Graça Morais Jornal de Letras 3

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J jornaldeletras.sapo.pt * 6 a 19 de março de 2013 18 * artes ENTREVISTA metamorfoses que se inscrevem as figuras antropomórficas, meio bichos, meio pessoas que habitam a sua pintura a partir das manifesta- ções iniciais. Vem de longe a convi- vência da pintora com os animais. “Trago dentro de mim, da infância, a realidade de uma aldeia isolada de Trás-os-Montes, em que era forte a relação com os bichos”, sublinha. “Sobretudo, gosto das cabras. Ainda hoje fico fascinada quando vejo um rebanho delas. Acho-as muito bonitas, as cabeças, os cornos… E espertas. As minhas ‘Pietà’ deixam de ser pessoas para se transforma- rem em animais. E essas figuras são as heroínas, os heróis da minha exposição”. É de uma cabra a caveira que aparece num dos quadros de Os Desastres da Guerra. E a pintora tem o modelo original no seu ateliê: “Há um pastor na aldeia que me tem oferecido as caveiras das cabras. Pedi-lhas porque acho uma forma muito interessante. Não as humanas, porque penso sempre que por cima daqueles ossos houve uma pessoa, uma vida. Mas as de animais, vejo- as essencialmente como formas que me interessa agarrar e levar para a minha pintura. E é curioso que já houve pessoas que as associaram ao Diabo, por causa dos cornos. Mas não são diabos, são anjos”. TESTEMUNHA DO PRESENTE Os Desastres da Guerra assumem por outro lado o caráter inequívoco de uma pintura política. Graça Morais entende-o na justa medida em que as guerras, como a atual crise finan- ceira e a situação da Humanidade são o resultado de políticas. “Esta é uma pintura que tem essa dimensão e que acusa”, afirma. “Fi-la por necessidade, mas agora que está nas paredes do museu, sinto que pode interrogar e acusar”. Mais, acres- centa: “É a minha atitude, como mulher e artista no mundo, uma posição de quem não está insensível ao que se está a passar”. Nesse sentido, é a sua primeira exposição fortemente ancorada no presente: “Podia ser um diário, que fiz ao longo destes últimos anos e que continuo a fazer”. É uma série longe de estar concluída. “Infelizmente”, ressalva a pintora que iniciou a sua carreira nos anos 70: “Continuo a ter necessidade de refletir e de transformar essa realidade em pintura e desenho. Vivemos todos medos tão for- tes, as leis que são feitas são de uma tão grande desumanidade e insensibilidade social, que há muitas pessoas a sofrer imenso no país. Revolta-me que tantos seres humanos sejam desprotegidos e desamparados. Não posso ficar calada. Todos estamos a sofrer uma grande injustiça, que se reflete no nosso dia-a-dia, nas relações com as pessoas, com a família. É preciso ver o que se está a passar com tanta gente desempregada, com tantos deprimidos. Como é possível fazer uma pintura decorativa ou que ignore o que está a acontecer? O que perde também o seu futuro”. As pinturas de Os Desastres da Guerra surgem assim, no entender de Pinharanda, como um “alerta” e uma “denúncia”. Num relance pelas salas da exposição, ‘gritam-nos’ sobre- tudo vermelhos. Reflexos do que “arde” no mundo, como explica a pintora: “Nas imagens que nos chegam diariamente pela televisão, vemos muitos fogos e explosões, muito sangue. Além das guerras, há também incêndios gigantes- cos, como aconteceu há algum tempo na Austrália. É a destruição do planeta que está em causa, catástrofes que o Homem não consegue controlar e que muitas vezes são a consequência de uma ganância que resulta profunda- mente destruidora”. Outra face da mesma moeda, que é como quem diz do medo, porque a ‘caminhada’ tem vários sentidos, mas talvez uma equação única: “Há milhares No âmbito da exposição de Graça Morais, vão realizar-se dois debates, também na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. O