Governança Democrática - Mark Bevir

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103 RESUMO GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA: UMA GENEALOGIA 1 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 39, p. 103-114, jun. 2011 Recebido em 15 de novembro de 2010. Aprovado em 30 de novembro de 2010. Mark Bevir Este artigo trata de problemas na teoria e na prática democráticas. No século XX novas teorias econômicas e sociológicas da racionalidade dominaram a Ciência Social, enfraquecendo os antigos ideais da democracia representativa. Por algum tempo, o paradigma burocrático pareceu oferecer uma solução, mas na década de 1980 a burocracia era criticada como ineficiente e irresponsável. Como se poderia lidar com os problemas resultantes da governança democrática? Atores políticos responderam a essa pergunta aferrando-se ao antigo ideal da democracia representativa apoiada por formas de conhecimento técnico baseadas nas novas teorias da racionalidade. Assim, uma nova governança de mercados e redes difundiu-se pelo mundo. Com isso, os governos representativos ainda lutam para dirigir o processo político, ao mesmo tempo que um conhecimento técnico ilusório entulha a participação democrática. A democracia contemporânea sofre tanto com os limites borrados da accountability quanto com a legitimidade declinante. O artigo conclui sugerindo que a renovação democrática pode depender de estilos mais interpretativos de conhecimento técnico, de formas dialógicas de elaboração de políticas públicas e de diversas vias de participação pública. PALAVRAS-CHAVE: governança; democracia; accountability; modernismo; idéias políticas; políticas públicas. I. INTRODUÇÃO Quando a palavra “governança” refere-se à organização e à ação públicas, ela captura uma das maiores tendências dos tempos atuais. Cien- tistas sociais, especialmente aqueles que pesquisam a administração pública e o governo local, acreditam que a organização e a ação públi- cas moveram-se da hierarquia e da burocracia para os mercados e as redes. Dúvidas podem perma- necer a respeito de qualquer tentativa de exagerar a mudança: seguramente as hierarquias burocráti- cas mantêm-se espalhadas e são, sem dúvida, as formas mais comuns de governo. Questões po- dem manter-se a respeito da natureza da mudan- ça: os governos tornaram-se menos capazes de definir seus rumos ou meramente alteraram as formas de fazerem-no? Ainda assim, a despeito dessas dúvidas e questões, há um amplo consen- so de que a “governança” captura uma alteração na teoria e na prática em direção a mercados e a redes. Este ensaio baseia-se em meu livro Democratic Governance (BEVIR, 2010) e oferece uma genealogia da governança, assim como explora suas implicações para a democracia. Meus argu- mentos podem ser rapidamente apresentados como segue: - a governança surgiu e espalhou-se como uma conseqüência de novas teorias modernistas e das reformas do setor público que foram inspiradas por tais teorias; - os atores políticos respondem aos desafios da governança acrescentando às instituições re- presentativas ainda mais conhecimento técnico modernista. II. UMA GENEALOGIA DA GOVERNANÇA No final do século XIX, a Ciência Política era dominada por um historicismo desenvolvimentista que inspirou grandes narrativas centradas na na- ção, no Estado e na liberdade. Esse tipo de historicismo apelava para narrativas que situavam eventos e instituições em uma ampla ordem de progressiva continuidade; exemplos dele incluem 1 O presente artigo é a tradução de “Democratic Governance: A Genealogy”, apresentado no X Congresso Anual da Western Political Science Association, realizado de 31 de março a 3 de abril de 2010, em San Antonio (Estados Unidos). Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda e revisão da tradução de Ricardo V. Silva.

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Governança democrática.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 39: 103-114 JUN. 2011

RESUMO

GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA:UMA GENEALOGIA1

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 39, p. 103-114, jun. 2011Recebido em 15 de novembro de 2010.Aprovado em 30 de novembro de 2010.

Mark Bevir

Este artigo trata de problemas na teoria e na prática democráticas. No século XX novas teorias econômicase sociológicas da racionalidade dominaram a Ciência Social, enfraquecendo os antigos ideais da democraciarepresentativa. Por algum tempo, o paradigma burocrático pareceu oferecer uma solução, mas na décadade 1980 a burocracia era criticada como ineficiente e irresponsável. Como se poderia lidar com os problemasresultantes da governança democrática? Atores políticos responderam a essa pergunta aferrando-se aoantigo ideal da democracia representativa apoiada por formas de conhecimento técnico baseadas nasnovas teorias da racionalidade. Assim, uma nova governança de mercados e redes difundiu-se pelo mundo.Com isso, os governos representativos ainda lutam para dirigir o processo político, ao mesmo tempo que umconhecimento técnico ilusório entulha a participação democrática. A democracia contemporânea sofretanto com os limites borrados da accountability quanto com a legitimidade declinante. O artigo concluisugerindo que a renovação democrática pode depender de estilos mais interpretativos de conhecimentotécnico, de formas dialógicas de elaboração de políticas públicas e de diversas vias de participação pública.

PALAVRAS-CHAVE: governança; democracia; accountability; modernismo; idéias políticas; políticaspúblicas.

I. INTRODUÇÃO

Quando a palavra “governança” refere-se àorganização e à ação públicas, ela captura umadas maiores tendências dos tempos atuais. Cien-tistas sociais, especialmente aqueles quepesquisam a administração pública e o governolocal, acreditam que a organização e a ação públi-cas moveram-se da hierarquia e da burocracia paraos mercados e as redes. Dúvidas podem perma-necer a respeito de qualquer tentativa de exagerara mudança: seguramente as hierarquias burocráti-cas mantêm-se espalhadas e são, sem dúvida, asformas mais comuns de governo. Questões po-dem manter-se a respeito da natureza da mudan-ça: os governos tornaram-se menos capazes dedefinir seus rumos ou meramente alteraram asformas de fazerem-no? Ainda assim, a despeitodessas dúvidas e questões, há um amplo consen-so de que a “governança” captura uma alteração

na teoria e na prática em direção a mercados e aredes.

Este ensaio baseia-se em meu livro DemocraticGovernance (BEVIR, 2010) e oferece umagenealogia da governança, assim como explorasuas implicações para a democracia. Meus argu-mentos podem ser rapidamente apresentadoscomo segue:

- a governança surgiu e espalhou-se como umaconseqüência de novas teorias modernistas e dasreformas do setor público que foram inspiradaspor tais teorias;

- os atores políticos respondem aos desafiosda governança acrescentando às instituições re-presentativas ainda mais conhecimento técnicomodernista.

