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Arlete Maria Francisco Doutora em Arquitetura Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente, Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita filho” – Unesp [email protected] Os Desafios do Planejamento Urbano em Áreas de Fundo de Vale Consolidadas: o Caso da Microbacia do Córrego do Veado em Presidente Prudente,SP Resumo Este trabalho tem o objetivo de descrever a situação das Áreas de Preservação Permanente da microbacia do Córrego do Veado em Presidente Prudente, SP, os quais foram os primeiros cursos d´água a serem confrontados com a expansão urbana, no período anterior à vigência do Código Florestal, de 1965, quando as nascentes e os corpos d´água passam a ser legalmente protegidos e discutir os possíveis tratamentos destas áreas, hoje consolidadas. Primeiramente, é abordada a relação entre as águas e o processo de ocupação e expansão da cidade, no período de 1919 a 1965, verificando o modo como vão sendo tratadas as águas e os fundos de vale os quais surgem pelo caminho; num segundo momento, mostra as ações do poder público na reurbanização dos córregos e a atual situação destas áreas, e, por ultimo, discute-se os desafios do planejamento urbano para estas áreas consolidadas. Compreender como os cursos d´água e os fundos de vale foram tratados no inicio da urbanização da cidade é importante para a discussão da superação do modelo de uso e ocupação que ainda aparece arraigado tanto na opinião da administração pública quando da sociedade, de modo geral. Palavras-chave: Planejamento urbano. Fundos de Vales. Área de Preservação Permanente. Presidente Prudente,SP. Abstract This paper describes the situation of Permanent Preservation Areas of the Córrego do Veado watershed, in Presidente Prudente, SP, which were the first waterways to be faced with urban sprawl, in the previous period the duration of the Forest Code of 1965, when the springs and water bodies are now legally protected and discuss possible treatments of these areas, now consolidated. First, we discuss the relationship between water and the process of occupation and expansion of the city, in the period 1919 to 1965, checking how the waters are being treated and the valley bottoms which appear in the road, a second time shows the actions of public authorities in the redevelopment of the streams and the atual situation of that areas, and finally, discusses the challenges of urban planning areas for these statements. Understanding how the watercourses and valley bottoms were treated at the beginning of the urbanization of the city is important to discuss the replacement of the model for use and occupation that still appears so rooted in the view of government as society in general. Key-Words: Urban Planning. Valley Bottoms. Permanent Preservation Área. Presidente Prudente, SP.

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  • Arlete Maria Francisco Doutora em Arquitetura

    Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente, Faculdade de Cincias e Tecnologia de Presidente Prudente, Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita filho Unesp

    [email protected]

    Os Desafios do Planejamento Urbano em reas de Fundo de Vale

    Consolidadas: o Caso da Microbacia do Crrego do Veado em Presidente Prudente,SP

    Resumo Este trabalho tem o objetivo de descrever a situao das reas de Preservao Permanente da microbacia do Crrego do Veado em Presidente Prudente, SP, os quais foram os primeiros cursos dgua a serem confrontados com a expanso urbana, no perodo anterior vigncia do Cdigo Florestal, de 1965, quando as nascentes e os corpos dgua passam a ser legalmente protegidos e discutir os possveis tratamentos destas reas, hoje consolidadas. Primeiramente, abordada a relao entre as guas e o processo de ocupao e expanso da cidade, no perodo de 1919 a 1965, verificando o modo como vo sendo tratadas as guas e os fundos de vale os quais surgem pelo caminho; num segundo momento, mostra as aes do poder pblico na reurbanizao dos crregos e a atual situao destas reas, e, por ultimo, discute-se os desafios do planejamento urbano para estas reas consolidadas. Compreender como os cursos dgua e os fundos de vale foram tratados no inicio da urbanizao da cidade importante para a discusso da superao do modelo de uso e ocupao que ainda aparece arraigado tanto na opinio da administrao pblica quando da sociedade, de modo geral. Palavras-chave: Planejamento urbano. Fundos de Vales. rea de Preservao Permanente. Presidente Prudente,SP. Abstract This paper describes the situation of Permanent Preservation Areas of the Crrego do Veado watershed, in Presidente Prudente, SP, which were the first waterways to be faced with urban sprawl, in the previous period the duration of the Forest Code of 1965, when the springs and water bodies are now legally protected and discuss possible treatments of these areas, now consolidated. First, we discuss the relationship between water and the process of occupation and expansion of the city, in the period 1919 to 1965, checking how the waters are being treated and the valley bottoms which appear in the road, a second time shows the actions of public authorities in the redevelopment of the streams and the atual situation of that areas, and finally, discusses the challenges of urban planning areas for these statements. Understanding how the watercourses and valley bottoms were treated at the beginning of the urbanization of the city is important to discuss the replacement of the model for use and occupation that still appears so rooted in the view of government as society in general. Key-Words: Urban Planning. Valley Bottoms. Permanent Preservation rea. Presidente Prudente, SP.

