionar problemas cada vez mais complexos da vida social moderna. Com
essas mudanças sociais surgiram entendimentos que admitem as chamadas causas supralegais
no direito penal, exclusivamente para fins de eliminação da antijuridicidade e excludentes de
culpabilidade.
Então, de um lado têm-se as conquistas da legalidade e, de outro, manifestações pela
adoção de situações supralegais, bem como compreensões teóricas baseadas na tradição
metafísica. Paralelamente, a hermenêutica filosófica apresenta-se como proposta para uma
resposta adequada.
A indefinição sobre a adoção da supralegalidade no direito penal gera insegurança
jurídica porque se teme ao arbítrio de decisionismos e discricionariedades nada condizentes
com o atual Estado Democrático de Direito. Também, não é razoável impor a coerção do
direito penal às situações flagrantemente justificáveis de comportamento, pois se nutrem
situações injustas para os acusados.
10
Assim, é preciso apresentar uma solução para as situações de supralegalidade no
direito penal brasileiro condizente com o Estado Democrático de Direito. Os caminhos
trilhados nessa pesquisa têm como base de sustentação a formação do Estado e legitimidade
constituinte, a prestação jurisdicional e o Processo Penal Constitucional, a hermenêutica
filosófica como compreensão do mundo (e do direito) e a adequada interpretação das
justificantes e exculpantes para configuração do delito.
No primeiro capítulo aborda-se a evolução histórica dos modelos de Estado
Moderno pretendendo-se caracterizar a relação do Estado na proteção dos direitos
fundamentais, pois compreender as nuances históricas a partir do contrato social – direito
como explicitação da vontade soberana do povo a serviço da sociedade – é de fundamental
importância para a aplicação do direito na atual conjuntura do Estado Democrático, ou seja, o
capítulo se justifica porque o sentido de Constituição, que é fundamental para efetividade dos
direitos fundamentais, depende de uma compreensão histórica do papel do Estado na
sociedade.
No segundo capítulo apresenta-se a aproximação do direito com a moral para uma
prestação jurisdicional penal justa, bem como um estudo sobre os sistemas processuais penais
e os princípios de garantia do processo penal relacionados com a necessária (re)leitura do
direito infraconstitucional processual penal. O capítulo é relevante porque o processo penal
constitucional é o caminho necessário para aplicação do direito material (teoria do delito).
Por sua vez, no terceiro capítulo contemplam-se as principais teorias sobre o
pensamento jurídico moderno e o estudo da hermenêutica filosófica como (nova) forma de
compreender o mundo e o direito a fim de subsidiar as conclusões que contrapõem essa teoria
às causas chamadas supralegais.
Por fim, no quarto e último capítulo analisa-se a possibilidade de se adotar causas
chamadas supralegais na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito, a partir da
compreensão hermenêutica.
A pesquisa é do tipo bibliográfica porque se consulta livros, periódicos, legislação e
jurisprudências, disponibilizados na forma impressa ou eletrônica - internet.
Fiel à compreensão hermeneuta – que é um modo de ser e não um método –
endende-se que a produção da verdade se dá a partir da faticidade/historidicidade do
intérprete, pois é quem traz consigo seus pré-juízos na conformação do ato decisório para
produção da verdade. A presente pesquisa foi construída a partir da análise histórica e teórica
11
sobre os assuntos delineados e as conclusões produzidas a partir da compreensão do autor.
A pesquisa vincula-se à área de concentração denominada direito público e evolução
social e à linha de pesquisa acesso à justiça e efetividade do processo do programa de
Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá.
CAPÍTULO I
1 FORMAÇÃO DO ESTADO E LEGITIMIDADE CONSTITUINTE
O Estado é o espelho de um jogo – de interesses sociais – disputado por uma luta de
classes. A luta travada do medievo até a atualidade sobre a constituição e atuação do Estado
está relacionada à busca do poder com o objetivo de atingir dominação. Na atividade Estatal a
classe social privilegiada acabou por fazer prevalecer seus interesses e suas vontades em
detrimento dos oprimidos, seja por embargos políticos ou econômicos.
Não se pode negar que o direito é produto e instrumento desse processo histórico
evolutivo. No primeiro caso porque seus preceitos emergem desse meio conflituoso e refletem
o desejo de determinada sociedade. No segundo, porque se utiliza da coerção para fazer valer
os preceitos previamente estabelecidos (produto) e constitui-se numa tentativa de controlar os
comportamentos humanos através de uma pretensão de completude – equivocada.
Por mais paradigmático que possa parecer, esse processo histórico evolutivo
conduziu para soluções positivas na medida em que surgiram alternativas que olharam para o
social, num processo de inclusão indireto dos marginalizados1.
É preciso alertar que as mudanças para contemplar os excluídos não ocorreram por
bondade ou piedade dos detentores do poder, mas por necessidade de sobrevivência social e
Estatal.
A principal novidade no âmbito jurídico é a construção, pelos profissionais jurídicos,
de uma nova concepção sobre a Constituição e seus princípios. Os direitos fundamentais
declarados na Constituição passaram a ser garantidos a todos os cidadãos do Estado,
1 Como a própria grafia da palavra denota, a expressão refere-se àqueles que se encontravam à margem da sociedade – excluídos do contrato social – principalmente por fatores genealógicos e econômicos.
13
independentemente da classe social a que pertença.
A partir do processo histórico evolutivo do Estado, da sociedade e do próprio direito,
fala-se agora em Constitucionalização dos direitos e garantias fundamentais, como uma forma
de equilíbrio à luta de classes.
Dessa forma, é preciso olhar e entender o passado para compreender o presente e
projetar o futuro. A análise sobre o surgimento e a evolução do Estado é ponto fundamental
para compreensão da trajetória não linear e não acabada da democratização do direito.
Parte-se de uma análise sobre o surgimento da forma moderna de Estado, teorizada
por grandes pensadores contratualistas como Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu. Num
segundo momento analisam-se as formas de Estado Absolutista, Liberal, Social e
Democrático a fim de identificar para quem os direitos foram/são dirigidos e estabelecer a
relação entre garantia e efetivação.
1.1 CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO DO ESTADO: MODELOS ABSOLUTISTA, LIBERAL,
SOCIAL E DEMOCRÁTICO
O surgimento do Estado e seu desenvolvimento estão vinculados aos movimentos
sociais de interesses de classes.
A decadência da sociedade Feudal, a influência do modelo absolutista, o surgimento
da revolução Burguesa e as principais guerras mundiais são marcos históricos importantes,
vistos sob a ótica histórico-sociológica e hermenêutica, para a compreensão da origem e
evolução das várias formas de Estado moderno, bem como para entender o papel do direito na
sociedade.
Dessa forma, abordam-se o surgimento do Estado e os principais modelos
verificados no decorrer da história, a partir do período medieval, a fim de se identificar os
movimentos sociais que formaram o conceito atual de Estado, Constituição e percepção sobre
a efetividade dos direitos.
Existem diversas abordagens conceituais sobre o Estado. Como destaca Dallari,
definir um conceito ao Estado não é tarefa fácil devido à existência de múltiplos enfoques que
se pode ter sobre ele (não há uma uniformidade conceitual). As abordagens contemplam, aos
seus extremos, desde o aspecto primitivo – primeiros agrupamentos de homens – até a
14
realidade histórica – que vincula o conceito a determinadas características (noção restrita). Por
outro lado, a diversidade conceitual é justificada pelos diversos olhares sobre o Estado
(sociólogo, jurista e cientista político). Geralmente o Estado é conceituado como ‘sociedade
política’ – expressão do poder político. Esse poder, no decorrer dos séculos, vem sofrendo
limitações jurídicas e, dessa forma, devem-se ter presentes dois aspectos para conceituá-lo: o
político e o jurídico.2
Miranda afirma que “O Estado é uma sociedade política com indefinida
continuidade no tempo e institucionalização do poder [...]” (exercido em determinado
território). Figura como promovedor da integração, direção e defesa da sociedade e tem como
fim a sua própria sobrevivência. O “[...] Estado é um caso histórico de existência política [...]”
e equivale a “[...] falar em comunidade e em poder organizados [...]” juridicamente. 3
Ante a diversidade apresentada e por considerar necessário um conjunto normativo
para regular a vida social e política do homem, adota-se uma postura que contempla três
aspectos: social, político e jurídico, o que acaba por não divergir de Dallari porquanto
sociedade e política encontram-se num enlace necessário.
Segundo essa percepção, o conceito de Estado pode ser definido como “[...] ordem
jurídica soberana, que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado
território [...]”.4 O conceito de soberania5 é decorrente dessa forma de organização política
para dar mais vigor ou força a ordem jurídica. Por sua vez, o território é a delimitação de
ordem física/material onde essa força tem atuação.
2 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 41-45. 3 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 22; 168-170. (grifo do autor). 4 DALLARI, 2001, p. 41-45. 5 A soberania, historicamente, caracteriza-se como “[...] poder que é juridicamente incontrastável, pelo qual se tem a capacidade de definir e decidir acerca do conteúdo e da aplicação das normas, impondo-as coercitivamente dentro de um determinado espaço geográfico, bem como fazer frente a eventuais injunções externas. Ela é, assim, tradicionalmente tida como una, indivisível, inalienável e imprescritível.” Modernamente este conceito vem sofrendo fortes investidas proporcionadas pela globalização, criação de comunidades supranacionais, empresas transnacionais (poder econômico), organizações não governamentais e a própria transformação do modelo de Estado (Liberal Clássico para o Bem-Estar Social). MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 25-30. O “[...] discurso da soberania, em sua fase inicial, surge com o objetivo específico de proclamar a legimidade do poder real. [...]” (dimensão de persuasão e normatividade). A partir da contestação burguesa ao regime absolutista (tradicionalmente legitimado pelo direito natural), a legitimação do poder soberano passa ao povo, considerado como Nação. (soberania popular – origniária do contrato social). No séc. XIX surge na Alemanha a teoria da personalidade jurídica que atribui legitimidade à lei, num processo que legitima Estado e Direito, a partir da Constituição e da finalidade do direito que é o bem comum (legitimidade impessoal). ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2005, p. 149-150.
15
As teorias sobre o surgimento da sociedade6 dividem-se em naturalistas e
contratualistas. A primeira considera que a associação entre os seres humanos está vinculada à
idéia de vontade natural e intrínseca ao homem. Constitui-se num impulso natural do homem
para viver em sociedade – desejo de viver em sociedade. Seus principais representantes
teóricos são: Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e Oreste Ranelleti.7 A partir de uma
abordagem contratualista o homem é considerado detentor de uma autonomia de vontade,
impulsionada por uma percepção de convívio pacífico e organizado. Eles sentem a
necessidade de estabelecer um representante desse poder e o fazem através da celebração de
uma espécie de contrato simbólico (transferência de direitos).
Adota-se como referência, sem pretensão de esgotar o assunto, a abordagem em que
a formação da sociedade está justificada pelo acordo de vontades (contratualismo), ainda que
não declaradas formalmente.
A concepção contratualista deita raízes no pensamento político medieval que
afirmava origem popular do poder, presente, principalmente, nos séculos XVII e XVIII.8 Na
percepção de Streck e Morais o contratualismo cumpriu uma função histórica de iniciar a
sociedade política, pois “[...] pretende estabelecer, ao mesmo tempo, a origem do Estado e o
fundamento do poder político a partir de um acordo de vontades, tácito ou expresso, que
ponha fim ao estágio pré-político (estado de natureza) e dê início à sociedade política (estado
civil).” 9
Como principais teóricos contratualistas tem-se: Thomas Hobbes (Leviatã, parte I,
Cap. XVIII.), John Locke (Segundo Tratado Sobre o Governo Civil), Montesquieu (Do
Espírito das Leis, Livro I, capítulo II) e Rousseau (O Contrato Social, Livro I, capítulo I).
Thomas Hobbes foi um defensor do sistema monárquico de governo, mas as suas
idéias serviram de base para a justificação da criação dos Estados modernos baseados na
divisão dos poderes, o que ocorreu aproximadamente um século após a publicação de sua obra
Leviatã (1651).
Em Hobbes, a arte – criação racional – imita a natureza. Ela cria um homem de
avantajado porte – “[...] maior estatura e força do que o homem natural [...]” – que é o Estado 6 Prefere-se o emprego da palavra sociedade e não Estado, porquanto o elemento ordem jurídica (ainda que não escrita) é necessário para formação do conceito de Estado. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 11. 8 MIRANDA, 2007, p. 161. 9 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política & teoria do Estado. 5. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 29.
16
(Leviatã) que tem por objetivo proporcionar segurança à coletividade.10
O homem é dotado de uma igualdade justificada pelas diversas formas de se obter
algo desejado por eles, ou seja, o mais fraco fisicamente tem as mesmas condições de derrotar
o mais forte porque pode se utilizar de “maquinação” ou aliar-se aos outros homens. Quando
os desejos são comuns eles tornam-se inimigos e partem para a guerra, gerando uma situação
de perigo e desconfiança permanente. Para suprir a insegurança são criados (por pacto) o
poder soberano que determina as leis. A companhia entre os homens é uma situação de
desprazer quando não amparada por alguém que imponha o respeito entre eles. A ausência
desse poder comum gera a guerra “[...] que é de todos os homens contra todos os homens
[...]”.11
A associação entre os homens objetiva um convívio social pacífico. Nesse aspecto
“As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas
coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do
trabalho. [...]”.12
Hobbes justifica as razões do contratualismo no fato de que o indivíduo precisava
preservar sua própria vida. Dessa forma, o homem transfere poderes em troca de segurança,
para evitar a guerra de todos contra todos (‘o homem é lobo do homem’).13 Assim, o homem é
naturalmente mal porque tem anseios de dominação e opressão para com o próximo. Por outro
lado, os poderes humanos para fazer valer seus desejos malévolos não são tão superiores a
ponto de torná-los absolutos a um só ser, pois os demais homens podem encontrar-se em
situação de desigualdade física, mas não de potencialidade lesiva ao outro.
Um clima de ameaça constante está presente nas formas primitivas de vida. Os
homens demonstram-se fracos na medida em que têm o medo da morte. O associativismo
torna-se necessário por questões de conveniência – proporcionar o conforto – e sobrevivência
– neutralizar a ameaça constante. A eleição de um soberano se impõe como forma de conter o
medo, a sensação de insegurança e o desejo de vida confortável.
John Locke é considerado o pai do liberalismo, pois afirma que o homem realiza um
pacto de consentimento para “[...] preservar e consolidar os direitos já existentes [...]”. Assim,
admite direitos naturais pré-existentes (estado de natureza), que estabelecem os limites da 10 MALMESBURY, Thomas Hobbes. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 05. 11 Ibidem, p. 74-75. 12 Ibidem, p. 77. 13 STRECK; MORAIS, 2006, p. 30-37.
17
convenção, para que possam ser garantidos pelo soberano (o que gera um quadro de
associação e submissão).14
Os homens vivem em estado de liberdade, mas não de permissividade. O estado de
natureza é comum a todos os homens, que são portadores de direitos naturais fundamentados
pela razão e concebidos de forma igual e independente pelo criador-todo-poderoso. Assim, é
possível afirmar que um homem não está autorizado a utilizar o outro como instrumento de
suas vontades (a hierarquia levaria a destruição uns dos outros) e no caso de violação dessas
leis naturais (renúncia à razão) o ofendido está legitimado a revidar em nome da prevenção e
conservação do estado de natureza.15
A renúncia a esse direito individual de punir (julgamento particular) que cada um
possui naturalmente se dá em favor da comunidade formando-se uma sociedade política
caracterizada por regras imparciais e homens autorizados a fazê-las cumprir. 16
Locke apresenta um estado de natureza bom reafirmado pelo contrato social. Na
sociedade – convivência comum – um homem está naturalmente legitimado a repelir a
violação das regras estabelecidas pelo outro, porém, não o faz com suas próprias mãos, mas
outorga o poder a um representante chamado Estado.
O final do julgamento particular se dá por consentimento e acordo com os outros
homens a fim de se assegurar “[...] uma vida confortável, segura e pacífica uns com os outros,
desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não
são daquela comunidade. [...]”. Assim, forma-se um corpo político que age e decide com base
nas vontades da maioria.17
Através da criação de regras imparciais, legitimadas pelos indivíduos que compõem
a sociedade, o Estado assegura a igualdade entre os homens. Dessa forma, assegura o estado
de natureza em razão da vigilância permanente que estabelece e da repressão legítima quando
da ocorrência de eventual violação.
Assegurar a igualdade e a liberdade nos limites do contrato social constitui uma
mudança de paradigma. O Estado passa a atuar como garantidor desses valores – nova forma
de pensar – que são a bandeira do Estado Liberal, sucessor de um modelo desprovido de
14 STRECK; MORAIS, 2006, p. 30-37. 15 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 84-86. 16 Ibidem, p. 133. 17 Ibidem, p. 139.
18
garantias previamente estabelecidas.
Para Montesquieu as leis se dividem em leis da natureza e leis positivas. As
primeiras derivam da criação e são visualizadas através de um olhar para a constituição da
sociedade enquanto que as últimas decorrem da perda do sentimento proporcionado pelas
primeiras gerando um estado de guerra.
As leis da natureza são derivadas da constituição do ser e devem ser estudadas a
partir de um olhar para o antes da formação das sociedades. As leis da natureza são quatro: a)
o homem no seu estado natural provém de um criador e não possui conhecimentos, mas tem a
faculdade de conhecer. Pensando na conservação do seu ser sente-se fraco, tímido e inferior
ocasião que conduz à paz, que é a primeira lei natural.18 b) a segunda lei natural decorre do
sentimento de inferioridade e fraqueza da primeira lei. Diante dessa compreensão o ser
humano sente a necessidade de alimentar-se, originando-se a segunda lei natural. c) a
aproximação natural dos homens pelo fator prazer dá-se como a de qualquer espécie e é
inflamada pelo encanto que os sexos se inspiram. A procura natural se torna uma das leis
naturais. d) os homens podem ter conhecimentos e isso os diferencia dos demais animais
conduzindo-os a uma união. Assim, o desejo de viver em sociedade é a última das leis
naturais.19
As leis positivas são estabelecidas pelo próprio homem em decorrência de sua
capacidade de inteligência – fruto da razão humana. O sentimento de força ocasionado pela
perda dos sentimentos de igualdade e fraqueza advindos das leis naturais geram um estado de
guerra entre nações e entre os indivíduos e sociedade. No intuito de conter o estado de guerra
estabelece-se o direito das gentes (entre povos), dos governos (políticos) e entre os cidadãos
(civil). 20
Dessa forma, há um elemento natural – criação – do homem que contribui para a
formação de uma sociedade pautada no espírito da igualdade, fraqueza e humildade. Nesse
ponto há a concepção do homem que nasce bom.
Ocorre que essa bondade sofre influência de uma racionalidade intrínseca ao homem
– capacidade de conhecer e criar – fortemente influenciada pela inteligência. Esse é o fator
18 Nesse ponto encontra-se divergente à teoria de Thomas Hobbes, pois para este o homem tem um desejo de sobrepor-se ao outro. Montesquieu não considera razoável essa posição porque o temor dos homens o levariam a fugir e não associar-se. 19 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes. Tradução Pedro Vieira Mota. 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 82-83. 20 Ibidem, p. 83-84.
19
que gera a guerra.
As paixões, o desejo de dominação e o sentimento de superioridade conduzem a
formação de leis que passam a regular o meio de vida em sociedade. O homem torna-se capaz
de elaborar suas próprias leis fundadas por um processo de sentimento egocêntrico. Daí
decorre que a formação do Estado advém da criação racional dos homens – contratual.
Ainda, a partir da reflexão sobre a constituição da sociedade através do elemento
racional – leis positivas – Montesquieu tem consciência de que essas mesmas leis estão
sujeitas a modificação porque o homem é limitado pelo seu erro e sua ignorância, servindo a
muitas paixões.21
A sociedade surge, então, a partir da criação de um homem perfeito, mas com
capacidade – possibilidade de – para imperfeição. Após superar suas fragilidades desloca-se
de um estado de paz para um estado de guerra. Para conter o estado de guerra cria leis
positivas que também estão sujeitas às paixões e erros naturais da fragilidade do
conhecimento humano.
Rousseau, por sua vez, afirma que o homem nasce livre, porém está acorrentado. Ele
“[...] Julga-se senhor dos demais seres sem deixar de ser tão escravo como eles. [...]”.22
Introduz o pensamento de que o homem não é mau por natureza, mas através do decorrer
histórico, transforma-se em “lobo do homem” (‘Tudo é bom quando sai das mãos do autor das
coisas’, porém, ‘tudo se degenera nas mãos do homem’). Dessa forma, o homem possui no
seu íntimo um sentimento de justiça.23
Os homens viviam no estado natural e foram forçados à mudança em decorrência de
ameaças de perecimento. A união entre eles foi o caminho para fazer força contra as
resistências do modo de vida primitivo. O contrato social visa a proteção das pessoas e dos
bens, assegurando-se a liberdade dos indivíduos. Todos os homens a partir da elaboração do
pacto pelo qual houve “[...] a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a
favor de toda a comunidade [...]” estão em condição de igualdade.24
Em decorrência do contrato cada homem obriga-se com o todo do qual faz parte.
O pacto social assegura a liberdade de todos, porque na medida em que ocorre a violação da
21 MONTESQUIEU, 2004, p. 82. 22 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. Tradução Antônio de P. Machado. 20. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 25-26. 23 STRECK; MORAIS, 2006, p. 30-37. 24 ROUSSEAU, 2002, p. 34-36.
20
vontade geral por um indivíduo ele é repreendido de acordo com o estabelecido, evitando-se
abusos, tirania e absurdos. O homem é portador de um instinto de justiça e obedece ao
impulso físico no estado natural (vontade limitada pelas forças individuais). Quando passa
para o estado civil deve se utilizar da razão antes de atender aos seus caprichos (dever de
moralidade – pensar na vontade geral). O homem perde a liberdade natural e um direito
ilimitado e ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui.25
Não houve a destruição da igualdade material presente no estado natural, porque
“[...] o pacto fundamental substitui, pelo contrário, uma igualdade moral e legítima no que a
natureza deu de desigualdade física aos homens que, podendo ser desiguais em força ou
engenho, tornam-se, por convenção e de direito, iguais.”26
Dessa forma, o homem nasce livre e possui uma igualdade material com seus
semelhantes, mas por questões de sobrevivência está forçado às mudanças. Ele passa de uma
igualdade material para uma igualdade moral firmada por convenção (pacto) na qual aliena
em favor da comunidade sua liberdade que antes era ilimitada.
Para Miranda, em Rousseau o pacto social representa “[...] a alienação total de cada
associado, com todos os seus direitos, à comunidade, de sorte que cada um, dando-se a todos,
não se dá a ninguém, a condição é igual para todos e cada um ganha o equivalente daquilo que
perde e mais força para conservar aquilo que tem.”27
A razão é que auxilia o homem nas mudanças necessárias para a sobrevivência –
passagem do estado natural ao estado civil – caracterizando-se o contratualismo da teoria de
Rousseau.
Ponto comum entre as teorias contratualistas aqui brevemente expostas é que a
“transferência do poder” do individual ao representante do grupo social surge a partir de uma
escolha humana, ou seja, o homem estabelece vínculos sociais com o outro e outorga poderes
(racionalmente) ao soberano que gerencia as vontades da coletividade. Assim, ao Estado é
outorgado poder pelos indivíduos do grupo social. Ele torna-se o legitimado para organizar as
escolhas dos “contratantes” tendo em vista o bem comum.
A partir daí, surge a necessidade de se estabelecer princípios básicos e fundamentais
para a vida em sociedade (regras criadas para tornar mais pacífico e harmonioso o convívio
social). Criam-se direitos e deveres que podem relacionar-se entre o Estado e o indivíduo (ou 25 ROUSSEAU, 2002, p. 38-39. 26 Ibidem, p. 42. 27 MIRANDA, 2007, p. 162.
21
vice-versa) ou entre este e os demais homens, formando-se um emaranhado complexo de
relações sociais de poder28 que necessita de organização na medida de sua evolução histórica.
O Estado caracterizado como “[...] organização de governantes e de governados ou
comunidade de cidadãos [...] constitui a sociedade política [...]” mais complexa, sólida e
expansiva dos últimos séculos e da história.29
O poder do Estado é indivisível e apresenta-se como fundamental para sua
estruturação, porquanto impõe aos indivíduos da sociedade deveres para com o próximo, com
o Estado e também do Estado em relação aos seus cidadãos. A divisão de poderes na forma
proposta por Montesquieu: legislativo (o que faz as leis), executivo (o que administra) e
judiciário (o que julga) ocorre para possibilitar o exercício das funções básicas do Estado.30
Ocorre que as escolhas do representante do Estado, legitimadas pela vontade dos
“contratantes”, nem sempre são bem intencionadas. A delegação de poder a um representante
também gera deveres e opressão para os homens na medida em que implica renúncia de poder
individual para um grupo politicamente dominante que nem sempre defende os interesses
comuns, mas advoga para uma determinada classe privilegiada.
O Estado surgiu para proteger interesses e necessidades do homem, porém sua
organização pressupõe relações de poder e de dominação. A experiência histórica tem
mostrado que o Estado serve aos interesses de classes dominantes e tem se preocupado
somente com a “elite” social. É nesse sentido a manifestação de Jardim: “[...] historicamente o
Estado tem servido de instrumento da classe dominante para a manutenção de situações de
privilégio, em detrimento das classes menos favorecidas [...]”.31
É certo que a associação racional entre os homens trouxe benefícios individuais e
coletivos. Os progressos resultantes da união de forças são evidentes na medida em que se
observa o desenvolvimento econômico, tecnológico e científico.
O mesmo não se pode dizer do desenvolvimento social, porquanto historicamente os
avanços têm sido pouco significativos. O indivíduo, a partir da intensificação das relações
com o outro, está submerso a uma trama complexa de fenômenos comportamentais que
28 Em oposição aos poderes tradicional (crença) e carismático (liderança), o poder racional-legal está fundamentado na crença nos ordenamentos jurídicos. MORAES, Filomeno. Poder. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 642. 29 MIRANDA, 2007, p. 1. 30 CARVALHO, Jéferson Moreira de. Poder Constituinte: funções e limites. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 14; 17. 31 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 1.
22
aplaudem fraudulentamente a exclusão e valorizam a racionalidade e a esperteza em
detrimento dos valores humanitários e de solidariedade.
Nesse sentido, o Estado é monopolizador do Poder e torna-se, em determinados
momentos, extravagante e irresponsável, voltando-se contra seu criador.32
A forma de organizar a concentração desse poder delegado ao Estado (que pode se
tornar nocivo) tem sido, nos Estados modernos, a escrita33. Os ordenamentos jurídicos têm
sido a resposta mais coerente para limitação do poder, na medida em que apresenta freios ou
controles ao exercício funcional do próprio Estado.
O Estado deve ser compreendido com o direito. As normas jurídicas são impostas
aos indivíduos (particulares) e ao Estado, de modo que as “[...] instituições que exercem
autoridade pública devem obediência ao Direito (incluindo ao Direito que criam). 34 Ele é uma
instituição normativa e organizadora que se utiliza do Direito para fazer valer a realização do
bem comum.35
Sob o ponto de vista formal, o poder constituinte pode ser considerado como
formador do Estado e da organização e estrutura da sociedade política, manifesta na
Constituição.36 A vontade manifesta na Constituição deve servir como lei fundamental para o
funcionamento do Estado e como meio de assegurar direitos fundamentais aos cidadãos, numa
perspectiva inclusiva (para todos).
Dessa forma, completa-se o círculo conceitual sobre o Estado que apresenta o social
(agrupamento humano), o político (relacionamento entre os homens) e o jurídico (normas para
vida em sociedade).
Uma análise evolutivo-histórica responsável faz-se necessária para se estabelecer
parâmetros concretos sobre a forma antiga de se ver o Estado. A partir disso é possível
identificar se aqueles “erros” do passado estão presentes na forma atual de conceber o Estado
e o direito. 32 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 28. 33 As normas fundamentais eleitas para tornar possível o convívio social e proporcionar o bem estar comum nem sempre foram escritas. Houve um processo evolutivo, primeiramente, mais preocupado com a manutenção do poder do que assegurar direitos fundamentais ao indivíduo. Conforme relata Saldanha, o surgimento do conceito contemporâneo de Constituição escrito-legalista-positivo se deu a partir da Revolução Francesa, que além da estrutura política assegurou direitos fundamentais. Diversamente ocorreu na experiência Inglesa (Carta Magna de 1215), que apenas declarou direitos e teve como objetivo principal a manutenção do poder, atribuindo a Constituição conotação de regimento político. SALDANHA, Nelson. Formação da Teoria Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 113-114. 34 MIRANDA, 2007, p. 1-2. 35 JARDIM, 2007, p. 3. 36 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 122.
23
Assim, estabelece-se uma abordagem sobre o Estado absolutista, liberal, social e
democrático, considerando-se os aspectos ideológicos e não meramente cronológicos.
O Estado absolutista caracterizava-se pelo modelo centralizador, invocado pelas
idéias de proteção e segurança proporcionados pela intervenção de exércitos bem
organizados. Ele esteve legitimado, inicialmente, por uma compreensão de atribuição do
poder divino para organização da sociedade.
O Estado absolutista constitui-se na primeira versão do Estado moderno e nasce das
necessidades do capitalismo em ascensão na passagem do período medieval. A partir de
relações econômico-sociais emergem situações de dominação de classes.37
A burguesia se impôs na sociedade, o capitalismo começou a estruturar-se e houve o
rompimento com o cristianismo geocêntrico, alterando-se a visão de mundo e os valores
sociais (Renascimento). Esses movimentos sociais levaram à necessidade de se rever os
fundamentos da legitimidade do poder estatal, como ideal de ordem, pois: “[...] o princípio
feudal, que vinculava o rei ao império e ao Papado, bem como aos cepos da nobreza, não
serviria mais. [...]”.38
O absolutismo sucede o sistema Feudal39, porém mantém as características da
relação “imperium e senhoriagem”. O homem medieval que antes obedecia ao Senhor Feudal
e era servo da gleba, agora é súdito do rei. Passa-se de uma dominação carismática para uma
dominação fundada na burocracia e no exército – modelo legal-racional.40
O Poder dos governantes monárquicos, historicamente, foi justificado por atribuição
divina, principalmente no primeiro período absolutista. Seus governos ocorreram num período
onde não se verificavam explicações científicas para os fenômenos naturais ocorridos na
sociedade. Com os desenvolvimentos científico, tecnológico e econômico, influenciados pelo
racionalismo iluminista, operou-se uma nova reflexão sobre essa fonte de poder.
Nesse sentido, Miranda esclarece que o primeiro período da evolução absolutista,
que avançou até o início do séc. XVIII, caracterizou-se por justificar o poder do Rei sob o 37 STRECK; MORAIS, 2006, p. 28. 38 SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica. 2. ed. rev. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2003, p. 192-194. 39 São exemplos de sociedades políticas pré-estatais: “[...] a família patriarcal, o clã e a tribo, a gens romana, a fratria grega, a gentilidade ibérica, o senhorio feudal.” MIRANDA, 2007, p. 20. No sistema feudal o direito “[...] define-se como estatuto jurídico não abrangente, pois é produzido para legitimar a especificidade de uma hierarquia social claramente estabelecida nas distinções entre clero, nobreza e campesinato.” WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p. 28. 40 STRECK; MORAIS, 2006, p. 45-46.
24
aspecto religioso, pois ele pretendia-se escolhido por Deus para governar. Em outra fase,
subseqüente, os poderes passam a ser justificados racionalmente – despotismo esclarecido –
influenciado pelo pensamento iluminista.41
A monarquia absolutista está fortemente alicerçada na idéia de soberania e
concentração de todos os poderes nas mãos do rei, “[...] permitindo-se personificar o Estado
na figura do rei, ficando na história a frase de Luiz XIV, o Rei Sol: L’État c’est moi – O
Estado sou eu.” 42
O critério político para as decisões do Estado está baseado na conveniência e no bem
público, relegando a justiça e a legalidade para segundo plano.43 No Estado absolutista as
vontades do monarca eram absolutas e incontestáveis. Qualquer pessoa que contestasse a
monarquia era fortemente repreendida sob a acusação de heresia, cujas penas eram as mais
cruéis e atrozes.
Nesse período pode-se observar a utilização desenfreada do poder para satisfação
dos caprichos pessoais da família real e também como forma de demonstrar força aos súditos.
A estes restava somente a obediência como saída, porquanto não exerciam qualquer forma de
controle desse poder. A submissão à vontade do soberano era absoluta.
Partindo-se de uma análise contratualista, além dos benefícios individuais e
coletivos proporcionados (segurança e convívio pacífico), em determinadas situações, o poder
exercido pelos monarcas tornou-se extremamente danoso aos próprios indivíduos outorgantes.
Na medida do aumento da complexidade das relações sociais e da estrutura do próprio Estado
as vontades contratuais cederam às arbitrariedades do representante.
Pode-se sintetizar o sistema absolutista na metáfora utilizada por Hobbes, em
Leviatã, que significa um monstro que protege os pequeninhos e quando tem fome os come.44
O absolutismo garantiu aos comerciantes a segurança necessária para realizarem
seus negócios mercantes e constitui-se no embrião dos movimentos sociais e políticos da
classe burguesa que reivindicava vez e voz no poder (fundamentos da revolução).
Nesse período incrementa-se o capitalismo – primeiro na versão comercial e depois
na industrial – enaltecendo a burguesia (poder econômico), o que leva ao desejo político,
41 MIRANDA, 2007, p. 43. 42 STRECK; MORAIS, 2006, p. 45. 43 MIRANDA, 2007, p. 43. 44 STRECK, Lenio Luiz. Anotações de sala de aula. Curso de Pós-graduação Strito Sensu em Direito (mestrado em Direito). Universidade Estácio de Sá. Xanxerê, fev. 2007.
25
objeto da revolução que sucede o período.45
O que determinou, gradativamente, o descrédito e a decadência do modelo
absolutista de Estado foi a justificativa religiosa apresentada para fundamentar o poder e a
utilização desenfreada do poder como algo tirano e desprovido de limitações (porque
concentrado no papel do monarca que criava as regras a seu bel prazer, julgava em
desigualdades e executava para demonstrar sua força) e o reforço econômico burguês aliado
aos anseios políticos dessa classe. Esse modelo de Estado tem seu fim marcado pela
Revolução Francesa.
A revolução burguesa surge diante do descontentamento dos comerciantes que não
possuíam vez e voz política nos sistemas feudal e absolutista – para além da concentração
econômica queriam o poder político.
Esse novo modelo46 apresenta uma inversão de valores porque “[...] Em vez da
tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei como
expressão da vontade geral; em vez do exercício do poder por um só ou seus delegados, o
exercício por muitos, eleitos pela coletividade; [...]” o Estado como executor de normas
jurídicas e a passagem de súditos à cidadãos.47
O Estado foi implantado com a monarquia absolutista e depois foi reelaborado como
ordem Constitucional. Liberalismo e legalismo são versões iluministas da política e do
direito.48
A França foi o palco ideal para o desenrolar da Revolução porque os Nobres e o
Clero não pagavam impostos.49 No contexto da Revolução Francesa, as teorias de Sieyès
(apesar de advogar para a burguesia) contribuíram significativamente para a discussão sobre o
espírito democrático50 de inclusão das minorias excluídas. Uma das maiores contribuições
apresentadas foram suas observações sobre o Poder Constituinte.
Em Sieyès, a solução para quebrar as barreiras dos privilégios até então usufruídos
45 MIRANDA, 2007, p. 44. 46 “Os mais significativos textos desta nova concepção são americanos e franceses – a Declaração de Direitos de Virgínia e a Declaração de Independência do Estados Unidos, ambas de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, aquelas mais próximas do pensamento cristão, esta de um racionalismo laico.” Ibidem, p. 46. 47 Ibidem, p. 45. 48 SALDANHA, 2003, p. 197. 49 STRECK; MORAIS, 2006, p. 52. 50 Para Rocha, apesar das significativas contribuições de Sieyès no campo da limitação às arbitrariedades do poder ele não se afasta dos privilégios de propriedade. Assim, “[...] a democracia em Sieyès não chega a ultrapassar a barreira do Direito natural burguês.” ROCHA, 2005, p. 162.
26
pelos nobres e pelo clero é a Convocação de uma Assembléia com poderes para alterar a
ordem constituída – mudar os limites da ordem anterior.51 Apesar de não excluir a importância
do clero e da nobreza para as decisões políticas do Estado, Sieyès propôs uma redefinição da
estrutura dos Estados Gerais, a qual deveria incluir as classes não privilegiadas, chamadas de
Terceiro Estado52.53 Todas as proposições são de inclusão. Isto permite dizer que a classe
privilegiada também está incluída no espírito democrático, porém com direitos de igualdade
perante os excluídos.
Atualmente, tal qual na época da Revolução Francesa, não se verifica um espírito de
bondade e otimismo das classes mais abastadas, porque as manifestações de inclusão
aparecem por necessidade de sobrevivência do próprio sistema. Elas continuam a se
beneficiar do sistema, pois seus objetivos são no sentido de manter a dominação e por
conseqüência a opressão. Uma inversão nesse quadro não implica defender que a classe
excluída deve também excluir a já incluída, mas a classe incluída de incluir também a
excluída, proporcionando a igualdade material no direito a vez e voz.
Bobbio afirma que: “[...] o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto
em defesa do Estado de direito e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo, ainda
que nem sempre os dois movimentos de emancipação coincidam histórica e praticamente.”54
Com o advento do Estado Liberal a preocupação é com a formação de segurança nas
relações, o modelo de direito é o positivista, vinculando-se a idéia de regras advindas da
vontade geral.
O individualismo é ponto marcante desse período porque a interferência do Estado é
mínima ou limitada à vontade do indivíduo, representado essencialmente pela classe
burguesa. A expressão “tudo o que não é proibido é permitido” é uma marca dessa época.
O modelo liberal tem as bandeiras da legalidade, igualdade formal e liberdade,
proporcionadas pelo direito declarado na Constituição – surgimento do Estado
Constitucional55.
51 BASTOS, Aurélio Wander. Introdução. In: SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: o que é terceiro estado? Tradução de Norma Azeredo. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1988, p. 54. 52 O Terceiro Estado possuía duas vertentes sociais: a) camponeses, artesãos, operários e pobres das cidades; b) comerciantes, banqueiros, arrendatários, proprietários de manufaturas. Ibidem, p. 39. 53 Ibidem, p. 39. 54 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 17-18. 55 “Numa primeira noção, Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação como os cidadãos e tendente à limitação do poder.” (grifo do autor). MIRANDA, 2007, p. 46.
27
As revoluções do século XVIII e XIX findaram o Estado absoluto e a partir daí
surgiu um novo modelo de organização política baseada na Constituição (em regra escrita –
salvo na Grã-Betanha), com conteúdo determinado e com força jurídica. Esse novo modelo é
o Estado Constitucional, representativo ou de Direito.56
As teorias contratualistas acentuaram essa característica individualista, porquanto o
consentimento era dado pelo indivíduo ao Estado, estabelecendo-se uma relação de confiança.
Também, os pleitos do liberalismo de cunho religiosos, políticos e econômicos vinham de
encontro à concentração de poder ilimitado, característica do absolutismo combatido – era
preciso garantias contra o poder arbitrário, através de explicitação na Constituição.57
O direito também reafirma o individualismo porque regulamenta essencialmente os
direitos de liberdade, classificados como de primeira dimensão58 (liberdade, igualdade e
fraternidade).
Pontos marcantes, desse período, nas liberdades jurídicas do indivíduo são: a
liberdade contratual; a propriedade privada; a recusa da liberdade de associação; desvios dos
princípios democráticos – garantidos no aspecto formal – porque quem detinha certos bens ou
rendimentos sofria restrições ao voto (sufrágio censitário).59
Assim, o Estado liberal de direito constituiu-se num avanço em relação ao
absolutismo do período medieval e tem como ato declarativo a Revolução Francesa, onde
inicia uma nova forma de conceber o direito, agora declarado. Esse momento histórico dá
início ao movimento positivista para enfrentamento do absolutismo real. Parte-se de um
direito escrito – declarado – porém ainda restrito a assegurar a ordem e a segurança,
inaugurando-se a primeira fase do Constitucionalismo.
O fracasso do minimalismo Estatal e das promessas do mercado para o bem estar
coletivo provocaram uma revolução que pôs fim ao Estado Liberal e deu início ao Estado
Social.
O capitalismo e a produção em massa produziram a riqueza, mas essa não foi
distribuída à classe operária, o que gerou marginalização social. Assim, o liberalismo não
56 MIRANDA, 2007, p. 3. 57 STRECK; MORAIS, 2006, p. 55. 58 Segundo Wolkmer, são direitos de primeira dimensão os civis e políticos, “[...] vinculados à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e à resistência às diversas formas de opressão. [...]”. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos novos direitos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 07. 59 MIRANDA, 2007, p. 47.
28
conseguiu resolver “[...] o problema essencial de ordem econômica das vastas camadas
proletárias da sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise.”60
As reivindicações aumentavam na medida em que os representantes liberais mudam
a estrutura econômica – fim da escravidão, ampliação da educação, maior liberdade de
imprensa e extensão do sufrágio universal e estabilização do governo representativo. A maior
participação eleitoral levou os governos à suscetibilidade dos reclames sociais. O Estado
passou a ser ator no jogo econômico, restringindo, portanto, a liberdade econômica e de
contratação. Surge, então um novo espírito de ajuda que inaugura a fase do Estado Social.61
A expressão desse descontentamento culminou com a elaboração da Constituição do
México em 1917 e a de Weimar em 1919, inaugurando-se a segunda fase do
Constitucionalismo. Em ambos os casos expressam o novo modelo de Estado denominado
Social de Direito.62 Além dessas Constituições, seguem nessa mesma linha, “[...] a italiana de
1947, a alemã de 1949, a venezuelana de 1961, a portuguesa de 1976, a espanhola de 1978 e a
brasileira de 1988.”63
O Estado Social de Direito caracteriza-se por ser promovedor dos direitos sociais e
não mais simplesmente regulador. Nessa fase manifestam-se os direitos de segunda
dimensão64, assegurados pelo constitucionalismo social.
Os principais movimentos que desembocaram na criação do Estado Social foram:
revolução industrial (levou à proletarização), primeira guerra mundial (exigiu interferência na
vida econômica – necessidade de armamentos), crise econômica de 1929 (necessidade de
política de nacionalizações), segunda guerra mundial (controlar recursos sociais), crises
cíclicas – ação dos monopólios (desigualdades sociais), movimentos sociais – contrários ao
livre mercado e incorporações das liberdades sociais. Além desses fatores, deve-se recordar as
experiências negativas do nazifacismo.65
Dessa forma, tornou-se compulsória a intervenção Estatal para garantir a própria
sobrevivência do sistema capitalista. O Estado precisou ser intervencionista a ponto de estar à
frente das questões econômicas do país. O político e o econômico “deram as mãos” para
garantir a sobrevivência do Estado e, por conseqüência, de todos os indivíduos que o 60 BONAVIDES, 2001, p. 188. 61 STRECK; MORAIS, 2006, p. 63-67. 62 STRECK, fev. 2007. 63 MIRANDA, 2007, p. 53. 64 Segundo Wolkmer, são direitos de segunda dimensão os “[...] sociais, econômicos e culturais [...]” (trabalho, saúde, educação). WOLKMER, 2003, p. 08. 65 STRECK; MORAIS, 2006, p. 69-71.
29
compõem, sejam ricos ou pobres.
O primado básico do Estado Liberal é mantido porque a intervenção econômica não
garante o social. Nesse modelo “O princípio da legalidade e o da Separação de Poderes foram
mantidos tão somente sob o aspecto formal [...] [e a] produção de leis gerais e abstratas com a
finalidade de assegurar o reconhecimento das liberdades individuais formais e limitativas a
ação da autoridade pública”.66
As ações do legislativo limitaram-se a declarar direitos, promovendo “inflação
legislativa” no sentido de promessas políticas. Esqueceu-se da efetivação desses direitos, que
a rigor ficava sob tutela e a critério do poder executivo.
A partir dessa problemática criam-se regras programáticas67 com a justificativa de
que o Estado não pode cumprir com todas as promessas sociais. Esse discurso torna-se
corrente e leva à tolerância social quando do descumprimento dos direitos sociais assegurados
pela legislação, constituindo-se num perigo para as classes sociais excluídas pelo poder
econômico e político sob o ponto de vista material.
Essa tolerância social tem limites, especialmente quando a situação de distribuição
de renda e exclusão social são marcas fortes na sociedade. A partir desse distanciamento entre
promessa e cumprimento surge uma nova proposta de Estado baseada no regime democrático.
O Estado Democrático de direito surge para a concretização dos direitos
fundamentais e resgate das promessas modernas – dos Estados Liberal e Social – não
cumpridas. Nas palavras de Jardim, ele é “[...] instrumental de que dispomos para combater a
injustiça social e proporcionar um melhor nível de vida aos homens. [...]”68
O Estado Democrático de direito constitui-se na terceira fase do Constitucionalismo
e tem como característica o resgate da moral pelo direito. O direito no Estado democrático de
direito é de ordem intervencionista, transformador e clama por efetivação dos direitos sociais
não cumpridos pelo Estado Social. Conforme palavras de Streck, “[...] a justiça constitucional
deve assumir uma postura intervencionista, longe da postura absenteísta própria do modelo
66 STRECK; MORAIS, 2006, p. 74-75. 67 Conforme explica Canotilho, pode-se falar em ‘morte’ das normas programáticas porque esse tipo de norma-fim (tarefa ou programa) impõe uma atividade e dirige materialmente a concretização constitucional. Estava equivocada a teoria clássica quando falava em simples programas, declarações, sentenças políticas, promessas. Hoje as normas programáticas têm eficácia vinculativa porque toda norma constitucional é obrigatória perante qualquer órgão do poder político. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1176-1177. 68 JARDIM, 2007, p. 2.
30
liberal-individualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira. [...]”.69 Ele
representa a vontade de realização do Estado Social, está indissociável da realização dos
direitos fundamentais e da necessidade de resgate das promessas da modernidade tais como
igualdade e justiça social.70
São princípios do Estado Democrático de Direito: a Constitucionalidade, a
organização democrática da sociedade, um sistema de direitos individuais e coletivos, a
justiça social, a igualdade, a divisão de poderes, a legalidade e a segurança e certeza
jurídicas.71
Na medida em que se reconhece os três grupos de direitos humanos, não só os
direitos liberais de liberdade senão também os de participação democrática e os direitos
sociais podem qualificar o Estado Constitucional Democrático e de direito.72 (tradução nossa).
Os valores sociais estão insertos na Constituição representando o contrato social e,
dessa forma, são direitos e garantias de todos os cidadãos. Supera-se o mundo das regras e
entra-se no modelo dos princípios.73
O Estado Democrático de Direito traz a idéia de bem comum e o ideal de vida boa,
onde afloram os direitos de terceira dimensão74. O direito passa a ser transformador da
realidade e com isso ganha um plus normativo em relação às fases anteriores.75 A constituição
de um Estado Democrático de Direito deve ser comprometida com o social e o bem coletivo,
bem como dirigente no sentido de estabelecer os ditames para atuação do poder tanto
legislativo como executivo e judiciário.
