HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... ·...

385
HEGEMONIA ÀS AVESSAS

Transcript of HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... ·...

Page 1: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

HEGEMONIA ÀS AVESSAS

HEGEMONIA_miolo.indd 1HEGEMONIA_miolo.indd 1 9/8/10 4:27:30 PM9/8/10 4:27:30 PM

Page 2: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

NOTA DA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Para aprimorar a experiência da leitura digital, optamos por extrair desta ver-são eletrônica as páginas em branco que intercalavam os capítulos, índices etc. na versão impressa do livro. Por este motivo, é possível que o leitor perce-ba saltos na numeração das páginas. O conteúdo original do livro se mantém integralmente reproduzido.

Page 3: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

HEGEMONIA ÀS AVESSAS

FRANCISCO DE OLIVEIRA, RUY BRAGA e CIBELE RIZEK (orgs.)

E C O N O M I A , P O L Í T I C A E C U L T U R A N A E R A D A S E R V I D Ã O F I N A N C E I R A

HEGEMONIA_miolo.indd 3HEGEMONIA_miolo.indd 3 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 4: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Sobre HEGEMONIA ÀS AVESSAS

De um ângulo crítico, os trabalhos enfeixados neste volume buscam dar conta de uma pluralidade de assuntos contemporâneos. Da experiência representada pelos mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva à frente do governo brasileiro ao significado da crise financeira de 2007-2008 para o futuro do capitalismo, o livro apresenta um conjunto de reflexões úteis para os que desejam não apenas compreender o mundo, como transformá-lo. As dificuldades postas para o entendimento da atualidade não são esquivadas pelos autores. A perplexidade diante de políticas adotadas por forças cuja vitória foi tão aguardada nos países aqui analisados, Brasil e África do Sul, assim como diante de um contexto internacional em intensa transformação, não é varrida para baixo do tapete. Ao contrário, ela impulsiona um movimento de procura dos melhores instrumentos para dar conta das contradições do real. Categorias sugeridas no pensamento de Karl Marx estão entre eles. Mostram, assim, que as hipóteses de Marx ainda ajudam a desembaraçar fios de alta tensão presentes no começo do século XXI. A obra de Antonio Gramsci, em particular, que se encontra referida no título deste livro, é um exemplo da altura capaz de alcançar um empreendimento in-telectual inspirado em Marx. Em busca da totalidade, a questão da hegemonia, cuja elucidação abre as portas para uma percepção do sentido geral do período, é vista neste livro sob ângulos tão diversos quanto o das mudanças no campo do trabalho, da arquitetura e da “estrutura de sentimentos”, em uma ousadia temática digna da tarefa proposta. Se ao final muitas indagações persistem, resta a certeza de que o pro-jeto crítico permite pesquisar as respostas. Sorte a do país que pode contar com ele.

André Singer

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência.”

Walter Benjamin

Page 5: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

H363

Hegemonia às avessas : economia, política e cultura na era da servidão finan-ceira / Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek, (orgs.). - São Paulo : Boitempo, 2010. -(Estado de Sítio)

Inclui bibliografiaISBN 978-85-7559-164-2

1. Brasil - Política e governo - 2003 -. 2. Brasil - Condições econômicas. 3. Brasil - Condições sociais. 4. Capitalismo. 5. Ciência política. I. Oliveira, Francisco de, 1932-. II. Braga, Ruy. III. Rizek, Cibele Saliba, 1950-. IV. Série.

10-4292. CDD: 320.981 CDU: 32(81)

27.08.10 03.09.10 021226

Copyright desta edição © Boitempo Editorial, 2010

Coordenação editorial Ivana Jinkings

Editora-assistente Bibiana Leme

Assistência editorial Elisa Andrade Buzzo e Gustavo Assano

Preparação Mariana Echalar

Revisão Alessandro de Paula e Ana Lotufo

Capa Acqua Estúdio Gráfico sobre foto de Lula e Nelson Mandela em Maputo,

Moçambique, 16/10/2008. © Ricardo Stuckert/PR.

Diagramação Acqua Estúdio Gráfico

Produção Paula Pires

É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquerparte deste livro sem a expressa autorização da editora.

Esta edição, que contou com o auxílio fi nanceiro da CAPES – Brasil,atende às normas do acordo ortográfi co em vigor desde janeiro de 2009.

1a edição: setembro de 2010

BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.

Rua Pereira Leite, 37305442-000 São Paulo SP

Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869editor@boitempoeditorial.com.brwww.boitempoeditorial.com.br

HEGEMONIA_miolo.indd 4HEGEMONIA_miolo.indd 4 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 6: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................ 7Ruy Braga

Homenagem ............................................................................................ 15Ruy Braga

HEGEMONIA ÀS AVESSAS: DECIFRA-ME OU TE DEVORO!1. Hegemonia às avessas ...................................................................... 21

Francisco de Oliveira A hegemonia da pequena política .................................................... 29

Carlos Nelson Coutinho

TRABALHO E CAPITALISMO, ANTES E APÓS O DESMANCHE2. O trabalho precário nos Estados Unidos .......................................... 47

Arne L. Kalleberg Trabalho e regresso: entre desregulação e re-regulação ...................... 61

Leonardo Mello e Silva Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho:

elementos para uma comparação história entre o Oriente socialista e o Ocidente capitalista ........................................ 93

Yves Cohen Capitalismo fi nanceiro, estado de emergência econômico

e hegemonia às avessas no Brasil ...................................................... 109Leda Maria Paulani

CULTURA, CIDADE E SERVIDÃO FINANCEIRA3. A cultura da servidão fi nanceira: uma leitura às avessas .................... 137

Maria Elisa Cevasco

HEGEMONIA_miolo.indd 5HEGEMONIA_miolo.indd 5 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 7: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Moedas e moedeiros (e um pintor na contramão) ............................ 149Luiz Renato Martins

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira ........................... 161Pedro Fiori Arantes

Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratizaçãodas cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas” ......... 185

João Sette Whitaker Ferreira

Verde, amarelo, azul e branco: o fetiche de uma mercadoria ou seu segredo .................................................................................. 215

Cibele Rizek

AMÉRICA LATINA E ÁFRICA DO SUL NA ENCRUZILHADA4. A teoria da conjuntura e a crise contemporânea ............................... 237

Carlos Eduardo Martins

Construindo a hegemonia na América Latina: democracia e livre mercado, associações empresariais e sistema fi nanceiro .................... 255

Ary Cesar Minella

Que tipo de liderança é Chávez? ...................................................... 287Gilberto Maringoni

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul .... 299Patrick Bond

Do apartheid ao neoliberalismo ....................................................... 319José Luís Cabaço

O SOCIALISMO APÓS O DESMANCHE5. Reencontrando o comunismo da emancipação ................................ 339

Álvaro Bianchi

Política como práxis: Hegemonia às avessas, um exercício teórico .... 351Wolfgang Leo Maar

O avesso do avesso .......................................................................... 369Francisco de Oliveira

Bibliografi a ............................................................................................. 377

Sobre os autores ........................................................................................ 395

HEGEMONIA_miolo.indd 6HEGEMONIA_miolo.indd 6 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 8: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

APRESENTAÇÃO

“Decifra-me ou te devoro!”, ameaçava a Esfinge os viajantes amedron-tados, antes de recitar o mais famoso enigma da história. Na verdade, a hegemonia “lulista” representa nossa incontornável esfinge barbuda. Este livro origina-se de uma “provocação gramsciana” feita por Chico de Olivei-ra no artigo “Hegemonia às avessas”1 – que serviu de ponto de partida para o seminário homônimo organizado pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Universidade de São Paulo (Cenedic)2, do qual resultou este livro –, no intuito de esboçar uma possível solução para o enigma. Trata-se de empreendimento de grande monta: perscrutar os fundamentos econô-micos, políticos e culturais dessa forma sui generis de dominação social que se enraizou no país, alcançando, em um mundo capitalista marcado pela crise econômica, pela guerra, pelo colapso ambiental e pela carência de exemplos políticos emuladores, inéditos prestígio e admiração internacio-nais. “É o homem”, respondeu Édipo. “Ele é o cara!”, exclamou Obama, admirado. E o que diria Chico?

Em seu artigo, Chico nos alertava de início para os efeitos politicamen-te regressivos da hegemonia lulista: ao absorver “transformisticamente”3 as

1 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.2 Seminário internacional “Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da

servidão financeira” (USP, 21 a 24 de outubro de 2008). Esse even to não teria acon-tecido sem o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura e do Pro grama de Pós-Gra-dua ção em Sociologia da FFLCH da USP; do Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Científico e Tecnológico (CNPq); e de Néia Almeida, secretária do Cenedic.

3 Sinteticamente, Gramsci chamou de “transformismo” o processo de absorção pelas classes dominantes de elementos ativos ou grupos inteiros, tanto dos grupos aliados como dos adversários.

HEGEMONIA_miolo.indd 7HEGEMONIA_miolo.indd 7 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 9: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

8 • Hegemonia às avessas

forças sociais antagônicas no aparato de Estado, desmobilizando as classes subalternas e os movimentos sociais, o governo Lula teria esvaziado todo o conteúdo crítico presente na longa “era da invenção” dos anos 1970--1980, tornando a política partidária praticamente irrelevante para a trans-formação social. A medida dessa desmobilização poderia ser apreendida pe lo escasso interesse depositado pelos eleitores no pleito presidencial de 2006. O efeito social regressivo consistiria exatamente nisto: sob Lula, a po lítica afastou-se dos embates hegemônicos travados pelas classes sociais antagônicas, refugiando-se na sonolenta e desinteressante rotina dos gabi-netes, ainda que frequentados habitualmente por escândalos de corrupção.

A partir daí, Chico adiantou sua conjectura: no momento em que a “di-reção intelectual e moral” da sociedade brasileira parecia deslocar-se no sentido das classes subalternas, tendo no comando do aparato de Estado a bu rocracia sindical oriunda do “novo sindicalismo”, a ordem burguesa mostrava-se mais robusta do que nunca. A esse curioso fenômeno em que parte “dos de baixo” dirige o Estado por intermédio do programa “dos de cima” Chico chamou “hegemonia às avessas”. Um paralelo interessante poderia ser encontrado na experiência histórica da superação do apartheid. Daí uma sessão do seminário ter sido dedicada à África do Sul. “Ok, nós temos o Estado, mas onde está o poder?”, costumava provocar o sociólogo Patrick Bond durante o período em que trabalhou como conselheiro no gabinete de Nelson Mandela, nos primeiros anos de governo do Congres-so Nacional Africano (CNA). À procura de um poder fugidio, a vitória do CNA sobre o apartheid congelou o mito do poder popular apoiado pelo advento de novas classes médias negras, enquanto legitimava as relações de exploração características do capitalismo mais desavergonhado4. Os mo-çambicanos que o digam...

Eis a tal “hegemonia às avessas”: vitórias políticas, intelectuais e morais “dos de baixo” fortalecem dialeticamente as relações sociais de exploração em benefício “dos de cima”. No Brasil, décadas de luta contra a desigual-dade e por uma sociedade alternativa à capitalista desaguaram na incon-testável vitória lulista de 2002. Quase que imediatamente, o governo Lula racionalizou, unificou e ampliou o programa de distribuição de renda conhecido como Bolsa Família, transformando a luta social contra a misé-

4 Ver Patrick Bond, Elite transition: from apartheid to neoliberalism in South Africa (Londres, Pluto Press, 2000).

HEGEMONIA_miolo.indd 8HEGEMONIA_miolo.indd 8 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 10: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Apresentação • 9

ria e a desigualdade em um problema de gestão das políticas públicas. Chi-co diz que Lula instrumentalizou a pobreza ao transformá-la em uma questão administrativa. O programa Bolsa Família garantiu a maciça ade-são dos setores mais depauperados das classes subalternas brasileiras ao projeto do governo. Jogando no campo de seu adversário eleitoral, isto é, no campo da instrumentalização da pobreza e da gestão burocrática dos conflitos sociais, o governo Lula soube derrotar o Partido da Social Demo-cracia Brasileira (PSDB), mas ao preço da despolitização generalizada das lutas sociais.

Já tendo refletido a respeito do “transformismo” da burocracia sindical lulista em seu influente ensaio “O ornitorrinco”5, não foi difícil para Chico perceber o “sequestro” dos movimentos sociais pelo “Estado integral” brasi-leiro – os fundos de pensão das estatais aí incluídos. Ao praticamente desa-parecerem da pauta política reivindicativa nacional, com exceção dos valen-tes acampados do MST, os movimentos sociais, tendo o outrora poderoso movimento sindical “cutista” na vanguarda (do atraso), salgaram o terreno para uma oposição de esquerda autêntica ao governo, quase anulando o an-tagonista histórico e encurralando os conflitos sociais no plano cinzento da política dos gabinetes6.

A “hegemonia às avessas” não estaria preparando igualmente uma nação sem qualquer sofisticação política, como diria Weber sobre Bismarck, total-mente subsumida à hegemonia da pequena política, como bem nos lem-brou Carlos Nelson Coutinho? Afinal, se, como diz Chico, parece que atualmente os dominados dominam, os sindicalistas se transformaram em capitalistas, os petistas controlam o parlamento, a economia está definiti-vamente blindada contra a crise mundial, trata-se, antes de mais nada, de um conjunto de aparências “necessárias”, pois, para o marxismo crítico, a

5 Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003).

6 Não nos esqueçamos do “legado de Bismarck”, analisado por Weber em um de seus dois “Colóquios de Lauenstein”, intitulado “Parlamentarismo e governo numa Ale-manha reconstruída”. Segundo o grande sociólogo de Heidelberg, Bismarck teria deixado atrás de si uma nação sem qualquer vontade política própria, acostumada à ideia de que o grande estadista ao leme tomaria as decisões políticas necessárias. Ver Max Weber, “Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída: uma con-tribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária” (São Paulo, Abril, 1980, Os Pensadores), p. 1-85.

HEGEMONIA_miolo.indd 9HEGEMONIA_miolo.indd 9 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 11: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

10 • Hegemonia às avessas

aparência não é simplesmente a face espúria da essência, seu “outro” fictício e enganoso – existe sempre uma íntima relação dialética entre aparência e essência. Os capítulos que formam este livro buscam, cada um a seu modo, contribuir para a compreensão dessa relação.

De minha parte, confesso que continuo me sentindo bastante atraído pela hipótese da “revolução passiva à brasileira”, que, juntamente com Ál-varo Bianchi, esboçamos quando da primeira eleição de Lula7. Naquela ocasião, avançamos duas conjecturas:

1) O governo Lula não seria simplesmente mais um exemplo “neoliberal”, à la Fernando Collor ou FHC, exatamente porque, no intuito de constituir certas margens de consentimento popular, ele deveria responder a determinadas de-mandas represadas dos movimentos sociais. Empregamos então a noção – um tanto quanto frouxa, admitamos – de “social-liberalismo” para tentar dar conta da ênfase nas políticas de distribuição de renda, ainda que plasmadas pela re-produção da ortodoxia rentista. 2) O vínculo orgânico “transformista” da alta burocracia sindical com os fundos de pensão poderia não ser suficiente para gerar uma “nova classe”, como disse Chico, mas seguramente pavimentaria o caminho sem volta do “novo sindica-lismo” na direção do regime de acumulação financeiro globalizado. Apostáva-mos que essa via liquidaria completamente qualquer possibilidade de retomada da defesa dos interesses históricos das classes subalternas brasileiras8. Chama-mos esse processo de “financeirização da burocracia sindical”.

Sei que Carlos Nelson Coutinho, nosso principal interlocutor ao longo dessa desafiadora odisseia gramsciana, é cético em relação à hipótese da “revolução passiva à brasileira” como critério interpretativo do atual mo-mento hegemônico. Ele prefere falar em “hegemonia da pequena política” para destacar a natureza do lulismo: uma forma de hegemonia mais afinada com as características principais do neoliberalismo, pois apoiada naquilo que Gramsci chamou de “consentimento passivo”, isto é, a aceitação natu-ralizada de um existente tido e havido como inelutável. Não colocaria repa-ros nessa opinião de Carlos Nelson, pois me parece que, de fato, a hegemo-nia lulista apoia-se, sim, em boa parte, nesse tipo de consentimento passivo.

7 Para mais detalhes, ver Álvaro Bianchi e Ruy Braga, “Brazil: the Lula government and financial globalization”, Social Forces, Chapel Hill, v. 83, n. 4, 2005, p. 1745-62.

8 Gramsci entendia que o “transformismo” destruía a força política das classes subal-ternas decapitando suas lideranças, desarticulando os grupos antagonistas e semean-do desordem no terreno adversário.

HEGEMONIA_miolo.indd 10HEGEMONIA_miolo.indd 10 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 12: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Apresentação • 11

Aliás, as observações do afamado comunista sardo acerca de Gio vanni Gio-litti serviriam perfeitamente bem para descrever Lula9.

Não compartilho, entretanto, do ceticismo de Carlos Nelson quanto à hipótese da “revolução passiva à brasileira”, pois intuo que a hegemonia lulista satisfaz, se não completamente, em grande medida, as premissas gramscianas a respeito tanto da “conservação”, isto é, a reação “dos de cima” ao subversivismo inorgânico das massas, quanto à “inovação”, ou seja, a incorporação de parte das exigências “dos de baixo”. Trata-se naturalmente de uma dialética multifacetada e tensa (“inovação/conservação”, “revolu-ção/restauração”) que catalisa um reformismo “pelo alto”, conservador, é verdade, porém dinâmico o suficiente para não simplesmente reproduzir o existente, mas capaz de abrir caminhos para novas mudanças – progressis-tas (no caso do fordismo, analisado pelo genial sardo no Caderno 22) ou regressivas (no caso do fascismo). Na minha opinião, a “hegemonia às aves-sas” nada mais é do que essa via de modernização conservadora, plasmada pelos limites inerentes à semiperiferia capitalista, em que o avanço nutre-se permanentemente do atraso.

No tocante ao processo de modernização conservadora do mundo do trabalho no Brasil, por exemplo, eu mesmo busquei mostrar por meio de uma pesquisa do setor que mais cresceu em termos ocupacionais durante o governo Lula, isto é, o do telemarketing, como a “avançada” acumulação financeira dos bancos atuantes no país nutre-se permanentemente da repro-dução de modalidades “arcaicas” de discriminação social, como o racismo, o sexismo e a homofobia. Na realidade, uma das principais fontes de adap-tação do teleoperador ao fluxo tensionado nas Centrais de Teleatividades (CTAs) é seguramente a natureza “invisível” desse tipo de trabalho. Co-

9 “Grande política (alta política) – pequena política (política do dia a dia, política parla-mentar, de corredor, de intriga). A grande política compreende as questões vinculadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, defesa e conservação de deter-minadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que surgem no interior de uma estrutura já estabeleci-da pelas lutas de preeminência entre as diversas facções de uma mesma classe política. É, por isso, grande política tratar de excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política (Giolitti, rebaixando o nível das lutas internas, fazia grande política; mas seus fanáticos eram objeto de grande política, con-tudo eles mesmos faziam pequena política)”. Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, (Turim, Einaudi, 1975), caderno 13, parágrafo 5. Tradução livre. [Ed. bras.: Cader-nos do cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999-2003.]

HEGEMONIA_miolo.indd 11HEGEMONIA_miolo.indd 11 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 13: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

12 • Hegemonia às avessas

mo o teleoperador utiliza exclusivamente a voz na relação com o público, a aparência torna-se secundária e o setor de telemarketing emergiu como uma espécie de “refúgio” para mulheres, sobretudo negras, além de gays e porta-dores de necessidades especiais, justamente aqueles grupos que estão entre os mais fragilizados do mercado de trabalho brasileiro10.

Carlos Nelson levanta muito corretamente a questão: se estivermos dian te de uma revolução passiva, parte das exigências dos “de baixo” de-verá ser acolhida pelo governo reformista e moderado. Mas não é exata-mente isso que verificamos quando analisamos o Bolsa Família, a amplia-ção do sistema universitário federal com o patrocínio das cotas, o impulso na direção da “reformalização” do mercado de trabalho11, a política de reajuste do salário mínimo acima da inflação, a retomada dos investimen-tos em infraestrutura ou, mais recentemente, o incentivo ao consumo de massas por meio do crédito consignado? É pouquíssimo em se tratando da nossa imensa dívida social. Além disso, tais realizações são totalmente insuficientes para garantir Lula no panteão dos reformistas, ao lado de Willy Brandt, Olof Palme e tutti quanti. Contudo, e isso diz muito sobre o handicap das classes dominantes brasileiras, consegue ser suficiente pa-ra, num país onde o epíteto de “pai dos pobres” é predicado de um dita-dor oriundo da aristocracia fundiária, alçar Lula à condição de incontes-tável liderança popular.

10 Naturalmente, o fato de ser uma espécie de “refúgio” para esses grupos de trabalha-dores não implica que a discriminação nas “modernas” CTAs inexista. Ao contrário, é muito comum verificarmos que as funções mais qualificadas, isto é, aquelas que exigem algum tipo de conhecimento tecnoprofissional, são, com muita frequência, ocupadas majoritariamente por homens, assim como a estratégia de promoção das empresas tende a privilegiar os teleoperadores brancos. Para mais detalhes, ver Ri-cardo Antunes e Ruy Braga (orgs.), Infoproletários: degradação real do trabalho vir-tual (São Paulo, Boitempo, 2009).

11 Somos perfeitamente conscientes de que a atual tendência à “reformalização” do mercado de trabalho originou-se no segundo governo de Fernando Henrique Car-doso, mais precisamente após a desvalorização do real motivada pela crise financeira do Sudeste asiático de 1997, associando-se intimamente, portanto, às necessidades da política fiscal do Estado brasileiro. Em resumo, “reformaliza-se”, basicamente, para arrecadar mais e continuar a pagar os elevadíssimos juros da dívida pública. Contudo, independentemente do impulso original ou do papel desempenhado pela atual “reformalização” do mercado de trabalho, os efeitos benéficos relativos à proteção social não se alteram. Para mais detalhes, ver Paulo Eduardo Baltar e José Dari Krein, “O emprego formal nos anos recentes”, Carta Social e do Trabalho, Campinas, v. 3, 2006, p. 3-10.

HEGEMONIA_miolo.indd 12HEGEMONIA_miolo.indd 12 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 14: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Apresentação • 13

Ainda que mantida a política profundamente regressiva dos juros es-tratosféricos – é surpreendente que nem mesmo a atual crise econômica mundial tenha sido capaz de alterar o comportamento visceralmente ren-tista do Banco Central –, sabemos que a relativa desconcentração de renda experimentada por aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho12 pode perfeitamente coexistir, num contexto marcado por certo crescimento eco-nômico, com a reprodução da desigualdade entre as classes sociais, quando comparada aos incrementos de rendimentos dos que vivem da propriedade de ativos, como títulos, imóveis etc. Uma simples análise da distribuição funcional da renda nacional que confrontasse os dados da Pesquisa Nacio-nal por Amostra de Domicílios (PNAD) relativos à remuneração dos em-pregados, o rendimento dos autônomos e o Excedente Operacional Bruto do Sistema de Contas Nacionais poderia ilustrar bem isso.

Contudo, parece-me meridianamente claro que o governo Lula conse-guiu coroar a incorporação de parte das reivindicações dos “de baixo” com a bem orquestrada reação ao subversivismo esporádico das massas, repre-sentado pelo “transformismo de grupos radicais inteiros”. Da miríade de cargos no aparato de Estado até a reforma sindical que robusteceu os cofres das centrais sindicais, passando pelos muitos assentos nos conselhos ges-tores dos fundos de pensão, pelas altas posições em empresas estatais, pelo repasse de verbas federais para financiamento de projetos cooperativos, pe la recomposição da máquina estatal etc., o locus da hegemonia resultan-te de uma revolução passiva é exatamente o Estado13. O fato é que o sub-versivismo inorgânico transformou-se em consentimento ativo para muitos militantes sociais, que passaram a investir esforços desmedidos na conserva-ção das posições adquiridas no aparato estatal.

Se Chico tem toda razão ao afirmar que a “hegemonia às avessas” sim-plesmente não significou verdadeiros “avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participa-

12 Para mais detalhes, ver “Distribuição pessoal da renda do trabalho: Brasil 1995--2005 (Tabela 7)”, em Dieese, Anuário dos trabalhadores 2007, São Paulo, Dieese, 2007, p. 41.

13 Álvaro Bianchi nos lembra, recorrendo a fartas citações dos Quaderni, que “revolu-ção passiva” não significa hegemonia de uma classe em relação à totalidade social, mas sim de uma fração das classes dominantes sobre o conjunto delas por meio da mediação do Estado. Para mais detalhes, ver Álvaro Bianchi, “Revolução passiva: o pretérito do futuro”, Crítica Marxista, São Paulo, v. 23, n. 23, 2006, p. 34-57.

HEGEMONIA_miolo.indd 13HEGEMONIA_miolo.indd 13 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 15: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

14 • Hegemonia às avessas

ção nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da po-lítica que desse fim à longa persistência do patrimonialismo”14, também é verdade que Lula soube “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”. Assim procedendo, fez grande política, isto é, “representou o maquiavelismo de Maquiavel contra o ma-quiavelismo de Stenterello”, ainda que “para conservar uma situação mi-serável”15. Quando Chico fala em “regressão política” para se referir ao go-verno Lula, é nisso que ele está pensando.

Aos meus olhos, a “hegemonia às avessas” é o ponto comum entre duas formas sociais distintas de consentimento: a ativa e a passiva. “Vanguar-da do atraso” ou “atraso da vanguarda”? O governo Lula apoia-se em uma forma de hegemonia produzida por uma revolução passiva empreendida na semiperiferia capitalista que conseguiu desmobilizar os movimentos sociais ao integrá-los à gestão burocrática do aparato de Estado, em nome da apa-rente realização das bandeiras históricas desses mesmos movimentos, que passaram a consentir ativamente com a mais desavergonhada exploração di-rigida pelo regime de acumulação financeira globalizado.

Por seu turno, emaranhada em uma rede de dependências das políticas públicas governamentais, e esgotada por uma década e meia de cruentas lutas sociais ofensivas somada a outra década e meia de obstinadas lutas sociais defensivas, parte considerável das classes subalternas brasileiras con-sente passivamente. Cansadas de inovar politicamente e de se defender eco-nomicamente, as classes subalternas brasileiras preferem, à primeira vista, retomar momentaneamente o fôlego e seguir hipotecando prestígio ao go-verno da esfinge barbuda. Eis aqui o cerne da questão: após sete anos de “regressão política”, 85% de aprovação no Ibope não pode ser obra da di-vina providência. Parece-me ser esse o enigma que a odisseia gramsciana contida neste livro ajuda a decifrar.

Ruy BragaOutubro de 2009

14 Ver Francisco de Oliveira, “O avesso do avesso”, neste livro. 15 Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, cit., caderno 13, parágrafo 5. Tradução livre.

HEGEMONIA_miolo.indd 14HEGEMONIA_miolo.indd 14 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 16: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Eu sou o exílio

Eu sou o exílioSou o andarilho

O trovador(digam o que disserem)

gentil eu sou, e calmoe com passo distraídoabsorto em planejar,

amável com a submissão

mas gemidos invadem as alcovas de meu coraçãoe em minha cabeça

por detrás de meus olhos quietoseu ouço os gritos e as sirenes.*

Dennis Brutus

O poeta sul-africano Dennis Vincent Brutus foi uma das presenças mais aguardadas de nosso seminário internacional “Hegemonia às avessas: eco-nomia, política e cultura na era da servidão financeira”. Debateu com nos-sos colegas Omar Ribeiro Thomaz e José Luís Cabaço o tema em que, quer por sua inesgotável experiência de vida, quer por sua singular trajetória política, se tornara referência obrigatória: “Do apartheid ao neoliberalis-mo”. Todos aqueles que tiveram a oportunidade e o privilégio de assistir a sua concorrida palestra, em que examinou as múltiplas divergências e con-vergências das realidades brasileira e sul-africana, certamente não se es-quecerão de seus ensinamentos e de seu sincero interesse em inaugurar um amplo diálogo, demonstrado por suas intervenções e questionamentos em praticamente todas as mesas de nosso seminário. Permaneceu de sua visita ao Cenedic a decisão de estreitar laços de colaboração com o Centre for Civil Society (CCS), ligado à Universidade de Kwazulu-Natal, em Durban, onde trabalhava e militava.

* Tradução de Anna Rüsche. (N. E.)

HOMENAGEM

HEGEMONIA_miolo.indd 15HEGEMONIA_miolo.indd 15 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 17: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

16 • Hegemonia às avessas

Filho de pais sul-africanos, Dennis Brutus nasceu na capital do Zimbá-bue, Harare, em 1924, e, ainda muito jovem, mudou-se para a África do Sul, onde se graduou no início da década de 1940 em psicologia e literatu-ra inglesa. A retomada dos estudos na faculdade de direito da Universidade de Witwatersrand, contudo, foi interrompida pela sua primeira prisão mo-tivada pelo radical ativismo anti-apartheid. Sua militância política esteve, de início, associada ao trabalho de organização da nova associação espor-tiva sul-africana, que se apresentava como uma alternativa ao segregacio-nismo nos esportes, além, naturalmente, de atuar nas fileiras do Congresso Nacional Africano (CNA).

Com a radicalização política e social ocasionada pelo Massacre de Shar-peville1, e após uma onda de forte repressão às organizações anti-apartheid promovida pelo governo sul-africano – cujo momento culminante tal-vez tenha sido a promulgação, em 1961, do Suppression of Communism Act –, Dennis Brutus decidiu escapar para Moçambique, onde foi captura-do pela Pide, a polícia secreta portuguesa, e deportado para Johannesburgo. Nessa cidade, em 1963, ele foi alvejado três vezes pelas costas, enquanto tentava escapar da tutela policial. Quase morto, ficou alguns meses aprisio-nado na mesma cela em que, mais de meio século antes, Mahatma Gandhi também foi feito prisioneiro. Ainda não de todo recuperado dos ferimen-tos, Dennis Brutus foi transferido para a famosa ilha Robben, onde perma-neceu cativo durante dois anos em uma cela próxima a de Nelson Mandela. Na prisão, escreveu duas de suas obras mais conhecidas: a coleção de poe-mas Sirens, knuckles, boots e Letters to Martha2.

1 Dennis Brutus dedicou um de seus mais conhecidos poemas ao Massacre de Shar-peville, bairro construído pelo regime racista sul-africano para acomodar os negros que trabalhavam nas cidades industriais de Vanderbijlpark e Vereeniging. Nesse bairro operário ocorreu, no dia 21 de março de 1960, um protesto contra a chama-da Lei do Passe, que obrigava os negros a usar cadernetas em que estavam definidos os locais por onde podiam circular. A polícia sul-africana reprimiu o protesto atiran-do com metralhadoras contra a multidão e matando 69 pessoas. Sobre o massacre, Brutus escreveu: “Recordem Sharpeville/ no dia das balas nas costas/ pois encarnou a opressão/ e a natureza da sociedade / mais claramente que qualquer outra coisa;/ foi o evento clássico” (tradução livre).

2 Ver Dennis Brutus, A simple lust (Portsmouth, Heinemann, 1986). Essa seleção de poemas inclui: “Sirens, knuckles, boots”, “Letters to Martha”, “Poems from Algiers” e “Thoughts abroad”.

HEGEMONIA_miolo.indd 16HEGEMONIA_miolo.indd 16 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 18: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Homenagem • 17

Exilado pelo governo sul-africano, estabeleceu-se primeiramente em Lon-dres, em 1965, e logo em seguida em Chicago, em 1971, para então fixar-se na cidade de Pittsburgh, em cuja universidade lecionou literatura e estudos africanos durante cerca de duas décadas, obtendo ampla notoriedade como poeta e crítico literário. Fora da prisão, Dennis Brutus destacou-se co-mo uma das principais figuras da luta que culminou na exclusão da África do Sul dos jogos olímpicos da Cidade do México, em 1968, e no posterior banimento, em 1970, de qualquer participação sul-africana em atividades esportivas internacionais.

