Há matérias básicas na formação de um Jurista ... · Ficha Técnica Nome: Faces da Retórica...

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  • H matrias bsicas na formao de um Jurista completo que no podem faltar.

    A Retrica uma delas.

    Porque tem que ver com argumentao. Com persuaso. Com comunicao.

    Da que anualmente o CEJ assuma a tarefa de a relembrar e sobre ela reflectir.

    Em 2016 numa parceria com o Grupo de Trabalho de Retrica da SOPCOM (um incontornvel grupo de investigadores nesta rea) o CEJ organizou uma aco de formao intitulada "Faces da Retrica", que agora permite trazer luz, atravs deste e-book, as comunicaes apresentadas.

    A moderao dessa formao esteve a cargo do Procurador-Geral Adjunto JLB Pena dos Reis o qual, um ano depois, acrescenta a esta edio um breve texto de enquadramento.

    Com mais esta publicao, o CEJ volta a cumprir o seu objectivo de maior aproveitamento das suas aces para toda a Comunidade Jurdica (e no s).

    Que a todos seja til!

    (ETL)

  • Ficha Tcnica

    Nome:

    Faces da Retrica

    Coleo:

    Formao Contnua

    Plano de Formao 2015/2016:

    Faces da Retrica A fora performativa da Retrica na aplicao do Direito e na realizao da Justia 30 de junho 2016 (programa)

    Conceo e organizao:

    Intervenientes:

    Antnio Bento (Professor da Faculdade de Artes e Letras Universidade da Beira Interior) Hermenegildo Borges (Professor da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa) Ivone Ferreira (Professora Adjunta da Escola Superior de Educao Instituto Politcnico de Viseu) Joo Lus Bento Pena dos Reis (Procurador-Geral Adjunto, Tribunal da Relao de vora) Rafael Gomes Filipe (Professor da Escola de Comunicao, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informao Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa) Tito Cardoso e Cunha (Professor Emrito da Faculdade de Artes e Letras Universidade da Beira Interior)

    Reviso final:

    Edgar Taborda Lopes Juiz Desembargador, Coordenador do Departamento da Formao do CEJ Ana Caapo Departamento da Formao do CEJ

  • Notas:

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    Foi respeitada a opo dos autores na utilizao ou no do novo Acordo Ortogrfico.

    Os contedos e textos constantes desta obra, bem como as opinies pessoais aqui expressas, so da exclusiva responsabilidade dos seus Autores no vinculando nem necessariamente correspondendo posio do Centro de Estudos Judicirios relativamente s temticas abordadas.

    A reproduo total ou parcial dos seus contedos e textos est autorizada sempre que seja devidamente citada a respetiva origem.

    Forma de citao de um livro eletrnico (NP4054):

    Exemplo: Direito Bancrio [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judicirios, 2015. [Consult. 12 mar. 2015]. Disponvel na internet:

  • Faces da Retrica

    ndice

    A dona Aurora est a passar a ferro Joo Lus Pena dos Reis

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    1. Coragem poltica sem lisonja retrica: do modo de dizer retrico aomodo de dizer parrhsistico Antnio Bento

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    2. Distino entre Retrica Jurdica e Retrica ForenseHermenegildo Borges 33

    3. Relaes entre retrica poltica e retrica jurdicaIvone Ferreira 53

    Debate l Moderao: Joo Lus Bento Pena dos Reis 65

    4. Retrica, Direito e Parrsia em Michel Foucault e Peter Sloterdijk Rafael Gomes Filipe 69

    5. Retrica jurdica e crtica de arteTito Cardoso e Cunha 91

    Debate ll Moderao: Joo Lus Bento Pena dos Reis 101

  • A dona Aurora est a passar a ferro

    JLB Pena dos Reis

    I

    frequente ouvir dos responsveis polticos que se deve deixar trabalhar A Justia, ou que no se deve perturbar os ademanes da Grande Dama, ou outra qualquer forma frsica exprimindo a mesma ideia. Chama-se prosopopeia ou personificao atribuio de predicativos prprios de seres animados a coisas inanimadas. Aparece classificada como uma figura do pensamento, incluindo-se na classificao mais geral das figuras da linguagem.

    O uso da prosopopeia para tornar vvidos o motor e o mbil da funo que os estados sempre reclamaram para si - de fazer Justia est em inumerveis representaes icnicas. E porque personificao inscreve-se certamente numa representao, isto , num teatro, seno de um teatro do mundo, ao menos num teatro do poder na relao consigo e com aqueles sobre os quais o poder exercido. Olhado atravs desta lente, trata-se de espetculo e de arte do espetculo.

    Um teatro que guarda ciosamente, e continua, e prossegue, e encena a repetio de antigas formas rituais ou cerimoniais.

    As cadeiras foram cuidadosamente dispostas no salo em nmero correspondente aos convites aceites. Mos atarefadas dispuseram sobre os assentos, os nomes e os cargos desempenhados pelos que viro. A sequncia dos lugares segue uma ordem protocolar respeitada ao pormenor. Esto a chegar os visitantes. Os magistrados usam as suas becas, como foi previamente prescrito. O salo enche-se, os lugares vo sendo paulatinamente ocupados. A cerimnia pode prosseguir, os representantes do poder poltico so conduzidos aos seus lugares na mesa da presidncia ou na primeira fila. Seguir-se-o os discursos, graves, oraculares. No exterior, na Praa do Comrcio, o sol declina.

    No ano judicial, que se segue, milhares de sesses de julgamento em todos os tribunais do pas realizam-se, cumprindo um guio minuciosamente regulado pelas leis e pelo hbito. Regulado mais minuciosamente do que muitas peas teatrais propriamente ditas nas indicaes de cena dos dramaturgos. Apenas as palavras dos que atuam no esto previamente escritas, exceto naqueles momentos em que devem ser proferidas frmulas rituais. O objetivo desse espetculo no a repetio de um acontecimento dramtico, imitando-o como se estivesse de novo a ocorrer, mas anda l perto.

    Texto elaborado em maio de 2017 pelo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relao de vora JLB Pena dos Reis (que foi o Moderador da Ao de Formao) especialmente para o presente e-book.

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  • O seu objetivo comea por ser a reconstituio do acontecimento dramtico descrevendo-o, narrando-o, at se obter uma verso compreensvel do mesmo em palavras.

    A cerimnia, o ritual, esto ao servio da persuaso. Mas para persuadir de qu?

    Em cima esto as estrelas e em baixo os pntanos esto. As nuvens que tapam o sol, as mesmas o sol destaparo. Todos os rios vo a jusante, os quais de montante vo. A cavalo dado no se olha dente so e o doente tambm no. A ordem em que esto a ordem em que vo, e essa que a ordem em que esto.

    A cerimnia e o ritual visam persuadir da permanncia, da continuidade, da repetio. Tm uma natureza reiterativa. Por esse facto, correm continuamente o risco sem rede da redundncia. o que acontece se o enunciado simblico, ou o poder real, ou o bem social objeto da sua tentativa de persuaso se degradam ou perdem validade.

    II

    O nosso tempo o tempo de todos os espetculos, o tempo da indstria do espetculo.

    Um homem chamado Inocncio est sentado num banco do Jardim da Estrela, prximo do coreto, gozando o sol numa tarde ventosa de primavera, quando um embuado se aproxima apressado e lhe entrega, sem proferir palavra, uma mala de viagem com vinte milhes de euros.

    Se este facto tivesse ocorrido em 1998, teria despertado a ateno de Joo Csar Monteiro.

    Hoje, os principais jornais e os outros fazem capa com uma fotografia do feliz contemplado carregando aos ombros a mala enquanto sobe para o eltrico 28. As vrias rdios organizam durante toda a semana programas em direto. H canais de televiso por cabo que seguem o mesmo procedimento. Testemunhas perplexas ou convictas so entrevistadas para os telejornais das 20 horas. Reformados quase no escondem reticncias um pouco brutais. Jurisconsultos e professores de direito analisam o significado e as consequncias do feliz evento na perspetiva do direito penal, do fiscal, do civil. Nesse momento dou um grito s crianas: Deixem trabalhar a dona Aurora! Os pequenos tinham enrolado um cachecol em volta da cabea da senhora. Querem que ela engome camisas com os olhos vendados. Comentadores sibilinos continuam a divulgar informaes de que ningum dispe, mas no revelam as fontes. A dona Aurora, que ganha pouco, e a quem s resta o realismo, olha-me com cepticismo depois de uma observao minha e diz no acreditar que a gente sria l em cima tenha permitido o roubo de tanto dinheiro.

    Todos querem persuadir

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  • Expem as suas ideias com emoo, com convico, na expetativa de que aquele objetivo seja alcanado. Mas j no se trata do esforo de persuaso na pequena esfera das relaes pessoais. A escala gigantesca. A escala industrial.

    Claro que essa coisa, esse bem a persuaso continua ainda a ser residualmente produzida como arte (pelo arteso), mas o grosso da produo neste nosso tempo resulta de uma organizao industrial. A indstria do espetculo. Do ponto de vista da indstria, o valor de uso da persuaso irrelevante. indiferente que esteja ao servio de ideias belas ou feias, inteligentes ou estpidas, amveis ou brutais. Importa, sim, o seu valor de troca, isto , o valor (vulgo o dinheiro) que se obtm com a sua venda. A persuaso apenas mercadoria na indstria do espetculo. Esta afirmao tanto se aplica a cerimnias e a rituais sociais, como um casamento, ou um funeral, como s cerimnias do teatro do poder, por exemplo uma consultoria de imagem numa campanha eleitoral.

    Mas persuaso de qu? - pergunta o leitor j aborrecido. Persuaso de tudo o que se possa vender com persuaso.

    E por fim, porque o objeto de persuaso irrelevante, a indstria chegar a vender pura e simplesmente a persuaso de poder persuadir (como uma marca).

    III

    A disciplina que se denomina Retrica a que tem como objeto a persuaso. Ou por outras palavras, a Retrica trata da persuaso.

    At agora analismos brevemente, e propositadamente com tintas carregadas, o fortssimo papel da retrica no espetculo institucional dos casos da justia e o mesmo fortssimo papel na sua discusso popular.

    Fizemos ressaltar que o dispositivo retrico cerimonial ou teatral tem um papel maior, seno o fundamental, quando se analisa o grau de uso da retrica na vida judicial ou a suarepercusso na vida social e na vida poltica.

    A funo do sistema judicial no quadro global do aparelho de Estado o de fazer as leis dos casos concretos.

    Tal funo corresponde a uma especfica ao de criao do Direito, de fazer o Direito.

    De que modo pode a Retrica, essa disciplina que trata da persuaso, ser hoje til para essa finalidade?

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  • IV

    Naquilo que objetivvel, a retrica pode estar ao servio da racionalidade, ou dito de outro modo, a retrica pode intensificar o potencial e a influncia da cincia e do seu mtodo no processo e na ao de fazer o direito.

    Mas nesse mesmo mbito, ela pode tambm estar ao servio da irracionalidade, isto , dos erros e preconceitos do senso comum, acentuando as suas consequncias negativas.