O reconhecimento da necessidade de direitos pelo Estado é uma confissão explícita
sobre o déficit histórico e carência desses direitos. Especialmente no Brasil a modernidade,
com suas promessas, não se efetivou. Para o futuro, tem-se uma aspiração pós-moderna
(também discriminatória), firmada sobre um modelo histórico de discriminação social. 69 STRECK, Lenio Luiz. A jurisdição Constitucional e as possibilidades hermenêuticas de efetivação da Constituição: um balanço crítico nos quinze anos da Constituição. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro: EMERJ, 2003, v. 6, n. 23, p. 84. 70 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 38-39. 71 MORAIS, 2002, p. 63. 72 HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Traducción Rafael Sevilla. Barcelona: Gedisa, 2000, p. 168. 73 STRECK, fev. 2007. 74 Segundo Wolkmer, os direitos de terceira dimensão são os metaindividuais, coletivos e difusos – direitos da solidariedade (paz, meio ambiente sadio, qualidade de vida, comunicação), os de quarta dimensão são os “[...] referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética [...]” (aborto, eutanásia, clonagem, transplante de órgãos) e os de quinta dimensão os “[...] advindos das tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral”. WOLKMER, 2003, p. 09-15. 75 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006, p. 7.
31
Há uma forte tendência – pretensão pós-moderna – de desintegração do Estado
Social em favor do mercado com incriminação da pobreza (incriminação dos impossibilitados
de escolher), pois o pensamento que se aproxima é de que “[...] Cada vez mais, ser pobre é
encarado como um crime; [...] Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem
ódio e condenação [...] O ‘estado de bem estar está morto [...] ‘Precisamos pegar o cadáver e
enterrá-lo antes que o fedor se torne insuportável’ [...]”76
O Estado Democrático de direito representa o Welfare State77 (Estado do Bem-Estar)
em que “[...] as prestações públicas são percebidas e construídas como um/uma
direito/conquista da cidadania. [...]”.78 Com o surgimento do Estado Democrático de Direito –
principalmente a partir da segunda guerra mundial – o modelo promovedor característico do
Estado Social é mantido com adaptações advindas da necessidade de que a ordem jurídica se
imponha para assegurar os direitos a saúde, alimentação, educação, trabalho, entre outros.
Não se pode perder tempo com discussões procedimentais79 e ditames meramente
promitentes. Deve-se encarar os valores Constitucionais do Estado Democrático de Direito
numa posição substancialista visando a efetividade de promessas deixadas ao acaso por longo
tempo. No dizer de Streck: “Não posso perder a substância e cair no procedimento.”80 A
implementação do Estado Democrático de Direito depende da atuação do poder judiciário na
determinação de políticas públicas de acordo com a Constituição e a crise do poder judiciário
está relacionada ao descompasso entre sua atuação e as necessidades sociais. Exemplo de uma
atuação correta está na determinação de tratamento de saúde (dever do Estado), ainda que não
haja serviço oficial ou particular no país ou que não haja previsão orçamentária para tanto (a
vida não tem preço, mesmo para uma sociedade que perdeu a solidariedade).81
No Brasil as mudanças foram sentidas a partir da Constituição de 1988, que 76 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 59-61. (grifo do autor). 77 O Estado de bem-estar social não tem uma aparência uniforme, há características comuns de caráter finalístico vinculados ao cumprimento da função social. As primeiras manifestações ocorreram nas Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (1919), tendo como fundamento a questão da igualdade. MORAIS, 2002, p. 37-38. 78 STRECK; MORAIS, 2006, p. 78. 79 Em termos de síntese, o procedimentalismo considera que o judiciário não deve interferir em questões políticas e sociais, pois essa atividade é reservada legislativo (obediência ao princípio da separação de poderes). Ao contrário, o substancialismo pressupõe uma intervenção do judiciário para resguardar a justiça democrática e explicitar o contrato social na interpretação do direito. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et. al. Justa causa penal Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 25-27. O modelo substancialista defende que a Constituição estabelece as condições do agir político-estatal, a partir do pressuposto ela é a explicitação do contrato social. O judiciário, como intérprete deve ter um papel de evidência – postura ativa –, inclusive contra maiorias eventuais. STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 45-46. 80 STRECK, fev. 2007, 81 STRECK, Lenio Luiz. A necessária constitucionalização do direito: o óbvio a ser desvelado. Revista de Direito. Santa Cruz do Sul: jan./dez. 1998, n. 9/10, p. 59-61.
32
expressamente declarou, em seu artigo 1º82, a adesão ao modelo de Estado Democrático de
Direito.83 O Estado contemporâneo pressupõe a existência de um novo contrato social
(Constituição) que assegura direitos como mínimo de renda, alimentação, saúde, habitação e
educação. Incluem-se princípios de justiça distributiva de caráter igualitário onde prevalece o
social e os valores da dignidade do ser humano, corroborando com a idéia de justiça social.84
O Estado Constitucional deve ser um Estado Democrático de Direito com as
qualidades de Estado de Direito e Estado democrático. “[...] O Estado constitucional
democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de
direito [...]” legitimada pelo povo.85
Enquanto as insuficiências do liberalismo levaram à proletarização e ameaça à
burguesia, o Estado Social representou reação a esse quadro e prestígio às promessas de
providências sociais pelo Estado. Ante a crise de efetividade dos direitos sociais, surgiu o
Estado Democrático de Direito que passa a ser promovedor dos direitos fundamentais e
esperança de justiça social.
Assim, é preciso entender que o direito tem uma função no Estado Democrático de
Direito, que é a de solucionar os problemas sociais historicamente negados à população.
1.2 LEGITIMIDADE CONSTITUINTE: QUEM DEVE SER O BENEFICIÁRIO DO
CONTRATO SOCIAL? CONSTITUIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:
UMA NECESSÁRIA IMBRICAÇÃO PARA A PROTEÇÃO E GARANTIA DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Para tornar melhor a vida em sociedade, o homem estabeleceu vínculos sociais com
o outro. Dessa relação surge uma nova organização chamada Estado que concentra o Poder
para fazer valer as escolhas do povo.
A legitimidade do Estado está fundada na vontade soberana do povo86. Uma
82 “Art. 1.º A República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]” 83 O Brasil que antecede a Constituição de 1988 esteve marcado por um déficit de democracia e cidadania influenciado pelas experiências autoritárias vividas. O país buscou inspiração para adesão ao Estado Democrático de Direito nas Constituições Portuguesa pós-Revolução dos Cravos e Espanhola pós regime Franquista – momentos de redemocratização. MORAIS, 2002, p. 39. 84 STRECK; MORAIS, 2006, p. 79-80. 85 CANOTILHO, 2003, p. 93; 98. 86 O povo deve ser entendido na melhor forma inclusiva. Todos são o povo.
33
Constituição Democrática não é somente aquela elaborada por uma Assembléia Constituinte
livre e soberana. Ela deve ser expressão da vontade popular e expressar democracia no seu
conteúdo e quanto à adoção de instrumentos de participação do povo no poder (referendo
popular, iniciativa popular, veto popular, entre outros).87
O titular do poder constituinte tem uma resposta democrática em que o povo é
concebido por uma pluralidade de forças, sejam culturais, sociais, e políticas, tais como
igrejas, partidos, grupos, associações, personalidades que influenciam opiniões nos momentos
pré-constituintes e nos procedimentos constituintes.88
Silva afirma que “O Poder Constituinte repousa no povo. É vontade política do povo
capaz de constituir o Estado por meio de uma constituição. [...] o espírito do povo se
transmuda em vontade social e reivindica a retomada do seu direito fundamental primeiro
[...]”.89 A vontade de uma nação é, segundo explica Sieyès, o resultado das vontades
individuais, das quais cada indivíduo preserva o seu interesse, possibilitando uma aliança
útil.90
Dessa forma, no Estado Democrático de Direito o Poder Constituinte vem do povo
(que é soberano) e ultrapassa os desejos do governante para ir ao encontro dos anseios
populares. Há uma transferência de poder do soberano (típico dos modelos Feudal e
absolutista) para o popular (modelo democrático).
A Constituição brasileira de 1988 atribui legitimidade ao povo como fonte de todo o
poder. Está disposto expressamente no parágrafo único do artigo 1º: “[t]odo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou direitamente [...]”. Também através
de disposição Constitucional (1988), o Brasil fez opção pela inclusão de todos. Os artigos 231
e 232 (que trata sobre os indígenas), e alguns incisos do artigo 5º, são exemplos da proibição
da exclusão.
Para se justificar uma democracia constitucional é preciso a inclusão de todos – não
somente o povo ativo que consegue ser cidadão. O povo deve ser o destinatário de todas as
prestações invocadas pela Constituição. Na medida em que opera a inclusão das classes
dominantes e exclusão das classes dominadas ocorre a deslegitimação da sociedade e
87 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 69. 88 CANOTILHO, 2003, p. 75. 89 SILVA, 2000, p. 68. 90 SIEYÈS, 1988, p. 141.
34
especialmente no seu caráter democrático.91
Os valores trazidos pelo povo para a Constituição não devem servir para “burlar” a
vontade legítima e enaltecer anseios de classes opressoras que primam pelos interesses
corporativos de uma minoria em detrimento do bem comum. Esses valores insertos na
Constituição devem obedecer a vontade popular e refletir os ditames do que é justo, no campo
político, econômico, social e jurídico. Eles servem para orientar a elaboração das leis
infraconstitucionais e a própria atuação do Estado.
Uma vez dispostos os desejos populares na Constituição, transformam-se em
garantias fundamentais para ser implementados a todos (não estão dispostos para fins
simbólicos).
Dessa forma, atendendo aos princípios democráticos, as escolhas constitucionais
devem ser objeto de amplo debate social com o povo, que são todos os sujeitos que compõem
o Estado, numa perspectiva inclusiva. Uma vez definido essas escolhas, cabe aos três poderes
pautarem suas atuações com fidelidade à vontade Constituinte Originária.
Há uma nova maneira (ao menos para a realidade brasileira) de se conceber a
Constituição – ela deve ser vista como instrumento poderoso para assegurar isonomia entre as
classes sociais (justiça social). Nesse sentido aponta Saldanha que “[...] O direito e o Estado
foram objeto de uma nova concepção [...]”, passando de um direito divino para um direito
como ordeNação escrita. O Estado passa a vincular-se à vontade da lei. Os direitos
considerados fundamentais precisaram ser manifestados na Constituição, onde se impõem
inclusive ao legislador. O Estado se identificou com a Constituição.92
As garantias fundamentais estabelecidas na Carta Constitucional devem ser efetivas
ao povo. Do povo, ainda que excluído, emana o poder e para ele são criadas as garantias
Constitucionais. Ele é o objeto da efetivação dessas garantias.
A disposição textual das garantias clama por efetivação. A diminuição da exclusão e
a legitimação do sistema democrático de direito é medida que se impõe ao Estado que precisa
superar aberrações históricas93. A Constituição vem do povo e deve ser aplicada para o povo –
considerado como todos os cidadãos (incluídos e excluídos). A Constituição é a manifestação
91 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 94-95. 92 SALDANHA, 2000, p. 120-123. 93 Historicamente o que tem ocorrido na sociedade brasileira é uma usurpação ilegítima do poder que é do povo. As classes dominantes utilizando-se do poderio econômico e da marginalização alarmante das classes oprimidas não efetiva as inserções Constitucionais realizadas pelo Poder Constituinte.
35
da organização política do Estado, o instrumento que concentra e organiza o poder do Estado
e o berço dos direitos fundamentais.
A Constituição é constituidora da sociedade e por isso deve ter um caráter
material/substancial, afinal “[...] Constituição é a explicitação do contrato social, é o espaço
de mediação ético-política da sociedade, e, fundamentalmente, Constituição é constituir.
[...]”94 Miranda afirma que o direito constitucional é o tronco dos ordenamentos jurídicos,
onde se organiza e se integra a comunidade e o poder. A Constituição é “[...] elemento de
unidade do ordenamento jurídico da comunidade no seu conjunto [...]”, na medida em que
estabelece pressupostos para as normas dos demais ramos do direito, determinando seu
conteúdo através dos princípios.95
A Constituição, numa perspectiva substancialista, é a expressão do pacto fundante –
contrato social – que permite a consolidação dos desejos sociais de grupo. Ela estabelece as
regras do jogo para proteger a sociedade de eventuais ataques de poderosos ou de maiorias
influenciadas pela mídia ou economia. Também, aponta os conteúdos mínimos – valores
básicos – para uma sociedade mais justa, digna e solidária.96
A Constituição deve constituir, ser compromissária, dirigente97 e preservadora dos
direitos fundamentais ligadas ao ideal de bem estar e de vida boa, garantindo o efetivo acesso
a todas as classes sociais. Ela é fruto de um processo evolutivo onde foram amargadas e
travadas diversas batalhas. É, portanto, fruto de um amadurecimento histórico cultural e não
pode ser encarada como programática e procedimental. Seus valores devem servir para
vincular as decisões legislativas, executivas e jurídicas a fim de assegurar os princípios do
Estado Democrático de Direito.
A Constituição é a constituição da própria sociedade. Não se fala em Estado, mas em
sociedade. Ela se refere a res publica – comunidade política – daí a expressão Constituição da
República.98 Dessa forma, “[...] Constituição não é programa de governo [99], ao contrário são
94 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 284. 95 MIRANDA, 2007, p. 4-5. 96 MORAIS, 2002, p. 66-68. 97 “Defender o caráter dirigente da Constituição [...] representa introduzir um republicanismo que se opõe ao patrimonialismo e à carência de uma esfera pública suficientemente desenvolvida. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 22. 98 CANOTILHO, 2003, p. 88. 99 Um dos motivos para a reduzida importância da Constituição no Brasil é que sempre se deixou para o legislador implementar o valores e direitos contidos no texto da Constiuição, transformando-a em mera lista de propósitos ou programa. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 215.
36
os programas de governo que precisam se constitucionalizar”.100 “A Constituição não é
simples ferramenta; não é uma terceira coisa que se ‘interpõe’ entre o Estado e a Sociedade. A
Constituição dirige; constitui. [...]” No Brasil ela nunca constituiu e ainda se sofre com a
baixa constitucionalidade101, pois o judiciário está muito comprometido com o estatus quo.102
É preciso um novo olhar para o direito, especialmente para os valores objeto de
conquistas históricas de luta de classes. A Constituição representa a compilação dessas
garantias e deve dirigir103 a atuação do Estado contemporâneo por constituir a expressão
máxima da democracia e o compromisso com a justiça social.
Se por um lado a Constituição garante os direitos de forma mais ampla possível, por
outro lado tem-se uma sociedade carente de tais direitos. A atuação do judiciário em
descompasso com a realidade – necessidades sociais – é que gera a crise em que se
apresenta.104
O problema enfrentado atualmente é o da materialização de direitos – eficácia
normativa – com base na vontade do Poder Constituinte Originário.105 As escolhas judiciais
precisam ser legitimadas a partir de uma interpretação que considere o conteúdo
Constitucional e a realidade concreta.
No direito brasileiro há uma crise dogmática em que os juristas aprendem direito sob
um modelo hipotético que os distanciam da realidade do mundo contemporâneo. O modelo de
direito apresentado é o de cunho “liberal-normativista-individualista” que não está preparado
para resolver conflitos transindividuais na sociedade complexa.106 Paralelo a este fato, o
processo de convencimento – persuasão – muitas vezes está baseado em pareceres,
jurisprudências e sentenças descontextualizadas onde posições contrárias e favoráveis são
facilmente encontradas – selecionadas através de ementários e não propriamente pela boa
argumentação apresentada. Muitos argumentos são do tipo: a jurisprudência é no sentido de... 100 MORAIS, 2002, p. 77. 101 No Brasil há o fenômeno da baixa constitucionalidade porque os pré-juízos estão firmados na infraconstitucionalidade e a Constituição não tem servido nem como limitadora da conformação do legislador. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 220. 102 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 94; 96. 103 Segundo Morais, existem três posições sobre o constitucionalismo que convivem: a) constitucionalismo clássico baseada da dogmática liberal – organização e limitação do poder; b) constitucionalismo social – modelo dirigente – teoria que luta pela concretude; c) constitucionalismo supranacional mundial – fruto de um novo debate com base num projeto global humanitário – identidade comunitária-cosmopolita. MORAIS, 2002, p. 92-93; 99. 104 STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 4. ed. rev. e mod. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 37-38. 105 Como bem apontado por Morais, “[...] fazer (bem) Direito implica um compromisso ético-jurídico com a eficácia e a efetividade dos direitos humanos e fundamentais [...]” (grifo do autor). MORAIS, 2002, p. 15. 106 STRECK, 2001, p. 36-37.
37
já decidiu o Tribunal que... a jurisprudência é pacífica que... Nesse contexto há um
pensamento metafísico distante da realidade histórica e social dos atores jurídicos –
interpretação como “jogo de cartas marcadas”.107
A eficácia jurídica e a efetividade prática são necessárias para se garantir o conteúdo
das dimensões de direitos assegurados pelo Estado – para além do reconhecimento político-
social.108
A Constituição representa a compilação de garantias e valores objeto de conquistas
históricas de luta de classes e deve dirigir a atuação do Estado contemporâneo por constituir a
expressão máxima da democracia e o compromisso com a justiça social109. Os direitos
fundamentais encontram-se assegurados pelo Estado democrático de direito e derivam do
princípio fundante dignidade da pessoa humana. Resta efetivá-los através de uma nova
postura fundada numa visão de totalidade.
Para concretização das promessas da modernidade incorporadas ao texto
Constitucional deve-se apostar na força normativa da Constituição e no seu papel
compromissário e dirigente.
No Brasil o novo texto Constitucional “[...] representa a real possibilidade de ruptura
com o velho modelo de direito e de Estado (liberal-individualista), a partir de uma perspectiva
claramente dirigente e compromissária [...]”.110 O grande desafio do profissional jurídico é
lutar pelos interesses Constitucionalmente concebidos e afastar o fantasma da inefetividade
das garantias asseguradas pelo e ao povo na busca do bem comum. A atuação profissional
comprometida com os valores Constitucionais ajuda assegurar a legitimação democrática de
um Estado verdadeiramente Democrático de Direito.
Assim, pode-se afirmar que na convivência do ser humano (socialização) sempre
esteve presente, e continua a estar, relações de poder. O domínio de classes do homem pelo
homem é uma marca negativa na história da humanidade. Dentre os exemplos históricos mais
aparentes estão a escravidão, o sistema de produção feudal, as monarquias absolutistas
(nobreza), a burguesia e o clero.
O direito sofreu e continua a sofrer forte influência dos movimentos sociais. Ele é
107 STRECK, 2001, p. 45-47. 108 MORAIS, 2002, p. 61. 109 Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 3º, I e III, da Constituição de 1988, construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 110 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 5-6.
38
produto do inter-relacionamento humano. O Estado também é um retrato da influência de
classes sociais. Em cada modelo de Estado, seja ele absolutista, liberal, social ou democrático
é possível relacionar o momento histórico-social das lutas de classes pelo poder econômico e
político.
Num primeiro momento, influenciado pela necessidade de organização e segurança
nas relações comerciais, surgiu o modelo de Estado Absolutista para garantia da ordem e
segurança do homem. Esse modelo centralizava na figura do monarca todos os poderes, sob o
fundamento de que o rei era um representante de Deus na terra e pela imponência dos
exércitos reais.
A partir da influência das teorias contratualistas e da ganância política burguesa, que
não mais se contentava com o poder econômico, surge um novo modelo de Estado, o Liberal.
Este é caracterizado por assegurar os direitos de primeira dimensão (civis e políticos) e pela
tomada política da classe burguesa. Buscava-se nesse período a segurança de um direito
positivado e não mais centralizador. O auge do movimento burguês é a Revolução Francesa.
O demasiado olhar para o econômico proporcionou o esquecimento do social. Por
um lado havia produção em grande escala – Revolução Industrial – e por outro a
proletarização do trabalhador que não usufruía do fruto do seu trabalho. Diante dos
movimentos sociais de insatisfação e por questões de sobrevivência do próprio Estado, surge
uma nova concepção: olhar para o social – o Estado passa a ser garantidos de direitos sociais.
Surge então os direitos de segunda dimensão (sociais: saúde, trabalho, educação) mais como
promessas políticas do que efetivação para as classes excluídas.
Novamente o insucesso Estatal – garantir direitos sociais somente no aspecto formal
(declarado) não muda a realidade. Surge a partir dessa constatação uma nova concepção de
Estado. O modelo Democrático constitui-se numa reação a não efetividade dos direitos
garantidos no modelo anterior. Tem-se como parâmetro valores fundamentais positivados no
contrato social (Constituição). Esses direitos fundamentais de todo cidadão devem ser
respeitados por todos os poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário, por constituir
a expressão máxima da vontade do poder constituinte originário.
CAPÍTULO II
2 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL
A partir da afirmação do Estado Democrático de Direito a medida que se impõe é a
prestação jurisdicional justa. Tal situação de justiça democrática (materializada na sentença
penal através da compreensão ontológica) somente é proporcionada quando garantidos os
preceitos Constitucionais, em seu sentido material, durante o trâmite processual (obediência
às regras do jogo).
Diante das significativas mudanças na tutela das liberdades, asseguradas na
Constituição Federal de 1988, sob a forma de direitos fundamentais111 do indivíduo frente ao
Estado, fala-se em processo penal constitucional ou democrático. Como no conceito de
justiça, em sua essência, há plurivocidade, tem-se que essa forma de processo penal
(constitucional ou democrático) é o parâmetro para materialização da justiça nos âmbitos
processual e penal, ou seja, a efetivação dos direitos fundamentais, dispostos sob a forma de
garantias Constitucionais, corresponde ao processo justo e à pena justa.
Dessa forma, faz-se necessário uma correta compreensão/aplicação das “regras do
jogo” processual penal democrático, asseguradas Constitucionalmente. Esse processo se dá
partir da hermenêutica filosófica (capítulo III), onde se torna possível uma prestação
jurisdicional adequada. Assim, para existir a sentença penal justa é necessário uma
compreensão teórica que possibilite um deslinde processual democrático e assegure a
legitimidade dos papéis dos sujeitos processuais.
111 Os direitos fundamentais são o substrato da democracia material-constitucional. Eles indicam obrigações positivas ao Estado no âmbito social e limitam negativamente a atuação do Estado privilegiando a liberdade dos indivíduos. São “[...] indisponíveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis, intransigíveis e personalíssimos. [...]” ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 90-91.
40
Interpretações equivocadas são conseqüências de uma tradição inautêntica presente
na dogmática jurídica – premissas metafísicas. A concretização legítima do direito material e
processual penal depende do atuar do intérprete comprometido com a realidade que o
circunda. Para que essa compreensão ocorra são necessárias pré-compreensões autênticas
sobre o Estado, a Constituição, o direito e o caso a ser decidido, sob pena de sufocamento do
papel transformador que tem o direito na sociedade.
No desenrolar do presente capítulo apresentam-se reflexões sobre: uma adequada
prestação jurisdicional penal – finalidade da intervenção do Estado na sociedade moderna; a
relação existente entre Estado Democrático de Direito, Constituição, Processo Penal e
garantismo jurídico e; a necessidade de uma (re)leitura do Processo Penal a partir de
determinados princípios.
2.1 FUNDAMENTOS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ADEQUADA
A prestação jurisdicional penal constitui-se na verdadeira interferência Estatal na
vida do cidadão. Quando se fala em direito penal e processual penal o que está em jogo é o ser
e não o ter. Tratar com dignidade o ser é dever de todos os Estados, especialmente aqueles
que se dizem democrático de direito.
O Estado Democrático de Direito é fruto de uma construção histórica de
relacionamentos sociais, na qual o respeito aos direitos fundamentais é uma conquista para
toda a humanidade.
Para ser realmente democrático e respeitar os princípios e valores decorrentes da
dignidade da pessoa humana faz-se necessário um novo olhar para a Constituição. Ela
representa o contrato social, é dirigida ao bem comum e é aplicável também contra as
maiorias eventuais, ou seja, mesmo que a maioria da população entenda dispensável
determinado direito fundamental ele não pode ser solapado.
Questões produto da reflexão são necessárias e fundamentais para a compreensão
mais acertada sobre os institutos jurídicos que se vêem aplicados na prática do dia-a-dia. Em
tempos onde se fala de pós-modernidade as atividades profissionais, especialmente as
jurídicas, não são objeto de análise racional e de reflexão, mas de decisões positivistas
apressadas e impensadas, sem considerar-se a individualização de que cada caso merece.
41
A visão positivista de que lei é imperativa e impõe o dever de obediência, não
importando seu conteúdo, é que levou a sociedade e os juristas à impotência diante das
arbitrariedades das leis mais cruéis e criminosas.112 Muito se fez e ainda se faz injustiças nas
situações concretas, sob alegação de aplicação “do direito” disposto em lei ou através de
reinvenções alternativistas113. Porém, sabe-se que isso não passa de um pseudo-direito, visto
que o verdadeiro encontra-se amparado por questões de justiça, não raras vezes veladas114 pelo
entendimento equivocado sobre a legalidade.
Novas perspectivas aventam-se para a prestação jurisdicional no sentido da
possibilidade de aplicação do direito, como forma de justiça, que está num patamar superior
ao da lei em sentido estrito. Nesse contexto, a reflexão filosófica serve de instrumento e ganha
destaque na aplicação do direito.
A ciência jurídica é insuficiente para dar explicações e compreender os problemas da
experiência jurídica. Necessário é a reflexão filosófica sobre o direito. A filosofia do direito
não é parte do direito, mas um saber (reflexão) sobre o direito com pretensão de torná-lo
justo. A filosofia do direito é uma disciplina filosófica que estuda os fenômenos jurídicos em
sua totalidade, compreendendo três temáticas: teoria do direito, teoria da ciência jurídica e
teoria da justiça. A teoria do direito tem como problema fundamental determinar a noção de
direito na realidade humana e social. A teoria da ciência jurídica trata de estabelecer uma
reflexão crítica sobre a ciência do direito e as atividades dos juristas (argumentação e
aplicação do direito). Por sua vez, a teoria da justiça ou axiologia jurídica tem como objeto de
estudo os valores geradores e fundamentadores do direito, os fins a que se pretende chegar, a
análise crítico-valorativo do direito positivo e a discussão sobre os valores éticos para o
direito justo.115 (tradução nossa).
Compactuando com Fernandez em relação à importância da teoria da justiça ou
axiologia jurídica, abordam-se os temas direito, justiça e moral como fatores que, uma vez
compreendidos, possibilitam uma prestação jurisdicional adequada, materializada através das
112 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1974, p. 415. 113 Para Habermas o direito moderno ao distinguir direito natural e direito positivo reduplica o conceito de direito o que não é plausível do ponto de vista sociológico e precário do ponto de vista normativo. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997, p. 139. 114 O termo pretende indicar situação oculta – que precisa ser descoberta ou desvelada. Essa atividade é reservada ao intérprete que deve se utilizar dos fundamentos a partir de uma hermenêutica filosófica (concepção de Heidgger/Gadamer). 115 FERNANDEZ, Eusébio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991, p. 25; 27-31.
42
sentenças judiciais.
A relação entre direito e moral é fundamental para a eficácia normativa. Importante
apontar, ainda que brevemente, a necessária vinculação da moral com o direito, como
pressuposto de validade e eficácia deste. O direito, como controle de comportamentos sociais,
só é justo quando estiver amparado por valores morais.
Uma das características que diferem o direito da moral é que o valor jurídico
caracteriza as ações como boas para o bem comum (acha-se sempre um outro interessado –
direitos e obrigações), enquanto que o valor moral caracteriza as ações como boas em si
mesmas (simplesmente um dever).116
Baseado na experiência histórica a sanção pautada na repressão e imposição de
comportamentos não condizentes com a moral tem-se verificada frustrada, porque o caráter de
dever – obrigação só é aceito pelo agente quando ele considerar aquela ação como justa e
aceitá-la como tal.
Verifica-se equivocada e ultrapassada a concepção positivista tradicional que
considera o direito como ordem, vinculando justiça com legalidade. Nas palavras de Kelsen
“[...] o conceito de ‘bom’ não pode ser determinado senão como ‘o que deve ser’ o que
corresponde a uma norma [direito]”117 e de Bobbio: “[...] ação justa significa ação conforme a
lei [...]”.118
Para Fernandez é ingênuo e impossível separar o âmbito da moral do âmbito
jurídico, na forma pretendida por Kelsen.119 O ser humano tolera submissão às regras injustas
por um tempo determinado. Porém, sempre haverá no seu íntimo, um resquício de
insatisfação que menos hora mais hora extravasa, transformando-se em comportamento de
rebeldia.
Pode-se citar o exemplo da escravidão, tolerada por muitos anos no Brasil. Chega o
momento em que não se concebe mais a dominação imposta pelo outro e a revolta, manifesta
pelo não mais acatamento das regras injustas da sociedade dominante (formação dos
Quilombos), torna-se fato.
Esse é o posicionamento de Hart quando afirma que o sistema que assegura os
116 RADBRUCH, 1974, p. 101. 117 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 75. 118 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 231. 119 FERNANDEZ, 1991, p. 49.
43
interesses vitais de seus cidadãos com justiça será mais estável porque conquista e mantém a
lealdade da maior parte durante mais tempo.120
Habermas considera que as regras morais e jurídicas diferenciam-se da eticidade
tradicional “[...] colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação, que surgem lado
a lado, completando-se. [...]”. Dessa forma, o conceito de autonomia precisa de delineamento
abstrato que comporte o princípio moral e o princípio da democracia. Uma [...] ordem jurídica
só pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais. [...]” Entretanto, isso não
significa dizer que o direito está subordinado à moral no sentido de hierarquia normativa, pois
a “[...] moral autônoma e o direito positivo, que depende de fundamentação, encontram-se
numa relação de complementação recíproca.”121
Assim, o direito como meio de controle social não pode ser construído sobre idéias
de ordem, ameaça ou obediência.122 O comportamento descrito pela regra (no sentido de texto)
e amparado pela moral inspira efetividade, porque atinge o elemento subjetivo: vontade do
agente. Desta forma, a reprovação da conduta imposta ao sujeito encontra duplo incentivo: um
legal (coercitivo – direitos e obrigações) e outro moral (dever interiorizado).
A moral tem como substrato a vontade e o direito a conduta. Assim, “[...] Um dever
de pura legalidade é uma contradição [...]”.123 Hart considera que um sistema jurídico deve
basear-se nas obrigações morais porque não pode estar construído no mero poder do homem
sobre o homem. Acentua, ainda, que “[...] será frequentemente desprovido de sentido
reconhecer ou apontar uma obrigação jurídica, se o autor da afirmação tiver razões
concludentes, de natureza moral ou outra, para objetar ao seu cumprimento.”. Assim, o direito
pode ser limitado por questões morais.124
A legalidade positivista impõe-se como dever absoluto a partir da criação legislativa
e dessa forma, não se pergunta se ela é justa ou injusta, pois pelo fato de ser lei ela é justa por
si só.
O direito possui caráter imperativo, na medida em que uma vontade se impõe através
dele (meio para atingir um fim) e normativo na medida em que nele se exprime um dever-ser
120 HART, Herbert L. A. O conceito do direito. Tradução de Ricardo Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 218. 121 HABERMAS, 1997, p. 139-141. (grifo do autor). 122 HART, 2002, p. 169. 123 RADBRUCH, 1974, p. 103-104. 124 HART, 2002, p. 218-220.
44
(não realidade que deve realizar-se).125 Não se pretende, com as distinções estabelecidas entre
direito e moral, negar o caráter imperativo e normativo do direito, mas sim fazer aflorar que a
moral também possui caráter normativo que deve contribuir para a efetividade no
cumprimento das regras jurídicas.
A moral é, ao mesmo tempo, o fim do direito e o fundamento da sua validade
obrigatória. Só a moral é capaz de fundamentar a força obrigatória do direito. Preceitos
imperativos não podem fazer-se derivar um “dever-ser”, quando muito, um “ter-de-ser”.
Necessário se faz, para o dever-ser jurídico, o imperativo estar na consciência dos indivíduos
como força obrigatória ou vinculante do dever moral.126
Desta forma, “[...] O direito é apenas a possibilidade da moral e por isso mesmo
também da imoralidade. [...]”.127 Controlar a validade do direito pela moral é medida que se
verifica como necessária para aplicação do direito justo, porquanto a história mostra que as
arbitrariedades do monarca foram substituídas pelas arbitrariedades do legislador,
principalmente sob influência do positivismo – pensamento metafísico, vinculado ao esquema
sujeito-objeto.
Admite-se, portanto, que as regras de direito podem subsistir (vigência) sem
preceitos morais, porém carecem de validade, porquanto em desacordo com o desejo de
justiça da sociedade explicitamente apresentado na Constituição Federal, na forma de
princípios. Assim, uma nova condição de possibilidade exurge com o objetivo de materializar
a justiça na aplicação do direito.
A ação humana possui uma finalidade. Quando se está com fome, come-se para
saciá-la, logo saciar a fome é a finalidade do faminto. Para além desses atos meramente
imediatos e finalistas encontra-se uma finalidade suprema que concatena todas as nossas
ações para um objetivo maior.
A partir da Revolução Industrial, com a fabricação dos bens de consumo em série, e
mais recentemente com os incentivos modernos do desenvolvimento da robótica e da
computação, tornou-se necessário a criação de mercados para escoar a produção excedente. A
sociedade moderna identificou no Marketing uma possibilidade real de atrair e incentivar o
consumo.
Paralelo a isso, o individualismo esteve fortemente estimulado por concepções do 125 RADBRUCH, 1974, p. 106. 126 RADBRUCH, 1974, p. 109. 127 Ibidem, p. 112-113.
45
tipo: mínimo de relação e máximo de prazeres proporcionados por uma realidade de máxima
informação e mínima relação. A realidade virtual traz a informação presente ao dia-a-dia,
porém as relações entre homens estão deixadas à margem da realidade.
Atitudes autoritárias e dirigistas são substituídas pelo aumento das oportunidades de
“[...] escolhas particulares, a privilegiar a diversidade e, atualmente, a oferecer fórmulas de
‘programas independentes’ nos esportes, nas tecnologias psicanalíticas, no turismo, na moda
casual, nas relações humanas e casuais. [...]”. O processo de sedução pauta-se no oferecer
mais para você escolher melhor – satisfação e bem-estar – processo que acelera a
individualização do ser. “[...] Fazer da sedução uma ‘representação ilusória do não-vivido’
(Debord) significa prolongar o imaginário das pseudonecessidades [...]” e ao invés de
passividade, a sedução que é a “[...] destruição fria do social por um processo de isolamento
[...]”. O indivíduo prefere ser só “[...] ao mesmo tempo em que não suporta a si mesmo
estando só. A esta altura o deserto já não tem mais princípio ou fim.”128
O capitalismo encontra na indiferença129 um ambiente ideal para desenvolver-se –
ausência de resistência. Assim, “[...] quanto mais o sistema atribui responsabilidades e
informa, menor é o investimento. Esse paradoxo impede assimilar alienação e indiferença,
mesmo quando essa última se manifesta pelo tédio e pela monotonia. [...]”.130
Assim, a informação tornou-se instrumento essencial e determinante para incentivar
o consumo e proporcionar a solidão informada. Vive-se, então, numa sociedade individualista,
pautada nas relações de consumo, em que as ações humanas convergem para a busca de uma
finalidade suprema, embora pareça obscura. Essa finalidade é aquela apontada por Aristóteles
que considera a felicidade o bem supremo que está acima de todos os demais fins buscados
pelas diversas ações e artes. É “[...] a mais desejável de todas as coisas [...] algo absoluto e
auto-suficiente, e a finalidade da ação.”131
As ações inflamadas pelo consumismo de prazer imediato e pela ausência de
relações afetivas são causadoras de conflitos sociais complexos que não podem mais ser
tratados com soluções simples. A sociedade exige algo mais do sistema jurídico. No entanto,
128 LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005, p. 3-4; 7; 30. 129 São exemplos da indiferença por saturação, informação e isolamento: “[...] Quanto mais os políticos se explicam e se exibem na televisão, mais todo mundo se aborrece; quanto mais os sindicatos distribuem panfletos, menos eles são lidos; quanto mais os professores querem fazer ler, menos os alunos lêem. [...]” LIPOVETSKY, 2005, p. 26. 130 LIPOVETSKY, 2005, p. 24-25. 131 ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 25-26.
46
diante dessas demandas sociais, o que se tem visto é uma inflação legislativa crente que diante
das regras os problemas sociais desaparecerão. O legislador ordinário, com grande freqüência,
apresenta soluções, sem concordância Constitucional, para satisfazer anseios populistas. Se
não bastasse, o poder judiciário valida tais iniciativas – e desrespeita a Constituição. E isso
tudo ocorre porque os juristas não se deram conta da responsabilidade que o Estado os impõe
para concretização dos direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito.
A justa e correta aplicação do direito (ainda) é demanda presente e latente para o
poder judiciário. A partir da viragem ontológica, uma (nova) perspectiva se coloca para
reverter o quadro de apatia do jurista e fazer frente ao desrespeito aos direitos fundamentais.
O conceito de justiça está ligado ao que é bom. Embora existam boas virtudes e más
virtudes, a justiça está ligada as boas virtudes. Para Aristóteles a justiça é expressão máxima
de todas as virtudes. Ela preocupa-se com o outro, fazendo o que é bom ao próximo. Isso
constitui tarefa difícil e é disposição de caráter.132
Ao se fazer justiça no caso concreto verifica-se um ato bom à coletividade como
também a si mesmo. O operador jurídico brasileiro deve-se preocupar com os atos justos e
apaixonar-se pela justiça, não pelo ato do legislador tirano. Como frisa Aristóteles, “[...] não
apenas um cavalo dá prazer ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos,
como também os atos justos ao amante da justiça [...]”.133
Então o que é justiça afinal? Falou-se que é um instrumento bom para si e para
outrem, que está relacionado à expressão máxima das boas virtudes e que é possível de aplicá-
la ao caso concreto.
As virtudes devem ser apreciadas pelo meio-termo entre os seus opostos. Aristóteles
atribui o conceito de meio-termo que pode variar em relação ao objeto ou em relação a nós.
Em relação ao objeto a conta é matemática e vale para todos os homens e é único, ou seja, é
uma posição eqüidistante entre os dois extremos: a falta e o excesso. Em “relação a nós”,
referindo-se aquilo que não é demasiado nem muito pouco afirma não ser único para todos os
homens e variável de acordo com a pessoa. Logo, o que pode ser bom para fulano não pode
ser para sicrano.134
Essa percepção é perfeitamente verificável na aplicação do justo e do correto no
direito, porquanto as circunstâncias que envolvem as pessoas, agravadas ainda mais pelas 132 ARISTÓTELES, 2006, p. 105-106. 133 Ibidem, p. 29-30. 134 Ibidem, p. 47-48.
47
relações modernas (e pós-modernas) de informação e consumo, são dependentes de
individualização e análise do caso concreto.
Pode-se citar como exemplo dessa nova realidade social a marginalização do outro
presente nas favelas. É vendida a imagem para a coletividade de que “eles estão lá porque
querem” e não trabalham o suficiente para ascender socialmente, quando na verdade são o
fruto da opressão capitalista selvagem e inspiram tristemente a ganância humana que gerou a
submissão social. Está aí uma forma de domínio do homem sobre o homem pela força. Por
um lado os meios de comunicação incitam o consumismo, por outro, o cidadão marginalizado
inspira-se no desejo da aquisição. Está-se diante de uma situação injusta: porque os outros
podem ter, eu não posso? Que situação de igualdade é essa? Assim, a onda de violência
existente também é um sinal da dominação sobre o outro que se mostra injusta.
Bauman bem relata a odiosa impureza de versão pós-moderna: “Uma vez que o
critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um
‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida, são os consumidores falhos [...] são
eles os novos ‘impuros’ [...] ‘objetos fora do lugar’.” A sociedade impõe duas exigências
políticas contraditórias para o Estado: aumentar as liberdades do consumidor e negociar
energicamente com o refugo através de uma política de movimento de lei e ordem – precisam
ser detidos e mantidos ao menor custo possível (a remoção do refugo é menos dispendiosa do
que a reciclagem do refugo). Nesse último aspecto os teóricos da criminologia e do direito
contribuem com uma “mãozinha” por não acreditarem no tratamento.135
Se a virtude deverá visar o meio-termo e a justiça é expressão máxima da virtude, o
conceito de meio-termo é aplicável à justiça. Trata-se de virtudes morais, ou seja, que se
relaciona com paixões e ações, em que se pode encontrar um fator que pondere entre excesso
e carência.136
Assim, verifica-se inaceitável os preceitos genéricos – receitas – dirigidas para toda
a coletividade de forma taxativa e impositiva. Necessário se faz a individualização e análise
das circunstâncias no caso concreto, considerando-se conceitos de valor para encontrar-se o
meio-termo: o justo. É nesse sentido as colocações de Gadamer: “[...] É verdade que o jurista
sempre tem em mente a lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo tem que ser
determinado como respeito ao caso ao qual se trata de aplicá-la. [...]”137
135 BAUMAN, 1999, p. 24-25. 136 ARISTÓTELES, 2006, p. 48. 137 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 485.
48
Essa análise não é fácil e há mais possibilidades de erro do que acerto. É uma
situação análoga a do alvo, em que existe uma só possibilidade de sucesso – acerto – enquanto
que diversas possibilidades de insucesso – erro – porquanto pode ocorrer por várias
oportunidades. Chegar ao meio-termo e, por conseguinte, ao que é certo demanda análise de
“[...] circunstâncias particulares, e a decisão depende da percepção.”. Por outro lado, as
pessoas que não atingem exatamente o alvo, do que é certo ou errado não são censuradas,
enquanto que aquelas que desviam consideravelmente nunca passam despercebidas.138
Deve-se então, buscar o meio-termo concentrando-se todas as energias para o acerto
– alvo, tendo-se em vista que a justiça pode ser alcançada de forma também aproximada, sem
ser passível de censura pelo que é certo. Esse é o desafio do profissional jurídico moderno.
Não é tarefa fácil o acerto, mas deve-se sempre, utilizando-se da compreensão hermenêutica
buscar a ponderação entre o excesso e a falta, para se estabelecer um parâmetro médio para
aplicação justa do direito.
Nesse primeiro momento interessa a forma de justiça em que a legalidade (princípios
e regras) é o intermédio para o interesse do bem comum (ou ao menos deveria ser) e, portanto,
expressão do que é justo na busca da felicidade.
Para Aristóteles a lei tem um papel fundamental e é concebida para o bem comum,
visando preservar a felicidade, prescrevendo certos atos e condenando outros. Logo uma
expressão de justiça. O homem que não cumpre a lei é um homem injusto. Ao contrário, o
homem que cumpre a lei é um homem justo. Apesar desse ideal de que a lei visa o bem
comum e é expressão de justiça é de se ressalvar que leis bem elaboradas fazem o bem
enquanto que as mal elaboradas ou elaboradas às pressas não fazem tanto bem assim.139
Atualmente, na realidade do Estado Democrático de Direito não se pode dispensar a
legalidade, porque ela é o parâmetro para o justo. O que não se admite é a
interpretação/aplicação de regras sem o necessário filtro Constitucional porque são os
princípios que asseguram a inserção de elementos morais trazidos pelo povo e
Constitucionalizados sob a forma de direitos fundamentais.
Tem-se, ainda, que a noção de justo e injusto estão ligados à idéia de eqüidade. O
relacionamento dos homens está sempre numa relação de igualdade ou desigualdade. Manter
a relação de equilíbrio ou proporção é onde se estabelece o justo. Porém, além do tratamento
138 ARISTÓTELES, 2006, p. 49; 55. 139 Ibidem, p. 104-105.
49
igualitário a casos semelhantes é necessário estabelecer quando esses casos serão semelhantes
ou diferentes (dependente de valores morais). Assim, a justiça é uma condição necessária que
deve ser satisfeita pelas escolhas legislativas para o bem comum.140 Santo Agostinho
considera, com razão, que os Estados devem ser seguidores da justiça, sob pena de serem
identificados como ladrões alargados.141
Dessa forma, há que ser fazer justiça nos atos legislativos e também na aplicação do
direito pelo profissional jurídico, sempre visando o bem comum. Aristóteles já dizia que
praticar atos nobres ou vis dependem das pessoas, assim como ser virtuoso ou vicioso. Essa
atitude pode ser demonstrada tanto na vida particular das pessoas como também no legislador
que estabelece os preceitos punitivos.142
Estabelecer o que seja justo nem sempre é tarefa fácil e depende de um especial dom
de sensibilidade para a realidade, do legislador e do profissional jurídico, porquanto o senso
de justiça não é unânime, manifesta-se diverso de acordo com a sociedade. O justo é,
portanto, fruto de um meio social e histórico em que está inserido.
O entendimento de Kelsen não é diverso nesse ponto, porque considera que “[...] não
há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma Justiça absoluta mas
apenas uma Justiça relativa [...]”.143 É necessário considerar, também, que Kelsen expressou,
num ato de pronunciamento de despedida da Universidade da Califórnia (que originou um
ensaio chamado “O que é justiça?”), sua preocupação com a justiça, porquanto reafirmou o
caráter de relatividade presente no conceito de justiça e declarou que o seu conceito para
justiça é o de liberdade, de paz, de democracia e de tolerância.144
O emprego da razão e da reflexão verifica-se fundamental no processo de
identificação da justiça. Fernandez considera que a discussão racional, a reflexão filosófica e a
análise crítica são necessárias para estabelecer a idéia de justiça e aí está a tarefa fundamental
da filosofia do direito.145 Também esse é o apontamento de Aristóteles porque considera: “[...]
o meio termo é definido pelos ditames da reta razão [...]”.146
A idéia de justo ou injusto não compactua com valores absolutos, pois inviabiliza
uma discussão racional sobre o tema e pode levar à arbitrariedade, ao dogmatismo e ao 140 HART, 2002, p. 172-182. 141 AGOSTINHO apud HART, 2002, p. 170. 142 ARISTÓTELES, 2006, p. 65. 143 KELSEN, 2001, p. 76. 144 FERNANDEZ, 1991, p. 61-62. 145 Ibidem, p. 32. 146 ARISTÓTELES, 2006, p. 128.
50
totalitarismo. A filosofia do direito deve tratar racionalmente a idéia de justiça porque a
concepção integradora do direito como fenômeno social expressa sempre uma idéia de justiça
e é possível partir de critérios mínimos de racionalidade prática em torno da idéia de justiça
(direitos humanos fundamentais).147
Hart adverte que “[...] Os homens perversos editarão regras perversas que outros
obrigarão a cumprir. [...]”.148 Quando as leis negam o desejo de justiça carecerão de qualquer
validade, o povo não deverá obediência e os juristas devem, em primeiro lugar, refutar o
caráter de justiça.149 Posicionamento diverso é adotado por Kelsen quando atribui validade a
ordem jurídica independentemente de confrontação com qualquer sistema de moral. A regra
estando no sistema jurídico basta para pressupor sua validade, ainda que contrarie a ordem
moral. A ciência jurídica deve preocupar-se com o conhecimento e com a descrição da ordem
normativa e não com atribuição de valor.150
A solução é complexa e não pacífica. Os profissionais jurídicos não têm um acordo
semântico sobre a aplicação das normas jurídicas. Ainda assombra o direito resquícios de um
paleopositivismo vinculado à metafísica. Está nas mãos do profissional jurídico a aplicação
justa do direito, proporcionada pelo debate e resgate de uma postura de reflexão frente aos
problemas concretos.
Apegado à falsa segurança da letra fria da norma penal, o dogmatismo exagerado
torna-se prejudicial porque torna eficaz a aplicação da lei e não do direito, este entendido
como medida de justiça. Os valores trazidos à sentença judicial devem partir da
historidicidade/faticidade do intérprete e observar os pré-juízos autênticos dispostos no
ordenamento constitucional.