Com o fim do apartheid, Dennis Brutus regressou à África do Sul, asso-ciando-se ao Centre for Civil Society. Ali, notabilizou-se por sua militância socialista contra o neoliberalismo dos novos governos sul-africanos e a glo-balização capitalista. Esteve presente em todas as edições do Fórum Social Mundial e foi figura central na crítica ao New Partnership for Africa’s De-velopment (Nepad), uma espécie de “Consenso de Washington” para o continente africano, proposto e implementado pelo ex-presidente sul-afri-cano Thabo Mvuyelwa Mbeki. Em 2007, homenageado com um lugar de honra no “hall da fama” dos esportes sul-africanos, recusou-se a receber o prêmio, alegando que os dirigentes esportivos da África do Sul ainda não haviam feito uma crítica consequente do racismo.

Dennis Brutus nos prometeu o texto de sua exposição em nosso se-minário para ser publicado neste livro. Por meio das trocas de e-mails que mantivemos com ele após o seminário para informá-lo dos prazos para o encaminhamento do capítulo anunciado, soubemos que o câncer que o aco-metera estava fugindo ao controle. Ao manifestar minha absoluta pros-tração com a notícia, Dennis Brutus mostrou-se bem-humorado e confian-te, afirmando que “aquele que conhece a polícia sul-africana não se assusta com um simples câncer” e complementou dizendo se tratar de “apenas mais uma luta”. De comum acordo, então, tendo em vista seu delicado quadro de saúde, decidimos substituir o capítulo prometido pelo de Patrick Bond, coordenador do Centre for Civil Society e um de seus mais íntimos colabo-radores.

Dennis Brutus foi desses incorrigíveis lutadores sociais que deixam or-gulhosos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-los e de aprender com seu exemplo e sua inesgotável experiência. Infelizmente, a “voz cantante do movimento sul-africano de libertação”, como era conhecido, silenciou no dia 26 de dezembro de 2009. A notícia de sua morte, ocorrida na Cidade

HEGEMONIA_miolo.indd 17HEGEMONIA_miolo.indd 17 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 19: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

18 • Hegemonia às avessas

do Cabo, apesar de não ser de todo inesperada, nos encheu de profunda tristeza. Sua luta por uma sociedade igualitária, socialista e emancipada de todas as formas de discriminação, exploração e opressão não será es-quecida. Hamba kahle, camarada Dennis Brutus! Este livro é dedicado a sua memória.

Ruy BragaJaneiro de 2010

HEGEMONIA_miolo.indd 18HEGEMONIA_miolo.indd 18 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 20: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

1

HEGEMONIA ÀS AVESSAS:DECIFRA-ME OU TE DEVORO!

HEGEMONIA_miolo.indd 19HEGEMONIA_miolo.indd 19 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 21: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

HEGEMONIA ÀS AVESSAS*

Francisco de Oliveira

Depois de levar um susto no primeiro round, quando seu adversário ime-diato abocanhou 40% dos votos, Luiz Inácio Lula da Silva ganhou fácil o segundo turno das eleições. Há uma gama variada de interpretações para a retumbante vitória. A mais óbvia acentua a influência do Bolsa Família, que teria garantido uma maciça votação dos estratos mais pobres da sociedade. Tanto que no Nordeste, região que recebe o maior contingente assistencial do Bolsa Família, Lula ultrapassou os 70% em quase todos os municípios.

É mais complicado explicar por que Geraldo Alckmin teve tantos votos no primeiro turno. E por que perdeu uns 2 milhões do primeiro para o se-gundo. A interpretação majoritária sustenta que o tucano foi o opositor ideal para Lula: pouco conhecido além de São Paulo, com cara de paulista, jeito de paulista e fama de paulista – um handicap fora de São Paulo. Para completar, Alckmin não tinha nenhuma mensagem e foi muito mal na campanha televisiva. Outra interpretação corrente, assumida pelo próprio Lula e por jornais do exterior, é que o Brasil eleitoral se dividiu entre ricos e pobres, e os pobres venceram. Seria ótimo, se fosse plausível, que os 40% de votos a favor de Alckmin fossem dos “ricos”, e que a votação de Lula fosse exclusivamente dos “pobres”.

Um dos resultados formidáveis da eleição, incluindo os pleitos para os estados e a renovação do Congresso, foi a salada de coligações e coalizões. Siglas de suposta orientação ideológica oposta uniram-se indiscriminada-mente com toda espécie de agrupamentos, incluindo os de salteadores. Traições abertas às próprias hostes foram a regra. Por exemplo, o governa-

* Uma primeira versão deste artigo foi publicada em Piauí, Rio de Janeiro/ São Paulo, n. 4, jan. 2007. (N. E.)

HEGEMONIA_miolo.indd 21HEGEMONIA_miolo.indd 21 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 22: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

22 • Hegemonia às avessas

dor de Mato Grosso, Blairo Maggi, apesar de ser o maior sojicultor do mundo, apoiou Lula abertamente, enquanto o partido do qual é membro – o Partido Popular Socialista (PPS), sigla herdeira do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) – fez campanha por Geraldo Alckmin. Essa falta de consistência confirma a irrelevância da política partidária no capita-lismo contemporâneo. Irrelevância que é mais grave na periferia do que no centro. Os partidos representam pouco, e a política está centrada sobretudo nas personalidades. Sempre foi assim na tradição brasileira, mas depois da criação dos partidos de massa – vale dizer, depois da criação do Partido dos Trabalhadores (PT) – houve um período de forte valorização dos partidos.

O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), metamorfo-se do antigo partido de oposição à ditadura militar no período 1964-1984, fez a maior bancada na Câmara. O PMDB é, tipicamente, um partido de caciques regionais. Não tem sequer unidade pro gramática. Dessa vez, o que é importante como símbolo, não te ve candidato à Presidência, seja em coli-gação com o PT, seja com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). O Partido da Frente Liberal (PFL, atual DEM) foi derrotado fragorosa-mente na Bahia e no Maranhão, mas ainda assim formou a maior bancada no Senado.

O PT manteve-se com a segunda maior bancada da Câmara Federal, mas pela primeira vez em sua história teve uma diminuição em seu número de deputados. Fez apenas quatro governadores, sendo a Bahia o único esta-do politicamente importante – até porque derrotou um coronel pefelista tido como imbatível, Antônio Carlos Magalhães. Lula distanciou-se osten-sivamente do PT. Somente recorreu ao partido, e a setores de esquerda fora dele, no segundo turno, quando viu a reeleição ameaçada. Proclamados os resultados, logo fechou um acordo com o PMDB para dominarem juntos a Câmara dos Deputados e o Senado.

O ceticismo é geral quanto ao segundo mandato. Ninguém, à direita e à esquerda, espera grandes alterações nas políticas governamentais. Lula pa-rece uma barata tonta, clamando por soluções para, conforme diz, “destra-var” o desenvolvimento. Afora a continuidade do Bolsa Família e a manu-tenção do conservadorismo na política econômica, o presidente parece ter perdido inteiramente o rumo. O desnorteio mostra uma das consequências de sua vitória, nas proporções em que ocorreu: Lula não tem objetivos, porque não tem inimigos de classe. Alguns poucos que vocalizaram a espe-rança de mudanças na política econômica foram imediatamente repreendi-

HEGEMONIA_miolo.indd 22HEGEMONIA_miolo.indd 22 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 23: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Hegemonia às avessas • 23

dos pelo próprio presidente reeleito – caso de Tarso Genro, ministro das Relações Institucionais, tido como o ideólogo do governo, e Dilma Roussef, a poderosa chefe da Casa Civil, considerada o motor do Executivo. Eles esta-vam entre os “mudancistas” e foram logo calados.

O governo terá maioria no Congresso, mas é quase certo que o balcão de negociações entre as várias siglas e o Executivo será mais amplo que no pri-meiro mandato. Dito de forma mais direta, o governo será mais fraco e a cobrança dos apoios será mais forte, na forma de nomeações para cargos de primeiro escalão e para grandes entidades federais. A agenda das denúncias de corrupção não está encerrada, embora se espere que o governo seja mais cuidadoso e as oposições, menos assanhadas.

Aparentemente, o espaço da esquerda se ampliou. Até este escriba votou em Lula, no segundo turno, com essa perspectiva. A oposição da esquerda a Lula e ao tucanato chegou a uns 7% dos votos para presidente, materia-lizada no voto a Heloísa Helena e à Frente de Esquerda PSOL-PSTU-PCB--Consulta Popular. A ilusão quanto ao peso da esquerda se desfez com as primeiras declarações do presidente reeleito, que reendossou a política eco-nômica, manteve nos cargos algumas figuras emblemáticas (caso de Henri-que Meirelles na presidência do Banco Central) e defendeu a “era Palocci”. No mesmo movimento, Lula aventou nomes para compor o novo Ministé-rio que estão entre os mais reacionários do meio empresarial – a começar por Jorge Gerdau Johannpeter, proprietário do maior conjunto de siderúr-gicas do Brasil (e de algumas no exterior), compradas na bacia das almas das privatizações do governo FHC.

Os votos nulos alcançaram a marca dos 4%, mesma porcentagem para os votos em branco, e 23% dos cadastrados não compareceram às seções eleitorais, apesar da obrigatoriedade do voto. De fato, as eleições presiden-ciais não interessaram a 31% dos votantes. Ou então as candidaturas não motivaram esses 31% de eleitores. É a porcentagem mais alta de “indife-rença” eleitoral da história moderna brasileira, aproximando-se dos números da abstenção dos norte-americanos nas eleições presidenciais. De novo, essa indiferença quer dizer que a política não passa pelo conflito de classes, evita e trapaceia com ele. Nas ruas, o fracasso da “mudança” não poderia ser mais evidente: nenhuma vibração, nenhuma bandeira do PT ou de qualquer outro partido, nenhuma mobilização. A grande maioria dos elei-tores se desincumbia da obrigação com ar de enfado. Muitos deles logo tomaram o caminho das praias.

HEGEMONIA_miolo.indd 23HEGEMONIA_miolo.indd 23 9/8/10 4:27:31 PM9/8/10 4:27:31 PM

Page 24: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

24 • Hegemonia às avessas

O presidente reeleito não lamentou essa indiferença expressiva do elei-torado. Queixou-se amargamente, isso sim, de não ser o preferido dos “ri-cos”, cobrando-lhes o fato de que nunca os banqueiros ganharam tanto dinheiro como em seu governo, para logo depois dizer que os “pobres” ha-viam ganho a eleição. Essa interpretação logo foi encampada pela imprensa: o Brasil havia se dividido entre “pobres” e “ricos”. Esqueceram-se de expli-car os 40% de votos em Geraldo Alckmin no primeiro turno: aí já seríamos um país do Primeiro Mundo!

Qual será a cara do mandato que agora se inicia? Certamente, haverá uma nova ampliação do programa Bolsa Família, e é aí que mora o perigo. Nos outros setores, as mudanças serão superficiais. Talvez seja feita a grande transposição do rio São Francisco para os estados mais sujeitos à seca no Nordeste e algumas obras de infraestrutura. Por aí ficará.

A perspectiva para o futuro requer uma reflexão gramsciana. Talvez este-jamos assistindo à construção de uma “hegemonia às avessas” típica da era da globalização. A África do Sul provavelmente anunciou essa hegemonia às avessas: enquanto as classes dominadas tomam a “direção moral” da socieda-de, a dominação burguesa se faz mais descarada. As classes dominadas no país, que se confundem com a população negra, derrotaram o apartheid, um dos regimes mais nefastos do século XX, mesmo levando em conta que o século passado conheceu o nazifascismo e o arquipélago gulag. E, no entan-to, o governo sul-africano oriundo da queda do apartheid rendeu-se ao neo-liberalismo. As favelas de Johannesburgo não deixam lugar a dúvidas1. As-sim, a liquidação do apartheid mantém o mito da capacidade popular para vencer seu temível adversário, enquanto legitima a desenfreada exploração pelo capitalismo mais impiedoso.

Algo assim pode estar em curso no Brasil. A longa “era da in venção”2 forneceu a direção moral da sociedade brasileira na resistência à ditadura e alçou a questão da pobreza e da desigualdade ao primeiro plano da política. Chegando ao poder, o PT e Lula criaram o Bolsa Família, que é uma espé-cie de derrota do apartheid. Mais ainda: ao elegermos Lula, parecia ter sido borrado para sempre o preconceito de classe e destruídas as barreiras da

1 Ver Mike Davis, Planeta favela (São Paulo, Boitempo, 2006).2 Ver Francisco de Oliveira, “Política numa era de indeterminação” e “O momen to

Lenin”, em Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.), A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 24HEGEMONIA_miolo.indd 24 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 25: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Hegemonia às avessas • 25

desigualdade. Ao elevar-se à condição de condottiere e de mito, como as re-centes eleições parecem comprovar, Lula despolitiza a questão da pobreza e da desigualdade. Ele as transforma em problemas de administração, derrota o suposto representante das burguesias – o PSDB, o que é inteiramente falso – e funcionaliza a pobreza. Esta, assim, poderia ser trabalhada no ca-pitalismo contemporâneo como uma questão administrativa.

Já no primeiro mandato, Lula havia sequestrado os movimentos sociais e a organização da sociedade civil. O velho argumento leninista-stalinista de que os sindicatos não teriam função num sistema controlado pela classe operária ressurgiu no Brasil de forma matizada. Lula nomeou como minis-tros do Trabalho ex-sindicalistas influentes na CUT. Outros sindicalistas estão à frente dos poderosos fundos de pensão das estatais. Os movimentos sociais praticamente desapareceram da agenda política. Mesmo o MST vê-se manietado por sua forte dependência do governo, que financia o assenta-mento das famílias no programa de reforma agrária.

Nas condições em que se deu, a vitória eleitoral anula as esquerdas no Brasil. Toda crítica é imediatamente identificada como sendo de “direita” – termo inadequado para defender um governo que tem na direita pilares fundamentais, do pequeno PP a setores do PMDB, como os de Jader Bar-balho e José Sarney. Um rancor surdo torna difíceis as relações entre a es-querda independente e o PT e, em particular, o governo Lula. Por outro lado, a mídia, sobretudo os grandes jornais, segue atacando o governo com ferocidade, o que contribui para confundir a crítica da esquerda com a crí-tica da própria imprensa. O principal partido da oposição a Lula, o PSDB, esfrangalhou-se – e também confunde toda a crítica com suas posições.

Caso o programa Bolsa Família experimente uma grande ampliação, o que será possível simplesmente com uma redução de 0,1% do superávit primário, os fundamentos da “hegemonia às avessas” estarão se consolidan-do. Trata-se de um fenômeno novo, que exige novas reflexões. Não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil. Suponho também que não se parece com o que o Oci-dente conheceu como política e dominação. Não é patrimonialismo, pois o que os administradores dos fundos de pensão estatais gerem é capital-di-nheiro. Não é o patriarcalismo brasileiro de Casa-grande e senzala, de Gil-berto Freyre, porque não é nenhum patriarca que exerce o mando nem a economia é “doméstica” (no sentido do domus romano), embora na cultura brasileira o chefe político possa se confundir, às vezes, com o “pai” – Getú-

HEGEMONIA_miolo.indd 25HEGEMONIA_miolo.indd 25 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 26: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

26 • Hegemonia às avessas

lio Vargas foi apelidado de “pai dos pobres” e Lula pensa tomar-lhe o lugar, mas o que ele gere, com sua classe, é capital. Não é populismo, como sugere a crítica da direita, e mesmo de alguns setores da esquerda, porque o popu-lismo foi uma forma autoritária de dominação na transição da economia agrária para a urbano-industrial. E o populismo foi – de forma autoritária, enfatize-se – a inclusão sui generis da novel classe operária, desbalanceando a velha estrutura de poder no Brasil e deslocando fortemente os latifundiários da base da dominação. Nada disso está presente na nova dominação.

Muitos críticos e analistas consideram que o Bolsa Família é o grande programa de inclusão das classes dominadas na política. Isso é um grave equívoco, sobretudo por parte daqueles que cultivam a tradição marxista gramsciana. Entre eles estão Walquíria Domingues Leão Rego, o próprio ministro Tarso Genro e Luiz Jorge Werneck Vianna, sendo que este último considera o Bolsa Família, e o próprio governo Lula, a continuação da “via passiva” na longa e permanentemente inacabada revolução burguesa brasilei-ra. A nova dominação (e arrisco a hipótese de que ela seja própria e funcional ao capitalismo mundializado) inverte os termos gramscianos. Vejamos.

Parece que os dominados dominam, pois fornecem a “direção moral” e, fisicamente até, estão à testa de organizações do Estado, de modo direto ou indireto, e das grandes empresas estatais. Parece que eles são os próprios capitalistas, pois os grandes fundos de pensão das estatais são o coração do novo sistema financeiro brasileiro e financiam pesadamente a dívida inter-na pública. Parece que eles comandam a política, pois dispõem de podero-sas bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Parece que a econo-mia está finalmente estabilizada, que se dispõe de uma sólida moeda e que tal façanha se deveu à política governamental, principalmente no primeiro mandato de Lula.

O conjunto de aparências esconde outra coisa, para a qual ainda não te-mos nome nem, talvez, conceito. Mas certamente será nas pistas do legado de Antonio Gramsci, o “pequeno grande sardo”, que poderemos encontrar o caminho de sua decifração. O consentimento sempre foi o produto de um conflito de classes em que os dominantes, ao elaborarem sua ideologia, que se converte na ideologia dominante, trabalham a construção das classes do-minadas a sua imagem e semelhança. Esse é o núcleo da elaboração de Marx e Engels em A ideologia alemã*, que o pequeno grande sardo desdobrou ad-

* São Paulo, Boitempo, 2007. (N. E.)

HEGEMONIA_miolo.indd 26HEGEMONIA_miolo.indd 26 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 27: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Hegemonia às avessas • 27

miravelmente. Estamos em face de uma nova dominação: os dominados realizam a “revolução moral” – derrota do apartheid na África do Sul e elei-ção de Lula e Bolsa Família no Brasil – que se transforma, e se deforma, em capitulação ante a exploração desenfreada.

Nos termos de Marx e Engels, da equação “força + consentimento” que forma a hegemonia desaparece o elemento “força”. E o consentimento se transforma em seu avesso: não são mais os dominados que consentem em sua própria exploração; são os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos do-minados, com a condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista. É uma revolução epistemológica para a qual ainda não dispomos da ferramenta teórica adequada. Nossa herança marxista--gramsciana pode ser o ponto de partida, mas já não é o ponto de chegada.

HEGEMONIA_miolo.indd 27HEGEMONIA_miolo.indd 27 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 28: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A HEGEMONIA DA PEQUENA POLÍTICA

Carlos Nelson Coutinho

1. A expressão “hegemonia às avessas”, inventada por nosso querido Chico de Oliveira, é certamente provocativa. Trata-se de uma das muito ins-tigantes e sempre oportunas provocações (no bom sentido da palavra!) pos-tas por ele. Lembro aqui, por exemplo, suas formulações sobre o modo de produção social-democrata, o antivalor, o ornitorrinco e o surgimento de uma nova classe formada pelos gestores dos fundos públicos etc. Mesmo que dis-cordemos de Chico em alguns casos, aprendemos sempre – e muito – com essas provocações, pois nos obrigam a pensar. É o caso também de “hege-monia às avessas”.

De minha parte, porém, para caracterizar as relações de hegemonia hoje, prefi ro falar de “hegemonia da pequena política”. Para entendermos essa ca-racterização, recordemos, antes de mais nada, o que Gramsci chama de “pe-quena política”. Cito o autor de Cadernos do cárcere:

A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões par-ciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do âm-bito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política.1

Ora, é precisamente assim – ou seja, através da exclusão da grande política – que se apresenta a hegemonia na época do neoliberalismo ou,

1 Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999--2003, v. 3), p. 21.

HEGEMONIA_miolo.indd 29HEGEMONIA_miolo.indd 29 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 29: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

30 • Hegemonia às avessas

para usarmos o subtítulo de nosso seminário e deste livro, na época da servidão financeira.

Registremos o seguinte: seria equivocado pensar que só há batalha hege-mônica quando grandes projetos de sociedade se enfrentam. É verdade que foi assim durante algum tempo na Europa, no tempo em que partidos com diferentes propostas de sociedade competiam entre si, como, por exemplo, conservadores e trabalhistas na Inglaterra ou comunistas e democrata-cris-tãos na Itália. Nos Estados Unidos, ao contrário, nunca foi assim: ali, a hegemonia dos valores do capitalismo nunca foi posta em discussão pelos dois grandes partidos nacionais, nem mesmo pelas principais organizações sindicais. E, infelizmente, está sendo assim, hoje, também na Europa e em muitos países da América Latina. Que diferença substantiva existe atual-mente, por exemplo, entre conservadores e trabalhistas na Inglaterra? Ou entre o governo FHC e o governo Lula no Brasil?2

Hegemonia, portanto, nem sempre se baseia no que Gramsci chamou de “ideologias orgânicas”, aquelas que expressam de modo claro e siste-mático a concepção do mundo das classes sociais fundamentais. Indepen-dentemente de basear-se ou não numa ideologia orgânica, uma relação de hegemonia é estabelecida quando um conjunto de crenças e valores se en-raíza no senso comum, naquela concepção do mundo que Gramsci defi niu como “bizarra e heteróclita”, com frequência contraditória, que orienta – muitas vezes sem plena consciência – o pensamento e a ação de grandes massas de mulheres e homens. Ora, podemos constatar que predominam, hoje, no senso comum, determinados valores que asseguram a reprodução do capitalismo, ainda que nem sempre o defendam diretamente. Re fi ro-me, em particular, ao individualismo (tão emblematicamente expresso na famo-sa “lei de Gerson”, ou seja, a que nos recomenda ti rar vantagem em tudo), ao privatismo (à convicção de que o Estado é um mau gestor e tudo deve ser deixado ao livre jogo do mercado), à naturalização das relações sociais (o capitalismo pode até ter seus lados ruins, mas corresponde à natureza humana) etc.

Cabe lembrar ainda que hegemonia é consenso, e não coerção. Existe hegemonia quando indivíduos e grupos sociais aderem consensualmente a certos valores. Mas, como Gramsci observa, existe consenso ativo e consenso

2 Voltarei a isso adiante, no item 3.

HEGEMONIA_miolo.indd 30HEGEMONIA_miolo.indd 30 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 30: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A hegemonia da pequena política • 31

passivo3. A hegemonia da pequena política baseia-se precisamente no con-senso passivo. Esse tipo de consenso não se expressa pela auto-organização, pela participação ativa das massas por meio de partidos e outros organismos da sociedade civil, mas simplesmente pela aceitação resignada do existente como algo “natural”. Mais precisamente, da transformação das ideias e dos valores das classes dominantes em senso comum de grandes massas, inclu-sive das classes subalternas. Hegemonia da pequena política existe, portan-to, quando se torna senso comum a ideia de que a política não passa da disputa pelo poder entre suas diferentes elites, que convergem na aceitação do existente como algo “natural”. Quantas vezes ouvimos a frase “os políti-cos são todos iguais”? Escolhem-se uns ou outros por motivos que, com frequência, nada têm a ver com o conteúdo de suas propostas (as quais, na maioria dos casos, não apresentam nenhuma divergência essencial ou sim-plesmente não têm conteúdo algum).

Essa concepção da política como disputa de elites, e não como ação de maiorias, foi teorizada por alguns expoentes da teoria política do século XX, como Mosca, Schumpeter, Sartori e muitos outros4. Para eles, a política é sempre ação de minorias, de elites. Schumpeter, por exemplo, reduz a de-mocracia ao processo de seleção das elites por meio de eleições periódicas; mas, ao mesmo tempo, também afi rma que o povo não sabe combinar in-teresse e razão, de modo que tais eleições não teriam como fundamento a disputa entre diferentes propostas de sociedade, mas estariam baseadas em escolhas irracionais. Também contribuem para difundir essa hegemonia da pequena política todos os que dizem que vivemos o fi m das ideologias, que a diferença entre esquerda e direita desapareceu. Como dizia o hoje esque-cido Alain, fi lósofo francês, quem nega a diferença entre esquerda e direita é sempre de direita. Uma versão mais sofi sticada dessa posição é aquela de-fendida hoje pelo chamado “pós-modernismo”: para os autores dessa cor-rente, a era das “grandes narrativas” morreu, e, no lugar de um ponto de vista totalizante e universal, devemos nos preocupar com as diferenças, com as identidades, com a defesa do multiculturalismo etc. Essa fragmentação das lutas setoriais – que, separadas de uma visão universal, não põem em

3 Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 3, p. 333.4 Ver Carlos Nelson Coutinho, “Democracia: um conceito em disputa”, em Interven-

ções: o marxismo na batalha das ideias (São Paulo, Cortez, 2006), p. 13-27.

HEGEMONIA_miolo.indd 31HEGEMONIA_miolo.indd 31 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 31: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

32 • Hegemonia às avessas

questão o domínio do capital e podem, assim, ser por ele assimiladas – con-tribui também para o triunfo da pequena política.

Repetindo: existe hegemonia da pequena política quando a política dei-xa de ser pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e passa, portanto, a ser vista como um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos, como simples administração do existente. A apatia torna-se as-sim não só um fenômeno de massa, mas é também teorizada como um fator positivo para a conservação da “democracia” pelos teóricos que con-denam o “excesso de demandas” como gerador de desequilíbrio fi scal e, consequentemente, de instabilidade social. Mas, como também vimos, é expressão de grande política reduzir tudo à pequena política. Em outras palavras, é por meio desse tipo de redução, que desvaloriza a política en-quanto tal, que se afi rma hoje a quase incontestada hegemonia das classes dominantes. Em situações “normais”, a direita já não precisa da coerção para dominar: impõe-se através desse consenso passivo, expresso entre ou-tras coisas em eleições (com taxa de abstenção cada vez maior), nas quais nada de substantivo está posto em questão.

2. Para identifi car melhor a situação atual da hegemonia no mundo, ca-beria tentar conceituar a chamada “época neoliberal” ou, se preferirmos, a época da servidão fi nanceira. Uma análise sistemática da presente época do capitalismo “globalizado” é uma tarefa ainda não concluída por parte dos marxistas. Contudo, ao que me parece, pode contribuir para essa análise ainda in progress uma discussão sobre a possibilidade de compreender carac-terísticas essenciais da contemporaneidade à luz do conceito gramsciano de revolução passiva. Sou cético em face dessa possibilidade. Creio que, antes de falar em revolução passiva, seria útil tentar compreender muitos fenôme-nos da época neoliberal através do conceito de contrarreforma, que também faz parte, ainda que só marginalmente, do aparato categorial de Gramsci.

Antes de mais nada, recordemos brevemente as principais características da revolução passiva, termo que Gramsci recolhe do historiador napolitano Vincenzo Cuoco, mas atribuindo-lhe um novo conteúdo. Trata-se de um instrumento-chave de que Gramsci se serve para analisar os eventos do Ri-sorgimento, ou seja, da formação do Estado burguês moderno na Itália. Mas o conceito é também utilizado por ele como critério de interpretação de fatos sociais complexos e até mesmo de épocas históricas inteiras, bastante diversas entre si, como, por exemplo, a Restauração pós-napoleônica, o fas-cismo e o americanismo.

HEGEMONIA_miolo.indd 32HEGEMONIA_miolo.indd 32 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 32: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A hegemonia da pequena política • 33

Quais são, segundo Gramsci, os traços principais de uma revolução pas-siva? Ao contrário de uma revolução popular, “jacobina”, realizada a partir de baixo – e que, por isso, rompe radicalmente com a velha ordem política e social –, uma revolução passiva implica sempre a presença de dois momen-tos: o da “restauração” (trata-se sempre de uma reação conservadora à possi-bilidade de uma transformação efetiva e radical proveniente de baixo) e o da “renovação” (no qual algumas das demandas populares são satisfeitas “pelo alto”, através de concessões das camadas dominantes). Nesse sentido, falan-do da Itália, mas expressando características universais de toda revolução passiva, Gramsci afi rma que uma revolução desse tipo manifesta:

o fato histórico da ausência de uma iniciativa popular unitária no desenvol-vimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de “restaurações” que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de “restaurações progressistas”, ou “revoluções-restaurações”, ou ainda “revolu-ções passivas”.5

O aspecto restaurador, portanto, não anula o fato de que ocorrem tam-bém modifi cações efetivas. A revolução passiva, portanto, não é sinônimo de contrarrevolução e nem mesmo de contrarreforma; na verdade, numa revolução passiva, estamos diante de um reformismo “pelo alto”6. Em outra passagem, Gramsci diz:

Pode-se aplicar ao conceito de revolução passiva (e pode-se documentar no Risorgimento italiano) o critério interpretativo das modificações moleculares, que, na realidade, modificam progressivamente a composição anterior das for-ças e, portanto, transformam-se em matriz de novas modificações.7

Podemos resumir do seguinte modo algumas das características princi-pais de uma revolução passiva: 1) as classes dominantes reagem a pressões que provêm das classes subalternas, ao seu “subversivismo esporádico, ele-

5 Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 1, p. 393; grifo meu.6 Christine Buci-Glucksmann e Göran Therborn, depois de caracterizar o Welfare

State como revolução passiva, definem-no como “reformismo de Estado” (Le défi social-démocrate, Paris, Maspero, 1981).

7 Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 5, p. 317.

HEGEMONIA_miolo.indd 33HEGEMONIA_miolo.indd 33 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 33: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

34 • Hegemonia às avessas

mentar”, ou seja, ainda não sufi cientemente organizado para promover uma revolução “jacobina”, a partir de baixo, mas já capaz de impor um novo comportamento às classes dominantes; 2) essa reação, embora tenha como fi nalidade principal a conservação dos fundamentos da velha ordem, implica o acolhimento de “uma certa parte” das reivindicações provindas de baixo; 3) ao lado da conservação do domínio das velhas classes, introdu-zem-se modifi cações que abrem caminho para novas modifi cações. Portan-to, estamos diante, nos casos de revoluções passivas, de uma complexa dialética de restauração e revolução, de conservação e modernização.

Ao contrário de “revolução passiva”, que é certamente um dos conceitos centrais dos Cadernos do cárcere, Gramsci emprega muito pouco o termo “contrarreforma”. Além do mais, na esmagadora maioria dos casos, o termo se refere diretamente ao movimento pelo qual a Igreja Católica, no Concí-lio de Trento, reagiu contra a Reforma protestante e algumas de suas conse-quências políticas e culturais. Mas pode-se também registrar que Gramsci não apenas estende o termo a outros contextos históricos, como busca ain-da extrair dele algumas características que nos permitem, ainda que só apro-ximativamente, falar da criação, por ele, de um conceito.

Sobre a possibilidade de estender historicamente o termo, pode-se cons-tatar que Gramsci, num parágrafo em que fala do humanismo, refere-se a uma “contrarreforma antecipada”8. É assim, claro, que, para ele, pode ocor-rer uma contrarreforma também diante de fenômenos históricos que não a Reforma protestante. Em outro parágrafo, no qual caracteriza as utopias como reações “modernas” e “populares” à Contrarreforma, Gramsci apre-senta um dos traços defi nidores desta última como sendo próprio de todas as restaurações: “A Contrarreforma, [...] de resto, como todas as restaurações, não foi um bloco homogêneo, mas uma combinação substancial, se não for-mal, entre o velho e o novo”9.

Parece-me importante sublinhar que, nessa passagem, Gramsci caracteri-za a contrarreforma como uma pura e simples “restauração”, diferentemente do que faz no caso da revolução passiva, quando fala em “revolução-restau-ração”. Apesar disso, porém, ele admite que há, até mesmo nesse caso, uma “combinação entre o velho e o novo”. Podemos supor, assim, que a diferen-

8 Ibidem, v. 2, p. 157.9 Ibidem, v. 5, p. 143; grifo meu.

HEGEMONIA_miolo.indd 34HEGEMONIA_miolo.indd 34 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 34: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A hegemonia da pequena política • 35

ça essencial entre uma revolução passiva e uma contrarreforma reside no fato de que, enquanto na primeira certamente existem “restaurações” – mas que “acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo” –, na segunda é preponderante não o momento do novo, mas precisamente o do velho. Trata-se de uma diferença talvez sutil, mas que tem um signifi cado histórico que não pode ser subestimado.

