há algo de errado com a sua ceia -...

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COM REPORTAGEM DE GUSTAVO POLONI, MARCIA SCHULER E SAMUEL LIMA O ATUAL PADRÃO DE CONSUMO É INSUSTENTÁVEL E COLOCA O FUTURO DA HUMANIDADE EM RISCO. AFINAL, O MUNDO É AQUILO QUE VOCÊ COME FOTOS TOMÁS ARTHUZZI DESIGN RAFAEL QUICK TEXTO THIAGO TANJI HÁ ALGO DE ERRADO COM A SUA CEIA

Transcript of há algo de errado com a sua ceia -...

com reportagem de gustavo poloni, marcia schuler e samuel lima

o atual padrão de consumo é insustentável e coloca o futuro da humanidade em risco. afinal, o mundo é aQuilo Que vocÊ come

fotos tomás arthuzzi design rafael Quick

texto thiago tanji

há algo de errado com a sua ceia

umaboa ceia de Natal, como diz a

“O que posso fazer para transformar o

mundo em um lugar melhor?” As primeiras

cenas de Cowspiracy, documentário lançado

em 2014 e que recebeu atenção mundial

após o Netflix disponibilizar a produção

no serviço de streaming em setembro des-

te ano, levantam uma questão que volta e

meia faz barulho em muita consciência. Kip

Andersen, diretor do filme, fez esse mesmo

questionamento após assistir ao documen-

tário Uma Verdade Inconveniente, produção

tradição, é o momento de reunir a família e os

amigos para preparar pratos de-liciosos, beber sem preocupação com o dia seguinte e conversar sobre o ano que passou, com his-tórias engraçadas, conquistas pro-fissionais e eventuais fofocas co-tidianas. A abundância de comida sobre a mesa da sala, no entanto, também conta com uma narrativa que diz muito sobre nosso atual modelo de desenvolvimento. Nesse caso, infelizmente, a história não nos leva a um final feliz.

assinada por Al Gore, vice-presidente dos Estados Uni-

dos entre 1993 e 2001. Os dados apresentados sobre a

influência humana no aumento de gases de efeito estu-

fa na atmosfera, que fez subir a temperatura terrestre

em 0,85°C nas últimas décadas, motivou Andersen a

assumir uma série de compromissos pessoais, como

diminuir o tempo dos banhos, trocar o carro pela

bicicleta no deslocamento urbano e reciclar aquilo

que consumia. A certeza de realizar uma grande con-

tribuição para o futuro da humanidade caiu por terra

após um amigo compartilhar no Facebook a notícia

de um relatório divulgado em 2006 pelas Nações

Unidas, afirmando que a pecuária gerava 18% da

quantidade de gases de efeito estufa, superior em

cinco pontos percentuais às emissões de gás carbô-

nico de todo o setor de transporte do mundo. Diante

dessa informação, Andersen procurou instituições go-

vernamentais, ONGs, empresas e pesquisadores para

chegar à conclusão de que o modelo de consumo da

humanidade – e, sobretudo, nossos hábitos alimentares

– são insustentáveis e esgotarão os recursos da Terra

caso mudanças definitivas não ocorram em um curto

horizonte de tempo. Mas para entender a gravidade

desse desequilíbrio, é necessário compreender como

alcançamos o atual sistema de produção de comida.

Convenhamos que acordar segunda-feira de manhã

não está entre os momentos mais agradáveis da se-

mana, mas imagine ter de sair de casa todos os dias

para buscar o próprio alimento – e isso não significa

caminhar até a padaria para comprar pãezinhos quen-

tes. Os primeiros Homo sapiens a ocuparem o plane-

ta dedicavam-se à busca de vegetais comestíveis ou

animais para caça e, quando eventualmente topavam

com um bicho feroz, as chances do caçador se tornar

a presa da vez aumentavam consideravelmente. Tudo

mudou graças à construção do arado, ferramenta criada

há mais de sete mil anos para descompactar a terra e

torná-la propícia ao cultivo de plantas em maior esca-

la. O feito tecnológico levou à geração de excedentes

alimentícios, que possibilitou a divisão do trabalho em

diferentes atividades e deu o pontapé para um novo tipo

de sociedade, cada vez mais especializada.

um contonatalinonão é história do papai noel: o que os pratos da ceia têm a dizer sobre o nosso planeta

