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FORMAÇÃO DOCENTE EM DISCIPLINAS ESCOLARES: MEMÓRIAS E IDENTIDADES NO CONTEXTO DA CULTURA DA ESCOLA Maria Inês Petrucci Rosa – UNICAMP Introdução Esse trabalho integra resultados de uma pesquisa 1 que focaliza relações entre processos identitários docentes, reformas curriculares em nível de Ensino Médio e a noção de disciplina escolar. Para isso, a pesquisa está centrada na ideia de que as disciplinas escolares estão sofrendo um processo contínuo de dissolução no currículo do Ensino Médio, principalmente, a partir das reformas curriculares mais especificamente representadas pela publicação do documento intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,1999). Nesse sentido, sinalizamos a percepção de que a estabilidade das disciplinas no currículo está ligada à formação de professores nas instituições universitárias (GOODSON, 1995). Esse é, no entanto, um dos aspectos de um complexo processo histórico de transformação das disciplinas escolares no contexto de políticas curriculares oficiais na educação brasileira. Para Lopes e Macedo (2002), a estabilidade disciplinar é muito útil para a organização curricular, à medida que mesmo havendo integração entre disciplinas, isso pode ser expresso através da criação de novas disciplinas e não pela extinção completa das mesmas. Essa perspectiva disciplinar é reafirmada na publicação das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2006). É essa conjuntura que interessa enquanto tema de pesquisa, já que considero que os deslizamentos em torno dessas identidades provocadas pelos discursos provenientes dos movimentos de reforma curricular também produzirão instabilidades inesperadas no âmbito do currículo do Ensino Médio. Daí, a ideia de circularidade ser tão promissora e importante para a compreensão desses movimentos entre políticas oficiais e fazeres cotidianos, bem como para o entendimento de como identidades docentes fragmentadas são produzidas. As políticas curriculares para Ensino Médio, no período pós-anos 90, vêm surtindo efeitos de circularidade que desestabilizam o currículo loteamento, no contexto dos fazeres cotidianos escolares, à medida que defendem a interdisciplinaridade como um dos eixos didático-metodológicos da ação pedagógica. Um currículo-diáspora é vivenciado em experiências interdisciplinares, à medida que cada professor de...(uma determinada disciplina) é interpelado a deixar sua “terra natal”, seu campo de conhecimentos acadêmicos e estáveis, para conhecer os campos dos outros e trocar experiências. (ROSA, 2007) O currículo-diáspora pode ser um produto da circularidade dos discursos oriundos dos textos curriculares oficiais e os fazeres cotidianos escolares. Nesse processo de circularidade, como fica a dissolução da noção de disciplina escolar? Que identidades docentes são produzidas? A partir de contribuições de Walter Benjamin, Michel de Certeau, Stephen Ball e Stuart Hall, trabalho na perspectiva da cultura e procuro compreender histórias a contrapelo que nos aproximam das seguintes questões: Considerando o período pós-anos 90 de políticas curriculares nacionais para o Ensino Médio, como tem se transformado a noção de disciplina escolar no contexto do cotidiano da escola? Que dinâmicas são depreendidas nesse contexto, na circularidade entre discursos oriundos de textos curriculares nacionais e fazeres pedagógicos cotidianos, ainda considerando o professor de Ensino Médio? Que identidades docentes vêm sendo produzidas a partir das inúmeras interpelações advindas das noções de integração curricular e interdisciplinaridade? Para Hall (2003), a identidade una, fixa e indivisível é pura fantasia, na contemporaneidade. Processos identitários são forjados a partir de múltiplas interpelações que pulsam a todo instante no contexto da cultura. Professores de ... (português, matemática, 1 Esta pesquisa vem sendo apoiada pelo CNPq, no contexto dos processos 475137/2008;306053/2009 e 504289/2010-1.

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FORMAÇÃO DOCENTE EM DISCIPLINAS ESCOLARES: MEMÓRIAS E IDENTIDADES NO CONTEXTO DA CULTURA DA ESCOLA Maria Inês Petrucci Rosa – UNICAMP

Introdução

Esse trabalho integra resultados de uma pesquisa1 que focaliza relações entre processos identitários docentes, reformas curriculares em nível de Ensino Médio e a noção de disciplina escolar. Para isso, a pesquisa está centrada na ideia de que as disciplinas escolares estão sofrendo um processo contínuo de dissolução no currículo do Ensino Médio, principalmente, a partir das reformas curriculares mais especificamente representadas pela publicação do documento intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,1999).

Nesse sentido, sinalizamos a percepção de que a estabilidade das disciplinas no currículo está ligada à formação de professores nas instituições universitárias (GOODSON, 1995). Esse é, no entanto, um dos aspectos de um complexo processo histórico de transformação das disciplinas escolares no contexto de políticas curriculares oficiais na educação brasileira. Para Lopes e Macedo (2002), a estabilidade disciplinar é muito útil para a organização curricular, à medida que mesmo havendo integração entre disciplinas, isso pode ser expresso através da criação de novas disciplinas e não pela extinção completa das mesmas. Essa perspectiva disciplinar é reafirmada na publicação das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2006).

É essa conjuntura que interessa enquanto tema de pesquisa, já que considero que os deslizamentos em torno dessas identidades provocadas pelos discursos provenientes dos movimentos de reforma curricular também produzirão instabilidades inesperadas no âmbito do currículo do Ensino Médio. Daí, a ideia de circularidade ser tão promissora e importante para a compreensão desses movimentos entre políticas oficiais e fazeres cotidianos, bem como para o entendimento de como identidades docentes fragmentadas são produzidas.