Uma vez esboçadas as principais determinações que as duas noções assumem em Gramsci, podemos retornar à questão formulada acima: a época neoliberal, iniciada nas últimas décadas do século XX, aproxima-se mais de uma revolução passiva ou de uma contrarreforma? A pergunta, evidentemente, não tem nenhum sentido para a própria ideologia neoli-beral. Os ideólogos do neoliberalismo gostam hoje de se apresentar como defensores de uma suposta “terceira via” entre o liberalismo puro e a so-cial-democracia “estatista” e, assim, como representantes de uma posição essencialmente ligada às exigências da modernidade (ou, mais precisa-mente, da chamada pós-modernidade) e, portanto, ao progresso10. Assim, a versão atual da ideologia neoliberal faz da reforma (ou mesmo da revo-lução, já que alguns gostam de falar de uma “revolução liberal”) sua prin-cipal bandeira.

A palavra “reforma” foi sempre organicamente ligada às lutas dos subal-ternos para transformar a sociedade e, por conseguinte, assumiu na lingua-gem política uma conotação claramente progressista e até mesmo de es-querda. O neoliberalismo busca utilizar a seu favor a aura de simpatia que envolve a ideia de “reforma”. É por isso que as medidas por ele propostas e implementadas são mistifi cadoramente apresentadas como “reformas”, isto é, como algo progressista em face do “estatismo”, que, tanto em sua ver-são comunista como naquela social-democrata, seria agora inevitavelmente condenado à lixeira da história. Desta maneira, estamos diante da tentativa de modifi car o signifi cado da palavra “reforma”: o que antes da onda neoli-beral queria dizer ampliação dos direitos, proteção social, controle e limita-ção do mercado etc., signifi ca agora cortes, restrições, supressão desses di-reitos e desse controle. Estamos diante de uma operação de mistifi cação ideológica que, infelizmente, tem sido em grande medida bem-sucedida.

10 Ver, entre muitos outros, Anthony Giddens, A terceira via (Rio de Janeiro, Record, 1999).

HEGEMONIA_miolo.indd 35HEGEMONIA_miolo.indd 35 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 35: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

36 • Hegemonia às avessas

Ao contrário, é com razão que a noção de revolução passiva pode ser ligada à ideia de reforma, ou mesmo de reformismo, embora se trate em última instância de um reformismo conservador e “pelo alto”. Como vi-mos, um verdadeiro processo de revolução passiva tem lugar quando as classes dominantes, pressionadas pelos de baixo, acolhem – para continuar dominando e até mesmo para obter o consenso passivo dos subalternos – “uma certa parte das exigências que vinham de baixo”, nas palavras já cita-das de Gramsci.

Foi precisamente o que aconteceu na época do Welfare State e dos gover-nos da velha social-democracia11. Com efeito, o momento da restauração teve um papel decisivo no Welfare: por meio das políticas intervencionistas sugeridas por Keynes e do acolhimento de muitas das demandas das classes trabalhadoras, o capitalismo tentou e conseguiu superar, pelo menos por algum tempo, a profunda crise que o envolveu entre as duas guerras mun-diais. Mas essa restauração se articulou com momentos de revolução ou, mais precisamente, de reformismo, no sentido forte da palavra, o que se manifestou não apenas na conquista de importantes direitos sociais por parte dos trabalhadores, mas também na adoção, pelos governos capitalis-tas, de elementos de economia programática, que até aquele momento era defendida apenas por socialistas e comunistas. É certo que as velhas classes dominantes continuaram a dominar, mas os subalternos foram capazes de conquistar signifi cativas “vitórias da economia política do trabalho sobre a economia política do capital”12. Deve-se recordar que o Welfare surgiu num momento em que a classe trabalhadora, através de suas organizações (sindi-cais, políticas), obtivera uma forte incidência na composição da correlação de forças entre o trabalho e o capital. Não se deve esquecer também que a revolução passiva welfariana é também uma resposta ao grande desafi o ao

11 Não posso aqui desenvolver o tema, mas me parece que algumas (ainda que não mui-tas) das conquistas do Welfare State foram asseguradas aos trabalhadores urbanos, na América Latina, durante o chamado período populista. Talvez isso explique o fato de que hoje, em nosso subcontinente, o termo “populismo” venha sendo utilizado pelos neoliberais para desqualificar qualquer tentativa de escapar dos constrangi-mentos impostos pelo fetichismo do mercado.

12 A expressão é de Marx (“Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores”, em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, v. 1, 1956, p. 354), referindo-se à limitação legal da duração da jornada de trabalho e ao movimento cooperativista.

HEGEMONIA_miolo.indd 36HEGEMONIA_miolo.indd 36 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 36: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A hegemonia da pequena política • 37

capital representado não só pela Revolução de Outubro, mas também pela presença da União Soviética, que emergia da Segunda Guerra Mundial com um enorme prestígio entre as massas trabalhadoras e os progressistas de todo o mundo.

Não creio que se possa encontrar no que chamei (de modo um pouco simplista) de “época neoliberal” essa dialética de restauração-revolução que caracteriza as revoluções passivas. Na conjuntura em que estamos imersos, as classes trabalhadoras – por muitas razões, entre elas a chamada “reestru-turação produtiva”, que pôs fi m ao fordismo e, portanto, às formas corres-pondentes de organização dos operários – têm sido obrigadas a se pôr na defensiva; suas expressões sindicais e partidárias sofreram um evidente re-cuo na correlação de forças com o capital. Além disso, com o colapso do “socialismo real”, diminuiu em muito a força de atração das ideias socialis-tas, que uma habilidosa propaganda ideológica identifi cou com o modelo “estatolátrico” vigente nos países da Europa do Leste. A luta de classes, que certamente continua a existir, não se trava mais em nome da conquista de novos direitos, mas da defesa daqueles já conquistados no passado.

Não temos assim, na época em que estamos vivendo, o acolhimento de “uma certa parte das exigências que vêm de baixo”, que Gramsci considera-va, como vimos, uma característica essencial das revoluções passivas. Na época neoliberal, não há espaço para o aprofundamento dos direitos sociais, ainda que limitados, mas estamos diante da tentativa aberta – infelizmente em grande parte bem-sucedida – de eliminar tais direitos, de desconstruir e negar as reformas já conquistadas pelas classes subalternas durante a época de revolução passiva iniciada com o americanismo e levada a cabo no Wel-fare State. As chamadas “reformas” da previdência social, das leis de prote-ção ao trabalho, a privatização das empresas públicas etc. – “reformas” que estão atualmente presentes na agenda política tanto dos países capitalistas centrais quanto dos periféricos (hoje elegantemente rebatizados de “emer-gentes”) – têm por objetivo a pura e simples restauração das condições pró-prias de um capitalismo “selvagem”, no qual devem vigorar sem freios as leis do mercado.

Estamos diante da tentativa de supressão radical daquilo que, como vi-mos, Marx chamou de “vitórias da economia política do trabalho” e, por conseguinte, de restauração plena da economia política do capital. É por isso que me parece mais adequado, para uma descrição dos traços essenciais da época contemporânea, utilizar não o conceito de revolução passiva, mas sim

HEGEMONIA_miolo.indd 37HEGEMONIA_miolo.indd 37 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 37: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

38 • Hegemonia às avessas

o de contrarreforma. (De resto, pelo menos nos países ocidentais, não se trata de uma contrarrevolução, porque neles o alvo da ofensiva neoliberal não são os resultados de uma revolução propriamente dita, mas o reformis-mo forte que caracterizou o Welfare State.) Decerto, a época neoliberal não destrói integralmente algumas conquistas do Welfare, fato que se deve so-bretudo à resistência dos subalternos. Por outro lado, nos círculos neoli-berais mais ligados à chamada “terceira via” (e até mesmo em organismos fi nanceiros internacionais como o Banco Mundial) vem se manifestando nos últimos tempos uma “preocupação” em face das consequências mais desastrosas das políticas neoliberais (que continuam, malgrado isso, a ser aplicadas), entre as quais, por exemplo, o aumento exponencial da pobreza. Mas essa “preocupação” – que levou à adoção de políticas sociais compen-satórias e paliativas, como é o caso do Fome Zero no Brasil – não anula o fato de que estamos diante de um indiscutível processo de contrarreforma. Lembremos que Gramsci nos adverte, como vimos antes, para o fato de que “as restaurações [não são] um bloco homogêneo, mas uma combinação subs-tancial, se não formal, entre o velho e o novo”13. O que caracteriza um processo de contrarreforma não é a completa ausência do novo, mas a enorme pre-ponderância da conservação (ou mesmo da restauração) em face das even-tuais e tímidas novidades.

Como se sabe, Gramsci chamou a atenção para uma importante con-sequência da revolução passiva: a prática do transformismo como modali-dade de desenvolvimento histórico, um processo que, através da cooptação das lideranças políticas e culturais das classes subalternas, busca excluí-las de todo efetivo protagonismo nos processos de transformação social. Em-bora se apresente, nas palavras de Gramsci, como uma “ditadura sem hegemonia”14, o Estado protagonista de uma revolução passiva não pode prescindir de um mínimo de consenso. E Gramsci nos indica o modo pelo qual as classes dominantes obtêm esse consenso mínimo, “passivo”, no caso de pro cessos de transição “pelo alto”, igualmente “passivos”. Ele se refere à Itália, mas avança observações válidas, quando devidamente concretizadas, também para outros países e outras épocas:

13 Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 5, p. 143; grifo meu.14 Ibidem, v. 5, p. 330.

HEGEMONIA_miolo.indd 38HEGEMONIA_miolo.indd 38 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 38: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A hegemonia da pequena política • 39

O transformismo como uma das formas históricas daquilo que já foi observado sobre a “revolução-restauração” ou “revolução passiva” [...]. Dois períodos de transformismo: 1) de 1860 até 1900, transformismo “mo lecular”, isto é, as per-sonalidades políticas elaboradas pelos partidos democráticos de oposição se in-corporam individualmente à “classe po lítica” conservadora e moderada (caracte-rizada pela hostilidade a toda intervenção das massas populares na vida estatal, a toda reforma orgânica que substituísse o rígido “domínio” ditatorial por uma “hegemonia”); 2) a partir de 1900, o transformismo de grupos radicais inteiros, que passam ao campo moderado.15

Uma das razões que parecem justifi car o uso do conceito de revolução passiva para caracterizar a época do neoliberalismo é precisamente a gene-ralização de fenômenos de transformismo, seja nos países centrais, seja nos periféricos. Embora não me proponha aqui a discutir mais diretamente a questão (que merece, porém, uma atenção especial), creio que o transfor-mismo como fenômeno político não é exclusivo dos processos de revolução passiva, mas pode também estar ligado a processos de contrarreforma. Se não fosse assim, seria difícil compreender os mecanismos que, em nossa época, marcaram a ação de sociais-democratas e de ex-comunistas no apoio a muitos governos contrarreformistas em países europeus, mas também fe-nômenos como os governos Cardoso e Lula num país da periferia capitalis-ta como o Brasil16.

A defi nição de nossa época como caracterizada pela contrarreforma e não por uma nova revolução passiva tem implicações para nossa discussão sobre as características das atuais formas de hegemonia. Para Gramsci, como vimos, as revoluções passivas respondem a grandes desafi os históricos. A época de revolução passiva iniciada com a Restauração, na Europa do sécu-lo XIX, pode ser vista como uma resposta “pelo alto” às exigências postas pela Revolução Francesa: muitas das conquistas dessa Revolução são reco-lhidas, mas ao mesmo tempo emasculadas, gerando aquilo que poderíamos

15 Ibidem, v. 5, p. 286.16 É também o transformismo que explica a conversão, no Brasil de Lula, de impor-

tantes lideranças sindicais em gestores dos fundos previdenciários públicos, ou seja, em uma nova fração das classes dominantes. Prefiro considerar que esse processo transformista gera uma fração de classe e não, como afirma Francisco de Oliveira, em Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 147, uma nova classe.

HEGEMONIA_miolo.indd 39HEGEMONIA_miolo.indd 39 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 39: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

40 • Hegemonia às avessas

chamar de passagem da democracia radical para o liberalismo moderado. Algo similar ocorre no americanismo (e em sua expansão no Welfare State): a “concessão” de direitos sociais, a adoção keynesiana de elementos de “eco-nomia programática” etc. são tentativas de responder ao desafi o anticapita-lista representado pela Revolução de Outubro e pela União Soviética. Em ambos os casos de revolução passiva, ou seja, tanto na Restauração oitocen-tista quanto no americanismo-welfarismo, estavam em jogo, em última ins-tância, questões de “grande política”: no primeiro caso, a alternativa entre a democracia plebeia dos jacobinos (que já apontava para o socialismo, ainda que utópico) e o liberalismo burguês moderado; no segundo, a oposição entre socialismo e capitalismo. Ao contrário, a contrarreforma neoliberal não tem como pano de fundo nenhuma questão de “grande política”: na disputa entre republicanos e democratas nos Estados Unidos, entre traba-lhistas e conservadores na Inglaterra, entre direita e “centro-esquerda” na Itália etc., não está em jogo nenhuma opção entre diferentes modelos de sociedade. Podemos assim dizer que, na era da contrarreforma neoliberal, predomina sem grandes contrastes a hegemonia da pequena política.

3. Vivemos também, no Brasil de hoje, a hegemonia da “pequena polí-tica”. Malgrado todos os seus limites, a transição que o país experimentou entre o fi m dos anos 1970 e meados de 1980 revelou, em seu ponto de chegada, um dado novo e extremamente signifi cativo: o fato de que o Bra-sil, após mais de vinte anos de ditadura, havia se tornado preponderante-mente uma sociedade “ocidental” no sentido gramsciano do termo, ou seja, na qual existe uma “justa relação” entre Estado e sociedade civil17.

Mas, se observarmos as sociedades “ocidentais”, veremos que elas apre-sentam dois “modelos” principais de articulação da disputa política e da representação de interesses. De um lado, há um modelo que poderíamos chamar de “norte-americano”, caracterizado (como ocor re em toda situação “ocidental”) pela presença de uma sociedade civil forte, bastante desenvol-vida e articulada, mas na qual a organização política e a representação dos interesses se dá, respectivamente, por meio de partidos frouxos, não progra-

17 “No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Oci-dente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação” (Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 3, p. 262).

HEGEMONIA_miolo.indd 40HEGEMONIA_miolo.indd 40 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 40: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A hegemonia da pequena política • 41

máticos, e de agrupamentos profi ssionais estritamente corporativos18. De outro lado, temos um modelo que poderíamos designar como “europeu”. Neste, havia uma estrutura partidária centrada em torno de partidos com base social razoavelmente homogênea, que defendiam projetos de sociedade defi nidos e diversos entre si; havia ainda um sindicalismo classista, politiza-do, que não se limitava a organizar pequenos grupos profi ssionais, mas bus-cava agregar e representar o conjunto da classe trabalhadora. Portanto, en-quanto no “modelo nor te-americano” temos partidos que defendem um mesmo projeto hegemônico de sociedade, no “modelo europeu” havia uma salutar disputa entre propostas hegemônicas alternativas. Se, nos Estados Unidos, o socialismo foi sempre uma “ideologia exótica”, na Europa ele es-teve com frequência no centro da agenda política. Para voltarmos a nosso tema: no primeiro caso, estamos diante de um modelo político centrado na “pequena política”, enquanto no segundo são postas em movimento ques-tões de “grande política” 19.

Logo após o fi m da ditadura, o Brasil se viu diante dessas duas possibi-lidades de organizar sua recém-criada sociedade “ocidental”, ou seja, segun-do um modelo americano (neoliberal) ou um modelo europeu (democráti-co). Se observarmos a vida brasileira dos últimos anos, veremos que esses projetos estiveram presentes e marcaram a agenda e o cenário políticos de nosso país por quase duas décadas. Durante esse período, era marcada a distinção entre nossas duas maiores centrais sindicais: uma que se originou claramente inspirada num tipo de organização próximo do modelo europeu (CUT) e outra que de modo explícito queria imitar o modelo norte-america-no (Força Sindical). Também não é casual que tenhamos tido partidos – em par ticular o PT, mas também outros partidos de esquerda – organizados segundo um padrão europeu, ao mesmo tempo que tínhamos (e temos)

18 Não posso aqui aprofundar a questão, mas parece tratar-se precisamente do modelo de sociedade defendido pelos liberais que se inspiram em Tocqueville.

19 Ao falar do modelo europeu, usei sempre os verbos no passado. É que, na própria Europa, em função da atual expansão da hegemonia neoliberal no mundo inteiro, esse modelo está sendo progressivamente substituído por um modelo de tipo nor-te-americano. Os partidos políticos europeus (inclusive os partidos social-democratas e ex-comunistas) assemelham-se cada vez mais aos norte-americanos, perdendo suas características programáticas tradicionais; ao mesmo tempo, o movimento sindical começa a assumir no Velho Continente alguns traços próprios de um sindicalismo de resultados.

HEGEMONIA_miolo.indd 41HEGEMONIA_miolo.indd 41 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 41: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

42 • Hegemonia às avessas

partidos muito próximos do tipo “norte-americano”, como, por exemplo, o PMDB, que hoje não passa de uma federação de diversifi cados interesses pessoais e regionais.

A presença simultânea de aparelhos de hegemonia próprios desses dois diferentes modelos revelava, de certo modo, a persistência de uma indefi ni-ção quanto ao tipo de sociedade ocidental que iríamos construir. Infelizmen-te, a chegada do PT ao governo federal em 2003, longe de contribuir para minar a hegemonia neoliberal, como muitos esperavam, reforçou-a de modo signifi cativo. A adoção pelo governo petista de uma política macroeconômi-ca abertamente neoliberal – e a cooptação para essa política de importantes movimentos sociais ou, pelo menos, a neutralização da maioria deles – de-sarmou as resistências ao modelo liberal-corporativo e assim abriu caminho para uma maior e mais estável consolidação da hegemonia neoliberal entre nós. Estamos assistindo a uma clara manifestação daquilo que Gramsci cha-mou de “transformismo”, ou seja, a cooptação pelo bloco no poder das principais lideranças da oposição. E esse transformismo, que já se iniciava no governo Cardoso, consolidou defi nitivamente o predomínio entre nós da hegemonia da pequena política.

Esse tipo de hegemonia se manifesta no fato de que a disputa política entre nós tem se reduzido a um bipartidarismo efetivo, ainda que não for-mal, centrado na alternância de poder entre um bloco liderado pelo PT e outro pelo PSDB, que não só aplicam a mesma política econômica e social, mas também praticam métodos de governo semelhantes, que não recuam diante de formas mais ou menos graves de corrupção sistêmica. Não é ca sual o comum compromisso desses dois blocos no sentido de “blindar” a econo-mia, ou seja, de reduzir a uma questão “técnica”, e não política, a defi nição daquilo que verdadeiramente interessa ao conjunto da população brasileira. Mais uma vez, hegemonia da pequena política.

4. Todas essas refl exões – certamente apressadas – são postas em questão pela atual crise global do capitalismo, que veio à tona no último trimestre de 2008. Será que teremos de novo, para essa crise, uma solução à direita, como foi o caso da vitória do nazismo depois da crise de 1929 (temor ex-presso, em recente entrevista, pelo historiador Eric J. Hobsbawm)? Será que voltaremos à adoção de políticas keynesianas, ainda que sem muitas conces-sões aos trabalhadores, como parece resultar de algumas propostas hoje postas em prática pelos principais países capitalistas? Será que continuarão

HEGEMONIA_miolo.indd 42HEGEMONIA_miolo.indd 42 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 42: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A hegemonia da pequena política • 43

a vigorar, ainda que sob novas formas, as mesmas políticas neoliberais? Ou será que, em consequência da crise, voltará a predominar a “grande política”, com uma retomada do papel antagonista das forças da esquerda e do mundo do trabalho?

É precisamente diante dessas questões que se coloca o angustiante desa-fi o que atravessou nosso seminário: “decifra-me ou te devoro”. São bastante débeis hoje os recursos políticos, organizativos e teóricos de que dispõe a esquerda em todo o mundo. Por isso, ainda que viéssemos a decifrar teori-camente os enigmas de nosso tempo, o que está ainda longe de ser feito, talvez continuássemos a ser – como, de certo modo, já estamos sendo – pra-ticamente devorados. De qualquer modo, o principal desafi o da esquerda hoje é recolocar a grande política na ordem do dia, único modo de quebrar a hegemonia da pequena política e, portanto, do capitalismo em sua forma atual, a da servidão fi nanceira. Não se trata de uma tarefa simples. Temos muitos motivos para ser pessimistas. Mas, precisamente por isso, cabe recordar sempre o mote de Gramsci: pessimismo da inteligência, sim, mas também otimismo da vontade. Ou seja, realismo sem ilusões na análise da conjuntura, mas, ao mesmo tempo, empenho na luta para transformar essa conjuntura, para fazer com que a esquerda volte a ter uma palavra a dizer – e um papel a desempenhar – no qua dro que se está abrindo em consequência dessa devastadora crise.

HEGEMONIA_miolo.indd 43HEGEMONIA_miolo.indd 43 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 43: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

2

TRABALHO E CAPITALISMO, ANTES E APÓS O DESMANCHE

HEGEMONIA_miolo.indd 45HEGEMONIA_miolo.indd 45 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 44: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O TRABALHO PRECÁRIO NOS ESTADOS UNIDOS*

Arne L. Kalleberg

O crescimento do trabalho precário emerge como centro das preocu-pações contemporâneas nos Estados Unidos e em todo o mundo desde os anos 1970. Por “trabalho precário”, entendo a relação de emprego incerta, imprevisível, e na qual os riscos vinculados a ele pesam mais sobre os traba-lhadores que sobre os empregadores ou o governo. São exemplos de trabalho precário atividades no setor informal e o trabalho temporário no setor for-mal. O trabalho precário não é algo novo: existe desde os primórdios do trabalho assalariado. Contudo, certas forças sociais, políticas e econômicas que operam há décadas têm tornado o trabalho cada vez mais precário – tan-to nos Estados Uni dos como no mundo1.

Pierre Bourdieu via a précarité como a raiz da problemática social do século XXI2. Ulrich Beck descreveu o surgimento de uma “sociedade do risco” e uma “nova economia política da insegurança”3. Também se refe re a esse fenômeno como um “abrasileiramento do Ocidente”. Argu men ta que a sociedade do pleno-emprego chegou ao fi m e vem ocorrendo uma acele-rada expansão do emprego inseguro e temporário, com des continuidade e informalidade difusa nas sociedades ocidentais que antes eram os bastiões

* Tradução de Fernando Rogério Jardim. (N. E.)1 Arne L. Kalleberg, “Precarious work, insecure workers: employment relations in

transition”, American Sociological Review, no prelo.2 Pierre Bourdieu, “La précarité est aujourd’hui partout”, em Contre-feux (Paris, Liber-

Raison d’Agir, 1998), p. 95-101.3 Ulrich Beck, The brave new world of work (Cambridge, Polity Press, 2000).

HEGEMONIA_miolo.indd 47HEGEMONIA_miolo.indd 47 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 45: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

48 • Hegemonia às avessas

do pleno-emprego. Outros autores4 chamam os eventos do último quarto de século de “a segunda grande trans for ma ção”5.

O trabalho precário tem consequências de longo alcance que atravessam inúmeros campos de interesse para cientistas sociais, bem como para traba-lhadores e suas famílias, governos e negócios. Tem gerado insegurança para muitas pessoas e consequências disseminadas e de longo alcance não apenas para a natureza do trabalho, o ambiente de trabalho e as experiências das pessoas no trabalho, mas também para diversos fatores não relacionados a ele – fatores individuais (por exemplo, estresse e educação) e sociais (por exemplo, família e comunidade) –, assim como para a instabilidade po-lítica. Por isso, é muito importante entender esses novos arranjos trabalhis-tas que produzem o trabalho precário e a insegurança.

Tentarei, em primeiro lugar, resumir algumas das razões do crescimento do trabalho precário nos Estados Unidos. Por questão de clareza, tratarei nes-te capítulo somente do caso norte-americano, muito embora defenda que o trabalho precário constitui um desafi o global. Em seguida, descreverei algu-mas das evidências do crescimento do trabalho precário e apresentarei al-gumas de suas consequências. Por fi m, tecerei alguns comentários sobre os desafi os que o crescimento da insegurança e do trabalho precário apresentam às políticas públicas.

As razões do crescimento do trabalho precário nos Estados Unidos

O trabalho precário das últimas décadas resulta da disseminação da glo-balização (isto é, a interdependência econômica e seus correlatos, tais como o aumento do comércio internacional e a aceleração dos fl uxos de capital, produção e trabalho) e da predominância do neoliberalismo (isto é, a ideo-logia que prega a desregulação, a privatização e o fi m das garantias e dos direitos sociais). Tais mudanças são alimentadas pelas transformações tec-nológicas, como a computação, a informatização e os recentes avanços nas tecnologias da informação, que, por sua vez, tornaram possíveis diversos

4 E. Webster, R. Lambert e A. Bezuidenhout, Grounding globalization: labour in the age of insecurity (Oxford, Blackwell, 2008).

5 Karl Polanyi, The great transformation (Nova York, Farrar & Rinehart, 1944). [Ed. bras.: A grande transformação, Rio de Janeiro, Elsevier Campus, 2000.]

HEGEMONIA_miolo.indd 48HEGEMONIA_miolo.indd 48 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 46: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O trabalho precário nos Estados Unidos • 49

aspectos da globalização. Em vários países, também vem ocorrendo uma di-minuição generalizada dos sindicatos e um crescimento pronunciado do in-dividualismo. Todos esses fatores têm contribuído para o aumento do tra-balho precário.

Nos Estados Unidos, convencionou-se dizer que o período mais recente da precarização trabalhista começou na segunda metade dos anos 1970. Os anos 1974-1975 marcaram o início das transformações macroeconômicas (tais como a crise mundial do petróleo) que ajudaram a conduzir ao acirra-mento da concorrência internacional de preços. A indústria norte-americana foi desafi ada de início por empresas japonesas e sul-coreanas dos setores au-tomotivo e siderúrgico, respectivamente. O processo que fi cou conhecido como globalização neoliberal intensifi cou a integração econômica, acirrou a competição entre as companhias, ofereceu mais oportunidades para que des-locassem suas atividades para países onde os salários são mais baixos, bem como encontrassem novas fontes de mão de obra na imigração. Os avanços tecnológicos, ao mesmo tempo que forçavam as empresas a ser mais compe-titivas globalmente, tornavam isso possível para elas. Padrões diferentes de trabalho (por exemplo, nos países asiáticos) encorajaram os empregadores a transferir a produção para além-mar.

Mudanças em instituições legais e outras mediaram os impactos da glo-balização e da tecnologia no trabalho e nas relações de emprego. Os sindi-catos continuaram a declinar, enfraquecendo uma fonte tradicional de ga-rantias e de proteções aos trabalhadores e rompendo o contrato social entre capital e trabalho do pós-guerra. As regulamentações governamentais que estabeleciam os mínimos padrões aceitáveis no mercado de trabalho erodi-ram com as normas que governavam a competição no mercado de produ-tos. Os sindicatos declinaram, e a desregulação trabalhista e econômica reduziu o poder das forças de equilíbrio que permitiam aos trabalhadores compartilhar ganhos de produção. Com isso, a balança do poder pendeu dos trabalhadores para os empregadores.

As inúmeras mudanças políticas associadas à eleição de Ronald Reagan em 1980 aceleraram a ascendência dos negócios e o declínio do trabalho e deram liberdade às empresas e aos capitalistas para perseguir seus interes-ses desenfreados. A desregulação e a reorganização das relações de emprego permitiram uma expressiva acumulação de capital. As políticas públicas nos Estados Unidos – como a substituição dos programas assistenciais [welfare] por frentes de trabalho [workfare] em meados dos anos 1990 – tornaram

HEGEMONIA_miolo.indd 49HEGEMONIA_miolo.indd 49 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 47: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

50 • Hegemonia às avessas

essencial para as pessoas ter um trabalho pago remunerado, forçando-as com frequência a empregos mal pagos.

Mudanças ideológicas na direção do individualismo e da respon sa bili-dade pessoal pelo trabalho e pelo sustento deram suporte àquelas mudanças estruturais. O lema “você está em suas mãos” [you’re in your own] substituiu o “nós estamos juntos nisso” [we’re all in this to gether]6. A revolução neoli-beral se espalhou pelo mundo, enfati zan do a centralidade dos mercados e as soluções de mercado: a privatização dos recursos públicos e o fi m das pro-teções estatais em vários países.

Essas mudanças no nível macro, iniciadas na metade dos anos 1970, levaram os empregadores a buscar mais fl exibilidade em sua relação com os empregados. O ideário neoliberal no plano social espelhou o importante papel desempenhado pelas forças de mercado nos locais de trabalho, ero-dindo o modelo organizacional burocrático dos vínculos empregatícios pa-drões, pelos quais se admitia que os empregados trabalhassem a vida toda para determinado empregador em particular, frequentemente progredindo na carreira devido ao mercado interno de trabalho7. As tentativas em busca da fl exibilidade conduziram os gerentes a vários tipos de reestruturação, os quais, por sua vez, levaram ao aumento do trabalho precário e a transforma-ções na natureza da relação de emprego8. Tudo isso teve e continua a ter efeitos de longo alcance em toda a sociedade.

O duplo movimento

O trabalho precário não é algo novo, mas pode ser visto historicamente como condição “normal” das economias capitalistas. Nos Estados Unidos, a maior parte do trabalho era precária e a maioria dos salários era instável até o fi nal da Grande Depressão9. Até os anos 1930, pensões e planos de saúde eram coisas das quais nem se ouvia falar entre a classe operária; e os

6 Jared Bernstein, All together now: common sense for a new economy (São Francisco, Berrett-Koehler Publishers, 2006)

7 Peter Cappelli, The New Deal at work: managing the market-driven workforce (Bos-ton, Harvard Business School Press, 1999).

8 Paul Osterman, Securing prosperity: how the American labor market has changed and what to do about it (Princeton, Princeton University Press, 1999).

9 Sanford M. Jacoby, Employing bureaucracy: managers, unions and the transformation of work in the 20th century (Nova York, Columbia University Press, 1985).

HEGEMONIA_miolo.indd 50HEGEMONIA_miolo.indd 50 9/8/10 4:27:32 PM9/8/10 4:27:32 PM

Page 48: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O trabalho precário nos Estados Unidos • 51

demais benefícios – como aqueles associados às experiências do capitalismo de bem-estar social do fi m do século XX – dependiam mais da docilidade dos trabalhadores que dos direitos adquiridos e manifestos10.

A criação de uma economia de mercado no século XIX exacerbou a pre-cariedade durante esse período. Em A grande transformação, Karl Polanyi des-creveu os fundamentos organizacionais da sociedade industrial dos séculos XIX e XX em termos de uma luta de “movimento duplo”. O primeiro deles foi guiado pelos princípios do liberalismo econômico e do laissez-faire, os quais encorajaram o estabelecimento e a manutenção de mercados fl exíveis e livres (eis a primeira “grande transformação”). O segundo foi dominado por mudanças na direção das proteções sociais, que foram, por sua vez, reações às disrupções psicológicas, ecológicas e sociais que os mercados desregulados impuseram à vida das pessoas (essa é a segunda “grande transformação”). A longa luta histórica em torno das garantias trabalhistas, que emergiram como reação às consequências negativas da precariedade, foi vencida nos anos 1930 pelas conquistas do New Deal e outros planos11.

Evidências do aumento do trabalho precário nos Estados Unidos

Podemos coletar várias evidências de que o trabalho precário vem real-mente crescendo nos Estados Unidos. Vejamos.

1. Declínio do vínculo empregatícioVem ocorrendo um declínio geral no tempo médio que o trabalhador

permanece com um empregador. Isso varia conforme subgrupos específi -cos: a estabilidade no emprego tem crescido no caso das mulheres, ao passo que vem decaindo no caso dos homens (apesar de os níveis de estabilidade das mulheres continuarem substancialmente inferiores aos dos homens no setor privado). O declínio da estabilidade no emprego é especialmente pro-nunciado entre homens brancos mais velhos – o grupo que havia sido o mais protegido pelos mercados internos de trabalho12.

10 Richard Edwards, Contested terrain: the transformation of the workplace in the twen-tieth century (Nova York, Basic Books, 1979).

