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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN

HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL

Rio de Janeiro 2008

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GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN

HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.

Orientador: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck

Rio de Janeiro 2008

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VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

A dissertação

HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL

elaborada por

GLÁUCIO WANDRÉ VICENTIN e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado em Direito como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, 10 de julho de 2008.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________ Prof. Dr. Lenio Luiz Streck

Presidente Universidade Estácio de Sá

_____________________________________ Prof. Dr. xxxx

Universidade Estácio de Sá

_____________________________________ Prof. Dr. xxxx

Universidade xxx

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À minha família pelo apoio incondicional.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus amados filhos Caio Gabriel Vicentin e Gabriela Vicentin, esperança de um

futuro melhor.

À minha esposa Maieli Cristiane Cavalheiro Vicentin, fiel companheira de momentos

felizes e tristes.

Ao Professor Lenio Luiz Streck pelo brilhantismo de suas obras, sábias e excelentes

orientações e sugestões apontadas para elaboração deste trabalho.

À Universidade Estácio de Sá e Universidade do Oeste de Santa Catarina –

UNOESC pela oportunidade de estudo proporcionada.

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RESUMO

HERMENEUTICA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: O PROBLEMA DA (IN)ADMISSIBILIDADE DE DIREITOS SUPRALEGAIS NO BRASIL. Gláucio Wandré Vicentin.

Lenio Luiz Streck (ORIENTADOR). (Universidade Estácio de Sá).

As conquistas da legalidade têm alimentado um ideal de certeza e segurança jurídicas no direito. No entanto, diante de problemas complexos da vida social moderna, surgiram entendimentos, baseados em teorias metafísicas, que admitem causas supralegais no direito penal para fins de justificantes e exculpantes de comportamento. A hermenêutica filosófica, rompendo com o paradigma metafísico apresenta-se para proporcionar uma adequada compreensão dessas situações chamadas de supralegais, sem violação do princípio da legalidade. Têm-se como objetivo geral: apresentar uma solução condizente com o Estado Democrático de Direito para as situações de supralegalidade no direito penal brasileiro e como objetivos específicos: apresentar a evolução histórica dos modelos de Estado Moderno e sua relação na proteção dos direitos fundamentais; entender a relação do direito com a moral e com a justiça para uma prestação jurisdicional penal adequada; estudar os sistemas processuais penais e princípios de garantia do processo penal; apresentar as principais teorias sobre o pensamento jurídico moderno; estudar a teoria hermenêutica filosófica; analisar a possibilidade de se adotar causas chamadas supralegais na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito, a partir da compreensão hermenêutica. A pesquisa vincula-se à área de concentração denominada direito público e evolução social e à linha de pesquisa acesso à justiça e efetividade do processo do programa de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá. A pesquisa é do tipo bibliográfica, pois se consulta livros, periódicos, legislação e jurisprudências, disponibilizados na forma impressa ou eletrônica - internet. Fiel à compreensão hermeneutica – que é um modo de ser e não um método – a presente pesquisa foi construída a partir da análise histórica e teórica sobre os assuntos delineados e as conclusões produzidas a partir da compreensão do autor. Como resultado da pesquisa, tem-se que a atual conjuntura do Estado Democrático de Direito é conseqüência das experiências de modelos absolutistas, liberais e sociais. A constituição (1988) abriga um rol extenso de direitos fundamentais, necessários para uma adequada (re)leitura da legislação infraconstitucional, e tem força vinculante para o exercício dos poderes executivo, legislativo e judiciário. O Direito processual penal, o direito penal, a constituição, a hermenêutica e o garantismo possuem afinidades para implementação do Estado Democrático (e Social) de Direito. A partir da idéia de compreensão o sentido apresenta-se como fusão de horizontes numa perspectiva produtiva e não reprodutiva. O pressuposto metafísico do método cede espaço para a realidade/faticidade, onde cada momento é único para interpretar/aplicar o direito. Os preconceitos do intérprete aparecem como condição de possibilidade sem que hajam atos arbitrários ou discricionários porque ele está, obrigatoriamente, vinculado aos critérios de validade do ordenamento jurídico. O problema na adoção dos chamados direitos supralegais está na concepção positivista que soluciona casos difíceis através da discricionariedade do juiz. Visto sob a perspectiva hermenêutica, falar em supralegalidade é um equívoco porque a compreensão de totalidade, com base em valores normativos do sistema, soluciona a questão sem recorrer à discricionáriedade e decisionismo que levam à arbitrariedade.

(PALAVRAS-CHAVE) hermenêutica filosófica, direitos supralegais e processo penal constitucional ou democrático.

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ABSTRACT

HERMENEUTICS AND PROVISION JURISDICTIONAL: THE PROBLEM OF (UN) ADMISSIBILITY OF RIGHTS SUPRALEGAL IN BRAZIL. Gláucio Wandré Vicentin. Lenio Luiz Streck (ORIENTED). (Universidade Estácio de Sá).

The conquests of legality have fed a ideal certainty and security juridical in right. However, before the problems complex of modern social life, emerged understandings, based in metaphysics theories, admitting causes supralegal in criminal right for purposes of justifies and exculpantes of conduct. The philosophical hermeneutics, breaking the metaphysic paradigm present for to proportion adequate understanding these situation called supralegal, without violation the principle of legality. The general objective: to present a solution suitable with the State Democratic of Right for as situation supralegality in Brazilian criminal right and specific objectives: to present the historical evolution of models the Modern State and their relation in the protection of fundamental rights; understand the relation of right with morality and justice for a criminal jurisdictional provision adequar; with a justice for jurisdictional criminal provision adapt studying the systems criminal processual and principles of guarantee the criminal process; to present the main theories about the thought modern legal; study the philosophical hermeneutics theory; analysis the possibility to adopt causes called supralegal the current conjuncture of Democratic State of Right, from the hermeneutics comprehension. The research entail in the concentration area called public right and social evolution and the line of research access to justice and effectiveness of process the master's degree program in Right of Universidade Estácio de Sá. The research is bibliographical, because consultation books, magazines, legislation and jurisprudences, available in form imprint or electronic - internet. Faithful to hermeneutics comprehension– it is a way to are not a method – this research was built from the historical analysis and theoretical about the subjects outlined and conclusions produced from the comprehension of author. With result this research, has been that the current juncture of Democratic State of Right is consequence of experiences absolutists models, liberalist and social. The constitution (1988) harbors a role extensive of fundamental rights, necessary for a adequar (re)reading of legislation infraconstitucional, and have force linking for o exercise the executive power, legislative and judicial. The processual criminal right, criminal right, the constitution, the hermeneutics and garantism have affinity for implementation do State Democratic (and Social) of Right. With of idea of comprehension the meaning present with merger of horizon in perspective productive or not reproductive. The presupposition metaphysics of method cede space for the reality/faticidade, when the moment is unique for interpret/apply the right. The prejudices of interpreter appear with condition of possibility without that have acts arbitrary or discretionary because he is, obligatorily, entailed the criteria of validity of ordainment juridical. The problem in adoption of called rights supralegal is in positivist conception that solve hard cases through the discretion of judge. Seen in the hermeneutics perspective, speak in supralegality is a mistake because the comprehension of totality, based in values normative of system, solve a question without appeal to discricionariedade and desicionism that leading to arbitrariness.

(KEYWORDS) hermeneutics philosophical, rights supralegal and constitutional criminal process or democratic.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9

CAPÍTULO I

1 FORMAÇÃO DO ESTADO E LEGITIMIDADE CONSTITUINTE ......................... 12

1.1 CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO DO ESTADO: MODELOS ABSOLUTISTA, LIBERAL, SOCIAL E DEMOCRÁTICO............................................................................................. 13

1.2 LEGITIMIDADE CONSTITUINTE: QUEM DEVE SER O BENEFICIÁRIO DO CONTRATO SOCIAL? CONSTITUIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA NECESSÁRIA IMBRICAÇÃO PARA A PROTEÇÃO E GARANTIA DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS ................................. 32

CAPÍTULO II

2 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL ..... 39

2.1 FUNDAMENTOS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ADEQUADA ....... 40

2.2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, CONSTITUIÇÃO E PROCESSO PENAL: UMA APROXIMAÇÃO GARANTISTA ........................................................................... 51

2.3 PRINCÍPIOS DE GARANTIA NO PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO BRASILEIRO..................................................................................................................... 66

CAPÍTULO III

3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E (A NOVA) COMPREENSÃO DO MUNDO (E DO DIREITO)................................................................................................................... 79

3.1 PROLEGÔMENOS PARA OS APONTAMENTOS SOBRE UMA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA TRANSFORMADORA: (IN)EFETIVIDADE CONSTITUINTE NO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO........................................................................... 80

3.2 VIRAGEM ONTOLÓGICA: A FILOSOFIA A SERVIÇO DE UMA “NOVA” MANEIRA DE COMPREENDER O MUNDO E A DERRUBADA DO REINADO METODOLÓGICO COMO FONTE DA VERDADE......................................................... 90

3.3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA (TRANFORMADORA): VALORIZAÇÃO DO SER, LINGUAGEM E COMPREENSÃO COMO FATORES QUE DENUNCIAM O EQUÍVOCO DA HERMENÊUTICA TRADICIONAL PROCEDIMENTALISTA ............ 98

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3.3.1 Utilização do método no direito.................................................................................. 99

3.3.2 Valorização do ser, linguagem e compreensão: pressupostos de uma resposta adequada .......................................................................................................................... 106

CAPÍTULO IV

4 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O COMPREENDER DAS JUSTIFICANTES E EXCULPANTES PENAIS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL JUSTA E DEMOCRÁTICA ........................................................................................................... 124

4.1 DIREITOS CHAMADOS SUPRALEGAIS NA TEORIA GERAL DO DELITO: CULPABILIDADE COMO FUNDAMENTO DA PENA E SITUAÇÕES DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA E ELIMINAÇÃO DA ANTIJURIDICIDADE PELO CONSENTIMENTO DO OFENDIDO.............................. 126

4.2 O EQUÍVOCO DO DISCURSO SOBRE OS CHAMADOS DIREITOS SUPRALEGAIS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: A COMPREENSÃO DAS EXCULPANTES E JUSTIFICANTES NA TEORIA DO DELITO COMO FUNDAMENTO PARA INTERPRETAÇÃO ADEQUADA................................................................................... 146

CONCLUSÃO................................................................................................................. 159

REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 164

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INTRODUÇÃO

A hermenêutica filosófica é a concreta possibilidade de revolução no modo de

entender o mundo e também o direito. A partir da teoria hermenêutica são desveladas as

possibilidades do compreender o que proporciona uma interpretação adequada do direito –

visão de totalidade – que visa o pagamento da histórica dívida social vivenciada no período

moderno.

Os Estados modernos e neles a concepção de direito como instrumento regulador

dos comportamentos sociais está fortemente alicerçado sobre as bases da legalidade. Não resta

dúvida de que ela é uma das essenciais conquistas da humanidade, principalmente porque

representa freio ao arbítrio.

A teoria geral do delito evoluiu significativamente no último século, principalmente

na tentativa de solucionar problemas cada vez mais complexos da vida social moderna. Com

essas mudanças sociais surgiram entendimentos que admitem as chamadas causas supralegais

no direito penal, exclusivamente para fins de eliminação da antijuridicidade e excludentes de

culpabilidade.

Então, de um lado têm-se as conquistas da legalidade e, de outro, manifestações pela

adoção de situações supralegais, bem como compreensões teóricas baseadas na tradição

metafísica. Paralelamente, a hermenêutica filosófica apresenta-se como proposta para uma

resposta adequada.

A indefinição sobre a adoção da supralegalidade no direito penal gera insegurança

jurídica porque se teme ao arbítrio de decisionismos e discricionariedades nada condizentes

com o atual Estado Democrático de Direito. Também, não é razoável impor a coerção do

direito penal às situações flagrantemente justificáveis de comportamento, pois se nutrem

situações injustas para os acusados.

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Assim, é preciso apresentar uma solução para as situações de supralegalidade no

direito penal brasileiro condizente com o Estado Democrático de Direito. Os caminhos

trilhados nessa pesquisa têm como base de sustentação a formação do Estado e legitimidade

constituinte, a prestação jurisdicional e o Processo Penal Constitucional, a hermenêutica

filosófica como compreensão do mundo (e do direito) e a adequada interpretação das

justificantes e exculpantes para configuração do delito.

No primeiro capítulo aborda-se a evolução histórica dos modelos de Estado

Moderno pretendendo-se caracterizar a relação do Estado na proteção dos direitos

fundamentais, pois compreender as nuances históricas a partir do contrato social – direito

como explicitação da vontade soberana do povo a serviço da sociedade – é de fundamental

importância para a aplicação do direito na atual conjuntura do Estado Democrático, ou seja, o

capítulo se justifica porque o sentido de Constituição, que é fundamental para efetividade dos

direitos fundamentais, depende de uma compreensão histórica do papel do Estado na

sociedade.

No segundo capítulo apresenta-se a aproximação do direito com a moral para uma

prestação jurisdicional penal justa, bem como um estudo sobre os sistemas processuais penais

e os princípios de garantia do processo penal relacionados com a necessária (re)leitura do

direito infraconstitucional processual penal. O capítulo é relevante porque o processo penal

constitucional é o caminho necessário para aplicação do direito material (teoria do delito).

Por sua vez, no terceiro capítulo contemplam-se as principais teorias sobre o

pensamento jurídico moderno e o estudo da hermenêutica filosófica como (nova) forma de

compreender o mundo e o direito a fim de subsidiar as conclusões que contrapõem essa teoria

às causas chamadas supralegais.

Por fim, no quarto e último capítulo analisa-se a possibilidade de se adotar causas

chamadas supralegais na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito, a partir da

compreensão hermenêutica.

A pesquisa é do tipo bibliográfica porque se consulta livros, periódicos, legislação e

jurisprudências, disponibilizados na forma impressa ou eletrônica - internet.

Fiel à compreensão hermeneuta – que é um modo de ser e não um método –

endende-se que a produção da verdade se dá a partir da faticidade/historidicidade do

intérprete, pois é quem traz consigo seus pré-juízos na conformação do ato decisório para

produção da verdade. A presente pesquisa foi construída a partir da análise histórica e teórica

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sobre os assuntos delineados e as conclusões produzidas a partir da compreensão do autor.

A pesquisa vincula-se à área de concentração denominada direito público e evolução

social e à linha de pesquisa acesso à justiça e efetividade do processo do programa de

Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá.

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CAPÍTULO I

1 FORMAÇÃO DO ESTADO E LEGITIMIDADE CONSTITUINTE

O Estado é o espelho de um jogo – de interesses sociais – disputado por uma luta de

classes. A luta travada do medievo até a atualidade sobre a constituição e atuação do Estado

está relacionada à busca do poder com o objetivo de atingir dominação. Na atividade Estatal a

classe social privilegiada acabou por fazer prevalecer seus interesses e suas vontades em

detrimento dos oprimidos, seja por embargos políticos ou econômicos.

Não se pode negar que o direito é produto e instrumento desse processo histórico

evolutivo. No primeiro caso porque seus preceitos emergem desse meio conflituoso e refletem

o desejo de determinada sociedade. No segundo, porque se utiliza da coerção para fazer valer

os preceitos previamente estabelecidos (produto) e constitui-se numa tentativa de controlar os

comportamentos humanos através de uma pretensão de completude – equivocada.

Por mais paradigmático que possa parecer, esse processo histórico evolutivo

conduziu para soluções positivas na medida em que surgiram alternativas que olharam para o

social, num processo de inclusão indireto dos marginalizados1.

É preciso alertar que as mudanças para contemplar os excluídos não ocorreram por

bondade ou piedade dos detentores do poder, mas por necessidade de sobrevivência social e

Estatal.

A principal novidade no âmbito jurídico é a construção, pelos profissionais jurídicos,

de uma nova concepção sobre a Constituição e seus princípios. Os direitos fundamentais

declarados na Constituição passaram a ser garantidos a todos os cidadãos do Estado,

1 Como a própria grafia da palavra denota, a expressão refere-se àqueles que se encontravam à margem da sociedade – excluídos do contrato social – principalmente por fatores genealógicos e econômicos.

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independentemente da classe social a que pertença.

A partir do processo histórico evolutivo do Estado, da sociedade e do próprio direito,

fala-se agora em Constitucionalização dos direitos e garantias fundamentais, como uma forma

de equilíbrio à luta de classes.

Dessa forma, é preciso olhar e entender o passado para compreender o presente e

projetar o futuro. A análise sobre o surgimento e a evolução do Estado é ponto fundamental

para compreensão da trajetória não linear e não acabada da democratização do direito.

Parte-se de uma análise sobre o surgimento da forma moderna de Estado, teorizada

por grandes pensadores contratualistas como Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu. Num

segundo momento analisam-se as formas de Estado Absolutista, Liberal, Social e

Democrático a fim de identificar para quem os direitos foram/são dirigidos e estabelecer a

relação entre garantia e efetivação.

1.1 CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO DO ESTADO: MODELOS ABSOLUTISTA, LIBERAL,

SOCIAL E DEMOCRÁTICO

O surgimento do Estado e seu desenvolvimento estão vinculados aos movimentos

sociais de interesses de classes.

A decadência da sociedade Feudal, a influência do modelo absolutista, o surgimento

da revolução Burguesa e as principais guerras mundiais são marcos históricos importantes,

vistos sob a ótica histórico-sociológica e hermenêutica, para a compreensão da origem e

evolução das várias formas de Estado moderno, bem como para entender o papel do direito na

sociedade.

Dessa forma, abordam-se o surgimento do Estado e os principais modelos

verificados no decorrer da história, a partir do período medieval, a fim de se identificar os

movimentos sociais que formaram o conceito atual de Estado, Constituição e percepção sobre

a efetividade dos direitos.

Existem diversas abordagens conceituais sobre o Estado. Como destaca Dallari,

definir um conceito ao Estado não é tarefa fácil devido à existência de múltiplos enfoques que

se pode ter sobre ele (não há uma uniformidade conceitual). As abordagens contemplam, aos

seus extremos, desde o aspecto primitivo – primeiros agrupamentos de homens – até a

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realidade histórica – que vincula o conceito a determinadas características (noção restrita). Por

outro lado, a diversidade conceitual é justificada pelos diversos olhares sobre o Estado

(sociólogo, jurista e cientista político). Geralmente o Estado é conceituado como ‘sociedade

política’ – expressão do poder político. Esse poder, no decorrer dos séculos, vem sofrendo

limitações jurídicas e, dessa forma, devem-se ter presentes dois aspectos para conceituá-lo: o

político e o jurídico.2

Miranda afirma que “O Estado é uma sociedade política com indefinida

continuidade no tempo e institucionalização do poder [...]” (exercido em determinado

território). Figura como promovedor da integração, direção e defesa da sociedade e tem como

fim a sua própria sobrevivência. O “[...] Estado é um caso histórico de existência política [...]”

e equivale a “[...] falar em comunidade e em poder organizados [...]” juridicamente. 3

Ante a diversidade apresentada e por considerar necessário um conjunto normativo

para regular a vida social e política do homem, adota-se uma postura que contempla três

aspectos: social, político e jurídico, o que acaba por não divergir de Dallari porquanto

sociedade e política encontram-se num enlace necessário.

Segundo essa percepção, o conceito de Estado pode ser definido como “[...] ordem

jurídica soberana, que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado

território [...]”.4 O conceito de soberania5 é decorrente dessa forma de organização política

para dar mais vigor ou força a ordem jurídica. Por sua vez, o território é a delimitação de

ordem física/material onde essa força tem atuação.

2 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 41-45. 3 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 22; 168-170. (grifo do autor). 4 DALLARI, 2001, p. 41-45. 5 A soberania, historicamente, caracteriza-se como “[...] poder que é juridicamente incontrastável, pelo qual se tem a capacidade de definir e decidir acerca do conteúdo e da aplicação das normas, impondo-as coercitivamente dentro de um determinado espaço geográfico, bem como fazer frente a eventuais injunções externas. Ela é, assim, tradicionalmente tida como una, indivisível, inalienável e imprescritível.” Modernamente este conceito vem sofrendo fortes investidas proporcionadas pela globalização, criação de comunidades supranacionais, empresas transnacionais (poder econômico), organizações não governamentais e a própria transformação do modelo de Estado (Liberal Clássico para o Bem-Estar Social). MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 25-30. O “[...] discurso da soberania, em sua fase inicial, surge com o objetivo específico de proclamar a legimidade do poder real. [...]” (dimensão de persuasão e normatividade). A partir da contestação burguesa ao regime absolutista (tradicionalmente legitimado pelo direito natural), a legitimação do poder soberano passa ao povo, considerado como Nação. (soberania popular – origniária do contrato social). No séc. XIX surge na Alemanha a teoria da personalidade jurídica que atribui legitimidade à lei, num processo que legitima Estado e Direito, a partir da Constituição e da finalidade do direito que é o bem comum (legitimidade impessoal). ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2005, p. 149-150.

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As teorias sobre o surgimento da sociedade6 dividem-se em naturalistas e

contratualistas. A primeira considera que a associação entre os seres humanos está vinculada à

idéia de vontade natural e intrínseca ao homem. Constitui-se num impulso natural do homem

para viver em sociedade – desejo de viver em sociedade. Seus principais representantes

teóricos são: Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e Oreste Ranelleti.7 A partir de uma

abordagem contratualista o homem é considerado detentor de uma autonomia de vontade,

impulsionada por uma percepção de convívio pacífico e organizado. Eles sentem a

necessidade de estabelecer um representante desse poder e o fazem através da celebração de

uma espécie de contrato simbólico (transferência de direitos).

Adota-se como referência, sem pretensão de esgotar o assunto, a abordagem em que

a formação da sociedade está justificada pelo acordo de vontades (contratualismo), ainda que

não declaradas formalmente.

A concepção contratualista deita raízes no pensamento político medieval que

afirmava origem popular do poder, presente, principalmente, nos séculos XVII e XVIII.8 Na

percepção de Streck e Morais o contratualismo cumpriu uma função histórica de iniciar a

sociedade política, pois “[...] pretende estabelecer, ao mesmo tempo, a origem do Estado e o

fundamento do poder político a partir de um acordo de vontades, tácito ou expresso, que

ponha fim ao estágio pré-político (estado de natureza) e dê início à sociedade política (estado

civil).” 9

Como principais teóricos contratualistas tem-se: Thomas Hobbes (Leviatã, parte I,

Cap. XVIII.), John Locke (Segundo Tratado Sobre o Governo Civil), Montesquieu (Do

Espírito das Leis, Livro I, capítulo II) e Rousseau (O Contrato Social, Livro I, capítulo I).

Thomas Hobbes foi um defensor do sistema monárquico de governo, mas as suas

idéias serviram de base para a justificação da criação dos Estados modernos baseados na

divisão dos poderes, o que ocorreu aproximadamente um século após a publicação de sua obra

Leviatã (1651).

Em Hobbes, a arte – criação racional – imita a natureza. Ela cria um homem de

avantajado porte – “[...] maior estatura e força do que o homem natural [...]” – que é o Estado 6 Prefere-se o emprego da palavra sociedade e não Estado, porquanto o elemento ordem jurídica (ainda que não escrita) é necessário para formação do conceito de Estado. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 11. 8 MIRANDA, 2007, p. 161. 9 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política & teoria do Estado. 5. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 29.

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(Leviatã) que tem por objetivo proporcionar segurança à coletividade.10

O homem é dotado de uma igualdade justificada pelas diversas formas de se obter

algo desejado por eles, ou seja, o mais fraco fisicamente tem as mesmas condições de derrotar

o mais forte porque pode se utilizar de “maquinação” ou aliar-se aos outros homens. Quando

os desejos são comuns eles tornam-se inimigos e partem para a guerra, gerando uma situação

de perigo e desconfiança permanente. Para suprir a insegurança são criados (por pacto) o

poder soberano que determina as leis. A companhia entre os homens é uma situação de

desprazer quando não amparada por alguém que imponha o respeito entre eles. A ausência

desse poder comum gera a guerra “[...] que é de todos os homens contra todos os homens

[...]”.11

A associação entre os homens objetiva um convívio social pacífico. Nesse aspecto

“As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas

coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do

trabalho. [...]”.12

Hobbes justifica as razões do contratualismo no fato de que o indivíduo precisava

preservar sua própria vida. Dessa forma, o homem transfere poderes em troca de segurança,

para evitar a guerra de todos contra todos (‘o homem é lobo do homem’).13 Assim, o homem é

naturalmente mal porque tem anseios de dominação e opressão para com o próximo. Por outro

lado, os poderes humanos para fazer valer seus desejos malévolos não são tão superiores a

ponto de torná-los absolutos a um só ser, pois os demais homens podem encontrar-se em

situação de desigualdade física, mas não de potencialidade lesiva ao outro.

Um clima de ameaça constante está presente nas formas primitivas de vida. Os

homens demonstram-se fracos na medida em que têm o medo da morte. O associativismo

torna-se necessário por questões de conveniência – proporcionar o conforto – e sobrevivência

– neutralizar a ameaça constante. A eleição de um soberano se impõe como forma de conter o

medo, a sensação de insegurança e o desejo de vida confortável.

John Locke é considerado o pai do liberalismo, pois afirma que o homem realiza um

pacto de consentimento para “[...] preservar e consolidar os direitos já existentes [...]”. Assim,

admite direitos naturais pré-existentes (estado de natureza), que estabelecem os limites da 10 MALMESBURY, Thomas Hobbes. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 05. 11 Ibidem, p. 74-75. 12 Ibidem, p. 77. 13 STRECK; MORAIS, 2006, p. 30-37.

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convenção, para que possam ser garantidos pelo soberano (o que gera um quadro de

associação e submissão).14

Os homens vivem em estado de liberdade, mas não de permissividade. O estado de

natureza é comum a todos os homens, que são portadores de direitos naturais fundamentados

pela razão e concebidos de forma igual e independente pelo criador-todo-poderoso. Assim, é

possível afirmar que um homem não está autorizado a utilizar o outro como instrumento de

suas vontades (a hierarquia levaria a destruição uns dos outros) e no caso de violação dessas

leis naturais (renúncia à razão) o ofendido está legitimado a revidar em nome da prevenção e

conservação do estado de natureza.15

A renúncia a esse direito individual de punir (julgamento particular) que cada um

possui naturalmente se dá em favor da comunidade formando-se uma sociedade política

caracterizada por regras imparciais e homens autorizados a fazê-las cumprir. 16

Locke apresenta um estado de natureza bom reafirmado pelo contrato social. Na

sociedade – convivência comum – um homem está naturalmente legitimado a repelir a

violação das regras estabelecidas pelo outro, porém, não o faz com suas próprias mãos, mas

outorga o poder a um representante chamado Estado.

O final do julgamento particular se dá por consentimento e acordo com os outros

homens a fim de se assegurar “[...] uma vida confortável, segura e pacífica uns com os outros,

desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não

são daquela comunidade. [...]”. Assim, forma-se um corpo político que age e decide com base

nas vontades da maioria.17

Através da criação de regras imparciais, legitimadas pelos indivíduos que compõem

a sociedade, o Estado assegura a igualdade entre os homens. Dessa forma, assegura o estado

de natureza em razão da vigilância permanente que estabelece e da repressão legítima quando

da ocorrência de eventual violação.

Assegurar a igualdade e a liberdade nos limites do contrato social constitui uma

mudança de paradigma. O Estado passa a atuar como garantidor desses valores – nova forma

de pensar – que são a bandeira do Estado Liberal, sucessor de um modelo desprovido de

14 STRECK; MORAIS, 2006, p. 30-37. 15 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 84-86. 16 Ibidem, p. 133. 17 Ibidem, p. 139.

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garantias previamente estabelecidas.

Para Montesquieu as leis se dividem em leis da natureza e leis positivas. As

primeiras derivam da criação e são visualizadas através de um olhar para a constituição da

sociedade enquanto que as últimas decorrem da perda do sentimento proporcionado pelas

primeiras gerando um estado de guerra.

As leis da natureza são derivadas da constituição do ser e devem ser estudadas a

partir de um olhar para o antes da formação das sociedades. As leis da natureza são quatro: a)

o homem no seu estado natural provém de um criador e não possui conhecimentos, mas tem a

faculdade de conhecer. Pensando na conservação do seu ser sente-se fraco, tímido e inferior

ocasião que conduz à paz, que é a primeira lei natural.18 b) a segunda lei natural decorre do

sentimento de inferioridade e fraqueza da primeira lei. Diante dessa compreensão o ser

humano sente a necessidade de alimentar-se, originando-se a segunda lei natural. c) a

aproximação natural dos homens pelo fator prazer dá-se como a de qualquer espécie e é

inflamada pelo encanto que os sexos se inspiram. A procura natural se torna uma das leis

naturais. d) os homens podem ter conhecimentos e isso os diferencia dos demais animais

conduzindo-os a uma união. Assim, o desejo de viver em sociedade é a última das leis

naturais.19

As leis positivas são estabelecidas pelo próprio homem em decorrência de sua

capacidade de inteligência – fruto da razão humana. O sentimento de força ocasionado pela

perda dos sentimentos de igualdade e fraqueza advindos das leis naturais geram um estado de

guerra entre nações e entre os indivíduos e sociedade. No intuito de conter o estado de guerra

estabelece-se o direito das gentes (entre povos), dos governos (políticos) e entre os cidadãos

(civil). 20

Dessa forma, há um elemento natural – criação – do homem que contribui para a

formação de uma sociedade pautada no espírito da igualdade, fraqueza e humildade. Nesse

ponto há a concepção do homem que nasce bom.

Ocorre que essa bondade sofre influência de uma racionalidade intrínseca ao homem

– capacidade de conhecer e criar – fortemente influenciada pela inteligência. Esse é o fator

18 Nesse ponto encontra-se divergente à teoria de Thomas Hobbes, pois para este o homem tem um desejo de sobrepor-se ao outro. Montesquieu não considera razoável essa posição porque o temor dos homens o levariam a fugir e não associar-se. 19 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes. Tradução Pedro Vieira Mota. 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 82-83. 20 Ibidem, p. 83-84.

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que gera a guerra.

As paixões, o desejo de dominação e o sentimento de superioridade conduzem a

formação de leis que passam a regular o meio de vida em sociedade. O homem torna-se capaz

de elaborar suas próprias leis fundadas por um processo de sentimento egocêntrico. Daí

decorre que a formação do Estado advém da criação racional dos homens – contratual.

Ainda, a partir da reflexão sobre a constituição da sociedade através do elemento

racional – leis positivas – Montesquieu tem consciência de que essas mesmas leis estão

sujeitas a modificação porque o homem é limitado pelo seu erro e sua ignorância, servindo a

muitas paixões.21

A sociedade surge, então, a partir da criação de um homem perfeito, mas com

capacidade – possibilidade de – para imperfeição. Após superar suas fragilidades desloca-se

de um estado de paz para um estado de guerra. Para conter o estado de guerra cria leis

positivas que também estão sujeitas às paixões e erros naturais da fragilidade do

conhecimento humano.

Rousseau, por sua vez, afirma que o homem nasce livre, porém está acorrentado. Ele

“[...] Julga-se senhor dos demais seres sem deixar de ser tão escravo como eles. [...]”.22

Introduz o pensamento de que o homem não é mau por natureza, mas através do decorrer

histórico, transforma-se em “lobo do homem” (‘Tudo é bom quando sai das mãos do autor das

coisas’, porém, ‘tudo se degenera nas mãos do homem’). Dessa forma, o homem possui no

seu íntimo um sentimento de justiça.23

Os homens viviam no estado natural e foram forçados à mudança em decorrência de

ameaças de perecimento. A união entre eles foi o caminho para fazer força contra as

resistências do modo de vida primitivo. O contrato social visa a proteção das pessoas e dos

bens, assegurando-se a liberdade dos indivíduos. Todos os homens a partir da elaboração do

pacto pelo qual houve “[...] a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a

favor de toda a comunidade [...]” estão em condição de igualdade.24

Em decorrência do contrato cada homem obriga-se com o todo do qual faz parte.

O pacto social assegura a liberdade de todos, porque na medida em que ocorre a violação da

21 MONTESQUIEU, 2004, p. 82. 22 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. Tradução Antônio de P. Machado. 20. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 25-26. 23 STRECK; MORAIS, 2006, p. 30-37. 24 ROUSSEAU, 2002, p. 34-36.

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vontade geral por um indivíduo ele é repreendido de acordo com o estabelecido, evitando-se

abusos, tirania e absurdos. O homem é portador de um instinto de justiça e obedece ao

impulso físico no estado natural (vontade limitada pelas forças individuais). Quando passa

para o estado civil deve se utilizar da razão antes de atender aos seus caprichos (dever de

moralidade – pensar na vontade geral). O homem perde a liberdade natural e um direito

ilimitado e ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui.25

Não houve a destruição da igualdade material presente no estado natural, porque

“[...] o pacto fundamental substitui, pelo contrário, uma igualdade moral e legítima no que a

natureza deu de desigualdade física aos homens que, podendo ser desiguais em força ou

engenho, tornam-se, por convenção e de direito, iguais.”26

Dessa forma, o homem nasce livre e possui uma igualdade material com seus

semelhantes, mas por questões de sobrevivência está forçado às mudanças. Ele passa de uma

igualdade material para uma igualdade moral firmada por convenção (pacto) na qual aliena

em favor da comunidade sua liberdade que antes era ilimitada.

Para Miranda, em Rousseau o pacto social representa “[...] a alienação total de cada

associado, com todos os seus direitos, à comunidade, de sorte que cada um, dando-se a todos,

não se dá a ninguém, a condição é igual para todos e cada um ganha o equivalente daquilo que

perde e mais força para conservar aquilo que tem.”27

A razão é que auxilia o homem nas mudanças necessárias para a sobrevivência –

passagem do estado natural ao estado civil – caracterizando-se o contratualismo da teoria de

Rousseau.

Ponto comum entre as teorias contratualistas aqui brevemente expostas é que a

“transferência do poder” do individual ao representante do grupo social surge a partir de uma

escolha humana, ou seja, o homem estabelece vínculos sociais com o outro e outorga poderes

(racionalmente) ao soberano que gerencia as vontades da coletividade. Assim, ao Estado é

outorgado poder pelos indivíduos do grupo social. Ele torna-se o legitimado para organizar as

escolhas dos “contratantes” tendo em vista o bem comum.

A partir daí, surge a necessidade de se estabelecer princípios básicos e fundamentais

para a vida em sociedade (regras criadas para tornar mais pacífico e harmonioso o convívio

social). Criam-se direitos e deveres que podem relacionar-se entre o Estado e o indivíduo (ou 25 ROUSSEAU, 2002, p. 38-39. 26 Ibidem, p. 42. 27 MIRANDA, 2007, p. 162.

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vice-versa) ou entre este e os demais homens, formando-se um emaranhado complexo de

relações sociais de poder28 que necessita de organização na medida de sua evolução histórica.

O Estado caracterizado como “[...] organização de governantes e de governados ou

comunidade de cidadãos [...] constitui a sociedade política [...]” mais complexa, sólida e

expansiva dos últimos séculos e da história.29

O poder do Estado é indivisível e apresenta-se como fundamental para sua

estruturação, porquanto impõe aos indivíduos da sociedade deveres para com o próximo, com

o Estado e também do Estado em relação aos seus cidadãos. A divisão de poderes na forma

proposta por Montesquieu: legislativo (o que faz as leis), executivo (o que administra) e

judiciário (o que julga) ocorre para possibilitar o exercício das funções básicas do Estado.30

Ocorre que as escolhas do representante do Estado, legitimadas pela vontade dos

“contratantes”, nem sempre são bem intencionadas. A delegação de poder a um representante

também gera deveres e opressão para os homens na medida em que implica renúncia de poder

individual para um grupo politicamente dominante que nem sempre defende os interesses

comuns, mas advoga para uma determinada classe privilegiada.

O Estado surgiu para proteger interesses e necessidades do homem, porém sua

organização pressupõe relações de poder e de dominação. A experiência histórica tem

mostrado que o Estado serve aos interesses de classes dominantes e tem se preocupado

somente com a “elite” social. É nesse sentido a manifestação de Jardim: “[...] historicamente o

Estado tem servido de instrumento da classe dominante para a manutenção de situações de

privilégio, em detrimento das classes menos favorecidas [...]”.31

É certo que a associação racional entre os homens trouxe benefícios individuais e

coletivos. Os progressos resultantes da união de forças são evidentes na medida em que se

observa o desenvolvimento econômico, tecnológico e científico.

O mesmo não se pode dizer do desenvolvimento social, porquanto historicamente os

avanços têm sido pouco significativos. O indivíduo, a partir da intensificação das relações

com o outro, está submerso a uma trama complexa de fenômenos comportamentais que

28 Em oposição aos poderes tradicional (crença) e carismático (liderança), o poder racional-legal está fundamentado na crença nos ordenamentos jurídicos. MORAES, Filomeno. Poder. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 642. 29 MIRANDA, 2007, p. 1. 30 CARVALHO, Jéferson Moreira de. Poder Constituinte: funções e limites. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 14; 17. 31 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 1.

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aplaudem fraudulentamente a exclusão e valorizam a racionalidade e a esperteza em

detrimento dos valores humanitários e de solidariedade.

Nesse sentido, o Estado é monopolizador do Poder e torna-se, em determinados

momentos, extravagante e irresponsável, voltando-se contra seu criador.32

A forma de organizar a concentração desse poder delegado ao Estado (que pode se

tornar nocivo) tem sido, nos Estados modernos, a escrita33. Os ordenamentos jurídicos têm

sido a resposta mais coerente para limitação do poder, na medida em que apresenta freios ou

controles ao exercício funcional do próprio Estado.

O Estado deve ser compreendido com o direito. As normas jurídicas são impostas

aos indivíduos (particulares) e ao Estado, de modo que as “[...] instituições que exercem

autoridade pública devem obediência ao Direito (incluindo ao Direito que criam). 34 Ele é uma

instituição normativa e organizadora que se utiliza do Direito para fazer valer a realização do

bem comum.35

Sob o ponto de vista formal, o poder constituinte pode ser considerado como

formador do Estado e da organização e estrutura da sociedade política, manifesta na

Constituição.36 A vontade manifesta na Constituição deve servir como lei fundamental para o

funcionamento do Estado e como meio de assegurar direitos fundamentais aos cidadãos, numa

perspectiva inclusiva (para todos).

Dessa forma, completa-se o círculo conceitual sobre o Estado que apresenta o social

(agrupamento humano), o político (relacionamento entre os homens) e o jurídico (normas para

vida em sociedade).

Uma análise evolutivo-histórica responsável faz-se necessária para se estabelecer

parâmetros concretos sobre a forma antiga de se ver o Estado. A partir disso é possível

identificar se aqueles “erros” do passado estão presentes na forma atual de conceber o Estado

e o direito. 32 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 28. 33 As normas fundamentais eleitas para tornar possível o convívio social e proporcionar o bem estar comum nem sempre foram escritas. Houve um processo evolutivo, primeiramente, mais preocupado com a manutenção do poder do que assegurar direitos fundamentais ao indivíduo. Conforme relata Saldanha, o surgimento do conceito contemporâneo de Constituição escrito-legalista-positivo se deu a partir da Revolução Francesa, que além da estrutura política assegurou direitos fundamentais. Diversamente ocorreu na experiência Inglesa (Carta Magna de 1215), que apenas declarou direitos e teve como objetivo principal a manutenção do poder, atribuindo a Constituição conotação de regimento político. SALDANHA, Nelson. Formação da Teoria Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 113-114. 34 MIRANDA, 2007, p. 1-2. 35 JARDIM, 2007, p. 3. 36 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 122.

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Assim, estabelece-se uma abordagem sobre o Estado absolutista, liberal, social e

democrático, considerando-se os aspectos ideológicos e não meramente cronológicos.

O Estado absolutista caracterizava-se pelo modelo centralizador, invocado pelas

idéias de proteção e segurança proporcionados pela intervenção de exércitos bem

organizados. Ele esteve legitimado, inicialmente, por uma compreensão de atribuição do

poder divino para organização da sociedade.

O Estado absolutista constitui-se na primeira versão do Estado moderno e nasce das

necessidades do capitalismo em ascensão na passagem do período medieval. A partir de

relações econômico-sociais emergem situações de dominação de classes.37

A burguesia se impôs na sociedade, o capitalismo começou a estruturar-se e houve o

rompimento com o cristianismo geocêntrico, alterando-se a visão de mundo e os valores

sociais (Renascimento). Esses movimentos sociais levaram à necessidade de se rever os

fundamentos da legitimidade do poder estatal, como ideal de ordem, pois: “[...] o princípio

feudal, que vinculava o rei ao império e ao Papado, bem como aos cepos da nobreza, não

serviria mais. [...]”.38

O absolutismo sucede o sistema Feudal39, porém mantém as características da

relação “imperium e senhoriagem”. O homem medieval que antes obedecia ao Senhor Feudal

e era servo da gleba, agora é súdito do rei. Passa-se de uma dominação carismática para uma

dominação fundada na burocracia e no exército – modelo legal-racional.40

O Poder dos governantes monárquicos, historicamente, foi justificado por atribuição

divina, principalmente no primeiro período absolutista. Seus governos ocorreram num período

onde não se verificavam explicações científicas para os fenômenos naturais ocorridos na

sociedade. Com os desenvolvimentos científico, tecnológico e econômico, influenciados pelo

racionalismo iluminista, operou-se uma nova reflexão sobre essa fonte de poder.

Nesse sentido, Miranda esclarece que o primeiro período da evolução absolutista,

que avançou até o início do séc. XVIII, caracterizou-se por justificar o poder do Rei sob o 37 STRECK; MORAIS, 2006, p. 28. 38 SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica. 2. ed. rev. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2003, p. 192-194. 39 São exemplos de sociedades políticas pré-estatais: “[...] a família patriarcal, o clã e a tribo, a gens romana, a fratria grega, a gentilidade ibérica, o senhorio feudal.” MIRANDA, 2007, p. 20. No sistema feudal o direito “[...] define-se como estatuto jurídico não abrangente, pois é produzido para legitimar a especificidade de uma hierarquia social claramente estabelecida nas distinções entre clero, nobreza e campesinato.” WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p. 28. 40 STRECK; MORAIS, 2006, p. 45-46.

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aspecto religioso, pois ele pretendia-se escolhido por Deus para governar. Em outra fase,

subseqüente, os poderes passam a ser justificados racionalmente – despotismo esclarecido –

influenciado pelo pensamento iluminista.41

A monarquia absolutista está fortemente alicerçada na idéia de soberania e

concentração de todos os poderes nas mãos do rei, “[...] permitindo-se personificar o Estado

na figura do rei, ficando na história a frase de Luiz XIV, o Rei Sol: L’État c’est moi – O

Estado sou eu.” 42

O critério político para as decisões do Estado está baseado na conveniência e no bem

público, relegando a justiça e a legalidade para segundo plano.43 No Estado absolutista as

vontades do monarca eram absolutas e incontestáveis. Qualquer pessoa que contestasse a

monarquia era fortemente repreendida sob a acusação de heresia, cujas penas eram as mais

cruéis e atrozes.

Nesse período pode-se observar a utilização desenfreada do poder para satisfação

dos caprichos pessoais da família real e também como forma de demonstrar força aos súditos.

A estes restava somente a obediência como saída, porquanto não exerciam qualquer forma de

controle desse poder. A submissão à vontade do soberano era absoluta.

Partindo-se de uma análise contratualista, além dos benefícios individuais e

coletivos proporcionados (segurança e convívio pacífico), em determinadas situações, o poder

exercido pelos monarcas tornou-se extremamente danoso aos próprios indivíduos outorgantes.

Na medida do aumento da complexidade das relações sociais e da estrutura do próprio Estado

as vontades contratuais cederam às arbitrariedades do representante.

Pode-se sintetizar o sistema absolutista na metáfora utilizada por Hobbes, em

Leviatã, que significa um monstro que protege os pequeninhos e quando tem fome os come.44

O absolutismo garantiu aos comerciantes a segurança necessária para realizarem

seus negócios mercantes e constitui-se no embrião dos movimentos sociais e políticos da

classe burguesa que reivindicava vez e voz no poder (fundamentos da revolução).

Nesse período incrementa-se o capitalismo – primeiro na versão comercial e depois

na industrial – enaltecendo a burguesia (poder econômico), o que leva ao desejo político,

41 MIRANDA, 2007, p. 43. 42 STRECK; MORAIS, 2006, p. 45. 43 MIRANDA, 2007, p. 43. 44 STRECK, Lenio Luiz. Anotações de sala de aula. Curso de Pós-graduação Strito Sensu em Direito (mestrado em Direito). Universidade Estácio de Sá. Xanxerê, fev. 2007.

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objeto da revolução que sucede o período.45

O que determinou, gradativamente, o descrédito e a decadência do modelo

absolutista de Estado foi a justificativa religiosa apresentada para fundamentar o poder e a

utilização desenfreada do poder como algo tirano e desprovido de limitações (porque

concentrado no papel do monarca que criava as regras a seu bel prazer, julgava em

desigualdades e executava para demonstrar sua força) e o reforço econômico burguês aliado

aos anseios políticos dessa classe. Esse modelo de Estado tem seu fim marcado pela

Revolução Francesa.

A revolução burguesa surge diante do descontentamento dos comerciantes que não

possuíam vez e voz política nos sistemas feudal e absolutista – para além da concentração

econômica queriam o poder político.

Esse novo modelo46 apresenta uma inversão de valores porque “[...] Em vez da

tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei como

expressão da vontade geral; em vez do exercício do poder por um só ou seus delegados, o

exercício por muitos, eleitos pela coletividade; [...]” o Estado como executor de normas

jurídicas e a passagem de súditos à cidadãos.47

O Estado foi implantado com a monarquia absolutista e depois foi reelaborado como

ordem Constitucional. Liberalismo e legalismo são versões iluministas da política e do

direito.48

A França foi o palco ideal para o desenrolar da Revolução porque os Nobres e o

Clero não pagavam impostos.49 No contexto da Revolução Francesa, as teorias de Sieyès

(apesar de advogar para a burguesia) contribuíram significativamente para a discussão sobre o

espírito democrático50 de inclusão das minorias excluídas. Uma das maiores contribuições

apresentadas foram suas observações sobre o Poder Constituinte.

Em Sieyès, a solução para quebrar as barreiras dos privilégios até então usufruídos

45 MIRANDA, 2007, p. 44. 46 “Os mais significativos textos desta nova concepção são americanos e franceses – a Declaração de Direitos de Virgínia e a Declaração de Independência do Estados Unidos, ambas de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, aquelas mais próximas do pensamento cristão, esta de um racionalismo laico.” Ibidem, p. 46. 47 Ibidem, p. 45. 48 SALDANHA, 2003, p. 197. 49 STRECK; MORAIS, 2006, p. 52. 50 Para Rocha, apesar das significativas contribuições de Sieyès no campo da limitação às arbitrariedades do poder ele não se afasta dos privilégios de propriedade. Assim, “[...] a democracia em Sieyès não chega a ultrapassar a barreira do Direito natural burguês.” ROCHA, 2005, p. 162.

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pelos nobres e pelo clero é a Convocação de uma Assembléia com poderes para alterar a

ordem constituída – mudar os limites da ordem anterior.51 Apesar de não excluir a importância

do clero e da nobreza para as decisões políticas do Estado, Sieyès propôs uma redefinição da

estrutura dos Estados Gerais, a qual deveria incluir as classes não privilegiadas, chamadas de

Terceiro Estado52.53 Todas as proposições são de inclusão. Isto permite dizer que a classe

privilegiada também está incluída no espírito democrático, porém com direitos de igualdade

perante os excluídos.

Atualmente, tal qual na época da Revolução Francesa, não se verifica um espírito de

bondade e otimismo das classes mais abastadas, porque as manifestações de inclusão

aparecem por necessidade de sobrevivência do próprio sistema. Elas continuam a se

beneficiar do sistema, pois seus objetivos são no sentido de manter a dominação e por

conseqüência a opressão. Uma inversão nesse quadro não implica defender que a classe

excluída deve também excluir a já incluída, mas a classe incluída de incluir também a

excluída, proporcionando a igualdade material no direito a vez e voz.

