Globalização, ou metamorfose do capitalismo

27
1 Globalização ou Metamorfose do Capitalismo Jair do Amaral Filho Maria Cristina Pereira de Melo Anais do XXV Encontro Nacional da ANPEC Recife, PE, 09 12 de dezembro de 1997 p. 702 721 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA ANPEC

Transcript of Globalização, ou metamorfose do capitalismo

Page 1: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

1

Globalização ou Metamorfose do Capitalismo

Jair do Amaral Filho

Maria Cristina Pereira de Melo

Anais do XXV Encontro Nacional da ANPEC

Recife, PE, 09 – 12 de dezembro de 1997

p. 702 – 721

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA

ANPEC

Page 2: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

2

Globalização, ou metamorfose do capitalismo

Jair do Amaral Filho

Universidade Federal do Ceará-UFC

[email protected]

Maria Cristina Pereira de Melo

Universidade Federal do Ceará-UFC

[email protected]

1. Introdução

Longe de ser um fenômeno totalmente compreendido e consensual a globalização vem servindo

para explicar tanto as coisas boas quanto as coisas ruins manifestadas nas economias nacionais e

locais. A dificuldade de se compreender tal fenômeno deve-se ao seu estado inacabado, à sua

amplitude e à sua complexidade mas também à manipulação ideológica da noção e do conceito de

globalização. Por sua vez, a heterogeneidade que se encontra nas interpretações dos seus resultados

computa-se ao fato de a globalização, na situação que se apresenta, ter produzido tanto ganhadores

como perdedores, demonstrando ser um jogo a soma nula.

O presente texto tem a intenção de fazer uma leitura do fenômeno da globalização, entendendo

que longe de ser um fenômeno definido e homogêneo ele é por enquanto mais uma metamorfose do

capitalismo a nível mundial. Entretanto, esta metamorfose tem a particularidade de devolver ao

capitalismo a sua vocação de sistema global, contando para isso com uma base técnica sem

precedentes na história. Em primeiro lugar, será examinado a emergência do termo globalização, seus

impactos sobre os termos consagrados e sua correspondência com a realidade. Em segundo lugar,

procurar-se-á identificar uma “história específica” para o fenômeno em questão, dentro da qual se

verifica a quebra do regime de acumulação assim como do modo de regulação que predominaram nas

economias capitalistas durante os “trinta gloriosos” anos que sucederam a II Guerra Mundial. Em

terceiro lugar, tratar-se-á dos atores protagonistas do fenômeno da globalização, procurando identificar

seus papéis. Em último e quarto lugar, verificar-se-ão os impactos e os desdobramentos provocados

pela referida metamorfose sobre a configuração do capitalismo mundial.

Page 3: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

3

2. Emergência do termo

A Globalização está irremediavelmente na ordem do dia, e por um longo tempo. Poucos foram

os temas que ocuparam tanto espaço na imprensa, nas discussões informais, nos debates acadêmicos e

ganharam alcance planetário quanto o da globalização da economia. Forjado (segundo CHESNAIS,

1994) no início da década de 80 dentro das grandes escolas americanas de administração das empresas

ou (segundo BOYER, 1996) originado na literatura consagrada às firmas multinacionais, depois

popularizado pelos livros de consultores internacionais (como OHMAE) durante toda aquela década, o

termo globalização difunde-se com força nos anos 90, já por influência do surgimento e da aceleração

de seus resultados concretos.

A partir daí o termo globalização passou a deslocar termos consagrados pela Ciência

Econômica tais como “Economia Internacional”, “Internacionalização”, “relação Norte-Sul”, “Centro-

Periferia”, que preenchiam a função de caracterizar a configuração da economia mundial. Estes termos,

associados às noções de fronteiras, regulamentações e divergências entre nações, perdem espaço para

globalização, este porém mais associado à derrubada das fronteiras, as desregulamentações e a pretensa

convergência dos resultados positivos de um mundo globalizado.

O termo globalização passou também a absorver outros termos, em especial aqueles com

pretensões de explicar o novo “modus operandi” da economia mundial, tal como “economia pós-

industrial”, para designar o forte crescimento do setor serviços, e “pós-fordismo”, para indicar a

emergência de novos sistemas organizacionais e produtivos como, por exemplo, o toyotismo.1 Estes

últimos termos, dado o seu caráter parcial, passaram tão somente a fazer parte do conjunto de

características da globalização. Diante desses dois impactos observa-se que o termo globalização vem

assumindo, do ponto de vista da retórica, uma força unificadora muito embora reducionista.

1Sistema desenvolvido originalmente pela firma japonesa Toyota, e que se contrapõe ao sistema tradicional taylorista.

Page 4: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

4

Apesar da extensão tomada na utilização do termo globalização há que se ressaltar o

desconforto no seu emprego, tendo em vista que aquele termo passa a idéia de uma situação definida,

adquirida e generalizada. É verdade que a queda das barreiras comerciais, as desregulamentações dos

mercados em especial financeiro, a queda dos custos dos transportes internacionais e o avanço

tecnológico nas telecomunicações e na informática revolucionaram as noções de tempo, espaço e por

consequência de comunicação mas, rigorosamente, o termo globalização, tal como o senso comum nos

faz passar, não corresponde perfeitamente à realidade.

Pretendendo traduzir o atual estágio do capitalismo mundial a globalização não seria mais do

que uma possibilidade futura, aquela do capitalismo total, em todos os países, em todos os segmentos

das atividades humanas, promovendo a homogeneização das normas de consumo, normas de produção,

a livre circulação mundial das mercadorias, do capital, do trabalho e do conhecimento.

Neste sentido globalização é um termo precoce. Entretanto, percebe-se que ele é utilizado

conscientemente pelas instituições internacionais, grande imprensa2, altos funcionários de governos

dos países industrializados e representantes das firmas multinacionais na forma de conceito e de

ideologia com o fim de desobstruir as forças contrárias ao pleno funcionamento do mercado, mas

também com o objetivo de procurar acelerar e coordenar, a seu favor, o processo em curso, que deve

levar o capitalismo mundial ao seu estágio mais avançado, aquele do capitalismo total e globalizado.

Independente das idiossincrasias, o momento atual da globalização pode ser definido como um

fenômeno ao mesmo tempo comum e singular na história do capitalismo mundial, ambos se

manifestando através do processo da metamorfose. A metamorfose é comum ao capitalismo porque

ela sempre esteve inerente a esse sistema e nunca o abandonou, ao contrário dos sistemas anteriores.

Além do que todas as metamorfoses experimentadas pelo capitalismo sempre procuraram o caminho

da expansão global. Mas ela é singular porque a metamorfose em curso anuncia uma mudança radical

na forma e na estrutura desse sistema, sem no entanto destruir ou esconder sua natureza, portadora de

resultados contraditórios. Portanto o momento é de grande metamorfose, isto é, um momento de

passagem para um estágio mais avançado do capitalismo, cujo desenho mantém-se ainda indecifrável.

