graram da Grécia para a América com muito pouco dinheiro ... · durante os longos dias e as...

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Este livro é dedicado à minha devota mulher, Alexandra, e às minhas duas adoradas filhas, Tatiana e Isabella. Elas foram as minhas grandes apoiantes durante os longos dias e as longas noites de trabalho, investigação e escrita. Também gostaria de agradecer aos meus pais, George e Theoni, que emi- graram da Grécia para a América com muito pouco dinheiro e um total desco- nhecimento da língua inglesa. Sacrificaram-se em silêncio para que o meu irmão Dean, a minha irmã Vivian e eu pudéssemos usufruir de uma vida melhor. Ensinaram-nos o sig- nificado dos valores e da dedicação ao trabalho, bem como do poder da com- binação destas duas qualidades. Só pediram uma coisa em troca que nos esforçássemos para dar aos nossos filhos mais oportunidades do que aquelas que eles tinham sido capazes de nos oferecer.

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Este livro é dedicado à minha devota mulher, Alexandra, e às minhas duas adoradas filhas, Tatiana e Isabella. Elas foram as minhas grandes apoiantes durante os longos dias e as longas noites de trabalho, investigação e escrita. Também gostaria de agradecer aos meus pais, George e Theoni, que emi-graram da Grécia para a América com muito pouco dinheiro e um total desco-nhecimento da língua inglesa. Sacrificaram-se em silêncio para que o meu irmão Dean, a minha irmã Vivian e eu pudéssemos usufruir de uma vida melhor. Ensinaram-nos o sig-nificado dos valores e da dedicação ao trabalho, bem como do poder da com-binação destas duas qualidades. Só pediram uma coisa em troca — que nos esforçássemos para dar aos nossos filhos mais oportunidades do que aquelas que eles tinham sido capazes de nos oferecer.

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ÍNDICE

PRóLOGO: Um funeral .......................................................................................... 9 Capítulo 1: O que aconteceu .................................................................................. 15

PARTE UM ― Como é que o Goldman teve sucesso

Capítulo 2: Princípios e valores partilhados ......................................................... 59 Capítulo 3: A estrutura da parceria ....................................................................... 87

PARTE DOIS ― Reformulação

Capítulo 4: Sob pressão, o Goldman cresce rapidamente e converte-senuma empresa cotada na bolsa ............................................................................ 113

Capítulo 5: Sinais de reformulação organizacional ........................................... 141

PARTE TRÊS ― Aceleração da reformulação

Capítulo 6: As consequências da abertura de capital .........................................183 Capítulo 7: Dos princípios ao padrão legal ....................................................... 205

PARTE QUATRO ― O desempenho do Goldman

Capítulo 8: Questões incómodas ― liderança, crise e clientes ....................... 235

Capítulo 9: Por que é que o Goldman não deteta a mudança? ...................... 273

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íNDICE

CONCLUSãO: lições .......................................................................................... 285

Apêndice A: Goldman e a reformulação organizacional ............................................. 297

Apêndice B: A estrutura analítica aplicada ao Goldman ........................................... 311

Apêndice C: Seleção de empregados e lobistas do Goldman com cargos governamentais(antes ou depois do Goldman) .................................................................................... 315

Apêndice D: Valor das ações dos sócios na IPO ........................................................ 327 Apêndice E: A história do compromisso do Goldman para com o serviço público ........ 339 Apêndice F: Pessoas-chave do Goldman ..................................................................... 341

Apêndice G: Calendário de acontecimentos selecionados da história do Goldman ......... 353

Apêndice H: A cultura do Goldman e a estrutura de governação ............................... 381

Agradecimentos ..................................................................................................... 383

Notas ....................................................................................................................... 385

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PRÓLOGO

UM FUNERAL

No dia 25 de setembro de 2006 compareci nas exéquias de John L. Weinberg, sócio sénior do Goldman Sachs de 1976 a 1990. Mais de mil pessoas encheram Gotham Hall,

em Nova Iorque, para prestar a sua última homenagem a John L. (como era muitas vezes referido no seio do Goldman Sachs, para o distinguir de outros colegas com o mesmo nome), produto da Prin-ceton and Harvard Business School e filho de Sidney Weinberg, um dos banqueiros mais poderosos de Wall Street, que tinha subido literalmente de contínuo até sócio sénior do Goldman e que servira de homem de confiança para vários presidentes.

O programa englobava uma lista de honra do Goldman das pessoas que iriam discursar, incluindo Lloyd Blankfein, o atual presidente-executivo; John Whitehead, que dirigia a firma com John L. ― eram os dois conhecidos por os Johns ― e que deixara o Goldman em 1985 para desempenhar o cargo de subsecretário de Estado; Robert Rubin, que passara de sócio sénior no início da década de 90 para secretário de Estado do Tesouro; Hank Paulson, que dirigiu o Goldman quando este se tornou público, com ações cotadas na bolsa de Nova Iorque (New York Stock Exchange ou NYSE), em 1999, e que acabara de ser nomeado secretário de Es-tado do Tesouro; John S. Weinberg, o filho de John L. e, na altura, vice-presidente do Goldman; e Jack Welch, antigo presidente e dire-tor-executivo da General Electric, e cliente de longa data de John L.

O louvor de Welch destacou-se. Com a voz embargada, con-tendo as lágrimas, referiu: «Amo-te, John. Obrigado por seres meu

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PRóLOGO

amigo». Imagine-se hoje em dia um presidente-executivo referir-se ao seu banqueiro de investimento nestes termos, à beira de se des-fazer em lágrimas nas suas exéquias.

John S. tentou aliviar o ambiente de pesar com uma referência engraçada: «A coisa que o meu pai mais gostava de fazer era falar com os cães, porque eles não respondiam». Captou ainda a essên-cia de John L. quando disse: «Ele distinguiu o bem do mal de uma forma absolutamente clara, sem tons de cinzento». John L. era um veterano de guerra, tendo servido nos fuzileiros navais dos EUA na Segunda Guerra Mundial e na Coreia, e o cântico de despedida foi o hino da Marinha. Os excertos da letra «Mantenha a sua honra imaculada» e «Orgulhoso de servir» compuseram um final de ceri-mónia perfeito.

Desde 1976, ano no qual os dois Johns foram copresidentes, até à morte de John L., em 2006, o Goldman evoluiu de banco de investimento privado de estatura modesta focada nos Estados Uni-dos ― com menos de 1000 empregados e um total de lucros antes de impostos inferior a 100 milhões de dólares ― para o mais pres-tigiado banco de investimento do mundo transacionado na bolsa. A firma possuía orgulhosamente escritórios espalhados por todo o mundo, contava com mais de 25 000 empregados, quase 10 mil milhões de dólares em lucros antes de impostos, uma cotação na bolsa de quase 200 dólares por ação e uma capitalização bolsista próxima dos 100 mil milhões de dólares.

Eu deixara o Goldman em 2004, após uma carreira de doze anos e poucos meses depois de terem decorrido os cinco anos do período de concessão que me permitiam ter acesso às ações que me haviam sido concedidas na emissão pública. Tornara-me um cliente comercial e de investimento do Goldman. Estive presente nas exé-quias de John L. por respeito ao homem que conhecera e admirara ― uma lenda de Wall Street, embora ninguém pudesse deduzir isso a partir da sua conduta. Também desejava mostrar o meu apoio a John S., um homem que eu considerava (e ainda considero) um

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mentor e um amigo. (Veja-se no «Apêndice F» uma lista anotada dos sócios-chave do Goldman ao longo dos anos.)

Encontrei John L. pela primeira vez em 1992, quando era ana-lista financeiro no Goldman, seis meses depois de ter saído da uni-versidade. O caráter lendário de Sidney e John L. Weinberg fora uma das razões que me atraíram para o Goldman, e estava entusias-mado com a perspetiva de o conhecer. Identifiquei-me com John L. pelo facto de sermos ambos filhos de pais de origem modesta. Pensei: se o pai de John L. começou por esvaziar escarradeiras e acabou a dirigir o Goldman, então tudo seria possível para mim, um filho de emigrantes gregos. O meu pai começara como ajudan-te de criado de café no hotel Drake, em Chicago, e a minha mãe trabalhara numa fábrica de montagem da Zenith TV.

Conheci John L. pouco depois de entrar no Goldman, como analista financeiro no departamento de fusões e aquisições (F&A), quando o entrevistei no âmbito de uma tarefa no trabalho. Pedi-ram-me para fazer um vídeo da história desse departamento, com o intuito de ser passado durante as visitas efetuadas fora do departa-mento. O banco via com entusiasmo o facto de documentar e hon-rar a sua história e de organizar visitas ao exterior para promover a união entre os empregados. Na entrevista, John L. não podia ter sido mais jovial e humilde. Na altura, o Goldman tinha lucros antes de impostos inferiores a 1,5 mil milhões de dólares, e menos de três mil empregados. Steve Friedman e Bob Rubin, sócios gerentes, tinham iniciado um plano agressivo de crescimento ― concentrado nas áreas de trading e investimento em nome próprio, expandindo--se internacionalmente e diversificando-se para novas áreas de negócio.

