GROUT PALISCA 1988 Historia Da Musica Ocidental

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Historia da musica ocidental

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  • p r e s e n t Histria da Msica Ocidental; actualizada sucessiva-nente desde a l . - 1 edio, foi con-

    em todo o mundo a e mais completa histria

    " \ ^ f . " - ' " - .

    j Seguindo uma perspectiva cro-nolgica, os autores relatam a

    i e v o l u o sofrida pela ms i ca desde a Grcia antiga t.aog_-nossos dias, inserindo-a sempre^ num contexto mais abrangente^ da cultura ocidental."'^ | - | . " ~

    [ As alteraes in t rodl iz i t as jpor t Claude V. Palisca na maiKrjecplite i reviso do volume - que'a tra-1 duo portuguesa inteiramente ! reproduz - cumpriram com xito j as intenes originais de Donald

    J. Grout, que eram as de fazer I dele um instrumento indispen-i svel aos estudiosos e, ao mesmo

    tempo, servir os objectivos de um pblico mais geral, que apenas gostasse e se interessasse pelo tema e que, com o graf i smo actual, pode ignorar os porme-nores mais tcnicos, os exemplos

    I mais acadmicos e os elementos i de estudo e passar directamente narrativa histrica e aos teste- munhos e biografias dos cria! dores musicais do Ocidente em

    todas as pocas, j Profusamente ilustrada e repleta I de referncias musicais, algumas .) delas resultantes de investiga-

    es extremamente recentes, esta ed io perpetua a t rad io de

    rigor acadmico e estilo gracioso i que desde o incio fizeram da i Histria da Msica Ocidental uma .. s obra de reconhecido pres t g io internacional.

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  • DONALD J. GROUT CLAUDE V. PALISCA

  • Ttulo original ingls: A History of Western Music 1988, byW.W. Norton & Company, Inc. . Traduo: Ana Luisa Fama *; . Reviso do texto: Jos Soares de Almeida Fotocomposio: Gradiva Impresso e acabamento: Printer Portuguesa, L?" Reservados os direitos para Portugal a: GradivaPublicaes, L?"l Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. 1399-041 Lisboa Telefs. 21 397 40 67/8 21 397 13 57 21 395 34 70 Fax 21 395 34 71 Email: [email protected] URL: 'http://www.gradiva.pt 2.a edio: Janeiro de 2001 Depsito legal n. 159 439/2000

    Veja o nosso site na Internet

    http://www.gradiva.pt

    Prefcio 9 j Abreviaturas 13

    1 I A situao da msica no fim do mundo antigo 15

    j A herana grega O sistema musical grego Os primeiros sculos da igreja crist Bibliografia.

    2 I Canto litrgico e canto secular na Idade Mdia 50

    ' Canto romano e liturgia Categorias, formas e tipos de cantocho Desenvolvi-i mentos ulteriores do cantocho Teoria e prtica musicais na Idade Mdia

    Monodia no litrgica e secular Msica instrumental e instrumentos medie-vais Bibliografia.

    3 j Os primordios da polifonia e a msica do sculo xm '. 96 ' Antecedentes histricos da polifonia primitiva Organum primitivo Organum \ melismtico Os modos rtmicos Organum de Notre Dame Conductos polif- [ nico O motete Resumo Bibliografa. i

    4 I Msica francesa e italiana do sculo xiv 130

    Panorama geral A ars nova em Frana Msica do Trecento italiano Msica francesa de finais do sculo xiv Msica ficta Notao Instrumentos Re-sumo Bibliografa. j

    i 5 J Da Idade Mdia ao Renascimento: msica da Inglaterra e do ducado da

    Borgonha no sculo xv 161 Msica inglesa A msica no ducado da Borgonha Bibliografia.

  • 6 I A era renascentista: de Ockeghem a Josquin 183

    Caractersticas gerais Compositores do Norte Josquin des Prez Alguns con-temporneos de Obrecht e Josquin Bibliografa.

    7 I Novas correntes no sculo xvi 219

    A gerao franco-flamenga de 1520-1550 A afirmao dos estilos nacionais O madrigal e formas aparentadas Msica instrumental do sculo xvi Biblio-grafa.

    8 j Msica sacra no Renascimento tardio 277

    A msica da Reforma na Alemanha Msica sacra da Reforma fora da Alema-nha A Contra-Reforma A escola veneziana Resumo Bibliografia.

    9 I Msica do primeiro perodo barroco 307 -

    Caractersticas gerais O principio da pera Msica vocal de cmara Msica sacra Msica instrumental Bibliografia.

    10 I pera e msica vocal na segunda metade do sculo xvi 359

    pera Cantata e cano Msica sacra e oratoria Bibliografa. 11 j Msica instrumental no barroco tardio , 392

    Msica de tecla Msica para conjunto Bibliografa.

    12 j A primeira metade do sculo xvra 423 -

    Antonio Vivaldi Jean-Philippe Rameau Johann Sebastian Bach A msica instrumental de Bach A msica vocal de Bach George Frideric Haendel Bibliografa.

    13 I Origens do estilo clssico: a sonata, a sinfonia e a pera no sculo xvra

    As luzes Msica instrumental: sonata, sinfonia e concerto pera, cano e msica sacra Bibliografa.

    14 I O final do sculo xvm

    Franz Josef Haydn As obras instrumentais de Haydn As obras vocais de Haydn Wolfgang Amadeus Mozart As primeiras obras-primas de Mozart O perodo vienense Bibliografia.

    15 I Ludwig van Beethoven (1770-1827) 545

    O homem e a sua msica Primeira fase Segunda fase Terceira fase Biblio-grafia.

    16 j O sculo xrx: romantismo; msica voral 571

    Classicismo e romantismo Caractersticas da msica romntica O Lied v Msica coral Bibliografia.

    17 j O sculo xrx: msica instrumental 590

    O piano Msica para piano Msica de cmara Msica orquestral Biblio-grafia (captulos 16 e 17).

    18 I O sculo xrx: pera e drama musical : 628

    Frana Itlia Giuseppe Verdi A pera romntica alem Richard Wagner: o drama musical Bibliografia.

    19 j O fim de uma era 653. Ps-romantismo Nacionalismo Novas correntes em Frana pera italiana Bibliografia.

    20 I O sculo xx 696

    Introduo Estilos musicais relacionados com a tradio oral Neoclassicismo e movimentos afins Stravinsky Schoenberg e os seus seguidores Depois de Webern Concluso Bibliografia.

  • O propsito de rever uma panormica histrica que conquistou os favores do pblico s pode consistir em melhorar o livro e actualiz-lo, e no em reformul-lo por completo. Se o leitor, porventura, conhece as edies anteriores, vai deparar com um livro substancialmente diferente, tanto no aspecto exterior como no conte-do, muito embora o mbito e a apresentao dos captulos continuem a ser, no essencial, os mesmos. A incluso da palavra ocidental no ttulo reflecte a conscincia de que o sistema musical da Europa ocidental e das Amricas apenas um de entre os vrios existentes na diversidade das civilizaes mundiais. O mbito deste livro restringe-se, alm disso, exclusivamente quilo a que costumamos chamar msica erudita, se bem que este conceito no seja, como sabido, muito preciso. A msica popular, o jazi e outras manifestaes comparveis do passado foram tambm bas-tante elaborados, mas a nossa obra no pode ter a pretenso de dar conta da vasta gama de realizaes musicais do Ocidente (que hoje so, elas prprias, objecto de estudos aprofundados), tal como no pode pretend-lo o curso de histria da msica para o qual se prope servir de guia.

    Antes de dissipar os receios dos fiis ou esfriar a alegria dos crticos, permitam-me que explique em que diferia a edio anterior (a terceira) das que a precederam. Uma vez que a histria da msica antes de mais a histria do estilo musical e no pode ser compreendida sem um conhecimento em primeira mo da msica em si, fui convidado pelo editor, W. W. Norton and Company, a conceber a. Norton Anthology of Western Music e os lbuns que a acompanham como um complemento de parti-turas e interpretaes 3.a edio. A maior parte das revises dessa edio tiveram como objectivo coordenar o livro com a nova antologia. As anlises de obras de algumas das antologias mais antigas foram substitudas por breves apontamentos estilsticos e analticos das peas seleccionadas para a. Norton Anthology.

    Nesta edio tais notas analticas foram conservadas ou desenvolvidas, mas, isoladas do corpo do texto, j no interrompem o fluir da narrativa histrica. O leitor pode passar por cima delas at ter oportunidade de se concentrar em cada uma das peas, com a partitura diante dos olhos e a msica nos ouvidos.

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  • Uma outra inovao consiste no facto de as vozes do passado se dirigirem direc-tamente ao leitor em vinhetas, nas quais compositores, msicos e observadores comentam pormenorizadamente e de forma pessoal a msica do seu tempo. Muitos destes textos foram traduzidos propositadamente para o efeito.

    Em vez da cronologia nica apensa s edies anteriores, cada captulo que introduz um novo perodo contm agora uma cronologia mais concisa. Do mesmo modo, em vez da bibliografia que preenchia densamente muitas das ltimas pginas, h bibliografias detalhadas no fim de cada captulo. Estas foram compiladas com o auxlio de duas doutorandas de Yale, Pamela Potter (captulos 1 a 8 e 20) e Bonita Shuem (captulos 9 a 19), a quem fico profundamente grato. O glossrio foi suprimi-do, uma vez que as definies breves, fora do seu contexto, se tornam muitas vezes enganadoras. Os termos tcnicos so geralmente explicados a primeira vez que apa-recem, e o ndice remete o leitor para essas definies.

    Todas as pessoas implicadas na produo e distribuio deste livro concordaram que no seria desejvel nem prtico rever esta 4.a edio to drasticamente como o desejariam alguns utentes fiis. O livro continuar a evoluir em anos vindouros. Nesta edio os captulos relativos ao incio do perodo barroco foram os que sofreram uma reviso mais profunda, mas rara foi a pgina do resto do livro que permaneceu inalterada, tendo o sculo xx merecido uma ateno especial.

    Os quarenta professores universitrios que responderam ao questionrio em que se pediam sugestes para a 4.a edio da Histria da Msica Ocidental e para a 2.a edio da Antologia forneceram-nos ampla matria para reflexo e muitas propos-tas viveis de aperfeioamento. Procurei levar as crticas a srio e segui muitos conselhos. Todos os inquiridos merecem os meus calorosos agradecimentos, embora no possa deixar de salientar os nomes de alguns de entre elesr cujo contributo foi mais til e mais completo: Jack Ashworth, da Universidade de Louisville, Charles Brauner, da Universidade Roosevelt, Michael Fink, da Universidade do Texas em San Antonio, David Fuller, do SUNY, em Buffalo, David Josephson, da Universi-dade Brown, Sterling Murray, da Universidade de West Chester, James Siddons, da Universidade Liberty, e Lavern Wagner, do Quincy College (Illinois).

    Vrios amveis colegas leram diligentemente esboos de captulos ou sub-meteram minha considerao crticas detalhadas desta ou daquela parte da ltima edio. O professor Thomas J. Matbiesen, da Universidade Jovem de Brigham, fez muitas sugestes de pormenor para a seco consagrada msica antiga. A professora Margot Fassler, de Yale, comentou extensamente dois esboos da parte do cantocho e influenciou de maneira decisiva as minhas reflexes acerca da msica do incio da era crist. O Dr. Laurel Fay incitou-me a tentar conceder um lugar mais relevante aos compositores russos e soviticos. O facto de no ter podido corresponder s expectativas de todos os crticos no deixar de os desi-ludir e iliba-os, sem dvida alguma, de quaisquer responsabilidades pelas falhas que ainda subsistam. Mas a gratido que aqui lhes manifesto no poderia ser mais sincera.