Page 5: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

5

3. História e regras da globalização

A globalização não é um fenômeno sem história nem desprovida de regras. De um lado, a

globalização está associada a um encadeamento de processos e fatos históricos recentes que se

encarregaram de desmantelar o regime de acumulação das economias capitalistas que predominou

durante os “trinta gloriosos” anos que sucederam à II Guerra Mundial. De outro, a dita globalização

vem sendo regulada por um conjunto de regras de comportamento macro e microeconômicos,

regulação essa que se convencionou chamar de “pensamento único”.3 Diante do desaparecimento dos

fundamentos de Bretton Woods, essas regras vêm servindo de modo informal de regulação mundial

mas com o papel específico de coordenar e acelerar o processo de constituição da nova fase do

capitalismo mundial. Como pode se observar a globalização implica num efeito de substituição do

regime de acumulação e do modo de regulação predominantes na era capitalista do fordismo, o que não

quer dizer desaparecimento completo de suas características.

....encadeamento de processos e fatos históricos...

É sabido que para a história do capitalismo o aspecto da expansão global da relação salarial

assim como dos capitais e dos mercados não apresenta nenhuma novidade. No entanto o processo

atual de globalização está associado a uma série datada de processos parciais e fatos envolvendo ações

e reações da parte de indivíduos, Estados-nações, instituições multilaterais e firmas multinacionais que

provocaram conseqüências com repercussões mundiais. A conseqüência síntese desse movimento foi

a destruição do tecido das relações internacionais entre as nações colocado em prática depois da

segunda guerra mundial.

2Neste sentido é interessante ler o artigo de Thomas L. Friedman, “Don’t Leave Globalization’s Losers Out of Mind”,

publicado na seção editorial/opinion do Herald International Tribune, de 18.07.96, pg.8. 3O termo pensamento único tem uma origem européia e tem o objetivo de caracterizar a situação de convergência de idéias

ortodoxas em matéria de políticas econômicas e sociais nos países. Na América Latina o termo poderia ser Consenso de

Washington, e em Washington propriamente o termo toma a forma de Ajuste Estrutural. Para mais elementos sobre o

pensamento único ver MENTHON, PLASSART e VITTORI (1996) e GEORGE (1996). É interessante ver também

KRUGMAN (1994) com respeito à ascensão do conservadorismo na teoria e políticas econômicas, em particular nos EUA.

Page 6: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

6

O início desse encadeamento de processos e fatos históricos pode ser identificado no começo da

década de 70, exatamente no ponto de inflexão dos trinta gloriosos anos, quando o sistema fordista de

produção começa a conhecer sua crise endógena, ou seja, queda na rentabilidade, fatiga do Estado

providência e capitulação das regras monetárias e financeiras estabelecidas pelo acordo de Bretton

Woods, cujo principal emblema é a desvinculação entre o dólar e o ouro em 1971. A generalização

das políticas de câmbio flutuante, a partir de 1973, o crescimento e a autonomização do mercado

eurodolar nos anos 70 só fizeram confirmar essa capitulação.

Em seguida vieram os choques do petróleo, que não só trouxeram o fenômeno novo da

“stagflação” mas também um outro , igualmente novo, que foi a emergência financeiro-produtiva de

um grupo importante de países periféricos no mercado internacional. Todos esses países foram, de

alguma forma, alavancados pela forte redistribuição de renda verificada a nível internacional,

promovida pelos choques do petróleo e operada pelas inovações do sistema financeiro internacional da

época. A elevação dos preços do petróleo permitiu a emergência financeira dos países periféricos

produtores de petróleo, mas também a alavancagem da industrialização de outros países, asiáticos e

latino-americanos, não necessariamente grandes produtores de petróleo, pela via dos petrodólares,

antes passando pelo filtro do mercado eurodólar.

As mais importantes reações e conseqüências provocadas por esses fenômenos foram, de um

lado, o renascimento das teses monetaristas para combater a “estagflação” e, de outro lado, a alteração

da Divisão Internacional do Trabalho (DIT) marcada pela entrada dos “novos países industriais” (NPIs)

na oferta mundial de bens de consumo duráveis, bens de capital, armamentos e serviços na área de

construção de infra-estrutura. A alteração importante operada no interior da DIT é que, nas relações

comerciais envolvendo países desenvolvidos e em desenvolvimento, as relações concorrenciais

avançam em detrimento das relações complementares, derivando daí uma certa tensão comercial. No

entanto, por trás dessa nova força dos NPIs formou-se um gigantesco estoque de dívida externa

compartilhado com os países primários exportadores, fato este que foi responsável pela fragilização

econômica destes países, especialmente América Latina e África, neste momento crucial da

globalização.

Page 7: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

7

As principais economias industrializadas não ficaram sem reação face aos choques do petróleo

e à alteração na Divisão Internacional do Trabalho. Essa reação, evolutiva, foi de seis ordens, (i)

ajustes nos custos de produção acompanhados de aceleração nas inovações tecnológicas, (ii)

desenvolvimento de programas de produção de energias alternativas, (iii) defesa da balança de

pagamentos através das flutuações das taxas de câmbio, (iv) implantação de políticas anti-

inflacionárias de caráter monetarista, (v) saneamento financeiro do Estado acompanhado por medidas

que levassem a uma menor participação do Estado na economia e (vi) aumento da pressão pelo livre

comércio, canalizado através da implantação da Rodada de Uruguai em 1986. Há que se notar que

entre o final da década de 70 e início da década de 80, o cenário internacional ganha novos atores,

Margareth Tatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos, autênticos restauradores da

ordem néo-liberal.

Da cadeia dessas reações são produzidos alguns fenômenos novos tais como:

(i) a forte valorização do dolar, a acentuada elevação dos juros internacionais e a conseqüente

crise da dívida externa dos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos no início dos anos 80; esta

conseqüência trouxe o risco de uma grande crise para o sistema financeiro internacional mas em

compensação ela proporcionou a esse mesmo sistema uma oportunidade para se modernizar e se

reorganizar além de dar às instituições internacionais a base para uma re-aprendizagem em matéria de

técnicas de coordenação, ora utilizadas no processo de globalização;

(ii) a emergência do Japão como portador de um vitorioso paradigma organizacional-

produtivo-tecnológico com o conseqüente deslocamento do sistema fordista de produção mas também

um deslocamento momentâneo da economia americana no posto de liderança no campo tecnológico.

Esse poder japonês, nos anos 80, tem suas raízes na necessidade de respostas à crise energética dos

anos 70 e ele ficou associado às grandes transformações da base técnica do capitalismo a qual veio

servir de base de aceleração técnica da globalização. Em síntese essas transformações estão

identificadas com a microeletrônica e a flexibilização da produção;

Page 8: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

8

(iii) a afirmação da doutrina néo-liberal enquanto matriz filosófica e econômica para os ajustes

estruturais e as políticas macro-econômicas, tendo como laboratórios as economias norte-americana e

inglesa e, em menor escala e de maneira pioneira, a economia chilena.