II. UMA GENEALOGIA DA GOVERNANÇA

No final do século XIX, a Ciência Política eradominada por um historicismo desenvolvimentistaque inspirou grandes narrativas centradas na na-ção, no Estado e na liberdade. Esse tipo dehistoricismo apelava para narrativas que situavameventos e instituições em uma ampla ordem deprogressiva continuidade; exemplos dele incluem

1 O presente artigo é a tradução de “DemocraticGovernance: A Genealogy”, apresentado no X CongressoAnual da Western Political Science Association, realizadode 31 de março a 3 de abril de 2010, em San Antonio(Estados Unidos). Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerdae revisão da tradução de Ricardo V. Silva.

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a história whig2, a filosofia idealista e a teorizaçãoevolucionista. O traço mais significativo da Ciên-cia Social do século XX foi, em claro contraste, o

surgimento de modos modernistas de conhecimen-to que atomizam o fluxo da realidade. A Tabela 1oferece um resumo dessas concepções.

TABELA 1 – SURGIMENTO E VARIEDADES DO MODERNISMO

FONTE: o autor.

A ruptura modernista com o historicismodesenvolvimentista teve aspectos formais e subs-tantivos. Em termos formais, os modernistas pas-saram de narrativas históricas para modelos for-mais, correlações e classificações que perpassamo tempo e o espaço. Eles explicam os resultadospor meio de referências a tipos psicológicos, exi-gências funcionais dos sistemas, umaracionalidade humana geral e mecanismos e pro-cessos anistóricos. Em termos substantivos, omodernismo incorporou novos tópicos emergen-tes, incluindo partidos políticos, grupos de inte-resse e redes políticas. Os aspectos substantivose formais do modernismo freqüentemente refor-çam um ao outro: as novas técnicas tornaram maisfácil estudar alguns dos novos tópicos e os novostópicos pareciam requerer novas técnicas paraobter e organizar os dados.

A Ciência Social contemporânea é dominadapor duas variedades de modernismo. Ambasconstrastam com o historicismo desenvolvimen-tista, mas cada uma contempla diferentes concei-tos formais e anistóricos da racionalidade associ-ada a diferentes formas de explicação e, assim, adiferentes análises da governança e da democra-cia. Por um lado, o conceito econômico daracionalidade privilegia a maximização da utilida-

de; ela surge com a teoria econômica neoclássicae difunde-se com a teoria da escolha racional. Poroutro lado, o conceito sociológico de racionalidadeprivilegia a adequabilidade relativamente às nor-mas sociais; ele surgiu com o funcionalismo e di-fundiu-se com a teoria das redes e com ocomunitarismo.

O conceito econômico de racionalidade encon-trado na teoria neoclássica tem uma história espe-cífica. Ao longo do século XIX, os economistasfundiram as análises avançadas por Adam Smithcom temas orgânicos e históricos. A economianeoclássica estabeleceu sua predominância somen-te quando o historicismo desenvolvimentista ce-deu espaço para o modernismo. Mesmo então elanão obliterou outras tradições; as abordagens his-tórica e institucional da economia continuaram aprosperar, especialmente no continente europeu,onde os economistas permaneceram divididos arespeito da teoria da utilidade até o final dos anos1930. No entanto, a difusão do modernismo viuas narrativas diacrônicas do desenvolvimento deeconomias, estados e civilizações ceder espaço paraos modelos sincrônicos e as correlações estatísti-cas.

A economia neoclássica incorpora um concei-to de racionalidade adequado à ênfase modernistana atomização, na dedução e nas análisessincrônicas. A racionalidade econômica é umapropriedade de decisões e ações individuais; elanão se vincula a normas, práticas ou sociedades,exceto na medida em que estas sejam julgadas

2 A “história whig” refere-se à historiografia desenvolvidapor pensadores simpáticos ao partido Whig, que eram osliberais e os democratas britânicos, opostos ao partido Tory,conservador (nota do tradutor).

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adequados meios efetivos ou inefetivos para agre-gar as escolhas individuais. Além disso, essaracionalidade é postulada como um axioma sobreo qual se pode elaborar modelos dedutivos; elanão é estruturada como um princípio com o qualse possa interpretar fatos descobertos por meiode pesquisa indutiva e empírica. Finalmente, osmodelos derivados dos axiomas da racionalidadeeconômica são aplicados a padrões gerais, inde-pendentemente de tempo e espaço; eles nãorastreiam as evoluções particulares de indivíduos,práticas ou sociedades. A perspectiva modernistado conhecimento prepara a cena para o conceitoeconômico de racionalidade, mas é com amaximização da utilidade que o conceito adquireseu conteúdo. Na economia neoclássica, os indi-víduos agem de modo a maximizar sua utilidadepessoal, em que a utilidade é definida como umamedida da satisfação ou da felicidade obtida deum bem consumível ou de outro resultado.

As mais proeminentes alternativas para o con-ceito econômico de racionalidade são os concei-tos sociológicos, que substituem a instrumentali-dade pela adequabilidade. A racionalidade socioló-gica trata do agir de acordo com normas sociaisapropriadas a fim de desempenhar papéis estabe-lecidos em sistemas, processos, instituições oupráticas. Alguns sociólogos, incluindo EmileDurkheim e Pierre Bourdieu, argumentaram quemesmo os modernos indivíduos são melhor con-cebidos não como atores instrumentais mas comoseguidores de normais e papéis sociais; outrossociólogos, incluindo Max Weber e HerbertMarcuse, expressam temores a respeito da difu-são de normas egoístas, aquisitivas e instrumen-tais nas modernas sociedades. Assim, os dois ra-mos da Sociologia modernista podem andar jun-tos em amplas condenações da modernidade, docapitalismo ou do consumismo, vistos comodifusores de normas egoístas e instrumentais quearruínam formas antigas de solidariedade e co-munidade.

É digno de nota que essas tradições sociológi-cas, com seus conceitos alternativos deracionalidade, datam, assim como a economianeoclássica, da ampla passagem intelectual dohistoricismo desenvolvimentista para o modernis-mo, com sua ênfase em análises sincrônicas. Osaspectos comuns dos conceitos econômico e so-ciológico de racionalidade são tão importantesquanto suas diferenças. Os economistas e os so-

ciólogos modernistas compartimentalizam aspec-tos da vida social a fim de lidar com os fatos eexplicá-los; procuram compreender o particularnão ao localizá-lo em uma narrativa temporal masao reduzi-lo a generalizações formais de nível in-termediário ou universal que supostamente per-passam o tempo e o espaço. Os sociólogos, as-sim como os economistas, podem esboçar mode-los dedutivos, mas também eles rejeitam narrati-vas, preferindo classificações formais, correla-ções, funções, sistemas e tipos ideais. Emborapossamos observar temas funcionalistas no sé-culo XIX, essas formas sociológicas de explica-ção floresceram somente com o surgimento domodernismo; foram Durkheim e BronislawMalinowski, não Augusto Comte e HerbertSpencer, que distinguiram as explicações funcio-nais que se referem ao papel sincrônico de umobjeto em um sistema ou ordem social (um tipode explicação que eles consideravam científica)tanto da questão psicológica da motivação quantoda questão histórica das origens.

