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XIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL 25 a 29 de maio de 2009 Florianópolis - Santa Catarina - Brasil REDES CAPILARES DE DRENAGEM E PARQUES PÚBLICOS URBANOS Vladimir Bartalini (USP) - [email protected] Arquiteto e Urbanista, Professor do Grupo de Disciplinas Paisagem e Ambiente do Departamento de Projeto da FAU-USP Elisa Pereira de Macedo (USP) - [email protected] Aluna do curso de graduação da FAU-USP, bolsista do Programa Aprender com Cultura e Extensão, da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP Mariana Yamamoto Martins (USP) - [email protected] Aluna do curso de graduação da FAU-USP, bolsista PIBIC

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XIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EMPLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL25 a 29 de maio de 2009Florianópolis - Santa Catarina - Brasil

REDES CAPILARES DE DRENAGEM E PARQUES PÚBLICOS URBANOS

Vladimir Bartalini (USP) - [email protected] e Urbanista, Professor do Grupo de Disciplinas Paisagem e Ambiente do Departamento de Projeto daFAU-USP

Elisa Pereira de Macedo (USP) - [email protected] do curso de graduação da FAU-USP, bolsista do Programa Aprender com Cultura e Extensão, da Pró-Reitoria deCultura e Extensão Universitária da USP

Mariana Yamamoto Martins (USP) - [email protected] do curso de graduação da FAU-USP, bolsista PIBIC

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Redes Capilares de Drenagem e Parques Públicos Urbanos Resumo A aprovação do Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, em 2002, ensejou a

implantação de parques lineares apoiados sobre a “rede hídrica estrutural”, composta pelos

cursos d’água com certa expressão na paisagem paulistana. Os capilares desta rede –

pequenos córregos, muitos deles anônimos, excluídos da paisagem urbana devido a obras

viárias ou de saneamento – não têm sido, em regra, contemplados com projetos que os

qualifiquem como espaços públicos. Restam esquecidos, associados a becos, vielas e

escadarias que se prefere evitar. No entanto, apresentam possibilidades de integrarem-se

condignamente ao espaço urbano como conectores privilegiados de espaços livres públicos.

Para exemplificar este ponto de vista, são analisados os casos dos córregos formadores dos

lagos situados nos parques Ibirapuera e Aclimação, em São Paulo.

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Redes Capilares de Drenagem e Parques Públicos Urbanos Introdução O assunto, embora centrado em casos específicos de córregos associados a parques

públicos no município de São Paulo, diz respeito a uma infinidade de pequenos córregos,

muitos deles anônimos, que, devido a obras viárias, de drenagem ou de saneamento,

praticamente não fazem mais parte da paisagem urbana. Por conseqüência, não encontram

lugar na consciência atual nem mesmo na memória, embora sua existência subterrânea se

expresse na superfície sob a forma de becos, vielas, escadarias, fragmentos de áreas livres

e até de insurgências de água.

Isto pode ser observado corriqueiramente em muitas cidades brasileiras. É importante,

porém, diferenciar a situação que se pretende tratar aqui dos casos em que a canalização

deu lugar a grandes eixos viários pois, nestas circunstâncias, as marcas dos rios

tamponados ainda funcionam como guias para a leitura da paisagem – mesmo que sob a

forma de canteiros centrais ou taludes laterais ajardinados ou arborizados.

No caso considerado, ao contrário, a existência dos córregos é apenas sugerida pelos seus

vestígios, dispersos no espaço e diversos na forma. Pode-se passar constantemente pelos

lugares atravessados pelos córregos, pode-se até morar em suas proximidades, sem se dar

conta de que, sob variados disfarces, ali existe um curso d’água. Revelar sua existência a

partir destes indícios – que normalmente escapam ao olhar comum, à cartografia

convencional e às fotografias aéreas, e que só o palmilhar acurado do território pode

recuperar – demanda um trabalho semelhante ao do arqueólogo ou do detetive que, a partir

da espreita dos movimentos e da observação de fragmentos, busca esclarecer ou

reconstituir uma cena ou um contexto.