(iv) o triunfo da doutrina do “livre-comércio”, consubstanciado na conclusão da Rodada do

Uruguai em Marrakech no ano de 1994, depois de sete anos de discussão. Nessa ocasião mais de 120

países colocaram-se de acordo com a abertura do comércio sobre as mercadorias industriais e agrícolas

e serviços além de regulamentar a propriedade intelectual.

(v) a desintegração dos sistemas socialistas na ex-URSS e nos países do leste europeu mais

ainda a reação da economia americana nos anos 90 provocaram uma forte aceleração bem como uma

maior definição do processo de globalização. A falência da socialização dos meios de produção assim

como do planejamento central naqueles países proporcionaram às leis do mercado legitimidade global,

além de acrescentar ao sistema capitalista uma porção considerável de mercado consumidor potencial.

Esta legitimidade fica reforçada pela adesão da China à essas leis mesmo que estas tenham que

conviver com a onipresença do Estado.

Por seu lado, a reação da economia americana, seja através da desvalorização do dolar e da

adoção de políticas desregulamentadoras seja através da reestruturação das empresas multinacionais de

origem americana, permitiu a essa economia retomar com força o crescimento econômico ao mesmo

tempo recuperar parte do terreno perdido no domínio tecnológico, em especial, para a economia

japonesa.4 Este revigoramento da economia americana concede a ela uma posição privilegiada no

processo de globalização .

....o “pensamento único” enquanto regras e coordenação....

4Diante disso o governo japones vem procurando reagir a fim de recuperar essa perda ao mesmo tempo que visa fazer face à

globalização. Em 1995 o ministério da educação japones quase dobrou o orçamento da Sociedade Japonesa para a

Promoção da ciência (JSPS). Em junho de 1996 o governo japones acrescentou em 60% os orçamentos públicos

envolvidos com as atividades científicas e tecnológicas. Ver Alain-Marc Rieu “Comment le Japon fait face à la

globalisation”, Le Monde, 20.11.97

Page 9: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

9

Então, se de um lado há um encadeamento de processos e fatos históricos que se encarrega da

construção real da globalização, de outro, há o “pensamento único”, um conjunto de regras que se

encarrega de coordenar esse processo. Este fenômeno pode ser definido como sendo a mobilização de

algumas idéias, conceitos, teses e teorias convergentes a fim de criar um meio ambiente cultural e

institucional uniforme e favorável à aceleração do processo de globalização, impondo a este processo

um ritmo à marcha forçada mas “legítimo” e sobretudo “racional”.

Este conjunto de regras não está desvinculado dos processos e fatos históricos referidos

anteriormente, pelo contrário, ele reflete os paradigmas triunfantes nas experiências de políticas e

ajustes econômicos, cuja fonte principal é a doutrina néo-liberal. Sua afirmação como doutrina

dominante ficou facilitada pelo enfraquecimento endógeno dos dois paradigmas rivais, social-

democracia e socialismo, que se desgastaram promovendo a guerra fria.

Nesta fase da globalização, além do papel de promotor da quebra dos obstáculos que obstruem

a expansão global do capitalismo, o “pensamento único” é também o promotor principal da grande

controvérsia que se estabeleceu entre o capitalismo puro e duro, dominante nas regiões anglo-

saxônicas, e o capitalismo social de mercado, dominante nos países da Europa continental.5 Apesar de

seu papel de coordenador do processo de globalização o “pensamento único” não substitui as regras de

Bretton Woods, e sua sobrevida depende das contradições e dos desdobramentos desta fase da

globalização.

O “pensamento único” está baseado em uma série de axiomas, que listaremos e resumiremos a

seguir sem entrarmos nos aspectos críticos dos mesmos:

i) livre-troca: ausência de barreiras alfandegárias a fim de permitir a livre-troca de mercadorias

e serviços. A livre troca, combinada com a especialização da produção em setores onde haja

vantagens comparativas, permite aumentar o fluxo do comércio internacional, acionar o crescimento

econômico além de gerar e de distribuir ganhos generalizados entre as economias que participam desse

sistema. Esta tese, teorizada desde os clássicos da economia como David Ricardo, praticamente se

5Sobre essa controvérsia ver M. Albert (1994)

Page 10: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

10

confunde com o processo de globalização na medida que ela combate a existência de fronteiras

econômicas entre os Estados-nações. Neste sentido, a livre-troca tornou-se a pedra fundamental da

globalização devido ao fato de que a abertura comercial provoca instantaneamente um confronto entre

os preços relativos das economias nacionais, o que obriga um nivelamento por baixo dos custos de

produção. O sistema produtivo, setor ou indústria que não se adapatar a esse ajustamento candidata-se

fatalmente a ser um perdedor dentro do processo de globalização;

ii) presença mínima do Estado na economia e valorização da iniciativa individual: a presença

do Estado na alocação dos recursos econômicos é tida como uma anomalia, contra as forças naturais

do mercado, estas sendo as principais responsáveis pela alocação ótima e o equilíbrio natural dos

mercados. Daí o governo ter que diminuir o déficit público, privatizar as empresas públicas mas

também diminuir os impostos sobre o capital, a fim de estimular o investimento e o crescimento. De

outro lado, a reprodução material do indivíduo deve contar sobre ele próprio e não sobre a sociedade,

quando ela se dá através da intermediação do Estado providência. O indivíduo deve receber como

salário o correspondente à sua qualificação e deve, ele próprio, ser previdente com relação aos riscos e

ao futuro.

iii) desregulamentação dos mercados: supressão das restrições à entrada e participação de

capitais externos nas atividades econômicas internas de cada país. Neste item dá-se atenção especial à

desregulamentação do mercado de trabalho, visando a diminuição dos encargos sociais e a

flexibilização dos contratos e do salário mínimo.

iv) autonomia do econômico vis-à-vis dos valores ético, social e político: o homo economicus é

o único lado do homem com a capacidade de determinar a escolha e a decisão ótimas, seja ele

consumidor ou empresário. A interferência de qualquer outro tipo de valor torna a escolha e a decisão

carregadas de sentimentalismo, assistencialismo e populismo. A autonomia do econômico permite

uma alocação mais racional e eficiente dos recursos.

v) inflação zero: o combate à inflação deve ser uma luta sem trégua, mesmo que isso tenha que

custar a recessão econômica. Por trás disso existe a idéia simples de que a inflação zero não só

Page 11: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

11

estabiliza o câmbio e gera competitividade externa à economia mas permite baixar as taxas de juros

nomimal e real. Ambos os fatores encarregando-se de restabelecer o crescimento econômico.