A passagem do historicismo desenvolvimentistapara o modernismo alterou o conceito e a nature-za do Estado. Como os modernistas rejeitaram asnarrativas históricas, eles também desafiaram oconceito do Estado como surgindo de uma naçãojuntamente com língua, cultura e passado comuns.Em vez disso, os modernistas voltaram-se parapadrões formais, regularidades ou modelos de açãoe instituições ao longo do espaço e do tempo.Novamente: quando os modernistas passaram deum foco substantivo no Estado para tópicos comopartidos políticos, grupos de interesse e redespolíticas, essas instituições subestatais foram es-tudadas em termos de leis ou regularidades deri-vadas, por exemplo, de suas funções em sistemasabstratos. Mesmo quando os modernistas perma-neceram estudando o Estado, eles cada vez maiso representaram como fragmentado em interes-ses facciosos associados a diferentes classes oupartidos.

O modernismo desafiou a idéia de que a de-mocracia representativa era uma forma de elegere de avaliar os políticos, que por sua vez poderi-am agir de acordo com o bem comum de umanação. Desse modo, a democracia representativaestava em perigo de perder muito de sua legitimi-dade. Ainda assim, as formas modernistas de co-nhecimento revelaram novos modos de elaborar elegitimar as políticas públicas nas democracias

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representativas; em particular, a Ciência Socialmodernista inspirou uma nova crença na especia-lização formal. Os representantes eleitos não pre-cisam mais expressar um caráter nacional e o bemcomum; eles podem definir objetivos políticos everificar a atividade de especialistas. Cientistassociais, profissionais e servidores públicosgeneralistas poderiam usar seus conhecimentostécnicos para elaborar políticas racionais e cientí-ficas de acordo com esses objetivos. A CiênciaSocial modernista ajudou assim a criar as condi-ções para o Estado administrativo.

Uma justificativa importante para a criação deuma burocracia crescentemente insulada e cen-tralizada foi a necessidade de lidar com abusos eirracionalidades nos processos democráticos. Ci-entistas sociais modernistas, como MoseiOstrogrorski, Graham Wallas e W. F. Willoughby,escreveram a respeito do facciosismo, da doutri-nação política e das extravagâncias financeiras aque os governos democráticos estão predispos-tos. Muitos acreditavam que uma burocracia in-sulada e centralizada poderia tanto preservar ademocracia quanto remover seus piores aspectos– a instabilidade, a irracionalidade e o sectarismo– das atividades diárias do governo. Ocorporativismo e o Estado de Bem-Estar Socialsurgiram em parte como arranjos burocráticospara superar o facciosismo e a irracionalidade.Com o corporativismo, a burocracia procurouorganizar os interesses e intermediar suas dispu-tas. O Estado corporativista conferiu às associa-ções particulares um status privilegiado como re-presentantes dos grupos sociais e econômicos.As associações privilegiadas eram envolvidas naformulação de políticas públicas e elas retribuíamajudando a assegurar a implementação dessas po-líticas. A burocracia também procurou cidadãosindividuais, assumindo maiores responsabilidadespelo seu bem-estar. O Estado de Bem-Estar Soci-al assumiu o controle dos interesses individuaiscom educação, pensões e seguro-desemprego; eledesenvolveu políticas não somente para redistribuirrecursos mas também para assegurar que essesrecursos seriam usados racionalmente para atin-gir as necessidades dos cidadãos.

A governança surgiu em grande parte devido auma crise no Estado modernista. As supersim-plificações abundarão em qualquer tentativa dediferenciar a pletora de idéias que alimentam asnarrativas a respeito da crise do Estado no final

do século XX; no entanto, uma forma de aproxi-mação dessas narrativas é percebê-las como in-corporando diferentes análises modernistas. Al-gumas narrativas da crise do Estado desafiaram aburocracia, o corporativismo e o Estado de Bem-Estar Social em termos do conceito econômicode racionalidade. Concepções neoclássicas sobreo nível “micro” informam, por exemplo, narrati-vas que tentaram apresentar as crises fiscais comosendo uma patologia constituída no interior doEstado de Bem-Estar Social. Essas narrativas pro-cediam como se segue. Os cidadãos, sendo ato-res racionais, tentam maximizar seus interessesde curto prazo, privilegiando as políticas de bem-estar que os beneficiam como indivíduos, em vezdos efeitos de longo prazo, cumulativos e com-partilhados resultantes do aumento dos gastosestatais. De maneira semelhante, os políticos, sen-do atores racionais, tentam maximizar seus inte-resses eleitorais de curto prazo, promovendo po-líticas que obterão os votos dos cidadãos racio-nais, em vez de perseguir a responsabilidade fis-cal. Considerações políticas estreitas assim pre-valecem sobre imperativos econômicos. Gruposde eleitores demandam mais e mais benefícios debem-estar e políticos constantemente aprovamlegislação de bem-estar em benefício desses elei-tores. Essas narrativas de um Estado sobrecarre-gado e da crise do Estado apontam para uma cla-ra solução – a austeridade fiscal, o controle mo-netário e uma redução do tamanho do Estado.

Outras narrativas da crise do Estado elabora-ram análises mais sociológicas das mudanças nomundo; elas implicam que o Estado tinha quemudar em resposta a pressões internacionais edomésticas. Internacionalmente, a crescente mo-bilidade do capital tornara mais difícil para os es-tados dirigirem a atividade econômica. O Estadonão poderia mais atuar sozinho, tendo, em vezdisso, que tratar da coordenação e da regulaçãoatravés das fronteiras. As indústrias que agiam noâmbito do Estado nacional tornaram-secrescentemente transnacionais em suas ativida-des. Os crescentes número e proeminência dascorporações transnacionais originaram problemasde coordenação e questões de jurisdição. Haviaum vazio entre as atividades nacionais das estru-turas regulatórias e a economia crescentementeinternacional. Domesticamente, o Estado confron-tou-se com as crescentes demandas de seus ci-dadãos; tais demandas surgiram do descontenta-mento popular com a maneira como o Estado li-

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dava com a economia e com sua aparenteirresponsabilidade: muitos estados foram sobre-carregados com grandes dívidas; a globalizaçãoprovocou ansiedades a respeito da competitividadee dos salários; partes do público preocuparam-secom que o Estado tivesse perdido o controle. Damesma forma, atores estatais freqüentemente con-sideraram que estavam sujeitos a variadas e mes-mo contraditórias demandas do público. Os elei-tores demandavam melhores serviços e menoresimpostos; eles queriam um Estado mais efetivomas também mais transparente e responsabilizável;queriam líderes decididos e ainda mais participa-ção popular.