    Portanto, no campo do objetivvel, a retrica desempenha um papel ambguo, perigo que alis Scrates assinalou, segundo os relatos de Plato, embora num quadro mental muito diferente do deste tempo do mtodo cientfico.

    V

    Mas tudo se passa diferentemente, quando o que est em jogo o no objetivvel, isto , quando se trata apenas e s da paisagem de dentro e da irredutvel experincia da subjetividade.

    A ao de fazer as leis dos casos concretos dos homens, isto , a parte de produo do direito que compete ao sistema judicirio enfrenta continuamente um vastssimo campo de prevalncia do subjetivo e da subjetividade nos factos humanos (nas concretas situaes da vida dos homens), excludos da ordem jurdica - porque o Direito (ordem) que os regulava foi violado, ou porque ainda no existiam para o Direito.

    O recurso aos dispositivos retricos na utilizao de todas as linguagens s o que h, o nico caminho para se chegar ou no chegar verdade do direito dos factos em que tal prevalncia da subjetividade se verifica.

    VI

    As crianas subiram ao primeiro andar e esto a ver televiso. Neste momento a dona Aurora passa a ferro a roupa interior dos patres. L em cima deve ser o cu.

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  • FACES DA RETRICA 1. Coragem poltica sem lisonja retrica: do modo de dizer retrico ao modo de dizer parrhsistico

    CORAGEM POLTICA SEM LISONJA RETRICA: DO MODO DE DIZER RETRICO AO MODO DE DIZER PARRHSISTICO1

    Antnio Bento

    Por muito atrs que recuemos no comportamento da nossa espcie, a palavra verdadeira uma fora qual poucas foras podem resistir Desde muito cedo que a verdade apareceu aos homens como uma das armas verbais mais eficazes, um dos germes de poder mais prolficos, um dos mais slidos fundamentos das suas instituies2.

    Numa aco de formao como esta, consagrada discusso da fora performativa da Retrica na aplicao do Direito e na realizao da Justia, escolhi falar-vos de um termo no muito conhecido. Trata-se, no entanto, de um termo incontornvel se queremos analisar e discutir as complexas relaes entre a filosofia, a retrica e a poltica na Antiguidade clssica e nos primrdios do cristianismo. Refiro-me palavra grega (parresia). Esta palavra encontra-se j na literatura grega a partir do fim do sculo V antes de Cristo, por exemplo em Eurpides, aparecendo igualmente nos textos patrsticos no final do sculo IV e no sculo V depois de Cristo, por exemplo em So Joo Crisstomo, e, de uma maneira geral, no grande corpo da literatura confessional crist. Transportada para fora do seu contexto grego originrio, a palavra grega parresia foi durante os sculos posteriores vertida nos textos neotestamentrios, nos textos apostlicos e nos textos patrsticos pela palavra latina libertas. Para vos dar uma panormica geral do significado da palavra parresia e da evoluo e transformao deste significado e dos seus usos na cultura grega e greco-romana, bem assim como para vos dar conta das implicaes deste termo nos mbitos cruzados da filosofia, da retrica e da poltica no mundo antigo, apoio-me maioritariamente em trs obras, recentemente publicadas, que recolhem os trs ltimos anos de ensino do filsofo Michel Foucault no Collge de France, antes da sua morte em 1984: 1) A hermenutica do sujeito, volume que corresponde s aulas dadas no ano lectivo de 1981-1982; 2) O governo de si e dos outros, correspondente ao ano lectivo de 1982-1983; 3) A coragem da verdade, que transcreve as aulas do ano lectivo 1983-19843.

    1 O texto da apresentao ser disponibilizado em breve trecho, numa atualizao do presente e-book. * Professor da Faculdade de Artes e Letras Universidade da Beira Interior. 2 Cf. Georges Dumzil, Servius et la fortune. Essai sur la fonction sociale de louange et de blme et sur les lments indo-europens du cens romain, Paris, 1943, pp. 243-244. 3 As citaes destas obras sero referidas por abreviaturas, seguidas da respectiva pgina: Hermenutica do sujeito [= HS]; O governo de si e dos outros [= GSO]; A coragem da verdade [= CV]. Modificmos por vezes a redaco das verses disponveis em lngua portuguesa dos trs ltimos cursos do filsofo francs sempre que isso nos pareceu poder beneficiar a compreenso, em lngua portuguesa, do pensamento de Michel Foucault. O nosso nico critrio textual e modesto propsito foi procurar restituir, do modo mais claro possvel, o original. Respeitando a sintaxe da lngua francesa e a arte de escrever prpria de Michel Foucault, procurmos no desfigurar nem o estilo, nem a respirao

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  • FACES DA RETRICA 1. Coragem poltica sem lisonja retrica: do modo de dizer retrico ao modo de dizer parrhsistico

    Para comear, qual o sentido geral da palavra parresia? Etimologicamente, parrhesiazesthai significa dizer tudo de pan [] (tudo) e rhema [] (raiz que se encontra, por exemplo, nas palavras retor ou retrica, e que significa o que se diz ou o que dito). Aquele que usa de parresia, o parresiasta, algum que diz tudo (pan-resia) o que pensa; o parresiasta aquele tipo de orador que ao falar, ao expor o seu pensamento, no esconde nem dissimula nada, algum que abre o seu corao e a sua mente aos outros atravs do seu discurso. A palavra parresia, contudo, no tem sempre um valor unvoco. Logo em Aristfanes, e depois mais tarde numa certa literatura crist, a parresia empregue num sentido pejorativo. Aqui a parresia consiste igualmente em dizer tudo, mas precisamente no sentido em que se diz qualquer coisa, no importa o qu: qualquer coisa que passe pela cabea, qualquer coisa que possa ser til causa que se defende, qualquer coisa que possa servir paixo ou ao interesse que anima quem fala4. Neste caso, o parresiasta aparece como aquele que no se sabe conter, ou, pelo menos, como aquele que no capaz de indexar ou de referir o seu discurso a um princpio de racionalidade e a um princpio de verdade. Portanto, numa certa espiritualidade crist, observa Foucault, a parresia pode algumas vezes assumir o sentido de incontinncia, de indiscrio, de tagarelice, de verborreia, com a qual, a propsito de si mesmo e dos outros, algum fala de tudo o que lhe vem cabea, venha ou no a propsito, seja ou no conveniente, e isto, de certa maneira, analogamente ao que sucede na parresia cnica grega, embora, naturalmente, com valoraes filosficas distintas num e noutro caso. Mas, no seu contexto grego originrio, a palavra parresia empregue num sentido eminentemente positivo, e neste caso a parresia consiste em dizer a verdade, dizer a verdade sem dissimulao nem reserva, sem clusula de estilo nem ornamentos retricos que a possam cifrar, velar ou mascarar. O dizer tudo, neste caso, dizer a verdade sem dela nada esconder, mas tambm dizer a verdade sem, com ela, esconder o que quer que seja. Falar com parresia , portanto, falar com inteira franqueza, sem recuar diante de nada, sem esconder nada, sem medo de nada. Esta noo grega de parresia uma noo muito densa e repleta de consequncias polticas e filosficas. No entender de Michel Foucault, ela designa uma virtude, uma qualidade (h pessoas que tm a parresia e outras que no tm a parresia); um dever tambm (porque em alguns casos e situaes preciso dar prova efectiva de parresia); e , finalmente, uma tcnica, um procedimento5. Vejamos agora como Michel Foucault sumariza estas duas acepes da parresia (a m e a boa) na primeira de uma srie de seis conferncias que ele pronunciou na Universidade de Berkeley em Outubro e Novembro de 1983: A m parresia consiste em dizer tudo o que se tem em mente, sem nenhuma distino, sem ter cuidado com o que se diz; nesta acepo, usar de parresia no est muito longe de tagarelar. Este uso pejorativo da palavra parresia raro nos textos clssicos; encontr-lo-o por vezes em Plato para caracterizar a m constituio democrtica, sempre que algum se pode dirigir aos cidados e dizer-lhes o que quer, mesmo as coisas mais estpidas ou mais perigosas para a cidade. Este significado pejorativo da parresia encontra-se tambm muito

    oral, nem o ritmo particular que assomam nas suas aulas transcritas, como se com leitura dessas aulas pudssemos de algum modo escutar a sua voz; como se a parresia ou fosse presencial ou no fosse. 4 CV, 10-11. 5 GSO, 43.

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  • FACES DA RETRICA 1. Coragem poltica sem lisonja retrica: do modo de dizer retrico ao modo de dizer parrhsistico

    frequentemente nos textos cristos, na literatura crist, onde esta m parresia oposta ao silncio, ao silncio como disciplina ou ao silncio como condio para a contemplao de Deus. A parresia, enquanto actividade verbal que reflecte todos os movimentos do esprito e do corao, claramente um obstculo contemplao. o lado mau, ou a forma m da parresia. Mas, a maioria das vezes, nos textos clssicos, a parresia no tem este significado pejorativo; pelo contrrio, ela tem um significado positivo. Parresiazein ou parresiazeisthai dizer a verdade. Mas isto no suficientemente claro: o parresiasta diz o que ele cr ser verdade ou diz o que realmente verdade? A resposta que o parresiasta diz o que verdade porque ele cr que verdade, e ele cr que verdade porque realmente verdade. No apenas o parresiasta sincero, no apenas ele diz com franqueza qual a sua opinio, mas a sua opinio igualmente a verdade; ele diz o que ele sabe ser verdade. Na parresia, h uma coincidncia, uma exacta coincidncia, entre crena e verdade. a segunda caracterstica importante da parresia6.

    Dissemos, atrs, que a parresia era simultaneamente uma virtude, um dever e uma tcnica. Mas esta virtude, este dever e esta tcnica oratria devem caracterizar, antes de mais, exactamente que tipo de homem? Bom, em primeiro lugar o homem que tem a seu cargo o governo de outros homens. Este tipo de homem tem o encargo de conduzir os outros homens, tem o encargo de dirigir os outros no seu esforo, na tentativa de que estes possam constituir uma relao adequada consigo mesmos. Por outras palavras, a parresia uma virtude, um dever e uma tcnica que devemos encontrar naquele que dirige a conscincia dos outros e que os ajuda a constituir uma relao adequada consigo mesmos. Da antiguidade clssica grega at aos primeiros sculos do cristianismo, esta noo de parresia inscreve-se naquilo a que Michel Foucault chama o cuidado de si. Ora, um ponto nuclear desta noo da tica antiga prende-se com o facto de ningum poder cuidar de si mesmo, ningum poder preocupar-se consigo mesmo, sem uma relao com o outro. Por outras palavras, ningum pode cuidar de si mesmo, preocupar-se consigo mesmo sem ter uma relao com o outro. E o papel desse outro precisamente dizer a verdade, dizer toda a verdade, ou em todo o caso dizer toda a verdade necessria, e diz-la de uma certa forma que precisamente a parresia, a fala franca e ousada. Cito Foucault: Com a noo de parresia temos uma noo que est na encruzilhada da obrigao de dizer a verdade, dos procedimentos e tcnicas de governamentalidade e da constituio da relao consigo mesmo. O dizer-a-verdade do outro, como elemento essencial do governo que ele exerce sobre ns, uma das condies essenciais para que possamos formar a relao connosco mesmos, que nos proporcionar a virtude e a felicidade7. Mas a parresia no apenas o dizer-a-verdade do outro. Ela tambm, como observa Foucault, uma prtica de cada um sobre si mesmo e, nesta medida, ela diz respeito ao modo tico de constituio do sujeito enquanto sujeito de veridico. Por conseguinte, com a anlise das prticas antigas do dizer-a-verdade sobre si mesmo, trata-se de estudar as relaes de poder e o seu papel no jogo entre o sujeito e a verdade. Em todo o caso, o dizer-a-verdade sobre si mesmo, e isso na cultura antiga (portanto, muito antes do cristianismo), foi uma actividade conjunta, uma actividade com os outros, e mais precisamente

    6 Cf. Michel Foucault, Discours et vrit, in Discours et Vrit, prcd de La Parresia, Vrin, Paris, 2016, pp. 81-82. 7 GSO, 44.