Curiosamente, por um certo momento, o “pensamento único” tentou agregar ao seu conjunto de

teses o fenômeno do crescimento vigoroso do sudeste asiático como sendo um paradigma néo-liberal

de crescimento, o que foi um equívoco. Mesmo se a adesão à livre-troca começa a se fazer sentir na

região asiática a presença do Estado na economia além da forte regulamentação dos mercados

desqualificam qualquer classificação néo-liberal. De acordo com COHEN (1996, p.42), nos tigres

asiáticos “o Estado é muitas vezes o ator maior das estragégias de crescimento. Portanto, se se pode

falar de liberalismo, é em razão do papel fundamental jogado pelo mercado mundial na validação das

estratégias escolhidas”. Entretanto, o savoir-faire industrial japonês e a cultura asiática do trabalho,

fortemente marcada pela disciplina, determinação, precariedade e flexibilidade, passaram a servir de

importantes fontes reais de inspiração ao “pensamento único”.

4. Os atores

Na realidade, em se tratando de um processo de globalização da economia, todos são em

alguma medida atores ou ao menos implicados nesse processo. Uns com menos outros com mais

importância, uns menos outros mais conscientes. Entretanto, a construção da globalização vem sendo

influênciada por um número restrito e conhecido de atores, trata-se das instituições internacionais, os

Estados-nações, sobretudo industrializados, e, principalmente, as firmas multinacionais. Apesar de

constarem como “velhos” atores protagonistas na história do capitalismo eles agora ocupam papéis um

pouco diferentes daqueles que figuraram nas fases anteriores.

No tocante às instituições internacionais, tais como a Organização das Nações Unidas (ONU),

Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BID), Organização Internacional do Trabalho

(OIT), Organização Mundial do Comércio (OMC), etc. assiste-se a um real paradoxo, ou seja, ao

mesmo tempo em que esses organismos atravessam uma verdadeira crise de identidade devido à

evaporação dos princípios do acordo de Bretton Woods, ao fim da guerra fria, à profunda mutação do

Page 12: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

12

capitalismo e à multipolaridade de poderes, ao crescimento do crédito privado internacional, etc.

essas instituições ocupam o lugar de vanguarda na coordenação do processo de globalização.

É impossível não encontrar nos relatórios, circulares, folhetos, discursos, etc. emitidos por essas

instituições alguma alusão ou a presença de algum dos aximas pertencentes ao “pensamento único”,

mesmo porque essas instituições desde muito são parte formuladora desse pensamento. O Fundo

Monetário Internacional é o exemplo mais marcante dessa transformação, antes segundo ADDA

(1996), guardião da ordem monetária internacional, zelando pelo equilíbrio externo e as políticas de

câmbio fixo entre os países, o FMI se transforma, junto com o Banco Mundial, nas principais

instituições propagadoras dos fundamentos dos ajustamentos estruturais entre as economias em

transição.

Além desse papel pedagógico e ideológico, essas instituições ainda detém um poder

considerável em matéria de influência sobre as diretrizes de políticas macro-econômicas e estruturais

das pequenas, médias e até mesmo grandes economias subdesenvolvidas e em desenvolvimento, em

especial na África, América Latina e Leste Europeu, onde se concentram os principais problemas

estruturais da economia mundial. Esse poder está associado à posição privilegiada dessas instituições

quanto à mobilização internacional de recursos financeiros mas também quanto à legitimidade que

gozam no que diz respeito à avaliação do desempenho das economias, avaliação essa levada em

consideração pelos investidores privados internacionais. Por exemplo, o papel ocupado pelo FMI na

operação de salvamento financeiro da economia mexicana, em 1994, é um exemplo cabal desse papel,

isto é, a referida instituição acordou ao México um empréstimo que chegava no teto dos US$ 17,8

bilhões, uma soma jamais concedida pelo FMI soma essa que representava 688% da cota-parte do

México junto àquela instituição (CANDESSUS, 1995).

Quanto aos Estados-nações, apesar da imagem propagada de que esses vêm perdendo soberania

política em função da globalização, na verdade o que se pode constatar é que, através de suas decisões,

os Estados-nações vêm se constituindo num pólo importante na construção da globalização, indicando

que o movimento de fatores é global mas as decisões políticas são locais ou regionais. Através das

medidas e reformas adotadas pelos governos nacionais em matéria de desregulamentação do mercado

Page 13: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

13

financeiro, liberalização do comércio externo, reformas do estado e privatização e flexibilidade do

mercado de trabalho foi possível uma aceleração sem precedente do fluxo do comércio de mercadorias

e serviços, da migração do capital financeiro e do deslocamento industrial. De seu lado, a diminuição

nos custos de transporte e de telecomunicações, aliado às novas tecnologias de informação,

encarregaram-se de aprofundar o processo.

É bem verdade que antes deste período de globalização, as decisões locais davam-se com base

numa forte motivação local em que a formação social e as contradições políticas locais ajudavam a

influir na formulação das políticas econômicas. Mas, no ambiente de globalização, até mesmo por

motivações de mimetismo das economias nacionais, as políticas econômicas dos países sofrem o peso

da “convergência”, promovida por fatores de variadas naturezas: acordos e compromissos regionais,

mobilidade dos capitais a nível global, variação global das taxas de juros e flutuação das taxas de

câmbio entre as economias. Por seu lado, as economias subdesenvolvidas e em desenvolvimento

recebem de perto a influência do monitoramento das instituições internacionais. Considerada por

MICHALET (1995) como sendo uma das principais conseqüências da globalização a erosão do poder

econômico dos Estados-nações têm como principais constrangimentos externos, de um lado, o

imperativo industrial e a concorrência e, de outro lado, o imperativo da atração de capitais externos.

Enfim, é muito claro a tendência de interdependência entre as políticas econômicas nacionais,

mas essa tendência não significa obrigatoriamente um esvaziamento absoluto da soberania nacional

dos Estados-nações, sobretudo no campo político, hipótese esta que nos deixa supor a existência de um

resíduo de margem de manobra para os chamados Estados-nações. Pode-se falar, contudo, de perda de

autonomia ideológica dos partidos políticos, em especial não liberais, quanto à execução de seus

programas, em função da forte convergência mundial em matéria de doutrina econômica. Todavia esse

processo de esvaziamento de soberania neste processo de globalização parece não ser idêntico para

todos os países, ele é menos evidente para o Grupo dos 7 (sete) e muito menos evidente ainda para os

Estados Unidos da América que, segundo KÉBABKJIAN (1994) NYE (1992) e outros, mantêm de

longe uma liderança imbatível sobre outras nações, sobretudo porque:(i) têm a maior participação no

PIB mundial, (ii) conseguem influir decisivamente nas regras do jogo mundial, (iv) suas

Page 14: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

14

multinacionais detêm a maior parcela da produção mundial e (v) mantêm a liderança na geração e

controle da alta tecnologia, em especial no campo da informação.

O ator ou o pólo principal da globalização está representado pelas firmas multinacionais,

devido à dinâmica imprimida por essas na economia mundial, em função da forte concorrência

estimulada pelas inovações, pela liberdade de ação e pela redução de custos mas principalmente porque

nesta fase de globalização há um consenso global a favor do capital, fator não evidente até o início da

década de 80. No contexto da globalização os Estados nacionais cedem finalmente diante do estatuto

extraterritorial (MICHALET, 1984) devido às firmas multinacionais, passando a participar da

desobstrução dos entraves à circulação das mercadorias, dos fatores e das informações. A realidade da

globalização não é mais aquela do confronto entre Estados-nações e firmas multinacionais mas

preferencialmente de uma articulação entre ambos, marcada agora por um crescimento da autonomia

dessas firmas em relação aos Estados-nações.

