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Grupo de Trabalho 8 Pensamento Social Contra a rejeição esteticista do mundo: uma interpretação de Formalismo e Tradição Moderna, de José Guilherme Merquior Kaio Felipe IESP/UERJ

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Grupo de Trabalho 8 – Pensamento Social

Contra a rejeição esteticista do mundo: uma interpretação de Formalismo e Tradição

Moderna, de José Guilherme Merquior

Kaio Felipe – IESP/UERJ

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Contra a rejeição esteticista do mundo: uma interpretação de Formalismo e Tradição

Moderna, de José Guilherme Merquior

Kaio Felipe1

Resumo: Em sua obra Formalismo e Tradição Moderna (1974), José Guilherme Merquior debate a crise da

cultura moderna em suas mais diversas expressões, sejam elas sintomáticas dessa crise (como o “kitsch”) ou

respostas criativas à mesma (como a “pop art”). O propósito deste trabalho é sistematizar os argumentos centrais

de Formalismo e Tradição Moderna, de forma a compreender: em que consiste o diagnóstico de Merquior sobre

o problema da arte (e da sociedade) na crise da cultura; quais são os alvos da crítica de Merquior, sejam eles

correntes de pensamento ou artísticas; e quais são as possibilidades de superação dessa crise que José Guilherme

vislumbra. A hipótese que pretendo desenvolver neste artigo é que Merquior, a partir do tema weberiano do

“desencantamento do mundo”, preocupa-se com o esteticismo, isto é, com as visões de mundo que enfatizam

excessivamente a autonomia formal de seus objetos, em detrimento da consciência histórico-social.

Palavras-Chave: Cultura, Crise, Formalismo, Esteticismo, Modernidade.

1. Introdução

José Guilherme Merquior (1941-1991) começou a debater questões de sociologia da

cultura a partir de Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), um estudo

crítico sobre a Escola de Frankfurt marcado por uma perspectiva heideggeriana. Embora a

primeira fase de sua obra (que se estende do início dos anos 1960 até meados da década de

70) seja predominantemente sobre temas de estética e crítica literária, há um crescente

interesse do autor por uma abordagem mais ampla, que envolva disciplinas como a sociologia

e a história das idéias.

Anos depois, com posições teóricas mais próximas à busca por um “ângulo

sociocultural da análise estética” de Erich Auerbach (1892-1957) e de Walter Benjamin

(1892-1940), Merquior publicou Formalismo e Tradição Moderna (1974). Esta obra é uma

das mais ambiciosas de José Guilherme, na medida em que apresenta “uma impressionante

reunião de ensaios de dimensão diversa, cujo horizonte transita do modernismo brasileiro às

artes contemporâneas” (ROCHA, 2015, p. 442).

1 Doutorando em Sociologia e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos

(IESP/UERJ). Bolsista CNPq.

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Destacam-se em Formalismo e Tradição Moderna três ensaios que oferecem uma

abordagem sociológica de problemas estéticos e culturais: a meticulosa análise dos resquícios

românticos na tradição da arte moderna de Formalismo e neorromantismo; uma discussão

sobre uma das expressões mais sintomáticas da crise da cultura moderna em Kitsch e

antikitsch: arte e cultura na sociedade industrial; e uma interpretação sobre uma das

respostas criativas a essa crise em Sentido e problema do “pop” – “pop” e hiper-realismo.

O propósito deste artigo é sistematizar os argumentos centrais de Formalismo e

Tradição Moderna a partir destes três ensaios, de forma a compreender: em que consiste o

diagnóstico de Merquior sobre o problema da arte (e da sociedade) na crise da cultura; quais

são os alvos da crítica de Merquior, nos âmbitos da teoria, da crítica e da prática artística; e

quais são as possibilidades de superação dessa crise vislumbradas por José Guilherme.

Nos dois próximos capítulos, procuro demonstrar que, para Merquior, o formalismo e

o kitsch representam ameaças ao potencial de crítica cultural da tradição moderna e da arte de

vanguarda; o primeiro ao levar a autonomia do estético ao paroxismo, o segundo como

desdobramento “sofisticado” da cultura de massa. São abordadas diversas dimensões da crise

da cultura, dentre elas a ética e a estética; mas, a hipótese que pretendo desenvolver no

capítulo 4 é de cunho sociológico: Merquior, a partir do tema weberiano do “desencantamento

do mundo”, preocupa-se com o esteticismo, isto é, com as visões de mundo que enfatizam

excessivamente a autonomia formal de seus objetos, em detrimento da consciência histórico-

social. Nesse sentido seria possível entender, por exemplo, por que o desejo de auto-

suficiência das vanguardas ironicamente reproduz a alienação da cultura de massa. Por fim,

no breve capítulo sobre a arte pop, discute-se como o autor compreende que esta expressão

artística utiliza recursos da própria cultura de massa para criticar seu caráter alienante.

Um segundo objetivo deste artigo é sistematizar algumas das contribuições de José

Guilherme Merquior como sociólogo da cultura. Nesse sentido, trabalho com a hipótese de

que Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, Saudades do Carnaval (1972) e

Formalismo e Tradição Moderna compõem uma trilogia cujo tema central é a crise da cultura

moderna em suas mais variadas expressões, desde a arte erudita até a cultura de massa.

Considerando este programa de pesquisa mais amplo, este trabalho consiste em uma tentativa

de delinear a Kulturkritik de Merquior a partir da terceira obra desta possível trilogia.

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2. O formalismo como resíduo do romantismo

Ao contrário do que poderia sugerir o título da obra, Merquior não considera os

conceitos de formalismo e tradição moderna como complementares; pelo contrário, entende-

os como pólos antitéticos diante do problema da arte na crise da cultura contemporânea. Há,

portanto, o embate entre duas concepções de forma: uma como “significação humana e

crítica”, “revolta contra os valores inautênticos da sociedade”; e outra como mero “rito

alienado”, preocupado apenas com a “linguagem” (MERQUIOR, 2015, pp. 39-40).

O autor define formalismo como o “nome geral da consciência estética acometida por

indiferença ou insensibilidade em relação à problemática da civilização” (Ibidem, p. 305). Ou

seja, é uma concepção na qual o anseio pela autonomia da função artística degenera na

pretensão de um isolamento entre arte e cultura (cf. Ibidem, p. 291). A conseqüência negativa

dessa postura formalista é a resignação da consciência estética – seja enquanto produção

artística (por exemplo, no Parnasianismo), estudo crítico-historiográfico (em historiadores da

arte como Wölfflin [1864-1945]) ou reflexão filosófica (em teorias estéticas como a de

Benedetto Croce [1866-1952]) – diante da marginalização da arte na cultura industrial.

Merquior adota o conceito de tradição moderna para designar as tendências estilísticas

pós-românticas (isto é, a partir de meados do século XIX) caracterizadas pela “reação crítica

contra os modos de vida impostos pela sociedade urbano-industrial” e pela “fidelidade a uma

poética essencialmente distinta das coordenadas estéticas vigentes durante a precedente era

clássico-romântica” (Ibidem, pp. 266-267). A postura crítica dessa modernidade estética

consiste em uma profunda consciência do “senso da incongruência entre o criar e o viver,

entre a obra e a vivência” (Ibidem, p. 248; grifos no original). Dentre os artistas classificados

por Merquior nessa tradição moderna estão Baudelaire (1821-1867), Flaubert (1821-1880),

Dostoiévski (1821-1881), Richard Wagner (1813-1883) e Franz Kafka (1883-1924).