11 Sanford M. Jacoby, Employing bureaucracy, cit.12 Peter Cappelli, Talent on demand: managing talent in an age of uncertainty (Boston,

Harvard Business Press, 2008); Henry S. Farber, “Short(er) shrift: the decline in

HEGEMONIA_miolo.indd 51HEGEMONIA_miolo.indd 51 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 49: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

52 • Hegemonia às avessas

2. Crescimento do desemprego de longa duração

Os trabalhadores desempregados há muito tempo (defi nidos como aque-les sem emprego por seis meses ou mais) são os mais propensos a sofrer danos psicológicos e econômicos. Em contraste com o que acontecia nos perío dos anteriores, a porcentagem de desemprego de longa duração se manteve relativamente alta nos anos 2000. A considerável proporção de indivíduos desempregados que encontraram difi culdade para obter nova colocação no mercado de trabalho após a recessão de 2001 deve-se, prova-velmente, tanto às baixas taxas de crescimento do emprego quanto aos desafi os enfrentados pelos trabalhadores em indústrias como a da manufa-tura, cujos empregos foram perdidos13.

3. Aumento da percepção de insegurança no emprego

A precariedade está intimamente relacionada à percepção de insegurança no trabalho. Embora existam diferenças individuais na percepção da insegu-rança e do risco, as pessoas têm, em geral, cada vez mais medo de perder seu emprego – em grande parte porque as consequências dessa perda se torna-ram muito mais graves nos últimos anos – e estão menos seguras de conse-guir postos comparáveis.

A análise feita por Kalleberg e Marsden sobre os dados da General So-cial Survey para o período de 1977 a 2006 mostrou que a percepção de insegurança no emprego – tanto a probabilidade de perder o atual como a difi culdade de conseguir outro semelhante – aumentou durante o período estudado, após ajustes em variações cíclicas no desemprego intimamente relacionadas com a insegurança perceptível14. Esse aumento na percepção da insegurança no emprego é regularmente disseminado no interior das forças de trabalho, sustentando a visão de que o trabalho precário tem se

worker-firm attachment in the United States”, em Katherine S. Newman (org.), Laid off, laid low: political and economic consequences of employment insecurity (Nova York, Columbia University Press, 2008).

13 Lawrence Mishel, Jared Bernstein e Heidi Shierholz, The state of working America 2008/2009 (Ithaca/ Nova York, ILR/ Cornell University Press, 2009).

14 Arne L. Kalleberg e Peter V. Marsden, “Labor force insecurity and U.S. work atti-tudes, 1970s-2006”, em Peter V. Marsden (org.), Social trends in the United States, 1972-2006: evidence from the General Social Survey (Princeton, Princeton University Press, 2009).

HEGEMONIA_miolo.indd 52HEGEMONIA_miolo.indd 52 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 50: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O trabalho precário nos Estados Unidos • 53

tornado mais difundido. Além disso, podemos encontrar algumas evidên-cias que mostram que a insegurança no emprego cresceu mais rapidamente entre aquelas ocupações que antes eram as mais estáveis e seguras (como os trabalhadores de colarinho branco).

4. Aumento do trabalho temporário e dos arranjos de trabalho não usuais e não formais

Os empregadores conseguiram facilmente ajustar suas reservas de mão de obra às condições da demanda, criando cada vez mais arranjos de trabalho não usuais e não formais, como os trabalhos temporário e subcontratado.

Em meados dos anos 1990, dados coletados de uma amostra represen-tativa de empresas norte-americanas indicaram que mais da metade delas comprava produtos ou serviços de outras empresas15. Exemplos de tercei-rização em setores específi cos ilustram a predominância e a disseminação desse fenômeno: indústrias de alimentos, serviços de zeladoria, contabili-dade, atividades burocráticas e rotineiras, transporte hospitalar, atividades militares (como o emprego de soldados mercenários da Blackwater* no Iraque) e a terceirização das atividades de repressão à imigração, agora nas mãos de ofi ciais de justiça locais, refl etindo a deliberação contida na se-ção 287(G) do programa de Segurança Nacional. Contudo, o ponto-chave com respeito à terceirização é a ameaça que oferece, porque virtualmente todos os em pregos podem ser terceirizados (exceto, talvez, aqueles que re-queiram contato pessoal, como assistência médica domiciliar e preparação de alimentos), inclusive os bem-remunerados colarinhos-brancos, vistos an-tes como protegidos.

O setor ligado às agências de auxílio temporário cresceram numa taxa anual de mais de 11% entre 1972 e o fi m dos anos 1990 (o crescimento do percentual da população empregada nos Estados Unidos foi de 0,3% para

15 Arne L. Kalleberg e Peter V. Marsden, “Externalizing organizational activities: where and how U.S. establishments use employment intermediaries”, Socio-Economic Re-view, n. 3, 2005, p. 389-416.

* Fundada em 1996 pelo milionário republicano Erik Prince, a empresa Black water destacou-se após a invasão do Afeganistão, fornecendo mercenários subcontratados ao governo norte-americano. O Pentágono transformou então as empresas privadas de segurança em uma força integrante das operações contra o terror, colocando par-te das baixas e dos crimes de guerra fora do escrutínio da opinião pública. (N. T.)

HEGEMONIA_miolo.indd 53HEGEMONIA_miolo.indd 53 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 51: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

54 • Hegemonia às avessas

2,5% em 1998)16. Os trabalhadores temporários continuam sendo uma porção relativamente pequena da mão de obra total, porém a instituciona-lização da indústria de assistência temporária faz aumentar a precariedade, dado que torna todos nós potencialmente substituíveis por trabalhadores temporários. Nem os salões da Academia estão imunes às transformações na América. Por exemplo, houve um declínio dos postos e dos cursos de tempo integral nas universidades entre 1973 e 2005, acompanhado do cres-cimento do regime de tempo integral para cargos não formais e cursos em período parcial durante o mesmo período. Com isso, a profi ssão que Aro-nowitz chamou de “o último bom emprego na América”17 está também se tornando precário, com prováveis consequências negativas no longo prazo, como a queda da qualidade dos professores.

5. Crescimento da transferência dos riscos dos empregadores para os empre gados

O último indicador do aumento do trabalho precário é a transferência para os empregados dos riscos dos empregadores18 – o que muitos autores encaram como a principal característica do trabalho precário19. Essa trans-ferência de riscos é ilustrada pelo crescimento proporcional de planos de pensão e assistência hospitalar (em que os empregados pagam a maior parte dos prêmios e correm mais riscos do que seu patrão) e o declínio de planos de benefícios (em que os patrões absorvem mais riscos que os empregados, ao garantir certos níveis de benefícios)20.

16 Arne L. Kalleberg, “Nonstandard employment relations: part-time, temporary, and contract Work”, Annual Review of Sociology, n. 26, 2000, p. 341-65.

17 Stanley Aronowitz, The last good job in America: work and education in the new global technoculture (Lanham, Rowman & Littlefield, 2001).

18 Michael J. Mandel, The high-risk society: peril and promise in the new economy (Nova York, Random House, 1996); Richard Breen, “Risk, recommodification and strati-fication”, Sociology, v. 31, n. 3, 1997, p. 473-89; Jacob Hacker, The great risk shift (Nova York, Oxford University Press, 2006).

19 Ulrich Beck, The brave new world of work, cit., e Sanford M. Jacoby, “Risk and the labor market: societal past as economic prologue”, em Ivar Berg e Arne L. Kalleberg (orgs.), Sourcebook of labor markets: evolving structures and processes (Nova York, Klu-wer Academic/ Plenum Publishers, 2001).

20 Ver Lawrence Mishel, Jared Bernstein e Sylvia Allegretto, The state of working Ame-rica 2006/2007 (Ithaca/ Nova York, ILR/Cornell University Press, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 54HEGEMONIA_miolo.indd 54 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 52: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O trabalho precário nos Estados Unidos • 55

Consequências do trabalho precário

É importante examinarmos o trabalho precário porque ele traz inúme-ras consequências negativas para indivíduos, famílias e sociedades. O traba-lho está relacionado a vários outros aspectos sociais, políticos e econômicos, e, por isso, o crescimento da precariedade e da insegurança traz efeitos de longo alcance, tanto para fenômenos ligados ao trabalho como para aqueles alheios à questão.

O trabalho precário causa insegurança e volatilidade econômica para os indivíduos e seus familiares, contribui para o crescimento da desigualdade econômica e reforça os sistemas distributivos já desiguais e injustos dos Estados Unidos.

O trabalho precário também traz uma vasta gama de consequên cias para indivíduos que estão fora do mercado de trabalho. Polanyi afi rmava que o funcionamento desregulado do livre mercado deslocava as pessoas física, psicológica e moralmente21. Os impactos da incerteza e da inseguran-ça sobre a saúde e o estresse dos indivíduos são fartamente documentados22. A experiência da precariedade também corrói a identidade individual e pro-move a anomia, como afi rma Sennet23.

Além disso, o trabalho precário tem tornado a vida das famílias mais difícil e insegura. A incerteza sobre o futuro pode afetar o processo de to-mada de decisões dos casais sobre questões importantes, como a escolha do momento mais adequado para casar e ter fi lhos, ou o número de fi lhos que poderão ter.

O trabalho precário afeta também as comunidades, podendo conduzir à perda do engajamento social, como indica o declínio da participação em associações de voluntários e organizações comunitárias, da confi ança e do capital social em geral24. Isso pode provocar mudanças na estrutura das co-munidades, porque as pessoas que perdem seus empregos por falência da

21 Karl Polanyi, The great transformation, cit., p. 73.22 Hans De Witte, “Job insecurity and psychological well-being: review of the litera-

ture and exploration of some unresolved issues”, European Journal of Work and Or-ganizational Psychology, v. 8, n. 2, 1999, p. 155-77.

23 Richard Sennett, The corrosion of character: the personal consequences of work in the new capitalism (Nova York, W. W. Norton, 1998).

24 Robert Putnam, Bowling alone: the collapse and revival of American community (No-va York, Simon & Schuster, 2000).

HEGEMONIA_miolo.indd 55HEGEMONIA_miolo.indd 55 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 53: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

56 • Hegemonia às avessas

empresa ou redução de custos podem não estar mais aptas a viver na comu-nidade (embora também não possam vender suas casas, se o período sem emprego for prolongado) e os recém-chegados podem não ser capazes de se fi xar num trabalho sem garantias.

A insegurança também aumenta as tensões sociais. A precariedade pode contribuir para atitudes negativas dos nativos contra os imigrantes, já que as comunidades experimentam uma usurpação por parte dos re-cém-chegados – tanto legais como ilegais – que se dispõem a trabalhar por salários mais baixos e a tolerar condições de trabalho piores do que aquelas aceitas pelos nativos. A insegurança e a perda de oportunidades de recontratação também podem agravar a criminalidade e o enfraqueci-mento da vida política.

O trabalho precário e as políticas públicas

O crescimento do trabalho precário gera novos desafi os e oportunida-des para sociólogos que buscam explicar esse fenômeno e desejam contri-buir para a criação de políticas públicas efi cazes para enfrentar suas caracte-rísticas e consequências emergentes. Atualmente, há um vácuo teórico em nossa compreensão dos mecanismos produtores de precariedade, bem como de suas soluções. Esse vácuo oferece um espaço intelectual para que cientis-tas sociais expliquem a natureza do trabalho precário e ofereçam possíveis soluções em políticas públicas.

Os economistas atualmente dominam as discussões. Os especialistas em trabalho, por exemplo, saíram à frente ao elaborar estudos detalhados sobre o que vem acontecendo no universo do trabalho, oferecendo aos responsáveis pelas políticas públicas importantes descrições e dados que merecem ser discutidos. Visto que as questões acerca do trabalho precário e da insegurança no emprego têm raízes nas forças sociais e políticas – e visto que a economia, como Polanyi e tantos outros notaram, está incrus-tada nas relações soc iais –, os sociólogos e demais cientistas têm hoje a extraordinária oportunidade de ajudar a formar políticas públicas, ex-plicando como os fatores culturais e institucionais em sentido am plo produzem a insegurança e a desigualdade. Tais explicações são o primei-ro passo essencial para o planejamento de políticas efi cazes que visem atingir as causas e os efeitos da precariedade e, com isso, reescrever o con-trato social.

HEGEMONIA_miolo.indd 56HEGEMONIA_miolo.indd 56 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 54: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O trabalho precário nos Estados Unidos • 57

Todos os países industrializados enfrentam hoje o dilema básico de equilibrar segurança (devida à precariedade) e fl exibilidade (devida à com-petição) – as duas dimensões do “movimento duplo” descrito por Polanyi. Os governos têm conseguido solucionar o dilema de diversas maneiras; contudo as soluções são sempre locais e específi cas a contextos particulares. Em alguns países, o socialismo foi implantado justamente para lidar com as incertezas associadas à rápida mudança social. Mas, por volta do fi m dos anos 1980, esse sistema caiu em desgraça e o capitalismo se tornou o sistema econômico predominante. A questão agora é saber que arranjos institucio-nais alternativos serão postos em prática para reduzir os riscos dos emprega-dores e a insegurança dos empregados. O grau com que os empregadores conseguem transferir seus riscos para os empregados depende do poder re-lativo dos operários diante dos patrões. Nesse aspecto, diferentes regimes de emprego têm produzido diferentes soluções.

Segurança no emprego versus segurança no mercado de trabalho

A relação entre a precariedade e a insegurança econômica e outras tende a variar conforme o país, dependendo das garantias trabalhistas e sociais oferecidas além das condições do mercado de trabalho. Por isso, o emprego precário não varia de país para país da mesma forma que a insegurança. Isso corresponde à distinção entre insegurança no trabalho e insegurança do mercado de trabalho: os trabalhadores em países com melhor proteção so-cial são menos propensos a experimentar a insegurança do mercado de tra-balho, embora não necessariamente menos insegurança no emprego25.

As políticas públicas devem buscar atingir dois objetivos centrais. Em primeiro lugar, é improvável que as forças que conduziram ao crescimento do trabalho precário venham a perder impacto tão logo e tão fácil, dado o atual modelo hegemônico do livre mercado global. Sendo assim, políticas públicas efi cazes devem ajudar as pessoas a lidar com o caráter inseguro e incerto de seu trabalho ou emprego (e a consequente confusão, incerteza e caos em suas vidas) e ao mesmo tempo manter algo da fl exibilidade que

25 Christopher J. Anderson e Jonas Pontusson, “Workers, worries and welfare states: social protection and job insecurity in 15 OECD Countries”, European Journal of Political Research, v. 46, n. 2, 2007, p. 211-35.

HEGEMONIA_miolo.indd 57HEGEMONIA_miolo.indd 57 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 55: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

58 • Hegemonia às avessas

os empregadores demandam para competir num mercado de âmbito mun-dial. Em segundo lugar, as políticas públicas também precisam estimular (sempre que possível) a geração de empregos não precários.

A necessidade mais premente é a assistência médica a todos os cidadãos que não esteja ligada a nenhum empregador particular, quer dizer, um ser-viço médico pessoal e portável*. Isso reduziria muitas das consequências negativas associadas ao desemprego e à mudança de emprego. Outra neces-sidade é a cobertura de pensões transferíveis que complementem a previ-dência social e ajudem as pessoas a se aposentar com dignidade. Melhores serviços assistenciais são indispensáveis para contrabalançar os riscos do de-semprego e da volatilidade do salário e da renda26. Essas formas de assistên-cia e segurança devem estar disponíveis a todos.

Também devemos gerar empregos menos inseguros. As políticas públi-cas devem encorajar os empresários a criar vagas mais estáveis e melhores, restabelecendo os padrões mínimos do mercado de trabalho (por exemplo, um salário mínimo) ou oferecendo isenções fi scais às empresas que investi-rem no treinamento de funcionários e outras estratégias “pró-ativas”. Con-tudo, depender da iniciativa privada para gerar empregos bons e estáveis é uma estratégia limitada, uma vez que as próprias empresas estão relati-vamente precarizadas. Abordagens tipicamente keynesianas de criação de cargos públicos podem gerar empregos mais seguros, bem como satisfazer muitas das necessidades nacionais prementes, como a reforma da infraes-trutura e a melhoria da situação de empregos atualmente mal pagos e pre-cários em setores ligados à saúde e aos cuidados com idosos e crianças. A atual crise fi nanceira tem contribuído para criar oportunidades de imple-mentação de medidas à la Keynes.

A habilidade dos trabalhadores no exercício da representação coletiva – por meio de sindicatos e outros órgãos – é essencial para o sucesso de esforços sérios para lidar com o trabalho precário e criar contramovimentos democrá-ticos que possam implementar modalidades de fomento e proteção social a fi m de resolver os problemas gerados pelo trabalho precário ou pro duzir em-

* Serviços “portáveis” são aqueles que continuam disponíveis a seus titulares mesmo após estes serem desligados da empresa que os oferecia. Por exemplo: caso seja por-tável e pessoal, o plano de saúde de um funcionário continuará sendo oferecido a ele mesmo após sua demissão. (N. T.)

26 Jacob Hacker, The great risk shift, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 58HEGEMONIA_miolo.indd 58 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 56: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O trabalho precário nos Estados Unidos • 59

pregos mais seguros. Além disso, a natureza mundial dos problemas rela-cionados à precariedade evidencia a necessidade de as soluções nacionais estarem ligadas a organismos transnacionais, regulamentações trabalhistas internacionais e outros esforços globais27.

Esse contramovimento democrático também deve estar engajado com as políticas públicas por meio de um sério debate sobre as formas da globa-lização. Devemos criar uma nova consciência internacional que veja a glo-balização como um conjunto particular de escolhas políticas, e não como uma característica inevitável e imutável do progresso econômico. Esse de-bate é cada vez mais crítico hoje, dado o agravamento e a amplitude mun-dial da atual crise fi nanceira.

O caso dinamarquês mostra que é possível ter um aumento de precarie-dade para o empregador e, mesmo assim, as políticas públicas locais conse-guirem garantir uma segurança relativamente alta e boa no mercado de trabalho. Na Dinamarca, a segurança em qualquer emprego (individual) é relativamente baixa, porém a segurança no mercado de trabalho (como um todo) é razoavelmente alta, visto que é oferecida uma boa dose de proteção e auxílio aos trabalhadores desempregados para que encontrem uma nova colocação (como complemento de renda e treinamento profi ssional). Esse famoso sistema de “fl exigurança” combina “regras fl exíveis para empregado-res contratarem e demitirem e mecanismos de segurança social para todos os trabalhadores”28. O exemplo da “fl exigurança” sugere que temos boas razões para ser otimistas quanto à efi cácia de intervenções adequadas nas políticas públicas dirigidas ao problema da precariedade.

Conclusões

As mudanças estruturais que conduziram às relações de emprego ins-táveis e ao trabalho precário não são constantes – nem são irreversíveis e inevitáveis as consequências das forças econômicas. Os níveis de precarie-dade variam de organização para organização dentro dos Estados Unidos,

27 Beverly J. Silver, Forces of labor: workers’ movements and globalization since 1870 (Cambridge, Cambridge University Press, 2003) [ed. bras: Forças do trabalho: movi-mentos de trabalhadores e globalização desde 1870, São Paulo, Boitempo, 2005]; E. Webster, R. Lambert e A. Bezuidenhout, Grounding globalization, cit.

28 Niels Westergaard-Nielsen (org.), Low-wage work in Denmark (Nova York, Russell Sage Foundation, 2008), p. 44.

HEGEMONIA_miolo.indd 59HEGEMONIA_miolo.indd 59 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 57: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

60 • Hegemonia às avessas

dependendo do poder relativo de empregados e empregadores, assim como da natureza de seus contratos sociais e psicológicos. Além disso, a ampla variedade de soluções para o dilema da fl exibilidade e da segurança, adota-das por diferentes regimes de emprego ao redor do globo, sublinham o potencial das forças políticas, ideológicas e culturais para moldar a organi-zação do trabalho e a necessidade de soluções mundiais.

Há muitos obstáculos à implementação de formas de proteção e promo-ção social como os que destaquei aqui. Não obstante, o claro entendimen-to da natureza do problema combinado com a identifi cação de alternativas possíveis e a vontade política para alcançá-las – apoiada pela força coletiva dos operários – oferecem a promessa de um contramovimento efetivo.

HEGEMONIA_miolo.indd 60HEGEMONIA_miolo.indd 60 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 58: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

TRABALHO E REGRESSO: ENTRE DESREGULAÇÃO E RE-REGULAÇÃO

Leonardo Mello e Silva

Quando se trata de enfrentar a discussão sobre classes sociais é difícil, na abordagem sociológica convencional, fugir a certo esquematismo classi-ficatório. A inclusão da temática dos movimentos sociais tornou, sem dúvi-da, mais complexo o debate sobre classes, mas é discutível que tenha avan-çado na direção de um patamar que se possa dizer que tenha colocado os termos do debate em um plano superior àquele em que os clássicos o deixa-ram. O recurso ao historiador Edward P. Thompson não é tão incomum, mas, afora a apropriação que dele fazem os historiadores do trabalho, a re-missão à noção de que a classe é seu “fazer-se” e que, no fim, “esta é sua única definição”1 parece muito menos uma solução que um atalho para fu-gir do verdadeiro problema de seu tratamento sistemático. Na verdade, o que a “definição” thompsoniana de classe indica é que o trabalho analítico começa desse ponto, e não termina nele – como se não houvesse nada mais a fazer além dessa constatação. É preciso demonstrar o “fazer-se”.

A ideia subjacente de que não existe uma classe trabalhadora, mas clas-ses trabalhadoras é estimulante, porém esbarra numa objeção que também é provocativa: se as classes trabalhadoras são sempre definidas de forma alar-gada, baseada em experiências comunitárias, religiosas e consuetudinárias que vão muito além e aquém do trabalho fabril, então o que torna a classe trabalhadora historicamente específica? Será que a devastação neoliberal foi tão completa a ponto de ter apagado inteiramente os valores (igualdade, solidariedade, companheirismo) que a classe trabalhadora capitaneou por longos e heroicos tempos?

1 Edward P. Thompson, A formação da classe operária inglesa: A árvore da liberdade (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, v. 1), p. 12.

HEGEMONIA_miolo.indd 61HEGEMONIA_miolo.indd 61 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 59: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

62 • Hegemonia às avessas

Em texto anterior2, foi apresentado o funcionamento de um tipo de ino-vação organizacional e produtiva – as células de produção – em sua conexão com as exigências de qualidade, flexibilidade e reestruturação das empresas. Ali, o mote era o “desmanche” da classe social. Este capítulo segue no mes-mo caminho e pode ser visto como continuidade do anterior. São evidencia-das agora as precondições institucionais para as mudanças que ocorrem no nível dos processos de trabalho fabris. As medidas oriundas das chamadas “reformas trabalhistas” são aqui abordadas, sempre tendo em vista sua cone-xão com o trabalho concreto e a maneira como os agentes sociais afetados reagem a elas. Esses agentes são – mesmo que à custa da enorme heteroge-neidade e diversidade das situações – participantes de uma classe social.

A maneira que este texto escolheu para tratar do problema da classe so-cial diante das mudanças contemporâneas do trabalho foi a de considerar círculos concêntricos de abrangência que partem de uma situação particu-lar (micro) e caminham para uma órbita mais includente (macro). Assim, o caminho foi: 1) considerar a população das fábricas que foram objeto de estudo anterior, no setor de confecções, com carteira assinada e direitos, co-mo classe trabalhadora (no singular); 2) analisar a relação salarial sob a qual ela está submetida; 3) perseguir as mudanças advindas em um dos susten-táculos mais importantes da forma institucional da regulação entre capital e trabalho: as leis trabalhistas (duas medidas em particular são elencadas e discutidas: a Participação nos Lucros e Resultados e o Banco de Horas); 4) colocar em perspectiva as expectativas políticas da parcela até então mais combativa do movimento sindical, a CUT, diante da disjuntiva recusa ver-sus instrumentalização do aparato regulatório, e quanto tal disjuntiva escon-de um dilema mais fundamental entre corporativismo e pluralismo.

1. A produção celular, o taylorismo e o fordismo:um olhar do presente para o passado

No sistema dito “de linha”, que é o da produção em série, uma mesma operação é repetida de modo contínuo por várias operadoras num mesmo espaço físico, possibilitando uma escala razoavelmente conhecida em ter-

2 Leonardo Mello e Silva, “O desmanche da classe: apontamentos em torno de uma pesquisa”, em Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 62HEGEMONIA_miolo.indd 62 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 60: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 63

mos de quantidade, baseada num tempo médio associado àquela quanti-dade. A produtividade é média, uma razão entre quantidade de peças (ou produtos em processo) e tempo, em que a diferença de performance de cada uma das operárias é diluída no grupo. O balanceamento entre as peças ou produtos em processo é feito apenas a posteriori, quando se comparam os estoques de uma seção com outra (a fornecedora com a cliente), e pode-se então mensurar qual das seções complementares está “atrás” ou “à frente” da outra. Nesse caso, o ajuste, ou balanceamento, é um ajuste entre seções.

O que ocorre no sistema “em linha” é o processo clássico e bem conhe-cido da linha de montagem, isto é, o reconhecimento de um conjunto de operações relativamente desqualificadas (especializadas), em que as operá-rias que realizam as mesmas tarefas não têm razão para cobrar produção umas das outras, uma vez que o sequenciamento é, por assim dizer, coleti-vo, e não individual. As chances de conflito interindividual em torno de quantidades, prazos e qualidade tornam-se, em tese, bem diminutas, por-que isso é feito adiante, não por elas e nem sequer pelas operárias das pró-ximas seções, mas pelos encarregados funcionais de zelar pelo equilíbrio de produção das seções. Alguns monitoram os parâmetros de preferência dos escritórios, como os engenheiros de produção; outros circulam pela fábrica, como os encarregados, os supervisores e outro tipo de pessoal intermediário que age como correia de transmissão entre o planejamento da produção e sua efetivação concreta.

O sistema de células de produção funciona como exato reverso do mo-delo descrito acima. Agora são as operárias que devem realizar o ajuste que antes ficava a cargo das seções. A compatibilidade é verificada não mais a posteriori, ou seja, não é mais “lançada para a frente”, mas sancionada em tempo real, no momento em que as peças são manufaturadas, uma vez que a célula se encarrega de produzir a peça inteira – ou quase inteira. Nesse de-senho, não há mais possibilidade de diluir as cobranças entre as operá-rias, pois a proximidade e a evidente checagem das quantidades e qualida-des com plementares das peças fazem com que a atenção esteja voltada não apenas para a própria operação, mas também para a operação da colega.

Portanto, o sistema de produção celular é “coletivo” e “agregador” ape-nas na aparência; na verdade, ele é individualizante, e não “grupal”. O gru-po encontra-se aqui inteiramente submetido a uma lógica socioeconômica mais ampla, mediada pela inserção da fábrica no circuito de valorização das mercadorias que ela produz. Lógica que, por sua vez, obedece às regras

HEGEMONIA_miolo.indd 63HEGEMONIA_miolo.indd 63 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 61: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

64 • Hegemonia às avessas

da competição interempresas no mercado (global) de produtos de seu ramo de atividade, e que rebate na forma como as operárias se comportam em seu labor diário: uma forma em que a flexibilidade é incorporada no julgamen-to de si e das colegas, isto é, do entorno próximo, bem como na constitui-ção de sua própria subjetividade.

Do ponto de vista da extração da produtividade, as coisas se passam de maneira não tão evidente, uma vez que estão envolvidos níveis desiguais de análise: um nível mais empírico e outro mais subterrâneo, cujas lógicas respectivas nem sempre se superpõem, conduzindo, por isso mesmo, a uma certa confusão terminológica – afinal, como um sistema baseado na produ-tividade individual (o taylorismo) pode ter se convertido num parâmetro coletivo de medida da produtividade (o fordismo) e como o atual modelo flexível se situa diante desses dois?

A produção em linha evoca imediatamente o fordismo. Como se sabe, o fordismo parte do princípio de decantação de tarefas associadas a tempos e movimentos, típico do taylorismo3. No entanto, o fordismo não se presta a um tipo de remuneração “por produção”, como ocorre nas células. O tipo característico do salário fordista é uma remuneração que traduz uma orga-nização coletiva da produção, inadequada para um tipo de remuneração baseada no rendimento individual dos operários, como no taylorismo. Este último pressupõe a mecanização dos ciclos de movimentos do trabalhador, sua simplificação e repetição sistemática, a fim de que possam ser inseridos no processo de trabalho. Sua unidade é o tempo necessário para efetuar completamente a operação. Uma tarefa é um conjunto de operações pres-critas, porque previamente decantadas – estudadas, analisadas e reduzidas a unidade de tempo. A remuneração que advém da tarefa cobre a eficiência (número de peças por unidade de tempo) do ato individual de trabalho, não o conjunto das tarefas diferentes e complementares, que se encontram separadas sequencial e fisicamente na fábrica. O salário taylorista dá conta da variabilidade do trabalho individual (porque modula, enquadra seu mo-do operatório), mas não da variabilidade do conjunto. O problema do tay-lorismo é o problema da integração das seções que são responsáveis por ta-refas específicas para a confecção do produto final.

3 Michel Aglietta, Regulación y crisis del capitalismo (Cidade do México, Siglo XXI, 1979); Benjamin Coriat, L’atelier et le chronomètre (Paris, Christian Bourgois, 1982).

HEGEMONIA_miolo.indd 64HEGEMONIA_miolo.indd 64 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 62: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 65

Quando as trabalhadoras do setor de confecção do caso estudado4 se queixam de que seu trabalho é muito intenso porque têm de “dar produção”, elas estão denunciando o caráter taylorista das células. Nesse sentido, a indi-vidualização é a experiência que traduz objetivamente o tipo de inserção pro-dutiva da operária sob o sistema celular. Elas são, no fundo, cobradas por sua produtividade individual, não por uma suposta “produtividade coletiva”. No entanto, a existência de um “salário-base”, ao lado do “prêmio” ou “bônus” por produtividade, denuncia também a persistência de um rendimento mé-dio para o trabalho naquele ramo. A diferenciação de remuneração que o prêmio possibilita dá-se, contudo, sob uma base reconhecida de remune-ração média para o trabalho da costureira na indústria de confecção, uma remuneração que resulta de uma norma social. Por outro lado, a posição re-lativa entre o salário-base e o salário por produtividade na equação final da remuneração das operárias varia de acordo com a capacidade da categoria profissional das costureiras de forçar uma norma coletiva da remuneração social (média) do ramo ou setor: quanto mais o salário por produtividade se impõe, como resultado da percepção de que ele traduz com mais fidelidade a produtividade do posto de trabalho, mais o salário-base decresce em rela-ção ao salário por produtividade. E é de fato isso que ocorre nos exemplos estudados, quando as informantes acusam o papel fun damental do prêmio para a composição do ganho salarial no fim do mês. O efeito lí quido é a in-dividualização dos salários e o incremento da competição entre trabalhado-res5, além da percepção distorcida de que tal ganho é o correspondente fiel do esforço empreendido por cada uma em sua especificidade produtiva, en-tendido aquele como o conjunto agregado e indissociável, na pessoa, de vá-rios componentes: dispêndio de energia, cuidado, treinamento, dedicação e investimento subjetivo na execução da tarefa. O salário, ao fim e ao cabo, remuneraria esse conjunto agregado para cada uma individualmente:

O interesse de todos os capitalistas coincide com o de cada trabalhador indivi-dual, considerado isoladamente. O salário por empreitada apresenta, pois, para a classe capitalista a vantagem ideológica, nada desprezível, de fazer crer que o salário está ligado ao trabalho como categoria econômica, já que os salários in-dividuais variam em função das diferenças na intensidade do trabalho.6

4 Leonardo Mello e Silva, “O desmanche da classe”, cit.5 Michel Aglietta, Regulación y crisis del capitalismo, cit., p. 120.6 Idem.

HEGEMONIA_miolo.indd 65HEGEMONIA_miolo.indd 65 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 63: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

66 • Hegemonia às avessas

Fazer desaparecer o nexo social de constituição da classe trabalhadora, sua qualificação coletiva, seus vínculos de aprendizado, de trocas recíprocas de ajuda material e de entendimento simbólico do mundo, na medida em que consolidam uma posição de “nós” por oposição ao “eles”7, eis a resul-tante da individualização dos salários, um processo social que corresponde ao que Bourdieu denomina propriamente de “amnésia de origem”.