Dentre os inúmeros casos de cursos d’água capilares, anônimos e desaparecidos sob o

chão das cidades, despertam interesse aqueles relacionados à urbanização já consolidada,

com alto índice de ocupação do solo, e em processo mais ou menos acelerado de

transformação (verticalização, mudanças no uso ou na ocupação do solo), a ponto de só

restarem vestígios pálidos da existência do córrego, exigindo, portanto, maior esforço de

decodificação.

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Em São Paulo, o córrego Água Preta – que atravessa os bairros da Pompéia, Vila Anglo-

Brasileira e Vila Romana –; um afluente do ribeirão Uberaba – cortando o bairro de Moema,

desde a avenida Ibirapuera até a avenida Hélio Pelegrino –; o ribeirão Bexiga – que cruza a

Bela Vista desde o começo da rua Rui Barbosa até a Câmara Municipal –; um afluente sem

nome do rio Verde – que drena parte dos bairros Sumaré e Vila Madalena –, chamam

também a atenção e já foram abordados justamente por constituírem situações em que os

cursos d’água não se expressam na paisagem a não ser por indícios secundáriosi.

Os casos a serem expostos aqui referem-se a dois parques municipais de São Paulo –

Ibirapuera e Aclimação – ambos contando com lagos que constituem importantes focos de

atração, embora os córregos formadores não compartilhem igual notoriedade, nem sejam

aproveitados como formas de acesso privilegiado, do ponto de vista paisagístico-ambiental,

de pedestres e ciclistas àqueles equipamentos públicos. Os bairros em torno destes parques

– Vila Mariana, Vila Clementino, Paraíso, Cambuci – estão expostos às pressões por

mudanças no uso e na ocupação do solo, sem que os córregos que os atravessam estejam

contemplados por uma política de integração à paisagem ou de valorização enquanto

percursos alternativos e reveladores das sutilezas das formas urbanasii. Tampouco se nota

atenção para as oportunidades de conexão física entre os dois parques por meio dos vales

dos cursos d’água formadores dos lagos do Ibirapuera e da Aclimação, aproveitando as

declividades mais suaves proporcionadas pelo embate milenar dos rios com o relevo. Caso

isso fosse considerado, seria possível formar um tecido conjuntivo múltiplo, intrincado e

variado como a própria rede capilar de drenagem em que se apóia, interligando

comodamente equipamentos públicos de maior porte, uma vez vencidos, com alguma

astúcia, os divisores de água que os separam.

Bacias dos córregos formadores dos lagos do Ibirapuera e Aclimação separadas pelo divisor de águas da rua Domingos de Moraes.

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Entende-se que trazer à luz fatos espaciais ocultados do olhar ou recalcados na memória

coletiva, pondo à mostra o avesso do tecido, permita o reconhecimento e uma efetiva

assunção dos espaços associados à rede capilar dos córregos urbanos. O trabalho de

revelação, ou reapresentação dos córregos ocultos, justifica-se assim não somente pelo

efeito simbólico da operação, mas também pela possibilidade desta rede vir a constituir,

através de seus elementos devidamente trabalhados, mais uma das camadas ou estratos

disponíveis para as múltiplas associações que as práticas cotidianas não cessam de criar.

Deste modo, atualizam-se na mesma manobra tanto o prazer desinteressado que pode advir

da compreensão da base física primordial dos sítios, pela exposição da morfologia do relevo

e da hidrografia, ou das respostas inusitadas e pouco convencionais que uma urbanização

peculiar imprime na paisagem, quanto a apropriação prática, por pedestres e ciclistas, de

caminhos alternativos no interior de uma trama cuja racionalidade se apóia quase que

exclusivamente na fluidez dos deslocamentos motorizados.

O córrego do Sapateiro O córrego do Sapateiro, que também já foi chamado do Curtume ou do Matadouro, tem

suas nascentes no bairro de Vila Mariana, próximo à antiga estação dos bondes, na rua

Domingos de Moraes. Junto às suas cabeceiras, situadas a oeste do espigão que separa as

águas do Pinheiros das do Ipiranga, as principais referências urbanas atuais são a estação

Vila Mariana do Metrô e o colégio Madre Cabrini.