    Infelizmente, o autor original da obra, Donald J. Grout, que faleceu em 10 de Maro de 1987, no pde tomar parte nesta reviso. Agradeo a colaborao da famlia no lanamento desta nova edio. Procurei manter intacta a prosa fluente do professor Grout sempre que esta se mantinha em sintoma com a situao actual dos conhecimentos e a opinio dos especialistas. Muitos sentiro a falta das suas refle-

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    xes mais pessoais, mas, quando h co-autoria, a melhor mscara a que uma obra pode recorrer , sem dvida, a da neutralidade.

    Esta edio e eu prprio muito ficmos a dever sabedoria e perspiccia editorial de Claire Brook, vice-presidente e responsvel da seco de msica da W. W. Norton and Company. Aqui fica tambm o meu agradecimento ao seu assistente Raymond Morse pelo modo consciencioso como atendeu a inmeros pormenores da produo do livro.

    E, finalmente, devo a mais terna gratido a minha mulher, Elizabeth A. Keitel, por to pacientemente ter partilhado as minhas muitas preocupaes e por ter evitado que me isolasse completamente do mundo durante os longos meses que demorei a. levar a bom termo a presente edio.

    CLAUDE V. PALISCA Hamden, Connecticut

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  • ProP \C>\ ^ --A

    Abreviaturas

    AIM American Institute of Musicology; entre as suas publicaes contam-se CEKM, CMM, CSM, MD, MSD. Para uma lista completa, v. MD, 39, 1985, 169-20.

    AM Acta Musicologica, 1929-. AMM Richard H. Hoppin (d.), Anthology of Medieval Music, Nova Yorque, Norton,

    1978. CDMI / classici delia musica italiana, 36 vols., Milo, Instituto Editoriale Italiano,

    1918-1920, e Societ Annima Notan la Santa, 1919-1921. CEKM Corpus of Early Keyboard Music, AIM, 1963-.

    CM Collegium Musician, New Haven, 1955-, 2.a srie, Madison, A-R Editions, 1969-. C M I / classici musicali italiani, 15 vols., Milo, 1941-1943, 1956.

    C M M Corpus mensurabilis musicae, AIM, 1948-. C S M Corpus scriptorum de musica, AIM, 1950-. DdT Denkmdler deustscher Tonkunst, 65 vols., Leipzig, Breitkof & Hartel, 1892

    1931; repr. Wiesbaden, 1957-1961. DTB Denkmaler deustscher Tonkunst, 2, Folge, Denkmaler der Tonkunst in Bayern,

    38 vols., Braunschweig, 1900-1938. DTOe Denkmaler der Tonkunst in Oesterreich, Viena, Artaria, 1894-1904; Leipzig,

    Breitkopf & Hartel, 1905-1913; Viena, Universal, 1919-1938; Graz, Akade-mische Druck- und Verlagsanstalt, 1966-.

    EM Early Music, 1973-. E M H Early Music History, 1981-.

    EP R. Eitner (d.), Publikationen altrer praktischer und theoretischer Musikwerke, vorzugsweise des xv, und xvi. Jahrhunderts, 29 vols, in 33 Jahrgnge, Berlim, Bahn and Liepmannssohn; Leipzig, Breitkopf & Hartel, 1873-1905; repr. 1967.

    GLHWM Garland Library of the History of Western Music. GMB Arnold Schering (ed.), Geschichte der Musik in Beispielen (Histria da Msica

    em Exemplos), Leipzig, Breitkopf & Hartel, 1931. HAM Archibald T. Davison e Willi Apel (eds.), Historical Anthology of Music,

    Cambridge, 1950, vol. 1, Oriental, Medieval, and Renaissance Music, e vol. 2, Baroque, Rococo, and Pre-Classical Music.

    JAMS Journal of the American Musicological Society, 1948-. J M Journal of Musicology, 1982-.

    13

  • J M T Journal of Music Theory, 1957-. M B Musica Britannica, Londres, Stainer & Bel], 1951-. MM Cari Parrish e John F. Ohl (d.), Masterpieces of Music Before 1750, Nova

    Iorque, Norton, 1951. ML Music and Letters, 1920-. MQ The Musical Quarterly, 1915-. M R Gustave Reese, Music in the Renaissance, 2.a ed., Nova Iorque, Norton, 1959.

    MRM Edward Lowinsky (ed.), Monuments of Renaissance Music, Chicago, University of Chicago Press, 1964.

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    Macmillan, 1980. . NOHM New Oxford History of Music, Londres, Oxford University Press, 1954-.

    NS Roger Kamien (ed.), The Norton Scores, 4." ed., Nova Iorque, Norton, 1984. OMM Thomas Marrocco e Nicholas Sandon (ed.), Oxford Anthology of Medieval

    Music, Nova Iorque, Oxford University Press, 1977. PAM Publikationen- altrer Musit.. hei der deutschen Musikgesellschaft, Leipzig,

    Bretkopf & Hartel, 1926-1940. PMM Thomas Marrocco (ed.), Polyphonic Music of the XTVth Century, Mnaco,

    Oiseau-Lyre, 1956-. PMMM Publications of Medieval Music Manuscripts, Brooklyn, Institute of Medieval

    Music, 1957-. PMS L . Schrade (ed.), Polyphonic Music of the Fourteenth Century, Monaco, Oiseau

    -Lyre, 1956-. RMAW Curt Sachs, The Rise of Music, in the Ancient World Nova Iorque, Norton, 1943.

    RTP William Waite (ed.), The Rhythm of Twerlfth-Century Polyphony, New Haven, Yale University Press, 1954.

    SR Oliver Strunk, Source Readings in Music History, Nova Iorque, Norton, 1950; tambm editado em vrios volumes brochados, como se segue.

    SRA Source Readings in Music History: Antiquity and the Middle Ages. SRRe Source Readings in Music History: the Renaissance.

    SRB Source Readings in Music History: the Baroque Era. SRC Source Readings in Music History: the Classic Era.

    SRRo Source Readings in Music History: the'Romantic Era. TEM Carl Parrish (d.), A Treasury of Early Music, Nova Iorque, Norton, 1958. WM Johanes Wolf, Music of Earlier Times edio americana da obra Singund

    Spielmusik ans altrer Zeit, 1926.

    A situao da msica no fim do mundo antigo

    Quem vivesse numa provncia do Imprio Romano no sculo v da era crist poderia ver estradas por onde as pessoas outrora haviam viajado e agora j no viajavam, templos e arenas construdos para multides agora votados ao abandono e ruina, e a vida, gerao aps gerao, um pouco por toda a parte, tornando-se cada vez mais pobre, mais insegura e mais difcil. Roma, no tempo da sua grandeza, fizera reinar a paz em quase toda a Europa ocidental, bem como em muitas zonas da frica e da sia, mas, entretanto, enfraquecera e j no tinha capacidade para se defender. Os brbaros iam chegando do Norte e do Leste, e a civilizao comum a toda a Europa desagregava-se em fragmentos que s muitos sculos mais tarde comeariam gradualmente a fundir-se de novo, dando origem s naes modernas.

    O declnio e a queda de Roma marcaram to profundamente a histria europia que ainda hoje temos dificuldade em nos apercebermos de que, paralelamente ao processo de destruio, se iniciava ento, paulatinamente, um processo inverso de criao, centrado na igreja crist. At ao sculo x foi esta instituio o principal e muitas vezes o nico lao unificador e canal de cultura da Europa. As pri-meiras comunidades crists, no obstante terem sofrido durante trezentos anos perse-guies mais ou menos espordicas, cresceram regularmente e disseminaram-se por todas as regies do imprio. O imperador Constantino adoptou uma poltica de tolerncia aps a sua converso, em 312, e fez do cristianismo a religio da famlia imperial. Em 395 a unidade poltica do mundo antigo foi formalmente desfeita, com a diviso em Imprio do Oriente e Imprio do Ocidente, tendo por capitais Bizncio e Roma. Quando, aps um sculo terrvel de guerras e invases, o ltimo imperador do Ocidente foi, finalmente, deposto do seu trono, em 476, os alicerces do poder papal estavam j to firmemente estabelecidos que a Igreja se encontrava em con-dies de assumir a misso civilizadora e unificadora de Roma.

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  • A herana grega

    A histria da msica ocidental, em sentido estrito, comea com a msica da igreja crist. Todavia, ao longo de toda a Idade Mdia, e mesmo nos dias de hoje, artistas e intelectuais tm ido continuamente Grcia e a Roma procura de ensinamentos, correces e inspirao nos mais diversos campos de actividades. Isto tambm vlido para a msica, embora com algumas diferenas importantes em relao s outras artes. A literatura romana, por exemplo, nunca deixou de exercer a sua influncia ao longo da Idade Mdia. Virglio, Ovidio, Horcio e Ccero continuaram sempre a ser estudados e lidos. Esta influncia tornou-se bem mais importante nos sculos xrv e xv, medida que foram sendo conhecidas mais obras romanas; ao mesmo tempo ia sendo gradualmente recuperado aquilo que sobrevivera da literatura grega. Contudo, no domnio da literatura, bem como em vrios outros campos (nomeadamente no da escultura), os artistas medievais e renascentistas tinham a vantagem de poderem estudar e, se assim o desejassem, imitar os modelos da antigidade. Tinham diante dos olhos os poemas ou as esttuas autnticos. J com a msica no acontecia o mesmo. Os msicos da Idade Mdia no conheciam um exemplo sequer d msica grega ou romana, embora alguns hinos tenham vindo a ser identificados no Renascimento. Actualmente estamos numa situao bastante melhor, pois, entretanto, foram reconstitudas cerca de quarenta peas ou fragmentos de peas musicais gregas, a maioria das quais de pocas relativamente tardias, mas cobrindo um perodo de cerca de sete sculos. Embora no haja vestgios autnticos da msica da antiga Roma, sabemos, por relatos verbais, baixos-relevos, mosaicos, frescos e esculturas, que a msica desempenhava um papel importante na vida militar, no teatro, na religio e nos rituais de Roma.

    Houve uma razo importante para o desaparecimento das tradies da prtica musical romana no incio da Idade Mdia: a maior parte desta msica estava asso-ciada a prticas sociais que a igreja primitiva via com horror ou a rituais pagos que julgava deverem ser eliminados. Por conseguinte, foram feitos todos os esforos no apenas para afastar da Igreja essa msica, que traria tais abominaes ao esprito dos fiis, como, se possvel, para apagar por completo a memria dela.

    Cronologia

    800-461 a. C : ascenso das cidades-estados gregas.

    586 a. C : Sacadas de Argos ganha os Jogos Pticos com Nomos Pticos.

    c. 497 a. C : morte de Pitgoras. 458 a. C : Agammnon de Esquilo. c. 414 a. C : Ifignia em Turida de Eurpi-

    des. c. 380 a. C : Repblica de Plato, c. 330 a. C : Poltica de Aristteles.

    c. 320 a. C : Elementos de Harmonia de Aristxeno.

    46 a. C : incio da ditadura de Jlio Csar. 26-19 a. C : Eneida de Virglio. 4 a. C : nascimento de Jesus, c. 33 d. G: crucificao de Jesus. 54: Nero, imperador de Roma. 70: destruio do Templo de Jerusalm. 330: Constantinopla, nova capital do Imprio

    Romano.