Bobbio afirma que: “[...] o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto

em defesa do Estado de direito e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo, ainda

que nem sempre os dois movimentos de emancipação coincidam histórica e praticamente.”54

Com o advento do Estado Liberal a preocupação é com a formação de segurança nas

relações, o modelo de direito é o positivista, vinculando-se a idéia de regras advindas da

vontade geral.

O individualismo é ponto marcante desse período porque a interferência do Estado é

mínima ou limitada à vontade do indivíduo, representado essencialmente pela classe

burguesa. A expressão “tudo o que não é proibido é permitido” é uma marca dessa época.

O modelo liberal tem as bandeiras da legalidade, igualdade formal e liberdade,

proporcionadas pelo direito declarado na Constituição – surgimento do Estado

Constitucional55.

51 BASTOS, Aurélio Wander. Introdução. In: SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: o que é terceiro estado? Tradução de Norma Azeredo. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1988, p. 54. 52 O Terceiro Estado possuía duas vertentes sociais: a) camponeses, artesãos, operários e pobres das cidades; b) comerciantes, banqueiros, arrendatários, proprietários de manufaturas. Ibidem, p. 39. 53 Ibidem, p. 39. 54 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 17-18. 55 “Numa primeira noção, Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação como os cidadãos e tendente à limitação do poder.” (grifo do autor). MIRANDA, 2007, p. 46.

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As revoluções do século XVIII e XIX findaram o Estado absoluto e a partir daí

surgiu um novo modelo de organização política baseada na Constituição (em regra escrita –

salvo na Grã-Betanha), com conteúdo determinado e com força jurídica. Esse novo modelo é

o Estado Constitucional, representativo ou de Direito.56

As teorias contratualistas acentuaram essa característica individualista, porquanto o

consentimento era dado pelo indivíduo ao Estado, estabelecendo-se uma relação de confiança.

Também, os pleitos do liberalismo de cunho religiosos, políticos e econômicos vinham de

encontro à concentração de poder ilimitado, característica do absolutismo combatido – era

preciso garantias contra o poder arbitrário, através de explicitação na Constituição.57

O direito também reafirma o individualismo porque regulamenta essencialmente os

direitos de liberdade, classificados como de primeira dimensão58 (liberdade, igualdade e

fraternidade).

Pontos marcantes, desse período, nas liberdades jurídicas do indivíduo são: a

liberdade contratual; a propriedade privada; a recusa da liberdade de associação; desvios dos

princípios democráticos – garantidos no aspecto formal – porque quem detinha certos bens ou

rendimentos sofria restrições ao voto (sufrágio censitário).59

Assim, o Estado liberal de direito constituiu-se num avanço em relação ao

absolutismo do período medieval e tem como ato declarativo a Revolução Francesa, onde

inicia uma nova forma de conceber o direito, agora declarado. Esse momento histórico dá

início ao movimento positivista para enfrentamento do absolutismo real. Parte-se de um

direito escrito – declarado – porém ainda restrito a assegurar a ordem e a segurança,

inaugurando-se a primeira fase do Constitucionalismo.

O fracasso do minimalismo Estatal e das promessas do mercado para o bem estar

coletivo provocaram uma revolução que pôs fim ao Estado Liberal e deu início ao Estado

Social.

O capitalismo e a produção em massa produziram a riqueza, mas essa não foi

distribuída à classe operária, o que gerou marginalização social. Assim, o liberalismo não

56 MIRANDA, 2007, p. 3. 57 STRECK; MORAIS, 2006, p. 55. 58 Segundo Wolkmer, são direitos de primeira dimensão os civis e políticos, “[...] vinculados à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e à resistência às diversas formas de opressão. [...]”. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos novos direitos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 07. 59 MIRANDA, 2007, p. 47.

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conseguiu resolver “[...] o problema essencial de ordem econômica das vastas camadas

proletárias da sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise.”60

As reivindicações aumentavam na medida em que os representantes liberais mudam

a estrutura econômica – fim da escravidão, ampliação da educação, maior liberdade de

imprensa e extensão do sufrágio universal e estabilização do governo representativo. A maior

participação eleitoral levou os governos à suscetibilidade dos reclames sociais. O Estado

passou a ser ator no jogo econômico, restringindo, portanto, a liberdade econômica e de

contratação. Surge, então um novo espírito de ajuda que inaugura a fase do Estado Social.61

A expressão desse descontentamento culminou com a elaboração da Constituição do

México em 1917 e a de Weimar em 1919, inaugurando-se a segunda fase do

Constitucionalismo. Em ambos os casos expressam o novo modelo de Estado denominado

Social de Direito.62 Além dessas Constituições, seguem nessa mesma linha, “[...] a italiana de

1947, a alemã de 1949, a venezuelana de 1961, a portuguesa de 1976, a espanhola de 1978 e a

brasileira de 1988.”63

O Estado Social de Direito caracteriza-se por ser promovedor dos direitos sociais e

não mais simplesmente regulador. Nessa fase manifestam-se os direitos de segunda

dimensão64, assegurados pelo constitucionalismo social.

Os principais movimentos que desembocaram na criação do Estado Social foram:

revolução industrial (levou à proletarização), primeira guerra mundial (exigiu interferência na

vida econômica – necessidade de armamentos), crise econômica de 1929 (necessidade de

política de nacionalizações), segunda guerra mundial (controlar recursos sociais), crises

cíclicas – ação dos monopólios (desigualdades sociais), movimentos sociais – contrários ao

livre mercado e incorporações das liberdades sociais. Além desses fatores, deve-se recordar as

experiências negativas do nazifacismo.65

Dessa forma, tornou-se compulsória a intervenção Estatal para garantir a própria

sobrevivência do sistema capitalista. O Estado precisou ser intervencionista a ponto de estar à

frente das questões econômicas do país. O político e o econômico “deram as mãos” para

garantir a sobrevivência do Estado e, por conseqüência, de todos os indivíduos que o 60 BONAVIDES, 2001, p. 188. 61 STRECK; MORAIS, 2006, p. 63-67. 62 STRECK, fev. 2007. 63 MIRANDA, 2007, p. 53. 64 Segundo Wolkmer, são direitos de segunda dimensão os “[...] sociais, econômicos e culturais [...]” (trabalho, saúde, educação). WOLKMER, 2003, p. 08. 65 STRECK; MORAIS, 2006, p. 69-71.

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compõem, sejam ricos ou pobres.

O primado básico do Estado Liberal é mantido porque a intervenção econômica não

garante o social. Nesse modelo “O princípio da legalidade e o da Separação de Poderes foram

mantidos tão somente sob o aspecto formal [...] [e a] produção de leis gerais e abstratas com a

finalidade de assegurar o reconhecimento das liberdades individuais formais e limitativas a

ação da autoridade pública”.66

As ações do legislativo limitaram-se a declarar direitos, promovendo “inflação

legislativa” no sentido de promessas políticas. Esqueceu-se da efetivação desses direitos, que

a rigor ficava sob tutela e a critério do poder executivo.

A partir dessa problemática criam-se regras programáticas67 com a justificativa de

que o Estado não pode cumprir com todas as promessas sociais. Esse discurso torna-se

corrente e leva à tolerância social quando do descumprimento dos direitos sociais assegurados

pela legislação, constituindo-se num perigo para as classes sociais excluídas pelo poder

econômico e político sob o ponto de vista material.

Essa tolerância social tem limites, especialmente quando a situação de distribuição

de renda e exclusão social são marcas fortes na sociedade. A partir desse distanciamento entre

promessa e cumprimento surge uma nova proposta de Estado baseada no regime democrático.

O Estado Democrático de direito surge para a concretização dos direitos

fundamentais e resgate das promessas modernas – dos Estados Liberal e Social – não

cumpridas. Nas palavras de Jardim, ele é “[...] instrumental de que dispomos para combater a

injustiça social e proporcionar um melhor nível de vida aos homens. [...]”68

O Estado Democrático de direito constitui-se na terceira fase do Constitucionalismo

e tem como característica o resgate da moral pelo direito. O direito no Estado democrático de

direito é de ordem intervencionista, transformador e clama por efetivação dos direitos sociais

não cumpridos pelo Estado Social. Conforme palavras de Streck, “[...] a justiça constitucional

deve assumir uma postura intervencionista, longe da postura absenteísta própria do modelo

66 STRECK; MORAIS, 2006, p. 74-75. 67 Conforme explica Canotilho, pode-se falar em ‘morte’ das normas programáticas porque esse tipo de norma-fim (tarefa ou programa) impõe uma atividade e dirige materialmente a concretização constitucional. Estava equivocada a teoria clássica quando falava em simples programas, declarações, sentenças políticas, promessas. Hoje as normas programáticas têm eficácia vinculativa porque toda norma constitucional é obrigatória perante qualquer órgão do poder político. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1176-1177. 68 JARDIM, 2007, p. 2.

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liberal-individualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira. [...]”.69 Ele

representa a vontade de realização do Estado Social, está indissociável da realização dos

direitos fundamentais e da necessidade de resgate das promessas da modernidade tais como

igualdade e justiça social.70

São princípios do Estado Democrático de Direito: a Constitucionalidade, a

organização democrática da sociedade, um sistema de direitos individuais e coletivos, a

justiça social, a igualdade, a divisão de poderes, a legalidade e a segurança e certeza

jurídicas.71

Na medida em que se reconhece os três grupos de direitos humanos, não só os

direitos liberais de liberdade senão também os de participação democrática e os direitos

sociais podem qualificar o Estado Constitucional Democrático e de direito.72 (tradução nossa).

Os valores sociais estão insertos na Constituição representando o contrato social e,

dessa forma, são direitos e garantias de todos os cidadãos. Supera-se o mundo das regras e

entra-se no modelo dos princípios.73

O Estado Democrático de Direito traz a idéia de bem comum e o ideal de vida boa,

onde afloram os direitos de terceira dimensão74. O direito passa a ser transformador da

realidade e com isso ganha um plus normativo em relação às fases anteriores.75 A constituição

de um Estado Democrático de Direito deve ser comprometida com o social e o bem coletivo,

bem como dirigente no sentido de estabelecer os ditames para atuação do poder tanto

legislativo como executivo e judiciário.

O reconhecimento da necessidade de direitos pelo Estado é uma confissão explícita

sobre o déficit histórico e carência desses direitos. Especialmente no Brasil a modernidade,

com suas promessas, não se efetivou. Para o futuro, tem-se uma aspiração pós-moderna

(também discriminatória), firmada sobre um modelo histórico de discriminação social. 69 STRECK, Lenio Luiz. A jurisdição Constitucional e as possibilidades hermenêuticas de efetivação da Constituição: um balanço crítico nos quinze anos da Constituição. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro: EMERJ, 2003, v. 6, n. 23, p. 84. 70 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 38-39. 71 MORAIS, 2002, p. 63. 72 HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Traducción Rafael Sevilla. Barcelona: Gedisa, 2000, p. 168. 73 STRECK, fev. 2007. 74 Segundo Wolkmer, os direitos de terceira dimensão são os metaindividuais, coletivos e difusos – direitos da solidariedade (paz, meio ambiente sadio, qualidade de vida, comunicação), os de quarta dimensão são os “[...] referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética [...]” (aborto, eutanásia, clonagem, transplante de órgãos) e os de quinta dimensão os “[...] advindos das tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral”. WOLKMER, 2003, p. 09-15. 75 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006, p. 7.

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Há uma forte tendência – pretensão pós-moderna – de desintegração do Estado

Social em favor do mercado com incriminação da pobreza (incriminação dos impossibilitados

de escolher), pois o pensamento que se aproxima é de que “[...] Cada vez mais, ser pobre é

encarado como um crime; [...] Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem

ódio e condenação [...] O ‘estado de bem estar está morto [...] ‘Precisamos pegar o cadáver e

enterrá-lo antes que o fedor se torne insuportável’ [...]”76

O Estado Democrático de direito representa o Welfare State77 (Estado do Bem-Estar)

em que “[...] as prestações públicas são percebidas e construídas como um/uma

direito/conquista da cidadania. [...]”.78 Com o surgimento do Estado Democrático de Direito –

principalmente a partir da segunda guerra mundial – o modelo promovedor característico do

Estado Social é mantido com adaptações advindas da necessidade de que a ordem jurídica se

imponha para assegurar os direitos a saúde, alimentação, educação, trabalho, entre outros.

Não se pode perder tempo com discussões procedimentais79 e ditames meramente

promitentes. Deve-se encarar os valores Constitucionais do Estado Democrático de Direito

numa posição substancialista visando a efetividade de promessas deixadas ao acaso por longo

tempo. No dizer de Streck: “Não posso perder a substância e cair no procedimento.”80 A

implementação do Estado Democrático de Direito depende da atuação do poder judiciário na

determinação de políticas públicas de acordo com a Constituição e a crise do poder judiciário

está relacionada ao descompasso entre sua atuação e as necessidades sociais. Exemplo de uma

atuação correta está na determinação de tratamento de saúde (dever do Estado), ainda que não

haja serviço oficial ou particular no país ou que não haja previsão orçamentária para tanto (a

vida não tem preço, mesmo para uma sociedade que perdeu a solidariedade).81

No Brasil as mudanças foram sentidas a partir da Constituição de 1988, que 76 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 59-61. (grifo do autor). 77 O Estado de bem-estar social não tem uma aparência uniforme, há características comuns de caráter finalístico vinculados ao cumprimento da função social. As primeiras manifestações ocorreram nas Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (1919), tendo como fundamento a questão da igualdade. MORAIS, 2002, p. 37-38. 78 STRECK; MORAIS, 2006, p. 78. 79 Em termos de síntese, o procedimentalismo considera que o judiciário não deve interferir em questões políticas e sociais, pois essa atividade é reservada legislativo (obediência ao princípio da separação de poderes). Ao contrário, o substancialismo pressupõe uma intervenção do judiciário para resguardar a justiça democrática e explicitar o contrato social na interpretação do direito. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et. al. Justa causa penal Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 25-27. O modelo substancialista defende que a Constituição estabelece as condições do agir político-estatal, a partir do pressuposto ela é a explicitação do contrato social. O judiciário, como intérprete deve ter um papel de evidência – postura ativa –, inclusive contra maiorias eventuais. STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 45-46. 80 STRECK, fev. 2007, 81 STRECK, Lenio Luiz. A necessária constitucionalização do direito: o óbvio a ser desvelado. Revista de Direito. Santa Cruz do Sul: jan./dez. 1998, n. 9/10, p. 59-61.

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expressamente declarou, em seu artigo 1º82, a adesão ao modelo de Estado Democrático de

Direito.83 O Estado contemporâneo pressupõe a existência de um novo contrato social

(Constituição) que assegura direitos como mínimo de renda, alimentação, saúde, habitação e

educação. Incluem-se princípios de justiça distributiva de caráter igualitário onde prevalece o

social e os valores da dignidade do ser humano, corroborando com a idéia de justiça social.84

O Estado Constitucional deve ser um Estado Democrático de Direito com as

qualidades de Estado de Direito e Estado democrático. “[...] O Estado constitucional

democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de

direito [...]” legitimada pelo povo.85

Enquanto as insuficiências do liberalismo levaram à proletarização e ameaça à

burguesia, o Estado Social representou reação a esse quadro e prestígio às promessas de

providências sociais pelo Estado. Ante a crise de efetividade dos direitos sociais, surgiu o

Estado Democrático de Direito que passa a ser promovedor dos direitos fundamentais e

esperança de justiça social.

Assim, é preciso entender que o direito tem uma função no Estado Democrático de

Direito, que é a de solucionar os problemas sociais historicamente negados à população.

1.2 LEGITIMIDADE CONSTITUINTE: QUEM DEVE SER O BENEFICIÁRIO DO

CONTRATO SOCIAL? CONSTITUIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:

UMA NECESSÁRIA IMBRICAÇÃO PARA A PROTEÇÃO E GARANTIA DE

EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

Para tornar melhor a vida em sociedade, o homem estabeleceu vínculos sociais com

o outro. Dessa relação surge uma nova organização chamada Estado que concentra o Poder

para fazer valer as escolhas do povo.

A legitimidade do Estado está fundada na vontade soberana do povo86. Uma

82 “Art. 1.º A República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]” 83 O Brasil que antecede a Constituição de 1988 esteve marcado por um déficit de democracia e cidadania influenciado pelas experiências autoritárias vividas. O país buscou inspiração para adesão ao Estado Democrático de Direito nas Constituições Portuguesa pós-Revolução dos Cravos e Espanhola pós regime Franquista – momentos de redemocratização. MORAIS, 2002, p. 39. 84 STRECK; MORAIS, 2006, p. 79-80. 85 CANOTILHO, 2003, p. 93; 98. 86 O povo deve ser entendido na melhor forma inclusiva. Todos são o povo.

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Constituição Democrática não é somente aquela elaborada por uma Assembléia Constituinte

livre e soberana. Ela deve ser expressão da vontade popular e expressar democracia no seu

conteúdo e quanto à adoção de instrumentos de participação do povo no poder (referendo

popular, iniciativa popular, veto popular, entre outros).87

O titular do poder constituinte tem uma resposta democrática em que o povo é

concebido por uma pluralidade de forças, sejam culturais, sociais, e políticas, tais como

igrejas, partidos, grupos, associações, personalidades que influenciam opiniões nos momentos

pré-constituintes e nos procedimentos constituintes.88

Silva afirma que “O Poder Constituinte repousa no povo. É vontade política do povo

capaz de constituir o Estado por meio de uma constituição. [...] o espírito do povo se

transmuda em vontade social e reivindica a retomada do seu direito fundamental primeiro

[...]”.89 A vontade de uma nação é, segundo explica Sieyès, o resultado das vontades

individuais, das quais cada indivíduo preserva o seu interesse, possibilitando uma aliança

útil.90

Dessa forma, no Estado Democrático de Direito o Poder Constituinte vem do povo

(que é soberano) e ultrapassa os desejos do governante para ir ao encontro dos anseios

populares. Há uma transferência de poder do soberano (típico dos modelos Feudal e

absolutista) para o popular (modelo democrático).

A Constituição brasileira de 1988 atribui legitimidade ao povo como fonte de todo o

poder. Está disposto expressamente no parágrafo único do artigo 1º: “[t]odo o poder emana do

povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou direitamente [...]”. Também através

de disposição Constitucional (1988), o Brasil fez opção pela inclusão de todos. Os artigos 231

e 232 (que trata sobre os indígenas), e alguns incisos do artigo 5º, são exemplos da proibição

da exclusão.

Para se justificar uma democracia constitucional é preciso a inclusão de todos – não

somente o povo ativo que consegue ser cidadão. O povo deve ser o destinatário de todas as

prestações invocadas pela Constituição. Na medida em que opera a inclusão das classes

dominantes e exclusão das classes dominadas ocorre a deslegitimação da sociedade e

87 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 69. 88 CANOTILHO, 2003, p. 75. 89 SILVA, 2000, p. 68. 90 SIEYÈS, 1988, p. 141.

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especialmente no seu caráter democrático.91

Os valores trazidos pelo povo para a Constituição não devem servir para “burlar” a

vontade legítima e enaltecer anseios de classes opressoras que primam pelos interesses

corporativos de uma minoria em detrimento do bem comum. Esses valores insertos na

Constituição devem obedecer a vontade popular e refletir os ditames do que é justo, no campo

político, econômico, social e jurídico. Eles servem para orientar a elaboração das leis

infraconstitucionais e a própria atuação do Estado.

Uma vez dispostos os desejos populares na Constituição, transformam-se em

garantias fundamentais para ser implementados a todos (não estão dispostos para fins

simbólicos).

Dessa forma, atendendo aos princípios democráticos, as escolhas constitucionais

devem ser objeto de amplo debate social com o povo, que são todos os sujeitos que compõem

o Estado, numa perspectiva inclusiva. Uma vez definido essas escolhas, cabe aos três poderes

pautarem suas atuações com fidelidade à vontade Constituinte Originária.

Há uma nova maneira (ao menos para a realidade brasileira) de se conceber a

Constituição – ela deve ser vista como instrumento poderoso para assegurar isonomia entre as

classes sociais (justiça social). Nesse sentido aponta Saldanha que “[...] O direito e o Estado

foram objeto de uma nova concepção [...]”, passando de um direito divino para um direito

como ordeNação escrita. O Estado passa a vincular-se à vontade da lei. Os direitos

considerados fundamentais precisaram ser manifestados na Constituição, onde se impõem

inclusive ao legislador. O Estado se identificou com a Constituição.92

As garantias fundamentais estabelecidas na Carta Constitucional devem ser efetivas

ao povo. Do povo, ainda que excluído, emana o poder e para ele são criadas as garantias

Constitucionais. Ele é o objeto da efetivação dessas garantias.

A disposição textual das garantias clama por efetivação. A diminuição da exclusão e

a legitimação do sistema democrático de direito é medida que se impõe ao Estado que precisa

superar aberrações históricas93. A Constituição vem do povo e deve ser aplicada para o povo –

considerado como todos os cidadãos (incluídos e excluídos). A Constituição é a manifestação

91 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 94-95. 92 SALDANHA, 2000, p. 120-123. 93 Historicamente o que tem ocorrido na sociedade brasileira é uma usurpação ilegítima do poder que é do povo. As classes dominantes utilizando-se do poderio econômico e da marginalização alarmante das classes oprimidas não efetiva as inserções Constitucionais realizadas pelo Poder Constituinte.

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da organização política do Estado, o instrumento que concentra e organiza o poder do Estado

e o berço dos direitos fundamentais.

A Constituição é constituidora da sociedade e por isso deve ter um caráter

material/substancial, afinal “[...] Constituição é a explicitação do contrato social, é o espaço

de mediação ético-política da sociedade, e, fundamentalmente, Constituição é constituir.

[...]”94 Miranda afirma que o direito constitucional é o tronco dos ordenamentos jurídicos,

onde se organiza e se integra a comunidade e o poder. A Constituição é “[...] elemento de

unidade do ordenamento jurídico da comunidade no seu conjunto [...]”, na medida em que

estabelece pressupostos para as normas dos demais ramos do direito, determinando seu

conteúdo através dos princípios.95

A Constituição, numa perspectiva substancialista, é a expressão do pacto fundante –

contrato social – que permite a consolidação dos desejos sociais de grupo. Ela estabelece as

regras do jogo para proteger a sociedade de eventuais ataques de poderosos ou de maiorias

influenciadas pela mídia ou economia. Também, aponta os conteúdos mínimos – valores

básicos – para uma sociedade mais justa, digna e solidária.96

A Constituição deve constituir, ser compromissária, dirigente97 e preservadora dos

direitos fundamentais ligadas ao ideal de bem estar e de vida boa, garantindo o efetivo acesso

a todas as classes sociais. Ela é fruto de um processo evolutivo onde foram amargadas e

travadas diversas batalhas. É, portanto, fruto de um amadurecimento histórico cultural e não

pode ser encarada como programática e procedimental. Seus valores devem servir para

vincular as decisões legislativas, executivas e jurídicas a fim de assegurar os princípios do

Estado Democrático de Direito.

A Constituição é a constituição da própria sociedade. Não se fala em Estado, mas em

sociedade. Ela se refere a res publica – comunidade política – daí a expressão Constituição da

República.98 Dessa forma, “[...] Constituição não é programa de governo [99], ao contrário são

94 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 284. 95 MIRANDA, 2007, p. 4-5. 96 MORAIS, 2002, p. 66-68. 97 “Defender o caráter dirigente da Constituição [...] representa introduzir um republicanismo que se opõe ao patrimonialismo e à carência de uma esfera pública suficientemente desenvolvida. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 22. 98 CANOTILHO, 2003, p. 88. 99 Um dos motivos para a reduzida importância da Constituição no Brasil é que sempre se deixou para o legislador implementar o valores e direitos contidos no texto da Constiuição, transformando-a em mera lista de propósitos ou programa. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 215.

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os programas de governo que precisam se constitucionalizar”.100 “A Constituição não é

simples ferramenta; não é uma terceira coisa que se ‘interpõe’ entre o Estado e a Sociedade. A

Constituição dirige; constitui. [...]” No Brasil ela nunca constituiu e ainda se sofre com a

baixa constitucionalidade101, pois o judiciário está muito comprometido com o estatus quo.102

É preciso um novo olhar para o direito, especialmente para os valores objeto de

conquistas históricas de luta de classes. A Constituição representa a compilação dessas

garantias e deve dirigir103 a atuação do Estado contemporâneo por constituir a expressão

máxima da democracia e o compromisso com a justiça social.

Se por um lado a Constituição garante os direitos de forma mais ampla possível, por

outro lado tem-se uma sociedade carente de tais direitos. A atuação do judiciário em

descompasso com a realidade – necessidades sociais – é que gera a crise em que se

apresenta.104

O problema enfrentado atualmente é o da materialização de direitos – eficácia

normativa – com base na vontade do Poder Constituinte Originário.105 As escolhas judiciais

precisam ser legitimadas a partir de uma interpretação que considere o conteúdo

Constitucional e a realidade concreta.

No direito brasileiro há uma crise dogmática em que os juristas aprendem direito sob

um modelo hipotético que os distanciam da realidade do mundo contemporâneo. O modelo de

direito apresentado é o de cunho “liberal-normativista-individualista” que não está preparado

para resolver conflitos transindividuais na sociedade complexa.106 Paralelo a este fato, o

processo de convencimento – persuasão – muitas vezes está baseado em pareceres,

jurisprudências e sentenças descontextualizadas onde posições contrárias e favoráveis são

facilmente encontradas – selecionadas através de ementários e não propriamente pela boa

argumentação apresentada. Muitos argumentos são do tipo: a jurisprudência é no sentido de... 100 MORAIS, 2002, p. 77. 101 No Brasil há o fenômeno da baixa constitucionalidade porque os pré-juízos estão firmados na infraconstitucionalidade e a Constituição não tem servido nem como limitadora da conformação do legislador. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 220. 102 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 94; 96. 103 Segundo Morais, existem três posições sobre o constitucionalismo que convivem: a) constitucionalismo clássico baseada da dogmática liberal – organização e limitação do poder; b) constitucionalismo social – modelo dirigente – teoria que luta pela concretude; c) constitucionalismo supranacional mundial – fruto de um novo debate com base num projeto global humanitário – identidade comunitária-cosmopolita. MORAIS, 2002, p. 92-93; 99. 104 STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 4. ed. rev. e mod. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 37-38. 105 Como bem apontado por Morais, “[...] fazer (bem) Direito implica um compromisso ético-jurídico com a eficácia e a efetividade dos direitos humanos e fundamentais [...]” (grifo do autor). MORAIS, 2002, p. 15. 106 STRECK, 2001, p. 36-37.

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já decidiu o Tribunal que... a jurisprudência é pacífica que... Nesse contexto há um

pensamento metafísico distante da realidade histórica e social dos atores jurídicos –

interpretação como “jogo de cartas marcadas”.107

A eficácia jurídica e a efetividade prática são necessárias para se garantir o conteúdo

das dimensões de direitos assegurados pelo Estado – para além do reconhecimento político-

social.108

A Constituição representa a compilação de garantias e valores objeto de conquistas

históricas de luta de classes e deve dirigir a atuação do Estado contemporâneo por constituir a

expressão máxima da democracia e o compromisso com a justiça social109. Os direitos

fundamentais encontram-se assegurados pelo Estado democrático de direito e derivam do

princípio fundante dignidade da pessoa humana. Resta efetivá-los através de uma nova

postura fundada numa visão de totalidade.

Para concretização das promessas da modernidade incorporadas ao texto

Constitucional deve-se apostar na força normativa da Constituição e no seu papel

compromissário e dirigente.

No Brasil o novo texto Constitucional “[...] representa a real possibilidade de ruptura

com o velho modelo de direito e de Estado (liberal-individualista), a partir de uma perspectiva

claramente dirigente e compromissária [...]”.110 O grande desafio do profissional jurídico é

lutar pelos interesses Constitucionalmente concebidos e afastar o fantasma da inefetividade

das garantias asseguradas pelo e ao povo na busca do bem comum. A atuação profissional

comprometida com os valores Constitucionais ajuda assegurar a legitimação democrática de

um Estado verdadeiramente Democrático de Direito.

Assim, pode-se afirmar que na convivência do ser humano (socialização) sempre

esteve presente, e continua a estar, relações de poder. O domínio de classes do homem pelo

homem é uma marca negativa na história da humanidade. Dentre os exemplos históricos mais

aparentes estão a escravidão, o sistema de produção feudal, as monarquias absolutistas

(nobreza), a burguesia e o clero.

O direito sofreu e continua a sofrer forte influência dos movimentos sociais. Ele é

107 STRECK, 2001, p. 45-47. 108 MORAIS, 2002, p. 61. 109 Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 3º, I e III, da Constituição de 1988, construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 110 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 5-6.

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produto do inter-relacionamento humano. O Estado também é um retrato da influência de

classes sociais. Em cada modelo de Estado, seja ele absolutista, liberal, social ou democrático

é possível relacionar o momento histórico-social das lutas de classes pelo poder econômico e

político.

Num primeiro momento, influenciado pela necessidade de organização e segurança

nas relações comerciais, surgiu o modelo de Estado Absolutista para garantia da ordem e

segurança do homem. Esse modelo centralizava na figura do monarca todos os poderes, sob o

fundamento de que o rei era um representante de Deus na terra e pela imponência dos

exércitos reais.

A partir da influência das teorias contratualistas e da ganância política burguesa, que

não mais se contentava com o poder econômico, surge um novo modelo de Estado, o Liberal.

Este é caracterizado por assegurar os direitos de primeira dimensão (civis e políticos) e pela

tomada política da classe burguesa. Buscava-se nesse período a segurança de um direito

positivado e não mais centralizador. O auge do movimento burguês é a Revolução Francesa.

O demasiado olhar para o econômico proporcionou o esquecimento do social. Por

um lado havia produção em grande escala – Revolução Industrial – e por outro a

proletarização do trabalhador que não usufruía do fruto do seu trabalho. Diante dos

movimentos sociais de insatisfação e por questões de sobrevivência do próprio Estado, surge

uma nova concepção: olhar para o social – o Estado passa a ser garantidos de direitos sociais.

Surge então os direitos de segunda dimensão (sociais: saúde, trabalho, educação) mais como

promessas políticas do que efetivação para as classes excluídas.

Novamente o insucesso Estatal – garantir direitos sociais somente no aspecto formal

(declarado) não muda a realidade. Surge a partir dessa constatação uma nova concepção de

Estado. O modelo Democrático constitui-se numa reação a não efetividade dos direitos

garantidos no modelo anterior. Tem-se como parâmetro valores fundamentais positivados no

contrato social (Constituição). Esses direitos fundamentais de todo cidadão devem ser

respeitados por todos os poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário, por constituir

a expressão máxima da vontade do poder constituinte originário.

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CAPÍTULO II

2 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL

A partir da afirmação do Estado Democrático de Direito a medida que se impõe é a

prestação jurisdicional justa. Tal situação de justiça democrática (materializada na sentença

penal através da compreensão ontológica) somente é proporcionada quando garantidos os

preceitos Constitucionais, em seu sentido material, durante o trâmite processual (obediência

às regras do jogo).

Diante das significativas mudanças na tutela das liberdades, asseguradas na

Constituição Federal de 1988, sob a forma de direitos fundamentais111 do indivíduo frente ao

Estado, fala-se em processo penal constitucional ou democrático. Como no conceito de

justiça, em sua essência, há plurivocidade, tem-se que essa forma de processo penal

(constitucional ou democrático) é o parâmetro para materialização da justiça nos âmbitos

processual e penal, ou seja, a efetivação dos direitos fundamentais, dispostos sob a forma de

garantias Constitucionais, corresponde ao processo justo e à pena justa.

Dessa forma, faz-se necessário uma correta compreensão/aplicação das “regras do

jogo” processual penal democrático, asseguradas Constitucionalmente. Esse processo se dá

partir da hermenêutica filosófica (capítulo III), onde se torna possível uma prestação

jurisdicional adequada. Assim, para existir a sentença penal justa é necessário uma

compreensão teórica que possibilite um deslinde processual democrático e assegure a

legitimidade dos papéis dos sujeitos processuais.

111 Os direitos fundamentais são o substrato da democracia material-constitucional. Eles indicam obrigações positivas ao Estado no âmbito social e limitam negativamente a atuação do Estado privilegiando a liberdade dos indivíduos. São “[...] indisponíveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis, intransigíveis e personalíssimos. [...]” ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 90-91.

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Interpretações equivocadas são conseqüências de uma tradição inautêntica presente

na dogmática jurídica – premissas metafísicas. A concretização legítima do direito material e

processual penal depende do atuar do intérprete comprometido com a realidade que o

circunda. Para que essa compreensão ocorra são necessárias pré-compreensões autênticas

sobre o Estado, a Constituição, o direito e o caso a ser decidido, sob pena de sufocamento do

papel transformador que tem o direito na sociedade.

No desenrolar do presente capítulo apresentam-se reflexões sobre: uma adequada

prestação jurisdicional penal – finalidade da intervenção do Estado na sociedade moderna; a

relação existente entre Estado Democrático de Direito, Constituição, Processo Penal e

garantismo jurídico e; a necessidade de uma (re)leitura do Processo Penal a partir de

determinados princípios.

2.1 FUNDAMENTOS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ADEQUADA

A prestação jurisdicional penal constitui-se na verdadeira interferência Estatal na

vida do cidadão. Quando se fala em direito penal e processual penal o que está em jogo é o ser

e não o ter. Tratar com dignidade o ser é dever de todos os Estados, especialmente aqueles

que se dizem democrático de direito.

O Estado Democrático de Direito é fruto de uma construção histórica de

relacionamentos sociais, na qual o respeito aos direitos fundamentais é uma conquista para

toda a humanidade.

Para ser realmente democrático e respeitar os princípios e valores decorrentes da

dignidade da pessoa humana faz-se necessário um novo olhar para a Constituição. Ela

representa o contrato social, é dirigida ao bem comum e é aplicável também contra as

maiorias eventuais, ou seja, mesmo que a maioria da população entenda dispensável

determinado direito fundamental ele não pode ser solapado.

Questões produto da reflexão são necessárias e fundamentais para a compreensão

mais acertada sobre os institutos jurídicos que se vêem aplicados na prática do dia-a-dia. Em

tempos onde se fala de pós-modernidade as atividades profissionais, especialmente as

jurídicas, não são objeto de análise racional e de reflexão, mas de decisões positivistas

apressadas e impensadas, sem considerar-se a individualização de que cada caso merece.

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A visão positivista de que lei é imperativa e impõe o dever de obediência, não

importando seu conteúdo, é que levou a sociedade e os juristas à impotência diante das

arbitrariedades das leis mais cruéis e criminosas.112 Muito se fez e ainda se faz injustiças nas

situações concretas, sob alegação de aplicação “do direito” disposto em lei ou através de

reinvenções alternativistas113. Porém, sabe-se que isso não passa de um pseudo-direito, visto

que o verdadeiro encontra-se amparado por questões de justiça, não raras vezes veladas114 pelo

entendimento equivocado sobre a legalidade.

Novas perspectivas aventam-se para a prestação jurisdicional no sentido da

possibilidade de aplicação do direito, como forma de justiça, que está num patamar superior

ao da lei em sentido estrito. Nesse contexto, a reflexão filosófica serve de instrumento e ganha

destaque na aplicação do direito.

A ciência jurídica é insuficiente para dar explicações e compreender os problemas da

experiência jurídica. Necessário é a reflexão filosófica sobre o direito. A filosofia do direito

não é parte do direito, mas um saber (reflexão) sobre o direito com pretensão de torná-lo

justo. A filosofia do direito é uma disciplina filosófica que estuda os fenômenos jurídicos em

sua totalidade, compreendendo três temáticas: teoria do direito, teoria da ciência jurídica e

teoria da justiça. A teoria do direito tem como problema fundamental determinar a noção de

direito na realidade humana e social. A teoria da ciência jurídica trata de estabelecer uma

reflexão crítica sobre a ciência do direito e as atividades dos juristas (argumentação e

aplicação do direito). Por sua vez, a teoria da justiça ou axiologia jurídica tem como objeto de

estudo os valores geradores e fundamentadores do direito, os fins a que se pretende chegar, a

análise crítico-valorativo do direito positivo e a discussão sobre os valores éticos para o

direito justo.115 (tradução nossa).

Compactuando com Fernandez em relação à importância da teoria da justiça ou

axiologia jurídica, abordam-se os temas direito, justiça e moral como fatores que, uma vez

compreendidos, possibilitam uma prestação jurisdicional adequada, materializada através das

112 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1974, p. 415. 113 Para Habermas o direito moderno ao distinguir direito natural e direito positivo reduplica o conceito de direito o que não é plausível do ponto de vista sociológico e precário do ponto de vista normativo. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997, p. 139. 114 O termo pretende indicar situação oculta – que precisa ser descoberta ou desvelada. Essa atividade é reservada ao intérprete que deve se utilizar dos fundamentos a partir de uma hermenêutica filosófica (concepção de Heidgger/Gadamer). 115 FERNANDEZ, Eusébio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991, p. 25; 27-31.

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sentenças judiciais.

A relação entre direito e moral é fundamental para a eficácia normativa. Importante

apontar, ainda que brevemente, a necessária vinculação da moral com o direito, como

pressuposto de validade e eficácia deste. O direito, como controle de comportamentos sociais,

só é justo quando estiver amparado por valores morais.

Uma das características que diferem o direito da moral é que o valor jurídico

caracteriza as ações como boas para o bem comum (acha-se sempre um outro interessado –

direitos e obrigações), enquanto que o valor moral caracteriza as ações como boas em si

mesmas (simplesmente um dever).116

Baseado na experiência histórica a sanção pautada na repressão e imposição de

comportamentos não condizentes com a moral tem-se verificada frustrada, porque o caráter de

dever – obrigação só é aceito pelo agente quando ele considerar aquela ação como justa e

aceitá-la como tal.

Verifica-se equivocada e ultrapassada a concepção positivista tradicional que

considera o direito como ordem, vinculando justiça com legalidade. Nas palavras de Kelsen

“[...] o conceito de ‘bom’ não pode ser determinado senão como ‘o que deve ser’ o que

corresponde a uma norma [direito]”117 e de Bobbio: “[...] ação justa significa ação conforme a

lei [...]”.118

Para Fernandez é ingênuo e impossível separar o âmbito da moral do âmbito

jurídico, na forma pretendida por Kelsen.119 O ser humano tolera submissão às regras injustas

por um tempo determinado. Porém, sempre haverá no seu íntimo, um resquício de

insatisfação que menos hora mais hora extravasa, transformando-se em comportamento de

rebeldia.

Pode-se citar o exemplo da escravidão, tolerada por muitos anos no Brasil. Chega o

momento em que não se concebe mais a dominação imposta pelo outro e a revolta, manifesta

pelo não mais acatamento das regras injustas da sociedade dominante (formação dos

Quilombos), torna-se fato.

Esse é o posicionamento de Hart quando afirma que o sistema que assegura os

116 RADBRUCH, 1974, p. 101. 117 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 75. 118 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 231. 119 FERNANDEZ, 1991, p. 49.

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interesses vitais de seus cidadãos com justiça será mais estável porque conquista e mantém a

lealdade da maior parte durante mais tempo.120

Habermas considera que as regras morais e jurídicas diferenciam-se da eticidade

tradicional “[...] colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação, que surgem lado

a lado, completando-se. [...]”. Dessa forma, o conceito de autonomia precisa de delineamento

abstrato que comporte o princípio moral e o princípio da democracia. Uma [...] ordem jurídica

só pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais. [...]” Entretanto, isso não

significa dizer que o direito está subordinado à moral no sentido de hierarquia normativa, pois

a “[...] moral autônoma e o direito positivo, que depende de fundamentação, encontram-se

numa relação de complementação recíproca.”121

Assim, o direito como meio de controle social não pode ser construído sobre idéias

de ordem, ameaça ou obediência.122 O comportamento descrito pela regra (no sentido de texto)

e amparado pela moral inspira efetividade, porque atinge o elemento subjetivo: vontade do

agente. Desta forma, a reprovação da conduta imposta ao sujeito encontra duplo incentivo: um

legal (coercitivo – direitos e obrigações) e outro moral (dever interiorizado).

A moral tem como substrato a vontade e o direito a conduta. Assim, “[...] Um dever

de pura legalidade é uma contradição [...]”.123 Hart considera que um sistema jurídico deve

basear-se nas obrigações morais porque não pode estar construído no mero poder do homem

sobre o homem. Acentua, ainda, que “[...] será frequentemente desprovido de sentido

reconhecer ou apontar uma obrigação jurídica, se o autor da afirmação tiver razões

concludentes, de natureza moral ou outra, para objetar ao seu cumprimento.”. Assim, o direito

pode ser limitado por questões morais.124

A legalidade positivista impõe-se como dever absoluto a partir da criação legislativa

e dessa forma, não se pergunta se ela é justa ou injusta, pois pelo fato de ser lei ela é justa por

si só.

O direito possui caráter imperativo, na medida em que uma vontade se impõe através

dele (meio para atingir um fim) e normativo na medida em que nele se exprime um dever-ser

120 HART, Herbert L. A. O conceito do direito. Tradução de Ricardo Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 218. 121 HABERMAS, 1997, p. 139-141. (grifo do autor). 122 HART, 2002, p. 169. 123 RADBRUCH, 1974, p. 103-104. 124 HART, 2002, p. 218-220.

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(não realidade que deve realizar-se).125 Não se pretende, com as distinções estabelecidas entre

direito e moral, negar o caráter imperativo e normativo do direito, mas sim fazer aflorar que a

moral também possui caráter normativo que deve contribuir para a efetividade no

cumprimento das regras jurídicas.

A moral é, ao mesmo tempo, o fim do direito e o fundamento da sua validade

obrigatória. Só a moral é capaz de fundamentar a força obrigatória do direito. Preceitos

imperativos não podem fazer-se derivar um “dever-ser”, quando muito, um “ter-de-ser”.

Necessário se faz, para o dever-ser jurídico, o imperativo estar na consciência dos indivíduos

como força obrigatória ou vinculante do dever moral.126

Desta forma, “[...] O direito é apenas a possibilidade da moral e por isso mesmo

também da imoralidade. [...]”.127 Controlar a validade do direito pela moral é medida que se

verifica como necessária para aplicação do direito justo, porquanto a história mostra que as

arbitrariedades do monarca foram substituídas pelas arbitrariedades do legislador,

principalmente sob influência do positivismo – pensamento metafísico, vinculado ao esquema

sujeito-objeto.

Admite-se, portanto, que as regras de direito podem subsistir (vigência) sem

preceitos morais, porém carecem de validade, porquanto em desacordo com o desejo de

justiça da sociedade explicitamente apresentado na Constituição Federal, na forma de

princípios. Assim, uma nova condição de possibilidade exurge com o objetivo de materializar

a justiça na aplicação do direito.

A ação humana possui uma finalidade. Quando se está com fome, come-se para

saciá-la, logo saciar a fome é a finalidade do faminto. Para além desses atos meramente

imediatos e finalistas encontra-se uma finalidade suprema que concatena todas as nossas

ações para um objetivo maior.

A partir da Revolução Industrial, com a fabricação dos bens de consumo em série, e

mais recentemente com os incentivos modernos do desenvolvimento da robótica e da

computação, tornou-se necessário a criação de mercados para escoar a produção excedente. A

sociedade moderna identificou no Marketing uma possibilidade real de atrair e incentivar o

consumo.

Paralelo a isso, o individualismo esteve fortemente estimulado por concepções do 125 RADBRUCH, 1974, p. 106. 126 RADBRUCH, 1974, p. 109. 127 Ibidem, p. 112-113.

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tipo: mínimo de relação e máximo de prazeres proporcionados por uma realidade de máxima

informação e mínima relação. A realidade virtual traz a informação presente ao dia-a-dia,

porém as relações entre homens estão deixadas à margem da realidade.

Atitudes autoritárias e dirigistas são substituídas pelo aumento das oportunidades de

“[...] escolhas particulares, a privilegiar a diversidade e, atualmente, a oferecer fórmulas de

‘programas independentes’ nos esportes, nas tecnologias psicanalíticas, no turismo, na moda

casual, nas relações humanas e casuais. [...]”. O processo de sedução pauta-se no oferecer

mais para você escolher melhor – satisfação e bem-estar – processo que acelera a

individualização do ser. “[...] Fazer da sedução uma ‘representação ilusória do não-vivido’

(Debord) significa prolongar o imaginário das pseudonecessidades [...]” e ao invés de

passividade, a sedução que é a “[...] destruição fria do social por um processo de isolamento

[...]”. O indivíduo prefere ser só “[...] ao mesmo tempo em que não suporta a si mesmo

estando só. A esta altura o deserto já não tem mais princípio ou fim.”128

O capitalismo encontra na indiferença129 um ambiente ideal para desenvolver-se –

ausência de resistência. Assim, “[...] quanto mais o sistema atribui responsabilidades e

informa, menor é o investimento. Esse paradoxo impede assimilar alienação e indiferença,

mesmo quando essa última se manifesta pelo tédio e pela monotonia. [...]”.130

Assim, a informação tornou-se instrumento essencial e determinante para incentivar

o consumo e proporcionar a solidão informada. Vive-se, então, numa sociedade individualista,

pautada nas relações de consumo, em que as ações humanas convergem para a busca de uma

finalidade suprema, embora pareça obscura. Essa finalidade é aquela apontada por Aristóteles

que considera a felicidade o bem supremo que está acima de todos os demais fins buscados

pelas diversas ações e artes. É “[...] a mais desejável de todas as coisas [...] algo absoluto e

auto-suficiente, e a finalidade da ação.”131

As ações inflamadas pelo consumismo de prazer imediato e pela ausência de

relações afetivas são causadoras de conflitos sociais complexos que não podem mais ser

tratados com soluções simples. A sociedade exige algo mais do sistema jurídico. No entanto,

128 LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005, p. 3-4; 7; 30. 129 São exemplos da indiferença por saturação, informação e isolamento: “[...] Quanto mais os políticos se explicam e se exibem na televisão, mais todo mundo se aborrece; quanto mais os sindicatos distribuem panfletos, menos eles são lidos; quanto mais os professores querem fazer ler, menos os alunos lêem. [...]” LIPOVETSKY, 2005, p. 26. 130 LIPOVETSKY, 2005, p. 24-25. 131 ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 25-26.

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diante dessas demandas sociais, o que se tem visto é uma inflação legislativa crente que diante

das regras os problemas sociais desaparecerão. O legislador ordinário, com grande freqüência,

apresenta soluções, sem concordância Constitucional, para satisfazer anseios populistas. Se

não bastasse, o poder judiciário valida tais iniciativas – e desrespeita a Constituição. E isso

tudo ocorre porque os juristas não se deram conta da responsabilidade que o Estado os impõe

para concretização dos direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito.

A justa e correta aplicação do direito (ainda) é demanda presente e latente para o

poder judiciário. A partir da viragem ontológica, uma (nova) perspectiva se coloca para

reverter o quadro de apatia do jurista e fazer frente ao desrespeito aos direitos fundamentais.

O conceito de justiça está ligado ao que é bom. Embora existam boas virtudes e más

virtudes, a justiça está ligada as boas virtudes. Para Aristóteles a justiça é expressão máxima

de todas as virtudes. Ela preocupa-se com o outro, fazendo o que é bom ao próximo. Isso

constitui tarefa difícil e é disposição de caráter.132

Ao se fazer justiça no caso concreto verifica-se um ato bom à coletividade como

também a si mesmo. O operador jurídico brasileiro deve-se preocupar com os atos justos e

apaixonar-se pela justiça, não pelo ato do legislador tirano. Como frisa Aristóteles, “[...] não

apenas um cavalo dá prazer ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos,

como também os atos justos ao amante da justiça [...]”.133

Então o que é justiça afinal? Falou-se que é um instrumento bom para si e para

outrem, que está relacionado à expressão máxima das boas virtudes e que é possível de aplicá-

la ao caso concreto.

As virtudes devem ser apreciadas pelo meio-termo entre os seus opostos. Aristóteles

atribui o conceito de meio-termo que pode variar em relação ao objeto ou em relação a nós.