As nascentes, hoje não mais acessíveis, localizam-se na quadra formada pelas ruas

Domingos de Moraes, Carlos Vitor Cocozza, Lutfala Salim Achoa e Capitão Cavalcanti. O

relevo é particularmente acidentado nos primeiros 500 metros do alto curso do córrego, fato

que a declividade e o traçado irregular e sinuoso das ruas Sud Mennucci, Carlos Vitor

Cocozza, Capitão Cavalcanti e professor Frontino Guimarães vêm confirmar.

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Córrego do Sapateiro, na Vila Mariana (região das nascentes em destaque), e seu afluente na Vila Clementino.Traçado irregular das ruas evidencia o relevo acidentado na altura das nascentes. A primeira manifestação, embora indireta, da existência do córrego na região das nascentes

ocorre num beco curto e fechado, que dá para a rua Lutfala Salim Achoa. O curso d’água

prossegue por esta rua, atravessa a Capitão Cavalcanti e, depois de cruzar, sempre

subterrâneo, um espaço aberto, de acesso público, com o formato de um adro, adentra a

quadra do colégio Madre Cabrini, contornando os fundos dos lotes da rua Frontino

Guimarães e da vila que leva o nome de Irmã Efigênia, situada em cul-de-sac na

extremidade leste daquela rua. Os vestígios, sempre indiretos, de sua passagem voltam a

se expressar na paisagem no ponto mais baixo da rua Coronel Lisboa, no encontro com a

rua Pedro Morganti, onde se forma outro espaço em forma de adro.

À esquerda, beco na rua Lutfala S. Achoa, primeiro vestígio, publicamente visível, do córrego do Sapateiro. No centro e à direita, ruas sem saída (Lutfala S. Achoa X Capitão Cavalcanti e Pedro Morganti X Coronel Lisboa) formam espaços públicos semelhantes a adros, sob os quais passa o córrego.

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O trecho inicial, das nascentes à rua Coronel Lisboa, apresenta várias situações de

interesse do ponto de vista da ocupação do solo e do traçado viário, pois elas ainda

guardam as peculiaridades das soluções que respondem de perto aos condicionantes do

terreno natural. Tais características se tornam ainda mais interessantes quando comparadas

ao modo convencional, indiferente ou agressivo à paisagem com que o mercado imobiliário

vem atuando na região. Chama também a atenção a diversidade de usos do solo,

principalmente pela presença de várias instituições de ensino e pelo irromper de pontos de

comércio e serviços relativamente animados, num meio em que predominam as residências.

Estas são na maior parte uni familiares, no geral modestas e em bom estado de

conservação, sobressaindo algumas delas como testemunhos evocatórios dos tempos de

um bairro em formação.

As marcas iniciais da urbanização continuam impressas na paisagem do lugar que, já

avançada a terceira década do século XX, era ainda pouco ocupado, configurando um

grotão quase vazio, circundado por um anel de construções alinhadas ao longo das ruas

França Pinto, Domingos de Moraes, Tangará e do feixe formado pela Sena Madureira,

Capitão Macedo e Pinto Ferraz (atual Madre Cabrini), a separá-lo dos vazios mais vastos

dos campos do Ibirapuera, a oeste, das encostas do ribeirão Ipiranga, a leste, e do

loteamento de Vila Clementino, ao sul.

Alto curso do Sapateiro em 1930 Eram poucos e dispersos os lotes edificados nas ruas já abertas no interior deste anel,

observando-se maior adensamento nas ruas Tomás Alves e Major Maragliano e na

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confluência desta com as ruas Capitão Cavalcanti e Álvaro Alvim. As ruas Araxá (atual Sud

Menucci) e Frontino Guimarães eram praticamente desertas.

A cartografia de 1930 mostra ainda, no ponto correspondente ao atual encontro das ruas

Pedro Morganti e Coronel Lisboa, uma barragem do córrego, suficiente para formar um

pequeno açude, que já comparecia na carta de 1897, porém não mais na da década de

1950.

À esquerda, Planta Geral da Capital de São Paulo – Gomes Cardim – 1897; no centro, Mappa Topographico – Sara Brasil – 1930; à direita, Levantamento Vasp Cruzeiro – 1954

Hoje não há qualquer indício espacial da antiga lagoa, pois sobre ela construíram-se as

casas existentes entre as ruas Coronel Lisboa e Rio Grande. Porém, atravessada a Coronel

Lisboa, depara-se, a montante, com a área em adro, já referida, que é um remanescente do

espaço aberto associado ao boqueirão.