    Houve, no entanto, alguns elementos da prtica musical antiga que sobreviveram durante a Idade Mdia, que mais no fosse porque seria quase impossvel aboli-los

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    sem abolir a prpria msica; alm disso, as teorias musicais estiveram na base das teorias medievais e foram integradas na maior parte dos sistemas filosficos. Por isso, se queremos compreender a msica medieval, temos de saber alguma coisa acerca da

    _ msica dos povos da antigidade, em particular da teoria e da prtica musicais dos Gregos.

    A MSICA NA VIDA E NO PENSAMENTO DA GRCIA ANTIGA A mitologia grega atribua msica origem divina e designava como seus inventores e primeiros intrpretes deuses e semideuses, como Apoio, Anfio e Orfeu. Neste obscuro mundo pr-hist-rico a msica tinha poderes mgicos: as pessoas pensavam que era capaz de curar doenas, purificar o corpo e o esprito e operar milagres no reino da Natureza. Tambm no Antigo Testamento se atribuam msica idnticos poderes: basta lem-brar apenas o episdio em que David cura a loucura de Saul tocando harpa (1 Samuel, 16,14-23) ou o soar das trombetas e a vozearia que derrubaram as muralhas de Jerico (Josu, 6, 12-20). Na poca homrica os bardos cantavam poemas hericos durante os banquetes (Odissia, 8, 62-82).

    Desde os tempos mais remotos a msica foi um elemento indissocivel das ceri-mnias religiosas. No culto de Apolo era a lira o instrumento caracterstico, enquanto no de Dioniso era o aulo. Ambos os instrumentos foram, provavelmente, trazidos para a Grcia da sia Menor. A lira e a sua variante de maiores dimenses, a citara, eram instrumentos de cinco e sete cordas (nmero que mais tarde chegou a elevar-se at onze); ambas eram tocadas, quer a solo, quer acompanhando o canto ou a recitao de poemas picos. O aulo, um instrumento de palheta simples ou dupla (no era uma flauta), muitas vezes com dois tubos, tinha um timbre estridente, penetrante, asso-ciava-se ao canto de um certo tipo de poema (o ditirambo) no culto de Dioniso, culto que se cr estar na origem do teatro grego. Consequentemente, nas grandes tragdias da poca clssica obras de squilo, Sfocles, Eurpides os coros e outras partes musicais eram acompanhados pelo som do aulo ou alternavam com ele.

    Pelo menos desde o sculo vi a. C. tanto a lira como o aulo eram tocados como instrumentos independentes, a solo. Conhece-se um relato de um festival ou concurso

    Apoio segura uma citara de sete cordas. Mais elabo-rada e mais robusta do que a lira, a citara era um instrumento usado pelos msicos profissionais. Apoio tem na mo direita um plectro, que senna para tocar as cordas; os dedos da mo direita pare-cem estar a amortecer as cordas do instrumento. Anfora grega, meados dos sculo v a. C. (Metropo-litan Museum of An, doao do Sr. e da Sr." Leon

    Pomerance, 1953)

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  • de msica realizado por ocasio dos Jogos Pticos em 586 a. C. em que Sacadas tocou uma composio para aulo, ilustrando o nomo prico as diversas fases do combate entre Apolo e o drago Piton. Os concursos de tocadores de ctara e aulo, bem como os festivais de msica instrumental e vocal, tornaram-se cada vez mais populares a partir do sculo v a. C. medida que a msica se tornava mais independente, multiplicava-se o nmero de virtuosos; ao mesmo tempo, a msica em si tornava-se cada vez mais complexa em todos os aspectos. Alarmado com a proliferao da arte musical, Aristteles, no sculo rv, manifestava-se contra o excesso de treino profis-sional na educao musical do homem comum:

    Alcanar-se- a medida exacta se os estudantes de msica se abstiverem das artes que so praticadas nos concursos para profissionais e no procurarem dominar esses fantsti-cos prodgios de execuo que esto agora em voga em tais concursos e que da passaram para o ensino. Deixem que os jovens pratiquem a msica conforme prescrevemos, apenas at serem capazes de se deleitarem com melodias e ritmos nobres e no meramente nessa parte comum da msica que at a qualquer escravo, ou criana, ou mesmo a alguns animais, consegue dar prazer1.

    Algum tempo aps a poca clssica (entre 450 e 325 a. C, aproximadamente) deu-se uma reaco contra o excesso de complexidade tcnica, e no incio da era crist a teoria musical grega, e provavelmente tambm a prtica, estava muito simplificada. A maior parte dos exemplos de msica grega que chegaram at ns provm de perodos relativamente tardios. Os mais importantes de entre eles so um fragmento de um coro do Orestes de Eurpides (vv. 338-344), de um papiro datado de cerca do ano 200 a. C, sendo a msica, possivelmente, do prprio Eurpides

    Uma mulher toca aulo duplo numa cena de bebida. De um modo geral, instrumento de palheta simples, mas por vezes de palheta dupla, o aulo era normalmente tocado aos pares; aqui a tocadora parece estar a emitir notas idnticas com ambos os tubos. Taa de vinho de figuras vermelhas atribuda ao pintor de vasos tico Oitos, 525-500 a. C. (Madrid, Museu Arqueolgico Nacional)

    1 Aristteles, Poltica, 8.6.1341a; cf. tambm Plato, Leis, 2.669E, 670A.

    (NAWM l ) 2 , um fragmento da Ifignia em ulide de Eurpides (w . 783-793), dois hinos dlficos a Apoio, praticamente completos, datando o segundo de 128-127 a. C , um escolio, ou cano de bebida, que serve de epitafio a uma sepultura, tambm do sculo i , ou pouco posterior (NAWM 2), e Hino a Nmesis, Hino ao Sol e Hino Musa Calope de Mesomedes de Creta, do sculo n.

    A msica grega assemelhava-se da igreja primitiva em muitos aspectos funda-mentais. Era, em primeiro lugar, monofnica, ou seja, uma melodia sem harmonia ou contraponto. Muitas vezes, porm, vrios instrumentos embelezavam a melodia em simultneo com a sua interpretao por um conjunto de cantores, assim criando uma heterofonia. Mas nem a heterofonia nem o inevitvel canto em oitavas, quando homens e rapazes cantam em conjunto, constituem uma verdadeira polifonia. A msica grega, alm disso, era quase inteiramente improvisada. Mais ainda: na sua forma mais perfeita (teleion meios), estava sempre associada palavra, dana ou a ambas; a sua melodia e o seu ritmo ligavam-se intimamente melodia e ao ritmo da poesia, e a msica dos cultos religiosos, do teatro e dos grandes concursos pblicos era interpretada por cantores que acompanhavam a melodia com movimentos de dana predeterminados. y(

    MSICA E FILOSOFIA NA GRCIA Dizer que a msica da igreja primitiva tinha em comum com a grega o facto de ser monofnica, improvisada e inseparvel de um texto no postular uma continuidade histrica entre ambas. Foi a teoria, e no a prtica, dos Gregos que afectou a msica da Europa ocidental na Idade Mdia. Temos muito mais informao acerca das teorias musiciais gregas do que acerca da msica em si. Essas teorias eram de dois tipos: (1) doutrinas sobre a natureza da msica, o seu lugar no cosmos, os seus efeitos e a forma conveniente de a usar na sociedade humana, e (2) descries sistemticas dos modelos e materiais da composio musi-cal. Tanto na filosofia como na cincia da msica os Gregos tiveram intuies e formularam princpios que em muitos casos ainda hoje no esto ultrapassados. evi-dente que o pensamento grego no domnio da msica no permaneceu esttico de Pitgoras (cerca de 500 a. C) , o seu clebre fundador, a Aristides Quintiliano (sculo rv a. C) , ltimo autor grego de relevo neste campo; o resumo que se segue, embora necessariamente simplificado, insiste nos aspectos mais caractersticos e mais impor-tantes para a histria ulterior da msica ocidental.

    A palavra msica tinha para os Gregos um sentido mais lato do que aquele que hoje lhe damos. Era uma forma adjectivada de musa na mitologia clssica, qual-quer das nove deusas irms que presidiam a determinadas artes e cincias. A relao verbal sugere que entre os Gregos a msica era concebida como algo comum a todas as actividades qu diziam respeito busca da beleza e da verdade. Nos ensinamentos de Pitgoras e dos seus seguidores a msica e a aritmtica no eram disciplinas separadas; os nmeros eram considerados a chave de todo o universo espiritual e fsico; assim, o sistema dos sons e ritmos musicais, sendo regido pelo nmero, exemplificava a harmonia do cosmos e correspondia a essa harmonia. Foi Plato que, no Timeu (o mais conhecido de todos os seus dilogos na Idade Mdia) e na Rep-blica, exps esta doutrina de forma mais completa e sistemtica. As idias de Plato

    2 O acrnimo NAWM, que ser empregado ao longo de toda esta edio, refere-se Norton Anthology of Western Music, 2.a d., organizada por Claude V. Palisca.

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  • acerca da natureza e funes da msica, tal como vieram mais tarde a ser interpretadas pelo autores medievais, exerceram uma profunda influncia nas especulaes destes ltimos sobre a msica e o seu papel na educao.

    Para alguns pensadores gregos a msica estava tambm intimamente ligada astronomia. Com efeito, Cludio Ptolemeu (sculo n d. C) , o mais sistemtico dos tericos antigos da msica, foi tambm o mais importante astrnomo da antigidade. Pensava-se que as leis matemticas estavam na base tanto do sistema dos intervalos musicais como do sistema dos corpos celestes e acreditava-se que certos modos e at certas notas correspondiam a um ou outro planeta. Tais conotaes e extenses misteriosas da msica eram comuns a todos os povos orientais. Plato3 deu a essa idia uma forma potica no belo mito da msica das esferas, a msica produzida pela revoluo dos planetas, mas que os homens no conseguiam ouvir; tal concepo foi evocada por diversos autores que escreveram sobre msica ao longo de toda a Idade Mdia e mais tarde, entre outros, por Shakespeare e Milton.

    A ntima unio entre msica e poesia d tambm a medida da amplitude do conceito de msica entre os Gregos. Para os CVsgos os dois termos eram praticamente sinnimos. Quando hoje falamos da msica da poesia, estamos a empregar uma figura de retrica, mas para os Gregos essa msica era uma verdadeira melodia, cujos intervalos e ritmos podiam ser medidos de forma exacta. Poesia IMca significava poesia cantada ao som da lira; o termo tragdia inclui o substantivo ode, a arte do canto. Muitas outras palavras gregas que designavam os diferentes gneros de poesia, como ode e hino, eram termos musicais. As formas desprovidas de msica eram tambm desprovidas de nome. Na Potica Aristteles, depois de apresentar a melodia, o ritmo e a linguagem como os elementos da poesia, afirma o seguinte: H outra arte que imita recorrendo apenas linguagem, quer em prosa, quer em verso [...], mas por enquanto tal arte no tem nome4.

    A idia grega de que a msica se ligava indissociavelmente palavra falada ressurgiu, sob diversas formas, ao longo de toda a histria da msica: com a inveno do recitativo, por volta de 1600, por exemplo, ou com as teorias de Wagner acerca do teatro musical, no sculo xrx. v

    A A DOUTRINA DO Eras A doutrina do etos, das qualidades e efeitos morais da msica, integrava-se na concepo pitagrica da msica como miscrocosmos, um sistema de tons e ritmos regido pelas mesmas leis matemticas que operam no conjunto da criao visvel e invisvel. A msica, nesta concepo, no era apenas uma imagem passiva do sistema ordenado do universo; era tambm uma fora capaz de afectar o universo da a atribuio dos milagres aos msicos lendrios da mitologia. Numa fase posterior, mais cientfica, passaram a sublinhar-se os efeitos da msica sobre a vontade e, consequentemente, sobre o carcter e a conduta dos seres humanos. O modo como a msica agia sobre a vontade foi explicado por Aristteles5 atravs da doutrina da imitao. A msica, diz ele, imita directamente (isto , representa) as paixes ou estados da alma brandura, ira, coragem, temperana, bem como os seus opostos e outras qualidades; da que, quando ouvimos um trecho musical que imita

    3 Plato, Repblica, 10.617. 4 Aristteles, Potica, 1.1447a-b. 5 Aristteles, Poltica, 8.1340a-b; cf. Plato, Leis, 2.665-70C.