A nova governança consiste nas teorias e nasreformas interconectadas por meio das quais ospovos conceberam a crise do Estado e responde-ram a ela. Essas teorias e reformas rejeitaram oconhecimento técnico associado ao Estado pos-terior à II Guerra Mundial. Entretanto, em vez dedesafiar a idéia de aplicar o conhecimento técnicomodernista à vida social, os atores políticos vira-ram-se para modos modernistas alternativos deconhecimento para apoiar novas formas de co-nhecimento técnico. A governança surgiu entãoem duas ondas analiticamente distintas da refor-ma do setor público. A primeira consistiu nas re-formas associadas ao conceito econômico deracionalidade – o neoliberalismo, a Nova Admi-nistração Pública [New Public Management3] e aterceirização. A segunda consistiu em reformasassociadas a conceitos sociológicos deracionalidade – a Terceira Via4, a governançajoined-up5 e redes e parcerias.

Uma primeira onda de reformas baseou-se nainsatisfação pública com a burocracia e tambémno neoliberalismo e na teoria da escolha racional,ambos os quais explicaram e legitimaram essa in-satisfação. Os neoliberais comparam o modo deorganização estatal – hierárquico, de cima parabaixo – com a estrutura descentralizada e compe-titiva do mercado. Eles argumentam que o mer-cado é superior ao Estado e concluem que quan-do possível os mercados ou quase-mercados de-vem substituir a burocracia. A busca por eficiên-cia conduziu-os a propor que o Estado transferis-se organizações e atividades para o setor privado:as organizações poderiam ser transferidas por meioda privatização, isto é, da transferência de bensdo Estado para o setor privado por meio da aber-tura de capital ou da cessão do controle acionário;as atividades poderiam ser transferidas por meioda terceirização, isto é, o Estado pagaria a umaorganização do setor privado para que esta reali-zasse tarefas em seu benefício.

Muitos neoliberais combinam sua fé nos mer-cados com uma fé em que a disciplina do merca-do deveria de alguma forma validar as práticasgerenciais do setor privado; assim, redefinem osservidores públicos como gerentes ou provedo-res de serviços e os cidadãos como consumido-res ou usuários de serviços. Mais especificamen-te, as reformas neoliberais da administração pú-blica freqüentemente refletem análises formais. Oseconomistas neoliberais primeiramente desenvol-veram a teoria de diretor-agente [principal-agenttheory] para analisar o problema da discriciona-ridade delegada no setor privado, argumentandoque delegar a tomada de decisões dos diretores(acionistas) para os agentes (gerentes) é arrisca-do, pois os agentes podem agir em favor de seusinteresses particulares. Esses economistas propu-seram minimizar esse risco com o uso de incenti-vos e de mecanismos de mercado, a fim de ali-nhar os interesses dos agentes com os dos direto-res. No setor público, os diretores são os eleito-res e seus representantes eleitos, ao passo que osagentes são os servidores públicos. Para os teóri-cos da escolha racional, portanto, assim como o

3 O New Public Management foi uma forma de pensarprevalecente nos Estados Unidos entre as décadas de 1980e 2000 que afirmava serem necessárias reformas em direçãoao mercado para o Estado melhorar seu desempenho; taisreformas incluíam a diminuição da estrutura estatal, assimcomo a concepção de que os cidadãos são consumidores(N. T.).

4 A Terceira Via foi um movimento político teorizado pelosociólogo inglês Anthony Giddens em apoio às reformasliberalizantes do Primeiro-Ministro trabalhista Tony Blair(1997-2007). De acordo com eles, o Estado deveria dimi-nuir sua atuação direta na economia e dar mais espaço paraa iniciativa privada, mas sem abrir mão de seus mecanis-mos de controle e direção sócio-econômica e de combate àsdesigualdades sociais (N. T.).

5 A expressão “joined-up” é de difícil tradução no presentecontexto. O governo joined-up é uma proposta para quediferentes setores de um governo trabalhem em conjunto,

delimitando metas e objetivos transversais a eles, buscan-do a coordenação e a sinergia dos esforços e dos resultados.Evidentemente, ele opõe-se às ações específicas – e porvezes contrapostas – de cada um dos setores envolvidos.O governo joined-up foi proposto pelo Primeiro-Ministroinglês Tony Blair ano longo dos anos 1990 (N. T.).

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problema básico das corporações do setor priva-do parecia ser garantir que os gerentes atuem embenefício dos acionistas, o problema básico daadministração pública parecer ser assegurar queos servidores públicos trabalhem em benefício doscidadãos. Os neoliberais estenderam ao setor pú-blico os incentivos e os mecanismos de mercadoque os economistas determinaram para alinhar osinteresses dos agentes aos dos diretores.

As narrativas popular e neoliberal combinaram-se com análises mais formais para produzir umamudança de paradigma no modernismo. O novoparadigma denunciava a burocracia e os servido-res públicos e defendia os mercados e os empre-sários. Ele afastou-se do que era agora ridiculari-zado como “elefante branco” [big government],burocracia inchada e soluções homogeneizantes;dirigiu-se para um setor privado que era agoracelebrado como competitivo, eficiente e flexível.Essa mudança de paradigma é também relativa adefinições institucionais de bom governo, queenfatiza divisões evidentes de responsabilidades,em um contexto de relações hierárquicas, em di-reção a novas definições de processos eficientesdefinidos em termos de prestação de serviços eresultados com uma ênfase correlata na transpa-rência, na acessibilidade dos usuários [user-friendliness] e nas estruturas de incentivo.

Quando os cientistas sociais inspirados pelasteorias sociológicas da racionalidade estudaram asreformas neoliberais do setor público, com fre-qüência foram altamente críticos, argumentandoque as reformas incrementaram problemas decoordenação e de orientação; por seu turno, pro-moveram redes e o governo joined-up. Os defen-sores das redes distinguem-nas das hierarquias edos mercados. Os antigos institucionalistas acre-ditavam que as hierarquias tornam mais fácil lidarcom muitas atividades ao dividi-las em tarefasmenores, cada qual pode ser então realizada poruma unidade especializada. Os neo-institucionalistas argumentam que essa abordagemde solução de problemas não se adapta mais aomundo contemporâneo. Hoje os formuladores depolíticas crescentemente se confrontam com “pro-blemas capciosos” que não são acessíveis peladivisão e pela especialização: solucionar esses pro-blemas requer as redes.