O córrego do Sapateiro, ao sair da quadra formada pelas ruas Capitão Cavalcanti, Madre

Cabrini e Coronel Lisboa, passa sob o leito da rua Pedro Morganti e prossegue sob a Mário

Cardim até o complexo viário chamado “cebolinha” (que interliga as avenidas Ibirapuera,

Rubem Berta e a rua Sena Madureira), onde recebe, sem que a urbanização tenha

concedido sequer uma referência a este acidente, um importante afluente pela margem

esquerda. Com o caudal assim aumentado, vai formar a seqüência de lagos do parque

Ibirapuera.

Mas antes dos lagos, e antes mesmo da foz do tributário, o Sapateiro deixa outros rastros

da sua existência. O mais evidente é o “largo” que a rua Mário Cardim forma no cruzamento

com a rua Rio Grande. Embora de pequenas dimensões e sem denominação própria, é um

espaço que se destaca pela arborização e pelos canteiros arbustivos. O largo está ainda

ladeado, na “margem” direita, pelas vilas Henrique Machado e Francisco Bibiano, hoje

cercadas, mas que, em outros tempos, abriam-se diretamente para o vale. Sua origem deve

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estar associada à fábrica da Palmolive, estabelecida na rua Rio Grande. As casas que as

compõem estão bem mantidas e os espaços livres comuns são convidativos e acessíveis

sem qualquer constrangimento por qualquer pessoa, apesar das grades e do portão que os

separa da rua Mário Cardim.

À esquerda e no centro, largo nas ruas Mário Cardim X Rio Grande; à direita, portão de entrada para as vilas

À esquerda, vista da vila Henrique Machado; no centro e à direita, aspectos da vila Francisco Bibiano. Provavelmente por conta do baixo trânsito de passagem de veículos e da favela que há

tempos se formou na área situada entre as vilas citadas e a rua Uruana, a rua Mário Cardim

(vale dizer a várzea do córrego) é a que apresenta maior concentração de pessoas

usufruindo o espaço público o qual, no caso, limita-se às calçadas e ao próprio leito

carroçável. É de todo oportuno o aprofundamento da pesquisa neste trecho específico da

bacia do Sapateiro, visando relacionar a história da ocupação e da urbanização da área, a

apropriação atual e a percepção das peculiaridades paisagísticas do lugar por parte daquela

comunidade. A dinâmica imobiliária do bairro torna também urgente a divulgação das

peculiaridades do sítio e a identificação das oportunidades de enfatizá-las, como tentativa de

evitar a camuflagem das suas singularidades pelas soluções convencionais de reciclagem

urbana e seu conseqüente apagamento da memória. Uma destas situações ocorre na rua

Rio Grande, na altura da Álvaro Alvim, em imóvel hoje desocupado, outrora industrial, a

cavaleiro da antiga favela já urbanizada junto ao vale.

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Rua Mário Cardim, sob a qual passa o córrego Sapateiro, na altura da favela ali estabelecida há tempos, e hoje urbanizada. O Sapateiro segue seu percurso, continuamente subentendido no traçado da rua Mário

Cardim a qual, à medida que se distancia da antiga favela, passa a assemelhar-se, no

aspecto e na pacatez, a outras tantas ruas do bairro, com suas residências uni familiares,

vilas fechadas, travessas e pequenas praças.

À esquerda, rua Castanheiro, travessa da Mário Cardim; no centro, Praça Riolândia X Rua Mário Cardim; à direita, final da rua Mário Cardim, próximo ao “cebolinha”. Ao atravessar a rua Tangará inflete à esquerda, buscando o ponto baixo onde deságua o

afluente que vem da Vila Clementino. Contorna assim a pequena elevação constituída na

confluência dos dois cursos d’água sobre a qual foi inaugurado, em 1887, o matadouro da

Vila Mariana, presentemente sede da Cinemateca Brasileira.