No entanto, a relação salarial que consagra a individualização do rendi-mento é a rigor pré-fordista, isto é, corresponde a uma fase da produção capitalista em que a coletivização dos meios de trabalho e das forças produ-tivas não atingiu um nível de maturidade a ponto de anular as diferenças de produtividade de postos de trabalho desbalanceadamente diferentes. Quan-to mais se aproxima desse nível forçosamente coletivo, mais a contraparti-da salarial se aproxima do salário-base, ao invés do salário por produtivida-de. Ao fim e ao cabo, o que o capitalista paga é sempre o valor médio de um determinado bem ou serviço, embora essa correspondência esteja escondida pela relação (aparente) de retribuição justa entre esforço e rendimento. Nas formas mais coletivas (mais fordistas) de processo de trabalho, o ajuste des-ses desbalanceamentos é feito via modificação da norma de produção: colo-cando a meta num patamar mais elevado ou difícil, mais tempo os operários terão de despender para alcançá-la. O trabalho se intensifica e se enrijece, enquanto a norma de rendimento pelo trabalho efetuado naquele interva-lo dilui os ganhos para aqueles que eventualmente são capazes de ir além da norma. O perigo dessa estratégia de forçar a norma de produção é provocar a unificação do coletivo de trabalho, pois fica claro que ninguém é capaz de alcançar a meta.

No sistema de células, a norma coletiva de produção é deliberadamente quebrada pelo arranjo flexível das máquinas e dos grupos responsáveis por elas (o layout em U), e os lotes não são mais contínuos, mas diversificados, de acordo com a demanda. A integração do processo produtivo não é mais buscada no fim (a posteriori), mas no início, no momento da manufatura, pelos próprios trabalhadores8. Isso muda a concepção de como o rendimen-

7 Stéphane Beaud e Michel Pialoux, Retour sur la condition ouvrière (Paris, Fayard, 1999) [ed. bras.: Retorno à condição operária. São Paulo, Boitempo, 2009]; Theo Nichols e Huw Beynon, Living with capitalism (Londres, Routledge/Kegan Paul, 1977).

8 No mesmo sentido em que se fala em uma “gestão pelos estoques” no modelo japo-nês (Benjamin Coriat, “Ohno e a Escola Japonesa de Gestão da Produção: um pon-to de vista de conjunto”, em Helena Hirata, Sobre o modelo japonês: automatização,

HEGEMONIA_miolo.indd 66HEGEMONIA_miolo.indd 66 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 64: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 67

to coletivo do trabalho pode ser salarialmente recompensado. As formas já conhecidas de salário por produtividade têm de novo lugar. As células põem em funcionamento uma modalidade já experimentada de relação salarial, fazendo agora a parcela do salário por produtividade avançar sobre a parce-la do salário-base. Quando se adiciona a observação histórica de que os con-vênios coletivos e a negociação salarial são elementos lacunares do arcabou-ço institucional das relações industriais no Brasil, torna-se mais nítido um quadro em que começa a fazer sentido a ideia de uma formação social na qual o taylorismo pode germinar sem necessariamente desembocar no for-dismo, como aconteceu de modo paradigmático com as economias desen-volvidas do centro do capitalismo.

Os limites da gestão pelo grupo e as formas deletérias que daí derivam para os participantes das células, como foi fartamente documentado pelo estudo das células de produção, são de dois tipos: econômicos e sociais.

Econômicos porque dependem da capacidade do coletivo de trabalho de assegurar o avanço do componente do salário-base contra o componente do salário por produtividade. No fundo, é aquele que fornece o parâmetro para a norma de rendimento produtiva, e para a relação salarial então pre-dominante.

Sociais porque dependem do grau de tolerância e de aceitabilidade em relação ao tipo de competição interpares, ao contínuo autocontrole e à des-confiança mútua, enfim, um ambiente organizacional carregado e tenso, que parece duro de manter sem acarretar sérios danos ao bem-estar físico e men-tal dos que nele estão imersos todos os dias.

Com relação aos primeiros, veremos a seguir as peripécias recentes, no Brasil, das formas institucionais que mais diretamente afetam as relações de trabalho: as mudanças na legislação trabalhista, a partir do governo FHC.

Com relação aos segundos, os relatos de estudos de caso (aqui, das fábri-cas de confecção e vestuário), conquanto parciais e limitados a um único setor industrial, parecem falar por si mesmos.

2. As principais medidas da reforma trabalhista hoje

Os argumentos empresariais direcionam suas críticas basicamente para dois aspectos das relações de trabalho vigentes no país: em primeiro lugar,

novas formas de organização e de relações de trabalho, (São Paulo, Edusp/ Aliança Cul-tural Brasil-Japão, 1993), pode-se falar aqui em uma “gestão pelo grupo”.

HEGEMONIA_miolo.indd 67HEGEMONIA_miolo.indd 67 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 65: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

68 • Hegemonia às avessas

para o que consideram a excessiva carga de contribuições associadas ao tra-balho assalariado formal (alguns cálculos chegam a 100% do salário-base); em segundo lugar, para a excessiva proteção legal, que dificulta a demissão. Isso teria estimulado o recurso à subcontratação e a formas de contrato atí-picos, isto é, diferentes do padrão do trabalho assalariado formal no país atualmente (44 horas semanais, com carteira de trabalho). Tais formas de trabalho atípicas seriam: o contrato por tempo determinado, o trabalho por tempo parcial, o recurso aos estágios como forma disfarçada de trabalho, a perenização dos trabalhadores subcontratados etc.

Na visão dos empresários, seria justamente o excesso de regulação estatal do mercado de trabalho que alimentaria a segmentação: como a legislação trabalhista é muito detalhista, estimularia o descarte dos trabalhadores oriundos do mercado formal (porque seriam muito “caros”) e sua substitui-ção por trabalhadores do mercado informal. Um núcleo muito pequeno de trabalhadores e empregados essenciais seria mantido, enquanto a larga maioria seria buscada nas margens desse mercado. Caso a regulação do tra-balho não fosse tão rígida, as diferenças entre os dois “mercados” talvez pu-desse ser menor, aproximando os dois e minando as fontes da heterogenei-dade. Para os empresários, o mercado informal aproxima-se mais do modelo de um verdadeiro mercado de trabalho liberal do que o mercado formal, que não seria propriamente um “mercado”, em razão da alta inci-dência de externalidades.

Os argumentos críticos, sustentados pelos sindicatos e pelos assalariados em geral, vão exatamente no sentido oposto: reconhecem a clivagem entre o formal e o informal, porém afirmam que uma maior homogeneidade do mercado de trabalho deve ser buscada não pela aproximação das condições do primeiro (mais regulado) às do segundo (menos regulado), mas o contrá-rio, isto é, pela inclusão da massa de trabalhadores atípicos no padrão do contrato de trabalho formal por tempo indeterminado, com todos os direitos e benefícios associados a ele. Portanto, ambas as posições admitem a realida-de “partida” do mercado de trabalho brasileiro, no entanto o diagnóstico é divergente, dependendo de para que polo o conjunto deve se orientar – for-mal ou informal. Como se pode depreender, esse não é um quadro muito diferente da tendência mundial, exceto pelo fato de que, nos países emergen-tes em geral, com passado populista ou corporativista, o informal é exces-sivamente desregulado e o formal é excessivamente regulado, se tomarmos como parâmetro de comparação os países de industrialização mais antiga.

HEGEMONIA_miolo.indd 68HEGEMONIA_miolo.indd 68 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 66: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 69

O que se vai apresentar a seguir são as principais medidas flexibiliza-doras do contrato de trabalho formal no Brasil, desde mais ou menos uma década e meia. São proposições do Executivo ou do Legislativo que intro-duzem, a partir dos anos 1990, emendas na Consolidação das Leis do Tra-balho (CLT) ou em artigos da Constituição que tratam das relações de trabalho ou da proteção social em sentido amplo (os direitos sociais). Os projetos de mudança legal significam uma importante tentativa de altera-ção dos marcos institucionais das relações industriais no país. Essas medidas são todas de caráter flexibilizante, como apontam os autores que estudam a matéria há mais tempo9.

Tais medidas atravessaram dois governos, de orientações políticas di-ferentes: o governo de Fernando Henrique Cardoso, de orientação marca-damente neoliberal, e o governo Lula, de centro-esquerda. A postura de ambos tem se pautado, no tocante às reformas da legislação trabalhista, por um comportamento muito similar quanto ao procedimento. Esse com-portamento pode ser definido da seguinte forma: delegar ao máximo para os “agentes” ou “atores coletivos” (capital e trabalho) o formato que a nova legislação trabalhista deve tomar, pois os dois lados admitem, em tese, que a velha ordem (a CLT) é antiquada e deve ser substituída. A palavra de or-dem nos dois campos é o bipartismo, uma vez que a interferência estatal é considerada prejudicial pelos empresários. Já a principal central sindical (a CUT) persegue exatamente uma distância formal do governo, evitando com isso uma identificação direta com ele, pois essa era a imagem do antigo trabalhismo dos anos 1940-1960, corrente do “velho sindicalismo” da qual ela busca se distanciar. Não há uma articulação orgânica e explícita entre sindicatos e governo (conforme se pôde vivenciar nas experiências so-cial-democratas ou neocorporativas), devendo os primeiros disputar seu espaço como qualquer outro ator coletivo no “‘mercado político”. O plu-

9 Márcio Pochmann e Amilton Moretto, “Reforma trabalhista: a experiência interna-cional e o caso brasileiro”, Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano 3, v. 2, 2002; Andréia Galvão, Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil (tese de doutorado em Ciências Sociais, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2003); José Dari Krein, “Balanço da reforma trabalhista no governo FHC”, em Marcelo Weishaupt Proni e Wilnes Henrique, Trabalho, mercado e sociedade: O Brasil nos anos 90 (São Paulo, Unesp, 2003); idem, Tendências recentes nas relações de emprego no Brasil (tese de doutorado em Economia Aplicada, Campinas, Universidade Estadual de Cam-pinas, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 69HEGEMONIA_miolo.indd 69 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 67: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

70 • Hegemonia às avessas

ralismo passa a ser o tom dominante do governo no tratamento com as centrais sindicais.

Com esse panorama do conjunto de medidas para a reforma das leis tra-balhistas, a partir de meados dos anos 1990, chega-se à conclusão inequívo-ca de que o vetor originário dessas medidas de reforma é o Poder Executivo, porém o complicador é que elas pareciam fazer eco a uma longa e histórica demanda do “novo sindicalismo” (autonomia em relação ao Estado). Tais medidas reformistas vieram “de cima”, como que forçando à negociação.

Neste texto, vai-se proceder à análise de duas dessas medidas: a Partici-pação nos Lucros e Resultados (PLR) e o Banco de Horas. A primeira será vista com mais detalhe; a segunda, de forma mais rápida. Ambas afetam de modo direto a organização do trabalho, uma vez que passam a incorporar na norma legal o mesmo princípio por trás do just-in-time e da flexibilidade.

2.1. A Participação nos Lucros e Resultados (PLR)

2.1.1. Histórico

A Participação nos Lucros e Resultados (PLR) foi instituída inicialmen-te para substituir a política salarial do governo. Por causa da cultura infla-cionária vigente até 1994, quando foi lançado o plano de estabilização da moeda (Plano Real), a política salarial era muito importante para proteger os salários, pois concedia reajustes automáticos. O governo buscava desven-cilhar-se de qualquer forma de indexação e, por isso, passou a estimular a livre negociação. Não por razões democráticas, mas por razões econômicas.

A política salarial funcionava como baliza para as categorias profissionais, ainda que não fosse capaz de repor as perdas acarretadas pela corrosão infla-cionária. Mal ou bem, os trabalhadores tinham a certeza de que teriam uma compensação salarial – ao menos anualmente – e que esse direito poderia ser reivindicado legalmente, no caso de os patrões se recusarem a provê-la. A li-vre negociação, ao contrário, jogava a responsabilidade para as partes, isto é, empresários e sindicatos, sem a interferência do governo. Por essa razão, não se pode caracterizar essa medida como neocorporativa, uma vez não está pre-sente uma concertação de interesses de base tripartite, com contrapartidas recíprocas entre Estado, empresários e sindicatos. A livre negociação conce-bida pelo governo de então assentava-se sobre uma base de justificação plu-ralista, cuja raiz doutrinária reside no direito individual de escolha.

HEGEMONIA_miolo.indd 70HEGEMONIA_miolo.indd 70 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 68: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 71

A livre negociação e a contratação coletiva como bandeiras históricas do movimento sindical representado pela CUT assentam-se, ao contrário, no direito coletivo de escolha, e é com base nessa compreensão que ela criti-ca o sistema corporativista de relações de trabalho (1943-1988, porém não completamente extinta em alguns artigos)10, pois o trabalho não é nem livre nem autônomo: é compulsório, atrelado e tutelar. A justificativa dos for-muladores desse sistema, os chamados pensadores autoritários do primeiro terço do século vinte, era a de que o povo brasileiro não estava ainda madu-ro para a democracia11.

Já a principal central concorrente da CUT, a Força Sindical, seguindo nesse tópico o mesmo entendimento da CGT, da qual saiu, objetava que a livre negociação poderia beneficiar os sindicatos fortes e prejudicar os me-nores e sem recursos para fazer face ao poder do patronato. Por razões di-versas (basicamente porque não estão preocupados com a solidariedade de classe, mas com os “cidadãos” atomizados vivendo em um mercado ideal-mente perfeito, em que todos podem escolher sem constrangimentos), os economistas liberais da escola da escolha pública chegam à conclusão aná-loga: políticas setoriais ou orientadas devem ser substituídas por políticas ho rizontais, dado que privilegiar uns em detrimento de outros poderia le-var à injustiça; situações diversas no ponto e partida devem, portanto, ser evitadas por princípio. Os sindicalistas da Força Sindical também defen-dem as pequenas e médias empresas (PMEs) em nome da justiça.

O mesmo raciocínio, deslocado para um nível mais abstrato, vale muta-tis mutandis para o sindicalismo em sentido largo: como a parcela dos tra-balhadores sindicalizados é sempre bem menor do que o universo dos traba-lhadores potencialmente “sindicalizáveis”, entendidos estes últimos como a população ocupada, os sindicatos representam na verdade uma minoria dos trabalhadores como um todo – e menos ainda as centrais, uma vez que há muitos sindicatos que não estão ligados a nenhuma central. Desse modo, qualquer acordo firmado entre a parcela organizada dos assalariados e o em-presariado se dará necessariamente a expensas dos setores menos organiza-

10 Atualmente está em discussão uma reforma sindical que pretende atacar a maior parte dos itens remanescentes do sistema corporativista de relações de trabalho, reu-nidos na Consolidação das Leis do Trabalho (editada em 1943) e ainda vigente.

11 Maria Célia Paoli, “Os direitos do trabalho e sua justiça: em busca das referências democráticas”, Revista da USP, São Paulo, n. 21, 1994, p. 101-15.

HEGEMONIA_miolo.indd 71HEGEMONIA_miolo.indd 71 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 69: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

72 • Hegemonia às avessas

dos e desprotegidos por instituições com poder de fogo. Eis a tese da “coa-lização de interesses” entre os sindicatos mais fortes e os setores empresariais igualmente mais fortes.

Quando o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), elei-to logo após o lançamento do Plano Real, propõe a livre negociação, ele o faz em nome de um antigo pleito de liberdade sindical e de negociação di-reta – um pleito que, doutrinariamente, estaria dentro do espírito da mo-dernização das relações de trabalho e com o qual, como vimos, a CUT tam bém concordava, mesmo antes de constituir-se como central (1983), ainda quan do seus principais dirigentes eram apenas líderes sindicais com-bativos do “novo sindicalismo”. O sentido da modernização em FHC, no entanto, já fora contaminado pelo entendimento liberal do termo – sua expressão na racionalidade instrumental se tornaria saliente quando co-locada em perspec tiva com os demais elementos de seu projeto: privati-zações, redução do papel social do Estado, competitividade como selecio-nador de talentos, extensão do contrato como relação social dominante, inserção da economia no mercado globalizado e demais medidas destina-das a tirar o país do “atraso”.

No entanto, a livre negociação, tal como concebida pelo governo, tinha limites: os acordos tinham um teto, isto é, não poderiam caracterizar um aumento real de salário, a fim de evitar comportamentos de reajustes de preços. Em suma, a livre negociação foi imposta de cima (por Medidas Pro-visórias, um instrumento jurídico excepcional pelo qual o Presidente da Re-pública edita leis que passam a vigorar sem a apreciação do Parlamento, que só posteriormente pode derrubá-las ou acatá-las) e sob condições (estabele-ce patamares de tolerância para os acordos salariais), de maneira que se tor-na impreciso chamá-la verdadeiramente de “livre”.

Os efeitos da medida no plano da organização do trabalho e, portanto, na relação entre empregados e gerentes nas firmas particulares fazem-se sentir de modo direto e indireto. Indiretamente porque impõem uma fle-xibilidade salarial que se desvencilha das antigas amarras da política sala-rial. Diretamente porque, ao conectar-se com as demais ferramentas da lean production (produção enxuta), permitem associar o rendimento do trabalho com a produtividade obtida pela aplicação de métodos raciona-lizadores na produção. Enquanto a política salarial resumia uma época de maior previsibilidade e estabilidade (a despeito do ritmo cumulativo de remarcação de preços), a livre negociação e, depois, a PLR vão caracterizar

HEGEMONIA_miolo.indd 72HEGEMONIA_miolo.indd 72 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 70: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 73

mais adequadamente o período subsequente, de flexibilidade e inconstân-cia. Sai de cena um tipo de regulação do trabalho, ainda que autoritário, e entra a desregulação.

O novo panorama, no entanto, muito mais pró-empresa porque den-tro do espírito da reestruturação produtiva e da globalização, não foi alcan-çado por um desenvolvimento autônomo dos principais atores coletivos (capital e trabalho), mas induzido abertamente pelo Estado, com um novo conjunto regulatório das relações de trabalho que inclui, além da PLR, o Banco de Horas, a obrigatoriedade das Comissões de Conciliação Prévia, a possibilidade do trabalho por tempo determinado etc. Trata-se de um con-junto de medidas que visam adequar o mercado de trabalho ao ambiente de flexibilidade.

A partir de 1995, os sindicatos embarcaram no experimento, realizan-do negociações em que esteve presente a PLR. A ideia era “‘usar” a oportu-nidade para fazer valer a livre negociação tal como pensado antes. Muitos advertiram que a conjuntura poderia ser desfavorável, dado que a iniciativa estava com “os patrões” e assumir a proposta poderia significar perda de di-reitos. Outros, mais realistas, lembravam que o quadro crescente de crise e desemprego, com a constante ameaça de fechamento de fábricas ou des-locamento para áreas com custos menores, não deixava muita alternativa além de negociar para tentar perder o mínimo.

Outro fator que contribuiu para a adesão dos sindicatos foi que a PLR, nos termos da lei, exige a participação sindical na negociação, que é feita na forma de uma comissão de PLR. Na concepção original da CUT, era preci-so forçar a entrada dos sindicatos na negociação de resultados e metas, pois isso levaria a aumentar sua importância no interior das fábricas, onde têm dificuldades para atuar por falta de espaços institucionais que prevejam sua atuação ali: as comissões de fábrica, embora previstas em lei, não são a re-gra, e menos ainda as comissões sindicais de fábrica.

Também prevista na lei estava a possibilidade de acesso aos dados eco-nômicos da empresa, para que se possa checar se os montantes distribuí-dos como acréscimo nos salários correspondem efetivamente a tudo o que a empresa pode ceder, se ela não está “escondendo o jogo” etc. Portanto, um apelo persuasivo de transparência e democratização da informação nas rela-ções de trabalho também acabou desempenhando um papel não negligen-ciável na aceitação da proposta pelos sindicatos, afinal eles sempre bateram na tecla da importância de os trabalhadores não serem tratados como meros

HEGEMONIA_miolo.indd 73HEGEMONIA_miolo.indd 73 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 71: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

74 • Hegemonia às avessas

“braços”, mas também como “‘cidadãos”, o que significa ter acesso a infor-mações para poder escolher e deliberar de modo consciente sobre todos os assuntos, inclusive aqueles da fábrica. O apelo da PLR no sentido da trans-parência e da participação parecia um eco longínquo da histórica bandeira de “intervenção no processo de trabalho”.

Duas consequências podem ser indicadas com a medida. Em primeiro lugar, aproximar a PLR da “remuneração variável”, antiga proposta patro-nal. Em outros termos, a produtividade deixa de ser concebida como um prêmio coletivo e passa a ser concebida como uma questão individual, não sendo mais incorporada ao salário. Do ponto de vista das empresas, a pro-dutividade coletiva, por ser uma média, falseia os custos; já a produtividade do pequeno grupo (célula ou time) – e, no limite, a produtividade de cada trabalhador – é mais fiel. Nas fábricas que adotam o sistema de prêmio ou bônus, estes passam a cobrir a diferença entre a percepção do salário “cheio” e o salário decomposto em parte fixa mais parte variável, sendo que esta última fica vinculada à produtividade. Assim, os operários ou operárias têm de trabalhar mais para obter o mesmo montante que antes, como remune-ração pelo labor despendido. Não deixa de ser curioso que, de acordo com levantamento do Dieese, as cláusulas de reajustes ligados à produtividade, anteriormente negociadas no âmbito das convenções coletivas, ficaram de fora dos acordos de PLR.

Em segundo lugar, a PLR permite ao patronato um poderoso instru-mento para esterilizar a negociação coletiva, uma vez que esta não corres-ponde às realidades diferenciadas das empresas, em termos de tamanho, rentabilidade, origem de capital, tecnologia etc. Realidades diferenciadas deveriam levar, reza o argumento, a negociações diferenciadas, por em-presa. De fato, a PLR afastou-se pouco a pouco da negociação coletiva de ramo ou setor e concentrou-se no âmbito das empresas. Hoje, ela é parte constitutiva da regulação interna da vida das fábricas e afeta as po-líticas de recursos humanos na medida em que estas últimas têm de levar em conta mais um reforço dos métodos de gestão baseados em resultados e metas. É como se a política de remuneração estivesse em harmonia com a política de gestão. Relatos de representantes e assessores de sindicatos fazem saber que a PLR ganhou espaço e legitimidade na base, deixando a negociação salarial em segundo plano; ademais, ela significa um acrés-cimo monetário na renda do trabalhador, o que atrai imediatamente o in-

HEGEMONIA_miolo.indd 74HEGEMONIA_miolo.indd 74 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 72: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 75

teresse12. Nesse último aspecto, é um poderoso componente que indivi-dualiza a classe.

Há ainda dois aspectos que merecem ser mencionados. O primeiro é que os benefícios da PLR não são incorporados ao salário fixo e, por isso, não recai sobre ela a carga fiscal que incide, por sua vez, sobre aquele, o que é claramente vantajoso para os empregadores. O segundo é que, paradoxal-mente, a PLR normatiza a flexibilidade, tornando-a uma regra geral: se an-tes esses abonos eram uma complementação cujo parâmetro era o salário fixo, agora o parâmetro são as metas, além dos resultados (lucros) da empre-sa13. O deslocamento é sutil (porque, do ponto de vista nominal, o rendi-mento percebido pelo trabalhador pode não ter sofrido grande variação), mas está em fase com a ideia geral de substituir a política salarial, que pres-supõe uma massa homogênea, por uma remuneração variável, que pressu-põe, ao contrário, diferenças específicas associadas à inconstância do ciclo econômico. Trata-se de uma estaca no coração do fordismo. E uma confu-são para um sindicalismo que, historicamente, vem pleiteando a negociação direta com o patronato14. Com a proposta de um “sistema democrático de relações de trabalho”, um modelo influenciado pela arquitetura negocial macro-micro idealizada pela central CGIL italiana e veiculado pela CUT a partir de meados dos anos 1990, buscava-se escapar dessa armadilha, cha-mando a atenção para os perigos da derrogabilidade do macro pelo micro, fato que foi corrigido a tempo.

12 Ciente disso, a recomendação da CUT foi que, nas negociações da PLR, um teto de 15% da remuneração anual do trabalhador não poderia ser transposto, pois isso po-deria comprometer a própria negociação salarial em si, isto é, os reajustes e aumen-tos válidos para toda a categoria. Atualmente, os acordos já estão desimpedidos do controle anterior quanto ao teto.

13 Na verdade, a resolução normativa sobre a PLR nada mais fez do que sancionar igualmente para todas as categorias, ramos e empresas a “regra” da flexibilidade da remuneração, uma vez que, antes da lei, muitas empresas na prática já adotavam procedimento semelhante, por meio de abonos, prêmios, décimo quarto salário ou dedicações acrescidas ao salário fixo, a título diverso, como riscos à saúde, acessibi-lidade ao local do trabalho e, finalmente, lucros auferidos no período.

14 Por causa das características do sistema de relações de trabalho corporativo, essa pos-sibilidade sempre foi relegada. O grande salto representado pelo chamado “novo sindicalismo”, quando este surgiu em 1978-1979, foi exatamente a instituição da negociação direta entre metalúrgicos e representantes patronais, sem a mediação do Estado.

HEGEMONIA_miolo.indd 75HEGEMONIA_miolo.indd 75 9/8/10 4:27:33 PM9/8/10 4:27:33 PM

Page 73: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

76 • Hegemonia às avessas

2.1.2. Como a PLR é negociada

São três os âmbitos institucionais em que a PLR pode ser implementa-da: 1) na convenção coletiva de categoria; 2) no acordo coletivo de empresa; 3) unilateralmente, quando a empresa apresenta uma proposta fechada. A sequência obedece a um gradiente de maior para menor abrangência públi-ca e geral. Nos dois primeiros casos, a implementação é feita por intermédio de comissão formada para esse fim, com participação sindical. No último caso, não há propriamente negociação e o sindicato fica de fora. Numa pu-blicação de 1999, o Dieese acusa 1.659 acordos coletivos por empresa e apenas 59 convenções coletivas, quando se trata de cláusulas que incluem alguma forma de remuneração variável que possa caracterizar uma modali-dade de PLR. O que ocorre é que as convenções coletivas acordam metas para serem atingidas pelo conjunto do setor, porém não estipulam valo-res – estes ficam na dependência do desempenho das empresas em parti-cular. Portanto, como se pode notar, a PLR é talhada para a empresa. Como é um tipo de acordo que obedece às características desta (em termos de ta-manho, origem do capital, histórico de rentabilidade etc.), é muito difícil estabelecer uma regulamentação generalizante. Ela pode associar o ganho complementar a algum resultado imediato do grupo ou de cada trabalha-dor individualmente, sem ter de remeter a um acordo guarda-chuva. “Cada realidade é uma realidade”, reza o mantra gerencial, e não é “justo” que uma seção (de fábrica) ganhe o mesmo que outra, se a primeira é mais produtiva que a segunda.

Alguns observadores ponderam que as metas são ardilosamente monta-das umas contra as outras para evitar justamente que sejam atingidas. Por exemplo: a meta de atendimento ao cliente versus a meta de redução de despesas indiretas (reduzir despesas indiretas implica deixar de atender ao cliente); ou ainda: as metas de redução de acidentes e maior segurança do trabalhador versus aumento do ritmo e intensificação do trabalho. O exem-plo de uma fábrica de ferramentas de São Paulo mostra, pelo acompanha-mento da série de metas desde a sua implantação, que elas parecem ter sido colocadas num patamar impossível de ser atingido na integralidade15. Re-latos a respeito dessa empresa chamam a atenção, ademais, para a mecânica de funcionamento: o acompanhamento mensal das metas era efetuado em

15 A descrição da qual foi extraído o exemplo está em Debate & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 51-65.

HEGEMONIA_miolo.indd 76HEGEMONIA_miolo.indd 76 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 74: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 77

reuniões periódicas com os trabalhadores e isso gerava um sentimento dis-seminado de cobrança; um quadro de indicadores acompanhava o anda-mento comparativo entre o que fora estipulado e o que fora de fato reali-zado, o que foi interpretado pelo sindicato como uma forma de pressão e intensificação do trabalho. Essas reuniões eram ocasiões em que um traba-lhador cobrava do outro o não atingimento de metas, pois isso significava, afinal, uma remuneração menor. Assim, de forma lenta, mas persistente, observou-se uma junção entre a remuneração de tipo variável em substitui-ção da fixa e a intensificação do ritmo e da carga de trabalho. Exatamente como acontece nas células de produção das fábricas estudadas16. O processo de fazer passar a antiga compreensão da responsabilidade coletiva para a no-va compreensão da responsabilidade pessoal e individual é mediada, preci-samente, pelas mudanças na remuneração, naquele ponto, portanto, que afeta diretamente a sobrevivência e apela para a necessidade.

Pode-se constatar, então, que o que acontece com as células tem um cor-respondente funcional na PLR e, como se verá mais à frente, no Banco de Horas.

Quanto à modalidade da negociação da PLR, pode-se dizer que os acor-dos têm formato bipartite, por “autocomposição dos interesses”, ou seja, não há intervenção da Justiça do Trabalho nem casos de conciliação, media-ção ou arbitragem, mesmo privada17. Quanto à justificação da negociação da PLR entre empregados e patrões, vale a pena explorar um argumento que circulou no meio sindical e que, por tabela, toca num tópico importan-te das relações de trabalho no país. Ele diz respeito ao poder das bases para impor um acordo favorável à coletividade do trabalho, seja no setor, seja na empresa. O argumento a favor da livre negociação, sustentado pelo sindica-lismo cutista, opõe o sistema tutelar do corporativismo à organização por local de trabalho, vista como meio de assegurar uma representação de fato dos trabalhadores, aproximando o sindicato das bases. Esse argumento foi levantado muitas vezes em nome da “autonomia” da ação diante da institui-ção (sindicato).

16 Leonardo Mello e Silva, “O desmanche da classe”, cit.17 No entanto, há registros de casos em que o auxílio de uma terceira parte é buscado.

Ver artigo de José Dari Krein e Ana Tércia Sanches em Debates & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 161-75.

HEGEMONIA_miolo.indd 77HEGEMONIA_miolo.indd 77 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 75: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

78 • Hegemonia às avessas

Aos olhos dos cutistas, portanto, a livre negociação era o ácido que iria corroer o sistema corporativo, quebrando o círculo funcional de interesses de cúpula, presente mesmo depois que a Constituição de 1988 permitiu a organização de centrais sindicais. A PLR deveria aproveitar a “janela de oportunidade” oferecida pela reforma trabalhista e impor o projeto original da “democracia no local de trabalho”.

A livre negociação ou livre contratação, formulada nos primórdios de constituição do novo sindicalismo, era contrária à presença estatal nos as-suntos entre empregados e empregadores, fosse esse ou não um traço de postura “liberal pluralista” na negociação coletiva18, o que ensejou muita polêmica entre os analistas. De toda a forma, é lícito conjecturar que a pre-valência do ideário sobre democracia, autonomia e participação que atingia o mundo do trabalho correspondia também, na época, à crítica à presença do Estado na vida social e à valorização do associativismo, da auto-organi-zação da sociedade e da sociedade civil. Essa convergência é vista por alguns autores como a confirmação da dominância de temas liberal-democráticos no interior da intelligentsia brasileira, com ramificações nos debates sobre organização sindical e estrutura corporativa, o que forçosamente conduzia, em termos mais abstratos, à discussão sobre a relação entre Estado e socie-dade – ou Estado e sociedade civil19.

No entanto, entre os elementos do conjunto do ideário liberal-demo-crático estão incluídos, além dos temas da democracia, do pluralismo, da autonomia e da participação, a valorização dos direitos individuais. Ora, essa caracterização não é muito apropriada para o movimento sindical, pois ali se trata exatamente da representação de direitos coletivos. Como mui-tos autores têm enfatizado, os direitos individuais do trabalhador estão muito bem guardados na CLT (enquanto os direitos individuais qua cida-dão possam estar reprimidos na esfera pública – como aconteceu no perío-do ditatorial), diferentemente dos direitos coletivos, que são abafados em sua manifestação autônoma. A agenda e a bandeira da “contratação coleti-va” visavam justamente clarificar essa ótica, separando-a de uma mera tra-dução liberal20 para as relações de trabalho.

18 Maria Hermínia Tavares de Almeida, Crise econômica e interesses organizados (São Paulo, Edusp, 1996), p. 153.

19 Ibidem, p. 154.20 “Barganha coletiva entre agentes situados no mercado”, afirma Maria Hermínia Ta-

vares de Almeida, em Crise econômica e interesses organizados, cit., p. 163.