A justiça deve ser o objetivo maior da prestação jurisdicional. Para tanto os
legisladores e os profissionais do direito devem se desprender da concepção equivocada de
segurança jurídica trazida pela legalidade. A medida justa é verificada no caso concreto. Para
efetivá-la deve-se assumir uma postura de responsabilidade e reflexão diante do direito,
respeitando-se os valores Constitucionais. Ter em mente que o direito é algo que ultrapassa a
legalidade em sentido estrito, buscando o justo é medida que deve irradiar nos bancos
escolares e se infiltrar no poder judiciário.
147 FERNANDEZ, 1991, p. 35-37. 148 HART, 2002, p. 226. 149 RADBRUCH, 1974, p. 416. 150 KELSEN, 2001, p. 76-77.
51
2.2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, CONSTITUIÇÃO E PROCESSO PENAL:
UMA APROXIMAÇÃO GARANTISTA
Na atual conjuntura do direito e dos Estados modernos, o processo penal é o
instrumento indispensável para se atribuir pena a quem cometeu um injusto penal – ainda que
haja manifestação do acusado no sentido de dispensá-lo (trata-se de direito indisponível do
acusado).
O homem para atingir a paz proporciona a guerra – invade o domínio do outro. A
guerra enquanto proibida pelo direito se converte em delito e o direito penal tem a finalidade
de combater ou excluir o delito – combate a um inimigo151 a dominar.152 Porém, o combate ao
delito com a atribuição de pena não é conseqüência imediata e irrefletida da infração, porque
prévia ação penal objetiva permitir sua efetivação apenas quando precedida do devido
processo Constitucional, ou seja, a liberdade individual está ameaçada se o direito cometido
for submetido ao trâmite processual, sendo nele respeitados, o contraditório, a ampla defesa, a
presunção de inocência, a igualdade processual, o Juiz natural, a publicidade e justificação das
decisões, entre outros princípios limitadores e dosadores do direito de punir do Estado.
A partir da autodefesa ou da autotutela153 o Estado tornou-se o único e exclusivo
detentor do direito de punir (jus puniendi) necessitando de um procedimento para atingir seus
objetivos. Como bem afirma Jardim, o Estado não se limita a criar regras de comportamento
por meio de normas permissivas ou proibitivas, genéricas e abstratas, mas também se aparelha
tecnicamente para que tais regras sejam eficazes como fator de segurança e estabilidade.154
Esse instrumental155 necessário para a imposição de pena (caminho), monopolizado
pelo Estado, constitui-se num significativo avanço para a humanidade. Nas palavras de Lopes
Júnior, hoje há uma íntima ligação entre delito, pena e processo (complementaridade). “[...] 151 A palavra inimigo não significa a adoção das teorias de Günther Jakobs sobre o direito penal do inimigo. Ao contrário, um processo penal democrático compactua com um direito penal de ultima ratio (direito penal mínimo). 152 CARNELUTTI, Francesco. As funções do processo penal. Tradução Rolando Maria da Luz. Campinas: Apta, 2004, p. 27-29. 153 A autodefesa ou autotutela é o revide pela vítima – pelas próprias mãos – às agressões sofridas e esteve presente com maior freqüência no período da vingança privada. 154 JARDIM, 2007, p. 16-17. 155 A instrumentalidade do processo penal é denominada por Lopes Júnior de instrumentalidade garantista por estar “[...] relacionada ao Direito Penal, à pena, às garantias constitucionais e aos fins políticos e sociais do processo. [...]” LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 13.
52
Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para
determinar o delito e impor uma pena.”156 Também, na afirmação de Carnelutti o direito penal
compreende o direito processual penal cujo objeto é a pena e o direito penal material, cujo
objeto é o delito. Nesse sentido “[...] a pena se resume no juízo e o juízo na pena. [...]”157
É necessário destacar que o Estado, no decorrer da história, nem sempre soube
utilizar o poder jurisdicional com cautela. Em nome de uma pretença ordem repressora (fiel
em acreditar na prevenção geral) e na defesa de interesses políticos, sociais e econômicos de
determinada classe cometeu atrocidades utilizando-se da coercitividade do direito penal. Essa
realidade utilitarista do direito penal felizmente – ao menos teoricamente158 – está sendo
combatida.
Também, é importante mencionar que o processo em si já é pena, ou seja, somente o
fato de o acusado respondê-lo lhe causa diversos e sérios transtornos. Como bem relata
Carnelutti, “O acusado sente ter a aversão de muita gente contra si; algumas vezes, nas causas
mais graves, lhe parece que esteja contra ele todo mundo [...]” pois, não raramente, a multidão
o insulta e provocam atos de violência contra ele. “[...] Infelizmente a justiça humana é feita
assim, que nem tanto faz sofrer os homens porque são culpados quanto para saber se são
culpados ou inocentes. [...]”. O homem quando é acusado é jogado às feras. Ele, sua família,
sua casa e seu trabalho são despidos na presença de todos levando o indivíduo à pedaços.159
Isso tudo, sem falar do poder da mídia que atualmente vem solapando, cada vez em maior
freqüência, a presunção de inocência dos suspeitos de forma a condená-los e executá-los
sumariamente.
As normas incriminadoras (penal) e instrumentais (processo penal) estão
diretamente vinculadas ao princípio da dignidade da pessoa humana. “[...] Do mesmo modo
que a tipicidade penal deve obediência ao princípio da dignidade, o processo criminal não
pode servir para ultrajar a dignidade do suposto acusado de modo desarrazoado,
desproporcional, desnecessário, além do que consente a ordem constitucional.”160
156 LOPES JÚNIOR, 2001, p. 6; 9. 157 CARNELUTTI, 2004, p. 21; 23. (grifo do autor). 158 A principal resposta teórica aos abusos cometidos pelos Estados no exercício do poder punitivo é a teoria do garantismo jurídico proposta por Luigi Ferrajoli. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. Tradução Ana Paula Zomer Sica et. al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 159 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução José Antonio Cardinalli. Campinas: Conan, 1995, p. 26; 45-46. 160 CARVALHO, 2004, p. 48; 51.
53
O processo penal, como instrumento para se chegar à pena, é fundamental no Estado
Democrático de Direito. Sob o princípio reitor do devido processo legal161, consagrado
expressamente na Constituição Federal brasileira de 1988, o Estado impõe limites
Constitucionais à liberdade – direitos fundamentais – para exercer o poder punitivo. Essa
(de)limitação de como proceder se explica, segundo Rosa, porque diante da sempre parcial
descrição da conduta as tramas e versões apresentadas no processo democrático, a partir da
iniciativa das partes, “[...] podem ser muitas e a escolha de poucos. Por isso que o ato
decisório, para além da lógica, precisa atender às regras do jogo processual [...]” e estar
relacionada com o mundo da vida.162 Por essa razão – proteção ao arbítrio – as regras
processuais devem ser aplicadas pelo intérprete a partir de seus pré-juízos autênticos (sentido
de Constituição, preocupação com o ser, consciência histórica, entre outros).
Essas garantias pautadas nos direitos fundamentais frente ao poder do Estado têm
como base um projeto de democracia163 social – direito penal mínimo e direito e Estado social
máximo – que protegem os “[...] interesses dos mais débeis em relação aos mais fortes, tutela
das minorias marginalizadas frente às minorias integradas.”164
Um direito processual penal válido depende de uma releitura do ordenamento
jurídico tradicional a partir da teoria do garantismo de Ferrajoli – baseada no respeito à
dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais – concepção de Constituição daí
decorrente. Essa teoria tem quatro frentes: a) revisão da teoria da validade (diferença entre
validade/material e vigência/formal); b) reconhecimento da dimensão substancial de
democracia (superação da visão formal); c) nova maneira de o Juiz ver a sujeição à lei
(conteúdo normativo – também de acordo com o texto, inclusive o maior); d) revisitação da
ciência jurídica – acréscimo de contornos críticos e de projeção de futuro.165
A partir da teoria de garantismo, é possível identificar o processo penal como
instrumento de garantia ao qual a proteção dos direitos fundamentais pelo ordenamento
161 “Art. 5º [...] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. 162 ROSA, 2006, p. 385. 163 “[...] Quanto maior a cultura de democracia de um povo, maior será a humanização de seu direito penal. [...]”. As violações a direitos individuais, a partir da atuação do Estado no exercício do poder punitivo, foram responsáveis por grande parte do déficit democrático que se apresenta. A criminalização e penalização de condutas redundou “[...] em mais repressão e menos tolerância, o que se afasta do pretendido para o direito penal em uma sociedade democrática. [...]” COPETTI, André. Direito penal e democracia: perspectivas para a efetivação democrática através do sistema punitivo. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4, p. 39; 43; 46. 164 STRECK, 2001, p. 23-24. (grifo do autor). 165 ROSA, 2006, p. 85-86.
54
jurídico é o imperativo básico. O acusado passa a ser tratado como sujeito no processo. O
Estado Democrático de Direito compactua com um processo penal também democrático e a
Constituição tem função limitadora do poder (tutela os direitos fundamentais), servindo de
garantia aos cidadãos. O processo penal é, no Estado Democrático de Direito, o instrumental
(limita e disciplina o jus puniendi Estatal) necessário e indispensável para efetivar as garantias
Constitucionalmente estabelecidas a fim de se atribuir pena através de uma prestação
jurisdicional justa.
Os princípios garantistas visam, antes de tudo, dar um grau máximo à racionalidade
e confiabilidade do juízo e, portanto, limitar o poder punitivo e proteger a pessoa contra a
arbitrariedade.166
No Brasil encontra-se um dilema entre exigência normativa garantista e uma prática
autoritária. Busca-se conciliar o inconciliável que é conferir à prática processual penal
legitimidade constitucional que não se tem. A democracia ainda não se solidificou porque
houve uma sucessão de regimes autoritários e supressão sistemática de direitos fundamentais.
Uma educação para os direitos fundamentais e uma ruptura com o passado autoritário esteve
ausente por aqui.167
Ainda é preciso dizer que a Constituição deve ser encarada como topos
hermenêutico – valor supremo – para todo o ordenamento jurídico. Especificamente para o
Direito Processual Penal, há princípios (normas fundantes do sistema) expressos ou implícitos
sobre “a regra do jogo” para se chegar à pena.
Boa parte dos juristas brasileiros (ainda) não conseguiu apreender o verdadeiro
sentido de Constituição enquanto ruptura de um modelo desprovido de garantias, vinculado à
situações de privilégios.
Assim, tem-se (mais uma vez) uma Constituição “recheada” de direitos
fundamentais e parte dos juristas preocupados com a manutenção do status quo.
Falta (novamente) efetivação de direitos e garantias Constitucionais a partir do
modelo de processo trazido pelo constituinte originário. Apesar das dificuldades de
delimitação, pode-se afirmar que esse modelo (sistema) aproxima-se do acusatório.
166 FERRAJOLI, 2006, p. 38. 167 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade Constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 3; 5; 23-24; 37.
55
Uma abordagem que pode ser considerada completa sobre os sistemas de processo
penal merece uma análise da experiência histórica.168 Em razão da delimitação aqui proposta e
correndo o risco de ser “incompleto” – mas de maneira alguma subtraindo a importância do
tema –, apresenta-se somente os aspectos conceituais sobre os dois principais sistemas de
processo penal169: inquisitório e acusatório.
Sob a perspectiva teórica a dicotomia acusatório/inquisitório indica dois modelos
opostos de organização judiciária – duas figuras de juiz – e métodos diversos, contrapostos,
de investigação judicial – dois tipos de juízo. No sistema acusatório, o juiz é um sujeito
passivo “[...] rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário,
iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante
um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção.
[...]”. No sistema inquisitório, “[...] o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação
das provas, produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na qual são
excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa. [...]”170
O sistema inquisitório é caracterizado por uma persecução escrita e secreta, pela
incomunicabilidade e encarceramento provisório do acusado e ausência de contraditório.171
Ele está preocupado com a realização do direito penal material. O objetivo principal é o
exercício do poder de punir do Estado. Os atos distribuídos ao juiz compactuam com esse
objetivo como se o juiz cumprisse função de segurança pública. Essas tarefas de acusação
primam pelo interesse de punir sobre os direitos fundamentais do réu.172
A gestão da prova denuncia a característica fundamental do sistema inquisitório,
pois o magistrado poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos fatos
(vantagem aparente), mesmo os não contidos na acusação “[...] dado de seu domínio único e
168 “A distinção entre sistema acusatório e sistema inquisitório pode ter um caráter teórico ou simplesmente histórico. [...]” Na experiência histórica eles nunca aparecem sob a forma pura – dependem dos contingentes e dinâmicas histórico-políticas. FERRAJOLI, 2006, p. 518-519. Merece consulta a obra de Prado porque sistemativa o pensamento histórico dos sistemas processuais, desde a experiência europétia até a brasileira. PRADO, 2006. 169 Pela expressão principais, exclui-se o sistema misto que é uma tentativa de conciliar o sitema inquisitório com o acusatório. Na afirmação de Ferrajoli, esse “[...] ‘monstro, nascido da junção entre os processos acusatório e inquisitório’ [...]” foi contemplado pelo Código termidoriano de 1795 e pelo Código napoleônico de 1808. FERRAJOLI, 2006, p. 521. 170 Ibidem, p. 519-520. 171 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do Juiz no processo penal acusatório: incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo Constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 41. 172 PRADO, 2006, p. 105.
56
onipotente do processo em qualquer das suas fases.”173 Define-se o sistema processual penal
adotado por um ordenamento jurídico, basicamente, a partir da análise da gestão da prova.174
A busca da prova, pelo juiz, subverte a função de acusador e transforma-o em um verdadeiro
inquisidor.175 Ao contrário, um sistema de processo penal acusatório não compactua com a
postura de um Juiz ativo no processo. O papel do Juiz deve ser de mero espectador para se
tornarem efetivas as garantias Constitucionais legitimamente estabelecidas.
O princípio acusatório é um processo de partes que pode ser visto sob as
perspectivas estática e dinâmica. No primeiro caso analisam-se as funções dos três principais
sujeitos – “[...] distribuição do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional,
entre autor, réu (e seu defensor) e juiz [...]”. No segundo ponto de vista, a análise pauta-se na
forma em que se relacionam autor, réu e seu defensor e juiz nas funções (captação da atuação
como em um filme).176
No processo de partes – característica essencial do modelo acusatório – ocorre “[...]
atuação das partes contrapostas – acusador e acusado –, que duelam em igualdade de posições
e direitos, apresentando-se um juiz sobreposto a ambas.”177 No processo de partes, “[...] não
compete ao órgão jurisdicional provocar a sua jurisdição, bem como impedir que a parte se
instrumentalize para fazê-lo, no futuro. [...]”178 A exigência fundante é de uma igualdade
efetiva entre acusação e defesa (paridade de armas179), assegurada por regras democráticas e
pelo processo penal acusatório.
O sistema acusatório moderno parte de um Poder Judiciário independente e inerte,
onde os juízes estão comprometidos com o sistema de garantias dispostas em Constituição,
pactos e convenções internacionais.180 No sistema inquisitivo ocorre o inverso porque a busca
pela verdade a qualquer preço acaba por contaminar a imparcialidade do julgador e produzir
efeitos nefastos no processo penal.
173 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 24. 174 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim IBCCRIM. Porto Alegre: IBCCRIM, ano 15, n. 175, junho 2007, p. 11. 175 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, tecnologia, dromologia e garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 282. 176 PRADO, 2006, p. 106; 113; 124. (grifo do autor). 177 SILVA, 2005, p. 41. 178 JARDIM, 2007, p. 192. 179 “O tratamento paritário dos sujeitos processuais significa dar às partes as possibilidades necessárias para que possam valer seus direitos, garantindo o julgador que haja o equilíbrio de situações.” BONATO, Gilson. Devido processo legal e garantias processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 196. 180 THUMS, 2006, p. 262.
57
No Brasil, a partir de 1988, está vedada a possibilidade de processo iniciado por juiz
e àqueles habilitados é exigido a justa causa penal – tutela constitucional da dignidade da
pessoa humana e imparcialidade judicial – pois “[...] aquele que tem um juiz por acusador,
precisa de Deus como defensor [...]”.181 A mudança Constitucional foi radical. De mero
veículo de aplicação da lei penal a nova ordem exigiu que o processo passasse a ser
instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado.182
Constitui problema quase insolúvel compatibilizar a Constituição da República, que
impõe um sistema acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro que, em sua maior
referência legislativa – código de processo penal – é uma cópia malfeita do Codice Rocco
Italiano, datado de 1930, nitidamente marcado pelo sistema inquisitivo.183
No entendimento de Oliveira, o código de processo penal, datado de 1941, deve ser
compreendido e aplicado a partir da devida filtragem constitucional porque ele não está
superado apenas pelo tempo mas também por incompatibilidade normativa com a
Constituição de 1988.184
O constituinte orientou-se pelo princípio acusatório enquanto que a legislação
caminha na contramão para atender reclamos populares frente a crescente onda de violência
no país.185 “Tem-se, no Brasil, um arsenal capaz de conduzir o sistema processual penal à
base acusatória, mas isso não ocorrerá enquanto o Poder Judiciário não assumir a CF/88
contra o CPP; [...]”186
O senso comum teórico dos juristas (expressão de Warat) está de mãos dadas com
uma verdade que acreditam ser fundante, alheia ao giro lingüístico, o que torna a decisão
penal um mero ato lógico, desprovido de realidade – mundo da vida – sempre na busca pela
verdade real que é sempre limitada.187 No plano ideal o Brasil tem um sistema acusatório mas
na realidade isso ocorrerá a partir do momento em que as leis processuais infraconstitucionais
forem aplicadas em conformidade com a constituição.188
A atividade decisionista do juiz é reprovável, pois sua vontade pessoal não é
legítima. Ele não pode condenar porque diversas pessoas querem a condenação, mas sim com 181 PRADO, 2006, p. 167-174; 179. 182 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 7. 183 COUTINHO, junho 2007, p. 11. 184 OLIVEIRA, 2007, p. 3. 185 THUMS, 2006, p. 263. 186 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Ampla defesa e direito à contraprova. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 13, n. 55, julho-agosto 2005, p. 375. (grifo do autor). 187 ROSA, 2006, p. 383-384. 188 BONATO, 2003, p. 106.
58
base nas provas lícitas produzidas no processo. A legitimidade da atividade jurisdicional está
em assegurar os direitos e garantias fundamentais, condicionada a ausência do decisionismo
judicial – decisão arbitrária – e da ilusão de uma verdade real. Não basta, para que isso ocorra,
somente disposições Constitucionais. É preciso que a sociedade também seja democrática
para se vencer os adversários culturais credores da verdade real – conquistada através de
procedimento de defesa social.189 A crença nessa verdade “[...] rendeu (e ainda rende)
inúmeros frutos aos aplicadores do Código de Processo Penal, geralmente sob o argumento da
relevância dos interesses tratados no processo penal. [...]” Ela contribui para a disseminação
de uma cultura inquisitiva.190
Ferrajoli afirma que a verdade substancial ou material é a verdade desejada pelo
modelo substancialista de direito penal que carece de limites e confins legais – além das
regras procedimentais. Está baseada em uma concepção autoritária e irracionalista do
processo penal. Ao contrário, a verdade formal ou processual pauta-se no respeito às regras.
Ela está condicionada pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa – não é obtida
mediante práticas inquisitivas – e não pretende ser a verdade. A verdade processual assegura
uma verdade mínima, mas também garantida porque determinada pelo processo acusatório.
Aqui o fim é legitimado pelos meios. Por outro lado, a verdade substancial afigura-se como
verdade máxima através de um processo decisionista e inquisitivo. Aqui os fins justificam os
meios.191
A verdade real é um mito que está relacionado ao sistema inquisitivo. Esse modelo
compactua com a figura do Juiz ator e um sistema autoritário.192 Na afirmação de Rosa, “[...]
jamais, [...] pode-se reconstruir os fatos como aconteceram, apesar de ser sedutora a hipótese,
porque a trama processual é sempre lacunar. [...]”193
A verdade que legitima democraticamente o processo penal é “[...] concebida como
possível e adequada entre a imagem [...] acerca do fato e a forma real como este fato
supostamente ocorreu [...] a verdade que se pode alcançar no processo [...] é contingente e
histórica. [...]”194 O direito não está suficientemente habilitado à investigação para se chegar a
uma verdade real. Ele somente se apropria do discurso.195 Dessa forma, é: “[...] Impossível [...]
189 PRADO, 2006, p. 35-37. 190 OLIVEIRA, 2007, p. 280-281. 191 FERRAJOLI, 2006, p. 48; 498. 192 LOPES JÚNIOR, 2001, p. 267. 193 ROSA, 2006, p. 384-385. 194 PRADO, 2006, p. 120-121. 195 Ibidem, p. 141.
59
demonstrar tudo e a descrição da conduta é sempre de ordem do parcial. [...] As tramas,
versões, então, podem ser muitas e a escolha de poucos. Por isso que o ato decisório, para
além da lógica, precisa atender às regras do jogo processual [...]”.196
Na afirmação de Coutinho, é preciso admitir que no processo penal jamais se vai
apreender o todo da verdade “[...] porque ela é inalcançável - e, portanto, como se viu, o que
se pode - e deve - buscar nos julgamentos é um juízo de certeza, pautado nos princípios e
regras que asseguram o Estado Democrático de Direito.”197 A decisão não é processo de uma
lógica dedutiva. Ela narra “acontecimentos históricos” analisadas no âmbito discursivo
(processo). Opera nesse processo o inconsciente (ao contrário do que a filosofia da
consciência acredita – hermenêutica colonizada – em busca da verdade real).198
A verdade real compromete a imparcialidade e esconde a substituição das funções
do Ministério Público pelo Juiz. O Juiz, na ânsia de buscar a verdade real torna-se um
inquisidor comprometido com suas vontades e não com a imparcialidade esperada pelo
sistema acusatório. A limitação da iniciativa probatória do Juiz é fundamental para que se
afaste essa natureza inquisitória do Processo Penal. O Juiz deve estar vinculado às provas
trazidas pelas partes, salvo para demonstrar a inocência do acusado.
Como bem salienta Prado, o comprometimento psicológico do Juiz com o resultado
condenatório ocorre quando ele toma a iniciativa probatória, pois: “Quem procura sabe ao
certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa
uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do
julgador.”199 A partir de premissas falsas “[...] forjadas pelo imaginário – chega-se, sem
grande esforço, a conclusões falsas. É assim que sempre se fabricou – e segue-se fabricando –
delitos e delinqüentes, em nome da crença nas imagens, hoje disseminadas (as imagens)
como nunca a partir dos meios de comunicação. [...]”200
A verdade real não é mais concebível no processo penal, ainda que haja dispositivos
legais infra-constitucionais amparando esse atuar. Verdade real não é possível e quando o
julgador se põe a buscá-la – o que é inalcançável – atua como inquisidor. Esse atuar
inquisitório não é compatível com a vontade Constituinte. Assim, a verdade real é
inconstitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro.
196 ROSA, op. cit., p. 385. 197 COUTINHO, maio de 1998, p. 34. 198 ROSA, 2006, p. 383-384. 199 PRADO, 2006, p. 137. 200 COUTINHO, Revista Brasileira de Ciências Criminais, julho-agosto 2005, p. 375. (grifo do autor).
60
A verdade também está relacionada com a justificação201 das decisões, porquanto é a
partir dela que se exterioriza o atuar democrático ou inquisitório do julgador.
A verdade a ser buscada no processo penal é aquela reduzida – mais aproximada
possível – controlada pela lei em nome da proteção da liberdade, com respeito aos
procedimentos e às garantias de defesa, funcionando como antídoto contra a pretensão de
infalibilidade e prepotência da atividade instrutória e da decisão judicial nela motivada.202
Conscientes de suas possibilidades e limitações, os julgadores devem conduzir o
andamento do processo penal a partir do comprometimento com a posição de imparcialidade a
fim de que resulte um processo penal verdadeiramente democrático e pessoas conscientes da
aproximação sobre a verdade dos fatos.
Não existe valor definido para cada prova no direito processual penal brasileiro.203
Em decorrência disso, cabe ao Juiz do processo penal democrático204 – em uma posição de
expectador, assegurado o contraditório e a ampla defesa do acusado – justificar sua
compreensão, dada a partir do círculo hermenêutico (situação possível a partir da linguagem).
O intérprete ao interpretar está no círculo hermenêutico que possui caráter
ontológico. Assim, “[...] o julgador não decide para depois buscar a fundamentação; ao
contrário, ele só decide por que já encontrou o fundamento [...]” que funciona como condição
de possibilidade para a decisão – “[...] a decisão é parte inexorável (dependente) do
fundamento. [...]”. Somente a partir daí, num segundo momento, pode-se buscar o
201 Prefere-se utilizar os termos justificação ou fundamentação das decisões porque adequados à viragem ontológica. A palavra motivação remete a ultrapassada crença – metafísica – de que primeiro o juiz decide e depois encontra os argumentos/apresenta a motivação de seu convencimento. A partir da compreensão hermenêutica o processo é único, ou seja, quando a compreensão do intérprete (com seus pré-juízos) materializa-se (fuzão de horizontes e circulo hermenêutico) no processo decisório não se separam decisão e motivação – a decisão ocorre porque a compreensão do intérprete a motivou no sentido do decidido. Ainda assim, a hemenêutica filosófica não dispensa a justificação das decisões porque ela é a explicitação do compreendido através da linguagem e fator de legitimidade da atuação democrática do intérprete. 202 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios Constitucionais do processo penal. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 205-207. 203 Após a Revolução Francesa, passou-se a sustentar que o valor e a força dos meios de prova não podem ser aferidos a priori, com base em critérios legais, mas tão-só a partir da análise do caso concreto. Assim, passou-se a substituir, paulatinamente, o princípio da valoração legal das provas pelo princípio da livre apreciação delas pelo juiz, com a devida fundamentação: teríamos chegado, com o livre convencimento, à fase científica. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. Texto preparado e inicialmente apresentado no âmbito da Comissão de Estudos criada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e Instituto Max Planck, de Freiburg, Alemanha, no Projeto “A Justiça como garantia dos direitos humanos na América Latina”, maio de 1998, a partir das aulas de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da UFPR, p. 36-37. 204 “Um processo penal relamente democrático e de estrutura acusatória deve necessariamente ser um instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais.” BONATO, 2003, p. 196.
61
aprimoramento do fundamento a partir de práticas discursivas ou problemáticas.205
Há uma Constituição a ser obedecida (sistema acusatório) e um procedimento
correto a ser adotado (caráter instrumental do processo), em que as provas produzidas, lícitas
e legítimas (sob o crivo do contraditório) servem (também) de condição de possibilidade para
o ato decisório. São essas condições do compreendido que devem ser apresentadas pelo
julgador (justificadas) para que haja um “controle” sobre a legitimidade das decisões.
Imparcialidade não se confunde com neutralidade, uma vez que a primeira deve ser
preservada, enquanto que a segunda não pode ser alcançada.
O julgador está sempre “[...] vinculado aos condicionantes culturais, criminológicos,
midiáticos, ideológicos e inconscientes [...] que se materializam no ato decisório [...]”. As
decisões são construídas por seres humanos em determinado momento histórico e cada Juiz
possui sua singularidade ao congregar os significantes. A escolha se dá entre as várias
possíveis, “[...] sem verdades fundantes, nem certezas redentoras, mas com ética [...]”.206 “O
importante, enfim, neste tema, é ter-se um julgador consciente das suas próprias limitações
(ou tentações?), de modo a resguardar-se contra seus eventuais prejulgamentos, que os tem
não porque é juiz, mas em função da sua ineliminável humanidade.”207
Os julgadores do direito penal devem assumir-se na posição de imparcialidade
através de um processo penal democrático e, portanto, acusatório. Pré-julgamentos
inautênticos acabam por tornar sobreposta a emoção sobre a razão levando ao desvirtuamento
dos fatos. A consciência sobre a não possibilidade de ser neutro é importante para reforçar a
diferença em relação à imparcialidade que deve ser concretizada.
Um processo democrático que permite a produção de provas legítimas torna a
decisão mais justa. Essa decisão busca a racionalidade e o convencimento através da
compreensão explicitada pela linguagem – espaço para argumentação.
No modelo de processo penal democrático as decisões precisam ser aparentes de
forma que o acusado possa saber as razões de sua condenação/absolvição. As decisões
tornam-se democráticas pois não mais se permite decidir de qualquer forma – controla-se o
poder. Elas precisam vir a público de forma justificada. Não basta o decidir, o julgador deve
decidir bem e explicar suas razões. Dessa forma o poder é controlado – limitado – e o Estado
democrático de direito preservado. 205 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 210. 206 ROSA, 2006, p. 384. 207 COUTINHO, maio de 1998, p. 37.
62
Assim, o sistema de Processo Penal apresentado pela Constituição Federal brasileira
de 1988 pode ser definido como acusatório, pois vedado o processo em segredo, sem
contraditório e assegurado o direito à ampla defesa. Os papéis nesse sistema estão
previamente distribuídos à Órgãos distintos, ou seja: o Ministério Público tem o dever
acusatório e de custus legis, o réu tem assegurado meios amplos de defesa (técnica e pessoal)
e o Juiz tem o papel fundamental de garantir (assegurar com imparcialidade) o estabelecido
Constitucionalmente para um Processo Penal Democrático ou Constitucional, pautado na
igualdade material (paridade de armas).
O atual Código de Processo Penal Brasileiro está datado de 1941 (em vigor desde
1942) e foi elaborado em meio às aspirações Facistas (código de Rocco – Itália),208 em que o
pensamento era no sentido da presunção de culpabilidade, com caráter nitidamente
policialesco. Segundo Oliveira, as principais características do Código de Processo Penal
brasileiro são: a) acusado como potencial e virtual culpado; b) tutela da segurança pública em
detrimento da liberdade individual; c) busca da verdade (real) através de práticas autoritárias e
abusivas por parte dos poderes públicos; d) interrogatório do réu como meio de prova e não
de defesa.209 Ao contrário da realidade constituinte, o código de processo penal brasileiro é de
índole inquisitória. Seus dispositivos retratam o autoritarismo quando dispõe sobre a busca de
uma verdade (real) não compatível com o sistema acusatório e considera o réu como inimigo
e culpado antes do provimento jurisdicional final.
Diante da nova realidade Constituinte de 1988 (preocupada com afirmação dos
direitos e garantias individuais), é preciso uma (re)leitura210 Constitucional e Democrática das
regras do Código de Processo Penal Brasileiro (filtragem Constitucional). Timidamente o
legislador tem alterado alguns dispositivos, a exemplo do interrogatório211 e da comunicação
208 Consta expressamente na exposição de motivos do código de processo penal brasileiro: “[...] impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre ao da tutela social. [...] É restringida a aplicação do indubio pro reo. É ampliada a noção de flagrante delito, para o efeito da prisão provisória. A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz [...]. Tratando-se de crime inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão [...]. Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco, referindo-se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto preliminar, advertia que elas certamente iriam provocar o desagrado daqueles que estavam acostumados a aproveitar e mesmo abusar das inveteradas deficiências e fraquezas da processualística penal até então vigente. [...]” 209 OLIVEIRA, 2007, p. 6-7. 210 O termo (re)leitura pretende exprimir a não recepção ou a inconstitucionalidade de dispositivos infra-constitucionais. 211 Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, arts. 185 e seguintes do Código de Processo Penal Brasileiro.
63
da prisão do acusado à Defensoria Pública, quando o acusado não possuir advogado212. Porém,
a mudança legislativa não se verifica suficiente, sendo necessário uma postura responsável e
comprometida com os valores Constitucionais por parte dos profissionais jurídicos.
Especialmente no que diz respeito ao Juiz, há o controle difuso de Constitucionalidade para
correção de distorções infra-constitucionais.
O processo penal como instrumento para atribuição de pena deve guiar-se pelos
preceitos Constitucionais e pautar-se do sistema acusatório. Ao acusado devem ser
assegurados os direitos fundamentais, especialmente aqueles limitadores do poder Estatal –
pressupostos de um atuar garantista baseado na humanização do homem.
Diante de um grau de maturidade cultural pós-constituinte é possível desenvolver-se
um processo coerente com os valores do Estado Democrático de Direito. O processo penal
democrático é o instrumental necessário para uma prestação jurisdicional mais justa e efetiva.
Sem negar a importância do conhecimento teórico, Jardim chama atenção para o
caráter instrumental do processo – revisão dos métodos – para uma melhor prestação
jurisdicional, na que o processo penal serve como um bem de utilidade social na busca pelo
bem comum – escopo do Estado Democrático de Direito.213
Ao Estado deve interessar tanto a absolvição do inocente quanto a condenação do
culpado. É preciso dar efetividade ao sistema acusatório previsto Constitucionalmente (opção
incondicional) frente a legislação infraconstitucional brasileira – inspirada em regimes
autoritários. Para Ferrajoli é justamente as duas finalidades do direito penal – punição dos
culpados e tutela dos inocentes – que o diferencia da justiça realizada com as próprias mãos
ou de justiças sumárias. Nem mesmo o processo inquisitório ignora a proteção dos inocentes e
o processo acusatório a punição dos culpados. A diferença é que o primeiro confia na bondade
ilimitada do poder enquanto que o segundo confia no poder como produtor de uma verdade
resultante de uma controvérsia de partes contrapostas.214
Há uma compreensão equivocada, inspirada em movimentos de lei e ordem, de que
o Poder Judiciário deve oferecer respostas repressoras para “combater a criminalidade”. Falta
nos operadores jurídicos o “sentido de Constituição” – garantias fundamentais para a tutela
das liberdades (garantismo negativo).
Por outro lado, há o garantismo positivo, que pensa o direito penal como proibição 212 Lei nº 11.449, de 15 de janeiro de 2007, art. 306 do Código de Processo Penal Brasileiro. 213 JARDIM, 2007, p. 317. 214 FERRAJOLI, 2006, p. 556-557.
64
de proteção deficiente, ou seja, determinados bens – direitos fundamentais – devem receber a
proteção do Estado. Nesse sentido, Streck afirma que se equivocam os penalistas que “[...]
continuam a pensar o Direito [somente] a partir da idéia segundo a qual [...] o Estado é
necessariamente mau, opressor, e o Direito (Penal) teria a função de ‘proteger’ o indivíduo
dessa opressão. [...]” Nesse sentido, há casos215 em que o direito penal não pode abrir mão do
aspecto punitivo para proteger direitos fundamentais.216
O processo penal deve ser entendido nos dois aspectos. No primeiro caso como
autolimitação ao poder punitivo do Estado – garantidor da liberdade. No segundo como
instrumento de que se vale a sociedade para aplicar do direito penal aos fatos concretos,
alegados e provados em juízo. Inconcebível é atribuir ao processo penal as responsabilidades
decorrentes de circunstâncias estruturais alheias ao processo penal.217 É assim que “[...] a
violência não retrata somente uma ação. É mais do que isso: retrata uma reação.” As normas
são insuficientes, por si só, para conter a violência. Elas combatem somente o efeito e não a
causa, que tem origens na miséria, na pobreza, na má distribuição de rendas, no desemprego e
na má formação dos indivíduos.218
A legitimação do poder judiciário perante a sociedade não ocorre quando do
oferecimento de respostas autoritárias e repressoras. Ela se dá, essencialmente, quanto ele
cumpre o seu papel de respeitar os direitos fundamentais inseridos na Constituição Federal. A
obediência aos direitos fundamentais não é estímulo à criminalidade, mas sim, a
implementação da justiça na prestação jurisdicional penal.
Especialmente o Juiz tem papel fundamental nesse processo, porque sua atuação
pressupõe sujeição à Constituição e assegurar os direitos do acusado no processo penal.
É dever de todo o jurista evitar a “farsa processual”219. Nela, o processo cumpre ritos
215 Pode-se citar como exemplo o emprego da analogia para a hipótese de extinção da punibilidade no crime de estupro pelo casamento da vítima com terceiro (art. 107, VIII, CP). Se estendido ao concubinato e não somente ao casamento o Estado deixa de proteger a dignidade da pessoa humana – mulher. STRECK, Revista da AJURIS, 2005, p. 181-183. A solução para os casos de proteção deficiente no âmbito do processo penal é questão complexa e território praticamente inexplorado, especialmente porque as restrições processuais devem estar epressas em lei. Assim, a solução adequada fica sujeita a concurso com a iniciativa do legislador. CARVALHO, 2006, p. 36-37. 216 STRECK, Revista da AJURIS, 2005, p. 175; 179; 182-183. 217 JARDIM, 2007, p. 323. 218 PINTO, Celso de Magalhães. Violência: ação ou reação? Del Rey jurídica. São Paulo – Minas Gerais: Del Rey, agosto a dezembro de 2007, ano 9, n. 18, p. 44-45. 219 A farsa processual leva ao “acordo de cavalheiros” em que o direito penal é de autor e não do ato, pois se leva em consideração o que a pessoa é ou faz em detrimento do que ela praticou. Esse é o reflexo de uma sociedade injusta e desigual, com a mentalidade pautada no “coronelismo” e favorecimento.
65
meramente formais e o réu já está, desde o inquérito policial (e depois na denúncia),
condenado. Não se utiliza o meio processual para busca da verdade dos fatos, mas para
simular um processo penal democrático.
A Constituição de 1988 reservou ao Ministério Público a prerrogativa fundamental
de independência funcional. Sua atuação deve pautar-se na defesa do Estado Democrático de
Direito e da ordem jurídica. Dessa forma, não há qualquer receio de que o parquet peça
absolvição do réu ou recorra de uma sentença condenatória.
À atuação jurídica falta a noção de que se está diante de um ramo do direito (penal)
cujos reflexos atingem o ser (não somente o ter). Os procedimentos punitivos abalam a vida
de um ser humano de forma irremediável, causando estragos de grande monta, a começar pelo
estigma social, preconceito e discriminação. O Processo por si só já é pena. O sujeito que está
respondendo o processo já começou a cumprir a pena.
O descomprometimento com os valores Constitucionais e com o meio social é, em
grande parte, fruto de uma crise presente no ensino jurídico brasileiro220, pois a expansão
desenfreada dos cursos de direito de má qualidade é uma realidade. Para agravar a situação, a
proposta de ensino remonta ao período jesuítico, porque há somente o repasse de informações
conteúdistas e manualescas baseadas na memorização (reprodução e não produção do
conhecimento). Nesse modelo despreza-se a formação cidadã e orientada para a reflexão e
criticidade.
Dessa forma, o Estado Democrático de Direito pressupõe a existência de um
contrato social disposto em Constituição. Na Constituição o povo descreve os valores
considerados fundamentais ao indivíduo e à sociedade, inclusive relacionados ao direito e
processo penal. Nela estão contidos os princípios fundamentais de garantia das liberdades que
devem ser seguidos pelos profissionais jurídicos.
A falta de compreensão da Constituição impede o acontecer do sentido. A pré-
220 Como exceção, algumas organizações da sociedade têm manifestado preocupação com essa realidade, a exemplo do Instituto de Hermenêutica Jurídica que pretende colaborar com a formação de juristas “[...] comprometidos com o papel emancipatório que um direito democrático deve desempenhar [...]” STRECK, Lenio; OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de; TRINDADE; André Karam; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Re-pensar o Direito: o compromisso do Instituto de Hermenêutica Jurídica. In: Del Rey jurídica. Ano 9, n. 18, agosto a dezembro de 2007, São Paulo – Minas Gerais: Del Rey, p. 68-69.
66
compreensão é determinada pela tradição que vive o intérprete221. Sem compreensão de
Constituição a interpretação dos textos normativos do sistema resta prejudicada. Esse sentido
já se encontra antecipado numa co-pertença ‘faticidade-historidicidade’ do intérprete. A
ausência do sentido de Constituição são os pré-juízos inautênticos que prejudicam o jurista.222
O processo de interpretação dos textos normativos do sistema dependem do sentido de
Constituição e assim, uma baixa compreensão causará uma baixa aplicação.223
Um atuar de acordo com a Constituição no processo penal pressupõe sujeição ao
sistema acusatório, onde está garantida a existência de um processo penal (efetivamente)
democrático para se chegar à pena. Essa postura depende do sentido de Constituição que os
profissionais jurídicos têm, porque ela somente será efetivada na medida em que haverá
aplicação, na prática judiciária, dos preceitos estabelecidos.
2.3 PRINCÍPIOS DE GARANTIA NO PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO
BRASILEIRO
O Estado é fruto de um contexto que o potencializou – produto do meio social. Na
atual conjuntura do Estado Democrático de Direito expresso está, na Constituição Federal, os
direitos fundamentais que asseguram a existência de um processo penal Constitucional ou
Democrático.
O processo penal Constitucional ou Democrático é o processo penal justo no Estado
Democrático de Direito, porque lapidado Constitucionalmente pela vontade popular. Ele está
expresso através dos princípios Constitucionais que têm força normativa obrigatória no
ordenamento jurídico.
A teoria tradicional distinguia normas e princípios, porém, hoje essa distinção não se
sustenta mais. Princípios e regras são espécies normativas. Alguns critérios são sugeridos para 221 Os horizontes do intérprete do texto (que é evento, fato) se fundem no interior da virtuosidade do círculo hermenêutico, que vai do todo para a parte e da parte para o todo – sem que um e outro sejam ‘mundos’ estanques-separados. “[...] O sentido exsurgirá de acordo com as possibilidades (horizontes de sentido) do intérprete. [...]” STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradígmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4, p. 249. 222 STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, 2005, p. 172. 223 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermabverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermabverbot) ou de como não há blindágem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. Lisboa: Coimbra, 2004, v. LXXX, n. 80, p. 303-304.
67
diferenciação: a) grau de abstração; b) grau de determinabilidade na aplicação do caso
concreto (princípios carecem de mediações concretizadoras); c) caráter de fundamentalidade
no sistema de fontes (princípios são normas estruturantes devido a sua posição hierárquica);
d) proximidade da idéia de direito (princípios são standards vinculados nas exigências de
justiça; regras são funcionais); e) natureza normogenética (princípios são fundamentos das
regras).224
Na inter-relação do Estado Democrático de Direito, Constituição e processo penal,
os princípios têm papel fundamental para a instrumentalidade do processo. Eles possibilitam a
necessária (re)leitura do código de processo penal e legislações esparsas. Princípios tornam o
processo penal democrático e orientam a validade normativa infraconstitucional e, por
conseqüência, o atuar do intérprete do direito.
Dentre os princípios consagrados pela Constituição Brasileira de 1988 relacionados
ao devido processo legal no processo penal225 expõe-se, em breves linhas, aqueles
relacionados ao sistema acusatório e/ou que envolveram maior impacto na constituição dos
Estados modernos. Essa seleção não tem a pretensão de abordar o conteúdo, mas tão somente
aspectos conceituais dos princípios selecionados dentre os dispostos na Constituição e no
Estado Democrático de Direito brasileiro. São eles: o devido processo legal, a igualdade, o
contraditório e a ampla defesa, a publicidade e a justificação das decisões, o juiz natural e a
presunção de inocência.
O devido processo legal é um princípio que fundamenta o Estado Democrático de
Direito e significa que o processo penal deve ser democrático, efetivo e justo. Ele é base para
os demais princípios e fundamento para efetivação da dignidade da pessoa humana226.
Consiste em garantia de liberdade ao indivíduo frente ao poder punitivo do Estado. 224 CANOTILHO, 2003, p. 1160-1161. 225 O devido processo legal é um princípio que orienta a prestação jurisdicional justa, porque Constitucional. Entre outros, pode-se citar os seguintes princípios a ele vinculados: a) acesso à justiça penal; b) juiz natural; c) tratamento paritário dos sujeitos processuais; d) presunção de inocência do acusado (art. 5º, LVII, CF); e) plenitude de defesa (art. 5º, LV, CF); f) publicidade dos atos processuais (art. 5º, LX, CF); g) fundamentação das decisões (art. 93, IX, CF); h) prazo razoável de duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF); i) vedação de identificação datiloscópica quando existe identificação civil (art. 5º, LVIII, CF); j) indenização por erro judiciário e prisão além da sentença (art. 5º, LXXV, CF); k) prisão ordenada pela autoridade competente (art. 5º, LXI, CF); l) direito à identificação dos responsáveis pela prisão e interrogatório (art. 5º, LXIV, CF); m) liberdade provisória (art. 5º, LXVI, CF); n) proibição da incomunicabilidade do preso e necessidade de informação sobre seus direitos e da assistência do defensor e da família (art. 5º, LXIII, CF). 226 “Consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e social) de Direito (art. 1º inc. III, da CF), o nosso Constituinte de 1988 [...] além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.” SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 68.
68
Segundo Bonatto, a expressão due processo of law deve ser traduzida como justo – o
justo processo legal. O conceito do princípio do devido processo legal é “[...] histórico e
relativo, variando o seu conteúdo de acordo com a consciência jurídica e política de cada
nação, sendo, entretanto, sempre identificado com as noções de imparcialidade, retidão e
justiça [...]”.227
O devido processo legal, que na perspectiva material identifica-se com a busca da
justiça, está relacionado ao princípio da proporcionalidade-razoabilidade porque impõe
obediência aos demais princípios constitucionais.228
Também, traz em seu conteúdo a legalidade tornando-se a grande garantia do
indivíduo em face do Estado.229 A partir das conquistas do iluminismo, a legalidade tornou-se
realidade em praticamente todos os Estados modernos e é através da utilização do meio
escrito, para expressar o direito, que o legislador Constituinte estabeleceu garantias (direitos
fundamentais) mínimas – prévias ao acontecimento do fato – a serem obrigatoriamente
observadas no trâmite processual. Nesse sentido, o conceito de processo justo deve ser
buscado na Constituição Federal, especialmente nos dispositivos que abrigam os direitos
fundamentais.
Mais do que buscá-los é preciso torná-los efetivos na prática judiciária brasileira.
Por isso é que Jardim considera que o devido processo legal não deve mais ser entendido
como outrora. Já foi uma conquista – mas resta a consolidação – o processo penal de partes,
vedação de provas ilícitas, presunção de inocência, enfim sujeito de direito e não objeto de
investigação. Ele deve representar a depuração do sistema acusatório nas atividades
funcionais do Ministério Público, do advogado e do juiz – elementos concretos e práticos.230
No mesmo sentido Pacelli informa que a estrutura do devido processo legal está
construída sobre as bases do contraditório e da ampla defesa que “[...] ao lado do princípio da
inocência, autorizam a afirmação no sentido de ser o processo penal um instrumento de
garantia do indivíduo diante do Estado.”231
Dessa forma, mais do que disposição Constitucional, sob o aspecto formal, o devido
processo legal precisa ser observado em seu aspecto material. A sua análise sob a perspectiva
dinâmica – tal como Prado fez com o sistema acusatório: divisão em estática e dinâmica – 227 BONATO, 2003, p. 29; 195. 228 CARVALHO, 2004, p. 53-56. 229 BONATO, 2003, p. 195. 230 JARDIM, 2007, p. 318-320. 231 OLIVEIRA, 2007, p. 280.
69
também é aqui aplicável, ou seja, é preciso analisar as atividades jurídicas, no seu desenrolar,
para se extrair considerações acerca da (des)obediência ao princípio em análise. A atuação da
acusação, da defesa e do julgador é o termômetro que permite aferir o grau de obediência ao
princípio do devido processo legal e, por conseqüência, o sistema acusatório.
O princípio da igualdade é também conhecido como isonomia e foi expressamente
contemplado pela Constituição brasileira de 1988232. Ele é uma conquista do período
iluminista, pois na época precedente havia uma forte e declarada hierarquização social de
acordo com a pessoa (os nobres eram assim considerados por deterem um sobrenome
relevante ou pelo poder econômico ostentavam). Criava-se um direito, explícito para a
sociedade, para os nobres e outro para a população em geral.