O conceito de “problemas capciosos” surgecomo parte de uma Ciência Social de escopo in-termediário e amorfa associada ao instituciona-

lismo, à teoria das organizações e ao funcionalis-mo. Os governos social-democráticos então oassumiram e adotaram-no para contraporem-seàs idéias e políticas neoliberais. Os problemas cap-ciosos são geralmente definidos em termos comoestes: um problema de natureza mais ou menosúnica; a falta de qualquer formulação definitiva detal problema; a existência de múltiplas explicaçõespara ele; a ausência de um teste para decidir ovalor de qualquer resposta para ele; todas as res-postas são melhores ou piores que “verdadeiro”ou “falso”; cada uma tem importantes conseqü-ências de modo que não há possibilidade de apren-der a lidar com ele por tentativa e erro. Tipica-mente essas características implicam fortementeque os problemas capciosos são interrelacionados;por exemplo, um problema capcioso particularpoderia ser explicado em termos de suas relaçõescom outros, ou qualquer resposta para ele pode-ria influenciar outros. Exemplos clássicos dessesproblemas incluem temas urgentes da governança,como segurança, meio ambiente e decadência ur-bana.

Assim, muitos institucionalistas aceitam osargumentos neoliberais a respeito da natureza in-flexível e irresponsiva das hierarquias, mas, emvez de promoverem os mercados, eles apelam paraas redes como uma alternativa adequadamente fle-xível e responsiva baseada no reconhecimento deque os atores sociais operam em relaçõesestruturadas. Eles argumentam que a eficiência ea eficácia derivam de relações estáveis caracteri-zadas pela confiança, pela participação social epelas associações voluntárias. Em sua perspecti-va, embora as hierarquias possam fornecer umcontexto para a confiança e a estabilidade, o seutempo já passou, pois não se ajustam à nova eco-nomia global baseada no conhecimento. Esse novomundo crescentemente lança problemas capcio-sos que requerem redes e governança joined-up.Assim, foi um neo-institucionalismo, com seuconceito sociológico de racionalidade, que inspi-rou uma segunda onda de reformas, incluindomuitas políticas do New Labour6, da agenda aus-

6 O New Labour consistiu nas reformas políticas, econô-micas e sociais conduzidas pelo Partido Trabalhista in-glês (Labour Party) sob a liderança de Tony Blair ao lon-go dos anos 1990, que combinava, como indicado anteri-ormente, a proteção social com reformas voltadas para omercado (N. T.).

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traliana do whole-of-government7, das tentativasinternacionais de lidar com os estados falidos e dapolítica de segurança estadunidense posterior aosatentados de 2001.

III. E A RESPEITO DA DEMOCRACIA?

Tenha ou não o surgimento da governançaconduzido a serviços públicos mais eficientes eresponsivos, ela certamente sugere problemas detransparência e de legitimidade. Os atores do se-tor público não são democraticamente eleitos e éraro que eles sejam diretamente responsabilizáveisperante os representantes eleitos. Assim, um au-mento de sua importância no setor público origi-na questões sobre a accountability.

Alguns dos temas que confrontam agovernança democrática recuam no tempo até osurgimento da Ciência Social modernista. O co-

lapso do historicismo desenvolvimentista enfra-queceu inúmeros dos pressupostos que haviamuito acompanhavam a democracia representati-va. Não se poderia mais ver o Estado como a ex-pressão do bem comum de um povo ou de umanação; não se poderia mais assumir que políticose servidores responsáveis agiriam de acordo como bem comum. O problema de assegurar que re-presentantes fossem responsáveis cedeu lugar parao de torná-los responsivos. Ainda assim, mesmoque o modernismo tenha revelado fraturas na de-mocracia representativa, ele escondeu-as graçasa apelos a um conhecimento técnico aparentementeneutro. A nova governança fez algo muito pareci-do. A principal mudança foi o contexto do conhe-cimento técnico e o pano de fundo de hoje é umamistura de teoria da escolha racional com o neo-institucionalismo. A Tabela 2 sumaria esse padrão.

7 A política australiana do whole-of-government, que tra-duzido literalmente significaria “[de] todo o governo”, é aversão local das políticas que lidam com problemas cujasolução exige tratamentos colegiados da parte dos órgãospúblicos. Em outras palavras, é o mesmo princípio degovernança do que na Inglaterra, como vimos, é denomina-do “governo joined-up” e nos Estados Unidos, de governoem rede (networked government) (N. T.).

TABELA 2 – ADMIRÁVEL NOVA DEMOCRACIA

Para os historicistas desenvolvimentistas, ademocracia representativa era uma aquisição his-tórica. A sociedade civil (ou o estágio da civiliza-ção) que era necessário para manter a democra-cia representativa servia para promover ideaismorais e comportamentos como os elaboradospara o governo responsável. A responsabilidadereferia-se tanto ao caráter dos políticos e servido-res quando ao seu relacionamento com o público.Os políticos e servidores tinham o dever de res-ponder às demandas, aos desejos e às necessida-des do povo. Agir responsavelmente era agir de

FONTE: o autor.

modo a promover o bem comum mais que pro-curar vantagens pessoais; era perseguir interes-ses nacionais e, assim, superar facciosismos mes-quinhos. Palavras e conceitos próximos a “res-ponsabilidade” eram igualmente proeminentes emoutras línguas européias, como verantwoorde-lijkheid (neerlandês), responsabilité (francês),verantwortlichkeit (alemão), responsabilità (itali-ano) e responsabilidad (espanhol). Em marcadocontraste, “accountability” raramente apareceu emdicionários ou enciclopédias antes do século XX.

O conceito de accountability surgiu ao longodo modernismo. Por um lado, o modernismo es-tava associado a uma perda de fé nos princípiosque haviam sustentado a crença no progresso dasnações em direção ao Estado organizado[statehood], à liberdade e ao governo representa-tivo e responsável. Os modernistas crescente-mente descreveram a própria nação como frag-mentada e assim a democracia pareceu menos

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uma forma de expressar o bem comum e maisuma disputa entre facções ou classes. Por outrolado, o modernismo deu origem a novas formasde Ciências Sociais aparentemente neutras. A Ci-ência Social desenvolveu-se para fornecer umconhecimento técnico neutro que poderia guiar aformulação de políticas; ela poderia mostrar-nosquais políticas poderiam produzir melhor quais-quer resultados ou valores que nossos represen-tantes eleitos escolhessem. O modernismo, por-tanto, ajudou a manter a agora clássica distinçãoentre política e administração. O processo políti-co gera valores ou decisões políticas, das quais oministros são, dessa forma, os porta-vozes; osservidores públicos fornecem o conhecimentotécnico politicamente neutro que formula eimplementa as políticas que estão de acordo comesses valores ou decisões políticas. Nesse con-texto, a responsabilidade, como concebida peloshistoricistas desenvolvimentistas, torna-se menosrelevante que a accountability dos servidores pú-blicos em relação aos seus mestres políticos e aaccountability dos políticos perante o eleitorado.