Do ponto de vista sociológico, a distinção entre a arte romântica e a pós-romântica

reside na representação temática da vida urbana. Enquanto para os românticos a cidade é vista

de forma negativa, pois seria uma “ameaça, pela massificação que encarna, à manutenção das

individualidades”, os autores da segunda metade do século XIX em diante “buscam assimilar

a cidade, de modo desemocionalizado, despersonalizado” (RIOS, 2015, p. 472).

O argumento central de Formalismo e Tradição Moderna é a constatação da

sobrevivência de traços românticos na arte contemporânea; embora aspectos do romantismo

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possam ser assimilados no contexto ideológico moderno sem maiores prejuízos (como na

lírica de Baudelaire), o problema é quando se preserva sua índole romântica, isto é, pré-

moderna, situação na qual “o mencionado elemento representaria, como resíduo inassimilado

pelo processo autêntico da arte moderna, um vírus esterilizante para a produção artística”

(MERQUIOR, 2015, p. 267). Esses resquícios extraviados do romantismo perdem a

funcionalidade e a vitalidade que possuíam antes, “convertendo-se em fontes de formalismo,

ou seja, em estímulos à manutenção e ao reforço dos fatores de insensibilidade da arte aos

problemas da cultura contemporânea” (Ibidem, p. 267).

Essa ameaça formalista à moderna tradição estética está diretamente relacionada com

a marginalização do status cultural da arte a partir do século XIX, com o advento da sociedade

urbano-industrial. O reconhecimento da autonomia do estético em relação às outras esferas

sociais, cujo marco foi a Crítica do Juízo de Kant (1724-1804), em vez de fortalecer a arte,

teve como conseqüência não intencional a gradual conversão da mesma em “jogo abstrato,

sem raízes no drama da cultura, sem lançar luz sobre os problemas da existência” (Ibidem, p.

231). Com isso, a experiência estética deixou de ser ameaçadora: “na nossa absoluta

tolerância, habita um desprezo secreto pela inofensividade da obra. (...) As próprias

revoluções estéticas são imperturbavelmente absorvidas por uma sociedade que

institucionaliza a revolução” (Ibidem, p. 229). Em outras palavras, “as artes ironicamente

experimentaram o dissabor do isolamento e o pouco poder de instabilidade nos sismos da vida

social” (RIOS, 2015, p. 471).

Merquior, contudo, não oferece um diagnóstico estritamente negativo, e ainda vê

espaço para o potencial crítico na arte contemporânea:

Nosso carinho pela arte é como o afago displicente do senhor no cãozinho

doméstico, é uma afeição perfeitamente dessacralizada. No entanto, o cãozinho

ainda é capaz de morder. Essa mesma arte “adotada” ainda promove, às vezes, a

secreção do vírus de ruptura com a sociedade. A arte tolerada pode gerar a crítica da

cultura que a tolera – embora numa dialética demasiado sutil (MERQUIOR, 2015, p.

230).

Essa capacidade de desestabilizar os padrões culturais já era ambicionada nos escritos

dos primeiros românticos, como Schlegel (1772-1829) e Novalis (1772-1801), nos quais o

solipsismo da consciência estética embasou a dimensão crítica; isto é, por meio da acentuada

preocupação com a forma (por exemplo, no uso do fragmento e na preocupação com o

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processo de construção da obra de arte) houve um “impulso de acentuação do peculiarmente

estético como estratégia da crítica da cultura vigente”. (Ibidem, p. 231; grifos no original).

Os representantes da tradição estética moderna, como Baudelaire e Flaubert,

preservam do romantismo o senso da autonomia da arte, mas deixam de lado seus

pressupostos metafísicos, que consistiam na “identificação idealista do sujeito com a

realidade” (Ibidem, p. 238; grifos no original). Além disso, há uma dimensão sociológica

incontornável na arte pós-romântica, pois ela é produzida em um mundo já sob os efeitos da

industrialização e da urbanização:

Assim como a vida massificada e massificadora do grande espaço urbano dos

últimos 120 anos representa um estágio mais avançado de agressão e de ameaça à

individualidade, a arte dessa época tende a despojar-se da exaltação subjetiva,

egológica, da poética romântica – quando não a combatê-la explicitamente (Ibidem,

p, 239). 2

A tradição moderna, portanto, é marcada pela preocupação com o significado

antropológico dos modos de vida na sociedade urbana, e para expressar artisticamente essa

tarefa de crítica da cultura há um recurso a novas formas expressivas, como a poética

alegórica e certos recursos estilísticos que tornam a narrativa “fria” e impessoal.

Apesar desses dois exemplos nos quais traços românticos foram bem assimilados pelo

estilo moderno, José Guilherme acredita que, de maneira geral, na tradição da modernidade

estética prevaleceu a “persistência de elementos românticos não submetidos à nova economia

estilística” (Ibidem, p. 242), levando a uma tendência ao formalismo, isto é, ao estreitamento

da visão artística e, conseqüentemente, ao enfraquecimento da sua vitalidade comunicativa.

Baseando-se na obra Art and Anarchy, de Edgar Wind (1900-1971), Merquior delineia

quatro características desses resíduos românticos não assimilados na tradição moderna: 1) “a

superestimação dos efeitos de imediatez na criação e na percepção estéticas”; 2) “a inclinação

formalista da análise estilística”; 3) “a subestimação das relações entre arte e pensamento”;

4) “a relativa cegueira ante o abastardamento da arte na época da mecanização sistemática e

da reprodutibilidade técnica das obras” (Ibidem, pp. 242-243; grifos no original). No ensaio

2 É pertinente aproximar essa reflexão de Merquior sobre a estética pós-romântica com a análise de Georg

Simmel (1858-1918) em As Grandes Cidades e a Vida do Espírito (1903): a vida metropolitana, com sua

“mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores” (SIMMEL, 2013, p. 312), levaria o

indivíduo a se relacionar com o mundo cada vez mais pela via do entendimento do que pelo ânimo, de forma a se

proteger contra o desenraizamento causado ou ameaçado pelo seu meio exterior. Essa maior objetividade no

trato dos homens e coisas permitiria uma estabilidade mínima nessa nova configuração social.

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Formalismo e neorromantismo, o esforço de José Guilherme consiste precisamente em

historicizar esses quatro resíduos.

A primeira dessas características diz respeito a uma valorização daquilo que, na obra

de parte, é captável imediatamente pela percepção, em vez de exigir maior elaboração

imaginativa. Exemplo disso é a estética do fragmento, a qual, embora tenha o seu valor na

obra de românticos como Schlegel e Novalis, sofreu o impacto da ruína da visão romântica, e

em vez de ser substituída por uma nova articulação entre a arte e o mundo, sobreviveu

refugiando-se “na mística isolacionista da expressão da vivência pura”, com uma “mania de

supervalorizar o esboço frente à obra acabada” (Ibidem, pp. 243-248).

Dentre outros casos de hipertrofia do “ideal sensório-imediatista”, pode-se citar a

teoria estética da “intuição-expressão” de Croce, que durante décadas serviu de legitimação ao

isolacionismo estético. No âmbito da prática artística, um exemplo e a ascese contrutivista da

Bauhaus, pois Walter Gropius (1883-1969) cultivava, em meio à turbulenta República de

Weimar (1919-1933), a utopia pacifista de que “o aperfeiçoamento da sociedade procederá da

pureza ético-profissional, sem que as estruturas sociais sejam alteradas” (Ibidem, p. 257).