Este éwallace santana

Esta élili burlamaqui

Para se alimentar, os primeiros seres humanos dependiam de habilidades para caçar. Hoje, a especialização do trabalho permite que possamos nos ocupar de outras atividades e ir ao mercado comprar alimentos, como vegetais, grãos ou... um peru

O NATAL é uma festa que comemora o nascimento de Jesus. A celebração tornou-se um símbolo para reunir a família e esperar presentes do Papai Noel

LILI é um ser humano do sexo feminino. Tem 27 anos de idade e, assim como Wallace, vive no Brasil. Trabalha como estilista

O Peru é uma ave originária da América do Norte, se distingue por não ter penas no pescoço e na cabeça. Apreciado como um alimento quando morto, se popularizou por compor o principal prato da ceia de Natal

WALLACe é um ser humano do sexo masculino. Tem 26 anos de idade e vive no Brasil, onde é estudante de Direito

seres HumANOs são animais mamíferos, bípedes, e que se distinguem na natureza pelo cérebro altamente desenvolvido e o aprimoramento do polegar opositor

O BrAsIL se destaca por características geográficas que favorecem a diversidade de fauna e flora, e é considerado um dos maiores produtores de alimentos do mundo. O país também é o lar de mais de 200 milhões de pessoas, como Wallace e Lili

As grANJAs também criam galinhas, que são aves como o peru. em 2014, 1,33 bilhão de galinhas morreram no país: um frigorífico médio abate 2,5 milhões de animais diariamente

O PAPAI NOeL, assim como o peru, não é originário do Brasil. enquanto as histórias dizem que ele vive no Polo Norte, a ave é criada na região sul do país. em 2014, 26,6 toneladas de peru foram abatidas em granjas

Pela especialização do trabalho, Lili não precisa caçar para obter alimentos. Come arroz integral, feijão, peixe, frango, salada e legumes. Por uma escolha, não se alimenta de carne bovina42

trientes que participam de processos celula-

res fundamentais para o funcionamento de

nosso organismo. Nutricionistas e médicos

concordam que uma dieta exclusivamen-

te vegetariana é possível de ser adotada

por adultos, que consumiriam a proteína

vegetal de produtos como feijão, lentilha,

grão de bico, soja e ervilha. Nesse caso, a

única deficiência seria a da vitamina B12,

presente em maior quantidade nos produ-

tos de origem animal e importante para

a constituição do sangue – nesse caso, a

vitamina seria consumida pelos vegeta-

rianos estritos em forma de suplemento

nutricional sintético. “Gerações de famílias

vegetarianas não são anêmicas, mas têm

uma estrutura e peso menor que os hu-

manos onívoros em longo prazo”, afirma o

médico Roberto Navarro, especialista em

nutrologia. “Além do aumento dos índices

de colesterol, o excesso de proteína afeta

o funcionamento dos rins e pode prejudi-

car a composição de cálcio dos ossos.” A

recomendação para o consumo diário de

proteínas é de 0,8 a 1,2 gramas por quilo ou

300 gramas de carne por semana.

A comida, responsável por suprir as

necessidades biológicas do ser humano,

tornou-se uma mercadoria valiosa – de

acordo com as últimas estatísticas do Ins-

tituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), o brasileiro gasta em média 16%

de sua renda mensal em alimentação. Com

fatias cada vez maiores de lucro, a huma-

nidade dominou a natureza para fabricar

mais recursos nutricionais: há 10 mil anos,

99% da quantidade de biomassa animal

correspondia a bichos selvagens; hoje, ani-

mais criados para a alimentação humana e

nós, Homo sapiens, fazemos parte de 98%

da matéria viva do planeta. Nas últimas dé-

cadas, a produtividade por hectare – uni-

dade de medida para superfícies agrárias

que corresponde a uma área semelhante a

um campo de futebol – aumentou no Brasil,

com seis vezes mais grãos colhidos na mes-

ma área e dez vezes mais carne obtida por

hectare. “No país, houve um salto tecnológi-

co para o desenvolvimento de uma agricul-

tura tropical, que aumentou a produtividade

e diminuiu os preços”, afirma Rodrigo de

Brito, assessor técnico da Confederação da

Agricultura e Pecuária, a CNA.