Em relação ao objeto a conta é matemática e vale para todos os homens e é único, ou seja, é

uma posição eqüidistante entre os dois extremos: a falta e o excesso. Em “relação a nós”,

referindo-se aquilo que não é demasiado nem muito pouco afirma não ser único para todos os

homens e variável de acordo com a pessoa. Logo, o que pode ser bom para fulano não pode

ser para sicrano.134

Essa percepção é perfeitamente verificável na aplicação do justo e do correto no

direito, porquanto as circunstâncias que envolvem as pessoas, agravadas ainda mais pelas 132 ARISTÓTELES, 2006, p. 105-106. 133 Ibidem, p. 29-30. 134 Ibidem, p. 47-48.

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relações modernas (e pós-modernas) de informação e consumo, são dependentes de

individualização e análise do caso concreto.

Pode-se citar como exemplo dessa nova realidade social a marginalização do outro

presente nas favelas. É vendida a imagem para a coletividade de que “eles estão lá porque

querem” e não trabalham o suficiente para ascender socialmente, quando na verdade são o

fruto da opressão capitalista selvagem e inspiram tristemente a ganância humana que gerou a

submissão social. Está aí uma forma de domínio do homem sobre o homem pela força. Por

um lado os meios de comunicação incitam o consumismo, por outro, o cidadão marginalizado

inspira-se no desejo da aquisição. Está-se diante de uma situação injusta: porque os outros

podem ter, eu não posso? Que situação de igualdade é essa? Assim, a onda de violência

existente também é um sinal da dominação sobre o outro que se mostra injusta.

Bauman bem relata a odiosa impureza de versão pós-moderna: “Uma vez que o

critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um

‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida, são os consumidores falhos [...] são

eles os novos ‘impuros’ [...] ‘objetos fora do lugar’.” A sociedade impõe duas exigências

políticas contraditórias para o Estado: aumentar as liberdades do consumidor e negociar

energicamente com o refugo através de uma política de movimento de lei e ordem – precisam

ser detidos e mantidos ao menor custo possível (a remoção do refugo é menos dispendiosa do

que a reciclagem do refugo). Nesse último aspecto os teóricos da criminologia e do direito

contribuem com uma “mãozinha” por não acreditarem no tratamento.135

Se a virtude deverá visar o meio-termo e a justiça é expressão máxima da virtude, o

conceito de meio-termo é aplicável à justiça. Trata-se de virtudes morais, ou seja, que se

relaciona com paixões e ações, em que se pode encontrar um fator que pondere entre excesso

e carência.136

Assim, verifica-se inaceitável os preceitos genéricos – receitas – dirigidas para toda

a coletividade de forma taxativa e impositiva. Necessário se faz a individualização e análise

das circunstâncias no caso concreto, considerando-se conceitos de valor para encontrar-se o

meio-termo: o justo. É nesse sentido as colocações de Gadamer: “[...] É verdade que o jurista

sempre tem em mente a lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo tem que ser

determinado como respeito ao caso ao qual se trata de aplicá-la. [...]”137

135 BAUMAN, 1999, p. 24-25. 136 ARISTÓTELES, 2006, p. 48. 137 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 485.

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Essa análise não é fácil e há mais possibilidades de erro do que acerto. É uma

situação análoga a do alvo, em que existe uma só possibilidade de sucesso – acerto – enquanto

que diversas possibilidades de insucesso – erro – porquanto pode ocorrer por várias

oportunidades. Chegar ao meio-termo e, por conseguinte, ao que é certo demanda análise de

“[...] circunstâncias particulares, e a decisão depende da percepção.”. Por outro lado, as

pessoas que não atingem exatamente o alvo, do que é certo ou errado não são censuradas,

enquanto que aquelas que desviam consideravelmente nunca passam despercebidas.138

Deve-se então, buscar o meio-termo concentrando-se todas as energias para o acerto

– alvo, tendo-se em vista que a justiça pode ser alcançada de forma também aproximada, sem

ser passível de censura pelo que é certo. Esse é o desafio do profissional jurídico moderno.

Não é tarefa fácil o acerto, mas deve-se sempre, utilizando-se da compreensão hermenêutica

buscar a ponderação entre o excesso e a falta, para se estabelecer um parâmetro médio para

aplicação justa do direito.

Nesse primeiro momento interessa a forma de justiça em que a legalidade (princípios

e regras) é o intermédio para o interesse do bem comum (ou ao menos deveria ser) e, portanto,

expressão do que é justo na busca da felicidade.

Para Aristóteles a lei tem um papel fundamental e é concebida para o bem comum,

visando preservar a felicidade, prescrevendo certos atos e condenando outros. Logo uma

expressão de justiça. O homem que não cumpre a lei é um homem injusto. Ao contrário, o

homem que cumpre a lei é um homem justo. Apesar desse ideal de que a lei visa o bem

comum e é expressão de justiça é de se ressalvar que leis bem elaboradas fazem o bem

enquanto que as mal elaboradas ou elaboradas às pressas não fazem tanto bem assim.139

Atualmente, na realidade do Estado Democrático de Direito não se pode dispensar a

legalidade, porque ela é o parâmetro para o justo. O que não se admite é a

interpretação/aplicação de regras sem o necessário filtro Constitucional porque são os

princípios que asseguram a inserção de elementos morais trazidos pelo povo e

Constitucionalizados sob a forma de direitos fundamentais.

Tem-se, ainda, que a noção de justo e injusto estão ligados à idéia de eqüidade. O

relacionamento dos homens está sempre numa relação de igualdade ou desigualdade. Manter

a relação de equilíbrio ou proporção é onde se estabelece o justo. Porém, além do tratamento

138 ARISTÓTELES, 2006, p. 49; 55. 139 Ibidem, p. 104-105.

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igualitário a casos semelhantes é necessário estabelecer quando esses casos serão semelhantes

ou diferentes (dependente de valores morais). Assim, a justiça é uma condição necessária que

deve ser satisfeita pelas escolhas legislativas para o bem comum.140 Santo Agostinho

considera, com razão, que os Estados devem ser seguidores da justiça, sob pena de serem

identificados como ladrões alargados.141

Dessa forma, há que ser fazer justiça nos atos legislativos e também na aplicação do

direito pelo profissional jurídico, sempre visando o bem comum. Aristóteles já dizia que

praticar atos nobres ou vis dependem das pessoas, assim como ser virtuoso ou vicioso. Essa

atitude pode ser demonstrada tanto na vida particular das pessoas como também no legislador

que estabelece os preceitos punitivos.142

Estabelecer o que seja justo nem sempre é tarefa fácil e depende de um especial dom

de sensibilidade para a realidade, do legislador e do profissional jurídico, porquanto o senso

de justiça não é unânime, manifesta-se diverso de acordo com a sociedade. O justo é,

portanto, fruto de um meio social e histórico em que está inserido.

O entendimento de Kelsen não é diverso nesse ponto, porque considera que “[...] não

há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma Justiça absoluta mas

apenas uma Justiça relativa [...]”.143 É necessário considerar, também, que Kelsen expressou,

num ato de pronunciamento de despedida da Universidade da Califórnia (que originou um

ensaio chamado “O que é justiça?”), sua preocupação com a justiça, porquanto reafirmou o

caráter de relatividade presente no conceito de justiça e declarou que o seu conceito para

justiça é o de liberdade, de paz, de democracia e de tolerância.144

O emprego da razão e da reflexão verifica-se fundamental no processo de

identificação da justiça. Fernandez considera que a discussão racional, a reflexão filosófica e a

análise crítica são necessárias para estabelecer a idéia de justiça e aí está a tarefa fundamental

da filosofia do direito.145 Também esse é o apontamento de Aristóteles porque considera: “[...]

o meio termo é definido pelos ditames da reta razão [...]”.146

A idéia de justo ou injusto não compactua com valores absolutos, pois inviabiliza

uma discussão racional sobre o tema e pode levar à arbitrariedade, ao dogmatismo e ao 140 HART, 2002, p. 172-182. 141 AGOSTINHO apud HART, 2002, p. 170. 142 ARISTÓTELES, 2006, p. 65. 143 KELSEN, 2001, p. 76. 144 FERNANDEZ, 1991, p. 61-62. 145 Ibidem, p. 32. 146 ARISTÓTELES, 2006, p. 128.

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totalitarismo. A filosofia do direito deve tratar racionalmente a idéia de justiça porque a

concepção integradora do direito como fenômeno social expressa sempre uma idéia de justiça

e é possível partir de critérios mínimos de racionalidade prática em torno da idéia de justiça

(direitos humanos fundamentais).147

Hart adverte que “[...] Os homens perversos editarão regras perversas que outros

obrigarão a cumprir. [...]”.148 Quando as leis negam o desejo de justiça carecerão de qualquer

validade, o povo não deverá obediência e os juristas devem, em primeiro lugar, refutar o

caráter de justiça.149 Posicionamento diverso é adotado por Kelsen quando atribui validade a

ordem jurídica independentemente de confrontação com qualquer sistema de moral. A regra

estando no sistema jurídico basta para pressupor sua validade, ainda que contrarie a ordem

moral. A ciência jurídica deve preocupar-se com o conhecimento e com a descrição da ordem

normativa e não com atribuição de valor.150

A solução é complexa e não pacífica. Os profissionais jurídicos não têm um acordo

semântico sobre a aplicação das normas jurídicas. Ainda assombra o direito resquícios de um

paleopositivismo vinculado à metafísica. Está nas mãos do profissional jurídico a aplicação

justa do direito, proporcionada pelo debate e resgate de uma postura de reflexão frente aos

problemas concretos.

Apegado à falsa segurança da letra fria da norma penal, o dogmatismo exagerado

torna-se prejudicial porque torna eficaz a aplicação da lei e não do direito, este entendido

como medida de justiça. Os valores trazidos à sentença judicial devem partir da

historidicidade/faticidade do intérprete e observar os pré-juízos autênticos dispostos no

ordenamento constitucional.

A justiça deve ser o objetivo maior da prestação jurisdicional. Para tanto os

legisladores e os profissionais do direito devem se desprender da concepção equivocada de

segurança jurídica trazida pela legalidade. A medida justa é verificada no caso concreto. Para

efetivá-la deve-se assumir uma postura de responsabilidade e reflexão diante do direito,

respeitando-se os valores Constitucionais. Ter em mente que o direito é algo que ultrapassa a

legalidade em sentido estrito, buscando o justo é medida que deve irradiar nos bancos

escolares e se infiltrar no poder judiciário.

147 FERNANDEZ, 1991, p. 35-37. 148 HART, 2002, p. 226. 149 RADBRUCH, 1974, p. 416. 150 KELSEN, 2001, p. 76-77.

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2.2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, CONSTITUIÇÃO E PROCESSO PENAL:

UMA APROXIMAÇÃO GARANTISTA

Na atual conjuntura do direito e dos Estados modernos, o processo penal é o

instrumento indispensável para se atribuir pena a quem cometeu um injusto penal – ainda que

haja manifestação do acusado no sentido de dispensá-lo (trata-se de direito indisponível do

acusado).

O homem para atingir a paz proporciona a guerra – invade o domínio do outro. A

guerra enquanto proibida pelo direito se converte em delito e o direito penal tem a finalidade

de combater ou excluir o delito – combate a um inimigo151 a dominar.152 Porém, o combate ao

delito com a atribuição de pena não é conseqüência imediata e irrefletida da infração, porque

prévia ação penal objetiva permitir sua efetivação apenas quando precedida do devido

processo Constitucional, ou seja, a liberdade individual está ameaçada se o direito cometido

for submetido ao trâmite processual, sendo nele respeitados, o contraditório, a ampla defesa, a

presunção de inocência, a igualdade processual, o Juiz natural, a publicidade e justificação das

decisões, entre outros princípios limitadores e dosadores do direito de punir do Estado.

A partir da autodefesa ou da autotutela153 o Estado tornou-se o único e exclusivo

detentor do direito de punir (jus puniendi) necessitando de um procedimento para atingir seus

objetivos. Como bem afirma Jardim, o Estado não se limita a criar regras de comportamento

por meio de normas permissivas ou proibitivas, genéricas e abstratas, mas também se aparelha

tecnicamente para que tais regras sejam eficazes como fator de segurança e estabilidade.154

Esse instrumental155 necessário para a imposição de pena (caminho), monopolizado

pelo Estado, constitui-se num significativo avanço para a humanidade. Nas palavras de Lopes

Júnior, hoje há uma íntima ligação entre delito, pena e processo (complementaridade). “[...] 151 A palavra inimigo não significa a adoção das teorias de Günther Jakobs sobre o direito penal do inimigo. Ao contrário, um processo penal democrático compactua com um direito penal de ultima ratio (direito penal mínimo). 152 CARNELUTTI, Francesco. As funções do processo penal. Tradução Rolando Maria da Luz. Campinas: Apta, 2004, p. 27-29. 153 A autodefesa ou autotutela é o revide pela vítima – pelas próprias mãos – às agressões sofridas e esteve presente com maior freqüência no período da vingança privada. 154 JARDIM, 2007, p. 16-17. 155 A instrumentalidade do processo penal é denominada por Lopes Júnior de instrumentalidade garantista por estar “[...] relacionada ao Direito Penal, à pena, às garantias constitucionais e aos fins políticos e sociais do processo. [...]” LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 13.

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Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para

determinar o delito e impor uma pena.”156 Também, na afirmação de Carnelutti o direito penal

compreende o direito processual penal cujo objeto é a pena e o direito penal material, cujo

objeto é o delito. Nesse sentido “[...] a pena se resume no juízo e o juízo na pena. [...]”157

É necessário destacar que o Estado, no decorrer da história, nem sempre soube

utilizar o poder jurisdicional com cautela. Em nome de uma pretença ordem repressora (fiel

em acreditar na prevenção geral) e na defesa de interesses políticos, sociais e econômicos de

determinada classe cometeu atrocidades utilizando-se da coercitividade do direito penal. Essa

realidade utilitarista do direito penal felizmente – ao menos teoricamente158 – está sendo

combatida.

Também, é importante mencionar que o processo em si já é pena, ou seja, somente o

fato de o acusado respondê-lo lhe causa diversos e sérios transtornos. Como bem relata

Carnelutti, “O acusado sente ter a aversão de muita gente contra si; algumas vezes, nas causas

mais graves, lhe parece que esteja contra ele todo mundo [...]” pois, não raramente, a multidão

o insulta e provocam atos de violência contra ele. “[...] Infelizmente a justiça humana é feita

assim, que nem tanto faz sofrer os homens porque são culpados quanto para saber se são

culpados ou inocentes. [...]”. O homem quando é acusado é jogado às feras. Ele, sua família,

sua casa e seu trabalho são despidos na presença de todos levando o indivíduo à pedaços.159

Isso tudo, sem falar do poder da mídia que atualmente vem solapando, cada vez em maior

freqüência, a presunção de inocência dos suspeitos de forma a condená-los e executá-los

sumariamente.

As normas incriminadoras (penal) e instrumentais (processo penal) estão

diretamente vinculadas ao princípio da dignidade da pessoa humana. “[...] Do mesmo modo

que a tipicidade penal deve obediência ao princípio da dignidade, o processo criminal não

pode servir para ultrajar a dignidade do suposto acusado de modo desarrazoado,

desproporcional, desnecessário, além do que consente a ordem constitucional.”160

156 LOPES JÚNIOR, 2001, p. 6; 9. 157 CARNELUTTI, 2004, p. 21; 23. (grifo do autor). 158 A principal resposta teórica aos abusos cometidos pelos Estados no exercício do poder punitivo é a teoria do garantismo jurídico proposta por Luigi Ferrajoli. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. Tradução Ana Paula Zomer Sica et. al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 159 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução José Antonio Cardinalli. Campinas: Conan, 1995, p. 26; 45-46. 160 CARVALHO, 2004, p. 48; 51.

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O processo penal, como instrumento para se chegar à pena, é fundamental no Estado

Democrático de Direito. Sob o princípio reitor do devido processo legal161, consagrado

expressamente na Constituição Federal brasileira de 1988, o Estado impõe limites

Constitucionais à liberdade – direitos fundamentais – para exercer o poder punitivo. Essa

(de)limitação de como proceder se explica, segundo Rosa, porque diante da sempre parcial

descrição da conduta as tramas e versões apresentadas no processo democrático, a partir da

iniciativa das partes, “[...] podem ser muitas e a escolha de poucos. Por isso que o ato

decisório, para além da lógica, precisa atender às regras do jogo processual [...]” e estar

relacionada com o mundo da vida.162 Por essa razão – proteção ao arbítrio – as regras

processuais devem ser aplicadas pelo intérprete a partir de seus pré-juízos autênticos (sentido

de Constituição, preocupação com o ser, consciência histórica, entre outros).

Essas garantias pautadas nos direitos fundamentais frente ao poder do Estado têm

como base um projeto de democracia163 social – direito penal mínimo e direito e Estado social

máximo – que protegem os “[...] interesses dos mais débeis em relação aos mais fortes, tutela

das minorias marginalizadas frente às minorias integradas.”164

Um direito processual penal válido depende de uma releitura do ordenamento

jurídico tradicional a partir da teoria do garantismo de Ferrajoli – baseada no respeito à

dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais – concepção de Constituição daí

decorrente. Essa teoria tem quatro frentes: a) revisão da teoria da validade (diferença entre

validade/material e vigência/formal); b) reconhecimento da dimensão substancial de

democracia (superação da visão formal); c) nova maneira de o Juiz ver a sujeição à lei

(conteúdo normativo – também de acordo com o texto, inclusive o maior); d) revisitação da

ciência jurídica – acréscimo de contornos críticos e de projeção de futuro.165

A partir da teoria de garantismo, é possível identificar o processo penal como

instrumento de garantia ao qual a proteção dos direitos fundamentais pelo ordenamento

161 “Art. 5º [...] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. 162 ROSA, 2006, p. 385. 163 “[...] Quanto maior a cultura de democracia de um povo, maior será a humanização de seu direito penal. [...]”. As violações a direitos individuais, a partir da atuação do Estado no exercício do poder punitivo, foram responsáveis por grande parte do déficit democrático que se apresenta. A criminalização e penalização de condutas redundou “[...] em mais repressão e menos tolerância, o que se afasta do pretendido para o direito penal em uma sociedade democrática. [...]” COPETTI, André. Direito penal e democracia: perspectivas para a efetivação democrática através do sistema punitivo. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4, p. 39; 43; 46. 164 STRECK, 2001, p. 23-24. (grifo do autor). 165 ROSA, 2006, p. 85-86.

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jurídico é o imperativo básico. O acusado passa a ser tratado como sujeito no processo. O

Estado Democrático de Direito compactua com um processo penal também democrático e a

Constituição tem função limitadora do poder (tutela os direitos fundamentais), servindo de

garantia aos cidadãos. O processo penal é, no Estado Democrático de Direito, o instrumental

(limita e disciplina o jus puniendi Estatal) necessário e indispensável para efetivar as garantias

Constitucionalmente estabelecidas a fim de se atribuir pena através de uma prestação

jurisdicional justa.

Os princípios garantistas visam, antes de tudo, dar um grau máximo à racionalidade

e confiabilidade do juízo e, portanto, limitar o poder punitivo e proteger a pessoa contra a

arbitrariedade.166

No Brasil encontra-se um dilema entre exigência normativa garantista e uma prática

autoritária. Busca-se conciliar o inconciliável que é conferir à prática processual penal

legitimidade constitucional que não se tem. A democracia ainda não se solidificou porque

houve uma sucessão de regimes autoritários e supressão sistemática de direitos fundamentais.

Uma educação para os direitos fundamentais e uma ruptura com o passado autoritário esteve

ausente por aqui.167

Ainda é preciso dizer que a Constituição deve ser encarada como topos

hermenêutico – valor supremo – para todo o ordenamento jurídico. Especificamente para o

Direito Processual Penal, há princípios (normas fundantes do sistema) expressos ou implícitos

sobre “a regra do jogo” para se chegar à pena.

Boa parte dos juristas brasileiros (ainda) não conseguiu apreender o verdadeiro

sentido de Constituição enquanto ruptura de um modelo desprovido de garantias, vinculado à

situações de privilégios.

Assim, tem-se (mais uma vez) uma Constituição “recheada” de direitos

fundamentais e parte dos juristas preocupados com a manutenção do status quo.

Falta (novamente) efetivação de direitos e garantias Constitucionais a partir do

modelo de processo trazido pelo constituinte originário. Apesar das dificuldades de

delimitação, pode-se afirmar que esse modelo (sistema) aproxima-se do acusatório.

166 FERRAJOLI, 2006, p. 38. 167 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade Constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 3; 5; 23-24; 37.

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Uma abordagem que pode ser considerada completa sobre os sistemas de processo

penal merece uma análise da experiência histórica.168 Em razão da delimitação aqui proposta e

correndo o risco de ser “incompleto” – mas de maneira alguma subtraindo a importância do

tema –, apresenta-se somente os aspectos conceituais sobre os dois principais sistemas de

processo penal169: inquisitório e acusatório.

Sob a perspectiva teórica a dicotomia acusatório/inquisitório indica dois modelos

opostos de organização judiciária – duas figuras de juiz – e métodos diversos, contrapostos,

de investigação judicial – dois tipos de juízo. No sistema acusatório, o juiz é um sujeito

passivo “[...] rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário,

iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante

um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção.

[...]”. No sistema inquisitório, “[...] o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação

das provas, produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na qual são

excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa. [...]”170

O sistema inquisitório é caracterizado por uma persecução escrita e secreta, pela

incomunicabilidade e encarceramento provisório do acusado e ausência de contraditório.171

Ele está preocupado com a realização do direito penal material. O objetivo principal é o

exercício do poder de punir do Estado. Os atos distribuídos ao juiz compactuam com esse

objetivo como se o juiz cumprisse função de segurança pública. Essas tarefas de acusação

primam pelo interesse de punir sobre os direitos fundamentais do réu.172

A gestão da prova denuncia a característica fundamental do sistema inquisitório,

pois o magistrado poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos fatos

(vantagem aparente), mesmo os não contidos na acusação “[...] dado de seu domínio único e

168 “A distinção entre sistema acusatório e sistema inquisitório pode ter um caráter teórico ou simplesmente histórico. [...]” Na experiência histórica eles nunca aparecem sob a forma pura – dependem dos contingentes e dinâmicas histórico-políticas. FERRAJOLI, 2006, p. 518-519. Merece consulta a obra de Prado porque sistemativa o pensamento histórico dos sistemas processuais, desde a experiência europétia até a brasileira. PRADO, 2006. 169 Pela expressão principais, exclui-se o sistema misto que é uma tentativa de conciliar o sitema inquisitório com o acusatório. Na afirmação de Ferrajoli, esse “[...] ‘monstro, nascido da junção entre os processos acusatório e inquisitório’ [...]” foi contemplado pelo Código termidoriano de 1795 e pelo Código napoleônico de 1808. FERRAJOLI, 2006, p. 521. 170 Ibidem, p. 519-520. 171 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do Juiz no processo penal acusatório: incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo Constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 41. 172 PRADO, 2006, p. 105.

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onipotente do processo em qualquer das suas fases.”173 Define-se o sistema processual penal

adotado por um ordenamento jurídico, basicamente, a partir da análise da gestão da prova.174

A busca da prova, pelo juiz, subverte a função de acusador e transforma-o em um verdadeiro

inquisidor.175 Ao contrário, um sistema de processo penal acusatório não compactua com a

postura de um Juiz ativo no processo. O papel do Juiz deve ser de mero espectador para se

tornarem efetivas as garantias Constitucionais legitimamente estabelecidas.

O princípio acusatório é um processo de partes que pode ser visto sob as

perspectivas estática e dinâmica. No primeiro caso analisam-se as funções dos três principais

sujeitos – “[...] distribuição do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional,

entre autor, réu (e seu defensor) e juiz [...]”. No segundo ponto de vista, a análise pauta-se na

forma em que se relacionam autor, réu e seu defensor e juiz nas funções (captação da atuação

como em um filme).176

No processo de partes – característica essencial do modelo acusatório – ocorre “[...]

atuação das partes contrapostas – acusador e acusado –, que duelam em igualdade de posições

e direitos, apresentando-se um juiz sobreposto a ambas.”177 No processo de partes, “[...] não

compete ao órgão jurisdicional provocar a sua jurisdição, bem como impedir que a parte se

instrumentalize para fazê-lo, no futuro. [...]”178 A exigência fundante é de uma igualdade

efetiva entre acusação e defesa (paridade de armas179), assegurada por regras democráticas e

pelo processo penal acusatório.

O sistema acusatório moderno parte de um Poder Judiciário independente e inerte,

onde os juízes estão comprometidos com o sistema de garantias dispostas em Constituição,

pactos e convenções internacionais.180 No sistema inquisitivo ocorre o inverso porque a busca

pela verdade a qualquer preço acaba por contaminar a imparcialidade do julgador e produzir

efeitos nefastos no processo penal.

173 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 24. 174 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim IBCCRIM. Porto Alegre: IBCCRIM, ano 15, n. 175, junho 2007, p. 11. 175 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, tecnologia, dromologia e garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 282. 176 PRADO, 2006, p. 106; 113; 124. (grifo do autor). 177 SILVA, 2005, p. 41. 178 JARDIM, 2007, p. 192. 179 “O tratamento paritário dos sujeitos processuais significa dar às partes as possibilidades necessárias para que possam valer seus direitos, garantindo o julgador que haja o equilíbrio de situações.” BONATO, Gilson. Devido processo legal e garantias processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 196. 180 THUMS, 2006, p. 262.

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No Brasil, a partir de 1988, está vedada a possibilidade de processo iniciado por juiz

e àqueles habilitados é exigido a justa causa penal – tutela constitucional da dignidade da

pessoa humana e imparcialidade judicial – pois “[...] aquele que tem um juiz por acusador,

precisa de Deus como defensor [...]”.181 A mudança Constitucional foi radical. De mero

veículo de aplicação da lei penal a nova ordem exigiu que o processo passasse a ser

instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado.182

Constitui problema quase insolúvel compatibilizar a Constituição da República, que

impõe um sistema acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro que, em sua maior

referência legislativa – código de processo penal – é uma cópia malfeita do Codice Rocco

Italiano, datado de 1930, nitidamente marcado pelo sistema inquisitivo.183

No entendimento de Oliveira, o código de processo penal, datado de 1941, deve ser

compreendido e aplicado a partir da devida filtragem constitucional porque ele não está

superado apenas pelo tempo mas também por incompatibilidade normativa com a

Constituição de 1988.184

O constituinte orientou-se pelo princípio acusatório enquanto que a legislação

caminha na contramão para atender reclamos populares frente a crescente onda de violência

no país.185 “Tem-se, no Brasil, um arsenal capaz de conduzir o sistema processual penal à

base acusatória, mas isso não ocorrerá enquanto o Poder Judiciário não assumir a CF/88

contra o CPP; [...]”186

O senso comum teórico dos juristas (expressão de Warat) está de mãos dadas com

uma verdade que acreditam ser fundante, alheia ao giro lingüístico, o que torna a decisão

penal um mero ato lógico, desprovido de realidade – mundo da vida – sempre na busca pela

verdade real que é sempre limitada.187 No plano ideal o Brasil tem um sistema acusatório mas

na realidade isso ocorrerá a partir do momento em que as leis processuais infraconstitucionais

forem aplicadas em conformidade com a constituição.188

A atividade decisionista do juiz é reprovável, pois sua vontade pessoal não é

legítima. Ele não pode condenar porque diversas pessoas querem a condenação, mas sim com 181 PRADO, 2006, p. 167-174; 179. 182 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 7. 183 COUTINHO, junho 2007, p. 11. 184 OLIVEIRA, 2007, p. 3. 185 THUMS, 2006, p. 263. 186 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Ampla defesa e direito à contraprova. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 13, n. 55, julho-agosto 2005, p. 375. (grifo do autor). 187 ROSA, 2006, p. 383-384. 188 BONATO, 2003, p. 106.

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base nas provas lícitas produzidas no processo. A legitimidade da atividade jurisdicional está

em assegurar os direitos e garantias fundamentais, condicionada a ausência do decisionismo

judicial – decisão arbitrária – e da ilusão de uma verdade real. Não basta, para que isso ocorra,

somente disposições Constitucionais. É preciso que a sociedade também seja democrática

para se vencer os adversários culturais credores da verdade real – conquistada através de

procedimento de defesa social.189 A crença nessa verdade “[...] rendeu (e ainda rende)

inúmeros frutos aos aplicadores do Código de Processo Penal, geralmente sob o argumento da

relevância dos interesses tratados no processo penal. [...]” Ela contribui para a disseminação

de uma cultura inquisitiva.190

Ferrajoli afirma que a verdade substancial ou material é a verdade desejada pelo

modelo substancialista de direito penal que carece de limites e confins legais – além das

regras procedimentais. Está baseada em uma concepção autoritária e irracionalista do

processo penal. Ao contrário, a verdade formal ou processual pauta-se no respeito às regras.

Ela está condicionada pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa – não é obtida

mediante práticas inquisitivas – e não pretende ser a verdade. A verdade processual assegura

uma verdade mínima, mas também garantida porque determinada pelo processo acusatório.

Aqui o fim é legitimado pelos meios. Por outro lado, a verdade substancial afigura-se como

verdade máxima através de um processo decisionista e inquisitivo. Aqui os fins justificam os

meios.191

A verdade real é um mito que está relacionado ao sistema inquisitivo. Esse modelo

compactua com a figura do Juiz ator e um sistema autoritário.192 Na afirmação de Rosa, “[...]

jamais, [...] pode-se reconstruir os fatos como aconteceram, apesar de ser sedutora a hipótese,

porque a trama processual é sempre lacunar. [...]”193

A verdade que legitima democraticamente o processo penal é “[...] concebida como

possível e adequada entre a imagem [...] acerca do fato e a forma real como este fato

supostamente ocorreu [...] a verdade que se pode alcançar no processo [...] é contingente e

histórica. [...]”194 O direito não está suficientemente habilitado à investigação para se chegar a

uma verdade real. Ele somente se apropria do discurso.195 Dessa forma, é: “[...] Impossível [...]

189 PRADO, 2006, p. 35-37. 190 OLIVEIRA, 2007, p. 280-281. 191 FERRAJOLI, 2006, p. 48; 498. 192 LOPES JÚNIOR, 2001, p. 267. 193 ROSA, 2006, p. 384-385. 194 PRADO, 2006, p. 120-121. 195 Ibidem, p. 141.

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demonstrar tudo e a descrição da conduta é sempre de ordem do parcial. [...] As tramas,

versões, então, podem ser muitas e a escolha de poucos. Por isso que o ato decisório, para

além da lógica, precisa atender às regras do jogo processual [...]”.196

Na afirmação de Coutinho, é preciso admitir que no processo penal jamais se vai

apreender o todo da verdade “[...] porque ela é inalcançável - e, portanto, como se viu, o que

se pode - e deve - buscar nos julgamentos é um juízo de certeza, pautado nos princípios e

regras que asseguram o Estado Democrático de Direito.”197 A decisão não é processo de uma

lógica dedutiva. Ela narra “acontecimentos históricos” analisadas no âmbito discursivo

(processo). Opera nesse processo o inconsciente (ao contrário do que a filosofia da

consciência acredita – hermenêutica colonizada – em busca da verdade real).198

A verdade real compromete a imparcialidade e esconde a substituição das funções

do Ministério Público pelo Juiz. O Juiz, na ânsia de buscar a verdade real torna-se um

inquisidor comprometido com suas vontades e não com a imparcialidade esperada pelo

sistema acusatório. A limitação da iniciativa probatória do Juiz é fundamental para que se

afaste essa natureza inquisitória do Processo Penal. O Juiz deve estar vinculado às provas

trazidas pelas partes, salvo para demonstrar a inocência do acusado.

Como bem salienta Prado, o comprometimento psicológico do Juiz com o resultado

condenatório ocorre quando ele toma a iniciativa probatória, pois: “Quem procura sabe ao

certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa

uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do

julgador.”199 A partir de premissas falsas “[...] forjadas pelo imaginário – chega-se, sem

grande esforço, a conclusões falsas. É assim que sempre se fabricou – e segue-se fabricando –

delitos e delinqüentes, em nome da crença nas imagens, hoje disseminadas (as imagens)

como nunca a partir dos meios de comunicação. [...]”200

A verdade real não é mais concebível no processo penal, ainda que haja dispositivos

legais infra-constitucionais amparando esse atuar. Verdade real não é possível e quando o

julgador se põe a buscá-la – o que é inalcançável – atua como inquisidor. Esse atuar

inquisitório não é compatível com a vontade Constituinte. Assim, a verdade real é

inconstitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro.

196 ROSA, op. cit., p. 385. 197 COUTINHO, maio de 1998, p. 34. 198 ROSA, 2006, p. 383-384. 199 PRADO, 2006, p. 137. 200 COUTINHO, Revista Brasileira de Ciências Criminais, julho-agosto 2005, p. 375. (grifo do autor).

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A verdade também está relacionada com a justificação201 das decisões, porquanto é a

partir dela que se exterioriza o atuar democrático ou inquisitório do julgador.

A verdade a ser buscada no processo penal é aquela reduzida – mais aproximada

possível – controlada pela lei em nome da proteção da liberdade, com respeito aos

procedimentos e às garantias de defesa, funcionando como antídoto contra a pretensão de

infalibilidade e prepotência da atividade instrutória e da decisão judicial nela motivada.202

Conscientes de suas possibilidades e limitações, os julgadores devem conduzir o

andamento do processo penal a partir do comprometimento com a posição de imparcialidade a

fim de que resulte um processo penal verdadeiramente democrático e pessoas conscientes da

aproximação sobre a verdade dos fatos.

Não existe valor definido para cada prova no direito processual penal brasileiro.203

Em decorrência disso, cabe ao Juiz do processo penal democrático204 – em uma posição de

expectador, assegurado o contraditório e a ampla defesa do acusado – justificar sua

compreensão, dada a partir do círculo hermenêutico (situação possível a partir da linguagem).

O intérprete ao interpretar está no círculo hermenêutico que possui caráter

ontológico. Assim, “[...] o julgador não decide para depois buscar a fundamentação; ao

contrário, ele só decide por que já encontrou o fundamento [...]” que funciona como condição

de possibilidade para a decisão – “[...] a decisão é parte inexorável (dependente) do

fundamento. [...]”. Somente a partir daí, num segundo momento, pode-se buscar o

201 Prefere-se utilizar os termos justificação ou fundamentação das decisões porque adequados à viragem ontológica. A palavra motivação remete a ultrapassada crença – metafísica – de que primeiro o juiz decide e depois encontra os argumentos/apresenta a motivação de seu convencimento. A partir da compreensão hermenêutica o processo é único, ou seja, quando a compreensão do intérprete (com seus pré-juízos) materializa-se (fuzão de horizontes e circulo hermenêutico) no processo decisório não se separam decisão e motivação – a decisão ocorre porque a compreensão do intérprete a motivou no sentido do decidido. Ainda assim, a hemenêutica filosófica não dispensa a justificação das decisões porque ela é a explicitação do compreendido através da linguagem e fator de legitimidade da atuação democrática do intérprete. 202 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios Constitucionais do processo penal. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 205-207. 203 Após a Revolução Francesa, passou-se a sustentar que o valor e a força dos meios de prova não podem ser aferidos a priori, com base em critérios legais, mas tão-só a partir da análise do caso concreto. Assim, passou-se a substituir, paulatinamente, o princípio da valoração legal das provas pelo princípio da livre apreciação delas pelo juiz, com a devida fundamentação: teríamos chegado, com o livre convencimento, à fase científica. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. Texto preparado e inicialmente apresentado no âmbito da Comissão de Estudos criada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e Instituto Max Planck, de Freiburg, Alemanha, no Projeto “A Justiça como garantia dos direitos humanos na América Latina”, maio de 1998, a partir das aulas de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da UFPR, p. 36-37. 204 “Um processo penal relamente democrático e de estrutura acusatória deve necessariamente ser um instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais.” BONATO, 2003, p. 196.

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aprimoramento do fundamento a partir de práticas discursivas ou problemáticas.205

Há uma Constituição a ser obedecida (sistema acusatório) e um procedimento

correto a ser adotado (caráter instrumental do processo), em que as provas produzidas, lícitas

e legítimas (sob o crivo do contraditório) servem (também) de condição de possibilidade para

o ato decisório. São essas condições do compreendido que devem ser apresentadas pelo

julgador (justificadas) para que haja um “controle” sobre a legitimidade das decisões.

Imparcialidade não se confunde com neutralidade, uma vez que a primeira deve ser

preservada, enquanto que a segunda não pode ser alcançada.

O julgador está sempre “[...] vinculado aos condicionantes culturais, criminológicos,

midiáticos, ideológicos e inconscientes [...] que se materializam no ato decisório [...]”. As

decisões são construídas por seres humanos em determinado momento histórico e cada Juiz

possui sua singularidade ao congregar os significantes. A escolha se dá entre as várias

possíveis, “[...] sem verdades fundantes, nem certezas redentoras, mas com ética [...]”.206 “O

importante, enfim, neste tema, é ter-se um julgador consciente das suas próprias limitações

(ou tentações?), de modo a resguardar-se contra seus eventuais prejulgamentos, que os tem

não porque é juiz, mas em função da sua ineliminável humanidade.”207

Os julgadores do direito penal devem assumir-se na posição de imparcialidade

através de um processo penal democrático e, portanto, acusatório. Pré-julgamentos

inautênticos acabam por tornar sobreposta a emoção sobre a razão levando ao desvirtuamento

dos fatos. A consciência sobre a não possibilidade de ser neutro é importante para reforçar a

diferença em relação à imparcialidade que deve ser concretizada.

Um processo democrático que permite a produção de provas legítimas torna a

decisão mais justa. Essa decisão busca a racionalidade e o convencimento através da

compreensão explicitada pela linguagem – espaço para argumentação.

No modelo de processo penal democrático as decisões precisam ser aparentes de

forma que o acusado possa saber as razões de sua condenação/absolvição. As decisões

tornam-se democráticas pois não mais se permite decidir de qualquer forma – controla-se o

poder. Elas precisam vir a público de forma justificada. Não basta o decidir, o julgador deve

decidir bem e explicar suas razões. Dessa forma o poder é controlado – limitado – e o Estado

democrático de direito preservado. 205 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 210. 206 ROSA, 2006, p. 384. 207 COUTINHO, maio de 1998, p. 37.

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Assim, o sistema de Processo Penal apresentado pela Constituição Federal brasileira

de 1988 pode ser definido como acusatório, pois vedado o processo em segredo, sem

contraditório e assegurado o direito à ampla defesa. Os papéis nesse sistema estão

previamente distribuídos à Órgãos distintos, ou seja: o Ministério Público tem o dever

acusatório e de custus legis, o réu tem assegurado meios amplos de defesa (técnica e pessoal)

e o Juiz tem o papel fundamental de garantir (assegurar com imparcialidade) o estabelecido

Constitucionalmente para um Processo Penal Democrático ou Constitucional, pautado na

igualdade material (paridade de armas).

O atual Código de Processo Penal Brasileiro está datado de 1941 (em vigor desde

1942) e foi elaborado em meio às aspirações Facistas (código de Rocco – Itália),208 em que o

pensamento era no sentido da presunção de culpabilidade, com caráter nitidamente

policialesco. Segundo Oliveira, as principais características do Código de Processo Penal

brasileiro são: a) acusado como potencial e virtual culpado; b) tutela da segurança pública em

detrimento da liberdade individual; c) busca da verdade (real) através de práticas autoritárias e

abusivas por parte dos poderes públicos; d) interrogatório do réu como meio de prova e não

de defesa.209 Ao contrário da realidade constituinte, o código de processo penal brasileiro é de

índole inquisitória. Seus dispositivos retratam o autoritarismo quando dispõe sobre a busca de

uma verdade (real) não compatível com o sistema acusatório e considera o réu como inimigo

e culpado antes do provimento jurisdicional final.

Diante da nova realidade Constituinte de 1988 (preocupada com afirmação dos

direitos e garantias individuais), é preciso uma (re)leitura210 Constitucional e Democrática das

regras do Código de Processo Penal Brasileiro (filtragem Constitucional). Timidamente o

legislador tem alterado alguns dispositivos, a exemplo do interrogatório211 e da comunicação

208 Consta expressamente na exposição de motivos do código de processo penal brasileiro: “[...] impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre ao da tutela social. [...] É restringida a aplicação do indubio pro reo. É ampliada a noção de flagrante delito, para o efeito da prisão provisória. A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz [...]. Tratando-se de crime inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão [...]. Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco, referindo-se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto preliminar, advertia que elas certamente iriam provocar o desagrado daqueles que estavam acostumados a aproveitar e mesmo abusar das inveteradas deficiências e fraquezas da processualística penal até então vigente. [...]” 209 OLIVEIRA, 2007, p. 6-7. 210 O termo (re)leitura pretende exprimir a não recepção ou a inconstitucionalidade de dispositivos infra-constitucionais. 211 Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, arts. 185 e seguintes do Código de Processo Penal Brasileiro.

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da prisão do acusado à Defensoria Pública, quando o acusado não possuir advogado212. Porém,

a mudança legislativa não se verifica suficiente, sendo necessário uma postura responsável e

comprometida com os valores Constitucionais por parte dos profissionais jurídicos.

Especialmente no que diz respeito ao Juiz, há o controle difuso de Constitucionalidade para

correção de distorções infra-constitucionais.

O processo penal como instrumento para atribuição de pena deve guiar-se pelos

preceitos Constitucionais e pautar-se do sistema acusatório. Ao acusado devem ser

assegurados os direitos fundamentais, especialmente aqueles limitadores do poder Estatal –

pressupostos de um atuar garantista baseado na humanização do homem.

Diante de um grau de maturidade cultural pós-constituinte é possível desenvolver-se

um processo coerente com os valores do Estado Democrático de Direito. O processo penal

democrático é o instrumental necessário para uma prestação jurisdicional mais justa e efetiva.

Sem negar a importância do conhecimento teórico, Jardim chama atenção para o

caráter instrumental do processo – revisão dos métodos – para uma melhor prestação

jurisdicional, na que o processo penal serve como um bem de utilidade social na busca pelo

bem comum – escopo do Estado Democrático de Direito.213

Ao Estado deve interessar tanto a absolvição do inocente quanto a condenação do

culpado. É preciso dar efetividade ao sistema acusatório previsto Constitucionalmente (opção

incondicional) frente a legislação infraconstitucional brasileira – inspirada em regimes

autoritários. Para Ferrajoli é justamente as duas finalidades do direito penal – punição dos

culpados e tutela dos inocentes – que o diferencia da justiça realizada com as próprias mãos

ou de justiças sumárias. Nem mesmo o processo inquisitório ignora a proteção dos inocentes e

o processo acusatório a punição dos culpados. A diferença é que o primeiro confia na bondade

ilimitada do poder enquanto que o segundo confia no poder como produtor de uma verdade

resultante de uma controvérsia de partes contrapostas.214

Há uma compreensão equivocada, inspirada em movimentos de lei e ordem, de que

o Poder Judiciário deve oferecer respostas repressoras para “combater a criminalidade”. Falta

nos operadores jurídicos o “sentido de Constituição” – garantias fundamentais para a tutela

das liberdades (garantismo negativo).

Por outro lado, há o garantismo positivo, que pensa o direito penal como proibição 212 Lei nº 11.449, de 15 de janeiro de 2007, art. 306 do Código de Processo Penal Brasileiro. 213 JARDIM, 2007, p. 317. 214 FERRAJOLI, 2006, p. 556-557.

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de proteção deficiente, ou seja, determinados bens – direitos fundamentais – devem receber a

proteção do Estado. Nesse sentido, Streck afirma que se equivocam os penalistas que “[...]

continuam a pensar o Direito [somente] a partir da idéia segundo a qual [...] o Estado é

necessariamente mau, opressor, e o Direito (Penal) teria a função de ‘proteger’ o indivíduo

dessa opressão. [...]” Nesse sentido, há casos215 em que o direito penal não pode abrir mão do

aspecto punitivo para proteger direitos fundamentais.216

O processo penal deve ser entendido nos dois aspectos. No primeiro caso como

autolimitação ao poder punitivo do Estado – garantidor da liberdade. No segundo como

instrumento de que se vale a sociedade para aplicar do direito penal aos fatos concretos,

alegados e provados em juízo. Inconcebível é atribuir ao processo penal as responsabilidades

decorrentes de circunstâncias estruturais alheias ao processo penal.217 É assim que “[...] a

violência não retrata somente uma ação. É mais do que isso: retrata uma reação.” As normas

são insuficientes, por si só, para conter a violência. Elas combatem somente o efeito e não a

causa, que tem origens na miséria, na pobreza, na má distribuição de rendas, no desemprego e

na má formação dos indivíduos.218

A legitimação do poder judiciário perante a sociedade não ocorre quando do

oferecimento de respostas autoritárias e repressoras. Ela se dá, essencialmente, quanto ele

cumpre o seu papel de respeitar os direitos fundamentais inseridos na Constituição Federal. A

obediência aos direitos fundamentais não é estímulo à criminalidade, mas sim, a

implementação da justiça na prestação jurisdicional penal.

Especialmente o Juiz tem papel fundamental nesse processo, porque sua atuação

pressupõe sujeição à Constituição e assegurar os direitos do acusado no processo penal.

É dever de todo o jurista evitar a “farsa processual”219. Nela, o processo cumpre ritos

215 Pode-se citar como exemplo o emprego da analogia para a hipótese de extinção da punibilidade no crime de estupro pelo casamento da vítima com terceiro (art. 107, VIII, CP). Se estendido ao concubinato e não somente ao casamento o Estado deixa de proteger a dignidade da pessoa humana – mulher. STRECK, Revista da AJURIS, 2005, p. 181-183. A solução para os casos de proteção deficiente no âmbito do processo penal é questão complexa e território praticamente inexplorado, especialmente porque as restrições processuais devem estar epressas em lei. Assim, a solução adequada fica sujeita a concurso com a iniciativa do legislador. CARVALHO, 2006, p. 36-37. 216 STRECK, Revista da AJURIS, 2005, p. 175; 179; 182-183. 217 JARDIM, 2007, p. 323. 218 PINTO, Celso de Magalhães. Violência: ação ou reação? Del Rey jurídica. São Paulo – Minas Gerais: Del Rey, agosto a dezembro de 2007, ano 9, n. 18, p. 44-45. 219 A farsa processual leva ao “acordo de cavalheiros” em que o direito penal é de autor e não do ato, pois se leva em consideração o que a pessoa é ou faz em detrimento do que ela praticou. Esse é o reflexo de uma sociedade injusta e desigual, com a mentalidade pautada no “coronelismo” e favorecimento.

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meramente formais e o réu já está, desde o inquérito policial (e depois na denúncia),

condenado. Não se utiliza o meio processual para busca da verdade dos fatos, mas para

simular um processo penal democrático.

A Constituição de 1988 reservou ao Ministério Público a prerrogativa fundamental

de independência funcional. Sua atuação deve pautar-se na defesa do Estado Democrático de

Direito e da ordem jurídica. Dessa forma, não há qualquer receio de que o parquet peça

absolvição do réu ou recorra de uma sentença condenatória.

À atuação jurídica falta a noção de que se está diante de um ramo do direito (penal)

cujos reflexos atingem o ser (não somente o ter). Os procedimentos punitivos abalam a vida

de um ser humano de forma irremediável, causando estragos de grande monta, a começar pelo

estigma social, preconceito e discriminação. O Processo por si só já é pena. O sujeito que está

respondendo o processo já começou a cumprir a pena.

O descomprometimento com os valores Constitucionais e com o meio social é, em

grande parte, fruto de uma crise presente no ensino jurídico brasileiro220, pois a expansão

desenfreada dos cursos de direito de má qualidade é uma realidade. Para agravar a situação, a

proposta de ensino remonta ao período jesuítico, porque há somente o repasse de informações

conteúdistas e manualescas baseadas na memorização (reprodução e não produção do

conhecimento). Nesse modelo despreza-se a formação cidadã e orientada para a reflexão e

criticidade.

Dessa forma, o Estado Democrático de Direito pressupõe a existência de um

contrato social disposto em Constituição. Na Constituição o povo descreve os valores

considerados fundamentais ao indivíduo e à sociedade, inclusive relacionados ao direito e

processo penal. Nela estão contidos os princípios fundamentais de garantia das liberdades que

devem ser seguidos pelos profissionais jurídicos.

