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Hard-cases e leading-cases no campo do direito à
educação: o caso das quotas raciais.
Nina Beatriz Stocco Ranieri
“A interpretação integra o léxico fundamental do Direito. É no direito em ação – na law in action (...)– que o intérprete se ocupa e se preocupa com a passagem da verba legis para a sententia legis. Esta passagem tem sua complexidadede própria,
pois (...) entender a lei (scire legis) não é conhecer-lhe as palavras, mas sim a sua força e poderio (vim ac potestatem).”
Celso Lafer, em prefacio à obra “Ativismo Judicial”, de Elival da Silva Ramos, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 11.
“A jurisprudência (..) deve se por a serviço de dois senhores: a lei e a realidade. Só por meio da tensão entre estas duas vertentes da atividade judicial é que se poderá respeitar a concepção prática do Direito.”
Gustavo Zagrebelski, El Derecho Dúcti, Madrid, Editorial Trotta, 2008, p. 132.
Introdução
Hard-cases, standard-case e leading-case são expressões empregadas no
direito comum anglo-americano para designar ações judiciais que, por versarem sobre
questões jurídicas complexas e inéditas, não podem ser submetidas a uma regra de
direito clara e precisa.
Na língua portuguesa, a expressão jurídica hard-case significa, literalmente,
“caso difícil” ou “caso problemático”. Já as expressões standard-case e leading-case,
utilizadas como sinônimas em língua inglesa, podem ser traduzidas para o português
como “caso paradigmático” e “caso líder”, respectivamente. Um caso paradigmático
sempre decorrerá de uma causa difícil ou problemático, embora um caso difícil nem
sempre se torne um caso paradigmático.
O tema da discricionariedade judicial em face de hard-cases suscitou diferentes
posições na doutrina americana, sendo conhecida a divergência entre H. L. A. Hart
(The Concept of Law, 1961) e Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously, 1977) sobre
a existência ou não de um dever legal do juiz de decidir de determinada maneira em
situações de incompletude da lei.
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Em apertada síntese, podemos dizer que, para Hart, como o Direito positivo
deve responder a todas as situações suscitadas judicialmente, o juiz, nos casos difíceis,
dispõe de maior discricionariedade (ou “discricionariedade forte”, na tipologia de
Dworkin), dada a incompletude ou lacuna da lei. Para Dworkin, diversamente, o juiz
dispõe apenas de “discricionariedade fraca”, dado “o dever de descobrir quais são aos
direitos das partes e não inventar outros direitos retroativamente.”1 Esta problemática,
em Hart, não é uma preocupação, posto que tais direitos, em face da lacuna legal, não
existiriam, razão pela qual não se estaria desconsiderando qualquer direito. Note-se
que Dworkin não diverge de Hart no tocante à discricionariedade fraca, mas, tão
somente, acerca da discricionariedade forte. E isto porque a sua reflexão política,
ainda que de matriz liberal, não reduz o âmbito político à defesa de direitos e à
representação de interesses privados, considerando antes a liberdade de
autodeterminação dos indivíduos e a realização do bem comum.2
Essas posições são ilustrativas da diferença substantiva entre hard-cases e
leading-cases no sistema jurídico americano, no que diz respeito às influências
externas à Constituição, vis à vis o grau da discricionariedade judicial que pode ser
adotado pelo juiz.
De modo geral, no direito norte-americano, o emprego da expressão hard-case
refere-se a uma causa que sofre os impactos de uma razão social avassaladora, que
“apela aos sentimentos do julgador e distorce o julgamento”, para usar as palavras do
controvertido Oliver Wendell Holmes Jr., Associate Justice da Suprema Corte no
início do séc. XX.3 Por esta razão, a discricionariedade do julgador, motivada por
idéias de reparação, pode levar à elaboração de decisões não conformadas aos the true
principles of Law, como nos adverte Henry Campbell Black.4 Hard cases make bad
Law, enfatizam, sem relativizações, Black e Holmes.
Nos leading-cases, o problema da “discricionariedade forte” não se apresenta,
posto que a solução indicada para o caso, ainda que resultante de “discricionariedade
fraca”, encontra amparo nas normas constitucionais. A grande contribuição do leading
1 Cf. Levando os direitos a sério, trad. Nelson Boeira, São Paulo, Martins Fontes, 2002:127. 2 Para maior aprofundamento dessa discussão, ver Daniela R. Ikawa, Hart, Dworkin e Discricionariedade, São Paulo, FAPESP, Revista Lua Nova no. 61, 2004, pp. 97/ 3 Cf. Oliver Wendell Holmes Jr. “in” Richard A. Posner, The Essential Holmes, The University of Chicago Press, 1992, p. 130, citado na petição da ADIn 3.197-RJ. 4 Cf. Black’s Law Dictionary, St. Paul, Minn., 1990, West Publishing Co., 6th Edition, p. 717.
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case, ao solucionar um caso difícil, consiste em fixar novas linhas interpretativas que
ampliam a garantia e proteção do Direito.
Podemos dizer, portanto, que soluções fundadas em ampla discricionariedade
judicial seriam, a princípio, mais discutíveis do ponto de vista técnico-jurídico, o que
relativizaria a observância, pelo juiz, dos limites de sua função e, por via de
conseqüência, poria em xeque a legitimidade dessas decisões no âmbito do Estado
Democrático de Direito. Trata-se, nesta hipótese, do ativismo judicial entendido como
“desrespeito aos limites normativos substanciais da função jurisdicional”, conforme a
sintética definição de Elival da Silva Ramos em alentada obra sobre o tema.5
Mais especificamente, alerta o constitucionalista: “Se, por meio do exercício
ativista, se distorce, de algum modo, o sentido do dispositivo constitucional aplicado
(por interpretação descolada dos limites textuais, por atribuição de efeitos com ele
incompatíveis ou que devessem ser sopesados por outro poder etc.), está o órgão
judiciário deformando a obra do próprio Poder Constituinte originário e perpetrando
autêntica mutação inconstitucional.” 6
Toda essa problemática assume especial relevância quando se trata de casos
difíceis relativos à matéria constitucional, uma vez que a jurisdição constitucional é o
último nível de controle das normas constitucionais e conseqüência da adoção de
Constituições rígidas, dotadas de superioridade hierárquica.7
Qual a relação entre hard cases e leading cases e as decisões a serem proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 186-2, no Recurso Extraordinário 597.285/RS e na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 3.197-RJ, relativamente à constitucionalidade, ou não, do
emprego de quotas raciais para seleção de ingressantes no ensino superior?
A resposta é simples: além da inevitável conexão que se costuma estabelecer
entre o tema das cotas raciais americanas e das cotas brasileiras, a inexistência de regra
constitucional clara em relação à matéria - o que necessariamente implicará atividade
hermenêutica em face de questões políticas.
5 Cf. Elival da Silva Ramos, Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 109. 6 Op. cit. p. 112/3. 7 Cf., a propósito, Elival da Silva Ramos, op. cit.
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Questões políticas, ensina Pontes de Miranda, são aquelas nas quais haverá
espaço para o exercício do poder discricionário.8 O que está em jogo, portanto, é a
legitimidade da decisão, tanto em face do grau de discricionariedade a ser empregado
quanto da eventual ampliação do campo de incidência projetado pelas normas
constitucionais incidentes sobre a matéria.
Ora, na atividade hermenêutica, o intérprete parte do caso em busca da regra
adequada e desta retorna em direção àquele, num procedimento circular, de direção
bipolar, que se completa, legitimamente, à medida que se compõem as exigências do
caso e as pretensões da norma e do sistema jurídicos. No presente estágio da ciência
jurídica, ante a impossibilidade de se alcançar tal composição, abre-se um novo
problema, que não afeta a interpretação da norma, mas a sua validade.9
E isto porque, após o positivismo jurídico, os critérios de legitimação do
Direito produzido pelo Estado passaram a voltar-se a valores ético-políticos, e também
ao mundo dos fatos, com fecundos resultados nas Constituições democráticas
elaboradas após a II Guerra Mundial. Este fenômeno é significativo a ponto de não
mais ser possível reduzir o Direito a meras estruturas normativas, dado que, ao lado
das regras, figuram os “princípios”. Na conhecida lição de Ronald Dworkin, “(...)
princípio um padrão que deve ser observado, não porque vá assegurar ou promover
uma situação econômica, política ou social considerada desejada, mas porque é uma
exigência de justiça e eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade.”10
Os princípios nos sistemas jurídicos atuais, por conseguinte, são a expressão do
relacionamento entre Direito e moral; correspondem aos direitos fundamentais, base
moral que torna o direito obrigatório. Além disso, na medida em que consubstanciam
um sistema de valores, os princípios se irradiam por todo o sistema jurídico, com força
conformadora. Promovem, por via de conseqüência, a expansão axiológica do Direito
e propiciam sua interpretação extensiva, criando, por isso mesmo, incertezas
normativas, como ressalta Celso Lafer ao discorrer sobre os princípios no direito
internacional, paradigma do direito em movimento. 11
8 Cf. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, Rio de Janeiro, Borsoi, 1960, 3ª. Ed. t.3, pp. 205/6. 9 Cf., a propósito, G. Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, Madrid, Editorial Trotta, 2008:134. 10 Cf. Levando os direitos a sério. São Paulo, Martins Fontes, 2002, 35/6. 11 Op. cit. p. 14.