As políticas curriculares para Ensino Médio, no período pós-anos 90, vêm surtindo efeitos de circularidade que desestabilizam o currículo loteamento, no contexto dos fazeres cotidianos escolares, à medida que defendem a interdisciplinaridade como um dos eixos didático-metodológicos da ação pedagógica. Um currículo-diáspora é vivenciado em experiências interdisciplinares, à medida que cada professor de...(uma determinada disciplina) é interpelado a deixar sua “terra natal”, seu campo de conhecimentos acadêmicos e estáveis, para conhecer os campos dos outros e trocar experiências. (ROSA, 2007) O currículo-diáspora pode ser um produto da circularidade dos discursos oriundos dos textos curriculares oficiais e os fazeres cotidianos escolares. Nesse processo de circularidade, como fica a dissolução da noção de disciplina escolar? Que identidades docentes são produzidas?

A partir de contribuições de Walter Benjamin, Michel de Certeau, Stephen Ball e Stuart Hall, trabalho na perspectiva da cultura e procuro compreender histórias a contrapelo que nos aproximam das seguintes questões: Considerando o período pós-anos 90 de políticas curriculares nacionais para o Ensino Médio, como tem se transformado a noção de disciplina escolar no contexto do cotidiano da escola? Que dinâmicas são depreendidas nesse contexto, na circularidade entre discursos oriundos de textos curriculares nacionais e fazeres pedagógicos cotidianos, ainda considerando o professor de Ensino Médio? Que identidades docentes vêm sendo produzidas a partir das inúmeras interpelações advindas das noções de integração curricular e interdisciplinaridade? Para Hall (2003), a identidade una, fixa e indivisível é pura fantasia, na contemporaneidade. Processos identitários são forjados a partir de múltiplas interpelações que pulsam a todo instante no contexto da cultura. Professores de ... (português, matemática,

1 Esta pesquisa vem sendo apoiada pelo CNPq, no contexto dos processos 475137/2008;306053/2009 e 504289/2010-1.

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filosofia, história, química, física, etc.) são chamados cotidianamente a assumirem diferentes posições de sujeito no seu fazer pedagógico e profissional. Interessa-nos saber os efeitos dessas interpelações em sua identidade disciplinar. Tais efeitos são potencializados por processos de circulação de discursos entre diferentes contextos, dos quais aqui localizamos: o contexto de produção de textos e o contexto da prática (BALL e BOWE, 1992), sem deixar de lado o contexto de influência, que junto aos outros, também promove dinâmicas discursivas não lineares. Narrativas e Mônadas: Abordagem metodológica no contexto da pesquisa

Ao fazer a opção pelas narrativas como método (PAIS, 2003), privilegiamos os

discursos produtores de identidades, de experiência e de currículo daqueles que são os praticantes, aqueles que nas brechas de suas memórias podem oferecer-nos imagens de um tempo e de um lugar. Na perspectiva de Benjamin (1994,1995), a narrativa encontra-se intimamente relacionada ao ato de rememorar, a possibilidade de ressignificação da própria experiência através das memórias cheias de significados, sentimentos e sonhos. O ato de rememorar possibilita que dimensões pessoais, que foram perdidas com o avanço do mundo moderno e capitalista, sejam recuperadas na relação temporal passado, presente e futuro.

Para Michel de Certeau, ao falarmos ou ao narrarmos, estamos praticando uma arte e essa produz efeitos. Assim, o narrar não seria um retorno à descrição, mas um ato que procura, distanciando-se cautelosamente da realidade, provocá-la. Nas palavras do autor: “mais que descrever um “golpe”, ela (a narrativa) o faz” (CERTEAU, 1994, p. 153) E ao fazer o golpe, ao praticar a astúcia, essa arte pode assumir múltiplos desdobramentos. Sendo arte, exige criação; sendo astuta, pode se engendrar com ousadia.

As mônadas, noção derivada da obra de Walter Benjamin, são fragmentos de histórias que juntas narram a conjuntura de um tempo e de um lugar. Metodologicamente, elas são excertos das transcrições das entrevistas que são recriadas mediante textualização, produção de um título e edição, preservando seus regimes de verdade. Expressam-se como pequenas crônicas, historietas com início e final geralmente aberto, que deixa brechas para que o leitor ou o ouvinte possa também criativamente perceber as verdades que elas contêm.

O contexto da pesquisa

O contexto da pesquisa envolveu professores em formação inicial, bem como professores experientes em serviço na escola básica. Os registros que serão apresentados foram realizados em quatro escolas públicas de Ensino Médio e aconteceram de três formas: filmagens de aulas, diário de campo e entrevistas com professores de Ensino Médio. Foram entrevistados professores das três áreas do Ensino Médio, considerando a Matemática na área de Ciências da Natureza. Foram também entrevistados professores em formação inicial, alunos de licenciaturas relacionadas com as três áreas do Ensino Médio.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e textualizadas posteriormente. Das transcrições das entrevistas, foram produzidas as mônadas. Como já mencionado, as mônadas foram criadas a partir das narrativas ouvidas dos professores acerca de suas histórias como professor de... (disciplina escolar); suas escolhas profissionais; sua experiência docente e as oportunidades de práticas interdisciplinares vivenciadas. Basicamente, as questões feitas durante as entrevistas foram as seguintes: Como você se tornou professor de... (Matemática, Educação Física, História...etc...)?; Você vê diferença na sua prática docente de hoje comparada ao seu início de carreira?; Como você vê sua disciplina escolar no contexto do Ensino Médio? Você tem experiência com práticas interdisciplinares?