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    Introduo Na histria das cidades brasileiras, at meados do sculo XX, foi possvel verificar uma relao mais harmoniosa entre os rios e a cidade, embora raramente fossem considerados como elementos estruturadores do desenho urbano. A partir da intensificao do processo de urbanizao, rios e crregos foram, paulatinamente, retificados, canalizados e ocultados da paisagem citadina e, por vezes, das plantas oficiais, sendo lembrados apenas em dias de chuvas torrenciais, no momento em que se pode ouvir o seu rudo e perceber o poder das suas guas jusante. Habitaes e indstrias ocuparam de modo irregular as suas vrzeas, tendo o curso dgua como fundo de lote, espao escondido para onde no se volta o olhar. Alm de serem vistos como entraves ao desenvolvimento urbano e barreiras geogrficas a serem transpostas, os rios passaram a ser utilizados como receptculo de boa parte daquilo que a sociedade descarta, sendo, portanto, negados e tornados simples elementos do sistema de drenagem urbana. Deste modo, de potenciais marcos paisagsticos passaram a se constituir em reas de conflito. Estas prticas resultaram na destruio das reas de Preservao Permanentes (APP), contribuindo para a degradao ambiental e, conseqentemente, trazendo riscos para a vida humana, na medida em que causam: enchentes peridicas, ilhas de calor, inverso trmica e contaminao da rede hdrica, sobretudo pelo esgoto domstico. Alm disso, obstruram o acesso pblico s orlas e seu aproveitamento como espaos livres urbanos. Portanto, o modelo de produo e apropriao das reas de fundo de vales fundamentado em relaes conflituosas entre o homem e a natureza e no desprezo s caractersticas especficas do stio urbano. Isso pode ser observado tanto nas cidades grandes, com maiores impactos, mas, tambm, em cidades mdias e at pequenas. A superao deste modelo se coloca como um desafio ao planejamento urbano, talvez com boa perspectiva de sucesso em cidades mdias, como Presidente Prudente, SP, onde tais reas no esto totalmente ocupadas. O presente trabalho tem como objetivo descrever a situao das reas de preservao permanente da microbacia do Crrego do Veado composto por este, da cabeceira at a sua confluncia com o Crrego da Colnia Mineira e pelos crregos gua Bscoli e do Bacarin (Mapa 01) , os quais foram os primeiros cursos dgua a serem confrontados com a expanso urbana, no perodo anterior vigncia do Cdigo Florestal, de 1965, quando as nascentes e os corpos dgua passam a ser legalmente protegidos e discutir os possveis tratamentos destas reas, hoje consolidadas. Duarte (2006) chama a ateno para o fato de que o resgate histrico nos permite compreender como uma postura urbanstica determina o modo como um elemento territorial participa ou no daquilo que se constitui como o destino urbano da cidade. Assim, compreender como os cursos dgua e os fundos de vale foram tratados no inicio da urbanizao de Presidente Prudente e verificar as condies em que se encontram mister para a discusso da superao do modelo de uso e ocupao dos fundos de vale que ainda aparece arraigado tanto na opinio da administrao pblica quando da sociedade, de modo geral. As recentes obras de urbanizao de

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    crregos, que se resumem na canalizao do curso dgua e plantio de grama, atestam este fato. Este trabalho traz os primeiros resultados da pesquisa intitulada: Anlise do desenho urbano das reas de fundo de vale em Presidente Prudente-SP: estudo de caso da Microbacia do Crrego do Veado, desenvolvida no Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente, da Unesp, Presidente Prudente.