É neste ponto que se situa o maior conjunto de espaços livres e áreas verdes do bairro,

constituído pelo largo Senador Raul Cardoso, esplanada ampla, plana, em frente ao antigo

matadouro, mas com uso limitado a estacionamento de veículos, e pelos taludes

arborizados no que restou das encostas do vale contíguo, aos quais se deu oficialmente, e

abusivamente, por não configurar-se como tal, o nome de praça Kenichi Nakagawa.

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Largo Senador Raul Cardoso, ou do Matadouro Praça Kenichi Nakagawa, no divisor de águas entre o Sapateiro e seu afluente Por sua vez, o afluente do Sapateiro que nasce na Vila Clementino deixa marcas menos

evidentes na paisagem, a não ser na época das chuvas, quando provoca inundações. O

relevo ali é mais suave e é preciso estar bem atento aos detalhes para ler o percurso do

córrego.

A região das nascentes, grosso modo delimitada pelas ruas Sena Madureira, Mairinque,

Diogo de Faria e Coronel Lisboa, é bem menos expressiva que a do curso principal do

Sapateiro, tanto nas feições da topografia original, quanto nas características paisagísticas

resultantes da urbanização.

Afora o Liceu Pasteur, principal referência na quadra onde se situam as nascentes, as vilas

existentes nas ruas Mairinque e Coronel Lisboa são os únicos diferenciais no projeto

convencional do loteamento a marcar o lugar de origem do córrego. As da Coronel Lisboa o

fazem com maior ênfase por se localizarem no eixo da rua Estado de Israel, ainda chamada

do Tanque no levantamento de 1930.

Esta é de fato uma rua em talvegue até cruzar com a Botucatu, ponto em que o curso

d’água deflete para a esquerda, adentrando as quadras entre as ruas Estado de Israel e

Diogo de Faria. Justamente na esquina das ruas Estado de Israel e Botucatu situa-se hoje a

Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal de São Paulo, mas a possível

vantagem do uso institucional não se realiza em proveito da revelação do percurso do rio. A

mesma indiferença ocorre duas quadras abaixo, quando o córrego volta a cruzar a rua

Estado de Israel, já na esquina com a Leandro Dupré, altura em que se instalaram, à

margem direita, o Comando do 8o Distrito Naval da Marinha do Brasil e, contíguo a ele, o

Clube Adamus de Voleibol.

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São assim muito sutis os vestígios deixados pelo córrego afluente, só adivinhados pelos

dispositivos anti-enchentes, alguns até criativos, adotados pelos moradores mais afetados

por elas, e mal pressentidos nas pequenas excepcionalidades do traçado viário, ocupação e

uso do solo.

Vilas (no 487 e no 509 da rua Cel. Lisboa) envolvem área usada como estacionamento de veículos, na quadra das nascentes do córrego, marcando o início da rua Estado de Israel.

À esquerda, rua Estado de Israel (ex rua do Tanque), sob a qual, até a altura da rua Botucatu, corre o curso d’água; no centro e à direita, rua Manuel Cebrian Ferrer, por onde passa o córrego canalizado.

Dispositivos anti-enchente na rua dos Otonis A rua Manuel Cebrian Ferrer é um destes sinais. Curta, estreita e encurvada, contrasta com

a malha hipodâmica característica da Vila Clementino, deixando evidente que foi aberta para

encerrar o córrego em época mais recente, pois ainda não comparecia no levantamento de

1952-1959. Outro é a rua Francisco Castro, que já constava no levantamento de 1952-1959,

mas não no de 1930. Igualmente curta e situada sobre a linha de drenagem de um sub-

afluente abriga hoje diversas unidades da Escola Paulista de Medicina. Termina diante do

Instituto do Sono, no ponto baixo da rua Marselhesa, justamente onde as águas cruzam, em

diagonal, a quadra hoje ocupada por vários condomínios residenciais verticais. Daí a linha

d’água, canalizada, enfia-se por um lote de uso institucional, com baixa taxa de ocupação,

na esquina das ruas Botucatu e Diogo de Farias, atravessa esta última, corta o canto da

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quadra, passando por outro terreno de uso institucional e também pouco construído, e vai

encontrar-se com o contribuinte direto do Sapateiro, no fim da rua Manuel Cebrian Ferrer.