Uma íntima conexão entre a accountability eo conhecimento técnico-burocrático aparece noconteúdo da accountability. A teoria, quando nãoa prática, da accountability aplica-se muito maisfirmemente aos servidores públicos que aos polí-ticos. Os políticos são fiscalizáveis por meio dasinstituições da democracia representantiva; os le-gisladores são fiscalizáveis pelos eleitores que pe-riodicamente decidem se devolvê-los-ão ou nãoaos parlamentos mais uma vez. O poder Executi-vo, especialmente os presidentes em sistemaspolíticos com forte separação dos poderes, tam-bém pode ser diretamente fiscalizável pelo eleito-rado; de maneira alternativa, o poder Executivo,notadamente os primeiros-ministros e os gabine-tes, podem ser fiscalizáveis por legislaturas quepodem revogar a autoridade do governo. As teori-as modernistas com freqüência sugerem que es-sas formas de accountability política são frágeis.Mesmo que os políticos e os governos possamperder eleições, com freqüência eles controlam oconhecimento, as agendas e os recursos de ma-neiras que os tornam mais poderosos que aquelesque procurariam forçá-los a prestar contas. Alémdisso, mesmo quando os políticos e os governosperdem eleições, com freqüência parece que suasquedas devem menos às suas condutas enquantoocupavam os cargos que a tendências sociais epolíticas mais amplas.

Os mecanismos para tornar os servidores pú-blicos fiscalizáveis parecem mais firmes. Aaccountability administrativa ocorre em hierarqui-as burocráticas, que são constituídas para definirclaramente uma divisão do trabalho especializadae funcional; elas especificam papéis claros paraos indivíduos no processo de tomada de decisões,tornando assim possível identificar quem é res-ponsável pelo quê. De modo típico, os servidoresindividuais são assim diretamente interpeláveis porseus superiores (e, em última análise, por seusmestres políticos) por suas ações. Some-se a issoque a accountability administrativa foicrescentemente complementada por uma varie-dade de ouvidores e outros meios judiciais parainvestigar-se a má administração e mesmo acorrupção.

Enquanto a accountability administrativa pa-receu mais firme que a accountability política, elafoi comprovadamente um instrumento grosseiro.A accountability administrativa forneceu uma pers-pectiva teórica para dividir a culpa e procurar areparação em casos de má administração. Mas oscríticos da narrativa burocrática reclamaram queela não fornece um meio de garantir e responder adiferentes níveis de desempenho. As novas teori-as da governança, incluindo a teoria da escolharacional e a teoria das redes, ressaltaram preocu-pações que se sobrepuseram à questão do desem-penho do setor público.

A teoria da escolha racional reformulou aaccountability nos termos do problema diretor-agente. O postulado dos atores racionais e auto-interessados enfraqueceu a idéia de que servido-res públicos poderiam geralmente ser confiáveispara agir desinteressadamente em benefício dobem comum. O problema não é verificar comoeles comportam-se, mas criar um quadro em queseus interesses estejam alinhados aos daqueles embenefício de quem eles trabalham. Em vez de pen-sar em como tornar os agentes (políticos ou ser-vidores públicos) fiscalizáveis por seus diretores(o eleitorado e os ministros, respectivamente), osteóricos da escolha racional sugeriram que a ques-tão é como fazer os agentes atuarem de acordocom os interesses dos diretores; eles responde-ram essa questão largamente em termos da ofertade incentivos adequados para os agentes.

A teoria das organizações, e seu impacto nasteorias institucionalista e das redes, revelou ummundo em que a tomada de decisões era mais

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complexa que um processo envolvendo váriosatores políticos em redes. Essa complexidade su-geriu que havia algo de ilusório, e mesmo injusto,no pressuposto de que as pessoas acima da hie-rarquia burocrática pudessem ser fiscalizáveispelas decisões e ações de seus subordinados. Ospapéis e as decisões administrativos e políticosraramente poderiam ser distinguidos uns dos ou-tros; a responsabilidade ministerial tornou-se demaneira bastante óbvia um mito para ser levada asério; a accountability procedimental pareciainapropriada, e também muito limitada, especial-mente quando concebida como reativa a decisõesque já tinham sido tomadas.

Mesmo que as novas teorias da governançatenham enfraquecido as formas de conhecimentotécnico e de accountability associadas à narrativaburocrática, elas promoveram novas formas deconhecimento técnico modernista que apontampara novas abordagens da democracia e daaccountability. Mesmo o conceito econômico daracionalidade inspirou os cientistas sociais a su-gerir que poderíamos beneficiar-nos com menosdemocracia. Os neoliberais com freqüência con-trastam a democracia – que permite aos cidadãosexpressar sua preferência ao votar apenas umavez a cada poucos anos e somente com um “sim”ou “não” a toda uma lista de políticos – com omercado – que permite aos consumidores expres-sar suas preferências continuamente, com varia-das intensidades e para itens individuais. Além dis-so, como vimos, os teóricos da escolha racionalàs vezes incomodam-se com o fato de que a de-mocracia implica custos políticos de transação queconduzem a incessantes aumentos dos gastospúblicos. Eles argumentam que o custo de váriositens dos gastos públicos é distribuído de maneirararefeita para uma grande população, de modo queos eleitores individuais não têm motivos para opo-rem-se a ele; mas os benefícios são concentradosem uma pequena parcela da população, que assimcobra o aumento dos gastos. Eles defendem insti-tuições não-majoritárias para proteger áreas polí-ticas cruciais – como o setor bancário ou o orça-mento público – da democracia.