Acontece que essa lógica de produção

e criação animal trouxe consequências

ambientais mais graves do que o próprio

processo de industrialização, com um

impacto sem precedentes na emissão de

gases de efeito estufa, no consumo cres-

cente de água potável e na exaustão das

terras cultiváveis. Tudo isso para garantir

aquela picanha do churrasco de domingo

ou o rosbife assado do cardápio da ceia

natalina. “O consumo de carne aumenta o

impacto ambiental, com o desmatamento

nas áreas de florestas, emissões de gases

poluentes e mudanças nas incidências de

chuvas”, afirma Paulo Barreto, mestre em

Ciências Florestais pela Universidade Yale

e pesquisador do Instituto do Homem e

Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Em estudo apresentado neste ano, Barre-

to reuniu dados sobre o impacto ambien-

tal da atividade agropecuária, responsável

por 62% do total de

emissões brasileiras

A substituição do consumo dessas carnes

por uma alimentação de peixes e frutos do

mar seria a solução, portanto? Não exatamente. “A pes-

ca é, de longe, o principal impacto à saúde dos ocea-

nos”, diz Monica Peres, diretora geral da Oceana Brasil,

que trabalha com a conservação da biodiversidade dos

oceanos. “Nas áreas costeiras, a poluição e a destruição

de habitat são mais perceptíveis, mas na medida em

que vamos em direção ao oceano, a pesca se torna o

impacto mais importante.” Em 2014, a produção total

da piscicultura brasileira foi de 474,33 mil toneladas, de

acordo com dados do IBGE. O problema é que a lista

oficial do Ministério do Meio Ambiente já considera 475

espécies de peixes e invertebrados aquáticos ameaçadas

de extinção, por conta de alterações no habitat e a cap-

tura insustentável. Além dos números oficiais, a FAO

indica que de 11 a 26 milhões de toneladas de peixes

por ano são capturados de maneira ilegal no mundo,

que geram um valor aproximado de US$ 10 bilhões a

US$ 23 bilhões. Se nem o bacalhauzinho da ceia está

garantido, o que resta de esperança para a humanidade?

Em Cowspiracy, Kip Andersen levanta a bandeira de

que é possível tornar o mundo mais sustentável a partir

da suspensão do consumo de carne e outros produtos

derivados dos animais, como leite, ovos e margarina

– grupo de alimentos ricos em proteínas, os macronu-

de gases poluentes em 2013. Desse índice, a criação

de gado ocupa posição privilegiada: a fermentação no

intestino dos animais foi responsável por 76% das

emissões de gases poluentes do setor agrícola brasi-

leiro em 2013, com a liberação do gás metano, que tem

potencial poluente 25 vezes superior ao gás carbônico,

e do óxido nitroso, liberado no esterco do animal, 296

vezes mais danoso que o CO2. Em média, cada boi ou

vaca produz de 250 a 500 litros de metano por dia – só

no Brasil, o rebanho está estimado em 212 milhões

de cabeças de gado, de acordo com números do

IBGE. O bilionário volume tóxico é somado à

derrubada de vegetação nativa para a abertura

de pastos, que diminuem o número de árvores

responsáveis por sequestrar o gás carbônico du-

rante o processo da fotossíntese e consequentemente

aumentar a quantidade de poluentes na atmosfera. De

2000 a 2013, o rebanho bovino aumentou em 70% na

região amazônica, passando de 47 milhões de cabeças

de gado para 80 milhões – não por acaso, 65% das

áreas desmatadas da região deram lugar a pastos.

A expansão territorial para as atividades da pecuá-

ria, aliás, não se restringem à destinação de espaços

para os animais viverem: relatório da Organização

das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura

(FAO-ONU) indica que metade dos grãos produ-

zidos no planeta é utilizada para os 70 bilhões de

animais criados para a alimentação humana. “Um

quilo de carne de frango custa dois quilos de ração

e os porcos se alimentam com o dobro dessa quan-

tidade”, diz o professor Carlos Armênio Khatounian,

do Departamento de Produção Vegetal da Escola Su-

perior de Agricultura da Universidade de São Paulo

(ESALQ-USP). “O resultado disso é uma produção

cada vez maior de cereais e o uso de terra para

fornecer ração animal.” Além da expansão de mo-

noculturas de grãos, como soja e milho, a criação de

animais também contribui indiretamente

para o consumo de cada vez mais água

doce – 70% do consumo desse recurso

vêm da agricultura, de acordo com rela-

tório do programa climático das Nações

Unidas de 2011. Segundo informações

coletadas pela organização Water Foo-tprint Network, a média de água utilizada

na produção de um quilo de corte bovi-

no sem osso corresponde a assustadores

19,4 mil litros de água, o equivalente a

143 banhos de 15 minutos de duração ou

431 duchas de cinco minutos.