A seguir, será apresentada parte do conjunto de mônadas constituído a partir das narrativas dos professores entrevistados. É importante destacar que faz parte de nossa metodologia, apresentar esse conjunto como um bloco único de fragmentos, sem

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categorização prévia, tampouco nenhum tipo de classificação. Para Benjamin, quem adensa a narrativa é o ouvinte (ou o leitor), dessa forma o arranjo das mônadas, abaixo apresentadas, produzirá efeitos de compreensão nos leitores dentro de um espectro de regimes de verdade possíveis para seu contexto.

Experiências narradas: a expressão através de mônadas

Mônada 1

EU ME DESTAQUEI Quando eu estava na 6ª. série, eu tinha um professor de Matemática que era bom mesmo. Eu gostava muito dele! Ele ensinava Matemática mesmo! Lembro-me de uma aula que ele passou 150 equações do 1º grau na lousa e eu fiz as 150 e fiquei muito bom naquilo. Eu considero como futuro professor de Matemática, que é necessário aprender bem equação de 1º grau, que é a base para os outros anos. O pessoal tinha um pouco de dúvida, mas eu aprendi direito. Eu fiz os 150! Eu vim de uma cultura que eu fazia tudo o que os professores falavam. Os meus colegas não faziam! Eu me destaquei, no final da 6ª série! (professor iniciante de Matemática)

Mônada 2

PROFESSOR FICA MEIO DESLOCADO Nas minhas aulas já trabalhei conteúdos de outras disciplinas, mas assim no geral é uma coisa difícil, você está se relacionando com outro professor. Teve aqui, na escola, um campeonato. Para fazer um campeonato, revisão de jogos, poderia ter mais professores participando. Para fazer uma tabela, às vezes, poderia participar um professor de ciências. Mas tem professor que fica meio deslocado: professor de Física, de Química... Às vezes não dá certo, por falta de tempo. Às vezes, trabalha em um lugar em outro, não há tempo na escola para fazer isso. (professor experiente de Educação Física)

Mônada 3

JORNALISTA

Na verdade, meu objetivo era ser jornalista. Eu fiz cursinhos preparatórios para ser jornalista, mas não consegui passar. Aí pensei: “quer saber de uma coisa, está faltando alguma coisa... Vou fazer Letras para melhorar a minha escrita e me formar mais, para passar no curso de jornalismo”. Entrei em Letras, mas meu objetivo não era dar aula, mas aí comecei a lecionar enquanto estudante mesmo. (professor experiente de Língua Portuguesa)

Mônada 4

O ALUNO CRÍTICO Eu acho que a Filosofia é um pouco engessada, principalmente, a matéria do 1 º ano do Ensino Médio. Os alunos confundem muito Filosofia com História. Tem todo um trabalho de convencimento desse aluno, de que na Filosofia você tem que refletir mais, que não é só ser apresentado aos fatos, mas você tem que pensar sobre eles, refletir sobre eles. Eu apresento autores para eles não só no 1º ano, mas no 2º e no 3º. Eu falo sempre para eles: “peguem para vocês o que vocês quiserem pegar”... Sempre transformar o aluno em crítico daquilo que ele está aprendendo. (professora experiente de Filosofia)

Mônada 5

COERÇÃO OU COESÃO

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Os alunos me entregam trabalhos de Sociologia, porque eles confundem. Eles acham parecidos. Durante uma aula no 1o. Ano do Ensino Médio, eu estava falando sobre o Estado em Filosofia política. Então tinha uma palavra que era coerção e um aluno me falou sobre o conceito de coesão que ele tinha aprendido em Português. Eu disse que não era a mesma palavra. Então ele comentou: “Ah... Mas essa coerção a professora de Sociologia ensinou para nós...” Mas não era exatamente a mesma coisa. (professora experiente de Filosofia)

Mônada 6

QUERO TRAZER NOVIDADE

Nos HTPCs2 a gente trabalha muito a ideia que a gente precisa se reunir, precisa conhecer mais a matéria do outro. Eu gosto bastante de Sociologia. Volta e meia, eu pego o caderninho da professora de Sociologia para ver se eu não estou trabalhando a mesma coisa, porque eu não quero trabalhar a mesma coisa. É muito chato. Eu quero trazer novidade. (professora experiente de Filosofia)

Mônada 7

ÉRAMOS FÍSICOS E CONVERSÁVAMOS SOBRE FÍSICA Primeiramente, nós éramos físicos e nós conversávamos sobre Física e tínhamos a possibilidade de estruturar um trabalho a longo prazo. Alunos que eram meus eram depois repassados para o colega que também era físico ou voltariam a ser meus e isso nos permitia acompanhá-los. Isso não é mais possível hoje, sem falar que as escolas tiveram uma queda drástica no número de aulas. Você trabalha com isso e sabe... (professor experiente de Física)

Mônada 8 FERRAMENTA

No início da minha carreira, não se falava em interdisciplinaridade. Isso é mais recente. A interdisciplinaridade de alguma forma ela existe na Física, porque ela está presente no dia a dia. A Matemática é uma ferramenta nossa e a interdisciplinaridade naturalmente ocorre aí. Temos a possibilidade de levar alunos a laboratório, não sempre... Nós tínhamos 4 aulas semanais, mas o governo nos retirou uma aula e depois outra e hoje temos 2. Isso, por si só, já mostra a fragilidade do sistema e das possibilidades que nós tínhamos na época. (professor experiente de Física)

Mônada 9 PARA SER PROFESSOR...