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    uma actividade com um outro, uma prtica a dois8. Deste ponto de vista, o estudo da parresia e do parresiasta na cultura de si da Antiguidade evidentemente uma espcie de pr-histria de todo aquele tipo de prticas que se organizaram e se desenvolveram posteriormente em torno de alguns pares clebres: o penitente e o seu confessor, o dirigido ou o discpulo e o director de conscincia, o doente e o psiquiatra, o paciente e o psicanalista, etc. Segundo Michel Foucault, o uso desta noo de parresia prolongou-se durante praticamente oito sculos, desde o sculo V antes de Cristo, desde, grosso modo, a poca de Pricles e de Plato, at ao sculo III e IV depois de Cristo. Talvez mesmo at mais tarde. Naturalmente, o sentido da noo de parresia no foi sempre nem unvoco, nem estvel. Antes pelo contrrio. Seja como for, Foucault considera que este termo se encontra j bem instaurado, j bem definido, nos grandes textos clssicos, seja nos de Plato, seja nos de Eurpides, seja depois, numa srie de outros textos igualmente importantes (Iscrates, Demstenes, Polbio, Filodemo, Plutarco, Marco Aurlio, Mximo de Tiro, Luciano, etc.). O termo parresia vai igualmente aparecer na espiritualidade crist, por exemplo em Joo Crisstomo e Doroteu de Gaza. Mas esta tematizao e problematizao da parresia encontra-se tambm nos textos latinos, em Sneca, por exemplo, mas tambm em tericos da retrica, como Quintiliano, ainda que no mundo e cultura greco-romana a traduo do termo grego parresia seja um tanto incerta e no completamente unvoca, j que ele traduzido ora por libertas, ora por licentia, ora ainda por oratio libera. Vou agora transcrever uma definio abrangente do significado do termo parresia fornecida por Michel Foucault na sua aula de 10 de Maro de 1982 no Collge de France, onde, pela primeira vez, o termo comea por ele a ser estudado e aprofundado de uma forma sistemtica: O termo parresia refere-se, por um lado, a uma qualidade moral, atitude moral, ao ethos, se quisermos, e, por outro, ao procedimento tcnico, tkhne, que so necessrios, indispensveis para transmitir o discurso verdadeiro a quem dele precisa para a constituio de si mesmo como sujeito de soberania de si mesmo e sujeito de veridico de si para si. Portanto, para que o discpulo possa efectivamente receber o discurso verdadeiro como convm, quando convm, nas condies em que convm, preciso que o discurso seja pronunciado pelo mestre na forma geral de parresia. A parresia etimologicamente o dizer-tudo. A parresia diz tudo. Ou melhor, no tanto o dizer-tudo que est em causa na parresia. Na parresia, o que est fundamentalmente em questo o que poderamos chamar, de uma maneira um pouco impressionista: a franqueza, a liberdade, a abertura, que fazem com que se diga o que se tem a dizer, da maneira como se tem vontade de dizer, quando se tem vontade de dizer e segundo a forma que se cr ser necessrio dizer. O termo parresia est to ligado escolha, deciso, atitude de quem fala, que os latinos traduziram parresia pela palavra libertas. O dizer-tudo da parresia tornou-se libertas: a liberdade de quem fala. E muitos tradutores franceses utilizam para traduzir parresia ou para traduzir libertas neste sentido a expresso franc-parler (fala franca), traduo que me parece a mais adequada9.

    8 CV, 6. 9 HS, 334. Sublinhados nossos.

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    Mas para Foucault a caracterizao e a definio da parresia necessita ainda de mais alguns elementos para estar razoavelmente completa. Assim, para que se possa falar de parresia no sentido positivo do termo, so necessrias, alm da regra do dizer tudo e da regra da verdade, duas condies suplementares. preciso no apenas que essa verdade constitua efectivamente a opinio pessoal daquele que fala, mas tambm que ele a diga como sendo aquilo que ele efectivamente pensa, e no simplesmente da boca para fora e nisso que esse homem ser um parresiasta. O parresiasta d a sua opinio, diz o que pensa, ele prprio assina por baixo, digamos assim, a verdade que enuncia, ligando-se e vinculando-se a essa verdade e, por conseguinte, obrigando-se a ela e por ela. S que mesmo isto ainda no suficiente. Afinal de contas, observa Michel Foucault, um professor, um gramtico, um gemetra podem dizer sobre o que ensinam, sobre a gramtica ou sobre a geometria, uma verdade, uma verdade na qual crem, uma verdade que eles pensam e dizem como verdade. E, no entanto, no se pode dizer que isso seja parresia. No se dir que o gramtico ou o gemetra, ao ensinarem essas verdades em que crem, sejam parresiastas. Porqu? Porque, para que haja efectivamente parresia, o sujeito, ao dizer essa verdade que ele assume como sendo a sua opinio, o seu pensamento, a sua crena, tem de assumir um certo risco, um risco que diz respeito prpria relao que ele tem com a pessoa a quem se dirige. Para que haja parresia preciso que, dizendo a verdade, se abra, se instaure e se enfrente o risco de ferir e de magoar o outro, de o irritar, de o deixar com raiva e de suscitar da sua parte comportamentos que podem ir at violncia, e mesmo at violncia extrema, isto , at morte. E aqui que bate o ponto. Isto , para que haja parresia, preciso que, no acto de verdade, haja: primeiro, a manifestao de um vnculo fundamental entre a verdade que dita e o pensamento de quem a disse; segundo, um questionamento do vnculo entre os dois interlocutores (entre o sujeito que diz a verdade e o sujeito a quem essa verdade dirigida). E daqui provm a caracterstica mais decisiva da parresia: ela implica uma certa forma de coragem, coragem cuja forma mnima consiste em que o parresiasta se arrisque a poder romper e desfazer essa relao com o outro que precisamente tornou possvel o seu discurso. Num certo sentido, o parresiasta corre sempre o risco de romper, ou mesmo de destruir, essa relao que, no entanto, a condio de possibilidade do seu discurso. De acordo com Michel Foucault, esta situao pode ser observada naquela forma crist de parresia chamada direco de conscincia, na qual s pode haver conduo e direco da conscincia do discpulo se entre este e o mestre houver amizade, e se a prtica do dizer-a-verdade, nessa conduo ou direco de conscincia, correr o risco de questionar e de romper a relao de amizade sem a qual, no entanto, esse discurso de verdade seria impossvel ou, pelo menos, improvvel. Ora, num certo tipo de casos, essa coragem pode assumir uma forma mxima ou extrema quando, para dizer a verdade, no apenas ser necessrio questionar a relao pessoal, amistosa, que se pode ter com aquele com quem se fala, mas pode at acontecer que seja necessrio arriscar a prpria vida. Foucault exemplifica este tipo de coragem com Plato. Ora, Plato, quando vai falar com Dionsio, o Velho e Plutarco quem conta esta histria nas Vidas Paralelas, mais precisamente na Vida de Dio diz-lhe um certo nmero de verdades na cara que enervam a um tal ponto o tirano que este concebe o plano, que alis acabar por no executar, de matar ou de mandar matar Plato. Mas Plato no fundo sabia ou suspeitava que o

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    tirano poderia reagir desse modo, e, mesmo assim, aceitou correr esse risco. Ora, aqui que est o nervo da parresia. Nesta coragem poltica de dizer a verdade ao condutor ou ao governador de homens. A parresia, portanto, pe em risco no apenas a relao estabelecida entre quem fala e aquele a quem dirigida a verdade, mas, no limite, pe em risco a prpria existncia daquele que fala, sempre que aquele a quem ele se dirige no seja capaz de suportar a verdade que ele lhe diz. Ora, este vnculo entre a parresia e a coragem poltica indicado explicitamente por Aristteles quando, no livro IV da tica a Nicmaco, o estagirita vincula o que ele chama megalopsykha (grandeza de alma) prtica da parresia: Para aquele que possui grandeza de alma uma necessidade exibir luz do dia tanto os seus dios como as suas amizades. Ele preocupa-se mais com a verdade do que com a opinio, e fala e age abertamente, porque esconder-se revela medo. Ele franco e fala sinceramente porque despreza as consequncias da sua franqueza, e sincero excepto quando usa a ironia relativamente aos outros10. No entender de Foucault, a parresia funciona como uma espcie de jogo. Porqu? Porque, se por um lado, o parresiasta de facto aquele que assume o risco de pr em causa a sua relao com o outro e at a sua prpria existncia dizendo a verdade, toda a verdade, e dizendo-a contra tudo e todos se necessrio, por outro lado, aquele a quem essa verdade dita quer se trate do povo reunido que delibera sobre as melhores decises a tomar, quer se trate do Prncipe, quer se trate do tirano ou do rei a quem preciso dar conselhos, quer se trate do amigo cuja conscincia ele guia se esse outro (o povo, o rei, o amigo) quiser desempenhar o papel que o parresiasta lhe prope dizendo-lhe a verdade, ele deve ser capaz de a aceitar, por mais desagradveis que sejam as consequncias dessa verdade para as opinies estabelecidas na Assembleia, para as paixes ou para os interesses do Prncipe, para a ignorncia ou para a cegueira do amigo. O povo, o Prncipe, o amigo devem aceitar esse jogo da parresia. Observa Foucault: Eles prprios devem jogar esse jogo e reconhecer que aquele que assume o risco de lhes dizer a verdade deve ser escutado. E assim que se estabelecer o verdadeiro jogo da parresia, a partir dessa espcie de pacto que faz com que, se o parresiasta mostra a sua coragem dizendo a verdade contra tudo e contra todos, aquele a quem essa parresia endereada dever mostrar essa grandeza de alma aceitando que lhe digam a verdade. Essa espcie de pacto, entre aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-la, est no cerne do que se poderia chamar jogo parresistico11. Em suma, a parresia a coragem da verdade naquele que fala e que assume o risco de dizer, a despeito de todos os inconvenientes e perigos, toda a verdade sobre o que pensa, mas tambm a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade desagradvel e mesmo insolente ou provocadora que ouve. O parresiasta ser aquele que diz a verdade e que, por conseguinte, se distanciar de tudo o que possa ser mentira, bajulao ou

    10 Cf. Aristteles, tica a Nicmaco, livro IV, 1124b, traduo do grego de Antnio C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2004, pp. 95-96. Traduo modificada. 11 CV, 13. Sublinhados nossos.