    Mapa 01. Presidente Prudente. Malha urbana e rede hidrogrfica. Fonte: PMPP. Modificado por

    Gabriel Vieira Dyonisio.

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    A cidade e suas guas: expanso urbana 1919-1965 Presidente Prudente est localizada no sudoeste do Estado de So Paulo, numa rea denominada Alta Sorocabana, a 558 Km da capital. Considerada de porte mdio, conta hoje com 207,6 mil habitantes e sede da 10a Regio Administrativa do Estado. Fundada em 1921, a cidade teve inicio a partir de dois ncleos urbanos que se formaram ao redor da Estao de Trem Presidente Prudente da linha frrea Alta Sorocabana que passa ao longo do espigo formado pelos rios do Peixe e Paranapanema: um a oeste da estao a Vila Goulart (desenhada em 1919) e outro a leste a Vila Marcondes (Mapa 02). A ocupao e expanso inicial decorreram desta bipolaridade, com maior desenvolvimento voltado para a poro oeste que, alm da topografia ser mais favorvel, encontrava-se defronte estao ABREU (1972). A expanso do ncleo original teve como orientao: o espigo da ferrovia, na medida em que o transporte ferrovirio era o principal meio de circulao de pessoas e de mercadorias; bem como as reas compreendidas pelos interflvios entre os Crregos Bacarin e gua Bscoli e entre este e o Crrego do Veado, isto , as reas mais elevadas da cidade (Mapa 02).

    Figuras 01. Planta dos loteamento do Jardim Paulista, 1962. O crrego como fundo de lote. Fonte:

    PMPP.

    Contudo, os loteamentos reproduziram o modelo da grelha ortogonal do quadriltero original, desconsiderando a topografia e os crregos enquanto elementos estruturadores da paisagem citadina e integrados ao desenho da cidade, potencializando o seu carter de contemplao e rea livre. Os lotes deram costas aos crregos, negando-os, como podemos observar no exemplo dos projeto do loteamento do Jardim Paulista (Fig. 01). Neste perodo de expanso territorial, podemos observar que os novos loteamentos surgiram contguos malha urbana, determinados, de acordo com Sposito (1983), pelo nvel de consumo dos lotes pela populao.

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    Mapa 02. Crescimento urbano de Presidente Prudente. 1919 a 1967. Fonte: BARON (2011, p. 48),

    modificado pela autora.

    A desconsiderao dos crregos como importantes recursos naturais e elementos paisagsticos resultou na desarticulao do espao urbano, tendo aqueles como barreiras fsicas, foco de mosquitos e lugar insalubre, dada a precariedade do saneamento bsico, na poca. Alm disso, dificultou a preservao das reas de fundo de vale, imprescindveis qualidade do meio ambiente urbano. A reurbanizao dos Crregos do Veado, Bacarin e gua Boscoli Aps 1964, com o golpe militar, a poltica urbana contou com a participao mais incisiva e centralizada do Estado, visando responder s necessidades de

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    desenvolvimento do capitalismo na sua etapa monopolista que exigiu a utilizao de investimentos macios em infraestrutura necessria para dar fluidez ao capital HORA (1994). Assim,

    no mbito dos novos rumos assumidos pela poltica urbana federal, aliados s mudanas no cenrio poltico local, que ocorreram as maiores transformaes urbanas em Presidente Prudente, trazendo novas condies para a comercializao da mercadoria solo. E, neste sentido, a dcada de 1970 foi marcada por uma nova fase no processo de expanso/(re)estruturao urbana, sendo que as transformaes territoriais traziam em seu bojo mecanismos de sustentao e incentivo reproduo do capital. HORA (1994, p. 15).