100g Arroz

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100gsalada de

grãos 100g

Castanhas

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salpicão sem carne

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Esta étavinha prim

desproporcionalA Agência Internacional de Energia estima que, até 2040, as emissões de gás carbônico para o setor aumentarão em 20%. En-quanto isso, um estudo do periódico científico Nature indica que as emissões rela-cionadas à pecuária aumen-tarão em 80% até 2050.

Na ceia de Natal, festa que tornou--se um símbolo para reunir a família, Wallace não titubeia em repor suas necessidades nutricionais com um cardápio farto em carnes variadas

Lil i deixa a carne vermelha de lado em seu cardápio, mas aproveita para comer um pedaço de bacalhau

Tavinha mantém a sua dieta vegana e opta por porções de alimentos que não contêm nenhum vestígio animal

100g Arroz

10g Amêndoa

100gTender200g

rosbife

100g Peru

Assim como o peru e o Papai Noel, o rosbife não é originário do Brasil. seu nome é uma adaptação de roast beef –

“carne assada” em inglês – e também é um dos pratos servidos na ceia de Natal

A carne bovina provém de vacas e bois, que são mamíferos como os seres humanos. eles se alimentam apenas de vegetais e servem de ingrediente principal para o rosbife

LILI e WALLACe têm o costume de comemorar a festa de Natal. Os dois também compartilham a ideia de que atitudes como separar o lixo e tomar banhos mais curtos beneficiarão a humanidade

TAVINHA, mamífero, bípede, ser humano e brasileira, tem 26 anos e trabalha como designer. Desde 2012 não consome nenhum tipo de carne, e também parou de consumir outros produtos de origem animal

O bacalhau, embora viva rodeado de água salgada no norte do Oceano Atlântico, também é um animal como o peru, o boi, o porco e o ser humano e precisa desse recurso natural para sobreviver

Ao contrário de Lili e Wallace, Tavinha adotou um estilo de vida vegano e acredita que a alimentação é a ferramenta mais eficiente para contribuir com um futuro sustentável

Wallace gosta de praticar esportes e, diferentemente de Tavinha, atende a suas necessidades nutricionais com uma dieta de massa, carne vermelha, frango, frutas e pães

O peru, o boi e o porco que serviram de ingredientes no prato de Wallace eram animais que consumiam á g u a e co m i d a p a ra sobreviver, os mesmos recursos disponíveis na Terra aos seres humanos

44

morango utilizam tanto vene-

no? Porque eles são plantas de

adaptação forçada em nosso

ambiente”, afirma o professor

Khatounian, da ESALQ. “As

populações humanas adap-

taram sua dieta e padrão de

sabor naquilo mais abundante

em cada quadrante do planeta,

o gosto é uma criação sociocultural.” Em

artigo sobre a história da alimentação,

o pesquisador afirma que esses vegetais

desembarcaram em território brasileiro

por conta da imigração, utilizando doses

de agrotóxicos para controlar as pragas

locais – de acordo com a FAO, a agricul-

tura causa mais de 40 mil mortes por

envenenamento por pesticidas a cada ano

no mundo. Mas como se não bastasse

ainda há as toneladas de comida que dia-

riamente têm o lixo como destino.

DESTINO DA GULAChega a ser inacreditável o fato de que,

em dezembro de 2015, ainda existam mais

de 800 milhões de pessoas em condições

de pobreza extrema e fome, segundo os

últimos dados da ONU. Enquanto isso, o

desperdício global de comida é estimado

em 1,3 bilhão de toneladas, o equivalen-

te a um terço da produção total mundial,

a um custo perdido de US$ 750 bilhões

de dólares e uma área de 1,4 bilhão de

hectares, equivalente a 28% da área total

ocupada pela agricultura no mundo. Cer-

ca de 45% de todas as frutas e legumes,

35% dos peixes e frutos do mar e 20% da

carne vão para o lixo e são responsáveis

pela emissão de 3,3 bilhões de toneladas

de gases de efeito estufa na atmosfera do

planeta. “O transporte é, possivelmente, a

principal causa dos danos mecânicos, cuja

intensidade varia com a distância a ser per-

corrida e o tipo de produto transportado”,

diz Antônio Gomes

Soares, pesquisa-

dor da Embrapa.