John L. contou-me que, certa vez, o pai o despedira, na década de 50, por aquilo que lhe pareceu ter sido uma pequena transgres-são ― sem as necessárias autorizações, comprometera um pequeno montante do capital da firma para ajudar a fechar o negócio de um cliente ―, e que, depois de aprendida a lição, se rebaixara para reaver o seu posto. Contou-me como utilizara um campo de squash como escritório, partilhando-o com John Whitehead ― o segundo

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PRóLOGO

dos dois Johns ―, porque não havia qualquer outro espaço dispo-nível para eles. Falou sobre integridade e princípios nos negócios e explicou-me como é que as suas experiências militares o tinham ajudado no Goldman e também na vida privada. Referiu-me o quão orgulhoso estava da sua família, incluindo os seus jovens netos. Demonstrou um forte interesse na minha própria família, e fiquei impressionado com a sua curiosidade em relação às histórias que eu partilhava acerca do meu pai sobre as suas experiências militares na Grécia.

John L. perguntou-me por que é que eu me tinha associado como voluntário às patrulhas de segurança dos Guardian Angels e também se mostrou interessado em saber como é que eu con-seguira conciliar a prática de dois desportos na Universidade de Chicago e as atividades dos serviços comunitários. Revelou-me que os seus dois filhos também jogavam ténis universitário. Após me dizer que gostava de Chicago, onde eu nascera, aconselhou-me a trabalhar com o chefe do escritório da cidade, Hank Paulson, pois iria aprender imenso com ele e isso permitir-me-ia voar a partir de Nova Iorque para ver a minha família com mais frequência, algo que ele realçou como sendo importante.

Não voltei a ver John L. até 1994, depois de o Goldman ter perdido centenas de milhões de dólares ao apostar erradamente na forma como iriam evoluir as taxas de juro, quando a FED (Re-serva Federal Norte-Americana) as subiu inesperadamente. Corre-ram rumores de que as contas de capital dos sócios gerentes, que representavam várias décadas de trabalho árduo, tinham caído em 50% numa questão de meses. E pior: uma vez que o Goldman es-tava estruturado como uma parceria, a responsabilidade dos sócios gerentes não estava limitada ao seu capital na firma; todo o seu pa-trimónio líquido estava em jogo. Com a firma a vacilar com as suas perdas, Steve Friedman, então o único sócio gerente devido à saída de Rubin para servir na administração de Clinton, pediu a demissão repentinamente. Friedman citou palpitações cardíacas sérias para

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justificar esta reforma inesperada. John L. classificou Friedman de «enorme cobarde» e considerou que a sua partida representou um «abandono do posto e das tropas em pleno combate», independen-temente da razão que foi invocada.1

Apesar dos melhores esforços de John L. para os convencer a ficar, cerca de um terço dos sócios reformou-se nos meses seguin-tes. As suas reformas dariam um tratamento preferencial ao seu ca-pital sobre o dos sócios que ficavam ― e permitiria aos que partiam começar a levantar o capital. Muitos empregados leais começaram a ser despedidos, para reduzir as despesas.

Quando John L., nesse dia de 1994, entrou no departamento de fusões e aquisições (situado no vigésimo terceiro andar da 85 Broad Street) para acalmar as hostes, a atmosfera estava tensa. A firma parecia em risco. Antes de começar a falar, eu estava ge-nuinamente preocupado com a possibilidade de a firma vir a falir.

A Drexel Burnham Lambert tinha-se apresentado à insolvên-cia uns anos antes; por que não também o Goldman? As palavras encorajadoras de John L. caíram-me muito bem e entre os meus colegas, bem como o facto de ele as ter transmitido pessoalmente. O mais espantoso foi ter-se lembrado de mim e do meu projeto de vídeo e, num jeito de avô, ter-me dado uma palmada nos ombros quando me cumprimentou.

Mais tarde, convivi socialmente com John L. Pertencíamos ao mesmo clube nas Baamas, e via-o lá com frequência. Embora mui-tos dos sócios fossem donos de casas de férias grandes e imponen-tes, isso não acontecia com John L. Ele alugava um pequeno chalé. Disse-me uma vez o número de camas de criança que conseguira instalar num quarto, quando os filhos eram mais novos ― orgulho-so de quanto conseguira poupar por não ter de alugar casas maio-res. Lia vorazmente e lembro-me sempre do quanto gostava de comer salada de repolho cru a acompanhar o almoço. Trocávamos de livros e, uma vez, chegou a escrever uma carta de recomendação para mim.

Uma noite, andaria ele na casa dos 70 anos de idade, tive o pra-zer de jantar com ele, a mulher, John S. e outros, no La Grenouille,

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PRóLOGO

um dos melhores restaurantes de Nova Iorque. John L. estava com problemas de saúde, pelo que não saía muitas vezes. O local estava cheio de presidentes-executivos e de outras pessoas importantes e, à medida que iam saindo, cada um deles vinha à nossa mesa para cumprimentar John L., embora muitos já não o vissem há anos. John L. saudou cada um pelo seu nome e perguntou pelas suas famílias, evitando qualquer tipo de louvor sobre ele ou o Goldman.

Em 2004, doze anos depois, deixei o Goldman para ajudar a lançar uma firma de gestão de patrimónios. Mas John S., quando o vi depois do funeral, ofereceu-me a sua ajuda em tudo o que fosse preciso, como o fizera o seu pai, e mostrou-se interessado nos pro-gressos da minha família, mesmo em tempos difíceis para ele e para os seus próprios familiares.

Além disso, houve outra coisa que me impressionou durante o funeral. Algo que me fez parar para refletir nas mudanças culturais e organizacionais das quais fora testemunha, primeiro como em-pregado e mais tarde como cliente. As exéquias fizeram com que lhes conferisse um enorme relevo.

Pareceu-me estranho, quase surrealista, o facto de estar a refle-tir sobre as mudanças. Nesse outono de 2006, o Goldman estava muito próximo do seu pico de capacidade de gerar receitas e de prestígio. Mas eu senti que, de uma forma algo estranha, não me estava só a lamentar pela perda do homem que tinha corporizado os valores do Goldman e os seus princípios empresariais, mas tam-bém pelas alterações na cultura da firma, que fora construída com base nesses valores.2

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Capítulo 1

O quE aCONtECEu

o Goldman está cada vez mais forte», declarava o título de um artigo da Fortune, em fevereiro de 2007. «Em Wall Street há os bons e depois há o Goldman», escreveu o

autor, Yuval Rosenberg. «Geralmente considerado o melhor dos pesos pesados entre os bancos de investimento, o Goldman Sachs foi o único membro da indústria de subscrição de títulos a aparecer na lista de 2006 (da Fortune) das companhias americanas mais admi-radas (colocada em 18.º lugar).»1 Rosenberg argumentava que o que distinguia a firma era a qualidade dos seus quadros e dos incentivos que oferecia. «Há muito que o banco tem a reputação de atrair os melhores e mais inteligentes», escreveu, «e não é de admirar: o Goldman fez as manchetes dos jornais em dezembro, ao distribuir uns extraordinários 16,5 mil milhões de dólares em bónus no ano passado. Isto representa uma média de quase 622 mil dólares por empregado». E, como se não fosse suficiente, «nos meses a se-guir à publicação da nossa lista, a reputação brilhante do Goldman tornou-se ainda mais ofuscante».