Queria ser professor! Eu pensei em fazer História, Letras, Biologia e sempre gostei muito de Geografia! Como Geografia concilia essa parte de Humanas e Natureza, achei que era um curso mais eclético, que tinha a ver com a minha cara. Então no último período, no último semestre de contabilidade, eu fiz o primeiro semestre de Geografia em Uberlândia, numa universidade federal. Então eu fazia contabilidade à noite e fazia Geografia de manhã, para ser professor. Acho que muito influenciado pelos bons professores de Geografia que eu tive... Também tive bons professores de História e de outras matérias. Meu perfil era da área de Humanas! (professor experiente de Geografia)

Mônada 10

2 HTPC – horário de trabalho pedagógico coletivo instituído nas escolas paulistas em 1996.

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VIAJAVA

Escolhi fazer a licenciatura em Geografia, porque eu tinha uma professora que fez geografia na USP e foi dar aula lá no interior de São Paulo, onde eu estudava. A Miriam dava uma aula, nossa! Espetacular! Eu pelo menos viajava com ela, ficava “Ai que delícia, conhecer o mundo”. Aí ela contava do Egito, tinha muita coisa para contar né? Naquela época, quarenta e poucos anos atrás... (professora experiente de Geografia)

Mônada 11

MILITÂNCIA Tive um convívio muito intenso com as escolas em função desses projetos de Educação Ambiental que eu desenvolvia, em primeiro momento com a empresa de consultoria e depois com o poder público, na Prefeitura. Eu conhecia bem essa realidade, fazia muitas oficinas de planejamento com os professores e também desenvolvi muitos projetos com alunos de escola pública. Conhecia os desafios e todas as dificuldades da escola hoje. O que me levou a ser professor é achar que eu tenho habilidades para dar aula. Acho também que se trata de uma militância, me sinto assim... Acho que é a maneira mais concreta de pensar que eu estou contribuindo na formação das pessoas. De todas as coisas que eu faço o que me satisfaz bastante é saber que de fato estou contribuindo nesse movimento de cidadania e politização. Enfim, claro, dentro das perspectivas de uma sala de aula que você não tem um resultado mensurável a curto prazo. (professor experiente de Geografia)

Mônada 12

DIÁRIO DE BORDO O que eu acho bem legal na Geografia e que difere das outras disciplinas, é poder responder por que estou, por exemplo, morando aqui. A gente usa História, Biologia, Física, mas a essência da Geografia tem uma dimensão política, cultural, econômica, natural também. Então eu acho que é isso: conhecer como que a sociedade ocupa um espaço e como esse espaço interfere na vida das pessoas e como as pessoas interferem... É essa relação dialética mesmo. A Geografia é coisa muito visual, Geografia é isso, sabe, é... E provar que isso está no dia a dia deles. Eu acho que dentro dessas propostas pedagógicas do Estado que tem ênfase nessas competências de leitura e de Matemática, eu entendo que a Geografia tem muito a contribuir com isso, porque assim... Os meus alunos que tem dificuldade em Geografia, eles não tem dificuldade em Geografia e eles têm dificuldade primeira em Português porque o bom leitor, ele leva muito fácil a Geografia. A competência de leitura é muito mais necessária para compreender Geografia do que a competência de Matemática para entender essa coisa de espaço, porque Geografia é uma viagem e eu brinco com eles que o caderno deles é um diário de bordo. (professora experiente de Geografia)

Mônada 13

POSIÇÃO DIFERENTE

Ensinar antes? Era diferente porque o professor tinha uma posição diferente, era muito mais respeitado. Você diante da sala era, até de certa forma, uma autoridade. Eles tinham respeito

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por aquela pessoa que está trazendo uma orientação, uma informação. Hoje em dia, você entra na sala, não tem esse respeito, você não tem essa imagem. Eles não têm essa imagem do professor, daquele que está lá na frente orientando, ensinando, fazendo com que você progrida em termos de conhecimento para o futuro... Essa é a diferença. Para ser professora de geografia, a última coisa que eu dou é a matéria geografia. Eu dou aula de educação sexual, dou aula de culinária, de conselho de vó, sabe? Eu sou psicóloga, menos professora de geografia. Porque você pergunta... Na sala de aula, hoje, o aluno falou assim “Professora, você já ouviu falar... Você já recebeu o cidadão que veio fazer o senso na sua casa? Que é isso, fessora(sic)?” Aí você perdeu as pernas, né? Porque eu estava falando sobre população, ele não sabe nada... Nada! Impressionante. Daí você fica pensando: está certo! Eu gosto de dar aula de geografia porque eu gosto de geografia. E eu pensei em ser professora de geografia quando eu estava na minha 8ª série. (professora experiente de Geografia)