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    uma determinada paixo, fiquemos imbudos dessa mesma paixo; , se durante um lapso de tempo suficientemente longo ouvirmos o tipo de msica que desperta pai-xes ignbeis, todo o nosso carcter tomar uma forma ignbil. Em resumo, se ouvirmos msica inadequada, tornar-nos-emos pessoas ms; em contrapartida, se ouvirmos a msica adequada, tenderemos a tornar-nos pessoas boas6.

    Plato e Aristteles estavam de acordo em que era possvel produzir pessoas boas mediante um sistema pblico de educao cujos dois elementos fundamen-tais eram a ginstica e a msica, visando a primeira a disciplina do corpo e a segunda a do esprito. Na Repblica, escrita por volta de 380 a. C, Plato insiste na neces-sidade de equilbrio entre estes dois elementos na educao: o excesso de msica tornar o homem efeminado ou neurtico; o excesso de ginstica torn-lo- incivi-lizado, violento e ignorante. quele que combina a msica com a ginstica na proporo certa e que melhor as afeioa sua alma bem poder chamar-se verda-deiro msico7. Mas s determinados tipos de msica so aconselhveis. As melo-dias que exprimem brandura e indolncia devem ser evitadas na educao dos indivduos que forem preparados para governarem o estado ideal; s os modos drico e frigio sero admitidos, pois promovem, respectivamente, as virtudes da coragem e da temperana. A multiplicidade das notas, as escalas complexas, a com-binao de formas e ritmos incongruentes, os conjuntos de instrumentos diferen-tes entre si, os instrumentos de muitas cordas e afinao bizarra, at mesmo os fabricantes e tocadores de aulo, devero ser banidos do estado8. Os fundamentos da msica, uma vez estabelecidos, no devero ser alterados, pois o desregramento na arte e na educao conduz inevitavelmente libertinagem nos costumes e anarquia na sociedade9. O ditado deixai-me fazer as canes de uma nao, que pouco me importa quem faz as suas leis era uma mxima poltica, mas tambm um trocadilho, pois a palavra nomos, que significa costume ou lei, designava tambm o esque-ma meldico de uma cano lrica ou de um solo instrumental10. Aristteles, na Poltica (cerca de 330 a. C) , mostrou-se menos restritivo do que Plato quanto a ritmos e modos particulares. Concebia que a msica pudesse ser usada como fonte de divertimento e prazer intelectual, e no apenas na educao 1 1.

    possvel que, ao limitarem os tipos de msica autorizados no estado ideal, Plato e Aritteles estivessem deliberadamente-a deplorar certas tendncias da vida musical do seu tempo: ritmos associados a ritos orgisticos, msica instrumental independente, popularidade dos virtuosos profissionais. A menos que encaremos estes filsofos como homens to desligados do mundo real da arte que as suas opinies no domnio da msica no tm a menor relevncia, devemos relembrar os seguintes factos: primeiro, na Grcia antiga a palavra msica tinha um sentido muito mais lato do que aquele que lhe damos hoje; segundo, no sabemos qual era a sonoridade dessa msica, e no impossvel que tivesse realmente certos poderes sobre o esprito que no possamos idealizar; terceiro, houve muitos momentos hist-ricos em que o estado ou outras autoridades proibiram determinados tipos de msica,

    6 V. tambm Plato, Repblica, 3.401D-E. 7 Plato, Repblica, 3.412A. 8 Plato, Repblica, 3.398C-399E, e tambm Leis, 7.812C-813A. 9 Plato, Repblica, 4.424C, e tambm Leis, 3.700B-E. 1 0 Plato, Leis, 7.799E-800B. 1 1 Aristteles, Poltica, 8.133b-1340a.

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  • partindo do princpio de que se tratava de uma questo importante para o bem-estar pblico. Havia leis sobre a msica nas primeiras constituies de Atenas e de Esparta. Os escritos dos Padres da Igreja contm muitas censuras a determinados tipos de msica. E mesmo no sculo xx o assunto est longe de ter sido encerrado. As ditaduras, tanto fascistas como comunistas, procuraram controlar a actividade musical dos respectivos povos; as igrejas costumam estipular quais as msicas que podem ou no ser tocadas nos servios religiosos; os educadores continuam a preocupar-se com o tipo de msica, bem como com o tipo de imagens e textos, a que se vem expostos os jovens de hoje.

    A doutrina grega do etos, por conseguinte, baseava-se na convico de que a msica afecta o carcter e de que os diferentes tipos de msica o afectam de forma diferente. Nestas distines efectuadas entre os muitos tipos de msica podemos detectar uma diviso genrica em duas categorias: a msica que tinha como efeitos a calma e a elevao espiritual, por um lado, e, por outro, a msica que tendia a suscitar a excitao e o entusiasmo. A primeira categoria era associada ao culto de Apoio, sendo o seu instrumento a lira e as formas poticas correlativas a ode e a epopia. A segunda categoria, associada ao culto de Dioniso, utilizava o aulo e tinha como formas poticas afins o ditirambo e o teatro.

    O sistema musical grego

    A teoria musical grega, ou harmonia, compunha-se tradicionalmente de sete t-picos: notas, intervalos, gneros, sistemas de escalas, tons, modulao e composio meldica. Estes pontos so enumerados por esta ordem por Clenides (autor de data incerta, talvez do sculo n d. C.) 1 2 num compndio da teoria aristoxeniana; o prprio Aristxeno, nos seus Elementos de Harmonia (c. 330 a. C) , discute demoradamente cada um dos tpicos, mas ordenando-os de forma diferente. Os conceitos de nota e de intervalo dependem de uma distino entre dois tipos de movimento da voz humana: o contnuo, em que a voz muda de altura num deslizar constante, ascendente ou descendente, sem se fixar numa nota, e o diastemtico, em que as notas so mantidas, tornando perceptveis as distncias ntidas entre elas, denominadas inter-valos. Os intervalos, como os tons, os meios-tons e os dtonos (terceira), combina-vam-se em sistemas ou escalas. O bloco fundamental a partir do qual se construam as escalas de uma ou duas oitavas era o tetracorde, formado por quatro notas, abar-cando um diatessaro, ou intervalo de quarta. A quarta foi um dos trs intervalos primrios precocemente reconhecidos como consonncias. Diz-nos a lenda que Pitgoras descobriu as consonncias a partir de quocientes simples, ao dividir uma corda vibrante em partes iguais. Na razo de 2 :1 ter encontrado a oitava, na de 3:2 a quinta e na de 4:3 a quarta.

    Havia trs gneros ou tipos de tetracordes: o diatnico, o cromtico e o enarm-nico. As notas extremas dos tetracordes eram consideradas como tendo altura estvel, enquanto as duas notas intermdias podiam situar-se em pontos convenientes no contnuo entre as notas extremas. O intervalo inferior era geralmente o menor e o

    1 2 A sua Introduo Harmonia encontra-se em Source Readings in Music History, de Olivier Strunk, Nova Iorque, Norton, 1950, pp. 34-46.

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    superior o maior [exemplo 1.1, a), b), c)]. No tetracorde diatnico os dois intervalos superiores eram tons inteiros e o inferior um meio-tom. No cromtico o intervalo superior era um semidtono, ou terceira menor, e os dois intervalos inferiores, forman-do uma zona densa, ou pyknon, eram meios-tons. No enarmnico o intervalo superior era um dtono, ou terceira maior, e os dois intervalos inferiores do pyknon eram menores do que meios-tons, quartos de tom, ou prximos do quarto de tom. Todos estes componentes do tetracorde podiam variar ligeiramente de amplitude, e esta variedade criava matizes dentro de cada gnero.

    Exemplo 1.1 Tetracordes

    a) Diatnico b) Cromtico c) Enarmnico

    Aristxeno defendia que o verdadeiro mtodo para determinar os intervalos era atravs do ouvido, e no de quocientes numricos, como pensavam os seguidores de Pitgoras. No entanto, para descrever a amplitude de intervalos menores do que a quarta dividia o tom inteiro em doze partes iguais e usava estas como unidades de medida. Das descries de Aristxeno e de alguns textos de tericos mais tardios podemos inferir que os gregos antigos, como a maior parte dos povos orientais, ainda nos nossos dias, faziam uso corrente de intervalos menores do que o meio-tom. E encon-tramos, efectivamente, tais microtons no fragmento de Eurpides (NAWM 1).

    Exemplo 1.2 Tetracordes conjuntos e disjuntos

    a) Dois tetracordes conjuntos b) Dois tetracordes disjuntos com nota suplementar

    ^ T (proslambanomenos) a

    Cada uma das notas, excepto o mese e o proslambanomenos, tinha um nome duplo, por exemplo, nete hyperbolaion, em que o primeiro termo indicava a posio da nota no tetracorde e o segundo era o nome do prprio tetracorde. Os tetracordes eram denominados segundo a respectiva posio: hyperbolaion, notas extremas; diezeugmenon, disjuno; meson, meio; hypaton, o ltimo.

    Dois tetracordes podiam combinar-se de duas formas diferentes para formarem heptacordes (sistemas de sete notas) e sistemas de uma ou duas oitavas. Se a ltima nota de um tetracorde era tambm a primeira de outro, os tetracordes diziam-se conjuntos; se eram separados por um tom inteiro, eram disjuntos (v. exemplo 1.2, onde T = tom inteiro e m = meio-tom). Daqui derivou, com o passar do tempo, o sistema perfeito completo uma escala de duas oitavas composta de tetracordes alternadamente conjuntos e disjuntos, como se v no exemplo 1.3. O L mais grave deste sistema, uma vez que ficava de fora do sistema de tetracordes, era considerado um tom suplementar (proslambanomenos).

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  • Nota Posio Tetracorde Traduo dos nomes das posies

    t"3 Nete sol' Paranete f' Trite mi' Nete r' Paranete d' Trite si Paramese

    l Mese sol Lidanos f Parhypate mi Hypate r Lychanos d Parthypate Si Hypate

    Hyperbolaion

    Diezeugmenon

    Disjuno

    Meson

    Hypaton

    L Proslambanomenos

    extrema penltima terceiro [dedo]

    ao lado do mdio

    [corda do] meio indicador a seguir ao ltimo ltima

    nota suplementar

    Exemplo 1.3 O sistema perfeito completo Hyperbolaion

    Diezeugmenon Meson

    > i i i Mese Hypaton Proslambanomenos

    Algumas das notas so designadas a partir da posio da mo e dos dedos ao tocar a lira. Lichanos significa dedo indicador. Hypate significa que se trata da primeira nota do primeiro tetracorde, enquanto nete deriva de neaton, ou ltimo a chegar. O nome do tetracorde diezeugmenon provm do facto de o intervalo Si-L ser o tom inteiro que separa dois tetracordes disjuntos, o ponto de disjuno em grego, diazeuxis.

    No exemplo 1.3 os tons exteriores ou fixos dos tetracordes tero sido represen-tados na notao moderna por notas brancas. A altura dos dois tons intermdios de cada tetracorde (representados por notas pretas) podia, como atrs explicmos, ser modificada por forma a produzir os diversos matizes e os gneros enarmnico e

    1 3 Neste livro o nome de uma nota referido sem ter em conta o registo da sua oitava vem escrito com letra maiscula e em itlico (L). Uma nota situada numa determinada oitava designada do seguinte modo:

    d', r', etc.

    d", r", etc.