    neste contexto que se deu a reurbanizao dos crregos do Veado, do Bacarin e gua Bscoli, com recursos provenientes do programa do governo federal denominado Comunidade Urbana para Recuperao Acelerada (CURA1) e, no caso do Crrego do Veado, tambm do Fundo de Desenvolvimento Urbano (FDU) SILVA (1994, p. 50). O programa CURA era destinado a cidades com mais de 50 mil habitantes, na poca consideradas de porte mdio, como era o caso de Presidente Prudente, contemplada por trs vezes: CURA I e CURA II, implantados no perodo entre 19767 e 1982 com obras destinadas poro oeste da cidade e CURA III, implantado entre os anos 1985 e 1987, com recursos alocados na zona leste HORA (2001, p. 140). Em 1973 foi aprovado o primeiro Plano Diretor do Municpio (Lei n. 1.582/73) baseado no projeto de plano elaborado pela equipe do Centro de Pesquisas e Estudos Urbansticos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo (CEPEU/USP). O relatrio entregue em 1969 apontava a necessidade de melhoria do sistema virio e a superao dos obstculos expanso urbana para que a cidade pudesse progredir como era o caso do Crrego do Veado que se constitua como barreira fsica, que dificultava o acesso aos bairros do entorno, e como obstculo ao crescimento da cidade para sudoeste. O progresso de Presidente Prudente foi o principal apelo do discurso que deu sustentao implantao da reurbanizao dos crregos urbanos, de acordo com os veculos de comunicao da poca HORA (1994). A reurbanizao do Parque do Povo, hoje a principal rea verde e de lazer da cidade, foi a obra de maior repercusso do Programa CURA I e a mais expressiva na (re)estruturao do espao urbano da cidade, segundo HORA (1997); SILVA (1994) e IKUTA (2003). No curso superior do Crrego do Veado, foram realizadas canalizao aterrada e arborizao; no trecho entre as Avenidas Coronel Jos Soares Marcondes e Manoel Goulart, a retificao e a canalizao aberta do curso dgua IKUTA (2003, p. 94). Posteriormente, em 1995, aps algumas enchentes que destruram o parque, este trecho tambm foi aterrado.

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    Figura 02. Recorte da imagem area de Presidente Prudente. Em destaque a rea de Preservao

    Permanente do Crrego do Veado. Fonte: Google Earth, 2010, modificado pela autora.

    Fotos 01, 02 e 03. rea de lazer do Parque do Povo. Arquivo da autora.

    Na rea do parque, a faixa considerada hoje como APP est, em boa parte, preservada, conforme podemos observar na figura 02. O trecho 1 o mais arborizado, enquanto no trecho 2, a vegetao bastante esparsa, pois onde foram construdos vrios equipamentos e servios, tais como: o Centro Olmpico Paulo Salim Maluf, com piscinas, tanque de saltos, campo de futebol, quadras poliesportivas e servios de apoio; conjunto esportivo, contendo um campo de futebol e trs quadras poliesportivas; lanchonetes; vestirios; caladas; pista de ciclismo; pista de skate; 4 playgronds; rea para espetculos circenses; bancos e iluminao HORA (1997, anexo 12) (Fotos 01, 02 e 03). No trecho 3, at a sua confluncia com o Crrego da Colnia Mineira, a canalizao encontra-se aberta e ainda h resqucios de mata ciliar na faixa da APP, o que a transforma em uma barreira fsica e visual. A reurbanizao do Crrego gua Bscoli consistiu na canalizao fechada do crrego e implantao, na quadra da Avenida Cel. Marcondes, do Parque de Uso Mltiplo (PUM), com duas quadras poliesportivas cobertas, teatro de arena e playground. Boa parte do crrego encontra-se sob as residncias e s possvel perceber a sua presena pelo som que emana dos bueiros (Fig. 03). Na rea residual (rea livre), foi implantado, em 1998, o Mercado Modelo de Presidente Prudente (mercado publico) e, em 2008, uma praa que se resumiu na paginao de piso, na instalao de uma Academia da Terceira Idade (ATI) e na colocao de alguns mobilirios, porm de maneira aleatria (Fotos 04, 05 e 06). No foi plantada vegetao, justamente, na rea que deveria ser preservada e um trecho considervel recebeu pavimentao asfltica para servir como estacionamento do mercado modelo.