Contudo, apenas dois anos mais tarde, o Goldman estava a ser largamente esfolado pela imprensa, sendo alvo de acusações, in-vestigações, audições do congresso e litígios (para não referir as piadas noturnas), devido a alegados comportamentos insensíveis, antiéticos, imorais e até criminosos. Matt Taibbi, conhecido jor-nalista da revista Rolling Stone, escreveu: «O banco de investimento mais poderoso do mundo representa uma enorme lula vampiresca enrolada na face da humanidade, apertando implacavelmente o seu

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O QUE ACONTECEU

funil de sangue em tudo o que se assemelha a dinheiro».2 Compre-ensivelmente, parece que aldeões furibundos armados com tochas e forquilhas se concentravam mesmo ali à esquina. (Em 2011 seria lançado o movimento de protesto Occupy Wall Street («Vamos ocu-par Wall Street».) O público e os políticos iam ficando cada vez mais perturbados com o Goldman à medida que emergiam alega-ções de que a firma antecipara a crise iminente e tomara posições curtas no mercado* para ganhar dinheiro com isso (algo que a em-presa sempre negou). Além disso, também houve acusações de que a firma teria dado prioridade às vendas de títulos dos seus clientes que sabia de antemão serem, como descritos num e-mail por um executivo, «lixo» ― levantando a questão acerca da possibilidade de o Goldman ter atuado contra a ética, a moral ou a lei.3

Particularmente dolorosas para alguns empregados eram as acusações de que o Goldman já não se pautaria pelo seu primi-tivo princípio venerado nos negócios: «Os interesses dos nossos clientes têm sempre prioridade». Esse princípio era visto na firma como uma parte significativa do alicerce que caracterizou a cultura do Goldman como única. E, como chave para o sucesso, a firma mantivera a sua cultura com padrões de dever e de serviço aos clientes ao mais alto nível. Um sócio gerente enfatizou este ponto como parte de um estudo de caso da Harvard Business School em 2006, afirmando: «Os nossos banqueiros viajam nos mesmos aviões dos nossos concorrentes. Ficamos nos mesmos hotéis. Em muitos casos, temos clientes em comum. Assim, quando se trata de comparar o desempenho, estamos perante uma combinação de execução e cultura que estabelece a diferença entre nós e as outras firmas… É por isto que a nossa cultura é necessária ― é a cola que nos mantém a todos unidos».4

Alguns críticos afirmaram que a conduta do Goldman na fase imediatamente anterior à crise e a forma como lidou com ela eram prova de que a alardeada cultura da firma mudara. Outros

* Isto é, venda de títulos que não se possui em carteira para entrega em data futura a um preço mais alto, e a sua compra efetiva a um preço mais baixo após a declaração da crise, benefician-do de eventuais quedas no valor da dívida (N. da T.).

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argumentavam que não havia nada de novo, que o Goldman sem-pre se mostrara ávido por dinheiro e poder e fora sempre muito hábil a esconder esta atitude por trás de contos de fadas sobre o serviço prioritário aos clientes e da oferta de um manifesto serviço público.5

Entretanto, muitos empregados do Goldman, atuais e antigos, afirmam veementemente que não houve qualquer alteração da cul-tura, e argumentam que a firma continua a aderir estritamente aos seus princípios, como sempre o fez, incluindo a prioridade atribuí-da aos interesses dos clientes. Citam a prova da liderança na quota de mercado com os clientes e o seu estatuto de mais procurada pelos que pretendem trabalho em banca de investimento. Pergun-tam: «Como é que uma firma pode agir erradamente quando o seu desempenho é tão bom?» De facto, enquanto na lista das com-panhias mais admiradas, publicada na edição da Fortune de 2006, o Goldman aparece em décimo oitavo lugar, em 2010, depois da crise, está colocada em oitavo6 e, em 2012, posicionou-se em séti-mo num inquérito de estudantes de pós-graduação relativamente às empresas nas quais mais queriam trabalhar (e em primeiro entre as firmas do setor financeiro).7 E, mesmo com toda a publicidade negativa, para muitos serviços de valor o Goldman manteve a li-derança de quota de mercado entre os clientes. Por exemplo, em 2011 e 2012, apareceu em primeiro lugar na tabela dos consultores globais de fusões e aquisições.8

Então, a cultura do Goldman mudou ou não? E, se sim, porquê e como? Testa os limites da ingenuidade pensar como é possível a cultura da firma ter mudado tão drasticamente entre 2006, quando esta era admirada de uma forma generalizada, e 2009, quando se tornou tão largamente vilipendiada. Uma vez que decidi que valia a pena investigar estas questões ― verificar se a cultura do Goldman mudara e, se sim, como e porquê ―, recuei até 1979, quando John Whitehead, copresidente e sócio principal, codificou os valores do Goldman no seu famoso Business Principles (Princípios do Negócio). Como muitos empregados do Goldman assinalariam, esses prin-cípios escritos conservam-se nos dias de hoje praticamente iguais

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O QUE ACONTECEU

à forma como foram delineados em 1979. Contudo, isso não sig-nifica necessariamente que sejam absolutamente seguidos ou que a sua interpretação não se tenha alterado. O que descobri foi que, apesar de a cultura do Goldman se ter realmente alterado de 1979 até hoje, tal não aconteceu por uma qualquer razão isolada, nem su-bitamente. Nem a mudança ocorrida foi uma passagem inexorável do «bem» para o «mal», como alguns querem fazer ver.

Existem duas explicações fáceis e populares sobre o que acon-teceu à cultura do Goldman. Quando trabalhei na firma, algumas pessoas acreditavam na ideia de a cultura estar a mudar, ou ter mudado, devido às alterações na estrutura organizacional, decor-rentes da passagem de uma parceria privada para empresa cota-da na bolsa. O Goldman organizou a sua oferta pública inicial (IPO)* na bolsa de Nova Iorque em 1999, tendo sido o último dos grandes bancos de investimento a concretizá-la. De facto, esta foi a minha hipótese inicial quando dei início à investigação.A segunda explicação mais fácil é o facto de as mudanças, quaisquer que tenham sido, terem acontecido desde que Lloyd Blankfein foi nomeado presidente-executivo, e a responsabilidade ter-lhe cabido a ele e à cultura orientada para a negociação de títulos, que muitos julgam ser ele a representar.

Constatei que, apesar de ambas terem tido impacto na firma, nenhuma delas é, por si só, uma razão única ou principal. Em muitos aspetos, são o resultado das várias pressões e alterações. A história do que aconteceu no Goldman desde 1979 é confusa e complexa. Muitas pressões, muitos acontecimentos e muitas deci-sões aparentemente não relacionados ao longo do tempo, assim como as suas consequências interdependentes, não intencionais e acrescidas, foram alterando gradualmente a cultura da firma. Di-ferentes elementos dessa cultura e desses valores alteraram-se em alturas diferentes, a ritmos distintos, e com diferentes níveis de im-portância, em resposta a pressões organizacionais, legais, tecnoló-gicas e de concorrência.* IPO, do inglês Initial Public Offering, é a oferta pública no âmbito da qual as ações da empresa são vendidas ao público em geral numa bolsa de valores pela primeira vez (N. da T.).

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No entanto, em termos gerais, o que parece ter acontecido é que a resposta do Goldman a estas pressões para atingir o seu ob-jetivo organizacional de ser o melhor banco de investimento do mundo e o mais dominante (o prospeto da IPO declara: «O nosso objetivo é ser o assessor de eleição para os nossos clientes e um participante principal nos mercados financeiros globais»; e o seu terceiro princípio de negócio estipula ― «O nosso objetivo visa providenciar retornos superiores aos nossos acionistas») foi a de crescer ― e crescer rapidamente.9 Acontecimentos, decisões ou ações aparentemente não relacionados ou insignificantes que eram ponderados para apoiar o crescimento combinavam-se então, cau-sando transformações culturais indesejáveis.

Essas mudanças eram graduais e aceites como regra, levando muita gente no interior da organização a não as reconhecer. Além disso, a aparente adesão da firma aos seus princípios e um forte compromisso de prestar serviço público e comunitário deu aos empregados do Goldman um propósito maior do que meramente ganhar dinheiro. Isto fortaleceu a união e motivou-os a melhorar a sua prestação, pelo facto de se atribuir ao trabalho um significado acrescido. Todavia, ao mesmo tempo, era utilizado para raciona-lizar as mudanças incrementais no comportamento que não eram consistentes com o significado original dos seus princípios. O ra-cional era: Se atuamos dentro dos princípios e sentimos que estamos a ir ao encontro de um propósito mais elevado, então o que estamos a fazer deve ser correto.