1930 – Local das futuras ruas Manuel Cebrian Ferrer e Francisco Castro abertas, respectivamente, sobre um afluente e um sub-afluente do córrego do Sapateiro.

Ruas Manuel C. Ferrer e Francisco Castro, de traçado atípico, denunciam a presença dos cursos d’água. Caminhando a jusante, sobressai a praça Manuel Vaz de Toledo – a rigor uma faixa estreita,

declivosa, coberta de eucaliptos, na rua Estado de Israel, entre as ruas Napoleão de Barros

e dos Otonis – como outra reminiscência do vale original, correspondendo a um trecho de

encosta da margem direita do córrego afluente do Sapateiro. Mas as construções ao longo

da Estado de Israel interpõem-se entre ela e o córrego, dificultando a associação.

Novamente algumas ocupações atípicas e a recorrente presença de “lava rápidos” e

estacionamentos de veículos fazem pressentir a presença do córrego.

Por fim, o curso d’água deixa o interior das quadras, cruza a Estado de Israel e completa

seu trecho final, antes de embocar no Sapateiro, beirando a atual rua Doutora Neide

Aparecida Sollito. Ali se destaca outro agrupamento de habitações irregulares e precárias,

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tipo de uso e forma de ocupação que, pela freqüência da associação, também acusa a

existência de um córrego, mesmo que não explícito.

Rua Doutora Neide A. Sollito, nas bordas do córrego canalizado, com edificações irregulares e precárias

Já encorpado pelo contribuinte da margem esquerda, o Sapateiro prossegue sob o

complexo viário que interliga as avenidas Ruben Berta, Pedro Álvares Cabral, Quarto

Centenário e Sena Madureira, desembocando, às escondidas, no parque do Ibirapuera.

Vem a público sob a forma de um lago, depois da assepsia que a urbanidade e o pudor

impõem, como se tivesse surgido do nada e não das nascentes escondidas no interior de

loteamentos prosaicos da Vila Mariana e da Vila Clementino, nem atravessado, sempre

oculto, as ruas e quadras daqueles bairros.

Praça Manuel Vaz de Toledo, lotes com ocupação não usual, estacionamentos e lava-carros na rua Estado de Israel, são indícios da presença do córrego

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O córrego do Sapateiro entra no parque do Ibirapuera pela “porta dos fundos”, afastado do olhar do público.

Passa por tratamento de redução dos poluentes antes de formar um dos cenários mais apreciados do parque. Dois córregos e o lago da Aclimação Os córregos formadores do lago em torno do qual foi implantado o parque Aclimação já

estão presentes, embora não nomeados, na Planta Geral da Capital de São Paulo,

organizada por Gomes Cardim em 1897.

O lago da Aclimação e seus formadores, nas plantas de 1897 (Gomes Cardim) e 1930 (Sara Brasil).

A região era conhecida como Morro Vermelho, que mais tarde passou a se chamar Morro da

Aclimação. Nessa topografia, correspondente a um esporão do espigão central, afloram as

águas destes dois pequenos córregos.

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Havia registro de uma mina d’água na baixada da Rua do Paraíso, associada a um dos

cursos d’água, explorada e comercializada em garrafas, e conhecida como “água do

paraíso”. Ainda na década de 1980 podiam ser encontradas bicas em porões de casas e

subsolos de prédios de apartamentos (DOREA, 1982).

A primeira menção oficial a este córrego pode ser encontrada no Ato n°266 de 20 de maio

de 1907: “O Vice-Prefeito do Município de São Paulo em exercício, usando das atribuições

que lhe são conferidas por lei, resolve dar a denominação de Rua Jurubatuba à rua sem

nome, existente no bairro da Guanabara, em Vila Mariana, paralela à Rua Chuí e abaixo da

mesma, que começa na Rua Tupinambá e, atravessando as Ruas Jaraguá e Corrêa Dias,

vai em seu prolongamento terminar em um pequeno riacho.” (DOREA, 1982).

Córrego da Aclimação (região das nascentes em destaque). A abertura de novas vias ocorreu exatamente sobre o antigo percurso dos córregos.