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    cromtico, mas, independentemente da modificao de altura, estas notas conserva-vam os mesmos nomes que no gnero diatnico (por exemplo, mese, lichanos, parhypate e hypate no tetracorde conjunto do meio). Havia tambm um sistema perfeito menor que consistia numa oitava de l a L, como no sistema perfeito maior, com um tetracorde conjunto suplementar (denominado synemmenon, ou associado) constitudo pelas notas r'-d'-sib-l.

    A questo dos tonoi era objecto de divergncias considerveis entre os escritores antigos, o que no surpreendente, uma vez que os tonoi no eram construes tericas anteriores composio mas um meio de organizar a melodia, e as prticas meldicas divergiam grandemente no mbito geogrfico e cronolgico da cultura grega:

    A msica da Grcia antiga abrangia peas jnicas (ou seja, asiticas), como os cantos picos de Homero e as rapsdias, peas elicas (das ilhas gregas), como as canes de Safo e Alfeu, peas dricas (do Sul da Grcia), como os versos de Pindaro (poeta epiniciano)*, Esquilo, Sfocles, Eurpides (os poetas trgicos) e Aristteles (o poeta cmico), peas dlficas (do Norte da Grcia) helensticas, como os hinos a Apolo, a inscrio funerria pag de Seikilos do sculo i, um hino cristo do sculo iv e todo o resto de um vasto corpus, que se perdeu quase por inteiro, de msica grega composta primeiro sem, e depois com, o auxlio de uma notao e de uma aprendizagem tcnica, ao longo do perodo de cerca de 1200 anos que medeia entre Homero e Boecio'4.

    Aristxeno comparou as discordancias quanto ao nmero e altura dos tonoi com as disparidades entre os calendrios de Corinto e de Atenas. A parte do tratado onde apresentaria a sua perspectiva no chegou at ns, mas a exposio de Clenides deriva dela com toda a probabilidade. A palavra tonos, ou tom, dizia ele, tinha quatro significados: nota, intervalo, regio da voz e altura. usada com o sentido de regio da voz quando se refere ao tonos drico, ao frigio ou ao lidio. Aristxeno, acrescentava ainda Clenides, distingua treze tonoi. Em seguida enumerava-os e mostrava que cada um deles comea no seu meio-tom da oitava.

    Para fazermos uma idia mais exacta do que eram os tonoi temos de recorrer a outros autores, possivelmente posteriores, como Alpio (cerca do sculo m ou iv) e Ptolemeu. Alpio apresentava tbuas de notao para quinze tonoi (os de Aristxeno e dois mais agudos), que revelam ter cada tonos a estrutura do sistema perfeito, maior ou menor, sendo um dado tonos meio-tom mais alto ou mais baixo do que o seguinte. A notao sugere que o hipoKdio corresponderia escala natural, como o l & L do exemplo 1.3. Ptolemeu considerava que treze era um nmero excessivo de tonoi, pois, segundo a sua teoria, o propsito dos tonoi era permitir que fossem cantadas ou tocadas, dentro do mbito limitado desta ou daquela voz ou instrumento, determina-das harmoniai, e s havia sete maneiras de combinar os sons da oitava numa harmo-nia. Uma harmonia, como mais tardiamente o modo, era caracterizada por um certo nmero de atributos, como o etos, o feminino/mascuUno, as notas excludas, as

    * Epincias: nome genrico das odes triunfais de Pindaro. (N. da T.) 1 4 John Solomon, Towards a history of tonoi, in The Journal of Musicology, 3, 1984, 242:

    -251; v. tambm as outras comunicaes do mesmo simpsio, The ancient harmoniai, tonoi ar il octave species in theory and practice, ibid., pp. 221-286.

  • preferncias tnicas, e assim sucessivamente, mas a cada harmonia era associada uma espcie particular de oitava.

    Ao discutir a questo das espcies de consonncias, Clenides demonstrou que havia trs espcies de quartas, quatro espcies de quintas e sete de oitavas. Quer isto dizer que os tons ou meio-tons (ou intervalos menores) podiam ser ordenados de um nmero de formas sempre igual ao nmero de notas do intervalo menos um: A quarta diatnica podia ascender das seguintes formas: m-T-T (como a quarta Si-m), T-T-m (como d-f) e T-m-T (como r-sol). Havia espcies equivalentes para a quarta cromtica e enarmnica e tambm para a quinta e a oitava. s espcies de oitavas atribuiu Clenides os nomes tnicos drica, frigia, etc., demonstrando que todas podiam ser representadas como segmentos do sistema perfeito completo na sua forma natural. Assim, a oitava mixoldia corresponde a Si-si, a lidia a d-d', a frigia a r-r', a drica a mi-mi', e assim por diante, at hipodrica, que corresponde a l--L'. Por conseguinte, as espcies de oitavas so como uma srie ascendente de modos, mas esta uma falsa analogia, pois o autor apenas pretendia com ela tornar mais fcil a memorizao da sucesso dos intervalos. No deixa de ser, no entanto, extraordinria a coincidncia entre as designaes de Clenides para as sete espcies de oitavas e as de Ptolemeu para os tonoi, de que aquelas espcies derivam no seu sistema.

    O argumento de Ptolemeu para pr de parte todos os tonoi, excepto sete, baseava-se na convico de que a altura do som (aquilo a que hoje damos o nome de registo) no era a nica fonte importante de variedade e expressividade no domnio da msica, sendo mais importante ainda a combinao dos intervalos dentro de um determinado mbito da voz. Na realidade, ele desprezava a mudana ou modulao do tons, que, na sua opinio, no alterava a melodia, enquanto a modulao das espcies de oitava ou harmonia modificava o etos ao alterar a estrutura de intervalos da melodia. S eram necessrios sete tonoi para tornar possveis sete combinaes ou espcies dos intervalos componentes no espao de uma oitava, ou dupla oitava, por exemplo, a oitava central mi-mi'. Na posio central colocava o tonos drico, tal como fizera

    . Clenides, e era essa a escala natural, que na nossa notao surgiria sem acidentes. Um tom inteiro acima deste vinha o tonos frigio, um tom acima deste o lidio e meio--tom mais acima o mixoh'dio. Meio-tom abaixo do drico vinha o hipoldio, um tom inteiro abaixo deste o hipofngio e mais um tom abaixo o bipodrico. Enquanto Alpio representava atravs de letras todo o conjunto de quinze notas transposto para cima ou para baixo, Ptolemeu encarava os limites da voz como confinados a duas oitavas, de forma que o nico tonos que apresentava integralmente o sistema perfeito com-pleto na sua ordem normal era o drico (v. exemplo 1.4); aos tonoi mais altos faltavam as notas mais agudas e eram acrescentadas notas suplementares mais graves, sucedendo o inverso com os tonoi inferiores ao drico. A oitava central continha os mesai (plural de mese) de todos os tonoi. Deste modo, r era o mese do mixoKdio, d# o mese do lidio, e assim por diante. Estas notas eram mesai em virtude da sua funo na transposio do sistema perfeito completo, enquanto o ttico, ou mese fixo, permanecia sempre na posio central. Imaginemos uma harpa de quinze cordas, cada corda com um nome prprio, como mese ou paramese diezeugmon, conservando esse nome mesmo que lhe fosse conferida uma funo diferente. Assim o mese funcional frgido podia ser colocado em si, ou paramese ttico, um tom inteiro acima do mese n tural, ttico ou drico, que l.

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    Exemplo 1.4 Sistema de espcies de oitavas, segundo Clenides, e sistema de tonoi, segundo Ptolemeu

    Espcies de oitavas secundo Clenides Espcies de oitavas Tonoi de Ptolemeu com mesai dinmicos n na Girava mi -mi

    T = tom o = altura fixa M = rneo-lom m = altura varivel

    Extrado de C . Palisca, Theory and theorists, in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980 [reproduzido com a amvel autorizao de Stanley Sadie (ed.)].

    Podemos agora considerar aquilo que Plato e Aristteles designavam por harmo-nia, termo que geralmente se traduz por modo. No esqueamos que eles escreviam acerca da msica de um perodo muito anterior ao dos ensaios tericos atrs citados. Os modos musicais, diz Aristteles, apresentam entre si diferenas fundamentais, e quem os ouve por eles afectado de maneiras diversas. Alguns deixam os homens graves e tristes, como o chamado mixoldio; outros enfraquecem o esprito, como os modos mais brandos; outro ainda suscita um humor moderado e tranquilo, e tal parece

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  • ser o efeito particular do drico; o frigio inspira o entusiasmo15. Ser a posio central da oitava drica mi-mi' no sistema perfeito completo, ou seja, a localizao intermdia dos seus tons, ou a combinao de tons e meiostons da respectiva espcie de oitava ou harmonia (descendo na seqncia T-T-m-T-T-T-m), o factor que induz um humor moderado e tranquilo ou, mais genericamente, qualquer outro estado de esprito? Possivelmente, uma conjugao de ambas as coisas, mas o mais provvel que Aristteles no tivesse em mente nada de to tcnico e especfico, mas sim a natureza expressiva genrica das melodias e configuraes meldicas caractersticas de um determinado modo, pois associava de forma bem clara a estes elementos os ritmos particulares e as formas poticas correspondentes a esse modo.

    Poder ter havido outras associaes, nem poticas nem musicais, como as tradi-es, os costumes e as atitudes adquiridas, mais ou menos inconscientes, para com os diferentes tipos de melodia; tambm possvel que, originariamente, os nomes drico, frigio, etc., se referissem a estilos particulares de msica ou formas de interpretao caractersticas das diversas raas de que o povo grego dos tempos histricos descendia.

    Apesar das contradies e imprecises que dificultam o trabalho do estudioso dos textos antigos sobre msica, h uma correspondncia assinalvel entre os preceitos tericos de Aristxeno a Alpio e os fragmentos musicais que sobreviveram. Dois de entre estes prestam-se a ser estudados com algum pormenor: o epitafio de Seikilos (NAWM 2) e um coro do Orestes de Eurpides (NAWM 1).

    Ambos os exemplos ilustram at que ponto os escritos tericos podem servir de guia para a compreenso dos recursos tcnicos da msica grega que subsistiu at aos nossos dias. Os sistemas tonais descritos na literatura parecem ter aplicao na msica escrita e podero ter sido igualmente fundamentais para a msica mais corrente que no ficou registada por escrito. Entretanto, convm lembrar que, se Eurpides escreveu a msica do fragmento do Orestes, f-lo quase um sculo antes de Aristxeno e de ou-tros autores comearem a analisar o sistema de tons. Por conseguinte, no de admirar que esse fragmento no se harmonize to bem com a teoria. Se a cano de Seikilos est mais de acordo com a teoria, talvez seja porque a teoria orientou a sua composio.

    NAWM 2 EPITAFIO DE SEIKILOS

    O epitafio de Seikilos, embora seja o mais tardio dos dois exemplos, ser examinado em primeiro lugar, uma vez que est completo e apresenta menos problemas analti-cos. O texto e a msica esto inscritos numa esteia ou pedra funerria encontrada em Aidine, na Turquia, prximo de Traies, e datam, aproximadamente, do sculo i d. C. Todas as notas da oitava mi-mi', com Sol e D sustenidos (v. exemplo 1.5), entram na cano, de forma que a espcie de oitava inequivocamente identificvel como aquela a que Clenides deu o nome de frigia, equivalente escala de R nas teclas brancas de um piano. A nota que mais se destaca o l, sendo as duas notas extremas mi e mi'. A nota l a mais freqente (oito vezes), e trs das quatro frases comearn_com ela; mi' a nota mais aguda das quatro frases e repete-se seis vezes; mi a nota final da pea. De importncia subsidiria so sol, que encerra duas das frases, mas omitido no fim, e r', que ' a ltima nota de outra das frases.