“Em um país com

Se não há maiores justificativas nutricionais para o

consumo excessivo de carne, por que fazemos ques-

tão de rechear o nosso prato com um belo pedaço de

bife a cada refeição? “Passamos por estágios de fome

na história e o consumo de carne era uma marca de

distinção social”, diz a nutricionista Julicristie Olivei-

ra, professora da Faculdade de Ciências Aplicadas

da Universidade de Campinas (Unicamp). “Quando

era presidente, Lula dizia que o brasileiro já podia

comer carne, em um exemplo da melhora do poder

de compra.” De fato, entre 2002 e 2014, a população

subalimentada no Brasil caiu 82,1%, por um esforço

de políticas públicas associado ao crescimento eco-

nômico da exportação de produtos da agropecuária:

a soja é o principal produto da balança comercial

brasileira, o país é líder na produção de frango e tem

a meta de suprir 44,5% do mercado mundial de carne

bovina até 2020. “Há 40 anos, o consumo anual de

produtos de origem animal na China era de quatro

quilos por habitante, e isso incluía leite, ovos e peixe”,

diz o professor Carlos Armênio Khatounian. “Hoje,

esse índice é de 80 quilos anuais e o que possibilitou

isso foi a expansão da soja no Brasil para a produção

de ração.” Mesmo com a instabilidade econômica, a

expectativa do setor agropecuário é ser responsá-

vel por R$ 1,2 trilhão do Produto Interno Brasileiro

(PIB) deste ano, praticamente um terço do total das

riquezas nacionais, com participação de R$ 816,1 bi-

lhões da agricultura e R$ 391,6 bilhões da pecuária,

consideradas as diferentes etapas de produção.

A contradição presente em nosso atual modelo

de desenvolvimento, que contrapõe a economia

nacional com a sustentabilidade ambiental, não se

restringe às grandes propriedades monocultoras e à

criação de animais. Assim como a carne, o hábito de

comer certos vegetais sem levar em conta suas ca-

racterísticas geográficas e sazonais também produz

desequilíbrios pelo uso excessivo de agrotóxicos ou

fertilizantes artificiais que esgotam os recursos na-

turais da terra e poluem o lençol freático – dados da

FAO afirmam que o mau uso de fertilizantes aumen-

tou o teor de fósforo nos sistemas de água doce em

75%, proliferando algas que afetam o equilíbrio da

biodiversidade. “Sabe por que o tomate, a batata e o

Bancada do boiDurante as primeiras décadas do século 20, a política brasi-leira sustentou-se na articu-lação de grandes produtores rurais de São Paulo e Minas Gerais para perpetuarem-se no poder. Hoje, apesar de 84% da população do país viver nas cidades, políticos ligados ao agronegócio formam um dos mais poderosos grupos de influência no Congresso Nacional. Dos 513 deputados federais eleitos em 2014, 171 mantêm relação estreita com os interesses ruralistas, que procuram flexibilizar as leis contra o desmatamento e demarcação de terras. Kátia Abreu, nome de maior refe-rência entre os pecuaristas, foi nomeada para liderar o Minis-tério da Agricultura em 2015.

Os grãOs que alimentam o homem também são consumidos pelos porcos. Apesar de seu rabo ter formato de parafuso, item criado nas fábricas, os suínos precisam de água para sobreviver. O tênder da ceia se origina da perna do porco, após um processo industrial para a defumação

Os BOIs, ao contrário dos seres humanos, não são onívoros e se alimentam exclusivamente de vegetais. Como podem pesar até 1,2 mil quilos, consomem grande quantidade de ração, fabricada com os mesmos grãos que poderiam atender às necessidades humanas

Ao escolher produtos de origem exclusivamente vegetal em sua ceia, Tavinha consome alimentos que em outras dietas fariam parte da ração do peru, do boi e do porco, diminuindo assim o gasto virtual de água

OuTrO PrATO típico do Natal é a farofa, fabricada a partir da farinha da mandioca , um produto presente no Brasil há séculos, ao contrário do arroz. Cartas dos primeiros colonizadores indicavam a abundãncia do vegetal disponível aos indígenas no território

Os cientistas não conseguem calcular quanto de água é gasto na produção do bacalhau. mas a pesca é considerada a atividade de maior impacto à sustentabilidade dos oceanos

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O ArrOz, como o peru, não é brasileiro e foi inicialmente plantado na Ásia. Apesar de ser um vegetal, o arroz também precisa de água para que o cultivo seja possível: hoje, 9,5 milhões de toneladas são produzidas no país, em maior parte na região sul