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Uma das conseqüências da expansão dos princípios na estrutura normativa das
constituições, observa Lafer, “é a de a elas conferir a característica de constituições
com uma vis directiva. Esta tem como objetivo buscar responder à função
promocional do Direito contemplada nos princípios. (...) Como a esfera da aplicação
dos princípios da Constituição de 1988 e de outras constituições contemporâneas é
relativamente indeterminada e dúctil e não se cinge à dimensão da validade, a
interpretação dos critérios para a tomada de posição do juiz diante do caso concreto
passa pelo balancing das ponderações.” 12
É por essas razões que as ações relativas às quotas raciais submetidas ao STF
propiciarão um fecundo e instrutivo campo de análise das potencialidades da
Constituição Federal, sendo certo que o enfrentamento de “questões políticas”, nas
adjudicações constitucionais será sempre complexo.
Segundo a metódica desenvolvida por J. J. Gomes Canotilho, na interpretação
de normas constitucionais em casos jurídicos problemáticos faz-se necessário proceder
a uma análise complexa, a envolver a teoria da norma constitucional e a teoria da
Constituição, além da descrição do direito vigente, do exame sistêmico do direito e da
elaboração de propostas de solução do caso.13
É evidente que tal analise enfrentará as dificuldades inerentes à atividade
hermenêutica, quais sejam a textura aberta das normas constitucionais, a dimensão
política desta atividade e os problemas suscitados pelas normas de direitos
fundamentais que prendem o juiz aos postulados positivistas. Em diversas situações,
interpretar a norma constitucional também depende de inúmeras considerações
externas ao texto constitucional: expectativas da sociedade civil, considerações de
ordem práticas, práticas históricas, valores da comunidade etc.
Não se pode deixar de considerar, de outra parte, que a busca da solução para
um caso problemático não depende de um método específico; metódicas interpretativas
existem muitas e são inerentes ao pluralismo jurídico. O importante é que o método
esteja a serviço dessa busca.
12 Op. cit., p. 12. 13 Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2002, 6ª Ed., pp.1103 e seguintes.
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O objetivo deste artigo é apontar algumas das razões pelas quais entendo que as
decisões a serem proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas citadas Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 186-2, Recurso Extraordinário 597.285/RS
e Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.197-RJ, produzirão leading-cases em matéria
de ações afirmativas e quotas raciais.
A ADPF 186-2, o RE 5.97.285/RS e a ADIn 3.197-RJ são casos que marcam
uma determinada geração, tal como ocorreu no “caso Ellwanger”, no qual se discutiu a
liberdade de expressão em relação à dignidade humana (HC 82.424-2-RS)14, ou no
caso da anencefalia, no qual se opuseram o princípio da dignidade humana e o direito à
vida (ADPF 54-2-DF), dentre outros.
Essa relação exemplificativa de decisões paradigmáticas do STF demonstra que
a sociedade tem provocado a Corte a pensar o futuro, a enfrentar questões complexas,
o que também se incorpora ao conteúdo do Estado Democrático de Direito e lhe dá
nova feição, em comparação com os modelos clássicos do Estado de Direito. E isso
porque as solicitações sociais contemporâneas provocam a inversão da tradicional
relação de tempo estabelecida entre as atuações do Legislativo e do Judiciário, na qual
o primeiro pensava o futuro enquanto o segundo garantia a aplicação da norma que o
conformava, além de ampliar a participação da Corte na efetivação de políticas
públicas constitucionalmente definidas.
1- Definições preliminares
Para os fins deste artigo, adoto a definição de “discriminação racial” expressa
no art. 1º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1965: “qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou
origem nacional ou étnica que tenha o propósito de anular ou prejudicar o
reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade, de direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outro
campo da vida pública.”
14 Cf., a propósito. Celso Lafer, “O caso Ellwanger: anti-semitismo como prática de racismo”, in A internacionalização dos direitos humanos, São Paulo, Manole, 2005, pp. 33/122.
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Para “discriminação na educação”, adoto a definição do art. 1º da Convenção
contra a Discriminação na Educação da Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), de 1960: “qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou
étnica que tenha o propósito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou
exercício em igualdade na educação e, em particular: (a) de prejudicar o acesso de
qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso à educação de qualquer tipo ou nível;
(b) de limitar a níveis inferiores a educação de qualquer pessoa ou grupo de pessoas;
(c) estabelecer ou manter diferentes sistemas educacionais para pessoas ou grupo de
pessoas, ressalvadas as exceções previstas no art. 2º; (d) infringir a qualquer pessoa ou
grupo de pessoas condições incompatíveis com a dignidade humana.” 15
Para a expressão “ação afirmativa”, emprego o conceito de Joaquim B. Barbosa
Gomes: “conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo
ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e
de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação
praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade
de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.” Este é o mesmo
conceito de “discriminação positiva”. “Quotas raciais”, como bem aponta o autor,
constituem um dos modos pelos quais se implementam políticas de ação afirmativa.16
Educação superior, por sua vez, é o nível de ensino que compreende os cursos
seqüenciais por campo do saber, cursos de graduação e extensão, além dos programas
de pós-graduação stricto e lato sensu (art. 44, da Lei 9.394, de 20/12/96). Tem por
finalidade estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do
pensamento reflexivo, formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento,
incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, promover a divulgação de
conhecimentos culturais, científicos e técnicos, que constituem patrimônio da
humanidade, e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras
formas de comunicação. Deve, também, suscitar o desejo permanente de
aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização,
integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual
sistematizadora do conhecimento de cada geração.Tem ainda como meta estimular o 15 O Brasil ratificou o conteúdo da convenção por via do Decreto no. 63.223, de 06/07/68. 16 Cf. Ação afirmativa e princípio constitucional da Igualdade – O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, pp. 40 e seguintes.
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conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e
regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma
relação de reciprocidade, além de promover a extensão, aberta à participação da
população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural
e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição (art. 43, da Lei 9.394/96).
Note-se, portanto, que, nos termos da legislação de diretrizes e bases da
educação brasileira (lei 9.394/96), quando se fala genericamente de quotas raciais no
ensino superior, fala-se de reserva de vagas nos diversos cursos e programas que
integram este nível de ensino, e não apenas da graduação. Diversamente, quando se
fala em reserva de vagas em vestibular, mediante quotas raciais, fala-se apenas da
graduação.
2- Leading-cases no direito à educação.
No campo do direito à educação, os leading cases têm resultado de situações
problemáticas nas quais a primazia do direito da criança, do adolescente ou do adulto é
mais difícil de ser aquilatado ou dimensionado e que, por esta razão, uma vez
solucionados, apontam novas linhas protetivas do direito. Foi o que ocorreu, por
exemplo, em postulação junto ao Superior Tribunal de Justiça – STJ acerca da
possibilidade de oferecimento domiciliar de ensino fundamental (Mandado de
Segurança no. 7.407 – DF). Da mesma forma, pode-se citar, no âmbito da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o caso do oferecimento da educação
infantil pelo Poder Público municipal, anteriormente à Emenda Constitucional no. 59,
de 11/11/2009 (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 410.715-5).
1.1- O Mandado de Segurança nº. 7.407 – DF.