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    lisonja (voltarei a esta oposio decisiva entre a parresia e a lisonja, quando tratar da complexa relao entre o modo de dizer parresistico e o modo de dizer retrico). Temos, pois, que a parresia uma certa maneira de dizer a verdade. Mas o que define a parresia no propriamente esse contedo de verdade. Podemos ento perguntar: o que uma maneira de dizer a verdade? E como que podemos analisar as diferentes maneiras de dizer a verdade? Onde situar essa maneira particular e idiossincrtica de dizer a verdade que caracteriza a parresia? Eis a resposta de Michel Foucault: normalmente, diz ele, analisamos as maneiras de dizer a verdade ou pela estrutura do discurso, ou pela finalidade do discurso, ou ainda pelos efeitos que a finalidade do discurso tem sobre o prprio discurso e, neste caso, analisamos os discursos de acordo sobretudo com as suas estratgias. Pois bem, no entender de Michel Foucault, que durante toda a sua vida trabalhou sempre, de um modo ou de outro, o problema e a categoria do discurso, as diferentes maneiras de dizer a verdade podem aparecer seja como formas de uma estratgia de demonstrao, seja como formas de uma estratgia de persuaso, seja como formas de uma estratgia de ensino, seja, finalmente, como formas de uma estratgia de discusso. Vejamos agora de que modo, segundo Michel Foucault, cada uma destas quatro formas ou modalidades de nos referirmos verdade se distingue do modo parresistico de dizer-a-verdade. Em primeiro lugar, Foucault considera que a parresia no pertence a uma estratgia de demonstrao, no sendo ela, na sua essncia, uma maneira de demonstrar. Pode at haver parresia em certas demonstraes, mas no sero nunca nem a demonstrao nem a prpria estrutura racional do discurso que podero definir a parresia. Em segundo lugar, Foucault pergunta-se se a parresia no ser uma estratgia de persuaso, pertencendo ela deste modo arte da retrica. Aqui, claro, as coisas tornam-se um pouco mais complicadas, na medida em que a parresia, entendida como tcnica, como procedimento, como uma certa maneira de dizer as coisas, pode utilizar, e muitas vezes utiliza efectivamente, os recursos da retrica. Tanto mais que em alguns tratados de retrica, nomeadamente nas Instituies Oratrias de Quintiliano, a parresia, entendida como uma fala franca, como veracidade, aparece como uma figura de estilo, sem bem que como uma figura de estilo um tanto ou quanto curiosa e mesmo paradoxal, na medida em que Quintiliano qualifica a parresia como a mais despojada de todas as figuras de pensamento. O que h de mais despojado, pergunta Quintiliano, do que a verdadeira libertas [traduo latina de ]? Por conseguinte, a parresia, do ponto de vista de um terico da retrica como Quintiliano, uma figura de pensamento, mas uma figura de pensamento que funcionaria como uma espcie de grau zero da retrica, em que a figura de pensamento consiste justamente em no utilizar nenhuma figura de estilo12. Se no posso mostrar o meu pensamento sem falar, como devo empregar as palavras para que elas possam adquirir uma virtude parresistica? Naturalmente, entre o modo de dizer parresistico e o modo de dizer retrico h proximidades, interferncias, aproximaes, contradies. todo o problema do permanente, e porventura insolvel, conflito entre a filosofia e a retrica, ou antes, entre a parresia filosfica e a tkhne retrica,

    12 GSO, 53. Sublinhados nossos.

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    que dura oito sculos. Voltarei a esta questo nuclear no final da exposio, de modo a poder trat-la com a demora que convm. Prossigo agora com as diferentes modalidades do discurso verdadeiro, ou antes, com a caracterizao das diferentes maneiras de dizer a verdade. Em terceiro lugar, a parresia tambm no uma maneira de ensinar, no uma pedagogia. Porque, se verdade que a parresia se dirige sempre a algum a quem se quer dizer a verdade, no se trata necessariamente com isso de ensinar essa pessoa. Ao contrrio da pedagogia, cujo mtodo vai do conhecido ao desconhecido, do simples ao complexo, do elemento ao conjunto ou da parte ao todo, a parresia conhece um lado eminentemente abrupto, que pode mesmo confundir-se com a insolncia, um lado incompatvel decerto com a pedagogia, pois o parresiasta, aquele que diz a verdade dessa forma, diz a verdade de modo aberto e at temerrio directamente na cara daquele com quem dialoga ou a quem se dirige, no deixando nada para interpretar. Sob esta perspectiva, um ponto importante na caracterizao da parresia recordar que ela no se confunde com a clebre ironia socrtica ou socrtico-platnica, na qual o interrogador Scrates, ou em todo o caso o mestre filosfico da palavra, simula ou finge no saber o que sabe e conduz o discpulo ou o interlocutor, atravs da maiutica essa arte das parteiras a formular o que este no sabia que sabia. Ora, na parresia, pelo contrrio, e isto de certa maneira como se fosse uma verdadeira anti-ironia, quem diz a verdade diz essa verdade e atira ou lana essa verdade, por assim dizer, cara do interlocutor, uma verdade to violenta, to abrupta, to cortante e to definitiva, que o outro em frente muitas vezes nada mais pode fazer seno calar-se ou tremer de furor, de ira ou de raiva. Ou ento, no limite, passar a um registo completamente diferente, como o caso do tirano Dionsio diante do filsofo Plato na narrativa de Plutarco Vida de Dio, em que Dionsio, poupando a vida a Plato, o manda vender como escravo em Egina. Portanto, em vez de ser aquele a quem o mestre se dirige que descobre por si mesmo, pela ironia, a verdade que ele no sabia que conhecia, neste caso extremo ele est face-a-face com uma verdade que no pode aceitar e que o leva ao excesso, injustia, loucura, cegueira. Por conseguinte, neste caso no apenas o efeito do modo de dizer parresistico fundamentalmente anti-irnico, como antipedaggico. Finalmente, a quarta questo. Se a parresia no pertence demonstrao, se no pertence retrica, se no pertence pedagogia, ser que ela constitui uma determinada forma de discusso? Ser a parresia uma forma particular de erstica, isto , uma forma idiossincrtica da arte da controvrsia e do debate? No ser a parresia, afinal, uma certa forma de defrontar e confrontar um adversrio? No haver na parresia, bem vistas as coisas, uma estrutura agonstica de resto tipicamente grega entre duas personagens que se defrontam e que entram numa luta feroz, numa encarniada competio pela formulao da verdade de que cada um se julga o autntico portador? Foucault responde a estas hipteses com um rotundo no. Reconhece, sem problemas, que nos aproximamos do valor da parresia quando fazemos valer a sua estrutura agonstica, mas no acredita que a parresia faa parte de uma arte da discusso, pelo menos na medida em que a arte da discusso permite fazer triunfar o que acreditamos ser verdadeiro. Invocando novamente o discurso parresistico que Plato dirige ao tirano Dionsio, Foucault diz-nos que no se trata a, no relato legado por Plutarco, de uma discusso em que um dos discursos procuraria prevalecer sobre o outro. O que acontece que um dos interlocutores diz a verdade e se preocupa, no fundo, em dizer a verdade o mais

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    depressa, o mais alto e o mais claramente possvel. Depois, em face disso, temos o outro que no responde, ou que responde com outra coisa que no so discursos, mas actos. Com efeito, nesse episdio entre Plato e Dionsio, temos, por um lado, Plato, que ensina ou que procura ensinar; do outro lado, temos Dionsio que no se d nem por persuadido, nem por ensinado, nem por vencido. Tanto assim que no ponto de concluso do ensino, Dionsio substitui a formulao da verdade pela linguagem por uma vitria que no de modo algum a vitria do logos, que no a vitria do discurso, uma vez que a vitria da mais pura violncia, j que o tirano Dionsio d ordens para que o filsofo Plato seja vendido como escravo. Em suma, podemos dizer que para Foucault a parresia uma certa maneira de dizer a verdade, mas que essa maneira singular de dizer a verdade no pertence nem erstica e a uma arte de discutir, nem pedagogia e a uma arte de ensinar, nem retrica e a uma arte de persuadir, nem to-pouco a uma arte da demonstrao. Para Foucault h parresia apenas quando o dizer-a-verdade se diz em condies tais que o facto de se dizer a verdade, e o facto de se a ter dito, pode e normalmente deve acarretar consequncias custosas para aqueles que a ousam dizer. Por outras palavras, se queremos analisar discursivamente a parresia no o devemos fazer nem do lado da estrutura interna do discurso, nem do lado da finalidade com que o discurso verdadeiro procura atingir o interlocutor, mas do lado do locutor, ou antes, do lado do risco que o dizer-a-verdade abre para o prprio locutor. Por conseguinte, a parresia deve ser procurada do lado do efeito que o seu prprio dizer-a-verdade pode produzir no locutor, do efeito de retorno ou do efeito boomerang que o dizer-a-verdade pode produzir no prprio locutor a partir precisamente do efeito que produz no interlocutor. Com o jogo da parresia abre-se, portanto, um risco e um perigo em que a prpria vida do locutor que vai estar em jogo. E neste sentido que a parresia est intimamente ligada ao perigo e, por conseguinte, forosamente ligada coragem necessria para enfrentar o perigo. A parresia liga o locutor ao facto de que o que ele diz a verdade, e liga-o, portanto, s consequncias que decorrem do facto de que ele disse a verdade. Ao dizer essa verdade, o parresiasta arrisca-se a pagar um preo demasiado alto por a ter dito, e expe-se, portanto, morte. A parresia, insiste Foucault, a coragem de dizer a verdade, apesar do perigo. Na parresia, dizer a verdade inscreve-se no jogo da vida e da morte. a sua terceira caracterstica13. Gostaria que este ponto da exposio ficasse bem claro, uma vez que Michel Foucault no se cansa de o sublinhar, retomando-o uma e outra vez ao longo das suas aulas. Por isso vou insistir um pouco mais nesta questo. No enunciado parresistico o sujeito compromete totalmente o que pensa no que diz e no modo como o diz, e f-lo sem qualquer tipo de reserva mental ou de pr-condio enunciativa. Ele atesta, portanto, a verdade do que pensa na enunciao do que diz. Isto significa que no interior do enunciado parresistico h como que um pacto: o pacto do sujeito que fala consigo mesmo ao falar com os outros. De acordo com Foucault, esse pacto tem dois nveis: o nvel do acto de enunciao propriamente dito e o nvel, implcito ou explcito, pelo qual o sujeito se liga ao enunciado que acaba de dizer. E