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    Figura 03. Recorte da imagem area de Presidente Prudente. Em destaque a rea de Preservao

    Permanente do Crrego gua Bscoli. Fonte: Google Earth, 2010, modificado pela autora.

    Fotos 04, 05 e 06. Mercado Modelo; estacionamento e rea de lazer do Crrego gua Bscoli,

    respectivamente. Arquivo da autora.

    O Crrego Bacarin foi canalizado, tambm com recursos do CURA I, da APEA at a Rua Alfndega e, nas proximidades do Tnis Clube (na confluncia do Crrego do Bacarin com o crrego do Veado), foram construdas galerias de guas pluviais, pois este trecho da cidade era bastante vulnervel a inundaes e ao assoreamento decorrente de eroses provocadas por chuvas torrenciais que atingiam a cidade no vero. Havia uma presso exercida pela alta sociedade prudentina, associada ao clube, por medidas urbansticas que pudessem sanar os problemas enfrentados, desde 1949, quando as chuvas de dezembro destruram todas as instalaes do clube antes mesmo de serem inauguradas. O Crrego do Bacarin

    [...] Era uma via natural de capitao de guas pluviais. Com o crescimento da cidade, passou a captar o esgoto. Em noites de vero, moradores mais prximos baixada e freqentadores do Tnis Clube eram incomodados pelos miasmas emanados de material orgnico putrefato. Somente as chuvas mais fortes traziam algum alvio, mas de outro lado provocavam estragos e prejuzos. Reivindicao antiga a canalizao do crrego. Eram duas as obras bsicas que as diretorias viviam solicitando dos prefeitos: asfalto at o Tnis e a galeria para canalizar o Crrego Bacarin. MELO (1999, p. 73-4).

    Na dcada de 1990, foi implantada uma rea de lazer em um trecho da poro residual (rea livre) (Fotos 08 e 09), impermeabilizando boa parte do solo. Porm,

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    no foi considerada a presena do crrego, nem tampouco a possibilidade de integrao desta reas com o entorno. No trecho no contemplado pela rea de lazer (foto 07) onde o solo se torna permevel, embora a vegetao seja bastante escassa.

    Figura 04. Recorte da imagem area de Presidente Prudente. Em destaque a rea de Preservao

    Permanente do Crrego Bacarin. Fonte: Google Earth, 2010, modificado pela autora.

    Fotos 07, 08 e 09. rea residual e rea de lazer do Crrego do Bacarin. Arquivo da autora.

    Os desafios do planejamento urbano em reas de fundo de vale consolidadas O processo de crescimento de Presidente Prudente criou um padro de ocupao do solo que impossibilitou a preservao das reas adjacentes aos crregos, sobretudo anteriormente a 1965, ano em que passa a vigorar o Cdigo florestal, que estabelece as normas de preservao destas reas.

    Vimos que tal ocupao aconteceu de modo a negar os crregos da microbacia do Crrego do Veado e quando da oportunidade de reurbaniz-los, na dcada de 1970, a soluo encontrada foi a canalizao com calhas de concreto e o aterramento, fazendo com que desaparecessem dos mapas da cidade. Somente foi possvel identifica-los a partir das plantas dos loteamentos que trazem a posio do crrego e das informaes contidas nos relatrios do Programa CURA. Vrios trechos encontram-se sob as edificaes e alguns se transformaram em espaos residuais, ladeados pelos altos muros dos fundos das residncias, como podemos observar nos casos do Crrego gua Bscoli (Foto 06) e do Crrego do Bacarin (Foto 07). A reurbanizao dos fundos de vale foi concebida como respostas tcnicas, ora para atender a necessidades de expanso urbana, ora como resposta s presses polticas e imobilirias e no como resultado de um planejamento fsico e territorial urbano de mbito global.Ikuta (2003) observa algumas caractersticas do modelo de ocupao das reas de fundo na cidade: a supresso da vegetao e os remanescentes de matas ciliares; carncia de reas verdes e de lazer; a diluio de esgotos; a deposio de resduos slidos; a retificao e a canalizao dos cursos dgua.