Desde 1979, o compromisso do Goldman com o serviço pú-blico cresceu rapidamente, quer em termos de dólares, quer em termos de tempo, algo que deveria ser elogiado. Mas este historial excecional impede os empregados de compreenderem cabalmente o objetivo de negócio deste serviço, que se está a expandir e está a aprofundar o poder da rede do Goldman, incluindo as suas re-lações com o Governo (a firma é ridicularizada por alguns, que a apelidam de Governement Sachs). Alguns no Goldman chegaram até a considerar que o facto de a firma ter tantos ex-funcionários em posições importantes «a prejudicou».10

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O QUE ACONTECEU

Por exemplo, um representante do Goldman foi referido num artigo de 2009 do jornal Huffington Post, questionando: «Que bene-fício é que retiramos de todas estas supostas ligações? Eu diria que existem desvantagens em se ter tantos ex-funcionários em posições importantes. Não só somos alvo de críticas ― paus e pedras podem partir-nos os ossos, mas as palavras magoam, magoam mesmo ―, como também não nos foi dada a oportunidade de participar quan-do o Bear Stearns estava a ser vendido e no caso do Washington Mutual. Ficámos em segundo lugar no leilão da IndyMac e no gru-po que perdeu o BankUnited. Se é suposto que todas estas ligações sirvam para virar estes negócios para o nosso lado, há qualquer coisa que falta nesta equação». O representante acrescentou que as agências governamentais fizeram os possíveis e os impossíveis para evitar qualquer perceção de violação dos princípios deontológicos, explicando que quando os executivos da firma tinham reuniões com o então secretário de Estado do Tesouro, Paulson, «era im-possível ter uma conversa com ele sem que estivesse acompanhado pelo assessor geral do departamento».11

A grande maioria dos empregados que entraram no Goldman décadas depois dos princípios originais terem sido escritos não conhece realmente o significado original destes. Pôr os negócios dos clientes sempre em primeiro lugar, por exemplo, implicava ori-ginalmente a necessidade de assumir uma responsabilidade legal mais alta do que o necessário (uma moralidade mais elevada ou um dever ético) para com os clientes. Na altura, a firma era mais pequena e podia ir sendo mais seletiva à medida que crescia. To-davia, com o tempo, o significado mudou gradualmente (passando geralmente despercebido) para implicar a necessidade de assumir apenas a responsabilidade legal exigida para com os clientes. Com o crescimento da firma, a lei dos grandes números tornou a sele-tividade do Goldman mais difícil. Os padrões legais permitiram à firma aumentar as oportunidades disponíveis para crescer.

Para se adaptarem a esta mudança, os que trabalhavam no Goldman, incluindo os sócios mais importantes, contaram cada vez mais com o pressuposto de que os seus clientes já eram

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«adultos», uma máxima que implicava que os clientes fossem sufi-cientemente inteligentes para reconhecer e perceber os riscos po-tenciais e os conflitos em fazer os seus negócios com o Goldman e, portanto, tomassem as devidas cautelas. E, nos casos em que a firma estava preocupada com potenciais responsabilidades legais, os clientes tinham mesmo de assinar uma carta de cliente «res-ponsável», um reconhecimento legal de potenciais conflitos e dos vários papéis desempenhados pelo Goldman e dos riscos assumi-dos pelo cliente ao lidar com a firma. Isto está em conformidade com a explicação geral do Goldman relativamente ao seu papel na avaliação dos riscos de crédito: não fazia nada de errado do ponto de vista legal, atuando simplesmente como «criador de mercado» (limitando-se a emparelhar compradores e vendedores de títulos), e cumpria responsavelmente todas as suas obrigações legais nesse papel. Este argumento reflete também uma alteração no equilíbrio do negócio da firma relativamente à dominância de mercado, já que, geralmente, a interpretação das responsabilidades perante um cliente é sobretudo de natureza legal, com as necessárias divulga-ções legais e padrões de obrigação em transacionar num ambiente no qual existe uma tensão numa relação de compra e venda de títulos, comparado com um papel mais de aconselhamento no re-lacionamento bancário.

Ao se examinar as mudanças no Goldman, é importante no-tar que, como iremos explorar, certos elementos da organização cultural da firma desde 1979, como por exemplo o forte traba-lho em equipa, permanecem suficientemente intactos para que ela continue a ser altamente considerada pelos clientes e potenciais empregados e tenha podido manobrar durante a crise financeira com mais sucesso do que a concorrência. A mudança mais lenta e menos intensa em certos elementos é um fator que explica que muitos no interior da firma aparentam não se aperceber das altera-ções nas práticas e nas políticas de negócio, ou parecem ignorá-las conscientemente. Outro fator que complica o reconhecimento das mudanças é o facto de algumas delas terem ajudado a firma a atin-gir muitos dos seus objetivos organizacionais.

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O QUE ACONTECEU

Se, por um lado, muitos clientes podem ficar desapontados e frustrados com a firma, questionando quer a proteção da confiden-cialidade da informação de cliente, quer a justificação para os vários papéis nas transações, por outro poderão sentir que o Goldman tem uma capacidade única para utilizar a sua rede poderosa, coli-gindo e partilhando informação por toda a firma e proporcionando assim uma excelente execução relativamente aos seus concorrentes. Quanto à ética, muitos clientes rejeitam a convicção generalizada de que o Goldman é eticamente superior ao resto de Wall Street; não obstante, muitos deles consideram a ética apenas um dos fa-tores na seleção da firma, ainda que seja algo que os pode tornar mais cuidadosos do que no passado quando transacionam com o Goldman.

A frustração com o tipo de análise que me propus é que leva a que apeteça perguntar quem, ou que acontecimento ou decisão, é responsável. Queremos identificar uma única fonte ― algo ou alguém ― que possa ser responsabilizada pela mudança da cultura. O desejo é que exista uma relação clara de causa-efeito e, muitas vezes, um vilão. A história do Goldman é demasiado confusa para esse tipo de explicação. Ao invés, precisamos de perguntar o que é que é responsável ― que conjunto de condições, restrições, pres-sões e expetativas mudou a cultura do Goldman.

Uma coisa que aprendi ao estudar sociologia é que interessa ter em conta a organização e o seu envolvimento externo. A natureza da organização e a sua ligação ao envolvimento externo configu-ram a cultura de uma organização e podem refletir-se através de alterações na estrutura, nas práticas, nos valores, nas normas e nas ações. Se se livrar das poucas pessoas que supostamente são res-ponsáveis pelas violações dos padrões legais ou de cultura, verá que o comportamento se mantém quando novos colaboradores as substituem. Temos de olhar para lá dos indivíduos, esforçando-nos por compreender o contexto organizacional e social mais alargado que está em jogo.

Não tenciono que a minha análise seja um julgamento de valor das alterações da cultura do Goldman. Propositadamente pus de

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lado as questões sobre se, em termos globais, a mudança foi para melhor ou para pior. A minha principal intenção é esclarecer o pro-cesso através do qual uma firma que mantinha geralmente um pa-drão ético muito elevado se reformulou para um padrão mais legal e como é que as firmas, de uma forma geral, são mais vulneráveis a esta «reformulação organizacional».

Este é um caso de uma organização cuja cultura foi sendo len-tamente reformulada, e a minha história demonstra por que o foi e como. Na literatura de pesquisa académica sobre o comportamen-to organizacional, o conceito de reformulação (drift) está estabelecido, mas ainda se encontra em desenvolvimento (o que eu refiro como reformulação organizacional é por vezes designado por practical drift ou cultural drift ― «reformulação prática ou cultural»).12 A reformu-lação organizacional é um processo através do qual a cultura de uma organização, incluindo as suas práticas de negócios, muda contínua e lentamente, arrastada pelas pressões, partindo de um caminho determinado, de uma forma tão incremental e gradual, que não é notada. Uma razão para isto é que a procura de objetivos organiza-cionais num ambiente dinâmico e complexo com recursos limita-dos e objetivos organizacionais múltiplos e contraditórios produz frequentemente uma sucessão de decisões pequenas e diárias que atingem um resultado imprevisto.13

Embora o meu estudo se foque no caso do Goldman, esta história tem implicações muito mais vastas. O fenómeno da re-formulação organizacional é maior do que o próprio Goldman.A mudança que esta entidade experimentou ― e que, na realidade, está a experimentar ― pode afetar qualquer organização, indepen-dentemente do seu sucesso. Como Jack e Suzy Welch escreveram na Fortune, «a reformulação dos valores alargou-se a companhias de qualquer espécie, de uma costa à outra. Ou os empregados des-conhecem os valores da sua organização, ou sabem que a sua prá-tica é opcional. Em qualquer caso, admite-se que o resultado seja uma vulnerabilidade ao ataque vindo do interior ou do exterior».14

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E os líderes da organização só se dão conta do que está a acon-tecer depois de haver uma falha ou uma divulgação pública ou de existir uma pessoa que, do seu interior, a denuncie. Os sinais podem indicar que a cultura não está a mudar ― com base numa quota de mercado liderante, em rentabilidade para os acionistas, na marca e na atratividade para o empregado ―, mas, lentamente, a organização vai perdendo o contacto com os seus princípios e valores originais.

Perceber o que aconteceu no Goldman constitui um puzzle fas-cinante que nos conduz ao âmago de uma organização dinâmica e complexa num ambiente dinâmico e complexo. É uma história de intriga, envolvendo uma instituição que granjeia respostas alta-mente emotivas. Mas é mais do que isso. Levanta questões que são fundamentais para as próprias organizações. Por que é que as or-ganizações se deslocam do espírito e do significado dos princípios e valores que levaram a que atingissem muitos dos seus objetivos organizacionais, e como o fazem? E como se deverão comportar os líderes e gestores perante isso? Também levanta questões sérias sobre os futuros riscos do nosso sistema financeiro.