Quanto à inclinação formalista na crítica de arte, José Guilherme reconhece a

importância do esforço de teóricos como Heinrich Wölfflin em combater as tendências

reducionistas na teorização da arte (sejam as que enfatizam o conteúdo ideológico ou as que

superestimam o elemento afetivo) por meio de uma visão “endógena” da evolução artística;

contudo, teme que essa atenção à forma “pura” leve ao problema oposto, isto é, desprezar que

a arte é uma dimensão da cultura, portanto é simbólica e não apenas metalingüística:

Voltando as costas à verdade do vínculo entre arte e cultura, o formalismo quer

especializar a arte. No entanto, (...) o mito da especialização não é “acultural”; ao

contrário, é uma das marcas mais problemáticas da civilização contemporânea. O

ideal de especialização absoluta da arte pura e das teorias estéticas isolacionistas

reproduz, de modo deploravelmente mecânico e acrítico, as tendências mais cegas

da cultura vigente (Ibidem, p. 304; grifos no original).

No domínio da crítica literária, Merquior detecta, em críticos como Jakobson (1896-

1982) e Tzvetan Todorov (1939), a “perversão formalista” da análise estrutural, que consiste

no monopólio da abordagem lingüística. Tal abordagem crítica só se ocupa do sentido

imediato da obra, sem maiores rendimentos hermenêuticos; contrapondo-se a essas

“microscopias lingüísticas”, este autor julga indispensável o ângulo sociológico na análise do

texto literário (cf. Ibidem, p. 325). A teoria estética e a crítica não precisam negligenciar a

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análise formal para considerar também o significado sociocultural da arte, isto é, o

“relacionamento estrutural do texto literário com a cultura e a sociedade” (Ibidem, p. 331).

O terceiro dos resíduos românticos, que consiste na insuficiente preocupação com as

relações entre arte e pensamento, pode ser considerado por duas perspectivas: de um lado, o

papel do intelecto na experiência artística, e do outro as relações entre arte e conhecimento.

Embora reconheça o intercâmbio entre a produção artística e o saber científico (pois mais que

tantos artistas proclamem seu desapego a toda cognição intelectual), Merquior interessa-se

principalmente pela primeira dessas perspectivas, pois busca ressaltar a “dignidade

gnoseológica” da produção estética, profundamente subestimada pelo anti-intelectualismo

neorromântico. Segundo o autor, o “conteúdo veritativo do fenômeno artístico é um

pressuposto da afirmação do significado cultural da arte” (Ibidem, pp. 338-339; grifos no

original). A arte dos séculos XIX e XX possui vários exemplos fortuitos de autoconsciência

de seu poder cognitivo, tais como a poesia filosófica de Goethe, a elevação metafísica da

música de Wagner e as ambições cognitivas do romance moderno de autores como Marcel

Proust (1871-1922) e James Joyce (1882-1941). (cf. Ibidem, p. 340).

O quarto resíduo refere-se às transformações da experiência estética impostas pelas

mudanças socioculturais, e se relaciona com o terceiro, pois a ampliação semântica da arte

contemporânea “passa necessariamente pelo estreitamento dos seus vínculos dialéticos com a

evolução da cultura” (Ibidem, p. 346). Merquior reconhece que a arte se popularizou graças à

reprodução em massa, mas está atento às “deficiências da „educação estética‟ massificada e às

mutilações por ela impostas ao potencial discriminativo do gosto e do juízo” (Ibidem, p. 342).

É possível complementar essa distinção de José Guilherme entre popularização e

massificação com uma digressão feita por Hannah Arendt (1906-1975) em seu ensaio A Crise

na Cultura – sua importância social e política; aliás, com essa citação já delineamos o tema

do kitsch, que será discutido no próximo capítulo:

A cultura de massas passa a existir quando a sociedade de massas se apodera dos

objetos culturais, e o perigo é de que o processo vital da sociedade (...) venha

literalmente a consumir os objetos culturais, que os coma e destrua. Não estou me

referindo, é óbvio, à distribuição em massa. Quando livros ou quadros em forma de

reprodução são lançados no mercado a baixo preço e atingem altas vendagens, isso

não afeta a natureza dos objetos em questão. Mas sua natureza é afetada quando

estes mesmos objetos são modificados – reescritos, condensados, resumidos

(digested), reduzidos a kitsch na reprodução ou na adaptação para o cinema. Isso não

significa que a cultura se difunda para as massas, mas que a cultura é destruída para

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produzir entretenimento. O resultado não é a desintegração, mas o empobrecimento

(ARENDT, 1972, p. 260).

Um exemplo de como a teorização crítica pode enfrentar essa relação antagônica entre

arte e cultura na era contemporânea é a leitura de Walter Benjamin sobre a obra poética de

Charles Baudelaire. Segundo José Guilherme, o crítico alemão ressalta esse antagonismo “na

própria estrutura do lirismo de Baudelaire, confrontada com processos culturais (por

exemplo: o declínio da experiência da „aura‟) característicos de seu ambiente histórico-social

(a passagem à metrópole moderna)” (MERQUIOR, 2015, p. 339).

Essa atitude anti-formalista, no sentido de uma problematização da experiência do

habitante da grande cidade e da massificação da cultura, aparece não apenas na teoria e na

crítica, mas também na produção artística, em artistas como Kafka – que para o mesmo

Benjamin foi o autor de “parábolas que querem ser mais que parábolas” (Ibidem, p. 344) – e,

como veremos no capítulo 5 deste artigo, na arte pop.

3. O conceito de kitsch: arte digestiva, inautêntica e anti-cultura

Se em Formalismo e neorromantismo Merquior preocupa-se com o abismo entre arte e

sociedade preconizado pelo formalismo e combatido pela tradição moderna, o ensaio Kitsch e

antikitsch busca analisar como o deliberado isolamento da produção artística em relação aos

aspectos problemáticos da cultura de massa pode, em vez de denunciar as condições

alienantes, reforçá-las: “a auto-suficiência estética buscada por certa vanguarda ironicamente

reproduz a marginalização imposta à arte nas circunstâncias da sociedade moderna”

(ROCHA, 2015, p. 446). Para isso é necessário mostrar como o fenômeno kitsch vai muito

além de uma questão de mau gosto.

Kitsch é a obra de arte franca ou tacitamente “comercial”, compatível com os valores

culturais hegemônicos e que recorre a efeitos estéticos calculados, de forma a parecer

“sublime”, refinada; em suma, “é a arte que opera com clichês e efeitos automáticos, (...) mas

procura, ao mesmo tempo, qualificar-se como arte sofisticada” (MERQUIOR, 2015, p. 48).

Do ponto de vista sociológico, o kitsch é produto do falso refinamento do consumo de

massa, caracterizando-se pela “reação controlada”, ou seja, digere previamente a arte para o

consumidor (cf. Ibidem, p. 49). O kitsch em geral se expressa como um produto híbrido, uma

midcult, ao misturar a vontade de transcendência da alta cultura com o ar descontraído da

cultura de massa (cf. PORTELLA, 1978, p. 53). Merquior generaliza o conceito de “música

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culinária” formulado por Adorno (1903-1969) para afirmar que o kitsch “é a estética do

„culinário‟, do agradável-que-não-reclama-raciocínio”. (MERQUIOR, 2015, p. 52), podendo

ser aplicado àquelas obras dirigidas a um gosto previamente moldado pelos interesses do

consumo de massa.