primeiro já no próximo sábado, 9 de março, “Que Guerra é esta?”, com Guilherme d’Oliveira Martins, João Pinharanda, Paulo Moura e Raquel Henriques da Silva. O segundo a 6 de abril, às 16, “E depois da Guerra?”, com Adelino Gomes, José Manuel dos Santos, José Tolentino Mendonça, Luísa Soares de Oliveira e Viriato Soromenho Marques. Ambos os debates às 16 horas e antecedidos (às 15) por uma visita à exposição ‘guiada’ por Graça Morais. J As mulheres são sempre as maiores vítimas (…) continuam a sofrer muita violência física e psíquica, mais agravada em tempos de crise Apintora junto a um dos seus quadros Revolta-me que tantos seres humanos sejam desprotegidos e desamparados. Debates sobre Os Desastres da Guerra querem gente mais pobre do que os seus pobres, para que a sua riqueza não se desvalorize e não se perturbe o equilíbrio entre os ricos e os po- bres que sustenta a sua sociedade. Apressa-te a subir, pobre migrante, a passagem que te oferecemos, por nossa conta e risco, custa-te apenas dois mil dinheiros, na moeda atual exatamente o mesmo que um habi- tante itálico pagava para apanhar o vapor para as Américas (…)”. Logo que o escritor lhe enviou o texto, a pintora sentiu, confessa, que estava a fazer qualquer coisa de mui- to “especial”. “Para tocar assim um homem como o Antonio é porque estava a ir fundo em qualquer coisa que liga a pintura à literatura, pelos sentimentos que unem as obras e as pessoas. Fiquei ainda com mais responsabilidade de continuar o que estava a fazer”. E esse quadro seria distinguido com o Prémio Casino da Póvoa de Varzim (no valor de 30 mil euros, mais a publicação de uma monografia da artista). A pintora foi-se entretanto aper- cebendo de outro êxodo mais próxi- mo: “Hoje, do meu país também os jovens são obrigados a sair para todo o mundo à procura de um sítio para trabalharem e viverem. É uma sepa- ração feita com alguma esperança, mas também com muito sofrimento, porque partem ao encontro do des- conhecido”. A série mais recente, reflete, de alguma maneira, o modo como vivemos. Num tempo cheio de testemunho do meu tempo é o que consigo perceber do meu tempo”. Graça Morais quer testemunhar o seu tempo na pintura que faz. “Cada tempo tem o seu tempo e é ele que resiste para memória futura”, escreve João Pinharanda no catálogo. “O trabalho de Graça Morais trata do Tempo e do Lugar. Ela construiu a sua imagem investigando memórias e transformando realidades: a do Portugal rural que mudava e perdia o seu tempo e o seu lugar no Mundo. Através dela vimos Trás-os-Montes agarrando-se à lonjura do céu, à dureza do ar, à antiguidade da voz, à violência de uma beleza esquecida. As duas séries que agora se apresentam, embora encadeando-se em alguns momentos anteriores, surgem claramente como sobressalto cívico. Graça Morais reage, já não apenas a um presente que perde o seu passado, mas a um presente Sombras do Medo (seu título) – e “de catástrofes”, assevera. Referindo-se tanto às humanas como às naturais, de que não tínhamos consciência e um conhecimento como hoje: “Agora, qualquer pessoa fotografa esses acontecimentos com o telemó- vel e manda para o mundo, através da Internet. Algumas dessas imagens tocam-me especialmente, porque em todas as guerras, em todos os ataques terroristas ou calamidades há sempre pessoas que vão resgatar outras. Vemos verdadeiras ‘Pietà’ vivas, em carne e osso. São elas que vão ao inferno buscar outros seres humanos e que aparecem na série das ‘sombras’. Mas a minha pintura não é realista. Já basta a realidade. Por isso, metamorfoseio esse real”. É isso que verdadeiramente lhe in- teressa: a “pintura e o seu domínio, não a descrição realista”. São desse domínio as carcaças e caveiras de animais que surgem nos seus quadros. E é nesse jogo de