No primeiro caso, os requerentes, com fundamento no dever educacional da
família e dos pais (artigos 205 e 227 da Constituição Federal), alegaram dispor de
liberdade constitucionalmente assegurada para escolher a forma de oferecimento de
estudos a seus filhos, o que não lhes foi reconhecido. Conforme restou decidido no
paradigmático acórdão proferido pela Primeira Seção do STJ no MS 7.407 – DF, o
ensino fundamental não pode ser ministrado em casa, à vista de sua particular natureza
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no conjunto do direito à educação e do preparo da pessoa para o exercício da
cidadania. 17
Nesse caso, foram apreciadas diversas questões relacionadas aos direitos
fundamentais, a saber: o direito à educação, os direitos da família, os direitos das
crianças e adolescentes, o dever do Estado e da família no oferecimento da educação e
suas relações com os direitos de liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber; a prevalência do poder parental na escolha da educação a
ser oferecida aos filhos; as repercussões penais da não-matrícula escolar. Mas o que
estava em jogo, fundamentalmente, era o primado da família sobre o Estado, como
base da sociedade (art. 226), diante da obrigação constitucional de atendimento do
ensino fundamental em instituições escolares.
Os fundamentos da decisão do STJ centraram-se, basicamente, em três aspectos
principais, assim apontados pelo Relator, Min. Francisco Peçanha Martins:
a) a freqüência à escola é direito dos menores, previsto
na Constituição Federal e regulamentado pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educação e pelo Estatuto da Criança. Tal
regulamento não pode ser desafiado pela convicção filosófica
dos pais; b) mesmo reconhecida, a capacidade dos pais de
ministrar boa educação não é razão suficiente para privar a
criança do direito ao convívio escolar; c) não pode o Poder
Judiciário desprezar o ordenamento jurídico em favor da
convicção política e filosófica dos pais.
No voto do Relator, é importante notar a definição da precedência do Estado
sobre a família nesta matéria específica. A fundamentação, como fica claro no voto do
Min. Peçanha Martins, reside na exigência da formação da cidadania em espaço
público, aqui considerada direito das crianças:
17MS Nº 7.407 - DF (2001/0022843-7). Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins. “1. Direito líquido e certo é o expresso em lei, que se manifesta inconcusso e insuscetível de dúvidas. 2. Inexiste previsão constitucional e legal, como reconhecido pelos impetrantes, que autorizem os pais ministrarem aos filhos as disciplinas do ensino fundamental, no recesso do lar, sem controle do poder público mormente quanto à freqüência no estabelecimento de ensino e ao total de horas letivas indispensáveis à aprovação do aluno. 3. Segurança denegada à míngua da existência de direito líquido e certo.” A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, (...) por maioria, denegou a segurança. Vencidos os Srs. Ministros Franciulli Netto e Paulo Medina. Votaram com o Relator os Ministros Humberto Gomes de Barros, Eliana Calmon, Francisco Falcão, Laurita Vaz e Garcia Vieira. Brasília (DF), 24 de abril de 2002.
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Os filhos não são dos pais, como pensam os Autores.
São pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se
devem forjar desde a adolescência em meio a iguais, no
convívio social formador da cidadania.
O direito à educação fundamental obrigatória, portanto, encerra dois direitos de
cidadania: o direito à formação, que o ensino fundamental propicia, e o direito de
recebê-lo em estabelecimento de ensino fundamental, público ou privado. O
fundamento axiológico do direito de cidadania assim expresso concentra-se, pois, na
idéia do inter sum, que se concretiza, em sua inteireza, no espaço público, local onde
se expressa a pluralidade resultante das relações humanas que envolvem o outro e, por
conseqüência, onde se expressa a solidariedade e a res publica.
De outra parte, confirma-se judicialmente que o nexo entre o indivíduo e a
participação na vida coletiva e no espaço público requer a transmissão formal, a cada
geração, de todo um conjunto de valores e princípios de extração democrática, por
meio do ensino escolar. É o que se extrai, repetimos, do art. 3º, mas também do art. 1º
da Constituição Federal, nos quais estão patentes, sobretudo , a soberania popular, a
cidadania, a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o
pluralismo político.
Da premissa do dúplice conteúdo do direito à educação fundamental decorrem
três conclusões: as obrigações da família com o ensino fundamental em relação a seus
filhos têm caráter complementar às obrigações do Estado; os deveres dos pais, neste
nível fundamental, não são excepcionáveis à luz da liberdade de ensino nem da
pluralidade de concepções pedagógicas a ponto de facultar o ensino domiciliar, nem há
exceções à freqüência escolar (art. 208, § 4º). O princípio da liberdade no Estado
Democrático de Direito, aliás, só pode ser compreendido com referência ao bem
comum (art. 3º, I).
A liberdade de ensino e de orientação pedagógica, portanto, concerne à escolha
entre a escola pública ou a privada, ao método pedagógico da educação formal e à
eventual orientação religiosa, dentre outras possíveis opções, mas não entre ensino
formal e informal. De outra parte, se já eram evidentes as limitações ao pátrio poder e
à prevalência da família em razão das normas de proteção da criança e do adolescente,
a decisão do STJ definiu mais uma, de extração constitucional.
1.2- O Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 410.715-5.
11
No segundo caso, o objeto era a afirmação da educação infantil como
prerrogativa indisponível de crianças de zero a seis anos em creches e escolas de
educação infantil (ação interposta ante da EC 53/06, que ampliou o ensino
fundamental ao nele incluir as crianças de seis anos), figurando o Município de Santo
André como recorrente em virtude de decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo –
TJSP, que conheceu e deu provimento à tutela requerida pelo Ministério Público do
Estado de São Paulo, em benefício da garantia de atendimento do direito.18
No voto do relator Min. Celso de Mello, em acórdão da Segunda Turma do
STF que, por unanimidade, negou provimento ao recurso de agravo (22/11/05; DJ
03/02/06), foram apresentados cinco argumentos principais:
(a) a educação infantil é prerrogativa indisponível que assegura o atendimento
em creches e o acesso à pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade, por força
do art. 208, IV;
(b) esta prerrogativa impõe ao Estado a obrigação constitucional de criar
condições objetivas que possibilitem de maneira concreta aquele acesso e
atendimento;
(c) a educação infantil é direito fundamental que não se expõe a avaliações
discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de pragmatismo;
(d) embora a questão seja pertinente à reserva do possível, os Municípios não
podem se demitir do mandato constitucional do art. 208, IV, juridicamente vinculante,
à vista de sua responsabilidade prioritária pelo ensino fundamental e pela educação
infantil (art. 211, § 2º);
(e) o Judiciário tem competência para determinar excepcionalmente a
implementação de políticas definidas pela própria Constituição por órgãos estatais
inadimplentes, cuja omissão pode comprometer a eficácia e a integridade dos direitos
sociais; ao não determinar a efetivação desses direitos, o próprio STF estaria
incorrendo em grave omissão.
18 O mesmo objeto foi discutido nos seguintes recursos extraordinários: RE 431.773, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 15/09/04; RE 411.518, REl. Min. Marco Aurélio, DJ 03/03/04; RE 402.024, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 05/20/04; RE352.686, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/10/04; RE 411.332, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/10/04; RE 398.722, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/10/04; RE 443.158, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 21/03/05; RE 410.715, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22/11/05; RE 436.996, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26/10/05, RE 438.493, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 30/11/05, RE 463.210-1, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 06/12/05; RE 384.201, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 26/04/07, dentre outros.
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Com efeito, a norma constitucional do art. 208, IV, indica com precisão o
âmbito de proteção do direito à educação infantil (a existência de creches e escolas
para crianças de até cinco anos, sendo na ocasião do julgado até seis anos), o principal
e primeiro responsável pela garantia do direito (o Município, art. 211, § 2º), o
responsável subsidiário (a União, art. 211, §1º e art. 30, IV), a primazia de atendimento
(art. 211, §1º e art. 227), os recursos econômicos que deverão apoiar o seu
oferecimento (art. 212 e §§, art. 167, IV, art. 3º, IV); a possibilidade de intervenção do
Estado no Município em hipótese de não aplicação do mínimo de 18% da receita
resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 35, III).
Ora, a absoluta prioridade, no caso da educação infantil, significa que o
atendimento das crianças tem primazia nas políticas públicas e na atuação dos
governantes, legisladores, família, comunidade e sociedade, com o objetivo de
concretizar os direitos enumerados no próprio art. 227 da Constituição e no art. 4º do
ECA (direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária). Segue-se da previsão do art. 227 que o Município também
deverá assegurar, em suas creches e pré-escolas, programas suplementares de
alimentação, pelo menos.
