Guilherme de Carvalho - A Missão Integral Na Encruzilhada - Reconsiderando a Tensão No Pensamento...

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7/21/2019 Guilherme de Carvalho - A Missão Integral Na Encruzilhada - Reconsiderando a Tensão No Pensamento Teológico … http://slidepdf.com/reader/full/guilherme-de-carvalho-a-missao-integral-na-encruzilhada-reconsiderando 1/39 1.  A missão integral na encruzilhada Reconsiderando a tensão no pensamento  teológico de Lausanne GUILHERME V ILELA  RIBEIRO DE C  ARVALHO Evangelização e responsabilidade social: quem é responsável pelo quê? Entre as questões que o congresso de Lausanne procurou responder, talvez a mais importante seja a que focalizou a relação entre evangelização e responsabilidade social. O debate sobre essa relação levou à formulação de um conceito mais amplo de missão cristã, ex- presso no conceito de missão integral, englobando tanto a evangelização quanto a responsabilidade social, sendo ambas inter- relacionadas e essencialmente distintas. A partir daí, todas as discus- sões em torno da missão integral passaram a focalizar sua fundamen- tação e aplicação à luz da prática pastoral e missionária. No entanto, decorridos trinta anos do Congresso de Lausanne, algumas questões permanecem em aberto. Até hoje, como se pôde perceber em algumas palestras do CBE-2 — Segundo Congresso Bra- sileiro de Evangelização, a definição dos limites entre missão, evangelização e ação social permanece obscura. Russell Shedd defen- deu em sua palestra a ideia de que evangelização e ação social são

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1.

 A missão integral na encruzilhadaReconsiderando a tensão no pensamento teológico de LausanneGUILHERME V ILELA  RIBEIRO DE C ARVALHO

Evangelização e responsabilidade social: quem é responsável

pelo quê?Entre as questões que o congresso de Lausanne procurou responder,talvez a mais importante seja a que focalizou a relação entreevangelização e responsabilidade social. O debate sobre essa relaçãolevou à formulação de um conceito mais amplo de missão cristã, ex-presso no conceito de missão integral, englobando tanto aevangelização quanto a responsabilidade social, sendo ambas inter-relacionadas e essencialmente distintas. A partir daí, todas as discus-sões em torno da missão integral passaram a focalizar sua fundamen-

tação e aplicação à luz da prática pastoral e missionária.No entanto, decorridos trinta anos do Congresso de Lausanne,

algumas questões permanecem em aberto. Até hoje, como se pôdeperceber em algumas palestras do CBE-2 — Segundo Congresso Bra-sileiro de Evangelização, a definição dos limites entre missão,evangelização e ação social permanece obscura. Russell Shedd defen-deu em sua palestra a ideia de que evangelização e ação social são

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coisas distintas, sendo a evangelização prioritária. Já para AntônioCarlos Barro, ação social também é evangelização, o que contrariana forma (se não no espírito) o Pacto de Lausanne. Porém, como elemesmo observa, Lausanne não produziu um consenso sobre o assunto:

[...] Foi a partir do Congresso de Lausanne, então, que as coisas,pelo menos no mundo evangélico, ficaram um pouco mais defini-das [...] os mais fundamentalistas, os mais conservadores continua-ram crendo que a evangelização é a tarefa principal da igreja. Ou-tros, numa segunda posição um pouco mais moderada, começa-

ram a pensar que a busca pela justiça social também deveria serintegrada à missão da igreja, mas ainda subordinada à evangelização;para estes, a evangelização continuava sendo ainda a primeira mis-são, a prioridade da igreja. E um terceiro grupo começou a traba-lhar na direção de que não há prioridade na missão integral: tantoa evangelização como a ação social se completam, sem umapriorização entre elas.1

O outro problema que focalizamos é de natureza bastante prática.Muitos pastores, missionários e líderes, preocupados com a missão da

igreja, compreendem a ideia da natureza integral da missão, masencontram dificuldade para colocá-la em prática. Muitos se queixamda dificuldade em dividir as energias da igreja entre as ações sociais eas tarefas vistas como “mais espirituais” (evangelismo, ministérios eoutras). Alguns temem que a igreja perca o fervor evangelístico aobuscar a ação social. Outros observam que nas igrejas envolvidas comprojetos sociais há pouca participação direta dos crentes, já que seusmembros se sentem seguros e descansados em relação aos deveressociais. Finalmente, há um fato mais concreto e fácil de observar: a

ineficiência demonstrada pelas igrejas na realização de ações de cará-ter social. Os projetos realizados pelas igrejas tendem a ser amadoresou mesmo superficiais, principalmente quando realizados por igrejaspequenas, e são sempre avaliados a partir de sua eficácia evangelística.

 Algumas comunidades chegam a interromper seus projetos sociaissob o argumento de que eles pouco contribuem para acrescentar novaspessoas à igreja.

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19 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

Levantamos algumas questões concretas diante da proposta deLausanne. Como a igreja local deve pôr em prática a missão integral?O que ela deve e o que não deve fazer como igreja? Em outras pala-

 vras, “quem é responsável pelo quê?”.  Lausanne pode nos oferecerestratégias concretas, ou ao menos uma linha de orientação para essaprática?

Certamente Lausanne representou um grande avanço missiológicoem relação à antiga forma dualista e evasiva de apresentação do evan-gelho, dominante até hoje em várias partes do mundo evangélico,

especialmente no hemisfério norte, mas também no hemisfério sul,mais especificamente no Brasil. A aplicação da proposta de Lausanneteve um alcance limitado no Brasil, tanto em termos estratégicos comoteológicos. Isso se deve em parte à forte resistência de boa parte daliderança evangélica brasileira. Porém, não é essa dificuldade queabordamos. Ao examinarmos a questão, encontramos um ponto detensão interno, que parece ter bloqueado o desenvolvimento teóricoe estratégico do conceito de missão integral, expresso na necessidadede manter certa ambiguidade ou generalidade teológica na discussão

sobre a estratégia da missão integral.  Esta questão aparentementenos levou a um beco sem saída.

Neste capítulo, focalizamos principalmente a questão estratégicasobre missão integral e igreja local, ignorando outros temas inte-ressantes e relevantes, porém não diretamente ligados à nossa per-gunta. Também não abordamos alguns desdobramentos e propostasposteriores, nos atendo aos textos oficiais e, ou, reflexões de pessoasdiretamente envolvidas com Lausanne. Para tanto, consideramostrês grupos de material teológico que podem ajudar a responder,

implícita ou explicitamente, às nossas questões — o que, natural-mente, dará ao capítulo uma estrutura mais analítica. Esse materialinclui o próprio texto do Pacto de Lausanne, os textos das princi-pais palestras do congresso e os relatórios das consultas teológicasposteriores a ele. Ao final, apresentamos uma avaliação críticasobre o valor e os limites da teologia de missão integral, propondoum caminho para o futuro.

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Igreja e missão integral no texto do Pacto de Lausanne

 A leitura do texto do Pacto de Lausanne revela alguns dadosimportantes. No quarto parágrafo (“A natureza da evangelização”),a evangelização é definida como a divulgação das boas novas arespeito de Jesus. Embora a presença cristã seja indispensável àevangelização, “[...] a evangelização em si é a proclamação do Cristobíblico e histórico como Salvador e Senhor, com o propósito depersuadir os homens [...]”. O Pacto adere, portanto, à visão clássicaevangélica sobre a natureza da evangelização.

O parágrafo seguinte (“A responsabilidade social cristã”) apresen-ta uma diferenciação entre evangelização e ação social: “Embora areconciliação do homem com o homem não signifique a reconcilia-ção deste com Deus, nem a ação social evangelização, nem a emanci-pação política salvação, contudo, afirmamos que tanto a evangelizaçãocomo o envolvimento sociopolítico são parcelas do nosso dever cris-tão”. Assim, fica estabelecido que a obra missionária inclui tarefasclaramente distintas e ao mesmo tempo inter-relacionadas, e queevangelização não pode ser confundida com ação social, distanciando

a posição evangélica da posição ecumênica.No sexto parágrafo (“A igreja e a evangelização”), encontramos

expressões mais concretas: “É necessário que larguemos os nossos‘guetos’ eclesiásticos e que impregnemos a sociedade não cristã”. Oque seriam esses “guetos eclesiásticos”? Seria uma referência à ausên-cia de evangelização por parte da igreja ou à ausência de uma presen-ça cristã integral? A julgar pelas frases seguintes, o texto se refere aambas: “O serviço de evangelização abnegada figura como a tarefamais urgente da igreja. A evangelização mundial requer que a igrejatoda leve a todo o mundo o evangelho integral”. Desse modo, embo-ra a evangelização tenha sido definida pelo Congresso de Lausannecomo a “proclamação do evangelho” e a tarefa “mais urgente da igre-ja”, uma evangelização mundial efetiva exige que a igreja leve o “evan-gelho integral”, isto é, que ela não somente anuncie o evangelho(evangelização), mas também dê expressão visível ao evangelho emsua integralidade (ação social).

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21 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

Nesse mesmo parágrafo, encontramos uma definição eclesiológica:“A igreja é a comunidade do povo de Deus e não uma mera institui-ção. Ela não deve ser identificada com nenhuma cultura em particu-lar ou com qualquer sistema social ou político, ou com ideologiashumanas”. A igreja de Cristo é definida como a congregação do povode Deus, o que significa que ela é o povo de Deus em vida comunitá-ria. Esta parece ser uma definição de igreja local. O que está sendopontuado é que a igreja é mais do que uma instituição e não pode seridentificada com estruturas humanas da vida social, nem com uma

cultura em particular, nem com algum sistema político ou ideologia.De algum modo, pode-se afirmar que a igreja transcende a cultura.No oitavo parágrafo (“Esforço conjugado de igrejas na

evangelização”), há uma breve referência ao papel das agênciasparaeclesiásticas: “Agradecemos a Deus pelas instituições ora empe-nhadas na tradução da Bíblia, na educação teológica, na comunica-ção em massa, na literatura evangélica, na evangelização, nas mis-sões, na renovação da igreja e em outros campos especializados”.