A falta de compreensão da Constituição impede o acontecer do sentido. A pré-

220 Como exceção, algumas organizações da sociedade têm manifestado preocupação com essa realidade, a exemplo do Instituto de Hermenêutica Jurídica que pretende colaborar com a formação de juristas “[...] comprometidos com o papel emancipatório que um direito democrático deve desempenhar [...]” STRECK, Lenio; OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de; TRINDADE; André Karam; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Re-pensar o Direito: o compromisso do Instituto de Hermenêutica Jurídica. In: Del Rey jurídica. Ano 9, n. 18, agosto a dezembro de 2007, São Paulo – Minas Gerais: Del Rey, p. 68-69.

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compreensão é determinada pela tradição que vive o intérprete221. Sem compreensão de

Constituição a interpretação dos textos normativos do sistema resta prejudicada. Esse sentido

já se encontra antecipado numa co-pertença ‘faticidade-historidicidade’ do intérprete. A

ausência do sentido de Constituição são os pré-juízos inautênticos que prejudicam o jurista.222

O processo de interpretação dos textos normativos do sistema dependem do sentido de

Constituição e assim, uma baixa compreensão causará uma baixa aplicação.223

Um atuar de acordo com a Constituição no processo penal pressupõe sujeição ao

sistema acusatório, onde está garantida a existência de um processo penal (efetivamente)

democrático para se chegar à pena. Essa postura depende do sentido de Constituição que os

profissionais jurídicos têm, porque ela somente será efetivada na medida em que haverá

aplicação, na prática judiciária, dos preceitos estabelecidos.

2.3 PRINCÍPIOS DE GARANTIA NO PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

BRASILEIRO

O Estado é fruto de um contexto que o potencializou – produto do meio social. Na

atual conjuntura do Estado Democrático de Direito expresso está, na Constituição Federal, os

direitos fundamentais que asseguram a existência de um processo penal Constitucional ou

Democrático.

O processo penal Constitucional ou Democrático é o processo penal justo no Estado

Democrático de Direito, porque lapidado Constitucionalmente pela vontade popular. Ele está

expresso através dos princípios Constitucionais que têm força normativa obrigatória no

ordenamento jurídico.

A teoria tradicional distinguia normas e princípios, porém, hoje essa distinção não se

sustenta mais. Princípios e regras são espécies normativas. Alguns critérios são sugeridos para 221 Os horizontes do intérprete do texto (que é evento, fato) se fundem no interior da virtuosidade do círculo hermenêutico, que vai do todo para a parte e da parte para o todo – sem que um e outro sejam ‘mundos’ estanques-separados. “[...] O sentido exsurgirá de acordo com as possibilidades (horizontes de sentido) do intérprete. [...]” STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradígmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4, p. 249. 222 STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, 2005, p. 172. 223 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermabverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermabverbot) ou de como não há blindágem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. Lisboa: Coimbra, 2004, v. LXXX, n. 80, p. 303-304.

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diferenciação: a) grau de abstração; b) grau de determinabilidade na aplicação do caso

concreto (princípios carecem de mediações concretizadoras); c) caráter de fundamentalidade

no sistema de fontes (princípios são normas estruturantes devido a sua posição hierárquica);

d) proximidade da idéia de direito (princípios são standards vinculados nas exigências de

justiça; regras são funcionais); e) natureza normogenética (princípios são fundamentos das

regras).224

Na inter-relação do Estado Democrático de Direito, Constituição e processo penal,

os princípios têm papel fundamental para a instrumentalidade do processo. Eles possibilitam a

necessária (re)leitura do código de processo penal e legislações esparsas. Princípios tornam o

processo penal democrático e orientam a validade normativa infraconstitucional e, por

conseqüência, o atuar do intérprete do direito.

Dentre os princípios consagrados pela Constituição Brasileira de 1988 relacionados

ao devido processo legal no processo penal225 expõe-se, em breves linhas, aqueles

relacionados ao sistema acusatório e/ou que envolveram maior impacto na constituição dos

Estados modernos. Essa seleção não tem a pretensão de abordar o conteúdo, mas tão somente

aspectos conceituais dos princípios selecionados dentre os dispostos na Constituição e no

Estado Democrático de Direito brasileiro. São eles: o devido processo legal, a igualdade, o

contraditório e a ampla defesa, a publicidade e a justificação das decisões, o juiz natural e a

presunção de inocência.

O devido processo legal é um princípio que fundamenta o Estado Democrático de

Direito e significa que o processo penal deve ser democrático, efetivo e justo. Ele é base para

os demais princípios e fundamento para efetivação da dignidade da pessoa humana226.

Consiste em garantia de liberdade ao indivíduo frente ao poder punitivo do Estado. 224 CANOTILHO, 2003, p. 1160-1161. 225 O devido processo legal é um princípio que orienta a prestação jurisdicional justa, porque Constitucional. Entre outros, pode-se citar os seguintes princípios a ele vinculados: a) acesso à justiça penal; b) juiz natural; c) tratamento paritário dos sujeitos processuais; d) presunção de inocência do acusado (art. 5º, LVII, CF); e) plenitude de defesa (art. 5º, LV, CF); f) publicidade dos atos processuais (art. 5º, LX, CF); g) fundamentação das decisões (art. 93, IX, CF); h) prazo razoável de duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF); i) vedação de identificação datiloscópica quando existe identificação civil (art. 5º, LVIII, CF); j) indenização por erro judiciário e prisão além da sentença (art. 5º, LXXV, CF); k) prisão ordenada pela autoridade competente (art. 5º, LXI, CF); l) direito à identificação dos responsáveis pela prisão e interrogatório (art. 5º, LXIV, CF); m) liberdade provisória (art. 5º, LXVI, CF); n) proibição da incomunicabilidade do preso e necessidade de informação sobre seus direitos e da assistência do defensor e da família (art. 5º, LXIII, CF). 226 “Consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e social) de Direito (art. 1º inc. III, da CF), o nosso Constituinte de 1988 [...] além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.” SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 68.

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Segundo Bonatto, a expressão due processo of law deve ser traduzida como justo – o

justo processo legal. O conceito do princípio do devido processo legal é “[...] histórico e

relativo, variando o seu conteúdo de acordo com a consciência jurídica e política de cada

nação, sendo, entretanto, sempre identificado com as noções de imparcialidade, retidão e

justiça [...]”.227

O devido processo legal, que na perspectiva material identifica-se com a busca da

justiça, está relacionado ao princípio da proporcionalidade-razoabilidade porque impõe

obediência aos demais princípios constitucionais.228

Também, traz em seu conteúdo a legalidade tornando-se a grande garantia do

indivíduo em face do Estado.229 A partir das conquistas do iluminismo, a legalidade tornou-se

realidade em praticamente todos os Estados modernos e é através da utilização do meio

escrito, para expressar o direito, que o legislador Constituinte estabeleceu garantias (direitos

fundamentais) mínimas – prévias ao acontecimento do fato – a serem obrigatoriamente

observadas no trâmite processual. Nesse sentido, o conceito de processo justo deve ser

buscado na Constituição Federal, especialmente nos dispositivos que abrigam os direitos

fundamentais.

Mais do que buscá-los é preciso torná-los efetivos na prática judiciária brasileira.

Por isso é que Jardim considera que o devido processo legal não deve mais ser entendido

como outrora. Já foi uma conquista – mas resta a consolidação – o processo penal de partes,

vedação de provas ilícitas, presunção de inocência, enfim sujeito de direito e não objeto de

investigação. Ele deve representar a depuração do sistema acusatório nas atividades

funcionais do Ministério Público, do advogado e do juiz – elementos concretos e práticos.230

No mesmo sentido Pacelli informa que a estrutura do devido processo legal está

construída sobre as bases do contraditório e da ampla defesa que “[...] ao lado do princípio da

inocência, autorizam a afirmação no sentido de ser o processo penal um instrumento de

garantia do indivíduo diante do Estado.”231

Dessa forma, mais do que disposição Constitucional, sob o aspecto formal, o devido

processo legal precisa ser observado em seu aspecto material. A sua análise sob a perspectiva

dinâmica – tal como Prado fez com o sistema acusatório: divisão em estática e dinâmica – 227 BONATO, 2003, p. 29; 195. 228 CARVALHO, 2004, p. 53-56. 229 BONATO, 2003, p. 195. 230 JARDIM, 2007, p. 318-320. 231 OLIVEIRA, 2007, p. 280.

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também é aqui aplicável, ou seja, é preciso analisar as atividades jurídicas, no seu desenrolar,

para se extrair considerações acerca da (des)obediência ao princípio em análise. A atuação da

acusação, da defesa e do julgador é o termômetro que permite aferir o grau de obediência ao

princípio do devido processo legal e, por conseqüência, o sistema acusatório.

O princípio da igualdade é também conhecido como isonomia e foi expressamente

contemplado pela Constituição brasileira de 1988232. Ele é uma conquista do período

iluminista, pois na época precedente havia uma forte e declarada hierarquização social de

acordo com a pessoa (os nobres eram assim considerados por deterem um sobrenome

relevante ou pelo poder econômico ostentavam). Criava-se um direito, explícito para a

sociedade, para os nobres e outro para a população em geral.

A igualdade foi uma das bandeiras do Estado Liberal. Esse desejo de isonomia

estava fundamentado, principalmente, na aspiração burguesa de ascender politicamente na

sociedade (já possuíam o poder econômico, queriam o político). No âmbito jurídico o reflexo

dessas manifestações ficou evidente na medida em que as Constituições declaram que todos

são iguais perante a lei. É de se ressaltar, também, que essa igualdade ficou garantida somente

sob o aspecto formal, pois nesse período o direito foi declarado e não efetivado.

Processualmente o princípio da igualdade está relacionado ao tratamento dispensado

às partes no processo penal, independentemente da posição social ou vantagem econômica

que elas ostentem.

No Estado Democrático de Direito o processo penal está relacionado ao processo de

partes/papéis, onde há separação de funções, tais como, acusar, julgar, defender, assistência,

entre outras. Assegurar o desempenho dos papéis definidos Constitucionalmente é a função do

Poder Judiciário, especialmente representado na figura do juiz. Nesse sentido, o juiz tem o

dever de resguardar o equilíbrio entre as partes – direito dado à acusação também deve ser

dado à defesa – como meio de assegurar a igualdade processual e o devido processo legal.

Tal atuação proporciona a isonomia na medida em que as partes têm iguais

condições para o debate, o que proporciona um desenrolar processual acusatório e

democrático. Nesse sentido a igualdade deve ser material e não meramente formal, pois

diferentemente do Estado Liberal, em que a igualdade é vista como oportunidade, no Estado

232 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”

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Democrático de Direito a isonomia deve ser vista sobre o aspecto material, que assegura

igualdade entre os iguais – paridade de armas.

A atuação do Ministério Público como custus legis233 também é uma manifestação da

isonomia. Além de funções acusatórias ele tem a incumbência de defender a ordem jurídica

(atua como fiscal da lei)234 e, assim o fazendo, contribui para tornar a defesa mais efetiva,

paritária com a acusação e, principalmente, mais justa.

O Contraditório está ligado à oportunidade de manifestação no processo. É garantia

Constitucional que, no processo penal, seja dado às partes o direito à manifestação. O Juiz é o

responsável por assegurar que os procedimentos processuais sejam comunicados à parte/seu

defensor para que, dependendo da estratégia de defesa, possa manifestar-se no processo,

impugnando provas, procedimentos, testemunhas, entre outros.

Assegurar a possibilidade de manifestação no processo consiste em proporcionar o

contraditório, independentemente de manifestação efetiva. Para que haja o contraditório é

necessário que se conheçam os meios de prova a serem produzidas, pois ninguém pode falar

sobre o que não conhece. Daí decorre que os meios de prova não podem ser secretos.

Também, a produção de provas, de regra235, deve realizar-se na fase judicial

assegurando-se o contraditório e por conseqüência, a existência de um processo penal

democrático.

Não são admissíveis condenações com base em inquéritos policiais ou peças de

informação sobre os delitos porque elas destinam-se exclusivamente ao órgão da acusação e

violam flagrantemente o contraditório e da ampla defesa.236 Dessa forma, a jurisdição penal

não deve ser um apêndice da investigação criminal.237 A função do inquérito policial é

meramente informativa para acusação proceder a denúncia no processo e jamais pode ser

utilizada para fins de juízo de reprovação. Assim o fazendo há afronta direta ao princípio do

contraditório.

Além da oportunidade de falar sobre o que está sendo produzido em juízo, deve-se 233 Não significa dizer que o Ministério Público deixe de ser parte no processo, porque nas ações penais públicas de caráter condenatório, ainda que peça absolvição continua sendo parte (moralmente imparcial) e torna a igualdade efetiva entre os litigantes. BONATO, 2003, p. 152. 234 A atuação do Ministério Público como defesa da ordem jurídica é garantida pela independência funcional a ele atribuída por força Constitucional. Dessa forma, ele está legitimado a recorrer em favor do réu ou atuar de forma que o beneficie. 235 Somente serão admitidas as provas produzidas na fase do inquérito quando não puderem ser repetidas em juízo. Nesse caso, fala-se em contraditório diferido. 236 OLIVEIRA, 2007, p. 11. 237 BONATO, 2003, p. 164.

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assegurar que essa manifestação seja efetiva. O aspecto da efetividade do contraditório

constitui a ampla defesa. Na opinião de Grandinetti, “Contraditório e ampla defesa perfazem

uma mesma garantia processual, pois não pode existir ampla defesa sem contraditório e vice-

versa.238

É pela atuação dos sujeitos processuais que a garantia da ampla defesa se efetiva.

Como apresenta Coutinho, a separação das funções de acusar e julgar e a equiparação das

funções de acusar e defender são manifestações que atribuem vida à garantia da ampla

defesa.239 Esse pensamento figura-se correto porque um processo penal acusatório – fundado

na separação de funções – permite a apresentação de versões e contra versões fáticas.

Especialmente para o réu, é assegurada a efetiva manifestação processual após a apresentação

da versão da acusação. Ele tem direito à última palavra.

Algumas manifestações processuais não são preclusivas, embora a legislação

infraconstitucional as considere. O Juiz deve assegurar a apresentação de determinadas peças

processuais fundamentais à defesa do acusado. Quando o defensor nomeado ou dativo não

apresentar, no tempo oportuno, deve-se nomear outro defensor para o ato, sob pena de

nulidade da decisão exarada em processo que violou a ampla defesa. Aqui não basta a

intimação do defensor para apresentar a peça processual, mas sim que ela seja efetivamente

apresentada.

A ampla defesa não é direito disponível do acusado. Ela é garantia fundamental que

prevalece sobre a vontade individual do acusado. No Estado Democrático de Direito todo

acusado deve, obrigatoriamente, sob pena de nulidade, ter ampla defesa processual.

Em homenagem ao princípio da ampla defesa são assegurados, por exemplo, a

participação da defesa técnica no interrogatório de co-réu240 no processo, o aproveitamento de

provas obtidas por meios ilícitos para defesa do réu e a garantia de defesa técnica gratuita aos

cidadãos que não podem pagar por ela.

A publicidade tem função essencial no processo penal por contrapor-se a idéia de

processo e atos processuais secretos como é próprio de sistemas inquisitoriais (em que pese,

em determinados casos, ela possa ser restringida para proteção da intimidade). Ela tem função

legitimadora da atuação jurisdicional.

Na conclusão de Bonatto, “A publicidade dos atos processuais objetiva dar

238 CARVALHO, 2006, p. 141. 239 COUTINHO, Revista Brasileira de Ciências Criminais, julho-agosto 2005, p. 373. 240 Para Oliveira “A ampla defesa e o contraditório exigem [...] a participação dos defensores de co-réus no interrogatório de todos os acusados.” OLIVEIRA, 2007, p. 29.

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transparência e legitimar todas as decisões confiadas ao julgador, dissipando qualquer

desconfiança que possa surgir sobre a imparcialidade e independência com que é exercida a

justiça.”241

A transparência é a essência do processo acusatório. Como regra todos os atos do

poder judiciário serão públicos, porém, por força Constitucional, podem sofrer algumas

limitações.

O artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil, sofreu

alterações pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004.242 Com a

modificação Constitucional a lei pode limitar a presença da parte e de advogado em casos

onde a preservação da intimidade não ofenda o interesse público à informação. Assim, a regra

é a publicidade243 e o direito à informação e a exceção quando ocorrer ofensa intimidade.

A justificação das decisões é importante instrumento de identificação da forma de

interpretação utilizada e da avaliação probatória. Conforme afirma Ferrajloli a “[...] motivação

permite a fundamentação e o controle das decisões tanto de direito, por violação da lei ou

defeitos de interpretação ou subsunção, como de fato, por defeito ou insuficiência de provas

ou inadequada explicação do nexo entre convicção e provas.” Ela é o principal parâmetro de

legitimação tanto interna como externa da função judiciária.244 (tradução nossa).

Através da exteriorização das razões da decisão a atividade do julgador é justificada

perante a sociedade e garante-se eventual reexame da causa. Também as decisões pré-

processuais devem ser motivadas, com especial atenção para medidas de restrição da

liberdade que contém requisitos específicos a serem preenchidos e expostos.245

A garantia de uma decisão justificada apresenta-se disposta expressamente no artigo

93, IX da Constituição Federal brasileira de 1988. Todas as decisões do poder judiciário serão 241 BONATO, 2003, p. 197. 242 “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: [...] IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.” 243 Também há previsão infraconstitucional, no art. 792 do Código de Processo Penal Brasileiro: “Art. 792. As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. § 1º Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes. [...]” 244 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Tradução de IBÁÑEZ, Perfecto Andrés et all. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 623. 245 BONATO, 2003, p. 180-184; 197.

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fundamentadas, atribuindo-se a penalidade de nulidade para o descumprimento desse preceito

fundamental. Segundo Carvalho, a nulidade por ausência de fundamentação não pode ser

sanada.246 É, portanto, obrigatória.

A exposição das razões da decisão corresponde à explicitação do compreender –

como acima dito. Ela é importante, sobretudo, para assegurar legitimidade ao intérprete,

convencimento/comunicação às partes sobre o acerto da decisão e possibilitar o exercício de

defesa em eventual recurso.

O princípio do Juiz natural também é conhecido como Juiz legal, competente e

proibição do tribunal de encomenda ou had hoc.

Sua fundamentação está no pensamento iluminista de supressão das justiças

Senhorais, onde todos passaram a ser julgados pelos mesmos Tribunais.247 Montesquieu

pronunciou-se contrário aos juízes comissários nomeados pelo rei para julgar um cidadão e

daí pela primeira vez, em 1766, surgiu a expressão juiz natural, relacionada ao juiz ordinário

(palavra Juge – Jurispr.), dotado de competências estabelecidas em lei anteriormente ao fato,

em oposição ao juiz comissário ou extraordinário.248

O juiz natural está intimamente ligado aos princípios da isonomia e da legalidade.

Como expressão da igualdade ele apresenta-se como freio à manipulação política do juízo e

garante atuação imparcial dos julgadores. Serve fundamentalmente para evitar justiça de

privilégios. A garantia de um juiz natural disposto anterior ao acontecimento do fato é uma

conquista que assegura a garantia de que não haverá privilégios, na aplicação do processo

penal, para determinadas pessoas na sociedade. Está relacionado ao princípio da legalidade

porque a definição do órgão julgador deve estar previamente definida em lei – instrumento

que possibilita o controle pela sociedade e garante aplicabilidade ao estabelecido.

Também, o princípio do Juiz natural está dividido em dois aspectos: a) proibição de

criação de tribunal post facto – juízo deve estar previamente estabelecido (tribunal ad

hoc/exceção); b) garantia de ser julgado pelo Juiz competente.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 contemplou o Juiz natural

no art. 5º, incisos XXXVII e LIII.249 No primeiro, está a garantia de inexistência de Tribunal

246 CARVALHO, 2006, p. 204. 247 BONATO, 2003, p. 135. 248 FERRAJOLI, 2006, p. 544. 249 “Art. 5º. [...] XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; [...] LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”

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de exceção e, no segundo, ser julgado por um Juiz Constitucionalmente competente.

O princípio da presunção de inocência é uma reação contra a inquisição. Dele se

extrai um conteúdo ideológico, pois a previsão legislativa visa privilegiar garantias

individuais em detrimento dos interesses coletivos de repressão penal. Ele está inserido na

Declaração dos direitos do homem (1948) – aprovada na ONU – art. XI e no Brasil foi

previsto expressamente pela primeira vez na Constituição de 1988, apesar de já se considerar

anteriormente.250

Sendo a jurisdição necessária para provar que um sujeito cometeu um crime,

nenhuma pessoa pode ser considerada culpada ou submetida à pena antes do provimento

jurisdicional. Ferrajoli esclarece que a presunção de inocência é um princípio fundamental de

civilidade e não é apenas uma garantia de liberdade e verdade, mas também de segurança

contra o arbítrio punitivo, pois o sinal da perda de legitimidade política do poder judiciário é o

temor da justiça pelos cidadãos causada pelo irracionalismo e autoritarismo. Esse princípio

está associado ao tratamento dado ao imputado, que exclui ou restringe ao máximo a

limitação da liberdade pessoal e ao sentido de ‘regra de juízo’, que impõe ônus da prova à

acusação e absolvição em caso de dúvida.251

Oliveira pondera que o princípio da inocência apresenta ao poder público duas

limitações: que o réu, no inter persecutório não sofra restrições fundadas na possibilidade de

condenação e que o ônus da prova referente a materialidade e autoria devem recair sobre a

acusação (à defesa cabe provar as justificantes ou excludentes alegadas).252

Todo acusado deve ser considerado inocente até que se prove o contrário por

sentença penal condenatória, decorrente de um processo penal democrático, transitada em

julgado. Durante o trâmite processual a postura dos “atores” jurídicos com relação ao réu deve

ser de considerá-lo não culpado e dessa maneira, não se deve dar aos juízes poderes ex officio

para fins probatórios, porque sua iniciativa o compromete psicologicamente, principalmente

sob o aspecto da imparcialidade.

A presunção de inocência é muito violentada pela concepção retrógrada de

movimento de lei e ordem, principalmente no que diz respeito às prisões e à instrução

probatória. No primeiro aspecto (prisões) a re(leitura) a partir da presunção de inocência

impõe que as prisões cautelares devem ser decretadas apenas excepcionalmente por ordem

250 BONATO, 2003, p. 122-123. 251 FERRAJOLI, 2006, p. 505-507. 252 OLIVEIRA, 2007, p. 31-32.

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judicial justificada de maneira a não antecipar os efeitos da condenação – punição e que é

inadmissível a exigência de recolher-se à prisão para recorrer. No segundo aspecto (instrução

probatória) a presunção de inocência impõe que: o acusado não está obrigado a colaborar com

a instrução probatória, o ônus probatório da materialidade e autoria é da acusação (à defesa

resta provar as excludentes) e o interrogatório deve ser concebido como meio de defesa e não

de prova (ao réu é assegurado o direito ao silêncio – não é necessário comparecer ao

interrogatório).

Dessa forma, conclui-se que uma interpretação justa do direito positivado é

responsabilidade de todos os juristas. A partir da lei o intérprete deve produzir sentido e não

reproduzir. Essa nova postura não dispensa a lei, mas se utiliza dela. Cria-se uma nova

racionalidade – realização da justiça.

O Brasil fez opção pelo Estado Democrático de Direito e isso tem reflexos no

mundo jurídico. A Constituição Federal torna-se o berço dos valores fundamentais da nação

que devem servir de parâmetros aos três poderes que atuam em nome do Estado. O Estado

democrático de direito é fruto de uma luta histórica da sociedade. Ele é considerado uma

conquista e pauta seus valores no bem estar social, ou seja, a partir da dignidade da pessoa

humana decorrem valores que proporcionam o bem comum. Os juristas não devem ficar

alheios a essa realidade.

No âmbito do direito processual penal os reflexos são latentes, na medida em que a

adoção desse modelo de Estado compatibiliza-se com um sistema acusatório em que as partes

dialogam no processo. A finalidade do direito deve ser a justiça que pode ser definida como a

arte do bom e do correto, da busca pelo equilíbrio – meio termo. O parâmetro de justiça o

Estado brasileiro adotou está disposto na Constituição Federal sob a forma de direitos

fundamentais que, no processo penal, representam o sistema acusatório – devido processo

legal. A prestação jurisdicional não deve furtar-se a esses valores e ao exercício de uma

decisão justa.

Para se construir um processo penal democrático é necessário observar os valores

fundamentais dispostos na Constituição Federal. A solução apresenta-se no caso concreto

através da adoção de princípios e regras. A Constituição Federal dirige o processo penal sob a

ótica do sistema acusatório em que são respeitados os direitos fundamentais do acusado.

Nesse sentir, o ato decisório precisa estar adequado às novas realidades do processo penal.

Não é mais possível sustentar a verdade real no processo penal brasileiro porque ela

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se verifica impossível e é meio para justificar uma prática inquisitória presente nos Tribunais

brasileiros – déficit de democratização. A verdade tal como aconteceu é inalcançável. O que

se tem é uma verdade aproximada ou construída. O julgador precisa assumir essa condição e

assegurar meios de construção da verdade processual através das garantias asseguradas pelo

Estado democrático de direito.

O julgador deve ser imparcial, ficar afastado dos atos de investigação que produzirão

a verdade processual. O inquisidor sempre estará contaminado na essência de sua

racionalidade porque cria quadros mentais paranóicos vinculados à presunção de

culpabilidade. Por outro lado, o julgador não pode ser neutro, ou melhor, não tem condições

para ser, porque traz uma carga de valores pessoas e culturais consigo. A imparcialidade é

possível, assegurando-se o procedimento. A neutralidade não poderá ser alcançada, mas pode

ser assumida pelo julgador. O que não se pode é utilizar-se da hipocrisia aplicando-se leis sem

sentido de justiça – pré-juízos inautênticos.

O Juiz deve apreciar as provas produzidas num processo penal democrático, ou seja,

em que as provas foram colhidas licitamente e produzidas de forma legítima, assegurando-se

o contraditório e a ampla defesa para as partes. Ele deve estar eqüidistante das partes e

manter-se imparcial para não contaminar-se com o desejo de condenação.

É impossível o juiz criar sua convicção antecipadamente para depois motivar [sic]

sua decisão. Sua convicção se dá a partir da compreensão hermenêutica – viragem ontológica

– onde os pré-juízos apresentam-se na aplicação do direito. Um processo instrumental, que

assegure imparcialidade, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, entre outros

princípios Constitucionais é condição de possibilidade para uma decisão justa no processo

penal brasileiro.

O desejo democrático – de ambiente democrático – inspirado no sistema processual

acusatório deve ser respeitado. A Constituição Federal impõe a responsabilidade de

transformação social aos juristas através de seus preceitos normativos – que constituem e

dirigem – o processo penal. Uma atuação comprometida com os valores democráticos

depende dos pré-juízos do intérprete – atualmente muito sucateados por compreensões

metafísicas.

A intensificação das relações sociais modernas, provocada principalmente pelo

incentivo exacerbado ao consumo e informação, tenciona a prestação jurisdicional para um

grande desafio que é a implementação, de forma legítima, do Estado (Social e) Democrático

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de Direito. O objetivo primeiro da prestação jurisdicional é a aplicação do direito justo,

amparado por questões de ordem moral – Constitucional –, que muitas vezes não se encontra

nas codificações legais elaboradas pelos “representantes do povo”.

Necessita-se de uma nova postura diante do direito com vistas a amparar as

sentenças judiciais em novas circunstâncias antes não consideradas. É coerente com a

aplicação da justiça que o Estado atue com acerto nas decisões que afetam a vida dos

indivíduos que o compõem e para agir com tal prudência e aplicar efetivamente o direito,

torna-se fundamental a observância de regras morais baseadas numa (nova) hermenêutica

(filosófica), bem como a reflexão filosófica sobre o conhecimento e os sujeitos que estão

envolvidos nesse processo de (re)democratização.

A filosofia jurídica tem contribuição significativa nesse processo porque há análise,

revisão e reflexão sobre o conhecimento e o caso concreto em análise. As sentenças legalistas,

de mera subsunção entre o fato e a texto, não atendem a efetividade esperada da prestação

jurisdicional. É uma tendência legítima o reconhecimento dos valores morais, por uma

hermenêutica adequada as necessidades e realidades da sociedade brasileira.

O Direito processual penal, o direito penal, a constituição, a hermenêutica e o

garantismo possuem afinidades para implementação do Estado Democrático (e Social) de

Direito. A Constituição é o parâmetro de valor que nos dá respostas sobre o devido processo

legal, sobre o sistema acusatório, sobre os direitos fundamentais – ela constitui e dirige. O

garantismo compreende esses valores como tutela para a liberdade dos cidadãos (sentido

negativo) – garantia contra o arbítrio – e proibição da proteção deficiente (sentido positivo) –

tutela dos direitos fundamentais. O direito processual apresenta-se como instrumental

necessário e indisponível para concretização do direito material. Ambos utilizam-se da

hermenêutica para compreensão dos sentidos que o conjunto apresenta – promoção do bem

comum.

As respostas estão colocadas à mesa para o jurista. O problema é que para encontrá-

las falta compreensão e coragem. A Constituição apresenta-se recheada de respostas, porém

apreendê-las demanda responsabilidades porque elas não estão aí sob a forma de tudo/nada,

vale/não vale, capazes de uma ilusória certeza positivista. Uma nova racionalidade moral se

apresenta sob a forma de princípios, onde a elasticidade do enunciado é condição de

possibilidade para uma compreensão (in)adequada, a depender do jurista.

Não se trata de dispensar a legalidade, mas sim de submetê-la a analise de um filtro

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constitucional – oxigenação – que sirva de controle de validade. Para se tornar efetiva essa

tendência requer-se apurada sensibilidade social e jurídica dos profissionais jurídicos para

apreciar as novas demandas sociais decorrentes de uma sociedade complexa e carente de

direitos sociais.

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CAPÍTULO III

3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E (A NOVA) COMPREENSÃO DO MUNDO (E

DO DIREITO)

O processo penal democrático abre caminho para a decisão que é um processo de

compreensão (existencial). No caso do direito, por imposição Constitucional, deve haver

exposição fundamentada dos argumentos utilizados – realidade que se dá pela linguagem.

A (nova) hermenêutica, de caráter filosófico e condizente com os anseios de um

Estado Democrático de Direito, surge da necessidade de aproximação do normativo com o

social, historicamente negada pelo pensamento jurídico. A subsunção do caso à regra

(paradigma positivista – metafísico) é substituída por uma hermenêutica capaz de, a partir da

lei, fazer contatos com o intérprete e com a própria sociedade, sem cair em subjetivismos.

A Constituição ganha papel de destaque no Estado Democrático de Direito por ser o

berço dos direitos fundamentais de todos os cidadãos. Ela representa a aproximação com a

sociedade, um novo olhar para a eficácia dos preceitos normativos e condição de

possibilidade para a interpretação.

Para se dar efetividade aos dispositivos Constitucionais é necessário se ter presente o

sentido da Constituição – conquista histórica e berço dos direitos fundamentais – como pré-

compreensão do sujeito, manifestado a partir de uma verdade primeira (antecessora do

procedimento). A hermenêutica proporciona reflexões acerca do compreender e indica o

caminho que possibilita um atuar mais comprometido com as realidades sociais.

Diante da nova realidade que se impõe (Estado Democrático de Direito), o julgador

deve interpretar as leis penais sob a ótica da Constituição (princípios), para aplicar o direito –

através do devido processo legal – e fazer justiça no caso concreto. Nesse sentir, é preciso um

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novo olhar para o direito, especialmente no sentido de apontar o comprometimento arcaico da

dogmática jurídica com conceitos equivocados sobre texto/norma e vigência/validade das

normas jurídicas.

Nesse caminhar o intérprete do direito desvela novas possibilidades para

compreender o sentido do direito e das regras para a sociedade e a partir dessa compreensão –

que sempre o antecede – aponta suas convicções para solução dos problemas sociais e

injustiças legais.

3.1 PROLEGÔMENOS PARA OS APONTAMENTOS SOBRE UMA HERMENÊUTICA

FILOSÓFICA TRANSFORMADORA: (IN)EFETIVIDADE CONSTITUINTE NO

PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO

A evolução teórica do direito, no período moderno, pode ser compreendida a partir

de afirmações jusnaturalistas, positivistas, pós-positivistas, hermenêuticas e sistêmicas.253 Não

há uma linha divisória temporal que ateste, com precisão, a influência de uma ou outra

corrente no direito, pois as noções de espaço e tempo são relativas no “pensamento” jurídico.

O que se pode afirmar, com maior grau de precisão, é que o conhecimento jurídico é fruto de

um processo histórico e sofreu influências dessas correntes teóricas. Assim, é possível

apontar, ainda que brevemente, as principais concepções e autores representantes dessas

teorias.

As teorias jusnaturalistas e positivistas cumpriram suas funções históricas

(influenciaram as teorias vindouras) e atualmente encontram-se superadas. As teorias pós-

positivistas estão presentes no pensamento jurídico atual, porém atreladas ao procedimento –

paradigma metafísico – na busca por uma verdade (consensual). A hermenêutica filosófica

vem ganhando espaço porque está munida de um caráter inovador/transformador (ontológico),

comprometido com a realidade histórica e social. Por sua vez, a matriz sistêmica apresenta-se

como inovadora, ousada e solução para uma realidade pós-moderna, porém padece de

concretude. 253 Essa classificação é fruto de opção para organização do conteúdo. Autores como Cordeiro classificam o pensamento jurídico, como perspectiva metodológica, em: jurisprudência analítica, jurisprudência problemática e sínteses hermenêuticas, o que acaba por não divergir, pois na classificação apresentada encontram-se a divisão ora desenvolvida. CORDEIRO, Antônio Menezes. Apresentação. In: CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução Fundação Calouste Gulbenklan. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenklan, 2002, p. XXIX-LXI.

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A matriz analítica (positivista)254, quando concebida, constituiu-se num avanço

significativo para a humanidade por conter os poderes absolutistas – centrados na figura de

um indivíduo.255 Porém, suas teorias normativas do dever-ser atribuíram,

indiscriminadamente, em nome da segurança jurídica, o status de validade às regras justas ou

injustas.

O Estado Liberal serviu-se do pensamento de Descartes e da Escola da Exegese

Francesa – influenciada pelo primeiro –, porque a segurança proporcionada pela determinação

do objeto como fruto da aplicação rigorosa do método – verdade racionalmente estruturada –

foi o que o poder precisava para se justificar. Surgiu, assim, a identificação do objeto do

direito com o fenômeno da lei – positivismo legalista – o que reduziu o direito à forma. Não

se diferenciava lei e direito porque a vontade do legislador (criador da lei) – mens legislatoris

– estava expressa na literalidade do texto da lei, atestada pelo rigor científico –

metodologicamente estabelecido.256

O positivismo jurídico fez oposição ao jusnaturalismo e “[...] representa a tentativa

de compreender o Direito como um fenômeno social objetivo [...]”, renegando os “[...] juízos

morais particulares.”257 Ele apresenta a auto-existência do objeto criado pelo homem (lei) –

pretensão de converter o conhecimento jurídico em ciência – e apresenta quatro

características: a) ficção do objeto auto-existente – pode ser conhecido, controlado e

dominado pelo cientista; b) neutralidade, pois compete ao cientista descrever o objeto e não

avaliar se é justo ou injusto – separação entre direito e moral; c) compromisso metodológico

para construir um conhecimento objetivo acerca do ordenamento jurídico – dominar o direito;

d) raciocínio tipicamente dogmático – prescrições harmônicas entre si que regulam a vida

humana, de forma completa.258

A concepção positivista foi marcante, principalmente, pela posição defendida de que

254 Segundo cordeiro, a teoria analítica é positivista e está agravada pela aproximação ao normativismo Kelseniano. Ela implica em posição empírica, racionalista e antimetafísica, cultiva a clareza conceitual (linguagem), separa proposições descritivas e prescritivas, aceita na lógica e recusa intromissões morais. CORDEIRO, 2002, p. XLI-XLIV. 255 No contexto histórico em que foi cencebido, a obediência a esse modelo teórico é compreensível, pois havia necessidade de valorização da legalidade (agora se obedece a lei e não a vontade discricionária do rei) 256 MAIA, Alexandre da. O embasamento epistemológico como legitimação do conhecimento e da formação da lei na modernidade: uma leitura a partir de Descartes. In: Direito, Estado e democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, anual, v. 1, n. 4, p. 30-33. 257 BARZOTTO, Luiz Fernando. Positivismo jurídico. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 643. 258 GALUPPO, Marcelo Campos. A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-positivismo. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 198-199.

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as normas jurídicas impõem-se em dever de legalidade absoluto (dever-ser), atribuindo-se ao

intérprete-julgador a tarefa de subsumir o caso à regra (lógica conferencista).

Nesse sentido, Miranda afirma que “O maior vício do positivismo consiste na

rendição do jurista perante o legislador [...] [e] O maior vício do formalismo reside em pedir à

lógica mais do que aquilo que pode dar. [...]”. A tarefa da lógica é fornecer subsídios ao

raciocínio e não soluções, ao mesmo tempo em que a elaboração científica só apura conceitos,

mas não se esgota na sua concatenação.259

Enquanto o Direito Natural está vinculado à razão (normas de natureza racional), o

direito positivo é oriundo da vontade (normas de natureza voluntarista). O primeiro baseia-se

em leis naturais (estabelecidas pela razão) que disciplinam a liberdade dos indivíduos e o

segundo considera o mundo um caos que necessita de atos de poder (comando) para impor a

ordem. Dessa forma, no positivismo há uma subordinação da razão à vontade. 260

A natureza voluntarista do positivismo está presente nas sociedades onde se acredita

que a vontade dos representantes é o comando necessário para se tornar possível (harmonioso)

o convívio social. Diante da suposta “inexistência de consenso” sobre as vontades cria-se um

sistema que congrega a vontade da maioria e serve parâmetro para legitimar a repulsa aos atos

contrários aos ordenamentos jurídicos.

O positivismo lógico identifica a ciência com a linguagem e numa atitude

reducionista considera o texto auto-suficiente, esquecendo-se de outras fontes de produção de

sentido (influência da sociedade) que não o próprio sistema por ele criado.261

O sistema normativo positivista está pautado por regras262 em que os comandos de

dever (vontade expressa na lei) têm pretensão de completude, ou seja, acredita-se que no

momento da elaboração do texto o legislador seja capaz de contemplar as mais variadas

ocorrências sociais proibidas ou permitidas. Parte-se do pressuposto equivocado de que o

desejo manifesto em lei é atemporal (não sofre conseqüências no tempo) – conotação de

eternidade. Ignora-se a dimensão texto/norma e que o sentido é dado quando da

interpretação/aplicação (atos simultâneos) do direito.

Nesse sentido Barzotto afirma que o positivismo é relativista em matéria moral.

259 MIRANDA, 2007, p. 14. 260 BARZOTTO, 2006, p. 643-644. 261 ROCHA, 2005, p. 25. 262 O problema das posturas positivistas está na insuficiência/limitação das regras, pois acredita-se que elas devem resolver todos os casos a partir da forma subsuntiva-dedutiva. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 143.

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Considera que não há valores permanentes na sociedade, o que gera insegurança. Em nome da

segurança são necessários o sistema normativo (possibilidade de prever as conseqüências da

própria conduta), o formalismo na aplicação do direito (sistema de regras para evitar

ambigüidades) e a separação dos poderes (democracia parlamentar – decisão da maioria sobre

os valores). Ele tenta controlar a burocracia “[...] que ele mesmo demonstra ser

incontrolável.”263

Ainda, segundo Cordeiro, o positivismo fracassa em quatro pontos fundamentais: a)

não admite a presença de lacunas e não apresenta solução para elas; b) não consegue trabalhar

com conceitos indeterminados – normas em branco – e proposições valorativas (cai no

arbítrio do julgador); c) é inoperante diante das contradições de princípios (decisões

subjetivas); d) não consegue solucionar a questão complexa das regras injustas.264

O legado positivista é valioso porque a atual conjuntura do direito é fruto desse

pensamento. Algumas conquistas, especialmente ligadas à legalidade – como freio ao arbítrio

e a discricionariedade monárquica – sobrevivem e são importantes na atualidade. A legalidade

não é dispensada para uma correta interpretação do direito – proporcionada pela hermenêutica

filosófica.

Claro que o entendimento sobre a legalidade característica do Estado Liberal não é o

mesmo dos dias atuais. Nesse sentido, Streck expõe que a superação do positivismo se deu

pela Constituição, onde a regra cede lugar ao princípio e o modo subsuntivo-dedutivo –

relação sujeito-objeto – sai de cena para entrar o giro lingüístico-ontológico.265

O neopositivismo266 (em oposição ao positivismo clássico que confunde lei e direito)

tem uma proposta de linguagem rigorosa para transformar o direito em ciência pura. A partir

da influencia do neokantismo, Kelsen projeta um modelo ideal de dever ser que separa “[...] o

conhecimento jurídico do direito natural, da metafísica, da moral, da ideologia e da política

[...]” e introduz a perspectiva dinâmica no direito a partir do processo produtivo e auto-

reprodutivo das normas (normas interativas – sistema hierárquico). Bobbio foi quem aplicou

as teorias normativistas de Kelsen. A partir do paradigma do rigor e da obra Teoria do

ordenamento jurídico, ele propôs a reconstrução hermenêutica das regras (espécie de tradução

263 BARZOTTO, 2006, p. 646. (grifo do autor). 264 CORDEIRO, 2002, p. XX-XXIV. 265 STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 224. 266 Os principais representantes teóricos neopositivistas (positivismo normativista) são Hans Kelsen (Teoria pura do direito) e Norberto Bobbio (Ciência do direito e análise da linguagem).

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para os juristas da linguagem do legislador), baseada na análise sintática das palavras.267

O neopositivismo (positivismo normativista – filosofia analítica) esteve, ainda, bem

centrado nas questões descritivas e estruturais do direito, mantendo uma visão política de

neutralidade própria do Estado Liberal – não intervencionista. Porém, há uma insuficiência

neopositivista para as condições sintáticas, semânticas e pragmáticas de sentido.268

O problema do positivismo normativista é o problema das ciências de forma geral. A

criação de estruturas científicas – pureza do direito – fez com que os juristas acreditassem que

esse sistema seria auto-suficiente, desconsiderando os aspectos da realidade – sociedade

complexa. O afastamento do social e o fechamento do conhecimento em estruturas rígidas fez

com que o direito se afastasse do seu fim último, que é servir à sociedade.

O pós-positivismo é um novo paradigma na teoria do direito baseado em concepções

normativistas (herdadas do positivismo).269 Os principais autores representantes dessa corrente

teórica são Dworkin e Alexy e a inovação mais relevante é um novo olhar para os princípios

(natureza moral) nos ordenamentos jurídicos.

Enquanto o positivismo normativista (Kelseniano) acredita na separação absoluta

entre direito e moral (sistema predominantemente de regras, onde é relegado aos princípios

um papel secundário – coadjuvante), o pós-positivismo consiste numa aproximação do direito

com a moral (sistema de regras e princípios dotados de eficácia normativa), numa tentativa de

neutralizar o problema do positivismo normativista.

O pós-positivismo sobrevém à crise neopositivista (positivismo normativista) que

está estritamente vinculada à incoerência de suas propostas normativas, pois no confronto

com a realidade social cria dois mundos diversos (lei e realidade) e produz ausência de

contatos com a moral. Na afirmação de Galuppo, ele apresenta-se como uma resposta à

angústia da submissão e caracteriza-se por entender o direito como obra humana posta a

serviço da emancipação. Identifica o direito e a justiça com as normas jurídicas produzidas

historicamente por uma sociedade. Epistemologicamente são três características: a) se recusa

267 ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 16-20. 268 Ibidem, p. 17; 86. 269 Segundo Diniz e Maia, o pós-positivismo tem bases filosóficas ecléticas: “[...] Para alguns, o pós-positivimo pode ser descrito como um espécie de terceira via aos paradigmas positivista e jusnaturalista [...] para outros, seria uma nova geração do positivismo jurídico mitigado pelo peso da principiologia jurídica; e ainda para terceiros, o pós-positivismo não passaria de mais uma variante fraca do jusnaturalismo [...]”. DINIZ, Antonio Carlos; MAIA, Antonio Cavalcanti. Pós-positivismo. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 650-651.

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a pensar o ordenamento jurídico como sistema, pois prefere o pensamento problemático –

conhecimento a partir dos casos concretos; b) recusa o conceito de verdade como central do

conhecimento jurídico – opção pelo critério de correção normativa; c) recusa o estatuto

teórico descritivo das ciências naturais – a lei é geral quando criada e não pode ser aplicada a

todos os casos – juízo de adequação da norma ao caso concreto.270

A crise neopositivista (positivismo normativista) se instalou a partir do fracasso de

suas pretensões ligadas às comprovações lógicas e/ou semânticas e do surgimento da tópica271

e retórica272. Como resposta a essa crise e considerando que o sentido é complementado pelo

contexto, surgiu uma hermenêutica preocupada em pensar o direito a partir da perspectiva

social (manutenção da estrutura normativa e ampliação das fontes de produção de sentido).273

Pode-se apresentar uma diferença nas soluções apontadas, pelo positivismo e pós-

positivismo, para os casos difíceis – hard cases274 – (invenção metafísica). A solução

positivista tem base discricionária, ou seja, ao Juiz é permitido criar o Direito em situações de

não-direito (decide da melhor lhe aprouver). Na visão pós-positivista a solução é encontrada

através da aplicabilidade dos princípios (direito existente), o que levaria à única decisão justa

e à impossibilidade de se transformar os juízes em legisladores (limitam-se a reconhecer

direitos e deveres pré-existentes).275 Hart também alertou para a textura aberta do direito –

contatos com a moral e com a justiça – ensejando uma apreciação discricionária do juiz para

solução dos casos difíceis (hard cases). Essa postura foi criticada por Dworkin por acreditar

que o direito é capaz de oferecer uma ‘boa resposta’ porque “[...] o juiz ao julgar escreve a

continuidade de uma história. [...]” (avanço para além do positivismo e do utilitarismo).276

Hart (influenciado pelo utilitarismo de Bentham) e Dworkin (influenciado pelo

270 GALUPPO, 2005, p. 202-205. 271 A tópica fundamenta-se num raciocínio para encontrar soluções a partir dos problemas concretos. O direito positivo é um ponto de partida para o sentido das normas, que é definido no processo de aplicação. MENDONÇA, Paulo Roberto S. Tópica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 826. “[...] a jurisprudência problemática, assente na tópia [...] abriu as portas à retórica jurídica, à lógica jurídica [...]” e forneceu instrumentos ao jurista para agir e explicar sua atuação. CORDEIRO, 2002, p. XLVIII-XLIX. 272 “[...] além de ser a arte da persuasão pelo discurso, é também a teoria e o ensinamento dos recursos verbais – da linguagem escrita ou oral, que tornam um discurso persuasivo para seu receptor.” No século XX Perelman e Olbrechts-Tyteca representam a Nova Retórica com recursos da argumentação e da dialeticidade, na lógica do verossímel. IORIO FILHO, Rafael Mario. Retórica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 723; 725. 273 ROCHA, 2005, p. 20-21. 274 A distinção entre easy e hard cases é irrelevante para a hermenêutica porque ela não leva em conta o acontecer do pré-compreender. Não se pode cindir o compreender. A diferença apresentada não resiste a viragem ontológica e ao círculo hermenêutico. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 195; 199. 275 DINIZ; MAIA, 2006, p. 653. 276 ROCHA, 2005, p. 24-25.

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neocontratualismo de Rawls) “[...] perceberam que o direito tem necessariamente contatos

com a moral e a justiça. [...]” (filosofia da linguagem – mais avançada que a filosofia

analítica).277

Apesar dos avanços em relação ao positivismo e ao positivismo normativista,

principalmente com relação ao aspecto principiológico normativo, as teorias pós-positivistas

ainda trabalham com a concepção de que o procedimento, baseado na sua epistemologia, é a

solução para a busca da verdade.

Nessa forma de pensar, o direito deve se impor como vontade da maioria expressa

através de regras e de princípios que encontram fixação de sentido (a priori) a partir do ato

legislativo, ou seja, criam-se consensos sobre significados e teorias discursivas que acabam

por anular a essência, que é o ser – singularidade do caso.

