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Gorski - Estudos Gramaticais - Unidade A
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Unidade AA Língua(gem)
CAPÍTULO 01A lingüística como estudo científico da língua(gem)
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A lingüística como estudo científico da língua(gem)
– Que é lingüística?
– Bom, eu, quando dou aula na graduação, costumo dizer para os alunos:
se você quer entender o que é lingüística e o que é seu objeto, você precisa
pensar um pouco na fábula dos três cegos apalpando o elefante. Cada um
apalpava um pedaço do elefante e definia o elefante por aquele pedaço. Então,
o que pegava a perna do elefante dizia “o elefante é assim um cilindro muito
duro, rígido, é um animal com formato de cilindro e que é estático, parece que
esse animal não se mexe e é um animal que ocupa posição vertical no espaço”.
O outro que mexia lá na tromba, naturalmente discordava, não só quanto à
disposição no espaço, quanto à rigidez ao tato, tanto quanto à falta de mobili-
dade. Imagino até que algum desses cegos, tocando em outros lugares, concebeu
a idéia de categoria vazia. Então, a língua e a lingüística não são; elas são o
que para cada um de nós parecem ser (CASTILHO, 2003, p. 55).
Objetivos da unidade A
reconhecer diferentes concepções de língua(gem); �
identificar propriedades caracterizadoras das línguas naturais; �
perceber a cientificidade da lingüística vs. o caráter não-cientí- �
fico da gramática tradicional.
A epígrafe que introduz esta unidade, extraída do livro Conversas
com lingüistas: virtudes e controvérsias da lingüística, apresenta de for-
ma bem-humorada o tópico central da unidade A. É da definição de
1
Introdução aos Estudos Gramaticais
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lingüística e de seu objeto que vamos tratar agora, contrapondo, bre-
vemente, a lingüística à gramática tradicional no que diz respeito ao
caráter científico de ambas.
À pergunta: Que é lingüística?, costumamos encontrar a seguinte
resposta: A lingüística é o estudo científico da língua(gem) humana.
Mas essa resposta nos coloca outras indagações:
O que é a língua(gem)?
O que é um estudo científico?
Vamos tratar dessas questões a seguir.
1.1 Concepções de língua(gem)
As definições de língua(gem) são diversas, variando conforme o
ponto de vista adotado pelo autor. Vejamos algumas.
1) Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de co-municar por meio de um sistema de signos vocais (ou língua), que coloca em jogo uma técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função simbólica e de centros nervosos geneticamente especializados. Esse sistema de signos vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade lingüística) determinado constitui uma língua particular. (DUBOIS et al., 1973, p. 387)
2) O termo [linguagem] se aplica àquela aptidão humana para associar uma cadeia sonora (voz) produzida pelo chamado aparelho fonador a um conteúdo significativo e utilizar o re-sultado dessa associação para a interação social uma vez que tal aptidão consiste não apenas em produzir e enviar, mas ainda em receber e reagir à comunicação. Compreendida des-sa maneira, a linguagem aparece como o mais difundido e o mais eficaz instrumento natural de comunicação à disposição do homem. (BORBA, 1991, p. 9-10, grifos do autor)
A depender da perspec-tiva teórica assumida,
alguns autores não fazem distinção entre “lingua-
gem” e “língua”. Por isso a opção de representar am-bas as noções numa única
palavra: língua(gem).
CAPÍTULO 01A lingüística como estudo científico da língua(gem)
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3) [A língua] não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de lin-guagem e um conjunto de convenções necessárias, adotada pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. [...] A língua é de natureza homogênea, e constitui-se num sistema de signos. (SAUSSURE, 1971, p. 17, 23)
4) A faculdade de linguagem é uma estrutura cognitiva ina-ta, humana e universal, e faz parte da herança genética de cada membro da espécie humana, do mesmo modo que a visão é parte dessa herança. Essa estrutura, no que tange à linguagem, é o estado mental inicial [chamado de Gra-mática Universal ou GU]. Passando por estágios sucessivos, esse estado inicial se desenvolve, seguindo um processo de maturação que sofre a influência do meio e das experiên-cias pessoais, do mesmo modo como a visão, até atingir um estágio estável. (LOBATO, 1986, p. 38)
5) A linguagem [é vista] como atividade, como forma de ação, ação interindividual finalisticamente orientada; como lugar de interação que possibilita aos membros de uma socieda-de a prática dos mais diversos tipos de atos, que vão exigir dos semelhantes reações e/ou comportamentos, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos anteriormente inexistentes. (KOCH, 1992, p. 9-10, grifos da autora).