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    Atualmente, verificamos trs situaes distintas das APPs dos cursos dgua em estudo: 1. APP preservada no parque linear circundada por vias de circulao (Trecho do Parque do Povo no Crrego do Veado): canalizao aterrada; solo permevel; e reposio de vegetao, embora escassa em alguns trechos. 2. APP parcialmente ocupada pelas edificaes e parcialmente ocupada por rea de lazer incrustada entre muros (Crregos do Bacarin e gua Bscoli): canalizao aterrada; solo impermevel, na maior parte; e vegetao escassa. 3. APP preservada (trecho 3 do Crrego do Veado): canalizao aberta; solo permevel; e preservao da vegetao original. A supresso da mata ciliar deixou os fundos de vale e os cursos dgua suscetveis degradao ambiental, sobretudo eroses, assoreamento, deposio de resduos slidos e enchentes. Nas reas de Preservao Permanente, a cobertura vegetal de fundamental importncia no processo de absoro e escoamento das guas pluviais e contribui amenizar as altas temperaturas. Assim, alm da sua importncia para conservao do meio ambiente, contribui para a qualidade de vida nos centros urbanos, sobretudo quando se constituem como reas verdes livres, como o caso do Parque do Povo que recebe tratamento diferenciado por se constituir em carto postal da cidade. Um grande desafio consiste na conciliao entre interesses ecolgicos, de preservao, e urbansticos, de ocupao, pois as APPs de crregos urbanos desempenham importante funo de urbanidade que, de acordo com Holanda (2002) se define como o valor que qualifica a vida urbana, no sentido da interao entre os cidados no espao coletivo, da promoo do encontro e do convvio social; bem como da interao harmnica entre as pessoas e os elementos naturais do espao urbana, tais como: os corpos dgua e suas margens, as montanhas, os bosques, as vegetaes. Mello (2007) demonstra, por meio de vrios situaes existentes no mundo, que possvel obter um bom desempenho de urbanidade tanto em configurao de artificializao (casos 1 e 2) quanto em configurao de naturalizao (caso 3) de margens de crregos urbanos. O maior desafio do planejamento urbano buscar estratgias para a reestruturao destes tecidos urbanos comprometidos pelo nvel de consolidao das edificaes e para a valorizao do espao pblico na cidade contempornea. Uma medida possvel a ser tomada seria a elaborao de uma poltica municipal para o aproveitamento do potencial das reas de Preservao Permanentes dos Fundos de Vale ainda existentes na rea central, com o propsito de recuperar o ambiente e integr-lo cidade. Uma questo nos parece fundamental: ningum cuida daquilo que no v. Mesmo com a canalizao dos crregos, as reas de Preservao Permanente (APP) no deixam, necessariamente, de existir. Mesmo que a gua no esteja visvel o que