As impressionantes estatísticas dos sucessos contínuos do Gold-man e da disposição dos clientes para fechar os olhos a possíveis conflitos devido à qualidade da sua execução não significam que, no futuro, a mudança na cultura da empresa não coloque perigos para si e para o público. Por um lado, se o comportamento do Gold-man se acerca continuamente do limite legal daquilo que é certo ou errado ― um limite que é perigosamente ambíguo ―, cada vez se torna mais provável que se ultrapasse esse limite, o que não só pre-judica os clientes, como também a própria firma e, provavelmente, até o próprio sistema financeiro (alguns argumentam que a firma já ultrapassou esse limite). Na história recente contam-se várias ins-tituições financeiras severamente enfraquecidas, e até mesmo des-truídas, devido ao deslocamento para comportamentos antiéticos ou mesmo ilegais, embora isso se atribua mais a um ou a vários indivíduos desonestos do que à cultura organizacional. Obviamen-te que este seria um resultado terrível para todos os acionistas do

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Goldman. Contudo, esta organização dificilmente é inconsequen-te ou está isolada na economia; é uma das instituições financeiras mais importantes e poderosas do mundo. O seu destino tem con-sequências potencialmente graves para todo o sistema financeiro. Isto não se aplica apenas ao Goldman, mas a todas as instituições financeiras sistemicamente importantes.

Não estou a defender nem a prever que a reformulação do Goldman venha a conduzir inevitavelmente a uma falha organiza-cional ou a um desastre subsequente para o público (embora haja quem acredite na ideia de que isto já aconteceu); estou apenas a afirmar que a reformulação organizacional faz aumentar essa possibilidade. Esta é a razão pela qual é importante esclarecer por que é que aconteceu a reformulação organizacional e como aconteceu.

Uma pequena história

Ao se considerar o como e o porquê da mudança na interpre-tação dos princípios de negócio do Goldman, é importante ter em conta alguns aspetos-chave da história da firma e a razão pela qual os princípios foram escritos.

De acordo com a minha entrevista ao antigo sócio coexecutivo John Whitehead, que redigiu os princípios, em 1979, havia algo de especial na cultura do Goldman, algo que se traduziu em suces-so e que o manteve sob controlo mesmo em tempos difíceis. Ele acreditava no facto de a codificação desses valores, em termos de comportamentos, ajudar a transmitir a cultura do Goldman às fu-turas gerações de empregados. Os princípios do negócio estavam projetados de modo a manter toda a gente focada em fórmulas de sucesso comprovado, mantendo os pés bem assentes na terra, no claro pressuposto de que os clientes eram a razão da própria exis-tência do Goldman e a fonte dos rendimentos da firma.

Whitehead realçou o facto de não ter sido ele a inventar os prin-cípios; estes já existiam no âmbito da cultura da firma. Ele apenas se limitou a transcrevê-los para o papel. Fê-lo pelo facto de a firma

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se estar a expandir mais depressa do que o grau de assimilação de novas pessoas em 1979, e pensou que seria importante providen-ciar aos novos empregados uma maneira de adquirir a ética do Goldman, algo que as gerações anteriores de sócios tinham apren-dido por osmose. Embora não fosse de todo a força de mercado que é atualmente, o Goldman crescera bastante em relação aos seus primeiros tempos e a sua dimensão, a sua complexidade e o seu crescimento estavam a acelerar.

O grupo Goldman Sachs foi fundado em 1869, em Nova Ior-que. Após se tornar conhecida por ser pioneira na emissão de papel comercial para empresários, a companhia foi convidada a associar-se à bolsa de Nova Iorque, em 1896 (pode consultar-se no «Apêndice G ― Calendário de acontecimentos selecionados da história do Goldman»).

No início do século xx, o Goldman participou na constituição do mercado das ofertas públicas iniciais (IPO). Em 1906, dirigiu uma das maiores IPO da altura ― a da Sears, Roebuck. Todavia, em 1928, diversificou a sua atividade para a gestão de ativos de fundos fechados para indivíduos que utilizavam uma ação de alavanca sig-nificativa. Estas iniciativas falharam, devido ao colapso das bolsas de 1929, que quase causavam o encerramento do Goldman, pre-judicando seriamente a reputação do grupo durante muitos anos. Depois disso, o novo sócio sénior Sydney Weinberg levou a firma a focar-se no fornecimento de serviços de grande qualidade aos clientes. Em 1956, o Goldman foi o conselheiro principal da IPO para a Ford Motors, naquele que foi, à época, um golpe genial em Wall Street. Em 1948, para colocar a posição do Goldman em Wall Street no contexto da altura, o departamento norte-americano da Justiça pôs uma ação de limitação da concorrência (U. S. vs. Morgan [Stanley], et al.) contra o Morgan Stanley e outras dezoito firmas de banca de investimento. O Goldman só possuía 1,4% do mercado de subscrição e ocupava o último lugar na lista dos acusados. Numa lista elaborada em 1950, a firma nem sequer foi incluída nos dezas-sete maiores subscritores de títulos. Contudo, continuou gradual-mente a crescer em prestígio, poder e quota de mercado.

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A filosofia subjacente à ascensão do grupo foi melhor expressa por Gus Levy, um sócio sénior (com experiência de negociador de títulos), no Goldman desde 1969 até à sua morte, em 1976, a quem é atribuída uma máxima que traduzia a abordagem desta entidade: «Avidez, mas avidez a longo prazo».15 Realçava-se uma tomada de decisão sólida para um sucesso de longo prazo, e este compromis-so com o futuro era evidenciado pelo reinvestimento dos sócios na firma num total de quase 100% dos lucros.16

Provavelmente surpreendente é o facto de a trajetória do Gold-man, embora tenha sido marcada por muitos triunfos ao longo do seu historial, ser um misto de altos e baixos.17 O grupo esteve envolvido em várias controvérsias e esteve perto de falir uma ou duas vezes.

Outra perceção errada que habitualmente existe entre o público é a de que, na atualidade, o Goldman proporciona sobretudo servi-ços de banca de investimento para grandes empresas, uma vez que trabalha em muitas operações de fusões e aquisições de grande no-toriedade e IPO; contudo, nos dias de hoje, a banca de investimen-to representa tipicamente apenas cerca de 10% a 15% das receitas, números substancialmente inferiores aos que se verificavam em 1980, quando aquela representava metade dos rendimentos. Hoje em dia, a maioria dos rendimentos provém da compra e da venda de títulos e do investimento do seu próprio capital. Os lucros da compra e da venda de títulos e investimentos do capital são muitas vezes desproporcionadamente mais elevados do que os rendimen-tos, porque os negócios são muito mais expansíveis do que a banca de investimento.

Muito embora a firma estivesse a crescer quando Whitehead es-creveu os princípios, o seu crescimento em anos mais recentes foi ainda mais acelerado, particularmente no estrangeiro. No princípio da década de 80, a firma tinha pouco mais de mil empregados, com cerca de 50 a 60 sócios (todos cidadãos americanos), e menos de 5% a 10% dos seus rendimentos vinham de fora dos Estados Uni-dos. Em 2012, o Goldman tem cerca de 450 sócios (cerca de 43% não são americanos) e 32 600 empregados.18 Atualmente, cerca de

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40% dos rendimentos do Goldman provêm do exterior dos Esta-dos Unidos e a firma tem escritórios por esse mundo fora, em to-dos os maiores centros financeiros, com 50% dos seus empregados sediados no exterior.

Depois da mudança da regulamentação em 1970, que veio per-mitir aos bancos de investimento abrir o capital, transacionando-o na bolsa de Nova Iorque, os sócios do Goldman debateram a mu-dança de uma parceria privada para uma empresa cotada na bolsa. A decisão de conversão em empresa cotada na bolsa com uma IPO foi plena de controvérsia, em parte porque os sócios estavam preo-cupados com a mudança que a cultura da firma iria sofrer. Tinham receio de que esta se tornasse mais «ávida de sucesso no curto pra-zo» para satisfazer as exigências dos investidores do mercado acio-nista, em vez de «ávida no longo prazo», algo que geralmente dava tão bons resultados. Os sócios tinham votado várias vezes no pas-sado para se manterem numa parceria privada, mas acabaram por votar na mudança para uma empresa cotada na bolsa, o que se con-cretizou em 1999. O Goldman foi o último dos maiores grupos de banca de investimento a converter-se em empresa cotada na bolsa, com o outro maior reduto, o seu grande concorrente Morgan Stan-ley, a optar por esta via, em 1986. Na sua primeira carta dirigida aos acionistas públicos no relatório anual de 1999, os executivos de topo da firma escreveram: «Ao iniciarmos este novo século, sa-bemos que o nosso sucesso dependerá da forma como lidarmos com a mudança e de como gerirmos o rápido crescimento da fir-ma. Isso requer disponibilidade para abandonar práticas antigas e descobrir formas novas e inovadoras de condução dos negócios. Tudo está sujeito a mudança ― tudo exceto os valores pelos quais nos pautamos, como trabalhar em equipa, dar prioridade aos inte-resses dos clientes, manter a integridade, o empreendedorismo e a excelência».19 Declararam especificamente que não era seu desejo ajustar os valores fundamentais da firma, que incluíam dar primazia à integridade e aos interesses dos clientes, mas sabiam que manter o sentido original dos princípios constituiria um desafio e que certas coisas teriam de mudar.