Introdução aos Estudos Gramaticais
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Os trechos acima evidenciam duas diferentes concepções de lin-
guagem/língua: uma centrada na função comunicativa/social, que vê a
linguagem/língua como instrumento de comunicação e forma de inte-
ração; e outra centrada na função cognitiva/biológica da linguagem. Leia
novamente as definições atentando para essa diferenciação.
Não é nosso propósito, neste momento, aprofundar uma discussão so-
bre concepções de linguagem/língua, apenas chamar a atenção para o fato
de que diferentes pontos de vista criam diferentes objetos, ou, nos termos de
Saussure, de que “é o ponto de vista que cria o objeto” (1971, p. 15). Assim,
vamos reter por ora que a lingüística se ocupa da linguagem/língua em qual-
quer das acepções mostradas acima, o que vai se refletir, naturalmente, em
diferentes abordagens teóricas do fenômeno lingüístico. O mesmo objeto
pode ser analisado sob diferentes ângulos, a partir de diferentes pressupostos
que podem ser complementares ou conflitantes. (Lembra da fábula dos ce-
gos apalpando o elefante na epígrafe desta unidade?)
Até agora focamos nossa atenção em duas diferentes concepções
de língua(gem): ser comunicativa ou cognitiva. Ao longo do curso de
CAPÍTULO 01A lingüística como estudo científico da língua(gem)
1515
Letras, você terá oportunidade de estudar diferentes abordagens teóri-
cas. Vai ver que existem teorias formais e teorias funcionais da língua;
que existem abordagens essencialmente lingüísticas, chamadas de “mi-
crolingüísticas”, e abordagens interdisciplinares, ou “macrolingüísticas”,
como por exemplo, a sociolingüística (que se ocupa da relação entre
linguagem e sociedade), a psicolingüística (que se ocupa das questões
de processamento e aquisição da linguagem) e a etnolingüística (que se
ocupa da relação entre linguagem e cultura).
Vamos atentar agora para as diferenças entre linguagem e língua.
Observe a distinção estabelecida a seguir.
Com relação ao objeto de estudo da lingüística, deve-se dizer que esta ciência lida tanto com línguas particulares, isto é, entidades individu-ais, como com a natureza geral destas mesmas línguas particulares, tentando responder a dois tipos de pergunta: (a) o que as diferentes línguas têm em comum e o que as diferencia entre si?; (b) o que há nas línguas humanas que lhes atribui caráter único e as distingue dos demais sistemas de comunicação? Considerando que a linguagem será definida como o que há de comum às diferentes línguas, conclui-se que a lingüística tem um duplo objeto: o estudo da linguagem em geral e o estudo das diferentes línguas (ou, mais especificamente ain-da, da gramática das diferentes línguas). (LOBATO, 1986, p. 34)
1.2 Propriedades das línguas naturais
As línguas naturais são línguas humanas que se opõem às línguas
formais construídas por matemáticos e lógicos, e a línguas artificiais
como o esperanto. São exemplos de línguas naturais: o português, o ita-
liano, o inglês, a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).
A lingüística se ocupa das línguas naturais. As propriedades descri-
tas a seguir caracterizam e particularizam as línguas naturais.
O esperanto é uma lín-gua criada pelo médico polonês Ludwig Lazar Zamenhof, por volta de 1887, para ser língua de comunicação internacio-nal. Possui uma gramática regular e utiliza raízes latinas e gregas, além de raízes das línguas euro-péias mais faladas.
Introdução aos Estudos Gramaticais
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1.2.1 Flexibilidade e adaptabilidade
Nós podemos usar a língua para produzir inúmeros atos de fala:
externar nossos pensamentos e sentimentos, fazer perguntas ou decla-
rações, fazer pedidos ou dar ordens, fazer ameaças ou promessas etc.