* * *

Estas são as declarações mais significativas extraídas do texto do Pactoa respeito da prática da missão integral pela igreja. Elas esclarecem adiferença entre evangelização e ação social e afirmam ao mesmo temposua unidade na missão e no evangelho integral. Recomendam tam-bém que se faça um esforço no sentido de unir o anúncio e a presen-ça cristã, pedindo aos cristãos que saiam de seus “guetos eclesiásticos”para impregnar o mundo.

No entanto, o Pacto parece ignorar o problema da prática da mis-são pelas igrejas locais. A afirmação de que a igreja transcende asinstituições sociais e as formas culturais humanas pode significar quenenhum projeto social histórico pode ser identificado como “igreja”.

 A igreja seria então uma realidade divina presente em sua missão,mas distinta das formas históricas dessa missão. Isso funcionariamelhor se o Pacto fizesse uma diferenciação entre igreja universal

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(invisível) e igreja local; pois, do contrário, as igrejas locais nãopoderiam ter nenhum tipo de envolvimento sociopolítico. De qual-quer modo, o texto não faz referência à maneira como as igrejaslocais devem praticar a missão. Por fim, ao mencionar as agênciasparaeclesiásticas, o texto inclui somente as instituições interessadasna evangelização propriamente  dita, sem fazer referência às institui-ções sociais de caráter não-eclesiástico, como hospitais, escolas etc.

Igreja e missão integral nas principais palestras do

Congresso de LausanneEm 1982, a ABU Editora publicou, em conjunto com a Visão Mundial,uma compilação das principais palestras do Congresso de Lausanne,sob o título  A Missão da Igreja no Mundo de Hoje. A coletânea incluiartigos de Billy Graham, John Stott, Michael Green, Howard Snyder,Samuel Escobar, René Padilla, Francis Schaeffer e Festo Kivengere.2

Como essas palestras tiveram grande peso na elaboração do Pacto,é útil examiná-las em busca de respostas para o nosso problema

teórico.Entre os autores das palestras publicadas, apenas Michael Green,Francis Schaeffer e Festo Kivengere não se referem especificamenteao nosso objeto de investigação. Assim, nos concentramos nas de-mais palestras, abordando rapidamente o artigo de Michael Green.

No capítulo “Por Que Lausanne?”,  Billy Graham procura justifi-car a convocação do Congresso de Lausanne, distinguindo-o dos de-mais congressos e movimentos. É notória sua preocupação em dissociarLausanne do movimento ecumênico e do evangelho social. Ele afir-

ma que, nos encontros posteriores à Conferência de Edimburgo(1910), ocorridos em Jerusalém, Tambaram, México e Bancoc, “[...] ofoco de atenção deslocou-se gradualmente da evangelização para aação político-social”.3 Ao discutir os conceitos bíblicos essenciais àevangelização, Graham critica alguns erros relacionados à nossaresponsabilidade social, sendo o primeiro deles “negar que tenhamosqualquer responsabilidade social como cristãos”. O segundo seria

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23 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

“[...] permitir que a preocupação de ordem social absorva todo onosso tempo, tornando-se a nossa única missão”. Isso seria terrível,uma vez que “a nossa tarefa principal não é essa”.4 O terceiro erroseria a identificação do evangelho com “um programa político oucultural específico”.5

 As preocupações de Billy Graham ficam mais explícitas quandoele busca traçar uma linha divisória entre evangelização e ação social:

 A evangelização tem sido reinterpretada em alguns círculos comosendo “mudança das estruturas da sociedade no sentido da justiça,

da retidão e da paz”. Afirma-se que a evangelização na indústria,por exemplo, consiste não em levar trabalhadores a abraçar a féredentora em Jesus Cristo, mas em melhorar as condições detrabalho dos operários.6

Billy Graham reconhece que isso é importante, mas “não constituievangelização”, entendida como o anúncio de Jesus para a salvaçãodas almas — tema central do encontro. Ao mesmo tempo, ele de-monstra ter esperança de que a relação adequada entre evangelização

e ação social seja explicitada no congresso. John Stott começa a responder a essa questão no capítulo “A BaseBíblica da Evangelização”,7 buscando definir, a partir de um estudobíblico-teológico, alguns conceitos evangélicos cruciais, como missão,evangelização, diálogo, salvação e conversão. Para Stott, a missão daigreja pode ser entendida como “[...] tudo aquilo que a igreja é envia-da ao mundo para fazer”, incluindo a responsabilidade social.8 Quan-to à evangelização, esta deve ser definida em termos de mensagem,consistindo no anúncio evangélico. Stott ainda afirma que a salvação

oferecida hoje em Cristo não consiste em sanidade físico-mental.Termos como humanização, desenvolvimento, integridade  e libertação

descrevem alvos cristãos desejáveis, mas “nada disso [...] correspondeà ‘salvação’ que Deus oferece ao mundo em  e por meio  de Cristo;chamar a libertação sociopolítica de ‘salvação’ é incorrer em rudeequívoco teológico”.9  John Stott concorda substancialmente comGraham na diferenciação entre ação social e evangelização, exceto

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por sua definição de missão em termos mais amplos e por nãoestar preocupado em tratar a evangelização como a tarefa “maisimportante” da igreja.

Michael Green, ao abordar o tema “Estratégia e MétodosEvangelísticos na Igreja Primitiva”,10  destaca a flexibilidade na apre-sentação do evangelho demonstrada pela igreja primitiva, aliada auma grande firmeza no conteúdo. As duas principais heresias da épo-ca (gnosticismo e judaização) teriam resultado da falha em manteresse equilíbrio, o que levou ao “relativismo transcultural acrítico” e a

“uma insistência teimosa em empregar a ‘linguagem de Sião’”.11

 Quan-to à relação entre evangelização e cultura, Green observa que osapologistas do segundo século “permaneceram como professores defilosofia, convencidos de que haviam encontrado a verdadeira filoso-fia capaz de ajudar a todos em toda parte, além de relacionarem Cris-to com o mundo intelectual de seu tempo”.12 Embora Green nãotenha desenvolvido o ponto da relação entre evangelização e açãosocial, ele faz uma observação bastante significativa para a missãointegral: no campo intelectual, a igreja, em seus melhores momen-

tos, não apresentou o evangelho apenas como “piedade religiosa” ou“caminho ético”, mas também como sistema filosófico, no mercadodas ideias. Talvez esse insight possa ser aproveitado em outras dimen-sões da missão integral. Finalmente, Green concorda que “aevangelização é a prioridade essencial da igreja”,13 afirmando, junta-mente com Graham e Stott, que todas as dimensões da tarefa daigreja são indispensáveis.

O capítulo “A Igreja como Agente de Deus na Evangelização”, deHoward Snyder, ex-deão do Seminário Teológico Metodista Livre,

em São Paulo, pode contribuir para a solução do nosso problemateórico.

Snyder começa afirmando que a igreja é “o agente de Deus naevangelização” e o “único meio divinamente indicado de divulgaçãodo evangelho”.14  Então tenta definir a concepção bíblica de igreja,criticando tanto a concepção “institucional” como “mística”. Para ele,ambas ignoram o fator “cultura”, já que a concepção institucional

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confunde a igreja com uma determinada forma cultural, e a místicacoloca-a acima da cultura.15 Já na concepção bíblica, a igreja é vista, apartir de uma perspectiva cosmo-histórica, como o “agente terrenoda reconciliação cósmica desejada por Deus”. Isso significa que “[...] amissão da igreja é mais abrangente que a evangelização”. A evangelização seria a prioridade inicial da igreja, mas a missão se es-tenderia até a reconciliação em outras áreas. Percebe-se novamenteuma substancial coerência com os outros autores.

 Ainda em seu esforço para definir igreja, Snyder afirma que, de

acordo com a visão bíblica, ela é mais carismática que institucional eque, da perspectiva do Novo Testamento, ela “é um organismocarismático, não uma organização institucional”.16  Assim, as igrejaslocais deveriam se libertar da “rígida estrutura institucional” e buscarum formato mais carismático, o que implicaria a adoção de um mo-delo menos hierárquico e menos burocrático.

Snyder define a igreja como “a comunidade do povo de Deus” — amesma definição adotada pela redação final do Pacto de Lausanne. A igreja seria povo de Deus no sentido de nova raça ou nova humani-

dade, e comunidade por ser um corpo em que há comunhão. Povo ecomunidade  seriam os dois polos que formam a “realidade bíblica daigreja”.17 Assim, o termo povo  teria um sentido universal, “cosmo-his-tórico”, enquanto o termo comunidade  estaria ligado à ideia de vidaem comum e organização carismática, enfatizando a dimensão localda igreja.

Snyder defende C. Peter Wagner em sua crítica aos modelos deevangelização que enfatizam a “presença” (Samuel Escobar, RenéPadilla?) ou a “proclamação” (Stott?), afirmando que seu objetivo se-

ria a “persuasão”, ou seja, fazer discípulos.18 Ele destaca que o objetivoda evangelização deveria ser “a formação da comunidade cristã”.19

No que diz respeito ao crescimento da igreja, Snyder já criticava aideia de megaigreja, apresentando como modelo bíblico a formaçãoe multiplicação de congregações locais.

Na terceira parte do capítulo, Snyder discute as estruturas deuma igreja evangelizadora. Segundo ele, a Bíblia não faz referência

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pormenorizada à organização denominacional ou local. Já que aigreja não é uma instituição organizacional, precisamos nos posicionara respeito das diversas estruturas que não apresentam base bíblicaexplícita.

Snyder divide essas estruturas em três grupos básicos: as estruturasdenominacionais (escolas, juntas de missões etc.), as estruturasinterdenominacionais (federações, associações, cruzadas, congressos)e as estruturas não-denominacionais (associações evangelísticas, edi-toras, agências missionárias, hospitais). Essas estruturas paraeclesiásticas

devem se “[...] distinguir claramente da igreja como comunidade dopovo de Deus”20 e ser julgadas não pela legitimidade bíblica, mas pelafuncionalidade.