A tópica e a retórica também não escapam das armadilhas da subsunção metafísica e

as teorias da argumentação jurídica – que não se confundem com hermenêutica jurídica –

ainda são reféns do procedimento com racionalidade discursiva não superadora do esquema

representacional sujeito-objeto, o que não difere da metodologia positivista.278

Teorias da argumentação, teorias analíticas, tópica jurídica, entre outras também

combatem o positivismo normativista tradicional, porém vinculam-se ao paradigma

metafísico porque elaboram um processo de subsunção a partir de conceitualizações. Apesar

de concordarem que o direito caracteriza-se por um processo de aplicação a casos particulares

– concretude, elas criam meta-critérios para solução de conflitos entre princípios e formulas

para ‘regrar’ a interpretação – significantes-primordiais-fundantes. Ao apresentarem pautas

gerais, verbetes doutrinários e jurisprudências aptos a resolverem casos futuros há o sacrifício

da singularidade dos casos em favor das pautas gerais.279

Disso resultam interpretações equivocadas promovidas pelo distanciamento da

realidade, pois fatos/casos são compreendidos “no atacado”, ou seja, dispensando-se a análise

criteriosa de peculiaridades histórico-sociais, mergulha-se num mundo epistemológico e

perde-se a essência da verdade. O que há é um encobrimento promovido pelo excessivo olhar

para os procedimentos criados e estabelecidos pela epistemologia jurídica.

A busca por autonomização metodológica fez com que no direito já não haja mais

direito, mas uma metalinguagem e metaconceitos abstratos distantes da resolução dos casos 277 ROCHA, 2005, p. 87. 278 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 433. 279 STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 243; 245.

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concretos. O método puramente jurídico transforma-se em novos discursos. Tal caminho

levou ao metadiscurso jurídico (discurso sobre o esgotado discurso metodológico) –

irrealismo metodológico. Assim, “[...] o discurso metodológico é, na realidade, um

metadiscurso irreal. [...]”.280

A nova hermenêutica faz parte de um movimento de crítica jurídica criado a partir

da percepção de que as noções de norma jurídica de um sistema fechado são insuficientes.

Começa-se a perceber que não é algo completo e sim limitado. Assim, a norma jurídica deve

ser completada pela interpretação social – compreender o direito além da norma. É uma

tentativa de se manter a estrutura de normas jurídicas com uma nova possibilidade de

produção do sentido.281

A partir da constatação dos vazios semânticos (palavras da lei) e da incapacidade de

oferecer respostas adequadas à complexa sociedade, a proposta hermenêutica constitui-se num

avanço na medida em que introduz critérios pragmáticos de racionalidade (interpretação

social para a norma jurídica). Ela pretende entender o direito para além da regra (sentido

completado pelo contexto) e rompe com o apriorismo do positivismo normativista. Dessa

forma, a tensão existente entre a dogmática jurídica e a sociologia é rompida, através da

utilização da linguagem, pela hermenêutica filosófica. O sentido deve ser produzido pelo

intérprete a parir da compreensão de mundo, abolindo-se a idéia de fixação de sentido a priori

– pretensão da metafísica.

A matriz hermenêutica propõe uma forma de aproximação com a realidade,

agregando à interpretação das regras, o conceito de contexto para a produção do sentido e

introduzindo a noção de que a verdade é produzida a partir do rompimento da relação sujeito-

objeto. Dessa forma, cada caso deve ser identificado e particularizado para se estabelecer o

comando normativo que deriva da regra, utilizando-se dos princípios constitucionais – opção

pelo Estado Democrático de Direito – para proporcionar coesão e justiça nas decisões

jurídicas. Esse processo é promovido pela compreensão que é um existencial, porque a partir

dos pré-juízos e da conformação histórica do intérprete chega-se a resposta282, sem

280 CORDEIRO, 2002, p. XXV-XXVI. 281 ROCHA, Leonel Severo. Prefácio. In: DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 282 “Na medida em que o caso concreto é irrepetível, a resposta é, simplesmente, uma (correta ou não) para aquele caso [...]”. “[...] Desde que o ‘caso concreto’ passou para o centro das preocupações dos juristas, abandona-se a multiplicidade de respostas, uma vez que somente em abstrato é possível encontrar respostas variadas. [...]”. STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 213; 215.

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discricionariedades.

“A concepção de Estado da Hermenêutica é, portanto, mais atual que a da filosofia

analítica, voltando-se para as instituições sociais e abrindo-se já para o Estado interventor.

[...]”283 Ela tem a preocupação de superar o irrealismo metodológico presente nas teorias

anteriores, por meio de um pensamento ontológico, em que o sujeito cognoscente conhece de

antemão a linguagem – conjunto de pré-estruturas do saber (pré-entendimento).284 A

perspectiva hermenêutica põe em cheque os modelos formais de discurso jurídico, pois “[...]

não há, apenas, um entendimento da matéria: esta é o entendimento, confundindo-se com a

linguagem que o suporta.”285

Assim, não faz sentido, a partir da hermenêutica filosófica, a diferença – metafísica

– entre easy e hard cases, porque o acontecer da interpretação ocorre a partir da compreensão

do ser-no-mundo que antecede à linguagem, ou seja, o caso é apresentado ao intérprete e a

solução por ele apontada ocorre a partir das suas pré-compreensões que o antecede e antecede,

também, qualquer pretenso discurso.

A matriz pragmático-sistêmica, a partir de estudos de Luhmann passa a ter um olhar

sociológico para o direito. Nessa dimensão, o direito constitui um subsistema da sociedade,

onde tem função redutora de complexidades.

Essa matriz provoca uma revolução epistemológica no direito, apesar de não ter

grande influência na dogmática dominante. Luhmann parte da análise da teoria dos sistemas

de Parsons, numa primeira fase, e depois volta seus estudos para perspectiva autopoiética com

base em Varela-Maturana (direito como autoreprodutor de condições de possibilidade do

ser).286

A sociedade moderna é altamente complexa e mais recentemente globalizada. Os

comportamentos sociais estão influenciados diretamente por expectativas. A concretização

dessas expectativas constitui risco, que em muitos casos gera frustração. O direito funciona

como redutor dessas expectativas de comportamentos sociais. O direito começa a ser

interpretado, a partir de uma concepção de mundo de relações comportamentais complexas

em que a possibilidade de agir (escolha) condiciona o resultado ocorrido.

A matriz pragmático-sistêmica parte do conceito de comunicação e compreende os

283 ROCHA, 2005, p. 100. 284 CORDEIRO, 2002, p. LIII-LIV. 285 Ibidem, p. LIV. 286 ROCHA, 2005, p. 87.

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fenômenos através de laços de interdependência, que reagem “[...] globalmente, como um

todo, à pressões exteriores e às reações dos elementos internos [...]”, o que não restringe, a

interpretação, ao formalismo lingüístico”.287 Luhmann defende que a produção do sentido da

sociedade se dá pela produção da diferença e não pelo consenso Habermasiano. Nesse sentido

as teorias de Luhmann convergem para uma perspectiva pós-moderna. Provoca uma mudança

epistemológica na teoria do direito – perspectiva autopoiética (originalmente concebida no

campo da biologia por Varela/Maturana), onde o direito é “[...] auto-reprodutor de suas

condições de possibilidade de ser [...]”.288 Para a forma tradicional de se ver o direito a

conseqüência de nossas ações são dadas antecipadamente (direito dá o sentido do futuro). O

modelo sistêmico rompe com essa noção através do entendimento sobre o risco (possibilidade

de que não ocorra como estamos pensando). O risco é a contingência (possibilidade de

conseqüências diferentes).

Luhamnn trabalha com a questão do risco em oposição ao perigo, pois na sociedade

complexa o risco torna-se elemento decisivo. “[...] O risco é um evento generalizado da

comunicação, sendo uma reflexão sobre as possibilidades de decisão. [...]”289 Diante das

infinitas possibilidades de interação social há produção de subsistemas (direito, economia,

religião, entre outros) para reduzir os riscos. A complexidade e a dupla contingência (poderia

ser de outra forma) acabam sendo fatores problemáticos para se trabalhar.

A sociedade deve ser vista como tentativa de construção do futuro e o direito numa

perspectiva dinâmica de interação, pois na afirmação de Rocha, o Estado não é mais o único

fundamento de validade do poder e da lei (apesar de ainda deter o monopólio de questões

chave). Numa sociedade globalizada tem-se a intervenção poderosa de instituições e não

apenas de indivíduos.290

Dessa forma, a matriz pragmático-sistêmica procura entender os comportamentos

sociais, a partir da constatação de um mundo de possibilidades – sociedade complexa – e

atribuir ao direito a responsabilidade de um subsistema redutor de complexidades.

A matriz sistêmica traz a noção de que o poder, historicamente concentrado no

Estado, está cada vez mais desmistificado pela forte influência do poder econômico de

organizações da sociedade. Assim, não é possível fechar os olhos para essa nova realidade e

se apegar ao normativismo, pois é tempo de levar em consideração, para as decisões judiciais, 287 ROCHA, 2005, p. 28. 288 Ibidem, p. 30-31. 289 Ibidem, p. 104. 290 Ibidem, p. 46.

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fatores sociais de comportamentos que não dependem somente do indivíduo, mas de um

sistema de forças político-social.

Nesse ponto – aproximação com a realidade social – as matrizes sistêmica e

hermeneuta filosófica têm pensamento comum, porém a partir de pressupostos diversos.

Enquanto a hermenêutica filosófica apresenta proposta teórica consistente a partir da presença

do ser-no-mundo (noção de verdade) a matriz sistêmica parece estar distante da tradição

teórico-jurídica – direito como ordenamento escrito – porque suas propostas ainda carecem de

concretude (soluções práticas para o direito enquanto transformador da realidade social).

O problema é que a realidade jurídica brasileira ainda se encontra dominada por uma

teoria jurídica de metodologia positivista ao ponto de abordagens analíticas voltadas aos

aspectos empírico-lógicos das normas. Apesar do fracasso do normativismo (Kelseniano) a

matriz teórica analítica, com pequenas alterações (pressupostos jusnaturalistas como justiça

social e direitos humanos), continua tendo preferência nacional – senso comum teórico dos

juristas.291

No pensamento jurídico atual pode-se sintetizar duas idéias fundamentais: a primeira

é que o direito tem natureza cultural – categoria das criações humanas – fenômeno pré-dado; a

segunda é que as decisões jurídicas necessitam de estruturação científica e por essa razão

devem obedecer a determinadas regras.292 Dessa forma, considera-se que a hermenêutica

filosófica é a saída teórica para libertação de um pensamento metafísico, distante da realidade

social brasileira, que tem função meramente legitimadora do poder econômico e não atende

aos anseios sociais dispostos na Constituição.

3.2 VIRAGEM ONTOLÓGICA: A FILOSOFIA A SERVIÇO DE UMA “NOVA”

MANEIRA DE COMPREENDER O MUNDO E A DERRUBADA DO REINADO

METODOLÓGICO COMO FONTE DA VERDADE

A hermenêutica filosófica tem a sã ousadia de desafiar o pensamento dominante na

modernidade sobre o conhecimento fazendo duras e consistentes críticas ao procedimento e

291 ROCHA, 2005, p. 57. 292 CORDEIRO, 2002, p. LIII-LIV.

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ao consenso293 como forma de produção da verdade.

É com os pés na filosofia que esse desafio se coloca, porque ela “[...] tem como

tarefa fundamental desenvolver um discurso sobre a totalidade e essa totalidade é o mundo

que envolve, como condição de possibilidade, todos os discursos científicos. A filosofia,

portanto, fala sobre o mundo e as ciências falam dentro do mundo”. Nessa dupla

racionalidade há uma que é própria do ser humano e que as ciências não conseguem chegar,

porém a filosofia tem uma tarefa específica. Essa racionalidade dispensa a lógica e atua de

maneira a não depender do que cada indivíduo reflete, pensa e produz (caráter

universalizante).294

A filosofia transcendental apresenta-se como algo que pensa para além da ética, da

lógica e da epistemologia e suprime o mundo paralelo – metafísico. Ela é uma reflexão sobre

o que é propriamente filosófico no trabalho filosófico – pressupostos de qualquer discurso

filosófico. Kant inaugura esse campo a priori por explicitar essa possibilidade, ainda que

como plano de fundo e não como lugar privilegiado (eu penso – representabilidade do objeto

como construção do sujeito). Hegel leva adiante a idéia de uma aprioridade transcendental na

tentativa de construção de um sistema absoluto coincidente com a realidade (filosofia

especulativo-dialética – unidade entre sujeito e objeto). Ele apresenta a possibilidade da

filosofia ocupar-se com a gênese superando a questão da representação dos objetos para

chegar-se à representação da vida, da consciência e da autoconsciência (alargamento da

questão transcendental – possibilidade de fundamento à antropologia, psicologia, psicanálise e

política como objetos filosóficos). Até o século XX, com base nessas teorias, desenvolveu-se

uma idéia de racionalidade partindo do papel do sujeito na filosofia (reflexão auto-referencial

– sujeito medita sobre suas proposições/condições sem confusão com a lógica, a ética e a

epistemologia). Dessa forma, a filosofia transcendental depois de Kant e Hegel descobriu uma

espécie de ontologia295 (não objetivística, ingênua e empírica – não paralela ao mundo físico).

O idealismo toma corpo em relação ao realismo (o melhor realismo não vale o pior

idealismo), pois “[...] a verdade não é a concordância entre o sujeito e objeto, mas a verdade

293 “Habermas constrói, assim, uma pragmática não-empírica, [...] a verdade deixa de ser conteudística para ser uma verdade como idealização necessária. É uma verdade argumentativa, atingida pelo consenso.” “[...] uma teoria consensual é epistemológica, porque trabalha no nível da teoria do conhecimento. Nela não há espaço para a faticidade, para o mundo prático.” STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 31; 69. 294 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 11-13. 295 “A ontologia é a concepção de uma determinada realidade que se apresenta como definitiva. Ontologia é uma teoria do ser e portanto, uma teoria que estabelece como o mundo é. No universo das teorias hermenêuticas e no universo das teorias do sentido, nós não trabalhamos com realidades ontológicas.” Ibidem, p. 41.

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resulta de uma correspondência entre o falante e as proposições sobre a realidade e não sobre

proposições comparadas com a realidade.”296

A partir de Hegel começa-se a discutir as pressuposições do dizer, do falante, onde o

sujeito está implicado – análise interiorizada do sujeito. Introduz-se a possibilidade de refletir

sobre o mundo que se articula através da idéia do sentido e do significado (não no sentido da

razão hegeliana ou da consciência – idealismo ou subjetividade). Agora a reflexão sobre as

condições transcendentais passam da subjetividade do sujeito para as condições prévias de

sentido – estruturas prévias do significado – “[...] onde se dá todo esse universo elementar,

pré-categorial, antepredicativo, pré-lingüístico, sem o qual todo discurso deixa de ter a sua

justificação.” (abertura para crítica do sentido na linguagem – filosofia da linguagem –

condições de possibilidade do discurso humano).297

Descartes tem sua importância reconhecida na filosofia moderna por admitir o

homem como ator do conhecimento (contraposição à vontade divina). Ao destacar a

importância da certeza e da previsibilidade é utilizado com exemplo quando se fala em

afirmação positivista do direito enquanto ciência. Ele “[...] cria um mecanismo que emancipa

o pensamento do homem e insere a razão humana como centro do conhecimento e da busca

pela verdade [...] [que] é fruto da demonstração [...]”. A partir dos estudos matemáticos –

formas exatas – Descartes nega haver mais de uma opinião verdadeira (rechaça a diversidade

e a multiplicidade) e sustenta a necessidade de um método tão seguro a ponto de não dar

margem à verossimilhança. A verdade deve ser atestada pelo método (dúvida – método –

verdade).298

A crítica à forma moderna de produção do conhecimento (método) deu-se a partir de

estudos fenomenológicos (Husserl, Heidgger e Gadamer) que proporcionaram uma revolução

na maneira do homem compreender o mundo e a si mesmo. Antes de atingir a área jurídica,

ela firmou-se como crítica geral à maneira em que se produz o conhecimento, desvelando

novas possibilidades hermenêuticas.

Etimologicamente a palavra Fenomenologia significa discurso, ciência ou estudo do

fenômeno. Ela é fruto das concepções teóricas de Edmund Husserl que não se contentava com

o direcionamento dos estudos de Descartes, Kant e Hegel vinculados ao objeto, relegando a

segundo plano, a subjetividade humana. Assim, “[...] é necessário assumir uma atitude 296 STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 43-48. 297 Ibidem, p. 48-50. 298 MAIA, 2006, p. 13; 20-25.

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fenomenológica já que o homem é um ser no mundo [...] desconfiando de toda e qualquer

evidência ou obviedade [...] tarefa própria da filosofia [...]”.299 A “[...] fenomenologia quer

permanecer ligada ao enunciar-se das coisas. A fenomenologia hermenêutica supera o

empirismo sem necessidade de recorrer a algo mítico, a um processo de abstração ou a um a

priori [...]”.300

Dessa forma, a compreensão de mundo pelo ser que é hermenêutica – enquanto

existencial que antecede qualquer discurso de base epistemológica – tem caráter

fenomenológico.

Husserl estabelece uma crítica relacionada ao “[...] simbolismo e à transformação

alienante das ciências em mera técnica [...]”. Para ele o conhecimento é “[...] evidência e

verdade, criadas a partir da intuição [...]”.301 Diferentemente do que pregava o positivismo,

Husserl atribui realidade às normas jurídicas – específico modo de ser – porque elas são

produtos de processos históricos voluntários e irrepetíveis vinculando todos os que pertencem

ao seu âmbito histórico de vigência – se sobrepõem às atitudes voluntárias de inobservância.

O mundo histórico é o mundo do homem – condicionado pelo tempo histórico em que vive. A

ordem jurídica não está só na história como é a própria história. A norma jurídica não é

independente dos homens a que diz respeito, ela insere-se no tempo histórico e acompanha o

movimento. Ao ser criada a legislação tem um aspecto histórico (vontade do legislador) e,

portanto, não pode ser ignorada (ponto de partida fixo para a interpretação), mas para além

disso, o que está em jogo é o que significa a norma jurídica para nós, ‘os de hoje’ –

pensamento da atualidade (processo não concluído).302

Os trabalhos de Husserl possuem a convicção de que há no direito um a priori

material, pois considera que o direito positivo é realização e particularização de possibilidades

aprioristicamente dadas. Dessa forma, nega a teoria do positivismo sobre o conteúdo

discricionário das normas. A fenomenologia do direito, apresentada por Husserl, representa a

superação do entendimento positivista (nas suas diversas modalidades) sobre o aspecto

normativo, pois não se pode reduzir o direito positivo a processos psíquicos.303

A partir de Husserl, os principais precursores da fenomenologia são: Martin

299 GUERRA, Willis Santiago. Fenomenologia jurídica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 316-317. 300 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 875. 301 GUERRA, 2006, p. 317-318. 302 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 156-160. 303 Ibidem, p. 161.

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Heidgger cuja obra principal é Ser e Tempo e Hans-Georg Gadamer com Verdade e Método.

Heidgger foi adepto de uma corrente filosófica que não aceitava explicações

cientificistas ou logicistas para justificar o conhecimento – principal problema da filosofia nos

anos 1920. Encontrou na fenomenologia de Husserl apoio teórico para pensar o ser humano e

se libertar da metafísica, porém o fez de forma inovadora porque introduziu os conceitos de

hermenêutica e de interpretação. A hermenêutica se tornou nova, com elemento antropológico

e “[...] com a função de descobrir no próprio ser humano a idéia de compreensão [...]”.304 “A

compreensão como totalidade [homem como ser-no-mundo] e a linguagem como meio de

acesso ao mundo e aos seus objetos são, assim, questões centrais na filosofia hermenêutica de

Heidgger, por ele denominada de Fenomenologia Hermenêutica. [...]”. A linguagem305 nos

precede, ela é abertura para o mundo – condição de possibilidade – “[...] Somente quando se

encontra a pá-lavra para a coisa é que a coisa é uma coisa. [...]”.306

Heidgger busca a ontologia fundamental diferenciando ser e ente. Analisa a estrutura

formal do ser. O ente “[...] é tudo que é (pedras, humanos, etc.), mas no caso do sentido do

ser, este ente é o próprio que pensa – quem pensa – denominado então como ser-aí. [...]”. O

humano enquanto ente já está em relação com o ser – lançado no mundo. “[...] a estrutura

sistemática de ‘Ser e Tempo’ se dá pela fixação preliminar do sentido do ser, em seguida

reconhece que o único ente que pode compreender é o homem, o ser-aí, o qual é ser-no-

mundo; e ser-no-mundo é cuidado, o qual, por sua vez, é temporal.” Heidgger radicaliza a

hermenêutica a ao ver na compreensão uma estrutura fundamental da existência humana –

verdade como manifestação do ser e não do conhecer.307

Heidgger descobriu um dado hermenêutico – “[...] os objetos são dados dentro de

um horizonte de significações [...]” – a partir da idéia de mundo circundante de Husserl

(mundo vital) e de seu entendimento sobre o ‘estar’ do homem no mundo.308 A epistemologia,

304 STRECK, Lenio Luiz. Heidgger, Martin. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 426-427. 305 É preciso considerar que essa linguagem não dá conta de tudo, pois Gadamer, na tentativa de aplicar as teorias de Heidgger, especialmente o segundo (Contribuições para a filosofia) afirma que “[...] Somos incapazes de expor todos os pressupostos que estão no universo hemenêutico. Algo sempre escapa. A compreensão [...] antecipa qualquer tipo de explicação lógico-semântica [...] Temos uma estrutura do nosso modo de ser que é a interpretação.” Assim, sempre interpretamos (desdobrar das possibilidades), o ser humano é compreender e o compreender é um existencial (junto com a faticidade e a possibilidade) com fundamento no próprio homem. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 203. Há uma ambigüidade no homem que o condena a hermenêutica. Somente a filosofia tem consciência de que a compreensão e a interpretação são formas deficientes de acesso lógico aos objetos e ao mundo. STEIN, 2004, p. 22. 306 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 203-205. 307 ROSA, 2006, p. 179-180; 184; 189-190. 308 SALDANHA, 2003, p. 226.

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para Heidgger, é uma exacerbação da subjetividade.309 A partir de Heidgger a hermenêutica

passa a ser filosófica, pois a compreensão é estrutura ontológica do Dasein e as coisas não são

uma propriedade do ser (elas chegam ao ser), mas o próprio ser. O homem é ser-no-mundo,

cuidado, temporal e o único ente que compreende o ser – caráter ôntico da vida humana.310 O

sentido é considerado, para Heidgger um “[...] existencial do Dasein e não uma propriedade

colocada sobre o ente [...]”.311 Quando se dá a compreensão do ser é que se dá o sentido do

ser. “[...] O conceito de ser é o mais universal e o mais vazio, resistindo a toda tentativa de

definição. Por ser o mais universal dos conceitos, prescinde de definição. [...]”312

Heidgger influenciou Gadamer, principalmente, a partir dos conceitos de circulo

hermenêutico e diferença ontológica.313 Apreendendo as idéias de Heidgger, Gadamer

elaborou um conceito mais originário de compreensão (forma de ser-no-mundo), um projeto

de de-sedimentação da metafísica e a tematização da essência da verdade. 314

Gadamer foi além da filosofia hermenêutica, estabeleceu a hermenêutica filosófica

com base na analítica existencial, ontologia fundamental ou fenomenologia hermenêutica de

Heidgger (principalmente no segundo, pois Heidgger pode ser dividido em dois momentos:

compreensão do ser e história do ser). O conceito principal de verdade e método é o de

experiência no mundo – possibilidade de representação ou de descrição de uma totalidade.315

Gadamer, em sua obra verdade e método, traz uma provocação à verdade lógica-semântica

atrelada ao método – principalmente ao dedutivo e ao indutivo –, pois apresenta, a partir da

hermenêutica filosófica, no campo da arte, do conhecimento histórico e da linguagem,

verdades produzidas sem a utilização do método lógico-analítico. Essa verdade não é empírica

nem absoluta, mas é uma verdade que se estabelece nas condições humanas do discurso e da

linguagem – consagração da finitude.316

Gadamer dedicou-se à compreensão, atacando a formulação epistemológica como o

centro da racionalidade. A interpretação é um momento histórico efetivo da vida e assim

compreensão está diretamente ligada à interpretação. É através do intérprete que leva consigo

um horizonte de expectativas (crenças, práticas, conceitos, etc.) que se fundem horizontes

309 STEIN, Ernildo. Epistemologia e crítica da modernidade. Ijuí: Unijuí, 1991, p. 34. 310 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 198-199. 311 Ibidem, p. 202. 312 Ibidem, p. 191. 313 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 314 DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Gadamer, Hans-Georg. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo-Rio de Janeiro: Unisinos-Renovar, 2006, p. 372. 315 STEIN, 2004, p. 72-74. 316 Ibidem, p. 47-48.

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(linguagem + tradição) e surge a interpretação – apropriação da tradição histórica tem

estrutura circular. A interpretação sempre está em marcha, nunca se conclui. A compreensão

não se adquire com um método, mas sim com a prática.317 Gadamer, com os conceitos de

circulo hermenêutico e de pré-compreensão, foi quem “[...] situou a necessidade de

compreender as coisas dentro de um todo ou a partir de um todo, sendo indicação básica

dentro das expressões do humano a historicidade [...]” (princípio hermenêutico).318 “Toda a

contribuição de Gadamer à filosofia hermenêutica tem como centro a idéia de pré-

compreensão, e com ela a do reaproveitamento epistemológico da idéia de tradição (a

continuidade do saber mantida através dos tempos por meio da linguagem319). [...]”320

A verdade proposta por Gadamer (acontecer da obra de arte, da história e da

linguagem) encontra-se no plano de fundo do conhecimento tradicional – baseado no método.

Porém, “[...] O acontecer da verdade é uma [sic] acontecer que não podemos dizer seja um

processo anti-metódico, mas é um processo que põe em crítica o método do conhecimento

lógico-analítico. [...]”321

A hermenêutica filosófica tece severas críticas ao método porque ele não é suficiente

para a busca da verdade. O método apresenta-se como uma espécie de “camuflagem” para a

essência do ser e das coisas e torna-se extremamente prejudicial na medida em que produz o

“encastelamento” do conhecimento e a produção de “novos conhecimentos” com base na sua

própria epistemologia viciada.

O distanciamento da realidade é uma conseqüência da aplicação do método nas

ciências. Ele serve antes de fuga para o intérprete do que base para produção da verdade. Na

afirmação de Streck, os métodos e os procedimentos produzem a objetificação da

interpretação, pois eximem o interprete de suas responsabilidades e atribuem a culpa pelas

anomalias do direito à lei e ao legislador. O emprego do método é sempre arbitrário e

discricionário. Assim, a hermenêutica deixa de ser uma questão de método e passa a ser

filosofia (que não é lógica).322 A metafísica – que sempre pensou o ente – é uma armadilha

“[...] porque suspende as coisas humanas no interior do ente, sem que o ser do ente possa ser

317 ROSA, 2006. p. 192-194. 318 SALDANHA, 2003, p. 226. 319 “Assim como as coisas (Dinge) – essas unidades de nossa experiência de mundo que se constituem por apropriação e significação – vêm à palavra, também a tradição que chega a nós é reconduzida à linguagem, na medida em que a compreendemos e interpretamos. O caráter de linguagem desse vir à palavra é o mesmo que o da experiência humana de mundo como tal. [...]” GADAMER, 2007, p. 589. 320 SALDANHA, 2003, p. 226. 321 STEIN, 2004, p. 76-77. 322 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 433.

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jamais conhecido [...]” enquanto que a ontologia valoriza e se preocupa com o ser.323

A filosofia passa a ocupar o lugar privilegiado do método e da lógica na produção do

conhecimento. Através da reflexão (tarefa da filosofia) sobre a compreensão – modo de ser –

é possível desvenciliar-se das amarras do método e da lógica, que na modernidade produziram

um resultado falho.

Não se trata de dispensar a aplicação do método,324 procedimento325 ou de romper

definitivamente com toda a base epistemológica produzida pela ciência, mas sim de uma nova

postura do sujeito – auxiliada pela filosofia – para libertar-se dos vícios de uma prática aceita

e distorcida, especialmente com relação ao contato com a essência, que é o ser.

Na hermenêutica haverá espaço para a teoria do conhecimento na explicitação da

autocompreensão. Mais do que fundamentar é preciso explicitar (justificar) o que foi

fundamentado.326 Às teorias do discurso cabem essa tarefa de justificação do compreendido

porque elas operam no nível lingüístico. À hermenêutica filosófica cabe à reflexão do

compreender, a produção da verdade e das respostas corretas.

A resposta apresentada pelo intérprete precisa ser justificada para haver

legitimidade.327 É a partir da justificação do compreendido que se garante o previsão

Constitucional de que todas as decisões do Poder Judiciário serão justificadas (artigo 93, IX).

A justificação da decisão é a explicitação do compreender através da linguagem. O intérprete

compreende a partir de sua condição de ser-no-mundo e exterioriza essa compreensão pela

linguagem.

A relação sujeito-objeto – até então sustentada – perde o sentido e passa a ser

sujeito-sujeito porque é a partir deste que os objetos possuem sentido. Nessa direção aponta

Stein para quem o “[...] Objeto e sujeito não se separam, porque mergulham numa certa

tradição. [...]”328 e Guerra quando afirma não existir, para a fenomenologia, relação pura entre

o sujeito e o objeto porque essa relação é sempre intencional. O objeto se torna tal a partir do

323 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 207. 324 No discurso lógico racional, a soma de análises lógicas nunca representa a totalidade – nunca dá as condições de possibilidade. A novidade hermenêutica está em demonstrar onde se dá a compreensão – e que ela não está reduzida ao aspecto lógico-semântico, porém não o dispensa, porque pode-se utilizar dele para compreender melhor o universo hermenêutico. STEIN, 2004, p. 31. 325 “[...] A posição hermenêutica não pretende eliminar o procedimentos. Ela já sempre compreende isso, porque ela é capaz de analisar filosoficamente os elementos da pré-compreensão.” STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 221. 326 Ibidem, p. 282. 327 STRECK, Lenio Luiz. STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 250. 328 STEIN, 2004, p. 106.

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olhar do sujeito – visão da essência ou intuição.329

No dizer de Streck, “[...] A metafísica pensa o ser e detém-se no ente; ao equiparar o

ser ao ente, entifica o ser, através de um pensamento objetificador [...]” o que corrompe o

processo interpretativo através do predomínio do método e “[...] nem sequer a legalidade (de

cunho liberal-individualista) é cumprida [...] [pois] continuamos a utilizar Códigos (e códigos)

velhos sem a devida filtragem constitucional [...]”.330

Romper com o método e com a objetificação do sujeito, a partir da fenomenologia,

são características fundamentais de uma nova postura do sujeito frente ao mundo. A produção

dessa nova possibilidade – viragem ontológica – é marca da hermenêutica filosófica

conquistada a partir de estudos de Husserl, Heidgger e Gadamer. No Brasil, os principais

precursores desse pensamento são Ernildo Stein, Lenio Luiz Streck e Eros Roberto Grau.

3.3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA (TRANFORMADORA): VALORIZAÇÃO DO SER,

LINGUAGEM E COMPREENSÃO COMO FATORES QUE DENUNCIAM O EQUÍVOCO

DA HERMENÊUTICA TRADICIONAL PROCEDIMENTALISTA

A palavra hermenêutica (do grego hermeneuein) é decorrente de Hermes que tinha

poderes para interpretar a vontade dos Deuses. Ele era o receptor das mensagens e as

decodificavas.

A complexidade do problema hermenêutico está presente na metáfora de Hermes,

que era um mensageiro divino encarregado de esclarecer o conteúdo das mensagens dos

Deuses aos mortais. A partir dessa atividade ele se torna poderoso e nunca se soube o que os

Deuses realmente disseram, somente o que Hermes falou sobre a mensagem dos Deuses.331

A hermenêutica procura compreender como o ser humano interpreta. Ela é uma

filosofia da compreensão para produção do sentido – interpretação – do mundo e de suas

manifestações. É uma exploração filosófica do caráter e das condições fundamentais de toda a

compreensão humana.

A relação existente entre a hermenêutica jurídica e a de origem religiosa está na

presença de uma tensão existente entre texto e sentido, que abre possibilidades (caminhos) 329 GUERRA, 2006, p. 317. 330 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 847; 849. 331 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 430.

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ligadas ao acesso do homem ao conhecimento. Esses caminhos vão desde a crença em regras

para guiar a interpretação (teoria geral), inexistência de cisão entre o ato de conhecer o

sentido e de aplicá-lo ao caso, até falsas contraposições do esquema sujeito-objeto

(metafísico).332

A hermenêutica tradicional está vinculada ao procedimento enquanto que a

filosófica avança no sentido da valorização da singularidade do caso a partir de uma visão de

totalidade.

3.3.1 Utilização do método no direito

A hermenêutica tradicional, pautada no procedimento, acredita que as respostas do

intérprete serão produzidas a partir do emprego de metodologias apontadas por teorias

epistemológicas. Através de uma espécie de condução do raciocínio, acredita-se chegar às

respostas no interior de determinada estrutura científica.

No direito, parte da dogmática acredita que a utilização desses procedimentos é o

caminho para a decisão e seu controle. Dobrowolski explica que os procedimentos e critérios

estabelecidos para controle das decisões jurídicas – decisão correta – são objetos de estudo da

teoria da argumentação jurídica. Há preocupações com o método. A necessidade de uma

teoria da argumentação jurídica se justifica no atual contexto do direito por três elementos:

situação conflituosa que clama por resposta(s); procedimento argumentativo – objetivando a

decisão; conclusão ou decisão que deve ser fundamentada.333

Considerando essas “necessidades”, a dogmática procedimentalista apresenta os

seguintes métodos334 para a interpretação do direito, argumentando que eles não são

excludentes entre si, bem como que não há hierarquia entre eles: gramatical (literal, semântico

ou filológico), lógico, sistemático, histórico e teleológico.

Quando o intérprete valoriza a literalidade da lei, procurando o significado dos

vocábulos e expressões, que pode ser extraído a partir da palavra ou de sua inserção na

oração, diz-se que está utilizando o método gramatical.

332 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 333 DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 40-41. 334 Método significa caminho/organização/procedimento para se chegar a uma verdade.

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Ferraz Júnior explica que quando o intérprete valoriza “[...] a conexão de uma

expressão normativa com as demais do contexto [...] para a obtenção do significado correto

[...]”, o que possibilita soluções de justiça, utiliza o método lógico.335 A partir desse método,

emprega-se raciocínios do tipo quem pode o mais pode o menos e permite identificar a

especialidade das normas.

O método sistemático apresenta-se como raciocínio que considera a norma inserida

num conjunto estrutural, pois não se resolvem os problemas a partir de um dispositivo legal,

mas a partir de um conjunto normativo onde se nega a validade a determinadas normas

(importante para aplicação dos princípios, pois irradiam valores a serem obedecidos pelas

regras). Esse método também está presente quando da leitura das alíneas, parágrafos, incisos e

caput dos artigos de leis para se buscar compreender o sentido.

Por sua vez, quando empregado o método histórico atribui-se relevância ao caráter

comunitário, onde se busca identificar os antecedentes históricos da criação da norma, a razão

de ser ou sua gênese. Nesse raciocínio, parte-se do pressuposto de que o direito positivado é a

institucionalização dos hábitos e costumes historicamente maturados por gerações.

Ainda e por fim, quando empregado o método teleológico336 busca-se o telos, que

significa fins/finalidade, ou seja, deve-se adaptar a finalidade das leis às exigências sociais.

Por esse método, a lei deve ser aplicada de acordo com os fins sociais e visando o bem

comum delimitados pelos direitos fundamentais contidos na Constituição Federal.

Em continuidade à exposição do raciocínio procedimentalista, diz-se que a

interpretação pode ser classificada em três tipos: declarativa ou especificadora, restritiva e

extensiva. Em todos os casos o que está em jogo é a amplitude de sentido que se dá em

relação ao descrito no texto e o desejado pelo intérprete.

Na interpretação declarativa parte-se do pressuposto da clareza literal, ou seja, o

sentido buscado pelo interprete está definido expressamente no texto. Não é preciso ampliar

nem restringir o significado da palavra.

Na interpretação restritiva há uma abundância de significado contido no texto

normativo. A expressão contida no texto possui um sentido amplo que precisa ser restringido

pelo intérprete em decorrência da finalidade (telos) buscada pela norma.

335 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2003, p. 287. 336 Há previsão expressa desse método no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais, a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

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E por fim, na interpretação extensiva337 o que foi dito pelo legislador necessita de

ampliação. O sentido dado pelo texto é de pouca amplitude. A palavra necessita ser

compreendida em sentido amplo, ainda que o conceito não esteja expresso.

O direito atravessa por uma crise em tempos de relações sociais complexas.

Enquanto os relacionamentos intensificaram-se – evolução social –, o direito adormeceu na

sonolência de suas velhas teorias metafísicas. Ele foi (e ainda é com menor credibilidade)

entendido como estrutura científica338 capaz de completude pelos seus próprios enunciados

(regular com rigor os comportamentos sociais descritos) e chegou ao ponto de se ver

pressionado a oferecer respostas às singularidades complexas que se apresentam. O fato de

não haver respostas suficientes – insuficiência dos modelos tradicionais339 – levou a

dogmática tradicional ao descrédito340 (ainda parcial) diante da sociedade.

Necessário ligar a luz de alerta para descortinar a crise do direito341 e apontar

soluções inovadoras e responsáveis. A hermenêutica filosófica vale-se de uma crítica que não

é só para o direito, mas a ele se amolda perfeitamente, e apresenta-se como solução à crise

instalada a partir de uma (nova) forma de compreender o mundo (e o direito) em que o ser

tem lugar de destaque – viragem ontológica – enquanto portador da linguagem e da

compreensão para interpretação do direito.

337 Há uma pequena diferença entre interpretação extensiva e analogia, apontada por Ferraz Júnior: a interpretação extensiva “[...] se limita a incluir no conteúdo da norma um sentido que já estava lá, apenas não havia sido explicitado pelo legislador. [...] [Na analogia] o intérprete toma de uma norma e aplica-a um caso para o qual não havia preceito nenhum, pressupondo uma semelhança entre os casos [...]”. FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 297. 338 As ciências tratam a linguagem dentro do mundo (objeto delimitado) que é diferente de tratar a linguagem enquanto mundo sobre o qual falamos – tratamento filosófico. A filosofia é consciente de que não é possível esgotar a questão do mundo (explicita a partir de uma perspectiva) e nisso tem uma aparente frustração – não esgota seu objeto – procedimento infinito (conquista de parte da realidade). STEIN, 2004, p. 15-16. A cultura jurídica positivista ainda trabalha “[...] com a concepção de que o Direito é ordenador, o que, à evidência, caminha na direção oposta de um Direito promovedor-transformador do Estado Social e Democrático de Direito.” STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 846. 339 A criação desenfreada de dispositivos reguladores – inflação legislativa – é uma manifestação do desespero proporcionado por uma teoria hermenêutica ineficaz que (ainda) acredita na solução legislativa infraconstitucional para solução dos problemas sociais das mais variadas dimensões. Sobre o tema inflação legislativa, Grau considera que a exigência de certeza jurídica (não imobilidade) é que impõe a positivação do direito através das leis. “A ‘inflação normativa’, contudo, coloca os ideais de segurança e certeza jurídica sob comprometimento.” GRAU, Eros Roberto. O direito posto e direito pressuposto. 6. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Malheiros Editores, 2005, p. 186-188. 340 “Tal o dilema da Ciência do Direito no final do século vinte: perante problemas novos, ou se intensifica um metadiscurso metodológico irreal, inaplicável a questões concretas e logo indiferente ao Direito, ou se pratica um formalismo ou um positivismo de recurso. Em qualquer dos casos, as soluções são ora inadequadas ora assentes em fundamentações aparentes, escapando ao controlo da Ciência do Direito.” CORDEIRO, 2002, p. XXVIII. 341 A chave da crise no direito e da baixa efetividade da Constituição está no crédulo do jurista (pensamento ainda dominante) de que primeiro conhece, depois interpreta para só então aplicar – desvelar unívoco do texto; descobrir a vontade da norma ou espírito do legislador; o juiz primeiro decide para depois fundamentar. STRECK, Lenio Luiz. Diferença (ontológica) ebtre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Coimbra, 2005, v. XLVI, n. 1, p. 73; 84.

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Para desvelar a crise do direito, a filosofia é instrumento indispensável, pois a partir

da reflexão342 que lhe é própria, é possível identificar e denunciar os estragos que um modelo

equivocado vem provocando na sociedade (e no direito). Essa atitude filosófica implica crítica

do direito e como bem denuncia Grau, ela não tem ultrapassado “[...] os limites da crítica do

discurso jurídico. A crítica do direito, então, é substituída por uma crítica da doutrina

jurídica, que prospera no sentido de desviar o debate a respeito do direito para o âmbito do

discurso sobre o direito. [...]”343 A partir dessa pseudo crítica – fundada na crítica somente ao

discurso e não ao direito – instala-se o principal problema da metafísica em que o discurso

sobre o discurso toma a vez do que realmente é relevante, ou seja, não se dá importância para

o fato de que o direito está aí com um propósito – servir o homem e não escravizá-lo. O que

se tem criticado é se as estruturas lingüísticas estão ou não de acordo com tal teoria, método,

jurisprudência e por aí afora, relegando-se a segundo plano o debate e a solução do problema

concreto do fulano, cicrano ou beltrano, que faz parte do mundo real.

Em síntese, a crise do direito é constatada com auxílio da filosofia – reflexão – que

também proporciona um olhar crítico do direito não adstrito ao discurso sobre o direito, mas a

ele próprio como concretude. Dito de outra forma, a filosofia – reflexão – desvela crise e

produz crítica, mas não sobre o discurso – metafísico – e sim do direito. Dessa forma, a crítica

do direito deve-se voltar para ele próprio – que é concretude – e não para o discurso sobre ele.

A crítica do discurso jurídico (e não do direito) se aproxima do irrealismo

metodológico, que nas considerações de Haft, deita raízes na autonomização metodológica do

direito que levou ao aparecimento de um metadiscurso onde “[...] tem não já o Direito, mas o

próprio discurso sobre o Direito. Surge, então, uma metalinguagem, com metaconceitos e toda

uma seqüência abstrata que acaba por não ter já qualquer contato com a resolução dos casos

concretos.”344

As teorias tradicionais do direito (entre elas positivismo, positivismo normativista e

pós-positivismo) têm amparado os metadiscursos – discursos sobre os discursos do direito –

porque não conseguiram desvenciliar-se das amarras metafísicas e se “enrolaram” nas

estruturas epistemológicas por elas produzidas. Assim, ao discursarem sobre o discurso, a 342 “O pensamento crítico ensina devermos superar a confusão entre direito, ordem positiva normativa, sua prática e seu conhecimento. [...] ensina a tomarmos o direito como um nível do todo social, e não como uma representação da realidade social, existente fora dela – o direito é um nível, um plano, uma linguagem desta realidade, mas é também instrumento de mudança social. [...]” GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 151. 343 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 149. 344 HAFT apud CORDEIRO, 2002, p. XXV.

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essência é despercebida e os casos são tratados com abstrações como se irreais fossem. Nesse

sentido Stein explica que “[...] O estruturalismo constitui uma espécie de renúncia a riqueza

do caráter histórico, da dimensão de identidade individual e subjetiva. O método estruturalista

nas ciências fez como que uma pausa na condição do sujeito e uma pausa na condição da

história. [...]”345

O pensamento dogmático do direito346 peca ao acreditar que enunciados explicativos

são suficientes para explicar o direito. Com essa prática ocorre o encobrimento do direito e de

suas singularidades. Ou seja, conceitos universalizantes – fundantes – servem para esconder o

direito e não realização do seu papel na sociedade (entificação do ser – prendimento aos

entes). Essa tradição inautêntica equipara vigência e validade, texto e norma, acredita em

raciocínios subsuntivos e dedutivos e tem uma compreensão da Constituição como verdade

ôntica (visão ante-predicativa para o direito) e por isso acreditam que ela não constitui – não é

normativa e vinculante. “O equívoco do pensamento dogmático é pensar que um conjunto de

enunciados (categorias) explicativos acerca do Direito, postos-à-disposição-da comunidade-

jurídica, é suficiente para compreender o processo interpretativo/aplicativo do Direito. Assim

agindo, o pensamento dogmático entifica o ser do Direito. [...]”347

Correto está Cordeiro ao afirmar que mesmo as tentativas de se desvencilhar da crise

das construções formalistas e positivistas, seguem caminhos ligados ao metadiscurso jurídico

– discurso sobre o esgotado discurso metodológico – que perdem o contato com a solução dos

casos concretos. “[...] o discurso metodológico é, na realidade, um metadiscurso irreal.

[...]”.348 A metafísica ainda está presente na doutrina e na jurisprudência, porque ainda há uma

crença no método para se chegar à resposta correta. Acredita-se que interpretar é extrair da

norma tudo que dela contém (ato cognitivo – conhecimento), ou seja, extrair a vontade da

norma ou o espírito do legislador349, o que evidencia a problemática metafísica.350 Para

345 STEIN, 2004, p. 98. 346 “Não há Direito sem dogmática jurídica. O que se torna necessário é a desenraização da dogmática jurídica de seu perfil objetificante e entificador. Hermenêutica não é um método; é um modo de ser. [...]” (grifo do autor). STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 871. Dogmática não se confunde com dogmatísmo. A primeira é necessária no direito porque a partir dela é que se elaboram os discursos que explicitam o compreender. 347 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 276; 286-287; 873. 348 CORDEIRO, 2002, p. XXVI. 349 Ainda que se admita o debate, Ferraz Júnior considera que em ambas as situações podem-se tecer críticas. No caso da voluntas legislatoris pode-se afirmar que é uma ficção acreditar no resgate da vontade do legislador, que não inspira confiança e que há constante mutabilidade social. No caso da voluntas legis pode-se considerar que se ignora o legislador, há significativo abalo na certeza e segurança jurídica e valorização do subjetivismo do intérprete. FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 267. 350 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431.

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hermenêutica interpretar é aplicar. Não há cisão entre aplicação e compreensão.351

Nas palavras de Gadamer, “[...] Uma lei não quer ser entendida historicamente. A

interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica. [...]” Para tanto, se “[...] quisermos

compreender adequadamente o texto [...] devemos compreendê-lo a cada instante, ou seja,

compreendê-lo em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreender

é sempre também aplicar.”352

Ora, saber se predomina a vontade do legislador ou da lei é desnecessário porque a

partir da compreensão proporcionada pela hermenêutica filosófica o texto editado pelo

legislador é condição de possibilidade para produção do sentido – dele não se extrai o

significado a priori tanto no aspecto da vontade do legislador, quanto no aspecto da lei em si.

A compreensão de mundo – totalidade – do intérprete é o fator determinante para a produção

do sentido353 que nunca é reprodutor.

A dogmática jurídica tradicional tem considerado o ato interpretativo como uma

ação isolada do juiz, considerada como uma operação lógica em “[...] adaptar o suporte fático

normativo ao conteúdo significativo preexistente na moldura legal. [...]”. No Brasil foi

precursor desse rigor formal Carlos Maximiliano. Esse objetivismo a priori das palavras da lei

já se encontra superado pela semiótica (sintaxe, semântica e pragmática354).355

Essa forma de interpretar os textos legais é ultrapassada porque não consegue dar

conta da realidade social que se apresenta e é impotente frente aos desafios – problemas – que

o direito propõe-se a solucionar.

O método “[...] sempre chega tarde, porque pressupõe saberes teóricos separados da

realidade.” A compreensão antecede a argumentação. A pré-compreensão passa a ser

condição de possibilidade e conformada com nossos pré-juízos não é, jamais, autoritária,

porque eles não são inventados, mas seguem a tradição. Esse processo não depende de

método e tampouco da discricionariedade do intérprete.356 O método pressupõe saberes

351 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 62. 352 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 408. 353 A atividade interpretativa vincula-se a norma e tem caráter criador. É concretização que só é possível a partir de um problema concreto. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 61-62. 354 Ferraz Júnior considera que “[...] para interpretar, temos de decodificar os símbolos no seu uso, e isso significa conhecer-lhes as regras de controle da denotação e conotação (regras semânticas), de controle das combinatórias possíveis (regras sintáticas) e de controle das funções (regras pragmáticas).” FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 261. 355 ROCHA, 2005, p. 108. 356 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 434. (grifo do autor).