A importância, portanto, das firmas multinacionais está no aspecto do movimento das

mercadorias e dos fatores assim como na propagação de um espaço homogêneo, porque segundo

MICHALET (1995) ao se deslocarem espacialmente elas levam consigo uma série de outros

componentes (financeiro, comercial, tecnológico, cultural). As firmas multinacionais, segundo

ANDREFF(1996), tornaram-se em um modo de organização da economia mundial e, neste sentido,

elas podem ser qualificadas de globais. Ainda, o citado autor, as multinacionais globais são atores

engajados na formação de um capitalismo mundial cujo desenvolvimento carrega consigo

desigualdades e contradições em escala mundial.

Aquelas firmas utilizam-se de vários mecanismos para manter e reforçar seu poder de

concorrência tais como investimento direto na forma de filiais, de fusões e aquisições, de alianças de

diversas naturezas -comercial, produtiva, tecnológica - formando rede de firmas , ou ainda

estabelecendo firmas-rede, modalidade caracterizada pelas novas formas de subcontratação. Esse

tecido constitui o núcleo do sistema mundial emergente onde se observa uma integração crescente

indústria-serviços. De seu lado, a globalização bancária e financeira facilita, sem dúvida, os processos

de fusão e aquisição desejados e operados pelas multinacionais.

Page 15: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

15

5. Nova configuração do capitalismo mundial: implicações controvertidas da globalização

A imagem construída pelos “manipuladores de símbolos” (termo utilizado por REICH, 1991),

aquela de uma globalização interdependente e harmoniosa, continua ainda a servir de idéia força à

globalização mas ela está longe da realidade. A globalização segue seu curso lógico, produzindo

resultados prodigiosos, tais como o controle da inflação a nível mundial e o crescimento em várias

regiões, no entanto seus efeitos excludentes e indesejados apresentam-se de maneira acentuada. Na

verdade, as implicações do processo de globalização, dadas as suas características atuais, diferem a

nível dos indivíduos, grupos sociais, países e regiões, produzindo ganhadores e perdedores. Essas

divergências estão associadas às condições iniciais de participação e de acumulação, seja de capital ou

de conhecimentos, em que cada parte integrou-se ao processo em questão.

Os efeitos excludentes e indesejados estão associados a todas as vertentes da globalização:

financeira , produtiva-tecnológica e comercial. A primeira, a financeira, diz respeito à autonomização

do capital financeiro seja em relação ao país de origem seja ao capital produtivo bem como à

centralização financeira; a segunda, a produtiva e tecnológica, está associada aos deslocamentos

industriais, identificados através dos investimentos diretos no exterior (IDE), assim como a

concentração produtiva e tecnológica - o reforço do poder concorrencial dos oligopólios e a

concentração da renda; a terceira, a comercial, diz respeito à multiplicação concentrada ou polarizada

do fluxo comercial mundial.

...esfera financeira...

A esfera financeira da globalização vem apresentando dois aspectos marcantes e interligados, o

primeiro, é a mobilidade e autonomia com que se movimenta o capital financeiro no mundo e, o

segundo aspecto, é a persistência do elevado custo do aluguel do dinheiro provocando o efeito da

financeirização da economia.

Page 16: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

16

Todo e qualquer tipo de empreendimento não se realiza sem a participação prévia do capital

financeiro ou do crédito. Sendo assim o capital financeiro é o pai de todas as formas dos capitais,

comercial e industrial. Essa singularidade permitiu ao capital financeiro uma participação pioneira e

permanente em todas as fases de expansão global do capitalismo, estando presente nas grandes

descobertas, na difusão dos resultados da Revolução Industrial, na comercialização das inovações

científicas, na formação da dívida externa dos países tanto desenvolvidos quanto periféricos, na

emergência dos novos países industriais (NPIs) e como não poderia deixar de ser neste processo de

globalização.

Neste momento da globalização o capital financeiro está por trás da aceleração do comércio

mundial assim como dos deslocamentos industriais, no entanto é importante ressaltar que, além desse

papel, de certa forma clássico, o capital financeiro vem apresentando certas características, embora

latentes, novas.

A mais evidente dessas características é a acelerada autonomia dos capitais e massas financeiras

em relação ao país de origem e ao capital produtivo. A autonomia em relação ao país de origem deve-

se à liberalização e a desregulamentação dos mercados financeiros. A autonomia em relação ao capital

produtivo deve-se, por sua vez, ao elevado custo do aluguel do dinheiro, que reserva à esfera financeira

o locus principal de valorização, gerando o fenômeno da financeirização.

A característica nova, e a menos percebida pelos não especialistas, assumida pelo capital

financeiro na globalização é o crescimento de importância da sua forma fictícia. Apoiado na

desintermediação, na desregulação e na liberalização dos mercados (três regras básicas da globalização

financeira para PLIHON, 1996) como também nos inúmeros tipos de inovações tecnológicas ocorridas

no segmento da intermediação financeira, o capital financeiro passou a se afastar das operações

clássicas de crédito. Na globalização ele passa fortemente a se fazer presente nas transações de títulos

público e privado, nas bolsas de valores e nos papéis de mercado futuro.

Segundo relatório anual da OMC (1996), os fluxos de investimentos diretos e os fluxos de

investimentos em carteira internacionais foram mais ou menos iguais durante o período 1988-90 após

Page 17: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

17

o que os investimentos em carteira cresceram mais de duas vezes os investimentos diretos, entre 1990

e 1993. Essa forma de existência tornou o capital financeiro mais volátil e mais perigoso para a

estabilidade dos sistemas financeiros nacionais mas também para o sistema financeiro global, mais do

que nunca integrado.

Quanto à financeirização propriamente dita, mesmo tendo passado o pior momento de crise

mundial da dívida externa e mesmo havendo uma abundância de capital ocioso, o custo do aluguel do

dinheito ainda está elevado. Isto tem provocado uma elevação do chamado custo de oportunidade das

atividades econômicas a favor dos mercados de papéis, fenômeno este que passou a ser chamado de

financeirização da economia. Isso significa que os indivíduos preferem cada vez mais investir em

títulos em detrimento do consumo e do investimento produtivo. Mesmo os empresários produtivos

passaram eles próprios a apostar no retorno rápido desse mercado.