Snyder busca lidar com as consequências dessa distinção para aevangelização transcultural. Ele afirma que a igreja em si é semprerelevante transculturalmente, mas as estruturas paraeclesiásticas po-dem não ser tão relevantes. Talvez o missionário tenha de deixarpara trás as estruturas paraeclesiásticas próprias de sua cultura. Eleconclui afirmando que “[...] todas as estruturas paraeclesiásticas de-

 vem submeter-se a contínua e rigorosa análise socioteológica, paratestar sua eficiência como instrumentos da igreja”.21

 Após a reação dos delegados do congresso à sua palestra, Snydercomenta alguns pontos interessantes. Ao ser questionado sobre suaafirmação de que a igreja “não é uma instituição”, ele reconhece que“sociologicamente, seria ingênuo dizer que a igreja nada tem de insti-tuição. Todo esquema de comportamento coletivo que se torna habi-tual ou costumeiro é uma instituição”.22 Afirma, no entanto, que

para a igreja do Novo Testamento o aspecto institucional era secun-dário e que, embora a igreja sempre manifeste alguns aspectosinstitucionais, “[...] nenhuma instituição, porém, há de ser ela pró-pria a igreja”.23  Quanto às estruturas paraeclesiásticas, Snyder revela:“No convite que me foi dirigido para apresentar uma mensagem nestecongresso, pediram-me para falar especificamente sobre a relaçãoentre as estruturas paraeclesiásticas e a evangelização”.24

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27 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

 A ref lexão de Snyder merece uma avaliação mais atenta. Emprimeiro lugar, percebe-se que ele concorda com as distinçõesconsensuais entre evangelização e ação social, além de reconhecer ocaráter integral da missão, englobando toda a tarefa da igreja comoagente de reconciliação. Em segundo lugar, Snyder parece fazer umjuízo mais positivo do movimento de crescimento da igreja, ao argu-mentar que toda evangelização implica necessariamente a formação,edificação e multiplicação de novas igrejas.

Quanto à natureza da igreja e sua relação com as instituições

paraeclesiásticas, nota-se facilmente a influência de Snyder no Pactoao empregar suas palavras na definição de igreja. A ideia dos doispolos (povo/comunidade), incorporada pelo Pacto, é teologicamentesuperior à antiga distinção entre visível/invisível empregada pela te-ologia protestante clássica. Ao discutir a relação das instituiçõesparaeclesiásticas com a igreja, Snyder parece se limitar à igreja local.Mas como compreender a relação entre a igreja, como povo univer-sal de Deus, e essas instituições? Podemos considerá-las como expres-sões válidas da igreja?

 Ao discutir a questão das instituições paraeclesiásticas, Snyderapenas delimita seu papel na tarefa da evangelização, deixandodúvidas quanto à sua participação na realização da missão integral.No entanto, não podemos criticá-lo, já que, como ele mesmo reve-lou, foi convidado para falar sobre evangelização. Snyder inclui nogrupo das instituições paraeclesiásticas aquelas relacionadas à missãointegral, embora não necessariamente conectadas à evangelização,como escolas e hospitais. Diferentemente do que se pode dizer deoutras instituições, como editoras evangélicas ou agências missionárias,

não se pode afirmar que a evangelização deveria ser a tarefa primor-dial de um hospital. Afinal, a evangelização é a própria razão de serdas igrejas e das associações evangelísticas; sem evangelização, elasnão existiriam — o que não acontece com as escolas e os hospitais.

Isso nos leva a uma crítica preliminar ao Congresso de Lausanne,a partir de suas palestras mais representativas. Parece haver umatensão entre a concepção de evangelização e missão e a concepção de

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igreja e instituições paraeclesiásticas. Se afirmarmos que a tarefa maisimportante da missão é a evangelização, devemos concordar que aigreja deve priorizar a evangelização. É fácil compreender isso quan-do se trata da igreja local. E quando nos referimos à igreja universal?É claro que não seria possível a um médico colocar a evangelização dopaciente acima de seu bem-estar físico. Além disso, se considerarmostodas as instituições relacionadas à missão como paraeclesiásticas,passaremos a julgar todas as instituições cristãs pela sua eficiênciaevangelística.

 A diferenciação entre missão integral e evangelização pareceexigir uma definição mais clara em relação ao papel da igreja e deoutras instituições cristãs, paraeclesiásticas ou não. Além disso, épreciso definir a relação entre essas instituições e a igreja, como povouniversal de Deus.

René Padilla, em “A Evangelização e o Mundo”, define a evangelizaçãocomo uma mensagem pessoal, não dirigida ao indivíduo de per si,mas como membro da “velha humanidade em Adão”. Dessa forma,não se trata de uma decisão individual, isolada da relação entre o

indivíduo e o mundo. Assim, torna-se necessário definir mundo  naperspectiva bíblica. A própria obra de Deus em Jesus “[...] lida direta-mente com o mundo como um todo, não simplesmente com o indi-

 víduo”.25 Talvez sua reflexão possa nos fornecer alguma luz quanto àforma de a igreja interagir com o mundo na evangelização e na mis-são integral.

O exame das Escrituras indica que Deus criou o mundo e um diairá criá-lo de novo. Assim, “[...] a única evangelização verdadeira é aque se dirige para o objetivo final, com a ‘restauração de todas as

coisas’ em Jesus Cristo [...]”.26 O mundo pode ser definido como “ocontexto espaço-temporal da vida” ou ainda como “a humanidade[...] hostil a Deus e escravizada pelos poderes das trevas”.27  Nessesentido, o mundo envolve, mais do que os indivíduos, suas rela-ções totais. Assim, o problema do homem não se resume aos seuspecados, tomados de forma isolada e abstraídos do sistema de vidamundano. Padilla conclui que “[...] a evangelização não se pode

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29 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

reduzir à comunicação verbal de conteúdo doutrinário, sem referir-se aformas específicas de envolvimento humano no mundo”.28

 A evangelização conduz à separação entre a igreja e o mundo, masisso não deve ser interpretado como isolacionismo, principalmenteporque o Novo Testamento apresenta Jesus como Senhor de todas ascoisas, e não apenas das pessoas. Isso significa que as versões do cristi-anismo que tentam adaptá-lo à mentalidade secular ou acomodá-loao conservadorismo político são mundanizantes. Um tipo especialdesta última versão é o cristianismo americanizado, que abre mão da

concepção bíblica de missão em favor da eficiência no crescimentonumérico.29

Padilla concorda, embora não sem alguma relutância, com adistinção entre evangelização e missão, afirmando serem as duasinseparáveis. Destaca que a obra de Jesus “comportava uma dimen-são político-social” e que a comunidade que ele fundou vivia livre dasbarreiras sociais e limitações opressivas da sociedade pecaminosa.30

Pode-se dizer que o contexto da evangelização eficaz inclui uma visãointegral da missão e uma ação integral correspondente.

Embora duramente criticado, Padilla desafia a noção defendidapor alguns dos palestrantes citados de que a evangelização seria a ta-refa essencial da missão. Apesar de manter a crítica à posiçãoecumênica, que identifica evangelização com ação sociopolítica, eleafirma que tratar a responsabilidade social como uma tarefa desejá-

 vel, porém não essencial à missão, significa sustentar um evangelhoincompleto. Ele concorda que “[...] o Evangelho não pode reduzir-seao social, ao econômico, ao político, nem a igreja reduzir-se a umaagência de desenvolvimento humano”.31  Porém, nega que essas di-mensões sejam periféricas, pontuando com palavras fortes:

Recuso-me, portanto, a colocar uma cunha entre a tarefa primordial,a saber, a proclamação do evangelho, e a secundária (na melhor dashipóteses), ou mesmo opcional (na pior das hipóteses) da igreja. A fim de ser obediente ao seu Senhor, a igreja nunca deveria fazernada que não fosse essencial. Portanto, nada do que a igreja faz emobediência ao Senhor é não-essencial.32

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 30

 Aparentemente, o objetivo de Padilla é demonstrar a relaçãoíntima entre o indivíduo pecador e o mundo, bem como a naturezaintegral do evangelho, para finalmente questionar em termos clarosa noção de que a evangelização seria a tarefa “primordial” da missão,sendo a responsabilidade social uma tarefa secundária. Levando seuraciocínio às últimas consequências, deveríamos atribuir à igreja lo-cal a tarefa não apenas de evangelizar, mas também de desenvolver amissão integral em todas as suas dimensões, sem priorizar nenhumadelas em particular. Entretanto, Padilla não nos dá pistas concretas

sobre como fazer isso.Samuel Escobar inicia seu capítulo “A Evangelização e a Busca de

Liberdade, de Justiça e de Realização pelo Homem” com um panora-ma do mundo atual, com suas injustiças sociais e teorias de complô,que, se por um lado identificam o cristianismo com o imperialismoocidental, por outro suspeitam de “um grande complô contra o cristi-anismo, como parte de um plano comunista ou humanista para sub-

 verter o bom Ocidente cristão”.33

Ele discute também a atitude dos evangélicos, principalmente aque-les que identificam o cristianismo com a cultura ocidental, e faz umaanálise do pensamento evangélico atual em relação ao evangelho e àresponsabilidade social. Cita alguns congressistas evangélicos, de dife-rentes continentes (Ásia, Europa, América do Norte e América Lati-na), que, a partir do Congresso de Berlim (1966), passaram a enfatizaras dimensões sociais do evangelho. Quanto a essa redescoberta, ob-serva que quase todas as mensagens de Lausanne mencionavam osabolicionistas e reformadores sociais evangélicos ingleses como mo-

delos de postura evangélica em relação à evangelização e à ação soci-al, e acrescenta ainda vários exemplos da história das missões.

Referindo-se ao “modelo bíblico de evangelização”, Escobar ecoaa observação de outros congressistas ao afirmar que a evangelizaçãonão pode ser dissociada da responsabilidade social. Cita um dos volu-mes de The Fundamentals, a obra central do movimentofundamentalista, na qual se afirma que os “[...] ensinamentos sociais

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31 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

do evangelho carecem atualmente de nova ênfase pelos que aceitamo evangelho integral [...]”.34

Depois de discutir as questões de caráter geral, Escobar oferecealgumas estratégias mais específicas na busca pela realização da mis-são integral. Para ele, qualquer estratégia legítima deve levar em con-sideração certos axiomas teológicos inegociáveis: o sentido bíblico deevangelho, de comunidade, de imperfeição da igreja e da impossibili-dade de se identificar o reino de Deus com projetos humanos e falí-

 veis. Além disso, deve-se levar em conta as diferentes situações en-

frentadas pelas comunidades cristãs do mundo inteiro. Na condiçãode minoria, precisam mostrar dinamismo e fidelidade. Quando “háuma longa tradição de uma boa influência cristã no governo, na le-gislação, na política e na ação social”,35 os cristãos devem tomar cui-dado para não criar uma falsa dicotomia entre evangelização e açãosocial, deixando que o secularismo tome “[...] a iniciativa na educa-ção, na política, no emprego da mídia e nas relações internacionais”.36

Por fim, nas situações em que o poder está nas mãos de forçasanticristãs, os cristãos devem demonstrar coragem e disposição desofrer pelo Senhor.