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teóricos – discursos de fundamentação separados da realidade – e por conta disso sempre

chega tarde. “[...] Antes de argumentar, o intérprete já compreendeu. [...]”. O discurso é

sempre “[...] acompanhado e precedido por uma antecipação de sentido, que advém do mundo

prático [...]”.357 O discurso não pode desenvolver-se apenas com base no discurso lógico-

semântico.

A hermenêutica é um método da compreensão do fenômeno humano em sua obra.

Instrumentos e técnicas são inúteis sem a presença do homem. O homem procura atingir a

verdade a partir dos diversos pontos em que o situa sua história e cultura. Ele a experimenta

nas situações concretas – necessidade de cada momento – sem respostas totais e definitivas. A

compreensão deve decidir os passos do homem – ele toma seu destino nas mãos. O homem é

essencialmente histórico e a volta ao passado (envolto em problemas, preconceitos e

interesses) constitui busca de possibilidades de seu poder-ser e procura concretizá-las no

presente. Essa radicação do homem na tradição é decisiva para seu presente e futuro. Somos

envolvidos por um clima espiritual que seleciona nossos juízos e os determina a cada

momento. Nossa compreensão se movimenta conosco e nós a limitamos em nosso

acontecer.358

A viragem ontológica é um “antídoto” que afasta o discurso metafísico irreal. Streck

propõe uma Nova Crítica do Direito (NCD) como processo de desconstrução da metafísica

(teoria do conhecimento – filosofia da consciência) no direito (interpretação jurídica). Ela

chama atenção para a diferença entre ser e ente para que o texto seja pensado em seu

acontecer e não estandardizado pela tecnização e especialização, que são características

próprias da dogmática jurídica dominante, que reifica a subjetividade abstrata num raciocínio

produtor de ‘consensos antecipados’ – fala ideal. A Nova Crítica do Direito (NCD) pretende

lutar contra a aparência e a distorção através da construção de condições para o desvelamento

– abertura de uma clareira na escuridão proporcionada pela metafísica (a clareira só é possível

porque existe a floresta) – a partir da idéia de ser-no-mundo como condição de possibilidade

para qualquer conhecimento. Com o desvelamento surge a verdade ontológica, ou seja,

desvelamento como verdade sobre o ser. A missão da Nova Crítica do Direito é “[...] des-

velar as obviedades do óbvio [...] [com] a vocação de administrar o que acontece na trama

existencial que sustenta a lei e o direito, isto é, um universo prévio que não se dá sem lei, mas

que sem a lei não se tornaria fenômeno do cotidiano.”359

357 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 37-38; 286. 358 STEIN, Ernildo. História & ideologia. 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 1981, p. 16; 19-30. 359 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 278; 284-285; 287.

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A Nova Crítica do Direito (NCD) é viável a partir do paradigma fenomenológico

hermenêutico com destaque para a linguagem que nos antecede. O direito também é um

fenômeno lingüístico e possui uma especificidade relevante que é a de possuir um texto

normativo (com a devida separação texto – norma e validade – vigência) que deve

conformidade com um texto superior – Constituição – “[...] que é condição de possibilidade

hermenêutica de outro texto, é um fenômeno construído historicamente como produto de um

pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social. [...]” e é do sentido que se dá para

a Constituição (pré-compreensão) que dependerá o processo de interpretação dos textos do

ordenamento jurídico (processo de antecipação de sentido – co-pertença entre faticidade-

historidicidade do intérprete e Constituição-texto infraconstitucional). Ou seja, deve-se

entender a Constituição como fruto da tradição e “[...] detentora de uma força normativa,

dirigente, programática, e compromissária [...]”.360

É elementar que essa (nova) forma de compreender o mundo e o direito causa certas

resistências, sobretudo porque ela desafia a ilusória “certeza e segurança” do conhecimento do

período moderno361. Essa observação é também de Bauman, para quem “[...] a chegada de um

estranho tem o impacto de um terremoto... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa

a segurança da vida diária. [...]”362 A chegada do novo (hermenêutica filosófica) impacta,

especialmente pelo medo do desconhecido (proposta) e pela ausência de uma cultura de

reflexão sobre o conhecimento, presente por aqui.

3.3.2 Valorização do ser, linguagem e compreensão: pressupostos de uma resposta adequada

Heidgger e Gadamer, através da hermenêutica filosófica, trazem o sujeito para o

centro do processo. Ele é um “[...] ser-vivente, que compartilha uma experiência. Um ser

histórico, que se projeta no seu próprio acontecer. [...]”. A consciência histórica é abertura

para o processo hermenêutico. “[...] A pré-compreensão é que viabilizará o projeto da

compreensão, que por sua vez se constrói pela interpretação. Um movimento circular, de

360 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 209-209. 361 A “[...] ciência moderna seguiu o princípio da dúvida cartesiana de não aceitar por certo nada sobre o que exista alguma dúvida, junto com a concepção do método que corresponde a essa exigência. [...]” GADAMER, 2007, p. 361. 362 BAUMAN, 1999, p. 19.

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constante aprimoramento.”363

A hermenêutica filosófica constitui-se numa verdadeira revolução para a

compreensão do mundo364 e do direito. Ela põe em “cheque” a maneira tradicional de

interpretar o direito – rompendo com valorizações excessivas do procedimento – para buscar

uma verdade autêntica. No sentir de Streck, a partir das contribuições de Heidgger e Gadamer,

a Hermenêutica jurídica transforma-se de modo a superar os paradigmas metafísicos

objetivista (aristotélico-tomista) e subjetivista (filosofia da consciência).365

Por outro lado, as construções epistemológicas, frutos da tradição autêntica, não são

dispensadas pela hermenêutica filosófica porquanto constituem tradição histórica que faz

parte da compreensão do intérprete enquanto ser-no-mundo.

As teorizações sobre o direito (e suas disputas teóricas), construídas ao longo da

história, formam um tecido conjuntural – saber jurídico – que não pode ser ignorado. Os

conteúdos levados ao futuro – como cultura jurídica (berço para novas definições) – podem

ser chamados de continuidades significativas.366 A Constituição é condição de possibilidade

porque ela é produto de um processo compreensivo. A interpretação surge a partir de um

fundamento sem fundo, ela se dá a partir do modo de ser-no-mundo. Ou seja, a Constituição

não pode ser considerada categoria fundante (não se funda um ente em outro), embora seja

strito sensu fundamento de validade do ordenamento jurídico. Ela faz parte de um modo da

existência. “A lei é uma parada; a própria Constituição o é, em um nível superior, enquanto

‘matriz de sentido’; a interpretação vinculante igualmente é produto de uma parada – só que

entificativa.” Ocorre que essa parada não é definitiva – como entende Kelsen a partir da

norma fundamental – “[...] é a historidicidade da tradição que sustenta a historidicidade dos

textos [...]”, inclusive os constitucionais. A Constituição, dessa forma, é um ‘como se’

enquanto existencial, “[...] é um ser (no seu ente) que se essência como fundante [...] Funda,

pois, sem ser fundamento!” Ela é espaço no qual se dá o sentido e faz parte do modo-de-ser-

no-mundo do intérprete.367

363 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. O princípio da proporcionalidade sob uma perspectiva hermenêutica e argumentativa. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 230-231. 364 Antes de ser uma forma de compreender e interpretar o direito, a hemenêutica filosófica, a partir da fenomenologia, é uma forma (ainda) diferente de ver o mundo como um todo e compreender-se nesse contexto. Daí porque, a hemeneutica como base teórica não nasce no (e para o) direito, mas sim é posteriormente “transportada” para o mundo jurídico. 365 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 366 SALDANHA, 2003, p. 269. 367 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 228-234.

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A Constituição aparece para o jurista como compilação de conquistas históricas do

povo – principalmente na proteção dos direitos fundamentais – e contato com a tradição

histórica social. Também, a construção epistemológica jurídica que leva em consideração a

Constituição constitui pré-compreensão – condição de possibilidade – para uma adequada

compreensão totalizante do intérprete.

Isso representa um salto qualitativo para o direito, especialmente no aspecto

contribuição social – contatos com a realidade. É o que aponta Saldanha: o direito ganha

concreção (torna-se real – realiza-se) quando da incidência das regras sobre os casos –

processo pelo qual as regras tornam-se inteligíveis em um novo sentido.368

A hermenêutica filosófica possui caráter crítico na medida em que prova a existência

de uma verdade não mediada metodicamente (arte, história e linguagem). Ela corrige o

pensamento das ciências do espírito sobre si mesmas.369 A hermenêutica jurídica rejeita

qualquer tentativa de subsunção ou dedução370. Ela supera o problema dos métodos (porto

seguro do pensamento exegético-positivista) e insere-se no pensamento pós-metafísico.

Assim, “[...] epistemologia é substituída pela ontologia da compreensão [...]”, entendida não

como procedimento ou modo de conhecer, mas sim como modo de ser. 371

A leitura hermenêutica inverte o estudo da estrutura do sentido (discurso apofântico,

lógico) – como ele se dá: desse ou daquele modo – para o sentido da estrutura (em que

perguntamos algo sobre o mundo – filosofia: discurso sobre o mundo nas estruturas; e não no

mundo – ciência: objetos/estrutura no mundo). Os olhos da analítica e do discurso lógico, a

partir da visão do positivismo estruturalista, partem da idéia do lógico e de estrutura e não se

perguntam sobre o sentido da estrutura.372

O sentido da estrutura é o que se tem de fundamental para o compreender e para

produzir respostas – verdade – e não um discurso das estruturas do conhecimento dispostas ao

jurista, por mais elaborado que seja. A partir do entendimento sobre o compreender – como

ele se dá – é que será possível refletir sobre a autenticidade das pré-compreensões (só que

com efeitos para o futuro, porquanto na resposta para aquele caso compreendido já atuaram os

368 SALDANHA, 2003, p. 295. 369 STEIN, 2004, p. 82. 370 A partir da filosofia hermenêutica verifica-se que é impossível a subsunção e a dedução, porque o mais universal e vazio dos conceitos é o de ser e por isso mesmo dispensa definição – resiste a toda tentativa. É possível visualizar, compreender, escolher – atitudes do questionamento – modos de ser de determinado ente. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 199-200. 371 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 433. 372 STEIN, 2004, p. 31-33.

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pré-juízos – junto com o intérprete – na produção da verdade).

Na hermenêutica clássica estava ausente uma visão de totalidade. A filosofia traz a

possibilidade de descrição do mundo, expresso na frase de Gadamer ‘Ser que pode ser

compreendido é linguagem’. Portanto, a idéia de totalidade. A hermenêutica amplia o

conceito de método – totalidade – caráter especulativo. Ela aponta três procedimentos: a)

história conceitual (conceitos de um campo científico); b) elemento epistemológico – contexto

da descoberta e da justificação; c) especulação – distinta das pretensões lógico-analíticas.373

A questão fundamental do direito é compreender que fundamentar não é um

problema da metodologia – procedimento de argumentação – mas sim de um modo de ser

porque hermenêutica é filosofia e não regras de procedimentos metodológicos em que

raciocinariam os juristas.374 “A interpretação substitui, aqui, uma análise lógica e semântica do

texto, justamente pelo fato de a interpretação pretender dar conta da diferença entre

particularidade e sistematicidade. [...]” Porém, essa singularidade não deve ficar isolada ou

separada da sistematicidade. Elas devem resultar em totalidade.375

É daí que advém o caráter inovador e revolucionário da hermenêutica filosófica,

porque o jurista percebe que as atividades que ele desenvolve no seu mundo epistemológico

são insuficientes para oferecerem respostas adequadas. Ele passa a rever o seu atuar e

compreende que os métodos que ele sempre aprendeu e vem aplicando não satisfazem uma

idéia de totalidade. Ao contrário, a sua preparação – conformação de suas pré-compreensões –

é determinante para o ato de interpretar/aplicar o direito.

A linguagem tem lugar de destaque na hermenêutica filosófica porque é a partir dela

que o homem chega ao mundo e relaciona-se com ele. Todos os objetos significam – fazem

sentido376 – porque há linguagem. Na afirmação de Stein, toda aproximação com o objeto

pressupõe mediação pela linguagem – todo saber se dá pela linguagem.377 No mesmo sentido

reafirma Saldanha: “[...] Tudo no mundo (no mundo humano) são significações, e portanto

todo pensar é hermenêutico: tudo depende de como interpretar. E daí símbolos, códigos,

signos, linguagens. [...]”.378 Por fim, as palavras de Gadamer: “[...] na linguagem é o próprio

373 STEIN, 2004, p. 102-105. 374 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 75. 375 STEIN, 2004, p. 97. 376 O sentido é o ponto fundamental da hemenêutica porque “A filosofia não trata de objetos, mas trata do modo como os objetos se dão [linguagem], trata das condições de possibilidade. [...]” Toda experiência é medida pela linguagem. Ibidem, p. 23. 377 Ibidem, p. 16. 378 SALDANHA, 2003, p. 220.

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mundo que se apresenta. [...]” Ela abrange todo o ser em si e precede a tudo quanto pode ser

reconhecido e interpelado como ente. A relação entre mundo e linguagem não significa “[...]

que o mundo se torne objeto da linguagem. Antes, aquilo que é objeto do conhecimento e do

enunciado já se encontra sempre contido no horizonte global da linguagem. [...]” Assim, “[...]

o caráter de linguagem da experiência humana de mundo como tal não tem em mente a

objetivação do mundo.”379 Diante de tais pressupostos, a importância da linguagem é evidente,

principalmente porque através dela as pré-compreensões são possíveis e as compreensões do

sujeito são expressas.

O homem acessa os objetos de modo indireto através do significado. Chegamos a

algo, mas enquanto algo. Conhecemos o objeto enquanto significado (cadeira para sentar) e

não o conhecemos em sua plenitude do ponto de vista lógico. O objeto significa algo. O

acesso é somente via significado. E também é assim com os enunciados e com o mundo. Dos

enunciados não interessa o modo gramatical, fonológico ou semântico, mas sim o que

representa (significado) – linguagem enquanto linguagem: tarefa da filosofia (como

apofântico380 – do discurso). O mundo e a compreensão têm a estrutura de algo enquanto algo

(filosofia é sempre hermenêutica), pois através da linguagem tem-se um elemento lógico-

formal, que manifesta as coisas na linguagem e um prático, que é nossa experiência de mundo

anterior à linguagem – só expresso via linguagem (como e logos hermenêutico).381

A linguagem representa o objeto – significado sob o aspecto descritivo – mas não o

apresenta na sua totalidade porque há também o sentido do objeto no mundo prático – real –

do sujeito.

Também, a linguagem não abarca tudo, algo sempre escapa – sempre sobra algo que

eu não posso falar. Assim, a partir da fenomenologia hermenêutica “[...] somente posso falar

sobre aquilo que consigo compreender.”382 Na afirmação de Gadamer “[...] O ser que pode ser

compreendido é linguagem”.383

Assim, a linguagem possibilita o acesso ao mundo e a compreensão do ser depende

de uma conformação histórica – pré-compreensões – que o sujeito não domina, o antecede. A

379 GADAMER, 2007, p. 581. 380 As teorias da argumentação formam apenas standards de recionalidade analítica – restringem-se ao como apofântico, meramente manifestativo-argumentativo-lógico. Elas pensam que trabalham no primeiro nível de racionalidade – compreensão – quando estão no segundo nível que é lógico-argumentativo. O como de primeiro grau é hermenêutico – standard de racionalidade. STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 74. 381 STEIN, 2004, p. 20-21. 382 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 80. 383 GADAMER, 2007, p. 612. (grifo do autor).

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hermenêutica filosófica fundamenta a produção do sentido na compreensão de mundo do

sujeito, que se apresenta pela linguagem e é produzida num acontecer384 não manipulável.

Construímos nosso mundo a partir de significações e sentidos pré-selecionados –

mundo pré-fabricado. O mundo ao qual ingressamos possui grande quantidade de aspectos

não conscientemente notados e que não precisam de qualquer esforço ativo “[...] para estarem

invisivelmente, mas tangivelmente, presentes em tudo o que fazemos – dotando desse modo

os nossos atos, e as coisas sobre as quais agimos, de uma solidez de ‘realidade’.”385 Heidgger

fala em hermenêutica da faticidade porque, “[...] somos um modo de ser no mundo e não

apenas descreveremos coisas no mundo.” O modo como chegamos ao sentido é antecipado

por uma estrutura trazida pelo Dasein386 (ser-aí, homem) e a compreensão desse sentido

permite o discurso e a linguagem. “[...] Não há compreensão do homem na linguagem sem

compreensão do ser ou compreensão da totalidade.” Ele descreve o ser humano como ser-no-

mundo, acrescentando um aspecto prático que é o compreender da totalidade formando-se a

estrutura da circularidade na medida em que já sempre somos mundo e projetamos mundo.

Assim, podemos descrever a estrutura do sentido, mas também perguntamos pelo sentido da

estrutura.387 “[...] Na expressão acontecer da verdade está o elemento da faticidade [...]”

presente no segundo Heidgger porque o processo de compreensão do ser é limitado por uma

história do próprio ser- acontecer da verdade. Assim, “[...] Nós nunca somos um puro projeto,

porque já sempre somos projetados. Isso é faticidade que já está determinada, por condições

anteriores à compreensão do ser, ao projeto da compreensão. [...]”388

O sentido só é possível a partir da compreensão do ser. Ele “[...] se articula

simbolicamente. [...] A compreensão do ser pertence ao modo de ser deste ente que

denominados Dasein. [...]”. “[...] O Dasein já é sempre e constitutivamente relação com o

mundo antes de toda distinção artificial entre sujeito e objeto. O conhecimento [...] [é] a

elaboração da constitutiva e originária relação com o mundo que o constitui. [...]”. A idéia do

384 “Compreender se apresenta não tanto como um agir do intérprete, mas muito mais como um acontecer no qual estão inseridos o intérprete e o objeto da interpretação. [...]”.STEIN, 2004, p. 82. 385 SCHÜTZ apud BAUMAN, 1999, p. 17. 386 “[...] o homem será visto como Dasein, em que o Da indica o caráter intuitivo, sensível e temporal (Zeit), e o Sein indica o caráter o caráter inteligível, o ser (Sein). [...] O Dasein é ser-no-mundo, esse é o como do homem, que deve resolver a questão da temporalidade como uma das características fundamentais do ser-no-mundo, enquanto passado-presente-futuro.” STEIN, 1997, p. 106-107. “[...] A compreensão que o Dasein tem de si mesmo e que nasce da compreensão do ser, significa dizer que o mensageiro já vem com a mensagem. No conto está o contador. [...]”. A compreensão faz parte do modo de ser-no-mundo e está presente na própria estrutura do ser humano (Dasein) – toda interpretação se funda na compreensão. STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 198; 201. 387 STEIN, 2004, p. 66-67. 388 Ibidem, p. 75-76.

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conhecimento como articulação de uma pré-compreensão originária Heidgger chama de

círculo hermenêutico.389 A circularidade hermenêutica pressupõe que “[...] Já sempre

compreendemos enquanto compreendemos o todo. O contrário também vale: enquanto

compreendemos o todo, já sempre nos compreendemos.” Por essa razão não há como separar

sujeito e objeto porque “[...] no fato histórico, já sempre estamos de certo modo, mergulhados,

não podemos ter uma distância total, como na observação de um fenômeno físico. [...]”390 Há

um ganho sob o aspecto gnosiológico (relação direito e realidade) proporcionado pelo círculo

ou espiral hermenêutico: “[...] o intérprete-aplicador terá que efectuar tantas idas e vindas

entre o pré-entendimento e o entendimento em si quantas as necessárias para a sua

integração.”391

A idéia de conhecimento como articulação de uma pré-compreensão é chamada de

círculo hermenêutico. Compreensão é o ser. O Dasein é pré-ontológico, pré-domina o

processo de compreensão e assim a compreensão é existencial. “[...] Dasein significa o local

onde o ser ocorre, a abertura na qual a presença acontece [...] nem a temporalidade (ausência,

nada), nem o ser (presença, automanifestação) são um ente. [...]” A compreensão é parte do

ser-no-mundo – presente na estrutura do ser humano. Ela antecipa qualquer explicação lógico-

semântica – não no sentido temporal, cronológico – e é explicada através da linguagem – que

é acesso ao mundo, totalidade, abertura, enfim, condição de possibilidade.392

O compreender é uma qualidade do ser humano que provém do ser humano e

apresenta-se de dois modos: o compreender de uma proposição e o compreender anterior

(espécie de posse prévia do sentido). Assim, “[...] compreender significa ao mesmo tempo

uma qualidade que tenho para comunicar, dizendo algo compreensível e compreendendo

aquilo que é dito e um modo de existir como o existencial compreensão.” A proposta

hermenêutica não pretende criar uma nova linguagem, mas um método que trata de dois

focos: velamento e desvelamento, o que não significa uma ruptura com a lógica (que continua

a tratar da estrutura da proposição), mas pretende qualificá-la. Heidgger chama o

compreender de uma proposição de logos apofântico (que se manifesta na linguagem) e o

compreender existencial (enquanto somos) de logos hermenêutico393. Assim, pode-se falar de

389 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 199-201. 390 STEIN, 2004, p. 45. 391 CORDEIRO, 2002, p. LXI-LXII. 392 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 192-196. 393 No logos hermenêutico – sentido da compreensão que antecede as proposições (logos apofântico) – não se separa sujeito e objeto porque há uma união que possibilita a compreensão enquanto elemento hermenêutico. STEIN, 2004, p. 31.

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duas verdades, uma como propriedade das proposições e outra como fundamento da verdade,

que se pode chamar de sentido que fundamenta as proposições (antecede ao discurso lógico),

que é condição de possibilidade da primeira.394

A verdade é uma manifestação do ser pelo compreender (modo de ser) e não uma

questão de conhecer – utilização do método – (a epistemologia é substituída pela ontologia).

A “[...] vida é história, onde o próprio ser se desvela no horizonte da temporalidade. O

próprio ser é tempo. [...] Hermenêutica é, assim, existência, sendo a verdade a verdade do

enunciado. Verdade será, assim, des-velamento, desocultação [...]” que possibilita a revelação

do ente – verdade ontológica (“[...] Desvelamento do ser, é, sempre, verdade do ser do ente

[...]”).395

Enquanto as teorias da argumentação afirmam que o fundamento para a

interpretação está no discurso396 – método, a hermenêutica filosófica afirma que a

compreensão é o fundamento da interpretação. Assim, a hermenêutica filosófica desvela um

nível anterior de racionalidade não percebido pelas teorias da argumentação. Enquanto a

hermenêutica de caris filosófica trabalhar no nível 1 (algo como algo), as teorias da

argumentação trabalham no nível 2 – discurso (elemento lógico-formal).

Dessa forma, a compreensão do intérprete é determinante na produção do sentido.

Essa compreensão não é algo que se “fabrica” ou se constrói à discrição do ser, mas é algo

que se apresenta como compreensão de totalidade.

Em Heidgger o ser humano tem as três estruturas do tempo: passado, presente e

futuro. Ele não dá conta do passado e do futuro. Há uma limitação do compreender trazida

pela história – sempre chegamos tarde. Somente depois do acontecido, do fato determinado

pela história e pela cultura é que compreendemos. Somos um projeto já projetado, um jogo

que já sempre foi jogado. Gadamer, a partir dessas idéias (presentes em Ser e Tempo e

levadas para Contribuições para a filosofia) “[...] faz uma passagem da situação hermenêutica

para o acontecer da verdade.[ 397]”398

A história é determinante para o compreender porque ela não pode ser manipulada 394 Ibidem, p. 28-30. 395 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 207. 396 O equívoco das teorias da interpretação é praticar a subsunção a partir das conceitualizações (significantes-primordiais-fundantes). Estabelecem regras para interpretação e metacritérios para solução de conflitos entre princípios. STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 432. 397 Gadamer afirma que “[...] Na medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verdade e quando, de certo modo, queremos saber no que devemos crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde.” GADAMER, 2007, p. 631. 398 STEIN, 2004, p. 69.

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pelo intérprete mas sim se manifesta no ser e é exteriorizada pela linguagem.

A história está ligada a compreensão de fatos pretéritos e de fatos do presente. “A

intenção da investigação hermenêutica é aproveitar-se do círculo hermenêutico [...] para

permitir que o intérprete seja um mediador entre o texto e a totalidade nele existente. [...]”.399

A hermenêutica da faticidade quer dizer que “[...] a interpretação do mundo é a

interpretação da condição fática do ser no mundo. Mas o elemento da faticidade também se

refere à faticidade enquanto ela é a soma de todos os elementos históricos, elementos culturais

nas quais estamos enraizados na história humana. [...]” A interpretação se apresenta onde

ocorrem os elementos da faticidade.400

A atitude hermenêutica está ligada ao processo histórico, porque o intérprete, a partir

da pré-compreensão das coisas e fatos do passado, consegue aplicação ao presente ou futuro.

“A hermenêutica cria a possibilidade de entendimento das mensagens históricas. [...]” Permite

a mediação entre a tradição histórica e o que está a pesquisar. A consciência histórica e sua

ligação com a hermenêutica permite “[...] que o novo venha à luz por intermédio do antigo –

passado-presente-futuro –, o que possibilita que a linguagem seja o fundamento de tudo.

[...]”401 O entendimento das coisas depende da compreensão de padrões históricos, aplicando-

se a arte e as formas de organização em geral e do pensamento. Toda ordem (social, política,

jurídica) acontece como experiência histórica e o seu conhecimento “[...] implica uma

referência às exemplaridades nelas contidas: categorias, princípios, valores, formas

normativas, tudo o que vai além do singular puramente empírico, sem todavia ser puramente

abstrato.”402

Assim, a história representa a ligação para o desvelar do novo. É por ela que o

intérprete compreende e produz o sentido.

Dessa forma, é a nossa condição-de-ser-no-mundo que determina o sentido do texto

e não o método que se utiliza, pois “[...] para interpretar, necessitamos compreender. Para

compreender, temos que ter uma pré-compreensão [...], constituída de estrutura prévia403 do

399 SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Hermenêutica filosófica: história e hermenêutica na obra de Hans-Georg Gadamer. In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes (org.). Hermenêutica e argumentação: em busca da realização do direito. Ijuí: Unijuí. Caxias do Sul: Educs, 2003, p. 17; 32-33. 400 STEIN, 2004, p. 74-75. 401 SPAREMBERGER, 2003, p. 34-35; 37. 402 SALDANHA, 2003, p. 223. (grifo do autor). 403 Para Gadamer, “[...] A compreensão só alcança suas verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. Por isso, faz sentido que o intérprete não se dirija diretamente aos textos a partir da opinião prévia que lhe é própria, mas examine expressamente essas opiniões quanto à legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez.” GADAMER, 2007, p. 356.

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sentido [...]”, que se funda, essencialmente, em uma posição prévia, uma visão prévia e

concepção prévia.404 A estrutura do nosso modo de ser no mundo é a interpretação405. Assim, a

norma (síntese hermenêutica) é produto de uma compreensão – que é existencial – a partir da

faticidade e historicidade do intérprete. A partir da fusão de horizontes é que se dá o ato de

interpretar.406

Gadamer explica que a “[...] interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente

complementar à compreensão. Antes, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a

interpretação é a forma explícita da compreensão [...]” que está relacionada a posição central

que ocupa a linguagem na filosofia.407

O conceito de interpretação está contido no conceito de hermenêutica. Ela visa a

produção de sentido a partir de signos, possíveis através da compreensão do sujeito. Não basta

o acoplamento entre texto e caso – subsunção formal. É preciso interpretar o texto – dar

sentido a ele – a partir da compreensão (possibilidade fenomenológica).

Gadamer foi quem elaborou uma crítica consistente à concepção tradicional de

interpretação realizada em partes – compreender – interpretar – aplicar. A não cisão entre os

“atos interpretativos tradicionais” – que se resumem em aplicatio – leva o interprete a

impossibilidade de chegar a algo que o texto possui em-si-mesmo. Segundo ele, não é possível

se extrair sentido, mas somente atribuir sentido.408 Assim, direito é concretude – faz parte do

próprio caso.

Deve-se ter cuidado com a expressão aplicação do direito porque ela pode sugerir

que o direito é uma realidade distinta de sua aplicação – algo que se aplica ou não. Ela deve

ser entendida, assim como a interpretação, como um momento da realidade do direito.409 Para

além da afirmação de que o direito é concretude – cada caso é um caso – é preciso entender, o

que não é evidente, que “[...] o processo interpretativo é applicatio, entendida no sentido da

busca da coisa mesma (Sache selbst) [...]” (diferença ontológica). O direito integra o próprio

caso e o caso o direito – “[...] impossível cindir a compreensão da aplicação. [...]”.410 Afirmar

404 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 197-198. 405 Heidgger atribui à pré-sença atributo privilegiado do ente que se compreende pela sua abertura prévia a possibilidades. O mundo serve de contexto e referência para compreensão. O “[...] sentido consiste na ‘perspectiva em função da qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia’. A interpretação, assim, corresponderá à forma como a compreensão se apropria do que se compreende, a partir da totalidade conjuntural [...]”. CAMARGO, 2005, p. 218-220. 406 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 407 GADAMER, 2007, p. 406. 408 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 409 SALDANHA, 2003, p. 270. 410 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 432.

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que há separação entre interpretação e aplicação do direito corresponde ao equívoco de

entender a interpretação como mero ato de subsunção.411

O processo interpretativo não se dá em partes, pois a interpretação é sempre aplicar.

Interpretar não é um ato reprodutivo onde o sentido é desacoplado do texto, mas é um ato de

produzir sentido. Segmentar o processo interpretativo em etapas é crer na metodologia –

paradigma epistemológico da filosofia da consciência. É um equívoco – próprio da filosofia

da consciência – pensar que interpretar é extrair da norma tudo que dela contém para busca de

seu verdadeiro sentido. O sentido já vem antecipado pela pré-compreensão porque

hermenêutica é condição de ser no mundo e existência.412

A interpretação substitui a análise lógica e semântica do texto, pois pretende dar

conta da diferença entre particularidade e sistematicidade. A questão principal é “[...]

Perceber que o dar conta da singularidade incorpora a singularidade na própria interpretação,

mas de tal maneira que a singularidade não seja isolada e separada da sistematicidade e que

elas resultem num tipo de totalidade.”413 “A questão do imbricamento entre o sujeito e objeto

no confronto com um texto a ser interpretado constitui exatamente o imbricamento dessa

singularidade com a sistematicidade e de uma singularidade que não é só do texto, mas o é do

leitor.”414 “[...] A interpretação, pois, consubstancia uma operação de mediação que consiste

em transformar uma expressão em uma outra, visando a tornar mais compreensível o objeto

ao qual a linguagem se aplica. [...] Da interpretação do texto surge a norma [...]”.415

A interpretação implica compreensão de um texto original. Para compreendermos

algo é necessário que se tenha um conhecimento anterior facilitado pelo texto. Daí advém a

importância da consciência histórica.416 No direito, a interpretação “[...] implica um

conhecimento pré-compreensivo da ordem dentro da qual ocorre o ato, ou vigora a norma. A

referência à ordem é organicamente necessária para a visão adequada dos contornos do objeto

que se interpreta. [...]”417

A interpretação, a partir da hermenêutica filosófica, nunca será reprodutiva porque o

sentido da(s) palavra(s) não se encontra previamente dado pela lei. Toda interpretação é

411 GRAU, Eros Roberto. Eqüidade, razoabilidade, proporcionalidade e princípio da moralidade. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 21. 412 STRECK, 2003, p. 68-69; 73. 413 STEIN, 2004, p. 97. 414 Ibidem, p. 97. 415 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 207. 416 SPAREMBERGER, 2003, p. 18. 417 SALDANHA, 2003, p. 266.

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produção, ou seja, a partir da faticidade do intérprete, que é ser-no-mundo, o sentido exurgirá.

Esse momento – tempo – é único e considera a totalidade.

Textos filosóficos e das ciências humanas não têm caráter museológico. Para sua

validade eles precisam ser lidos e interpretados em diversas épocas. Essa é uma marca da

visão hermenêutica. O sentido nunca toma estrutura definitiva e por isso existe um processo

que comanda o sentido. Suprimir o elemento histórico e analisar o sentido somente em

estruturas elimina o sujeito. Assim, “[...] A historicidade estaria morta e teríamos no fim um

imenso museu de estruturas.”418

As palavras são plurívocas e não unívocas. O sentido origina “[...] de um processo

de compreensão, em que o sujeito, a partir de uma situação hermenêutica, faz uma fusão de

horizontes a partir de sua historicidade. Não há interpretação sem relação social.”419

Para Streck o processo hermenêutico deve ser um interpretar constante, ou seja, o

sentido deve ser atribuído a cada momento. Essa é a postura adequada de uma nova

hermenêutica para vivificar o texto constitucional com base no Estado Democrático de

Direito. Essa postura é de produzir o sentido e não simplesmente reproduzir.420 Hesse também

considera que as mudanças fáticas devem mudar o sentido normativo e afirma que “[...] A

interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido

(Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada

situação”.421

No direito a linguagem (texto) é utilizada para regular comportamentos sociais a

partir de uma pretensa definição pré-estabelecida dirigida ao homem comum. A utilização de

palavras para descrever comportamentos exigidos ou proibidos funciona como signos

lingüísticos a serem decodificados pelo intérprete a partir da compreensão – ser no mundo –

que é um ato de produzir e nunca reproduzir.

Os sentidos são temporais, o que impossibilita sua reprodução. Eles são atribuíveis a

partir da faticidade do intérprete – interpretar é existência, concretude. Da compreensão (que

não é conhecer, mas é modo de ser) surge a interpretação que não depende de método. A

418 STEIN, 2004, p. 95-96. 419 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 19. 420 STRECK, 1998, p. 64. 421 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 22-23.

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hermenêutica da faticidade (fenomenologia hermenêutica) possibilita um salto da

epistemologia da interpretação para a ontologia da compreensão.422

A clareza literal do texto legal é uma ilusão, pois não se pode conceber, como

defendem os metafísicos (nas suas variadas versões), que haja fixação de sentido a priori. É

lingüisticamente impossível estabelecer um comando dispensando-se sua decodificação a

partir da compreensão dada pelo ser e, por essa razão, todo texto demanda interpretação –

produção de sentido.

O texto apresenta uma dimensão gramatical que não pode ser ignorada423, porém isso

não significa dizer que a interpretação do direito está adstrita à literalidade. Interpretar é

produzir sentido a partir de um sentido básico definido pelo legislador em certo momento

histórico, que se torna atual na medida em que há confrontação do problema (caso concreto).

Não é possível a crença da completude a partir da descrição legal, ainda que o legislador se

valha de expressões “abertas”. Todo texto precisa ser interpretado de acordo com o momento

vivido.

A jurisprudência (com maior gravidade sob a forma de súmulas vinculantes) tem

exercido um papel na contramão do produzir. Elas têm a pretensão de fixar sentido a priori –

antecipado – porque querem encontrar respostas idênticas para casos pretensamente

semelhantes.

Nesse sentido Streck denuncia que no plano hermenêutico a jurisprudência tem

contribuído para a “[...] petrificação dos sentidos jurídicos, a partir da criação de significantes-

fundantes, que impedem, inexoravelmente, o aparecer da singularidade dos casos

particulares.” Elas retiram a autonomia dos juízes e isso é um preço alto demais para se pagar

em nome do desafogo dos processos.424

Esse problema pode ser solucionado pela rejeição das jurisprudências – súmulas

vinculantes, na medida em que elas também são signos lingüísticos e a determinação da

semelhança com os casos fica a cargo do interprete. Os pré-juízos autênticos do intérprete

farão toda a diferença entre aplicar ou rejeitar a jurisprudência como também faz na aplicação

422 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 66-67. 423 Segundo Gadamer, “Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar para ‘as coisas em si mesmas’ (que para os filólogos são textos com sentido, que tratam, por sua vez, de coisas). [...] [O] que importa é manter a vista atenta à coisa através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das idéias que lhe ocorrem. [...]” GADAMER, 2007, p. 355-356. 424 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 851-853.

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do direito. Ou seja, o problema não está na existência da jurisprudência, mas sim na forma

como ela é utilizada pelos juristas para solução dos casos concretos.

Dessa forma, a jurisprudência enquanto condição de possibilidade para interpretação

é positiva na medida em que amplia a visão de totalidade do intérprete, porém, é negativa

quando utilizada a partir do pensamento metafísico.

A hermenêutica jurídica esclarece que há uma diferença ontológica entre ser e ente,

superadora das concepções da hermenêutica clássica sobre texto e norma e vigência e

validade. Essa diferença tem o seguinte fundamento: “[...] o ser é sempre o ser de um ente e o

ente só é no seu ser. [...]” É o ser que existe para dar sentido aos entes. Dessa forma é possível

fugir às armadilhas de um positivismo arcaico que convive com a discricionariedade no ato

interpretativo (equiparação vigência e validade e cisão texto e norma).425

O decisionismo e a discricionariedade são afastados porque há um parâmetro legal a

ser observado e a compreensão do intérprete se dá a partir de valores que antecedem qualquer

discurso. Nesse sentido Gadamer ensina que: “[...] quem quer compreender um texto deve

estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. [...]”426 A lei427 verifica-se como um

critério de controle das arbitrariedades imprevisíveis, onde a sentença surge da ponderação

justa do conjunto. Daí pode-se falar em segurança jurídica.428

Assim, a partir da hermenêutica filosófica o decisionismo e as arbitrariedades são

eliminados, pois eu preciso de textos legitimamente construídos para produzir normas. A

segurança jurídica almejada será proporcionada porque na compreensão hermenêutica o texto

é levado em consideração a partir da visão de totalidade. Esse texto é também e

principalmente o Constitucional.

O Direito Constitucional escrito constitui-se numa limitação ao interprete, pois se

ignorar a Constituição ele não mais interpreta, mas rompe ou modifica a Constituição.429

Assim, pela compreensão hermenêutica, o intérprete introduz os valores ditados pelo Estado

Democrático de Direito – direitos fundamentais – no sistema normativo infraconstitucional. A

noção principiológica – valores fundamentais – traz uma nova realidade para o intérprete em

que os princípios – constitucionais e infraconstitucionais – possuem uma carga de valores

425 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 432. 426 GADAMER, 2007, p. 358. 427 A lei é sempre deficiente, porque frente ao ordenamento jurídico a realidade humana também é deficiente e não permite uma aplicação simples das leis. GADAMER, 1998, p. 474. 428 Ibidem, p. 489-490. 429 HESSE, 1998, p. 69-70.

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dirigida ao bem comum que passam a ditar o sentido produzido a partir de regras.

Interpretação conforme a Constituição é mais do que um princípio porque é um

princípio imanente a Constituição – todas as normas devem estar de acordo com a

Constituição. Se os Juízes negarem aplicação a esse princípio imanente estão negando

aplicabilidade a própria Constituição.430

A oxigenação constitucional é necessária para qualquer norma jurídica a fim de

aferir-se a Constitucionalidade material e formal. Isso pressupõe compreensão Constituição.431

A eficácia da Constituição Jurídica depende da realidade histórica. Ela possui elementos

normativos que ordena e conforma a realidade política e social. Essa força normativa depende

primeiramente da vontade de Constituição.432 Por sua vez, a vontade de Constituição (práxis

da Constituição) depende da consciência dos responsáveis pela ordem constitucional, não só a

vontade de poder.433

Nesse sentir, a implementação e valorização da Constituição e de seus preceitos

fundamentais dependem muito mais de uma atitude dos profissionais jurídicos do que

propriamente de uma teoria constitucional, ou seja, a Constituição é a reunião de valores que

clamam por efetivação a depender da percepção que os atores têm sobre a sua força

vinculante.

No Brasil, em face da baixa constitucionalidade e da inefetividade da Constituição

(que também é fruto da ausência histórica de um controle concentrado) é necessário pensar o

sentido da Constituição a partir da Teoria Geral do Estado, adotando-se uma postura

substancialista – destaque no Estado Democrático de Direito – em que a justiça Constitucional

deve ser “[...] intervencionista, no sentido de – no limite, isto é, na omissão do Poder

Executivo e do Poder Legislativo, e para evitar o solapamento da materialidade da

Constituição – concretizar os direitos fundamentais-sociais [...]”.434

Faz-se necessário superar o paradigma normativista de um direito liberal-

individualista para se ter claro que o texto constitucional é condição de possibilidade para

implantação das promessas da modernidade. Ele deve ser visto com substancialidade.435 No

Brasil essas promessas não aconteceram. O que houve foi um simulacro com negligência

430 HESSE, 1998, p. 61-75 apud STRECK, 1998, p. 62. 431 ROSA, 2006. p. 93. 432 HESSE, 1991, p. 24. 433 Ibidem, p. 19. 434 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 835-837; 843. 435 Ibidem, p. 844.

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social e modernidade tardia e arcaica, onde os incluídos nunca ‘estiveram tão incluídos e os

excluídos tão excluídos’. A república de fato não aconteceu por aqui, “[...] ex-escravos

continuam pobres, pobres não têm direitos, e são demais. [...]”436

Os responsáveis pela concretização Constitucional no Brasil, por estarem filiados a

um pensamento retrógrado pautado na crença da completude do direito e em falsas premissas

de segurança jurídica, deixam a desejar e o Estado Democrático de Direito brasileiro repete

tão somente as promessas liberais e sociais dos Estados anteriores.

Esse senso comum teórico dos juristas é uma manifestação inautêntica do direito

porque provoca o encobrimento do ser do Direito (véu do ser autêntico do direito) e aflora a

ausência de função social. Assim, “[...] olhamos o novo com os olhos do velho, com a

agravante de que o novo (ainda) não foi tornado visível. [...]”.437

É nessa tarefa de concretização do Estado Democrático de Direito que a

hermenêutica filosófica se coloca como condição de possibilidade. A partir dela concretiza-se

a realização do bem comum, com respeito aos valores democráticos e individualidade dos

casos.

A título de conclusão do capítulo, pode-se afirmar que o pensamento jurídico sobre a

aplicação do direito (e da Constituição) apresenta-se sob concepções positivistas,

neopositivistas (positivismo normativista), pós-positivistas, hermenêuticas e sistêmicas. No

primeiro caso, o direito constituiu-se (e ainda permanece – tradição não autêntica) em dever

de legalidade absoluto. O positivismo, em sua primeira versão, reproduziu a idéia do governo

das leis com a imperatividade necessária para frear o poder absolutista e provocou às

confusões entre lei e direito e completude do texto com a realidade dos casos. O

neopositivismo ou positivismo normativista, na tentativa de solucionar esses impasses, propôs

um sistema de regras e princípios, onde esse último funcionaria como filtro na elaboração das

regras e controle para a entrada no ordenamento jurídico. O pós-positivismo, aproveitando-se

das experiências anteriores aprimora a teoria dos princípios, estabelecendo métodos e

procedimentos, na tentativa de concretizar esses valores na aplicação do direito. A matriz

sistêmica procura compreender o direito a partir da sociologia – realidade social

complexificada pela globalização. Ela verifica-se atual porque leva em consideração a

436 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 2004, p. 25-26; 31. 437 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 217-219.

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existência de outras fontes de poder (e não só o direito). Por sua vez, a hermenêutica

filosófica produz uma ruptura com esses modelos por revelar outro nível de racionalidade que

antecede qualquer pretensão metafísica relacionada ao emprego de métodos ou procedimentos

na busca de respostas.

A viragem ontológica é marca da matriz hermenêutica filosófica porque desafia a

forma moderna de produção da verdade. Enquanto as teorias epistemológicas buscam

soluções a partir de métodos, a hermenêutica filosófica explica como o ser humano

compreende e interpreta.

A valorização do ser, a linguagem enquanto condição de possibilidade e a

compreensão são fatores que impulsionam o caráter transformador da hermenêutica filosófica,

em oposição à hermenêutica tradicional.

Como síntese, a viragem lingüística rompe com o paradigma metafísico e da

filosofia da consciência. A linguagem é condição de possibilidade e não uma coisa que se

interpõe entre um sujeito e um objeto. O processo interpretativo, que é um acontecer ocorrido

a partir da fusão de horizontes, torna-se produtivo e não reprodutivo (concepção clássica).438

“É mediante a hermenêutica, ou do círculo hermenêutico rico em conteúdo histórico, que se

permite uma conjugação entre o intérprete e seu texto para, a partir daí, transformá-lo numa

unidade de compreensão. [...]”439 Por isso, a hermenêutica jurídica está relacionada à crise do

conhecimento do início do séc. XX. As tentativas de se estabelecer regras e procedimentos

para interpretação a partir da objetividade ou da subjetividade “[...] não resistiram às teses da

viragem lingüístico-ontológica (Heidgger-Gadamer), superadoras do esquema sujeito-objeto,

compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da

desobjetificação [...]”, conseguida a partir do círculo hermenêutico e pela diferença

ontológica.440 Ela aceita a circularidade entre nós e o compreender que possibilita a

compreensão do ser.441

Na área jurídica os ganhos são significativos porque a noção de totalidade e a

compreensão hermenêutica possibilitam o cumprimento, pelos juristas, do seu papel na

concretização dos valores do Estado Democrático de Direito.

438 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2004, p. 197. 439 SPAREMBERGER, 2003, p. 19. 440 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 431. 441 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 34.

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Os direitos fundamentais historicamente sonegados nos modelos de Estado

anteriores ganham destaque na interpretação dos textos e assim a vontade constituinte é

resgatada com voz perante a sociedade e o direito.

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CAPÍTULO IV

4 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O COMPREENDER DAS JUSTIFICANTES E

EXCULPANTES PENAIS PARA UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL JUSTA E

DEMOCRÁTICA

As regras jurídicas impõem aos cidadãos sujeitos à jurisdição do Estado que as

produziu determinado comportamento através da criação de comandos normativos legais que

ditam padrões de conduta social442. Apesar de a regra jurídica impor o comando normativo de

comportamento, a vontade humana determina a forma do agir. Assim, a liberdade de escolha

– limitada pelas circunstâncias – está com o agente, manifesta pela vontade através de um

comportamento positivo ou negativo. Quando o sujeito escolhe não obedecer à regra, ele está

exercendo um ato de vontade e liberdade, ainda que ameaçado por sanção.

É condição para existência do delito – concepção analítica tripartida – que o ato de

vontade, exteriorizado pela conduta, possa ser reprovado segundo padrões normativos. Nesse

sentido Zaffaroni e Pierangelli lecionam que “[...] o homem é um ente capaz de

autodeterminar-se [...]” e daí decorre que não pode haver delito se não operar a condição de

reprovabilidade da conduta.443

Situação diversa são os atos involuntários444 porque fogem à liberalidade do agente.

442 O sistema normativo penal brasileiro está acometido de uma grave inflação legislativa provocada pela edição desmedida e oportunista de normatizações. O poder estatal utiliza-se do sistema penal para coibir comportamentos que outros ramos do direito não conseguiram solução. Há um desvirtuamento das finalidades do direito penal e inobservância do princípio da intervenção mínima (atuação fragmentária e subsidiária). Essa desmedida edição legislativa afeta o cidadão, gerando insegurança jurídica, a ponto de não se saber o que é permitido ou proibido. Da mesma forma, para o magistrado, que possui a incumbência do julgamento, a responsabilidade aumenta quando se pretende uma prestação jurisdicional justa. 443 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 6. edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 576. 444 “[...] ninguém censura os que são feios por natureza, mas censuramos os que o são por falta de exercício e de cuidado. [...]”. ARISTÓTELES, 2006, p. 67.

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Assim, eles não devem ser repreendidos pelo direito. No dizer de Aristóteles “[...] a virtude se

relaciona com paixões e ações, e apenas as paixões e ações voluntárias são louvadas ou

censuradas, ao passo que as involuntárias recebem perdão e às vezes compaixão [...]”.445

Dessa forma, os atos involuntários por receberem perdão e estarem sujeitos à compaixão no

plano valorativo social estão de acordo com o que se espera da conduta, não sendo possível a

norma jurídica impor repressão. Essas condutas, praticadas por uma vontade viciada446,

normalmente estão contemplados nos ordenamentos jurídicos penais como excludentes do

crime ou são consideradas como situações que rompem o nexo causal entre conduta e

resultado.