A igualdade foi uma das bandeiras do Estado Liberal. Esse desejo de isonomia
estava fundamentado, principalmente, na aspiração burguesa de ascender politicamente na
sociedade (já possuíam o poder econômico, queriam o político). No âmbito jurídico o reflexo
dessas manifestações ficou evidente na medida em que as Constituições declaram que todos
são iguais perante a lei. É de se ressaltar, também, que essa igualdade ficou garantida somente
sob o aspecto formal, pois nesse período o direito foi declarado e não efetivado.
Processualmente o princípio da igualdade está relacionado ao tratamento dispensado
às partes no processo penal, independentemente da posição social ou vantagem econômica
que elas ostentem.
No Estado Democrático de Direito o processo penal está relacionado ao processo de
partes/papéis, onde há separação de funções, tais como, acusar, julgar, defender, assistência,
entre outras. Assegurar o desempenho dos papéis definidos Constitucionalmente é a função do
Poder Judiciário, especialmente representado na figura do juiz. Nesse sentido, o juiz tem o
dever de resguardar o equilíbrio entre as partes – direito dado à acusação também deve ser
dado à defesa – como meio de assegurar a igualdade processual e o devido processo legal.
Tal atuação proporciona a isonomia na medida em que as partes têm iguais
condições para o debate, o que proporciona um desenrolar processual acusatório e
democrático. Nesse sentido a igualdade deve ser material e não meramente formal, pois
diferentemente do Estado Liberal, em que a igualdade é vista como oportunidade, no Estado
232 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”
70
Democrático de Direito a isonomia deve ser vista sobre o aspecto material, que assegura
igualdade entre os iguais – paridade de armas.
A atuação do Ministério Público como custus legis233 também é uma manifestação da
isonomia. Além de funções acusatórias ele tem a incumbência de defender a ordem jurídica
(atua como fiscal da lei)234 e, assim o fazendo, contribui para tornar a defesa mais efetiva,
paritária com a acusação e, principalmente, mais justa.
O Contraditório está ligado à oportunidade de manifestação no processo. É garantia
Constitucional que, no processo penal, seja dado às partes o direito à manifestação. O Juiz é o
responsável por assegurar que os procedimentos processuais sejam comunicados à parte/seu
defensor para que, dependendo da estratégia de defesa, possa manifestar-se no processo,
impugnando provas, procedimentos, testemunhas, entre outros.
Assegurar a possibilidade de manifestação no processo consiste em proporcionar o
contraditório, independentemente de manifestação efetiva. Para que haja o contraditório é
necessário que se conheçam os meios de prova a serem produzidas, pois ninguém pode falar
sobre o que não conhece. Daí decorre que os meios de prova não podem ser secretos.
Também, a produção de provas, de regra235, deve realizar-se na fase judicial
assegurando-se o contraditório e por conseqüência, a existência de um processo penal
democrático.
Não são admissíveis condenações com base em inquéritos policiais ou peças de
informação sobre os delitos porque elas destinam-se exclusivamente ao órgão da acusação e
violam flagrantemente o contraditório e da ampla defesa.236 Dessa forma, a jurisdição penal
não deve ser um apêndice da investigação criminal.237 A função do inquérito policial é
meramente informativa para acusação proceder a denúncia no processo e jamais pode ser
utilizada para fins de juízo de reprovação. Assim o fazendo há afronta direta ao princípio do
contraditório.
Além da oportunidade de falar sobre o que está sendo produzido em juízo, deve-se 233 Não significa dizer que o Ministério Público deixe de ser parte no processo, porque nas ações penais públicas de caráter condenatório, ainda que peça absolvição continua sendo parte (moralmente imparcial) e torna a igualdade efetiva entre os litigantes. BONATO, 2003, p. 152. 234 A atuação do Ministério Público como defesa da ordem jurídica é garantida pela independência funcional a ele atribuída por força Constitucional. Dessa forma, ele está legitimado a recorrer em favor do réu ou atuar de forma que o beneficie. 235 Somente serão admitidas as provas produzidas na fase do inquérito quando não puderem ser repetidas em juízo. Nesse caso, fala-se em contraditório diferido. 236 OLIVEIRA, 2007, p. 11. 237 BONATO, 2003, p. 164.
71
assegurar que essa manifestação seja efetiva. O aspecto da efetividade do contraditório
constitui a ampla defesa. Na opinião de Grandinetti, “Contraditório e ampla defesa perfazem
uma mesma garantia processual, pois não pode existir ampla defesa sem contraditório e vice-
versa.238
É pela atuação dos sujeitos processuais que a garantia da ampla defesa se efetiva.
Como apresenta Coutinho, a separação das funções de acusar e julgar e a equiparação das
funções de acusar e defender são manifestações que atribuem vida à garantia da ampla
defesa.239 Esse pensamento figura-se correto porque um processo penal acusatório – fundado
na separação de funções – permite a apresentação de versões e contra versões fáticas.
Especialmente para o réu, é assegurada a efetiva manifestação processual após a apresentação
da versão da acusação. Ele tem direito à última palavra.
Algumas manifestações processuais não são preclusivas, embora a legislação
infraconstitucional as considere. O Juiz deve assegurar a apresentação de determinadas peças
processuais fundamentais à defesa do acusado. Quando o defensor nomeado ou dativo não
apresentar, no tempo oportuno, deve-se nomear outro defensor para o ato, sob pena de
nulidade da decisão exarada em processo que violou a ampla defesa. Aqui não basta a
intimação do defensor para apresentar a peça processual, mas sim que ela seja efetivamente
apresentada.
A ampla defesa não é direito disponível do acusado. Ela é garantia fundamental que
prevalece sobre a vontade individual do acusado. No Estado Democrático de Direito todo
acusado deve, obrigatoriamente, sob pena de nulidade, ter ampla defesa processual.
Em homenagem ao princípio da ampla defesa são assegurados, por exemplo, a
participação da defesa técnica no interrogatório de co-réu240 no processo, o aproveitamento de
provas obtidas por meios ilícitos para defesa do réu e a garantia de defesa técnica gratuita aos
cidadãos que não podem pagar por ela.
A publicidade tem função essencial no processo penal por contrapor-se a idéia de
processo e atos processuais secretos como é próprio de sistemas inquisitoriais (em que pese,
em determinados casos, ela possa ser restringida para proteção da intimidade). Ela tem função
legitimadora da atuação jurisdicional.
Na conclusão de Bonatto, “A publicidade dos atos processuais objetiva dar
238 CARVALHO, 2006, p. 141. 239 COUTINHO, Revista Brasileira de Ciências Criminais, julho-agosto 2005, p. 373. 240 Para Oliveira “A ampla defesa e o contraditório exigem [...] a participação dos defensores de co-réus no interrogatório de todos os acusados.” OLIVEIRA, 2007, p. 29.
72
transparência e legitimar todas as decisões confiadas ao julgador, dissipando qualquer
desconfiança que possa surgir sobre a imparcialidade e independência com que é exercida a
justiça.”241
A transparência é a essência do processo acusatório. Como regra todos os atos do
poder judiciário serão públicos, porém, por força Constitucional, podem sofrer algumas
limitações.
O artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil, sofreu
alterações pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004.242 Com a
modificação Constitucional a lei pode limitar a presença da parte e de advogado em casos
onde a preservação da intimidade não ofenda o interesse público à informação. Assim, a regra
é a publicidade243 e o direito à informação e a exceção quando ocorrer ofensa intimidade.
A justificação das decisões é importante instrumento de identificação da forma de
interpretação utilizada e da avaliação probatória. Conforme afirma Ferrajloli a “[...] motivação
permite a fundamentação e o controle das decisões tanto de direito, por violação da lei ou
defeitos de interpretação ou subsunção, como de fato, por defeito ou insuficiência de provas
ou inadequada explicação do nexo entre convicção e provas.” Ela é o principal parâmetro de
legitimação tanto interna como externa da função judiciária.244 (tradução nossa).
Através da exteriorização das razões da decisão a atividade do julgador é justificada
perante a sociedade e garante-se eventual reexame da causa. Também as decisões pré-
processuais devem ser motivadas, com especial atenção para medidas de restrição da
liberdade que contém requisitos específicos a serem preenchidos e expostos.245
A garantia de uma decisão justificada apresenta-se disposta expressamente no artigo
93, IX da Constituição Federal brasileira de 1988. Todas as decisões do poder judiciário serão 241 BONATO, 2003, p. 197. 242 “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: [...] IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.” 243 Também há previsão infraconstitucional, no art. 792 do Código de Processo Penal Brasileiro: “Art. 792. As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. § 1º Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes. [...]” 244 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Tradução de IBÁÑEZ, Perfecto Andrés et all. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 623. 245 BONATO, 2003, p. 180-184; 197.
73
fundamentadas, atribuindo-se a penalidade de nulidade para o descumprimento desse preceito
fundamental. Segundo Carvalho, a nulidade por ausência de fundamentação não pode ser
sanada.246 É, portanto, obrigatória.
A exposição das razões da decisão corresponde à explicitação do compreender –
como acima dito. Ela é importante, sobretudo, para assegurar legitimidade ao intérprete,
convencimento/comunicação às partes sobre o acerto da decisão e possibilitar o exercício de
defesa em eventual recurso.
O princípio do Juiz natural também é conhecido como Juiz legal, competente e
proibição do tribunal de encomenda ou had hoc.
Sua fundamentação está no pensamento iluminista de supressão das justiças
Senhorais, onde todos passaram a ser julgados pelos mesmos Tribunais.247 Montesquieu
pronunciou-se contrário aos juízes comissários nomeados pelo rei para julgar um cidadão e
daí pela primeira vez, em 1766, surgiu a expressão juiz natural, relacionada ao juiz ordinário
(palavra Juge – Jurispr.), dotado de competências estabelecidas em lei anteriormente ao fato,
em oposição ao juiz comissário ou extraordinário.248
O juiz natural está intimamente ligado aos princípios da isonomia e da legalidade.
Como expressão da igualdade ele apresenta-se como freio à manipulação política do juízo e
garante atuação imparcial dos julgadores. Serve fundamentalmente para evitar justiça de
privilégios. A garantia de um juiz natural disposto anterior ao acontecimento do fato é uma
conquista que assegura a garantia de que não haverá privilégios, na aplicação do processo
penal, para determinadas pessoas na sociedade. Está relacionado ao princípio da legalidade
porque a definição do órgão julgador deve estar previamente definida em lei – instrumento
que possibilita o controle pela sociedade e garante aplicabilidade ao estabelecido.
Também, o princípio do Juiz natural está dividido em dois aspectos: a) proibição de
criação de tribunal post facto – juízo deve estar previamente estabelecido (tribunal ad
hoc/exceção); b) garantia de ser julgado pelo Juiz competente.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 contemplou o Juiz natural
no art. 5º, incisos XXXVII e LIII.249 No primeiro, está a garantia de inexistência de Tribunal
246 CARVALHO, 2006, p. 204. 247 BONATO, 2003, p. 135. 248 FERRAJOLI, 2006, p. 544. 249 “Art. 5º. [...] XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; [...] LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”
74
de exceção e, no segundo, ser julgado por um Juiz Constitucionalmente competente.
O princípio da presunção de inocência é uma reação contra a inquisição. Dele se
extrai um conteúdo ideológico, pois a previsão legislativa visa privilegiar garantias
individuais em detrimento dos interesses coletivos de repressão penal. Ele está inserido na
Declaração dos direitos do homem (1948) – aprovada na ONU – art. XI e no Brasil foi
previsto expressamente pela primeira vez na Constituição de 1988, apesar de já se considerar
anteriormente.250
Sendo a jurisdição necessária para provar que um sujeito cometeu um crime,
nenhuma pessoa pode ser considerada culpada ou submetida à pena antes do provimento
jurisdicional. Ferrajoli esclarece que a presunção de inocência é um princípio fundamental de
civilidade e não é apenas uma garantia de liberdade e verdade, mas também de segurança
contra o arbítrio punitivo, pois o sinal da perda de legitimidade política do poder judiciário é o
temor da justiça pelos cidadãos causada pelo irracionalismo e autoritarismo. Esse princípio
está associado ao tratamento dado ao imputado, que exclui ou restringe ao máximo a
limitação da liberdade pessoal e ao sentido de ‘regra de juízo’, que impõe ônus da prova à
acusação e absolvição em caso de dúvida.251
Oliveira pondera que o princípio da inocência apresenta ao poder público duas
limitações: que o réu, no inter persecutório não sofra restrições fundadas na possibilidade de
condenação e que o ônus da prova referente a materialidade e autoria devem recair sobre a
acusação (à defesa cabe provar as justificantes ou excludentes alegadas).252
Todo acusado deve ser considerado inocente até que se prove o contrário por
sentença penal condenatória, decorrente de um processo penal democrático, transitada em
julgado. Durante o trâmite processual a postura dos “atores” jurídicos com relação ao réu deve
ser de considerá-lo não culpado e dessa maneira, não se deve dar aos juízes poderes ex officio
para fins probatórios, porque sua iniciativa o compromete psicologicamente, principalmente
sob o aspecto da imparcialidade.
A presunção de inocência é muito violentada pela concepção retrógrada de
movimento de lei e ordem, principalmente no que diz respeito às prisões e à instrução
probatória. No primeiro aspecto (prisões) a re(leitura) a partir da presunção de inocência
impõe que as prisões cautelares devem ser decretadas apenas excepcionalmente por ordem
250 BONATO, 2003, p. 122-123. 251 FERRAJOLI, 2006, p. 505-507. 252 OLIVEIRA, 2007, p. 31-32.
75
judicial justificada de maneira a não antecipar os efeitos da condenação – punição e que é
inadmissível a exigência de recolher-se à prisão para recorrer. No segundo aspecto (instrução
probatória) a presunção de inocência impõe que: o acusado não está obrigado a colaborar com
a instrução probatória, o ônus probatório da materialidade e autoria é da acusação (à defesa
resta provar as excludentes) e o interrogatório deve ser concebido como meio de defesa e não
de prova (ao réu é assegurado o direito ao silêncio – não é necessário comparecer ao
interrogatório).
Dessa forma, conclui-se que uma interpretação justa do direito positivado é
responsabilidade de todos os juristas. A partir da lei o intérprete deve produzir sentido e não
reproduzir. Essa nova postura não dispensa a lei, mas se utiliza dela. Cria-se uma nova
racionalidade – realização da justiça.
O Brasil fez opção pelo Estado Democrático de Direito e isso tem reflexos no
mundo jurídico. A Constituição Federal torna-se o berço dos valores fundamentais da nação
que devem servir de parâmetros aos três poderes que atuam em nome do Estado. O Estado
democrático de direito é fruto de uma luta histórica da sociedade. Ele é considerado uma
conquista e pauta seus valores no bem estar social, ou seja, a partir da dignidade da pessoa
humana decorrem valores que proporcionam o bem comum. Os juristas não devem ficar
alheios a essa realidade.
No âmbito do direito processual penal os reflexos são latentes, na medida em que a
adoção desse modelo de Estado compatibiliza-se com um sistema acusatório em que as partes
dialogam no processo. A finalidade do direito deve ser a justiça que pode ser definida como a
arte do bom e do correto, da busca pelo equilíbrio – meio termo. O parâmetro de justiça o
Estado brasileiro adotou está disposto na Constituição Federal sob a forma de direitos
fundamentais que, no processo penal, representam o sistema acusatório – devido processo
legal. A prestação jurisdicional não deve furtar-se a esses valores e ao exercício de uma
decisão justa.
Para se construir um processo penal democrático é necessário observar os valores
fundamentais dispostos na Constituição Federal. A solução apresenta-se no caso concreto
através da adoção de princípios e regras. A Constituição Federal dirige o processo penal sob a
ótica do sistema acusatório em que são respeitados os direitos fundamentais do acusado.
Nesse sentir, o ato decisório precisa estar adequado às novas realidades do processo penal.
Não é mais possível sustentar a verdade real no processo penal brasileiro porque ela
76
se verifica impossível e é meio para justificar uma prática inquisitória presente nos Tribunais
brasileiros – déficit de democratização. A verdade tal como aconteceu é inalcançável. O que
se tem é uma verdade aproximada ou construída. O julgador precisa assumir essa condição e
assegurar meios de construção da verdade processual através das garantias asseguradas pelo
Estado democrático de direito.
O julgador deve ser imparcial, ficar afastado dos atos de investigação que produzirão
a verdade processual. O inquisidor sempre estará contaminado na essência de sua
racionalidade porque cria quadros mentais paranóicos vinculados à presunção de
culpabilidade. Por outro lado, o julgador não pode ser neutro, ou melhor, não tem condições
para ser, porque traz uma carga de valores pessoas e culturais consigo. A imparcialidade é
possível, assegurando-se o procedimento. A neutralidade não poderá ser alcançada, mas pode
ser assumida pelo julgador. O que não se pode é utilizar-se da hipocrisia aplicando-se leis sem
sentido de justiça – pré-juízos inautênticos.
O Juiz deve apreciar as provas produzidas num processo penal democrático, ou seja,
em que as provas foram colhidas licitamente e produzidas de forma legítima, assegurando-se
o contraditório e a ampla defesa para as partes. Ele deve estar eqüidistante das partes e
manter-se imparcial para não contaminar-se com o desejo de condenação.
É impossível o juiz criar sua convicção antecipadamente para depois motivar [sic]
sua decisão. Sua convicção se dá a partir da compreensão hermenêutica – viragem ontológica
– onde os pré-juízos apresentam-se na aplicação do direito. Um processo instrumental, que
assegure imparcialidade, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, entre outros
princípios Constitucionais é condição de possibilidade para uma decisão justa no processo
penal brasileiro.
O desejo democrático – de ambiente democrático – inspirado no sistema processual
acusatório deve ser respeitado. A Constituição Federal impõe a responsabilidade de
transformação social aos juristas através de seus preceitos normativos – que constituem e
dirigem – o processo penal. Uma atuação comprometida com os valores democráticos
depende dos pré-juízos do intérprete – atualmente muito sucateados por compreensões
metafísicas.
A intensificação das relações sociais modernas, provocada principalmente pelo
incentivo exacerbado ao consumo e informação, tenciona a prestação jurisdicional para um
grande desafio que é a implementação, de forma legítima, do Estado (Social e) Democrático
77
de Direito. O objetivo primeiro da prestação jurisdicional é a aplicação do direito justo,
amparado por questões de ordem moral – Constitucional –, que muitas vezes não se encontra
nas codificações legais elaboradas pelos “representantes do povo”.
Necessita-se de uma nova postura diante do direito com vistas a amparar as
sentenças judiciais em novas circunstâncias antes não consideradas. É coerente com a
aplicação da justiça que o Estado atue com acerto nas decisões que afetam a vida dos
indivíduos que o compõem e para agir com tal prudência e aplicar efetivamente o direito,
torna-se fundamental a observância de regras morais baseadas numa (nova) hermenêutica
(filosófica), bem como a reflexão filosófica sobre o conhecimento e os sujeitos que estão
envolvidos nesse processo de (re)democratização.
A filosofia jurídica tem contribuição significativa nesse processo porque há análise,
revisão e reflexão sobre o conhecimento e o caso concreto em análise. As sentenças legalistas,
de mera subsunção entre o fato e a texto, não atendem a efetividade esperada da prestação
jurisdicional. É uma tendência legítima o reconhecimento dos valores morais, por uma
hermenêutica adequada as necessidades e realidades da sociedade brasileira.
O Direito processual penal, o direito penal, a constituição, a hermenêutica e o
garantismo possuem afinidades para implementação do Estado Democrático (e Social) de
Direito. A Constituição é o parâmetro de valor que nos dá respostas sobre o devido processo
legal, sobre o sistema acusatório, sobre os direitos fundamentais – ela constitui e dirige. O
garantismo compreende esses valores como tutela para a liberdade dos cidadãos (sentido
negativo) – garantia contra o arbítrio – e proibição da proteção deficiente (sentido positivo) –
tutela dos direitos fundamentais. O direito processual apresenta-se como instrumental
necessário e indisponível para concretização do direito material. Ambos utilizam-se da
hermenêutica para compreensão dos sentidos que o conjunto apresenta – promoção do bem
comum.
As respostas estão colocadas à mesa para o jurista. O problema é que para encontrá-
las falta compreensão e coragem. A Constituição apresenta-se recheada de respostas, porém
apreendê-las demanda responsabilidades porque elas não estão aí sob a forma de tudo/nada,
vale/não vale, capazes de uma ilusória certeza positivista. Uma nova racionalidade moral se
apresenta sob a forma de princípios, onde a elasticidade do enunciado é condição de
possibilidade para uma compreensão (in)adequada, a depender do jurista.
Não se trata de dispensar a legalidade, mas sim de submetê-la a analise de um filtro
78
constitucional – oxigenação – que sirva de controle de validade. Para se tornar efetiva essa
tendência requer-se apurada sensibilidade social e jurídica dos profissionais jurídicos para
apreciar as novas demandas sociais decorrentes de uma sociedade complexa e carente de
direitos sociais.
CAPÍTULO III
3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E (A NOVA) COMPREENSÃO DO MUNDO (E
DO DIREITO)
O processo penal democrático abre caminho para a decisão que é um processo de
compreensão (existencial). No caso do direito, por imposição Constitucional, deve haver
exposição fundamentada dos argumentos utilizados – realidade que se dá pela linguagem.
A (nova) hermenêutica, de caráter filosófico e condizente com os anseios de um
Estado Democrático de Direito, surge da necessidade de aproximação do normativo com o
social, historicamente negada pelo pensamento jurídico. A subsunção do caso à regra
(paradigma positivista – metafísico) é substituída por uma hermenêutica capaz de, a partir da
lei, fazer contatos com o intérprete e com a própria sociedade, sem cair em subjetivismos.
A Constituição ganha papel de destaque no Estado Democrático de Direito por ser o
berço dos direitos fundamentais de todos os cidadãos. Ela representa a aproximação com a
sociedade, um novo olhar para a eficácia dos preceitos normativos e condição de
possibilidade para a interpretação.
Para se dar efetividade aos dispositivos Constitucionais é necessário se ter presente o
sentido da Constituição – conquista histórica e berço dos direitos fundamentais – como pré-
compreensão do sujeito, manifestado a partir de uma verdade primeira (antecessora do
procedimento). A hermenêutica proporciona reflexões acerca do compreender e indica o
caminho que possibilita um atuar mais comprometido com as realidades sociais.
Diante da nova realidade que se impõe (Estado Democrático de Direito), o julgador
deve interpretar as leis penais sob a ótica da Constituição (princípios), para aplicar o direito –
através do devido processo legal – e fazer justiça no caso concreto. Nesse sentir, é preciso um
80
novo olhar para o direito, especialmente no sentido de apontar o comprometimento arcaico da
dogmática jurídica com conceitos equivocados sobre texto/norma e vigência/validade das
normas jurídicas.
Nesse caminhar o intérprete do direito desvela novas possibilidades para
compreender o sentido do direito e das regras para a sociedade e a partir dessa compreensão –
que sempre o antecede – aponta suas convicções para solução dos problemas sociais e
injustiças legais.
3.1 PROLEGÔMENOS PARA OS APONTAMENTOS SOBRE UMA HERMENÊUTICA
FILOSÓFICA TRANSFORMADORA: (IN)EFETIVIDADE CONSTITUINTE NO
PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO
A evolução teórica do direito, no período moderno, pode ser compreendida a partir
de afirmações jusnaturalistas, positivistas, pós-positivistas, hermenêuticas e sistêmicas.253 Não
há uma linha divisória temporal que ateste, com precisão, a influência de uma ou outra
corrente no direito, pois as noções de espaço e tempo são relativas no “pensamento” jurídico.
O que se pode afirmar, com maior grau de precisão, é que o conhecimento jurídico é fruto de
um processo histórico e sofreu influências dessas correntes teóricas. Assim, é possível
apontar, ainda que brevemente, as principais concepções e autores representantes dessas
teorias.
As teorias jusnaturalistas e positivistas cumpriram suas funções históricas
(influenciaram as teorias vindouras) e atualmente encontram-se superadas. As teorias pós-
positivistas estão presentes no pensamento jurídico atual, porém atreladas ao procedimento –
paradigma metafísico – na busca por uma verdade (consensual). A hermenêutica filosófica
vem ganhando espaço porque está munida de um caráter inovador/transformador (ontológico),
comprometido com a realidade histórica e social. Por sua vez, a matriz sistêmica apresenta-se
como inovadora, ousada e solução para uma realidade pós-moderna, porém padece de
concretude. 253 Essa classificação é fruto de opção para organização do conteúdo. Autores como Cordeiro classificam o pensamento jurídico, como perspectiva metodológica, em: jurisprudência analítica, jurisprudência problemática e sínteses hermenêuticas, o que acaba por não divergir, pois na classificação apresentada encontram-se a divisão ora desenvolvida. CORDEIRO, Antônio Menezes. Apresentação. In: CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução Fundação Calouste Gulbenklan. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenklan, 2002, p. XXIX-LXI.
81
A matriz analítica (positivista)254, quando concebida, constituiu-se num avanço
significativo para a humanidade por conter os poderes absolutistas – centrados na figura de
um indivíduo.255 Porém, suas teorias normativas do dever-ser atribuíram,
indiscriminadamente, em nome da segurança jurídica, o status de validade às regras justas ou
injustas.
O Estado Liberal serviu-se do pensamento de Descartes e da Escola da Exegese
Francesa – influenciada pelo primeiro –, porque a segurança proporcionada pela determinação
do objeto como fruto da aplicação rigorosa do método – verdade racionalmente estruturada –
foi o que o poder precisava para se justificar. Surgiu, assim, a identificação do objeto do
direito com o fenômeno da lei – positivismo legalista – o que reduziu o direito à forma. Não
se diferenciava lei e direito porque a vontade do legislador (criador da lei) – mens legislatoris
– estava expressa na literalidade do texto da lei, atestada pelo rigor científico –
metodologicamente estabelecido.256
O positivismo jurídico fez oposição ao jusnaturalismo e “[...] representa a tentativa
de compreender o Direito como um fenômeno social objetivo [...]”, renegando os “[...] juízos
morais particulares.”257 Ele apresenta a auto-existência do objeto criado pelo homem (lei) –
pretensão de converter o conhecimento jurídico em ciência – e apresenta quatro
características: a) ficção do objeto auto-existente – pode ser conhecido, controlado e
dominado pelo cientista; b) neutralidade, pois compete ao cientista descrever o objeto e não
avaliar se é justo ou injusto – separação entre direito e moral; c) compromisso metodológico
para construir um conhecimento objetivo acerca do ordenamento jurídico – dominar o direito;
d) raciocínio tipicamente dogmático – prescrições harmônicas entre si que regulam a vida
humana, de forma completa.258
A concepção positivista foi marcante, principalmente, pela posição defendida de que
254 Segundo cordeiro, a teoria analítica é positivista e está agravada pela aproximação ao normativismo Kelseniano. Ela implica em posição empírica, racionalista e antimetafísica, cultiva a clareza conceitual (linguagem), separa proposições descritivas e prescritivas, aceita na lógica e recusa intromissões morais. CORDEIRO, 2002, p. XLI-XLIV. 255 No contexto histórico em que foi cencebido, a obediência a esse modelo teórico é compreensível, pois havia necessidade de valorização da legalidade (agora se obedece a lei e não a vontade discricionária do rei) 256 MAIA, Alexandre da. O embasamento epistemológico como legitimação do conhecimento e da formação da lei na modernidade: uma leitura a partir de Descartes. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4, p. 30-33. 257 BARZOTTO, Luiz Fernando. Positivismo jurídico. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 643. 258 GALUPPO, Marcelo Campos. A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-positivismo. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 198-199.
82
as normas jurídicas impõem-se em dever de legalidade absoluto (dever-ser), atribuindo-se ao
intérprete-julgador a tarefa de subsumir o caso à regra (lógica conferencista).
Nesse sentido, Miranda afirma que “O maior vício do positivismo consiste na
rendição do jurista perante o legislador [...] [e] O maior vício do formalismo reside em pedir à
lógica mais do que aquilo que pode dar. [...]”. A tarefa da lógica é fornecer subsídios ao
raciocínio e não soluções, ao mesmo tempo em que a elaboração científica só apura conceitos,
mas não se esgota na sua concatenação.259
Enquanto o Direito Natural está vinculado à razão (normas de natureza racional), o
direito positivo é oriundo da vontade (normas de natureza voluntarista). O primeiro baseia-se
em leis naturais (estabelecidas pela razão) que disciplinam a liberdade dos indivíduos e o
segundo considera o mundo um caos que necessita de atos de poder (comando) para impor a
ordem. Dessa forma, no positivismo há uma subordinação da razão à vontade. 260
A natureza voluntarista do positivismo está presente nas sociedades onde se acredita
que a vontade dos representantes é o comando necessário para se tornar possível (harmonioso)
o convívio social. Diante da suposta “inexistência de consenso” sobre as vontades cria-se um
sistema que congrega a vontade da maioria e serve parâmetro para legitimar a repulsa aos atos
contrários aos ordenamentos jurídicos.
O positivismo lógico identifica a ciência com a linguagem e numa atitude
reducionista considera o texto auto-suficiente, esquecendo-se de outras fontes de produção de
sentido (influência da sociedade) que não o próprio sistema por ele criado.261
O sistema normativo positivista está pautado por regras262 em que os comandos de
dever (vontade expressa na lei) têm pretensão de completude, ou seja, acredita-se que no
momento da elaboração do texto o legislador seja capaz de contemplar as mais variadas
ocorrências sociais proibidas ou permitidas. Parte-se do pressuposto equivocado de que o
desejo manifesto em lei é atemporal (não sofre conseqüências no tempo) – conotação de
eternidade. Ignora-se a dimensão texto/norma e que o sentido é dado quando da
interpretação/aplicação (atos simultâneos) do direito.
Nesse sentido Barzotto afirma que o positivismo é relativista em matéria moral.
259 MIRANDA, 2007, p. 14. 260 BARZOTTO, 2006, p. 643-644. 261 ROCHA, 2005, p. 25. 262 O problema das posturas positivistas está na insuficiência/limitação das regras, pois acredita-se que elas devem resolver todos os casos a partir da forma subsuntiva-dedutiva. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 143.
83
Considera que não há valores permanentes na sociedade, o que gera insegurança. Em nome da
segurança são necessários o sistema normativo (possibilidade de prever as conseqüências da
própria conduta), o formalismo na aplicação do direito (sistema de regras para evitar
ambigüidades) e a separação dos poderes (democracia parlamentar – decisão da maioria sobre
os valores). Ele tenta controlar a burocracia “[...] que ele mesmo demonstra ser
incontrolável.”263
Ainda, segundo Cordeiro, o positivismo fracassa em quatro pontos fundamentais: a)
não admite a presença de lacunas e não apresenta solução para elas; b) não consegue trabalhar
com conceitos indeterminados – normas em branco – e proposições valorativas (cai no
arbítrio do julgador); c) é inoperante diante das contradições de princípios (decisões
subjetivas); d) não consegue solucionar a questão complexa das regras injustas.264
O legado positivista é valioso porque a atual conjuntura do direito é fruto desse
pensamento. Algumas conquistas, especialmente ligadas à legalidade – como freio ao arbítrio
e a discricionariedade monárquica – sobrevivem e são importantes na atualidade. A legalidade
não é dispensada para uma correta interpretação do direito – proporcionada pela hermenêutica
filosófica.
Claro que o entendimento sobre a legalidade característica do Estado Liberal não é o
mesmo dos dias atuais. Nesse sentido, Streck expõe que a superação do positivismo se deu
pela Constituição, onde a regra cede lugar ao princípio e o modo subsuntivo-dedutivo –
relação sujeito-objeto – sai de cena para entrar o giro lingüístico-ontológico.265
O neopositivismo266 (em oposição ao positivismo clássico que confunde lei e direito)
tem uma proposta de linguagem rigorosa para transformar o direito em ciência pura. A partir
da influencia do neokantismo, Kelsen projeta um modelo ideal de dever ser que separa “[...] o
conhecimento jurídico do direito natural, da metafísica, da moral, da ideologia e da política
[...]” e introduz a perspectiva dinâmica no direito a partir do processo produtivo e auto-
reprodutivo das normas (normas interativas – sistema hierárquico). Bobbio foi quem aplicou
as teorias normativistas de Kelsen. A partir do paradigma do rigor e da obra Teoria do
ordenamento jurídico, ele propôs a reconstrução hermenêutica das regras (espécie de tradução
263 BARZOTTO, 2006, p. 646. (grifo do autor). 264 CORDEIRO, 2002, p. XX-XXIV. 265 STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 224. 266 Os principais representantes teóricos neopositivistas (positivismo normativista) são Hans Kelsen (Teoria pura do direito) e Norberto Bobbio (Ciência do direito e análise da linguagem).
84
para os juristas da linguagem do legislador), baseada na análise sintática das palavras.267
O neopositivismo (positivismo normativista – filosofia analítica) esteve, ainda, bem
centrado nas questões descritivas e estruturais do direito, mantendo uma visão política de
neutralidade própria do Estado Liberal – não intervencionista. Porém, há uma insuficiência
neopositivista para as condições sintáticas, semânticas e pragmáticas de sentido.268
O problema do positivismo normativista é o problema das ciências de forma geral. A
criação de estruturas científicas – pureza do direito – fez com que os juristas acreditassem que
esse sistema seria auto-suficiente, desconsiderando os aspectos da realidade – sociedade
complexa. O afastamento do social e o fechamento do conhecimento em estruturas rígidas fez
com que o direito se afastasse do seu fim último, que é servir à sociedade.
O pós-positivismo é um novo paradigma na teoria do direito baseado em concepções
normativistas (herdadas do positivismo).269 Os principais autores representantes dessa corrente
teórica são Dworkin e Alexy e a inovação mais relevante é um novo olhar para os princípios
(natureza moral) nos ordenamentos jurídicos.
Enquanto o positivismo normativista (Kelseniano) acredita na separação absoluta
entre direito e moral (sistema predominantemente de regras, onde é relegado aos princípios
um papel secundário – coadjuvante), o pós-positivismo consiste numa aproximação do direito
com a moral (sistema de regras e princípios dotados de eficácia normativa), numa tentativa de
neutralizar o problema do positivismo normativista.
O pós-positivismo sobrevém à crise neopositivista (positivismo normativista) que
está estritamente vinculada à incoerência de suas propostas normativas, pois no confronto
com a realidade social cria dois mundos diversos (lei e realidade) e produz ausência de
contatos com a moral. Na afirmação de Galuppo, ele apresenta-se como uma resposta à
angústia da submissão e caracteriza-se por entender o direito como obra humana posta a
serviço da emancipação. Identifica o direito e a justiça com as normas jurídicas produzidas
historicamente por uma sociedade. Epistemologicamente são três características: a) se recusa
267 ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 16-20. 268 Ibidem, p. 17; 86. 269 Segundo Diniz e Maia, o pós-positivismo tem bases filosóficas ecléticas: “[...] Para alguns, o pós-positivimo pode ser descrito como um espécie de terceira via aos paradigmas positivista e jusnaturalista [...] para outros, seria uma nova geração do positivismo jurídico mitigado pelo peso da principiologia jurídica; e ainda para terceiros, o pós-positivismo não passaria de mais uma variante fraca do jusnaturalismo [...]”. DINIZ, Antonio Carlos; MAIA, Antonio Cavalcanti. Pós-positivismo. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 650-651.
85
a pensar o ordenamento jurídico como sistema, pois prefere o pensamento problemático –
conhecimento a partir dos casos concretos; b) recusa o conceito de verdade como central do
conhecimento jurídico – opção pelo critério de correção normativa; c) recusa o estatuto
teórico descritivo das ciências naturais – a lei é geral quando criada e não pode ser aplicada a
todos os casos – juízo de adequação da norma ao caso concreto.270
A crise neopositivista (positivismo normativista) se instalou a partir do fracasso de
suas pretensões ligadas às comprovações lógicas e/ou semânticas e do surgimento da tópica271
e retórica272. Como resposta a essa crise e considerando que o sentido é complementado pelo
contexto, surgiu uma hermenêutica preocupada em pensar o direito a partir da perspectiva
social (manutenção da estrutura normativa e ampliação das fontes de produção de sentido).273
Pode-se apresentar uma diferença nas soluções apontadas, pelo positivismo e pós-
positivismo, para os casos difíceis – hard cases274 – (invenção metafísica). A solução
positivista tem base discricionária, ou seja, ao Juiz é permitido criar o Direito em situações de
não-direito (decide da melhor lhe aprouver). Na visão pós-positivista a solução é encontrada
através da aplicabilidade dos princípios (direito existente), o que levaria à única decisão justa
e à impossibilidade de se transformar os juízes em legisladores (limitam-se a reconhecer
direitos e deveres pré-existentes).275 Hart também alertou para a textura aberta do direito –
contatos com a moral e com a justiça – ensejando uma apreciação discricionária do juiz para
solução dos casos difíceis (hard cases). Essa postura foi criticada por Dworkin por acreditar
que o direito é capaz de oferecer uma ‘boa resposta’ porque “[...] o juiz ao julgar escreve a
continuidade de uma história. [...]” (avanço para além do positivismo e do utilitarismo).276
Hart (influenciado pelo utilitarismo de Bentham) e Dworkin (influenciado pelo
270 GALUPPO, 2005, p. 202-205. 271 A tópica fundamenta-se num raciocínio para encontrar soluções a partir dos problemas concretos. O direito positivo é um ponto de partida para o sentido das normas, que é definido no processo de aplicação. MENDONÇA, Paulo Roberto S. Tópica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 826. “[...] a jurisprudência problemática, assente na tópia [...] abriu as portas à retórica jurídica, à lógica jurídica [...]” e forneceu instrumentos ao jurista para agir e explicar sua atuação. CORDEIRO, 2002, p. XLVIII-XLIX. 272 “[...] além de ser a arte da persuasão pelo discurso, é também a teoria e o ensinamento dos recursos verbais – da linguagem escrita ou oral, que tornam um discurso persuasivo para seu receptor.” No século XX Perelman e Olbrechts-Tyteca representam a Nova Retórica com recursos da argumentação e da dialeticidade, na lógica do verossímel. IORIO FILHO, Rafael Mario. Retórica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 723; 725. 273 ROCHA, 2005, p. 20-21. 274 A distinção entre easy e hard cases é irrelevante para a hermenêutica porque ela não leva em conta o acontecer do pré-compreender. Não se pode cindir o compreender. A diferença apresentada não resiste a viragem ontológica e ao círculo hermenêutico. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 195; 199. 275 DINIZ; MAIA, 2006, p. 653. 276 ROCHA, 2005, p. 24-25.
86
neocontratualismo de Rawls) “[...] perceberam que o direito tem necessariamente contatos
com a moral e a justiça. [...]” (filosofia da linguagem – mais avançada que a filosofia
analítica).277
Apesar dos avanços em relação ao positivismo e ao positivismo normativista,
principalmente com relação ao aspecto principiológico normativo, as teorias pós-positivistas
ainda trabalham com a concepção de que o procedimento, baseado na sua epistemologia, é a
solução para a busca da verdade.
Nessa forma de pensar, o direito deve se impor como vontade da maioria expressa
através de regras e de princípios que encontram fixação de sentido (a priori) a partir do ato
legislativo, ou seja, criam-se consensos sobre significados e teorias discursivas que acabam
por anular a essência, que é o ser – singularidade do caso.
A tópica e a retórica também não escapam das armadilhas da subsunção metafísica e
as teorias da argumentação jurídica – que não se confundem com hermenêutica jurídica –
ainda são reféns do procedimento com racionalidade discursiva não superadora do esquema
representacional sujeito-objeto, o que não difere da metodologia positivista.278
Teorias da argumentação, teorias analíticas, tópica jurídica, entre outras também
combatem o positivismo normativista tradicional, porém vinculam-se ao paradigma
metafísico porque elaboram um processo de subsunção a partir de conceitualizações. Apesar
de concordarem que o direito caracteriza-se por um processo de aplicação a casos particulares
– concretude, elas criam meta-critérios para solução de conflitos entre princípios e formulas
para ‘regrar’ a interpretação – significantes-primordiais-fundantes. Ao apresentarem pautas
gerais, verbetes doutrinários e jurisprudências aptos a resolverem casos futuros há o sacrifício
da singularidade dos casos em favor das pautas gerais.279
Disso resultam interpretações equivocadas promovidas pelo distanciamento da
realidade, pois fatos/casos são compreendidos “no atacado”, ou seja, dispensando-se a análise
criteriosa de peculiaridades histórico-sociais, mergulha-se num mundo epistemológico e
perde-se a essência da verdade. O que há é um encobrimento promovido pelo excessivo olhar
para os procedimentos criados e estabelecidos pela epistemologia jurídica.
A busca por autonomização metodológica fez com que no direito já não haja mais
direito, mas uma metalinguagem e metaconceitos abstratos distantes da resolução dos casos 277 ROCHA, 2005, p. 87. 278 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 433. 279 STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 243; 245.
87
concretos. O método puramente jurídico transforma-se em novos discursos. Tal caminho
levou ao metadiscurso jurídico (discurso sobre o esgotado discurso metodológico) –
irrealismo metodológico. Assim, “[...] o discurso metodológico é, na realidade, um
metadiscurso irreal. [...]”.280
A nova hermenêutica faz parte de um movimento de crítica jurídica criado a partir
da percepção de que as noções de norma jurídica de um sistema fechado são insuficientes.
Começa-se a perceber que não é algo completo e sim limitado. Assim, a norma jurídica deve
ser completada pela interpretação social – compreender o direito além da norma. É uma
tentativa de se manter a estrutura de normas jurídicas com uma nova possibilidade de
produção do sentido.281
A partir da constatação dos vazios semânticos (palavras da lei) e da incapacidade de
oferecer respostas adequadas à complexa sociedade, a proposta hermenêutica constitui-se num
avanço na medida em que introduz critérios pragmáticos de racionalidade (interpretação
social para a norma jurídica). Ela pretende entender o direito para além da regra (sentido
completado pelo contexto) e rompe com o apriorismo do positivismo normativista. Dessa
forma, a tensão existente entre a dogmática jurídica e a sociologia é rompida, através da
utilização da linguagem, pela hermenêutica filosófica. O sentido deve ser produzido pelo
intérprete a parir da compreensão de mundo, abolindo-se a idéia de fixação de sentido a priori
– pretensão da metafísica.
A matriz hermenêutica propõe uma forma de aproximação com a realidade,
agregando à interpretação das regras, o conceito de contexto para a produção do sentido e
introduzindo a noção de que a verdade é produzida a partir do rompimento da relação sujeito-
objeto. Dessa forma, cada caso deve ser identificado e particularizado para se estabelecer o
comando normativo que deriva da regra, utilizando-se dos princípios constitucionais – opção
pelo Estado Democrático de Direito – para proporcionar coesão e justiça nas decisões
jurídicas. Esse processo é promovido pela compreensão que é um existencial, porque a partir
dos pré-juízos e da conformação histórica do intérprete chega-se a resposta282, sem
280 CORDEIRO, 2002, p. XXV-XXVI. 281 ROCHA, Leonel Severo. Prefácio. In: DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 282 “Na medida em que o caso concreto é irrepetível, a resposta é, simplesmente, uma (correta ou não) para aquele caso [...]”. “[...] Desde que o ‘caso concreto’ passou para o centro das preocupações dos juristas, abandona-se a multiplicidade de respostas, uma vez que somente em abstrato é possível encontrar respostas variadas. [...]”. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 213; 215.
88
discricionariedades.
“A concepção de Estado da Hermenêutica é, portanto, mais atual que a da filosofia
analítica, voltando-se para as instituições sociais e abrindo-se já para o Estado interventor.
[...]”283 Ela tem a preocupação de superar o irrealismo metodológico presente nas teorias
anteriores, por meio de um pensamento ontológico, em que o sujeito cognoscente conhece de
antemão a linguagem – conjunto de pré-estruturas do saber (pré-entendimento).284 A
perspectiva hermenêutica põe em cheque os modelos formais de discurso jurídico, pois “[...]
não há, apenas, um entendimento da matéria: esta é o entendimento, confundindo-se com a
linguagem que o suporta.”285
Assim, não faz sentido, a partir da hermenêutica filosófica, a diferença – metafísica
– entre easy e hard cases, porque o acontecer da interpretação ocorre a partir da compreensão
do ser-no-mundo que antecede à linguagem, ou seja, o caso é apresentado ao intérprete e a
solução por ele apontada ocorre a partir das suas pré-compreensões que o antecede e antecede,
também, qualquer pretenso discurso.
A matriz pragmático-sistêmica, a partir de estudos de Luhmann passa a ter um olhar
sociológico para o direito. Nessa dimensão, o direito constitui um subsistema da sociedade,
onde tem função redutora de complexidades.
Essa matriz provoca uma revolução epistemológica no direito, apesar de não ter
grande influência na dogmática dominante. Luhmann parte da análise da teoria dos sistemas
de Parsons, numa primeira fase, e depois volta seus estudos para perspectiva autopoiética com
base em Varela-Maturana (direito como autoreprodutor de condições de possibilidade do
ser).286
A sociedade moderna é altamente complexa e mais recentemente globalizada. Os
comportamentos sociais estão influenciados diretamente por expectativas. A concretização
dessas expectativas constitui risco, que em muitos casos gera frustração. O direito funciona
como redutor dessas expectativas de comportamentos sociais. O direito começa a ser
interpretado, a partir de uma concepção de mundo de relações comportamentais complexas
em que a possibilidade de agir (escolha) condiciona o resultado ocorrido.
A matriz pragmático-sistêmica parte do conceito de comunicação e compreende os
283 ROCHA, 2005, p. 100. 284 CORDEIRO, 2002, p. LIII-LIV. 285 Ibidem, p. LIV. 286 ROCHA, 2005, p. 87.
89
fenômenos através de laços de interdependência, que reagem “[...] globalmente, como um
todo, à pressões exteriores e às reações dos elementos internos [...]”, o que não restringe, a
interpretação, ao formalismo lingüístico”.287 Luhmann defende que a produção do sentido da
sociedade se dá pela produção da diferença e não pelo consenso Habermasiano. Nesse sentido
as teorias de Luhmann convergem para uma perspectiva pós-moderna. Provoca uma mudança
epistemológica na teoria do direito – perspectiva autopoiética (originalmente concebida no
campo da biologia por Varela/Maturana), onde o direito é “[...] auto-reprodutor de suas
condições de possibilidade de ser [...]”.288 Para a forma tradicional de se ver o direito a
conseqüência de nossas ações são dadas antecipadamente (direito dá o sentido do futuro). O
modelo sistêmico rompe com essa noção através do entendimento sobre o risco (possibilidade
de que não ocorra como estamos pensando). O risco é a contingência (possibilidade de
conseqüências diferentes).
Luhamnn trabalha com a questão do risco em oposição ao perigo, pois na sociedade
complexa o risco torna-se elemento decisivo. “[...] O risco é um evento generalizado da
comunicação, sendo uma reflexão sobre as possibilidades de decisão. [...]”289 Diante das
infinitas possibilidades de interação social há produção de subsistemas (direito, economia,
religião, entre outros) para reduzir os riscos. A complexidade e a dupla contingência (poderia
ser de outra forma) acabam sendo fatores problemáticos para se trabalhar.
A sociedade deve ser vista como tentativa de construção do futuro e o direito numa
perspectiva dinâmica de interação, pois na afirmação de Rocha, o Estado não é mais o único
fundamento de validade do poder e da lei (apesar de ainda deter o monopólio de questões
chave). Numa sociedade globalizada tem-se a intervenção poderosa de instituições e não
apenas de indivíduos.290
Dessa forma, a matriz pragmático-sistêmica procura entender os comportamentos
sociais, a partir da constatação de um mundo de possibilidades – sociedade complexa – e
atribuir ao direito a responsabilidade de um subsistema redutor de complexidades.