 Ao expor o modelo bíblico de evangelização, Escobar, citando JohnHoward Yoder, sustenta a noção de que Jesus criou um novo povo,uma nova comunidade, distinta de todas as outras, na qual há novasatitudes sociais, políticas e econômicas. Após citar outros exemplos(John Wesley, os abolicionistas ingleses e a missão batista entre os

 Aymara, na Bolívia), propõe que as igrejas de hoje voltem a ser “co-munidades distintas”, criticando o famoso “princípio das unidades

homogêneas”, desenvolvido pelo movimento de crescimento daigreja.37

Em uma de suas declarações mais significativas, sensível àsobjeções de vários delegados do Congresso, Escobar faz a seguinteobservação:

Outra questão levantada nas respostas é o risco de nos esquecer-mos da evangelização se nos concentrarmos na execução prática das

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 32

implicações sociais do evangelho, fato (dizem alguns) que a históriaprova. Gostaria de deixar claro que não acredito nessa afirmação.Penso que o evangelho social, por exemplo, deteriorou-se porinsuficiência teológica.38

Esse temor transparece no discurso de vários palestrantes. Escobar,ao contrário de Padilla, procura atendê-lo de forma mais atenciosa.Ele não crê que a ênfase na ação social enfraqueça a evangelização;para ele, tudo depende da qualidade da teologia sobre missões eevangelização. Quanto às estratégias que permitam à igreja pôr em

prática o conceito de missão integral, que é o nosso interesse específi-co aqui, Escobar nos presenteia com uma proposta valiosa:

[...] os leigos penetram na sociedade por meio de um modo de vidanovo em termos de relações familiares, negócios, cidadania, e portodos os setores da vida cotidiana. Consequentemente, mobilizaros leigos não é somente ministrar-lhes sinopses do evangelho,minissermões, e mandá-los para que os repitam aos vizinhos. Étambém ensinar-lhes como aplicar o ensino e o exemplo de Cristona vida familiar, nos negócios, nas relações sociais, nos estudos etc.39

No geral, a palestra de Escobar não difere das outras. Ele concordacom a diferenciação entre evangelização e ação social, mas ressaltaque ambas são indissociáveis. Faz críticas à identificação do evange-lho com uma cultura em particular (no caso específico, a cultura nor-te-americana), bem como ao princípio das unidades homogêneasdefendido pelo movimento de crescimento da igreja. Porém, a maiorcontribuição de Escobar, do ponto de vista das perguntas que levanta-mos, está nas duas declarações citadas. Ambas permitem perceberque, no momento do congresso, havia uma preocupação, no contex-

to das igrejas, não só com a prática da missão integral, mas tambémcom a proposta concreta para sua realização: a preparação de leigos

como agentes da missão integral, expressando seu novo modo de vida em

todos os setores da vida cotidiana. Essa proposta parece retirar da igrejalocal a responsabilidade de, como instituição, realizar diretamente astransformações sociais. A função primordial da igreja seria opastoreamento dessas transformações via educação e discipulado dos

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33 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

leigos. No entanto, esseinsight

  de Escobar aparentemente não foiincluído na redação final do Pacto.

* * *

 As palestras do Congresso de Lausanne têm seu próprio contextoe surgiram como reação às questões pertinentes àquele momentohistórico. Em algumas percebe-se a tensão no que diz respeito à relaçãoentre evangelização e responsabilidade social da igreja, bem como àdificuldade teológico-missiológica em relacioná-la ao conceito de missão.

Nesse sentido, a contribuição latino-americana foi salutar ao pon-tuar a necessidade de se reconhecer a questão da responsabilidadesocial como parte da missão, abandonando em definitivo qualquerescalonamento ou hierarquização entre as duas faces da missão e con-siderando-as como igualmente importantes. Reconhece-se aqui a vozda melhor ortodoxia cristã na unidade harmoniosa entre criação eredenção, natureza e graça, contrária ao esforço para exaltar a graçasalvadora (e a evangelização) à custa da natureza humana (e da res-ponsabilidade sociopolítica).

Porém, a discussão perde a profundidade quando passa para o ní- vel estratégico. Um sinal evidente é o uso do termo paraeclesiástico,aplicado indiscriminadamente a toda atividade cristã que não tenhacomo base a igreja local, sem apresentar nenhuma discussão explícitasobre a legitimidade das ações cristãs em outros campos da sociedadecontemporânea.

Percebe-se entre os palestrantes do congresso um acordo explícitosobre a natureza integral da missão da igreja e um desacordo razoa-

 velmente explícito sobre a importância relativa entre a evangelização

e a responsabilidade social da igreja. Porém, o que nos interessa aquié o acordo implícito, aquele que não faz parte das discussões. As pales-tras (e talvez não os palestrantes) concordaram em qualificar a natu-reza da ação cristã no mundo tomando a igreja institucional comoreferência. Desse modo, todas as instituições cristãs não-eclesiásticaspassaram a ser “paraeclesiásticas” e, como tais, dependentes da priori-dade das igrejas locais.

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 34

Nessas condições, é fácil reconhecer por que a questão da“prioridade da evangelização” não pode ser suprimida; todo oproblema da responsabilidade social da igreja insiste em ser visto doponto de vista eclesiástico. As intervenções de Padilla e Escobarpodem ser interpretadas — a partir de uma perspectiva pouco simpá-tica — como tentativas de relativizar a tarefa central da igreja local oucomo propostas impraticáveis. Consideremos, por exemplo, a noçãoimplícita nas palestras de que a igreja local deve promover a respon-sabilidade social em toda a sua plenitude. Como ela pode promover

ações de tão amplo alcance e elevada complexidade, e ao mesmo tempoeducar seus membros para colocá-las em prática, sem descuidar daevangelização?

De certo modo, esse conflito pode ser interpretado como umexemplo de dissonância cognitiva. As intuições de Padilla, Escobare outros teólogos latino-americanos sobre o fim da hierarquizaçãoentre evangelização e responsabilidade social, bem como sobre a ne-cessidade de uma catequese integral dos leigos para a missão integral,podem ser consideradas fundamentalmente corretas, mas o esque-

ma eclesiológico pressuposto nas palestras, de modo geral, dificultoua assimilação e a interpretação desses insights. Para torná-los mais claros,seria necessário propor um modelo eclesiológico capaz de explicarcom exatidão a relação entre igreja local, instituições e ações cristãsnão-eclesiásticas com a sociedade como um todo, para depois discutiro problema da relação entre evangelização e responsabilidade social.

 A interpretação de tais percepções deve levar em conta as limita-ções do momento histórico e do próprio congresso. No entanto, se arealidade do problema já era de fato reconhecida à época do encon-

tro, não deve causar surpresa o fato de o assunto voltar a ser discutidonas consultas que se seguiram. É para elas que nos voltamos agora.

Igreja e missão integral nas consultas internacionaisassociadas ao Congresso de Lausanne

 Após o Congresso de Lausanne foram realizadas várias consultasinternacionais, com o propósito de aprofundar a discussão sobre os

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35 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

diversos aspectos relacionados à missão integral e evangelização.Essas consultas deram origem a vários relatórios de grande importânciateológica e prática. A ABU Editora, em conjunto com a VisãoMundial, publicou dez livretos sob o título Série Lausanne, abordandoos seguintes temas:

1. Tive Fome — um desafio a servir a Deus no mundo — SamuelEscobar, John Stott, Valdir Steuernagel, Carlyle C. Dewey (publicado apenas em português)

2. Evangelização e Responsabilidade Social — Consulta de Grand

Rapids, 19823. O Evangelho e a Cultura — Consulta de Willowbank 

(Bermudas), 1978

4. John Stott Comenta o Pacto de Lausanne —  John Stott

5. Viva a Simplicidade — Consulta de Hoddesdon (Inglaterra),março de 1980

6. O Evangelho e o Homem Secularizado — Consulta de Pattaya(Tailândia), junho de 1980

7. O Evangelho e o Marxista — Consulta de Pattaya, junho de 1980

8. O Desafio das Novas Religiões — Consulta de Pattaya, junhode 1980

9. Chamam-se Cristãos — Consulta de Pattaya, junho de 1980

10. Testemunho Cristão junto aos Muçulmanos — Consulta dePattaya, junho de 1980

Desses dez livretos, oito representam as quatro grandes consultasinternacionais patrocinadas pela Comissão Lausanne de EvangelizaçãoMundial. A primeira aconteceu em Willowbank, nas Bermudas, em

1978, e teve como resultado o relatório Willowbank sobre “O evan-gelho e a Cultura”. No ano de 1980 ocorreram mais duas consultas:uma no mês de março, em Hoddesdon, na Inglaterra, e a grandeconsulta de Pattaya, na Tailândia, em junho, com o tema “ComoOuvirão?”. Durante a consulta de Pattaya foram realizadas váriasminiconsultas, que resultaram em cinco diferentes relatórios di-retamente relacionados à estratégia de evangelização mundial.40

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Finalmente, em junho de 1982 foi realizada a Consulta de GrandRapids, nos Estados Unidos, sob a presidência de John Stott, paratratar da questão relacionada à evangelização e responsabilidadesocial.