Desde logo, a decisão confirma que a educação infantil tem a natureza de
direito subjetivo fundamental, posto integrar o núcleo consubstanciador do mínimo
existencial cuja integralidade e intangibilidade devem ser asseguradas. Nesse sentido,
dá concretude ao conteúdo do mínimo existencial, considerado, na doutrina, como
direito a condições mínimas de existência humana digna que exige prestações positivas
do Estado. A intervenção do Judiciário, sob este prisma, em virtude de sua
inobservância, faz-se, simetricamente, em atendimento ao fundamento da dignidade da
pessoa humana (CF, art. 1º, III). 19
Assim sendo, o não atendimento do direito de crédito em questão qualifica-se
como inconstitucionalidade por omissão, ressalvada a ocorrência de justo motivo
objetivamente aferível sob invocação da cláusula da reserva do possível. É deste
ângulo que incide a razoabilidade, isto é, o “justo equilíbrio entre os meios
19 Ricardo Lobo Torres, O mínimo existencial e os direitos fundamentais, Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, n. 42, julho-setembro 1990, p. 69-70; Ana Paula de Barcelos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 248 e 252-253.
13
empregados e os fins a serem atingidos”, por meio do qual “o juiz analisará a situação
em concreto e dirá se o administrador público ou o responsável pelo ato guerreado
pautou sua conduta de acordo com os interesses maiores do indivíduo ou da
coletividade, estabelecido na Constituição e nas leis “.20
Neste caso, o paradigmático voto do relator assegurou a consolidação de nova
construção jurisprudencial na promoção e garantia do direito à educação, confirmando
a tendência já notada no STF de determinar a execução, pelas autoridades
competentes, de políticas públicas constitucionais na área da educação pelas
autoridades competentes. A decisão do STJ tornou-se, por essas razões, um paradigma
para decisões futuras.
É também o que deve ocorrer em relação aos casos levados à apreciação do
Supremo Tribunal Federal relativamente à constitucionalidade das cotas raciais
instituídas pela Universidade de Brasília - UnB (Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 186-2), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
URGS (Recurso Extraordinário 597.285/RS) e pela Lei no. 4.151 de 2003, do Estado
do Rio de Janeiro, que instituiu, naquele Estado, o sistema de reserva de vagas para o
ingresso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e na Universidade
Estadual do Norte Fluminense – UENF (Ação Direita de Inconstitucionalidade 3.197-
RJ).
2- Possíveis leading-cases no direito à educação: a ADPF 186-2, o RE
5.97.285/RS e a ADIn 3.197-RJ.
2.1- Os casos.
Na ADPF 186-2, proposta pelo partido político “Democratas” (DEM),
questionam-se os atos administrativos praticados pela UnB que criaram a reserva de
20% das vagas do seu vestibular para estudantes negros, mediante realização do exame
e aprovação da matrícula por comissão interna que analisa o fenótipo do candidato.
20 Cf. Ada Pellegrini Grinover que, apoiada em sólida doutrina,conclui que “a intervenção judicial nas políticas públicas só poderá ocorrer em situações em que ficar demonstrada a irrazoabilidade do ato discricionário praticado pelo poder público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da proporcionalidade.”, op. cit. p. 125. Cf. O controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário, in Carlos Alberto de Salles (coord.), As grandes transformações do processo civil brasileiro - Homenagem ao Prof. Kazuo Watanabe, São Paulo, Quartier Latin, 2009, p. 109-134. Cf. também J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 513 e ss.
14
No RE 597.285/RS, diversamente, a postulação é individual, tendo-se iniciado
com mandado de segurança interposto contra o Reitor da UFRGS por candidato ao
curso de administração oferecido pela instituição que, apesar de ter alcançado a 132ª
posição na classificação geral, não logrou realizar matrícula, eis que, do total de 160
vagas oferecidas no vestibular, 44 haviam sido reservadas para o sistema de cotas.
Embora a liminar inicialmente concedida tenha sido confirmada em primeiro grau, a
decisão foi revertida em sede de apelação.
Nos dois casos, o problema radica na interpretação do princípio da igualdade de
condições de acesso e permanência na escola (art. 206 da Constituição Federal),
corolário do princípio constitucional da igualdade, com vistas a apoiar e promover
determinados grupos socialmente marginalizados. Seu foco específico é propiciar a
inclusão de negros nos níveis mais elevados do ensino, sob o argumento da eliminação
da discriminação educacional e da conseqüente correção de distorções nas condições
de acesso. Tal discriminação seria o resultado de políticas de exclusão praticadas no
Brasil em relação aos negros, potencializadas pelo seu passado escravocrata e
patriarcal.
O mesmo problema já havia sido levantado na ADIn 3.197-RJ pela
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – COFENEN, ainda pendente
de julgamento pelo STF (Rel. Min. Celso de Mello), em relação à reserva de vagas
para o ingresso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e na
Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF, determinada pela antes citada lei
estadual nº. 4.151, de 04/09/03.
De acordo com o sistema fluminense, o percentual mínimo de 45% do total de
vagas do vestibular fica obrigatoriamente reservado a estudantes carentes na seguinte
conformidade: 20% para estudantes negros, exclusivamente; 20% para estudantes
egressos da rede pública estadual do Rio de Janeiro e 5% para pessoas com deficiência
e integrantes de minorias étnicas (art. 1º da Lei 4.151/03). A COFENEN contesta a
constitucionalidade da lei, em virtude da violação dos princípios da isonomia e da
interdição de discriminações, com fundamento no art. 5º, caput, da Constituição
Federal, e também por violação dos arts. 206, I e 208, V, da mesma Constituição
Federal. A lei fluminense de 2003, ao ser editada, revogou anterior sistema de reserva
de 40% do total das vagas do vestibular da UERJ e da UENF, instituído pela lei no.
15
3.708, de 09/11/01, em favor da “população negra e parda”, empregado apenas no
vestibular de 2003.
Não há dúvida de que as circunstâncias envolvidas nos casos acima indicados,
relativamente às cotas raciais, levarão a Suprema Corte a pronunciar-se sobre o que
são ações afirmativas na educação e quais os seus âmbito e limites constitucionais.
Tais decisões deverão fixar jurisprudência, pelo menos em relação aos seguintes
problemas: A inexistência de quotas raciais configura um problema de discriminação
racial? O direito à educação, previsto no art. 205, compreende quotas raciais ou quotas
sociais, de alcance mais amplo? Quotas sociais atendem ao desiderato das quotas
raciais? Contra quem a Constituição deve criar esses direitos?
2.2- As controvérsias constitucionais.
Conforme sintetizaram Magalhães, Montenegro e Righetti, “o debate jurídico
sobre o sistema de cotas para o ensino superior, basicamente, gira em torno de duas
idéias: da inconstitucionalidade das cotas, a partir de uma interpretação de que os
direitos de todo e qualquer brasileiro são iguais, e da constitucionalidade da política,
pela interpretação de que se trata de uma ação de inclusão que, inclusive, pode ser
realizada com base em princípios estabelecidos em cada universidade pública.”21
A controvérsia aponta, ainda, na direção do desatendimento de outros quatro
dispositivos constitucionais: (a) o princípio da igualdade (art. 5º), dado o
favorecimento de pessoas ou grupos sociais em face de critérios discriminatórios; (b) o
princípio da eficiência da Administração Pública (art. 37, caput); (c) o princípio da
impessoalidade da administração pública (art. 37, caput), que implica o não
favorecimento de pessoas ou grupos sociais; (d) a garantia da autonomia universitária
(art. 207), que tem como corolário a forma e as condições de seleção de ingressantes,
bem como dos critérios de mérito para progressão acadêmica.
Neste tema é importante esclarecer que o ensino superior público, diversamente
do que ocorre em relação aos níveis fundamental e médio, não se destina a todos (CF,
art.208, I e II). Em outras palavras, o Estado brasileiro não pretende universalizar o
ensino superior público, limitando-se o dever do Estado à garantia de acesso, segundo
a capacidade de cada um (CF, art.208, V). Daí porque a garantia de acesso (entrada,
21 Cf. Camila Magalhães, Fernanda Montenegro Menezes e Sabine Righetti, Ações Afirmativas e Cotas no Ensino Superior: uma reflexão sobre o debate recente, “in” Nina Ranieri (coord.), Direito à Educação, Aspectos Constitucionais, São Paulo, 2009, EDUSP, p. 269.
16
ingresso), condicionada ao mérito, supõe seleção e, por via de conseqüência,
classificação diante de um número finito de vagas.