A matriz sistêmica traz a noção de que o poder, historicamente concentrado no
Estado, está cada vez mais desmistificado pela forte influência do poder econômico de
organizações da sociedade. Assim, não é possível fechar os olhos para essa nova realidade e
se apegar ao normativismo, pois é tempo de levar em consideração, para as decisões judiciais, 287 ROCHA, 2005, p. 28. 288 Ibidem, p. 30-31. 289 Ibidem, p. 104. 290 Ibidem, p. 46.
90
fatores sociais de comportamentos que não dependem somente do indivíduo, mas de um
sistema de forças político-social.
Nesse ponto – aproximação com a realidade social – as matrizes sistêmica e
hermeneuta filosófica têm pensamento comum, porém a partir de pressupostos diversos.
Enquanto a hermenêutica filosófica apresenta proposta teórica consistente a partir da presença
do ser-no-mundo (noção de verdade) a matriz sistêmica parece estar distante da tradição
teórico-jurídica – direito como ordenamento escrito – porque suas propostas ainda carecem de
concretude (soluções práticas para o direito enquanto transformador da realidade social).
O problema é que a realidade jurídica brasileira ainda se encontra dominada por uma
teoria jurídica de metodologia positivista ao ponto de abordagens analíticas voltadas aos
aspectos empírico-lógicos das normas. Apesar do fracasso do normativismo (Kelseniano) a
matriz teórica analítica, com pequenas alterações (pressupostos jusnaturalistas como justiça
social e direitos humanos), continua tendo preferência nacional – senso comum teórico dos
juristas.291
No pensamento jurídico atual pode-se sintetizar duas idéias fundamentais: a primeira
é que o direito tem natureza cultural – categoria das criações humanas – fenômeno pré-dado; a
segunda é que as decisões jurídicas necessitam de estruturação científica e por essa razão
devem obedecer a determinadas regras.292 Dessa forma, considera-se que a hermenêutica
filosófica é a saída teórica para libertação de um pensamento metafísico, distante da realidade
social brasileira, que tem função meramente legitimadora do poder econômico e não atende
aos anseios sociais dispostos na Constituição.
3.2 VIRAGEM ONTOLÓGICA: A FILOSOFIA A SERVIÇO DE UMA “NOVA”
MANEIRA DE COMPREENDER O MUNDO E A DERRUBADA DO REINADO
METODOLÓGICO COMO FONTE DA VERDADE
A hermenêutica filosófica tem a sã ousadia de desafiar o pensamento dominante na
modernidade sobre o conhecimento fazendo duras e consistentes críticas ao procedimento e
291 ROCHA, 2005, p. 57. 292 CORDEIRO, 2002, p. LIII-LIV.
91
ao consenso293 como forma de produção da verdade.
É com os pés na filosofia que esse desafio se coloca, porque ela “[...] tem como
tarefa fundamental desenvolver um discurso sobre a totalidade e essa totalidade é o mundo
que envolve, como condição de possibilidade, todos os discursos científicos. A filosofia,
portanto, fala sobre o mundo e as ciências falam dentro do mundo”. Nessa dupla
racionalidade há uma que é própria do ser humano e que as ciências não conseguem chegar,
porém a filosofia tem uma tarefa específica. Essa racionalidade dispensa a lógica e atua de
maneira a não depender do que cada indivíduo reflete, pensa e produz (caráter
universalizante).294
A filosofia transcendental apresenta-se como algo que pensa para além da ética, da
lógica e da epistemologia e suprime o mundo paralelo – metafísico. Ela é uma reflexão sobre
o que é propriamente filosófico no trabalho filosófico – pressupostos de qualquer discurso
filosófico. Kant inaugura esse campo a priori por explicitar essa possibilidade, ainda que
como plano de fundo e não como lugar privilegiado (eu penso – representabilidade do objeto
como construção do sujeito). Hegel leva adiante a idéia de uma aprioridade transcendental na
tentativa de construção de um sistema absoluto coincidente com a realidade (filosofia
especulativo-dialética – unidade entre sujeito e objeto). Ele apresenta a possibilidade da
filosofia ocupar-se com a gênese superando a questão da representação dos objetos para
chegar-se à representação da vida, da consciência e da autoconsciência (alargamento da
questão transcendental – possibilidade de fundamento à antropologia, psicologia, psicanálise e
política como objetos filosóficos). Até o século XX, com base nessas teorias, desenvolveu-se
uma idéia de racionalidade partindo do papel do sujeito na filosofia (reflexão auto-referencial
– sujeito medita sobre suas proposições/condições sem confusão com a lógica, a ética e a
epistemologia). Dessa forma, a filosofia transcendental depois de Kant e Hegel descobriu uma
espécie de ontologia295 (não objetivística, ingênua e empírica – não paralela ao mundo físico).
O idealismo toma corpo em relação ao realismo (o melhor realismo não vale o pior
idealismo), pois “[...] a verdade não é a concordância entre o sujeito e objeto, mas a verdade
293 “Habermas constrói, assim, uma pragmática não-empírica, [...] a verdade deixa de ser conteudística para ser uma verdade como idealização necessária. É uma verdade argumentativa, atingida pelo consenso.” “[...] uma teoria consensual é epistemológica, porque trabalha no nível da teoria do conhecimento. Nela não há espaço para a faticidade, para o mundo prático.” STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 31; 69. 294 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 11-13. 295 “A ontologia é a concepção de uma determinada realidade que se apresenta como definitiva. Ontologia é uma teoria do ser e portanto, uma teoria que estabelece como o mundo é. No universo das teorias hermenêuticas e no universo das teorias do sentido, nós não trabalhamos com realidades ontológicas.” Ibidem, p. 41.
92
resulta de uma correspondência entre o falante e as proposições sobre a realidade e não sobre
proposições comparadas com a realidade.”296
A partir de Hegel começa-se a discutir as pressuposições do dizer, do falante, onde o
sujeito está implicado – análise interiorizada do sujeito. Introduz-se a possibilidade de refletir
sobre o mundo que se articula através da idéia do sentido e do significado (não no sentido da
razão hegeliana ou da consciência – idealismo ou subjetividade). Agora a reflexão sobre as
condições transcendentais passam da subjetividade do sujeito para as condições prévias de
sentido – estruturas prévias do significado – “[...] onde se dá todo esse universo elementar,
pré-categorial, antepredicativo, pré-lingüístico, sem o qual todo discurso deixa de ter a sua
justificação.” (abertura para crítica do sentido na linguagem – filosofia da linguagem –
condições de possibilidade do discurso humano).297
Descartes tem sua importância reconhecida na filosofia moderna por admitir o
homem como ator do conhecimento (contraposição à vontade divina). Ao destacar a
importância da certeza e da previsibilidade é utilizado com exemplo quando se fala em
afirmação positivista do direito enquanto ciência. Ele “[...] cria um mecanismo que emancipa
o pensamento do homem e insere a razão humana como centro do conhecimento e da busca
pela verdade [...] [que] é fruto da demonstração [...]”. A partir dos estudos matemáticos –
formas exatas – Descartes nega haver mais de uma opinião verdadeira (rechaça a diversidade
e a multiplicidade) e sustenta a necessidade de um método tão seguro a ponto de não dar
margem à verossimilhança. A verdade deve ser atestada pelo método (dúvida – método –
verdade).298
A crítica à forma moderna de produção do conhecimento (método) deu-se a partir de
estudos fenomenológicos (Husserl, Heidgger e Gadamer) que proporcionaram uma revolução
na maneira do homem compreender o mundo e a si mesmo. Antes de atingir a área jurídica,
ela firmou-se como crítica geral à maneira em que se produz o conhecimento, desvelando
novas possibilidades hermenêuticas.
Etimologicamente a palavra Fenomenologia significa discurso, ciência ou estudo do
fenômeno. Ela é fruto das concepções teóricas de Edmund Husserl que não se contentava com
o direcionamento dos estudos de Descartes, Kant e Hegel vinculados ao objeto, relegando a
segundo plano, a subjetividade humana. Assim, “[...] é necessário assumir uma atitude 296 STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 43-48. 297 Ibidem, p. 48-50. 298 MAIA, 2006, p. 13; 20-25.
93
fenomenológica já que o homem é um ser no mundo [...] desconfiando de toda e qualquer
evidência ou obviedade [...] tarefa própria da filosofia [...]”.299 A “[...] fenomenologia quer
permanecer ligada ao enunciar-se das coisas. A fenomenologia hermenêutica supera o
empirismo sem necessidade de recorrer a algo mítico, a um processo de abstração ou a um a
priori [...]”.300
Dessa forma, a compreensão de mundo pelo ser que é hermenêutica – enquanto
existencial que antecede qualquer discurso de base epistemológica – tem caráter
fenomenológico.
Husserl estabelece uma crítica relacionada ao “[...] simbolismo e à transformação
alienante das ciências em mera técnica [...]”. Para ele o conhecimento é “[...] evidência e
verdade, criadas a partir da intuição [...]”.301 Diferentemente do que pregava o positivismo,
Husserl atribui realidade às normas jurídicas – específico modo de ser – porque elas são
produtos de processos históricos voluntários e irrepetíveis vinculando todos os que pertencem
ao seu âmbito histórico de vigência – se sobrepõem às atitudes voluntárias de inobservância.
O mundo histórico é o mundo do homem – condicionado pelo tempo histórico em que vive. A
ordem jurídica não está só na história como é a própria história. A norma jurídica não é
independente dos homens a que diz respeito, ela insere-se no tempo histórico e acompanha o
movimento. Ao ser criada a legislação tem um aspecto histórico (vontade do legislador) e,
portanto, não pode ser ignorada (ponto de partida fixo para a interpretação), mas para além
disso, o que está em jogo é o que significa a norma jurídica para nós, ‘os de hoje’ –
pensamento da atualidade (processo não concluído).302
Os trabalhos de Husserl possuem a convicção de que há no direito um a priori
material, pois considera que o direito positivo é realização e particularização de possibilidades
aprioristicamente dadas. Dessa forma, nega a teoria do positivismo sobre o conteúdo
discricionário das normas. A fenomenologia do direito, apresentada por Husserl, representa a
superação do entendimento positivista (nas suas diversas modalidades) sobre o aspecto
normativo, pois não se pode reduzir o direito positivo a processos psíquicos.303
A partir de Husserl, os principais precursores da fenomenologia são: Martin
299 GUERRA, Willis Santiago. Fenomenologia jurídica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 316-317. 300 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 875. 301 GUERRA, 2006, p. 317-318. 302 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 156-160. 303 Ibidem, p. 161.
94
Heidgger cuja obra principal é Ser e Tempo e Hans-Georg Gadamer com Verdade e Método.
Heidgger foi adepto de uma corrente filosófica que não aceitava explicações
cientificistas ou logicistas para justificar o conhecimento – principal problema da filosofia nos
anos 1920. Encontrou na fenomenologia de Husserl apoio teórico para pensar o ser humano e
se libertar da metafísica, porém o fez de forma inovadora porque introduziu os conceitos de
hermenêutica e de interpretação. A hermenêutica se tornou nova, com elemento antropológico
e “[...] com a função de descobrir no próprio ser humano a idéia de compreensão [...]”.304 “A
compreensão como totalidade [homem como ser-no-mundo] e a linguagem como meio de
acesso ao mundo e aos seus objetos são, assim, questões centrais na filosofia hermenêutica de
Heidgger, por ele denominada de Fenomenologia Hermenêutica. [...]”. A linguagem305 nos
precede, ela é abertura para o mundo – condição de possibilidade – “[...] Somente quando se
encontra a pá-lavra para a coisa é que a coisa é uma coisa. [...]”.306
Heidgger busca a ontologia fundamental diferenciando ser e ente. Analisa a estrutura
formal do ser. O ente “[...] é tudo que é (pedras, humanos, etc.), mas no caso do sentido do
ser, este ente é o próprio que pensa – quem pensa – denominado então como ser-aí. [...]”. O
humano enquanto ente já está em relação com o ser – lançado no mundo. “[...] a estrutura
sistemática de ‘Ser e Tempo’ se dá pela fixação preliminar do sentido do ser, em seguida
reconhece que o único ente que pode compreender é o homem, o ser-aí, o qual é ser-no-
mundo; e ser-no-mundo é cuidado, o qual, por sua vez, é temporal.” Heidgger radicaliza a
hermenêutica a ao ver na compreensão uma estrutura fundamental da existência humana –
verdade como manifestação do ser e não do conhecer.307
Heidgger descobriu um dado hermenêutico – “[...] os objetos são dados dentro de
um horizonte de significações [...]” – a partir da idéia de mundo circundante de Husserl
(mundo vital) e de seu entendimento sobre o ‘estar’ do homem no mundo.308 A epistemologia,
304 STRECK, Lenio Luiz. Heidgger, Martin. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 426-427. 305 É preciso considerar que essa linguagem não dá conta de tudo, pois Gadamer, na tentativa de aplicar as teorias de Heidgger, especialmente o segundo (Contribuições para a filosofia) afirma que “[...] Somos incapazes de expor todos os pressupostos que estão no universo hemenêutico. Algo sempre escapa. A compreensão [...] antecipa qualquer tipo de explicação lógico-semântica [...] Temos uma estrutura do nosso modo de ser que é a interpretação.” Assim, sempre interpretamos (desdobrar das possibilidades), o ser humano é compreender e o compreender é um existencial (junto com a faticidade e a possibilidade) com fundamento no próprio homem. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 203. Há uma ambigüidade no homem que o condena a hermenêutica. Somente a filosofia tem consciência de que a compreensão e a interpretação são formas deficientes de acesso lógico aos objetos e ao mundo. STEIN, 2004, p. 22. 306 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 203-205. 307 ROSA, 2006, p. 179-180; 184; 189-190. 308 SALDANHA, 2003, p. 226.
95
para Heidgger, é uma exacerbação da subjetividade.309 A partir de Heidgger a hermenêutica
passa a ser filosófica, pois a compreensão é estrutura ontológica do Dasein e as coisas não são
uma propriedade do ser (elas chegam ao ser), mas o próprio ser. O homem é ser-no-mundo,
cuidado, temporal e o único ente que compreende o ser – caráter ôntico da vida humana.310 O
sentido é considerado, para Heidgger um “[...] existencial do Dasein e não uma propriedade
colocada sobre o ente [...]”.311 Quando se dá a compreensão do ser é que se dá o sentido do
ser. “[...] O conceito de ser é o mais universal e o mais vazio, resistindo a toda tentativa de
definição. Por ser o mais universal dos conceitos, prescinde de definição. [...]”312
Heidgger influenciou Gadamer, principalmente, a partir dos conceitos de circulo
hermenêutico e diferença ontológica.313 Apreendendo as idéias de Heidgger, Gadamer
elaborou um conceito mais originário de compreensão (forma de ser-no-mundo), um projeto
de de-sedimentação da metafísica e a tematização da essência da verdade. 314
Gadamer foi além da filosofia hermenêutica, estabeleceu a hermenêutica filosófica
com base na analítica existencial, ontologia fundamental ou fenomenologia hermenêutica de
Heidgger (principalmente no segundo, pois Heidgger pode ser dividido em dois momentos:
compreensão do ser e história do ser). O conceito principal de verdade e método é o de
experiência no mundo – possibilidade de representação ou de descrição de uma totalidade.315
Gadamer, em sua obra verdade e método, traz uma provocação à verdade lógica-semântica
atrelada ao método – principalmente ao dedutivo e ao indutivo –, pois apresenta, a partir da
hermenêutica filosófica, no campo da arte, do conhecimento histórico e da linguagem,
verdades produzidas sem a utilização do método lógico-analítico. Essa verdade não é empírica
nem absoluta, mas é uma verdade que se estabelece nas condições humanas do discurso e da
linguagem – consagração da finitude.316
Gadamer dedicou-se à compreensão, atacando a formulação epistemológica como o
centro da racionalidade. A interpretação é um momento histórico efetivo da vida e assim
compreensão está diretamente ligada à interpretação. É através do intérprete que leva consigo
um horizonte de expectativas (crenças, práticas, conceitos, etc.) que se fundem horizontes
309 STEIN, Ernildo. Epistemologia e crítica da modernidade. Ijuí: Unijuí, 1991, p. 34. 310 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 198-199. 311 Ibidem, p. 202. 312 Ibidem, p. 191. 313 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 314 DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Gadamer, Hans-Georg. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 372. 315 STEIN, 2004, p. 72-74. 316 Ibidem, p. 47-48.
96
(linguagem + tradição) e surge a interpretação – apropriação da tradição histórica tem
estrutura circular. A interpretação sempre está em marcha, nunca se conclui. A compreensão
não se adquire com um método, mas sim com a prática.317 Gadamer, com os conceitos de
circulo hermenêutico e de pré-compreensão, foi quem “[...] situou a necessidade de
compreender as coisas dentro de um todo ou a partir de um todo, sendo indicação básica
dentro das expressões do humano a historicidade [...]” (princípio hermenêutico).318 “Toda a
contribuição de Gadamer à filosofia hermenêutica tem como centro a idéia de pré-
compreensão, e com ela a do reaproveitamento epistemológico da idéia de tradição (a
continuidade do saber mantida através dos tempos por meio da linguagem319). [...]”320
A verdade proposta por Gadamer (acontecer da obra de arte, da história e da
linguagem) encontra-se no plano de fundo do conhecimento tradicional – baseado no método.
Porém, “[...] O acontecer da verdade é uma [sic] acontecer que não podemos dizer seja um
processo anti-metódico, mas é um processo que põe em crítica o método do conhecimento
lógico-analítico. [...]”321
A hermenêutica filosófica tece severas críticas ao método porque ele não é suficiente
para a busca da verdade. O método apresenta-se como uma espécie de “camuflagem” para a
essência do ser e das coisas e torna-se extremamente prejudicial na medida em que produz o
“encastelamento” do conhecimento e a produção de “novos conhecimentos” com base na sua
própria epistemologia viciada.
O distanciamento da realidade é uma conseqüência da aplicação do método nas
ciências. Ele serve antes de fuga para o intérprete do que base para produção da verdade. Na
afirmação de Streck, os métodos e os procedimentos produzem a objetificação da
interpretação, pois eximem o interprete de suas responsabilidades e atribuem a culpa pelas
anomalias do direito à lei e ao legislador. O emprego do método é sempre arbitrário e
discricionário. Assim, a hermenêutica deixa de ser uma questão de método e passa a ser
filosofia (que não é lógica).322 A metafísica – que sempre pensou o ente – é uma armadilha
“[...] porque suspende as coisas humanas no interior do ente, sem que o ser do ente possa ser
317 ROSA, 2006. p. 192-194. 318 SALDANHA, 2003, p. 226. 319 “Assim como as coisas (Dinge) – essas unidades de nossa experiência de mundo que se constituem por apropriação e significação – vêm à palavra, também a tradição que chega a nós é reconduzida à linguagem, na medida em que a compreendemos e interpretamos. O caráter de linguagem desse vir à palavra é o mesmo que o da experiência humana de mundo como tal. [...]” GADAMER, 2007, p. 589. 320 SALDANHA, 2003, p. 226. 321 STEIN, 2004, p. 76-77. 322 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 433.
97
jamais conhecido [...]” enquanto que a ontologia valoriza e se preocupa com o ser.323
A filosofia passa a ocupar o lugar privilegiado do método e da lógica na produção do
conhecimento. Através da reflexão (tarefa da filosofia) sobre a compreensão – modo de ser –
é possível desvenciliar-se das amarras do método e da lógica, que na modernidade produziram
um resultado falho.
Não se trata de dispensar a aplicação do método,324 procedimento325 ou de romper
definitivamente com toda a base epistemológica produzida pela ciência, mas sim de uma nova
postura do sujeito – auxiliada pela filosofia – para libertar-se dos vícios de uma prática aceita
e distorcida, especialmente com relação ao contato com a essência, que é o ser.
Na hermenêutica haverá espaço para a teoria do conhecimento na explicitação da
autocompreensão. Mais do que fundamentar é preciso explicitar (justificar) o que foi
fundamentado.326 Às teorias do discurso cabem essa tarefa de justificação do compreendido
porque elas operam no nível lingüístico. À hermenêutica filosófica cabe à reflexão do
compreender, a produção da verdade e das respostas corretas.
A resposta apresentada pelo intérprete precisa ser justificada para haver
legitimidade.327 É a partir da justificação do compreendido que se garante o previsão
Constitucional de que todas as decisões do Poder Judiciário serão justificadas (artigo 93, IX).
A justificação da decisão é a explicitação do compreender através da linguagem. O intérprete
compreende a partir de sua condição de ser-no-mundo e exterioriza essa compreensão pela
linguagem.
A relação sujeito-objeto – até então sustentada – perde o sentido e passa a ser
sujeito-sujeito porque é a partir deste que os objetos possuem sentido. Nessa direção aponta
Stein para quem o “[...] Objeto e sujeito não se separam, porque mergulham numa certa
tradição. [...]”328 e Guerra quando afirma não existir, para a fenomenologia, relação pura entre
o sujeito e o objeto porque essa relação é sempre intencional. O objeto se torna tal a partir do
323 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 207. 324 No discurso lógico racional, a soma de análises lógicas nunca representa a totalidade – nunca dá as condições de possibilidade. A novidade hermenêutica está em demonstrar onde se dá a compreensão – e que ela não está reduzida ao aspecto lógico-semântico, porém não o dispensa, porque pode-se utilizar dele para compreender melhor o universo hermenêutico. STEIN, 2004, p. 31. 325 “[...] A posição hermenêutica não pretende eliminar o procedimentos. Ela já sempre compreende isso, porque ela é capaz de analisar filosoficamente os elementos da pré-compreensão.” STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 221. 326 Ibidem, p. 282. 327 STRECK, Lenio Luiz. STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 250. 328 STEIN, 2004, p. 106.
98
olhar do sujeito – visão da essência ou intuição.329
No dizer de Streck, “[...] A metafísica pensa o ser e detém-se no ente; ao equiparar o
ser ao ente, entifica o ser, através de um pensamento objetificador [...]” o que corrompe o
processo interpretativo através do predomínio do método e “[...] nem sequer a legalidade (de
cunho liberal-individualista) é cumprida [...] [pois] continuamos a utilizar Códigos (e códigos)
velhos sem a devida filtragem constitucional [...]”.330
Romper com o método e com a objetificação do sujeito, a partir da fenomenologia,
são características fundamentais de uma nova postura do sujeito frente ao mundo. A produção
dessa nova possibilidade – viragem ontológica – é marca da hermenêutica filosófica
conquistada a partir de estudos de Husserl, Heidgger e Gadamer. No Brasil, os principais
precursores desse pensamento são Ernildo Stein, Lenio Luiz Streck e Eros Roberto Grau.
3.3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA (TRANFORMADORA): VALORIZAÇÃO DO SER,
LINGUAGEM E COMPREENSÃO COMO FATORES QUE DENUNCIAM O EQUÍVOCO
DA HERMENÊUTICA TRADICIONAL PROCEDIMENTALISTA
A palavra hermenêutica (do grego hermeneuein) é decorrente de Hermes que tinha
poderes para interpretar a vontade dos Deuses. Ele era o receptor das mensagens e as
decodificavas.
A complexidade do problema hermenêutico está presente na metáfora de Hermes,
que era um mensageiro divino encarregado de esclarecer o conteúdo das mensagens dos
Deuses aos mortais. A partir dessa atividade ele se torna poderoso e nunca se soube o que os
Deuses realmente disseram, somente o que Hermes falou sobre a mensagem dos Deuses.331
A hermenêutica procura compreender como o ser humano interpreta. Ela é uma
filosofia da compreensão para produção do sentido – interpretação – do mundo e de suas
manifestações. É uma exploração filosófica do caráter e das condições fundamentais de toda a
compreensão humana.
A relação existente entre a hermenêutica jurídica e a de origem religiosa está na
presença de uma tensão existente entre texto e sentido, que abre possibilidades (caminhos) 329 GUERRA, 2006, p. 317. 330 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 847; 849. 331 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 430.
99
ligadas ao acesso do homem ao conhecimento. Esses caminhos vão desde a crença em regras
para guiar a interpretação (teoria geral), inexistência de cisão entre o ato de conhecer o
sentido e de aplicá-lo ao caso, até falsas contraposições do esquema sujeito-objeto
(metafísico).332
A hermenêutica tradicional está vinculada ao procedimento enquanto que a
filosófica avança no sentido da valorização da singularidade do caso a partir de uma visão de
totalidade.
3.3.1 Utilização do método no direito
A hermenêutica tradicional, pautada no procedimento, acredita que as respostas do
intérprete serão produzidas a partir do emprego de metodologias apontadas por teorias
epistemológicas. Através de uma espécie de condução do raciocínio, acredita-se chegar às
respostas no interior de determinada estrutura científica.
No direito, parte da dogmática acredita que a utilização desses procedimentos é o
caminho para a decisão e seu controle. Dobrowolski explica que os procedimentos e critérios
estabelecidos para controle das decisões jurídicas – decisão correta – são objetos de estudo da
teoria da argumentação jurídica. Há preocupações com o método. A necessidade de uma
teoria da argumentação jurídica se justifica no atual contexto do direito por três elementos:
situação conflituosa que clama por resposta(s); procedimento argumentativo – objetivando a
decisão; conclusão ou decisão que deve ser fundamentada.333
Considerando essas “necessidades”, a dogmática procedimentalista apresenta os
seguintes métodos334 para a interpretação do direito, argumentando que eles não são
excludentes entre si, bem como que não há hierarquia entre eles: gramatical (literal, semântico
ou filológico), lógico, sistemático, histórico e teleológico.
Quando o intérprete valoriza a literalidade da lei, procurando o significado dos
vocábulos e expressões, que pode ser extraído a partir da palavra ou de sua inserção na
oração, diz-se que está utilizando o método gramatical.
332 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 333 DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 40-41. 334 Método significa caminho/organização/procedimento para se chegar a uma verdade.
100
Ferraz Júnior explica que quando o intérprete valoriza “[...] a conexão de uma
expressão normativa com as demais do contexto [...] para a obtenção do significado correto
[...]”, o que possibilita soluções de justiça, utiliza o método lógico.335 A partir desse método,
emprega-se raciocínios do tipo quem pode o mais pode o menos e permite identificar a
especialidade das normas.
O método sistemático apresenta-se como raciocínio que considera a norma inserida
num conjunto estrutural, pois não se resolvem os problemas a partir de um dispositivo legal,
mas a partir de um conjunto normativo onde se nega a validade a determinadas normas
(importante para aplicação dos princípios, pois irradiam valores a serem obedecidos pelas
regras). Esse método também está presente quando da leitura das alíneas, parágrafos, incisos e
caput dos artigos de leis para se buscar compreender o sentido.
Por sua vez, quando empregado o método histórico atribui-se relevância ao caráter
comunitário, onde se busca identificar os antecedentes históricos da criação da norma, a razão
de ser ou sua gênese. Nesse raciocínio, parte-se do pressuposto de que o direito positivado é a
institucionalização dos hábitos e costumes historicamente maturados por gerações.
Ainda e por fim, quando empregado o método teleológico336 busca-se o telos, que
significa fins/finalidade, ou seja, deve-se adaptar a finalidade das leis às exigências sociais.
Por esse método, a lei deve ser aplicada de acordo com os fins sociais e visando o bem
comum delimitados pelos direitos fundamentais contidos na Constituição Federal.
Em continuidade à exposição do raciocínio procedimentalista, diz-se que a
interpretação pode ser classificada em três tipos: declarativa ou especificadora, restritiva e
extensiva. Em todos os casos o que está em jogo é a amplitude de sentido que se dá em
relação ao descrito no texto e o desejado pelo intérprete.
Na interpretação declarativa parte-se do pressuposto da clareza literal, ou seja, o
sentido buscado pelo interprete está definido expressamente no texto. Não é preciso ampliar
nem restringir o significado da palavra.
Na interpretação restritiva há uma abundância de significado contido no texto
normativo. A expressão contida no texto possui um sentido amplo que precisa ser restringido
pelo intérprete em decorrência da finalidade (telos) buscada pela norma.
335 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2003, p. 287. 336 Há previsão expressa desse método no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais, a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
101
E por fim, na interpretação extensiva337 o que foi dito pelo legislador necessita de
ampliação. O sentido dado pelo texto é de pouca amplitude. A palavra necessita ser
compreendida em sentido amplo, ainda que o conceito não esteja expresso.
O direito atravessa por uma crise em tempos de relações sociais complexas.
Enquanto os relacionamentos intensificaram-se – evolução social –, o direito adormeceu na
sonolência de suas velhas teorias metafísicas. Ele foi (e ainda é com menor credibilidade)
entendido como estrutura científica338 capaz de completude pelos seus próprios enunciados
(regular com rigor os comportamentos sociais descritos) e chegou ao ponto de se ver
pressionado a oferecer respostas às singularidades complexas que se apresentam. O fato de
não haver respostas suficientes – insuficiência dos modelos tradicionais339 – levou a
dogmática tradicional ao descrédito340 (ainda parcial) diante da sociedade.
Necessário ligar a luz de alerta para descortinar a crise do direito341 e apontar
soluções inovadoras e responsáveis. A hermenêutica filosófica vale-se de uma crítica que não
é só para o direito, mas a ele se amolda perfeitamente, e apresenta-se como solução à crise
instalada a partir de uma (nova) forma de compreender o mundo (e o direito) em que o ser
tem lugar de destaque – viragem ontológica – enquanto portador da linguagem e da
compreensão para interpretação do direito.
337 Há uma pequena diferença entre interpretação extensiva e analogia, apontada por Ferraz Júnior: a interpretação extensiva “[...] se limita a incluir no conteúdo da norma um sentido que já estava lá, apenas não havia sido explicitado pelo legislador. [...] [Na analogia] o intérprete toma de uma norma e aplica-a um caso para o qual não havia preceito nenhum, pressupondo uma semelhança entre os casos [...]”. FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 297. 338 As ciências tratam a linguagem dentro do mundo (objeto delimitado) que é diferente de tratar a linguagem enquanto mundo sobre o qual falamos – tratamento filosófico. A filosofia é consciente de que não é possível esgotar a questão do mundo (explicita a partir de uma perspectiva) e nisso tem uma aparente frustração – não esgota seu objeto – procedimento infinito (conquista de parte da realidade). STEIN, 2004, p. 15-16. A cultura jurídica positivista ainda trabalha “[...] com a concepção de que o Direito é ordenador, o que, à evidência, caminha na direção oposta de um Direito promovedor-transformador do Estado Social e Democrático de Direito.” STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 846. 339 A criação desenfreada de dispositivos reguladores – inflação legislativa – é uma manifestação do desespero proporcionado por uma teoria hermenêutica ineficaz que (ainda) acredita na solução legislativa infraconstitucional para solução dos problemas sociais das mais variadas dimensões. Sobre o tema inflação legislativa, Grau considera que a exigência de certeza jurídica (não imobilidade) é que impõe a positivação do direito através das leis. “A ‘inflação normativa’, contudo, coloca os ideais de segurança e certeza jurídica sob comprometimento.” GRAU, Eros Roberto. O direito posto e direito pressuposto. 6. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Malheiros Editores, 2005, p. 186-188. 340 “Tal o dilema da Ciência do Direito no final do século vinte: perante problemas novos, ou se intensifica um metadiscurso metodológico irreal, inaplicável a questões concretas e logo indiferente ao Direito, ou se pratica um formalismo ou um positivismo de recurso. Em qualquer dos casos, as soluções são ora inadequadas ora assentes em fundamentações aparentes, escapando ao controlo da Ciência do Direito.” CORDEIRO, 2002, p. XXVIII. 341 A chave da crise no direito e da baixa efetividade da Constituição está no crédulo do jurista (pensamento ainda dominante) de que primeiro conhece, depois interpreta para só então aplicar – desvelar unívoco do texto; descobrir a vontade da norma ou espírito do legislador; o juiz primeiro decide para depois fundamentar. STRECK, Lenio Luiz. Diferença (ontológica) ebtre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Coimbra, 2005, v. XLVI, n. 1, p. 73; 84.
102
Para desvelar a crise do direito, a filosofia é instrumento indispensável, pois a partir
da reflexão342 que lhe é própria, é possível identificar e denunciar os estragos que um modelo
equivocado vem provocando na sociedade (e no direito). Essa atitude filosófica implica crítica
do direito e como bem denuncia Grau, ela não tem ultrapassado “[...] os limites da crítica do
discurso jurídico. A crítica do direito, então, é substituída por uma crítica da doutrina
jurídica, que prospera no sentido de desviar o debate a respeito do direito para o âmbito do
discurso sobre o direito. [...]”343 A partir dessa pseudo crítica – fundada na crítica somente ao
discurso e não ao direito – instala-se o principal problema da metafísica em que o discurso
sobre o discurso toma a vez do que realmente é relevante, ou seja, não se dá importância para
o fato de que o direito está aí com um propósito – servir o homem e não escravizá-lo. O que
se tem criticado é se as estruturas lingüísticas estão ou não de acordo com tal teoria, método,
jurisprudência e por aí afora, relegando-se a segundo plano o debate e a solução do problema
concreto do fulano, cicrano ou beltrano, que faz parte do mundo real.
Em síntese, a crise do direito é constatada com auxílio da filosofia – reflexão – que
também proporciona um olhar crítico do direito não adstrito ao discurso sobre o direito, mas a
ele próprio como concretude. Dito de outra forma, a filosofia – reflexão – desvela crise e
produz crítica, mas não sobre o discurso – metafísico – e sim do direito. Dessa forma, a crítica
do direito deve-se voltar para ele próprio – que é concretude – e não para o discurso sobre ele.
A crítica do discurso jurídico (e não do direito) se aproxima do irrealismo
metodológico, que nas considerações de Haft, deita raízes na autonomização metodológica do
direito que levou ao aparecimento de um metadiscurso onde “[...] tem não já o Direito, mas o
próprio discurso sobre o Direito. Surge, então, uma metalinguagem, com metaconceitos e toda
uma seqüência abstrata que acaba por não ter já qualquer contato com a resolução dos casos
concretos.”344
As teorias tradicionais do direito (entre elas positivismo, positivismo normativista e
pós-positivismo) têm amparado os metadiscursos – discursos sobre os discursos do direito –
porque não conseguiram desvenciliar-se das amarras metafísicas e se “enrolaram” nas
estruturas epistemológicas por elas produzidas. Assim, ao discursarem sobre o discurso, a 342 “O pensamento crítico ensina devermos superar a confusão entre direito, ordem positiva normativa, sua prática e seu conhecimento. [...] ensina a tomarmos o direito como um nível do todo social, e não como uma representação da realidade social, existente fora dela – o direito é um nível, um plano, uma linguagem desta realidade, mas é também instrumento de mudança social. [...]” GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 151. 343 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 149. 344 HAFT apud CORDEIRO, 2002, p. XXV.
103
essência é despercebida e os casos são tratados com abstrações como se irreais fossem. Nesse
sentido Stein explica que “[...] O estruturalismo constitui uma espécie de renúncia a riqueza
do caráter histórico, da dimensão de identidade individual e subjetiva. O método estruturalista
nas ciências fez como que uma pausa na condição do sujeito e uma pausa na condição da
história. [...]”345
O pensamento dogmático do direito346 peca ao acreditar que enunciados explicativos
são suficientes para explicar o direito. Com essa prática ocorre o encobrimento do direito e de
suas singularidades. Ou seja, conceitos universalizantes – fundantes – servem para esconder o
direito e não realização do seu papel na sociedade (entificação do ser – prendimento aos
entes). Essa tradição inautêntica equipara vigência e validade, texto e norma, acredita em
raciocínios subsuntivos e dedutivos e tem uma compreensão da Constituição como verdade
ôntica (visão ante-predicativa para o direito) e por isso acreditam que ela não constitui – não é
normativa e vinculante. “O equívoco do pensamento dogmático é pensar que um conjunto de
enunciados (categorias) explicativos acerca do Direito, postos-à-disposição-da comunidade-
jurídica, é suficiente para compreender o processo interpretativo/aplicativo do Direito. Assim
agindo, o pensamento dogmático entifica o ser do Direito. [...]”347
Correto está Cordeiro ao afirmar que mesmo as tentativas de se desvencilhar da crise
das construções formalistas e positivistas, seguem caminhos ligados ao metadiscurso jurídico
– discurso sobre o esgotado discurso metodológico – que perdem o contato com a solução dos
casos concretos. “[...] o discurso metodológico é, na realidade, um metadiscurso irreal.
[...]”.348 A metafísica ainda está presente na doutrina e na jurisprudência, porque ainda há uma
crença no método para se chegar à resposta correta. Acredita-se que interpretar é extrair da
norma tudo que dela contém (ato cognitivo – conhecimento), ou seja, extrair a vontade da
norma ou o espírito do legislador349, o que evidencia a problemática metafísica.350 Para
345 STEIN, 2004, p. 98. 346 “Não há Direito sem dogmática jurídica. O que se torna necessário é a desenraização da dogmática jurídica de seu perfil objetificante e entificador. Hermenêutica não é um método; é um modo de ser. [...]” (grifo do autor). STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 871. Dogmática não se confunde com dogmatísmo. A primeira é necessária no direito porque a partir dela é que se elaboram os discursos que explicitam o compreender. 347 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 276; 286-287; 873. 348 CORDEIRO, 2002, p. XXVI. 349 Ainda que se admita o debate, Ferraz Júnior considera que em ambas as situações podem-se tecer críticas. No caso da voluntas legislatoris pode-se afirmar que é uma ficção acreditar no resgate da vontade do legislador, que não inspira confiança e que há constante mutabilidade social. No caso da voluntas legis pode-se considerar que se ignora o legislador, há significativo abalo na certeza e segurança jurídica e valorização do subjetivismo do intérprete. FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 267. 350 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431.
104
hermenêutica interpretar é aplicar. Não há cisão entre aplicação e compreensão.351
Nas palavras de Gadamer, “[...] Uma lei não quer ser entendida historicamente. A
interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica. [...]” Para tanto, se “[...] quisermos
compreender adequadamente o texto [...] devemos compreendê-lo a cada instante, ou seja,
compreendê-lo em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreender
é sempre também aplicar.”352
Ora, saber se predomina a vontade do legislador ou da lei é desnecessário porque a
partir da compreensão proporcionada pela hermenêutica filosófica o texto editado pelo
legislador é condição de possibilidade para produção do sentido – dele não se extrai o
significado a priori tanto no aspecto da vontade do legislador, quanto no aspecto da lei em si.
A compreensão de mundo – totalidade – do intérprete é o fator determinante para a produção
do sentido353 que nunca é reprodutor.
A dogmática jurídica tradicional tem considerado o ato interpretativo como uma
ação isolada do juiz, considerada como uma operação lógica em “[...] adaptar o suporte fático
normativo ao conteúdo significativo preexistente na moldura legal. [...]”. No Brasil foi
precursor desse rigor formal Carlos Maximiliano. Esse objetivismo a priori das palavras da lei
já se encontra superado pela semiótica (sintaxe, semântica e pragmática354).355
Essa forma de interpretar os textos legais é ultrapassada porque não consegue dar
conta da realidade social que se apresenta e é impotente frente aos desafios – problemas – que
o direito propõe-se a solucionar.
O método “[...] sempre chega tarde, porque pressupõe saberes teóricos separados da
realidade.” A compreensão antecede a argumentação. A pré-compreensão passa a ser
condição de possibilidade e conformada com nossos pré-juízos não é, jamais, autoritária,
porque eles não são inventados, mas seguem a tradição. Esse processo não depende de
método e tampouco da discricionariedade do intérprete.356 O método pressupõe saberes
351 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 62. 352 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 408. 353 A atividade interpretativa vincula-se a norma e tem caráter criador. É concretização que só é possível a partir de um problema concreto. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 61-62. 354 Ferraz Júnior considera que “[...] para interpretar, temos de decodificar os símbolos no seu uso, e isso significa conhecer-lhes as regras de controle da denotação e conotação (regras semânticas), de controle das combinatórias possíveis (regras sintáticas) e de controle das funções (regras pragmáticas).” FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 261. 355 ROCHA, 2005, p. 108. 356 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 434. (grifo do autor).
105
teóricos – discursos de fundamentação separados da realidade – e por conta disso sempre
chega tarde. “[...] Antes de argumentar, o intérprete já compreendeu. [...]”. O discurso é
sempre “[...] acompanhado e precedido por uma antecipação de sentido, que advém do mundo
prático [...]”.357 O discurso não pode desenvolver-se apenas com base no discurso lógico-
semântico.
A hermenêutica é um método da compreensão do fenômeno humano em sua obra.
Instrumentos e técnicas são inúteis sem a presença do homem. O homem procura atingir a
verdade a partir dos diversos pontos em que o situa sua história e cultura. Ele a experimenta
nas situações concretas – necessidade de cada momento – sem respostas totais e definitivas. A
compreensão deve decidir os passos do homem – ele toma seu destino nas mãos. O homem é
essencialmente histórico e a volta ao passado (envolto em problemas, preconceitos e
interesses) constitui busca de possibilidades de seu poder-ser e procura concretizá-las no
presente. Essa radicação do homem na tradição é decisiva para seu presente e futuro. Somos
envolvidos por um clima espiritual que seleciona nossos juízos e os determina a cada
momento. Nossa compreensão se movimenta conosco e nós a limitamos em nosso
acontecer.358
A viragem ontológica é um “antídoto” que afasta o discurso metafísico irreal. Streck
propõe uma Nova Crítica do Direito (NCD) como processo de desconstrução da metafísica
(teoria do conhecimento – filosofia da consciência) no direito (interpretação jurídica). Ela
chama atenção para a diferença entre ser e ente para que o texto seja pensado em seu
acontecer e não estandardizado pela tecnização e especialização, que são características
próprias da dogmática jurídica dominante, que reifica a subjetividade abstrata num raciocínio
produtor de ‘consensos antecipados’ – fala ideal. A Nova Crítica do Direito (NCD) pretende
lutar contra a aparência e a distorção através da construção de condições para o desvelamento
– abertura de uma clareira na escuridão proporcionada pela metafísica (a clareira só é possível
porque existe a floresta) – a partir da idéia de ser-no-mundo como condição de possibilidade
para qualquer conhecimento. Com o desvelamento surge a verdade ontológica, ou seja,
desvelamento como verdade sobre o ser. A missão da Nova Crítica do Direito é “[...] des-
velar as obviedades do óbvio [...] [com] a vocação de administrar o que acontece na trama
existencial que sustenta a lei e o direito, isto é, um universo prévio que não se dá sem lei, mas
que sem a lei não se tornaria fenômeno do cotidiano.”359
357 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 37-38; 286. 358 STEIN, Ernildo. História & ideologia. 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 1981, p. 16; 19-30. 359 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 278; 284-285; 287.
106
A Nova Crítica do Direito (NCD) é viável a partir do paradigma fenomenológico
hermenêutico com destaque para a linguagem que nos antecede. O direito também é um
fenômeno lingüístico e possui uma especificidade relevante que é a de possuir um texto
normativo (com a devida separação texto – norma e validade – vigência) que deve
conformidade com um texto superior – Constituição – “[...] que é condição de possibilidade
hermenêutica de outro texto, é um fenômeno construído historicamente como produto de um
pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social. [...]” e é do sentido que se dá para
a Constituição (pré-compreensão) que dependerá o processo de interpretação dos textos do
ordenamento jurídico (processo de antecipação de sentido – co-pertença entre faticidade-
historidicidade do intérprete e Constituição-texto infraconstitucional). Ou seja, deve-se
entender a Constituição como fruto da tradição e “[...] detentora de uma força normativa,
dirigente, programática, e compromissária [...]”.360
É elementar que essa (nova) forma de compreender o mundo e o direito causa certas
resistências, sobretudo porque ela desafia a ilusória “certeza e segurança” do conhecimento do
período moderno361. Essa observação é também de Bauman, para quem “[...] a chegada de um
estranho tem o impacto de um terremoto... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa
a segurança da vida diária. [...]”362 A chegada do novo (hermenêutica filosófica) impacta,
especialmente pelo medo do desconhecido (proposta) e pela ausência de uma cultura de
reflexão sobre o conhecimento, presente por aqui.
3.3.2 Valorização do ser, linguagem e compreensão: pressupostos de uma resposta adequada
Heidgger e Gadamer, através da hermenêutica filosófica, trazem o sujeito para o
centro do processo. Ele é um “[...] ser-vivente, que compartilha uma experiência. Um ser
histórico, que se projeta no seu próprio acontecer. [...]”. A consciência histórica é abertura
para o processo hermenêutico. “[...] A pré-compreensão é que viabilizará o projeto da
compreensão, que por sua vez se constrói pela interpretação. Um movimento circular, de
360 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 209-209. 361 A “[...] ciência moderna seguiu o princípio da dúvida cartesiana de não aceitar por certo nada sobre o que exista alguma dúvida, junto com a concepção do método que corresponde a essa exigência. [...]” GADAMER, 2007, p. 361. 362 BAUMAN, 1999, p. 19.
107
constante aprimoramento.”363
A hermenêutica filosófica constitui-se numa verdadeira revolução para a
compreensão do mundo364 e do direito. Ela põe em “cheque” a maneira tradicional de
interpretar o direito – rompendo com valorizações excessivas do procedimento – para buscar
uma verdade autêntica. No sentir de Streck, a partir das contribuições de Heidgger e Gadamer,
a Hermenêutica jurídica transforma-se de modo a superar os paradigmas metafísicos
objetivista (aristotélico-tomista) e subjetivista (filosofia da consciência).365
Por outro lado, as construções epistemológicas, frutos da tradição autêntica, não são
dispensadas pela hermenêutica filosófica porquanto constituem tradição histórica que faz
parte da compreensão do intérprete enquanto ser-no-mundo.
As teorizações sobre o direito (e suas disputas teóricas), construídas ao longo da
história, formam um tecido conjuntural – saber jurídico – que não pode ser ignorado. Os
conteúdos levados ao futuro – como cultura jurídica (berço para novas definições) – podem
ser chamados de continuidades significativas.366 A Constituição é condição de possibilidade
porque ela é produto de um processo compreensivo. A interpretação surge a partir de um
fundamento sem fundo, ela se dá a partir do modo de ser-no-mundo. Ou seja, a Constituição
não pode ser considerada categoria fundante (não se funda um ente em outro), embora seja
strito sensu fundamento de validade do ordenamento jurídico. Ela faz parte de um modo da
existência. “A lei é uma parada; a própria Constituição o é, em um nível superior, enquanto
‘matriz de sentido’; a interpretação vinculante igualmente é produto de uma parada – só que
entificativa.” Ocorre que essa parada não é definitiva – como entende Kelsen a partir da
norma fundamental – “[...] é a historidicidade da tradição que sustenta a historidicidade dos
textos [...]”, inclusive os constitucionais. A Constituição, dessa forma, é um ‘como se’
enquanto existencial, “[...] é um ser (no seu ente) que se essência como fundante [...] Funda,
pois, sem ser fundamento!” Ela é espaço no qual se dá o sentido e faz parte do modo-de-ser-
no-mundo do intérprete.367
363 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. O princípio da proporcionalidade sob uma perspectiva hermenêutica e argumentativa. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 230-231. 364 Antes de ser uma forma de compreender e interpretar o direito, a hemenêutica filosófica, a partir da fenomenologia, é uma forma (ainda) diferente de ver o mundo como um todo e compreender-se nesse contexto. Daí porque, a hemeneutica como base teórica não nasce no (e para o) direito, mas sim é posteriormente “transportada” para o mundo jurídico. 365 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 366 SALDANHA, 2003, p. 269. 367 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 228-234.