Em um exame dos livretos em busca de orientações mais concretassobre a relação entre a igreja institucional e local e a missão integral,seguindo a ordem histórica das consultas, fica clara a ausência de ori-entação mais explícita. O relatório Willowbank sobre “O Evangelhoe a Cultura” (1978) oferece orientações gerais a respeito da

contextualização do evangelho e do princípio da encarnação, maspouco diz sobre estratégias concretas para as igrejas locais.O relatório de Hoddesdon (1980) é bastante esclarecedor quanto

a um estilo de vida simples, coerente com o conceito de missão inte-gral, mas não apresenta nada mais sistemático e estratégico sobre aação da igreja no mundo. Encontramos algo sobre o assunto apenasno capítulo 7 (“Justiça e Política”), na afirmação de que os “servos deCristo precisam expressar sua obediência ao seu senhorio nos com-promissos por eles assumidos nos âmbitos político, econômico e soci-

al [...]”.41 Para alcançar esse objetivo recomenda-se a oração, a educa-ção moral e política dos cristãos e a ação concreta. O texto se refereao fato de alguns cristãos serem chamados para ocupar cargos impor-tantes no governo, na economia e em atividades de desenvolvimen-to, e pontua: “A consulta não chegou a um acordo quanto a estaquestão. Caberia à igreja, como organização, empenhar-se nesse tipode ação ou os resultados seriam melhores se os cristãos se envolves-sem nela, individualmente?”.42  Finalmente, o relatório afirma que“o compromisso pessoal de mudar o estilo de vida, se desacompanhado

de uma ação política capaz de mudar também os sistemas políticosinjustos, não terá êxito”.43

 A Consulta de Pattaya concentrou-se mais na evangelização pro-priamente dita. No entanto, em alguns momentos, o problema daestratégia foi rapidamente abordado. O relatório da consulta sobre“O Evangelho e o Homem Secularizado” recomenda o estudo da“cosmovisão secular” e uma melhor compreensão da “cosmovisão

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37 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

cristã”, sugerindo a leitura de autores como C.S. Lewis e FrancisSchaeffer.O relatório sobre “O Evangelho e o Marxista” traz uma discussão

sobre as estratégias cristãs para evangelizar os marxistas. A partirdesse tema, os delegados discutiram como implementar a justiça deforma significativa e levantaram a seguinte questão: se o cristão pre-tende enfrentar o marxista em seu próprio terreno, ele precisa ofere-cer algum modelo político-econômico alternativo. O estilo de vidacristão e o testemunho da igreja como comunidade não são suficientes.

Essa declaração pressupõe que a obra missionária exige umengajamento nas questões que ultrapassam a vida da igreja local e aprópria teologia. As sugestões oferecidas a esse respeito denunciamum dilema entre os cristãos que veem a igreja basicamente comouma comunidade profética, sem envolvimento direto no campo polí-tico-econômico, e aqueles que defendem o envolvimento da igrejanessa área. O texto faz uma afirmação que parece bastante inconsis-tente: “A economia, em si, não é uma disciplina ‘cristã’. É um con-junto neutro de ideias que engloba vários sistemas, podendo cada um

deles ser avaliado em termos éticos, com o auxílio de princípios bíbli-cos”.44 Essa afirmação parece atribuir autonomia ao pensamento eco-nômico, de modo a torná-lo incompatível com a necessidade de serealizar a missão em todas as esferas da vida.

Somente em 1982, na Consulta de Grand Rapids sobre“Evangelização e Responsabilidade Social”,  o problema estratégicoda relação entre missão integral e igreja local foi tratado de formapertinente. A edição brasileira, significativamente, traz o seguintetexto na contracapa:

O Pacto de Lausanne coloca lado a lado a evangelização e a respon-sabilidade social, mas não define a relação existente entre ambas.Com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais clara a necessidadede se completar o documento de Lausanne, definindo de formamais clara o que se entende por “responsabilidade social” e como ela serelaciona à evangelização. Muitos temem que uma preocupação com aresponsabilidade social acabe embotando o zelo evangelístico.

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O texto parece confirmar nossa observação inicial a respeito daambiguidade do Congresso de Lausanne quanto ao tema em questão.Uma ansiedade tão persistente e onipresente é sintomática e indica acomplexidade do problema.

Em termos gerais, o documento é coerente com Lausanne.Evangelização e responsabilidade social são caracterizadas claramen-te como duas facetas da missão, correlacionadas, porém diferentes. A evangelização é vista como a tarefa mais importante da igreja, poisestá relacionada ao destino eterno das pessoas, o que pode represen-

tar um pequeno retrocesso em relação à perspectiva de René Padillaà época. A influência latino-americana se faz sentir na definição dosconceitos soteriológicos de salvação e reino. A discussão sobreescatologia evita os extremos do pessimismo e do triunfalismo, ne-gando-se a identificar o reino de Deus com projetos humanos deautorredenção social.

Contudo, é no capítulo 7 (“Diretrizes para a Ação”) que o Pactooferece as orientações que mais interessam para nossa discussão. Logono início, há o reconhecimento de que o foco do debate era basica-

mente o aspecto teológico das questões. Por fim, a discussão volta-separa o problema estratégico levantando as seguintes questões: “Comopodemos expressar nossas preocupações evangelísticas e sociais? Quetipo de agência deveria assumir o trabalho? Como as diferentes situ-ações políticas e culturais podem afetá-lo?”.45 As duas primeiras per-guntas referem-se exatamente ao problema que levantamos.

O documento reconhece, em primeiro lugar, que a falha em defi-nir termos como responsabilidade social, ministérios sociais, assistência

social, serviço social, ação social,  justiça social  e atividade sociopolítica  foi

uma das razões que levaram muitos evangélicos a olharem com des-confiança para o emprego do termo social  em atividades cristãs. Essadesconfiança estava relacionada aos temores dos excessos do evange- 

lho social e da influência socialista em tempos de Guerra Fria. Porém,essa confissão revela um problema teórico de fundo: como empregarconceitos sociológicos e políticos, ou até mesmo defini-los, sem trans-cender os limites da discussão teológica? Tratava-se, de fato, de uma

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tarefa impossível. A dificuldade implícita não era meramente a faltade definição de termos, mas a falta de uma filosofia social paradefinir os termos. O principal obstáculo a uma discussão estratégicaaprofundada não é apenas a falta de boas definições, mas sim odesacordo em torno de posicionamentos sociopolíticos.

Porém, foi feito um esforço para definir ao menos dois conceitoselementares: serviço social e ação social, que foram em seguida relacio-nados à evangelização. Serviço social  seria o trabalho de auxílio ousocorro com o propósito de demonstrar misericórdia e aliviar o sofri-

mento e as necessidades do próximo. O conceito de ação social estarialigado à transformação das estruturas sociais e à promoção da justiça,com o propósito de eliminar as causas da pobreza e da opressão. Osconsultantes concordaram que essas duas atividades fazem parte daresponsabilidade do povo de Deus.

No entanto, outra questão se impôs: quem deveria se encarregardessas atividades? Ainda no capítulo 7, no subtítulo “Agentes doEvangelismo e da Responsabilidade Social”, introduz-se o que pareceter sido um dos maiores desafios da consulta. Vejamos o que diz a

introdução deste capítulo:

Um dos pontos de tensão que se levantaram durante a consulta dizrespeito à alocação das responsabilidades. Uma vez estabelecidoque a evangelização e a preocupação com a ação social são responsa-bilidades cristãs, quem é responsável pelo quê? O que deve ser feitopelos cristãos individualmente e o que deve ser feito por grupos, e,mais particularmente, qual deve ser o papel da igreja como tal?46

 A importância dessa declaração pode ser facilmente ignorada pe-

los leitores mais apressados, interessados apenas no argumento cen-tral do texto, mas não por aqueles que se debruçam sobre as fissurase rebarbas do texto. Novamente, o ponto de referência é a igrejalocal. Trata-se, assim, de uma colocação eclesiocêntrica. A principaldificuldade aqui diz respeito ao papel da igreja local. Até que pontoela pode se envolver nesses assuntos sem deixar de ser igreja? Quan-do o trabalho individual ou organizado dos cristãos “fora” da igreja

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local deve ser pautado por objetivos eclesiásticos? O que a igreja deveevitar fazer para não correr o risco de deixar de ser igreja?No tocante ao serviço social, a resposta é relativamente simples.

Certamente os cristãos devem realizar ações de caráter social, tantoindividualmente como por meio das igrejas locais. Nesse ponto, aconsulta reconhece o valor das organizações paraeclesiásticas, dividi-das entre aquelas que focalizam a evangelização e aquelas que focali-zam a responsabilidade social, “especialmente se elas se especializamnos tipos de ministério que nenhuma igreja pode administrar por si

mesma, desde que elas aceitem uma medida de responsabilidade paracom as igrejas”.47 O texto reconhece, portanto, que a igreja não podefazer certas coisas que precisam ser feitas. Ao mesmo tempo, reco-menda que exista algum tipo de ligação entre os projetos não-eclesiás-ticos e a igreja. Entretanto, a tensão transparece na discussão sobreação social, como se pode observar em alguns trechos:

Uma vez que a ação individual possui efeitos geralmente limitados,os cristãos devem ser incentivados a formar grupos ou unir-se agrupos e movimentos já existentes, que estejam preocupados com

as necessidades específicas da sociedade, promovendo pesquisas arespeito de temas sociais e agindo de maneira apropriada. Nós apoi-amos a existência e a atividade desses grupos, pois elescomplementam o trabalho da igreja em muitas áreas importantes.Os cristãos também devem ser encorajados a participar de formaresponsável nos seus partidos políticos, sindicatos ou associaçõesde classe e outros movimentos semelhantes. Sempre que possível,eles devem formar um grupo cristão ali dentro, iniciando ou unin-do-se a um partido cristão, a um sindicato ou movimento cristão,a fim de desenvolverem políticas cristãs específicas.

Em primeiro lugar, portanto, a consulta não apenas recomendaque os cristãos se tornem cidadãos conscientes, como reconhece anecessidade de uma ação organizada extraeclesiástica ouparaeclesiástica. Porém, isso é colocado de forma levemente ambí-gua. A recomendação para a prática de ações cristãs independentedas igrejas locais é específica e consciente, mas por que dizer que aatividade de tais grupos “complementa o trabalho da igreja em

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41 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

muitas áreas importantes”? Por certo a atividade desses gruposcomplementa o trabalho da igreja de algum modo, mas, se observarmosa questão por outro ângulo, veremos que pode-se afirmar o contrário,ou seja, que o trabalho da igreja complementa a atividade política oueconômica. Subentende-se que a igreja local, mais do que uma gran-de questão teológica, é também o único ponto de referência de umdebate que, aparentemente, não discute a legitimidade intrínseca dasatividades, movimentos e organizações extraeclesiásticas.