A regIãO suL, onde se concentram as maiores granjas do Brasil, produzem os ovos de galinhas utilizados na maionese, matéria-prima para preparar o salpicão da ceia natalina

A proporção de água utilizada em cada cardápio não é a única diferença entre os pratos de Lili, Tavinha e Wallace: diferentemente da industrialização, que produz parafusos , a pecuária depende do cultivo da terra para criação dos animais

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dimensões continentais como o Brasil,

transportar frutas e hortaliças, que são

altamente perecíveis, em estradas ruins

e caminhões sem refrigeração, permite

o aumento substancial das perdas.” De

acordo com a instituição, metade das

26,3 milhões de toneladas anuais perdi-

das no Brasil ocorre durante o manuseio e

transporte dos alimentos, enquanto 30%

do desperdício acontece nas centrais de

abastecimento e comercialização.

Para ajudar a solucionar esse proble-

ma, a carioca Luciana Quintão fundou

em 1998 a ONG Banco de Alimentos,

que entra em contato com distribuidores

e supermercados para recolher alimentos

que seriam desperdiçados e os distribui

para instituições que atendem atualmente

a quase 22 mil pessoas. “No lixo da cida-

de, mais da metade do material orgâni-

co é resto de alimento”, diz Luciana. “Há

um grave problema que é cultural: grande

parte da população joga fora talos e se-

mentes, enquanto poderia aproveitá-los

na hora de preparar o alimento.” A FAO

afirma que, em 2013, 500 mil toneladas

de alimentos foram poupadas do desper-

dício por meio dos bancos de alimentos:

só na América Latina, 190 mil toneladas

foram distribuídas a 12,7 mil organizações

de 15 países. Desenvolvido em parceria

com 50 restaurantes do Rio Grande do

Sul e de São Paulo, o projeto Satisfeito

foi idealizado em 2012 por conta de um

desconforto comum na hora em que o

prato pedido chega à mesa. “A gente se

dá conta que a refeição é maior do que a

nossa fome”, diz Luiza Esteves, coordena-

dora da iniciativa realizada pelo Instituto

Alana, organização que realiza trabalhos

na área de sustentabilidade. Ao participar

do Satisfeito, o restaurante pode indicar

ao cliente uma troca: há a possibilidade

de pedir um prato com a porção menor de

comida pelo mesmo preço da quantidade

original. O valor economizado pela empre-

sa é doado ao projeto, que já disponibili-

zou cerca de 130 mil refeições repassadas

a organizações. “Essa é uma mudança de

cultura, porque vemos aquela ideia do prato bem ser-

vido, mas as pessoas estão cada vez mais conscien-

tes em relação à sustentabilidade”, afirma Luiza. Em

São Paulo, um restaurante de porte médio desperdiça

quase 10% do produto total em serviços de bufê; já

o modelo à la carte pode registrar 40% de perdas.

QUE FAZER?Caso tenha chegado até o final desta repor-

tagem, por favor, não desista da sua ceia na-

talina após encontrar essa aparente espiral

de caos que fundamenta o atual modelo de

desenvolvimento alimentar, abastecimen-

to e consumo. As mudanças de nossos

hábitos alimentares serão irreversíveis nos

próximos anos, mais provavelmente por

mudanças decorrentes de movimentos

econômicos do que por catástrofes natu-

rais. “A indústria de tabaco alegava que a

propaganda contra o cigarro desempregaria

muita gente, mas esse argumento ignora

a flexibilidade da economia e a criação de

novas oportunidades”, diz Carlos Armênio

Khatounian. “Uma dieta com menos car-

ne poderia gerar novos postos de trabalho

na área de produção agrícola e nutricional,

além de uma nova diversidade de produtos,

mas o fato é que isso não acontecerá de

uma hora para a outra.” Nunca subestimem

a capacidade de transformação do capitalismo, afinal.