108
A Constituição aparece para o jurista como compilação de conquistas históricas do
povo – principalmente na proteção dos direitos fundamentais – e contato com a tradição
histórica social. Também, a construção epistemológica jurídica que leva em consideração a
Constituição constitui pré-compreensão – condição de possibilidade – para uma adequada
compreensão totalizante do intérprete.
Isso representa um salto qualitativo para o direito, especialmente no aspecto
contribuição social – contatos com a realidade. É o que aponta Saldanha: o direito ganha
concreção (torna-se real – realiza-se) quando da incidência das regras sobre os casos –
processo pelo qual as regras tornam-se inteligíveis em um novo sentido.368
A hermenêutica filosófica possui caráter crítico na medida em que prova a existência
de uma verdade não mediada metodicamente (arte, história e linguagem). Ela corrige o
pensamento das ciências do espírito sobre si mesmas.369 A hermenêutica jurídica rejeita
qualquer tentativa de subsunção ou dedução370. Ela supera o problema dos métodos (porto
seguro do pensamento exegético-positivista) e insere-se no pensamento pós-metafísico.
Assim, “[...] epistemologia é substituída pela ontologia da compreensão [...]”, entendida não
como procedimento ou modo de conhecer, mas sim como modo de ser. 371
A leitura hermenêutica inverte o estudo da estrutura do sentido (discurso apofântico,
lógico) – como ele se dá: desse ou daquele modo – para o sentido da estrutura (em que
perguntamos algo sobre o mundo – filosofia: discurso sobre o mundo nas estruturas; e não no
mundo – ciência: objetos/estrutura no mundo). Os olhos da analítica e do discurso lógico, a
partir da visão do positivismo estruturalista, partem da idéia do lógico e de estrutura e não se
perguntam sobre o sentido da estrutura.372
O sentido da estrutura é o que se tem de fundamental para o compreender e para
produzir respostas – verdade – e não um discurso das estruturas do conhecimento dispostas ao
jurista, por mais elaborado que seja. A partir do entendimento sobre o compreender – como
ele se dá – é que será possível refletir sobre a autenticidade das pré-compreensões (só que
com efeitos para o futuro, porquanto na resposta para aquele caso compreendido já atuaram os
368 SALDANHA, 2003, p. 295. 369 STEIN, 2004, p. 82. 370 A partir da filosofia hermenêutica verifica-se que é impossível a subsunção e a dedução, porque o mais universal e vazio dos conceitos é o de ser e por isso mesmo dispensa definição – resiste a toda tentativa. É possível visualizar, compreender, escolher – atitudes do questionamento – modos de ser de determinado ente. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 199-200. 371 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 433. 372 STEIN, 2004, p. 31-33.
109
pré-juízos – junto com o intérprete – na produção da verdade).
Na hermenêutica clássica estava ausente uma visão de totalidade. A filosofia traz a
possibilidade de descrição do mundo, expresso na frase de Gadamer ‘Ser que pode ser
compreendido é linguagem’. Portanto, a idéia de totalidade. A hermenêutica amplia o
conceito de método – totalidade – caráter especulativo. Ela aponta três procedimentos: a)
história conceitual (conceitos de um campo científico); b) elemento epistemológico – contexto
da descoberta e da justificação; c) especulação – distinta das pretensões lógico-analíticas.373
A questão fundamental do direito é compreender que fundamentar não é um
problema da metodologia – procedimento de argumentação – mas sim de um modo de ser
porque hermenêutica é filosofia e não regras de procedimentos metodológicos em que
raciocinariam os juristas.374 “A interpretação substitui, aqui, uma análise lógica e semântica do
texto, justamente pelo fato de a interpretação pretender dar conta da diferença entre
particularidade e sistematicidade. [...]” Porém, essa singularidade não deve ficar isolada ou
separada da sistematicidade. Elas devem resultar em totalidade.375
É daí que advém o caráter inovador e revolucionário da hermenêutica filosófica,
porque o jurista percebe que as atividades que ele desenvolve no seu mundo epistemológico
são insuficientes para oferecerem respostas adequadas. Ele passa a rever o seu atuar e
compreende que os métodos que ele sempre aprendeu e vem aplicando não satisfazem uma
idéia de totalidade. Ao contrário, a sua preparação – conformação de suas pré-compreensões –
é determinante para o ato de interpretar/aplicar o direito.
A linguagem tem lugar de destaque na hermenêutica filosófica porque é a partir dela
que o homem chega ao mundo e relaciona-se com ele. Todos os objetos significam – fazem
sentido376 – porque há linguagem. Na afirmação de Stein, toda aproximação com o objeto
pressupõe mediação pela linguagem – todo saber se dá pela linguagem.377 No mesmo sentido
reafirma Saldanha: “[...] Tudo no mundo (no mundo humano) são significações, e portanto
todo pensar é hermenêutico: tudo depende de como interpretar. E daí símbolos, códigos,
signos, linguagens. [...]”.378 Por fim, as palavras de Gadamer: “[...] na linguagem é o próprio
373 STEIN, 2004, p. 102-105. 374 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 75. 375 STEIN, 2004, p. 97. 376 O sentido é o ponto fundamental da hemenêutica porque “A filosofia não trata de objetos, mas trata do modo como os objetos se dão [linguagem], trata das condições de possibilidade. [...]” Toda experiência é medida pela linguagem. Ibidem, p. 23. 377 Ibidem, p. 16. 378 SALDANHA, 2003, p. 220.
110
mundo que se apresenta. [...]” Ela abrange todo o ser em si e precede a tudo quanto pode ser
reconhecido e interpelado como ente. A relação entre mundo e linguagem não significa “[...]
que o mundo se torne objeto da linguagem. Antes, aquilo que é objeto do conhecimento e do
enunciado já se encontra sempre contido no horizonte global da linguagem. [...]” Assim, “[...]
o caráter de linguagem da experiência humana de mundo como tal não tem em mente a
objetivação do mundo.”379 Diante de tais pressupostos, a importância da linguagem é evidente,
principalmente porque através dela as pré-compreensões são possíveis e as compreensões do
sujeito são expressas.
O homem acessa os objetos de modo indireto através do significado. Chegamos a
algo, mas enquanto algo. Conhecemos o objeto enquanto significado (cadeira para sentar) e
não o conhecemos em sua plenitude do ponto de vista lógico. O objeto significa algo. O
acesso é somente via significado. E também é assim com os enunciados e com o mundo. Dos
enunciados não interessa o modo gramatical, fonológico ou semântico, mas sim o que
representa (significado) – linguagem enquanto linguagem: tarefa da filosofia (como
apofântico380 – do discurso). O mundo e a compreensão têm a estrutura de algo enquanto algo
(filosofia é sempre hermenêutica), pois através da linguagem tem-se um elemento lógico-
formal, que manifesta as coisas na linguagem e um prático, que é nossa experiência de mundo
anterior à linguagem – só expresso via linguagem (como e logos hermenêutico).381
A linguagem representa o objeto – significado sob o aspecto descritivo – mas não o
apresenta na sua totalidade porque há também o sentido do objeto no mundo prático – real –
do sujeito.
Também, a linguagem não abarca tudo, algo sempre escapa – sempre sobra algo que
eu não posso falar. Assim, a partir da fenomenologia hermenêutica “[...] somente posso falar
sobre aquilo que consigo compreender.”382 Na afirmação de Gadamer “[...] O ser que pode ser
compreendido é linguagem”.383
Assim, a linguagem possibilita o acesso ao mundo e a compreensão do ser depende
de uma conformação histórica – pré-compreensões – que o sujeito não domina, o antecede. A
379 GADAMER, 2007, p. 581. 380 As teorias da argumentação formam apenas standards de recionalidade analítica – restringem-se ao como apofântico, meramente manifestativo-argumentativo-lógico. Elas pensam que trabalham no primeiro nível de racionalidade – compreensão – quando estão no segundo nível que é lógico-argumentativo. O como de primeiro grau é hermenêutico – standard de racionalidade. STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 74. 381 STEIN, 2004, p. 20-21. 382 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 80. 383 GADAMER, 2007, p. 612. (grifo do autor).
111
hermenêutica filosófica fundamenta a produção do sentido na compreensão de mundo do
sujeito, que se apresenta pela linguagem e é produzida num acontecer384 não manipulável.
Construímos nosso mundo a partir de significações e sentidos pré-selecionados –
mundo pré-fabricado. O mundo ao qual ingressamos possui grande quantidade de aspectos
não conscientemente notados e que não precisam de qualquer esforço ativo “[...] para estarem
invisivelmente, mas tangivelmente, presentes em tudo o que fazemos – dotando desse modo
os nossos atos, e as coisas sobre as quais agimos, de uma solidez de ‘realidade’.”385 Heidgger
fala em hermenêutica da faticidade porque, “[...] somos um modo de ser no mundo e não
apenas descreveremos coisas no mundo.” O modo como chegamos ao sentido é antecipado
por uma estrutura trazida pelo Dasein386 (ser-aí, homem) e a compreensão desse sentido
permite o discurso e a linguagem. “[...] Não há compreensão do homem na linguagem sem
compreensão do ser ou compreensão da totalidade.” Ele descreve o ser humano como ser-no-
mundo, acrescentando um aspecto prático que é o compreender da totalidade formando-se a
estrutura da circularidade na medida em que já sempre somos mundo e projetamos mundo.
Assim, podemos descrever a estrutura do sentido, mas também perguntamos pelo sentido da
estrutura.387 “[...] Na expressão acontecer da verdade está o elemento da faticidade [...]”
presente no segundo Heidgger porque o processo de compreensão do ser é limitado por uma
história do próprio ser- acontecer da verdade. Assim, “[...] Nós nunca somos um puro projeto,
porque já sempre somos projetados. Isso é faticidade que já está determinada, por condições
anteriores à compreensão do ser, ao projeto da compreensão. [...]”388
O sentido só é possível a partir da compreensão do ser. Ele “[...] se articula
simbolicamente. [...] A compreensão do ser pertence ao modo de ser deste ente que
denominados Dasein. [...]”. “[...] O Dasein já é sempre e constitutivamente relação com o
mundo antes de toda distinção artificial entre sujeito e objeto. O conhecimento [...] [é] a
elaboração da constitutiva e originária relação com o mundo que o constitui. [...]”. A idéia do
384 “Compreender se apresenta não tanto como um agir do intérprete, mas muito mais como um acontecer no qual estão inseridos o intérprete e o objeto da interpretação. [...]”.STEIN, 2004, p. 82. 385 SCHÜTZ apud BAUMAN, 1999, p. 17. 386 “[...] o homem será visto como Dasein, em que o Da indica o caráter intuitivo, sensível e temporal (Zeit), e o Sein indica o caráter o caráter inteligível, o ser (Sein). [...] O Dasein é ser-no-mundo, esse é o como do homem, que deve resolver a questão da temporalidade como uma das características fundamentais do ser-no-mundo, enquanto passado-presente-futuro.” STEIN, 1997, p. 106-107. “[...] A compreensão que o Dasein tem de si mesmo e que nasce da compreensão do ser, significa dizer que o mensageiro já vem com a mensagem. No conto está o contador. [...]”. A compreensão faz parte do modo de ser-no-mundo e está presente na própria estrutura do ser humano (Dasein) – toda interpretação se funda na compreensão. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 198; 201. 387 STEIN, 2004, p. 66-67. 388 Ibidem, p. 75-76.
112
conhecimento como articulação de uma pré-compreensão originária Heidgger chama de
círculo hermenêutico.389 A circularidade hermenêutica pressupõe que “[...] Já sempre
compreendemos enquanto compreendemos o todo. O contrário também vale: enquanto
compreendemos o todo, já sempre nos compreendemos.” Por essa razão não há como separar
sujeito e objeto porque “[...] no fato histórico, já sempre estamos de certo modo, mergulhados,
não podemos ter uma distância total, como na observação de um fenômeno físico. [...]”390 Há
um ganho sob o aspecto gnosiológico (relação direito e realidade) proporcionado pelo círculo
ou espiral hermenêutico: “[...] o intérprete-aplicador terá que efectuar tantas idas e vindas
entre o pré-entendimento e o entendimento em si quantas as necessárias para a sua
integração.”391
A idéia de conhecimento como articulação de uma pré-compreensão é chamada de
círculo hermenêutico. Compreensão é o ser. O Dasein é pré-ontológico, pré-domina o
processo de compreensão e assim a compreensão é existencial. “[...] Dasein significa o local
onde o ser ocorre, a abertura na qual a presença acontece [...] nem a temporalidade (ausência,
nada), nem o ser (presença, automanifestação) são um ente. [...]” A compreensão é parte do
ser-no-mundo – presente na estrutura do ser humano. Ela antecipa qualquer explicação lógico-
semântica – não no sentido temporal, cronológico – e é explicada através da linguagem – que
é acesso ao mundo, totalidade, abertura, enfim, condição de possibilidade.392
O compreender é uma qualidade do ser humano que provém do ser humano e
apresenta-se de dois modos: o compreender de uma proposição e o compreender anterior
(espécie de posse prévia do sentido). Assim, “[...] compreender significa ao mesmo tempo
uma qualidade que tenho para comunicar, dizendo algo compreensível e compreendendo
aquilo que é dito e um modo de existir como o existencial compreensão.” A proposta
hermenêutica não pretende criar uma nova linguagem, mas um método que trata de dois
focos: velamento e desvelamento, o que não significa uma ruptura com a lógica (que continua
a tratar da estrutura da proposição), mas pretende qualificá-la. Heidgger chama o
compreender de uma proposição de logos apofântico (que se manifesta na linguagem) e o
compreender existencial (enquanto somos) de logos hermenêutico393. Assim, pode-se falar de
389 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 199-201. 390 STEIN, 2004, p. 45. 391 CORDEIRO, 2002, p. LXI-LXII. 392 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 192-196. 393 No logos hermenêutico – sentido da compreensão que antecede as proposições (logos apofântico) – não se separa sujeito e objeto porque há uma união que possibilita a compreensão enquanto elemento hermenêutico. STEIN, 2004, p. 31.
113
duas verdades, uma como propriedade das proposições e outra como fundamento da verdade,
que se pode chamar de sentido que fundamenta as proposições (antecede ao discurso lógico),
que é condição de possibilidade da primeira.394
A verdade é uma manifestação do ser pelo compreender (modo de ser) e não uma
questão de conhecer – utilização do método – (a epistemologia é substituída pela ontologia).
A “[...] vida é história, onde o próprio ser se desvela no horizonte da temporalidade. O
próprio ser é tempo. [...] Hermenêutica é, assim, existência, sendo a verdade a verdade do
enunciado. Verdade será, assim, des-velamento, desocultação [...]” que possibilita a revelação
do ente – verdade ontológica (“[...] Desvelamento do ser, é, sempre, verdade do ser do ente
[...]”).395
Enquanto as teorias da argumentação afirmam que o fundamento para a
interpretação está no discurso396 – método, a hermenêutica filosófica afirma que a
compreensão é o fundamento da interpretação. Assim, a hermenêutica filosófica desvela um
nível anterior de racionalidade não percebido pelas teorias da argumentação. Enquanto a
hermenêutica de caris filosófica trabalhar no nível 1 (algo como algo), as teorias da
argumentação trabalham no nível 2 – discurso (elemento lógico-formal).
Dessa forma, a compreensão do intérprete é determinante na produção do sentido.
Essa compreensão não é algo que se “fabrica” ou se constrói à discrição do ser, mas é algo
que se apresenta como compreensão de totalidade.
Em Heidgger o ser humano tem as três estruturas do tempo: passado, presente e
futuro. Ele não dá conta do passado e do futuro. Há uma limitação do compreender trazida
pela história – sempre chegamos tarde. Somente depois do acontecido, do fato determinado
pela história e pela cultura é que compreendemos. Somos um projeto já projetado, um jogo
que já sempre foi jogado. Gadamer, a partir dessas idéias (presentes em Ser e Tempo e
levadas para Contribuições para a filosofia) “[...] faz uma passagem da situação hermenêutica
para o acontecer da verdade.[ 397]”398
A história é determinante para o compreender porque ela não pode ser manipulada 394 Ibidem, p. 28-30. 395 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 207. 396 O equívoco das teorias da interpretação é praticar a subsunção a partir das conceitualizações (significantes-primordiais-fundantes). Estabelecem regras para interpretação e metacritérios para solução de conflitos entre princípios. STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 432. 397 Gadamer afirma que “[...] Na medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verdade e quando, de certo modo, queremos saber no que devemos crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde.” GADAMER, 2007, p. 631. 398 STEIN, 2004, p. 69.
114
pelo intérprete mas sim se manifesta no ser e é exteriorizada pela linguagem.
A história está ligada a compreensão de fatos pretéritos e de fatos do presente. “A
intenção da investigação hermenêutica é aproveitar-se do círculo hermenêutico [...] para
permitir que o intérprete seja um mediador entre o texto e a totalidade nele existente. [...]”.399
A hermenêutica da faticidade quer dizer que “[...] a interpretação do mundo é a
interpretação da condição fática do ser no mundo. Mas o elemento da faticidade também se
refere à faticidade enquanto ela é a soma de todos os elementos históricos, elementos culturais
nas quais estamos enraizados na história humana. [...]” A interpretação se apresenta onde
ocorrem os elementos da faticidade.400
A atitude hermenêutica está ligada ao processo histórico, porque o intérprete, a partir
da pré-compreensão das coisas e fatos do passado, consegue aplicação ao presente ou futuro.
“A hermenêutica cria a possibilidade de entendimento das mensagens históricas. [...]” Permite
a mediação entre a tradição histórica e o que está a pesquisar. A consciência histórica e sua
ligação com a hermenêutica permite “[...] que o novo venha à luz por intermédio do antigo –
passado-presente-futuro –, o que possibilita que a linguagem seja o fundamento de tudo.
[...]”401 O entendimento das coisas depende da compreensão de padrões históricos, aplicando-
se a arte e as formas de organização em geral e do pensamento. Toda ordem (social, política,
jurídica) acontece como experiência histórica e o seu conhecimento “[...] implica uma
referência às exemplaridades nelas contidas: categorias, princípios, valores, formas
normativas, tudo o que vai além do singular puramente empírico, sem todavia ser puramente
abstrato.”402
Assim, a história representa a ligação para o desvelar do novo. É por ela que o
intérprete compreende e produz o sentido.
Dessa forma, é a nossa condição-de-ser-no-mundo que determina o sentido do texto
e não o método que se utiliza, pois “[...] para interpretar, necessitamos compreender. Para
compreender, temos que ter uma pré-compreensão [...], constituída de estrutura prévia403 do
399 SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Hermenêutica filosófica: história e hermenêutica na obra de Hans-Georg Gadamer. In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes (org.). Hermenêutica e argumentação: em busca da realização do direito. Ijuí: Unijuí. Caxias do Sul: Educs, 2003, p. 17; 32-33. 400 STEIN, 2004, p. 74-75. 401 SPAREMBERGER, 2003, p. 34-35; 37. 402 SALDANHA, 2003, p. 223. (grifo do autor). 403 Para Gadamer, “[...] A compreensão só alcança suas verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. Por isso, faz sentido que o intérprete não se dirija diretamente aos textos a partir da opinião prévia que lhe é própria, mas examine expressamente essas opiniões quanto à legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez.” GADAMER, 2007, p. 356.
115
sentido [...]”, que se funda, essencialmente, em uma posição prévia, uma visão prévia e
concepção prévia.404 A estrutura do nosso modo de ser no mundo é a interpretação405. Assim, a
norma (síntese hermenêutica) é produto de uma compreensão – que é existencial – a partir da
faticidade e historicidade do intérprete. A partir da fusão de horizontes é que se dá o ato de
interpretar.406
Gadamer explica que a “[...] interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente
complementar à compreensão. Antes, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a
interpretação é a forma explícita da compreensão [...]” que está relacionada a posição central
que ocupa a linguagem na filosofia.407
O conceito de interpretação está contido no conceito de hermenêutica. Ela visa a
produção de sentido a partir de signos, possíveis através da compreensão do sujeito. Não basta
o acoplamento entre texto e caso – subsunção formal. É preciso interpretar o texto – dar
sentido a ele – a partir da compreensão (possibilidade fenomenológica).
Gadamer foi quem elaborou uma crítica consistente à concepção tradicional de
interpretação realizada em partes – compreender – interpretar – aplicar. A não cisão entre os
“atos interpretativos tradicionais” – que se resumem em aplicatio – leva o interprete a
impossibilidade de chegar a algo que o texto possui em-si-mesmo. Segundo ele, não é possível
se extrair sentido, mas somente atribuir sentido.408 Assim, direito é concretude – faz parte do
próprio caso.
Deve-se ter cuidado com a expressão aplicação do direito porque ela pode sugerir
que o direito é uma realidade distinta de sua aplicação – algo que se aplica ou não. Ela deve
ser entendida, assim como a interpretação, como um momento da realidade do direito.409 Para
além da afirmação de que o direito é concretude – cada caso é um caso – é preciso entender, o
que não é evidente, que “[...] o processo interpretativo é applicatio, entendida no sentido da
busca da coisa mesma (Sache selbst) [...]” (diferença ontológica). O direito integra o próprio
caso e o caso o direito – “[...] impossível cindir a compreensão da aplicação. [...]”.410 Afirmar
404 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 197-198. 405 Heidgger atribui à pré-sença atributo privilegiado do ente que se compreende pela sua abertura prévia a possibilidades. O mundo serve de contexto e referência para compreensão. O “[...] sentido consiste na ‘perspectiva em função da qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia’. A interpretação, assim, corresponderá à forma como a compreensão se apropria do que se compreende, a partir da totalidade conjuntural [...]”. CAMARGO, 2005, p. 218-220. 406 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 407 GADAMER, 2007, p. 406. 408 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 409 SALDANHA, 2003, p. 270. 410 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 432.
116
que há separação entre interpretação e aplicação do direito corresponde ao equívoco de
entender a interpretação como mero ato de subsunção.411
O processo interpretativo não se dá em partes, pois a interpretação é sempre aplicar.
Interpretar não é um ato reprodutivo onde o sentido é desacoplado do texto, mas é um ato de
produzir sentido. Segmentar o processo interpretativo em etapas é crer na metodologia –
paradigma epistemológico da filosofia da consciência. É um equívoco – próprio da filosofia
da consciência – pensar que interpretar é extrair da norma tudo que dela contém para busca de
seu verdadeiro sentido. O sentido já vem antecipado pela pré-compreensão porque
hermenêutica é condição de ser no mundo e existência.412
A interpretação substitui a análise lógica e semântica do texto, pois pretende dar
conta da diferença entre particularidade e sistematicidade. A questão principal é “[...]
Perceber que o dar conta da singularidade incorpora a singularidade na própria interpretação,
mas de tal maneira que a singularidade não seja isolada e separada da sistematicidade e que
elas resultem num tipo de totalidade.”413 “A questão do imbricamento entre o sujeito e objeto
no confronto com um texto a ser interpretado constitui exatamente o imbricamento dessa
singularidade com a sistematicidade e de uma singularidade que não é só do texto, mas o é do
leitor.”414 “[...] A interpretação, pois, consubstancia uma operação de mediação que consiste
em transformar uma expressão em uma outra, visando a tornar mais compreensível o objeto
ao qual a linguagem se aplica. [...] Da interpretação do texto surge a norma [...]”.415
A interpretação implica compreensão de um texto original. Para compreendermos
algo é necessário que se tenha um conhecimento anterior facilitado pelo texto. Daí advém a
importância da consciência histórica.416 No direito, a interpretação “[...] implica um
conhecimento pré-compreensivo da ordem dentro da qual ocorre o ato, ou vigora a norma. A
referência à ordem é organicamente necessária para a visão adequada dos contornos do objeto
que se interpreta. [...]”417
A interpretação, a partir da hermenêutica filosófica, nunca será reprodutiva porque o
sentido da(s) palavra(s) não se encontra previamente dado pela lei. Toda interpretação é
411 GRAU, Eros Roberto. Eqüidade, razoabilidade, proporcionalidade e princípio da moralidade. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 21. 412 STRECK, 2003, p. 68-69; 73. 413 STEIN, 2004, p. 97. 414 Ibidem, p. 97. 415 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 207. 416 SPAREMBERGER, 2003, p. 18. 417 SALDANHA, 2003, p. 266.
117
produção, ou seja, a partir da faticidade do intérprete, que é ser-no-mundo, o sentido exurgirá.
Esse momento – tempo – é único e considera a totalidade.
Textos filosóficos e das ciências humanas não têm caráter museológico. Para sua
validade eles precisam ser lidos e interpretados em diversas épocas. Essa é uma marca da
visão hermenêutica. O sentido nunca toma estrutura definitiva e por isso existe um processo
que comanda o sentido. Suprimir o elemento histórico e analisar o sentido somente em
estruturas elimina o sujeito. Assim, “[...] A historicidade estaria morta e teríamos no fim um
imenso museu de estruturas.”418
As palavras são plurívocas e não unívocas. O sentido origina “[...] de um processo
de compreensão, em que o sujeito, a partir de uma situação hermenêutica, faz uma fusão de
horizontes a partir de sua historicidade. Não há interpretação sem relação social.”419
Para Streck o processo hermenêutico deve ser um interpretar constante, ou seja, o
sentido deve ser atribuído a cada momento. Essa é a postura adequada de uma nova
hermenêutica para vivificar o texto constitucional com base no Estado Democrático de
Direito. Essa postura é de produzir o sentido e não simplesmente reproduzir.420 Hesse também
considera que as mudanças fáticas devem mudar o sentido normativo e afirma que “[...] A
interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido
(Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada
situação”.421
No direito a linguagem (texto) é utilizada para regular comportamentos sociais a
partir de uma pretensa definição pré-estabelecida dirigida ao homem comum. A utilização de
palavras para descrever comportamentos exigidos ou proibidos funciona como signos
lingüísticos a serem decodificados pelo intérprete a partir da compreensão – ser no mundo –
que é um ato de produzir e nunca reproduzir.
Os sentidos são temporais, o que impossibilita sua reprodução. Eles são atribuíveis a
partir da faticidade do intérprete – interpretar é existência, concretude. Da compreensão (que
não é conhecer, mas é modo de ser) surge a interpretação que não depende de método. A
418 STEIN, 2004, p. 95-96. 419 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 19. 420 STRECK, 1998, p. 64. 421 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 22-23.
118
hermenêutica da faticidade (fenomenologia hermenêutica) possibilita um salto da
epistemologia da interpretação para a ontologia da compreensão.422
A clareza literal do texto legal é uma ilusão, pois não se pode conceber, como
defendem os metafísicos (nas suas variadas versões), que haja fixação de sentido a priori. É
lingüisticamente impossível estabelecer um comando dispensando-se sua decodificação a
partir da compreensão dada pelo ser e, por essa razão, todo texto demanda interpretação –
produção de sentido.
O texto apresenta uma dimensão gramatical que não pode ser ignorada423, porém isso
não significa dizer que a interpretação do direito está adstrita à literalidade. Interpretar é
produzir sentido a partir de um sentido básico definido pelo legislador em certo momento
histórico, que se torna atual na medida em que há confrontação do problema (caso concreto).
Não é possível a crença da completude a partir da descrição legal, ainda que o legislador se
valha de expressões “abertas”. Todo texto precisa ser interpretado de acordo com o momento
vivido.
A jurisprudência (com maior gravidade sob a forma de súmulas vinculantes) tem
exercido um papel na contramão do produzir. Elas têm a pretensão de fixar sentido a priori –
antecipado – porque querem encontrar respostas idênticas para casos pretensamente
semelhantes.
Nesse sentido Streck denuncia que no plano hermenêutico a jurisprudência tem
contribuído para a “[...] petrificação dos sentidos jurídicos, a partir da criação de significantes-
fundantes, que impedem, inexoravelmente, o aparecer da singularidade dos casos
particulares.” Elas retiram a autonomia dos juízes e isso é um preço alto demais para se pagar
em nome do desafogo dos processos.424
Esse problema pode ser solucionado pela rejeição das jurisprudências – súmulas
vinculantes, na medida em que elas também são signos lingüísticos e a determinação da
semelhança com os casos fica a cargo do interprete. Os pré-juízos autênticos do intérprete
farão toda a diferença entre aplicar ou rejeitar a jurisprudência como também faz na aplicação
422 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 66-67. 423 Segundo Gadamer, “Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar para ‘as coisas em si mesmas’ (que para os filólogos são textos com sentido, que tratam, por sua vez, de coisas). [...] [O] que importa é manter a vista atenta à coisa através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das idéias que lhe ocorrem. [...]” GADAMER, 2007, p. 355-356. 424 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 851-853.
119
do direito. Ou seja, o problema não está na existência da jurisprudência, mas sim na forma
como ela é utilizada pelos juristas para solução dos casos concretos.
Dessa forma, a jurisprudência enquanto condição de possibilidade para interpretação
é positiva na medida em que amplia a visão de totalidade do intérprete, porém, é negativa
quando utilizada a partir do pensamento metafísico.
A hermenêutica jurídica esclarece que há uma diferença ontológica entre ser e ente,
superadora das concepções da hermenêutica clássica sobre texto e norma e vigência e
validade. Essa diferença tem o seguinte fundamento: “[...] o ser é sempre o ser de um ente e o
ente só é no seu ser. [...]” É o ser que existe para dar sentido aos entes. Dessa forma é possível
fugir às armadilhas de um positivismo arcaico que convive com a discricionariedade no ato
interpretativo (equiparação vigência e validade e cisão texto e norma).425
O decisionismo e a discricionariedade são afastados porque há um parâmetro legal a
ser observado e a compreensão do intérprete se dá a partir de valores que antecedem qualquer
discurso. Nesse sentido Gadamer ensina que: “[...] quem quer compreender um texto deve
estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. [...]”426 A lei427 verifica-se como um
critério de controle das arbitrariedades imprevisíveis, onde a sentença surge da ponderação
justa do conjunto. Daí pode-se falar em segurança jurídica.428
Assim, a partir da hermenêutica filosófica o decisionismo e as arbitrariedades são
eliminados, pois eu preciso de textos legitimamente construídos para produzir normas. A
segurança jurídica almejada será proporcionada porque na compreensão hermenêutica o texto
é levado em consideração a partir da visão de totalidade. Esse texto é também e
principalmente o Constitucional.
O Direito Constitucional escrito constitui-se numa limitação ao interprete, pois se
ignorar a Constituição ele não mais interpreta, mas rompe ou modifica a Constituição.429
Assim, pela compreensão hermenêutica, o intérprete introduz os valores ditados pelo Estado
Democrático de Direito – direitos fundamentais – no sistema normativo infraconstitucional. A
noção principiológica – valores fundamentais – traz uma nova realidade para o intérprete em
que os princípios – constitucionais e infraconstitucionais – possuem uma carga de valores
425 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 432. 426 GADAMER, 2007, p. 358. 427 A lei é sempre deficiente, porque frente ao ordenamento jurídico a realidade humana também é deficiente e não permite uma aplicação simples das leis. GADAMER, 1998, p. 474. 428 Ibidem, p. 489-490. 429 HESSE, 1998, p. 69-70.
120
dirigida ao bem comum que passam a ditar o sentido produzido a partir de regras.
Interpretação conforme a Constituição é mais do que um princípio porque é um
princípio imanente a Constituição – todas as normas devem estar de acordo com a
Constituição. Se os Juízes negarem aplicação a esse princípio imanente estão negando
aplicabilidade a própria Constituição.430
A oxigenação constitucional é necessária para qualquer norma jurídica a fim de
aferir-se a Constitucionalidade material e formal. Isso pressupõe compreensão Constituição.431
A eficácia da Constituição Jurídica depende da realidade histórica. Ela possui elementos
normativos que ordena e conforma a realidade política e social. Essa força normativa depende
primeiramente da vontade de Constituição.432 Por sua vez, a vontade de Constituição (práxis
da Constituição) depende da consciência dos responsáveis pela ordem constitucional, não só a
vontade de poder.433
Nesse sentir, a implementação e valorização da Constituição e de seus preceitos
fundamentais dependem muito mais de uma atitude dos profissionais jurídicos do que
propriamente de uma teoria constitucional, ou seja, a Constituição é a reunião de valores que
clamam por efetivação a depender da percepção que os atores têm sobre a sua força
vinculante.
No Brasil, em face da baixa constitucionalidade e da inefetividade da Constituição
(que também é fruto da ausência histórica de um controle concentrado) é necessário pensar o
sentido da Constituição a partir da Teoria Geral do Estado, adotando-se uma postura
substancialista – destaque no Estado Democrático de Direito – em que a justiça Constitucional
deve ser “[...] intervencionista, no sentido de – no limite, isto é, na omissão do Poder
Executivo e do Poder Legislativo, e para evitar o solapamento da materialidade da
Constituição – concretizar os direitos fundamentais-sociais [...]”.434
Faz-se necessário superar o paradigma normativista de um direito liberal-
individualista para se ter claro que o texto constitucional é condição de possibilidade para
implantação das promessas da modernidade. Ele deve ser visto com substancialidade.435 No
Brasil essas promessas não aconteceram. O que houve foi um simulacro com negligência
430 HESSE, 1998, p. 61-75 apud STRECK, 1998, p. 62. 431 ROSA, 2006. p. 93. 432 HESSE, 1991, p. 24. 433 Ibidem, p. 19. 434 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 835-837; 843. 435 Ibidem, p. 844.
121
social e modernidade tardia e arcaica, onde os incluídos nunca ‘estiveram tão incluídos e os
excluídos tão excluídos’. A república de fato não aconteceu por aqui, “[...] ex-escravos
continuam pobres, pobres não têm direitos, e são demais. [...]”436
Os responsáveis pela concretização Constitucional no Brasil, por estarem filiados a
um pensamento retrógrado pautado na crença da completude do direito e em falsas premissas
de segurança jurídica, deixam a desejar e o Estado Democrático de Direito brasileiro repete
tão somente as promessas liberais e sociais dos Estados anteriores.
Esse senso comum teórico dos juristas é uma manifestação inautêntica do direito
porque provoca o encobrimento do ser do Direito (véu do ser autêntico do direito) e aflora a
ausência de função social. Assim, “[...] olhamos o novo com os olhos do velho, com a
agravante de que o novo (ainda) não foi tornado visível. [...]”.437
É nessa tarefa de concretização do Estado Democrático de Direito que a
hermenêutica filosófica se coloca como condição de possibilidade. A partir dela concretiza-se
a realização do bem comum, com respeito aos valores democráticos e individualidade dos
casos.
A título de conclusão do capítulo, pode-se afirmar que o pensamento jurídico sobre a
aplicação do direito (e da Constituição) apresenta-se sob concepções positivistas,
neopositivistas (positivismo normativista), pós-positivistas, hermenêuticas e sistêmicas. No
primeiro caso, o direito constituiu-se (e ainda permanece – tradição não autêntica) em dever
de legalidade absoluto. O positivismo, em sua primeira versão, reproduziu a idéia do governo
das leis com a imperatividade necessária para frear o poder absolutista e provocou às
confusões entre lei e direito e completude do texto com a realidade dos casos. O
neopositivismo ou positivismo normativista, na tentativa de solucionar esses impasses, propôs
um sistema de regras e princípios, onde esse último funcionaria como filtro na elaboração das
regras e controle para a entrada no ordenamento jurídico. O pós-positivismo, aproveitando-se
das experiências anteriores aprimora a teoria dos princípios, estabelecendo métodos e
procedimentos, na tentativa de concretizar esses valores na aplicação do direito. A matriz
sistêmica procura compreender o direito a partir da sociologia – realidade social
complexificada pela globalização. Ela verifica-se atual porque leva em consideração a
436 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 25-26; 31. 437 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 217-219.
122
existência de outras fontes de poder (e não só o direito). Por sua vez, a hermenêutica
filosófica produz uma ruptura com esses modelos por revelar outro nível de racionalidade que
antecede qualquer pretensão metafísica relacionada ao emprego de métodos ou procedimentos
na busca de respostas.
A viragem ontológica é marca da matriz hermenêutica filosófica porque desafia a
forma moderna de produção da verdade. Enquanto as teorias epistemológicas buscam
soluções a partir de métodos, a hermenêutica filosófica explica como o ser humano
compreende e interpreta.
A valorização do ser, a linguagem enquanto condição de possibilidade e a
compreensão são fatores que impulsionam o caráter transformador da hermenêutica filosófica,
em oposição à hermenêutica tradicional.
Como síntese, a viragem lingüística rompe com o paradigma metafísico e da
filosofia da consciência. A linguagem é condição de possibilidade e não uma coisa que se
interpõe entre um sujeito e um objeto. O processo interpretativo, que é um acontecer ocorrido
a partir da fusão de horizontes, torna-se produtivo e não reprodutivo (concepção clássica).438
“É mediante a hermenêutica, ou do círculo hermenêutico rico em conteúdo histórico, que se
permite uma conjugação entre o intérprete e seu texto para, a partir daí, transformá-lo numa
unidade de compreensão. [...]”439 Por isso, a hermenêutica jurídica está relacionada à crise do
conhecimento do início do séc. XX. As tentativas de se estabelecer regras e procedimentos
para interpretação a partir da objetividade ou da subjetividade “[...] não resistiram às teses da
viragem lingüístico-ontológica (Heidgger-Gadamer), superadoras do esquema sujeito-objeto,
compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da
desobjetificação [...]”, conseguida a partir do círculo hermenêutico e pela diferença
ontológica.440 Ela aceita a circularidade entre nós e o compreender que possibilita a
compreensão do ser.441
Na área jurídica os ganhos são significativos porque a noção de totalidade e a
compreensão hermenêutica possibilitam o cumprimento, pelos juristas, do seu papel na
concretização dos valores do Estado Democrático de Direito.
438 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 197. 439 SPAREMBERGER, 2003, p. 19. 440 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 441 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 34.
123
Os direitos fundamentais historicamente sonegados nos modelos de Estado
anteriores ganham destaque na interpretação dos textos e assim a vontade constituinte é
resgatada com voz perante a sociedade e o direito.
CAPÍTULO IV
4 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O COMPREENDER DAS JUSTIFICANTES E
EXCULPANTES PENAIS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL JUSTA E
DEMOCRÁTICA
As regras jurídicas impõem aos cidadãos sujeitos à jurisdição do Estado que as
produziu determinado comportamento através da criação de comandos normativos legais que
ditam padrões de conduta social442. Apesar de a regra jurídica impor o comando normativo de
comportamento, a vontade humana determina a forma do agir. Assim, a liberdade de escolha
– limitada pelas circunstâncias – está com o agente, manifesta pela vontade através de um
comportamento positivo ou negativo. Quando o sujeito escolhe não obedecer à regra, ele está
exercendo um ato de vontade e liberdade, ainda que ameaçado por sanção.
É condição para existência do delito – concepção analítica tripartida – que o ato de
vontade, exteriorizado pela conduta, possa ser reprovado segundo padrões normativos. Nesse
sentido Zaffaroni e Pierangelli lecionam que “[...] o homem é um ente capaz de
autodeterminar-se [...]” e daí decorre que não pode haver delito se não operar a condição de
reprovabilidade da conduta.443
Situação diversa são os atos involuntários444 porque fogem à liberalidade do agente.
442 O sistema normativo penal brasileiro está acometido de uma grave inflação legislativa provocada pela edição desmedida e oportunista de normatizações. O poder estatal utiliza-se do sistema penal para coibir comportamentos que outros ramos do direito não conseguiram solução. Há um desvirtuamento das finalidades do direito penal e inobservância do princípio da intervenção mínima (atuação fragmentária e subsidiária). Essa desmedida edição legislativa afeta o cidadão, gerando insegurança jurídica, a ponto de não se saber o que é permitido ou proibido. Da mesma forma, para o magistrado, que possui a incumbência do julgamento, a responsabilidade aumenta quando se pretende uma prestação jurisdicional justa. 443 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 6. edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 576. 444 “[...] ninguém censura os que são feios por natureza, mas censuramos os que o são por falta de exercício e de cuidado. [...]”. ARISTÓTELES, 2006, p. 67.
125
Assim, eles não devem ser repreendidos pelo direito. No dizer de Aristóteles “[...] a virtude se
relaciona com paixões e ações, e apenas as paixões e ações voluntárias são louvadas ou
censuradas, ao passo que as involuntárias recebem perdão e às vezes compaixão [...]”.445
Dessa forma, os atos involuntários por receberem perdão e estarem sujeitos à compaixão no
plano valorativo social estão de acordo com o que se espera da conduta, não sendo possível a
norma jurídica impor repressão. Essas condutas, praticadas por uma vontade viciada446,
normalmente estão contemplados nos ordenamentos jurídicos penais como excludentes do
crime ou são consideradas como situações que rompem o nexo causal entre conduta e
resultado.
A imposição do comportamento, através da criação de regras, tem ligação estreita
com o princípio da legalidade que no direito penal soa com maior intensidade do que nos
demais ramos do direito. Porém, para se obedecer ao direito – e também ao princípio da
legalidade – os dispositivos legais precisam ser interpretados a partir da hermenêutica
filosófica. Então, há algo dito no texto e algo que precisa ser compreendido pelo intérprete a
partir da faticidade-historidicidade-pré-compreensões, enfim, da compreensão.
Nas situações do cotidiano moderno o determinismo – ato voluntário – nem sempre
está presente, o que demanda do jurista e do ordenamento jurídico uma análise cuidadosa dos
fatos e do direito para oferecer uma resposta penal adequada.
Não (re)existe mais a pretensão de completude dos ordenamentos jurídicos
fundamentados no pensamento positivista. As respostas estritamente legalistas verificam-se
insuficientes para os acontecimentos da vida moderna. Nesse diapasão, a demanda valorativa
precisou ser inserida no sistema de regras jurídicas, agora entendidos a partir dos princípios,
considerados os valores morais sociais, para interpretação/aplicação do direito de forma justa.
Uma reflexão hermenêutica é fundamental para resolução do problema da “supralegalidade”
em exculpantes e justificantes no direito penal brasileiro.
O juízo deve ser ampliativo (possibilidades) para questões que se colocam no caso
concreto e na totalidade (visão do todo), tais como condições sociais, circunstâncias
445 ARISTÓTELES, 2006, p. 56. 446 Mais polêmica é a responsabilidade penal a título de culpa, pois nesse caso o que se impõe ao sujeito é um dever de cuidado prescrito no ordenamento jurídico. De um lado, as sociedades modernas contêm informações que circulam em velocidade recorde e os relacionamentos sociais são intensificados, agussando situações de risco. De outro, os ordenamentos jurídicos penais estão “recheados” de comandos normativos que contemplam as mais variadas formas de comportamentos tidos como desviantes. O resultado inevitável é que determinadas pessoas com maior freqüência acabem por infringir dispositivos penais dessa natureza e o Estado acaba por penalizar o “azarado”, que sob as condições do risco, acaba por violar determinado tipo de injusto.
126
temporais, ambientais, psicológicas entre outras, em busca de um direito mais justo, sem
descuidar da ameaça arbitrária e cair em decisionismos.
4.1 DIREITOS CHAMADOS SUPRALEGAIS NA TEORIA GERAL DO DELITO:
CULPABILIDADE COMO FUNDAMENTO DA PENA E SITUAÇÕES DE
INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA E ELIMINAÇÃO DA
ANTIJURIDICIDADE PELO CONSENTIMENTO DO OFENDIDO
O que se entende por direitos supralegais no direito penal brasileiro? É preciso
apresentar o que se tem falado (na teoria) e admitido (nos tribunais) como direitos supralegais
para caracterizar essas manifestações adequadamente e não incorrer no erro de julgar a partir
de uma terminologia (in)adequada.
As causas supralegais são assim denominadas devido à inexistência de previsão do
direito, em legislação infraconstitucional. Há dois entendimentos sobre o assunto. O primeiro
posicionamento é no sentido de refutar a aplicabilidade dos direitos supralegais porque se
entende que as excludentes encontram-se taxativamente enumeradas. O segundo é no sentido
da aplicação dos direitos supralegais, amparado pelo princípio da culpabilidade e adequação
social da norma.
Zaffarorni e Pierangelli consideram que o direito penal brasileiro não necessita
recorrer à supralegalidade, pois há causas justificantes perfeitamente estruturadas e que as leis
autorizam a decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
(art. 4º LICC). Apresentam como muito problemática a adoção de injustos supralegais, visto
que dão margem às arbitrariedades447 como as ocorridas no nacional-socialismo. Por outro
lado, reconhecem a inexigibilidade de conduta diversa como natureza última de todas as
causas de ausência de culpabilidade e por isso negam o caráter de supralegalidade, afirmando
que é inadequado o que foi sustentado pela doutrina, no início da teoria normativa, de que
existe causas legais e supralegais de inexigibilidade de conduta diversa.448
Bitencourt é da opinião que a partir do conteúdo material da antijuridicidade é
possível afastar a acusação de que se trata de um recurso metajurídico porque se recorre aos 447 Em decorrência da carência do Código Penal Alemão, datado de 1871, a doutrina alemã construiu uma teoria das causas de justificação ‘supralegais’, especialmente para o estado de necessidade justificante, hoje abandonada. ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 489. 448 Ibidem, p. 489; 558.
127
princípios gerais do direito, à analogia ou aos costumes. A adoção não ofende o princípio da
reserva legal porque não se trata de injustos supralegais.449
Greco também considera as causas supralegais de exclusão da culpabilidade viáveis
porque “[...] aplicadas em virtude dos princípios informadores do ordenamento jurídico.”
Informa, ainda, que a legislação Alemã proíbe a utilização da inexigibilidade como causa
supralegal450, porém a brasileira não.451
Para Bitencourt, diante do caráter dinâmico da realidade social “[...] condutas
outrora proibidas adquirem aceitação social, legitimando-se culturalmente. [...]” Situações não
previstas pelo legislador devem, em princípio, ser consideradas para exclusão da
antijuridicidade452, embora haja certa resistência doutrinária (Zaffaroni e Hungria).453
O principal argumento daqueles que rejeitam os direitos supralegais é ofensa ao
princípio da legalidade, pois já se experimentou manifestações de direito alternativo numa
tentativa de aplicar as regras jurídicas com mais justiça social e foi uma experiência que
apresentou certos dissabores.
Principalmente na Alemanha, em meados do século XX, houve uma tendência de
repensar os limites da positividade do direito na tentativa de superar o legalismo restringente.
Após a Segunda Guerra o tema jusnaturalismo foi revisto buscando-se um conceito supralegal
de direito em que nas práticas judiciais foram aplicados componentes extralegais e de
princípios não positivados. Foram assim, “[...] René Marcic aludindo ao ‘direito natural na
judicatura’, assim Esser e Boehmer encontrando a eqüidade e outras formas não ‘legais’ de
direito na aplicação da ordem jurídica.”454
Na afirmação de Grau, o direito alternativo, apesar de suas boas intenções, carece de
referenciais teóricos suficientes e constitui risco à ocorrência de arbitrariedades, porque “[...]
449 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 11. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 306. 450 A partir da proibição, pela legislação Alemã, Jescheck afirma que a adoção implicaria “‘[...] debilitação da eficácia de prevenção geral que corresponde ao Direito Penal e conduziria a uma desigualdade na aplicação do Direito’”. Deve-se impor sacrifício ao afetado (mesmo em situações difíceis da vida), em nome da obediência ao direito pela sociedade. Wessels, apesar de apontar para o mesmo sentido – porque a aplicação seria vaga e indeterminada em seus pressupostos e limites, o que geraria insegurança jurídica – posiciona-se no sentido de que há quase unanimidade que, diante de casos excepcionais, possa-se adotar. JESCHECK; WESSELS apud GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 9. rev. ampl. e atual. v. 1. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 421-422. 451 Ibidem, p. 421. 452 Essa terminologia apresenta variantes como: excludentes de ilicitude, excludentes de antijuridicidade, causas de justificação, causas justificantes e causas de exclusão do crime. 453 BITENCOURT, 2007, p. 305. 454 WILKIN et al. apud SALDANHA, 2003, p. 297.