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Graça Morais Uma pintura que grita e acusa Entrevista por Maria Leonor NunesA Luz das trevas - Crítica de Arte por Maria João FigueiredoJornal de Letras, Artes e Ideias publicado a 6 de Março 2013, págs. 16 a 20

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Jjornaldeletras.sapo.pt * 6 a 19 de março de 201318 * artes entrevista

metamorfoses que se inscrevem as figuras antropomórficas, meio bichos, meio pessoas que habitam a sua pintura a partir das manifesta-ções iniciais. Vem de longe a convi-vência da pintora com os animais. “Trago dentro de mim, da infância, a realidade de uma aldeia isolada de Trás-os-Montes, em que era forte a relação com os bichos”, sublinha. “Sobretudo, gosto das cabras. Ainda hoje fico fascinada quando vejo um rebanho delas. Acho-as muito bonitas, as cabeças, os cornos… E espertas. As minhas ‘Pietà’ deixam de ser pessoas para se transforma-rem em animais. E essas figuras são as heroínas, os heróis da minha exposição”. É de uma cabra a caveira que aparece num dos quadros de Os Desastres da Guerra. E a pintora tem o modelo original no seu ateliê: “Há um pastor na aldeia que me tem oferecido as caveiras das cabras. Pedi-lhas porque acho uma forma muito interessante. Não as humanas, porque penso sempre que por cima daqueles ossos houve uma pessoa, uma vida. Mas as de animais, vejo-as essencialmente como formas que me interessa agarrar e levar para a minha pintura. E é curioso que já houve pessoas que as associaram ao Diabo, por causa dos cornos. Mas não são diabos, são anjos”.

TesTemunha do presenTe Os Desastres da Guerra assumem por outro lado o caráter inequívoco de uma pintura política. Graça Morais entende-o na justa medida em que as guerras, como a atual crise finan-ceira e a situação da Humanidade são o resultado de políticas. “Esta é uma pintura que tem essa dimensão e que acusa”, afirma. “Fi-la por necessidade, mas agora que está nas paredes do museu, sinto que pode interrogar e acusar”. Mais, acres-centa: “É a minha atitude, como mulher e artista no mundo, uma posição de quem não está insensível ao que se está a passar”.

Nesse sentido, é a sua primeira exposição fortemente ancorada

no presente: “Podia ser um diário, que fiz ao longo destes últimos anos e que continuo a fazer”. É uma série longe de estar concluída. “Infelizmente”, ressalva a pintora que iniciou a sua carreira nos anos 70: “Continuo a ter necessidade de refletir e de transformar essa realidade em pintura e desenho. Vivemos todos medos tão for-tes, as leis que são feitas são de uma tão grande desumanidade e insensibilidade social, que há muitas pessoas a sofrer imenso no país. Revolta-me que tantos seres humanos sejam desprotegidos e desamparados. Não posso ficar calada. Todos estamos a sofrer uma grande injustiça, que se reflete no nosso dia-a-dia, nas relações com as pessoas, com a família. É preciso ver o que se está a passar com tanta gente desempregada, com tantos deprimidos. Como é possível fazer uma pintura decorativa ou que ignore o que está a acontecer? O

que perde também o seu futuro”. As pinturas de Os Desastres da Guerra surgem assim, no entender de Pinharanda, como um “alerta” e uma “denúncia”.

Num relance pelas salas da exposição, ‘gritam-nos’ sobre-tudo vermelhos. Reflexos do que “arde” no mundo, como explica a pintora: “Nas imagens que nos chegam diariamente pela televisão, vemos muitos fogos e explosões, muito sangue. Além das guerras, há também incêndios gigantes-cos, como aconteceu há algum tempo na Austrália. É a destruição do planeta que está em causa, catástrofes que o Homem não consegue controlar e que muitas vezes são a consequência de uma ganância que resulta profunda-mente destruidora”. Outra face da mesma moeda, que é como quem diz do medo, porque a ‘caminhada’ tem vários sentidos, mas talvez uma equação única: “Há milhares