O que não significa, entretanto, que as diferenças econômicas, sociais e
culturais inerentes à sociedade brasileira, que influenciam a aferição do mérito, devam
ser desconsideradas. A exigência de equidade nesta situação está, pois, ligada ao
princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (CF, art.
206, I). Garanti-las é dever do Estado brasileiro, o que consiste em compromisso legal
internacionalmente assumido pelo País, ex-vi do art. 26, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948), dos arts. 13 e 14 do Pacto dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (1966), e da ratificação da Convenção da UNESCO relativa à luta
contra a discriminação na educação (Decreto nº 63.223 - de 6 de setembro de 1968).
O art. 4º da Convenção da UNESCO, que neste ano de 2010 completa
cinqüenta anos de vigência, exige que os estados-partes se comprometam a formular,
desenvolver e aplicar uma política nacional que vise a promover, por métodos
adaptados às circunstâncias e usos nacionais, a igualdade de oportunidades e
tratamento em matéria de ensino, e principalmente:
“a) tornar obrigatório e gratuito o ensino primário: generalizar e tornar acessível a todos o ensino secundário sob suas diversas formas; tornar igualmente acessível a todos o ensino superior em função das capacidades individuais; assegurar a execução por todos da obrigação escolar prescrita em lei;
b) assegurar em todos os estabelecimentos públicos do mesmo grau um ensino do mesmo nível e condições equivalentes no que diz respeito à qualidade do ensino dado;
c) encorajar e intensificar, por métodos apropriados, educação de pessoas que receberam instrução primária ou que não a terminaram e permitir que continuem seus estudos em função de suas aptidões;
d) assegurar sem discriminação a preparação ao magistério. “
As mesmas obrigações constam do art. 13 do Pacto dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, salientando-se no seu 2º parágrafo, letra “c”, que “a educação de
nível superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade
de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação
progressiva do ensino gratuito.”
É evidente que a atribuição formal do direito de acesso não significa a
possibilidade de exercê-lo em igualdade de condições. A dicotomia igualdade formal/
igualdade material revela que os direitos são os mesmos para todos, mas que nem
17
todos se acham em condições de exercê-lo. Necessário se faz, por conseguinte, criar
condições para que se alcance uma igualdade real de acesso e permanência para todos
aqueles que possam vir a procurar o ensino superior, sendo certo que a igualdade
jurídica é a condição preliminar dessa garantia.
A Constituição Federal aponta tais condições nos mencionados incs. I e II do
art. 208: educação básica obrigatória e gratuita com progressiva universalização do
ensino médio, e garantia de qualidade. Esta é a opção nacional, em termos
educacionais, para todos os níveis de governo (ADCT, art. 60). O que varia entre os
entes federados é o grau de atuação em prol do financiamento, manutenção e
desenvolvimento do ensino fundamental público e do ensino médio.
Dos municípios, a Constituição Federal exige prioritariamente o oferecimento
do ensino fundamental (art. 211 § 2º) e da educação infantil (conforme a decisão do
STF antes mencionada), garantindo-se, ainda, a alfabetização de jovens e adultos, ex-vi
do art. 214, I, da Constituição Federal, nos termos do Plano Nacional de Educação. A
atuação municipal nos outros níveis de ensino (médio e superior), com os recursos
públicos vinculados à educação, far-se-á apenas depois de atendidas plenamente as
necessidades antes mencionadas, e com recursos não vinculados (LDB, art. 11, V).
Dos estados a Constituição exige prioridade no oferecimento do ensino médio,
desde que assegurada a universalização do ensino fundamental (art. 211, § 2º, e LDB,
art.10, VI) em colaboração com os municípios (art. 211, § 4º), inclusive para aqueles
que não tiveram acesso à educação básica na idade própria (art. 208, I da CF, com a
redação da EC no. 59/09). À União cabe ação supletiva e redistributiva para garantir a
equalização de oportunidades educacionais mediante assistência técnica e financeira a
estados e municípios, voltada prioritariamente para a escolaridade obrigatória (art. 208,
I: LDB, art. 9º). Para o atendimento de tais encargos deverão ser utilizados os recursos
vinculados da educação, de acordo com os percentuais fixados no art. 212.
A Lei de Diretrizes e Bases também cuidou da garantia de acesso equânime ao
ensino superior por meio da liberdade de seleção conferida às instituições de ensino, na
forma do art. 44; liberdade limitada, evidentemente, pela noção de igualdade nos critérios
de seleção. Mas não só sob este ângulo. A quebra do modelo universitário (art.45), a
possibilidade de criação de cursos seqüenciais de diferentes níveis de abrangência (art.44,
I), a obrigação de as universidades se articularem com o ensino médio na definição de
18
critérios e normas de seleção e admissão de estudantes (art. 51) são marcos de equidade
no sistema de ensino superior.
Mas o fato é que, apesar de todo o arcabouço constitucional e legal, a equidade
nas condições de oferta e permanência da educação básica está longe de ser alcançada,
especialmente quando consideradas as diferenças entre alunos brancos e alunos negros,
como o demonstram diversas pesquisas.22 A imposição constitucional do critério do
mérito como condição de ingresso e permanência nas universidades públicas, nessas
condições, revela-se, portanto, perversa.
De fato, apesar do muito que se alcançou no campo da educação após a edição
da Constituição de 1988, destacando-se o considerável progresso dos níveis
educacionais da população em geral e dos jovens em particular (o que praticamente
permitiu a universalização do ensino fundamental), o círculo de iniqüidades
educacionais é, ainda, considerável em relação à atual população negra com mais de 17
anos.
O Censo Escolar MEC/INEP 2007, que aponta 56 milhões de matrículas na
Educação Básica, e os dados da Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios – PNAD
de 2007 mostram que se na educação infantil e na pré-escola o percentual de
matrículas de crianças negras e brancas - quando comparado - apresenta diferenças
pouco expressivas (13,8% / 17,6% e 60,6% / 65,3%, respectivamente), o mesmo não
ocorre em relação ao ensino médio: das cerca de 8.369.369 matrículas neste nível de
ensino, cerca de 60% são de alunos brancos e 40% de alunos negros, com acentuada
distorção idade-série neste último caso (78,7%).23
O que chama atenção neste último dado é o fato de a taxa de freqüência e
conclusão dos alunos negros no ensino médio haver decrescido, em números relativos,
quando comparada à do ano de 1987: neste ano, cerca de 21% das matrículas era de
alunos brancos e 9% de alunos negros. A diferença entre uma e outra em 1987 seria,
portanto, de 11%, aproximadamente, enquanto que em 2007, de 20%, apesar da
22 Cf. além dos dados oficiais do Ministério da Educação, dentre outras pesquisas: “Análise hierárquica de resultados – Características de alunos, professores e direitores associados a diferentes desempenhos de estudantes”, Instituto de Protagonismo Jovem e Educação – PROTAGONISTES, com apoio da Fundação Bradesco, 2009. www.fb.org.br/Institucional/ProjetosEducacionais/EducamaisAcao/ Acesso em 18/04/10. “Gestão para o sucesso escolar”, pesquisa realizada pelo Instituto de Protagonismo Jovem e Educação – PROTAGONISTES, com apoio da Fundação Lemman. 2003. www.protagonistes.com.br Acesso em 18/04/10. 23 Cf. www.ibge.gov.br. Acesso em 15/04/10.
19
expansão do ensino médio. Não se pode afirmar, contudo, que a população negra não
tenha se beneficiado dos efeitos daquela expansão, tendo-se em conta o critério de
autodeclaração que orienta tais pesquisas. Segundo o IBGE/PNAD 2007, 49,4% da
população brasileira se autodeclarou branca e 49,7% negra; destes últimos, 42,3% se
autodeclarou pardo e apenas 7,4% preto.
Por outro lado, dados do recente estudo da Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO sobre os primeiros anos da educação
fundamental no Brasil – “Uma Visão dentro de Escolas Primárias” 24 – demonstram,
que apenas 10% dos estudantes no Brasil se encontram hoje em escolas privadas e que
um em cada dois alunos encontra-se matriculado em escolas cuja maioria, ou todos os
alunos, são provenientes de famílias com pais que não haviam completado a educação
primária.