Assim, a linguagem humana pode desempenhar inúmeras funções, de
natureza cognitiva ou comunicativa. Considerando a natureza social da
linguagem, Jakobson lista seis funções, associando cada uma delas a um
dos elementos da comunicação: remetente, contexto ou referente, desti-
natário, mensagem, contato e código.
Considerando-se quem fala, de que se fala e com quem se fala, te-
mos três funções: uma que procura traduzir a atitude do falante naquilo
que ele está transmitindo (função emotiva), outra centrada no contexto
ou no conteúdo transmitido (função referencial), e uma terceira centra-
da no ouvinte (função conativa). Como ampliação dessas funções bási-
cas, temos ainda: uma que focaliza a própria mensagem dando-lhe rele-
vo (função poética), outra que checa o canal pelo qual falante e ouvinte
entram em contato (função fática) e uma última que se centra no código,
ou seja, na própria língua, usando-se a língua para falar sobre a língua
(função metalingüística).
É importante observar que cada texto não tem apenas uma função,
mas várias delas. O que ocorre é que existe uma ou outra que predo-
mina. Por exemplo, no texto publicitário predomina a função conativa,
centrada no interlocutor (ouvinte/leitor). São formas lingüísticas típicas
da função conativa: pronome de segunda pessoa, verbo no modo impe-
rativo, perguntas – para produzir o efeito de persuasão. Outro exemplo:
nas definições do dicionário predomina a função metalingüística. Veja
a definição da palavra ‘metalinguagem’ no dicionário Houaiss: “lingua-
gem (natural ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre
uma outra linguagem, natural ou artificial”.
Ato de fala é uma ativi-dade comunicativa que
considera as intenções do falante e os efeitos que consegue provocar no
ouvinte.
CAPÍTULO 01A lingüística como estudo científico da língua(gem)
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Além de servir para produzirmos diferentes atos de fala, a proprie-
dade de flexibilidade e adaptabilidade da língua permite nos reportar no
tempo: ao passado, ao presente e ao futuro; nos referir a coisas que não
existem no mundo real, e assim por diante.
1.2.2 Arbitrariedade
A língua não é um conjunto de rótulos, ou uma nomenclatura, que
se aplica a uma realidade preexistente. A realidade só passa a ter existên-
cia para os homens quando é nomeada, de modo que só percebemos no
mundo o que nossa língua nomeia. A realidade é apreendida e nomeada
através de signos lingüísticos.
Não existe um vínculo natural entre a forma das palavras (seja a
cadeia fônica ou a representação escrita) e o seu sentido ou significado.
O vínculo é convencional ou arbitrário e estabelecido social e cultural-
mente. É uma espécie de acordo coletivo entre os falantes. Portanto, o
signo lingüístico é arbitrário e cultural. Por exemplo, nada há que deter-
mine que a idéia que temos de “lar” e “moradia” seja representada pela
palavra “casa”. O que ocorre é um processo de simbolização, que consti-
tui uma espécie de filtro da realidade. A linguagem categoriza a realida-
de, ou seja, classifica-a em categorias na medida em que representa essa
realidade. Em outras palavras:
A atividade lingüística é uma atividade simbólica, o que signifi-ca que as palavras criam conceitos e esses conceitos ordenam a realidade, categorizam o mundo. Por exemplo, criamos o concei-to de pôr-do-sol. Sabemos que, do ponto de vista científico, não existe pôr-do-sol, uma vez que é a Terra que gira em torno do Sol. No entanto, esse conceito criado pela língua determina uma realidade que encanta a todos nós. Uma nova realidade, uma nova invenção, uma nova idéia exigem novas palavras, mas é sua denominação que lhes confere existência. Apagar uma coisa no computador é uma atividade diferente de apagar o que foi escrito a lápis, a máquina ou a caneta. Por isso, surge uma nova
Signo lingüístico é um objeto lingüístico dota-do simultaneamente de forma e sentido. A forma é chamada por Saussure de significante; e o sen-tido, de significado. Por exemplo, a palavra “cina-momo” tem uma forma particular constituída de uma seqüência de oito fonemas (sons da fala re-presentados graficamente por letras), e também de um sentido particular (um tipo específico de árvore). Os dois juntos formam um signo lingüístico. Assim, o signo é constituído de significante + significado.