Talvez valha dizer explicitamente que “não-majoritário” é um pouco mais que um eufemismopara “não-democrático”. Há razões conhecidaspara querermos proteger uma série de bens, in-cluindo os direitos humanos, da tomada de deci-sões democrática. Ainda assim, os argumentos daescolha racional para as instituições não-majoritá-

rias diferem dos argumentos em favor da prote-ção constitucional de direitos no fato de que elesbaseiam-se não em valores morais mas em teori-as da racionalidade alegadamente científicas. Taisteorias fiam-se em análises técnicas dos custospolíticos de transação e de um vazio decredibilidade associadas a um problema de incon-sistência temporal [time-inconsistency problem]para sugerir que a delegação de poderes para cor-pos não-majoritários reduz os custos políticos detransação em que os políticos incorrem porquelhes faltaria uma “tecnologia de compromisso”confiável.

Os cientistas sociais inspirados pelos concei-tos mais sociológicos de racionalidade com fre-qüência ficam desconfortáveis com o crescimen-to de organizações não-majoritárias e não-demo-cráticas. Muitos deles associam o papel crescen-te de tais organizações à crescente hostilidadepública à política e ao governo. Os institucionalistasrespondem aos temas democráticos surgidos comos novos mundos da governança tentando expan-dir o conceito de legitimidade, de modo que esteconsidere a efetividade, a accountability legal e ainclusão social. Às vezes eles vinculam a legitimi-dade à efetividade das organizações em fornecerbens públicos; às vezes eles atribuem a legitimi-dade a organizações que são criadas e reguladaspor estados democráticos, não importando quãodistantes e obscuras sejam as linhas da delegação:a legitimidade persiste porque as organizações in-dependentes são legalmente fiscalizáveis e porqueum governo democrático terá aprovado as leisrelevantes. Finalmente, às vezes eles sugerem quea legitimidade das organizações e das decisõespoderia residir em sua eqüidade e em suainclusividade. Os proponentes dessa visãoenfatizam a importância de uma sociedade civilforte para assegurar uma forma de accountabilitybaseada no escrutínio público. Grupos voluntári-os, os meios de comunicação e os cidadãos ati-vos monitoram as instituições e as decisões paraassegurar que elas sejam justas e inclusivas e, as-sim, para conferir ou recusar às organizações acredibilidade requerida para participar efetivamentedos processos de tomada de decisões.

O surgimento da governança tem sido acom-panhada, portanto, de conceitos de accountabilityque enfatizam o desempenho mais que os proce-dimentos. A accountability de desempenho iden-tifica a legitimidade primariamente com a satisfa-ção dos dirigentes com os resultados, desviando-

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se desse modo dos problema que as novas teoriasda governança associaram à accountabilityprocedimental. Se o Estado é julgado por seu de-sempenho ou pelos resultados, há menor necessi-dade de aferrar-se à mística distinção entre osdomínios administrativo e político. Além disso, aaccountability de desempenho torna menos im-portante que as ações dos agentes ou dos subor-dinados sejam diretamente supervisionadas ejulgadas pelo diretor.

Uma forma de conceber a accountability dedesempenho é em termos de quase-mercados. Oscidadãos atuam como consumidores e expressamsua satisfação ao comprarem ou selecionaremserviços fornecidos por uma agência em vez depor outra. Ainda assim, as agências públicas comfreqüência não têm os mecanismos de preço, deníveis de lucro e de orçamentos duros que pode-riam fazer do mercado um indicador da satisfa-ção do consumidor. Desse modo, uma outra for-ma de conceber a accountability de desempenhoé em termos de medidas de resultados. Metas,benchmarks8 e outros padrões e indicadores for-necem uma base para monitorar-se e auditar-se odesempenho das agências públicas. Finalmente, aaccountability de desempenho poderia ser incluí-da em trocas horizontais entre um sistema de ato-res; cada ator poria em questão o desempenho deoutro.

É importante enfatizar que essas respostas aosproblemas da governança democrática – as res-postas dos cientistas sociais inspiradas pelos con-ceitos econômico e sociológico de racionalidade– não são somente acadêmicas; elas informammuito das políticas públicas. Assim como os ato-res políticos realizaram duas ondas de reformasdo setor público que se basearam em versões for-mais e populares das teorias das Ciências Sociais,eles responderam a questões democráticas vin-culadas às reformas aferrando-se às instituiçõesrepresentativas complementadas pelas instituiçõesnão-majoritárias, pela inclusão social e pelaaccountabilities de desempenho e horizontal.

O exemplo dos governos central e local noReino Unido exibe aderência contínua à imagemrepresentativa da democracia, à disposição deconferir poder a instituições não-majoritárias e areformas do setor público ativamente direcionadaspara usar os mercados e as redes para favorecera legitimidade. De início, as extensas reformasconstitucionais dos últimos 15 anos sugerem quea idéia dominante de democracia permanece liga-da às instituições representativas. Sucessivos go-vernos perseguiram a visão liberal de governosterritoriais em vários níveis e experimentos eleito-rais mais ou menos até a exclusão de formas al-ternativas de pluralismo e de participação. Assem-bléias e eleições representativas mantêm-se comoos focos das reformas. A devolução de poderes àEscócia e ao País de Gales consistiu largamentena criação de novos parlamentos em Edimburgo eem Cardiff. A desafortunada reforma das regiõesinglesas tratava da criação de novas legislaturasterritorialmente baseadas. Também em Westmins-ter as reformas concentraram-se no parlamento,especialmente na Câmara dos Lordes9. Um outroaspecto das novas assembléias é a introdução dediversos sistemas eleitorais, mas isso de maneirabastante óbvia permanece firmemente nos qua-dros da democracia representativa.

O New Labour, embora inadvertidamente,ecoou a lógica das instituições não-majoritárias emseu primeiro gesto dramático – a concessão deindependência ao Banco da Inglaterra10. Uma ló-gica similar aparece em suas reformas judiciais: ogoverno respondeu aos dilemas de eficiência econfiança promovendo a judicialização. Ele vol-tou-se para os juízes como especialistas que po-dem fornecer proteção eficiente aos direitos hu-manos e ao bem-estar social, na esperança de queos juízes criariam uma confiança generalizada nes-se novo padrão de governo, desse modo confe-rindo ao Estado maior legitimidade. Novamente,

8 A expressão “benchmark” é de difícil tradução; ela expri-me o processo de comparação das práticas adotadas porvárias organizações que satisfazem de maneiras diferentesas mesmas necessidades ou que produzem os mesmos bens;não é tanto a simples comparação o que interessa, mas aidentificação (para posterior adoção) das “melhores práti-cas” (N. T.).

9 A expressão “Westminster” refere-se à sede do parla-mento britânico; considerando que o Reino Unido é umpaís parlamentarista, por metonímia trata-se da sede dogoverno. Já a Câmara dos Lordes é a câmara alta do ReinoUnido; ela é composta apenas pela nobreza (indicada pelorei, ou rainha, da Inglaterra), pela participação na IgrejaAnglicana ou por hereditariedade (N. T.).10 É necessário indicar que o Banco da Inglaterra temfunções de banco central, controlando a taxa de juros e apolítica monetária do Reino Unido (N. T.).