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Embora, na generalidade, os princípios tenham permanecido inalterados relativamente a 1979, houve um importante aditamento, mais ou menos à época da IPO ― «temos por objetivo providen-ciar aos nossos acionistas retornos superiores» ―, que introduziu um potencial conflito intrínseco ou uma ambiguidade entre dar prioridade aos interesses dos clientes (que era uma obrigação éti-ca autoimposta no Goldman) e aos dos acionistas externos (que constitui um dever legalmente definido), bem como um potencial conflito entre fazer o que se aconselhava no longo prazo e cuidar da perspetiva de curto prazo, habitual nos investidores públicos do mercado. Existe sempre uma tensão natural entre os donos do ne-gócio, que desejam obter os maiores lucros possíveis, e os clientes, que pretendem comprar bens e serviços pelo preço mais baixo pos-sível, para maximizar os seus lucros. O facto de ser uma pequena parceria privada permitiu ao Goldman a flexibilidade de tomar as suas próprias decisões acerca daquilo que, na sua interpretação de longo prazo, era melhor para ajudar a superar esta tensão. O facto de vários acionistas externos, cada um com o seu horizonte temporal e os seus objetivos, terem combinado com o dever legal do Gold-man dar prioridade a estes acionistas externos (e não aos clientes) torna a interpretação e a execução de longo prazo muito mais com-plicada e difícil.

Quando questionados sobre o potencial de conflito, os líderes do Goldman declararam que o grupo tem sido capaz de servir eti-camente quer os interesses dos clientes, quer os dos acionistas, e, durante muitos anos, essa declaração não foi desafiada pela maio-ria. Isso deveu-se sobretudo aos vários sucessos do Goldman, in-cluindo as posições de líder de mercado e os retornos elevados aos acionistas, justificados pelos bons trabalhos do grupo e dos seus ex-funcionários, que serviram para acalmar as preocupações em relação a conflitos, mesmo durante praticamente todo o período da crise de 2008.

No princípio da crise, o Goldman foi sobretudo elogiado pela sua gestão de risco. Durante a crise de crédito, superou a maio-ria dos seus concorrentes. O Bear Stearns foi comprado pelo J. P.

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Morgan com a ajuda do Governo. O famoso Lehman Brothers abriu falência, e o Merrill Lynch foi adquirido pelo Bank of America. O Morgan Stanley Dean Witter & Co. vendeu uma parte do seu capital à Mitsubishi UFJ. Mas a situação económica global deterio-rou-se rapidamente e o Goldman, bem como outros bancos, acei-tou a assistência do Governo, tornando-se uma holding bancária.*

A empresa obteve um voto de confiança através de um investi-mento de vários biliões de dólares da Berkshire Hathaway, lidera-da pelo famoso investidor Warren Buffett. Mas, pouco depois, as coisas mudaram e o Goldman, juntamente com outros bancos de investimento, foi considerado responsável pela crise financeira. O facto de tantos antigos executivos do Goldman deterem posições na Casa Branca, na Secretaria de Estado do Tesouro, no Banco da Reserva Federal de Nova Iorque e no Fundo do Tesouro subjacen-te ao Programa de Ajuda a Ativos Problemáticos (em inglês TARP ― Troubled Asset Relief Program), que organizava os resgates (incluindo Hank Paulson, antigo presidente do Goldman e depois secretário de Estado do Tesouro), mesmo quando o banco tomou fundos governamentais e beneficiou dos atos do Governo, causou preocupações quanto aos potenciais conflitos de interesses e à ex-cessiva influência. As pessoas começaram a questionar se o Gold-man era realmente melhor e mais bem gerido, ou se não era apenas uma questão de ter melhores contactos ou de estar mais compro-metido com práticas antiéticas ou ilegais para ganhar vantagem.

Em abril de 2010, a Comissão de Valores Mobiliários (Securi-ties and Exchange Commission, ou SEC) acusou o Goldman de defraudar os investidores na venda de um investimento hipotecá-rio complexo. Menos de um mês depois, Blankfein e outros exe-cutivos do Goldman tentaram responder às questões escaldantes postas pelo senador Carl Levin (democrata de Michigan), presi-dente da Subcomissão Permanente de Investigações do Senado, e por outros senadores, sobre o papel da firma na crise financeira.

* Nos Estados Unidos trata-se de uma empresa que detém o controlo sobre um banco e que é obrigatoriamente registada no Conselho de Governadores do Sistema Federal. Usufrui de vários benefícios relativamente aos bancos (N. da T.).

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Os executivos foram interrogados severamente durante horas numa audiência transmitida publicamente pela rádio. Os senadores não os pouparam, acusando a firma de adotar práticas antiéticas, se não mesmo ilegais. Mais tarde, depois de uma investigação efetuada por um painel do Senado, Levin acusou o Goldman de ser «um ni-nho financeiro de cobras repleto de ganância, conflitos de interesse e delitos».20 Mas, nas audições, os legisladores pouco conseguiram tirar do Goldman, que pouco admitiu, e nada de específico, acerca da possibilidade de ter procedido erradamente.

Quando perguntaram, por exemplo, se fizera biliões de dólares de lucros ao «apostar» no colapso no mercado dos títulos imobi-liários de qualidade inferior (subprime) enquanto simultaneamente continuava a vender estes títulos aos clientes, o grupo negou as acusações, argumentando que estava simplesmente a atuar como formador de mercado, associando compradores e vendedores de títulos. Alguns executivos do Goldman da altura mostraram pouco arrependimento por qualquer que tivesse sido o papel da firma na crise ou pela forma como tratou os clientes. Um executivo do Gold-man disse: «Para mim, o remorso é algo que se sente quando se fez algo de errado. Eu não sinto isso».21

Parece que houve algum reconhecimento interno de que a cul-tura tinha mudado ou de que, pelo menos, deveria mudar. Pouco tempo depois da audição, e em resposta à crítica pública, o Gold-man estabeleceu uma comissão dos padrões de negócio, copre-sidida por Mike Evans (vice-presidente do Goldman) e Gerald Corrigan (presidente do Goldman Sachs Bank USA e antigo pre-sidente do Banco da Reserva Federal de Nova Iorque), para in-vestigar as suas práticas negociais internas. Blankfein reconheceu que existiam inconsistências entre a forma como os empregados do Goldman viam a firma e a forma como o público em geral via as suas atividades. Em 2011, a comissão publicou um relatório de sessenta e três páginas que mostrava em detalhe as trinta e nove medidas que a firma planeava implementar para melhorar a prática dos seus negócios. Variavam desde a alteração da estrutura do re-latório financeiro do banco até à constituição de novas comissões

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de fiscalização, passando pelo ajuste dos seus métodos de forma-ção e de desenvolvimento profissional. Mas no relatório não ficava claro se o Goldman reconhecia especificamente uma necessidade de aderir com mais ética ao princípio original. O relatório refere: «Estamos convictos de que as recomendações da Comissão irão contribuir para reforçar a cultura da firma num ambiente cada vez mais complexo. Temos de renovar o nosso compromisso para com os princípios do negócio ― e, acima de tudo, para com o serviço ao cliente, com uma focalização constante das consequências na reputação de toda a ação que exercermos».22 A utilização do termo «reforçar» sugere que a cultura teria enfraquecido, mas o relatório é vago nesta matéria. De acordo com o Financial Times, os investido-res, os clientes e os reguladores, na sequência do relatório, ficaram pouco impressionados no que toca aos esforços de mudança do Goldman.23

Um manual interno de formação do Goldman levanta um pou-co o véu no sentido de se saber se o grupo reconheceu que a ade-são ao seu primeiro princípio de negócio tinha mudado. Em maio de 2010, o New York Times submeteu uma lista de perguntas ao Goldman, com respostas que incluíam: «O Manual de Formação do Goldman relativo às Diretrizes na Subscrição de Hipotecas de 2007 observa que dar primazia aos clientes não é sempre um dado adquirido».24

Esta afirmação é significativa. Indica uma clara mudança no significado do primeiro princípio original.