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palavra para designar essa nova realidade, deletar. No entanto, se essa nova palavra não existisse, não se perceberia a atividade de apagar no computador como uma coisa diferente. (FIORIN, 2002, p. 56)
Por outro lado, a relação entre a forma da palavra (o significante) e
o seu valor ou conteúdo (o significado), embora arbitrária, é necessária e
não depende da livre escolha do falante. Veja-se, por exemplo, o dicioná-
rio. A significação ou os valores atribuídos a cada palavra estão registra-
dos como diferentes acepções de uso. Qualquer novo significado que a
palavra venha a receber só vai ser dicionarizado após se regularizar no uso
dos falantes, ou seja, de um grupo social. O caráter necessário do vínculo
entre significante e significado se deve a, pelo menos, dois motivos:
o significante sem o significado (e vice-versa) não tem valor lin-a)
güístico;
uma vez estabelecido um vínculo convencional entre um sig-b)
nificante e um significado, esse valor passa a ser repetido pelos
falantes e se regulariza na língua.
Se ficarmos inventando livremente novos sentidos para palavras já
conhecidas da língua portuguesa, corremos o risco de não sermos en-
tendidos pelos nossos interlocutores.
1.2.3 Dupla articulação
A língua pode ser decomposta em unidades mínimas significativas
(os morfemas – unidades da primeira articulação) e em unidades ainda
menores sem conteúdo semântico (os fonemas – unidades da segunda
articulação), as quais podem se combinar e recombinar indefinidamen-
te. Por exemplo, a palavra “refazer” pode ser segmentada em 4 mor-
femas: re/faz/e/r, que significam, respectivamente: duplicação (prefixo
re-), “realizar” (radical faz-), 2ª conjugação (vogal temática -e-), infini-
tivo (desinência modo-temporal -r). A mesma palavra ‘refazer’ é cons-
Em Lingüística, o termo “articulação” é usado no
sentido de segmentação, subdivisão de palavras em partes, que podem
se recombinar em outros contextos.
CAPÍTULO 01A lingüística como estudo científico da língua(gem)
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tituída de 7 fonemas: r/e/f/a/z/e/r. Tanto os morfemas como os fonemas
aparecem em novas combinações como em re/l/e/r, faz/ia, cant/a/r; e
em r/e/z/a/r, f/e/z, respectivamente.
Assim, numa primeira etapa de análise, isolamos unidades significativas
de natureza mórfica (1ª articulação), e numa segunda etapa, identificamos
unidades distintivas de natureza fônica (2ª articulação). Os fonemas são uni-
dades distintivas, embora não dotadas de significação, porque funcionam
para distinguir palavras, como por exemplo: /pala/ vs. /bala/ vs. /mala/. Os
morfemas são unidades significativas porque cada segmento da palavra apre-
senta um determinado valor: radical, vogal temática, marca de gênero ou de
número, desinência número-pessoal ou modo-temporal etc. A dupla articu-
lação da linguagem é um fator de economia lingüística.
A articulação da linguagem é facilitada pelo caráter linear do signi-
ficante. Ou seja, o significante se desenvolve numa dimensão temporal
(como numa linha), no caso da fala, ou espacial, no caso da escrita. Por
linearidade, entende-se a disposição dos signos, uns depois dos outros,
sem que se possa produzir mais de um elemento lingüístico de cada vez.
1.2.4 Produtividade
A produtividade é uma propriedade que permite que uma dada re-
gra seja estendida a novos casos. Assim, a partir de um número reduzi-
do de regras combinatórias, podemos produzir um número ilimitado de
novas palavras e enunciados. A noção de produtividade se aplica tanto
no âmbito da formação de palavras (combinação de morfemas), como
na construção de frases (combinação de palavras). Por exemplo:
Na formação de palavras: o sufixo -idade, formador de substanti-
vos, é bastante produtivo, pois aparece num número bastante significa-
tivo de palavras no português (facilidade, dificuldade, seriedade, familia-
ridade, legalidade). Já o sufixo -ura é menos produtivo na formação de
substantivos (quentura, largura, espessura). A regra subjacente a esses
casos é a de formação de substantivos a partir de adjetivos:
Introdução aos Estudos Gramaticais
2020
adjetivo + -idade /-ura = substantivo (fácil + -idade = facilidade;
quente + -ura = quentura).