Para uma melhor compreensão desse fenômeno, José Guilherme considera importante

distinguir arte popular de arte de massa: enquanto a primeira se nutre da cultura tradicional,

sendo uma imitação da arte culta, a segunda é produzida pelos meios de comunicação de

massa (mass media), controlados pelas camadas dominantes. Eis uma importante observação

do autor: quando a elite perde seu poder de plasmação cultural (ou seja, quando deixa de ser

uma “minoria criadora”), a imitação (mimesis) “ganha um sentido marcadamente ideológico”

(Ibidem, p. 47). Desta forma, o kitsch não é simplesmente uma arte ruim: é esteticamente

inautêntico (cf. Ibidem, p. 49).

Visando a ter um melhor parâmetro para analisar o problema do kitsch, Merquior

procura definir aquilo que distingue a verdadeira percepção estética: a capacidade de

vivenciar dificuldades, o prazer acarretado pelo empenho em decifrar uma obra.

O processo perceptivo passa a admitir vários registros simultâneos, detém-se e

meandros polifônicos, a tudo atento, de tudo curioso. A “contemplação” estética é

isso: pura volúpia do perceber errante, livre de toda urgência prática. (...) Para

integrar os múltiplos dados perceptivos acumulados (...) o indivíduo é convidado a

um esforço mental bem superior ao ordinário (Ibidem, p. 50).

O kitsch, entretanto, reduz o impacto estético de uma obra de arte, na medida em que

“chega digerido, espoliado de seus maios duros impasses e prevê os efeitos de sua recepção”

(RIOS, 2015, p. 461). Com certa dose de sarcasmo, José Guilherme afirma que o consumidor

perfeito do kitsch é “o indivíduo que só gosta de filmes carregados de „poesia‟”, aquele que

está em busca de uma “honesta distração” do seu cansaço rotineiro; o autor considera que esse

“mesquinho consolo no quotidiano reificado é ele mesmo um instrumento de alienação,

instrumento ideológico a serviço da cultura repressiva” (MERQUIOR, 2015, p. 51). É

possível aproximar esse comentário de Merquior sobre o kitsch no cinema com o de Eduardo

Portella (1932) sobre o best-seller, a expressão literária desse efeitismo: a leitura cômoda, “a

repetição subliminar garante a sua penetração e ausência de ineditismo tranqüiliza o leitor

ocioso quanto a eventuais esforços de apreensão” (PORTELLA, 1978, p. 53).

Do ponto de vista da história social da cultura, a origem social específica desses

“padrões estéticos fáceis e digestivos” que caracterizam o kitsch é um “caso especial do

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abandono da „alta cultura‟ como elemento de formação humana” (Ibidem, p. 55). Merquior

recorre a Alexis de Tocqueville (1805-1859) para alegar a diferença entre as sociedades

aristocráticas, que nutriam uma idéia de grandeza humana, e as sociedades burguesas, que

tentam emular o esplendor, a vitalidade e a graça da antiga cultura aristocrática, mas ficam

apenas na aparência, carecendo-lhe a substância; desta forma, “a vontade-de-beleza kitsch é

simulação de nobreza, fingimento de exuberância”. (Ibidem, p. 90). Ou seja, pelas vias da

teatralização e do simulacro, o kitsch significa a conversão “do ascetismo heróico das classes

aristocráticas em dessublimação populista da burguesia emergente” (RIOS, 2015, p. 462). O

seguinte trecho da Democracia na América de Tocqueville parece corroborar esse argumento:

...nas eras de privilégios, o exercício de quase todas as artes se torna um privilégio e

cada profissão é um mundo à parte, em que não é permitida a entrada de qualquer

um. E, ainda que a indústria seja livre, a imobilidade natural das nações

aristocráticas faz com que todos os que se ocupam de uma mesma arte acabem, não

obstante formando uma classe distinta, (...) em que logo nasce uma opinião pública e

um orgulho corporativo. (...) Nas eras aristocráticas, a meta das artes é, portanto,

fazer o melhor possível, não mais depressa ou mais barato. (...) Quando, ao

contrário, cada profissão é aberta a todos, (...) o vínculo social é destruído e cada

operário, voltado para si mesmo, preocupa-se apenas com ganhar o máximo possível

de dinheiro com o mínimo custo: limita-o unicamente a vontade do consumidor. (...)

Sucede então nas belas-artes algo análogo ao que (...) falei das artes úteis: os artistas

multiplicam suas obras e diminuem o mérito de cada uma delas. Não podendo mais

ter em vista o grande, busca-se o elegante e o bonito; tende-se menos à realidade do

que à aparência (TOCQUEVILLE, 2014, pp. 55-59; grifos meus).

Os problemas culturais decorrentes da massificação da arte e do rebaixamento da

percepção estética são ainda mais graves quando se considera que a ascensão das camadas

burguesas, com seus padrões morais austeros – aquilo que Max Weber (1864-1920)

denominou ascese intramundana – levou ao refluxo da Paidéia humanística e aristocrática, da

moral heróica e baseada na “glória” que caracterizava o humanismo renascentista e o ethos da

nobreza européia antes da era das monarquias absolutas (cf. MERQUIOR, 2015, pp. 55-56).

Cabe tecer uma breve consideração sobre o conceito de cultura para José Guilherme

Merquior. Para este autor, “cultura, como processo formativo, implica a livre personalização

da herança cultural” (Ibidem, p. 56); baseando-se na interessante analogia filológica traçada

por Werner Jaeger (1888-1961) entre o conceito grego Paidéia, o latino cultura animi e o

alemão Bildung, Merquior concebe a cultura como cultivo do espírito, como uma educação

que visa à formação:

A equação Paidéia = cultura = humanitas nos convida a pensar o conceito de cultura

não tanto no seu uso alemão (Kultur), de que se aproximou o emprego do termo em

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antropologia, mas sim no seu velho sentido francês – naquele sentido

antropoplástico perfectivo (...), e não só educativo-preparatório, em que cultura se

refere sobretudo a cultura pessoal como produto de uma assimilação espontânea do

saber e da tradição” (Ibidem, p. 57).

O autor, contudo, está atento tanto às transformações semânticas do conceito de

cultura (por exemplo, a contribuição da antropologia3) quanto à necessidade de “sociologizá-

lo” para torná-lo mais fecundo, e não simplesmente normativo:

...em que se resume toda a nossa argumentação senão em tentar demonstrar que a

cultura enquanto cultivo pessoal do espírito só é possível na vigência de

determinadas condições antropológicas de cultura? A agonia do „homem culto‟ não

é uma questão abstratamente „moral‟: é um problema de sociologia da cultura

(Ibidem, p. 58; grifos meus).

A alta cultura, para Merquior, tem como finalidade “a formação personalizada de

sujeitos críticos através do contato com objetos artísticos estruturados criticamente em relação

a seu contexto” (JOBIM, 2015, p. 30). Envolve, portanto, uma arte que esteja a serviço de um

impulso de auto-aperfeiçoamento do indivíduo, não apenas no sentido de edificação moral,

mas também de problematização da vida, de crítica da civilização. É notável a influência de

Adorno no pensamento de José Guilherme, pois também o filósofo frankfurtiano considera

que a “cultura só é verdadeira quando implicitamente crítica” (ADORNO, 2002, p. 87).