HEGEMONIA_miolo.indd 78HEGEMONIA_miolo.indd 78 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 76: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 79

Já do outro lado do debate, o movimento sindical representado pelo “novo sindicalismo” significava a possibilidade de unir o movimento ope-rário e sindical como um movimento social, agora não como parcela saída do Estado, isto é, não como um “membro” de seu corpo (imagem, de res-to, muito própria ao corporativismo), mas como parte e parcela da socie-dade civil.

A breve digressão histórica sobre o significado da livre negociação ajuda a explicar certas escolhas programáticas do presente, entre elas a estratégia de ganhar influência. Na negociação da PLR com as empresas, o sindicato tenta influenciar no âmbito do acordo coletivo, e quando não há represen-tantes do sindicato na comissão instituída para esse fim precípuo. As comis-sões têm de ser eleitas pelos trabalhadores da empresa, e muitas vezes o sin-dicato não está presente nelas. Como a legislação que instituiu a PLR prevê sempre a participação sindical, isso força que esse ator social não esteja ausente do processo21. A inclusão dessa exigência foi sem dúvida o resultado do peso social considerável que o movimento social adquiriu no processo de redemocratização, já com as centrais sindicais consolidadas, em meados dos 1990, quando o processo dito de “flexibilização das leis trabalhistas” começou pela via da remessa de Projetos de Lei e Medidas Provisórias.

A ideia dos sindicatos era que a comissão de PLR poderia servir como uma modalidade de organização por local de trabalho. O aconselhável era comprometer os trabalhadores da própria empresa na negociação, em vez de simplesmente alocar para a comissão um diretor sindical que não conhe-cesse as realidades específicas, o histórico das relações de trabalho micro etc. Ao invés de de cima para baixo, de baixo para cima: essa era a máxima or-ganizativa do sindicalismo. Há, porém, um problema sério relacionado às garantias dos membros que negociam o acordo. Não há previsão de estabi-lidade para os trabalhadores que fazem parte da comissão de PLR. Isso acar-reta, na prática, a substituição por negociadores sindicais e o esvaziamento do propósito de aproximar a comissão de uma OLT (organização por local de trabalho), como deseja a CUT.

21 Embora o sindicato possa ser apenas comunicado da decisão tomada pela comissão, sem ter tido qualquer participação no acordo. Ele corre riscos se se colocar frontal-mente contra o acordo, porque a empresa pode atribuir a culpa a ele pelo emper-ramento de negociações que, ao fim ao cabo, renderão um acréscimo salarial para os empregados. De qualquer forma, o sindicato deve chancelar o acordo. Ele se torna o “depositário” do acordo de PLR.

HEGEMONIA_miolo.indd 79HEGEMONIA_miolo.indd 79 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 77: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

80 • Hegemonia às avessas

Por outro lado, em setores ou empresas sem presença sindical, o argu-mento de que a comissão de PLR pode reforçar a OLT passa a ser mais per-tinente: ao assegurar ganhos materiais via PLR, forçando às empresas a conceder mais do que propõem de início, os membros dos sindicatos que participam das negociações, na melhor das hipóteses, ganham legitimidade diante dos empregados da empresa, os quais passam a se mobilizar para de-fender a atividade deles ali e eventualmente para se tornar os próprios líde-res. Na pior das hipóteses, começam a ter um conhecimento melhor do lo-cal de trabalho, até então impenetrável.

Um dado, contudo, confirma a suspeita de que a PLR veio para quebrar um padrão coletivo de demandas da classe trabalhadora, padrão que reforça a homogeneidade ou igualdade de seus membros e que se consubstanciava na política salarial: ela passa a ser incorporada aos momentos de campanha salarial das categorias e, portanto, deixa de ser encarada como um “acessó-rio”, sendo agora tomada como “parte” do salário. Nesse sentido, as empre-sas passaram a jogar com a possibilidade de propor um reajuste bem abaixo do esperado (tendo como baliza a inflação passada), a fim de sacar a PLR da manga para chegar ao índice proposto pelo lado sindical. Em suma, ela dei-xou de seguir seu propósito original e foi sendo utilizada como arma nas convenções coletivas, a favor do lado patronal: a PLR joga as negociações por salário para baixo, ao rebaixar o nível a partir do qual se inicia o proces-so de negociação.

Ora, não por acaso, os setores mais organizados do sindicalismo são jus-tamente aqueles em que a discussão da PLR é desvinculada da negociação salarial, como no caso dos petroleiros. Os químicos, por seu turno, vêm tentando utilizar uma estratégia de “avalanche”: primeiro asseguram os ga-nhos salariais na convenção coletiva, em seguida passam a discutir ganhos por empresa (onde entra a PLR), a partir das grandes corporações do setor, e só então passam para as médias e pequenas. Nesse último caso, trata-se de uma tentativa de elevar o nível dos acordos, partindo de um patamar mais “alto” (mais includente) para outro mais “baixo” (menos includente), de forma que os segundos se mirem nos primeiros. Já entre os bancários, por exemplo, os acordos coletivos com os bancos são uma coisa, a campanha salarial (que desemboca na convenção coletiva) é outra, ou seja, os acordos não derrogam os níveis mais includentes e asseguram um patamar mínimo e fixo, dos quais os acordos têm de partir.

HEGEMONIA_miolo.indd 80HEGEMONIA_miolo.indd 80 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 78: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 81

O setor patronal também é acossado pelo dilema do tipo “negociação por baixo ou por cima”, só que num sentido inverso ao dos sindicatos de trabalhadores. As firmas pequenas pressionam o sindicato patronal a recu-sar os acordos muito benéficos para o trabalho, pois caso fossem estipulados como norma geral poderiam “quebrar” muitas delas. Para elas, um patamar minimalista de direitos e benefícios deveria ser seguido de acordos que in-corporassem ganhos proporcionais ao poderio econômico das empresas, do contrário os negócios seriam inviabilizados22. Exatamente o inverso da es-tratégia “em avalanche”.

Outro aspecto – esse muito mais delicado – é a própria definição das me-tas para as quais está associada a participação nos resultados ou lucros. Esse aspecto conecta a PLR com as formas diversas de flexibilidade do trabalho. A PLR não é apenas uma distribuição de lucros; na verdade, ela condiciona a participação nesses lucros ou resultados a certo comportamento (mesmo disciplinar) racionalizado no processo de trabalho, por exemplo faltas, per-formance etc. Por essa razão, os resultados ou metas costumam ser mais ade-quados para o caso de acordos coletivos (empresas) do que para o caso de convenções coletivas (setor ou ramo). Nada impede, porém, que metas sejam acordadas para o setor inteiro, o que em geral é obtido graças à capacidade de pressão do sindicato, sendo, por isso mesmo, mais raro. Os casos bem-su-cedidos de bancários, químicos e petroleiros só confirmam a regra, pois esses sindicatos são historicamente mais fortes. Os bancários conseguiram reduzir a dispersão de valores na distribuição dos ganhos com PLR entre os empre-gados, pois estabeleceram certas regras para parcelas mínima e máxima na forma de um teto para o maior valor recebido. As empresas preferem uma remuneração diferenciada e sem limites “artificiais” – até porque, seguindo a regra do valor distribuído proporcionalmente conforme a escala salarial na empresa, os cargos de supervisão e de chefia são os mais bem aquinhoados, e isso reforça a estrutura de comando interna.

Mas, afinal, o que são, propriamente, os “resultados”? A que se referem? O que é mais vantajoso: participação nos resultados ou nos lucros?

22 Antônio Moreira de Carvalho Neto, “Reestruturação produtiva, jornada de traba-lho e participação nos lucros e resultados: novos temas negociados entre empresários e trabalhadores brasileiros, de 1992 a 1998”, em Maria Regina Nabuco e Antônio Moreira de Carvalho Neto, Relações de trabalho contemporâneas (Belo Horizonte, PUC-Minas/ IR, 1999), p. 178-9.

HEGEMONIA_miolo.indd 81HEGEMONIA_miolo.indd 81 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 79: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

82 • Hegemonia às avessas

Os resultados são aquilo que foi acertado ou “contratado” de antemão com a empresa: os trabalhadores recebem um valor correspondente às me-tas acordadas no contrato. Essas metas referem-se a âmbitos bem dife-renciados: produtividade, rentabilidade, quantidade de produção, vendas, redução de custos, assiduidade, acidentes de trabalho, funcionamento do sistema de qualidade, certificação pelo sistema ISO, limpeza, reclamações de clientes e introdução de técnicas de gestão, além de outros quesitos.

A contratação das metas abre o caminho para a intensificação do traba-lho. Os trabalhadores estão contratando seu desgaste e a própria corrosão daquilo que poderia protegê-los disso. A única coisa que poderia esconder as diferenças individuais e os “poros” devidos ao desbalanceamento entre um operador e outro (afinal, operadores não são máquinas iguais) no pro-cesso de trabalho era exatamente a regra geral do salário contratado coleti-vamente, isto é, o salário fordista.

Já com relação aos lucros, o grande problema está relacionado a sua aferição. Como medir os lucros? Pelo balanço operacional publicado em jornais? É usual no meio sindical, e entre o pessoal de produção, que qual-quer operário ou operária saiba muito bem se a empresa vai bem ou mal; isso é percebido empiricamente, sem necessidade de qualquer planilha ou balanço. Contudo, do ponto de vista formal, as coisas se passam de ma-neira diferente. A informação é chave aqui, mas, como se viu, ela é consi-derada um bem privado. A empresa não precisa “comunicar” sua situação para ninguém.

Há casos em que a PLR não está vinculada nem a resultados nem a lu-cros: por acordo, a empresa simplesmente se compromete a oferecer um abono, sem entrar em detalhes de como tal abono será constituído ou qual será seu critério. Os empregados apenas aceitam o abono, sem se perguntar se poderia ter sido maior, por exemplo. Isso costuma funcionar quando a conjuntura está pró-empresa (por exemplo, após o Plano Real, quando os aumentos reais estavam proibidos porque poderiam causar inflação), mas fica um pouco desacreditado quando a situação se inverte.

A PLR acaba substituindo a discussão sobre aumento real para toda a categoria. Como a quantia distribuída sob a PLR pode ser significativa – uma “bolada” paga de uma vez ou dividida em parcelas, mas que pode che-gar a oito vezes23 o valor do salário base – ela atraiu mais a atenção dos as-

23 Debate & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 168.

HEGEMONIA_miolo.indd 82HEGEMONIA_miolo.indd 82 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 80: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 83

salariados e diluiu o interesse pelas campanhas gerais, pois os ganhos obtidos nestas últimas são menos generosos. No entanto, nunca é demais lembrar que a PLR depende do ciclo econômico e varia de acordo com o desempe-nho das empresas no mercado – até aqui, o movimento tem sido expansio-nista, mas, num cenário de contração da atividade, é possível que a negocia-ção salarial volte ao proscênio na relação com os empregadores.

Seja como for, a parcela fixa deixa de ser o “nó” da questão; este é deslo-cado para a parcela variável, num esquema muito similar ao que ocorre com os prêmios ou bônus das células de produção. A PLR pode acabar se tor-nando assim um mero complemento do reajuste salarial: quando a negocia-ção coletiva não repõe as perdas com a inflação, ela entra quase a título de complemento a fim de cobrir o percentual que ficou faltando. Sua incidên-cia, porém, exclui terceirizados, estagiários, inativos (aposentados ou afas-tados por acidentes) e prestadores de serviço, o que pode gerar conflitos. Além disso, a PLR deslocou o tema da produtividade de um problema co-letivo para um problema particular à empresa. Como virou uma “meta” da PLR, a produtividade não consta mais da negociação salarial da categoria.

A tendência de substituir o salário fixo pela remuneração variável tem ainda mais duas implicações, não mencionadas anteriormente.

Em primeiro lugar, ela desorganiza não apenas o componente direto do salário – aquilo que poderíamos chamar de “salário-base” –, mas também o componente indireto, tais como certos benefícios e adicionais atrelados a ele (alguns previstos na CLT, outros em convenções coletivas): cesta básica como proporção do salário, vales de transporte, refeição, farmácia, convê-nios médicos e outros, além de escalas de classificações como Plano de Car-gos e Salários24. Também é importante ressaltar que a PLR não esgota todas as formas possíveis de remuneração variável (algumas já vigentes antes da lei que a instituiu), mas pode desorganizá-las, seja incorporando-as, seja subs-tituindo-as, seja mantendo-as à margem da comissão da PLR, o que vale dizer, à margem da influência sindical.

Em segundo lugar, ela tem incidência indireta no financiamento dos programas sociais do governo, pois é da massa salarial arrecadada de manei-

24 Outros benefícios eram informais e faziam parte de certos arranjos entre trabalha-dores e chefia imediata, por exemplo: os trabalhadores se revezam nos turnos da noite, a fim de ganhar os 50% do adicional noturno (relato de uma experiência de PLR em Debate & Reflexões, n. 12, maio 2004, p. 55).

HEGEMONIA_miolo.indd 83HEGEMONIA_miolo.indd 83 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 81: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

84 • Hegemonia às avessas

ra constante e previsível da população empregada (folha de pagamento) que sai a garantia de execução desses programas, entre os quais podemos citar a seguridade social, os programas de habitação e de educação, o seguro-de-semprego e o principal fundo público, que é o Fundo de Amparo ao Traba-lhador (FAT).

Por todas essas razões, não há sentido em falar de “disputa” em torno da PLR. Parece claro que o estratagema flexibilizante obedece a uma lógica de usurpação dos valores do público em nome dos interesses privados.

Dito dessa forma, parece um chavão. No entanto, se “disputa” de fato há, no caso da PLR ela se situa não num nível abstrato, mas prático. Envol-ve certos hábitos e costumes, certo estilo de comportamento, palavras e ges-tos que denotam uma linhagem de classe, na qual os atores reconhecem (de modo consciente ou inconsciente) lugares de classe onde se sentem “à von-tade” ou estranhamente incomodados por estar num espaço que “não é o seu”. Pois, afinal, é da mudança num certo mapeamento das posições de classe de que se trata. Enquanto o sindicato faz uma assembleia na porta de fábrica para explicar os motivos da PLR, a empresa faz uma reunião in-terna, numa sala climatizada e com grupos pequenos, sem o representante sindical, para apresentar sua proposta, numa tática de persuasão cujo pro-pósito é individualizar e quebrar a força coletiva representada pelo sindica-to e pela comissão da PLR. Depois, apresenta os resultados mensalmente, de maneira metódica, comparando as metas colocadas no mês anterior e os resultados alcançados no mês em curso. Irrepreensível – como a demons-tração de um teorema. Os trabalhadores se veem assim participando de um “projeto”, encontram sentido naquele ritual de assepsia e de investimento organizativo: não é algo abstrato, mas, ao contrário, algo bem concreto. “Os números são x% menores do que havíamos estipulado etc.”

2.2 O Banco de HorasO Banco de Horas está relacionado à jornada de trabalho. Durante sua

vigência, o trabalhador é dispensado quando não há necessidade de produ-ção e chamado de volta quando a produção é retomada. Nesse período, ele não pode ter redução de salário nem ser demitido.

É importante frisar que, pela legislação vigente, o contrato de trabalho é individual, passado entre empresa e trabalhador. As entidades coletivas (sindicatos) não podem, pela lei, se sobrepor a esse contrato, embora as ne-gociações coletivas não estejam impedidas, e possam até fornecer as balizas

HEGEMONIA_miolo.indd 84HEGEMONIA_miolo.indd 84 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 82: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 85

para as contratações individuais. Os sindicatos têm um reduzido poder de contratação de fato. Portanto, desse ponto de vista, a criação do Banco de Ho ras restabelece o poder coletivo do sindicato na contratação.

Além disso, o Banco de Horas pode ser visto também como uma “im-posição à negociação” vinda de cima, tal como as outras inovações institu-cionais (a PLR, conforme vista acima, a Suspensão Temporária do Contrato ou o Contrato por Tempo Determinado). Antes de a medida ser promulga-da, em 1998, já havia registro de negociações coletivas (acordos ou conven-ções) sobre a jornada de trabalho envolvendo contrapartidas entre tempo e salário: no setor de telecomunicações, entre 1994 e 1995, houve acordos de diminuição da jornada, sem diminuição do salário, para atendentes de re-clamações de usuários e reparadores externos de linhas telefônicas; entre os químicos do ABC, nos acordos de 1996 e 1997, as negociações sobre a jor-nada tomaram a forma de discussão sobre turnos (as empresas desejavam o maior número possível de turnos ininterruptos, enquanto os trabalhadores forçavam turnos menores na semana, com redução das horas semanais tra-balhadas e sem diminuição de salários)25.

Os turnos são importantes porque envolvem a jornada de trabalho diá-ria: se o turno é de seis horas, e não de oito ou doze horas, como anterior-mente, isso significa que a redução do número de turnos na semana leva concomitantemente à redução do número de horas trabalhadas semanais. Quando os trabalhadores lutam por cinco turnos semanais (como os quí-micos), sem diminuição do salário, na verdade tentam inverter a razão tem-po/ remuneração a seu favor – e justificam a medida como uma forma de combate ao desemprego, uma vez que, para preencher o mesmo número de horas, os empresários têm de contratar mais pessoal. A contrapartida pa-ra tal concessão foi a diminuição do percentual incidente sobre as horas ex-tras e o adicional noturno. Os chamados “adicionais” (horas extras e traba-lho noturno) incidem apenas sobre a jornada diária (ou “turno”): menos turnos na semana, menor a incidência de adicionais, o que ameniza o custo para as empresas. Em outros acordos, ao invés de redução do percentual dos adicionais, alguns deles (horas extras) foram simplesmente suprimidos, contrabalançando a manutenção de outros (noturno e riscos)26. Todas essas

25 Antônio Moreira de Carvalho Neto, “Reestruturação produtiva, jornada de traba-lho e participação nos lucros e resultados”, cit.

26 Idem.

HEGEMONIA_miolo.indd 85HEGEMONIA_miolo.indd 85 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 83: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

86 • Hegemonia às avessas

medidas fazem parte de acordos e negociações sobre a flexibilização da jor-nada, e envolvem mais ou menos redução de salário.

O Banco de Horas acabou com essa possibilidade, pois passou a norma-tizar as compensações de uso do tempo, não permitindo que a remuneração entrasse mais como moeda de troca. Os trabalhadores, contudo, estavam acostumados aos ganhos complementares com os “adicionais”, em especial as horas extras, e queixam-se da nova medida. Já os sindicatos, afeitos à de-núncia moral de que os trabalhadores não devem “negociar sua saúde” (isto é, submeter-se a horas extras e riscos para obter um ganho adicional do sa-lário), tentaram converter a nova medida em um impedimento para o ex-cesso de trabalho nos períodos de “vacas gordas”, estabelecendo um teto de duração de trabalho por dia, quando o trabalhador estivesse compensando seu tempo acumulado no período de “vacas magras”.

De fato, há limites na variação das horas que cada trabalhador pode com pensar. Esses limites podem ser estabelecidos nos acordos coletivos com as empresas. Entre as montadoras de veículos, por exemplo, foi estabe-lecido um limite máximo de 44 a 48 horas por semana para o período em que as horas acumuladas são utilizadas ou “creditadas”; além desse limite, o tempo suplementar seria considerado “hora extra” e cada hora extraordi-nária teria um percentual crescente27.

É importante ter em mente que, quando o Banco de Horas veio à luz, a economia brasileira enfrentava um período de forte desemprego e crise (1996-1999). Muitos acordos descentralizados, como, por exemplo, nas montadoras de veículos, foram feitos para tentar evitar demissões, com ne-gociação de jornada de trabalho, salários e benefícios. Os Planos de Demis-são Voluntária foram sacados pelas empresas para que pudessem se desfa-zer de parte de sua força de trabalho. No caso das grandes empresas, que já vinham tentando uma via negociada para o downsizing, o Banco de Horas não foi uma grande novidade28, mas para as médias e pequenas, em que a norma era simplesmente demitir sem mais explicações, ele trouxe um hábi-to novo para a prática das negociações.

27 Idem. 28 Na verdade, grandes montadoras como Ford e Volkswagen anteciparam a medida:

em 1996, utilizaram um banco de horas informal nas negociações por redução da jornada sem redução de salário.

HEGEMONIA_miolo.indd 86HEGEMONIA_miolo.indd 86 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 84: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 87

Outro aspecto do Banco de Horas é que ele torna o tempo de trabalho mais de acordo com a sazonalidade da produção, que tanto pode ser uma característica inerente a certos ramos (como o de peças de vestuário para praia, cujo pico de vendas ocorre no verão) como pode obedecer a uma flu-tuação devida ao mercado, como uma crise no fornecimento de matérias-pri-mas ou outros motivos variados. As implicações para a flexibilidade produ-tiva são evidentes, assim como para uma gestão meramente disciplinar do trabalho: as horas não trabalhadas podem ser debitadas, por exemplo, de au-sências referentes a atrasos e saídas antecipadas, de “pontes” em feriados ou idas a médicos ou dentistas, todas sendo acumuladas na “conta corrente” do tempo de cada trabalhador. Podem surgir conflitos referentes à definição de um afastamento médico ser ou não uma ausência injustificada. Pausas até então toleradas, tais como ir ao banheiro e tomar um cafezinho, passam a ser computadas pela empresa como horas efetivamente não trabalhadas.

O fluxo produtivo torna-se assim mais cerrado, mais tensionado, com a justificativa empresarial de compensar a redução do tempo efetivamente trabalhado. Tudo acordado, contratado, negociado. Uma gramática liberal do contrato vai tomando conta tanto dessa como das outras medidas da reforma, a ponto de consolidar, agora sim, um sindicalismo de barganha e de toma lá dá cá. A ideia inicial de uma “troca justa” por trás dessa con-cepção cede vez a um sentimento de espoliação, já que, ao fim e ao cabo, no acordo moderno passado entre patrões e empregados, os últimos acabam sempre perdendo.

É o mesmo sentimento que aflora quando se percebe que, na confecção que utiliza o sistema celular, a trabalhadora que fica inicialmente como “vo-lante” para cobrir a ausência de alguma costureira, ou a pausa de alguma colega, acaba se perenizando como quebra-galho permanente, na medida em que o enxugamento de pessoal de produção a força a fazer o serviço nor-mal que antes era atribuição da força de trabalho que foi dispensada.

Também estão previstas, como no caso da PLR, comissões de negociação com presença sindical. Os sindicalistas, como no caso da medida anterior, reivindicam que aos membros dessa comissão seja assegurada a estabilidade.

3. Ensaios de negociação e pactuação: antecedentes da Reforma Trabalhista

Os sindicatos brasileiros ensaiaram uma governabilidade neocorporati-va em meados dos anos 1990: queriam participar das políticas econômicas,

HEGEMONIA_miolo.indd 87HEGEMONIA_miolo.indd 87 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 85: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

88 • Hegemonia às avessas

se não como formuladores, ao menos como avalizadores. Além disso, que-riam participar das políticas sociais e trabalhistas, porque entendiam que esses três tipos de políticas (econômicas, sociais e trabalhistas) estavam (co-mo estão) inerentemente intrincados e articulados. Não era possível parti-cipar da formulação de políticas sociais ou do trabalho – o que é, aliás, um âmbito histórico da atribuição sindical – sem enfrentar os constrangimen-tos cuja origem se encontrava na definição de políticas econômicas: opção desenvolvimentista ou opção pela abertura dos mercados, eis um exemplo. Esse era o entendimento que animava os sindicatos cutistas quando do pe-ríodo das câmaras setoriais (1992-1994).

As centrais, enquanto instituições responsáveis pela contenção dos con-flitos laborais, são um traço comum aos corporativismos, sejam eles estatais ou societais. Mas a questão estava do outro lado, isto é, do lado do Estado e dos empresários. No cenário dos anos 1990, com a globalização e o neolibe-ralismo, o aval das centrais e dos sindicatos passou a ser prescindível. A polí-tica econômica poderia ser tocada sem eles. Foi o que o governo FHC fez. O âmbito democrático estreitou-se e a feição decisionista tomou o lugar da fei-ção deliberativa no campo das políticas sociais em geral e das políticas do trabalho em particular29. Não havia mais necessidade dos sindicatos como asseguradores da “paz social”, pois o desemprego, a crise econômica e indus-trial, juntamente com a repressão (greve dos petroleiros de 1995)30 se encar-regaram desse papel. O Estado tomou o proscênio no pacto, destruindo-o.

Como paradigma de organização de interesses coletivos, o neocorpora-tivismo perdeu força nas economias desenvolvidas, porque se tornou in-compatível com a flexibilidade do mercado de trabalho e com a “excessiva” regulação do processo de trabalho (leis, normas, exigências dos sindicatos), bem como com o poder operário (greves, paralisações, influência em comi-tês ou conselhos de empresa). No Brasil, os sindicatos nunca tiveram assen-to em organismos tripartite; portanto, não se tratava de destruir o que havia de construção institucional, mas de evitar a consolidação de uma efetiva

29 Francisco de Oliveira, “Apocalipse now”, em Francisco de Oliveira e Alvaro Augusto Comin, Os Cavaleiros do Antiapocalipse: Trabalho e política na indústria automobilís-tica (São Paulo, Entrelinhas/ Cebrap, 1999).

30 Cibele Rizek, “A greve dos petroleiros”, Praga, São Paulo, n. 9, 1998; Edson Mia-gusko, Greve dos petroleiros de 1995: A construção democrática em questão (dissertação de mestrado em Sociologia, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2001).

HEGEMONIA_miolo.indd 88HEGEMONIA_miolo.indd 88 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 86: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 89

barreira neocorporativa ao ajuste produtivo das empresas em termos de ra-cionalização e flexibilidade.

Assim, as antigas leis trabalhistas do período varguista, reunidas na CLT, acabaram servindo, na transição, como o único porto seguro ao qual se agar rar para evitar o pior, isto é, a total dizimação de qualquer influência sindical na conformação das políticas sociais. Embora isso seguramente não estivesse entre os propósitos originais do corporativismo estatal, elas asse-guravam, contudo, alguns patamares de publicização forçada, vestígios do período anterior, quando a produtividade média dos setores industriais compensava as diferenças de performance intra e inter-ramos produtivos, e distribuía os ganhos marginais (ainda que à custa de eventuais “expurgos”) para a contraparte assalariada, organizada ou não nos sindicatos.

A transição do corporativismo estatal para o corporativismo societal (ou neocorporativismo) não se concretizou, como a CUT acalentava, por cau-sa da avalanche neoliberal, que passou a definir toda organização coletiva de interesses como um complô contra o bem público, entendido este último como um agregado de indivíduos isolados em sua privacidade e idealmente dotados de vontade e capacidade de escolha, independentemente de qual-quer interação e troca de informações. A abordagem institucionalista ape-nas buscou “consertar” esse vício de origem da escola da “escolha pública”, adicionando, no lugar de indivíduos atomizados, instituições que defen-dem interesses definidos, no entanto, de maneira muito próxima à aborda-gem anterior.

Tudo somado, em termos práticos, a noção predominante entre os sin-dicatos, na transição, passou a ser a de que era melhor ficar com alguma coisa (a CLT) do que não ficar com nada. As negociações coletivas passam a se tornar alvo das investidas empresariais para “subtrair direitos”, e esse foi o mote da resistência dos sindicatos durante o período: opor a lei ao contra-to – exatamente o inverso do período imediatamente anterior do ciclo das lutas operárias, que se caracterizava por opor o contrato à lei.

A lei passava a ser vista como mais protetora do emprego, do salário e das condições de trabalho. A crise havia anulado os ganhos de “contratuali-dade”, numa virada em direção a um comportamento defensivo por parte dos sindicatos, o qual os empresários chamavam, por sua vez, de “vetusto” e “atrasado”.

Outro pilar da crítica neoliberal referia-se ao nível de proteção da indús-tria, então impeditiva de competição nos mercados internacionais. Rezava

HEGEMONIA_miolo.indd 89HEGEMONIA_miolo.indd 89 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 87: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

90 • Hegemonia às avessas

o argumento que tal proteção, mantida de maneira artificial como resquício da era de substituição de importações, escondia níveis de produtividade muito baixos nos principais setores. Por essa visão, a dinâmica da acumula-ção deveria passar do Estado (por causa da crise fiscal) para o mercado, o que exigia novos padrões de qualidade dos produtos e consequente reorga-nização das empresas. O resto da história é bem conhecido.

4. Balanço: que classe trabalhadora para que tipo de hegemonia?

Ao subtrair-se de uma regulação pública, por meio da convenção coleti-va, a PLR e o Banco de Horas reafirmam uma tendência de descentraliza-ção da negociação – também outra bandeira do novo sindicalismo. Quando o último propugnava pela descentralização, no fim dos anos 1970, o alvo era o Estado corporativo e autoritário. A contrapartida era a liberdade sin-dical (por isso, muitos na época identificaram aquele sindicalismo como de matiz americana ou business union). Hoje, mais do que nunca, a descentra-lização impera e a “obrigação de negociar” impele à “liberdade de negocia-ção”, sem a participação do Estado, que lava as mãos. O Estado escondido observa de longe a sociedade civil – essa é a imagem que rondava a cabeça dos administradores políticos. É também a imagem que informantes da área gerencial gostam de repetir, referindo-se a sua própria postura autorre-presentada como antipaternalista e moderna: “ao invés de dar o peixe, ensi-nar a pescar”.

A relação salarial que se cristalizou com o ciclo das lutas operárias do ABC e se espraiou depois para os outros setores de atividade continha uma raiz fordista inegável, porque apontava para a unificação da classe como produto da industrialização intensiva vinda desde os anos 1950, os anos do desenvolvimentismo. As características de uma regulação monopolista, com o fechamento do ciclo de implantação de indústrias de insumos e infraes-trutura do II PND (a “marcha forçada”), estavam presentes, permitindo mais um lance – importante – na endogenização das condições de reprodu-ção do capital. Mas essa raiz foi como que ocultada pelo jargão democrati-zante e pelo elã libertário das lutas de classe do período, que apontava para descentralização (o que significava tanto o afastamento da ingerência do Estado quanto a possibilidade de negociação por local de trabalho), auto-nomia, liberdade de contratação e outras. Ocultava também, de certa ma-neira, um forte senso de solidarismo (“a classe trabalhadora”) e de “compa-

HEGEMONIA_miolo.indd 90HEGEMONIA_miolo.indd 90 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 88: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Trabalho e regresso • 91

nheirismo” (“a peãozada”), reconhecendo aí um certo grau de igualdade, de mínimo denominador comum entre o povo “trabalhador”, que quer ser ci-dadão, votar e lutar por melhores salários, o que afeta a todos.

É exatamente esse sentido que, não tendo chegado a madurar a ponto de se tornar uma força social balizadora (uma “hegemonia”), vai sendo ho-je, pouco a pouco, erodido.

As novas formas de organização da produção e do trabalho são uma in-dicação desse processo de erosão, a ponta de um iceberg. O sistema de tra-balho em células, por exemplo, além de desgastante e estressante (por que a produção “tem de sair, de uma maneira ou de outra”), impele a que a per-formance de cada trabalhador (a quantidade de peças que compõe a quota individual), dependa da produção do colega da célula. Isso torna um de-pendente do outro. A confecção de um produto inteiro passa pelas diversas operações de uma célula, e se determinadas partes estiverem em atraso, isso “breca” a operação seguinte. Dessa forma, a célula como um todo deixa de atingir o nível de produtividade necessário para a obtenção do prêmio ou bônus. Todos saem perdendo. Em poucas palavras, os conflitos presentes nas células giram basicamente em torno desta questão: da produtividade e do tipo de relação salarial que está associada a ela.

O que já não é tão óbvio é o sentido da individualização que tal sistema de trabalho acaba acarretando na percepção dos próprios trabalhadores. A célula estimula a cobrança recíproca de resultados (que para a empresa são as “metas”), já que uma operação passa a ser “cliente” ou “fornecedora” da próxima, dentro da própria célula. No caso, se tem de haver um ajuste entre os tempos de entrega e de recebimento das peças, esse ajuste deve ser feito pelos próprios operadores.

Uma sociologia da classe trabalhadora recente no Brasil deveria partir exatamente desse ponto.