Um determinado afixo (prefixo ou sufixo) pode ser produtivo numa
certa época e não em outra. Por exemplo: “o prefixo disque-, próprio
para formar substantivos, nem sequer existia antes dos anos 1980, mas
hoje é prodigiosamente produtivo em português do Brasil: disque-pizza,
disque-remédio, disque-denúncia”. (TRASK, R.L. 2004, p. 241)
Vale lembrar que a aplicação de afixos não se dá de maneira aleató-
ria: existem certas condições gramaticais que precisam ser respeitadas.
Assim, o prefixo -re pode se aplicar a bases verbais ou substantivas sem
alterar a classe da nova palavra (re + contar = recontar; re + impressão =
reimpressão). Já os processos de sufixação geralmente alteram a classe
da palavra. Por exemplo, -ismo se aplica tanto a adjetivo (ótimo) como a
substantivo (Marx) formando substantivo (otimismo, marxismo).
Leia mais sobre a produtividade na formação de palavras em Ilari;
Basso (2006, p. 103-108).
Na construção de frases ou constituintes de frases: a combinação
de N (nome) + V (verbo) pode gerar: Pedro saiu; crianças brincam etc.
A combinação de Art (artigo) + N (nome) + Adj (adjetivo) pode gerar:
a menina bonita; os rapazes inteligentes; uma maçã madura etc. E assim
por diante.
1.2.5 Heterogeneidade
Uma outra propriedade das línguas naturais é que elas não são ho-
mogêneas. Pelo contrário, as línguas variam e mudam ao longo do tem-
po. Essa variação/mudança ocorre nas dimensões geográfica, social e
estilística. Vamos retomar este ponto na segunda unidade.
CAPÍTULO 02O que é um estudo científico?
2121
2 O que é um estudo científico?
Vamos tratar agora da questão da cientificidade dos estudos lin-
güísticos. Lembramos que as preocupações com a linguagem são muito
antigas, mas é apenas no início do século XX que a lingüística ganha au-
tonomia e é reconhecida como estudo científico, a partir dos trabalhos
de Ferdinand de Saussure publicados no livro Curso de lingüística geral.
A lingüística atende a critérios de cientificidade ao apresentar as ca-
racterísticas listadas abaixo, entre outras. Essas características a opõem
à chamada gramática tradicional. A lingüística:
é empírica � : lida com dados verificáveis por meio da observação e
da experiência; ou seja, as hipóteses teóricas podem ser atestadas
pelos dados. A lingüística não tem caráter especulativo ou meta-
físico. Já as gramáticas tradicionais, por serem parte da filosofia
geral, tinham caráter especulativo à medida que pretendiam pro-
por análises que respondessem a indagações sobre o universo.
é objetiva � : tem caráter não-preconceituoso, não emite julga-
mentos de valor a respeito da língua do tipo “certo” vs. “erra-
do”, “feio” vs. “bonito”, “superior” vs. “inferior”, “primitivo” vs.
“evoluído”. A lingüística, por ser descritiva, opera com a noção
de adequação. Por exemplo, não falamos da mesma maneira
quando nos dirigimos a nossos familiares e amigos em situa-
ções mais íntimas, e quando nos dirigimos ao nosso chefe, ao
padre, ao prefeito etc.; a linguagem se ajusta a novas situações
comunicativas que envolvam mudança de papéis sociais dos
interlocutores. Já os juízos de valor são característicos da abor-
dagem tradicional, baseada na escrita literária clássica. À me-
dida que impõe julgamentos, a gramática tradicional se consti-
tui numa doutrina: a doutrina gramatical.
Entende-se por gramática tradicional a teoria lingüís-tica ocidental oriunda da Grécia Antiga, passando pela erudição romana, pela Idade Média e pela Renas-cença, que encontramos ainda hoje em compêndios gramaticais normativistas. Deve-se considerar que os objetivos das gramáticas tradicionais eram de outra natureza, concebidos em conformidade com a época (mais de dois mil anos atrás!), por isso não se coadunam com os interes-ses descritivos atuais.