A financeirização está associada à obcessão dos governos pela meta da inflação zero, que

pressiona as taxas de juros, mas ela também está ligada à disputa entre as economias em fase de

ajustamento estrutural pela conquista do capital externo, a qualquer custo. Este tem sido o caso dos

países latino-americanos tais como a Argentina, México e Brasil. A financeirização não tem sido

neutra e ela tem trazido conseqüências perversas tanto para os países da OCDE quanto para os países

periféricos e essas conseqüências são de três ordens: crescimento financeiro das dívidas públicas assim

como o conseqüente aumento da carga dos juros, enfraquecendo os Estados; diminuição dos

investimentos produtivos e por conseqüência o aumento da taxa de desemprego e, por último, a

transferência de renda dos indivíduos assalariados ou daqueles desprovidos de poupança para aqueles

indivíduos que detém renda e poupança.

...esfera produtiva-tecnológica...

No processo de globalização os oligopólios mundiais são, sem dúvida, fortalecidos. A

internacionalização crescente da produção, os movimentos de fusão/aquisição que vêm ocorrendo a

nível nacional e mundial e as formas de acordos interempresas resultam na criação e consolidação de

oligopólios mundiais. Essas estruturas concentradas reforçam as barreiras à entrada e dificultam a

Page 18: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

18

participação de empresas outras nos mercados onde atuam. Deve-se ressaltar que o rápido crescimento

do investimento direto nos anos 80 e 90 esteve assentado no investimento internacional cruzado -

reciprocidade entre regiões - com grande ênfase para as fusões/aquisições. O total em valor das

fusões/aquisições em 1995 foi duas vezes maior que o nível de 1988, este fato está relacionado com o

significativo número de operações acima de 1 bilhão de dólares(TABELA 1). Segundo relatório da

UNTACD(1996) a expectativa é número e valor maiores dessas transações para 1996. As firmas,

através dessa forma de investimento, protegem, consolidam e avançam posições no mercado em que

atuam na medida em que se desfazem de segmentos que estão fora de seu núcleo de competência e

adquirem estrategicamente segmentos que potencializam sua competitividade.

TABELA 1

Fusões / Aquisições efetuadas por firmas estrangeiras

(1988-1995) (bilhões de dólares)

Economia 1988 1990 1992 1993 1994 1995

Todos países

112,5

159,6

122,1

163,1

196,3

229,4

Países

desenvolvidos

110,0

132,7

81,3

97,4

128,5

161,3

Países em

desenvolvimento

2,3

18,0

29,0

53,4

73,0

63,6

Àsia

0,8

9,4

17,6

33,3

39,8

29,5

América Latina

1,5

8,5

10,5

12,4

12,0

10,6

Brasil

0,2

0,06

0,5

1,0

1,4

2,1

Fonte:UNTACD(1996)

Tem-se constatado movimento ascendente de fusões/aquisições também na América Latina,

nos últimos anos. A tendência à desnacionalização do aparelho produtivo industrial de um país pode

acarretar conseqüências inevitáveis para a perda de autonomia de possíveis políticas industriais. Em

1995 e 1996 , o capital estrangeiro comprou ou se associou a um número crescente de empresas

brasileiras, abrangendo os mais variados segmentos industriais como: bens de capital, autopeças,

Page 19: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

19

eletrodomésticos, eletrônicos, alimentício, brinquedos, higiene e limpeza, gráfico; em vários desses

segmentos o capital estrangeiro passou a ser dominante nesse curto espaço de tempo.

Tendo em conta a importância que reveste os investimentos diretos estrangeiros sobre a

atividade econômica e a geração de renda para as economias latino-americanas, a reação dos Estados

face à globalização é adotar políticas liberais e atrativas que favoreçam a entrada desses capitais. A

participação do Estado muita vezes não é compatível com as premissas liberais que norteiam suas

políticas econômicas. Na disputa dos Estados-nações por investimentos estrangeiros diretos poderá

ocorrer supervalorização das vantagens auferidas.

Se, de um lado, observa-se um aprofundamento da concentração da produção mundial em

termos micro, em termos macro a tendência já estabelecida não se reverte, com inflexão para certas

áreas de forma positiva - Ásia - ou negativa - África negra e América Latina. Os investimentos das

empresas multinacionais têm ocorrido, sobretudo, no interior da Tríade - os chamados investimentos

cruzados - o que favoreceu uma velocidade de integração nesse ambiente sem precedentes.

Observando-se os países hospedeiros nota-se que os estoques de investimentos diretos mundiais foram

crescentes, entre 1967 e 1989, para os países industrializados - em 1967 estes detinham 69,4%

passando para 80,8% em 89, enquanto os países em desenvolvimento viram sua parcela decrescer de

30,6% para 19,2% para os mesmos anos(CHESNAIS,1994). A evolução recente pode ser evidenciada

na TABELA 2.É preciso ressaltar que os fluxos de investimentos diretos estrangeiros em direção à

Ásia, em 1994, ultrapassaram aqueles orientados para a Europa ocidental. Existe constatação que uma

parte importante dos fluxos de investimentos diretos dos EUA e do Japão vão em direção a países onde

os salários são mais altos, a mão-de-obra mais qualificada, o mercado nacional importante e fracas

restrições às atividades das empresas.

Page 20: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

20

TABELA 2

Fluxo de Investimento Direto Estrangeiro por País Hospedeiro

(bilhões de dólares) (%) (1988-1995)

Ano Países

Desenvolvidos

Países em

Desenvolvimento

Europa

Central

e do Leste

Todos os

Países

1988-89 139,1 36,8 1,4 177,3

1990 169,8 33,7 0,3 203,8

1991 114,0 41,3 2,5 157,8

1992 114,0 50,4 3,8 168,1

1993 129,3 73,1 5,6 207,9

1994 132,8 87,0 5,9 225,7

1995 203,2 99,7 12,1 314,9

Participação no Total

(%)

1988-92 78 21 0,8 100

1993 62 35 2,7 100

1994 59 39 2,6 100

1995 65 32 3,8 100

Fonte:UNTACD, World Investment Report-1996

O PIB mundial, a taxas de câmbio correntes, apresenta forte concentração em 1995 em relação

a 1980: os países da OCDE(exceto o México) passam de 67,8% para 74,6%; os NPI da Ásia passam

de 1,2% para 3,2%, contudo a América Latina apresenta um decréscimo de sua participação que passa

de 7,7% para 5,3%, acontecendo o mesmo para a África negra(inclusive África do Sul)que sai de 2,5%

e vai para 1,2% (HATEM,1995). Em termos geográficos fala-se, nos dias de hoje, que o processo de

globalização em curso proporcionará a integração de apenas uma parte dos países do globo, excluindo

cerca de 80 países praticamente de qualquer possibilidade de integração, sobretudo a África ao sul do

Sahara (ANDREFF,1996). A polarização internacional entre os países estaria mediatizada pelos

interesses dos oligopólios mundiais.

A tecnologia , nos últimos vintes anos, vem se expressando como fator primordial da

competitividade entre firmas. Considerando-se a escala crescente de recursos necessária à atividade de

pesquisa, a rápida mudança tecnológica e a incerteza inerente a essa atividade, os acordos de

cooperação e as alianças estratégicas aparecem como veículos privilegiados, sobretudo para os grupos

Page 21: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

21

a dominante inovadora, de criar poder de marcado, aumentar as bases de financiamento de P&D e

obter conhecimentos tecnológicos complementares.