Mônada 14

TRABALHANDO OUTRA MATÉRIA Numa feira de Artes, por exemplo, acho que o professor de Educação Física não tem capacidade de estar ajudando, porque não é da matéria. É difícil! Mas eu já trabalhei Matemática, Geografia. Um exemplo: com a Matemática, eu falava um número, a criança tinha que correr... Se falasse ímpar a pessoa tinha que pegar quem era ímpar. Era um “pega-pega” com números! Então as crianças foram organizadas como “ímpares” e “pares”, e eu falava: “duas vezes dois”, “oito dividido por dois”... Eles tinham que saber as quatro operações matemáticas. Numa outra ocasião, trabalhei História (sic). Em outro momento, a gente pulava corda e eles - os alunos - tinham que falar o Estado... por exemplo: Amazonas! E outro que entrava tinha que saber a capital para pular a corda. Se não soubesse tinha que passar a vez... Então era assim que funcionava, estava trabalhando outra matéria na Educação Física, os ajudando a desenvolver esses conhecimentos na Matemática, História e Geografia. (professor experiente de Educação Física)

Mônada 15

ELA NÃO GOSTAVA DE MIM Eu tive uma professora muito boa na 8ª série. Ninguém gostava dessa professora e ela também não gostava de mim, talvez porque eu era filho de funcionário. Não sei o que era, e por birra eu estudava muito a matéria dela! E só tirava dez na prova dela, dez, dez, dez... E ela não gostava de mim! Ela sempre confundia o meu número da chamada, e daí ela trocou minha nota e eu fiquei com 3! Deu confusão na escola e ela voltou atrás. Eu me dedicava mais exatamente por isso e daí sempre tinha a coisa de ser filho de funcionário. Meu pai ganhava R$ 700,00 e eu tinha uma bolsa de R$ 600,00, então era uma pressão muito grande! Tinha que ir bem na escola. No Ensino Médio, eu tinha mais facilidade, nem estudava muito. Tirava uma nota seis, sete, mas nunca me preocupei em tirar dez! Eu sempre gostei de Geografia e História, debatia com os professores, participava das aulas, mas sempre tive muita facilidade em Matemática, por causa da minha dedicação anterior. (professor iniciante de Matemática)

Mônada 16

EU GOSTEI DA BRINCADEIRA

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Primeiro eu me formei em Administração, depois que eu fiz Matemática. Eu fui convidado, porque estava com falta de professor. Eu estava com uma amiga, dentro de um ônibus. Ela passou a ser vice-diretora e era também professora de Matemática, na época. Como eu fiz Administração na PUC, tinha o curso de Matemática também. Ela disse: “como você tem o curso superior, você não quer dar aula de Matemática?” Eu gostei da brincadeira e comecei a dar aula. Eu era professor eventual (substituto). Eu não era da área, mas dava aula de Matemática. Depois eu fui fazer a Faculdade de Ciências e Matemática. (professor experiente de Matemática)

Mônada 17

CHEGUEI A PENSAR EM FAZER JORNALISMO Sempre tive formação boa como professora de português... Sempre tive sim! Mas eu também tive boas formações com professores de matemática que eram paixões de eu lembrar a época dos meus doze, treze anos, sexta, sétima série...Nossa! Eu tive muito bom curso de matemática! Lembro-me disso, mas eu não ia muito bem, pelo menos eu não achava que ia bem. Não achava que conseguiria entender tudo do jeito que deveria entender para um dia prestar um vestibular para Matemática. Eu achava que conseguia escrever bem, eu achava e eu gostava de escrever, aliás, gosto de escrever até hoje... De usar a mão, eu uso muito a mão. Então eu achava que era isso que eu tinha que fazer: era Letras, porque ia escrever muito. Na época cheguei a pensar em jornalismo também, pelo fato de escrever bastante também, de ler bastante. Mas dava aula desde antes de fazer o Ensino Médio, para meus priminhos. Eles iam na minha casa esclarecer dúvidas comigo, e então, eu gostava disso. E quando entrei no Ensino Médio, lembro de uma época que a diretora me chamou. Ela me chamou também para dar aula de reforço para um aluno da minha turma. É como se fosse aula particular, mas seria de aluno para próprio aluno, para mesma faixa etária. Eu lembro que dava aula de Química, era uma aluna boa! Dava aula de Física, dava aula assim de Exatas mesmo. Mas gostava de escrever, então para mim tinha que ser uma matéria na área de humanas, sabe? (professora iniciante de Língua Portuguesa)

Mônada 18

UMA RELAÇÃO MAIS PRÓXIMA COM O ALUNO Eu acho que a professora de português, não só português, os professores de Humanas em geral, conseguem ter uma relação mais próxima com o aluno, porque eles usam mais do diálogo para explicar... Porque querendo ou não, o fato de você explicar Exatas, implica fazer muitas contas, acaba ficando aquela coisa de passar o conteúdo, e de ter um monte de exercícios, ter que corrigir todos eles... Acaba tendo menos proximidade com os alunos! Às vezes, estou lendo um texto com eles e dá para quebrar o texto, voltar, falar de outro assunto, vai dispersando, acaba tendo uma troca assim... Isso é melhor do que ficar ali fazendo um monte de exercícios... (professora iniciante de Língua Portuguesa)

Mônada 19

É PARA VOCÊ! Quando você entra na faculdade... Tudo o que você vê aqui na faculdade no curso de Letras, não vai aplicar isso fora daqui, não vai levar para a sala de aula. O conhecimento que você adquire aqui, é para que você cresça aqui dentro e com isso consiga até ter as previsões para

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montar uma aula legal, entendeu? Mas, o que você vê aqui, você não leva para lá, para a escola... (professora iniciante de Língua Portuguesa)