    13 Cf. Michel Foucault, Discours et vrit, in Discours et Vrit, prcd de La Parresia, Vrin, Paris, 2016, p. 83.

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    nisso que o pacto duplo. Por um lado o sujeito diz na parresia: aqui est a verdade, eis a verdade, esta que a verdade; toma l a verdade; ouve a verdade; escuta a verdade. Ele diz essa verdade e pensa efectivamente essa verdade, e com isso ele liga-se ao enunciado e ao contedo do enunciado. Mas ele pactua tambm na medida em que diz: eu sou aquele que disse essa verdade. Portanto, ele liga-se enunciao que acaba de fazer e assume o risco por todas as suas consequncias. De acordo com Foucault, isto significa que no jogo parresistico temos primeiro o enunciado da verdade, e, depois, acima desse enunciado, um elemento implcito a que o filsofo chama o pacto parresistico do sujeito consigo mesmo, pelo qual ele se liga ao contedo do enunciado e ao prprio acto do enunciado. Dizer eu sou aquele que disse isso significa assumir que se diz o que efectivamente se pensa e que entre a linguagem usada e a conduta adoptada no existe qualquer desconformidade: A palavra da parresia uma palavra que, do lado de quem a pronuncia, vale como compromisso, vale como elo, que constitui um certo pacto entre o sujeito de enunciao e o sujeito da conduta. O sujeito que fala compromete-se. No prprio momento em que diz eu digo a verdade, compromete-se a fazer o que diz e a ser sujeito de uma conduta, uma conduta que obedece ponto por ponto verdade por ele formulada. neste sentido que no pode haver ensinamento da verdade sem exemplum. No pode haver ensinamento da verdade sem que aquele que diz a verdade d o exemplo dessa verdade14. De acordo com Foucault, em todos os procedimentos e tecnologias de governo a obrigao e a possibilidade de dizer a verdade mostram, no fundo, de que modo o indivduo se constitui como sujeito na relao que mantm consigo mesmo e na relao que mantm com os outros. Ora bem, com esta modalidade filosfica de auto-subjectivao da verdade no acto mesmo de dizer-a-verdade fica j claro que a parresia introduz uma questo filosfica fundamental que , nada mais, nada menos, do que o vnculo estabelecido entre a liberdade e a verdade15. Todavia, no se trata aqui da questo recorrente de saber at que ponto a verdade limita ou constrange o exerccio da liberdade, mas de certo modo da questo inversa: como e em que medida a obrigao de verdade o obrigar-se verdade, o obrigar-se pela verdade e pelo dizer-a-verdade , em que medida essa obrigao ao mesmo tempo o exerccio da liberdade, e o exerccio perigoso da liberdade16. Escutemos novamente Foucault: Em primeiro lugar, a parresia uma certa maneira de falar. Em segundo lugar, uma maneira de dizer-a-verdade. Em terceiro lugar, uma maneira tal de dizer-a-verdade que abrimos para ns mesmos um risco pelo prprio facto de dizermos a verdade. Em quarto lugar, a parresia uma maneira de abrir esse risco vinculado ao dizer-a-verdade constituindo-nos de certo modo como parceiro de ns mesmos quando falamos, vinculando-nos ao enunciado da verdade e vinculando-nos enunciao da verdade. Finalmente, a parresia uma maneira de se vincular a si mesmo no enunciado da verdade, de se vincular livremente a si mesmo e na forma de um acto corajoso: a parresia a livre coragem pela qual algum se vincula a si mesmo no acto de

    14 HS, 365. 15 GSO, 64, sublinhados nossos. 16 GSO, 64, sublinhados nossos.

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    dizer a verdade. Ou ainda, a parresia a tica do dizer-a-verdade no seu acto arriscado e livre17. Regresso finalmente ao ponto que propositadamente deixei em aberto, a saber, questo da clivagem histrica e epistemolgica entre a filosofia e a retrica, ou, se preferirem, questo da complexa relao entre o modo de dizer parresistico e o modo de dizer retrico. Michel Foucault insiste muito neste ponto: a parresia no se pode pura e simplesmente definir como um elemento pertencente retrica. Porqu? Porque, por um lado, a parresia se define fundamentalmente, essencialmente, primeiramente, como o dizer-a-verdade, enquanto a retrica uma arte ou uma tcnica de dispor os elementos do discurso a fim de persuadir. Mas, que esse discurso diga a verdade ou no, no de modo nenhum essencial retrica. Por outro lado, no h uma forma especfica de enunciao da parresia. As pessoas dotadas de parresia, as pessoas que utilizam a parresia, observa Foucault, fazem-no sob formas muito diferentes ora em lies, ora em aforismos, ora em rplicas, ora em opinies, ora em juzos. E, sobretudo Foucault insiste neste ponto , na parresia no se trata tanto de persuadir, ou no se trata necessariamente de persuadir. Por conseguinte, sustenta Foucault, a parresia no deve ser classificada ou compreendida do ponto de vista da retrica. O argumento de Foucault para excluir ou para separar a parresia da retrica resumidamente o seguinte. A retrica definida como uma tcnica cujos procedimentos no tm evidentemente como finalidade estabelecer uma verdade. Ela antes uma arte conjectural de persuadir aqueles a quem nos dirigimos, pretendendo convenc-los tanto de uma verdade, como de uma no verdade ou mentira. Com efeito, a definio de Aristteles na Retrica bem clara: trata-se da capacidade de encontrar aquilo que capaz de persuadir18. Digamos, de maneira esquemtica, que a questo do contedo e que a questo da verdade do discurso no se colocam na retrica. De acordo com Quintiliano, que se esforou por aproximar ao mximo os problemas gerais da retrica, ou pelo menos os problemas especficos da arte oratria, dos grandes temas da filosofia da sua poca, a verdade de que se trata na retrica a verdade tal como ela conhecida por aquele que fala, e no a verdade que est contida no discurso daquele que fala19. Eis um seu exemplo: um bom general deve ser capaz de persuadir as suas tropas de que o adversrio que elas vo enfrentar no to srio nem to temvel quanto de facto ele . Por conseguinte, o bom general deve poder persuadir as suas tropas de uma mentira (segundo a frmula tradicional: suppressio veri = suggestio falsi). Como que ele vai ser capaz de o fazer? Pois bem, ele conseguir faz-lo se, por um lado, conhecer os dados reais da situao e, por outro, se conhecer verdadeiramente os meios pelos quais se pode persuadir algum tanto de uma mentira quanto de uma verdade. Quintiliano sigo a leitura que Foucault faz de uma passagem das Instituies Oratrias sabe que nenhuma tkhne poder ser eficaz se ela no estiver indexada verdade e mostra por isso como a retrica enquanto

    17 GSO, 63-64, sublinhados nossos. 18 Entendamos por retrica a capacidade (dnamis) de descobrir o que adequado a cada caso com o fim de persuadir. Cf. Aristteles, Retrica, livro I, 1335b, traduo e notas de Manuel Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena, com introduo de Manuel Alexandre Jnior, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1998, p. 48. 19 HS, 342.

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    tkhne est sempre indexada a uma determinada verdade a verdade conhecida, possuda, dominada por aquele que fala , mas no verdade considerada do lado daquilo que dito e, consequentemente, do lado daquele a quem ela dirigida ou endereada. Portanto, trata-se de uma arte que capaz de mentira. E Foucault conclui: isso o fundamental sobre a retrica, retrica precisamente oposta ao discurso filosfico e tcnica prpria ao discurso filosfico, a saber, a parresia. Na parresia s pode haver verdade. Onde no houver verdade no h fala franca. A parresia a transmisso nua, por assim dizer, da prpria verdade20. Mas o argumento de Foucault a este respeito no termina aqui. Na verdade, ele refina-se medida que o nosso autor prossegue os seus estudos em torno da parresia enquanto modalidade especificamente filosfica do dizer-a-verdade. Muito esquematicamente, pode dizer-se que quanto mais Foucault aproxima a parresia especificamente filosfica de uma operao sobre as almas, de uma psicagogia, tanto mais a parresia se distingue e se separa, se deve distinguir e se deve separar, da retrica. Quando a parresia e a sua particular forma de veridico se desvia da cena poltica da cidade e se transfere para o domnio das relaes individuais, quando a finalidade do dizer-a-verdade menos a salvao da cidade do que a formao do ethos do individuo, nesse momento, em que o objectivo da prtica parresistica completamente orientado para a psykh do indivduo, a veridico especificamente filosfica da parresia d-se finalmente a ver como pura psicagogia21. Foucault admite que a retrica como arte da palavra, como uma arte da palavra que capaz de ser ensinada e utilizada para persuadir os outros, e como uma arte da palavra que apenas ser plenamente efectivada, realizada, acabada, se o orador for ao mesmo tempo um vir bonus (um homem bom ou um homem de bem), pode por vezes aparecer como sendo a tkhne prpria dessa parresia, desse dizer-a-verdade. Contudo, no entendimento de Foucault s a filosofia de facto a nica prtica da linguagem capaz de responder s exigncias prprias da parresia. Em primeiro lugar, porque, ao contrrio da retrica, que por definio se dirige a muitos, se dirige ao grande nmero, se dirige s assembleias, a parresia especificamente filosfica pode dirigir-se tambm aos indivduos e isso que normalmente ela faz. Em segundo lugar, e mais decisivo, porque a retrica tem como objectivo persuadir o auditrio tanto do verdadeiro como do falso, tanto do justo como do injusto, tanto do mal como do bem, ao passo que a filosofia tem como funo precisamente separar o que verdadeiro do que falso, dizendo apenas o que verdadeiro e recusando dizer o falso22. Assim, em vez de ser uma fora de persuaso que potencialmente poder convencer as almas de todo e qualquer assunto, a filosofia apresenta-se como uma operao que permite que as almas distingam convenientemente o verdadeiro do falso. Porque, se na parresia de facto necessrio distinguir o que dizer-a-verdade do que lisonja, se a parresia, como platonicamente pensa Foucault, deve escorraar permanentemente aquele seu duplo sombrio que se apresenta como lisonja, quem, ento, a no ser a prpria filosofia, pode ser capaz de levar a cabo essa distino? A arte retrica a arte de fazer exposies, de fornecer testemunhos, indcios, probabilidades, com todo um sistema ou aparato de provas e de refutaes. Todavia, todos estes elementos ou partes em que se divide esta tkhne retorik no passam, no fundo, de rudimentos do que