O desenvolvimento e a comercialização de inovações maiores envolve grandes incertitudes e

uma variedade de conhecimentos tácitos, ambos os fatores requerem um intenso contato intra equipe

técnica favorecendo a concentração geográfica. Pesquisa realizada em 587 grandes empresas de várias

nacionalidades para o período 1985-90 observou a origem geográfica de patentes registradas nos EUA

e constatou que 89% das atividades de pesquisa dessas empresas são realizadas nos países de origem

(PATE & PAVIT; 1996). A possibilidade de deslocamentos de atividades de pesquisa pelas empresas

multinacionais está relacionada à possibilidade de troca com o sistema nacional de inovação. A

produção de tecnologia está também concentrada nos países da Tríade e no interior destes nas grandes

empresas. A concentração forte da geração tecnológica, nos dias de hoje, em firmas multinacionais,

deve ser entendida, sobretudo, através das alianças estratégicas que se estabelecem entre empresas

objetivando o desenvolvimento tecnológico e têm como conseqüência imediata a criação de barreiras à

entrada e o bloqueio ao acesso da tecnologia por outras firmas.

Os acordos que emergiram da Rodada do Uruguai, de seu lado, resultaram em maior proteção

aos grandes grupos multinacionais no que se refere à propriedade intelectual e exploração de patentes.

Os instrumentos jurídicos que esses grupos passaram a contar, nessa área, inibem políticas

tecnológicas independentes nos países em desenvolvimento refletindo em obstáculo suplementar ao

acesso à tecnologia gerada no centro. O movimento de concentração e marginalização abrange a

dimensão tecnológica de forma mais acentuada que a produtiva : na década de 80, nos países

avançados efetuou-se 95% do total dos acordos mundiais de cooperação tecnológica inter-firmas e

90% dos acordos de licença e transferência de tecnologia (CHESNAIS:1994). De fato, estatísticas de

1994 dão conta que 50 países são responsáveis por 98% das despesas mundiais de P&D, abrigam 94%

dos cientistas e engenheiros empregados no mundo e 99% das patentes depositadas nos EUA e

Europa(CE,1994).

...esfera comercial...

Page 22: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

22

Alguns dos instrumentos dinamizadores da globalização têm sido a queda generalizada das

barreiras alfandegárias combinada à especialização econômica, a multiplicação de acordos comerciais

bilaterais e a construção de áreas de troca livre. Esses mecanismos contribuíram consideravelmente,

ao lado das deslocamentos industriais, para que ocorresse um certo dinamismo no fluxo do comércio

mundial. Em 1994, o volume das exportações mundiais cresceu 10%, ou seja, o melhor resultado

desde 1976 enquanto a produção 4%(TABELA 3). No interior desse processo observa-se um

aprofundamento da tendência de hiato entre a produção mundial de mercadorias e a exportação

mundial de mercadorias.

TABELA 3

CRESCIMENTO EM VOLUME DA PRODUÇÃO E DAS EXPORTAÇÕES MUNDIAIS DE

MERCADORIAS (%)

Média Anual

1990-1995 1993 1994 1995

Exportações 6,0 4,0 10,0 8,0

Produção 1,5 0,5 4,0 3,0

Fonte: OMC (1996)

Entretanto, esse movimento vigoroso verificado a nível geral do comércio mundial se contrapõe

a alguns efeitos concentradores e excludentes repercutindo no interior do próprio movimento comercial

mas também na estrutura da divisão internacional do trabalho, em particular no que toca os sistemas

produtivos locais e o mundo do trabalho.

Os países da Tríade foram responsáveis por cerca de 70% das transações comerciais mundiais

realizadas em 1994, sendo que somente duas áreas tiveram crescimento notável das exportações entre

1991 e 1994, EUA e Ásia (OMC, 1995) (TABELA 4). Assim, o crescimento do comércio mundial está

acompanhado de uma intensificação do comércio intraregional, integrando, sobretudo, os países da

Tríade e alguns NPI e marginalizando regiões e/ou países que não apresentam interesse de mercado aos

oligopólios mundiais.

Page 23: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

23

TABELA 4

COMPOSIÇÃO DAS EXPORTAÇÕES MUNDIAIS DE MERCADORIAS POR REGIÃO

(1985/1995) (%)

Regiões 1985 1995

América do Norte 16,0 15,9

América Latina 5,6 4,6

Europa Ocidental 40,1 44,8

Europa Central e do

Leste,Bálticos,CEI

8,1 3,1

África 4,2 2,1

Oriente Médio 5,3 2,9

Ásia 20,8 26,6

Fonte: OMC(1996)

Sem dúvida, as firmas multinacionais jogam papel fundamental no comércio internacional

apresentando crescente participação através do volume transacionado de bens no comércio intra-firmas

e fora delas. Em 1993, nos EUA o comércio intra-firmas multinacionais foi bastante significativo;

44,4% do total da exportações desse país foram efetuadas entre empresas do mesmo grupo e 48,6% das

importações foram da mesma natureza (UNTACTD,1996). A expansão das trocas intra-firmas é uma

conseqüência do aumento dos fluxos dos investimentos diretos estrangeiros. Como estes últimos estão

concentrados no interior da Tríade as trocas referidas também estão concentradas aí, em particular nos

blocos regionais. Observando-se as estatísticas do comércio internacional nota-se uma tendência à

regionalização (Ver TABELA 5).

Page 24: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

24

TABELA 5

EXPORTAÇÕES INTRAREGIONAIS NO TOTAL DAS EXPORTAÇÕES DA REGIÃO

(1983-1995) (%)

Região 1983 1993 1995

América do Norte 34,3 35,6 36,0

Europa Ocidental 65,2 68,7 63,0

Japão(Ásia) 31,0 40,0 45,9

Mercosul nd 14,1* 20,8

Fonte:OMC(1996)

O crescimento do comércio intersetorial é outro aspecto relevante no atual contexto mundial.

Este fluxo é mais significativo entre países com nível de desenvolvimento comparável; os países

industrializados efetuam essencialmente trocas intrasetores e intra-firmas, ao passo que os fluxos entre

estes países e os em desenvolvimento são preferencialmente intersetores, denotando a disparidade

entre eles. Citam-se algumas evidências: nos EUA, em 1995, a exportação de máquinas e material de

transporte para a União Européia correspondeu a 49% do total das exportações para essa região, em

contrapartida os EUA importaram do mesmo gênero de produto 45% do total das importações

efetuadas dessa origem; caso semelhante ocorreu entre EUA e Canadá cujas participações de saídas e

entradas do gênero citado foram 55% e 43% respectivamente(OMC,1996).