Quem compartilha uma opinião semelhante ao do

professor da ESALQ é o norte-americano Dan Bar-

ber, chef do restaurante nova-iorquino Blue Hill e

autor do livro O Terceiro Prato (editora Casa Amare-

la, 480 páginas), lançado em outubro deste ano. Na

obra, Barber propõe soluções para superar o atual

sistema alimentar a partir de uma gastronomia que

respeite as particularidades culturais e os ciclos

biológicos de cada território, além de aproximar o

pequeno agricultor do consumidor, a partir da va-

lorização da produção familiar e orgânica. “Com o

fim do modelo de agricultura ‘industrial’, teremos

de mudar as estruturas de como consumimos a co-

mida”, diz o chef em entrevista à GALILEU. “Isso

significa mais diversidade e menos componentes

químicos nas fazendas, com dietas mais ligadas à

realidade ecológica”. O “terceiro

prato” proposto por Bar-

ber para o futuro é

Desperdício na leiUm projeto aprovado neste ano na França proibiu os su-permercados de jogar fora os alimentos que não foram ven-didos. A medida obriga as em-presas a realizar acordos com organizações para doação – os alimentos devem estar dentro do prazo de validade e em condições de consumo – ou então distribuí-los para a fabricação de adubo. Os mer-cados que descumprirem a decisão pagarão multa de até 75 mil euros. Também há uma proposta para que alimentos fora dos padrões de beleza e qualidade sejam vendidos a um preço mais baixo. 6,6m2

carne Bovina

1,4m2castanha

de caju

De acordo com estudos do Departamento de Agricultura dos estados unidos, em um hectare de terra é possível produzir 28 toneladas de vegetais ou 238 quilos de carne. Aquele pedaço de 200 gramas de rosbife assado consumido por Wallace corresponde a 6,6 metros quadrados de uso de terra

Apesar da alta capacidade cognitiva, o ser humano também expele gases, assim como outros animais, contribuindo para a emissão de gases causadores do efeito estufa

Além das terras que precisam para viver, o peru, o boi e o porco se alimentam dos grãos cultivados em grandes propriedades. A maior parte dos vegetais consumidos por Tavinha, no entanto, é produzido pela agricultura orgânica , realizada por seres humanos, que têm o cérebro altamente desenvolvido

O bacalhau consumido por Lili deixa rastros de emissão de gás: a estimativa é de 5 quilos de gás carbônico em cada quilo de bacalhau

Q u a n d o co m p a ra d a s com as demais dietas, a utilização de terras e as emissões de gases de efeito estufa da receita de Tavinha têm um impacto muito menor em relação aos pratos de Lili e Wallace

Por motivos óbvios, o bacalhau de Lil i não n e c e s s i t a d e t e r r a . Os demais vegetais do prato, como a castanha de caju, utilizam bem menos recursos físicos do território do que o p ra t o d e Wa l l a ce

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uso de terra

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composto de grãos, legumes e vegetais,

sendo que a carne será utilizada como

um condimento. E o mais importante de

tudo, sem perder o sabor e o prazer de se

alimentar bem. “A comida cultivada do

jeito correto e com o tipo adequado de

ecologia é invariavelmente mais gostosa.”

Mas se o futuro não é tão ruim assim,

o que é possível fazer agora para mudar

a nossa relação com a comida? A cons-

ciência de consumo é um primeiro passo

importante para tornar os hábitos mais

sustentáveis, como verificar a proce-

dência das mercadorias compradas nos

mercados – cerca de 60% da carne con-

sumida no Brasil provém dos três maio-

res frigoríficos que publicam relatórios

socioambientais sobre a compra de carne

de origem lícita. O problema é que 40%

da carne vendida ainda vêm de origem in-

certa e duvidosa. Mas como colocar pres-

são para que os supermercados parem de

comprar carne de fazendas que desmatam

a floresta? Para tentar responder a essa

pergunta, o Greenpeace publicou o estudo Carne ao molho madeira - vamos colocar a floresta na frente dos bois, que realizou um

questionário com os principais supermer-

cados do país para entender a política de

aquisição de carne. O resultado foi decep-

cionante: entre as grandes empresas, ne-

nhuma se saiu bem. “Hoje pode se dizer

que, de forma geral, a carne vendida nos

supermercados brasileiros é de origem

duvidosa”, afirma Adriana Charoux, coor-

denadora da campanha de pecuária da ONG. “Não

quer dizer que toda a carne seja suja, só não dá para

garantir que a carne está livre de desmatamento.”

Apesar de sofrer pressões do agronegócio e com o

desafio de produzir alimentos para cada vez mais

pessoas, os produtores familiares que não utilizam

agrotóxicos no cultivo de vegetais também ganham

destaque como alternativa sustentável para o futu-

ro. “Experiências agroecológicas mais avançadas

mostram que é possível produzir mais e respeitar

a biodiversidade, acumulando água para recuperar

o solo”, afirma Denis Monteiro, da Secretaria da

Articulação Nacional de Agroecologia. “Uma das

propostas do movimento agroecológico é promover

os mercados locais: ao invés de levar um produto

transportado em uma distância de mil quilômetros

você estimula aquilo que é produzido localmente.”