    20 HS, 343. 21 CV, 58. 22 GSO, 276.

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    efectivamente a arte e o prprio acto de persuadir. Pois, o que que no discurso vai de facto persuadir? No o acto de se pr no incio do discurso uma exposio, depois os testemunhos, depois dar nfase a indcios, probabilidades, depois refutar, etc. O que faz com que se possa persuadir saber onde, quando, como e em que condies e circunstncias se devem aplicar esses elementos. No por acaso, a referncia ou a comparao socrtica da retrica medicina (uma constante nos dilogos de Plato consagrados retrica) aparece sempre que se concebe a parresia como algo de substantivamente diferente da mera aplicao de uma receita mdica. Com efeito, o que faz com que a medicina cure no que o mdico conhea a lista dos remdios a aplicar, que ele saiba, to exactamente quanto possvel, em que doente concreto ele deve aplicar este ou aquele remdio, em que momento da evoluo da doena e em que quantidade: dosis sola facit venenum. Assim, tal como o mdico deve conhecer o corpo se pretende restabelecer a sade de um paciente, tambm a tkhne retorik s ser aplicvel e s ter efeito se o orador conhecer a alma daquele a quem se dirige. portanto preciso conhecer a quem se aplicam ou a quem se podem aplicar essas tcnicas ou esses procedimentos retricos, caso contrrio, a tkhne retorik nada mais ser do que um mero corpus abstracto de receitas23. Em termos platnicos, para se dotar tecnicamente algum com a arte de falar, preciso mostrar na sua essncia (ousa) a natureza (a phsis) daquilo a que se aplica o discurso, isto , a alma. Como se diz no dilogo Fedro de Plato: J que justamente a funo prpria do discurso [a fora do discurso: lgou dnamis] est em ser uma psicagogia, aquele que um dia quiser ser um orador talentoso deve necessariamente saber de quantas formas a alma capaz24. Esta insistncia (melhor seria talvez chamar-lhe teimosia) de Foucault em distinguir o modo de falar parresistico do modo de falar retrico merece que nos detenhamos num problema essencial, a saber, o problema da lisonja, lisonja essa que, no domnio da retrica, funciona, segundo Foucault, como uma espcie de duplo falso, como um mau duplo, em todo o caso como um duplo perigoso, da parresia. Neste particular, o filsofo francs vai mesmo longe e afirma que as categorias da parresia e da lisonja so as duas grandes categorias do pensamento poltico ao longo de toda a Antiguidade25. Foucault chega a formular o problema do seguinte modo: tal como a lisonja o adversrio moral da parresia, assim a retrica o adversrio tcnico da parresia. Cito: Esquematicamente, pode dizer-se que a parresia (a fala franca) do mestre tem dois adversrios. O primeiro um adversrio moral, ao qual se ope directamente e contra o qual deve lutar. O adversrio moral da fala franca pois a lisonja, Em segundo lugar, a fala franca tem um adversrio tcnico. O adversrio tcnico a retrica, retrica em relao qual a fala franca tem de facto uma posio muito mais complexa do que em relao lisonja. A lisonja o inimigo. A fala franca deve dispensar a lisonja e livrar-se dela. Em relao retrica, a fala franca deve libertar-se dela, no tanto nem unicamente para a expulsar ou para a excluir, mas antes, uma vez livre em relao s regras da retrica, para dela se poder servir nos limites muito estritos e sempre tacticamente definidos em que ela verdadeiramente necessria.

    23 GSO, 303. 24 Cf. Plato, Fedro, 271c., Guimares Editores, Lisboa, 1986, p. 114. Traduo modificada. 25 GSO, 274.

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    Oposio, combate, luta contra a lisonja. Liberdade, libertao em relao retrica. Observemos que a lisonja o adversrio moral da fala franca. Quanto retrica, se quisermos, seria o seu adversrio ou parceiro ambguo, mas parceiro tcnico. Estes dois adversrios (a lisonja e a retrica) esto, alis, profundamente ligados um ao outro, pois o fundo moral da retrica sempre a lisonja. E o instrumento privilegiado da lisonja , bem entendido, a tcnica, e eventualmente as astcias da retrica. [] O discurso da parresia, na sua prpria estrutura, no seu jogo, , por certo, completamente diferente da retrica. Isso no significa que, por vezes, e a fim de se obter o resultado que se prope, no se deva, na prpria tctica da parresia, recorrer a elementos, a procedimentos, que so da retrica. Digamos que a parresia est fundamentalmente liberta das regras da retrica, que ela a retoma diagonalmente e que s a utiliza quando necessrio26. Retomemos, em jeito de rememorao e antecipando a concluso, o mago da nossa questo: em primeiro lugar, a parresia nos antigos gregos corresponde obrigao e ao risco de dizer a verdade no campo poltico. Ela uma maneira de cada cidado poder dar livremente a sua opinio sobre o governo dos homens e sobre questes relativas organizao e ao governo da cidade, opo entre paz e guerra, e por a a fora. Nos gregos antigos, portanto, a parresia exercia-se em relao a toda a cidade e num domnio que era directamente um domnio poltico, uma vez que, segundo Foucault, este dizer-a-verdade aparece na cultura antiga como uma funo necessria e universal no campo da poltica. Por conseguinte, qualquer que seja a forma da politeia (constituio/regime) em que ela aparea democracia, aristocracia, monarquia e como quer que ela se exera, a poltica necessita sempre dessa parresia. Em segundo lugar, o facto de, em princpio, a parresia dar a todos os cidados livres a possibilidade de falar, abre com isso a possibilidade de qualquer um tanto o melhor como o pior cidado poder tomar a palavra. Mas, se na parresia o dizer-a-verdade constituir um risco, se houver efectivamente perigo em falar, perigo em dizer a verdade, seja perante o povo, seja perante o soberano, se o povo e o soberano no souberem conduzir-se de modo a no assustar os que querem dizer a verdade; se estes ameaarem em demasia os que pretendem dizer a verdade; se se irritarem para alm do razovel e para alm de qualquer justa medida com aqueles que dizem a verdade; se no forem, em suma, capazes de se conduzirem de forma aceitvel perante os parresiastas, ento, todos, sem excepo, se calaro, porque todos tero medo de falar. Nesse caso, vigorar a lei do silncio silncio diante do povo ou silncio diante do soberano. Ou melhor, como observa Foucault, esse insuportvel silncio ser ento povoado por um discurso, mas por um discurso falseado, que ser como que uma imitao ou uma m mmesis da parresia27. Por outras palavras, faz-se de conta ou simula-se que se diz ao povo ou ao soberano algo que ser apresentado como verdadeiro, mas quem fala est perfeitamente consciente que o que diz no verdade. Neste caso, sabe-se que o que se diz exactamente conforme ao que pensa o povo ou conforme ao que pensa o soberano, ou conforme ao que o povo ou o soberano querem ou preferem ouvir. Trata-se de repetir aquela que a opinio j constituda, j formada, do povo ou do soberano, apresentando isso que se lhes diz como sendo a verdade. Ora, a isso chamavam os antigos

    26 HS, 334-335 e 346. 27 GSO, 274.

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    gregos lisonja/adulao (hoje, como ontem, tendemos a chamar-lhe demagogia, e mais recentemente, mas no sem alguns equvocos, populismo)28. Qual ento o problema com a lisonja? Qual , afinal, o problema moral da lisonja? Por que razo to importante deslindar o seu sentido e analisar os seus matizes no prprio jogo parresistico e no tipo de pacto que este institui entre aquele que diz a verdade e aquele que recebe, ou aceita receber, esse dizer-a-verdade? Melhor ainda: em que que a lisonja nos permite diferenciar o modo de dizer parresistico do modo de dizer retrico? Pois bem, na ptica de Michel Foucault, como vimos j, a parresia e a lisonja so as duas grandes categorias, simultaneamente polticas e ticas, da Antiguidade. Nas suas prprias palavras, a lisonja uma imitao turva ou uma espcie de sombra m da parresia. Foucault compraz-se em sublinhar que quer na teoria da lisonja em Scrates e Plato, quer na teoria do lisonjeador ou do falso amigo em Plutarco, o problema fundamental o de saber distinguir um parresiasta de um lisonjeador. Foucault acredita que durante praticamente oito sculos o problema da lisonja oposta parresia foi um problema poltico, um problema terico e um problema prtico, algo enfim que foi sem dvida to importante nesses oito sculos quanto o problema ao mesmo tempo terico e tcnico da liberdade de imprensa ou da liberdade de opinio em sociedades como as nossas29. Mas qual , em suma, o problema poltico e tico da lisonja? De modo esquemtico, dir-se- que a lisonja modo como pelo uso insidioso da palavra o inferior pode ganhar os favores e a benevolncia do superior. De que modo que o inferior pode desviar e utilizar em seu proveito o poder do superior? Apenas de uma maneira, considera Foucault: Atravs do nico elemento, do nico instrumento, da nica tcnica que tem ao seu dispor: o discurso, o logos. Ele fala, e falando que o inferior pode, alcanando de certo modo o poder maior do superior, conseguir obter dele o que quer. O lisonjeador serve-se portanto do discurso, da linguagem, para obter do superior o que pretende. O problema que ao servir-se deste modo da superioridade do superior ele acaba por a reforar. Refora-a na medida em que o lisonjeador aquele que obtm do superior o que quer fazendo-lhe crer que ele o mais belo, o mais rico, o mais poderoso, etc. Em rodo o caso, mais rico, mais belo, mais poderoso do que realmente ele . Consequentemente, o lisonjeador pode conseguir desviar o poder do superior dirigindo-se a ele com um discurso mentiroso, no qual e por causa do qual, ele se ver com mais qualidades, com mais foras e com mais poderes do que aqueles que ele efectivamente tem. Por conseguinte, o lisonjeador aquele que impede que algum se conhea a si mesmo como de facto . O lisonjeador aquele que impede o superior de se ocupar consigo mesmo como convm. Temos aqui uma dialctica, se quisermos, do lisonjeador e do lisonjeado, pela qual o lisonjeador, encontrando-se por definio numa posio inferior, estar em relao ao superior numa situao tal que, relativamente a ele, o

    28 A anlise aristotlica da lisonja/adulao [kolakeia] encontra-se numa srie de excertos dos tratados da Poltica (a propsito do exame da demagogia e das tiranias) e da Retrica (a propsito do exame dos efeitos nefastos dos elogios exagerados), mas aparece tambm numa breve incurso da tica a Eudemo (a propsito do exame da amizade). Os passos textuais em causa so: Poltica, livro II, 1263b 22, livro V, 1313b 43; Retrica, livro II, cap. 6, seco 8; tica a Eudemo, livro III, 1233b 30. 29 GSO, 274.

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    superior estar numa situao de impotncia, uma vez que na lisonja do lisonjeador que o superior encontrar uma imagem falsa e abusiva de si mesmo que o enganar, colocando-o assim numa situao de fraqueza no apenas em relao ao lisonjeador, mas em relao a todos os outros e, sobretudo, em relao a si mesmo. A lisonja torna impotente e cego aquele a quem ela se dirige. esse, se quisermos, o esquema geral da lisonja30. Eis, em suma, a razo por que, para Michel Foucault, a parresia (a libertas, a fala franca) exactamente, e diametralmente por oposio retrica, uma anti-lisonja ou uma contra-lisonja. Eis tambm a razo por que a parresia intestinamente filosfica, segundo o nosso autor, se deve desviar, tanto quanto disso ela seja capaz, da tcnica retrica. Concluo com uma transcrio de uma passagem do dilogo Grgias de Plato, o qual poderia ser colocado como exergo da longa e persistente investigao foucauldeana em torno do significado da parresia: Pois bem, Grgias, a retrica, pelo que me parece, uma prtica estranha arte, mas que exige uma alma dotada de imaginao, de ousadia e naturalmente apta s relaes entre os homens. O nome genrico dessa espcie de prtica , para mim, a lisonja (kolakean)31. BIBLIOGRAFIA ARISTTELES, Retrica, traduo e notas de Manuel Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena, com introduo de Manuel Alexandre Jnior, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1998.