A imposição do comportamento, através da criação de regras, tem ligação estreita

com o princípio da legalidade que no direito penal soa com maior intensidade do que nos

demais ramos do direito. Porém, para se obedecer ao direito – e também ao princípio da

legalidade – os dispositivos legais precisam ser interpretados a partir da hermenêutica

filosófica. Então, há algo dito no texto e algo que precisa ser compreendido pelo intérprete a

partir da faticidade-historidicidade-pré-compreensões, enfim, da compreensão.

Nas situações do cotidiano moderno o determinismo – ato voluntário – nem sempre

está presente, o que demanda do jurista e do ordenamento jurídico uma análise cuidadosa dos

fatos e do direito para oferecer uma resposta penal adequada.

Não (re)existe mais a pretensão de completude dos ordenamentos jurídicos

fundamentados no pensamento positivista. As respostas estritamente legalistas verificam-se

insuficientes para os acontecimentos da vida moderna. Nesse diapasão, a demanda valorativa

precisou ser inserida no sistema de regras jurídicas, agora entendidos a partir dos princípios,

considerados os valores morais sociais, para interpretação/aplicação do direito de forma justa.

Uma reflexão hermenêutica é fundamental para resolução do problema da “supralegalidade”

em exculpantes e justificantes no direito penal brasileiro.

O juízo deve ser ampliativo (possibilidades) para questões que se colocam no caso

concreto e na totalidade (visão do todo), tais como condições sociais, circunstâncias

445 ARISTÓTELES, 2006, p. 56. 446 Mais polêmica é a responsabilidade penal a título de culpa, pois nesse caso o que se impõe ao sujeito é um dever de cuidado prescrito no ordenamento jurídico. De um lado, as sociedades modernas contêm informações que circulam em velocidade recorde e os relacionamentos sociais são intensificados, agussando situações de risco. De outro, os ordenamentos jurídicos penais estão “recheados” de comandos normativos que contemplam as mais variadas formas de comportamentos tidos como desviantes. O resultado inevitável é que determinadas pessoas com maior freqüência acabem por infringir dispositivos penais dessa natureza e o Estado acaba por penalizar o “azarado”, que sob as condições do risco, acaba por violar determinado tipo de injusto.

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temporais, ambientais, psicológicas entre outras, em busca de um direito mais justo, sem

descuidar da ameaça arbitrária e cair em decisionismos.

4.1 DIREITOS CHAMADOS SUPRALEGAIS NA TEORIA GERAL DO DELITO:

CULPABILIDADE COMO FUNDAMENTO DA PENA E SITUAÇÕES DE

INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA E ELIMINAÇÃO DA

ANTIJURIDICIDADE PELO CONSENTIMENTO DO OFENDIDO

O que se entende por direitos supralegais no direito penal brasileiro? É preciso

apresentar o que se tem falado (na teoria) e admitido (nos tribunais) como direitos supralegais

para caracterizar essas manifestações adequadamente e não incorrer no erro de julgar a partir

de uma terminologia (in)adequada.

As causas supralegais são assim denominadas devido à inexistência de previsão do

direito, em legislação infraconstitucional. Há dois entendimentos sobre o assunto. O primeiro

posicionamento é no sentido de refutar a aplicabilidade dos direitos supralegais porque se

entende que as excludentes encontram-se taxativamente enumeradas. O segundo é no sentido

da aplicação dos direitos supralegais, amparado pelo princípio da culpabilidade e adequação

social da norma.

Zaffarorni e Pierangelli consideram que o direito penal brasileiro não necessita

recorrer à supralegalidade, pois há causas justificantes perfeitamente estruturadas e que as leis

autorizam a decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

(art. 4º LICC). Apresentam como muito problemática a adoção de injustos supralegais, visto

que dão margem às arbitrariedades447 como as ocorridas no nacional-socialismo. Por outro

lado, reconhecem a inexigibilidade de conduta diversa como natureza última de todas as

causas de ausência de culpabilidade e por isso negam o caráter de supralegalidade, afirmando

que é inadequado o que foi sustentado pela doutrina, no início da teoria normativa, de que

existe causas legais e supralegais de inexigibilidade de conduta diversa.448

Bitencourt é da opinião que a partir do conteúdo material da antijuridicidade é

possível afastar a acusação de que se trata de um recurso metajurídico porque se recorre aos 447 Em decorrência da carência do Código Penal Alemão, datado de 1871, a doutrina alemã construiu uma teoria das causas de justificação ‘supralegais’, especialmente para o estado de necessidade justificante, hoje abandonada. ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 489. 448 Ibidem, p. 489; 558.

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princípios gerais do direito, à analogia ou aos costumes. A adoção não ofende o princípio da

reserva legal porque não se trata de injustos supralegais.449

Greco também considera as causas supralegais de exclusão da culpabilidade viáveis

porque “[...] aplicadas em virtude dos princípios informadores do ordenamento jurídico.”

Informa, ainda, que a legislação Alemã proíbe a utilização da inexigibilidade como causa

supralegal450, porém a brasileira não.451

Para Bitencourt, diante do caráter dinâmico da realidade social “[...] condutas

outrora proibidas adquirem aceitação social, legitimando-se culturalmente. [...]” Situações não

previstas pelo legislador devem, em princípio, ser consideradas para exclusão da

antijuridicidade452, embora haja certa resistência doutrinária (Zaffaroni e Hungria).453

O principal argumento daqueles que rejeitam os direitos supralegais é ofensa ao

princípio da legalidade, pois já se experimentou manifestações de direito alternativo numa

tentativa de aplicar as regras jurídicas com mais justiça social e foi uma experiência que

apresentou certos dissabores.

Principalmente na Alemanha, em meados do século XX, houve uma tendência de

repensar os limites da positividade do direito na tentativa de superar o legalismo restringente.

Após a Segunda Guerra o tema jusnaturalismo foi revisto buscando-se um conceito supralegal

de direito em que nas práticas judiciais foram aplicados componentes extralegais e de

princípios não positivados. Foram assim, “[...] René Marcic aludindo ao ‘direito natural na

judicatura’, assim Esser e Boehmer encontrando a eqüidade e outras formas não ‘legais’ de

direito na aplicação da ordem jurídica.”454

Na afirmação de Grau, o direito alternativo, apesar de suas boas intenções, carece de

referenciais teóricos suficientes e constitui risco à ocorrência de arbitrariedades, porque “[...]

449 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 11. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 306. 450 A partir da proibição, pela legislação Alemã, Jescheck afirma que a adoção implicaria “‘[...] debilitação da eficácia de prevenção geral que corresponde ao Direito Penal e conduziria a uma desigualdade na aplicação do Direito’”. Deve-se impor sacrifício ao afetado (mesmo em situações difíceis da vida), em nome da obediência ao direito pela sociedade. Wessels, apesar de apontar para o mesmo sentido – porque a aplicação seria vaga e indeterminada em seus pressupostos e limites, o que geraria insegurança jurídica – posiciona-se no sentido de que há quase unanimidade que, diante de casos excepcionais, possa-se adotar. JESCHECK; WESSELS apud GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 9. rev. ampl. e atual. v. 1. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 421-422. 451 Ibidem, p. 421. 452 Essa terminologia apresenta variantes como: excludentes de ilicitude, excludentes de antijuridicidade, causas de justificação, causas justificantes e causas de exclusão do crime. 453 BITENCOURT, 2007, p. 305. 454 WILKIN et al. apud SALDANHA, 2003, p. 297.

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pode vir a consubstanciar nada mais do que uma nova versão da velha regra que recomenda

tudo para os amigos, mas para os inimigos, nem mesmo os rigores da lei: a lei da vingança

privada. Valham-nos, contra isso, o procedimento legal e a legalidade.” 455

A legalidade na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito é necessária. Os

Estados não podem dispensar a previsibilidade do legislador, ainda mais quando se tem uma

Constituição recheada de garantias fundamentais que suplicam por implementação.

Apesar de o Estado Democrático de Direito ser um Estado que supera os modelos

Liberal e Social ele não suplanta as conquistas dos modelos anteriores, porquanto o risco das

arbitrariedades (co)existem em nossos tempos, senão com maior freqüência do que outrora.

Por isso, e visando minimizar os riscos da arbitrariedade, Ferrajoli defende que “[...]

a lei não pode qualificar como penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de

desvio, mas somente comportamentos empíricos determinados, identificados exatamente

como tais e, por sua vez, aditados à culpabilidade de um sujeito.” Na atividade jurisdicional,

diferentemente de outras atividades públicas, a lei predetermina as formas e também os

conteúdos.456

Necessário também é considerar que na forma de leis os Estados e as classes sociais

encontram sustento para seus reinados à custa dos alienados por aspectos econômicos e

culturais. Nesse sentido Grau afirma que “O Estado autoritário [...] inúmeras vezes se

manifesta travestido de ‘Estado de Direito’. Sob a aparência de sujeição ao ‘domínio da lei’

atua um Estado que lança mão da legalidade como instrumento de opressão e opróbrio.

[...]”457

A adoção de uma supralegalidade no direito importa problemas a começar pelo

próprio nome, porque pressupõe que o direito seja entendido como conjunto de regras e

princípios como mandatos de otimização458 – situação já superada pela compreensão a partir

dos (pré)juízos Constitucionais que formam a visão de totalidade do intérprete.

Por outro lado, é preciso dizer que na seara de exculpantes e justificantes não se trata

de incriminação de condutas, mas sim de situações de justificação delas perante o

455 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 157. (grifo do autor). 456 FERRAJOLI, 2006, p. 39; 47. 457 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 168. 458 Por trás daqueles que consideram os princípios como meros mandatos de otimização está um projeto positivista que pretende resgatar a abstratividade da regra e afastar a razão prática dos princípios. Estes afasam a discricionaridade judicial pois a resposta a partir deles é dada pela compreensão (problema hermenêutico) e não pela fundamentação (análise procedimental). STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 145.

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ordenamento jurídico. Aqui o princípio da legalidade (reserva legal – fins incriminatórios)

perde espaço para o princípio da culpabilidade, entendido no sentido inverso (ausência).

Dentre os sentidos dados ao conceito de culpabilidade459, a presente abordagem

dedica-se à culpabilidade como fundamento da pena, ou seja, a que constitui o embasamento

para que se reprove determinada conduta do agente – juízo de valor como pressuposto para

configuração do crime e imposição de pena.

O Estado, através do exercício do poder jurisdicional, ao apreciar determinado

comportamento humano em virtude da norma jurídica (sistema de princípios e regras) e

repreendê-lo através de sanções, faz um juízo de reprovação do ocorrido (fato). Esse juízo

sobre as circunstâncias caracteriza o elemento culpabilidade, para fins de imposição de

sanção, através da prestação jurisdicional – manifestada por sentença.

O atual entendimento sobre a culpabilidade – como juízo de reprovação – é fruto de

uma evolução que passou pelos conceitos de três teorias principais. Para Santos, apesar de a

culpabilidade ser um produto inacabado460, ela compreendeu o conceito psicológico, no século

XIX, o conceito psicológico-normativo, no início do século XX e conceito normativo puro,

durante o século XX.461

A partir do surgimento do conceito analítico de crime462 e com o causalismo surge a

teoria psicológica da culpabilidade que trata do vínculo psicológico do agente com o fato e

possui dois requisitos: a imputabilidade e o dolo/culpa.

O sistema causal-naturalista considera o delito – visão analítica – sob os aspectos

externo e interno. No primeiro caso a ação deve ser típica e antijurídica (elemento objetivo) e

no segundo diz respeito à culpabilidade (elemento subjetivo) como vínculo psicológico que

459 O conceito de culpabilidade tem sentido triplo: a) como fundamento da pena – juízo de reprovação (possibilidade de aplicação de uma pena ao sujeito que cometeu um fato típico e antijurídico – proibido pela lei penal); b) como elemento para determinação da pena – limite; c) como conceito contrário à responsabilidade penal objetiva. BITENCOURT, 2007, p. 327-328. O conteúdo do princípio da culpabilidade apresenta dois níveis: a) que a conduta típica seja ao menos culposa. b) que só existe delito se o injusto for reprovável ao autor. ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 449. 460 Assim considerdado por Santos porque a teoria normativa – atual entendimento sobre o assunto – encontra-se em crise insuperável na medida em que são criadas novas propostas conceituais, a exemplo da teoria da responsabilidade normativa de Roxin. SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 174. 461 Ibidem, p. 174. 462 Os primeiros conceitos analíticos de crime foram manifestados, a partir do início do séc. XIX, na teoria Alemã, com estudos de Feuerbach e posterior contribuição de Binding (teoria das normas), von Ihering (antijuridicidade objetiva), von Liszt e Beling (sistema causal-naturalista – tipos penais), Frank e Mezger (aprimoramento sistema causal-naturalista), Goldschmidt e Freudenthal (exigibilidade de conduta diversa), Welzel (novo conceito de ação – finalismo) e Jescheck e Wessels (posição híbrida – causal e final). GRECO, 2007, p. 384.

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compreende dolo e culpa. A imputabilidade é pressuposto da culpabilidade, ou seja,

verificando-se que o agente é imputável, analisa-se dolo e culpa como espécies da

culpabilidade.463 “Dentro dessa concepção, o dolo e a culpa não só eram as duas únicas

espécies de culpabilidade, como também a sua totalidade [...]”. A culpabilidade era a relação

subjetiva entre autor e fato – responsabilidade do autor pelo ilícito que realizou.464

Zaffaroni e Pierangelli consideram que a teoria psicológica, como relação

psicológica entre a conduta e o resultado, não resolve o problema da culpa, da imputabilidade

e da necessidade exculpante.465 Santos também aponta deficiências da teoria psicológica pelo

fato de ser incapaz de abranger a imprudência inconsciente e de avaliar situações anormais de

vontade, como ocorre nas hipóteses de inexigibilidade de comportamento diverso.466 Por sua

vez, Bitencourt explica que a teoria psicológica é insuficiente porque a culpa é um elemento

normativo – infração do dever objetivo de cuidado – e não psicológico como é o dolo. Já nas

causas de redução da responsabilidade penal, a exemplo do estado de necessidade exculpante,

a presença do dolo é evidente – nexo psicológico entre autor e fato – porém não existe a

culpabilidade (situação somente explicável se renunciado o conceito de vínculo psicológico

entre autor e fato).467

Assim, a teoria psicológica da culpabilidade, como reflexo do pensamento causal-

naturalista (conceito analítico de crime), tratou a culpabilidade como elemento subjetivo –

interno – que compreende o dolo e a culpa, voltando suas atenções para relação do agente

com o fato ilícito – relação unicamente causal – o que provocou insuficiências para explicar

situações anormais de vontade, tais como na culpa inconsciente, inimputabilidade, estado de

necessidade exculpante e inexigibilidade de conduta diversa. Como resposta às insuficiências

da teoria psicológica surge, no início do século XX, a teoria psicológico-normativa.

A teoria psicológico-normativa trata a culpabilidade como reprovação e possui três

requisitos: a imputabilidade, o dolo/culpa e a exigibilidade de conduta diversa. Este último

elemento foi agregado como requisito normativo, valorado pelo Juiz, o que constituiu um

avanço em relação à teoria psicológica.

Para Santos o conceito normativo de culpabilidade iniciou com a proposta de Frank

– caráter de reprovabilidade – e em seguida por Goldschmidt – reprovabilidade como norma

463 GRECO, 2007, p. 384-385. 464 BITENCOURT, 2007, p. 335. 465 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 575. 466 SANTOS, 2002, p. 174. 467 BITENCOURT, 2007, p. 336-337.

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de dever (caráter subjetivo e individual) e a idéia de exculpação como expressão de

inexigibilidade. Por sua vez, Freudenthal introduziu a inexigibilidade como fundamento

supralegal de exculpação.468 Greco expõe que essa teoria surgiu, em 1907, a partir das

modificações do sistema clássico (por intermédio de Frank). Os elementos subjetivos e

normativos foram introduzidos no tipo e assim, “[...] não bastava a presença de elementos

subjetivos (dolo e culpa), mas sim, que, nas condições em que se encontrava, podia-se-lhe

exigir uma conduta conforme o direito [...]” – elementos normativos – o que projetou reflexos

da inexigibilidade de conduta diversa sobre toda a culpabilidade (agora entendida como

imputabilidade, dolo e culpa e exigibilidade de conduta diversa, esta como causa geral de

exclusão da culpabilidade). Assim, problemas como coação irresistível, obediência de ordem

não manifestamente ilegal de superior hierárquico e estado de necessidade exculpante

passaram a ser tratados no âmbito da culpabilidade.469

Dolo e culpa deixam de ser espécies de culpabilidade e passam a ser elementos dela.

Agora estão criadas as condições para explicar as causas de exculpação – conduta dolosa e

não censurável – porque pode haver dolo sem que haja culpabilidade. A culpabilidade passa a

ser vista como algo exterior ao agente – juízo de culpabilidade sobre o autor emitido pela

ordem jurídica – e não como vínculo entre este e o fato. Essa reprovação é condicionada a

certos elementos: imputabilidade, dolo ou culpa (elementos psicológicos normativos) e

exigibilidade conforme o direito (‘poder agir de outro modo’). O dolo passa a ser também

normativo – não mais puramente psicológico – porque contém os seguintes elementos: a)

vontade (intencional); b) previsão (intelectual); c) consciência atual da ilicitude (elemento

normativo).470

A teoria psicológico-normativa ainda considerou o dolo/culpa como integrantes da

culpabilidade. Essa teoria foi importante porque ampliou o conceito de culpabilidade, pois

agregou elementos normativos antes não pensados pela teoria psicológica. Agora a

exigibilidade de conduta diversa é entendida como elemento e fundamento da culpabilidade.

Por sua vez, a teoria normativa pura da culpabilidade surge com o advento da teoria

finalista da ação471 e o principal mérito dela está em considerar o dolo e a culpa como

468 SANTOS, 2002, p. 176. 469 GRECO, 2007, p. 386-389. 470 BITENCOURT, 2007, p. 339-340. 471 Na afirmação de Greco, o finalismo tem início na Alemanha a partir de estudos de Welzel, a partir de 1931. A ação não é mais concebida como mero ato voluntário que causa modificação no mundo exterior. O delito é analisado a partir da inteligência humana, capaz e realizar obras com atividade finalística. GRECO, 2007, p. 389-390.

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elementos da conduta e não da culpabilidade. A culpabilidade passou a ser aferida por um

juízo de valor sobre a conduta, realizado pelo julgador, a partir da perspectiva normativa.

Extraiu-se da culpabilidade todos os elementos subjetivos, presentes até então na teoria

psicológica (de forma absoluta) e na teoria psicológico-normativa (de forma parcial).

A teoria finalista e o conceito pessoal de injusto de Welzel deslocou o dolo da

culpabilidade para o tipo subjetivo do injusto, reduzindo a culpabilidade a mero juízo de

valor, expresso pela reprovabilidade.472 A culpabilidade finalista está centrada na reprovação

da conduta contrária ao direito. Ela pode ser resumida da seguinte forma: “[...] reprovação

pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora

houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez. [...]”473

No dizer de Zaffaroni e Pierangelli, para teoria normativa da culpabilidade, um

injusto (conduta típica e antijurídica) é culpável “[...] quando é reprovável ao autor a

realização dessa conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas

circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. [...] [Assim,] o autor mostra uma

disposição interna contrária ao direito.” Se o autor não era enfermo, não foi obrigado a

cometer o ato, ele podia motivar-se na norma e não cometer o injusto – o que a norma exige.

Nada o impedia de cometer tal ato. O caráter normativo está no fato de que o sujeito pode

fazer algo distinto do que fez e que nas circunstâncias era exigível que assim procedesse.474

Com a teoria finalista da ação, para definição do crime, a culpabilidade475 é valorada

após a análise primeira do fato típico e, segunda da antijuridicidade. Todos esses elementos

funcionam como pressuposto da pena. É, portando, ressalvado entendimento diverso476, o

terceiro elemento para imputar sanção penal ao agente.

Em oposição à teoria psicológico-normativa e na perspectiva da teoria normativa

pura, a culpabilidade é apenas normativa, sob a forma de potencial consciência da ilicitude,

imputabilidade e exigibilidade de conduta diversa. Daí porque o nome dessa teoria.477 Da

mesma forma, Santos conceitua a culpabilidade, considerando a teoria moderna do fato

472 SANTOS, 2002, p. 177-178. 473 BITENCOURT, 2007, p. 342-343. (grifo do autor). 474 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 517. 475 A culpabilidade revela-se diversa da culpa no direito penal, porquanto, esta última encontra-se no fato típico, como conduta humana sob as modalidades: imprudência, negligência e imperícia. 476 Segundo a concepção bipartida, o conceito analítico de crime é composto de fato típico e antijurídico; a culpabilidade funciona como pressuposto da pena. Tal endendimento merece críticas porque todos os elementos: fato típico, antijurídico e culpabilidade são pressupostos da pena que é conseqüência. Assim, não há razões para separá-los do conceito de crime. 477 GRECO, 2007, p. 392.

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punível, como juízo de valoração (reprovação sobre o sujeito que realiza um tipo injusto)

sendo que os seus fundamentos são: a capacidade de culpabilidade, a consciência real ou

potencial da antijuridicidade e a exigibilidade de comportamento diverso.478

A imputabilidade pressupõe análise da maturidade e desenvolvimento do sujeito, ou

seja, deve ser observado o grau de capacidade psíquica para ser responsabilizado pelo injusto

cometido. Na análise de Bitencourt, “[...] sem a imputabilidade entende-se que o sujeito

carece de liberdade e de faculdade para comportar-se de outro modo, com o que não é capaz

de culpabilidade, sendo, portanto, inculpável.”479 Esse entendimento tem origem na teoria

psicológica da culpabilidade – como pressuposto da culpabilidade – e foi recepcionado pelas

teorias psicológico-normativa e normativa pura – como elementos da culpabilidade.

A potencial consciência da ilicitude ou conhecimento do injusto para a moderna

teoria do fato punível exige análise sobre o conhecimento de elementos fáticos ou normativos

do tipo legal – erro de tipo – e, sobre a proibição do tipo de injusto – erro de proibição.

Também envolve a caracterização do erro de tipo permissivo que participa simultaneamente

sobre os dois tipos de erros (de tipo e de proibição) e incide sobre a representação errônea de

circunstância justificante.480 É necessário que o autor “[...] conheça ou possa conhecer as

circunstâncias que pertencem ao tipo e à ilicitude.”481

Por sua vez, a inexigibilidade de conduta diversa se materializa na impossibilidade

de o autor agir conforme preceitua o ordenamento jurídico. É a situação em que o direito

exige determinado comportamento, mas o autor, devido às circunstâncias concretas, não

consegue pautar sua conduta em obediência. Assim, o Estado, através do Juiz, analisa as

possibilidades que o autor tinha a sua disponibilidade para agir conforme o direito. Se haviam

possibilidades concretas para o comportamento exigido pelo ordenamento jurídico, mas o

autor omitiu-se – outra conduta era exigível – haverá culpabilidade e o autor responde pelos

seus atos. Se não havia possibilidades concretas de realização do comportamento de outro

modo, não se pode exigir outro comportamento senão aquele realizado pelo sujeito, logo não

haverá culpabilidade e tampouco responsabilidade penal do autor.

Para Bitencourt o fundamento para reprovar a resolução de vontade está na

possibilidade concreta de que o autor determine seu comportamento conforme o

478 SANTOS, 2002, p. 173. 479 BITENCOURT, 2007, p. 347. (grifo do autor). 480 SANTOS, 2002, p. 193-194. 481 BITENCOURT, 2007, p. 347.

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conhecimento do injusto.482 E, segundo Velo, “[...] é errado admitir-se a sanção penal em

hipótese de ‘inexigibilidade de conduta diversa’ quando o sujeito agiu segundo critérios

objetivos e ditados por uma situação histórica que pressupõe uma compreensão especial por

parte do julgador.”483

A exigibilidade de conduta diversa apresenta-se como fundamento das excludentes

de culpabilidade, ou seja, todo o ordenamento jurídico está pautado sob a lógica de se exigir

determinado comportamento do cidadão, através da proibição das condutas descritas na lei

(exige-se a conduta que não àquela escrita – proibida). Para Santos “A normalidade das

circunstâncias do fato é o fundamento concreto da exigibilidade de comportamento conforme

ao direito [...]”.484

Zaffaroni e Pierangelli afirmam que “A inexigibilidade [é] a essência de todas as

causas de inculpabilidade. Sempre que não há culpabilidade, é porque não há exigibilidade,

seja qual for a causa que a exclua”.485 O finalismo dirigiu-se na busca por uma teoria

normativa da culpabilidade. Hoje ela é entendida como “[...] juízo de reprovação dirigido ao

autor por não haver obrado de acordo com o Direito, quando lhe era exigível uma conduta

em tal sentido.” A exigibilidade de conduta diversa, como terceiro elemento da culpabilidade,

pressupõe a “[...] possibilidade concreta que tem o autor de determinar-se conforme o sentido

em favor da conduta jurídica [...]”.486

A (im)possibilidade “[...] de agir conforme o direito variará de pessoa para pessoa,

não se podendo conceber um ‘padrão’ de culpabilidade. [...]” O que se espera é uma análise

individualizada – particularizada – quando da análise da exigibilidade de conduta diversa

como excludente de culpabilidade.487

Assim, o agente não deve ser considerado culpado, se no momento da ação ou da

omissão outra atitude não era esperada, senão aquela em que agiu. Esta forma de

responsabilizar é própria de direitos modernos e está amparada pela teoria finalista da ação e

teoria normativa pura da culpabilidade.

Velo atribui relação de harmonia entre o finalismo, política criminal e exigibilidade

de conduta diversa, bastando que “[...] o julgador use sua cultura e sensibilidade em prol de 482 BITENCOURT, 2007, p. 347. 483 VELO, Joe Tennyson. O juízo de censura penal: o princípio de inexigibilidade de conduta diversa e algumas tendências. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 74. 484 SANTOS, 2002, p. 215. 485 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 576. 486 BITENCOURT, 2007, p. 349. (grifo do autor). 487 GRECO, 2007, p. 416.

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uma ordem democrática e social”.488 Nesse diapasão, a demanda constitui-se num desafio para

o jurista. Verifica-se necessário avaliar a situação in concreto aplicando-se conhecimentos da

psicologia, sociologia, filosofia, fazendo-se um juízo ampliativo das condições sociais,

circunstâncias temporais, ambientais, biológicas entre outras.

A inexigibilidade de conduta diversa constitui modalidade de exculpação,

compreendendo as causas chamadas de legais e supralegais.489 Duas são as causas legais

dispostas no Código Penal Brasileiro: a) coação moral irresistível; b) obediência

hierárquica.490 Além das hipóteses dispostas no artigo 22 do Código Penal Brasileiro, é

possível aceitar a isenção de pena prevista nos arts. 348, § 2º491, do Código Penal (ascendente,

descendente, cônjuge ou irmão do criminoso) e 128, inciso II492, do Código Penal, (aborto

consentido pela gestante ou seu representante legal quando a gravidez é resultante de estupro)

como causas legais de inexigibilidade de conduta diversa. Embora relevante para o estudo da

culpabilidade, a exposição das causas legais de inexigibilidade de conduta diversa não se faz

necessária nesse espaço, porquanto as discussões restringem-se ao aspecto da supralegalidade.

As causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa pautam-se na premissa

de que é possível uma interpretação, fundamentada nos princípios Constitucionais, não

vinculada às hipóteses definidas em lei. A partir desse raciocínio, existem respostas não

expressas na legislação infraconstitucional que precisam ser desveladas e o Poder Judiciário

não deve esquivar-se da realização da justiça493, que é compreendida a partir da ampliação de

hipóteses exculpantes e com fundamento nos princípios Constitucionalizados.

Segundo Zaffaroni e Pierangelli, a partir da teoria de Freudenthal e seus seguidores,

foi possível a concepção de inculpabilidade não limitada ao texto legal. Tal possibilidade 488 VELO, 1993, p. 18. 489 Os direitos supralegais encontram amparo, não unânime, a partir da teoria e da jurisprudência. Há uma previsão para determinadas situações nominadas pelo legislador – consideradas legais – e outras que ocorrem a partir de entendimentos diante de fatos “extraordinários” para o mundo jurídico – consideradas supralegais. Diante do princípio da legalidade, tem-se admitido as situações supralegais somente para fins não incriminatórios. 490 “Art. 22. Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem não manifestadamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.” 491 “Art. 348. Auxiliar a subtraír-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é cominada pena de reclusão: [...] 2.º Se quem presta o auxílio é ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, fica isento de pena.” 492 “Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Em sua maioria, os autores consideram que o aborto realizado a partir de gravidez resultante de estupro não é considerado antijurídico (fato típico penalmente lícito). Porém, não é possível amoldar essa hipótese nas causas legais de exclusão da ilicitude elencadas no artigo 23 do Código penal. Assim, trata-se de hipótese de causa legal de inexigibiliade de conduta diversa. GRECO, 2007, p. 419-421. 493 A afirmação do Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela obediência rigorosa aos direitos fundamentais da pessoa humana, neles incluído a garantia Estatal de punição justa.

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ocorre em decorrência de interpretações restritivas legais que causam injustiças e falta de

previsão legal para exculpantes reconhecidas pela doutrina ou postuladas em trabalhos

político-criminais. Muito se temeu pela absolvição por crimes atrozes, principalmente após a

segunda guerra mundial, o que fez a adoção da exculpação supralegal ser reprimida.494 Esse

“medo” da impunidade para crimes bárbaros provocou um polimento na legislação positiva e

mesmo autores alemães foram abandonando a eximente como autônoma, deixando-a como

fundamentação genérica de todas as causas de não culpabilidade.495

Também é a primeira conclusão da obra de Velo: “A censura penal pode ser

excluída em hipóteses de ‘inexigibilidade de conduta diversa’, independentemente das

mesmas não estarem previstas expressamente na lei, porque a ‘inexigibilidade é um princípio

do direito penal”.496

No âmbito jurisprudencial, a aceitação das causas supralegais tem sido uma

realidade, porquanto se verifica que os tribunais têm observado que a norma precisa ser

adaptada ao contexto social e para se fazer justiça deve-se levar em consideração todas as

situações possíveis que contribuíram para o resultado.

O legislador é incapaz de prever todas as possibilidades concretas de aplicação da

norma. Assim, é necessário que o ordenamento jurídico, especialmente o penal, dê abertura

para aplicação da norma como regra geral adaptando-se, através do Estado-Juiz, ao caso

concreto, aplicando-se a justiça e a eqüidade. Não se deve considerar, em nome do caráter

repressivo discutível do Direito Penal, uma injustiça.

Conscientes de que as possibilidades de ocorrência são inesgotáveis, as principais

causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa, diante da dinâmica social moderna

de relações complexas, são: fato de consciência, desobediência civil, conflito de deveres,

causa de aumento de pena, excesso em excludente de ilicitude (estado de necessidade

exculpante) e sonegação fiscal. Também, as situações chamadas supralegais apresentam-se no

consentimento do ofendido para eliminação da antijuridicidade. Quanto aos procedimentos,

até mesmo no Tribunal do Júri há possibilidade de aplicação de situações chamadas

supralegais.

O fato de consciência é decorrente da garantia constitucional de liberdade de crença

494 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 626. 495 Nesse mesmo sentido, Zaffaroni e Pierangelli consideram que a partir da legislação brasileira, a adoção da eximente autônoma se faz desnecessária. Ibidem, p. 559-561. 496 VELO, 1993, p. 565-566.

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e de consciência, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal Brasileira de 1988497. Não

encontra limitações no direito penal brasileiro, embora outros direitos fundamentais

individuais (vida/liberdade) e coletivos (existência do Estado/paz interna) exerçam a

limitação.498

O exemplo clássico e prático do fato de consciência ou liberdade de consciência ou

de crença é a não aceitação de transfusão de sangue pelos membros da religião testemunha de

Jeová. Essa atitude coloca em risco bens jurídicos igualmente tutelados pela Constituição, ou

seja, a vida e a liberdade de crença e de consciência.

Assim, para caracterização do fato de consciência é necessário haver conflito entre a

liberdade de consciência e de crença e outro direito protegido pelas normas constitucionais.

Vê-se numa situação em que os dois bens são tutelados e se deve optar por um deles, aplicar o

princípio da razoabilidade, sopesando qual o bem de maior valor, definido através do conceito

atribuído pela sociedade em geral (senso comum).

A desobediência civil é decorrente de atos públicos onde se baseia “[...] na relevante

motivação subjetiva, ou, alternativamente, na desnecessidade de prevenção geral e especial

[...]”. Fundamenta-se na solução social dos conflitos.499

Têm-se como exemplos: a paralisação do trânsito, para manifestação, onde há

geração de prejuízos elevados, um grupo de ecologistas em manifestação considerada justa

pela poluição gerada pelas indústrias ou manifestação de ciclistas nus pelas ruas a protestar

por determinada situação.

Trata-se de um protesto em desobediência civil não violento. As manifestações

visam chamar a atenção da população e das autoridades para determinado fato,

caracterizando-se, as atitudes, como justas em prol da sociedade e da defesa dos bens

supostamente agredidos. Dessa forma, eventual infração às normas penais não deverão ser

consideradas para caracterização do crime, em atendimento a inexigibilidade de conduta

diversa como fundamento da pena.

O conflito de deveres é considerado por Santos como situações em que o sujeito

497 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” 498 SANTOS, 2002, p. 226. 499 Ibidem, p. 228.

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encontra-se numa situação em que há dois bens na iminência de serem agredidos e através de

escolha do mal menor toma a sua decisão de proteger um em detrimento do outro.500

Na colisão de deveres o agente opta por uma alternativa e sua escolha não recai na

mais adequada para o direito, porém, nas circunstâncias, seria impossível exigir um

comportamento diverso – ato de heroísmo. Dessa forma, a colisão de deveres é uma espécie

de estado de necessidade porque o dever está vinculado a um bem jurídico.501

Exemplo da opção feita pelo agente, que caracteriza o conflito de deveres,

justificável pela inexigibilidade de conduta diversa é o caso de um estranho e o filho do

agente estar em perigo e só um pode ser salvo – conflito. O direito ordena a proteção de

ambos – solução ideal –, porém o sujeito, dadas as circunstâncias, certamente irá proteger seu

filho. Nesse caso haverá estado de necessidade exculpante, embora não previsto não previsto

em lei, mas presente a inexigibilidade de conduta diversa.502

A exculpante em questão é aplicável, também, para as classes menos favorecidas,

em que opera uma situação anormal da vontade pelas condições sociais adversas. Para o

sujeito que se vê diante da necessidade de saciar sua fome ou de sua família, proteção,

portanto, da vida, e a proteger do patrimônio alheio – alimento – é plenamente inexigível

outra conduta senão aquela de buscar a subsistência503.

As causas de aumento de pena têm aplicabilidade quando o agente comete um

determinado crime e, devido às circunstâncias, incide aumento de pena prevista

expressamente na legislação penal, além da pena base estabelecida. Entretanto esta aplicação

não deve ser absoluta, porquanto há situações em que opera a inexigibilidade de conduta

diversa como causa supralegal.

Assim, eivado de razão está o agente que, dada às circunstâncias apresentadas,

comportou-se de maneira que qualquer sujeito comum faria igual. Exemplo típico dessa

situação é o do agente que, cometendo homicídio culposo na direção de veículo, não presta

auxílio à vítima por temor de represália ou por buscar atendimento médico próprio em virtude

de lesões sofridas no acidente. 500 SANTOS, 2002, p. 229. 501 BITENCOURT, 2007, p. 311. 502 Ibidem, p. 312. 503 A teoria da co-culpabilidade também pode ser aplicada nesse exemplo porque a sociedade também é responsável por deixar seus indivíduos a mercê da exclusão, sem as mínimas condições necessárias para sua sobrevivência. Não se trata de autorizar a barbárie, mas incorporar, à ciência jurídica penal, dispositivos que demonstrem a responsabilidade social para com o semelhante. Essa teoria tem amparo normativo no artigo 66 do Código Penal: “Art. 66. A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, embora não prevista exressamente em lei.”

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Desta forma, inexigível que o sujeito preste socorro à vítima porque as

circunstâncias do acontecimento não permitiam tal ação. Não incidirá, portanto, majorante de

pena por este fato – ausência de socorro à vítima.

O Código penal Brasileiro, em seu artigo 23, parágrafo único, atribui

responsabilidade pelo excesso, doloso ou culposo, ao sujeito que agiu em legítima defesa,

estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.

Duas teorias tratam sobre a existência do estado de necessidade justificante e

exculpante. Para teoria unitária, não há “[...] distinção entre estado de necessidade justificante

e estado de necessidade exculpante. Para ela, todo estado de necessidade é justificante. [...]” –

hipóteses tratadas sob o enfoque da exclusão da ilicitude da conduta. Essa teoria foi adotada

pelo código penal brasileiro. Já a teoria diferenciadora, apesar de uma divisão interna, quanto

a ponderação de bens, distingue estado de necessidade justificante de exculpante.504

Zaffaroni e Pierangelli divergem de Greco quanto à teoria adotada pelo Código

Penal Brasileiro, pois entendem que as situações de estado de necessidade justificante e de

estado de necessidade exculpante encontram amparo normativo, em seu artigo 24.505

Bitencourt, concordando com Greco quanto à adoção da teoria unitária, atribui

dificuldades para aplicação do estado de necessidade exculpante, a partir da redação desse

artigo, porquanto quando o bem sacrificado é de maior valor não há estado de necessidade

justificante. Ainda, diante da previsão do parágrafo segundo do artigo 24 do Código Penal

Brasileiro – redução de pena para os casos de desproporcionalidade entre os bens em conflito

– tanto o estado de necessidade justificante como o exculpante ficam afastados. A partir disso,

admite o “[...] estado de necessidade justificante [sic], mas somente como causa supralegal de

exclusão da culpabilidade.” 506

No estado de necessidade justificante o sujeito que sofre o mal menor não age

contrariamente ao direito e deve suportá-lo porque quem lhe causou está em situação de

necessidade – conflito fático – e tem que escolher. Ele fundamenta-se na “[...] necessidade de

salvar o interesse maior, sacrificando o menor, em situação não provocada de conflito

externo.” Tal situação segue os seguintes exemplos: enquanto vítima de agressão arrancar

madeira de uma cerca; cometer delito contra a propriedade coagido por ameaça a familiar;

violação de domicílio para fugir de um seqüestro; matar animal feroz em virtude de ataque,

504 GRECO, 2007, p. 321-323. 505 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 559. 506 BITENCOURT, 2007, p. 310-311.

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entre outros.507

No estado de necessidade exculpante “[...] ocorre quando males entram em colisão,

não se evitando um de maior gravidade do que aquele que se causa. [...]”. A gravidade do mal

causado não assume relevância em relação ao mal que se evita, desde que o sacrifício, nas

circunstâncias não era razoável exigir-se. Essa situação pode ser verificada na seguinte

síntese: A ameaça de morte a B para que mate C.508

O elemento culpabilidade do estado de necessidade exculpante está na exigência do

sacrifício. Embora o bem jurídico lesado seja de igual ou maior gravidade daquele que se

pretende evitar, esse comportamento, dadas as circunstâncias, não era exigível do sujeito. Não

o sendo, não é reprovável sua conduta.

A doutrina alemã passou a sustentar, notadamente a partir do aborto médico

realizado para salvar a gestante, a existência do estado de necessidade exculpante como causa

supralegal, fundamentada na ponderação de bens e deveres – teoria diferenciadora do estado

de necessidade. Nessa situação o direito não aprova a conduta, mas opera a inexigibilidade de

conduta diversa como excludente da culpabilidade.509

No excesso exculpante qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias também se

excederia. Pode ser visualizado no seguinte exemplo: num local ermo, noturno, alguém toca

nas suas costas, você utilizando-se de uma arma, atira, quando se dá conta, era um adolescente

que queria pegar sua carteira.

Excesso exculpante ocorre quando, na reação defensiva, em hipótese de legítima

defesa ou estado de necessidade, a pessoa pratica atos além dos necessários para repelir a

agressão. Ele é visto como supralegal a partir da teoria da culpabilidade e do delito. Diante de

determinado comportamento de excesso nas excludentes de ilicitude, ocorrido a partir de uma

situação de inexigibilidade de conduta diversa - medo, medo, entre outras –, não se impõe a

reprovação da conduta.

O excesso exculpante visa-se eliminar a culpabilidade por não ser exigível outra

conduta senão aquela praticada pelo agente. Ocorre em situações de pavor em que não é

possível ao agente avaliar com perfeição sua atuação para fazer cessar a agressão. Em virtude

507 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 508-509. 508 Ibidem, p. 559-561. 509 BITENCOURT, 2007, p. 309-310.

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dessa perturbação mental, em alguns casos, afasta-se a culpabilidade.510

Assim, verifica-se que o excesso exculpante é aplicável, como em todas as

circunstâncias de inexigibilidade de conduta diversa, em situação anormal, em que do sujeito

não era esperado atitude diversa da optada por ele.

A hipótese de sonegação fiscal verifica-se no caso de um empresário falido que

deixa de recolher contribuição social ao INSS. O agente fica entre pagar os empregados ou o

INSS. Não há exigibilidade de outra conduta se não a de opção pelo pagamento a um

determinado ente, vez que não há liquidez para saldar toda a dívida. Assim, verifica-se que o

empresário fez sua opção quando operou determinadas alheias à sua vontade.

A doutrina e a jurisprudência têm aceitado a inexigibilidade de conduta diversa

como exculpante supralegal para o crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no

artigo 168-A do Código Penal Brasileiro511 que consistente na ausência de repasse à

Previdência Social dos valores descontados do salário dos segurados empregados, incidentes

sobre a remuneração por eles recebida.

Diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça512 e do Tribunal Regional Federal

510 GRECO, 2007, p. 365-366. 511 “Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de: I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público; II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços; III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social. § 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal. § 3o É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que: I - tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.” 512 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 327738. “Recurso especial. Apropriação indébita de contribuição previdenciária. Tribunal a quo. Rejeição da denúncia. Exigência da demonstração da possibilidade de cumprimento da obrigação. Causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Reconhecimento. Momento oportuno. Sentença. Crime societário. Individualização das condutas. Prescindibilidade. Precedentes.” Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 14 de junho de 2005. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=327738&&b= JUR2&p=true&t=&l=20&i=1>. Acesso em: 25 jan. 2006. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 881423. “4. A alegada impossibilidade de repasse de tais contribuições em decorrência de crise financeira da empresa constitui, em tese, causa supralegal de exclusão da culpabilidade – inexigibilidade de conduta diversa – e, para que reste configurada, é necessário que o julgador verifique a sua plausibilidade, de acordo com os fatos concretos revelados nos autos. 5. O ônus da prova, nessa hipótese, compete à defesa, e não à acusação, por força do art. 156 do CPP.” Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 15 de março de 2007, Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&processo=881423&b=ACOR>. Acesso em: 23 maio 2008.

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da 4ª Região513 são exemplos dessa realidade.

Também é destaque nos julgados que a prova das exculpantes e justificantes

alegadas cabe ao réu514 e não ao Ministério Público (processo de partes).

O poder judiciário tem aplicado a inexigibilidade de conduta diversa como causa

513 BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Embargos Infringentes em Apelação Criminal n. 2002.71.05.010333-8. “DIREITO PENAL. NÃO-RECOLHIMENTO. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. INSTITUIÇÃO MÉDICO-HOSPITALAR. PRECARIEDADE FINANCEIRA COMPROVADA. SITUAÇÃO INEVITÁVEL. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ABSOLVIÇÃO. ART. 386, INC. V, DO CPP. [...] 2. Havendo robusto conjunto probatório nos autos evidenciando a total impossibilidade de cumprimento da obrigação em tela, relacionada às dificuldades financeiras do Hospital, mantido essencialmente pelo SUS e IPE, incide a causa supralegal de exclusão da culpabilidade, consistente na inexigibilidade de conduta diversa, principalmente quando não houve locupletamento dos administradores com a verba não repassada ao INSS.” Relator: Élcio Pinheiro de Castro. Porto Alegre, RS, 22 de junho de 2007. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/pdf_it2.php? numeroProcesso=200271050103338&dataDisponibilizacao=22/06/2007>. Acesso em: 21 maio 2008. BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação n. 2003.70.00.025988-6. “PENAL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA RECOLHIDA DOS EMPREGADOS E NÃO REPASSADA AO INSS. CP, ART. 168-A. DIFICULDADES FINANCEIRAS COMPROVADAS. ABSOLVIÇÃO. No crime de apropriação indébita previdenciária, a existência de provas cabais quanto à alegada dificuldade econômica da empresa administrada pelos acusados justifica a exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.” Relator: Eloy Bernst Justo. Porto Alegre, RS, 18 de julho de 2007. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/ pdf_it2.php?orgao=1&documento=1810082>. Acesso em: 21 maio 2008. 514 Também é o entendimento de Oliveira pois “[...] os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas demonstrar a eventual presença de fato caracterizador de excludente de ilicitude e culpabilidade, cuja presença fosse por ela alegada.” OLIVEIRA, 2007, p. 31-32; 283. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 612367. “CRIMINAL. RESP. OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. DOLO GENÉRICO. ANIMUS REM SIBI HABENDI. COMPROVAÇÃO DESNECESSÁRIA. ONUS PROBANDI. FACULDADE DA PARTE PROVAR. DIFICULDADES FINANCEIRAS DA EMPRESA. EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE POR INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ÔNUS DA DEFESA. PROVA NÃO PRODUZIDA. ABSOLVIÇÃO DOS ACUSADOS. CRISE FINANCEIRA DA EMPRESA. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.” Relator: Ministro Gilson Dipp. Brasília, DF, 28 de abril de 2004. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao= RESUMO&processo=612367&b=ACOR>. Acesso em: 23 maio 2008. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 888947. “6. O ônus da prova, nessa hipótese, compete à defesa, e não à acusação, por força do art. 156 do CPP.” Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 03 de abril de 2007. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=888947&&b= ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 23 maio 2008. BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação n. 2005.71.11.003847-4. “3. Nos delitos de não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, a tese da inexigibilidade de conduta diversa, como causa de exclusão da culpabilidade, vem sendo aceita apenas em casos verdadeiramente extremos. Somente dificuldades "financeiras muito graves podem justificar a conduta de quem não cumpre a obrigação de recolher as contribuições devidas no prazo legal, tendo em vista o interesse social, igualmente relevante, de manter a empresa em funcionamento" (ACR nº 2001.04.01.004010-2, TRF 4ª Região, DJU 11/09/02), incumbindo à defesa, ainda assim, o ônus de trazer prova robusta que justifique a aplicação da excludente. Hipótese de ausência de comprovação das dificuldades financeiras alegadas.” Relator: Paulo Afonso Brum Vaz. Porto Alegre, RS, 26 de março de 2008. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/ pdf_it2.php?orgao=1& documento=2058764>. Acesso em: 21 maio 2008. BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação n. 2004.70.11.001403-7. “4. Para que incida a causa supralegal de exclusão da culpabilidade relacionada às dificuldades financeiras, deve restar demonstrada a absoluta impossibilidade do cumprimento da obrigação nas épocas próprias, o que não é a hipótese dos autos, onde outra foi a destinação dada ao numerário disponível, que não à Seguridade Social. 5. Conforme os precedentes desta Corte, a decretação de falência da empresa, por si só, não induz ao reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, devendo estar associada a outros elementos probatórios trazidos pela defesa.” Porto Alegre, RS, 09 de abril de 2008. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/pdf_it2.php?orgao=1&documento=2117295>. Acesso em: 21 maio 2008.

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supralegal com mais destaque nos crimes tributários, entretanto, é necessário ampliar a

aplicação da exculpante baseada na inexigibilidade de conduta diversa para os demais delitos

do ordenamento jurídico, por constituir-se em direito plenamente aplicável dada às

circunstâncias do caso concreto.

As situações chamadas supralegais ocorrem, também, no caso de consentimento do

ofendido para eliminação da antijuridicidade.