A noção de que a cultura do Goldman se alterou foi submetida a uma destacada audição pública, em março de 2012, quando Greg Smith, ex-empregado do grupo, publicou a sua carta de demissão num artigo de opinião no New York Times. Numa peça que foi am-plamente distribuída e lida, Smith criticou a cultura atual do Gold-man, caracterizando-a como «tóxica», e culpou especificamente Blankfein e o presidente, Gary Cohn, pelo facto de terem perdido «o controlo da cultura da firma durante o seu mandato».25

Há alguns anos, um académico previu e descreveu inteligen-temente este tipo de «denúncia» como sendo o resultado de uma

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mudança cultural e de frustração. Edgar Schein, um professor da MIT Sloan School of Management, agora reformado, escreveu: «Geralmente chega-se à conclusão de que a forma como a organi-zação operava era alterada consoante a forma prática de conseguir atingir o objetivo, e essas práticas diferenciavam-se em diversos graus daquilo que a ideologia oficial proclamava… Muitas vezes houve queixas de empregados em relação a essas práticas, pois não estavam em consonância com aquilo que a organização proclamava acerca de si mesma, mas esses lamentos eram ignorados ou nega-dos, levando mesmo, por vezes, ao castigo dos empregados que faziam as denúncias. Quando um empregado se sente suficiente-mente motivado para fazer uma denúncia, pode acontecer um es-cândalo e as práticas podem então ser finalmente reexaminadas.A denúncia pode significar a ida aos jornais para expor uma prática que é rotulada de escandalosa, ou o escândalo pode resultar de um acontecimento trágico».26 A publicação da carta de Smith resultou certamente num escândalo e num inquérito.27

o Goldman e eu

A questão do que aconteceu ao Goldman tem um impacto es-pecial em mim. De uma forma ou de outra, estive envolvido na fir-ma durante dezoito anos da minha vida: doze anos a trabalhar para ela, em diversas funções, e outros seis a usar os seus serviços como cliente ou a trabalhar para uma das suas concorrentes. Continuo a ter muitos amigos e conhecidos a trabalhar lá.

Em 2010, ia começar a dar aulas na Graduate School of Bu-siness, na Universidade de Columbia, e em breve seria aceite no programa de doutoramento em sociologia dessa universidade. O programa de sociologia ― que requeria que encontrasse um tema de investigação para a minha tese de doutoramento ― facultava-me particularmente muitas das ferramentas de que precisava para co-meçar a responder à minha questão. Decidi prosseguir uma carreira como académico experiente, em vez de contar apenas com as mi-nhas experiências práticas. Na minha ideia, a combinação das duas

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seria mais recompensadora e eficaz, quer para os meus estudantes, quer para mim. Quando comecei o estudo que se converteria neste livro, a minha teoria era que a mudança na cultura do Goldman ti-nha a sua raiz na IPO. Presumi que aquilo que, fundamentalmente, alterou a cultura terá sido a transformação ― de parceria privada para empresa cotada na bolsa. Contudo, à medida que fui apro-fundando os meus conhecimentos, percebi que a verdade era mais complicada.

A minha análise do processo que levou à reformulação está profundamente assente nas minhas próprias experiências. Embora alguns possam pensar que isto me tenha tornado um observador tendencioso, estou convicto de que o meu conhecimento interno e a minha experiência em várias áreas da firma ― estive sediado em Nova Iorque, trabalhei fora dos Estados Unidos, trabalhei numa banca de investimento e no trading por conta própria, e estive pre-sente antes e depois da IPO ―, aliados à minha formação acadé-mica, me proporcionam uma capacidade única de reunir e analisar informação sobre as mudanças no Goldman. O meu estreito en-volvimento com o Goldman enriquece profundamente a minha análise, pelo que é útil rever a relação. Uma visão global breve da minha carreira revela igualmente como é que os negócios do Gold-man funcionam.

Em 1992, logo após terminar os meus estudos universitários na Universidade de Chicago, cheguei ao Goldman para trabalhar no departamento de fusões e aquisições, na divisão da banca de investimento. Os elementos deste departamento informam os con-selhos de administração e gestão das companhias acerca da estraté-gia, do financiamento, da avaliação e da negociação na compra, na venda e na combinação de várias companhias ou subsidiárias. Nos doze anos seguintes, desempenhei várias funções, com uma res-ponsabilidade gradualmente crescente. O meu trabalho expunha--me a várias áreas, colocando-me em situações de colaboração com os sócios do Goldman e pessoal-chave e permitindo-me observar acontecimentos, ou tomar parte deles, à medida que se desenro-lavam.

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Rodei por várias áreas importantes do ponto de vista estratégi-co. Primeiro, trabalhei em fusões e aquisições em Nova Iorque, e, depois, em Hong Kong, onde fui testemunha de um crescimento internacional explosivo, que começou com a abertura do escritório em Pequim. A seguir, voltei a Nova Iorque como assessor de Hank Paulson nos projetos especiais; Paulson era então corresponsável na banca de investimento, na comissão de gestão, e chefe do escri-tório de Chicago. Trabalhei igualmente no departamento de inves-timento principal (ou Goldman Sachs PIA, que faz investimentos em companhias ou adquire o controlo destas, através de fundos coletivos de clientes, do Goldman e dos seus empregados). Depois, voltei às F&A, como chefe da área de defesa de negócios contra incursões hostis (defender uma empresa de tentativas de aquisição hostil ― uma das pedras angulares da marca e da reputação do Goldman nas F&A), tornando-me gestor da unidade de negócios do departamento de F&A. Finalmente, desempenhei a função de trader por conta própria, acabando como gestor de carteira do de-partamento de fundos de taxa fixa, bens consumíveis e moedas (FICC) ― semelhante a um fundo de cobertura interno ―, gerindo os próprios fundos do Goldman. Estas passagens por regiões dife-rentes e por vários departamentos eram típicas na altura, e existia uma certa percentagem de empregados selecionados para treinar pessoas e cimentar a união da firma.

Ao longo da minha carreira no Goldman ocupei cargos por toda a firma em comissões departamentais, lidando com áreas de processo de negócio de importância estratégica. Também desempe-nhei o papel de assessor privilegiado de vários executivos seniores do grupo e de membros do conselho de administração, incluindo Hank Paulson, em projetos selecionados e em iniciativas tais como a melhoria dos processos de negócio e protocolos de comunicação interdepartamentais. O Goldman estava constantemente a tentar melhorar e criar comissões com pessoas de várias regiões e de vá-rios departamentos, de modo a criar iniciativas. Nunca cheguei à posição de sócio. Participei em muitas reuniões nas quais eu era o único não sócio e preparei análises ou apresentações para reuniões

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de sócios, ou em resposta a este tipo de reuniões, mas não partici-pei em reuniões «exclusivamente para sócios».

Como membro do departamento de fusões e aquisições, tra-balhei com uma equipa que aconselhava os membros do conselho de administração e os chefes-executivos de companhias multi-nacionais em transações grandes e tecnicamente complexas. Por exemplo, trabalhei numa equipa que aconselhou a empresa AT&T no âmbito da combinação do seu negócio de banda larga com a Comcast, numa transação que avaliou a banda larga da AT&T em 72 biliões de dólares. Também ajudei a vender uma companhia privada à empresa Berkshire Hathaway de Warren Buffett. Como responsável pela área da prática de defesa contra as aquisições e as incursões hostis, trabalhei numa equipa que aconselhou um cliente envolvido numa luta de procuração* com o investidor ativista Carl Icahn.

Quando entrei para o Goldman, ser-se eleito sócio na firma era considerado uma das mais prestigiadas façanhas em Wall Street: por um lado, porque o processo era altamente seletivo e, por outro, porque ser sócio no Goldman era um dos cargos mais lucrativos. O departamento de F&A tinha um historial notável de eleição dos seus banqueiros ― provavelmente uma das percentagens de suces-so mais altas na época. O departamento era a chave para a marca da firma, pois representar os mais prestigiados clientes, de primeira categoria, é importante pela perceção pública que existe acerca da influência do Goldman, que faz com que os tomadores de decisões importantes queiram falar com a empresa. Os negócios de F&A ti-nham um perfil elevado, especialmente a defesa das incursões hos-tis. As F&A eram também altamente lucrativas e não necessitavam de muito capital. Por todas estas razões, um cargo no departamen-to era altamente apreciado, e a concorrência era feroz. Quando o departamento de F&A de Nova Iorque me contratou, estava a fa-zer cerca de doze ofertas por ano aos licenciados das universidades

* A luta de proxy, ou de procuração, ocorre quando quem pretende adquirir uma empresa tenta convencer os acionistas a utilizar os seus votos por procuração para instalar a nova gestão, que é favorável à aquisição (N. da T.).

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americanas para trabalharem em Nova Iorque, de entre um lote que me disseram ser de centenas de candidatos.