    ARISTTELES, Poltica, traduo de Antnio Amaral e Carlos Carvalho Gomes, Editora Vega, Lisboa, 1998.

    ARISTTELES, tica a Nicmaco, traduo do grego de Antnio C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2004.

    ARISTTELES, tica a Eudemo, traduo de Antnio Amaral e Artur Moro, Editora Tribuna da Histria, Lisboa, 2015.

    DUMZIL, Georges, Servius et la fortune. Essai sur la fonction sociale de louange et de blme et sur les lments indo-europens du cens romain, Paris, 1943.

    FOUCAULT, Michel, A Hermenutica do Sujeito. Curso no Collge de France (1981-1982), traduo de Mrcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail, Editora Martins Fontes, So Paulo, 2011.

    30 HS, 337. 31 Cf. Plato, Grgias, 463a, introduo, traduo do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqurio, Edies 70, Lisboa, 1991, p. 58. Traduo modificada.

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    FOUCAULT, Michel, O Governo de Si e dos Outros. Curso no Collge de France (1982-1983), traduo de Eduardo Brando, Editora Martins Fontes, So Paulo, 2011.

    FOUCAULT, Michel, A Coragem da Verdade. Curso no Collge de France (1983-1984), traduo de Eduardo Brando, Editora Martins Fontes, So Paulo, 2014.

    FOUCAULT, Michel, Discours et Vrit, prcd de La Parresia, Vrin, Paris, 2016.

    PLATO, Grgias, introduo, traduo do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqurio, Edies 70, Lisboa, 1991.

    PLATO, Fedro, traduo e notas de Pinharanda Gomes, Guimares Editores, Lisboa, 1986.

    Vdeo da apresentao

    https://educast.fccn.pt/vod/clips/1cun6ww08k/flash.html

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    https://educast.fccn.pt/vod/clips/1cun6ww08k/flash.htmlhttps://educast.fccn.pt/vod/clips/1cun6ww08k/flash.htmlhttps://educast.fccn.pt/vod/clips/1cun6ww08k/flash.html

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    2. Retrica jurdica e a retrica forense

    RETRICA JURDICA E A RETRICA FORENSE

    Hermenegildo Ferreira Borges

    1. O reencontro do direito com a retrica; 2. Interpretao e argumentao no discurso jurdico; 3. Da universalidade do auditrio judicirio; 4. Especificidades da retrica forense; 5. Retrica jurdica e retrica forense o que as distingue e o que as une; 6. Bibliografia.

    O Direito um saber (episteme) de palavras. Palavras no vento dos discursos forenses, palavras no recato dos livros. Sempre feito de argumentos e de conceitos. 1

    1. O reencontro do direito com a retrica Desde meados do sculo passado, mais precisamente a partir de 1948, ano em que comearam a ser julgados, pelo tribunal de Nuremberga, os crimes de genocdio cometidos pelo regime nazi a coberto da legalidade positiva, o direito sentiu necessidade de se afastar do positivismo jurdico puro e duro da Escola da Exegese, filiado nos princpios do racionalismo dogmtico.2 A partir de ento, os princpios e raciocnios lgicos que presidiam estrita subsuno do caso norma, foram sendo, progressivamente, considerados inadequados boa aplicao do direito. Um notvel esforo, reflexivo e crtico, foi desenvolvido pela doutrina jurdica, no ps-guerra, no sentido de recuperar o saber prudencial contido na tpica jurdica e com ela os princpios gerais do direito, que haviam sido abandonados pelo positivismo jurdico, em coerncia com a mxima medieval, tornada clebre por Hobbes, Non sapientia, sed autoritas facit legem que, na opinio de Bobbio, est na base do credo positivista. 3 A recuperao da tpica jurdica trouxe consigo os postergados valores, hierarquias de valores e a base em que ambos assentam, os topoi: premissas muito gerais que servem para fundar valores e hierarquias de valores.4 A possibilidade nova de fazer ponderaes de natureza valorativa veio abrir caminho ao ressurgimento da retrica jurdica, no quadro da aplicao do direito, por ser o nico dispositivo logotcnico capaz de operar racionalmente sobre valores e, desse modo, justificar as ponderaes de natureza valorativa no quadro da concreta realizao da justia. O afastamento do ordenamento jurdico portugus do paradigma positivista teve, segundo Jos Vigrio da Silva, uma evoluo lenta s vezes impercetvel5. Todavia, acrescenta o nosso

    *Professor da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa. 1 Maria Luisa Malato e Paulo Ferreira da Cunha (2007), Manual de Retrica & Direito, p. 225. 2 Racionalismo dogmtico que teve em Descartes e Pascal os seus mais ilustres cultores. 3 Cf. Thomas Hobbes (1681), A Dialogue Between a Philosopher and a Student of Common Laws of England, apud Norberto Bobbio, Teoria Geral da Poltica, pp.238-252. 4 Perelman e Tyteca (1992 5 Ed.), Trait de LArgumentation, pp. 112 e sgs. 5 Jos Vigrio da Silva, Comunicao, Lgica e Retrica Forenses, p.19

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    2. Retrica jurdica e a retrica forense

    autor, a introduo no sistema jurdico de mecanismos latos, de diretivas orientadoras e de valores limitadores, com vista a uma melhor e mais justa soluo de cada caso concreto, anarquiza o sistema racional positivista, inviabiliza o silogismo judicirio tpico e abre pistas para a valorizao, em vrios sentidos e dimenses, das questes postas em juzo.6 Desacreditado, o positivismo jurdico puro e duro que havia conduzido ao totalitarismo da lei7 e s suas tenebrosas consequncias, a lei escrita foi apeada da anterior condio de valor absoluto. Ao juiz, antes impedido de fazer uso livre da sua razo, enquanto operador tcnico neutral, agora reconhecida a competncia para deliberar, ntima e livremente, sobre a deciso a tomar. Como sustenta Perelman em Logique Juridique Nouvelle Rhtorique, uma vez que todo o litgio implica um desacordo, uma controvrsia, o papel do juiz o de encontrar uma soluo que seja razovel, aceitvel, quer dizer, nem subjetiva nem arbitrria.8 Dele se espera, agora, que no tema fazer ponderaes que lhe permitam adequar a Lei, geral e abstrata, ao caso singular, guiado pela luz da sua razo, pela experincia pessoal enquanto cidado inserido na sociedade, tomando por bssola, sempre que possvel9, o princpio de equidade. Se o imperativo legal de motivar as sentenas se mantm, o fundamento da sua validade outro e bem distinto do antecedente propsito de controlar o uso excessivo do poder discricionrio dos juzes. Como dissemos em Vida, Razo e Justia, a deciso judiciria competente uma deciso racionalmente fundada mas que tem medida em critrios de razoabilidade e equidade, pressupe conhecimentos amplos do direito a aplicar, conhecimentos especficos sobre o caso, a justa distncia e, por fim, uma comunidade jurdica dialogicamente constituda como interlocutora das razes que motivam a deciso. Numa palavra, esta comunidade jurdica, constituda como auditrio universal, que, no limite, constitui o critrio de uma deciso simultaneamente racional e justa.10 Dez anos depois de iniciado o Julgamento de Nuremberga (1958), surgem simultaneamente no continente europeu e nas ilhas britnicas dois tratados de argumentao, distintos na sua estrutura, mas convergentes no propsito de conferir razo prtica o adequado critrio de fundamentao racional. Referimo-nos ao Tratado de Argumentao Nova Retrica, de Cham Perelman e Lucie Tyteca e obra de Stephen Toulmin, Os Usos do Argumento. certo que Toulmin, no nos oferece nenhuma taxinomia de argumentos. Oferece-nos, todavia, um modelo de argumento, radicalmente separado da Lgica Formal, sob o argumento de que esta no capta a efetividade argumentativa corrente. E, levando mais longe a rutura com o paradigma lgico, Toulmin considera que no existe uma racionalidade maior que possamos tomar como modelo. Para ele apenas existem racionalidades de campo, igualmente aptas para justificar a racionalidade de uma assero.

    6 Jos Vigrio da Silva, op. cit., pp. 20-21. 7 De que fala Gomes Canotilho. 8 Cham Perelman, op. cit., p. 162. 9 Cf. Ana Prata (1997) Dicionrio Jurdico, Princpio da Legalidade, O princpio da Legalidade, em processo civil, manifesta-se ainda no que respeita ao contedo da deciso, pois o tribunal deve julgar, em princpio, segundo alei (artigo 659, n. 2, CPC) s excecionalmente podendo decidir segundo a equidade. 10 Borges, Hermenegildo Ferreira (2005), Vida, Razo e Justia Racionalidade argumentativa na motivao judiciria, p. 202.

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    Tambm Perelman e Tyteca, assumem a pretenso de autonomizar a Teoria da Argumentao face Lgica Formal. Todavia, a arquitetura do seu Tratado de Argumentao mantm uma indisfarvel fidelidade ao paradigma lgico que, alis, tomam como referncia. Isso mesmo muito claro na deciso de situarem epistemologicamente a Teoria da Argumentao no prolongamento da Lgica Formal, com o propsito de suprir nela a incapacidade de operar racionalmente sobre valores e juzos de valor11. E assim procedendo, Perelman & Tyteca, sem negarem o estatuto racional que devido Lgica e s Cincias Naturais, estendem o exerccio da razo a um amplo continente, at ento escondido pela bruma, mas desde h muito habitado pela Filosofia, pelo Direito, pelas Cincias Humanas e pela comunicao quotidiana, onde operava j a razo prtica e o seu paradigma de fundamentao racional a Justificao. A fidelidade de Perelman e Tyteca ao paradigma lgico, enquanto modelo ideal de razo, manifesta-se, tambm, no critrio que preside hierarquia da sua classe de argumentos: - Em primeiro lugar, surgem os argumentos quase-lgicos; - Em segundo lugar, os argumentos baseados na estrutura do real; - Em terceiro lugar, os argumentos que fundam a estrutura do real por recurso ao caso particular; em quarto lugar, os raciocnios por analogia e pela metfora; e, por ltimo, os argumentos por dissociao das noes. Como pudemos comprovar, atravs da anlise da racionalidade argumentativa presente em sessenta acrdos do Supremo Tribunal de Justia, mais de duas dezenas de categorias argumentativas que se acolhem na classificao de argumentos proposta por Perelman, ocorrem, com maior ou menor frequncia, na fundamentao racional das decises de justia proferidas nos acrdos. Intimamente ligados s categorias argumentativas sistematizadas no Tratado de Argumentao comprovmos tambm a ocorrncia dos treze argumentos jurdicos especiais sistematizados por Giovani Tarello, por ele designados como modos particulares do argumento gentico ou da vontade do legislador12. So eles os argumentos: - A contrario;

    - A simili;

    - A fortiori (nas modalidades a minor ad maius e a maiori ad minus);

    - A completudine;

    11 Ao inscreverem a Teoria da Argumentao no prolongamento da Lgica Formal, Perelman e Tyteca perseguem o propsito de no abandonar indistino e ao arbtrio, como pretendera fazer o racionalismo dogmtico cartesiano, as disputas humanas, todas elas resultantes do conflito de valores de todo o tipo. 12 Tarello, Die Juristische Argumentation, Actes du Congrs de Bruxelles de 1971, p. 104-108. (cf. Chaim Perelman, Logique Juridique Nouvelle Rhtorique, Toulouse: Dalloz, 2 Edio, p. 55 59).