Esses resultados mostram-se tanto mais relevantes quando considerados os
dados relativos aos índices de pobreza na população brasileira. Para o Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA, o qualificativo “pobre” aplica-se a todos os
indivíduos com renda per capta inferior a meio salário mínimo. Em relação ao
conjunto da população autodeclarada negra, 44% dos negros encontram-se nessa
condição, enquanto que os autodeclarados brancos somam 20,5% dos indivíduos em
igual situação. No universo dos “pobres”, 66% são negros e 20,5% brancos.25 Ou seja:
atualmente, em relação ao ensino infantil, à pré-escola e ao ensino fundamental, as
taxas de freqüência escolar por raça/cor e critério sócio-econômico não apontam para a
perpetuação das iniqüidades tradicionalmente presentes na educação brasileira, pelo
contrário.
Não há dúvida de que os resultados positivos alcançados nas últimas duas
décadas advêm do enfrentamento público de questões recorrentes da educação
brasileira, tais como universalização, financiamento, garantias de acesso e
permanência na escola, qualidade do ensino, dentre outras. Também não há dúvida de
que tais avanços repercutirão paulatinamente na melhoria do acesso e permanência no
ensino médio e superior, à medida que a oferta compulsória da educação básica
determinada pela EC 59/09 opere os seus desejáveis e importantes efeitos.
24 Cf. www.unesco.org.br. Acesso em 10/06/08. 25 Cf. www.ipea.gov.br. Acesso em 15/04/10.
20
Por enquanto, em relação ao ensino superior, a taxa de freqüência de indivíduos
com 16 anos, ou mais, encontra-se determinada em 5,6% para brancos e 2,8% para
negros.
2.3- As questões políticas e as considerações externas ao texto
constitucional
É equivocado imaginar que as decisões a serem tomadas no casos das cotas
sejam representativas da jurisprudência habitual da Corte. Como já mencionado, serão
decisões extraordinárias, de natureza política que, além de enfrentarem as dificuldades
inerentes à atividade hermenêutica, serão fortemente influenciadas pela injustiça da
exclusão social e do preconceito racial, religioso, étnico e econômico, a ressaltar a
natureza dinâmica da Constituição, que expressa o seu significado tanto pela evolução
interpretativa como pela pressão dos eventos.
Prova disso foi a realização de audiência pública pela Corte, em março de
2010, por determinação do Ministro Ricardo Lewandowski (relator da ADPF 186-2 e
do RE 5.97.285/RS), que obteve grande repercussão na mídia e vem alimentando
intensa e salutar discussão acerca das quotas raciais, muito além dos limites dos
tribunais e da academia. Durante as exposições, que foram organizadas de modo a
garantir o contraditório entre os defensores da tese da constitucionalidade e os da tese
da inconstitucionalidade das políticas de reserva de vagas por quotas raciais,
confrontaram-se, em breve síntese, os argumentos que se seguem.
De parte dos defensores da constitucionalidade: (a) a Constituição Federal de
1988 já prevê, em diversos dispositivos, quotas para deficientes, mulheres e idosos,
visando não só a inclusão de minorias na vida social, econômica e política, mas
também assegurar a igualdade substancial numa sociedade plural e diversificada; (b) as
quotas raciais consistem em políticas de justiça compensatórias que visam fazer frente
aos efeitos nefastos da escravidão, ainda não superados; (c) as quotas raciais não
devem ser entendidas pela lógica indenizatória, mas pela da redução de desigualdades;
(d) as quotas raciais são exigência constitucional implícitas, sendo inconstitucionais os
processos seletivos excludentes; (e) no campo da educação, os notáveis avanços
observados no País desde a edição da atual Constituição, tanto em termos quantitativos
como qualitativos, não favoreceram os negros que, comprovadamente, permanecem
menos tempo na escola, mantendo-se, por esta e outras razões, a desigualdade
educacional, não obstante a universalização e a compulsoriedade da educação
21
fundamental (recentemente ampliada para a educação média pela EC 59/09); (f)
apesar dos auto-declarados negros e pardos comporem, hoje, 56% da população
brasileira, nota-se uma renitente estabilidade da desigualdade racial não explicável,
unicamente, pelos efeitos inerciais do passado e nem apenas em face de condições
socioeconômicas; (g) a permanente exclusão dos negros na sociedade vem desafiando
os limites das políticas sociais clássicas, o que justificaria a adoção das quotas raciais;
(h) é necessária a diversidade para a construção do saber na instituição universitária.
De parte dos defensores da inconstitucionalidade: (a) do ponto de vista
biológico não há raças; (b) no Brasil não se justifica, cientificamente, o uso da cor da
pele como critério de distinção legal haja vistas à permanente e comprovada
miscigenação entre brancos, negros e índios; (c) as quotas raciais incentivam e
potencializam a divisão da sociedade em brancos e negros, o que levaria à racialização
do Brasil; (d) as quotas propiciam a segregação dos mecanismos de entrada na
universidade: um mais rigoroso para brancos e orientais, outro menos rigoroso para
negros, com desvalorização destes últimos no conjunto do alunado; (e) é falsa a
identificação entre ascendência africana e inferioridade intelectual; (f) as quotas não
devem ser raciais, mas sócio-econômicas, baseadas em critérios de hipossuficiência,
tal como ocorre nas situações de isenção de taxa de vestibular; (g) as quotas não
podem monopolizar a discussão, deixando de lado a questão mais geral da
desigualdade educacional, sendo imprescindível identificar e analisar a natureza dos
obstáculos que impedem a escolarização adequada dos negros; (f) quebra do princípio
da igualdade e do da dignidade humana; (h) quebra do princípio da proporcionalidade.
Como se pode notar, a clivagem dos argumentos mais atravessa linhas
ideológicas, filosóficas e políticas que científicas ou jurídicas. É por esta razão que os
termos “raça” e “quotas raciais” ora são empregados em relação à cor da pele, ora a
etnias, ora a grupos da população, prevalecendo, porém, tanto o entendimento de
“raça” como o de “quotas raciais” como indicativos ou relativos a indivíduos de cor
negra. Nos atuais debates este sentido é ideologicamente mais forte que o científico
(que proclama a existência de uma única raça, a humana) ou o econômico (que
proclama a hipossuficiencia econômica como critério geral de definição de ações
afirmativas). Não se pode deixa de considerar, no encaminhamento das discussões
naquela direção, o papel decisivo das organizações e instituições da sociedade civil na
22
expansão dos limites das ações afirmativas, em benefício da implantação das quotas
para negros.
De forma sintética, pode-se dizer, portanto, que a tipologia das justificações
para a adoção das quotas raciais no Brasil comporta a reparação, a justiça distributiva e
a diversidade. Grosso modo, os mesmos argumentos foram empregados nos diferentes
contextos sociais da Índia e dos Estados Unidos, exemplos paradigmáticos de políticas
de reserva de vagas no ensino superior, tendo sido o modelo americano, em particular,
o grande influenciador da ação afirmativa no Brasil.
Na Índia, as políticas afirmativas foram adotadas ainda sob o domínio colonial
inglês, sendo posteriormente incorporadas à Constituição de 1947. No contexto
indiano, conforme Feres Júnior, os quatro princípios de justificação dessas políticas
são: (a) a compensação por injustiças cometidas no passado contra determinado grupo
social; (b) proteção dos segmentos mais fracos da comunidade e dos intocáveis em
particular; (c) igualdade proporcional, considerada a dimensão relativa de cada grupo
ou casta na sociedade; (d) justiça social em relação a desigualdades específicas de
determinados grupos e, portanto, passíveis de ser objeto de políticas públicas
específicas.26 Note-se, portanto, que as políticas, desde o início, não se restringiram a
um determinado grupo, focando antes a proteção dos hipossuficientes nos diversos
grupos sociais que compõem a multifacetada população indiana.
No caso americano, as quotas para negros dominaram as políticas da primeira
metade da década de 1960, sob as justificativas da reparação e justiça sociais. Mas se
o argumento da reparação foi paulatinamente ampliado no correr dos anos, de forma a
abranger qualquer grupo ou minoria discriminada por raça, credo ou origem nacional,
o mesmo não ocorreu com o argumento da justiça social. A partir da década de 1970 e
ao longo das décadas de 1980 e 1990, nota-se uso cada vez mais restrito dessas
políticas sob o argumento de que as ações afirmativas no ensino superior, concebidas
para ter vigência limitada no tempo, já teriam alcançado os efeitos esperados, eis que
negros, mulheres e outras minorias já gozariam de condição evidentemente melhor na
sociedade americana, comparativamente à sua situação no início do emprego de tais
políticas. Desde então, a diversidade na sala de aula tem sido o principal argumento
das ações afirmativas no ensino superior, tal como reconhecido pela Suprema Corte
26 Cf. João Feres Júnior, Comparando justificativas das políticas de ação afirmativa: EUA e Brasil. Acesso em
23
americana. Diversidade de aptidões individuais, de origem social e geográfica,
combinada com o critério de raça e etnia, representa hoje a principal justifica das
políticas de identidade naquele país, diluindo a idéia de reparação, como também
aponta Feres Júnior27, além de Joaquim B. Barbosa Gomes, antes citado.