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    seria recomendvel , os seus benefcios devem ser externalizados. Mello (2007) advoga que o uso sustentvel desses espaos viabiliza o sentimento de pertencimento pelos moradores do entorno que passa a zelar por eles. Qualquer interveno nestas reas dever considerar a vivencia na cidade, a possibilidade de abrir os crregos onde isto for possvel, tornar as reas permeveis, arboriz-las e desenvolver um projeto de integrao destas reas com as edificaes do seu entorno, transformando-os em espaos com vitalidade. ... A modernidade havia expropriado a cidade da presena do corpo; a fenomenologia da contemporaneidade o recoloca no centro da experincia SECCHI (2006:150). Considerando espao livre como um bem pblico, onde, alm de promover-se o encontro do homem com a natureza, desenvolvem-se as atividades urbanas, como os ritmos, em todas as escalas, desde a ida diria ao trabalho, escola, s compras, o passeio domingueiro at a percepo da mudana das estaes do ano KLIASS & MAGNOLI (2006: 247), no pode ser considerado um luxo, acessvel minoria, nos amplos condomnios fechados da cidade contempornea. Consideraes Finais Culturalmente, a populao se serve das guas dos rios e crregos, interferem no seu curso e poluem as suas guas, sem a devida conscincia da importncia da preservao e conservao dos rios e da paisagem, algo que vem se modificando nas ultimas dcadas, mas a passos bem lentos. Devido a essa cultura, os espaos que deveriam ser preservados e enaltecidos como elementos paisagsticos so indevidamente ocupados ou se transformam em vias de circulao, impermeabilizando as terras adjacentes, ocasionando prejuzos prpria populao e ao meio ambiente. importante romper o paradigma de que os cursos dgua so um problema para a cidades e verificar as suas potencialidades. Faz-se necessria uma mudana de atitude com relao conformao da cidade, tanto no desenho urbano das reas de expanso quanto do redesenho dos espaos consolidados, reconhecendo e aproveitando os seus recursos naturais. Os rios e crregos devem ser tratados como patrimnios ambientais, de fato, sendo que o planejamento da cidade deve consider-lo a partir da articulao de diversos aspectos: funcional, ambiental e, tambm, cultural e esttico. Deste modo, de extrema importncia a incorporao dos crregos e dos fundos de vale ao traado urbano, tanto do ponto de vista ambiental, de preservao do patrimnio coletivo e como forte elemento qualificador da paisagem urbana construda. Acreditamos, assim, na possibilidade de um outro desenho urbano voltado a minimizar os impactos negativos causados no meio ambiente fsico, cultural e natural, de modo que os elementos a serem modificados ou acrescentados na estrutura fsico-espacial no ameacem a integridade morfolgica do conjunto, mas contribua para a criao de uma intensa imagem urbana e de um espao com vitalidade, pois a cidade contempornea, em oposio cidade modernista, se volta para a diversidade e elege a paisagem como um princpio fundamental para resolver esta relao conflituosa entre o homem e a natureza, entre espaos edificados e livres, entre espaos pblicos e privados.

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    Referncias ABREU, Diores Santos. Formao histrica de uma cidade pioneira paulista: Presidente Prudente, F.F.C.L., 1972. ANDRADE, Liza M. S.; ROMERO, Marta A. B. A importncia das reas ambientalmente protegidas nas cidade. In: Encontro da Associao Nacional de Ps-graduao e pesquisa em Planejamento urbano e regional ANPUR, XI, 2005, Salvador. Anais... Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2005. BARON, Cristina Maria P. Habitao e Cidade em Presidente Prudente. 2011. 221f. Tese (Doutorado em Arquitetura) Escola de Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo, so Carlos, 2011. DUARTE, Fabio. Rastros de um rio urbano cidade comunicada, cidade percebida. Ambiente & Sociedade, vol. IX, n2, p. 105-122, jul./dez. 2006. GORSKI, Maria Cecilia Barbieri. Rios e cidades: ruptura e conciliao. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2010. HOLANDA, Frederico de. O espao de exceo. Braslia: EditoraUnb, 2002. HORA, Maria Flora F. O projeto CURA III em Presidente Prudente: uma porta para a cidade? 1997. 273f. Dissertao (Mestrado em Geografia) Faculdade de Cincias e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Presidente Prudente, 1997. IKUTA, Flvia Akemi. A cidade e as guas: expanso territorial urbana e a ocupao dos fundos de vales em Presidente Prudente-SP. 2003. Dissertao (Mestrado em Geografia) Faculdade de Cincias e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Presidente Prudente, 2003.

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    1 O CURA do Governo Federal consistiu em um Programa de Complementao Urbana criado pelo em 1973

    pelo Conselho de Administrao do Banco Nacional da Habitao (BNH) para complementao de infraestrutura urbana em reas consolidadas, a fim de promover o adensamento populacional e combater os vazios urbanos

    especulativos. 2 Relatrio da Companhia Prudentina de Desenvolvimento Prudenco.