No âmbito da exposição de Graça Morais, vão realizar-se dois debates, também na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. O primeiro já no próximo sábado, 9 de março, “Que Guerra é esta?”, com Guilherme d’Oliveira Martins, João Pinharanda, Paulo Moura e Raquel Henriques da Silva. O segundo a 6 de abril, às 16, “E depois da Guerra?”, com Adelino Gomes, José Manuel dos Santos, José Tolentino Mendonça, Luísa Soares de Oliveira e Viriato Soromenho Marques. Ambos os debates às 16 horas e antecedidos (às 15) por uma visita à exposição ‘guiada’ por Graça Morais. J

As mulheres são sempre as maiores vítimas (…) continuam a sofrer muita violência física e psíquica, mais agravada em tempos de crise

“Apintora junto a um dos seus quadros Revolta-me que tantos seres humanos sejam desprotegidos e desamparados.

Debates sobre Os Desastres da Guerra

querem gente mais pobre do que os seus pobres, para que a sua riqueza não se desvalorize e não se perturbe o equilíbrio entre os ricos e os po-bres que sustenta a sua sociedade. Apressa-te a subir, pobre migrante, a passagem que te oferecemos, por nossa conta e risco, custa-te apenas dois mil dinheiros, na moeda atual exatamente o mesmo que um habi-tante itálico pagava para apanhar o vapor para as Américas (…)”.

Logo que o escritor lhe enviou o texto, a pintora sentiu, confessa, que estava a fazer qualquer coisa de mui-to “especial”. “Para tocar assim um homem como o Antonio é porque estava a ir fundo em qualquer coisa que liga a pintura à literatura, pelos sentimentos que unem as obras e as pessoas. Fiquei ainda com mais responsabilidade de continuar o que estava a fazer”. E esse quadro seria distinguido com o Prémio Casino da Póvoa de Varzim (no valor de 30 mil euros, mais a publicação de uma monografia da artista).

A pintora foi-se entretanto aper-cebendo de outro êxodo mais próxi-mo: “Hoje, do meu país também os jovens são obrigados a sair para todo o mundo à procura de um sítio para trabalharem e viverem. É uma sepa-ração feita com alguma esperança, mas também com muito sofrimento, porque partem ao encontro do des-conhecido”. A série mais recente, reflete, de alguma maneira, o modo como vivemos. Num tempo cheio de

testemunho do meu tempo é o que consigo perceber do meu tempo”.

Graça Morais quer testemunhar o seu tempo na pintura que faz. “Cada tempo tem o seu tempo e é ele que resiste para memória futura”, escreve João Pinharanda no catálogo. “O trabalho de Graça Morais trata do Tempo e do Lugar. Ela construiu a sua imagem investigando memórias e transformando realidades: a do Portugal rural que mudava e perdia o seu tempo e o seu lugar no Mundo. Através dela vimos Trás-os-Montes agarrando-se à lonjura do céu, à dureza do ar, à antiguidade da voz, à violência de uma beleza esquecida. As duas séries que agora se apresentam, embora encadeando-se em alguns momentos anteriores, surgem claramente como sobressalto cívico. Graça Morais reage, já não apenas a um presente que perde o seu passado, mas a um presente

Sombras do Medo (seu título) – e “de catástrofes”, assevera. Referindo-se tanto às humanas como às naturais, de que não tínhamos consciência e um conhecimento como hoje: “Agora, qualquer pessoa fotografa esses acontecimentos com o telemó-vel e manda para o mundo, através da Internet. Algumas dessas imagens tocam-me especialmente, porque em todas as guerras, em todos os ataques terroristas ou calamidades há sempre pessoas que vão resgatar outras. Vemos verdadeiras ‘Pietà’ vivas, em carne e osso. São elas que vão ao inferno buscar outros seres humanos e que aparecem na série das ‘sombras’. Mas a minha pintura não é realista. Já basta a realidade. Por isso, metamorfoseio esse real”. É isso que verdadeiramente lhe in-teressa: a “pintura e o seu domínio, não a descrição realista”.

São desse domínio as carcaças e caveiras de animais que surgem nos seus quadros. E é nesse jogo de