    A importncia do l significativa, porque se trata da nota central, ou mese, do sistema perfeito completo. Em Problemas, obra atribuda a Aristteles (mas que

    15 Poltica, 8.1340a; cp. com a Repblica de Plato, 3.398 e segs.

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    poder no ser inteiramente da sua autoria), afirma-se o seguinte: Em toda a boa msica o mese repete-se com freqncia, e todos os bons compositores recorrem freqentemente ao mese, e, se o deixam, para em breve voltarem a ele, como no o fazem com mais nenhuma nota"1.

    A oitava mi-mi', com dois sustenidos, um segmento da dupla oitava Si-si', identificada por Alpio como correspondendo ao tonos diatnico istico, uma forma menor do modo frigio que tambm conhecida pelo nome de tonos jnico (v. exemplo 1.5 e figura 1.1). Este tonos transpe o sistema perfeito maior para um tom inteiro acima da sua localizao natural, hipoldia, em L-l', na notao de Alpio. A iden-tidade do tonos, porm, no parece ser essencial estrutura da pea, pois os tons que nela mais se destacam, l e mi, funcionam nesse tonos como lichanos meson e paranete diezeugmenon, ambos instveis (v. exemplo 1.3). Na escala ttica, em con-trapartida, as notas mi, l e mi' so hypate meson, meson, mese e nete diezeugmenon, todas notas estveis, e a espcie de quinta l-mi', que domina a maior parte da pea, bem como a espcie de quarta mi-l, que prevalece no final, dividem a espcie de oitava em duas metades consonantes.

    Exemplo 1.5 Epitafio de Seikilos (transcrio)

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    K 1 Z 1_K O C 0_ ur i cv A-ws o Au-no-

    L B B L D D L

    L B B B B B L B + L

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    C K Z I K I K C ojt nps AL'YOV O T L T nv,

    B B D B L D B L

    B B B B B B B L B + L

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    C K O I Z K C C c J C l T icXoi XPVOS ltaL- T E L . B B B C B B D L L

    B B B B B B B L B + L

    D = silaba dicrnica B = slaba breve L = silaba longa I = posio possvel da thesis C = slaba comum

    At ao fim dos teus dias, vive despreocupado.

    Que nada te atormente. A vida demasiado breve, e o tempo cobra o seu tributo.

    Extrado de Music Theory Spectrum. 7. 1985, 171-172.

    1 6 Aristteles, Problemas, 19.20 (919a).

    29

  • Foi possvel analisar a estrutura tonal desta breve cano segundo os critrios explanados pelos tericos. No que diz respeito ao etos da cano, pode dizer-se que no eufrico nem depressivo, mas sim equilibrado entre os dois extremos, o que est em harmonia com o tonos jnico. Na ordenao dos quinze tonoi segundo Alpio, o jnico, com proslambanomenos em Si e mese em si, ocupa um lugar intermdio entre o mais grave, o hipodrico, com proslambanomenos em F e mese em f, e o mais agudo, o hiperldio, com proslambanomenos em sol e mese em sol'. As terceiras maiores dariam ao ouvinte de hoje, e provavelmente tambm ao da poca, uma impresso de alegria, tal como a quinta ascendente de abertura. A mensagem do poema , com efeito, optimista.

    .-.vj-o-v:

    sre/a funerria de Aidine, prximo de Traies, na Asia Menor. Tem inscrito um epitafio, uma espcie de escolio ou cano de bebida, com notao meldica e rtmica; o autor identifi-cado nas primeiras linhas como sendo Seikilos. Datao provvel: sculo 1 d. C. (Copenhaga,

    Museu Nacional, n. 14 897 de inventrio)

    Figura 1.1 Anlise da inscrio de Seikilos

    Nomes tticos Nome segundo a funo Espde

    Nomes tticos (tonos istico) (frigia)

    fixo nete diezeugmenon mi' paranete diezeugmenon tom

    paranete diezeugmenon r trite diezeugmenon meio-tom

    trite diezeugmenon d# paramese disjuno tom

    fixo paramese disjuno

    si mese tom

    fixo mese l lichanos meson tom

    lidanos meson sol parhypate meson meio-tom

    * parhypate meson f# hypate meson tom

    fixo hypate meson mi lichanos hypaton

    A cano de Seikilos teve especial interesse para os historiadores devido clareza da sua notao rtmica. As notas sem sinais rtmicos por cima das letras do alfabeto eqivalem a uma unidade de durao (chronos protos); o trao horizontal indica um

    30

    diseme, equivalente a dois tempos, e o sinal horizontal com um prolongamento vertical do lado direito um triseme, equivalente a trs tempos. Cada verso tem doze tempos.

    NAWM 1 EURIPIDES, Orestes (FRAGMENTO)

    O fragmento do coro do Orestes de Eurpides chegou at ns num papiro dos sculos m ou it a. C. Calcula-se que a tragdia seja de 408 a. C. possvel que a msica tenha sido composta pelo prprio Eurpides, que ficou famoso pelos seus acompanhamentos musicais. Este coro um stasimon, uma ode cantada com o coro imvel no seu lugar na orquestra, zona semicircular entre o palco e a bancada dos espectadores. O papiro contm sete versos com notao musical, mas s subsistiu a parte central dos versos; o incio e o fim de cada verso vm, por conseguinte, entre parnteses no exemplo 1.6. Os versos do papiro no coincidem com os do texto. Chegaram at ns quarenta e duas notas da pea musical, mas faltam muitas outras. Por conseguinte, qualquer interpre-tao ter forosamente de se basear numa reconsttuio.

    A transcrio dificultada pelo facto de certos signos alfabticos serem vocais enquanto outros so instrumentais, sendo alguns enarmnicos (ou cromticos) e outros diatnicos (v. exemplo 1.6 e figura 1.2). A presente criao apresenta os intervalos densos como sendo cromticos, mas, alterando o matiz, estes poderiam ser igual-mente transcritos como enarmnicos do tipo mais denso. As notas que subsistiram

    Exemplo 1.6Stasimon do Orestes (fragmento)

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    HaToAotp] -D B 8 D

    L L

    F P C

    POUO.L

    B L B L

    P * TT

    ua. tipos D B B

    B B B

    [auna oc L D D

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    m- i z E o' unBctl HXEEL "L uvac.

    B D D L L L I B B D

    L L L I B B B

    [oABos.o

    L B L

    Notas musicais j*

    IT P C i Z

    3. PVLUO IS u BpoTOs "1 v [61 XaCtpos

    Ritmo do texto B D B L l(B7)l B L I D D B L B . Ritmo da msica L B L I B B

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    Tu] S CtMCTOU D D D L

    B B L

    C PTT C P -Lp C 9 o s

    BL I

    TLV[a D L L

    B L

    autdv

    L L

    31

  • Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    *ir p ir

    MaxKXuOEv

    D C

    B B

    D B

    B L

    7-1 D 6 [ELVLV

    L L

    Notas musicais

    Ritmo do texto Ritmo da msica

    Notas musicais

    7. . C PZ [texto incerto]

    deusas radas que fendeis os cus buscando vingana pelo crime, imploramo-vos que livreis o filho de Agamemnon da sua furia cega [...] Choramos por este mancebo. A ventura fugaz entre os mortais. Sobre ele se abatem o luto e a angustia, qual sbito golpe de vento sobre urna chalupa, e ele naufraga nos mares revoltos.

    enquadram-se no tonos lidio de Alpio. As trs notas mais graves do tetracorde diezeugmenon so separadas pelo tom de disjuno do tetracorde meson cromtico, que, por seu tumo, surge conjunto com o tetracorde hypaton diatnico, do qual apenas so usadas as duas notas superiores. A pea parece, assim, ter sido escrita num gnero misto. A espcie de oitava ou harmonia , aparentemente, a frigia, mas duas harmo-nias apresentadas pelo terico musical e filsofo Aristides Quintiliano (sculo iv d. C.) como datando do tempo de Plato a drica e a frigia da sua classificao coinci-dem quase exactamente com a escala que aqui encontramos, como se v na figura 1.2.

    Figura 1.2 Anlise do fragmento do stasimon do Orestes

    Nomes dinmicos Sinais de Alpio para o tonos lidio

    p enarmnico *i- 2? vocal instrumental

    paranete diezeugmenon sol T trite diezeugmenon f' M paramese mi' (disjuno) T Z mese r' lichanos meson chrm. si T I parhypate meson s? T n hypate meson l M p lichanos hypaton sol T c [parhypate hypatonJ f hypate hypaton mi

    diatnico vocal

    Harmonias de Aristides Quintiliano

    drica frigia

    l' &-

    f' A mi' + E mi' Z

    re l#

    l_+

    f-

    n p c

    sol' f'

    l l . l sol

    I T A

    E Z

    I n p c

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    No stasimon o coro das mulheres de Argos implora aos deuses que tenham piedade de Orestes, que seis dias antes de a pea comear assassinou a me, Clitemnestra.

    Ele combinara com a irm Electra punir a me por ter sido infiel ao pai, Aga-mmnon. O coro pede que Orestes seja libertado da loucura que se apossou dele desde o momento do crime. O ritmo da poesia, por conseguinte da msica, dominado pelo p docmaco, que era usado na tragdia grega em trechos de intensa agitao e sofrimento. O docmaco combina trs slabas longas com duas breves, sendo muitas vezes, como sucede aqui, uma das slabas longas substituda por duas mais breves, de forma que, em vez de cinco notas por p, temos seis. No exemplo 1.6 os ps so separados por barras verticais nos smbolos que assinalam o ritmo do texto para cada linha do papiro.

    O texto cantado interrompido por sons instrumentais, sol' nos versos 1 a 4, e mi-si nos versos 5 e 6. O hypate hypaton (l) o tom que mais se destaca, pois dois dos versos (os versos 1 e 3, pontuados pela nota instrumental sol) terminam nessa nota e vrias frases da melodia organizam-se em tomo do paramese mi'; tanto l como mi so notas estveis no tonos lidio e so os tons mais graves dos dois tetracordes utilizados na pea (v. figura 1.2)".

    A MSICA NA ANTIGA ROMA No sabemos se os Romanos tero sido responsveis por alguma contribuio importante, quer para a teoria, quer para a prtica musical. Roma foi buscar a sua msica erudita Grcia, especialmente depois de esta regio se tornar uma provncia romana, em 146 a. C, e possvel que esta cultura importada tenha substitudo uma msica indgena, etrusca ou italiana, da qual nada sabemos. A verso romana do aulo, a tbia, e os seus tocadores, os tibicinos, desempenhavam um papel importante nos ritos religiosos, na msica militar e no teatro. Destacavam-se ainda vrios outros instrumentos de sopro. A tuba, uma trombeta comprida, direita, era tambm utilizada em cerimnias religiosas, estatais e militares. Os instrumentos mais caractersticos eram uma grande trompa circular, em forma de G, chamada corno, e a sua verso de menores dimenses, a buzina. A msica deve ter estado presente em quase todas as manifestaes pblicas. Mas desempenhava tambm um papel nas diverses particulares e na educao. Muitas passagens das obras de Ccero, Quin-tiliano e outros autores revelam que a familiaridade com a msica, ou pelo menos com os termos musicais, era considerada como fazendo parte da educao do indiv-duo culto, tal como se esperava que tal indivduo soubesse falar e escrever o grego.