128
pode vir a consubstanciar nada mais do que uma nova versão da velha regra que recomenda
tudo para os amigos, mas para os inimigos, nem mesmo os rigores da lei: a lei da vingança
privada. Valham-nos, contra isso, o procedimento legal e a legalidade.” 455
A legalidade na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito é necessária. Os
Estados não podem dispensar a previsibilidade do legislador, ainda mais quando se tem uma
Constituição recheada de garantias fundamentais que suplicam por implementação.
Apesar de o Estado Democrático de Direito ser um Estado que supera os modelos
Liberal e Social ele não suplanta as conquistas dos modelos anteriores, porquanto o risco das
arbitrariedades (co)existem em nossos tempos, senão com maior freqüência do que outrora.
Por isso, e visando minimizar os riscos da arbitrariedade, Ferrajoli defende que “[...]
a lei não pode qualificar como penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de
desvio, mas somente comportamentos empíricos determinados, identificados exatamente
como tais e, por sua vez, aditados à culpabilidade de um sujeito.” Na atividade jurisdicional,
diferentemente de outras atividades públicas, a lei predetermina as formas e também os
conteúdos.456
Necessário também é considerar que na forma de leis os Estados e as classes sociais
encontram sustento para seus reinados à custa dos alienados por aspectos econômicos e
culturais. Nesse sentido Grau afirma que “O Estado autoritário [...] inúmeras vezes se
manifesta travestido de ‘Estado de Direito’. Sob a aparência de sujeição ao ‘domínio da lei’
atua um Estado que lança mão da legalidade como instrumento de opressão e opróbrio.
[...]”457
A adoção de uma supralegalidade no direito importa problemas a começar pelo
próprio nome, porque pressupõe que o direito seja entendido como conjunto de regras e
princípios como mandatos de otimização458 – situação já superada pela compreensão a partir
dos (pré)juízos Constitucionais que formam a visão de totalidade do intérprete.
Por outro lado, é preciso dizer que na seara de exculpantes e justificantes não se trata
de incriminação de condutas, mas sim de situações de justificação delas perante o
455 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 157. (grifo do autor). 456 FERRAJOLI, 2006, p. 39; 47. 457 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 168. 458 Por trás daqueles que consideram os princípios como meros mandatos de otimização está um projeto positivista que pretende resgatar a abstratividade da regra e afastar a razão prática dos princípios. Estes afasam a discricionaridade judicial pois a resposta a partir deles é dada pela compreensão (problema hermenêutico) e não pela fundamentação (análise procedimental). STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 145.
129
ordenamento jurídico. Aqui o princípio da legalidade (reserva legal – fins incriminatórios)
perde espaço para o princípio da culpabilidade, entendido no sentido inverso (ausência).
Dentre os sentidos dados ao conceito de culpabilidade459, a presente abordagem
dedica-se à culpabilidade como fundamento da pena, ou seja, a que constitui o embasamento
para que se reprove determinada conduta do agente – juízo de valor como pressuposto para
configuração do crime e imposição de pena.
O Estado, através do exercício do poder jurisdicional, ao apreciar determinado
comportamento humano em virtude da norma jurídica (sistema de princípios e regras) e
repreendê-lo através de sanções, faz um juízo de reprovação do ocorrido (fato). Esse juízo
sobre as circunstâncias caracteriza o elemento culpabilidade, para fins de imposição de
sanção, através da prestação jurisdicional – manifestada por sentença.
O atual entendimento sobre a culpabilidade – como juízo de reprovação – é fruto de
uma evolução que passou pelos conceitos de três teorias principais. Para Santos, apesar de a
culpabilidade ser um produto inacabado460, ela compreendeu o conceito psicológico, no século
XIX, o conceito psicológico-normativo, no início do século XX e conceito normativo puro,
durante o século XX.461
A partir do surgimento do conceito analítico de crime462 e com o causalismo surge a
teoria psicológica da culpabilidade que trata do vínculo psicológico do agente com o fato e
possui dois requisitos: a imputabilidade e o dolo/culpa.
O sistema causal-naturalista considera o delito – visão analítica – sob os aspectos
externo e interno. No primeiro caso a ação deve ser típica e antijurídica (elemento objetivo) e
no segundo diz respeito à culpabilidade (elemento subjetivo) como vínculo psicológico que
459 O conceito de culpabilidade tem sentido triplo: a) como fundamento da pena – juízo de reprovação (possibilidade de aplicação de uma pena ao sujeito que cometeu um fato típico e antijurídico – proibido pela lei penal); b) como elemento para determinação da pena – limite; c) como conceito contrário à responsabilidade penal objetiva. BITENCOURT, 2007, p. 327-328. O conteúdo do princípio da culpabilidade apresenta dois níveis: a) que a conduta típica seja ao menos culposa. b) que só existe delito se o injusto for reprovável ao autor. ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 449. 460 Assim considerdado por Santos porque a teoria normativa – atual entendimento sobre o assunto – encontra-se em crise insuperável na medida em que são criadas novas propostas conceituais, a exemplo da teoria da responsabilidade normativa de Roxin. SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 174. 461 Ibidem, p. 174. 462 Os primeiros conceitos analíticos de crime foram manifestados, a partir do início do séc. XIX, na teoria Alemã, com estudos de Feuerbach e posterior contribuição de Binding (teoria das normas), von Ihering (antijuridicidade objetiva), von Liszt e Beling (sistema causal-naturalista – tipos penais), Frank e Mezger (aprimoramento sistema causal-naturalista), Goldschmidt e Freudenthal (exigibilidade de conduta diversa), Welzel (novo conceito de ação – finalismo) e Jescheck e Wessels (posição híbrida – causal e final). GRECO, 2007, p. 384.
130
compreende dolo e culpa. A imputabilidade é pressuposto da culpabilidade, ou seja,
verificando-se que o agente é imputável, analisa-se dolo e culpa como espécies da
culpabilidade.463 “Dentro dessa concepção, o dolo e a culpa não só eram as duas únicas
espécies de culpabilidade, como também a sua totalidade [...]”. A culpabilidade era a relação
subjetiva entre autor e fato – responsabilidade do autor pelo ilícito que realizou.464
Zaffaroni e Pierangelli consideram que a teoria psicológica, como relação
psicológica entre a conduta e o resultado, não resolve o problema da culpa, da imputabilidade
e da necessidade exculpante.465 Santos também aponta deficiências da teoria psicológica pelo
fato de ser incapaz de abranger a imprudência inconsciente e de avaliar situações anormais de
vontade, como ocorre nas hipóteses de inexigibilidade de comportamento diverso.466 Por sua
vez, Bitencourt explica que a teoria psicológica é insuficiente porque a culpa é um elemento
normativo – infração do dever objetivo de cuidado – e não psicológico como é o dolo. Já nas
causas de redução da responsabilidade penal, a exemplo do estado de necessidade exculpante,
a presença do dolo é evidente – nexo psicológico entre autor e fato – porém não existe a
culpabilidade (situação somente explicável se renunciado o conceito de vínculo psicológico
entre autor e fato).467
Assim, a teoria psicológica da culpabilidade, como reflexo do pensamento causal-
naturalista (conceito analítico de crime), tratou a culpabilidade como elemento subjetivo –
interno – que compreende o dolo e a culpa, voltando suas atenções para relação do agente
com o fato ilícito – relação unicamente causal – o que provocou insuficiências para explicar
situações anormais de vontade, tais como na culpa inconsciente, inimputabilidade, estado de
necessidade exculpante e inexigibilidade de conduta diversa. Como resposta às insuficiências
da teoria psicológica surge, no início do século XX, a teoria psicológico-normativa.
A teoria psicológico-normativa trata a culpabilidade como reprovação e possui três
requisitos: a imputabilidade, o dolo/culpa e a exigibilidade de conduta diversa. Este último
elemento foi agregado como requisito normativo, valorado pelo Juiz, o que constituiu um
avanço em relação à teoria psicológica.
Para Santos o conceito normativo de culpabilidade iniciou com a proposta de Frank
– caráter de reprovabilidade – e em seguida por Goldschmidt – reprovabilidade como norma
463 GRECO, 2007, p. 384-385. 464 BITENCOURT, 2007, p. 335. 465 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 575. 466 SANTOS, 2002, p. 174. 467 BITENCOURT, 2007, p. 336-337.
131
de dever (caráter subjetivo e individual) e a idéia de exculpação como expressão de
inexigibilidade. Por sua vez, Freudenthal introduziu a inexigibilidade como fundamento
supralegal de exculpação.468 Greco expõe que essa teoria surgiu, em 1907, a partir das
modificações do sistema clássico (por intermédio de Frank). Os elementos subjetivos e
normativos foram introduzidos no tipo e assim, “[...] não bastava a presença de elementos
subjetivos (dolo e culpa), mas sim, que, nas condições em que se encontrava, podia-se-lhe
exigir uma conduta conforme o direito [...]” – elementos normativos – o que projetou reflexos
da inexigibilidade de conduta diversa sobre toda a culpabilidade (agora entendida como
imputabilidade, dolo e culpa e exigibilidade de conduta diversa, esta como causa geral de
exclusão da culpabilidade). Assim, problemas como coação irresistível, obediência de ordem
não manifestamente ilegal de superior hierárquico e estado de necessidade exculpante
passaram a ser tratados no âmbito da culpabilidade.469
Dolo e culpa deixam de ser espécies de culpabilidade e passam a ser elementos dela.
Agora estão criadas as condições para explicar as causas de exculpação – conduta dolosa e
não censurável – porque pode haver dolo sem que haja culpabilidade. A culpabilidade passa a
ser vista como algo exterior ao agente – juízo de culpabilidade sobre o autor emitido pela
ordem jurídica – e não como vínculo entre este e o fato. Essa reprovação é condicionada a
certos elementos: imputabilidade, dolo ou culpa (elementos psicológicos normativos) e
exigibilidade conforme o direito (‘poder agir de outro modo’). O dolo passa a ser também
normativo – não mais puramente psicológico – porque contém os seguintes elementos: a)
vontade (intencional); b) previsão (intelectual); c) consciência atual da ilicitude (elemento
normativo).470
A teoria psicológico-normativa ainda considerou o dolo/culpa como integrantes da
culpabilidade. Essa teoria foi importante porque ampliou o conceito de culpabilidade, pois
agregou elementos normativos antes não pensados pela teoria psicológica. Agora a
exigibilidade de conduta diversa é entendida como elemento e fundamento da culpabilidade.
Por sua vez, a teoria normativa pura da culpabilidade surge com o advento da teoria
finalista da ação471 e o principal mérito dela está em considerar o dolo e a culpa como
468 SANTOS, 2002, p. 176. 469 GRECO, 2007, p. 386-389. 470 BITENCOURT, 2007, p. 339-340. 471 Na afirmação de Greco, o finalismo tem início na Alemanha a partir de estudos de Welzel, a partir de 1931. A ação não é mais concebida como mero ato voluntário que causa modificação no mundo exterior. O delito é analisado a partir da inteligência humana, capaz e realizar obras com atividade finalística. GRECO, 2007, p. 389-390.
132
elementos da conduta e não da culpabilidade. A culpabilidade passou a ser aferida por um
juízo de valor sobre a conduta, realizado pelo julgador, a partir da perspectiva normativa.
Extraiu-se da culpabilidade todos os elementos subjetivos, presentes até então na teoria
psicológica (de forma absoluta) e na teoria psicológico-normativa (de forma parcial).
A teoria finalista e o conceito pessoal de injusto de Welzel deslocou o dolo da
culpabilidade para o tipo subjetivo do injusto, reduzindo a culpabilidade a mero juízo de
valor, expresso pela reprovabilidade.472 A culpabilidade finalista está centrada na reprovação
da conduta contrária ao direito. Ela pode ser resumida da seguinte forma: “[...] reprovação
pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora
houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez. [...]”473
No dizer de Zaffaroni e Pierangelli, para teoria normativa da culpabilidade, um
injusto (conduta típica e antijurídica) é culpável “[...] quando é reprovável ao autor a
realização dessa conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas
circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. [...] [Assim,] o autor mostra uma
disposição interna contrária ao direito.” Se o autor não era enfermo, não foi obrigado a
cometer o ato, ele podia motivar-se na norma e não cometer o injusto – o que a norma exige.
Nada o impedia de cometer tal ato. O caráter normativo está no fato de que o sujeito pode
fazer algo distinto do que fez e que nas circunstâncias era exigível que assim procedesse.474
Com a teoria finalista da ação, para definição do crime, a culpabilidade475 é valorada
após a análise primeira do fato típico e, segunda da antijuridicidade. Todos esses elementos
funcionam como pressuposto da pena. É, portando, ressalvado entendimento diverso476, o
terceiro elemento para imputar sanção penal ao agente.
Em oposição à teoria psicológico-normativa e na perspectiva da teoria normativa
pura, a culpabilidade é apenas normativa, sob a forma de potencial consciência da ilicitude,
imputabilidade e exigibilidade de conduta diversa. Daí porque o nome dessa teoria.477 Da
mesma forma, Santos conceitua a culpabilidade, considerando a teoria moderna do fato
472 SANTOS, 2002, p. 177-178. 473 BITENCOURT, 2007, p. 342-343. (grifo do autor). 474 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 517. 475 A culpabilidade revela-se diversa da culpa no direito penal, porquanto, esta última encontra-se no fato típico, como conduta humana sob as modalidades: imprudência, negligência e imperícia. 476 Segundo a concepção bipartida, o conceito analítico de crime é composto de fato típico e antijurídico; a culpabilidade funciona como pressuposto da pena. Tal endendimento merece críticas porque todos os elementos: fato típico, antijurídico e culpabilidade são pressupostos da pena que é conseqüência. Assim, não há razões para separá-los do conceito de crime. 477 GRECO, 2007, p. 392.
133
punível, como juízo de valoração (reprovação sobre o sujeito que realiza um tipo injusto)
sendo que os seus fundamentos são: a capacidade de culpabilidade, a consciência real ou
potencial da antijuridicidade e a exigibilidade de comportamento diverso.478
A imputabilidade pressupõe análise da maturidade e desenvolvimento do sujeito, ou
seja, deve ser observado o grau de capacidade psíquica para ser responsabilizado pelo injusto
cometido. Na análise de Bitencourt, “[...] sem a imputabilidade entende-se que o sujeito
carece de liberdade e de faculdade para comportar-se de outro modo, com o que não é capaz
de culpabilidade, sendo, portanto, inculpável.”479 Esse entendimento tem origem na teoria
psicológica da culpabilidade – como pressuposto da culpabilidade – e foi recepcionado pelas
teorias psicológico-normativa e normativa pura – como elementos da culpabilidade.
A potencial consciência da ilicitude ou conhecimento do injusto para a moderna
teoria do fato punível exige análise sobre o conhecimento de elementos fáticos ou normativos
do tipo legal – erro de tipo – e, sobre a proibição do tipo de injusto – erro de proibição.
Também envolve a caracterização do erro de tipo permissivo que participa simultaneamente
sobre os dois tipos de erros (de tipo e de proibição) e incide sobre a representação errônea de
circunstância justificante.480 É necessário que o autor “[...] conheça ou possa conhecer as
circunstâncias que pertencem ao tipo e à ilicitude.”481
Por sua vez, a inexigibilidade de conduta diversa se materializa na impossibilidade
de o autor agir conforme preceitua o ordenamento jurídico. É a situação em que o direito
exige determinado comportamento, mas o autor, devido às circunstâncias concretas, não
consegue pautar sua conduta em obediência. Assim, o Estado, através do Juiz, analisa as
possibilidades que o autor tinha a sua disponibilidade para agir conforme o direito. Se haviam
possibilidades concretas para o comportamento exigido pelo ordenamento jurídico, mas o
autor omitiu-se – outra conduta era exigível – haverá culpabilidade e o autor responde pelos
seus atos. Se não havia possibilidades concretas de realização do comportamento de outro
modo, não se pode exigir outro comportamento senão aquele realizado pelo sujeito, logo não
haverá culpabilidade e tampouco responsabilidade penal do autor.
Para Bitencourt o fundamento para reprovar a resolução de vontade está na
possibilidade concreta de que o autor determine seu comportamento conforme o
478 SANTOS, 2002, p. 173. 479 BITENCOURT, 2007, p. 347. (grifo do autor). 480 SANTOS, 2002, p. 193-194. 481 BITENCOURT, 2007, p. 347.
134
conhecimento do injusto.482 E, segundo Velo, “[...] é errado admitir-se a sanção penal em
hipótese de ‘inexigibilidade de conduta diversa’ quando o sujeito agiu segundo critérios
objetivos e ditados por uma situação histórica que pressupõe uma compreensão especial por
parte do julgador.”483
A exigibilidade de conduta diversa apresenta-se como fundamento das excludentes
de culpabilidade, ou seja, todo o ordenamento jurídico está pautado sob a lógica de se exigir
determinado comportamento do cidadão, através da proibição das condutas descritas na lei
(exige-se a conduta que não àquela escrita – proibida). Para Santos “A normalidade das
circunstâncias do fato é o fundamento concreto da exigibilidade de comportamento conforme
ao direito [...]”.484
Zaffaroni e Pierangelli afirmam que “A inexigibilidade [é] a essência de todas as
causas de inculpabilidade. Sempre que não há culpabilidade, é porque não há exigibilidade,
seja qual for a causa que a exclua”.485 O finalismo dirigiu-se na busca por uma teoria
normativa da culpabilidade. Hoje ela é entendida como “[...] juízo de reprovação dirigido ao
autor por não haver obrado de acordo com o Direito, quando lhe era exigível uma conduta
em tal sentido.” A exigibilidade de conduta diversa, como terceiro elemento da culpabilidade,
pressupõe a “[...] possibilidade concreta que tem o autor de determinar-se conforme o sentido
em favor da conduta jurídica [...]”.486
A (im)possibilidade “[...] de agir conforme o direito variará de pessoa para pessoa,
não se podendo conceber um ‘padrão’ de culpabilidade. [...]” O que se espera é uma análise
individualizada – particularizada – quando da análise da exigibilidade de conduta diversa
como excludente de culpabilidade.487
Assim, o agente não deve ser considerado culpado, se no momento da ação ou da
omissão outra atitude não era esperada, senão aquela em que agiu. Esta forma de
responsabilizar é própria de direitos modernos e está amparada pela teoria finalista da ação e
teoria normativa pura da culpabilidade.
Velo atribui relação de harmonia entre o finalismo, política criminal e exigibilidade
de conduta diversa, bastando que “[...] o julgador use sua cultura e sensibilidade em prol de 482 BITENCOURT, 2007, p. 347. 483 VELO, Joe Tennyson. O juízo de censura penal: o princípio de inexigibilidade de conduta diversa e algumas tendências. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 74. 484 SANTOS, 2002, p. 215. 485 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 576. 486 BITENCOURT, 2007, p. 349. (grifo do autor). 487 GRECO, 2007, p. 416.
135
uma ordem democrática e social”.488 Nesse diapasão, a demanda constitui-se num desafio para
o jurista. Verifica-se necessário avaliar a situação in concreto aplicando-se conhecimentos da
psicologia, sociologia, filosofia, fazendo-se um juízo ampliativo das condições sociais,
circunstâncias temporais, ambientais, biológicas entre outras.
A inexigibilidade de conduta diversa constitui modalidade de exculpação,
compreendendo as causas chamadas de legais e supralegais.489 Duas são as causas legais
dispostas no Código Penal Brasileiro: a) coação moral irresistível; b) obediência
hierárquica.490 Além das hipóteses dispostas no artigo 22 do Código Penal Brasileiro, é
possível aceitar a isenção de pena prevista nos arts. 348, § 2º491, do Código Penal (ascendente,
descendente, cônjuge ou irmão do criminoso) e 128, inciso II492, do Código Penal, (aborto
consentido pela gestante ou seu representante legal quando a gravidez é resultante de estupro)
como causas legais de inexigibilidade de conduta diversa. Embora relevante para o estudo da
culpabilidade, a exposição das causas legais de inexigibilidade de conduta diversa não se faz
necessária nesse espaço, porquanto as discussões restringem-se ao aspecto da supralegalidade.
As causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa pautam-se na premissa
de que é possível uma interpretação, fundamentada nos princípios Constitucionais, não
vinculada às hipóteses definidas em lei. A partir desse raciocínio, existem respostas não
expressas na legislação infraconstitucional que precisam ser desveladas e o Poder Judiciário
não deve esquivar-se da realização da justiça493, que é compreendida a partir da ampliação de
hipóteses exculpantes e com fundamento nos princípios Constitucionalizados.
Segundo Zaffaroni e Pierangelli, a partir da teoria de Freudenthal e seus seguidores,
foi possível a concepção de inculpabilidade não limitada ao texto legal. Tal possibilidade 488 VELO, 1993, p. 18. 489 Os direitos supralegais encontram amparo, não unânime, a partir da teoria e da jurisprudência. Há uma previsão para determinadas situações nominadas pelo legislador – consideradas legais – e outras que ocorrem a partir de entendimentos diante de fatos “extraordinários” para o mundo jurídico – consideradas supralegais. Diante do princípio da legalidade, tem-se admitido as situações supralegais somente para fins não incriminatórios. 490 “Art. 22. Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem não manifestadamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.” 491 “Art. 348. Auxiliar a subtraír-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é cominada pena de reclusão: [...] 2.º Se quem presta o auxílio é ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, fica isento de pena.” 492 “Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Em sua maioria, os autores consideram que o aborto realizado a partir de gravidez resultante de estupro não é considerado antijurídico (fato típico penalmente lícito). Porém, não é possível amoldar essa hipótese nas causas legais de exclusão da ilicitude elencadas no artigo 23 do Código penal. Assim, trata-se de hipótese de causa legal de inexigibiliade de conduta diversa. GRECO, 2007, p. 419-421. 493 A afirmação do Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela obediência rigorosa aos direitos fundamentais da pessoa humana, neles incluído a garantia Estatal de punição justa.
136
ocorre em decorrência de interpretações restritivas legais que causam injustiças e falta de
previsão legal para exculpantes reconhecidas pela doutrina ou postuladas em trabalhos
político-criminais. Muito se temeu pela absolvição por crimes atrozes, principalmente após a
segunda guerra mundial, o que fez a adoção da exculpação supralegal ser reprimida.494 Esse
“medo” da impunidade para crimes bárbaros provocou um polimento na legislação positiva e
mesmo autores alemães foram abandonando a eximente como autônoma, deixando-a como
fundamentação genérica de todas as causas de não culpabilidade.495
Também é a primeira conclusão da obra de Velo: “A censura penal pode ser
excluída em hipóteses de ‘inexigibilidade de conduta diversa’, independentemente das
mesmas não estarem previstas expressamente na lei, porque a ‘inexigibilidade é um princípio
do direito penal”.496
No âmbito jurisprudencial, a aceitação das causas supralegais tem sido uma
realidade, porquanto se verifica que os tribunais têm observado que a norma precisa ser
adaptada ao contexto social e para se fazer justiça deve-se levar em consideração todas as
situações possíveis que contribuíram para o resultado.
O legislador é incapaz de prever todas as possibilidades concretas de aplicação da
norma. Assim, é necessário que o ordenamento jurídico, especialmente o penal, dê abertura
para aplicação da norma como regra geral adaptando-se, através do Estado-Juiz, ao caso
concreto, aplicando-se a justiça e a eqüidade. Não se deve considerar, em nome do caráter
repressivo discutível do Direito Penal, uma injustiça.
Conscientes de que as possibilidades de ocorrência são inesgotáveis, as principais
causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa, diante da dinâmica social moderna
de relações complexas, são: fato de consciência, desobediência civil, conflito de deveres,
causa de aumento de pena, excesso em excludente de ilicitude (estado de necessidade
exculpante) e sonegação fiscal. Também, as situações chamadas supralegais apresentam-se no
consentimento do ofendido para eliminação da antijuridicidade. Quanto aos procedimentos,
até mesmo no Tribunal do Júri há possibilidade de aplicação de situações chamadas
supralegais.
O fato de consciência é decorrente da garantia constitucional de liberdade de crença
494 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 626. 495 Nesse mesmo sentido, Zaffaroni e Pierangelli consideram que a partir da legislação brasileira, a adoção da eximente autônoma se faz desnecessária. Ibidem, p. 559-561. 496 VELO, 1993, p. 565-566.
137
e de consciência, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal Brasileira de 1988497. Não
encontra limitações no direito penal brasileiro, embora outros direitos fundamentais
individuais (vida/liberdade) e coletivos (existência do Estado/paz interna) exerçam a
limitação.498
O exemplo clássico e prático do fato de consciência ou liberdade de consciência ou
de crença é a não aceitação de transfusão de sangue pelos membros da religião testemunha de
Jeová. Essa atitude coloca em risco bens jurídicos igualmente tutelados pela Constituição, ou
seja, a vida e a liberdade de crença e de consciência.
Assim, para caracterização do fato de consciência é necessário haver conflito entre a
liberdade de consciência e de crença e outro direito protegido pelas normas constitucionais.
Vê-se numa situação em que os dois bens são tutelados e se deve optar por um deles, aplicar o
princípio da razoabilidade, sopesando qual o bem de maior valor, definido através do conceito
atribuído pela sociedade em geral (senso comum).
A desobediência civil é decorrente de atos públicos onde se baseia “[...] na relevante
motivação subjetiva, ou, alternativamente, na desnecessidade de prevenção geral e especial
[...]”. Fundamenta-se na solução social dos conflitos.499
Têm-se como exemplos: a paralisação do trânsito, para manifestação, onde há
geração de prejuízos elevados, um grupo de ecologistas em manifestação considerada justa
pela poluição gerada pelas indústrias ou manifestação de ciclistas nus pelas ruas a protestar
por determinada situação.
Trata-se de um protesto em desobediência civil não violento. As manifestações
visam chamar a atenção da população e das autoridades para determinado fato,
caracterizando-se, as atitudes, como justas em prol da sociedade e da defesa dos bens
supostamente agredidos. Dessa forma, eventual infração às normas penais não deverão ser
consideradas para caracterização do crime, em atendimento a inexigibilidade de conduta
diversa como fundamento da pena.
O conflito de deveres é considerado por Santos como situações em que o sujeito
497 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” 498 SANTOS, 2002, p. 226. 499 Ibidem, p. 228.
138
encontra-se numa situação em que há dois bens na iminência de serem agredidos e através de
escolha do mal menor toma a sua decisão de proteger um em detrimento do outro.500
Na colisão de deveres o agente opta por uma alternativa e sua escolha não recai na
mais adequada para o direito, porém, nas circunstâncias, seria impossível exigir um
comportamento diverso – ato de heroísmo. Dessa forma, a colisão de deveres é uma espécie
de estado de necessidade porque o dever está vinculado a um bem jurídico.501
Exemplo da opção feita pelo agente, que caracteriza o conflito de deveres,
justificável pela inexigibilidade de conduta diversa é o caso de um estranho e o filho do
agente estar em perigo e só um pode ser salvo – conflito. O direito ordena a proteção de
ambos – solução ideal –, porém o sujeito, dadas as circunstâncias, certamente irá proteger seu
filho. Nesse caso haverá estado de necessidade exculpante, embora não previsto não previsto
em lei, mas presente a inexigibilidade de conduta diversa.502
A exculpante em questão é aplicável, também, para as classes menos favorecidas,
em que opera uma situação anormal da vontade pelas condições sociais adversas. Para o
sujeito que se vê diante da necessidade de saciar sua fome ou de sua família, proteção,
portanto, da vida, e a proteger do patrimônio alheio – alimento – é plenamente inexigível
outra conduta senão aquela de buscar a subsistência503.
As causas de aumento de pena têm aplicabilidade quando o agente comete um
determinado crime e, devido às circunstâncias, incide aumento de pena prevista
expressamente na legislação penal, além da pena base estabelecida. Entretanto esta aplicação
não deve ser absoluta, porquanto há situações em que opera a inexigibilidade de conduta
diversa como causa supralegal.
Assim, eivado de razão está o agente que, dada às circunstâncias apresentadas,
comportou-se de maneira que qualquer sujeito comum faria igual. Exemplo típico dessa
situação é o do agente que, cometendo homicídio culposo na direção de veículo, não presta
auxílio à vítima por temor de represália ou por buscar atendimento médico próprio em virtude
de lesões sofridas no acidente. 500 SANTOS, 2002, p. 229. 501 BITENCOURT, 2007, p. 311. 502 Ibidem, p. 312. 503 A teoria da co-culpabilidade também pode ser aplicada nesse exemplo porque a sociedade também é responsável por deixar seus indivíduos a mercê da exclusão, sem as mínimas condições necessárias para sua sobrevivência. Não se trata de autorizar a barbárie, mas incorporar, à ciência jurídica penal, dispositivos que demonstrem a responsabilidade social para com o semelhante. Essa teoria tem amparo normativo no artigo 66 do Código Penal: “Art. 66. A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, embora não prevista exressamente em lei.”
139
Desta forma, inexigível que o sujeito preste socorro à vítima porque as
circunstâncias do acontecimento não permitiam tal ação. Não incidirá, portanto, majorante de
pena por este fato – ausência de socorro à vítima.
O Código penal Brasileiro, em seu artigo 23, parágrafo único, atribui
responsabilidade pelo excesso, doloso ou culposo, ao sujeito que agiu em legítima defesa,
estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.
Duas teorias tratam sobre a existência do estado de necessidade justificante e
exculpante. Para teoria unitária, não há “[...] distinção entre estado de necessidade justificante
e estado de necessidade exculpante. Para ela, todo estado de necessidade é justificante. [...]” –
hipóteses tratadas sob o enfoque da exclusão da ilicitude da conduta. Essa teoria foi adotada
pelo código penal brasileiro. Já a teoria diferenciadora, apesar de uma divisão interna, quanto
a ponderação de bens, distingue estado de necessidade justificante de exculpante.504
Zaffaroni e Pierangelli divergem de Greco quanto à teoria adotada pelo Código
Penal Brasileiro, pois entendem que as situações de estado de necessidade justificante e de
estado de necessidade exculpante encontram amparo normativo, em seu artigo 24.505
Bitencourt, concordando com Greco quanto à adoção da teoria unitária, atribui
dificuldades para aplicação do estado de necessidade exculpante, a partir da redação desse
artigo, porquanto quando o bem sacrificado é de maior valor não há estado de necessidade
justificante. Ainda, diante da previsão do parágrafo segundo do artigo 24 do Código Penal
Brasileiro – redução de pena para os casos de desproporcionalidade entre os bens em conflito
– tanto o estado de necessidade justificante como o exculpante ficam afastados. A partir disso,
admite o “[...] estado de necessidade justificante [sic], mas somente como causa supralegal de
exclusão da culpabilidade.” 506
No estado de necessidade justificante o sujeito que sofre o mal menor não age
contrariamente ao direito e deve suportá-lo porque quem lhe causou está em situação de
necessidade – conflito fático – e tem que escolher. Ele fundamenta-se na “[...] necessidade de
salvar o interesse maior, sacrificando o menor, em situação não provocada de conflito
externo.” Tal situação segue os seguintes exemplos: enquanto vítima de agressão arrancar
madeira de uma cerca; cometer delito contra a propriedade coagido por ameaça a familiar;
violação de domicílio para fugir de um seqüestro; matar animal feroz em virtude de ataque,
504 GRECO, 2007, p. 321-323. 505 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 559. 506 BITENCOURT, 2007, p. 310-311.
140
entre outros.507
No estado de necessidade exculpante “[...] ocorre quando males entram em colisão,
não se evitando um de maior gravidade do que aquele que se causa. [...]”. A gravidade do mal
causado não assume relevância em relação ao mal que se evita, desde que o sacrifício, nas
circunstâncias não era razoável exigir-se. Essa situação pode ser verificada na seguinte
síntese: A ameaça de morte a B para que mate C.508
O elemento culpabilidade do estado de necessidade exculpante está na exigência do
sacrifício. Embora o bem jurídico lesado seja de igual ou maior gravidade daquele que se
pretende evitar, esse comportamento, dadas as circunstâncias, não era exigível do sujeito. Não
o sendo, não é reprovável sua conduta.
A doutrina alemã passou a sustentar, notadamente a partir do aborto médico
realizado para salvar a gestante, a existência do estado de necessidade exculpante como causa
supralegal, fundamentada na ponderação de bens e deveres – teoria diferenciadora do estado
de necessidade. Nessa situação o direito não aprova a conduta, mas opera a inexigibilidade de
conduta diversa como excludente da culpabilidade.509
No excesso exculpante qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias também se
excederia. Pode ser visualizado no seguinte exemplo: num local ermo, noturno, alguém toca
nas suas costas, você utilizando-se de uma arma, atira, quando se dá conta, era um adolescente
que queria pegar sua carteira.
Excesso exculpante ocorre quando, na reação defensiva, em hipótese de legítima
defesa ou estado de necessidade, a pessoa pratica atos além dos necessários para repelir a
agressão. Ele é visto como supralegal a partir da teoria da culpabilidade e do delito. Diante de
determinado comportamento de excesso nas excludentes de ilicitude, ocorrido a partir de uma
situação de inexigibilidade de conduta diversa - medo, medo, entre outras –, não se impõe a
reprovação da conduta.
O excesso exculpante visa-se eliminar a culpabilidade por não ser exigível outra
conduta senão aquela praticada pelo agente. Ocorre em situações de pavor em que não é
possível ao agente avaliar com perfeição sua atuação para fazer cessar a agressão. Em virtude
507 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 508-509. 508 Ibidem, p. 559-561. 509 BITENCOURT, 2007, p. 309-310.
141
dessa perturbação mental, em alguns casos, afasta-se a culpabilidade.510
Assim, verifica-se que o excesso exculpante é aplicável, como em todas as
circunstâncias de inexigibilidade de conduta diversa, em situação anormal, em que do sujeito
não era esperado atitude diversa da optada por ele.
A hipótese de sonegação fiscal verifica-se no caso de um empresário falido que
deixa de recolher contribuição social ao INSS. O agente fica entre pagar os empregados ou o
INSS. Não há exigibilidade de outra conduta se não a de opção pelo pagamento a um
determinado ente, vez que não há liquidez para saldar toda a dívida. Assim, verifica-se que o
empresário fez sua opção quando operou determinadas alheias à sua vontade.
A doutrina e a jurisprudência têm aceitado a inexigibilidade de conduta diversa
como exculpante supralegal para o crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no
artigo 168-A do Código Penal Brasileiro511 que consistente na ausência de repasse à
Previdência Social dos valores descontados do salário dos segurados empregados, incidentes
sobre a remuneração por eles recebida.
Diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça512 e do Tribunal Regional Federal
510 GRECO, 2007, p. 365-366. 511 “Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de: I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público; II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços; III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social. § 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal. § 3o É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que: I - tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.” 512 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 327738. “Recurso especial. Apropriação indébita de contribuição previdenciária. Tribunal a quo. Rejeição da denúncia. Exigência da demonstração da possibilidade de cumprimento da obrigação. Causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Reconhecimento. Momento oportuno. Sentença. Crime societário. Individualização das condutas. Prescindibilidade. Precedentes.” Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 14 de junho de 2005. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=327738&&b= JUR2&p=true&t=&l=20&i=1>. Acesso em: 25 jan. 2006. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 881423. “4. A alegada impossibilidade de repasse de tais contribuições em decorrência de crise financeira da empresa constitui, em tese, causa supralegal de exclusão da culpabilidade – inexigibilidade de conduta diversa – e, para que reste configurada, é necessário que o julgador verifique a sua plausibilidade, de acordo com os fatos concretos revelados nos autos. 5. O ônus da prova, nessa hipótese, compete à defesa, e não à acusação, por força do art. 156 do CPP.” Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 15 de março de 2007, Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&processo=881423&b=ACOR>. Acesso em: 23 maio 2008.
142
da 4ª Região513 são exemplos dessa realidade.
Também é destaque nos julgados que a prova das exculpantes e justificantes
alegadas cabe ao réu514 e não ao Ministério Público (processo de partes).
O poder judiciário tem aplicado a inexigibilidade de conduta diversa como causa
513 BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Embargos Infringentes em Apelação Criminal n. 2002.71.05.010333-8. “DIREITO PENAL. NÃO-RECOLHIMENTO. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. INSTITUIÇÃO MÉDICO-HOSPITALAR. PRECARIEDADE FINANCEIRA COMPROVADA. SITUAÇÃO INEVITÁVEL. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ABSOLVIÇÃO. ART. 386, INC. V, DO CPP. [...] 2. Havendo robusto conjunto probatório nos autos evidenciando a total impossibilidade de cumprimento da obrigação em tela, relacionada às dificuldades financeiras do Hospital, mantido essencialmente pelo SUS e IPE, incide a causa supralegal de exclusão da culpabilidade, consistente na inexigibilidade de conduta diversa, principalmente quando não houve locupletamento dos administradores com a verba não repassada ao INSS.” Relator: Élcio Pinheiro de Castro. Porto Alegre, RS, 22 de junho de 2007. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/pdf_it2.php? numeroProcesso=200271050103338&dataDisponibilizacao=22/06/2007>. Acesso em: 21 maio 2008. BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação n. 2003.70.00.025988-6. “PENAL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA RECOLHIDA DOS EMPREGADOS E NÃO REPASSADA AO INSS. CP, ART. 168-A. DIFICULDADES FINANCEIRAS COMPROVADAS. ABSOLVIÇÃO. No crime de apropriação indébita previdenciária, a existência de provas cabais quanto à alegada dificuldade econômica da empresa administrada pelos acusados justifica a exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.” Relator: Eloy Bernst Justo. Porto Alegre, RS, 18 de julho de 2007. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/ pdf_it2.php?orgao=1&documento=1810082>. Acesso em: 21 maio 2008. 514 Também é o entendimento de Oliveira pois “[...] os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas demonstrar a eventual presença de fato caracterizador de excludente de ilicitude e culpabilidade, cuja presença fosse por ela alegada.” OLIVEIRA, 2007, p. 31-32; 283. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 612367. “CRIMINAL. RESP. OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. DOLO GENÉRICO. ANIMUS REM SIBI HABENDI. COMPROVAÇÃO DESNECESSÁRIA. ONUS PROBANDI. FACULDADE DA PARTE PROVAR. DIFICULDADES FINANCEIRAS DA EMPRESA. EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE POR INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ÔNUS DA DEFESA. PROVA NÃO PRODUZIDA. ABSOLVIÇÃO DOS ACUSADOS. CRISE FINANCEIRA DA EMPRESA. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.” Relator: Ministro Gilson Dipp. Brasília, DF, 28 de abril de 2004. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao= RESUMO&processo=612367&b=ACOR>. Acesso em: 23 maio 2008. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 888947. “6. O ônus da prova, nessa hipótese, compete à defesa, e não à acusação, por força do art. 156 do CPP.” Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 03 de abril de 2007. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=888947&&b= ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 23 maio 2008. BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação n. 2005.71.11.003847-4. “3. Nos delitos de não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, a tese da inexigibilidade de conduta diversa, como causa de exclusão da culpabilidade, vem sendo aceita apenas em casos verdadeiramente extremos. Somente dificuldades "financeiras muito graves podem justificar a conduta de quem não cumpre a obrigação de recolher as contribuições devidas no prazo legal, tendo em vista o interesse social, igualmente relevante, de manter a empresa em funcionamento" (ACR nº 2001.04.01.004010-2, TRF 4ª Região, DJU 11/09/02), incumbindo à defesa, ainda assim, o ônus de trazer prova robusta que justifique a aplicação da excludente. Hipótese de ausência de comprovação das dificuldades financeiras alegadas.” Relator: Paulo Afonso Brum Vaz. Porto Alegre, RS, 26 de março de 2008. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/ pdf_it2.php?orgao=1& documento=2058764>. Acesso em: 21 maio 2008. BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação n. 2004.70.11.001403-7. “4. Para que incida a causa supralegal de exclusão da culpabilidade relacionada às dificuldades financeiras, deve restar demonstrada a absoluta impossibilidade do cumprimento da obrigação nas épocas próprias, o que não é a hipótese dos autos, onde outra foi a destinação dada ao numerário disponível, que não à Seguridade Social. 5. Conforme os precedentes desta Corte, a decretação de falência da empresa, por si só, não induz ao reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, devendo estar associada a outros elementos probatórios trazidos pela defesa.” Porto Alegre, RS, 09 de abril de 2008. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/pdf_it2.php?orgao=1&documento=2117295>. Acesso em: 21 maio 2008.
143
supralegal com mais destaque nos crimes tributários, entretanto, é necessário ampliar a
aplicação da exculpante baseada na inexigibilidade de conduta diversa para os demais delitos
do ordenamento jurídico, por constituir-se em direito plenamente aplicável dada às
circunstâncias do caso concreto.
As situações chamadas supralegais ocorrem, também, no caso de consentimento do
ofendido para eliminação da antijuridicidade.
As causas supralegais de justificação são possíveis a partir do entendimento de que a
antijuridicidade possui conteúdo material515. Caso típico de adoção de direitos supralegais
“[...] é o consentimento do ofendido, mas somente aquele que se impõe de fora para dentro,
para excluir a ilicitude, sem integrar a descrição típica. [...]”, pois em muitos casos a ausência
de consentimento do ofendido faz parte do tipo como característica negativa.516
É preciso distinguir as diferentes formas de consentimento do ofendido, pois quando
elas estão relacionadas à tipicidade não configuram consentimento justificante. Elas
apresentam-se de “[...] duas formas distintas [...] [a] influir na tipicidade: para excluí-la,
quando o tipo pressupõe o dissenso da vítima; para integrá-la, quando o assentimento da
vítima constitui elemento estrutural da figura típica.” São exemplos da primeira espécie o
rapto (art. 209), a invasão de domicílio (art. 150) e a violação de correspondência (art. 151).
São exemplos da segunda forma o rapto consensual (art. 220) e o aborto consentido (art.
126).517
O consentimento justificante existe quando “O consentimento do titular de um bem
jurídico disponível afasta a contrariedade à norma jurídica, ainda que eventualmente a
conduta consentida venha a se adequar a um modelo abstrato de proibição. [...]”. O
afastamento da proibição pode ocorrer, por exemplo, nos crimes de cárcere privado (art. 148),
furto (art. 155) e dano (art. 163).518
Consentimento do ofendido como causa supralegal pode ser verificado no caso da
realização de uma tatuagem. Haverá uma conduta repreendida pelo direito – lesões corporais
– e por outro lado o consentimento do sujeito que recebe a tatuagem – afastamento da
515 “A antijuridicidade ‘material’ foi concebida como o socialmente ‘danoso’ e o defensor desta posição foi Von Liszt [...]” que defendia que a antijuridicidade deveria primeiro passar pela legalidade – carta magna do delinqüente. Ela é fruto do positivismo sociológico em oposição ao positivismo formal – legal. ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 488. 516 BITENCOURT, 2007, p. 306. 517 Ibidem, p. 307. 518 Ibidem, p. 307.
144
ilicitude. Igual solução se apresenta no crime de dano, quando o proprietário consente o
destruimento da coisa. O consentimento do ofendido, em ambos os casos, não está previsto no
ordenamento jurídico penal519.520
Ainda, relativamente aos procedimentos, tem-se que a adoção das chamadas causas
supralegais são possíveis também no Tribunal do Júri.
A aplicação da inexigibilidade de conduta diversa no procedimento do Tribunal do
Júri também é possível, fundamentada no dispositivo do diploma processual penal que
autoriza a quesitação de “fato ou circunstância que isente o réu de pena”.
Diante do princípio da ampla defesa, admintia-se, a partir da redação do inciso III521,
do artigo 484 do Código de Processo Penal Brasileiro (agora revogado pela Lei n. 11.689522,
de 09 de junho de 2008), a quesitação por inexigibilidade de conduta diversa como exculpante
supralegal.523
Inobstante a nova redação dos artigos 482 e 483524 do Código de Processo Penal
519 Alguns requisitos são exigidos, a partir da doutrina, para que o consentimento seja válido: a) capacidade segundo a idade para imputabilidade – 18 anos; b) bem jurídico disponível – natureza exclusivamente privada; c) consentimento anterior ou simultâneo à conduta do agente. GRECO, 2007, p. 378-379. 520 GRECO, 2007, p. 376. 521 “Art. 484. Os quesitos serão formulados com observância das seguintes regras: [...] III – se o réu apresentar, na sua defesa, ou alegar, nos debates, qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime, ou o desclassifique, o juiz formulará os quesitos correspondentes, imediatamente depois dos relativos o fato principal, inclusive os relativos ao excesso doloso ou culposo quando reconhecida qualquer excludente de ilicitude;” 522 A lei 11.689, de 09 de junho de 2006 entrará em vigor em 10 de agosto de 2008 e revogou expressamente o Capítulo IV do Título II do Livro III, ambos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, que trata do Tribunal do Júri. 523 GRECO, 2007, p. 423. 524 “Seção XIII. Do Questionário e sua Votação. Art. 482. O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido. Parágrafo único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes.’ (NR). Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. § 1o A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado. § 2o Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado? § 3o Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue, devendo ser formulados quesitos sobre: I – causa de diminuição de pena alegada pela defesa; II – circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. § 4o Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o 2o (segundo) ou 3o (terceiro) quesito, conforme o caso. § 5o Sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito. § 6o Havendo mais de um crime ou mais de um acusado, os quesitos serão formulados em séries distintas.” (grifo nosso).
145
sobre a quesitação no Tribunal do Júri, é possível afirmar que o legislador contemplou a
possibilidade de perguntas relativas à absolvição do acusado e causa de diminuição de pena
alegada pela defesa.
Verifica-se concretamente a aplicação no Tribunal do Júri a partir de jurisprudências
do Superior Tribunal de Justiça.525
Dessa forma, a inexigibilidade de conduta diversa é plenamente aplicável ao
Tribunal do Júri por previsão legal quanto à quesitação e o procedimento obedecer aos
dispositivos da parte geral do Código Penal Brasileiro, no que tange a aplicação das regras
gerais também aos delitos dolosos contra a vida. Essa tese deve ser mais explorada pelos
defensores e aplicada pelos julgadores com respaldo em parecer técnico, dependendo da
situação concreta que se apresentar.