Da atividade individual ou conjunta, voltamos à igreja. Deve ela

envolver-se em política ou ficar de fora? Alguns dizem que as igrejasque se envolvem em atividades sociopolíticas, principalmente emtemas controvertidos, perdem seus membros e seus missionários,pois esse tipo de atividade gera controvérsias. Outros já pensamque são outros fatores, como o liberalismo teológico e a perda deconfiança no evangelho, que causam as baixas nos números demembros. Mas este assunto não é apenas pragmático; é essencial-mente teológico. Por trás da controvérsia estão as nossas eclesiologiasbem diferentes e, particularmente, os nossos pontos de vista diver-sos sobre a relação entre a igreja e o Estado, o reino de Deus eaquilo que se chama de “reino de César”. Estiveram representadasem nossa consulta pelo menos três tradições diferentes a respeitodo envolvimento político cristão, todas elas frutos da reforma Pro-testante na Europa. Todos nós concordamos na distinção entre oreino de Deus e o domínio político. No entanto, uma dessas corren-tes vê o reino como contrário a esse domínio, pleiteando para a comu-nidade cristã um testemunho independente de instituições políticas.Uma segunda tradição vê o reino como separado do domínio político,embora paralelo a este; e afirma que os cristãos devem participar dele,

não como membros da igreja, mas como cidadãos guiados por princí-pios morais cristãos. A terceira corrente vê o reino de Deus penetrando

e transformando o domínio político; argumenta que o envolvimentopolítico faz parte do testemunho não só dos cristãos individualmente,mas dos grupos e também das igrejas.48

Não há exagero em ressaltar a importância da declaraçãoacima. Entre os documentos de Lausanne, este talvez seja o mais

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 42

explícito em reconhecer a generalidade teológica como um entraveao desenvolvimento do conceito de missão integral.Nos termos do documento, a Consulta de Grand Rapids atinge

aqui um ponto de tensão, uma espécie de limite natural, dada a natu-reza ecumênica do projeto. Para que a discussão avance, é precisotrazer o conceito de missão integral para dentro de cada uma das trêstradições eclesiológicas e sociopolíticas: a tradição anabatista, que con-sidera o reino contrário  ao domínio político; a tradição luterana, que

 vê o reino separado, embora paralelo  ao domínio político, e a tradição

reformada ou calvinista, que vê o reino de Deus penetrando e transfor- mando  o domínio político.

 Ao discutir a questão da igreja local em uma sociedade livre, odocumento da consulta reconhece que a “[...] a igreja local nãotem condições de se engajar em todas as atividades para as quais ésolicitada. Portanto, ela precisa delegar responsabilidades específicasa diferentes grupos”.49 Entre esses grupos estão os chamados “gru-pos de ação social”, articuladores de ações de transformação semum cunho diretamente evangelístico. Porém, uma advertência é

mantida:

Entretanto, seja qual for a tarefa de um grupo, é necessário quefique bem claro se a sua função é autônoma ou se a igreja a estáapoiando. Todos esses grupos — de evangelização, serviço social ouação social — devem permanecer ligados à igreja, apresentando rela-tórios regularmente e procurando seu conselho e apoio. Desta for-ma, o ministério da igreja pode ser grandemente diversificado.50

Em termos gerais, portanto, o tom eclesiocêntrico é mantido, de

forma que a igreja é vista como um centro de controle para as açõesextraeclesiásticas de intervenção social. Exatamente por isso mantém-se viva a tensão entre evangelização e responsabilidade social, uma

 vez que a tendência da igreja é avaliar as atividades extraeclesiásticasdo ponto de vista da evangelização.

* * *

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43 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

Interpretando o “ponto de tensão”

 A Consulta de Grand Rapids certamente representou um avançoem relação ao Congresso de Lausanne, no sentido de definir commais clareza os limites e possibilidades do vínculo entre evangelizaçãoe responsabilidade social, do ponto de vista da tarefa da igreja local.Porém, o problema reconhecido anteriormente persiste: como rela-cionar evangelização e responsabilidade social sem descaracterizar aigreja? Ao longo da discussão, os consultantes reconheceram a exis-tência de um “ponto de tensão”. A princípio, pensou-se que o proble-

ma estava em decidir “quem é responsável pelo quê”. Entretanto, oavanço das discussões mostrou que o ponto de tensão estratégico nãoestava simplesmente no debate sobre o papel da igreja local, mas nadivergência sobre a própria concepção de reino de Deus, arraigada nastrês grandes tradições da Reforma: anabatista, luterana e calvinista.Portanto, acima do problema eclesiológico está uma questão aparen-temente intransponível, de natureza teológica ou mesmo filosófica,que, partindo de uma concepção de totalidade social -— implícita emconceitos como responsabilidade social,  justiça social   e envolvimento

sociopolítico  — se infiltra inevitavelmente em qualquer tentativa dedefinir sociedade  em termos meramente teológicos.

O que representa esse “ponto de tensão”? Trata-se, de fato, deum sério obstáculo ao desenvolvimento do conceito de missãointegral?

 A tentação da “teologia genérica” A tentação da “teologia genérica” A tentação da “teologia genérica” A tentação da “teologia genérica” A tentação da “teologia genérica”

O esforço conjunto em desenvolver as ideias de Lausanne envolveumuitos cristãos nascidos em continentes diferentes, criados dentro

de tradições protestantes distintas e formados em diferentes camposdo conhecimento. De certo modo, poderíamos afirmar com algumasegurança que a natureza ecumênica do movimento acabou se tor-nando um problema. Como alcançar um diálogo produtivo entrepensadores e agentes cristãos de diferentes tradições? Como lidar comas profundas divisões históricas que separam anabatistas, luteranos ecalvinistas?

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 44

Para alguns, a solução mais simples seria varrer tudo isso para debaixodo tapete. Muitos pensadores evangélicos brasileiros “de fora” dos círcu-los teológicos, como sociólogos, economistas, administradores, especia-listas em terceiro setor, assistentes sociais ou profissionais de saúde — masaté mesmo teólogos e missiólogos —, procuram evitar qualquer decisãoteológica que interfira demasiadamente na práxis missionária e pastoral.

Pode-se dizer que a reflexão teológica sobre missão integral tem seesforçado para ser a mais “bíblica” possível, como forma de contor-nar o debate direto com os problemas típicos da teologia protestante

do hemisfério norte. Porém é possível que, em certos momentos, aomenos no Brasil, tal ênfase nada mais seja do que uma forma depromover o que poderíamos chamar de “generalidade teológica”, ouseja, um esforço para desenvolver uma teologia de baixo custo, acessí-

 vel a todos, genérica, adaptável aos cristãos de todas as tradições, comapelo suficiente para mobilizá-los à ação. Isso não significa que a re-flexão tenha falhado em sua busca por profundidade, diálogo, rele-

 vância histórica e especificidade em muitas questões. Não podemosesquecer, por exemplo, a precisão teológica com que René Padilla

abordou o “Princípio das Unidades Homogêneas”, a ponto de mudaro rumo de Lausanne e da história. O problema da teologia genéricaé que ela evita sistematicamente ser específica nos pontos em que ateologia cristã clássica sempre soube ser específica.

 A abordagem da teologia genérica tem, de fato, um apelo mais amplo;porém, em razão de sua superficialidade, é naturalmente incapaz deapresentar soluções estratégicas realmente bíblicas. Às vezes essa abor-dagem é justificada em nome da possibilidade de criar soluções teoló-gicas originais, contextualizadas, independentes do debate entre as

grandes tradições europeias. Ora, isso não apenas é ingênuo em ter-mos hermenêuticos, mas também depende de considerar a divisãoentre as três tradições como se fora um fato circunstancial, comouma discussão que não toca “o fundo”, que não traz nenhuma luzsubstancial sobre o problema em questão.

 Além de ingênua, esta é uma atitude intelectual imatura emrelação à tarefa teológica. A fissura que separa anabatistas, luteranos

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45 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

e calvinistas não é apenas circunstancial; ela atinge a medula da religiãoprotestante.Os séculos de debates cristológicos, trinitários, soteriológicos e de

outros Loci  são relevantes tanto tematicamente quanto em suasminúcias. As teologias que dominaram a história do pensamento cris-tão foram relevantes não apenas por terem recorrido às Escrituras eàs fontes da tradição, mas também porque tiveram a sabedoria deapresentar respostas originais e organicamente desenvolvidas para osproblemas teológicos fundamentais. Em contrapartida, algumas pes-

soas envolvidas com a teologia da missão integral pretendem desen- volver teologias contornando as questões teológicas clássicas, evitan-do assim posicionamentos muito específicos, que poderiam ser umempecilho à unidade ecumênica do movimento. Certamente esta é areceita definitiva para a mais profunda mediocridade teológica. Osgregos, apesar de terem sido conquistados politicamente pelo Impé-rio Romano, impuseram sua cultura aos romanos. Se a influência dacultura norte-americana ainda é dominante na teologia brasileira éporque, ao menos em parte, ela ainda não decidiu se quer mesmo ser

uma teologia completa.Só há um caminho para a teologia da missão integral ganhar

relevância e fôlego renovado: retomar a produção teológica por meiode um diálogo humilde e intenso com a tradição cristã como umtodo, em especial com a tradição protestante histórica e contemporâ-nea, oferecendo tratamento contextualizado às grandes questões de-fendidas pelo cristianismo, promovendo teologias contextualizadas e

 voltadas para toda a igreja, dentro de um debate global. O tempo dasteologias locais ficou para trás.

Deixando de lado a discussão sobre o futuro do conceito de missãointegral, retornemos ao problema das tradições protestantes. Para ateologia da missão integral progredir, ela precisa desistir de garantiro esforço ecumênico pela dúbia estratégia da evasão teológica edar o primeiro passo rumo a uma expansão significativa em termosde pensamento estratégico. Para isso ela terá, inevitavelmente, demergulhar fundo em uma das três tradições.