    Nos tempos ureos do Imprio Romano (os dois primeiros sculos da era crist) foram importadas do mundo helenstico obras de arte, arquitectura, msica, filosofia, novos ritos religiosos e muitos outros bens culturais. Numerosos textos documentam a popularidade de virtuosos clebres, a existncia de grandes coros e orquestras, bem como de grandiosos festivais e concursos de msica. Muitos imperadores foram patronos da msica. Nero aspirou at a alcanar fama pessoal como msico. Com o declnio econmico do imprio, nos sculos m e iv, a produo musical em grande escala, naturalmente dispendiosa, do perodo anterior acabou por desaparecer.

    Resumindo: embora haja uma grande incerteza quanto s questes de pormenor, sabemos que o mundo antigo legou Idade Mdia algumas idias fundamentais no domnio da msica: (1) uma concepo da msica como consistindo essencialmente

    1 7 V. anlise rtmica deste fragmento em Thomas J. Mathiesen, Rhythm and meter in ancient Greek music, in Music Theory Spectrum, 7, 1985, 159-180, donde so extrados os exemplos 1.5 e 1.6.

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  • Cortejo fnebre romano num relevo de um sarcfago de Amitemum, final do sculo i a. C. Na fila de cima vem-se dois tocadores de corno e um de ltuo, ambos instrumentos de sopro metlicos etmsco-romanos. Abaixo destes vemos quatro tocadores de tbia, que era semelhante ao aulo grego

    (Aquila, Museo Cvico)

    numa linha meldica pura e despojada; (2) a idia da melodia intimamente ligada s palavras, especialmente no tocante ao ritmo e mtrica; (3) uma tradio de inter-pretao musical baseada essencialmente na improvisao, sem notao fixa, em que o intrprete como que criava a msica de novo a cada execuo, embora segundo convenes comummente aceites e servindo-se das frmulas musicais tradicionais; (4) uma filosofia da msica que concebia esta arte, no como uma combinao de belos sons no vcuo espiritual e social da arte pela arte, mas antes como um sistema bem ordenado, indissocivel do sistema da Natureza, e como uma fora capaz de afectar o pensamento e a conduta do homem; (5) uma teoria acstica cientificamente fundamentada; (6) um sistema de formao de escalas com base nos tetracordes; (7) uma terminologia musical.

    Parte desta herana (n. o s 5, 6 e 7) era especificamente grega; o resto era comum maior parte, se no totalidade, do mundo antigo. Os conhecimentos e as idias no domnio da msica foram transmitidos, embora de maneira incompleta e imperfeita, ao Ocidente por diversas vias: a igreja crist, cujos ritos e msica derivaram inicial-mente, em grande medida, de fontes judaicas, se bem que despojados dos instrumen-tos e danas que os acompanhavam no templo, os escritos dos Padres da Igreja e os tratados enciclopdicos do princpio da Idade Mdia, que abordavam a msica jun-tamente com uma quantidade de outros temas.

    Os primeiros sculos da igreja crist

    Algumas caractersticas da msica da Grcia e das sociedades mistas orientais--helemsticas do Mediterrneo oriental foram seguramente absorvidas pela igreja crist nos seus dois ou trs primeiros sculos de existncia. Mas certos aspectos da vida musical antiga foram minarmente rejeitados. Um desses aspectos foi a idia de cultivar a msica apenas pelo prazer que tal arte proporciona. E, acima de tudo, as formas e tipos de msica associados aos grandes espectculos pblicos, tais como

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    festivais, concursos e representaes teatrais, alm da msica executada em situaes de convvio mais ntimo, foram por muitos considerados imprprios para a Igreja, no porque lhes desagradasse a msica propriamente dita, mas porque sentiam a neces-sidade de desviarem o nmero crescente dos convertidos de tudo o que os ligava ao seu passado pago. Esta atitude chegou mesmo a suscitar, de incio, uma grande desconfiana em relao a toda a msica instrumental.

    A HERANA JUDAICA Durante muito tempo os historiadores da msica pensaram que os primeiros cristos tinham copiado os servios religiosos pelos da sinagoga judaica. Os especialistas mostram-se hoje mais cpticos em relao a esta teoria, dado que no h provas documentais que a confirmem. Julga-se at que os primeiros cristos tero evitado copiar os servios judaicos por forma a sublinharem o carcter distinto das suas crenas e rituais.

    necessrio estabelecer uma distino entre as funes religiosas do templo e da sinagoga. O templo ou seja, o segundo templo de Jerusalm, que existiu no mesmo lugar do primeiro templo de Salomo de 539 a. C. at sua destruio pelos Romanos em 70 d. C. era um local de culto pblico. Esse culto consistia prin-cipalmente num sacrifcio, em geral de um cordeiro, realizado por sacerdotes, assis-tidos por levistas, entre os quais se contavam vrios msicos, e na presena de leigos israelistas. Umas vezes o sacerdote e outras tambm o crente leigo comiam parte do animal assado. Estes sacrifcios realizavam-se diariamente, de manh e de tarde; no sabbath e nas festas havia sacrifcios pblicos suplementares. Enquanto decorria o sacrifcio, um coro de levitas com doze elementos, pelo menos cantava um salmo, diferente para cada dia da semana, acompanhado por instrumentos de cordas. Nas festas mais importantes, como a vspera da Pscoa, cantavam-se os salmos 113 a 118, que tm refres em aleluia, enquanto os crentes faziam os sacrifcios pessoais, e em seguida um instrumento de sopro semelhante ao aulo vinha associar-se ao acompanhamento de cordas. Os crentes tambm rezavam no templo ou voltados para o templo, mas a maior parte das oraes fazia-se em casa ou na rua. H um paralelismo evidente entre o sacrifcio no templo e a missa crist, que era um sacrifcio simblico, em que o sacerdote partilhava do sangue sob forma de vinho e os crentes se associavam partilha do corpo de Cristo sob forma de po. Todavia, sendo a missa igualmente uma comemorao da ltima ceia, imita tambm a refei-o judaica dos dias de festa, como a refeio ritual da Pscoa, que era acompanhada por msica cantada.

    A sinagoga era um centro de leituras e homlias, bem mais do que de sacrifcios ou oraes. A, em assemblias ou servios, as Escrituras eram lidas e comentadas. Determinadas leituras eram feitas nas manhs normais do sabbath e nos dias de mercado, segundas-feiras e quartas-feiras, enquanto havia leituras especiais para as festividades das peregrinaes, para as festividades menores, para os dias de jejum e para os dias de lua nova. Aps a destruio do templo, o servio da sinagoga incorporou elementos que substituam os sacrifcios do templo, mas esta evoluo deu-se j, provavelmente, demasiado tarde no final do sculo i ou no sculo n para servir de modelo aos cristos. Segundo parece, o canto quotidiano dos salmos s comeou a realizar-se bastante depois de iniciada a era crist. O que a liturgia crist ficou a dever sinagoga foi principalmente a prtica das leituras associadas a um calendrio e o seu comentrio pblico num local de reunio dos crentes.

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  • medida que a igreja crist primitiva se expandia de Jerusalm para a sia Menor e para o Ocidente, chegando a frica e Europa, ia acumulando elementos musicais provenientes de diversas zonas. Os mosteiros e igrejas da Sria tiveram um papel importante no desenvolvimento do canto dos salmos e dos hinos. Estes dois tipos de canto religioso parecm ter-se difundido a partir da Sria, via Bizncio, at Milo e outros centros ocidentais. O canto dos hinos a primeira actividade musical documen-tada da igreja crist (Mat., 26,30; Mar., 14,26). Por volta do ano 112 Plnio, o Jovem, faz referncia ao costume cristo de cantar uma cano a Cristo como se ele fosse um deus na provncia de que era governador, a Bitnia, na sia Menor18. O canto dos cristos era associado ao acto de se comprometerem atravs de um juramento.

    BIZNCIO As igrejas orientais, na ausncia de um autoridade central forte, desen-volveram liturgias diferentes nas vrias regies. Embora no subsistam manuscritos anteriores ao sculo rx com a msica usada nestes ritos orientais, algumas inferencias podem ser feitas quanto aos primordios da msica religiosa no Oriente.

    A cidade de Bizncio (ou Constantinopla, hoje Istambul) foi reconstruda por Constantino e designada em 330 como capital do seu imprio reunificado. A partir de 395, data em que foi instaurada a diviso permanente entre Imprio do Oriente e do Ocidente, at sua conquista pelos Turcos, em 1453, ou seja, por um perodo de mais de mil anos, esta cidade ' permaneceu como capital do Imprio do Oriente. Durante boa parte deste lapso de tempo Bizncio foi a sede do governo mais poderoso da Europa e o centro de uma cultura florescente, onde se combinavam elementos helensticos e orientais. A prtica musical bizantina deixou marcas no cantocho ocidental, particularmente na classificao do reportro em oito modos e num certo nmero de cnticos importados pelo Ocidente em momentos diversos entre o sculo vi e o sculo rx.

    As peas mais perfeitas e mais caractersticas da msica medieval bizantina eram os hinos. Um dos tipos mais importantes o kontakion estrfico, espcie de elabo-rao potica sobre um texto bblico. O mais alto expoente da composio de kontakia foi um judeu srio convertido que exerceu a sua actividade em Constantinopla na primeira metade do sculo vi, S. Romano Meldio. Outros tipos de hinos tiveram origem nos breves responsos (troparia) intercalados entre os versculos dos salmos e que foram musicados com base em melodias ou gneros musiciais, talvez, da Sria ou da Palestina. Estas inseres foram ganhando importncia crescente e algumas de entre elas acabaram por se converter em hinos independentes, de que existem dois tipos principais: os stichera e os kanones. Os stichera eram cantados entre os versculos dos salmos normais do ofcio. Um kanon era uma composio em nove partes, baseada nos nove cnticos ou odes da Bblia1 9. Cada- uma dessas partes

    ' 1 8 Plnio, Cartas, 10, 96. 1 9 Os nove cnticos bblicos, textos lricos semelhantes aos salmos, mas no includos no Livro

    dos Salmos, so os seguintes: (1) cntico de Moiss depois da passagem do mar Vermelho, xodo, 15, 1-19; (2) cntico de Moiss antes de morrer, Deuteronmio, 32, 1-43; (3) cntico de Hannah, 1 Samuel, 2, 1-10; (4) cntico de Habacuc, Habacuc, 3, 2-19; (5) cntico de Isaas, Isaas, 26, 9-19; (6) cntico de Jonas, Jonas, 2, 3-10; (7) cntico das Trs Crianas, primeira parte, Evangelhos Apcri-fos, Daniel, 3, 26-45, 52-56; (8) segunda parte do mesmo, ibid., 57-88; (9) cntico da abenoada Vir-gem Maria, Magnificat, Lucas, 1, 46-55; (10) segunda parte do mesmo, Benedictus

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    correspondia a uma das odes, e todas continham vrias estrofes, ou troparia, canta-das com a mesma melodia. A primeira estrofe de cada ode era o seu heirmos, ou estrofemodelo, e as respectivas melodias eram compiladas em livros denominados hermologia. Cerca do sculo x a segunda ode comeou a ser habitualmente omitida.