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ao conferir poder às cortes com uma nova capa-cidade de rever a legislação doméstica – por exem-plo, com a Lei de Direitos Humanos (de 1998) –,o governo efetivamente deu as boas-vindas àscortes no processo de tomada de decisões, de umaforma que, para o bem ou para o mal, reduziu oespectro de decisões que poderiam ser tomadasdemocraticamente. O poder Judiciário é uma ins-tituição não-democrática cujo novo papel restrin-ge (sem eliminar) o escopo de posteriores toma-das democráticas de decisões.

Embora a natureza não-escrita da constituiçãobritânica borre a distinção entre os assuntos cons-titucionais e administrativos ainda mais que o usual,mantém-se uma clara distinção entre eles. A re-forma do governo local pode ser primariamenteconstitucional ou administrativa. Os governos bri-tânicos recentes flertaram com inovações demo-cráticas, notadamente com prefeitos eleitos. Ain-da assim, sua abordagem para o governo localconcentrou-se quase inteiramente em reformasadministrativas, incluindo o best value11, o “de-sempenho fiscal abrangente”12 e os local areaagreements13. Essas reformas administrativas àsvezes refletem a idéia de que os mercados e asredes podem favorecer uma admirável nova de-mocracia baseada na escolha ampliada e na inclu-são social; mais freqüentemente, contudo, elas sãotentativas de reafirmar o controle central e esta-belecer padrões mínimos.

Os formuladores de políticas com freqüênciarespondem aos temas democráticos contemporâ-neos tentando complementar as instituições repre-

sentativas com um conhecimento técnico basea-do em novas teorias modernistas da governança.É útil distinguir dois tipos de conhecimento técni-co. Um primeiro baseia-se no conceito econômi-co de racionalidade encontrado na economianeoclássica e na teoria da escolha racional. Eleinspira uma erosão da democracia evidente emtentativas de restringir o escopo da tomada de-mocrática de decisões a fim de lidar com asirracionalidades coletivas. Os assuntos públicossão transferidos para instituições não-majoritári-as, incluindo bancos centrais independentes e juízese cortes. Da mesma forma, decisões democráti-cas futuras são constrangidas por leis que reque-rem que a legislação, por exemplo, equilibre orça-mentos ou respeito direitos jurídicos. Um segun-do tipo de conhecimento técnico baseia-se noconceito sociológico de racionalidade encontradono institucionalismo e em formas semelhantes deCiência Social. Ele inspira um repensar da demo-cracia que é evidente em novas ênfases naaccountability horizontal e na inclusão social. Ashierarquias burocráticas cedem espaço para re-des joined-up. A segurança pública, a educação eoutros serviços públicos crescentemente são ba-seados em parcerias que incluem organizações dosetor privado e grupos comunitários.

Hoje, os formuladores de políticas regularmenteevocam um admirável mundo novo dedescentralização, envolvimento público e cessãode poder [empowerment]. Seria tolice desprezaressas falas. Os formuladores de políticas podemgenuinamente acreditar que os mercados e as re-des podem e devem promover ideais democráti-cos. No entanto, sua fé com freqüência derivapelo menos implicitamente de afirmações de es-pecialistas segundo as quais mercados e redes in-clusivos podem apoiar uma governança eficienteque é percebida como legítima. Como tal, há umapossível tensão nesse admirável mundo novo. Aparticipação e o diálogo são meios para agovernança eficiente e a legitimidade percebida ousão meios para promover valores democráticos?O que acontecerá se o objetivo de promover agovernança efetiva e a legitimidade percebida en-trar em conflito com o de estender a inclusão so-cial e a participação política?

IV. CONCLUSÃO

A nova governança substitui um tipo de mo-dernismo por outro. Vão embora a narrativa bu-rocrática, o conhecimento técnico neutro das pro-

11 “Best value” é um programa do governo central britâni-co que orienta os administradores locais a buscarem o má-ximo de eficiência, eficácia e economia em suas gestões,buscando satisfazer as necessidades dos cidadãos dos lo-cais que administram. A tradução literal da expressão é“melhor valor”, mas como evidentemente ela perde o sen-tido na tradução, preferimos mantê-la no original (N. T.).12 No original, “comprehensive performance assessment”.Trata-se de um programa de auditoria fiscal britânico, emque os gastos dos governos locais são fiscalizados e avali-ados de acordo com os parâmetros anteriormente indica-dos: eficácia, eficiência, economia, satisfação das necessi-dades dos cidadãos (N. T.).13 Os “local area agreements” são planos trienais elabo-rados por conselhos municipais para orientar os gastospúblicos nos governos locais britânicos. Literalmente a ex-pressão significa “acordos de áreas locais”, mas tambémneste caso a tradução perde o sentido original (N. T.).

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fissões e a accountability prodecimental; entramos mercados e as redes, a teoria da escolha racio-nal e o institucionalismo de redes e a accountabilityde desempenho. As mudanças são dramáticas.Ainda assim, a nova governança, tanto como teo-ria quanto como prática, continua sendo parte deum modernismo que desde há tempos luta para ofim da compreensão que o século XIX tinha doEstado.

Quando historicizamos o modernismo – quan-do o mostramos como uma forma particular econtestável de conhecimento –, criamos a possi-bilidade de mover-nos além dele. A Tabela 3 ilus-tra essa possibilidade. Em vez das abordagensmodernistas às racionalidades econômica e soci-

ológica, poderíamos conceber a vida social emtermos de formas mais contingentes de razão lo-cal. Em vez de mover-nos da accountabilityprocedimental para a de desempenho, poderíamosencorajar a accountability procedimental, talvez atornando menos relativa a decisões que já foramtomadas e mais relativa a cidadãos tornando pes-soas fiscalizáveis durante os processos de toma-das de decisões. Em vez de apelar para a faláciado conhecimento técnico, poderíamos explorar apossibilidade de um envolvimento e de um con-trole mais diretos pelos cidadãos por meio da for-mação e da implementação de políticas públicas;poderíamos defender conceitos mais plurais eparticipativos de democracia.

BEVIR, M. 2010. Democratic Governance.Princeton: Princeton University.

TABELA 3 – APÓS O MODERNISMO

FONTE: o autor.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Mark Bevir ([email protected]) é Doutor em Teoria Política pela Universidade de Oxford (Inglater-ra) e Professor do Departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia (Estados Unidos),campus de Berkeley.