3- Antecedentes legais e ações afirmativas existentes nas universidades
públicas
Atos normativos e projetos de lei em matéria de ações afirmativas voltadas ao
ingresso no ensino superior não são novidade no País. De modo geral, a legislação e os
projetos de lei sobre a matéria adotam variáveis como renda individual ou familiar,
tempo de permanência na escola pública, raça, etnia, cor da pele ou local de residência,
para estabelecer o discrimen.
Outros diversos atos legislativos e normativos disciplinam, direta ou
indiretamente, matéria conexa, sendo a idéia de diversidade ou de igualdade racial
marcada, também nesses casos, como indicativa, ou relativa, a indivíduos de cor negra,
a denotar forte preocupação com o tema da inclusão.
No âmbito federal, por exemplo, a Lei no. 10.558/2002 (projeto de autoria de
Fernando Henrique Cardoso) criou o Programa de Diversidade na Universidade; a Lei
10.678/2003 criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Social;
a Lei no. 10.678/2003 tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras
nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficial e particular.
Mais especificamente, sobreleva indicar a lei no. 7.437/1985, que inclui, entre
as contravenções penais, a pratica de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de
sexo ou de estado civil, dando nova redação à Lei 1.390, de 3 de julho de 1951 (Lei
Afonso Arinos), e a lei no. 7.716/1989, que define crimes resultantes de preconceito
de raça ou de cor, alterada pela lei no. 9.459/1997.
Dentre os atos normativos, veja-se, v.g., o Decreto no. 4228/2002 que instituiu,
na Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas.
Decreto nº 4886/2003 instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial –
27 Op. cit., p. 10.
24
PNIPIR; o Decreto nº 6872/2009 aprovou o Plano Nacional de Promoção da Igualdade
Racial – PLANAPIR.
No Estado de São Paulo, podemos citar, dentre outras, a lei nº. 5.466/1986, que
dispõe sobre o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra; a
Lei nº. 5.680/1987, que institui o mês da consciência negra, a ser comemorado
anualmente em novembro; a lei nº. 7.576/1991 criou o Conselho Estadual de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana; a lei nº. 7.968/1992, que instituiu o Dia da
Consciência Negra; a lei nº. 9.156/1995 oficializou o Hino à Negritude; a lei nº.
9.757/1997 dispõe sobre a legitimação de posse de terras públicas estaduais dos
remanescentes das comunidades quilombolas, em atendimento ao artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias- ADCT; e a lei nº. 10.237/1999, que institui
política para a superação da discriminação racial no Estado.
Há também que se fazer referência ao Decreto nº. 34.117/1991, que dispõe
sobre o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra; o decreto
nº. 36.696/1993, que criou a Delegacia Especializada de Crimes Raciais; o Decreto no.
48.328/2003, que institui, no âmbito da Administração Pública do Estado de São
Paulo, a política de ações afirmativas para afro-descendentes. Em 2003, o Decreto nº.
49.602 criou o sistema de pontuação acrescida para afro-descendentes e egressos do
ensino superior público para as Escolas Técnicas Estaduais - ETECs e para as
Faculdades de Tecnologia – FATECs, do Centro Estadual de Educação Paula Souza.
Estão em andamento atualmente no Congresso Nacional os seguintes projetos
relativos a ações afirmativas e quotas raciais:
(a) PLC 180 de 2008 (Projeto de Lei da Câmara), Autor: Deputada Nice Lobão.
Ementa: Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e estaduais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências.
Explicação: reserva 50% das vagas para serem preenchidas mediante seleção de alunos
nos cursos de ensino médio – cota universitária.
(b) PLS 479 de 2008 (Projeto de Lei do Senado). Ementa: Reserva de 20% das
vagas dos vestibulares para os cursos de graduação das universidades públicas federais
e estaduais para estudantes oriundos de família com renda per capita familiar de até um
salário mínimo e meio.
25
A idéia de reserva de vagas no ensino superior é antiga no Brasil. No séc. XIX,
embora desde 1808 a admissão de candidatos em escolas superiores estivesse
condicionada à aprovação em “exames preparatórios”, a partir de 1837 os alunos
egressos do recém criado Colégio D. Pedro II obtiveram o privilégio da matrícula
automática naquelas instituições, independentemente da realização dos referidos
exames. Proclamada a República, Benjamin Constant, Ministro da Instrução Pública,
Correios e Telégrafos, estendeu o privilégio da matrícula automática a todos os
egressos de colégios estaduais organizados nos moldes do Ginásio Nacional (antigo
Colégio D. Pedro II), por via do Decreto no. 981, de 08/11/1890. Em 1911, com a
Reforma Rivadávia (Lei Orgânica do Ensino Superior e Fundamental da República,
Decreto no. 8.659) o privilégio foi extinto devido à obrigatoriedade legal de realização
de exame vestibular.
Durante o período militar, a Lei 5.465/68 (conhecida pejorativamente como “lei
do boi”) instituiu reserva de vagas (50%) para candidatos agricultores ou filhos destes,
proprietários ou não de terras, que residissem com suas famílias na zona rural, e 30%
(trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que
residissem em cidades ou vilas que não possuíssem estabelecimentos de ensino médio.
A lei, vigente até o Governo do presidente José Sarney, beneficiou alunos mais
favorecidos economicamente do que a população de menor renda.
Mais recentemente, o Poder Judiciário do Ceará, por via de decisão do o MM.
Juízo da 6a Vara Federal, em sede de ação civil pública, determinou, em 15 de
setembro de 1999, que a Universidade Federal do Estado do Ceará, em virtude do
princípio da isonomia, reservasse cinqüenta por cento (50%) das vagas de todos os
seus cursos para estudantes egressos da rede pública de ensino, até ulterior deliberação.
Desde 2001, diversas universidades públicas em todo o País vêm adotando
ações afirmativas, mediante reserva de vagas em seus vestibulares para candidatos que
atendam às condições especificadas pelas próprias instituições, mercê da autonomia
que a Constituição Federal lhes confere (art. 207) e a LDB lhes assegura (arts. 52 e
seguintes). 28
28 O direito de recrutamento de alunos na forma estabelecida pela própria universidade, aliás, é prerrogativa de autonomia universitária reconhecida legalmente desde a instituição das primeiras universidades ocidentais, já no séc. XIII. Cf. a propósito, Nina Ranieri, Autonomia Universitária, são Paulo, EDUSP, 1994, pp. 41 e seguintes.
26
De acordo com os resultados da pesquisa DIPES/MEC 2009, dentre as 59
instituições participantes foram identificados os seguintes critérios conformadores de
ações afirmativas:
a) étnico/racial – empregado por 8 universidades federais, 8
universidades estaduais e 8 institutos federais;
b) renda – empregado por 11 universidades federais, 14 universidades
estaduais e 18 institutos federais;
c) portadores de necessidades especiais – 2 universidades federais, 6
universidades estaduais e 7 institutos federais;
d) minorias (quilombolas, assentados da reforma agrária etc.) –
nenhuma universidade federal, 3 universidades estaduais e 4
institutos federais;
e) outros – 1 universidade federal, 2 universidades estaduais e 3
institutos federais. 29
Ainda segundo o MEC, nas 51 instituições participantes do Sistema de Seleção
Unificada – SiSU (Portaria Normativa nº 02/ 2010) 30 verificaram-se 64 diferentes
opções de ação afirmativa.
No Estado de São Paulo, em 2004, foi implantado na Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP, o primeiro programa brasileiro de ação afirmativa sem
utilização de cotas. Trata-se do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social –
Paais, por via do qual os alunos egressos da rede pública optantes do programa
recebem pontuação a maior na nota final do vestibular, proporcionalmente ao seu
desempenho na prova. Dentre estes, os candidatos autodeclarados negros, pardos e
indígenas recebem mais dez pontos na nota final.