    Os textos dos kanones bizantinos no eram criaes inteiramente originais, mas sim colagens de frases estereotipadas. Do mesmo modo, as suas melodias tambm no eram inteiramente originais; eram construdas segundo um princpio comum a toda a msica oriental, chamado centonizo, igualmente observvel nalguns cn-ticos ocidentais. As unidades estruturais no eram uma srie de notas organizadas numa escala, mas antes breves motivos ou frmulas; de entre estes esperava-se que o criador da melodia escolhesse alguns e os combinasse para compor a sua metia. Alguns dos motivos deviam ser usados no princpio, outros no meio e outros ainda no final de uma melodia, enquanto outros serviam de elos de ligao; havia tambm frmulas ornamentais padronizadas (melismas). No sabemos ao certo at que ponto a escolha das frmulas ficava ao critrio do cantor individual ou era previamente fixada por um compositOD>. Quando, porm, as melodias vieram a ser registadas em manuscritos com notao musical, o reportro de frmulas j era praticamente fixo.

    Os tipos ou modos de melodias tm designaes diferentes nas diversas culturas musicais rga na msica hindu, maqam na msica rabe, echos na gregMzan-tina e em hebraico so conhecidos por vrios termos traduzveis^porno/o. Um rga, maqam, echos ou modo , ao mesmo tempo, um vocabulrio das notas dispo-nveis e um reportrio de motivos meldicos; os motivos de cada grupo tm como denominador comum o facto de exprimirem mais ou menos a mesma gama de sentimentos, o de serem compatveis em melodia e ritmo e o de derivarem da mesma escala musical. A escolha de determinado rga ou modo pode depender da'natureza do texto que se pretende cantar, da ocasio em que vai ser cantado, da estao do ano ou mesmo (como acontece na msica hindu) da hora do dia. A msica bizantina tinha um sistema de oito echoi, e as compilaes de melodias para kanones organizavam-se de acordo com este sistema. Os oito echoi bizantinos agrupavam-se em quatro pares, e os quatro pares tinham por notas finais, respectivamente, R, Mi, F e Sol. A exemplo do que sucedia em Bizncio, passaram a distinguir-se, por volta do sculo vm ou rx, oito modos diferentes no canto ocidental, e as finais acima indicadas eram tambm as finais dos quatro pares de modos ocidentais. Assim, as bases do sistema ocidental de modos parecem ter sido importadas do Oriente, embora a elaborao terica do sistema de oito modos do Ocidente tenha sido fortemente influenciada pela teoria musical grega, tal como foi transmitida por Bocio.

    LITURGIAS OCIDENTAIS No Ocidente, como no Oriente, as igrejas locais eram de incio relativamente independentes. Embora partilhassem, claro, uma ampla gama de prticas comuns, provvel que cada regio do Ocidente tenha recebido a herana oriental sob uma forma ligeiramente diferente; estas diferenas originais combinarm--se com as condies locais particulares, dando origem a vrias liturgias e corpos de

    Dominus, Lucas. 1, 68-79. Na igreja bizantina todos estes nove cnticos eram cantados no ofcio da manh, excepto na Quaresma, em que s se cantavam trs. A igreja romana tinha um cntico do Antigo Testamento por dia, s laudas, e os trs cnticos do Novo Testamento (Lucas, 1, 46-45, 1, 68-74, e 2, 24-32) s laudas, vsperas e completas de todos os dias.

    37

  • cnticos distintos entre os sculos v e vm. Com o passar do tempo a maioria das verses locais (a ambrosiana uma das excepes) desapareceram ou foram absor-vidas pela prtica uniforme que tinha em Roma a sua autoridade central. Entre o sculo rx e o sculo xvi, na teoria e na prtica, a liturgia da igreja ocidental foi-se romanizando cada vez mais.

    Durante o sculo vn e o princpio do sculo vm o controle da Europa ocidental estava repartido entre Lombardos, Francos e Godos, e cada uma destas divises polticas tinha o seu reportro de cnticos. Na Glia territrio que correspondia, aproximadamente, Frana actual havia o canto galicano, no Sul da Itlia, o benaventino, em Roma, o canto romano antigo, em Espanha, o visigtico ou morabe, na regio de Milo, o ambrosiano. (Mais tarde a Inglaterra desenvolveu o seu dialecto do canto gregoriano, chamado sarum, e que subsistiu do final da Idade Mdia at Reforma.)

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  • Uma vez que a maioria dos manuscritos transmitem um reportro e uma verso do cantocho compilada e corrigida no reino franco, os estudiosos foram levados a crer que boa parte do cantocho foi composto e tomou a forma definitiva nos centros religiosos do Norte. No entanto, comparaes recentemente efectuadas entre as ver-ses franca e romana antiga vieram reforar a convico de que a romana antiga representa o fundo original, que apenas ter sofrido Ligeiras alteraes ao ser acolhido na Glia. O cantocho conservado nos mais importantes manuscritos francos, nesta perspectiva, transmite o reportro tal como ter sido reorganizado sob a orientao do papa Gregorio (590-604) e de um seu importante sucessor, o papa Vitaliano (657-672). Em virtude do papel que Gregorio I ter supostamente desempenhado neste processo, tal reportro recebeu o nome de gregoriano. Depois de Carlos Magno ter sido coroado em 800 como chefe do Sacro Imprio Romano, ele prprio e os seus sucessores procuraram impor este reportro gregoriano e suprimir os diversos dialectos do cantocho, como o cltico, o galicano, o morabe, o ambro-siano, mas no conseguiram eliminar por completo os usos locais. Os monges da abadia beneditina de Solesmes, em Frana, organizaram nos sculos xrx e xx edies fac-similadas e comentadas das fontes do canto gregoriano na srie Palografphie musicale. Lanaram tambm edies modernas do cantocho em notao neumtica, coligindo-o em volumes separados para cada categoria de canto; em 1903 o papa Pio X conferiu a esta obra o estatuto de edio oficial do Vaticano. Com a promoo da missa em lngua verncula pelo Concilio Vaticano I I (1962-1965), estes livros pas-saram a ser muito pouco usados nos servios religiosos modernos e deixaram de ser regularmente reeditados.

    O mais importante centro da igreja ocidental a seguir a Roma era Milo, cidade florescente ligada a Bizncio e ao Oriente por laos culturais muito fortes; foi a residncia principal dos imperadores do Ocidente no sculo rv e mais tarde veio a ser a capital do reino lombardo, no Norte da Itlia, que teve a sua poca de florescimento

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  • zar-se de forma relativamente informal, como se celebravam nos primeiros tempos. Entre o sculo v e o sculo vn muitos papas se empenharam na reviso da liturgia e da msica. A Regra de S. Bento (c. 520), conjunto de instrues detenninando a forma de organizar um mosteiro, menciona um chantre, mas no indica quais eram os seus deveres. Nos sculos seguintes, porm, o chantre monstico tornou-se uma figura-chave do panorama musical, uma vez que era responsvel pela organizao da biblioteca e do scriptorium e orientava a celebrao da Hturgia. No sculo vm existia j em Roma uma schola cantorum, um grupo bem definido de cantores e professores incumbidos de formar rapazes e homens para msicos de igreja. No sculo vi existia um coro, e atribui-se a Gregorio. I (Gregorio Magno), papa de 590 a 604, um esforo de regulamentao e uniformizao dos cnticos litrgicos. As realizaes de Gregorio foram objecto de tal admirao que em meados do sculo rx comeou a tomar forma uma lenda segundo a qual teria sido ele prprio, sob inspirao divina, quem compusera todas as melodias usadas pela Igreja. A sua contribuio real, embora provavelmente muito importante, foi sem dvida menor do que aquilo que a tradio medieval veio posteriormente a imputar-lhe. Atribuem-se-lhe a recodificao da liturgia e a reorganizao da schola cantorum; a designao de determinadas partes da liturgia para os vrios servios religiosos ao longo do ano, segundo uma ordem que permaneceu quase inalterada at ao sculo xvi; alm disto, teria sido ele o impulsionador do movimento que levou adopo de um reportro uniforme de cnticos em toda a cristandade. Uma obra to grandiosa e to vasta no poderia, como evidente, ter sido realizada em apenas catorze anos.

    Os cnticos da igreja romana so um dos grandes tesouros da civilizao ociden-tal. Tal como a arquitectura romntica, erguem-se como um autntico monumento f religiosa do homem medieval e foram a fonte e a inspirao de boa parte do conjunto da msica ocidental at ao sculo xvi. Constituem um dos mais antigos reportrios vocais ainda em uso no mundo inteiro e incluem algumas das mais notveis realizaes meldicas de todos os tempos. Ainda assim, seria um erro consider-los puramente como msica para ser ouvida, pois no possvel separ-los do seu contexto e do seu propsito Htrgicos.

    Os PADRES DA IGREJA Esta perspectiva est em sintonia com a convico dos Padres da Igreja de que o valor da msica residia no seu poder de elevar a alma contem-plao das coisas divinas. Eles acreditavam firmemente que a msica podia influen-ciar, para melhor ou para pior, o caracter de quem a ouvia. Os filsofos e os homens da Igreja da alta Idade Mdia no desenvolveram nunca a idia que nos nossos dias temos por evidente de que a msica podia ser ouvida tendo apenas em vista o gozo esttico, o prazer que proporciona a combinao de belos sons. No negavam, claro, que o som da msica agradvel, mas defendiam que todos os prazeres devem ser julgados segundo o princpio platnico de que as coisas belas existem para nos lembrarem a beleza perfeita divina; por conseguinte, as belezas aparentes do mundo que apenas inspiram o deleite egosta, ou o desejo de posse, devem ser rejeitadas. Esta atitude est na origem de muitas das afirmaes sobre a msica que encontramos nos escritos dos Padres da Igreja (e, mais tarde, nos de alguns telogos da reforma protestante).

    Mais especificamente, a sua filosofia determinava que a msica fosse serva da religio. S digna de ser ouvida na igreja a msica que por meio dos seus encantos

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    abre a alma aos ensinamentos cristos e a predispe para pensamentos santos. Uma vez que no acreditavam que a msica sem letra pudesse produzir tais efeitos, exclu-ram, a princpio, a msica instrumental do culto pblico, embora fosse permitido aos fiis usar uma lira para acompanharem o canto dos hinos e dos salmos em suas casas e em reunies informais. Neste ponto os Padres da Igreja debatiam-se com algumas dificuldades, pois o Antigo Testamento, especialmente o Livro dos Salmos, est cheio de referncias ao saltrio, harpa, ao rgo e a outros instrumentos musicais. Como explicar estas aluses? O recurso habitual era a alegoria: A lngua o 'saltrio' do Senhor [...] por 'harpa' devemos entender a boca, que o Esprito Santo, qual plectro, faz vibrar [...] o 'rgo' o nosso corpo [...] Estas e muitas outras explicaes da mesma ordem eram tpicas de uma poca que se comprazia em alegorizar as Escri-turas.

    A excluso de certos tipos de msica dos servios religiosos da igreja primitiva tinha tambm motivos prticos. As peas vocais mais elaboradas, os grandes coros, os instrumentos e a dana associavam-se no esprito dos convertidos, merc de uma tradio de longa data, aos espectculos pagos. Enquanto a sensao de prazer ligada a tais tipos de msica no pde, por assim dizer, ser transferida do teatro e da praa do mercado para a igreja, essa msica foi objecto de uma grande desconfiana; antes ser surdo ao som dos instrumentos do que entregar-se a esses coros diablicos, a essas canes lascivas e perniciosas. Pois no seria absurdo que aqueles que ouviram a voz mstica do querubim dos cus expusessem os seus ouvidos s canes dissolutas e s melodias alambicadas do teatro? Mas Deus, apiedando-se da fraqueza humana, juntou aos preceitos da religio a doura da melodia [...] as melodias harmoniosas dos salmos foram introduzidas para que aqueles que so ainda crianas estejam, afinal, a formar as suas almas, mesmo quando julgam estar apenas a c