Mônada 20

AS CIÊNCIAS DA NATUREZA Uma das vantagens que tento passar para os meus alunos é justamente pela primeira graduação ter sido na área de Ciências Médicas e que gira muito em torno da Química e da Biologia. Então, por exemplo, se eu falo de hipertensão, que é uma doença patológica que pode ser devido a colesteróis, que pode ser devido a vários contextos biológicos, consigo passar para os alunos um contexto químico... Qual é a molécula de um anti-hipertensivo, por exemplo, como essa molécula atua no sistema biológico e consigo passar para eles também a parte física. Então, muitas vezes, acabo não aprofundando tanto em determinado assunto, mas consigo passar o geral de uma área, por exemplo, as Ciências da Natureza, de uma forma diferenciada. (professor iniciante de Química)

Mônada 21

CERTINHO, SEPARADINHO, PESADO Então já deixo tudo preparadinho, forro a mesa e lá na mesa na sala de aula, faço só a operação do experimento. Mas já está tudo certinho, separadinho, pesado... A química tem essa parte bonita de ver o acontecer, então sai um pouco do teórico para despertar neles aquilo que eles querem ver em Química. Você fala em Química, os alunos pensam em reação e se eles não vêm reação não tem aquele interesse que tem pela disciplina... Então alguma coisinha tem que fazer para puxá-los para você. (professor iniciante de Química)

Mônada 22

NÃO ERA QUÍMICA Foi por iniciativa própria: levei um pouco de gasolina, mais ou menos 100ml... Comprei as provetas! Como disse, eu tinha prazer naquilo e como ganhava razoavelmente bem na Petrobrás, queria ajudar, queria ver esse pessoal ver uma reação... Para mim, aquilo que estava na apostila não era Química, eu queria que esses meninos, essa turma visse a Química. (professor experiente de Química)

Mônada 23

COMECEI A PAQUERAR AS MENINAS No final de 84, sozinho, sem conversar com ninguém em casa, tomei a decisão de trabalhar. Porque era época de adolescência, comecei a paquerar as meninas, queria ir para um cinema, ir à praia, morava em cidade praiana, ir para o estádio, mesmo que não pagava ingresso na época tinha o transporte, um sorvete... Meu avô e minha avó, já aposentados, ganhavam o salário mínimo, mal dava para os remédios. Meu pai nunca participou da minha vida em nenhum sentido, apesar de eu morar com a mãe dele.Minha mãe, por circunstâncias, sempre foi uma pessoa distante e eu me via assim: precisava trabalhar para comprar e ter um dinheirinho... Sempre fui uma pessoa de não pedir nada para ninguém! Voltei para o Sr. Januário, dono de uma farmácia, e perguntei: “O Senhor me acha muito certinho?” Ele

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respondeu: “Acho”. Perguntei: “Tem emprego para mim?” E ele disse: “Você já trabalhou na vida? Então você não sabe nada...” Eu disse: “Então vamos fazer um acordo: o que o Senhor me ensinar, aprendo em uma semana!!!” Imagine você, um garoto de treze anos sozinho, pequenininho, fazendo negociação de emprego!!! Daí ele percebeu que o garoto não era bobo e ele disse: “Amanhã você começa! Às 7h da manhã abre a farmácia!” Eu não tinha avisado ninguém em casa. Saí e a minha avó nunca se preocupou comigo, porque eu não dava trabalho e como andava sempre na rua, nos campinhos de futebol, então era comum. Sempre acordei cedo. Sai muito cedo, porque eu sempre estudei de manhã. Então, para ela não teve novidade, só que ela não se atentou para um detalhe: sai de calça e era um mês de dezembro, dezembro de 84, Sergipe, calor... Cheguei e me apresentei para o Sr. Januário. Ele me ensinou coisas básicas de farmácia: atendimento... Aí foi uma experiência muito interessante, porque quando eu não tinha nada para fazer na farmácia, como gostava muito de ler, aleatoriamente pegava caixas de remédio tirava a bula e começava a ler... Fiquei maravilhado com aqueles nomes de fórmulas químicas, com os nomes dos cloridratos, os sais de cá, e coisas de lá... “Nossa!!! Esses caras que fazem os remédios devem ser fantásticos”, pensava. Tinha acabado de sair da 7ª série e não tinha nenhum contato com a disciplina de Química. (professor experiente de Química)

Mônada 24

VOU TRABALHAR COM O QUÊ? Pensei em prestar vestibular para Geografia, alguma coisa assim, mas não sabia o que... Ou na área de Ciências Humanas. Talvez Geografia, não pela parte física da Geografia, onde eles estudam meio ambiente. Então pensei muito tempo na História, fiquei pensando na História que eu tinha aprendido no colegial e aí comecei a achar que não sanaria minhas dúvidas... Daí pensei em Ciências Sociais, mas... em Ciências Sociais eu vou trabalhar com o quê? (professora iniciante de Sociologia)

Mônada 25

VAI SE FORMAR POLITICAMENTE OU NÃO VAI?

Meus pais me sustentaram muito. Meu pai tem uma situação política e social muito forte!!! Livros, lá em casa, sempre foram presentes na nossa educação. Debates políticos também. Meu pai é uma pessoa muito fervorosa, leva a ferro e fogo. Fomos educados politicamente, sempre ele fez muito isso! Defendeu que tínhamos que votar com 16 anos porque é um direito conquistado. Temos essa história em casa, talvez porque meu avô é imigrante e a família teve problemas de se adaptar, quando vieram para o Brasil e tiveram essa discussão também. Aí sempre uma discussão: vai fazer ou não vai fazer? Vai se formar politicamente ou não vai? E isso por um tempo foi prioridade na minha casa e eu constatei que na escola os alunos não são interessados em nada. Eles querem ter o melhor celular, o melhor tênis, e na minha casa foi muito o contrário, a gente não vai ter o melhor celular, não vai ter o melhor carro... (professora iniciante de Sociologia)

Mônada 26

VOCÊS NÃO SÃO NINGUÉM!