HEGEMONIA_miolo.indd 91HEGEMONIA_miolo.indd 91 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 89: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

POLÍTICA E ARTE NA VERDADE E NA FICÇÃO DO TRABALHO: ELEMENTOS PARA UMA

COMPARAÇÃO HISTÓRICA ENTRE O ORIENTE SOCIALISTA E O OCIDENTE CAPITALISTA*

Yves Cohen

Esta é uma contribuição inteiramente histórica. Busca corresponder à abertura intelectual mostrada por esta obra, em que se cruzam economia, política e cultura, em sociologia ou história. Trata-se de um estudo compa-rado das performances industriais do Oriente socialista e do Ocidente ca-pitalista em meados do século XX. Sempre em perspectiva comparativa, destacarei dois pontos: de um lado, a incapacidade do sistema soviético de instaurar a organização do trabalho taylorista nas empresas e as consequên-cias econômicas dessa incapacidade; de outro, a maneira de pensar a eficácia real dos desempenhos industriais no caso dos países socialistas e no sistema soviético1. Veremos os efeitos do governo da economia pela política e tam-bém a que ponto as imagens fixas ou animadas (fotografia, cartaz, cinema etc.) tiveram um papel extremamente importante na própria eficácia da eco-nomia. Será, portanto, uma maneira de reivindicar um entrelaçamento vo-luntário da história econômica e do trabalho, da história política e da história cultural. Mas não por mero gosto de interdisciplinaridade. A compreensão do que se passou no século XX depende certamente desse tipo de abordagem.

O taylorismo à soviética

Os arquivos soviéticos se abriram progressivamente a partir do fim dos anos 1980. Sabíamos muito pouco até então sobre a realidade do trabalho desde a Revolução de Outubro de 1917. Em compensação, éramos fascina-dos pela fascinação dos bolcheviques, e em especial de Lenin, pelo tayloris-

* Tradução de Carolina Pulici. (N. E.)1 Não se leva em consideração aqui a história chinesa.

HEGEMONIA_miolo.indd 93HEGEMONIA_miolo.indd 93 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 90: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

94 • Hegemonia às avessas

mo. Durante muito tempo, um livro dominou as representações, ao menos na França e em alguns outros países em que era conhecido: o de Robert Li-nhart, Lénine, les paysans, Taylor, traduzido em 1983 no Rio de Janeiro sob o título de Lenin, os camponeses, Taylor (Marco Zero)2. O livro se baseava em textos de Lenin que evocavam Taylor e o bom uso que o socialismo po-deria fazer dessa técnica nascida sob o capitalismo. Segundo Lenin, ela ti-nha a vantagem de ter características científicas e, portanto, de ser indife-rente ao tipo de sociedade em que era aplicada.

E, de fato, nos anos 1920 a União Soviética tornou-se certamente o país no mundo em que mais se tentou pôr em ação uma organização taylorista do trabalho. Era uma questão de Estado. Além do mais, a economia havia sido nacionalizada. Um ministério quase inteiro estava destinado à raciona-lização do Estado, mas um Estado que abrangia a administração e ao mes-mo tempo a indústria, e ao qual é preciso acrescentar o próprio partido co-munista, que era um imenso aparelho burocrático que não parava de crescer3. Muitas revistas se consagraram a esse esforço, assim como “institu-tos do trabalho” em várias cidades da URSS4.

Desde então, a representação dominante da União Soviética, e depois dos países socialistas, asseverava que havia verdadeiramente introduzido o taylorismo no país. Mas a história real das experiências industriais era mui-to mal conhecida. Quando historiadores e sociólogos puderam pesquisar por arquivos ou trabalho de campo, o que os chocou foi justamente a au-sência de taylorismo, o desrespeito sistemático dos tempos estabelecidos e, por fim, a impossibilidade de fixar normas eficazes de trabalho5. Aliás, os so-

2 Robert Linhart, Lénine, les paysans, Taylor (Paris, Seuil, 1976). 3 A “Rabkrin” ou Inspeção operária e camponesa. Ver E. A. Rees, State control in So-

viet Russia: the rise and fall of the workers’ and peasants’ inspectorate, 1920-1934 (Lon-dres, Macmillan, 1987).

4 Mark R. Beissinger, Scientific management, socialist discipline and Soviet power (Cam-bridge, Harvard University Press, 1988). Livro baseado sobretudo em fontes im-pressas, e não em arquivos industriais ou administrativos originais.

5 Entre os historiadores, por exemplo, Lewis H. Siegelbaum, “Soviet norm determi-nation in theory and practice, 1917-1941”, Soviet Studies, v. 36, n. 1, 1984, p. 45-68; David R. Shearer, “The language and politics of socialist rationalization: producti-vity, industrial relations and the social origins of stalinism at the end of NEP”, Cahiers du Monde Russe et Soviétique, v. 32, n. 4, out.-dez. 1991, p. 581-608; Ste-phen Kotkin, Magnetic mountain: stalinism as a civilization (Berkeley, University of California Press, 1995).

HEGEMONIA_miolo.indd 94HEGEMONIA_miolo.indd 94 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 91: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho • 95

viéticos e os outros comunistas no poder procuraram incessantemente, através de reformas sempre relançadas, aumentar a produtividade do tra-balho, mas sempre em vão (por exemplo, a reforma de Liberman na URSS dos anos 1960).

Não que os operários não trabalhassem muito6. Meu argumento é que não se chegou a fazer o que se conseguia fazer no Ocidente capitalista, isto é, esquadrinhar o menor gesto de trabalho. Com efeito, a introdução do taylorismo numa empresa pela implantação de um setor de planejamento para preparar o trabalho de cada um significava uma ofensiva contra a au-tonomia dos operários e dos empregados em seus postos de trabalho. Cada movimento, cada deslocamento devia ser útil e eficaz, todos os que fossem inúteis eram suprimidos e cada operário e empregado devia seguir ao pé da letra uma “ficha de instrução” estabelecida pelo setor de planejamento.

Hoje sabemos, graças aos estudos dos sociólogos do trabalho e também dos ergonomistas, que o trabalho prescrito, mesmo na fábrica mais estrita-mente taylorizada, não corresponde nunca ao trabalho real. Para realizar a norma do trabalho é sempre preciso sair dela, encontrar artimanhas que o setor de planejamento não havia previsto. Além do mais, a execução dos tra-balhos é uma atividade de longa duração, em que cada um procura ganhar tempo, portanto acelerar em relação à norma prevista. Mas essa aceleração deve permanecer oculta aos olhos dos preparadores taylorianos do trabalho. Disso decorre um jogo permanente entre, de um lado, operários e emprega-dos e, de outro, agentes do setor de planejamento. Mensurava-se nesse jogo a relação de forças entre a mão de obra e os organizadores do trabalho7.

Malgrado essa distância entre norma e realidade, no conjunto, no Oeste capitalista, a disciplina dos gestos pelos tempos calculados pelos setores de planejamento avançou muito. Essa disciplina era pensada concomitante-mente com os dispositivos técnicos. A busca era comum e coordenada pelas técnicas materiais (máquinas, oficinas, fábricas etc.) e pelas técnicas humanas de trabalho (disciplina, comando, controle dos gestos). Essa coordenação foi uma das forças principais da técnica de produção nos países capitalistas

6 Como mostra a experiência notável do sociólogo húngaro Miklós Haraszti, Salaire aux pièces: ouvrier dans un pays de l’Est (Paris, Seuil, 1975).

7 Pierre Rolle, “Norme et chronométrage dans le salaire au rendement”, Cahiers d’Études de l’Automation et des Sociétés Industrielles, n. 4, 1962, p. 9-38.

HEGEMONIA_miolo.indd 95HEGEMONIA_miolo.indd 95 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 92: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

96 • Hegemonia às avessas

e produziu efeitos muito importantes. Facilitou muito a mecanização, a au-tomatização, a robotização e, portanto, a integração do trabalho físico com uma parte do trabalho mental em máquinas cada vez mais automáticas. A integração da gestão pela informática acelerou ainda mais o processo.

Mas por que não foi possível fazer no Oriente socialista o que se fez no Ocidente capitalista? Para compreender isso, não podemos ficar apenas no nível do posto de trabalho ou da fábrica. É preciso considerar as coi-sas de forma mais ampla. Não podemos, do mesmo modo, permanecer nas questões técnicas da indústria. É preciso acrescentar a razão política à aná-lise dos fenômenos econômicos e fazer uma espécie de economia geral das práticas que compare e avalie a liberdade real em diversas esferas da ativi-dade humana.

É importante identificar uma conjunção de acontecimentos na expe-riên cia dos países soviéticos. A partir de 1929 e do lançamento do primeiro plano quinquenal na URSS e, em seguida, nos países socialistas europeus, buscou-se desenvolver a indústria no mesmo momento em que as liberda-des (liberdade de expressão, liberdade sindical etc.) eram completamente destruídas. Ocorre que a lógica do taylorismo, exposta pelo próprio Taylor, exige que o empregador tenha liberdade para demitir os operários e empre-gados que não conseguem cumprir a norma, mas, ao mesmo tempo, que esses últimos tenham a liberdade de deixar a empresa se não quiserem tra-balhar sob o regime tayloriano8. Ora, se a liberdade de movimento da mão de obra não chega a ser suprimida sob o socialismo, ela é, contudo, muito limitada. E, sobretudo, a liberdade de deixar o país é completamente elimi-nada e permanece inteiramente sob controle político do governo. Desapa-rece, portanto, a primeira das liberdades, isto é, a de partir, de deixar o lugar da opressão e da exploração. Além do regime das liberdades, existe um se-gundo aspecto fundamental da diferença entre os países de regime soviético e os países capitalistas: os primeiros concebem sua economia contra o con-sumo das pessoas. A lógica de conjunto do desenvolvimento e as necessida-des do Estado são sempre privilegiadas. A economia não é governada pelo desenvolvimento de um mercado de bens de consumo. E isso tem efeitos muito diretos sobre a população que trabalha, uma vez que seu consumo não faz parte dos motores da economia.

8 Frederick W. Taylor, The principles of scientific management (Nova York, Harper & Brothers, 1911).

HEGEMONIA_miolo.indd 96HEGEMONIA_miolo.indd 96 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 93: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho • 97

Se o que se busca é estabelecer uma economia geral das práticas, pode-mos então estudar conjuntamente os regimes de liberdade, de consumo e de trabalho. Aliás, poderíamos acrescentar outros domínios de atividade, como a proteção social, a educação etc., mas os limites desta contribuição não o permitem. Um estudo dessa monta supõe considerar e comparar to-das as escalas, do micro (a disciplina do gesto e até mesmo do olhar) ao ma-cro. Na história soviética a partir dos anos 1930, observamos: de um lado, ausência de liberdades políticas e culturais, falta de liberdade de deixar o país e consumo refreado; de outro, repetidos esforços para taylorizar, en-quadrar, esquadrinhar o trabalho até o nível dos gestos e dos movimentos elementares. Ora, este último aspecto do controle dos gestos nunca obteve sucesso9. Houve numerosos conflitos nas fábricas nos quais os racionaliza-dores enfrentaram uma frente de operários de braços dados com a hierar-quia da produção! Com efeito, o problema dos primeiros é o rendimento de cada pessoa no trabalho, mas contramestres e chefes de oficina têm outro problema: é muito difícil manter uma mão de obra mal paga e sempre pres-tes a partir. Eles não querem impor normas ainda mais estritas.

A partir daí temos, de um lado, uma prática discursiva que consiste em dizer: nós organizamos, nós somos organizados como os norte-americanos, como nas fábricas da Ford, e, de outro, há as práticas efetivas de trabalho, em que estamos muito longe da Ford e a autonomia do gesto de trabalho é preservada justamente porque toda palavra livre é proibida e a incitação ao consumo é muito limitada. A economia geral das práticas estabelece que, numa certa duração, nem todas as atividades podem ser completamente controladas e disciplinadas. No final das contas, uma espécie de compro-misso social implícito em larga escala instala-se numa certa estabilidade. O freio das liberdades e do consumo individual correspondia aos traços essen-ciais de um socialismo que buscava estabelecer-se no longo prazo. Esses en-traves fizeram com que se mantivesse uma autonomia no nível do posto de trabalho, malgrado os discursos oficiais sobre o sucesso da organização do trabalho. Esse equilíbrio teve efeitos muito prejudiciais sobre o desenvolvi-mento econômico.

9 Yves Cohen, “The Soviet Fordson between the politics of Stalin and the philosophy of Ford, 1924-1932”, em Hubert Bonin, Yannick Lung e Steven Tolliday (orgs.), Ford, 1903-2003: the European history (Paris, Plage, 2003, v. 2). Baseado nos arqui-vos da fábrica Putilov, de Leningrado, Arquivos do Estado de São Petersburgo, fun-do 1788.

HEGEMONIA_miolo.indd 97HEGEMONIA_miolo.indd 97 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 94: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

98 • Hegemonia às avessas

No Ocidente capitalista, em contrapartida, quando as empresas com-portam um setor de planejamento, elas conseguem, pouco a pouco, ter realmen te certo controle sobre os gestos do trabalho. Além do mais, tudo o que constitui o trabalho em si e seu ambiente é apreendido numa lógica integrada de otimização (máquinas, espaços das oficinas e das fábricas, mo-dos de circulação dos objetos e das pessoas, fluidez organizada etc.) estrei-tamente ligada à disciplina dos gestos humanos. Isso é válido tanto para o trabalho do operário como para o dos funcionários de escritório10. Mas isso se situa em uma atmosfera política inteiramente diferente. Não que o protes-to operário tenha tido toda liberdade para se exprimir. Mas, pouco a pouco, desde o fim do século XIX, os movimentos sociais obtiveram benefícios im-portantes. Na França, uma lei sobre as convenções coletivas foi votada em 1919, assim como sobre as formas de representação operária; depois, em 1936, a possibilidade de se organizar em sindicados dentro das empresas. O direito de greve era protegido, assim como o de deixar as empresas.

Além do mais, uma das técnicas utilizadas pelos capitalistas para conser-var a mão de obra de melhor qualidade é conceder aumentos de salário. Encontramos nos escritos dos organizadores reflexões sobre o fato de que aumentos salariais limitados e comedidos permitem obter ganhos de pro-dutividade muito maiores. Os pensadores da organização dizem também que se uma greve estoura para reivindicar aumento de salários, os empre-gadores devem rapidamente entrar em negociação e fazer concessões, pois toda greve desse tipo termina por um compromisso. Em contrapartida, no caso de uma greve por causa da organização do trabalho, nenhuma conces-são é admissível, porque o patrão deve conservar controle total sobre ela: é preciso aceitar, aqui, o risco de greve11. Ainda que o aumento do consumo seja limitado e as liberdades sejam reduzidas, ambos não são insignificantes e permitem aos especialistas em métodos de trabalho penetrar na lógica dos gestos do trabalho e reorganizá-los, instaurar uma disciplina dos movimen-tos que segue as instruções dadas pelos setores de planejamento (onde im-

10 Ver, para a França, Aimée Moutet, Les logiques de l’entreprise: la rationalisation dans l’industrie française de l’entre-deux-guerres (Paris, Éditions de l’EHESS, 1997); Del-phine Gardey, La dactylographe et l’expéditionnaire: histoire des employés de bureau, 1890-1930 (Paris, Belin, 2001).

11 Ernest Mattern, Création, organisation et direction des usines (Paris, Dunod, 1925), p. 287-8.

HEGEMONIA_miolo.indd 98HEGEMONIA_miolo.indd 98 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 95: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho • 99

pera uma ciência do trabalho) e é continuamente controlada pelos agentes nas próprias oficinas. Temos aí verdadeiramente o “regime despótico da produção” de que fala o sociólogo norte-americano Michael Burawoy, e que se forma no interior das empresas e no nível dos postos de trabalho. Mas sua lógica deve ser apreendida num quadro mais amplo para permitir a comparação com o socialismo soviético tal como ele se desenvolveu e mor-reu no decorrer do século XX12.

Os organizadores soviéticos não alcançaram essa disciplina do gesto por razões claramente políticas. A história econômica do século XX só po-de ser política, portanto. E não podemos dizer, como Lewis Siegelbaum, que “o processo de trabalho tal como emergiu ao longo da industrializa-ção soviética era essencialmente idêntico ao que se desenvolveu no mundo capitalista”13. O sistema de trabalho soviético é, do princípio ao fim, gover-nado pela política, e não pela valorização dos produtos no mercado, o que tem consequências no processo de trabalho. Isso não significa que este seja melhor ou pior em si, mas sim que seu estudo deve recorrer a outras dimen-sões da vida social e política.

Essa dificuldade intransponível encontrada pelo socialismo à soviética é reforçada pelos efeitos perversos e, no entanto, constantes da planificação econômica. Ao invés de organizar a economia, o plano quinquenal (ou se-tenial) torna-a muito caótica. Com efeito, ele não consegue prever todas as manifestações e todas as trocas. Os agentes econômicos devem adaptar-se incessantemente para conseguir realizar o plano. Mas, adaptando-se, eles saem obrigatoriamente das previsões do plano para compensar suas faltas e, por exemplo, obter tal ou tal material ou produto intermediário. Assim, es-sa impossibilidade de planejar todos os atos econômicos provoca numerosas rupturas dos fluxos de abastecimento. Tal ambiente de desordem, encon-trado em todas as economias socialistas, é um fator suplementar que torna impossível a organização do trabalho segundo normas fiáveis e estáveis14.

12 Michael Burawoy, Manufacturing consent: changes in the labor process under monopoly capitalism (Chicago, Chicago University Press, 1979); “L’odyssée d’un ethnographe marxiste, 1975-1995”, em Anne-Marie Arborio et al. (orgs.), Observer le travail: histoire, ethnographie, approches combinées (Paris, La Découverte, 2008).

13 Lewis H. Siegelbaum, “Soviet norm determination”, cit., p. 63. 14 Coletivo Urgense, “Un taylorisme arythmique dans les économies planifiées du cen-

tre”, Critiques de l’économie politique, n. 19, mar.-jun. 1982, p. 99-146.

HEGEMONIA_miolo.indd 99HEGEMONIA_miolo.indd 99 9/8/10 4:27:34 PM9/8/10 4:27:34 PM

Page 96: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

100 • Hegemonia às avessas

O próprio stakhanovismo, que aparece em 1935, lança-se contra todo o conjunto das normas estabelecidas anteriormente (que já tinha tão pouco efeito) e o faz explodir15.

Como se vê, a lógica da economia e do trabalho, até suas mais ínfimas manifestações, não é apreensível senão por uma abordagem que seja tam-bém política, pois tem relação estreita com o regime de liberdades, assim como com a política do consumo. Mas a história das economias à soviética que marcaram tão fortemente o século XX deve recorrer ainda a outra di-mensão que não é familiar aos historiadores do trabalho, da economia e da política: a dimensão cultural. Com efeito, a utilização de imagens em larga escala (fotografias, cartazes, pinturas, filmes, tipografia e todas as outras for-mas gráficas) cumpriu um papel imenso e subestimado no modo de exis-tência das economias socialistas.

A eficácia econômica por meio da imagem

As práticas de imagem, no espaço contínuo de prescrição e ação em que se transforma progressivamente a U.R.S.S à medida que se afirma o poder stalinista, entrelaçam-se com outras práticas de governo e, em particular, com aquelas relativas à economia que já havíamos evocado. Ora, levar em consideração as imagens e seu papel permite certamente responder a uma questão dolorosa tanto para as populações submetidas ao socialismo quanto para os pesquisadores que estudam essas economias. De fato, todos se per-guntam, ainda nos dias atuais, qual era a eficácia “real” da economia à sovié-tica. A controvérsia incide sobre aquilo que é possível avaliar a posteriori. Como já se sabia há muito tempo, todos os dados são sistematicamente fal-sificados em todos os níveis do funcionamento econômico. Trata-se de uma necessidade que encontram os atores para se ajustar aos planos imperativos16.

15 Francesco Benvenuti, Fuoco sui sabotatori! Stachanovismo e organizzazione industria-le in URSS: 1934-1938 (Roma, Valerio Levi, 1988); Lewis H. Siegelbaum, Stakha-novism and the politics of productivity in the USSR: 1935-1941 (Cambridge, Cam-bridge University Press, 1988).

16 Moshe Lewin, “The disappearance of planning in the plan”, Slavic Review, v. 32, jun. 1973, p. 271-87. Ver o debate entre os historiadores Steven Rosefielde, “Sta-linism in post-communist perspective: new evidence on killings, forced labor and economic growth in the 1930s”, Europe-Asia Studies, v. 48, n. 6, set. 1996, p. 959-87; Mark Harrison, “Comment: Stalinism in post-communist perspective”, Europe-Asia Studies, v. 49, n. 3, maio 1997, p. 499-502.

HEGEMONIA_miolo.indd 100HEGEMONIA_miolo.indd 100 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 97: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho • 101

Algumas questões reaparecem constantemente: houve de fato cresci-mento industrial e, se sim, houve crescimento econômico de conjunto nos anos 1930? E se houve crescimento industrial, qual é o valor do que foi efe-tivamente produzido? Qual é a qualidade real dos produtos? As questões permanecem abertas, mesmo no que diz respeito à indústria militar17. Mark Harrison, um dos participantes desses debates e grande conhecedor da in-dústria militar reconhece, a propósito do enorme esforço de mobilização industrial na segunda metade dos anos 1930, que “o fato de saber se ela real mente teve sucesso ou se simplesmente criou a aparência de tê-lo tido não foi ainda suficientemente transformado em objeto de pesquisa”18. Ora, a aparência não poderia ser um componente ativo da eficácia e do sucesso nas condições particulares do stalinismo? No fim da Guerra Fria, viu-se que os soviéticos conseguiram enganar o mundo ocidental sobre a potência real de seu armamento, graças a um trabalho de aparências muito sofisticado em todos os planos, desde a propaganda oficial até a desinformação criada pelos serviços secretos19. A aparência não é, então, a maneira com que se apresenta e se valida uma economia que se desenvolve num mercado prote-gido e isolado e no qual a lógica é antes de tudo política?

Sendo assim, a questão clássica sobre a eficácia “real” seria vã, a menos que esta fosse buscada na ordem política. Além do mais, os historiadores não têm nada que lhes permita “atravessar”, no contrapé, o imenso maciço de falsificações e imagens para chegar a uma hipotética representação “ver-dadeira”, autêntica, da eficácia econômica. E os testes de realidade foram feitos: vitória, é claro, na guerra “quente” (a guerra de 1941 a 1945), mas ao longo da qual a indústria funcionou segundo critérios inéditos, liberada das normas burocráticas do tempo de paz e com o apoio direto e maciço da in-dústria americana, e incontestável fracasso na Guerra Fria e em todas as ou-tras guerras quentes, como a do Afeganistão.

17 Agradeço a Andrea Graziosi por ter partilhado comigo suas indagações sobre o as-sunto. Ver Andrea Graziosi, Storia dell’Unione Soviética: L’URSS de Lenin e Stalin (1914-1945); L’URSS dal trionfo al degrado (1945-1991) (Bolonha, Il Mulino, 2007 e 2008, v. 1 e 2).

18 Mark Harrison, “Soviet industry and the red army under Stalin: a military indus-trial complex?”, Cahiers du Monde Russe, v. 44, n. 2-3, 2003, p. 331.

19 Paul N. Edwards, The closed world: computers and the politics of discourse in cold war America (Cambridge, MIT Press, 1998).

HEGEMONIA_miolo.indd 101HEGEMONIA_miolo.indd 101 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 98: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

102 • Hegemonia às avessas

A economia soviética e, mais amplamente, socialista, tal como foi cons-truída pelo stalinismo, coloca aí um grande problema. Afinal, ela não é uma economia de aparências? A avaliação da eficácia falsificada conscientemente lhe é consubstancial. Não quero dizer com isso que a trucagem reinava ape-nas no ambiente do comunismo no poder, mas, nesse espaço, nenhum mer-cado nem nenhuma guerra concorrencial impõem seu ponto de vista atra-vés de suas próprias instituições nem limitam a proliferação burocrática e a amplitude das dissimulações. Menos ainda que, em toda parte, a forma ma-terial da “aparência” não está nos produtos nem em suas qualidades valida-das pela troca: está nas imagens que delas são dadas, imagens de todo tipo que são facilmente transportadas para longe.

Ora, a época entre as duas guerras mundiais é marcada por uma relação muito estreita entre as artes em geral e a técnica. Importa, aos artistas da imagem, que o objeto técnico se torne o objeto privilegiado da arte. Os so-viéticos estão entre os principais atores desse movimento. A fotografia, o cinema, o grafismo, mas também a pintura e até a arquitetura são os pri-meiros lugares em que as artes se confrontam explicitamente com as técni-cas do mundo industrial. O embaraço da escolha está nas formulações: as-sim, Alexandre Rodtchenko, o mais inventivo dos artistas construtivistas, escreve em 1921 que “todas as novas abordagens artísticas provêm da tec-nologia e da engenharia”. Ainda em 1931, outro construtivista, o arquiteto Iakov Tchernikhov, escreve: “Antigamente, a máquina era considerada pro-fundamente estranha à arte e as formas mecânicas eram excluídas do domí-nio da beleza enquanto tal [...]. Pela primeira vez na história da humanida-de, somos capazes de unir os princípios da produção mecânica e os estímulos da criação artística”20. A partir desses princípios, ele criou uma verdadeira disciplina gráfica.

A circulação e as trocas com os países ocidentais da Europa e os Estados Unidos não deixam de ter seu papel nessa apoteose artística do objeto técni-co. Em 1920, Lev Kulechov, cineasta e teórico do cinema, pensa o america-nismo nos mesmos termos que numerosos artistas ocidentais: o americanis-mo na arte significa uma simplificação que deve se basear na representação de processos mecânicos e não da natureza. A natureza é muito complexa: é mais fácil mostrar uma ponte que uma paisagem de outono com uma caba-

20 Ambos citados por Alan M Ball, Imagining America: influence and images in twentie-th-century Russia (Lanham, Rowman & Littlefield, 2003), p. 35.

HEGEMONIA_miolo.indd 102HEGEMONIA_miolo.indd 102 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 99: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho • 103

na em ruínas, algumas nuvens e um lago nos arredores. O material que seria próprio do cinema como arte, segundo Kulechov, é a técnica. O modelo desse material artístico seria um processo industrial que, além do mais, fos-se filmado com operários autênticos e não com atores. Durante os anos 1920, no cinema soviético, as locomotivas, os tratores, as fábricas, as barra-gens, os aviões, o concreto, o telégrafo e, sobretudo, o telefone tornam-se verdadeiras estrelas, estrelas materiais. Esses “objetos-atores” constituem um tema da teorização cinematográfica que muito se beneficiou da circula-ção internacional dos filmes. Foi pensando nos objetos nos filmes de Cha-plin e, ainda, numa cena de Intolerância* (em que um cigarro ocupa toda a tela) que Kulechov escreveu, em 1920, em La bannière du cinématographe [A bandeira do cinematógrafo], que os objetos “atuam... exatamente como um comediante”: “Graças a uma hábil montagem, um comediante ou um objeto podem ter um valor equivalente”21. A montagem é a principal técni-ca utilizada para dar toda sua força estética aos objetos técnicos, mas não menos importante é o grande plano que permite saturar a imagem.

Se tivéssemos de pensar nos termos da “reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin, obteríamos uma acumulação de técnicas22. Existem obras reproduzidas, mas, nesse espaço estético, as obras em questão não são qua-dros renascentistas, barrocos ou impressionistas, são objetos técnicos. Além disso, pode-se dizer que a própria reprodutibilidade técnica realiza-se atra-vés de duas práticas técnicas: as imagens são apreendidas por um aparelho mecânico (máquina fotográfica ou câmera de cinema) e depois multiplicadas mecanicamente por procedimentos industriais, seja para fazer cópias de fil-mes, seja para imprimir fotografias ou cartazes em dezenas de milhares de

* D. W. Griffith, 1919, 178 min.21 Lev Kulechov, Sobranie sočinenij v treh tomah. 1. Teoria, kritika, pedagogika (Mos-

cou, Iskusstvo, 1987), p. 80. A tradução é de Valérie Pozner, a quem agradeço por ter me introduzido nessa literatura. Em L’art du cinéma et autres écrits (Lausanne, L’Âge d’homme, 1994), p. 53 e notas, o texto utiliza o termo “modelo” em vez de “comediante”; preferi utilizar diretamente o último termo. Ver também, sobre esse tema preciso, a muito estimulante comunicação inédita de François Albera, L’Ob-jeu (Udine, International Film Studies Conference, 2001).

22 Walter Benjamin, “L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée”, em Écrits français (Paris, Gallimard, 2003). [Ed. bras.: “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica – primeira versão”, em Magia e técnica, arte e política: en-saios sobre a cultura, São Paulo, Brasiliense, 1987.]

HEGEMONIA_miolo.indd 103HEGEMONIA_miolo.indd 103 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 100: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

104 • Hegemonia às avessas

exemplares. Temos assim três técnicas, o objeto, sua apreensão e sua multi-plicação, às quais podemos acrescentar uma quarta: a técnica política. Essas imagens são, portanto, quadruplamente técnicas. Dito de outra forma, elas não se limitam a uma manifestação artística, a uma intensificação dos efei-tos da arte pela técnica, posto que a utilização artística das imagens dos ob-jetos técnicos se torna uma arma política. Walter Benjamin havia observado esse fenômeno em seu ensaio. De um lado, ele nota que “pouco a pouco, a necessidade de tomar posse imediata do objeto na imagem – e, mais ainda, em sua reprodução – afirma-se mais irresistível”23. A tese do autor é que a reprodução mecanizada enfraquece a original e abala sua autoridade. É a época em que a imagem mecânica testemunha a realidade. A autoridade se transfere para a imagem fotográfica reproduzida em grandes tiragens (“po-litécnica”, como ele diz) e deixa o original. Para a indústria soviética, isso significa que é inútil ir até lá para ver com os próprios olhos, porque a foto-grafia mostra, à distância, o sucesso industrial (e a felicidade operária). Por outro lado, tendo como consequência, segundo Benjamin, que

a partir do instante em que o critério de autenticidade deixa de ser aplicável à produção artística, o conjunto da função social da arte se encontra invertido. Seu fundo ritual deve ser substituído por um fundo constituído por outra prá-tica: a política.24

E justamente 1930, que é o início da economia planificada, vê o surgi-mento de uma revista verdadeiramente emblemática que se chama U.R.S.S. em construção25, criada por ninguém menos que Máximo Gorki. Destinada a mostrar os progressos do socialismo, a revista nasce do desejo perfeita-mente explícito de tornar mais “visível” o que é “bom”. E, para isso, faz-se uso de fotografias. U.R.S.S. em construção é inteiramente composta de foto-grafias. Seus únicos textos são o editorial e as legendas. Os construtivistas investem na revista. El Lissitzki e Rodtchenko estão entre seus mais célebres editores, ocupando-se inteiramente de numerosos exemplares. A revista tem edições em russo e em línguas estrangeiras (inglês, francês, alemão e

23 Ibidem, p. 183. 24 Ibidem, p. 186. 25 O essencial das informações desse parágrafo vem do artigo de Erika Wolf, “When

photographs speak, to whom do they talk? The origins and audience of ‘SSSR na stroike’ (USSR in construction)”, Left History, v. 6, n. 2, 2000, p. 53-82.

HEGEMONIA_miolo.indd 104HEGEMONIA_miolo.indd 104 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 101: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho • 105

espanhol). Só a edição russa atinge, no fim dos anos 1930, tiragens superio-res a 70 mil exemplares. O público visado é o soviético (na verdade, cada vez mais, as elites soviéticas, às quais é destinada uma edição de luxo, a par-tir de 1934) e o público estrangeiro favorável à expe riência soviética ou composto de parceiros de sua construção econômica e industrial.

A imagem tem fins inteiramente políticos. Trata-se de utilizar a objeti-vidade da fotografia para contradizer as “mentiras” dos inimigos da União Soviética sobre o sucesso de sua construção. Gorki escreve:

A fotografia e o cinema são plenamente capazes de apresentar graficamente e de forma concisa a enorme extensão do trabalho de construção realizado pelo pro-letariado no país dos sovietes [...]. A fotografia deve também se dedicar ao ser-viço de construção não aleatoriamente, sem organização, mas, sistemática e constantemente.26

Ora, a fotografia é a pintura feita pelo sol (svetopis’), acrescenta Gorki, e “não se acusa o sol de distorções, o sol ilumina o que existe tal como existe”27. Estamos, aqui, inteiramente numa cultura da objetividade fotográfica. Essa cultura é universalmente partilhada nessa época. A política pela imagem se funda nesses valores comuns da época moderna. Tanto quanto o próprio original, senão até mais, a fotografia diz a verdade, não engana.