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 46

Racionalidade transtradicionalRacionalidade transtradicionalRacionalidade transtradicionalRacionalidade transtradicionalRacionalidade transtradicional

 Alguns poderão perguntar: Não deveríamos ir diretamente para aBíblia, em vez de ficarmos discutindo teorias humanas? É uma per-gunta justa! De certo modo, pode-se dizer que não temos alternativa.É claro que precisamos ir às Escrituras. Porém, esta é uma respostainserida na tradição protestante. Católicos e ortodoxos não dariamesse tipo de resposta. No entanto, pode-se dizer que não há como ir“direto para a Bíblia”, no sentido absoluto, pois tanto o “ponto detensão” como o fato de termos consciência de sua existência inserem-

se numa determinada tradição. Quando abrimos as Escrituras paraprocurar responder a esta questão já estamos pensando em termosde uma tradição.

O pensamento hermenêutico mostra que não é possível ignorar atradição, já que ela é uma condição de possibilidade para qualquerinterpretação. No entanto, isso não significa que devemos mergu-lhar, a partir daí, num historicismo absoluto, como se fosse impossí-

 vel chegar à verdade das coisas. De fato, alcançamos a verdade pelamediação daquilo que somos, de todas as coisas que fazem parte danossa tradição — linguagem, história, experiência, valores. Falamosportanto, contemporaneamente, em “racionalidade mediada portradição” (tradition-mediated rationality); de mergulhar e compreenderuma tradição, e em seguida entrar em diálogo crítico com as outras,sem a pretensão de ter um ponto de partida “neutro” ou “isento”para lidar com as questões. Afinal, o que poderia ser mais pretensio-so do que alegar a superioridade sobre toda e qualquer tradição? Porque comportar-se como um espírito desencarnado num campo tão

humano quanto o da teologia?Em suas reflexões sobre o método teológico a partir de um diálo-go com Alasdair MacIntyre, Alister McGrath nos dá uma pista doque seria a racionalidade teológica trans-tradicional:

Podem questões que não podem ser respondidas pela tradição A ser respondidas pela tradição B? Em outras palavras, pode atradição A reconhecer que a tradição B é capaz de responder a uma

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47 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

questão que a tradição A foi incapaz de responder satisfatoriamenteem sua própria história? Essa segunda questão é da maiorimportância. MacIntyre argumenta que é perfeitamente possí- vel comparar uma tradição com a outra e concluir que umadeve ser preferida, sem a necessidade de introduzir uma terceiratradição como árbitro — a qual estaria, claro, na mesma posi-ção epistemológica que as outras duas (não podemos esquecerque o Iluminismo pensava estar acima das tradições, em umaposição trans-histórica privilegiada).51

Para McGrath, precisamos nos tornar interlocutores  entre as tradi-ções, e não meros juízes acima delas. O tempo de assumir a hipócritaposição de neutralidade para construir uma teologia contextual “neu-tra” já passou (aliás, nunca deveria ter chegado). Mesmo que seja oparoxismo muito moderno de uma teologia evangélica latino-ameri-cana contextualizada, mas “neutra” e “sem rótulos” em relação àsgrandes tradições protestantes europeias e à história do dogma — afi-nal, a identidade entre contexto  e nacionalidade  está em desagrega-ção.52  Devemos nos abster da tentação de arbitrar entre as tradições

e mergulhar fundo em nossa tradição teológica particular para, as-sim, iniciar o diálogo autêntico e pôr fim aos malformados projetosde teologia latino-americana genérica. Livremo-nos do rançoiluminista!

Talvez isso indique que o anabatista, o luterano e o calvinistatenham de se despedir amigavelmente — mas apenas por um tempo.Cada um enfrentará o desafio de aprofundar sua própria tradição afim de emergir com propostas renovadas, num diálogo em nome doprogresso da missão integral. Porém, haveria outro caminho? Não

há comunidade sem individualidade; não há diálogo sem diferenças;não há inovação sem tradição.

 Assim, a pergunta insistente passa a ocupar o lugar que lhe é dedireito: qual das três tradições melhor fundamenta e articula o proje-to de missão integral? Só então podemos perguntar como superar oponto de tensão — depois de termos explorado, compreendido ereconhecido seu verdadeiro sentido. No decorrer do processo, pela

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 48

graça de Deus, teremos substituído a teologia genérica por umateologia digna do nome. Agora que assumimos uma postura teologicamente corajosa e

disposta a superar a atitude genérica em relação aos problemasteológicos e filosóficos implícitos em nosso “ponto de tensão”,podemos ir adiante e considerar de que forma as três grandestradições eclesiológicas e sociopolíticas do protestantismo —anabatismo, luteranismo e calvinismo — se distinguem, e por queapresentam respostas divergentes ao problema da relação entre

igreja local e responsabilidade social. Como o leitor poderá perceber,a resposta que consideramos mais adequada será revelada em nossadiscussão — o que é legítimo do ponto de vista de uma racionalidadetrans-tradicional.

Natureza e graça nas três grandes tradiçõesNatureza e graça nas três grandes tradiçõesNatureza e graça nas três grandes tradiçõesNatureza e graça nas três grandes tradiçõesNatureza e graça nas três grandes tradições

É possível traçar o debate entre as três grandes tradições teológicasaté se chegar ao problema teológico-filosófico de fundo, que é a ques-tão da relação entre criação e redenção, ou, para usar o clássico

teosofema, a relação entre natureza e graça. Esta era a questão queestava por trás do debate entre a ortodoxia patrística e o gnosticismo,e da discussão entre protestantes e católicos quanto à natureza daqueda. A relação entre natureza e graça é mais do que um problemateórico. De fato, trata-se de um problema religioso fundamental, poisprocura responder como a reconciliação com Deus por meio de suaobra redentora se relaciona com as estruturas espaço-temporais, an-tropológicas e racionais da vida.

Pode-se dizer que a primeira grande vitória do cristianismo primi-

tivo sobre o paganismo foi a superação da blasphemia creatoris gnóstica:a negação da bondade da criação, do Criador, ou de sua soberaniasobre a criação, desenvolvida no caldo religioso do helenismo poste-rior. O pensamento patrístico baseou-se na tradição cristã históricaao afirmar que a graça não representava uma evasão da natureza,mas a sua redenção e reconciliação com Deus, por meio de JesusCristo. O golpe final contra a blasfêmia gnóstica foi dado por Irineu,

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49 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

ao pregar a unidade entre criação e redenção e o estabelecimento dosenhorio cósmico de Cristo.No entanto, o catolicismo — antigo e medieval — interpretava a

relação entre natureza e graça de forma ambígua, devido a uma visãoinsuficiente dos efeitos da queda do homem. De acordo com as for-mulações posteriores do escolasticismo medieval, a graça estava “jus-taposta” à natureza, servindo como “complemento” e elevando-a aum estado superior, mas sem promover uma alteração fundamentalem sua dinâmica, já que acreditava-se que a natureza não havia sido

completamente infectada pelo pecado. Foi assim que a teologiaalexandrina desenvolveu sua forma de “cristologia do Logos”, segun-do a qual o princípio racional que animou a reflexão dos grandesfilósofos gregos seria o próprio Cristo (tornando Sócrates, por exem-plo, um cristão, antes do cristianismo). Foi assim também que surgiua crença, ensinada pelo misticismo cristão medieval, de que se podiachegar até Deus por meio do esforço purgativo e da contemplação,pois Deus havia colocado no coração de todos os homens uma fagu-lha divina. Percebe-se nesses dois exemplos que a confiança exagera-

da nos poderes naturais do homem promove uma visão sinérgica darelação entre a ação salvadora de Deus e o braço do homem.

 Ao reconhecer o caráter radical da graça e do juízo divino sobretodas as obras dos homens, por meio da cruz de Cristo, os reformadorescompreenderam a profundidade da queda, o que os levou a uma

 visão igualmente radical do pecado. A queda corrompeu todas as áre-as da vida humana, separando completamente o homem de Deus.Dessa forma, a graça não seria um complemento do esforço humano(a “natureza”) na tentativa de se chegar até Deus, como pensavam os

teólogos escolásticos. Em vez disso, os homens precisam da graça parapoder realizar, antes de tudo, qualquer esforço de valor religioso. Maisdo que acrescentar ou aperfeiçoar, a graça penetra e renova comple-tamente a natureza humana.

Ora, as coisas seriam diferentes se todos os reformadores tivessemconcordado em estender a visão reformada da unidade natureza–graça — ou, em termos mais adequados, o modelo bíblico de criação–

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 50

queda–redenção — a todas as áreas da vida humana em vez delimitá-la à soteriologia individual. O fato, porém, é que as igrejasque surgiram com a Reforma não foram unânimes em conservara soberania de Deus na salvação.

É aqui que encontramos as raízes teológicas mais profundas dadivisão entre anabatistas, luteranos e calvinistas. É claro que essasdivisões não podem ser reduzidas a simples divergências teológicas;fatores históricos, culturais e sociopolíticos contribuíram decisivamentepara que isso acontecesse. Entretanto, não podemos minimizar o papel

da experiência religiosa na constituição dessas tradições. As condi-ções históricas não geraram a divisão, apenas deram formato defini-do a posturas religiosas divergentes.

 A postura anabatista vê o reino como contrário ao domínio políti-co e procura desenvolver a vida eclesial como uma espécie de socieda-de separada. Portanto, a ruptura entre natureza e graça aqui deve serentendida do ponto de vista sociopolítico. Para alguns anabatistas, oEstado político seria uma estrutura absolutamente antinatural. Po-rém, como se explica que uma estrutura absolutamente antinatural

tenha se tornado tão essencial à vida humana? O fato é que oenvolvimento com a graça salvadora e com a igreja tornou-se inversa-mente proporcional ao envolvimento com a natureza. Esta situaçãose repete com a cultura e com a sociedade política. Como resultadodessa ruptura, há uma dificuldade recorrente em se recomendar aoscristãos devotados que se envolvam também em atividades culturais,já que isso provocaria um conflito de lealdades. Assim, piedade cristãtornou-se sinônimo de separação cultural. A experiência histórica doanabatismo revela um impulso praticamente irresistível para o isola-

mento cultural ou para uma postura contracultural ao evitar os cruza-mentos com a sociedade não apenas no aspecto político, mas tam-bém nas artes e na ciência.