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A gente não tem perspectiva, se não fizer mestrado. Dizem: “Sem mestrado, vocês não são ninguém!!! Sem mestrado e doutorado, vocês não são ninguém.” Até ouvi de um professor aqui na universidade que eu só sou formada em Ciências Sociais geral, Antropologia por conclusão e agora no segundo semestre, Sociologia por conclusão. Ele disse: vocês são bacharéis em Antropologia, antropólogo só depois do mestrado!!!” Aí eu falei: “OK!!!” Foi o maior choque para mim, porque a gente estuda, estuda, estuda, para fazer um “livro” para ficar arquivado na biblioteca, onde só o pessoal da universidade tem acesso. (professora iniciante de Sociologia)

Mônada 27

VAI SER DIFÍCIL SE ESTABELECER Vai ser difícil se estabelecer como campo de conhecimento. Eu acho que se os professores não conquistarem na prática esse espaço, não adianta nada! Tem material didático bom, mas os profissionais precisam conquistar esse espaço dentro da escola. Porque hoje se ensaia a dança da Festa Junina na aula de Educação Física e se não batermos o pé, vai ensaiar na minha aula de Sociologia. Vai sempre perder espaço... Eu escutei dentro da escola: “ O que vai fazer, na aula de Sociologia?” Depende dos professores, nós de Sociologia, não perdermos essa aula. O que vai adiantar saber se o triângulo é retângulo, isso não vai fazer diferença agora! (professora iniciante de Sociologia)

Mônada 28

POSSIBILIDADE DE DIÁLOGO Acho que é o diálogo, essa possibilidade de diálogo maior com os alunos, que vai fazer com que ocupemos o espaço da Sociologia. Vamos trabalhar alguma coisa. Vamos usar um espaço mais aberto, de trabalhar temáticas diferentes. Vamos trabalhar o conceito de pós-modernidade, primeiro temos que falar com a modernidade, trabalhar interdisciplinaridade, com conceitos da História, da Geografia! Vamos trabalhar com Estatística, temos vários professores aqui na universidade que trabalham com números. Vamos fazer uma pesquisa de campo, numérica. Vamos entrevistar 500 pessoas!!! Temos essa bagagem muito grande aqui na universidade. Para se formar aqui, temos que ir para muitos lugares. A gente que tem que ir, por exemplo, na Matemática ou na Economia. (professora iniciante de Sociologia) Algumas pistas...

Nos registros de observação que foram realizados no cotidiano das escolas, o que mais ficou evidente não foram exclusivamente a rede de relações entre professores, alunos e as diferenças entre as disciplinas escolares, mas sim, de uma forma mais genérica, o jogo de poder instituído na cultura da escola referente ao papel do conhecimento e junto com ele, do professor. Várias cenas no cotidiano das escolas foram registradas (seja pela escrita, seja pela filmagem), nas quais foram desenvolvidos diálogos entre professores e alunos marcados por palavrões, por desrespeito e desconsideração da importância das aulas e do conhecimento em questão.

Os professores, de uma maneira geral, têm ainda como referência principal nas práticas cotidianas, a possibilidade de se apoiar em um material didático que materializa o currículo vivido dentro da sala de aula. Esse material didático pode ser representado pelos

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livros didáticos oriundos do PNLD (MEC) ou do material fornecido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, a partir de 2008, que faz parte da nova Proposta Curricular do Estado de São Paulo, disponível como documento no site3 São Paulo Faz Escola. Os professores se ressentem muito e mostram-se magoados, com a falta de respeito e consideração por parte dos jovens, no cotidiano da escola (conforme mônada 13). Rememoração e escolha profissional – a carreira e a disciplina escolar

Outro importante aspecto analítico depreendido são as conexões entre memórias e a escolha da carreira. Tais conexões respingam diretamente nas identidades profissionais, enquanto professor. Nas rememorações, as narrativas expressam situações escolares ou extraescolares, que despertaram emoções que possibilitaram ou dificultaram algum tipo de escolha profissional. Desafio, medo, raiva, devaneio, alegria são sentimentos que aparecem narrados nas histórias dos professores e que se amalgamou com a escolha de uma área de conhecimento como carreira profissional (conforme mônadas 1,3,9,10,11,15,17, 24 e 25).

Muitas vezes, a licenciatura não é a escolha inicial, a favor de carreiras talvez mais prestigiadas socialmente (jornalismo, administração, farmacêutico), mas há memórias de escola carregadas de uma estética de sentidos e racionalidades que acaba adensando um fluxo de vida a favor da docência como profissão. Nessa relação entre memória e história, professores ao experimentarem sua escolha, num curso de licenciatura, muitas vezes, constatam na vivência dos currículos universitários as diferenças entre conhecimento científico e conhecimento escolar, que se expressa diretamente no deslocamento entre ciência e disciplina escolar (conforme Mônadas 19, 22 e 26). Nesse sentido, os deslocamentos identitários entre bacharelado e licenciatura desafiam os movimentos de tentativa de estabilização da identidade docente, num jogo de poder, que contraria valores e reitera princípios díspares entre academia e escola (Mônada 26).