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Trata-se da atual rua Arthur Saboya, a qual, após contornar as cabeceiras do córrego,

assenta-se sobre seu vale já com o nome de avenida Armando Ferrentini. Até a década de

1960 ainda se atravessava o riacho por pinguelas (DOREA, 1982). Posteriormente, o

córrego foi canalizado e suas margens loteadas, formando quarteirões extensos, irregulares

e muito acidentados.

As obras de canalização do outro riacho, que corre no sentido sul-norte, datam de 1955. No

plano viário do município, previa-se a abertura de uma avenida no fundo do vale, a atual

Avenida Luís Gomes Cardim Sangirardi, entre o Jardim da Aclimação e a Rua Dona Brígida,

com uma extensão aproximada de 1.100 metros e largura de 26 metros. Nele se fazia

referência a dois córregos ainda a céu aberto: um deles foi canalizado para receber a

avenida projetada; o outro, localizado entre as ruas Machado de Assis e Joaquim Távora,

deveria comportar uma rua, nunca executada devido à excessiva declividade da encosta,

mas ocupada por edificações irregulares e precárias, recém-demolidas.

As manifestações sensíveis deste último córrego principiam na altura da rua Gregório

Serrão, graças a bocas de lobo por onde se pode ouvir o som das águas que passam a

vários metros de profundidade. Nos trechos mais íngremes serão executadas escadarias de

uso público, enquanto os setores a jusante, em relevo mais ameno, receberão

equipamentos de recreação e tratamento paisagístico. A confluência dos dois córregos é

marcada pela praça do Povo Húngaro, a partir da qual chega-se ao parque da Aclimação,

praticamente sem mudança de nível, pela avenida Luís Sangirardi, em fundo de vale,

facilidade que não foi convenientemente aproveitada para favorecer pedestres e ciclistas,

nem para estabelecer referências paisagísticas significativas em relação ao curso d’água.

Tem-se aí, de todo modo, condições de realização, ainda que parcial, de um dos pontos

aqui defendidos: o acesso público, condignamente qualificado, e a recuperação, ao menos

simbólica, dos espaços associados a córregos que já não têm mais expressão na paisagem

urbana.

Caminho do córrego, entre ruas Machado de Assis e Joaquim Távora. À esquerda, em seu curso alto e acidentado; à direita, em seu curso baixo, onde se constroem passeios e ciclovia.

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Praça do Povo Húngaro, na confluência de rios Avenida Luiz Sangirardi, sobre o córrego

O outro curso formador do lago da Aclimação é aquele que corre de oeste a leste,

coincidindo, no seu trecho final, com a avenida Armando Ferrentini. Este córrego recebe um

pequeno afluente, hoje encoberto pela rua André Gouveia, no ponto mais baixo da rua do

Paraíso.

Trechos superior e inferior de um pequeno afluente do Aclimação, encoberto pela rua André Gouveia

A montante deste ponto, o córrego atravessa o interior de uma quadra, cercada por edifícios

de apartamentos de classe média, inacessível ao público. Previu-se uma ligação viária entre

a rua Arthur Saboya e a avenida Armando Ferrentini, mas, dada a excessiva declividade, ela

tomou a forma de uma extensa escadaria flanqueada por áreas abertas e vegetadas, cujo

acesso é controlado por portões nas extremidades superior e inferior. Foi possível verificar,

em visita ao local, que o trânsito por estas escadas é restrito aos moradores que possuem

as chaves dos portões. Apesar da semelhança com o caso da ocupação por habitações

precárias, referido anteriormente, quanto às condições de inserção no tecido urbano,

observa-se aqui a nítida diferença em relação à gestão do espaço público mediante o

controle privado do acesso. Por mais que se aleguem razões de segurança e de

manutenção para justificar o cerceamento do trânsito irrestrito, a desigualdade no

tratamento da questão salta à vista.

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Escadaria na rua Arthur Saboya, avenida Armando Ferrentini, e boca de lobo na rua Topázio

Atravessada esta quadra, o córrego prossegue sob o leito da avenida Armando Ferrentini,

sem em qualquer momento manifestar sua presença, a não ser no cruzamento com a rua

Topázio, já na altura do parque, novamente graças a bocas de lobo ostensivas.