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    - A cohaerentia;

    - Psicolgico;

    - Histrico;

    - Apaggico (redutio ad absurdum);

    - Teleolgico; econmico;

    - Ab exemplo (precedente);

    - Argumento sistemtico e;

    - Por ltimo, o argumento naturalista (da natureza das coisas ou a hiptese do legislador

    impotente).

    Importa referir que a hierarquia dos argumentos proposta no Tratado da Argumentao de Perelman e Tyteca no obedece ao critrio da fora dos argumentos. A sua hierarquia tem apenas em conta o estatuto epistemolgico dos domnios em que se inspiram tais argumentos. Os prprios autores consideram que a fora dos argumentos uma noo confusa e que varia em funo dos auditrios e do fim a que se destina a argumentao. Neste sentido, concluem Perelman e Tyteca: a fora de um argumento manifesta-se tanto pela dificuldade que houver em refut-lo como pelas suas prprias qualidades. 13 Mas, se considerarmos a fora persuasiva do discurso argumentativo no seu todo, ento teremos de reconhecer que ela se no deve apenas solidez dos argumentos e ao critrio de oportunidade com que so usados. A forma do discurso e o modo como oralmente transmitido, revelam-se essenciais para a construo de um ethos favorvel ao orador e, desse modo, para reforar a eficcia da sua argumentao. O orador experiente sabe que a fora performativa do seu discurso no depende apenas da fora dos seus argumentos14. Depende, em boa medida, de uma boa preparao e estruturao do discurso, da eloquncia, da erudio, do uso das pausas e dos silncios e do uso oportuno de figuras de modo a serem percebidas no como figuras de estilo mas como figuras argumentativas 15. Desde a Antiguidade Clssica que dada grande importncia forma do discurso. A Arte Oratria, na medida em que valoriza a eloquncia e a forma, foi ganhando progressivamente mais prestgio na razo inversa em que a retrica o foi perdendo, at atingir a cota mais baixa da sua degradao. Foi ento que uma nova importncia passou a ser concedida teoria clssica da elaborao do discurso e suas distintas fases: Inventio, dispositio, elocutio, memoria e actio. De facto, o cuidado com a forma pode oferecer ao discurso um conjunto de caracteres que lhe conferem mais graciosidade, emoo e acrescida eficcia persuasiva.

    13 Perelman-Tyteca, (1992), Trat de LArgumentation. 14 Perelman e Tyteca fazem-nos notar que tambm a forma do discurso visa produzir efeitos argumentativos relativamente ao objeto do discurso. 15 Dizem Perelman e Tyteca: Ns consideramos uma figura argumentativa se, arrastando uma mudana de perspetiva, o seu emprego parece normal em relao nova situao sugerida. Se, pelo contrrio, o discurso no arrasta a adeso do auditor a esta forma argumentativa, a figura ser percebida como ornamento, como Figura de Estilo, Trait de LArgumention, p. 229.

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    2. Retrica jurdica e a retrica forense

    Assim acontece com o uso de frmulas particulares que visam criar uma certa Comunho com o Auditrio, como resulta do uso de expresses negligentes; frmulas clich; mximas16; provrbios; palavras de ordem (slogans) e, muito particularmente, de figuras argumentativas. Perelman e Tyteca classificam as Figuras Argumentativas, em funo o efeito que produzem, em 3 grupos: as figuras de Escolha, impem ou sugerem uma escolha; as de Presena, procuram tornar presentes conscincia dos ouvintes factos ocorridos num passado distante, tornando mais real aquilo de que estamos a falar; as de Comunho, ajudam a criar ou reforar laos de cumplicidade ou de afeto com o auditrio, atravs da partilha de valores. Se os argumentos constituem o escoramento da fundamentao racional do discurso judicirio, a forma, a clareza e a erudio que resulta do uso adequado das figuras, mximas e brocardos latinos, conferem ao discurso a eloquncia e dignidade requeridas pela solenidade ritual da realizao da justia. 2. Interpretao e argumentao no discurso jurdico Como sustenta Habermas, todos nascemos providos de duas faculdades naturais fundamentais: - A primeira, habilita os falantes a interpretar, compreender e a fazer compreender o sentido [sempre que] a comunicao perturbada e que, se aperfeioada, pode tornar-se uma arte a hermenutica;

    - A segunda, a competncia comunicacional, que partilhamos com todos os locutores, e que, tal como a primeira, passvel de ser aperfeioada e tornar-se uma arte vocacionada para persuadir e convencer, em situaes em que se trata de dar soluo as questes prticas17 a retrica. Na fundamentao racional no discurso jurdico so percetveis dois nveis distintos: - O primeiro, de teor quase-lgico, interno ao prprio discurso, procura justificar a validade das premissas e da concluso obtida a partir delas; - O segundo nvel, voltado para a fundamentao prtica, normativa e de alcance social, est particularmente atento justificao das escolhas das premissas e justificao da deciso perante a comunidade jurdica.

    16 Muitas delas tm grande erudio! (Vejam-se, por ex., as mximas em Direito, denominadas adgios ou brocardos latinos: Non bis in idem; In dubio pro reo; Nullum crimen sine lege, etc.) A mxima, enquanto frmula consagrada, serve para exprimir, mais ou menos explicitamente, uma norma orientadora da conduta. Segundo Aristteles a Mxima confere ao discurso um carcter tico. 17 Jrgen Habermas (1984), La prtention de Luniversitalit de Lhermneutique, Logique des Sciences Sociales e Autres Essais, Paris, PUF, pp. 239-240).

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    2. Retrica jurdica e a retrica forense

    Estes dois nveis de fundamentao resultam do labor interpretativo da hermenutica e do labor argumentativo da retrica e deixam-se exprimir, respetivamente, pelos conceitos de justificao interna e justificao externa, assim designadas por Robert Alexy. A hermenutica jurdica e a retrica jurdica so tcnicas discursivas essenciais fundamentao racional das decises de justia: - hermenutica cabe a interpretao em matria de facto e de direito e a tarefa de obter da regra jurdica uma norma;

    - retrica jurdica compete recobrir e ordenar a diversidade de enunciados dando coerncia e sentido ao conjunto e justificando a deciso.

    Para Ricoeur, h uma relao dialtica muito clara entre interpretar e argumentar, relao anloga que existe entre compreender e explicar.18 Deste modo, interpretao e argumentao so dispositivos logotcnicos que se recobrem, que se interpenetram e que mutuamente se determinam no discurso jurdico-judicirio. A Interpretao e a argumentao mantm, assim, uma relao de imbricao, complementaridade e determinao recproca, particularmente no debate judicirio. Cabe justificao externa19 entrar em profundidade na especificidade dos factos e nas particularidades das normas, indo alm do labor da justificao interna e, no quadro de uma racionalidade prtica, formular juzos capazes de fundamentar racionalmente a deciso, atravs de trs tipos muito precisos de enunciados sobre os quais se estrutura a argumentao jurdica e judiciria: 1 - As regras de direito positivo: 2 - Os enunciados empricos; 3 - As premissas que no so nem regras de Direito positivo, nem enunciados empricos.

    A cada um destes distintos tipos de enunciados correspondem distintos mtodos de fundamentao que no caber aqui desenvolver.

    3. Da universalidade do auditrio judicirio

    O Auditrio Universal um conceito central na Teoria da Argumentao, em Perelman, e est presente em todos os momentos do iter processual que conduz a uma deciso de justia.

    18 Ricoeur, le Juste, p. 165 , apud VRJ, p. 56. 19 Alexy, Robert (1989) Teoria de la Argumentacin Jurdica. La Teora del Discurso Racional como Teora de la Fundamentacin Jurdica, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales: 222.

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    2. Retrica jurdica e a retrica forense

    Segundo Perelman e Lucie Tyteca, os propsitos de convencer (carcter racional da adeso) e de persuadir (carcter emocional da adeso) esto ligados ao tipo de argumentao que est na base da constituio do auditrio universal e do auditrio particular, respetivamente. Dizem os nossos autores: Ns propomo-nos chamar persuasiva uma argumentao que s pretende valer para um auditrio particular e chamar convincente a que suposto obter a adeso de todo o ser de razo.20 A definio que melhor representa, Para Perelman e Tyteca, o modelo ideal de Auditrio Universal esta: Uma argumentao que se dirige a um auditrio universal, deve convencer o leitor do carcter constringente das razes fornecidas, da sua evidncia, da sua validade intemporal absoluta, independente das contingncias locais ou histricas.21 Deste modo, a argumentao-padro para um auditrio universal , para os autores do Tratado da Argumentao, a que se impe necessariamente a todo o ser dotado de razo pela validade intemporal e absoluta das razes fornecidas. Ora, como facilmente se percebe, um to alto critrio de Verdade apenas pode ser satisfeito pela Lgica-Formal. No faz qualquer sentido argumentar perante o que evidente e no pode sofrer contestao. Perelman d-nos elementos decisivos para a compreenso de um sentido mais razovel de Auditrio Judicirio Universal na quarta das suas Cinco Lies Sobre a Justia22. Perelman sugere, nesta lio, uma aproximao distino proposta por Kant entre princpios subjetivos e princpios objetivos: Princpios prticos so proposies que contm uma determinao geral da vontade de que dependem vrias regras prticas. Eles so subjetivos, ou seja mximas, quando a condio considerada pelo sujeito como vlida apenas para a sua vontade; mas eles so objetivos ou leis prticas, quando esta condio reconhecida como objetiva, isto , vlida para a vontade de todo ser racional23. A distino kantiana entre princpios subjetivos e princpios objetivos contm uma homologia de relao com a distino de Perelman entre persuadir e convencer e entre auditrio particular e auditrio universal. Torna-se assim inevitvel a aproximao entre a noo de Auditrio Universal em Perelman e o Imperativo Categrico de Kant, enquanto lei fundamental da Razo Pura Prtica, enunciado nestes termos: Age de tal maneira que a mxima da tua vontade possa ao mesmo tempo valer sempre como princpio de uma legislao universal. E, sem surpresa, na quarta das suas Cinco lies sobre a Justia, Perelman promove essa aproximao nestes termos: transponhamos o imperativo categrico de Kant em linguagem judiciria. Pod-lo-amos formular assim: Tu deves comportar-te como se tu fosses um juiz cuja

    20 Cham Perelman & Lucie Tyteca, Trait de LArgumentation, p. 36. 21 Cham Perelman & Lucie Tyteca, Trait de LArgumentation, p. 41. 22 Cinq leons sur la Justice, in Droit, Morale et Philosophie, pp. 1-56. 23 Kant, Critique de la Raison Pratique, Vrin, Paris, 1944, pg. 20, cfr. Perelman, (1968) Droit, Morale et Philosophie, p. 49.

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    2. Retrica jurdica e a