A partir dessa concepção da cultura como um processo de auto-cultivo que precisa de

um ambiente social propício a essa formação crítica, Merquior afirma categoricamente que a

cultura de massa é uma anti-cultura, produto de uma sociedade de “analfabetos letrados”; isto

é, que conseguem ler, mas são incapazes de entender a fundo o que se lê; portanto, “o kitsch é

a expressão estética da anti-cultura semi-analfabeta e sub-letrada” (Ibidem, p. 59).

Merquior também se posiciona diante da acusação de “elitismo cultural” levantada

pelo sociólogo Talcott Parsons (1902-1979) a intelectuais que vituperam a cultura de massa,

sejam eles de esquerda como Adorno ou conservadores como Ortega y Gasset (1883-1955).

Embora reconheça a pertinência da hipótese de que o viés elitista desses críticos da cultura

refletiria impulsos “teocráticos” ligados à situação sócio-profissional dos intelectuais, José

Guilherme alega que a “anti-Kulturkritik” de certa sociologia “ameaça perder de vista um

problema da mais real contundência: a questão da crise dos valores” (cf. Ibidem, pp. 65-66).

Diante da visão benévola de Parsons quanto à democratização da cultura, Merquior levanta

3 Sobre a visão deste autor sobre o conceito antropológico de cultura, vide: MERQUIOR, José Guilherme. O

Véu e a Máscara: ensaios sobre cultura e ideologia. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: T. A.

Queiroz, 1997, pp. 45-71.

13

dúvidas de que “a própria democracia – paixão da sociologia indiferente à crise dos valores –

tenha condições de sobreviver, a longo prazo, à deterioração da cultura como Paidéia”

(Ibidem, p. 63).

O autor de Formalismo e Tradição Moderna também é duro na sua avaliação dos

intelectuais que buscam legitimar o kitsch, como Abraham Moles (1920-1992) e Edgar Morin

(1921). Tais pensadores louvam o prazer lúdico e hedonista da cultura de massa, a qual estaria

supostamente liberta dos freios morais de épocas anteriores. Merquior alega que tais análises

são marcadas por “um esteticismo inteiramente alheio ao sentido cultural efetivo das grandes

obras artísticas”, portanto “desligado de todas as problemáticas do homem e da sociedade”

(Ibidem, p. 70). Nesse sentido, Moles e Morin não passariam de “intelectuais kitschistas”, isto

é, “que abjuraram a fé nos valores da cultura” e cuja tática “consiste em xingar a alta cultura

de repressiva” (Ibidem, p. 73).

Para além de uma abordagem estética, histórica e cultural, Merquior busca

compreender também o problema ético acarretado pelo kitsch. Para isso recorre a Hermann

Broch (1886-1951), o qual considera que o romantismo representou a constelação cultural que

tornou o kitsch possível, pois nele foi abandonada a tradicional busca da arte por expressar o

infinito através de obras finitas. Em seu lugar, os românticos elevaram o finito à dignidade do

infinito; essa elevação do mundano ao nível do eterno é a substância do kitsch, porque

absolutiza uma idéia finita de beleza, isto é, que visa apenas ao efeito estético imediato. Sendo

assim, para Broch o kitsch não é apenas uma instância inferior de expressão artística legítima,

mas sim um parasítico “sistema de imitação”, um duplo diabólico que pode se disfarçar de

arte genuína (cf. BROCH apud MCBRIDE, 2005, p. 287). O kitsch, portanto, é o mal no

sistema de valores da arte:

A procura do belo pelo belo é uma heresia moderna, nascida da desintegração do

sistema de valores. O esteticismo, como a Realpolitik ou a economia “pura”, foram

inconcebíveis enquanto o Ocidente soube integrar e hierarquizar sua panóplia

axiológica. No esteticismo – na “arte pela arte” – a qualidade ética do agir artístico

se perde. Ora, o esteticismo é a matriz da pseudo-arte do kitsch. “A essência do

kitsch é a confusão da categoria ética com a categoria estética”. O kitsch não aspira

ao bom trabalho, mas sim ao belo trabalho – somente o efeito lhe interessa. O kitsch

busca efeitos medularmente esteticistas, isto é, não simplesmente estéticos, mas

“puramente” estéticos, estéticos enquanto isolados, (...) radicalmente diferente à

inteireza humana do sistema de valores. Logo, ele representa a (pseudo) arte da

cultura sem bússola ética; o kitsch é o mal, na arte. (MERQUIOR, 2015, p. 77;

grifos no original).

14

Podemos, contudo, aproveitar este comentário de Merquior sobre Broch para delinear

uma explicação sociológica sobre a questão de como o esteticismo é uma perigosa linha

tênue, que pode tanto levar a uma arte de vanguarda quanto conduzir a uma produção kitsch.

Embora no trecho acima Merquior evoque de forma sutil a análise de Max Weber dos

processos de racionalização e de desencantamento do mundo, julgo pertinente aprofundar esse

diagnóstico weberiano para melhor compreender a crise da cultura moderna.

4. A linha tênue do esteticismo: o fundamento sociológico da ameaça do

kitsch à arte de vanguarda

José Guilherme Merquior revela certa influência weberiana sobre sua sociologia da

cultura em uma obra anterior, Saudades do Carnaval (1972); embora tal inspiração teórica

não seja tão explícita em Formalismo e Tradição Moderna, é possível evocá-la para melhor

compreender a tese de que o esteticismo pode se tornar formalismo – e, portanto, alienante –

tanto na cultura de massa e na midcult (da qual o kitsch é expressão) quanto na arte de

vanguarda.

Para Max Weber, o aspecto mais característico da cultura moderna é o processo de

racionalização, isto é o processo de difusão, em um âmbito cada vez maior de dimensões da

vida social, da ação racional orientada em relação aos fins, “na qual o fim, os meios e os

resultados do agir são submetidas um cálculo racional” (Idem, 1972, p. 36). Num primeiro

momento há uma crescente diferenciação entre as esferas da vida; em seguida, no interior de

cada uma delas há a constituição da sua lógica intrínseca, de sua legalidade própria. (cf.

COHN, 2003, p. 234). Com isso, abre-se o caminho para a crescente expansão do exercício da

racionalidade instrumental, ou seja, “o comportamento social pragmático, regido por critérios

de eficiência em si mesmos desembaraçados de quaisquer considerações „irracionais‟”

(MERQUIOR, 1972, p. 36).

O desencantamento do mundo decorre da depuração dos significados antes mesclados

e indistintos; em vez de explicações mágicas ou místicas, todos os fenômenos passam a ser

entendidos de forma objetiva, a partir de mecanismos causais e denotações unívocas. (cf.

COHN, 2003, p. 240) Há, contudo, uma conseqüência cultural, pois o mundo se torna mais

calculável e previsível, mas há uma crescente ausência de sentido, isto é, de orientação de

valores e de respostas às questões últimas da vida:

15

É o destino de nosso tempo, com a racionalização que lhe são próprias, e sobretudo

com o desencantamento do mundo, que justamente os valores fundamentais e mais

sublimes tenham se retirado do espaço público, dirigindo-se ou ao reino

trasmundano da vida mística ou à fraternidade de relações imediatas dos indivíduos

entre si (WEBER, 2013a, p. 430).