Entretanto, não se pode deixar de reconhecer a relevância políticado anabatismo, mesmo que, na maioria das vezes, essa relevância setenha feito sentir por meio de uma negação sectária. A revolução deMüntzer, por exemplo, se caracterizou pela tentativa revolucionária

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51 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

de constituir uma ordem absolutamente nova e historicamentedescontínua com a cultura da época. Anabatistas contemporâneos eimportantes, como John Howard  Yoder ou Stanley Hauerwas, defen-dem o engajamento por meio de uma espécie de resistência externa,de contraponto profético. Assim, paradoxalmente, anabatistassuperengajados e desengajados concordam que não há outra forma dese envolver com a cultura e o mundo sociopolítico a não ser pela via danegação. De um modo geral, o envolvimento anabatista, quando efeti-

 vamente acontecia, não era construído a partir das estruturas próprias

da espiritualidade anabatista, mas pela associação com outras tradições. A postura dominante no luteranismo, conhecida como doutrina

dos dois reinos, apresenta uma conexão interna com a compreensãode lei e graça como duas ordens separadas. Assim, a doutrina luteranasustenta que o domínio político, embora paralelo à igreja, é separadodesta. Não há ruptura, mas uma justaposição entre natureza e graça,que passam a ter uma relação apenas exterior. O cristão é descritocomo um cidadão de dois reinos, com a responsabilidade de viverduas lógicas completamente diferentes, na igreja e na sociedade, pro-

curando, sempre que possível, acomodar o princípio do amor às limi-tações do reino da “espada” — o mundo sociopolítico. A doutrinaluterana, com sua maior abertura para a natureza, proporcionou umgrande enriquecimento cultural, como se pode notar pelo desenvol-

 vimento musical nos territórios luteranos, e promoveu o desenvolvi-mento econômico e educacional. Porém, infelizmente, a ausência deuma conexão firme entre natureza e graça permitiu que o luteranismofosse atingido rapidamente pelo liberalismo teológico e pela autono-mia da razão, e ao mesmo tempo forneceu base teológica ao acordo

entre os cristãos alemães e o nacional-socialismo — fato que levoumuitos luteranos a reconsiderarem a teoria dos dois reinos.

 A tradição calvinista acredita que há apenas um reino. Lei e graçase interpenetram, enquanto que o reino de Cristo se estende extra- 

ecclesiam. O domínio político deve ser redimido e submetido ao go- verno divino por meio da ação histórica da igreja. A vida social, emsua totalidade, é vista como divinamente ordenada, constituindo o

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 52

próprio lugar para se viver uma vida cristã.

53

 Não há, portanto, nemruptura, nem justaposição, mas a penetração e a transformação danatureza pela graça. Assim, o calvinismo demonstra um radical im-pulso intramundano, que reúne dialeticamente a rejeição crítica domundo (devido à sua pecaminosidade) e a invasão redentiva do mun-do (único lugar em que a graça pode ganhar efetividade).

O caráter radicalmente intramundano do calvinismo manifestou-se de diferentes formas. Inicialmente, por meio do processo políticorevolucionário que, na forma do puritanismo anglo-saxônico, abalou

as monarquias da Escócia e da Inglaterra e serviu de inspiração àdemocracia americana; na forma franco-suíça, estimulou as aspira-ções republicanas e democráticas e consolidou a oposição ao absolu-tismo católico, desembocando na Revolução Francesa; por fim, naforma holandesa, possibilitou a “Era de Ouro” no país e promoveu odesenvolvimento econômico, científico, artístico e social. No campoeconômico, a ética calvinista promoveu a acumulação de riqueza e oprogresso técnico necessários à Revolução Industrial, que não poracaso começou na Inglaterra. A revolução científica moderna, que

teve como epicentro a Royal Society, foi capitaneada por calvinistas,como aponta o historiador holandês R. Hooykaas. Também na edu-cação e nas artes o calvinismo se mostrou afinado com a situaçãocultural e capaz de inspirar inovações de valor perene.

 Após o colapso do cristianismo pré-moderno em decorrência doIluminismo, o protestantismo emergiu em estado caótico. Enquantoalgumas igrejas resvalaram para o isolacionismo cultural como formade proteger a herança da fé, outras cederam de diferentes formas aosideais modernos. O liberalismo teológico e o evangelho social, que

ganhou popularidade no meio protestante a partir do século 19, cons-tituem um exemplo paradigmático do que Francis Schaeffer descre-

 ve como “a natureza devorando a graça”. Isto é, quando se concede ànatureza alguma independência em relação à graça — como aconteceno catolicismo, no anabatismo, no luteranismo e em algumas formasinconsistentes de calvinismo —, aos poucos começam a surgir novasformas de pensamento, novos padrões de ação e de organização

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53 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

social, novas instituições e, por fim, macrotendências culturais, quedispensam qualquer recurso à Palavra de Deus. É o que chamamos de“dualismo natureza/graça”, ou seja, qualquer forma de pensamento,atitude ou instituição que reconheça à natureza o direito e o poder deoperar fora do domínio divino, por meio de Jesus Cristo.

 Abraham Kuyper foi provavelmente o primeiro reformador pós-iluminista do cristianismo protestante.54  Ao contrário deSchleiermacher, que tentou promover uma síntese do humanismosecular com a fé cristã, Kuyper refundou o calvinismo, seguindo de

perto os princípios reformados da soberania de Deus e da unidadeentre natureza e graça, articulando-os, porém, a um contexto defini-tivamente moderno (ou até mesmo pós-moderno), levando em con-ta o significado da Revolução Francesa, do Iluminismo e da críticaromântica ao Iluminismo. Este formato pós-moderno (ou“antimoderno”) do calvinismo, conhecido como neocalvinismo holan- 

dês, mostrou-se uma rara exceção em termos de responsabilidade so-cial e envolvimento cultural, mesmo quando comparado aocalvinismo tradicional anglo-saxônico, franco-suíço ou ao calvinismo

holandês tradicional — este último, eventualmente, levantou umasignificativa oposição contra as “inovações” neocalvinistas.

 A partir do neocalvinismo holandês projetaram-se, no século 20, várias iniciativas de ação cristã transformadora em setores diversos,como filosofia e teologia, política e ação social, artes e ciência, educa-ção e comunicações. Alguns dos mais importantes centros universitá-rios evangélicos da atualidade nasceram sob o influxo do espíritoneocalvinista (Calvin College e Dordt College, por exemplo), quecolaborou também para o surgimento de diversos líderes intelectuais

evangélicos (Francis Schaeffer, Alvin Plantinga, Charles Colson e BobGoudzwaard) e importantes associações de classe (como as associaçõesartísticas evangélicas da Europa). É claro que muitos cristãos de ou-tras tradições protestantes desenvolveram e continuam desenvolven-do trabalhos importantes e relevantes em diversas áreas. Porém, oneocalvinismo representa um raro exemplo em que o trabalho refle-te uma motivação cristã e tem um propósito inteiramente cristão,

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FÉ CRISTÃ E CULTURA CONTEMPORÂNEA 54

envolvendo as motivações, as premissas, os objetivos e omodus operandi

— enfim, toda a biocosmovisão cristã. Os reflexos da influêncianeocalvinista persistem até os nossos dias, como se vê a seguir:

Provavelmente não é uma surpresa que parte do pensamento cris-tão mais energético e visionário na Inglaterra e na América atual venha daqueles que foram influenciados por Kuyper. Um númeroimportante de grupos cristãos comprometidos, engajados na polí-tica, na ação social, na análise econômica e no pensamento socioló-gico deve a sua visão aos insights  iniciais de Kuyper, especialmente

ao seu princípio de soberania das esferas.55

Tudo que dissemos até aqui poderia ser interpretado como sim-ples propaganda calvinista, não fosse o fato de que o neocalvinismonão apregoa uma adesão denominacional e menos ainda nominal,mas a obediência a um princípio: a soberania de Cristo sobre todas asáreas da vida, interpretada por meio de uma unidade radical eintegral entre natureza e graça. O que está implícito neste princípioé mais importante do que a lealdade ou o preconceitodenominacional, a favor ou contra o calvinismo. Porém não háproblema se a obediência a tal princípio envolve o contato comuma tradição em particular.

Natureza, graça e o “ponto de tensão”

Não podemos tratar do papel da igreja no mundo sem falar sobremundo. As questões que envolvem as relações entre igreja e política,igreja e economia, igreja e ciência, igreja e educação, não são mera-mente eclesiológicas; são também fundamentais para a política, a

economia, a ciência e a educação. Não há como solucionar as tensõesrelacionadas ao papel da igreja local, à missão da igreja no mundo e àresponsabilidade pessoal do cristão sem oferecer uma proposta paraa sociedade como um todo — uma filosofia social ou uma ideia de socie-dade.

 Assim, partindo de uma tradição cristã, precisamos pontuar,acima de tudo, como a visão de natureza e graça dentro dessa

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7/21/2019 Guilherme de Carvalho - A Missão Integral Na Encruzilhada - Reconsiderando a Tensão No Pensamento Teológico …

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55 A MISSÃO INTEGRAL NA ENCRUZILHADA 

tradição determina o seu pensamento social e suas ideias sobre olugar da igreja dentro da teia social.Porém, e se houver uma unidade entre natureza e graça? E se o

escopo da redenção for equivalente ao da criação? E se o senhorioredentor de Jesus Cristo consumar seu senhorio criacional? E se lei egraça coexistirem sem contradição? E se lei e liberdade forem facesde uma única realidade? E se superarmos o obstáculo da “teologiagenérica” e assumirmos a visão calvinista como ponto de referênciahermenêutico, isso teria implicações para a constituição de um pen-

samento social cristão? Por fim, quais as implicações disso no trata-mento do “ponto de tensão”, ou seja, quanto à questão sobre “quemfaz o quê” no dia-a-dia da igreja local? No próximo capítulo buscare-mos responder a essas questões, a partir de uma abordagem teológi-co-filosófica, porém com um sentido eminentemente prático.

Guilher Guilher Guilher Guilher Guilher me Vilela Ribeir me Vilela Ribeir me Vilela Ribeir me Vilela Ribeir me Vilela Ribeir o de Car o de Car o de Car o de Car o de Car valhovalhovalhovalhovalho é pastor da Igreja Esperançaem Belo Horizonte. Mestre em teologia pela Faculdade Teológica Batistade São Paulo e mestre em ciência da religião pela UMESP, é obreiro doL’Abri Brasil e presidente da Associação Kuyper para EstudosTransdisciplinares.