Conclusão

Ambos os casos apresentados permitem verificar que à importância paisagística dos lagos,

um dos grandes atrativos do parque Ibirapuera e, certamente, o principal foco do parque

Aclimação, não corresponde o tratamento indiferente, se não agressivo, dispensado aos

córregos formadores.

Os cursos d’água foram tradicionalmente encarados como estorvos à urbanização, sua

serventia se limitando aos serviços de saneamento, no melhor dos casos, ou ao lançamento

direto de dejetos, nos piores e mais comuns. Sendo áreas rejeitadas, foram afastadas dos

olhares públicos. Seus vales, deixados ao acaso, foram ocupados irregularmente por

habitações precárias ou então privatizados, mesmo quando públicos, por empreendimentos

imobiliários.

A aprovação do Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, em 2002, ensejou a

execução de parques lineares ao longo de cursos d’água ainda com alguma expressão na

paisagem, os quais compõem a chamada “rede hídrica estrutural”. Ficaram de fora, no

entanto, os capilares desta rede, os quais, não obstante, podem se integrar aos espaços

livres públicos de maior porte e, assim, conectá-los.

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A detecção destas oportunidades, quase sempre sutis, só é possível pelo andar lento e pelo

olhar acurado, empenhados em percebê-las. As singularidades, tanto físicas quanto sociais,

de cada caso exigem respostas particulares, frustrando qualquer esforço de generalização.

O que há em comum, ao menos em certos trechos dos casos estudados, é a ocorrência de

soluções pouco usuais, estranhas às “boas normas” urbanísticas ou às convenções, sempre

que se trata de encarar ou de driblar as constrições que a matéria primordial do sítio – o

relevo associado à hidrografia – impõe à urbanização. Mesmo quando estes supostos

entraves são vencidos pela força, arrasados, enterrados, sobram alguns vestígios, resíduos

que denunciam a operação.

O que se advoga aqui não deve ser confundido, no entanto, com a defesa de medidas de

“renaturalização”, ademais nada naturais, ou de proposições que idealizam as relações

entre a urbanização e a materialidade primordial do sítio. Há harmonias, mas também há

conflitos, e daí decorrem repostas não previstas, que convém levar em conta. Escadarias,

dispositivos incomuns, volteios bruscos de ruas, divisões insólitas dos lotes, ocupações

atípicas, insurgências de água. Reclama-se considerar a riqueza deste repertório, riqueza

constatável tanto nas particularidades das respostas pontuais quanto nas oportunidades de

articulação destes pontos, constituindo novos percursos na cidade, aumentando as

possibilidades de leitura e de apropriação.

Acessar um parque por caminhos que proporcionem experiências que o cotidiano embota,

afasta ou impede, já representa um ganho, seja pelo conforto, seja pela qualidade

ambiental, seja pelo mero prazer de perceber e experimentar o espaço de uma outra forma

e de não consumi-lo de um modo estritamente funcional e especializado – descaminho que

pode se dar mesmo nos parques, se vistos como “bolhas” de saúde e bem estar, antídotos

de um urbano degradado.

Ir de um parque a outro por rotas alternativas e confortáveis é um ganho a mais, na medida

em que se ampliam as possibilidades já vislumbradas. Entre os dois parques aqui

apresentados tais ligações podem se dar, conquanto se explorem as situações detectadas

numa e noutra bacia, vencendo, pelos caminhos mais suaves, o divisor de águas que as

separa.

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Referências bibliográficas

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, São

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em São Paulo (1822-1901). São Paulo: Senac, 2007.

Notas i Sobre o córrego Água Preta ver Vladimir Bartalini, “Os córregos ocultos e a rede de espaços públicos urbanos”, em Pós – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 16, dezembro 2004; sobre os casos do Bexiga e dos afluentes do Uberaba e do Verde, ver Vladimir Bartalini, “A trama capilar das águas na visão cotidiana da paisagem”, em Revista USP, n. 70, junho / julho / agosto 2006. ii Em recente vista a campo verificou-se que está em andamento o programa Córrego Limpo, uma parceria entre a Sabesp e a subprefeitura de Vila Mariana, com a implantação de um percurso para pedestres, a ser ajardinado, arborizado e provido com equipamentos recreativos, coincidente com o traçado da galeria que encerra um afluente do córrego que deságua no lago da Aclimação.