A racionalização da vida e o desencantamento do mundo, segundo Weber, também

aumentaram a tensão entre as esferas da vida, mas tal antagonismo escapa a uma explicação

racional, levando ao “politeísmo dos valores”. Por exemplo, as fraternidades religiosas se

chocaram com outras ordens e valores do mundo na medida em que estes se tornaram mais

racionalizados e sublimados (cf. Idem, 2013b, p. 515). No caso específico da esfera estética, a

religião, que antes servia como fonte inesgotável de possibilidades de expressão artística e

como estilização por meio do vínculo com a tradição, entrou em desavença com a arte quando

esta proclamou suas leis próprias, isto é, a autonomia do juízo estético teorizada por Kant e

consolidada pela teoria, crítica e prática artística ao longo do século XIX:

...quanto mais a arte se constitui como uma esfera dotada de legalidade intrínseca –

produto da formação dos leigos – tanto mais costuma destacar-se diante das

inteiramente díspares ordens hierárquicas de valores ético-religiosas que são assim

constituídas. (...) A descoberta consciente do especificamente artístico está reservada

à civilização intelectualista (Idem, 2012, pp. 402-403; grifos no original).

Com a racionalização e o intelectualismo, portanto, “a arte se constitui como um

cosmo de valores próprios, autônomos, concebidos de modo cada vez mais consciente” (Idem,

2013b, p. 529). A arte assume, então, a função de uma redenção intramundana em relação ao

cotidiano. Por exemplo, na música (considerada por Weber a mais “interiorizada” das artes)

em sua forma mais pura, a instrumental, nota-se uma tendência em “parecer uma pretensa,

irresponsável forma substituta da vivência religiosa mais primordial” (Ibidem, p. 530). Não é

por acaso que já no Concílio de Trento (1545-1563) se alertava para o potencial de arte de ser

“divinização da criatura”, “poder concorrente e fantasmagoria ilusória” (Ibidem, p. 531).

Em vez do sentido buscado pela religiosidade de salvação, os estetas se ancoram na

forma, adotada de forma cada vez mais exclusiva em relação a outras esferas (cf. Ibidem, p.

529). Dois traços típicos das épocas intelectuais – a rejeição da responsabilidade por um juízo

ético e o medo de parecer apegado à tradição – levaram à transformação de juízos éticos em

formalmente estéticos; por exemplo, em vez de afirmar que algo é “condenável”, considera-se

“de mau gosto”. Sendo assim, o “culto do esteticismo” promove a “inapelabilidade

subjetivista de todo juízo estético acerca das relações humanas” (Idem, 2012, p. 403).

16

Se o esteticismo – e, aliás, a própria noção de estética – nasceu “sob a égide da

racionalização, da tecnicização do fenômeno artístico” (PORTELLA, 1978, p. 32), então a

obsessão de certas vanguardas artísticas em se imunizar às “impurezas” sociais tem suas

raízes sociológicas. Merquior parte da concepção weberiana de desencantamento do mundo

para sustentar que, se por um lado a autonomia da esfera estética em relação à religiosa tenha

sido importante, por outro “o utilitarismo e o materialismo predominantes na sociedade

urbano-industrial vão gerar também, como contrapartida, um desejo de revitalização de visões

de mundo totalizantes de cunho transcendental” (JOBIM, 2015, p. 32). O problema é quando

a resposta à civilização utilitarista e materialista se dá através de uma “sacralização da arte”

estritamente imanente, isto é, que não se nutre nem de uma perspectiva ética, nem de uma

postura problematizadora. Em outras palavras, a sofisticação estilística da arte contemporânea

é estéril se vier desacompanhada da denúncia e crítica da cultura alienada.

É por isso que o ensaio de Merquior sobre o kitsch aponta para o risco de a arte de

vanguarda, por seu esteticismo radical (isto é, um compromisso dogmático com a “arte pela

arte”), expor-se “radicalmente ao perigo da kitschização” (MERQUIOR, 2015, p. 91). Esse

paradoxo se deve ao fato de que o kitsch é um fenômeno de tal complexidade que vai além da

órbita da cultura de massa e da midcult:

Ao emigrar para as altas esferas da cultura sofisticada, o kitsch – demônio ubíquo e

proteiforme – é capaz de vestir o traje despistador do esteticismo mais intransigente,

é capaz de fazer-se ultra-sofisticado. A kitschização mina, assim, por dentro, os

aristocráticos valores da alta cultura (Ibidem, p. 77; grifos no original).

A arte de vanguarda viveria, então, uma vida dupla na sociedade de massa, pois ao

mesmo tempo em que se opõe à massificação da cultura, sua postura esteticista pode minar

seu potencial de crítica dos valores, podendo até mesmo levá-la à mesma irrelevância cultural:

Por um lado, (...) a vanguarda é plena combatividade, firme oposição ao kitsch e

seus clichês; por outro lado, o seu esteticismo degenera com freqüência em soluções

digestivas, dominadas pelos amenos valores do bonito e do sentimental. Infensa,

mas não imune ao kitsch, a vanguarda vive perpetuamente o risco de cindir-se; vive

o risco de cair numa existência ocultamente esquizofrênica. Pois a vanguarda sofre

de dupla personalidade. O inevitável esteticismo com que, devotando-se unicamente

à verdade da arte, ela tenta salvar-se da distorção geral dos valores e ideais, é aquilo

mesmo que prepara a cama da kitschização. A certa altura, vanguarda e kitsch,

criados no mesmo habitat – a crise dos valores na sociedade alienada – se

reconhecem como irmãos inimigos (Ibidem, pp. 81-82; grifos meus).

Em seu artigo Vanguarda, neovanguarda, antivanguarda: reabrindo o debate (1974),

publicado na época do lançamento de Formalismo e Tradição Moderna, Merquior alega que a

17

aproximação de certas vanguardas da midcult e da cultura de massa é estimulada por críticos

como Umberto Eco (1932-2016), cuja obra Apocalípticos e Integrados (1964) é contestada no

trecho a seguir:

Em seu namoro com os mass media, muitas neovanguardas desenvolvem uma

espúria complacência para com o kitsch (enquanto isso, o kitsch, via midcult, se

apropria de vários processos vanguardistas). Na prática, esse comportamento é

estimulado pela imprudente eqüidistância daqueles que, como Eco, condenam tanto

os “integrados” (manipuladores conformista dos media) quanto os “apocalípticos”

(que recusam, em nome de um “anacrônico” aristocratismo cultural, todo contato

com a cultura de massa e seus veículos. A intenção é boa, mas o resultado, péssimo

– sugere uma grotesca equivalência entre a alienação e seu antídoto. (Idem, 1975, p.

20)

O autor, contudo, ressalva que esteticismo é diferente de formalismo; isto é, a

consciência das técnicas lingüístico-poéticas não necessariamente leva a uma defesa sectária e

alienada da autonomia estética. Sendo assim, o salto de uma postura à outra ocorre quando há,

em certas expressões artísticas, a ausência de inquietação, de angústia e de capacidade crítica

diante da cultura moderna. Nas palavras do próprio José Guilherme: “A crítica da cultura é a

metamorfose que salva o esteticismo da kitschização” (Idem, 2015, p. 80; grifos no original).

Eduardo Portella faz distinção semelhante à de Merquior ao separar vanguarda,

enquanto produção artística de potencial crítico, que visa à “humanização do homem” e se

alça como “ponto sobre o abismo [entre] arte e sociedade”, de vanguardismo, o qual seria

uma “corruptela, extensão equívoca ou mímica enganadora”, na medida em que se subordina

a uma “estética esteticista”, tão ideológica e a serviço do poder quanto a cultura de massa que

julga abominar (PORTELLA, 1978, pp. 12; 17; 65).