Se, na contemporaneidade, o meio acadêmico-científico tem adensado cada vez mais projetos interdisciplinares e temáticos, na cultura da escola, como pudemos perceber, essa circularidade ainda é pouco dinamizada.

Integração curricular no Ensino Médio

Tanto nas entrevistas como nos registros de campo, foi possível perceber que a circularidade entre os documentos curriculares e as práticas cotidianas no que toca à integração curricular, como interdisciplinaridade, ainda não está dinamizada. As práticas interdisciplinares narradas são esparsas, um pouco confusas e não parecem fazer parte da cultura da escola, como tradição (conforme Mônadas 2, 5, 6, 8, 12,14 e 20).

Por vezes, a interpenetração de significantes, significados, conceitos nos discursos de aula, é vista como algo indesejável, inusitado, que precisa ser esclarecido. As práticas interdisciplinares são vistas como algo a ser controlado, padronizado e restrito a momentos “extra-curriculares”. A integração curricular aparece quase como um “acidente”, ou um evento desconhecido e intruso que precisa ser de alguma maneira, dominado. Essa tendência parece também se articular com uma fantasia de que as garantias são mais possíveis quando mais professores de uma mesma disciplina escolar acompanham a trajetória de escolaridade de um grupo de alunos. (Mônada 7)

É importante lembrar que as condições de trabalho docente: alta carga horária, baixa remuneração, horário de trabalho pedagógico mal articulado, atividades extra como preparação de aulas, avaliações – marcam nitidamente a cultura da escola. A identidade

3 www.saopaulofazescola.sp.org.br

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docente está muito marcada por uma necessidade de sobrevivência e resiliência num fluxo de demandas que vai sendo incorporado nos fazeres do dia a dia.

Para Certeau (1994), as táticas do cotidiano são recriações das tarefas apresentadas pela ordem instituída. São reinvenções daquilo que a estratégia impõe. Nessa cena de escola, o que percebemos é o consumo ativo da ideia de interdisciplinaridade, prenhe de reinvenções organizadas em táticas. O trabalho integrado, que pode ser expresso como trabalho interdisciplinar4, pressupõe um coletivo organizado, com tempo disponível para mobilização e reflexão e, também, um envolvimento mais amplo que transborda a equipe docente na direção dos jovens participantes do processo, os estudantes. No contexto de produção de textos (Ball & Bowe, 1992), em documentos como os PCN (BRASIL,1999), é essa noção de trabalho integrado que se coloca como possibilidade. Por outro lado, no cotidiano da escola, o consumo dessa noção como forma de trabalho pedagógico, passa por inusitadas reinvenções, táticas desenhadas para “jogar e desfazer o jogo do outro” (CERTEAU, 1994).

Considerações Finais

Este trabalho como parte integrante do projeto de pesquisa Formação docente em disciplinas: políticas e identidades no contexto da cultura da escola, partiu do pressuposto de que a circularidade de discursos nas políticas curriculares brasileiras vem provocando desestabilizações na noção de disciplina escolar, especialmente no contexto da prática. A identidade docente ligada à formação disciplinar é ponto de partida na formação de professores que tem chancelada sua atuação a partir de um campo científico específico, em outras palavras, os processos de identificação docente estão usualmente ligados ao ser professor de... , particularmente na segunda etapa do Ensino Fundamental e predominantemente, no Ensino Médio. As narrativas de professores do Ensino Médio das escolas participantes dessa pesquisa e as observações de cenas do cotidiano escolar evidenciam a formação disciplinar como elemento simbólico importante que ainda sustenta a identidade docente. A integração curricular, como interdisciplinaridade, expressa nos documentos curriculares de Ensino Médio é consumida em práticas pedagógicas pouco articuladas e ainda bastante apoiadas na noção de disciplina escolar, como uma espécie de trincheira ou blindagem que ao mesmo tempo em que apoia, isola cada docente em seu campo. A disciplina escolar como traço principal da identidade docente no Ensino Médio, parece exercer um papel ambíguo e contraditório na constituição das práticas curriculares. Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter, (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura/Walter Benjamin. 7.ed. São Paulo: Brasiliense. BENJAMIN, Walter, (1995). Rua de mão única/Walter Benjamin. 5.ed. São Paulo: Brasiliense. BRASIL, (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Ministério da Educação: Secretaria de Ensino Médio. BRASIL, (2006). Orientações Curriculares Nacionais para Ensino Médio. Ministério da Educação: Secretaria de Ensino Médio. CERTEAU, Michel, (1994). A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 9ª ed. Petrópolis: Vozes. GOODSON, Ivor, (1995). Currículo: Teoria e História. 4ª. Edição, Petrópolis: Editora Vozes.

4 Para autores como B. Bernstein e J. Santomé, a interdisciplinaridade é uma modalidade de integração curricular.

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HALL, Stuart, (2003). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de T. T. Da Silva e G. L. Louro, Rio de Janeiro: Editora DP&A. LOPES, Alice C. e MACEDO, Elizabeth, (2002). A estabilidade do currículo disciplinar: o caso das ciências. In: Disciplinas e Integração Curricular – história e políticas. RJ: DP&A Editora. PAIS, José M., (2003). Vida Cotidiana – enigmas e revelações. São Paulo: Ed. Cortez. ROSA, Maria Inês P., (2007). Experiências interdisciplinares e formação de professore(a)s de disciplinas escolares: imagens de um currículo-diáspora. Revista Proposições, Campinas, v. 18, n. 2 (53), p. 51-65, maio/ago.