O livre comércio mundial que se estabeleceu no contexto dos acordos da Rodada do Uruguai

teve e tem conseqüências em termos micro para todas empresas. Os grandes grupos intensificaram a

concorrência entre eles ao mesmo tempo em que abriram portas nos quatro cantos do mundo para

organizar a produção visando usufruir das diversas vantagens específicas locais tais como sistema

nacional de inovação e custo de mão-de-mão. De seu lado, as empresas de âmbito nacional e as médias

e pequenas, que estiveram relativamente protegidas até então, sofrem, nesse contexto, ameaça

constante da concorrência mundializada resultando, em muitas vezas, no encerramento de atividades

ou na absorção por outras.

A liberalização do comércio externo e a conseqüente exposição das mercadorias produzidas

internamente têm levado unidades fabris dos países latino-americanos a encerrar atividades em

segmentos diversos do aparelho produtivo. É importante ressaltar que a situação desvantajosa de

Page 25: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

25

empresas e setores está associada à presença de condições desfavoráveis, tanto de ordem sistêmica

como de ordem específica para fazer face ao novo contexto. São ramos industriais inteiros que

podem ser destruídos no bojo desse movimento o qual engendrará um processo de desverticalização do

aparelho industrial, sobretudo em economias que já contavam com alto nível de integração. A

desverticalização do aparelho produtivo implica em redução da demanda por bens produzidos por

setores interligados, em redução da demanda por técnicos e especialistas dos setores os quais

estabelecem intercâmbio de conhecimentos e informações indispensáveis para o processo de geração

de inovações. A perda do esforço de aprendizagem tecnológica empreendido até então fragiliza,

sobremaneira, as economias para fazer face futuramente aos termos de troca.

No Brasil, os setores produtores de bens de capital , de equipamentos elétricos e de

comunicação são exemplos característicos desse processo. Os coeficientes de importação cresceram,

nesses setores, acima da média dos outros setores manufatureiros. Quanto ao primeiro, os dados

mostram uma queda substancial da produção doméstica de 19,6 bilhões de dólares em 1990 para 14,4

bilhões em 1996 enquanto as importações para o mesmo período cresceram em 173,8% ; a participação

da produção nacional na oferta interna vem decrescendo ano a ano: em 80 era 94%, em 90 era 88% e

em 96 estava em 54% com a tendência mantendo-se em 1997 (MICT,1997). É importante ressaltar

que a eficácia e o tamanho do setor de bens de capital constitui dimensão importante para a

competitividade sistêmica na qual podem se apoiar as empresas em suas economias domésticas, na

medida em que esse setor é responsável pela difusão de inovações tecnológicas para o resto do

aparelho produtivo.

No referido país, setores intensivos em recursos naturais, no período 1990-1995, apresentaram

um aumento significativo no coeficiente de exportação tais como madeira, celulose e siderurgia. Pode-

se afirmar que tem ocorrido, nessa economia, mercantilização de atividades com maior conteúdo

tecnológico e redirecionamento para atividades de menor conteúdo. Essa mudança na estrutura setorial

das exportações e importações não são desprezíveis para a economia brasileira numa perspectiva de

longo prazo na medida em que o comércio mundial apresenta forte tendência a privilegiar setores

produtores de bens com elevado conteúdo tecnológico.

Page 26: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

26

Setores industriais brasileiros, que já praticavam estratégias competitivas internacionais com

visão de longo prazo, ressentem-se muito menos do processo de abertura comercial na medida em que

possuem capacidades financeira, comercial e tecnológica suficientes para participarem do mercado

mundial. Vale lembrar, no entanto, que esses exemplos, tal o setor de papel e celulose , estão longe de

se constituírem regras.

Como vantagem da abertura da economia, para aparelhos produtivos de países como o Brasil,

está a oportunidade de suprimento no mercado externo de insumos industriais a baixo custo e de

melhor qualidade, proporcionando atualização tecnológica - fonte importante de competitividade - aos

produtores domésticos que dela podem beneficiar-se, numa perspectiva de curto/médio prazo.

Referências bibliográficas

ADDA,J.(1996) La mondialisation de l’économie vol.1 e 2, La découverte, Paris.

ALBERT, M. (1991), Capitalisme contre capitalisme, Éd. Seuil, Paris.

ANDREFF, W. (1996), Les multinationales globales, Éditions La Découverte, Paris.

BOYER,R.(1997),” Les mots et les realités” in Mondialisation au-delà des mythes, La découverte &

Syros, Paris.

BOYER,R. & DRACHE,D. (1996) States against markets, Routeledge, London.

CHESNAIS, F. (1994), La mondialisation du capital, Syros, Paris.

CHESNAIS,F.(org.)(1996), La mondialisation financière, Syros, Paris.

COHEN,D.(1997) Richesse du monde, pauvretés des nations, Flamarion,Paris.

COMISSION EUROPEENNE(1994), Le rapport européen sur les indicateurs scientifiques et

tecnologiques, CE, Luxemburg.

DE MENTHON, P-H, PLASSART, P. e VITTORI, J-M (1996), “La pensée unique en économie”,

Problèmes économiques, La documentation Française, n#2.476, 12 juin, Paris.

FITOUSSI,J.P.& ROSAVALLON,P.(1996)Le nouvel âge des inegalités, Seiul, Paris.

FRIEDMAN, T. L. (1996), “Don’t Leave Globalization’s Losers Out of Mind”, Herald International

Tribune, 18.07.96, London.

GEORGE, S. (1996), “Comment la pensée devint unique”, Le Monde Diplomatique, Août, Paris.

Page 27: Globalização, ou metamorfose do capitalismo

27

HATEM,F.(1995) Les multinationales en l’an 2000, Economica, Paris.

KRUGMAN, P. (1994), Peddling, Prosperity, W.W. Norton & Company, London.

MINISTÉRIO DA INDÚSTRIA,DO COMÉRCIO E DO TURISMO(1997), Ações setoriais para

aumento de competitividade da indústria brasileira, MICT, Brasília.

ORGANISATION MONDIALE DU COMMERCE (1995), Le commerce international, OMC,

Genève.

ORGANISATION MONDIALE DU COMMERCE(1996),Rapport annuel-1996, OMC,Genève.

PATEL,P.& PAVITT,K.(1996)” Uneven(and divergent) technological development amongst and

firmas: evidence and explanations” In VENCE,X.& METCALF,J.S.(eds), Wealth from

diversity:innovation, strctural change for regional development in Europe, Boston, Kluver

Academic Press.

PETRELLA,R.(1996)” Globalization and internationalization” In BOYER,R.& DRACHE,D.States

against markets, Routeledge, London.

PLIHON,D. “ Les enjeux de la globalisation financière” in Mondialisation au-delà des mythes, La

découverte & Syros, Paris.

REICH, R. (1991), The work of nations,Alfred A.Knopf,Inc.,New York.

SACHWALD,F.(org.)(1994), Le défis de la mondialisation,Masson, Paris.

SCHWAB, K. e SMADJA, C. (1996), “Davos: mondialisation et responsabilité sociale”, Le Monde,

17.07.96, Paris.

UNTACD(1996), World investment report-1996, United Nations,New York.