Theodor Adorno é uma das influências teóricas de Merquior para fundamentar essa

constatação do risco de o esteticismo degenerar em formalismo ou mesmo em kitsch. Em sua

Teoria Estética (1970), Adorno afirma que a beleza é impotente para definir a si mesma, só

adquirindo sua definição na alteridade. A partir disso, contrapõe, de um lado, a idéia do belo

que extrai a sua antítese do conteúdo, como na imagerie de Paris em Baudelaire (aliás, um

representante da tradição moderna, segundo Merquior); e, de outro, uma postulação da

“autarquia” do belo, que parte de uma antítese imediata em relação a uma sociedade rejeitada

como feia, tendo como expoentes os neo-românticos e simbolistas. O problema é que tomar a

forma puramente como forma torna essa beleza rapidamente consumível:

A sua forma latente de mercadoria condenou intra-esteticamente as obras de 1'art

pour l‟art ao kitsch, de que hoje se ri. (...) Eis porque, também no plano social, a

18

situação da arte é hoje aporética. Se diminui a sua autonomia, entrega-se ao

mecanismo da sociedade existente; se permanece estritamente para si, nem por isso

deixa de se integrar como campo inocente entre outros (ADORNO, 1991, p. 266).

Adorno também considera que o kitsch não é um simples dejeto da arte, uma pilhagem

sentimental, pois “está misturado em toda arte como veneno; separar-se dele constitui hoje

uma das suas tentativas mais desesperadas” (MERQUIOR, 2015, p. 268). A crítica de arte

precisa ser também Kulturkritik, pois se permanecer ensimesmada em “uma contemplação

auto-suficiente” será incapaz de “enfrentar a reificação absoluta” (ADORNO, 2002, pp. 110-

111). Cabe à crítica manter o conceito de cultura, mas demolir “as suas manifestações

contemporâneas como meras mercadorias e meios de emburrecimento” (Ibidem, p. 98).

José Guilherme acredita que, diante da vulnerabilidade da arte moderna frente ao

kitsch, o que é um sintoma da crise da cultura, a produção estética que se quer autêntica

precisa necessariamente partir de um aristocratismo intelectual: “A raiz do que há de

intrinsecamente aristocrático na tradição moderna é o compromisso da arte com a crítica da

cultura” (MERQUIOR, 2015, p. 95; grifos no original). O autor não teme adotar essa postura

aristocrática (ou “apocalíptica”, diria Eco), pois se ancora em um conceito crítico-educativo

de cultura e considera que não se pode falar em “democratização da cultura” quando isso

significa estar do lado dos “„democráticos‟ justificadores dos media com eles são (e dos

gêneros imbecilizantes que eles impuseram)” (Idem, 1975, p. 20).

Desta maneira, a resposta para a crise da cultura, no âmbito da teoria, crítica e prática

artísticas, é retomar o vínculo entre arte e pensamento, entre forma e cultura, sempre

considerando a dimensão desta última como auto-cultivo:

A vocação aristocrática da arte moderna radica na cumplicidade da infra-estrutura

cultural com a dissolução da cultura como resíduo de paideias clássico-cristão-

humanísticas. Em última análise, inimiga do kitsch, só é “aristocrática” e “elitista”

porque aposta na dignidade da cultura como impulso perfectivo do homem, como

formação livre e desalienante da personalidade. Em seu papel de contra-ideologia, a

arte moderna sempre esteve pronta a fustigar os humanismos de fachada (...), mas

nunca esteve disposta a renunciar ao humanismo como crítica da civilização (Idem,

2015, pp. 96-97; grifos no original).

Merquior conclui suas considerações sobre o kitsch afirmando que, “ao repelir a

reação controlada e o aspecto „digestivo‟ do kitsch, a arte moderna anima, por sua vez, o

exercício do verdadeiro juízo estético” (Ibidem, p. 98; grifos no original). Em outras palavras,

cabe à produção artística (e também à teoria e à crítica que a interpretam) que se pretende de

vanguarda reforçar a autonomia do senso estético – não em sua versão degenerada, seja como

19

solipsismo formalista ou como condescendência com a cultura de massa, e sim buscando a

consciência crítica e a pretensão à universalidade.

5. O potencial da pop art como crítica da cultura

Embora a tradição moderna (isto é, a arte pós-romântica de Baudelaire, Flaubert, Kafka

etc.) seja um exemplo de resposta estética para os impasses da cultura moderna, na parte final

de Formalismo e Tradição Moderna José Guilherme Merquior analisa três tendências da arte

contemporânea que são “inexplicáveis do ângulo formalista” (Ibidem, p. 40). Embora as

considerações sobre o hiper-realismo e o teatro de Artaud (1896-1948) e Grotowski (1933-

1999) sejam interessantes, prefiro me concentrar na análise de Merquior sobre a pop art.

Para o autor, o pop oferece um contraste ao estilo hegemônico anterior, o

abstracionismo (ou “expressionismo abstrato”), no sentido de que rompe com o “estéril

narcisismo da pintura informal, pintura altamente formalista” (Ibidem, p. 401). Em seu lugar

há uma abertura para a cena contemporânea, isto é, “os cartazes publicitários, as ilustrações de

jornais, os móveis modernos, a moda, os produtos alimentícios, as fotos de vedetes, o desenho

animado, a história em quadrinhos...” (Ibidem, p. 404).

A principal temática da arte pop é a sociedade de consumo, mas também são

incorporados as técnicas e materiais da mesma. (cf. Ibidem, 405) A potência dessa tendência

artística, segundo José Guilherme, consiste em “sua capacidade afetiva de desnudar o

problema do „artístico‟ no apogeu da cultura racionalizada”. (Ibidem, p. 407) Há uma

instigante combinação “do folclore moderno, da obra dessacralizada, e de uma conotação

crítica silenciosa, astutamente sugeria, mas sem expressão explícita”. (Ibidem, p. 410) O pop

focaliza em perspectiva crítica, por meio de imagens reprodutíveis, os “mitos e instrumentos

que melhor caracterizam a vida cotidiana na sociedade de massa” (Idem, 1975, p. 22)

O autor elenca quatro características do pop: 1) o resgate da figuração em meio ao

eclipse da obra de arte em sentido tradicional; 2) a “concentração na aparência direta da

sociedade de consumo”, através dos meios de comunicação de massa, “em estreita vinculação

com a metamorfose imposta às formas de cobertura ideológica do establishment sociocultural,

na medida em que ideologia, hoje, é a própria sociedade como fenômeno” 4; 3) a simbolização

4 Eis mais um aspecto em que Merquior é influenciado por Adorno. Compare-se esta concepção da ideologia da

sociedade de massa com o seguinte trecho do ensaio do frankfurtiano intitulado Crítica cultural e sociedade:

“Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas somente propaganda a favor do mundo,

20

por metonímia em vez de metáfora (ao contrário dos surrealistas); 4) o “realismo espectral,

em contraste com o estilo alegórico da tradição da grande arte no período pós-romântico”.

(Idem, 2015, pp. 418-419).