Enquanto estive no departamento, pediram-me que fosse o gestor da unidade de negócio (referido informalmente como GUN ― ou BUM, em inglês). Eu tratava de questões estratégicas, pro-cessos de negócio, política organizacional, seleção de negócios e remoção de conflitos. Estive envolvido, por exemplo, nas discus-sões para decidir se, e como, o Goldman deveria participar nas incursões hostis e nas discussões acerca de conflitos de clientes e das formas de os ultrapassar. O cargo era extremamente exigente. Depois de uma tarefa cumprida com êxito considerável, senti que, de certa forma, estavam criadas as condições para ser transferido internamente e fazer aquilo que mais me interessava: ser investidor. Esperava conseguir vir a passar para o trading por conta própria, ou regressar ao Departamento de Investimento Principal (PIA), o grupo de private equity do Goldman.*

Muitos sócios da área bancária procuraram dissuadir-me de sair das F&A. Todavia, eu queria transformar-me em investidor, e al-guns sócios que eram amigos próximos e mentores ajudaram-me a manobrar as coisas para que eu pudesse chegar ao trading por conta própria. Fui avisado: «Se perderes dinheiro, serás provavelmente despedido e não contes com a possibilidade de voltar ao Goldman. Mas, se fizeres dinheiro para a firma, então terás mais dinheiro para gerir, o que te permitirá aumentar os ganhos para a firma e para ti».

Hoje as pessoas perguntam-me se eu pressenti o que estava para acontecer ― que a mudança para o trading por conta própria estava no bom caminho e iria continuar no Goldman ― e se foi por isso que eu mudei. Para ser honesto, não pensei tanto nisso como deveria. O meu trabalho a ajudar a gerir o departamento de F&A e a assessorar os executivos principais em vários projetos expôs-me a outras áreas da firma e às suas estratégias e prioridades. Quando se está em F&A, trabalha-se sem parar. Não se tem tempo para grandes reflexões ou para um planeamento da carreira. (Isto pode

* Basicamente são investimentos em empresas que ainda não estão cotadas na bolsa, com o objetivo de alavancar o seu desenvolvimento (N. da T.).

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ser, após reflexão, parte do modelo de negócio e um contributo para o processo da reformulação organizacional.) Trabalha-se tão intensamente em negócios de grande notoriedade ― aqueles que acabam na primeira página do Wall Street Journal ―, que a pessoa acaba aprisionada na importância da firma e do seu trabalho. Os chefes falam-nos da importância que temos e do peso fundamental do departamento de F&A nos negócios da firma. Lembram-nos de que o verdadeiro propósito do nosso trabalho é tornar o mercado de capitais mais eficiente e, em última análise, capacitar as empre-sas com formas mais eficientes para se financiarem. Isto vai levar a pessoa a ponderar se existe uma razão nobre e ética para aquilo que ela e a firma estão a fazer. Em geral, eu respeitava bastante a maio-ria dos sócios da banca de investimento que conheci. E certamente que não tive a formação académica, o distanciamento e a perspe-tiva necessários para analisar as várias pressões e as pequenas mu-danças que ocorriam na firma, assim como as suas consequências. Lembro-me simplesmente de sentir que teria capacidade de fazer o que gostava e que estava interessado no Goldman ― um direito que certamente não senti anteriormente na minha carreira e que talvez tenha nascido das observações ou do ambiente competitivo sentido por um talento formado na firma.

O banqueiro Paulson dirigia a firma, e muitos outros desta área, que eu considerava como mentores, detinham posições de relevo. Portanto, embora não fosse segredo o facto de os rendimentos da banca de investimento terem diminuído em termos de percenta-gem do rendimento total, não perdi muito tempo a meditar sobre isso, nem considerei as suas consequências. Um colega de muitos anos e sócio da banca de investimento puxou-me para o lado para me dizer que transitar para o trading por conta própria era a coisa inteligente a fazer e que bem gostaria de poder tomar o meu lugar. Quando lhe perguntei porquê, disse-me: «Terás mais dinheiro do que os sócios da banca de investimento, uma promoção mais rá-pida, horários mais curtos, um melhor estilo de vida, aprenderás como gerir o próprio dinheiro e, um dia, poderás sair e começar o teu próprio fundo de investimento e fazer ainda mais dinheiro ― e

A HISTóRIA SECRETA DO GOLDMAN SACHS

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o Goldman apoiar-te-á». Assegurei-lhe que estava apenas a tentar fazer o que me interessava, mas concordei com a ideia de que seria ótimo viajar menos, trabalhar apenas doze horas por dia e passar mais tempo com a minha mulher e a nossa filha recém-nascida. Quando lhe perguntei por que é que não me dissera isto antes, respondeu-me: «Naquela altura teríamos de procurar e treinar ou-tra pessoa».

Tornei-me trader por conta própria e depois gestor de carteira na FICC do Goldman do Grupo de Investimentos em Situações Espe-ciais (SGG, em inglês). Fizemo-lo crescer num dos maiores e mais bem-sucedidos tradings por conta própria do Goldman e de Wall Street. Criado durante o final da década de 90, o SSG investiu inicial e primariamente os fundos do Goldman na dívida e no capital de companhias pressionadas financeiramente e fez financiamentos a devedores de alto risco (embora tenhamos expandido o mandato com o decorrer do tempo). O grupo SSG estava separado do resto da firma, o que significava que estávamos localizados num andar distinto das salas de mercados que trabalhavam com clientes. Éra-mos tratados como clientes pelos comerciais do Goldman e pelas outras firmas de Wall Street, como se fôssemos um fundo de cober-tura diferente. Não fazíamos negócios com os clientes do Goldman.

Ainda que, separados como estávamos, conseguíssemos ter a perceção dos conflitos de interesse com os clientes. Por exemplo, podíamos deter ações ou a dívida de uma companhia quando, sem o nosso conhecimento, ela contratava o departamento de F&A do Goldman para rever as alternativas estratégicas ou para executar uma operação no mercado de capitais, como por exemplo uma oferta de ações ou uma dívida. Nesse caso, podíamos ser «conge-lados», ou seja, não nos era permitido comprar mais títulos rela-cionados ou vender a nossa posição, algo que nos colocava numa situação potencialmente mais desvantajosa, pois não podíamos re-agir a novas informações. Se quiséssemos comprar títulos de uma empresa e, sem que o soubéssemos, os banqueiros do Goldman estivessem a assessorar a empresa numa transação, a nossa compra poderia ser bloqueada.

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O QUE ACONTECEU

Acredito na ideia de que a maior vantagem que possuíamos so-bre os nossos concorrentes ― sobretudo fundos de cobertura ― era termos no Goldman uma máquina de recrutamento e formação; podíamos selecionar os melhores candidatos na firma. A maioria tinha ouvido que éramos extremamente empreendedores, que dá-vamos às nossas pessoas bastantes responsabilidades e capacidade de ter um impacto relevante, que éramos extraordinariamente lu-crativos e que pagávamos muito bem. Os que integravam a SGG apresentavam igualmente um excelente historial, acabando por dei-xar o Goldman para constituir ou integrar fundos de cobertura a operar. Também dispúnhamos de infraestruturas ― tecnologia, sistemas de gestão de risco e processos ― que não tinham paralelo nos bancos de Wall Street, porque o Goldman investia fortemente nessa área, reconhecendo a importância estratégica da vantagem competitiva que colocava ao nosso dispor.

Éramos treinados para gerir negócios de investimento (por exemplo, avaliando e dirigindo pessoas e riscos, ou estabelecendo objetivos e métricas mensuráveis). Tínhamos acesso a quase todas as equipas de gestão empresarial ou a quase todos os representan-tes governamentais através do estatuto do Goldman e da sua po-derosa rede. Também dispúnhamos de um baixo custo de capital, porque a firma tomava fundos a taxas muito baixas dos investi-dores de dívida, fundos que em seguida eram investidos, gerando retornos bastante mais altos do que o custo das dívidas contraídas. Tínhamos um cliente ― o Goldman ― e isto era excelente, pois sig-nificava que não teríamos de fazer a prospeção de muitos clientes para conseguir os fundos. Todavia, isso também tinha as suas des-vantagens, porque todo o capital provinha de um único investidor. Se o Goldman (ou os reguladores, como mais tarde aconteceu com a Volcker Rule)* decidisse que não deveria continuar esta atividade, ficaríamos sem emprego, embora fosse provável que muitos outros nos quisessem contratar.

* Proposta do ex-presidente da Reserva Federal Paul Volcker, que pretendia separar a banca de investimento da banca privada nos Estados Unidos, de modo a evitar certos tipos de inves-timento especulativos que não trouxessem benefícios aos seus clientes (N. da T.).