As causas supralegais de justificação são possíveis a partir do entendimento de que a

antijuridicidade possui conteúdo material515. Caso típico de adoção de direitos supralegais

“[...] é o consentimento do ofendido, mas somente aquele que se impõe de fora para dentro,

para excluir a ilicitude, sem integrar a descrição típica. [...]”, pois em muitos casos a ausência

de consentimento do ofendido faz parte do tipo como característica negativa.516

É preciso distinguir as diferentes formas de consentimento do ofendido, pois quando

elas estão relacionadas à tipicidade não configuram consentimento justificante. Elas

apresentam-se de “[...] duas formas distintas [...] [a] influir na tipicidade: para excluí-la,

quando o tipo pressupõe o dissenso da vítima; para integrá-la, quando o assentimento da

vítima constitui elemento estrutural da figura típica.” São exemplos da primeira espécie o

rapto (art. 209), a invasão de domicílio (art. 150) e a violação de correspondência (art. 151).

São exemplos da segunda forma o rapto consensual (art. 220) e o aborto consentido (art.

126).517

O consentimento justificante existe quando “O consentimento do titular de um bem

jurídico disponível afasta a contrariedade à norma jurídica, ainda que eventualmente a

conduta consentida venha a se adequar a um modelo abstrato de proibição. [...]”. O

afastamento da proibição pode ocorrer, por exemplo, nos crimes de cárcere privado (art. 148),

furto (art. 155) e dano (art. 163).518

Consentimento do ofendido como causa supralegal pode ser verificado no caso da

realização de uma tatuagem. Haverá uma conduta repreendida pelo direito – lesões corporais

– e por outro lado o consentimento do sujeito que recebe a tatuagem – afastamento da

515 “A antijuridicidade ‘material’ foi concebida como o socialmente ‘danoso’ e o defensor desta posição foi Von Liszt [...]” que defendia que a antijuridicidade deveria primeiro passar pela legalidade – carta magna do delinqüente. Ela é fruto do positivismo sociológico em oposição ao positivismo formal – legal. ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 488. 516 BITENCOURT, 2007, p. 306. 517 Ibidem, p. 307. 518 Ibidem, p. 307.

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ilicitude. Igual solução se apresenta no crime de dano, quando o proprietário consente o

destruimento da coisa. O consentimento do ofendido, em ambos os casos, não está previsto no

ordenamento jurídico penal519.520

Ainda, relativamente aos procedimentos, tem-se que a adoção das chamadas causas

supralegais são possíveis também no Tribunal do Júri.

A aplicação da inexigibilidade de conduta diversa no procedimento do Tribunal do

Júri também é possível, fundamentada no dispositivo do diploma processual penal que

autoriza a quesitação de “fato ou circunstância que isente o réu de pena”.

Diante do princípio da ampla defesa, admintia-se, a partir da redação do inciso III521,

do artigo 484 do Código de Processo Penal Brasileiro (agora revogado pela Lei n. 11.689522,

de 09 de junho de 2008), a quesitação por inexigibilidade de conduta diversa como exculpante

supralegal.523

Inobstante a nova redação dos artigos 482 e 483524 do Código de Processo Penal

519 Alguns requisitos são exigidos, a partir da doutrina, para que o consentimento seja válido: a) capacidade segundo a idade para imputabilidade – 18 anos; b) bem jurídico disponível – natureza exclusivamente privada; c) consentimento anterior ou simultâneo à conduta do agente. GRECO, 2007, p. 378-379. 520 GRECO, 2007, p. 376. 521 “Art. 484. Os quesitos serão formulados com observância das seguintes regras: [...] III – se o réu apresentar, na sua defesa, ou alegar, nos debates, qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime, ou o desclassifique, o juiz formulará os quesitos correspondentes, imediatamente depois dos relativos o fato principal, inclusive os relativos ao excesso doloso ou culposo quando reconhecida qualquer excludente de ilicitude;” 522 A lei 11.689, de 09 de junho de 2006 entrará em vigor em 10 de agosto de 2008 e revogou expressamente o Capítulo IV do Título II do Livro III, ambos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, que trata do Tribunal do Júri. 523 GRECO, 2007, p. 423. 524 “Seção XIII. Do Questionário e sua Votação. Art. 482. O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido. Parágrafo único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes.’ (NR). Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. § 1o A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado. § 2o Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado? § 3o Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue, devendo ser formulados quesitos sobre: I – causa de diminuição de pena alegada pela defesa; II – circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. § 4o Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o 2o (segundo) ou 3o (terceiro) quesito, conforme o caso. § 5o Sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito. § 6o Havendo mais de um crime ou mais de um acusado, os quesitos serão formulados em séries distintas.” (grifo nosso).

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sobre a quesitação no Tribunal do Júri, é possível afirmar que o legislador contemplou a

possibilidade de perguntas relativas à absolvição do acusado e causa de diminuição de pena

alegada pela defesa.

Verifica-se concretamente a aplicação no Tribunal do Júri a partir de jurisprudências

do Superior Tribunal de Justiça.525

Dessa forma, a inexigibilidade de conduta diversa é plenamente aplicável ao

Tribunal do Júri por previsão legal quanto à quesitação e o procedimento obedecer aos

dispositivos da parte geral do Código Penal Brasileiro, no que tange a aplicação das regras

gerais também aos delitos dolosos contra a vida. Essa tese deve ser mais explorada pelos

defensores e aplicada pelos julgadores com respaldo em parecer técnico, dependendo da

situação concreta que se apresentar.

Pelo exposto, a exigibilidade de conduta diversa, como modalidade da culpabilidade,

possui causas descritas na legislação penal – chamadas causas legais de inexigibilidade –, e

aquelas que fogem ao determinismo do legislador, as chamadas causas supralegais de

525 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 12917. “PROCESSO PENAL E PENAL – HOMICÍDIO – JÚRI – INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA – TESE DA DEFESA – POSSIBILIDADE. - Por ocasião do julgamento pelo Júri, tendo a defesa formulado a tese de inexigibilidade de conduta diversa, o quesito correspondente deve ser formulado aos Jurados, mesmo que inexista expressa previsão legal sobre tal tese nos dispositivos do Código Penal. - Precedentes. - Ordem concedida para que se possibilite a formulação de quesito acerca da causa supralegal de exclusão da ilicitude (inexigibilidade de conduta diversa).” Relator: Ministro Jorge Scartezzini. Brasília, DF, 18 de setembro de 2001. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/ jurisprudencia/doc.jsp?processo =12917&&b=JUR2&p=true&t=&l=20&i=3>. Acesso em: 25 jan. 2006. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 19015. “PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. ART. 484, III, DO CPP. QUESITAÇÃO DOS JURADOS SOBRE A TESE DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. POSSIBILIDADE. 1. Esta Corte tem entendido, na interpretação do artigo 484, inciso III, do Código de Processo Penal, ser admissível a quesitação dos jurados a respeito da excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta diversa, se requerida pela defesa. 2. Habeas corpus concedido, parcialmente, para determinar que no novo julgamento do Júri Popular seja formulado, se assim requerido pela defesa, quesito relativo à tese de inexigibilidade de conduta diversa.” Relator: Ministro Paulo Gallotti. Brasília, DF, 27 de agosto de 2002. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=19015&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=3>. Acesso em: 23 de maio 2008. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 241676. “PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. JÚRI. QUESITOS. NULIDADE. - Nos julgamento do Tribunal do Júri, onde sobreleva a rigorosa observância da garantia da plenitude de defesa (CF, art. 5º, XXXVIII, a) impõe-se absoluta cautela na formulação dos quesitos, de modo a evitar dúvida, confusão ou perplexidade na formação do juízo de certeza pelos integrantes do Conselho de Jurados. - Na hipótese, em que a defesa sustenta em plenário a tese de legítima defesa, é de rigor que o Juiz Presidente continue a votação dos quesitos referentes a figura da inexigibilidade de outra conduta, indagando aos jurados sobre as circunstâncias pertinentes a referida excludente. A não votação dos demais quesitos é causa de nulidade absoluta, porque afronta diretamente a garantia da defesa ampla e plena.” Relator: Ministro Vicente Leal. Brasília, DF, 07 de março de 2002. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&processo=241676&b=ACOR>. Acesso em: 23 de maio 2008. Ver ainda no STJ: Habeas corpus n. 16865, Relator Ministro Felix Fischer, julgamento em: 09 out. 2001; Habeas corpus n. 12917, Relator Ministro Jorge Scartezzini, julgamento em: 18 set. 2001; Habeas corpus n. 16865, Relator Ministro Felix Fischer, julgamento em: 09 out. 2001; Recurso Especial n. 2492, Relator Ministro Assis Toledo, julgamento em: 23 maio 1990.

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inexigibilidade de conduta diversa. Também, o consentimento do ofendido para a realização

da conduta típica (desde que não proibido pelo tipo) pode ser determinante para a eliminação

da antijuridicidade.

A admissão destas situações, inclusive no procedimento do Tribunal do Júri,

constitui medida de justiça a ser alcançada pela sentença penal.

4.2 O EQUÍVOCO DO DISCURSO SOBRE OS CHAMADOS DIREITOS SUPRALEGAIS

NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: A COMPREENSÃO DAS EXCULPANTES E

JUSTIFICANTES NA TEORIA DO DELITO COMO FUNDAMENTO PARA

INTERPRETAÇÃO ADEQUADA

O Estado Democrático de Direito é uma conquista histórica que não dispensa os

preceitos dos Estados Liberal e Social. Ele materializa as conquistas de legalidade e liberdade

do Estado liberal. Também apresenta direitos sociais prometidos pelo Estado Social. O Estado

Democrático de Direito apresenta uma proposta de efetivação dessas promessas sob a forma

de preceitos Constitucionais.

O princípio da legalidade é uma das principais conquistas do Estado Constitucional

de Direito e a principal bandeira do Estado Liberal, pois foi a partir dele e com a influência do

iluminismo que o absolutismo se dissolveu.

Ainda que o direito trabalhe com mediação das relações de classe, o certo é que a

legalidade é importante porque “[...] prospera no sentido de prover os destituídos de poderes

de defesas que inexistiriam em um quadro no qual o poder fosse exercitado sem as peias da

lei.” 526 A sociedade já pagou um alto preço para conquista da legalidade e não pode abrir mão

dela sem que haja um sistema que proporciona certeza e segurança equivalentes.

Ainda, sob o manto da legalidade o direito encontrou – e ainda encontra – problemas

para encontrar a justiça. O principal problema teórico enfrentado é uma concepção

equivocada, com raízes metafísicas, para a interpretação dos dispositivos legais. A partir do

pensamento positivista, o direito foi confundido com a lei. Com o positivismo normativista

houve um aprimoramento no sistema de produção normativa, porém a interpretação está

(ainda) fundamentada sob o sistema de regras. Após o surgimento de teorias pós-positivistas e

526 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 169.

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com o auxílio dos princípios, houve uma oxigenação social na interpretação das regras.

Embora os avanços citados, todas essas teorias encontram-se vinculadas ao

paradigma metafísico, numa relação de sujeito-objeto, onde o conhecimento, construído com

o objetivo de resolver situações concretas – da realidade – divaga sobre ele mesmo e anula as

possibilidades concretas de um pensar fenomenológico.

A hermenêutica, ao contrário, rompe com o paradigma epistemológico-

representacional e através da ontologia busca o mundo prático. A verdade deixa de ser

discursiva – procedimental e passa a ser conteudística.527

Da legalidade pregada pelo positivismo à viragem ontológica proporcionada pela

hermenêutica filosófica os avanços para interpretação do direito são enormes. Suplanta-se a

confusão entre lei e direito e com auxílio dos preceitos Constitucionais – contato com a moral

– é possível uma nova compreensão para o direito.

A afirmação dos chamados direitos supralegais constitui equívoco positivista. Na

forma apresentada eles funcionam como uma “válvula de escape” para dar conta da

completude esperada do mundo normativo. A legalidade positivista – direito como conjunto

de regras – não é suficiente para dar conta da realidade complexa. A completude é

inalcançável se não utilizados os princípios constitucionais como condição de possibilidade

para interpretação.

A legalidade apresentada pelo Estado de Direito é uma legalidade material voltada à

preservação do homem como destinatário do ordenamento jurídico. Apesar de o direito

apresentar-se sob a forma de dispositivos regulamentadores da conduta humana ele traz

consigo uma justificação valorativa inerente a sua realidade. Não basta uma tipicidade formal

para a existência do crime. A investigação deve pautar-se no sentido material da conduta

como conjunto de elementos. O contexto deve ser trazido para o texto e o texto deve ser

levado ao contexto, sob pena de configurar um direito penal que foge à realidade.528

Na opinião de Gadamer, a deficiência da lei não se dá em si mesma, mas porque

“[...] frente ao ordenamento a que se destinam as leis, a realidade humana é sempre deficiente

e não permite uma aplicação simples das mesmas.”529

Não há espaço para o postulado “[...] iluminista da perfeita ‘correspondência’ entre

527 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 43; 48. 528 CARVALHO, 2004, p. 31-34; 64-65. 529 GADAMER, 2007, p. 419.

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previsões legais e fatos concretos e do juízo como aplicação mecânica da lei [...]”. A

ingenuidade filosófica viciada pelo realismo metafísico apresenta afirmações do tipo o juiz é a

‘boca da lei’ (Montesquieu), ‘silogismo perfeito’ (Beccaria), consultar o espírito da lei, ‘o juiz

se converte em legislador tão logo lhe seja lícito interpretar a lei’ (Verri), ‘tampouco a

autoridade de interpretar as leis penais pode residir nos juízes criminais, pela mesma razão de

que não são legisladores’ (Beccaria).530

Assim, o conceito material de delito deve abranger tanto a tipicidade quanto a

culpabilidade. No dizer de Carvalho et. al. a existência do delito sob o aspecto formal não

subsiste no Estado Democrático de Direito. O que se coloca para o exegeta é uma perspectiva

mais abrangente a respeito da configuração do delito.531

As proibições de comportamentos amparam determinado valor extraídos do ato

legislativo que, em última análise, é da própria sociedade. Esse recado (valor) não é completo,

como queria o positivismo, pois como ensina Ferrajoli, existe uma ética normativa e uma

descritiva da legislação. A primeira prescreve os valores do ordenamento. A segunda, a partir

do ordenamento, reconhece os valores incorporados. Não “[...] existe coincidência entre ser e

dever ser do direito, tampouco existe coincidência entre ser e dever ser no direito. [...]”532

A dimensão descritiva não viola as conquistas da legalidade, apenas não a toma

como absoluta – estrita –, especialmente quando se trata de justificantes e exculpantes. Aos

poucos as amarras positivistas, de que o enunciado contempla o real – sentido fixado a priori

–, soltam-se e se percebe que a atividade do intérprete, baseada nos princípios constitucionais,

oferece a resposta adequada.

O Direito é ordem e hermenêutica conjugados. A ordem é completada pelo

componente hermenêutico – momento interpretativo – que não é algo extrínseco ao objeto do

direito – coisa pronta e acabada – mas é algo que faz parte do direito como existência

concreta.533

A bondade das leis e das proibições depende de critérios valorativos externos à lei –

como apresentam as definições substanciais do delito534 – e não há comprometimento do

530 FERRAJOLI, 2006, p. 49; 75-76. 531 CARVALHO, 2004, p. 111. 532 FERRAJOLI, 2006. p. 424-425. 533 SALDANHA, 2003. p. 300-301. 534 Compreender a culpabilidade a partir da hemenêutica filosófica não significa adotar uma postura substancialista do direito penal, que no dizer de Ferrajoli, confunde direito e moral (delito como pecado) ou direito e natureza (delito como patologia psicofísica) e permite discriminações subjetivas em que o interesse maior está em punir o sujeito pelo que ele é e não pelo que ele fez. FERRAJOLI, 2006, p. 45-46.

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princípio da legalidade quando vistas como recomendações prescritivas (não descritivas).

Uma fórmula prescritiva “[...] pode querer dizer duas coisas distintas: que uma conduta deve

ser proibida se, em qualquer das acepções do termo, é pecado, ou que deve ser proibida só se

é pecado. No primeiro caso, considera-se o juízo de reprovação externo como uma condição

suficiente [...]” e subordina, axiologicamente, o direito à moral ou a critérios de reprovação.

No segundo, o direito só deve perseguir as condutas imorais – limitadora do direito de

punir.535

A análise da reprovabilidade dos preceitos proibitivos demanda esse contato

inevitável com a moral, ou seja, para se saber se a conduta praticada, descrita como proibida

pela legislação, é reprovável, faz-se necessário recorrer à compreensão do intérprete – que ao

contrário da solução positivista, nunca é discricionária.

É evidente que não há só texto – ele é mero enunciado lingüístico. As normas

resultantes da interpretação dos textos é que dizem respeito a algo existente no mundo da vida

– o sentido se dá na concretude do mundo da vida.536 “[...] Não há textos sem normas; não há

normas sem fatos. Não há interpretação sem relação social. É no caso concreto que se dará o

sentido, que é único; irrepetível.”537 O sentido é atribuído ao texto a partir da faticidade do

intérprete, respeitados os conteúdos de base do texto, que traz em si um compromisso (pré-

compreensão). É preciso levar o texto a sério.538

Há um conteúdo na lei – regra tomada como critério – que não pode ser ignorado,

mas esse conteúdo não é norma. Decidir contra a lei é criar norma contra a regra da lei. A

decisão contra legem é a prova de que o texto e a regra não aprisionam o sentido. A regra tem

a função de estabelecer parâmetro para o intérprete – critério de valor.539

Assim, tem-se uma dimensão apresentada pelo texto e outra dada a partir da

compreensão do intérprete – proporcionada pela hermenêutica – que é chamada,

equivocadamente, de situações supralegais que excluem a reprovação da conduta.

Deve-se compreender que a moral é mais ampla do que o direito, de forma que ela o

abrange, em toda a sua totalidade (Bentham). Por isso, “[...] um fato não deve ser proibido se

não é, em algum sentido, reprovável; mas não basta que seja considerado reprovável para que 535 FERRAJOLI, 2006, p. 421-422. 536 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 56; 60. 537 STRECK, Dicionário de filosofia do direito, 2006, p. 434. 538 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 205. 539 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei. In: Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos Tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, anual, v. 1, n. 3, p. 41-43.

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tenha de ser proibido.” Em decorrência da justificação externa do conteúdo da proibição

penal, pela moral, os delitos têm que ser, de alguma maneira, reprováveis. A separação entre

direito e moral contribui para o dever de justificar as proibições e permite uma ética nas

legislações540. Assim, muitos tipos penais podem ser questionados como imorais,

especialmente aqueles que são justificados por razões políticas ou morais.541

Fatos proibidos também são reprováveis e, diante da ocorrência de uma situação que

não há reprovação da conduta, esteja ou não prevista no ordenamento jurídico sob a forma de

regra, deve ser considerado para fins de exculpação.

Há uma nova realidade a ser observada na interpretação. Diante da evidente

incompletude do sistema de regras, surgem os princípios que funcionam como diretrizes

morais e freio ao atuar discricionário positivista. Dessa forma, os princípios subtraem o lugar

das regras e impõem uma nova racionalidade542 ao intérprete.

A concretização da lei pelo juiz é a tarefa da interpretação/aplicação. Essa

complementação produtiva (porque o ato de subsunção não tem sustentação) do direito

importa sujeição à lei, onde a sentença não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de

ponderação do conjunto (não restrito ao conhecimento dos artigos do código). Daí que se tem

segurança jurídica porque qualquer advogado pode predizer a decisão do juiz, com base nas

leis vigentes.543

Os juízes não são e nem devem ser legisladores. Há uma distinção entre argumentos

políticos e argumentos de princípio. Os argumentos políticos justificam uma decisão política

demonstrando que favorece ou protege determinada meta coletiva, como, por exemplo, o

subsídio para fabricantes de aeronaves justificado pela defesa nacional. Suas proposições

descrevem objetivos. Por outro lado, os argumentos de princípios justificam uma decisão

política demonstrando que tal decisão respeita ou assegura determinados direitos individuais

ou coletivos, como por exemplo, a defesa de uma lei que se opõe à discriminação racial de

uma minoria. Suas proposições descrevem direitos.544 (tradução nossa).

A atividade produtiva exercida pelo juiz não o autoriza a legislar. A tripartição dos 540 O moralismo jurídico (delito enquanto pecado) e legalismo ético (pecado é tal porque é delito) impedem a valoração moral e polítca das leis penais. FERRAJOLI, 2006, p. 422. 541 FERRAJOLI, 2006, p. 422-423. 542 Infelizmente, no Brasil, nem para o necessário filtro para propositura de demandas tem se utilizado dos princípios constitucionais. Carvalho et. al. alertam que na justa causa penal para o exercício do direito de ação, na doutrina e na jurisprudência, não se encontra com freqüência a presença dos princípios Constitucionais. CARVALHO, 2004, p. 8; 19. 543 GADAMER, 2007, p. 432-433. 544 DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Editorial Ariel, 1997, p. 147-148; 158.

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poderes é um desejo constitucional legítimo que deve ser respeitado. As diretrizes políticas

são dadas pelo legislador e as decisões do judiciário limitam-se à ponderação do conjunto –

totalidade – entre regras e princípios para aplicação no caso concreto. A justificação dessa

compreensão é dada a partir da linguagem e deve guiar-se pelos valores morais dispostos na

forma de princípios – respeito aos direitos fundamentais.

O atual entendimento metafísico sobre as causas supralegais constitui argumento de

políticos e não de princípios. Argumentos de políticos, como afirma Dworkin, são reservados

aos legisladores e não aos juízes. Os legisladores estão legitimados constitucionalmente para o

exercício de objetivos políticos e não os juízes. Buscar algo externo à lei não é função

legítima do poder judiciário no Estado Democrático de Direito. Assim, para justificação dos

chamados direitos supralegais deve-se utilizar argumentos de princípios e não políticos. Os

juízes devem se limitar a justificar direitos.

É de competência do poder legislativo ajustar os argumentos políticos e adotar os

programas gerados por eles. Inversamente, as decisões judiciais – também em casos difíceis –

devem ser geradas a partir de princípios e não pautar-se em diretrizes políticas. O juiz deve

ater-se à legislação por duas razões. Em primeiro lugar porque o governo é eleito pela maioria

de homens e mulheres e o juiz, na maioria dos casos, não exerce suas atividades através da

eleição. No segundo caso, se um juiz legisla ele aplica retroativamente a lei impondo à parte

perdedora um castigo não por um dever infringido, mas por um dever novo criado depois do

fato.545 (tradução nossa).

É pela adoção dos princípios, como superadores das regras na interpretação, que se

eliminou a subsunção e reduziu a liberdade dos juízes porque eles não facilitam atitudes

decisionistas ou discricionárias.546 Muitos princípios morais de justificação das proibições

estão expressamente previstos nos ordenamentos jurídicos. O nível de efetividade dos

princípios Constitucionais é que caracteriza o Estado moderno de direito em matéria penal.

Por mais que “A incorporação garantista de princípios morais ou de justiça aos níveis

superiores de um ordenamento [...] [seja ampla] continuará tendo limites extrínsecos.”547

O Constitucionalismo é o principal modificador do conceito de legalidade formal de

outrora (rompimento entre direito e moral e validade e justiça). Hoje o Constitucionalismo

impõe uma revolução onde a norma somente será válida se estiver de acordo com o conteúdo

545 DWORKIN, 1997, p. 149-150. 546 STRECK, Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 2006, p. 145-146. 547 FERRAJOLI, 2006, p. 422-423.

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da constituição – elemento fundante. O ator jurídico pode deixar de aplicá-la por não ser

válida em face do caso específico, mas em outros casos pode ser que se encontre validade,

pois elas não apresentam um sentido único e absoluto – variam no tempo e no espaço.548

É inerente a atual compreensão do princípio da legalidade que há uma dimensão não

possível de ser dada somente com o texto legal. Realidade e texto não se completam se o

interprete não atua no sentido de produzir seu significado – pelo processo de compreensão. O

texto está disposto como signo lingüístico a ser decodificado e precisa da atuação do

intérprete que, a partir da compreensão e do círculo hermenêutico, produz o sentido da

proibição, considerando, inclusive, se a conduta é reprovável, dadas as circunstâncias do caso.

A lei não pode antever todas as hipóteses de aplicação e nem por isso há uma

irracionalidade ou concessões para decisionismos.549 A própria estrutura do mandamento

proibitivo apresenta um recado para a sociedade, no sentido de que a sua violação estará

sujeita à sanção. Ao dispor dessa forma, também avisa que os comportamentos violadores

serão reprovados. Está implícito no próprio caráter proibitivo do delito o juízo de reprovação

das condutas violadoras.

Determinadas leis infraconstitucionais apresentam, de forma expressa, as situações

em que essa reprovação se neutraliza. No código penal brasileiro ela apresenta-se sob as

formas de inimputabilidade, potencial consciência da ilicitude e inexigibilidade de

comportamento diverso: coação moral irresistível, obediência hierárquica, aborto em caso de

gravidez resultante de estupro e isenção de pena, no crime de favorecimento pessoal, quando

se tratar de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.

A inexigibilidade de conduta diversa tem seu fundamento implícito na própria

estrutura proibitiva dos tipos penais proibitivos, ou seja, a situação se aplica a todos os

mandamentos proibitivos, pois, dadas as circunstâncias da realidade, outra opção não restou

ao agente, senão aquela por ele escolhida e isso deve ser considerado para imposição de pena.

A situação se apresenta da seguinte maneira: um tipo penal que proíbe o

comportamento “A” – exige que a conduta não seja comportamento “A” – diante da

impossibilidade de outro comportamento que não seja o “A”, dadas as circunstâncias da

realidade – não é censurável/reprovável o comportamento “A”.

A avaliação da culpabilidade é sempre normativa porque é sempre um juízo de

548 ROSA, 2006, p. 101-102; 109-110. 549 STRECK, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 240.

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censura feito a partir do comportamento desviante do agente. Zaffaroni e Pierangelli atestam

que “A culpabilidade somente pode ser edificada sobre a base antropológica da

autodeterminação como capacidade do homem. [...] Por definição, ‘culpabilidade’ é um

conceito normativo, um juízo de reprovação [...]” A culpabilidade deve ser de ato –

reprovação da ação na medida da autodeterminação no caso concreto – e não de autor –

reprovação pelo que o autor é. O direito penal é de ato e como tal é direito penal com

culpabilidade de ato e não de autor – culpabilidade pela conduta de vida. A ação deve ser

reprovada, na circunstância concreta, e não a conduta de vida.550

Reprovar comportamentos é a finalidade dos tipos incriminadores. É um elemento

inerente a estruturação dos tipos de proibição e a partir dessa compreensão fica justificada a

atuação do que se tem chamado de direitos supralegais como excludentes de culpabilidade.

Tal forma não afronta o princípio da legalidade, pois é a partir dela e dos objetivos que ela

impõe que se chega a presente conclusão.

Como fundamentação constitucional para tal compreensão quanto as excludentes por

inexigibilidade de conduta diversa, pode-se invocar o princípio da culpabilidade que reafirma

o compromisso de que somente condutas reprováveis serão objeto de censura penal. Dessa

forma, esse princípio fala como pré-compreensão hermenêutica na aplicação do direito. Os

princípios Constitucionais proporcionam o contato com a moral e auxiliam na compreensão

de totalidade na interpretação das regras.

Um sistema de princípios e regras harmoniza-se no compreender. Esses elementos

normativos551 fazem parte dos pré-juízos autênticos para a aplicação do direito como também

o faz a realidade do caso e a historidicidade do intérprete.

A responsabilidade que se impõe ao jurista nunca foi tão grande. No Estado

Democrático de Direito e com a viragem ontológica ele possui papel central para a realização

da justiça Constitucional. O sentido de constituição faz parte da compreensão do intérprete

como pré-juízos552 que falam quando da aplicação do direito – resolução de problemas

concretos. A busca por uma prestação jurisdicional mais justa é uma manifestação de pré-

compreensão autêntica do jurista.

550 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2004, p. 522-523. 551 Princípios e regras são normas. Princípios são normas impositivas compatíveis com diversos graus de concretização (permitem o balanceamento de valores e interesses). Regras são normas imperativas de exigência (imposição, permissão ou proibição) – ela é ou não cumprida. Os princípios têm convivência conflitual (coexistem) e as regras antinômica (excluem-se). CANOTILHO, 2003, p. 1161. 552 “[...] os preconceitos de um indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem a realidade histórica do seu ser.” (grifo do autor) GADAMER, 2007, p. 368.

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A percepção e irradiação dos valores fundamentais no universo jurídico dependem

de uma postura responsável e condizente com os ditames do justo em prol do bem comum. O

valor que se dá à Constituição está diretamente relacionado ao atuar do intérprete. A eficácia

dos direitos fundamentais está nas mãos dos profissionais jurídicos e verifica-se como medida

de justiça.

A hermenêutica filosófica, a partir do rompimento com a metafísica, propõe-se a

encontrar respostas comprometidas com os valores do Estado Democrático de Direito. A

partir do círculo hermenêutico as respostas apresentam caráter de seriedade e

comprometimento com a realidade social na busca pelo bem comum.

A resposta jamais poderia ser discricionária, porque o intérprete compreende a partir

da sua história, da compreensão de totalidade e da legalidade. A resposta é apresentada a

partir dos preceitos Constitucionais – princípios – e do auxílio dos tipos penais – regras.

Assim é que “[...] a aplicação dos conceitos indeterminados [juízos de legalidade] só

permite uma única solução justa. Contrariamente, o exercício da potestade discricionária

[juízos de oportunidade] permite uma pluralidade de soluções justas [...]”, através da

liberdade de eleição fundamentada em critérios extra jurídicos. “Ainda quando o juiz cogite

dos princípios, ao atribuir peso maior a um deles – e não a outro –, ainda então não exercita a

discricionariedade. O momento dessa atribuição é extremamente rico porque nele [...]

pondera-se o direito, todo ele (e a Constituição inteira), como totalidade. [...]”553 O norma que

é o sentido do texto ex-surge do processo de atribuição de sentido pelo intérprete a partir de

sua situação hermenêutica, da tradição em que está inserido, a partir de seus pré-juízos. Esse

momento não é discricionário – diferença ontológica – porque a arbitrariedade na produção do

sentido é neutralizada pela aplicatio.554

Tratar as exculpantes com o nome de supralegalidade é um equívoco de um

pensamento que está pautado num sistema de regras. O termo traz uma afronta às conquistas

da legalidade e está na contramão da atual conjuntura do direito moderno. Não se pode falar

em supralegalidade porque o assunto pode ser melhor justificado a partir da compreensão do

intérprete sobre os tipos penais incriminadores.

Falar em supralegalidade gera um efeito negativo, impróprio para respostas

produzidas a partir da hermenêutica filosófica. Supralegalidade dá margem ao pensamento de

553 GRAU, O direito posto e direito pressuposto, 2005, p. 203-205; 210. 554 STRECK, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, p. 61.

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que é possível a criação de tipos incriminadores para além dos textos normativos, cogitação

totalmente reprovável a partir da compreensão hermenêutica.

Tipos penais incriminadores somente podem ser criados por obra legislativa, jamais

pelo intérprete. Não está ao alcance do intérprete a criação da lei, pois os mandamentos da

tripartição dos poderes estão presentes na Constituição e, portanto, no desejo da sociedade.

Falar em supralegalidade é também, uma afronta ao princípio da legalidade, que

encontra previsão expressa na Constituição Brasileira de 1988 e assim esse termo não deve

prosperar na teoria do delito.

Por outro lado, a saída é apresentada pela hermenêutica filosófica, onde a

compreensão da totalidade torna possível a aplicação das exculpantes em comportamentos

previstos como desviantes.

Assim, a lei que proíbe condutas não se completa nela mesma. Ao proibir uma

conduta ela impõe determinado comportamento que só se torna exigível quando o fato ocorre

em circunstâncias normais – condição para reprovação do comportamento. Essas

circunstâncias anormais não se encontram completamente arroladas pela legislação

infraconstitucional até mesmo devido à impossibilidade material.

A autodeterminação do sujeito é condição para reprovação da conduta proibida pelo

texto legal. Quando ela é afetada por circunstâncias anormais do complexo mundo moderno a

censura não se impõe. O juízo sobre a adequação do comportamento em circunstâncias

normais é possível a partir do compreender – hermenêutica filosófica.

As condutas proibidas têm um aspecto semântico, presente no texto, e um aspecto de

valor dado pela compreensão do intérprete e, essa pode ser no sentido de, com base nos

princípios constitucionais, exculpar o comportamento injusto. Para esse fato, a teoria geral do

delito tem atribuído, equivocadamente, o nome de adoção de causas supralegais de

inexigibilidade de conduta diversa.

A interpretação dos tipos de proibição deve acontecer conforme a Constituição. A

teoria geral do delito – e nela presentes as situações de antijuridicidade, justificantes e

exculpantes – deve fazer parte dos pré-juízos autênticos do intérprete.

A partir dos seus pré-juízos, e por fim de sua compreensão, o interprete do direito

falará (d)o direito. “Essa pré-comprensão é produto da relação intersubjetiva que o intérprete

tem no mundo [...]”, inserido numa situação hermenêutica e no interior da linguagem. A

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hermenêutica é um modo de ser e não um procedimento porque a atividade hermenêutica ex

surge da (auto)compreensão.555

Sem dispensar as conquistas da legalidade, mas atribuindo um adequado

entendimento sobre esse princípio é possível chegar-se a prestação jurisdicional justa

condizente com os anseios do Estado Democrático de Direito brasileiro.

A título conclusivo do capítulo pode-se afirmar que as manifestações pela adoção de

“direitos supralegais”, apesar de não serem unânimes, encontram forte respaldo na teoria do

delito e na jurisprudência. O principal argumento favorável à aplicabilidade está vinculado à

adoção de princípios. Por outro lado, o da rejeição, o argumento é no sentido de ofensa às

conquistas da legalidade e possibilidades de arbítrio.

Os principais conceitos de culpabilidade, a partir da teoria do delito, são: o

psicológico, o psicológico-normativo e o normativo puro. No primeiro caso a culpabilidade é

entendida como vínculo psicológico do autor com o fato (relação causal) e considera

imputabilidade e dolo e culpa como seus elementos. No conceito psicológico-normativo o

conceito de culpabilidade amplia-se para situações de inimputabilidade, dolo e culpa e

exigibilidade de conduta diversa. Seu principal mérito é considerar a culpabilidade como juízo

de censura a partir de seus elementos, antes puramente psicológicos e agora normativos (os

tipos penais são constituídos de imputabilidade e dolo e culpa – elementos psicológicos e

normativos –, e exigibilidade de conduta diversa – elemento normativo que fundamenta todos

os delitos). O conceito normativista puro apresentou o dolo e a culpa como elementos da

conduta e não da culpabilidade. Influenciado pela teoria finalista da ação, a culpabilidade

agora é entendida como juízo de reprovação e contém os elementos inimputabilidade,

potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Significa dizer que sob o

aspecto puramente normativo o comportamento somente será censurado em circunstâncias

normais onde o agente tinha condições de agir de outro modo.

A inexigibilidade de conduta diversa encontra-se presente na legislação

infraconstitucional brasileira sob as formas de obediência hierárquica, coação moral

irresistível, isenção de pena quando ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do agente

auxilia subtrair-se à ação de autoridade pública (348, § 2º, do código penal brasileiro) e no

caso de aborto consentido pela gestante ou representante legal quando a gravidez é resultante

de estupro (128, inciso II, do código penal brasileiro). Como causa supralegal algumas

555 STRECK, 2003, p. 66.

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situações podem ser enumeradas sem pretensão de taxatividade: fato de consciência,

desobediência civil, conflito de deveres, causa de aumento de pena, excesso em excludente de

ilicitude (estado de necessidade exculpante) e sonegação fiscal.

Também, as situações chamadas supralegais podem ser identificadas no

consentimento do ofendido para eliminação da antijuridicidade e aplicável, em todos os casos

(culpabilidade e antijuridicidade), também no procedimento do Tribunal do Júri.

A legalidade no Estado Democrático de Direito não pode ser suplantada porque ele

não neutraliza as conquistas dos modelos anteriores de Estado (Liberal e Social), pelo

contrário, soma dimensões de direitos conquistados pelo povo.

O problema na adoção dos chamados direitos supralegais está na concepção

positivista que soluciona os problemas difíceis através da discricionariedade do juiz. Visto sob

a perspectiva hermenêutica, falar em supralegalidade é um equívoco porque o próprio nome

está a indicar uma saída metafísica.

Diante da realidade de insuficiência da lei frente às situações concretas do dia-a-dia

o positivismo jurídico criou uma espécie de “válvula de escape” para alimentar o pensamento

de completude sustentado.

Ao invés de recorrer-se à supralegalidade tem-se que no Estado Democrático de

Direito a tipicidade e a culpabilidade, para configuração do delito, têm um conteúdo material.

O texto proibitivo tem uma dimensão que serve de parâmetro/critério para o intérprete, porém,

o sentido do texto é completado pela realidade histórica – faticidade – que o envolve. Por isso

há diferença entre texto e norma. Texto é a dimensão dada pelo legislador enquanto que

norma é produzida pelo compreender do intérprete. Assim, tipos de proibição contêm uma

justificação moral externa proporcionada pelos princípios constitucionais que servem de freio

ao arbítrio na aplicação do direito.

Os juízes não devem ser legisladores porque seus argumentos são de princípios e

não políticos. A atividade produtiva do juiz não autoriza discricionariedades porque ele está

vinculado ao sistema normativo (princípios e regras) e sua compreensão está precedida de

elementos históricos e visão de totalidade.

Fatos proibitivos também são reprováveis. Eles constituem-se num recado à

sociedade – reprovação das condutas descritas – e pressupõem a ocorrência em situações

normais de comportamento. Logo, a culpabilidade tem base antropológica na

autodeterminação dos sujeitos.

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As situações chamadas supralegais são resolvidas pela hermenêutica filosófica

através da utilização de princípios constitucionais, como pré-compreensão, que representam a

vontade legítima do povo. A visão de totalidade, com base em valores normativos do sistema,

soluciona a questão sem recorrer às saídas discricionárias e decisionistas e, portanto,

arbitrárias.

A supralegalidade pode ser mais bem justificada a partir da compreensão do

intérprete – visão de totalidade – sobre os tipos penais incriminadores. O juízo de adequação

necessário para caracterizar o comportamento como censurável – fruto da autodeterminação –

surge da compreensão do intérprete a partir do círculo hermenêutico.

Falar em supralegalidade é afrontar o princípio da legalidade que é conquista do

Estado Liberal e disposição constitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro.

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CONCLUSÃO

1. A experiência histórica denuncia o sentido do direito para a sociedade. Dela se

extrai que os juristas – legitimados pelo povo – assumiram o compromisso de implementação

dos direitos fundamentais para realização do bem comum e do ideal de vida boa.

O Estado Democrático de Direito é conseqüência das experiências de modelos de

Estados absolutistas, liberais e sociais. No modelo absolutista o Estado esteve centrado na

pessoa do rei que detinha o poder justificado por atribuições divinas e pela força de seus

exércitos. Ele serviu os burgueses na medida em que promoveu organização e segurança para

prática de relações comerciais. O Estado liberal é fruto das conquistas iluministas (Revolução

Francesa) e representa a ascenção política da burguesia. Nesse período surgiram os direitos de

primeira dimensão (civis e políticos) e a compreensão de Constituição como documento

escrito que representa a vontade soberana do povo. O Estado social representou a ruptura de

um Estado absteísta. Consagraram-se, nesse modelo, os direitos de segunda dimensão (saúde,

educação, lazer, seguridade social, entre outros). Por sua vez, diante das promessas modernas

não cumpridas pelos Estados liberal e social, o modelo Democrático de Direito apresentou-se

como garantidor de direitos para o bem estar social (bem comum). Aqui surgiram os direitos

de terceira dimensão (meio ambiente e coletividade), os de quarta dimensão (biodireito) e,

para alguns, os de quinta dimensão (cibernética).

A opção do povo brasileiro foi pelo Estado Democrático de Direito e o extenso rol

de direitos fundamentais, abrigados na constituição (1988), têm força vinculante para o

exercício dos poderes executivo, legislativo e judiciário.

2. Quanto ao exercício da prestação jurisdicional penal, os efeitos da (nova)

realidade constitucional – princípios com força normativa – são imediatos e necessários para

uma adequada (re)leitura da legislação infraconstitucional arcaica – legado de um período

autoritário. Ela impõe um sistema acusatório que pressupõe um processo de partes e a busca

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por uma verdade construída (processual) a partir do devido processo legal (justo). Por outro

lado, o código de processo penal representa uma realidade inquisitória em que a gestão da

prova e o desrespeito ao princípio da presunção de inocência são os exemplos mais latentes.

O Direito processual penal, o direito penal, a constituição, a hermenêutica e o

garantismo possuem afinidades para implementação do Estado Democrático (e Social) de

Direito. A Constituição estabelece os parâmetros do devido processo legal, do sistema

acusatório e dos direitos fundamentais e, nesse sentido, ela constitui e dirige a prestação

jurisdicional. O garantismo compreende esses valores como tutela para a liberdade dos

cidadãos (sentido negativo) – garantia contra o arbítrio – e proibição da proteção deficiente

(sentido positivo) – tutela dos direitos fundamentais. O direito processual apresenta-se como

instrumento indispensável para concretização do direito material e dos direitos fundamentais

do acusado. A hermenêutica, por sua vez, auxilia por esclarecer os pressupostos do

compreender que produzem o sentido que o conjunto apresenta – promoção do bem comum –,

pois sentenças legalistas, crentes na subsunção entre o fato e o texto, não atendem a

efetividade esperada da prestação jurisdicional.

3. As concepções teóricas sobre o direito também se relacionam à experiência

histórica. O pensamento positivista do direito constituiu-se (e ainda permanece como tradição

não autêntica) em dever de legalidade absoluto. Em sua primeira versão (positivismo

legalista), reproduziu a idéia do governo das leis com a imperatividade necessária para frear o

poder absolutista e provocou as confusões entre lei e direito e completude do texto com a

realidade dos casos. O neopositivismo ou positivismo normativista, na tentativa de solucionar

esses impasses, propôs um sistema de regras e princípios, onde esse último funcionaria como

filtro na elaboração das regras e controle para a entrada no ordenamento jurídico. O pós-

positivismo, aproveitando-se das experiências anteriores, aprimorou a teoria dos princípios,

estabelecendo métodos e procedimentos, na tentativa de concretizar esses valores na aplicação

do direito. A matriz sistêmica procurou compreender o direito a partir da sociologia –

realidade social complexificada pela globalização. Por sua vez, a hermenêutica filosófica

produziu uma ruptura com esses modelos por revelar outro nível de racionalidade que

antecede qualquer pretensão metafísica relacionada ao emprego de métodos ou procedimentos

na busca de respostas.

4. Para hermenêutica filosófica, a partir da idéia de compreensão, o sentido

apresenta-se como fusão de horizontes numa perspectiva produtiva e não reprodutiva. O

pressuposto metafísico do método cede espaço para a realidade/faticidade, onde cada

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momento é único para interpretar/aplicar o direito. Os preconceitos do intérprete aparecem

como condição de possibilidade sem que hajam atos arbitrários ou discricionarios porque ele

está, obrigatoriamente, vinculado aos critérios de validade do ordenamento jurídico. Dessa

forma, ao contrário das teorias que se utilizam de procedimento e método para busca das

respostas, a hermenêutica é a filosofia – postura de reflexão – sobre o compreender humano e

base teórica para o ato de interpretar.

5. As manifestações pela adoção dos chamados “direitos supralegais”, apesar de não

serem unânimes, encontram forte respaldo na teoria do delito e na jurisprudência. O principal

argumento favorável à aplicabilidade está vinculado à adoção de princípios gerais do direito

(e não constitucionais). Por outro lado, o da rejeição, o argumento é no sentido de ofensa às

conquistas da legalidade e possibilidades de arbítrio.

A evolução teórica sobre o conceito de culpabilidade chegou, influenciada pelo

finalismo, à teoria normativa pura. Ela é entendida, atualmente, como juízo de reprovação e

contém os elementos inimputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de

conduta diversa. Significa dizer que, sob o aspecto puramente normativo, o comportamento

somente será censurado em circunstâncias normais onde o agente tinha condições de agir de

outro modo.

A inexigibilidade de conduta diversa encontra-se presente na legislação

infraconstitucional brasileira sob as formas de obediência hierárquica, coação moral

irresistível, isenção de pena quando ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do agente

auxilia subtrair-se à ação de autoridade pública (art. 348, § 2º, do código penal brasileiro) e no

caso de aborto consentido pela gestante ou representante legal quando a gravidez é resultante

de estupro (art. 128, inciso II, do código penal brasileiro).

Como causa supralegal algumas situações podem ser enumeradas, sem pretensão de

taxatividade: fato de consciência, desobediência civil, conflito de deveres, causa de aumento

de pena, excesso em excludente de ilicitude (estado de necessidade exculpante) e sonegação

fiscal. Também, as situações chamadas supralegais podem ser identificadas no consentimento

do ofendido para eliminação da antijuridicidade e aplicável, em todos os casos (culpabilidade

e antijuridicidade), também no procedimento do Tribunal do Júri.

6. A partir da compreensão hermeneuta, da evolução teórica do direito e do atual

Estado Democrático de Direito é impróprio falar direitos supralegais. A legalidade não pode

ser suplantada porque o Estado Democrático de Direito não neutraliza as conquistas dos

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modelos anteriores de Estado (liberal e social), pelo contrário, soma dimensões de direitos já

conquistados pelo povo.

O problema na adoção dos chamados direitos supralegais está na concepção

positivista que soluciona os problemas difíceis através da discricionariedade do juiz, ou seja,

por essa saída metafísica se cria uma espécie de “válvula de escape” para alimentar ou

justificar o pensamento de completude sustentado. A solução hermenêutica não autoriza

discricionariedades na atividade interpretativa porque o intérprete está vinculado ao sistema

normativo (princípios e regras) e sua compreensão está precedida de elementos históricos e

visão de totalidade. Assim, os juízes não devem ser legisladores porque seus argumentos são

de princípios e não políticos.

No Estado Democrático de Direito a tipicidade e a culpabilidade têm um conteúdo

material. O texto proibitivo tem uma dimensão que serve de parâmetro/critério para o

intérprete, porém, o sentido do texto é completado pela realidade histórica – faticidade – que o

envolve. Dessa forma, tipos de proibição contêm uma justificação moral externa

proporcionada pelos princípios constitucionais que servem de freio ao arbítrio na aplicação do

direito.

As situações chamadas supralegais são resolvidas pela hermenêutica filosófica

através da utilização de princípios constitucionais, como pré-compreensão, que representam a

vontade legítima do povo. A visão de totalidade, com base em valores normativos do sistema,

soluciona a questão sem recorrer às saídas discricionárias e decisionistas e, portanto,

arbitrárias.

A supralegalidade pode ser mais bem justificada a partir da compreensão do

intérprete – visão de totalidade – sobre os tipos penais incriminadores. O juízo de adequação

necessário para caracterizar o comportamento como censurável – fruto da autodeterminação –

surge da compreensão do intérprete a partir do círculo hermenêutico. Falar em

supralegalidade é afrontar o princípio da legalidade que é conquista do Estado Liberal e

disposição constitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro. A saída não é

dispensar a legalidade, mas submeter as regras ao filtro constitucional que sirva de controle de

validade. Essa compreensão totalizante, proporcionada pela hermenêutica filosófica, é

decisiva para o cumprimento dos direitos fundamentais, pelos juristas, no Estado Democrático

de Direito.

7. Por fim, a situação assim se apresenta: por obediência ao princípio da legalidade,

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os tipos penais descrevem o comportamento proibido (tipos de proibição) ou situações em que

esse se justifica (justificantes) ou não é sensurável (exculpantes). O positivismo,

equivocadamente, acredita num ideal de completude das descrições de comportamento ao

passo que a hermenêutica filosófica, acertadamente, entende que o sentido do texto se dá pela

compreensão/visão de totalidade, ou seja, há um aspecto estático (representado pelo texto) e

um aspecto dinâmico (representado pelo contexto) que faz surgir a norma que é compreensão

sobre o texto.

A supralegalidade nas exculpantes e justificantes não pode ser admitida, nos termos

do pensamento positivista, porque no Estado Democrático de Direito e, especialmente no

direito penal, a legalidade é conquista histórica do povo. A hermenêutica filosófica concebe o

que se tem chamado de supralegalidade como parte da compreensão do intérprete, ou seja, no

raciocíneo sobre as descrições legais há algo completado pela visão de totalidade.

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