Há diferenças entre as duas principais escolas nacionais do pop: enquanto a vertente

britânica ainda se localizava “entre a retórica do surrealismo ou dos expressionismos e o

humanismo protopop”, o pop americano é a “corrente mais viva da arte contemporânea”,

apresentando-se como um “ponto de encontro modelar entre arte culta e comunicação de

massa”. (Ibidem, p. 411). Os principais expoentes da pop art nos Estados Unidos conhecem

bem as técnicas, táticas e mitos dos meios de comunicação de massa, mas “não

necessariamente em busca de uma mensagem „popular‟ ou conformista‟”, e sim tentando

“exercer uma distância crítica no seio do próprio contato com os instrumentos de alienação”

(Ibidem, pp. 411-412; grifos no original).

Merquior, contudo, não deixa de fazer uma crítica a Andy Warhol (1938-1987), talvez o

mais famoso artista ligado ao pop. Embora reconheça nele um dos grandes expoentes da dessa

tendência estilística, José Guilherme o acusa de ter “derrapado muitas vezes no esteticismo e

na representação acrítica, na confirmação reificante da cena moderna” (Ibidem, p. 412). Se

por um lado Warhol foi um “lançador talentoso de vários processos técnicos do estilo”, por

outro “se afirmou como arauto da alienação pop” (Ibidem, p. 412).

Derrapagens à arte, ainda é possível distinguir a pop art que decaiu em um “esteticismo

de masscult” (Ibidem, p. 422; grifos no original) – e, portanto, pode ser enquadrada no

fenômeno do kitsch – daquela que persiste como uma “aplicação corrosiva da obra de arte

dessacralizada ao fetichismo da imagística comercial” (Ibidem, p. 415). Mais do que isso, o

pop legítimo oferece uma “interpretação crítica do presente” e “um recarregamento semântico

da arte contemporânea” (Idem, 1975, p. 22). A pop art tem desdobramentos até na cultura

brasileira: o tropicalismo, que tem dentre seus expoentes o teatro de José Celso (1937) e pelo

cinema de Joaquim Pedro de Andrada (1932-1988), os quais “souberam pescar de modo tão

sutil quanto estridente certos braços dessa cultura bastarda: o mau gosto, o sadomasoquismo,

a devoração „antropofágica‟ de padrões espirituais e humanos etc.” (Idem, 2015, p. 417).

mediante sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas que pede o silêncio”

(ADORNO, 2002, pp. 109-110).

21

José Guilherme também argumenta que o pop, na medida em que contribui para crítica

da cultura, ainda consegue a proeza de estimular a juventude para a problematização do

comportamento social:

A falência da educação “humanística”, incapaz de transmitir regularmente normas

de conduta genuinamente aristocratizantes, individualizantes (...) conspira para

lançar a juventude num vazio cultural lamentável, onde quase nada contrabalança a

atração daninha dos media imbecilizadores. Totalmente divorciada de uma “cultura”

– o humanismo colegial e universitário – cujo odor fóssil logo os induz a suspeitar

de sua incompatibilidade com os valores efetivamente reinantes, a grande maioria

dos jovens só se sente à vontade no meio do folk popular, permanecendo surdos aos

apelos da arte “culta”. É fácil ver quanto o pop, que fala a língua deles, se habilita

para levar-lhes uma mensagem intelectualmente superior (Ibidem, p. 417).

Por fim, a pop art pode ser vista como o fim do “retiro metalingüístico” da arte

moderna, pois renovou o papel da imagem depois do “jejum figurativo” das vanguardas

abstracionistas e se mostrou uma alternativa menos subjetivista e com maior poder de

denúncia e crítica cultural do que a maioria das tendências artísticas contemporâneas, como a

arte conceitual e os happenings. (cf. Ibidem, p. 419)

6. Considerações Finais

O diagnóstico de Merquior sobre o problema da arte na cultura moderna consiste na

persistência de resíduos formalistas herdados do romantismo; eles assimilados criativamente

pela tradição moderna (i.e., a arte da sociedade urbano-industrial), mas novamente emergiram

a partir do fim do século XIX, na medida em que a teoria e a crítica abandonaram uma

perspectiva sócio-historicamente informada dos problemas estéticos em prol de análises

puramente textualistas e lingüísticas, e em que a produção artística se alienou dos problemas

culturais e se ensimesmou em experimentos formais estéreis.

O autor enfatizou algumas conseqüências dessa crise a partir do fenômeno do kitsch,

isto é, a “busca por uma beleza autotélica esteticista e desprovida de verdade” (RIOS, 2015, p.

463). A partir das facetas estética, histórica, cultural, ética e sociológica do problema do

kitsch, foi possível observar: 1) o seu caráter esteticamente inautêntico e “culinário”, na

medida em que a aparência sofisticada esconde um conteúdo comprometido com os interesses

do consumo de massa; 2) os seus primórdios com a tentativa da burguesia ascendente de

emular a nobreza, mas desprovida do ideal aristocrático de cultura da mesma; 3) o seu viés

anti-cultural, no sentido de não exigir e até mesmo desprezar uma formação da percepção

22

estética e da capacidade crítica do indivíduo; 4) a sua evocação de uma idéia finita e

rebaixada de beleza, sendo, portanto, uma força maligna no âmbito da arte; 5) e, por fim, sua

relação com os fenômenos da racionalização e do desencantamento do mundo, que

instauraram uma crescente autonomia formal da esfera estética, de tal forma que o impulso

esteticista se degradou em um apego purista aos efeitos e aparências, sem preocupação com o

teor formativo e problematizador das obras de arte em relação ao seu contexto cultural.

Dentre as possibilidades de superação dessa crise, Merquior elencou, além de artistas

pós-românticos como Baudelaire, Wagner e Proust, o caso da arte pop, que utiliza técnicas e

materiais da própria cultura de massa para denunciar seu caráter alienante.

É possível encarar Formalismo e Tradição Moderna como a última obra da primeira

fase de Merquior. Em seus ensaios é possível notar o sutil deslocamento dos interesses do

autor: da crítica literária e da estética, predominantes desde Razão do Poema (1965), para a

sociologia da cultura e da política, que orientam a maior parte de seus ensaios dos anos 1980,

como A Natureza do Processo (1982) e O Marxismo Ocidental (1986).

Embora o tema da crise da cultura moderna também atravesse sua produção tardia, a

constelação de influências teóricas é um pouco diferente; eis três exemplos: o aristocratismo

cultural de Adorno dá lugar a uma crítica às pretensões gnósticas da classe intelectual baseada

em Ernest Gellner (1925-1995); a oposição entre formalismo e modernidade estética é

mitigada, e Merquior adota um tom mais cético em relação às vanguardas em As Idéias e as

Formas (1981); em Rousseau e Weber (1980), o autor afirma que há um exagero temático da

racionalização em Weber, pois esta muitas vezes emerge como uma filosofia da história.

De toda forma, permaneceu na fase tardia um “espírito iluminista” que já existia nesse

primeiro período; Merquior, acima de tudo, preocupava-se em “devolver à arte seu estatuto de

experiência com potência cognitiva” (RIOS, 2015, p. 475).

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1991.

____________________ Indústria cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge de

Almeida. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São

Paulo: Perspectiva, 1972.

23

COHN, Gabriel. Crítica e Resignação: Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins

Fontes, 2003.

JOBIM, José Luís. Relendo José Guilherme Merquior: 40 anos de “Formalismo e Tradição

Moderna”. In: MERQUIOR, José Guilherme. Formalismo e Tradição Moderna: o

problema da arte na crise da cultura. São Paulo: É Realizações, 2015.

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