Apesar de não eliminar completamente a necessi-

dade de trazer alimentos de outros lugares, quan-

to menor o espaço de deslocamento, mais fresco

chegará o produto, poupando o meio ambiente da

emissão de poluentes dos caminhões de transporte.

O brasileiro consome, em média, 40 quilos de

carne vermelha por ano: em uma conta feita com o

Greenpeace, se 10% da população tirasse a carne do

cardápio em um dia do mês, o impacto ambiental

seria melhor do que se 1% dos habitantes do país

parasse de comer carne da noite para o dia. De qual-

quer maneira, antes de iniciar a sua ceia natalina,

lembre-se que o peru desossado e sem penas era

um ser vivo – e, apesar de ser a primeira vez que

a ética e o cuidado com os animais é citada nesta

reportagem, essa é uma questão essencial para uma

mudança definitiva em relação à maneira como nos

relacionamos com nossa comida.

a ceia TermiNou e a comida NÃo acaBou

e depois de tudo isso...

BACALHAu 500g de CO2

ArrOz 270g de CO2

CAsTANHAs 230g de CO2

LeNTILHAs 90g de CO2

emissÕes de co2

e depois de tudo isso...

e depois de tudo isso...

5,4 kgROSbIFE

de co2

1,2 kgTENDER

de co2

1kgpERU

de co2

Dados da FAO mostram que 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente, o equivalente a um terço da produção total

51

Fonte Conab, IBGE, USDA, FAO, Environment Working Group, Water Footprint Network, Embrapa. Os números do infográfico foram calculados de acordo com as médias de cálculo apresentadas nos estudos

guia susteNtávelnúmeros e histórias para você repensar o modelo

de produção e consumo de alimentos

Animais criados para virar comida:

São responsáveis por 51% das emissões

causadoras do aque-cimento global

Causam 91% da des-truição das florestas

nativas e reservas naturais

Ocupam 45% da superfície disponível de ter-

ras do planeta

Consomem 30% dos recursos

hídricos potáveis do mundo

AHiltl - SuíçaFundado na cidade suíça de Zurique, em julho de 1898, o restaurante é administrado pela quarta geração da família Hiltl e é considerado o restaurante vegetariano mais antigo do mundo, de acor-do com o Livro dos Recordes do Guinesshiltl.ch

DHampton Creek eSta-doS unidoS O condimento fabricado pela empresa não utiliza nenhu-ma matéria-pri-ma de origem animal e pode ser utilizada nas receitas culinárias com a mesma aplicação do que os ovos de galinhas hampton-creek.com

bCaSa Jaya São pauloA instituição busca a susten-tabilidade da produção de seus alimen-tos, desde o cultivo do alimento até o encaminhamen-to de resíduos orgânicos para compostagem e reciclagem. Não utiliza produtos de origem animal casajaya.com.br

EGoBeyond eStadoS unidoS Fabrica um pro-duto semelhante ao leite, mas sem substân-cias de origem animal. Segundo a companhia, comparado ao modo tradicional de produção o processo reduz o consumo de água em 25 vezesgobeyondfoods.com

cVeGan VeGan rio de JaneiroBusca pro-mover uma alimentação equilibrada e acredita “na capacidade de abastecimento orgânico cada vez maior, que um dia nos dará a possibi-lidade de uma alimentação 100% orgânica” veganvegan.com.br

FBeyond meat eSta-doS unidoSFabricado com soja e proteí-na de ervilha, o produto da compa-nhia tem a consistência e o gosto de carne bovina e de frango. Até hambúrgueres vegetarianos já estão disponíveis!beyond-meat.com

Para alimentar uma pessoa por um ano são necessários:

hectare de terra na dieta vegana

0,4hectare de terra na dieta vegeta-

riana

1,2hectares de terra na dieta

7,2

Quantidade de carbono que deixaria de ser emitido:

tonelada de CO2

com uma dieta

vegana

1,8tonelada

de CO2

com dieta vegeta-

riana

1,6tonelada

de CO2

sem comer carne

vermelha

1,4

Iniciativas para um planeta mais limpo:

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