Ações afirmativas com fator racial para egressos da rede pública, e não com
reserva de vagas, desde então, têm sido o sentido das políticas públicas paulistas de
inclusão. As ETECs e as FATECs, do Centro Estadual de Educação Paula Souza, já 29 Cf. Maria Paula Dallari Bucci, Igualdade e Autonomia, Apresentação do Ministério da Educação na Audiência Pública sobre a Constitucionalidade de Políticas de Ação Afirmativa de Acesso ao Ensino Superior – (versão sintética) na Audiência Pública realizada pelo STF, em 03 março de 2010, por determinação do Ministro Ricardo Lewandowski (relator da ADPF 186-2 e do RE 5.97.285/RS). 30 Esse conjunto compreende 26 institutos federais, 23 universidades federais, 1 universidade estadual e a Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE.
27
mencionadas, pautam-se pelo mesmo critério, assim como as demais universidades
públicas paulistas. A Universidade de São Paulo, por intermédio do “Inclusp”
combina inclusão social e mérito acadêmico mediante três modalidades de bonificação
(universal: até 3% sobre a nota do vestibular; até 9% da nota obtida pelo candidato no
ENEM; e mais 12% por via do “Pasusp”). A Universidade Estadual “Júlio de
Mesquita Filho” – UNESP oferece, desde 2007, cursos vestibulares gratuitos para
estudantes egressos de escolas públicas, com taxa de alta aprovação em instituições de
ensino superior públicas e privadas.
Como se pode notar, as cotas raciais não são a única modalidade de ação
afirmativa empregada pelas universidades públicas. A diversidade de alternativas e
modelos revela que as instituições vêm confrontando problemas sociais concretos e
desafios contemporâneos de forma heterogênea, consoante as necessidades e as
circunstâncias locais; a referência da autonomia universitária, aliás, não pode ser outra
senão o benefício da sociedade.
Não se pode esquecer, contudo, que o papel social da universidade, no nosso
sistema jurídico, consiste na geração, sistematização e difusão de conhecimentos, com
o objetivo de formar indivíduos que, além do desenvolvimento individual e do preparo
profissional, contribuam para o progresso da sociedade a que pertençam e a ela se
integrem participativamente. É desta perspectiva que o ensino superior se integra ao
comando do art. 205 da Constituição Federal. É desta perspectiva que também deve
ser vista a seleção de ingresso pelo mérito.
4- Considerações finais
Não é plausível imaginar que as cotas raciais resolvam o gap educacional entre
brancos e negros, seja no nível superior seja na educação básica. Nem o paternalismo
nem o protecionismo e muito menos a demagogia levarão à inclusão educacional
equânime, em benefício do indivíduo, da sociedade e do Estado e isto envolve não
apenas os negros, mas a população desfavorecida educacional e economicamente, em
sua totalidade. É necessário enfrentar diversas variáveis sociais, com investimentos
maciços na qualidade da educação, para que a lógica democrática da seleção pelo
mérito venha a ser alcançada. Não é razoável supor que tais condições venham a ser
alcançadas no espaço de uma geração.
28
Para a ciência jurídica e para o juiz em particular, qualquer caso é um
acontecimento problemático que reclama solução; e como ocorre em relação a todos os
problemas, a solução supõe a compreensão do caso. Casos críticos são o motor que
impulsiona o intérprete e põem o direito em movimento.
No Direito, porém, a compreensão do caso é dificultada pela oposição que se
estabelece entre o “dever ser” e a mutabilidade do sentido e do valor das regras
jurídicas, devido à dinâmica social.
Neutralizar tal oposição exige do intérprete a apreensão da lógica social da
regra jurídica, considerados os efeitos que potencialmente pode produzir, visando à
identificação dos parâmetros sociais que incidem sobre o caso. Desde esse ponto de
vista, a operação mental que envolve compreensão de sentido e valor num dado caso
apresenta natureza objetiva e não subjetiva. 31
Pode ocorrer, contudo, que o interprete venha a se deparar com situações em
que se verá sem outros parâmetros senão os que ele mesmo possa se dar “(...) seja
porque se trate de um novo tipo de ação e não haja um acordo sobre o seu sentido, seja
porque existam divergências sobre os valores.” 32
Não é o que se verifica em relação à ADPF 186-2, do RE 5.97.285/RS e da
ADIn 3.197-RJ, como demonstrado na Audiência Pública de no. 5/2010, realizada pelo
STF.
Nesses casos, o intérprete encontra parâmetros sociais produzidos por reflexão
madura a respeito dos efeitos que as cotas educacionais podem potencialmente
produzir, resultado de pesquisas no campo da educação, do direito, da psicologia e da
antropologia, e na aceitação geral das discriminações positivas como forma de induzir
a igualdade de oportunidades, o que de resto se verificou em relação a portadores de
deficiências físicas e mulheres, em diversas situações.33
Ademais, do ponto de vista jurídico, em se tratando de cotas educacionais, não
se está diante de um direito novo, mas de um desdobramento do direito à educação.
Cuida-se, mais especificamente, de um direito na educação, direito de natureza
31 Cf. G. Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, Madrid, Editorial Trotta, 2008:136/7. 32 Id. Ib. 33 Veja-se, por todos, Maria Letícia Puglisi Munhoz, Diversidade, relações raciais e educação em direitos humanos, dissertação de mestrado sob orientação da Profa. Dra. Gislene Aparecida dos Santos, apresentada na Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2009.
29
instrumental, voltado, nesta hipótese, a garantir a igualdade de acesso e permanência
na escola, que se realiza por intermédio de ações e abstenções de parte do Estado,
submetido ao regime das liberdades e garantias, o que significa dizer que é direito
dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
O direito à educação é um direito a prestações positivas materiais, de custo
social. Seus desdobramentos, v.g., a igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola; a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; o
ensino fundamental na língua materna das diversas comunidades indígenas; o
atendimento educacional especializado aos portadores de deficiências; a oferta de
ensino noturno; o atendimento ao educando no ensino fundamental, dentre outros
previstos na legislação brasileira, são essencialmente direitos de promoção e proteção,
realizados mediante ações positivas.
É por todas essas razões e pelos fundamentos jurídicos aqui expostos que
revejo, parcialmente, a minha posição anterior, de extração mais positivista que
principiológica, contrária ao sistema de cotas educacionais.34
Quero ressalvar, contudo, neste reposicionamento, a minha radical
contrariedade em relação ao critério racial como elemento determinador das ações
afirmativas. A razão é simples: apesar da inegável desigualdade social entre brancos e
negros e da real existência de preconceito em relação aos indivíduos de cor negra, não
podem ser negados os benefícios das ações afirmativas a todos aqueles que se
encontrem em situação de desvantagem educacional, devido a causas
socioeconômicas, independentemente da cor, etnia, procedência, religião, cultura ou
local de moradia. O direito à educação é universal, assim como os direitos na
educação, as cotas aqui incluídas.
A solução para o problema da igualdade de acesso e permanência no ensino
superior estaria, a meu ver, no emprego de cotas de natureza socioeconômica,
numericamente determinadas pelo percentual de alunos egressos do ensino médio,
público e privado, municipal ou regionalmente considerado, que se enquadrassem nas
condições exigidas. As cotas assim fixadas resultariam na criação de vagas adicionais
34 Aspectos da reserva de vagas nas universidades públicas. In Boletim de Direito Administrativo, São Paulo: Ed. NDJ, n° 3, Ano XVIII, mar-2002, pp.183-185. 3.4.18. A reserva de vagas nas universidades públicas. In Boletim de Direito Administrativo, São Paulo: Ed. NDJ, nº 9, set-2001, pp. 699 -701.
30
às vagas regulares, sem quebra do princípio da igualdade, da proporcionalidade ou da
razoabilidade, em respeito à mais ampla realização do principio da solidariedade.
Outra alternativa é a adoção da pontuação acrescida, conforme a situação do
candidato, como empregada nos diversos modelos desenvolvidos no Estado de São
Paulo, com ou sem utilização de cotas mediante vagas adicionais.
Essas são formas de inclusão mais equânimes, no caso brasileiro, que o das
cotas meramente raciais, tendo em vista o alcance global da democratização do ensino.
31
Como é evidente,
________________________________________________________________
* Nina Beatriz Stocco Ranieri, é Professora Associada do Departamento de Direito do Estado da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Coordenadora da Cátedera UNESCO de Direito à
Educação da mesma Faculdade. É autora de diversas obras versando sobre direito à educação e direito
educacional e membro do Conselho Estadual de Educação e atual Secretária Adjunta de Ensino Superior
do Estado de São Paulo.