Introdução aos Estudos Gramaticais
2222
tem � caráter explícito: apresenta definição clara, coerente e deta-
lhada dos pressupostos teóricos da análise; utiliza uma termi-
nologia especializada; lida com critérios explícitos e objetivos.
Em outras palavras, tem um “construto teórico” como base ex-
planatória, ou explicativa, para os dados. Diferentemente, as
gramáticas tradicionais apresentam, muitas vezes, definições
vagas e imprecisas, com mistura de critérios. Além do mais, a
maioria dessas gramáticas limita-se a repetir os mesmos con-
ceitos e classificações ao longo dos anos.
Um aspecto importante a ser mencionado é que, com o advento
da lingüística moderna, a língua escrita deixa de ser considerada como
mais importante que a falada. Admite-se que a língua está sujeita a va-
riações e mudanças e que mudança lingüística não significa deturpação
ou decadência da língua. Para a lingüística qualquer variedade de uma
língua pode ser objeto de estudo. Enfim, rompe-se com a postura tradi-
cional de que só a variedade culta escrita deve ser objeto da gramática.
Separa-se, assim, a gramática prescritiva da gramática descritiva. Reto-
maremos esse ponto na unidade B.
Em relação ao caráter científico da lingüística, cabe mencionarmos
ainda a questão do método. O estudo sistemático da língua envolve, ge-
ralmente, os seguintes passos: observação, problematização, formulação
e testagem de hipóteses, checagem do modelo teórico, generalização.
Entretanto, como a lingüística é um conjunto de saberes dos quais re-
sultam modelos teóricos diversos, cada modelo vai requerer um aparato
metodológico que seja compatível com suas especificidades. O impor-
tante é que as hipóteses sejam coerentemente testadas e sustentadas em-
piricamente dentro de modelos teóricos.
Em suma, o trabalho científico implica, basicamente, a observação
e descrição de fatos lingüísticos a partir de certos pressupostos teóricos
formulados no âmbito da teoria lingüística ou lingüística geral.
Lembre-se que a gramá-tica tradicional prioriza
a língua escrita literária, tomando-a como modelo de como escrever correta-
mente.
CAPÍTULO 02O que é um estudo científico?
2323
Cabe à lingüística geral fornecer conceitos e categorias que servirão
de base para o estudo das línguas particulares. Cabe à lingüística
descritiva fornecer dados que validem ou refutem as hipóteses teó-
ricas formuladas pelo lingüista geral. O lingüista descritivo, no entan-
to, não está limitado a oferecer evidências empíricas para as formu-
lações da lingüística geral; ele pode estar interessado em produzir
gramáticas de referência ou dicionários. Esses dois ramos da lingüís-
tica (geral e descritiva) não são estanques, e sim interdependentes.
No Brasil, temos importantes estudos descritivos como os trabalhos
de Mattoso Camara Jr., de Mário Perini, de Maria Helena Moura Ne-
ves, bem como os volumes de Gramática do Português Falado, pro-
duzidos pelos pesquisadores do projeto coordenado pelo professor
Ataliba de Castilho, entre muitos outros.
Veja como os referenciais teóricos podem ser diversificados, um
mesmo fenômeno pode receber diferentes descrições e explicações.
Perini (2006, p. 35) coloca nestes termos o objetivo do lingüista:
fazer “uma descrição da estrutura da língua: o conjunto de regras, ele-
mentos, classes e princípios que governam as associações dos diversos
elementos da língua e seu significado”. Dizendo de outro modo: cabe ao
lingüista descrever e explicar o funcionamento da língua, isto é, a rela-
ção que existe entre os significados e as formas dessa língua.
Introdução aos Estudos Gramaticais
2424
Leia mais!
Leia mais sobre as funções da linguagem no capítulo “A comunicação hu-
mana”, de Diana Pessoa de Barros.
In: FIORIN, J.L. et al. (Org.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóri-
cos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 32-41.
Leia mais sobre esse assunto no capítulo “Teoria dos signos”, de José Luiz
Fiorin.
In: FIORIN, J.L. et al. (Org.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóri-
cos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 55-65.
Leia mais sobre este tópico no capítulo “A língua como objeto da Lingüís-
tica”, de Antonio Vicente Pietroforte.
In: FIORIN, J.L. et al. (Org.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóri-
cos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 91-92.