Pelo exposto, a exigibilidade de conduta diversa, como modalidade da culpabilidade,
possui causas descritas na legislação penal – chamadas causas legais de inexigibilidade –, e
aquelas que fogem ao determinismo do legislador, as chamadas causas supralegais de
525 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 12917. “PROCESSO PENAL E PENAL – HOMICÍDIO – JÚRI – INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA – TESE DA DEFESA – POSSIBILIDADE. - Por ocasião do julgamento pelo Júri, tendo a defesa formulado a tese de inexigibilidade de conduta diversa, o quesito correspondente deve ser formulado aos Jurados, mesmo que inexista expressa previsão legal sobre tal tese nos dispositivos do Código Penal. - Precedentes. - Ordem concedida para que se possibilite a formulação de quesito acerca da causa supralegal de exclusão da ilicitude (inexigibilidade de conduta diversa).” Relator: Ministro Jorge Scartezzini. Brasília, DF, 18 de setembro de 2001. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/ jurisprudencia/doc.jsp?processo =12917&&b=JUR2&p=true&t=&l=20&i=3>. Acesso em: 25 jan. 2006. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 19015. “PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. ART. 484, III, DO CPP. QUESITAÇÃO DOS JURADOS SOBRE A TESE DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. POSSIBILIDADE. 1. Esta Corte tem entendido, na interpretação do artigo 484, inciso III, do Código de Processo Penal, ser admissível a quesitação dos jurados a respeito da excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta diversa, se requerida pela defesa. 2. Habeas corpus concedido, parcialmente, para determinar que no novo julgamento do Júri Popular seja formulado, se assim requerido pela defesa, quesito relativo à tese de inexigibilidade de conduta diversa.” Relator: Ministro Paulo Gallotti. Brasília, DF, 27 de agosto de 2002. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=19015&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=3>. Acesso em: 23 de maio 2008. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 241676. “PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. JÚRI. QUESITOS. NULIDADE. - Nos julgamento do Tribunal do Júri, onde sobreleva a rigorosa observância da garantia da plenitude de defesa (CF, art. 5º, XXXVIII, a) impõe-se absoluta cautela na formulação dos quesitos, de modo a evitar dúvida, confusão ou perplexidade na formação do juízo de certeza pelos integrantes do Conselho de Jurados. - Na hipótese, em que a defesa sustenta em plenário a tese de legítima defesa, é de rigor que o Juiz Presidente continue a votação dos quesitos referentes a figura da inexigibilidade de outra conduta, indagando aos jurados sobre as circunstâncias pertinentes a referida excludente. A não votação dos demais quesitos é causa de nulidade absoluta, porque afronta diretamente a garantia da defesa ampla e plena.” Relator: Ministro Vicente Leal. Brasília, DF, 07 de março de 2002. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&processo=241676&b=ACOR>. Acesso em: 23 de maio 2008. Ver ainda no STJ: Habeas corpus n. 16865, Relator Ministro Felix Fischer, julgamento em: 09 out. 2001; Habeas corpus n. 12917, Relator Ministro Jorge Scartezzini, julgamento em: 18 set. 2001; Habeas corpus n. 16865, Relator Ministro Felix Fischer, julgamento em: 09 out. 2001; Recurso Especial n. 2492, Relator Ministro Assis Toledo, julgamento em: 23 maio 1990.
146
inexigibilidade de conduta diversa. Também, o consentimento do ofendido para a realização
da conduta típica (desde que não proibido pelo tipo) pode ser determinante para a eliminação
da antijuridicidade.
A admissão destas situações, inclusive no procedimento do Tribunal do Júri,
constitui medida de justiça a ser alcançada pela sentença penal.
4.2 O EQUÍVOCO DO DISCURSO SOBRE OS CHAMADOS DIREITOS SUPRALEGAIS
NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: A COMPREENSÃO DAS EXCULPANTES E
JUSTIFICANTES NA TEORIA DO DELITO COMO FUNDAMENTO PARA
INTERPRETAÇÃO ADEQUADA
O Estado Democrático de Direito é uma conquista histórica que não dispensa os
preceitos dos Estados Liberal e Social. Ele materializa as conquistas de legalidade e liberdade
do Estado liberal. Também apresenta direitos sociais prometidos pelo Estado Social. O Estado
Democrático de Direito apresenta uma proposta de efetivação dessas promessas sob a forma
de preceitos Constitucionais.
O princípio da legalidade é uma das principais conquistas do Estado Constitucional
de Direito e a principal bandeira do Estado Liberal, pois foi a partir dele e com a influência do
iluminismo que o absolutismo se dissolveu.
Ainda que o direito trabalhe com mediação das relações de classe, o certo é que a
legalidade é importante porque “[...] prospera no sentido de prover os destituídos de poderes
de defesas que inexistiriam em um quadro no qual o poder fosse exercitado sem as peias da
lei.” 526 A sociedade já pagou um alto preço para conquista da legalidade e não pode abrir mão
dela sem que haja um sistema que proporciona certeza e segurança equivalentes.
Ainda, sob o manto da legalidade o direito encontrou – e ainda encontra – problemas
para encontrar a justiça. O principal problema teórico enfrentado é uma concepção
equivocada, com raízes metafísicas, para a interpretação dos dispositivos legais. A partir do
pensamento positivista, o direito foi confundido com a lei. Com o positivismo normativista
houve um aprimoramento no sistema de produção normativa, porém a interpretação está
(ainda) fundamentada sob o sistema de regras. Após o surgimento de teorias pós-positivistas e
526 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 169.
147
com o auxílio dos princípios, houve uma oxigenação social na interpretação das regras.
Embora os avanços citados, todas essas teorias encontram-se vinculadas ao
paradigma metafísico, numa relação de sujeito-objeto, onde o conhecimento, construído com
o objetivo de resolver situações concretas – da realidade – divaga sobre ele mesmo e anula as
possibilidades concretas de um pensar fenomenológico.
A hermenêutica, ao contrário, rompe com o paradigma epistemológico-
representacional e através da ontologia busca o mundo prático. A verdade deixa de ser
discursiva – procedimental e passa a ser conteudística.527
Da legalidade pregada pelo positivismo à viragem ontológica proporcionada pela
hermenêutica filosófica os avanços para interpretação do direito são enormes. Suplanta-se a
confusão entre lei e direito e com auxílio dos preceitos Constitucionais – contato com a moral
– é possível uma nova compreensão para o direito.
A afirmação dos chamados direitos supralegais constitui equívoco positivista. Na
forma apresentada eles funcionam como uma “válvula de escape” para dar conta da
completude esperada do mundo normativo. A legalidade positivista – direito como conjunto
de regras – não é suficiente para dar conta da realidade complexa. A completude é
inalcançável se não utilizados os princípios constitucionais como condição de possibilidade
para interpretação.
A legalidade apresentada pelo Estado de Direito é uma legalidade material voltada à
preservação do homem como destinatário do ordenamento jurídico. Apesar de o direito
apresentar-se sob a forma de dispositivos regulamentadores da conduta humana ele traz
consigo uma justificação valorativa inerente a sua realidade. Não basta uma tipicidade formal
para a existência do crime. A investigação deve pautar-se no sentido material da conduta
como conjunto de elementos. O contexto deve ser trazido para o texto e o texto deve ser
levado ao contexto, sob pena de configurar um direito penal que foge à realidade.528
Na opinião de Gadamer, a deficiência da lei não se dá em si mesma, mas porque
“[...] frente ao ordenamento a que se destinam as leis, a realidade humana é sempre deficiente
e não permite uma aplicação simples das mesmas.”529
Não há espaço para o postulado “[...] iluminista da perfeita ‘correspondência’ entre
527 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 43; 48. 528 CARVALHO, 2004, p. 31-34; 64-65. 529 GADAMER, 2007, p. 419.
148
previsões legais e fatos concretos e do juízo como aplicação mecânica da lei [...]”. A
ingenuidade filosófica viciada pelo realismo metafísico apresenta afirmações do tipo o juiz é a
‘boca da lei’ (Montesquieu), ‘silogismo perfeito’ (Beccaria), consultar o espírito da lei, ‘o juiz
se converte em legislador tão logo lhe seja lícito interpretar a lei’ (Verri), ‘tampouco a
autoridade de interpretar as leis penais pode residir nos juízes criminais, pela mesma razão de
que não são legisladores’ (Beccaria).530
Assim, o conceito material de delito deve abranger tanto a tipicidade quanto a
culpabilidade. No dizer de Carvalho et. al. a existência do delito sob o aspecto formal não
subsiste no Estado Democrático de Direito. O que se coloca para o exegeta é uma perspectiva
mais abrangente a respeito da configuração do delito.531
As proibições de comportamentos amparam determinado valor extraídos do ato
legislativo que, em última análise, é da própria sociedade. Esse recado (valor) não é completo,
como queria o positivismo, pois como ensina Ferrajoli, existe uma ética normativa e uma
descritiva da legislação. A primeira prescreve os valores do ordenamento. A segunda, a partir
do ordenamento, reconhece os valores incorporados. Não “[...] existe coincidência entre ser e
dever ser do direito, tampouco existe coincidência entre ser e dever ser no direito. [...]”532
A dimensão descritiva não viola as conquistas da legalidade, apenas não a toma
como absoluta – estrita –, especialmente quando se trata de justificantes e exculpantes. Aos
poucos as amarras positivistas, de que o enunciado contempla o real – sentido fixado a priori
–, soltam-se e se percebe que a atividade do intérprete, baseada nos princípios constitucionais,
oferece a resposta adequada.
O Direito é ordem e hermenêutica conjugados. A ordem é completada pelo
componente hermenêutico – momento interpretativo – que não é algo extrínseco ao objeto do
direito – coisa pronta e acabada – mas é algo que faz parte do direito como existência
concreta.533
A bondade das leis e das proibições depende de critérios valorativos externos à lei –
como apresentam as definições substanciais do delito534 – e não há comprometimento do
530 FERRAJOLI, 2006, p. 49; 75-76. 531 CARVALHO, 2004, p. 111. 532 FERRAJOLI, 2006. p. 424-425. 533 SALDANHA, 2003. p. 300-301. 534 Compreender a culpabilidade a partir da hemenêutica filosófica não significa adotar uma postura substancialista do direito penal, que no dizer de Ferrajoli, confunde direito e moral (delito como pecado) ou direito e natureza (delito como patologia psicofísica) e permite discriminações subjetivas em que o interesse maior está em punir o sujeito pelo que ele é e não pelo que ele fez. FERRAJOLI, 2006, p. 45-46.
149
princípio da legalidade quando vistas como recomendações prescritivas (não descritivas).
Uma fórmula prescritiva “[...] pode querer dizer duas coisas distintas: que uma conduta deve
ser proibida se, em qualquer das acepções do termo, é pecado, ou que deve ser proibida só se
é pecado. No primeiro caso, considera-se o juízo de reprovação externo como uma condição
suficiente [...]” e subordina, axiologicamente, o direito à moral ou a critérios de reprovação.
No segundo, o direito só deve perseguir as condutas imorais – limitadora do direito de
punir.535
A análise da reprovabilidade dos preceitos proibitivos demanda esse contato
inevitável com a moral, ou seja, para se saber se a conduta praticada, descrita como proibida
pela legislação, é reprovável, faz-se necessário recorrer à compreensão do intérprete – que ao
contrário da solução positivista, nunca é discricionária.
É evidente que não há só texto – ele é mero enunciado lingüístico. As normas
resultantes da interpretação dos textos é que dizem respeito a algo existente no mundo da vida
– o sentido se dá na concretude do mundo da vida.536 “[...] Não há textos sem normas; não há
normas sem fatos. Não há interpretação sem relação social. É no caso concreto que se dará o
sentido, que é único; irrepetível.”537 O sentido é atribuído ao texto a partir da faticidade do
intérprete, respeitados os conteúdos de base do texto, que traz em si um compromisso (pré-
compreensão). É preciso levar o texto a sério.538
Há um conteúdo na lei – regra tomada como critério – que não pode ser ignorado,
mas esse conteúdo não é norma. Decidir contra a lei é criar norma contra a regra da lei. A
decisão contra legem é a prova de que o texto e a regra não aprisionam o sentido. A regra tem
a função de estabelecer parâmetro para o intérprete – critério de valor.539
Assim, tem-se uma dimensão apresentada pelo texto e outra dada a partir da
compreensão do intérprete – proporcionada pela hermenêutica – que é chamada,
equivocadamente, de situações supralegais que excluem a reprovação da conduta.
Deve-se compreender que a moral é mais ampla do que o direito, de forma que ela o
abrange, em toda a sua totalidade (Bentham). Por isso, “[...] um fato não deve ser proibido se
não é, em algum sentido, reprovável; mas não basta que seja considerado reprovável para que 535 FERRAJOLI, 2006, p. 421-422. 536 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 56; 60. 537 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 434. 538 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 205. 539 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 41-43.
150
tenha de ser proibido.” Em decorrência da justificação externa do conteúdo da proibição
penal, pela moral, os delitos têm que ser, de alguma maneira, reprováveis. A separação entre
direito e moral contribui para o dever de justificar as proibições e permite uma ética nas
legislações540. Assim, muitos tipos penais podem ser questionados como imorais,
especialmente aqueles que são justificados por razões políticas ou morais.541
Fatos proibidos também são reprováveis e, diante da ocorrência de uma situação que
não há reprovação da conduta, esteja ou não prevista no ordenamento jurídico sob a forma de
regra, deve ser considerado para fins de exculpação.
Há uma nova realidade a ser observada na interpretação. Diante da evidente
incompletude do sistema de regras, surgem os princípios que funcionam como diretrizes
morais e freio ao atuar discricionário positivista. Dessa forma, os princípios subtraem o lugar
das regras e impõem uma nova racionalidade542 ao intérprete.
A concretização da lei pelo juiz é a tarefa da interpretação/aplicação. Essa
complementação produtiva (porque o ato de subsunção não tem sustentação) do direito
importa sujeição à lei, onde a sentença não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de
ponderação do conjunto (não restrito ao conhecimento dos artigos do código). Daí que se tem
segurança jurídica porque qualquer advogado pode predizer a decisão do juiz, com base nas
leis vigentes.543
Os juízes não são e nem devem ser legisladores. Há uma distinção entre argumentos
políticos e argumentos de princípio. Os argumentos políticos justificam uma decisão política
demonstrando que favorece ou protege determinada meta coletiva, como, por exemplo, o
subsídio para fabricantes de aeronaves justificado pela defesa nacional. Suas proposições
descrevem objetivos. Por outro lado, os argumentos de princípios justificam uma decisão
política demonstrando que tal decisão respeita ou assegura determinados direitos individuais
ou coletivos, como por exemplo, a defesa de uma lei que se opõe à discriminação racial de
uma minoria. Suas proposições descrevem direitos.544 (tradução nossa).
A atividade produtiva exercida pelo juiz não o autoriza a legislar. A tripartição dos 540 O moralismo jurídico (delito enquanto pecado) e legalismo ético (pecado é tal porque é delito) impedem a valoração moral e polítca das leis penais. FERRAJOLI, 2006, p. 422. 541 FERRAJOLI, 2006, p. 422-423. 542 Infelizmente, no Brasil, nem para o necessário filtro para propositura de demandas tem se utilizado dos princípios constitucionais. Carvalho et. al. alertam que na justa causa penal para o exercício do direito de ação, na doutrina e na jurisprudência, não se encontra com freqüência a presença dos princípios Constitucionais. CARVALHO, 2004, p. 8; 19. 543 GADAMER, 2007, p. 432-433. 544 DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Editorial Ariel, 1997, p. 147-148; 158.
151
poderes é um desejo constitucional legítimo que deve ser respeitado. As diretrizes políticas
são dadas pelo legislador e as decisões do judiciário limitam-se à ponderação do conjunto –
totalidade – entre regras e princípios para aplicação no caso concreto. A justificação dessa
compreensão é dada a partir da linguagem e deve guiar-se pelos valores morais dispostos na
forma de princípios – respeito aos direitos fundamentais.
O atual entendimento metafísico sobre as causas supralegais constitui argumento de
políticos e não de princípios. Argumentos de políticos, como afirma Dworkin, são reservados
aos legisladores e não aos juízes. Os legisladores estão legitimados constitucionalmente para o
exercício de objetivos políticos e não os juízes. Buscar algo externo à lei não é função
legítima do poder judiciário no Estado Democrático de Direito. Assim, para justificação dos
chamados direitos supralegais deve-se utilizar argumentos de princípios e não políticos. Os
juízes devem se limitar a justificar direitos.
É de competência do poder legislativo ajustar os argumentos políticos e adotar os
programas gerados por eles. Inversamente, as decisões judiciais – também em casos difíceis –
devem ser geradas a partir de princípios e não pautar-se em diretrizes políticas. O juiz deve
ater-se à legislação por duas razões. Em primeiro lugar porque o governo é eleito pela maioria
de homens e mulheres e o juiz, na maioria dos casos, não exerce suas atividades através da
eleição. No segundo caso, se um juiz legisla ele aplica retroativamente a lei impondo à parte
perdedora um castigo não por um dever infringido, mas por um dever novo criado depois do
fato.545 (tradução nossa).
É pela adoção dos princípios, como superadores das regras na interpretação, que se
eliminou a subsunção e reduziu a liberdade dos juízes porque eles não facilitam atitudes
decisionistas ou discricionárias.546 Muitos princípios morais de justificação das proibições
estão expressamente previstos nos ordenamentos jurídicos. O nível de efetividade dos
princípios Constitucionais é que caracteriza o Estado moderno de direito em matéria penal.
Por mais que “A incorporação garantista de princípios morais ou de justiça aos níveis
superiores de um ordenamento [...] [seja ampla] continuará tendo limites extrínsecos.”547
O Constitucionalismo é o principal modificador do conceito de legalidade formal de
outrora (rompimento entre direito e moral e validade e justiça). Hoje o Constitucionalismo
impõe uma revolução onde a norma somente será válida se estiver de acordo com o conteúdo
545 DWORKIN, 1997, p. 149-150. 546 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 145-146. 547 FERRAJOLI, 2006, p. 422-423.
152
da constituição – elemento fundante. O ator jurídico pode deixar de aplicá-la por não ser
válida em face do caso específico, mas em outros casos pode ser que se encontre validade,
pois elas não apresentam um sentido único e absoluto – variam no tempo e no espaço.548
É inerente a atual compreensão do princípio da legalidade que há uma dimensão não
possível de ser dada somente com o texto legal. Realidade e texto não se completam se o
interprete não atua no sentido de produzir seu significado – pelo processo de compreensão. O
texto está disposto como signo lingüístico a ser decodificado e precisa da atuação do
intérprete que, a partir da compreensão e do círculo hermenêutico, produz o sentido da
proibição, considerando, inclusive, se a conduta é reprovável, dadas as circunstâncias do caso.
A lei não pode antever todas as hipóteses de aplicação e nem por isso há uma
irracionalidade ou concessões para decisionismos.549 A própria estrutura do mandamento
proibitivo apresenta um recado para a sociedade, no sentido de que a sua violação estará
sujeita à sanção. Ao dispor dessa forma, também avisa que os comportamentos violadores
serão reprovados. Está implícito no próprio caráter proibitivo do delito o juízo de reprovação
das condutas violadoras.
Determinadas leis infraconstitucionais apresentam, de forma expressa, as situações
em que essa reprovação se neutraliza. No código penal brasileiro ela apresenta-se sob as
formas de inimputabilidade, potencial consciência da ilicitude e inexigibilidade de
comportamento diverso: coação moral irresistível, obediência hierárquica, aborto em caso de
gravidez resultante de estupro e isenção de pena, no crime de favorecimento pessoal, quando
se tratar de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.
A inexigibilidade de conduta diversa tem seu fundamento implícito na própria
estrutura proibitiva dos tipos penais proibitivos, ou seja, a situação se aplica a todos os
mandamentos proibitivos, pois, dadas as circunstâncias da realidade, outra opção não restou
ao agente, senão aquela por ele escolhida e isso deve ser considerado para imposição de pena.
A situação se apresenta da seguinte maneira: um tipo penal que proíbe o
comportamento “A” – exige que a conduta não seja comportamento “A” – diante da
impossibilidade de outro comportamento que não seja o “A”, dadas as circunstâncias da
realidade – não é censurável/reprovável o comportamento “A”.
A avaliação da culpabilidade é sempre normativa porque é sempre um juízo de
548 ROSA, 2006, p. 101-102; 109-110. 549 STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 240.
153
censura feito a partir do comportamento desviante do agente. Zaffaroni e Pierangelli atestam
que “A culpabilidade somente pode ser edificada sobre a base antropológica da
autodeterminação como capacidade do homem. [...] Por definição, ‘culpabilidade’ é um
conceito normativo, um juízo de reprovação [...]” A culpabilidade deve ser de ato –
reprovação da ação na medida da autodeterminação no caso concreto – e não de autor –
reprovação pelo que o autor é. O direito penal é de ato e como tal é direito penal com
culpabilidade de ato e não de autor – culpabilidade pela conduta de vida. A ação deve ser
reprovada, na circunstância concreta, e não a conduta de vida.550
Reprovar comportamentos é a finalidade dos tipos incriminadores. É um elemento
inerente a estruturação dos tipos de proibição e a partir dessa compreensão fica justificada a
atuação do que se tem chamado de direitos supralegais como excludentes de culpabilidade.
Tal forma não afronta o princípio da legalidade, pois é a partir dela e dos objetivos que ela
impõe que se chega a presente conclusão.
Como fundamentação constitucional para tal compreensão quanto as excludentes por
inexigibilidade de conduta diversa, pode-se invocar o princípio da culpabilidade que reafirma
o compromisso de que somente condutas reprováveis serão objeto de censura penal. Dessa
forma, esse princípio fala como pré-compreensão hermenêutica na aplicação do direito. Os
princípios Constitucionais proporcionam o contato com a moral e auxiliam na compreensão
de totalidade na interpretação das regras.
Um sistema de princípios e regras harmoniza-se no compreender. Esses elementos
normativos551 fazem parte dos pré-juízos autênticos para a aplicação do direito como também
o faz a realidade do caso e a historidicidade do intérprete.
A responsabilidade que se impõe ao jurista nunca foi tão grande. No Estado
Democrático de Direito e com a viragem ontológica ele possui papel central para a realização
da justiça Constitucional. O sentido de constituição faz parte da compreensão do intérprete
como pré-juízos552 que falam quando da aplicação do direito – resolução de problemas
concretos. A busca por uma prestação jurisdicional mais justa é uma manifestação de pré-
compreensão autêntica do jurista.
550 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 522-523. 551 Princípios e regras são normas. Princípios são normas impositivas compatíveis com diversos graus de concretização (permitem o balanceamento de valores e interesses). Regras são normas imperativas de exigência (imposição, permissão ou proibição) – ela é ou não cumprida. Os princípios têm convivência conflitual (coexistem) e as regras antinômica (excluem-se). CANOTILHO, 2003, p. 1161. 552 “[...] os preconceitos de um indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem a realidade histórica do seu ser.” (grifo do autor) GADAMER, 2007, p. 368.
154
A percepção e irradiação dos valores fundamentais no universo jurídico dependem
de uma postura responsável e condizente com os ditames do justo em prol do bem comum. O
valor que se dá à Constituição está diretamente relacionado ao atuar do intérprete. A eficácia
dos direitos fundamentais está nas mãos dos profissionais jurídicos e verifica-se como medida
de justiça.
A hermenêutica filosófica, a partir do rompimento com a metafísica, propõe-se a
encontrar respostas comprometidas com os valores do Estado Democrático de Direito. A
partir do círculo hermenêutico as respostas apresentam caráter de seriedade e
comprometimento com a realidade social na busca pelo bem comum.
A resposta jamais poderia ser discricionária, porque o intérprete compreende a partir
da sua história, da compreensão de totalidade e da legalidade. A resposta é apresentada a
partir dos preceitos Constitucionais – princípios – e do auxílio dos tipos penais – regras.
Assim é que “[...] a aplicação dos conceitos indeterminados [juízos de legalidade] só
permite uma única solução justa. Contrariamente, o exercício da potestade discricionária
[juízos de oportunidade] permite uma pluralidade de soluções justas [...]”, através da
liberdade de eleição fundamentada em critérios extra jurídicos. “Ainda quando o juiz cogite
dos princípios, ao atribuir peso maior a um deles – e não a outro –, ainda então não exercita a
discricionariedade. O momento dessa atribuição é extremamente rico porque nele [...]
pondera-se o direito, todo ele (e a Constituição inteira), como totalidade. [...]”553 O norma que
é o sentido do texto ex-surge do processo de atribuição de sentido pelo intérprete a partir de
sua situação hermenêutica, da tradição em que está inserido, a partir de seus pré-juízos. Esse
momento não é discricionário – diferença ontológica – porque a arbitrariedade na produção do
sentido é neutralizada pela aplicatio.554
Tratar as exculpantes com o nome de supralegalidade é um equívoco de um
pensamento que está pautado num sistema de regras. O termo traz uma afronta às conquistas
da legalidade e está na contramão da atual conjuntura do direito moderno. Não se pode falar
em supralegalidade porque o assunto pode ser melhor justificado a partir da compreensão do
intérprete sobre os tipos penais incriminadores.
Falar em supralegalidade gera um efeito negativo, impróprio para respostas
produzidas a partir da hermenêutica filosófica. Supralegalidade dá margem ao pensamento de
553 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 203-205; 210. 554 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 61.
155
que é possível a criação de tipos incriminadores para além dos textos normativos, cogitação
totalmente reprovável a partir da compreensão hermenêutica.
Tipos penais incriminadores somente podem ser criados por obra legislativa, jamais
pelo intérprete. Não está ao alcance do intérprete a criação da lei, pois os mandamentos da
tripartição dos poderes estão presentes na Constituição e, portanto, no desejo da sociedade.
Falar em supralegalidade é também, uma afronta ao princípio da legalidade, que
encontra previsão expressa na Constituição Brasileira de 1988 e assim esse termo não deve
prosperar na teoria do delito.
Por outro lado, a saída é apresentada pela hermenêutica filosófica, onde a
compreensão da totalidade torna possível a aplicação das exculpantes em comportamentos
previstos como desviantes.
Assim, a lei que proíbe condutas não se completa nela mesma. Ao proibir uma
conduta ela impõe determinado comportamento que só se torna exigível quando o fato ocorre
em circunstâncias normais – condição para reprovação do comportamento. Essas
circunstâncias anormais não se encontram completamente arroladas pela legislação
infraconstitucional até mesmo devido à impossibilidade material.
A autodeterminação do sujeito é condição para reprovação da conduta proibida pelo
texto legal. Quando ela é afetada por circunstâncias anormais do complexo mundo moderno a
censura não se impõe. O juízo sobre a adequação do comportamento em circunstâncias
normais é possível a partir do compreender – hermenêutica filosófica.
As condutas proibidas têm um aspecto semântico, presente no texto, e um aspecto de
valor dado pela compreensão do intérprete e, essa pode ser no sentido de, com base nos
princípios constitucionais, exculpar o comportamento injusto. Para esse fato, a teoria geral do
delito tem atribuído, equivocadamente, o nome de adoção de causas supralegais de
inexigibilidade de conduta diversa.
A interpretação dos tipos de proibição deve acontecer conforme a Constituição. A
teoria geral do delito – e nela presentes as situações de antijuridicidade, justificantes e
exculpantes – deve fazer parte dos pré-juízos autênticos do intérprete.
A partir dos seus pré-juízos, e por fim de sua compreensão, o interprete do direito
falará (d)o direito. “Essa pré-comprensão é produto da relação intersubjetiva que o intérprete
tem no mundo [...]”, inserido numa situação hermenêutica e no interior da linguagem. A
156
hermenêutica é um modo de ser e não um procedimento porque a atividade hermenêutica ex
surge da (auto)compreensão.555
Sem dispensar as conquistas da legalidade, mas atribuindo um adequado
entendimento sobre esse princípio é possível chegar-se a prestação jurisdicional justa
condizente com os anseios do Estado Democrático de Direito brasileiro.
A título conclusivo do capítulo pode-se afirmar que as manifestações pela adoção de
“direitos supralegais”, apesar de não serem unânimes, encontram forte respaldo na teoria do
delito e na jurisprudência. O principal argumento favorável à aplicabilidade está vinculado à
adoção de princípios. Por outro lado, o da rejeição, o argumento é no sentido de ofensa às
conquistas da legalidade e possibilidades de arbítrio.
Os principais conceitos de culpabilidade, a partir da teoria do delito, são: o
psicológico, o psicológico-normativo e o normativo puro. No primeiro caso a culpabilidade é
entendida como vínculo psicológico do autor com o fato (relação causal) e considera
imputabilidade e dolo e culpa como seus elementos. No conceito psicológico-normativo o
conceito de culpabilidade amplia-se para situações de inimputabilidade, dolo e culpa e
exigibilidade de conduta diversa. Seu principal mérito é considerar a culpabilidade como juízo
de censura a partir de seus elementos, antes puramente psicológicos e agora normativos (os
tipos penais são constituídos de imputabilidade e dolo e culpa – elementos psicológicos e
normativos –, e exigibilidade de conduta diversa – elemento normativo que fundamenta todos
os delitos). O conceito normativista puro apresentou o dolo e a culpa como elementos da
conduta e não da culpabilidade. Influenciado pela teoria finalista da ação, a culpabilidade
agora é entendida como juízo de reprovação e contém os elementos inimputabilidade,
potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Significa dizer que sob o
aspecto puramente normativo o comportamento somente será censurado em circunstâncias
normais onde o agente tinha condições de agir de outro modo.
A inexigibilidade de conduta diversa encontra-se presente na legislação
infraconstitucional brasileira sob as formas de obediência hierárquica, coação moral
irresistível, isenção de pena quando ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do agente
auxilia subtrair-se à ação de autoridade pública (348, § 2º, do código penal brasileiro) e no
caso de aborto consentido pela gestante ou representante legal quando a gravidez é resultante
de estupro (128, inciso II, do código penal brasileiro). Como causa supralegal algumas
555 STRECK, 2003, p. 66.
157
situações podem ser enumeradas sem pretensão de taxatividade: fato de consciência,
desobediência civil, conflito de deveres, causa de aumento de pena, excesso em excludente de
ilicitude (estado de necessidade exculpante) e sonegação fiscal.
Também, as situações chamadas supralegais podem ser identificadas no
consentimento do ofendido para eliminação da antijuridicidade e aplicável, em todos os casos
(culpabilidade e antijuridicidade), também no procedimento do Tribunal do Júri.
A legalidade no Estado Democrático de Direito não pode ser suplantada porque ele
não neutraliza as conquistas dos modelos anteriores de Estado (Liberal e Social), pelo
contrário, soma dimensões de direitos conquistados pelo povo.
O problema na adoção dos chamados direitos supralegais está na concepção
positivista que soluciona os problemas difíceis através da discricionariedade do juiz. Visto sob
a perspectiva hermenêutica, falar em supralegalidade é um equívoco porque o próprio nome
está a indicar uma saída metafísica.
Diante da realidade de insuficiência da lei frente às situações concretas do dia-a-dia
o positivismo jurídico criou uma espécie de “válvula de escape” para alimentar o pensamento
de completude sustentado.
Ao invés de recorrer-se à supralegalidade tem-se que no Estado Democrático de
Direito a tipicidade e a culpabilidade, para configuração do delito, têm um conteúdo material.
O texto proibitivo tem uma dimensão que serve de parâmetro/critério para o intérprete, porém,
o sentido do texto é completado pela realidade histórica – faticidade – que o envolve. Por isso
há diferença entre texto e norma. Texto é a dimensão dada pelo legislador enquanto que
norma é produzida pelo compreender do intérprete. Assim, tipos de proibição contêm uma
justificação moral externa proporcionada pelos princípios constitucionais que servem de freio
ao arbítrio na aplicação do direito.
Os juízes não devem ser legisladores porque seus argumentos são de princípios e
não políticos. A atividade produtiva do juiz não autoriza discricionariedades porque ele está
vinculado ao sistema normativo (princípios e regras) e sua compreensão está precedida de
elementos históricos e visão de totalidade.
Fatos proibitivos também são reprováveis. Eles constituem-se num recado à
sociedade – reprovação das condutas descritas – e pressupõem a ocorrência em situações
normais de comportamento. Logo, a culpabilidade tem base antropológica na
autodeterminação dos sujeitos.
158
As situações chamadas supralegais são resolvidas pela hermenêutica filosófica
através da utilização de princípios constitucionais, como pré-compreensão, que representam a
vontade legítima do povo. A visão de totalidade, com base em valores normativos do sistema,
soluciona a questão sem recorrer às saídas discricionárias e decisionistas e, portanto,
arbitrárias.
A supralegalidade pode ser mais bem justificada a partir da compreensão do
intérprete – visão de totalidade – sobre os tipos penais incriminadores. O juízo de adequação
necessário para caracterizar o comportamento como censurável – fruto da autodeterminação –
surge da compreensão do intérprete a partir do círculo hermenêutico.
Falar em supralegalidade é afrontar o princípio da legalidade que é conquista do
Estado Liberal e disposição constitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro.
CONCLUSÃO
1. A experiência histórica denuncia o sentido do direito para a sociedade. Dela se
extrai que os juristas – legitimados pelo povo – assumiram o compromisso de implementação
dos direitos fundamentais para realização do bem comum e do ideal de vida boa.
O Estado Democrático de Direito é conseqüência das experiências de modelos de
Estados absolutistas, liberais e sociais. No modelo absolutista o Estado esteve centrado na
pessoa do rei que detinha o poder justificado por atribuições divinas e pela força de seus
exércitos. Ele serviu os burgueses na medida em que promoveu organização e segurança para
prática de relações comerciais. O Estado liberal é fruto das conquistas iluministas (Revolução
Francesa) e representa a ascenção política da burguesia. Nesse período surgiram os direitos de
primeira dimensão (civis e políticos) e a compreensão de Constituição como documento
escrito que representa a vontade soberana do povo. O Estado social representou a ruptura de
um Estado absteísta. Consagraram-se, nesse modelo, os direitos de segunda dimensão (saúde,
educação, lazer, seguridade social, entre outros). Por sua vez, diante das promessas modernas
não cumpridas pelos Estados liberal e social, o modelo Democrático de Direito apresentou-se
como garantidor de direitos para o bem estar social (bem comum). Aqui surgiram os direitos
de terceira dimensão (meio ambiente e coletividade), os de quarta dimensão (biodireito) e,
para alguns, os de quinta dimensão (cibernética).
A opção do povo brasileiro foi pelo Estado Democrático de Direito e o extenso rol
de direitos fundamentais, abrigados na constituição (1988), têm força vinculante para o
exercício dos poderes executivo, legislativo e judiciário.
2. Quanto ao exercício da prestação jurisdicional penal, os efeitos da (nova)
realidade constitucional – princípios com força normativa – são imediatos e necessários para
uma adequada (re)leitura da legislação infraconstitucional arcaica – legado de um período
autoritário. Ela impõe um sistema acusatório que pressupõe um processo de partes e a busca
160
por uma verdade construída (processual) a partir do devido processo legal (justo). Por outro
lado, o código de processo penal representa uma realidade inquisitória em que a gestão da
prova e o desrespeito ao princípio da presunção de inocência são os exemplos mais latentes.
O Direito processual penal, o direito penal, a constituição, a hermenêutica e o
garantismo possuem afinidades para implementação do Estado Democrático (e Social) de
Direito. A Constituição estabelece os parâmetros do devido processo legal, do sistema
acusatório e dos direitos fundamentais e, nesse sentido, ela constitui e dirige a prestação
jurisdicional. O garantismo compreende esses valores como tutela para a liberdade dos
cidadãos (sentido negativo) – garantia contra o arbítrio – e proibição da proteção deficiente
(sentido positivo) – tutela dos direitos fundamentais. O direito processual apresenta-se como
instrumento indispensável para concretização do direito material e dos direitos fundamentais
do acusado. A hermenêutica, por sua vez, auxilia por esclarecer os pressupostos do
compreender que produzem o sentido que o conjunto apresenta – promoção do bem comum –,
pois sentenças legalistas, crentes na subsunção entre o fato e o texto, não atendem a
efetividade esperada da prestação jurisdicional.
3. As concepções teóricas sobre o direito também se relacionam à experiência
histórica. O pensamento positivista do direito constituiu-se (e ainda permanece como tradição
não autêntica) em dever de legalidade absoluto. Em sua primeira versão (positivismo
legalista), reproduziu a idéia do governo das leis com a imperatividade necessária para frear o
poder absolutista e provocou as confusões entre lei e direito e completude do texto com a
realidade dos casos. O neopositivismo ou positivismo normativista, na tentativa de solucionar
esses impasses, propôs um sistema de regras e princípios, onde esse último funcionaria como
filtro na elaboração das regras e controle para a entrada no ordenamento jurídico. O pós-
positivismo, aproveitando-se das experiências anteriores, aprimorou a teoria dos princípios,
estabelecendo métodos e procedimentos, na tentativa de concretizar esses valores na aplicação
do direito. A matriz sistêmica procurou compreender o direito a partir da sociologia –
realidade social complexificada pela globalização. Por sua vez, a hermenêutica filosófica
produziu uma ruptura com esses modelos por revelar outro nível de racionalidade que
antecede qualquer pretensão metafísica relacionada ao emprego de métodos ou procedimentos
na busca de respostas.
4. Para hermenêutica filosófica, a partir da idéia de compreensão, o sentido
apresenta-se como fusão de horizontes numa perspectiva produtiva e não reprodutiva. O
pressuposto metafísico do método cede espaço para a realidade/faticidade, onde cada
161
momento é único para interpretar/aplicar o direito. Os preconceitos do intérprete aparecem
como condição de possibilidade sem que hajam atos arbitrários ou discricionarios porque ele
está, obrigatoriamente, vinculado aos critérios de validade do ordenamento jurídico. Dessa
forma, ao contrário das teorias que se utilizam de procedimento e método para busca das
respostas, a hermenêutica é a filosofia – postura de reflexão – sobre o compreender humano e
base teórica para o ato de interpretar.
5. As manifestações pela adoção dos chamados “direitos supralegais”, apesar de não
serem unânimes, encontram forte respaldo na teoria do delito e na jurisprudência. O principal
argumento favorável à aplicabilidade está vinculado à adoção de princípios gerais do direito
(e não constitucionais). Por outro lado, o da rejeição, o argumento é no sentido de ofensa às
conquistas da legalidade e possibilidades de arbítrio.
A evolução teórica sobre o conceito de culpabilidade chegou, influenciada pelo
finalismo, à teoria normativa pura. Ela é entendida, atualmente, como juízo de reprovação e
contém os elementos inimputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de
conduta diversa. Significa dizer que, sob o aspecto puramente normativo, o comportamento
somente será censurado em circunstâncias normais onde o agente tinha condições de agir de
outro modo.
A inexigibilidade de conduta diversa encontra-se presente na legislação
infraconstitucional brasileira sob as formas de obediência hierárquica, coação moral
irresistível, isenção de pena quando ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do agente
auxilia subtrair-se à ação de autoridade pública (art. 348, § 2º, do código penal brasileiro) e no
caso de aborto consentido pela gestante ou representante legal quando a gravidez é resultante
de estupro (art. 128, inciso II, do código penal brasileiro).
Como causa supralegal algumas situações podem ser enumeradas, sem pretensão de
taxatividade: fato de consciência, desobediência civil, conflito de deveres, causa de aumento
de pena, excesso em excludente de ilicitude (estado de necessidade exculpante) e sonegação
fiscal. Também, as situações chamadas supralegais podem ser identificadas no consentimento
do ofendido para eliminação da antijuridicidade e aplicável, em todos os casos (culpabilidade
e antijuridicidade), também no procedimento do Tribunal do Júri.
6. A partir da compreensão hermeneuta, da evolução teórica do direito e do atual
Estado Democrático de Direito é impróprio falar direitos supralegais. A legalidade não pode
ser suplantada porque o Estado Democrático de Direito não neutraliza as conquistas dos
162
modelos anteriores de Estado (liberal e social), pelo contrário, soma dimensões de direitos já
conquistados pelo povo.
O problema na adoção dos chamados direitos supralegais está na concepção
positivista que soluciona os problemas difíceis através da discricionariedade do juiz, ou seja,
por essa saída metafísica se cria uma espécie de “válvula de escape” para alimentar ou
justificar o pensamento de completude sustentado. A solução hermenêutica não autoriza
discricionariedades na atividade interpretativa porque o intérprete está vinculado ao sistema
normativo (princípios e regras) e sua compreensão está precedida de elementos históricos e
visão de totalidade. Assim, os juízes não devem ser legisladores porque seus argumentos são
de princípios e não políticos.
No Estado Democrático de Direito a tipicidade e a culpabilidade têm um conteúdo
material. O texto proibitivo tem uma dimensão que serve de parâmetro/critério para o
intérprete, porém, o sentido do texto é completado pela realidade histórica – faticidade – que o
envolve. Dessa forma, tipos de proibição contêm uma justificação moral externa
proporcionada pelos princípios constitucionais que servem de freio ao arbítrio na aplicação do
direito.
As situações chamadas supralegais são resolvidas pela hermenêutica filosófica
através da utilização de princípios constitucionais, como pré-compreensão, que representam a
vontade legítima do povo. A visão de totalidade, com base em valores normativos do sistema,
soluciona a questão sem recorrer às saídas discricionárias e decisionistas e, portanto,
arbitrárias.
A supralegalidade pode ser mais bem justificada a partir da compreensão do
intérprete – visão de totalidade – sobre os tipos penais incriminadores. O juízo de adequação
necessário para caracterizar o comportamento como censurável – fruto da autodeterminação –
surge da compreensão do intérprete a partir do círculo hermenêutico. Falar em
supralegalidade é afrontar o princípio da legalidade que é conquista do Estado Liberal e
disposição constitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro. A saída não é
dispensar a legalidade, mas submeter as regras ao filtro constitucional que sirva de controle de
validade. Essa compreensão totalizante, proporcionada pela hermenêutica filosófica, é
decisiva para o cumprimento dos direitos fundamentais, pelos juristas, no Estado Democrático
de Direito.
7. Por fim, a situação assim se apresenta: por obediência ao princípio da legalidade,
163
os tipos penais descrevem o comportamento proibido (tipos de proibição) ou situações em que
esse se justifica (justificantes) ou não é sensurável (exculpantes). O positivismo,
equivocadamente, acredita num ideal de completude das descrições de comportamento ao
passo que a hermenêutica filosófica, acertadamente, entende que o sentido do texto se dá pela
compreensão/visão de totalidade, ou seja, há um aspecto estático (representado pelo texto) e
um aspecto dinâmico (representado pelo contexto) que faz surgir a norma que é compreensão
sobre o texto.
A supralegalidade nas exculpantes e justificantes não pode ser admitida, nos termos
do pensamento positivista, porque no Estado Democrático de Direito e, especialmente no
direito penal, a legalidade é conquista histórica do povo. A hermenêutica filosófica concebe o
que se tem chamado de supralegalidade como parte da compreensão do intérprete, ou seja, no
raciocíneo sobre as descrições legais há algo completado pela visão de totalidade.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006.
BARZOTTO, Luiz Fernando. Positivismo jurídico. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006. BASTOS, Aurélio Wander. Introdução. In: SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: o que é terceiro estado? Tradução de Norma Azeredo. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1988.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 11. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. BONATO, Gilson. Devido processo legal e garantias processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
______. Do Estado Liberal ao Estado Social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/ jurisprudencia/doc.jsp?processo[...]>. Acesso em: 23 maio 2008. ______, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/pdf_it2.php?numeroProcesso[...]>. Acesso em: 21 maio 2008.
______. Códigos: penal, processo penal e constituição federal (3 em 1). 4. ed. Colaboradores Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. São Paulo: Saraiva, 2008. ______. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de introdução ao código civil brasileiro. In: Vade Mecum Saraiva. 3. ed. atual. e ampl. Colaboradores Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. São Paulo: Saraiva,
165
2007.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. O princípio da proporcionalidade sob uma perspectiva hermenêutica e argumentativa. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CARNELUTTI, Francesco. As funções do processo penal. Tradução Rolando Maria da Luz. Campinas: Apta, 2004.
______. As misérias do processo penal. Tradução José Antonio Cardinalli. Campinas: Conan, 1995.
CARVALHO, Jéferson Moreira de. Poder Constituinte: funções e limites. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998.
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et. al. Justa causa penal Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
______. Processo penal e Constituição: princípios Constitucionais do processo penal. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
COPETTI, André. Direito penal e democracia: perspectivas para a efetivação democrática através do sistema punitivo. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4.
CORDEIRO, Antônio Menezes. Apresentação. In: CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução Fundação Calouste Gulbenklan. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenklan, 2002. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Ampla defesa e direito à contraprova. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 13, n. 55, julho-agosto 2005.
______. Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3. ______. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. Texto preparado e inicialmente apresentado no âmbito da Comissão de Estudos criada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e Instituto Max Planck, de Freiburg, Alemanha, no Projeto “A Justiça como garantia dos direitos humanos na América Latina”, maio de 1998, a partir das aulas de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da UFPR.
______. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim IBCCRIM. Porto Alegre: IBCCRIM, ano 15, n. 175, junho 2007.
______. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 24. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. ______. O futuro do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001.
166
DINIZ, Antonio Carlos; MAIA, Antonio Cavalcanti. Pós-positivismo. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006.
DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Gadamer, Hans-Georg. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006. DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Editorial Ariel, 1997.
FERNANDEZ, Eusébio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Tradução de IBÁÑEZ, Perfecto Andrés et all. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000.
______. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. Tradução Ana Paula Zomer Sica et. al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2003.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
______.______. 8. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. GALUPPO, Marcelo Campos. A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-positivismo. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3. GRAU, Eros Roberto. Eqüidade, razoabilidade, proporcionalidade e princípio da moralidade. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3. ______. O direito posto e direito pressuposto. 6. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Malheiros Editores, 2005. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 9. rev. ampl. e atual. v. 1. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. GUERRA, Willis Santiago. Fenomenologia jurídica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997.
HART, Herbert L. A. O conceito do direito. Tradução de Ricardo Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
______. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.
167
Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998.
HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Traducción Rafael Sevilla. Barcelona: Gedisa, 2000.
IORIO FILHO, Rafael Mario. Retórica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006.
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. MAIA, Alexandre da. O embasamento epistemológico como legitimação do conhecimento e da formação da lei na modernidade: uma leitura a partir de Descartes. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4.
MALMESBURY, Thomas Hobbes. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. MENDONÇA, Paulo Roberto S. Tópica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes. Tradução Pedro Vieira Mota. 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2004. MORAES, Filomeno. Poder. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006. MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2001.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
PINTO, Celso de Magalhães. Violência: ação ou reação? Del Rey jurídica. São Paulo – Minas Gerais: Del Rey, agosto a dezembro de 2007, ano 9, n. 18, p. 44-45.
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade Constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Cabral de Moncada. Coimbra:
168
Armênio Amado Editor, 1974.
ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. ______. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2005.
______. Prefácio. In: DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. Tradução Antônio de P. Machado. 20. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. SALDANHA, Nelson. Formação da Teoria Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. ______. Ordem e hermenêutica. 2. ed. rev. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2003.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do Juiz no processo penal acusatório: incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo Constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Hermenêutica filosófica: história e hermenêutica na obra de Hans-Georg Gadamer. In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes (org.). Hermenêutica e argumentação: em busca da realização do direito. Ijuí: Unijuí. Caxias do Sul: Educs, 2003. STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. ______. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
______. Epistemologia e crítica da modernidade. Ijuí: Unijuí, 1991. ______. História & ideologia. 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 1981.
STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradígmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4.
______. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, 2005.
______. A jurisdição Constitucional e as possibilidades hermenêuticas de efetivação da
169
Constituição: um balanço crítico nos quinze anos da Constituição. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro: EMERJ, 2003, v. 6, n. 23. ______. A necessária constitucionalização do direito: o óbvio a ser desvelado. Revista de Direito. Santa Cruz do Sul: jan./dez. 1998, n. 9/10. ______. Anotações de sala de aula. Curso de Pós-graduação Strito Sensu em Direito (mestrado em Direito). Universidade Estácio de Sá. Xanxerê, fev. 2007. ______. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermabverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermabverbot) ou de como não há blindágem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. Lisboa: Coimbra, 2004, v. LXXX, n. 80. ______. Diferença (ontológica) ebtre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Coimbra, 2005, v. XLVI, n. 1.
______. Heidgger, Martin. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006.
______. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
______. Hermenêutica jurídica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006.
______. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
______. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 4. ed. rev. e mod. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
______. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006.
______.; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política & teoria do Estado. 5. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
______.; OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de; TRINDADE; André Karam; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Re-pensar o Direito: o compromisso do Instituto de Hermenêutica Jurídica. In: Del Rey jurídica. Ano 9, n. 18, agosto a dezembro de 2007, São Paulo – Minas Gerais: Del Rey.
VELO, Joe Tennyson. O juízo de censura penal: o princípio de inexigibilidade de conduta diversa e algumas tendências. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993.
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos novos direitos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003.
______. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Alfa Omega, 2001.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 6. edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.