Os editores da revista enviam números gratuitamente a um grande número de interlocutores da União Soviética nas relações internacionais. Pedem expressamente respostas e os destinatários as enviam. Eis apenas um de seus ecos, o de um deputado britânico, conselheiro do governo so-viético, que escreve: “Eu vos felicito pelo primeiro número da U.R.S.S. em construção. Um de seus méritos é seu caráter absolutamente objetivo. Desnecessário dizer que farei tudo para que seja vista pelo maior número de pessoas”28.

Essa política da imagem não deve ser compreendida apenas como boa propaganda. Há algo mais profundo: trata-se de governo. É ao mesmo tem-po, e plenamente, um modo de gestão da esfera pública, numa concepção bem mais vasta que a propaganda e – eis o ponto em que quero tocar – sim-

26 Ibidem, p. 61.27 Idem. 28 Ibidem, p. 66.

HEGEMONIA_miolo.indd 105HEGEMONIA_miolo.indd 105 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 102: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

106 • Hegemonia às avessas

plesmente um modo de gestão da própria economia29. Em primeiro lugar, estamos tratando do governo pela esfera pública, em escala mundial e de maneira direta: é justamente porque a revista não passa pelos partidos co-munistas nem pela Internacional, mas por órgãos governamentais, que há gestão da esfera pública. O mesmo material é destinado a todos. Além do mais, a circularidade é organizada: a força da imagem reproduzida dos ob-jetos técnicos, cujo princípio é tomado do Ocidente capitalista, reaparece neste em eco para provar a força de seu amigo-inimigo comunista; em se-guida, o eco reaparece por sua vez na União Soviética para provar a todos e aos próprios dirigentes a força da construção industrial, graças às atestações recolhidas de longe. A imagem dá sua contribuição à eficácia da indústria, e trata-se exatamente de sua eficácia real: o líder soviético conta com a ima-gem para causar um efeito sobre o Ocidente, efeito que é usado no interior do país para formar a opinião dos soviéticos sobre o que eles próprios fazem e constroem! O todo fornece à elite soviética dos anos 1930 “uma imagem da sociedade soviética e da industrialização que sustenta seu sentimento de domínio e dominação [leadership]”30, como apon ta com propriedade Erika Wolf.

Para voltar a nossa proposição sobre os desempenhos econômicos, pode-mos dizer que não há outro regime de eficácia, outra prova dela que não se-jam essas representações em larga escala (pela fotografia em U.R.S.S. em construção, mas também pelo cinema em numerosos filmes dos anos 1930)31 – ao menos enquanto a guerra não estiver lá para impor a competição em um outro campo que não o da política: o campo de batalha.

29 Gabor T. Rittersporn, Malte Rolf e Jan C. Behrends (orgs.), Sphären von Öffentli-chkeit in Gesellschaften sowjetischen Typs: Zwischen partei-staatlicher Selbstinszenie-rung und Gegenwelten (Berna, Peter Lang, 2003).

30 Erika Wolf, “When photographs speak, to whom do they talk?, cit., p. 61.31 Assim, em 1940, em A via luminosa – filme de Grigori Aleksandrov, discípulo de

Eisenstein que foi enviado a Hollywood no fim dos anos 1920 para aprender a arte do filme de massa e em particular do musical –, a vedete Liubov’ Orlova, grande es-trela dos tempos stalinianos, é mostrada em imagens-choque como uma stakhano-vista que opera sozinha 8 teares, depois 16 e por fim 32: todos os procedimentos da imagem fordiana das máquinas alinhadas e repetidas são aí mobilizados. Ver Bernard Eisenschitz (org.), Gels et dégels: une autre histoire du cinéma soviétique, 1926-1968 (Paris/ Milão, Centre Georges Pompidou/ Mazzotta, 2002), p. 37 e 122; Annabel-le Creissel e Kristian Feigelson, “Ford, fordisme et stalinisme (1935)”, Théorème, n. 8, 2005, p. 73-82.

HEGEMONIA_miolo.indd 106HEGEMONIA_miolo.indd 106 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 103: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política e arte na verdade e na fi cção do trabalho • 107

Nós não estamos na idade da técnica, mas da quádrupla técnica, da po-litécnica. O tipógrafo construtivista de uma revista impressa em dezenas de milhares de exemplares utiliza as fotografias construtivistas das fábricas de arquitetura construtivista. Ou, ainda, a técnica política se fortalece atra-vés da reprodução mecanizada das imagens fotográficas dos objetos técnicos e da produção. O quarto nível, aquele da técnica política, é especificamente soviético: é o que a União Soviética acrescenta no processo de circulação transnacional da estética do objeto técnico.

A autoridade dos efeitos calculados das imagens fixas ou animadas foi extremamente durável em seu tempo, se é que não se prolonga até mesmo na Rússia putiniana. Esse efeito e essa autoridade foram não apenas durá-veis como amplamente difundidos no mundo em que talvez não tenham ainda deixado de agir. Contribuíram fortemente para construir a ficção dis-cursiva e estética por trás da qual se desenvolvia a realidade dos países socia-listas. Essa ficção eficaz (que é de ordem ao mesmo tempo cultural, econô-mica e política) é talvez um dos fenômenos mais importantes do século XX.

Considerações finais

Vimos que toda a economia dos países de sistema soviético se valida an-tes e prioritariamente na política. Em consequência, as imagens e as artes de forma mais geral têm um papel político direto, aquele de assegurar a vitória da política, inclusive sobre a economia. Se o estudo da economia é político, também é cultural e, reciprocamente, o estudo da cultura é político e tam-bém, é claro, econômico. As artes se ligaram aqui à economia e à política de forma indissolúvel.

No século XX existiram no mundo zonas preservadas e separadas do mercado internacional cuja economia deveria emitir uma mensagem políti-ca. Mas essa mensagem estava de antemão enfraquecida, pois a incapaci-dade de dominar o trabalho humano, assim como outros fenômenos liga-dos aos regimes das técnicas, afetava cada vez mais a saúde da economia. O governo político da economia – acompanhado de uma fortíssima restrição das liberdades públicas e da dominação absoluta das necessidades do Estado sobre as dos indivíduos – impediu a instalação de uma economia viável no longo prazo.

Hoje, todos os mercados estão interconectados. As zonas isoladas do mercado geral se tornaram muito limitadas. O trabalho é distribuído em

HEGEMONIA_miolo.indd 107HEGEMONIA_miolo.indd 107 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 104: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

108 • Hegemonia às avessas

escala mundial. As velhas metrópoles industriais afastam delas e relegam para o outro lado do mundo as formas de trabalho mais duras. Entre elas, o taylorismo é cada vez mais incorporado às máquinas e o trabalho se assen-ta bem menos no puro esforço físico.

A forma dos vínculos entre economia, trabalho, política e cultura certa-mente mudaram, mas com certeza é trabalho dos sociólogos, mais que dos historiadores, compreender tais mudanças.

HEGEMONIA_miolo.indd 108HEGEMONIA_miolo.indd 108 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 105: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

CAPITALISMO FINANCEIRO, ESTADODE EMERGÊNCIA ECONÔMICO E

HEGEMONIA ÀS AVESSAS NO BRASIL

Leda Maria Paulani

Abraçando a interpretação segundo a qual o capitalismo de hoje é presidi-do pela lógica e pelos imperativos da valorização financeira1, procura-se no presente artigo mostrar: 1) a decretação no Brasil, desde o início dos anos 1990, de uma espécie de “estado de emergência econômico”, o qual tem pos-sibilitado a adoção de todas as medidas prescritas pelo receituário ortodoxo; 2) a decretação definitiva desse estado de emergência pela ascensão de Lula ao poder em 2003, bem como sua combinação com aquilo que Oliveira2 deno-minou “hegemonia às avessas”; e 3) a relação entre essa combinação peculiar e a forma de operação do capitalismo financeirizado na periferia do sistema.

Parte-se da ideia de que o capitalismo financeiro que hoje predomina em escala mundial é o avesso do mercado, da concorrência, do risco capita-lista e da ausência do Estado. Sendo assim, a reprodução em escala am-pliada do capital passa hoje, tal como nos momentos iniciais do capitalismo, por um estreitamento das relações entre poder e dinheiro, uma vez que o sis-tema é marcado pela discricionariedade, pelo compadrio e pelo privilégio3. Mas ao contrário dessa época em que predominava o discurso mercantilis-ta, a doutrina hoje prevalecente é a neoliberal4 e são difundidas as virtudes

1 François Chesnais, A mundialização financeira (São Paulo, Xamã, 1998); idem A finança mundializada (São Paulo, Boitempo, 2005).

2 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.3 David Harvey, O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004). Paulo E. Arantes,

“Um retorno à acumulação primitiva: a viagem redonda do capitalismo de acesso”, Reportagem, jul. 2005.

4 Leda M. Paulani e Christy G. Pato, “Investimentos e servidão financeira: o Brasil do último quarto de século”, em João Antonio de Paula (org.), Adeus ao desenvolvimen-to (Belo Horizonte, Autêntica, 2005).

HEGEMONIA_miolo.indd 109HEGEMONIA_miolo.indd 109 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 106: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

110 • Hegemonia às avessas

da concorrência, da competitividade e da eficiência. Não é fácil compatibi-lizar, de um lado, o capitalismo rentista com seu conjunto de práticas discri-minatórias e seu permanente e concreto açambarcamento da riqueza social por uma aristocracia capitalista privilegiada e bem postada no Estado e jun-to a ele e, de outro, esse discurso globalizante, que faz do mercado o demiur-go. Essa dificuldade é particularmente maior na periferia do sistema, em especial no caso do Brasil, despertado para o sonho do desenvolvimento nos anos 1950 e 1960. A decretação do estado de emergência5 no plano econô-mico e, principalmente, sua combinação com o processo de hegemonia às avessas que experimentamos desde 2003 parecem estar sendo aí a única for-ma de promover essa conciliação e de, num ambiente de estabilidade políti-ca formal, trocar a perspectiva do desenvolvimento soberano pelo papel su-balterno de plataforma internacional de valorização financeira6.

Estado de sítio, estado de exceção permanente e estado de emergência econômico

No dicionário organizado por Norberto Bobbio, consta o seguinte, no verbete estado de sítio, assinado por Carlo Baldi:

Com a expressão “estado de sítio” se quer geralmente indicar um regime jurídi-co excepcional a que uma comunidade territorial é temporariamente sujeita, em razão de uma situação de perigo para a ordem pública, criado por determi-nação da autoridade estatal ao atribuir poderes extraordinários às autoridades públicas e ao estabelecer as adequadas restrições às liberdades dos cidadãos.7

O termo pertence, portanto, à esfera da política e tem a ver com a relação entre os cidadãos e seus direitos civis e o controle disso pela auto-ridade pública, ou seja, pelo Estado. Nessa forma simplória escolhida pelo autor do verbete para dar conta do termo, “estado de sítio” designa uma si-tuação em que os direitos “normais” (aqueles do “estado de direito”) não podem ser garantidos aos cidadãos, porque a comunidade, ou seja, a socie-dade, encontra-se sob a ameaça de algum risco iminente (invasão, guerra ou endemia). Nessa perspectiva, poder-se-ia construir uma taxonomia que

5 Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo, Boitempo, 2004). 6 Leda M. Paulani e Christy G. Pato, “Investimentos e servidão financeira: o Brasil do

último quarto de século”, cit.7 N. Bobbio, N. Matteucci e G. Pasquino, Dicionário de política (5. ed., Brasília/ São

Paulo, UnB/ Imprensa Oficial de São Paulo, 2000).

HEGEMONIA_miolo.indd 110HEGEMONIA_miolo.indd 110 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 107: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 111

conteria duas modalidades de “tempo político”: “tempo de normalidade”, em que todos os direitos constitucionais estão garantidos, e “tempo de ex-ceção”, em que essa garantia não existe, total ou parcialmente. Assim colo-cada a questão, parece uma conclusão óbvia que “tempo de exceção” é mes-mo o que o nome diz, uma “exceção”, ou seja, uma situação “temporária”, um período breve, que deve terminar tão logo tenha se afastado sua “neces-sidade”, ou seja, a iminência do risco “social” que supostamente o produziu.

Mas a coisa é mais complicada do que parece. Segundo Agamben8, a origem do instituto do “estado de sítio” encontra-se no decreto de 8 de ju-lho de 1791 da Assembleia Constituinte Francesa, que distinguia entre état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera, état de guerre, em que a autoridade civil tem de agir em consonância com a autoridade militar, e état de siège, em que a autori-dade militar assume o comando de todas as funções de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia internas. O “esta-do de sítio” nasce, portanto, vinculado à questão da existência da guerra e das consequências dessa situação para a organização social. Não por acaso, esse decreto inicial referia-se somente às praças-fortes e aos portos militares. Ainda segundo Agamben, a partir daí o “estado de sítio” vai progressiva-mente se emancipando de sua relação com a situação de guerra para assumir a feição de medidas extraordinárias, passíveis de adoção pelas autoridades em casos de desordens e sedições internas9. É cerca de sessenta anos de pois, no mesmo palco francês da história, que essa feição se consagra, ao mesmo tem-po que se torna explícita a contradição que constitui o termo.

Como lembra Arantes10, Marx retratou muito bem em O 18 de brumá-rio* as condições sob as quais foram promulgadas as leis francesas de 1849 sobre o “estado de sítio”. As jornadas de fevereiro de 1848 e a república so-cial que elas engendraram, sob o patrocínio do proletariado francês, depois da queda de Luís Felipe, produziram um reagrupamento das velhas forças da sociedade que culminaram naquilo que Marx chama de “período da Cons-tituição da República” ou da “Assembleia Nacional Constituinte”. Co me-

8 Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 16.9 Idem.10 Paulo E. Arantes, “Estado de sítio”, em Isabel Loureiro et al. (orgs.), O espírito de

Porto Alegre (São Paulo, Paz e Terra, 2002).* São Paulo, Boitempo, no prelo. (N. E.)

HEGEMONIA_miolo.indd 111HEGEMONIA_miolo.indd 111 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 108: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

112 • Hegemonia às avessas

çando em 4 de maio de 1848 e terminando em 29 de maio de 1849, é esse o período de constituição e de fundação da república burguesa e é aí que não só se consolida a ideia de um “estado de sítio político” (por contraposi-ção ao “estado de sítio militar” anterior), como se explicita seu caráter pa-radoxal. Na exposição de motivos da lei de 1849 que o institui, lê-se que as medidas excepcionais devem ser sempre determinadas por lei, “prestan-do-lhe assim homenagem no momento mesmo de suspendê-la”11.

Ora, se a suspensão da lei é vista como uma homenagem a ela e, portan-to, também como lei, embaralha-se logo de partida a cândida distinção entre tempo de normalidade e tempo de exceção. É inescapável, por isso, a cons-tatação da natureza dialética do “estado de sítio” e do “tempo de exceção”, que ele inevitavelmente produz: trata-se de legalizar a suspensão da legali-dade, tornar um direito a suspensão dos direitos, tornar regra a exceção12. Esse caráter não é estranho ao fato de o “estado de sítio” ter nascido nas condições históricas em que nasceu, muito ao contrário. Acompanhemos, mais uma vez, Arantes:

A estreia burlesca do poder político burguês puro deu-se, portanto, à sombra desse prodigioso achado institucional, graças ao qual se codifica a exceção à norma legal. Reconstituindo a repetição farsesca do 18 Brumário original, Marx fez assim a crônica desse nascimento conjunto da exceção e da regra, dando a entender, à vista do roteiro que culmina num golpe providencial destinado a livrar de uma vez por todas a sociedade burguesa da preocupação de gover-nar-se a si mesma, que o Estado de Direito dos sonhos de seus demiurgos esta-ria condenado a viver sob um regime de exceção permanente. Isto é, normal.13

Essa conclusão (a de uma exceção que adquire caráter permanente) é semelhante à de Agamben, que, trabalhando em chave distinta, alerta para a constituição, ao longo do século XX, do fenômeno paradoxal da “guerra civil legal”, do qual o Estado nazista foi exemplo paradigmático. Logo que tomou o poder, em 1933, Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, o De-creto para a proteção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Cons-

11 A informação está em Paulo E. Arantes, “Estado de sítio”, cit., p. 52.12 Em linha com essa interpretação, Bercovici, estudando Carl Schmitt e lembrando

Agamben, afirma que o estado de exceção é uma “força de lei sem lei” e que, sob ele, o Estado “suspende o direito em virtude de um direito de autoconservação” (Gilber-to Bercovici, Constituição e estado de exceção permanente, Rio de Janeiro, Azougue, 2004, p. 67).

13 Paulo E. Arantes, “Estado de sítio”, cit., p. 52.

HEGEMONIA_miolo.indd 112HEGEMONIA_miolo.indd 112 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 109: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 113

tituição de Weimar relativos às liberdades individuais. Como o decreto nunca foi revogado, o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, um estado de exceção que durou doze anos. Para Agamben, o totalitarismo moderno pode então ser definido como a instauração, por meio do estado de exceção, “de uma guerra civil legal que permite a elimi-nação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias in-teiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sis-tema político”14. Sua conclusão é que, “desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não de-clarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Esta-dos contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”15.

A indistinção entre norma e exceção, que faz parte, como vimos, da his-tória desse “achado institucional prodigioso”, é um traço que se repete nos outros termos que conformam sua constituição. O que vimos até aqui já é suficiente para mostrar, por exemplo, que assim como podemos falar de uma “exceção normal”, também podemos falar de um “caráter temporário per-manente” ou, de forma ainda mais contraditória, de um “período de tempo permanente”. Mas é a forma de considerar a “necessidade”, implícita na ideia de que o “estado de exceção” é um recurso de última instância ao qual se re-corre em caso de precisão extrema (porque afinal a “sociedade” corre risco), que possibilita vislumbrar a dimensão da contradição que temos pela fren-te, e é também a reflexão em torno dela que nos mostra de que forma um expediente que nasce na esfera da política e sob o signo da guerra vai parar na esfera stricto sensu econômica e tem vigência em tempos de “paz”.

Agamben, que mais uma vez acompanhamos, lembra que o conhecido princípio segundo o qual “a necessidade não tem lei” (necessitas legem non habet), mais do que fazer da necessidade algo que torna lícito o ilícito, faz com que ela atue como justificativa para a transgressão. Assim, uma “teoria da exceção” passa inexoravelmente por uma “teoria da necessidade”. Mas enquanto nos antigos pensadores – Graciano, são Tomás de Aquino – a ne-cessidade é algo que possibilita a tomada de decisão para além do determi-

14 Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 12.15 Idem. Veremos mais adiante que, particularmente no caso do estado de emergência

econômico, sua declaração “técnica”, ou seja, seu enquadramento como um estado em que está presente formalmente a abolição provisória da distinção entre os pode-res, é de fato o que menos importa.

HEGEMONIA_miolo.indd 113HEGEMONIA_miolo.indd 113 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 110: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

114 • Hegemonia às avessas

nado pelas leis, nos modernos o estado de necessidade tende a ser incluí-do na ordem jurídica e a apresentar-se como o verdadeiro “estado” da lei. O princípio de que a necessidade define uma situação particular em que a lei perde sua vis obligandi transforma-se naquele em que a necessidade cons-titui, por assim dizer, o fundamento último e a própria fonte da lei16.

Nessa linha, Agamben cita, por exemplo, o jurista Santi Romano, que, segundo ele, exerceu grande influência sobre o pensamento jurídico euro-peu no entre guerras. Para Romano, “se não há lei, a necessidade faz a lei [...] o que significa que ela mesma constitui uma verdadeira fonte de direi-to. Pode-se dizer que a necessidade é a fonte primária e originária do di-reito...”17. Assim, a necessidade, percebida em princípio como um locus sem lei, já que aí as regras não valem e a lei perde sua obrigatoriedade, transita para seu contrário, um locus que constitui a própria fonte da lei.

É a ideia de que a necessidade faz a lei ou, de modo ainda mais radical, de que ela “é a fonte primária e originária do direito”, que está por trás do deslocamento do estado de exceção de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo. Seu laboratório, segundo Agamben, foi a Pri-meira Guerra Mundial, ocasião em que, em vários Estados europeus, foram sistematicamente ampliados os poderes governamentais e foram promul-gadas leis de plenos poderes. De fato, lembra ele, “a progressiva erosão dos poderes legislativos do Parlamento que hoje se limita, com frequência, a ra-tificar disposições promulgadas pelo Executivo sob a forma de decretos com força de lei, tornou-se desde então uma prática comum”18.

Mas se em seu nascedouro a transformação do estado de exceção em pa-radigma de governo ainda está sob a égide da guerra e vinculada, portanto,

16 Ibidem, p. 43.17 Santi Romano, citado por Giorgio Agamben, idem, p. 44. O pensamento conserva-

dor de Carl Schmitt chega, não por acaso, a conclusões análogas às de Romano no que tange à relação entre exceção e ordem jurídica. Segundo Bercovici, para Schmitt, a exceção não pode se manifestar no limite do direito (Constituição e estado de exce-ção permanente, cit., p. 66). Ao contrário, é só ela, a exceção, que permite que se chegue à essência do direito, já que é ela que revela o fundamento da ordem jurídica, portanto, da normatividade. Isso se relaciona a sua concepção de que o Estado pres-supõe o político e à indistinção que ele vê entre direito e política. Daí sua afirmação de que o político não se manifesta visivelmente em situações de normalidade, mas apenas nos momentos de exceção (ibidem, p. 71) e daí também sua célebre frase, segundo a qual “soberano é quem decide sobre o Estado de exceção”.

18 Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 19.

HEGEMONIA_miolo.indd 114HEGEMONIA_miolo.indd 114 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 111: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 115

de alguma forma, a uma situação específica, a crise dos anos 1930 vai ter-minar o serviço.

Assumo sem hesitar o comando do grande exército de nosso povo para conduzir, com disciplina, o ataque a nossos problemas comuns [...]. Pedirei ao Congresso o único instrumento que me resta para enfrentar a crise: amplos poderes execu-tivos para travar uma guerra contra a emergência, poderes tão amplos quanto os que me seriam atribuídos se fôssemos invadidos por um inimigo externo.19

Essas palavras, lembradas por Agamben, foram pronunciadas por Fran klin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, e culminaram no National Recovery Act, de 1933, que lhe delegou um poder ilimitado de re-gulamentação e controle sobre todos os aspectos da vida econômica do país.

Segundo o mesmo Agamben, o paralelismo entre emergência militar e emergência econômica, patente no discurso de Roosevelt, é um traço que vai caracterizar a política durante todo o século XX. E, mais uma vez, dialetica-mente, o estado de exceção, que deriva da necessidade de se declarar uma “guerra à emergência”, nesse caso, à emergência econômica, vai atuar, no mais das vezes, não para solucionar a emergência que supostamente o engen-drou, mas para produzir uma situação em que a emergência se torne a regra e em que não se consiga mais distinguir um estado do outro.

A história brasileira, desde a crise do início dos anos 1980, em particular depois da queda da ditadura militar e do estado de exceção jurídico que ela protagonizou, é um exemplo paradigmático de surgimento de um estado de emergência econômico e das diatribes dos governos democráticos que então assumiram o poder, em especial o de Lula e a hegemonia às avessas que ele patrocina, para transformar em regra a emergência, fazendo da exceção o paradigma de governo. Essa história não é estranha à trajetória que percor-re, desde então, o capitalismo como sistema-mundo, nem à forma de sua operação na periferia do sistema. Muito ao contrário, elas estão diretamen-te correlacionadas. Investiguemos inicialmente a história brasileira para, em seguida, mostrarmos de que modo se dá essa vinculação.

Estado de emergência econômico no Brasil: de Collor a FHC

De um ponto de vista puramente formal, pode-se colocar o início da história do estado de emergência econômico no Brasil nos planos de estabi-

19 Franklin Delano Roosevelt, citado por Giorgio Agamben, ibidem, p. 37; grifo meu.

HEGEMONIA_miolo.indd 115HEGEMONIA_miolo.indd 115 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 112: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

116 • Hegemonia às avessas

lização monetária, que se iniciaram com o Plano Cruzado, em 198620. E isso por duas razões fundamentais: porque desponta aí a necessidade de sal-var o país da anomia econômica que uma hiperinflação inevitavelmente produziria, e porque esses planos, por sua própria natureza, não eram pas-síveis de serem aprovados publicamente pelo Congresso, sob pena de com-prometer completamente os resultados pretendidos. Detenhamo-nos um pouco nessas duas razões.

No início do primeiro governo civil pós-ditadura, o cenário era, a des-peito da morte de Tancredo Neves, de otimismo para com o futuro, uma vez que a sociedade, depois de vinte anos, parecia voltar a conduzir seu des-tino com suas próprias mãos. Apesar de liberto da tutela militar, o país sofria os reveses da crise econômica iniciada ao fim dos anos 1970, com es-pecial destaque para a exacerbação do processo inflacionário. Essa história é bem conhecida, mas cabe relembrar seus principais ingredientes.

Como se sabe, diante da crise mundial gerada pelo choque do petróleo e dos insumos básicos que eclode no fim de 1973, o governo do general Er-nesto Geisel opta pela continuidade do crescimento, com aumento do en-dividamento externo. Prestou com isso um grande serviço aos capitais lí-quidos, que já se acumulavam nas praças financeiras do mundo, em busca de tomadores. Mas não se pode reduzir a essa causa a referida opção (que se contrapunha à outra, de frear o crescimento), já que essa decisão foi tomada sob a égide do projeto de “Brasil potência”, que o Exército brasileiro em-punhou desde o momento em que patrocinou o “salvamento” do país da “anarquia esquerdista” do início dos anos 1960. Concretamente, essa deci-são se objetivou na elaboração do II PND, um plano de desenvolvimento industrial e de infraestrutura que visava, pelo aumento da produção de in-sumos básicos e de bens de capital, tornar o Brasil menos vulnerável a crises como a então experimentada.

Apesar da megalomania característica dos programas militares, e visível em projetos malogrados como a ferrovia do aço e as usinas nucleares, o II PND foi, do ponto de vista estritamente econômico, relativamente bem-su-cedido, pois completou a matriz interindustrial brasileira e mudou, de for-ma substantiva, os resultados da balança comercial e o perfil de nossa pauta

20 Mais à frente se explicará por que estamos afirmando que esse ponto de partida po-de ser colocado aí apenas de um ponto de vista formal.

HEGEMONIA_miolo.indd 116HEGEMONIA_miolo.indd 116 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 113: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 117

de exportações e importações21. Contudo, a elevação dos juros america-nos e o segundo choque do petróleo, ocorridos em 1979, combinados com o enorme aumento da dívida externa que estava possibilitando a realização dos projetos do II PND, inviabilizaram a capacidade de o país continuar a honrar seus compromissos em moeda forte, além de fazer a inflação saltar da esfera dos 40% anuais em 1978 para a esfera dos 100% em 1980.

A crise econômica, materializada na queda do PIB e no aumento do de-semprego, foi a consequência lógica desse processo, mas o salto da inflação para esfera dos 200% ao ano a partir de 1983 parecia, ao primeiro governo civil, o inimigo maior a ser inicialmente atacado, pois, antes de mais nada, era preciso salvar o país da ameaça da hiperinflação. Como o processo for-mal de indexação, que havia algum tempo já se alastrara da esfera dos ativos para a esfera das rendas, inviabilizava por completo a aplicação de qualquer tipo de receita ortodoxa para resolver o problema, os economistas foram instados a pensar em formas alternativas22.

A primeira experiência heterodoxa baseada no congelamento de preços, redução dos salários à média, fim da indexação e reforma monetária foi o Plano Cruzado, promulgado em 28 de fevereiro de 1986 e adotado, como não podia deixar de ser, sob a forma de decreto-lei. Antecipar o congela-mento dos preços, a nova paridade cambial e o fim da indexação provoca-ria inevitavelmente uma corrida de reajustes que faria o contrário do que se pretendia, pois produziria de instantâneo a hiperinflação, da qual se queria justamente fugir. Graças, em parte, a seu ineditismo, o Plano Cruzado teve relativo sucesso em seu início. No entanto, colapsou dez meses depois. A inadequabilidade do congelamento como instrumento de controle mone-tário em face do processo de indexação então existente, a explosão de cresci-mento que o Plano produziu e sobretudo a escassez de divisas com que se iniciou (as reservas brasileiras na época não passavam de 11 bilhões de dóla-res) determinaram seu fracasso. A partir de então, uma série de planos hete-rodoxos foram intentados, todos adotados por decreto-lei e entremeados por períodos de renitentes e igualmente malfadadas tentativas ortodoxas de esta-

21 Ver a esse respeito a clássica interpretação de Castro sobre o período, em Antônio B. Castro e Francisco E. P. Souza, A economia brasileira em marcha forçada (Rio de Ja-neiro, Paz e Terra, 1985).

22 Eis porque naquela época, apesar dos renitentes de sempre, a maior parte dos eco-nomistas acabou por se tornar “heterodoxa”.

HEGEMONIA_miolo.indd 117HEGEMONIA_miolo.indd 117 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 114: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

118 • Hegemonia às avessas

bilização. Foi só com o Plano Real, iniciado oito anos depois dessa primeira tentativa, que o problema da inflação encontrou uma solução.

Afirmei acima que apenas formalmente o ponto de partida do estado de emergência econômico no Brasil pode ser colocado na edição do Plano Cruzado, em fevereiro de 1986. Cabe agora explicar o porquê dessa consi-deração.

Ocorre que, apesar do equívoco quanto à ameaça de a variação de pre-ços desandar em hiperinflação23, havia de fato, naquela época, um incômo-do enorme com a dimensão alcançada pelas taxas de inflação, que vinham atingindo cifras inéditas na história do Brasil. Além do mais, é sabido que, mantido o nível de emprego, os maiores prejudicados com o descontrole inflacionário são as classes de renda mais baixa, já que são as que têm menos possibilidade de fugir de um “ativo obrigatório” que se desvaloriza dia a dia. Como parecia de fato haver uma ameaça real de desorganização das cadeias de produção e da vida material do país, além do prejuízo imposto às classes mais baixas, qualquer solução era admitida, mesmo que se infringisse as re-gras jurídicas e de ordenação dos poderes. Considerando que, a partir de um certo momento, ficou claro que só uma política heterodoxa poderia resolver o problema, o fato de ter de tomá-la sob a forma da edição de decretos-lei apareceu como uma questão menor. Além do mais, tirar da fren-te o monstro inflacionário parecia ser a condição sine qua non para que o novo poder civil se consolidasse. Veremos mais adiante que essas condições não se repetem a partir dos anos 1990. Mas retomemos o fio da história.

O colapso do Plano Cruzado não apenas deixou pendente de resolução o problema inflacionário, como produziu um outro, de ampla magnitude. Dada a enorme queda das já reduzidas reservas do país, que se deveu ao su-cesso do Cruzado como instrumento de recuperação do crescimento e a seu insucesso como plano de estabilização monetária, o presidente Sarney declara a moratória em 1987, a qual inviabiliza por um bom tempo o equi-líbrio das contas externas brasileiras. O resultado só não foi pior graças aos excelentes resultados em termos de balança comercial e de conta corrente que os frutos do II PND ainda permitiam produzir.

23 O equívoco decorreu justamente da não percepção de que o sistema brasileiro de indexação, ao colocar um piso para as variações de preço, funcionava também como uma forma de refrear seu movimento descontrolado para cima. Mas é evidente que isso não tornava menos necessária a solução do problema.

HEGEMONIA_miolo.indd 118HEGEMONIA_miolo.indd 118 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 115: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 119

Tudo isso foi conformando um quadro em que a política desenvolvi-mentista, da qual os governos militares foram, a sua moda, uma continua-ção e a qual o primeiro governo civil também seguia24, começou a ser dura-mente atacada. Isso abriu as portas para a difusão dos princípios e valores que moldam o pensamento neoliberal, a começar pelo ataque ao Estado, visto como a raiz de todos os males, e às empresas estatais, vistas como monstros de ineficiência.

Assim, o discurso neoliberal no Brasil começou a se afirmar e a fincar raízes nas eleições presidenciais de 1989. Atolado no problema inflacioná-rio, mas ao mesmo tempo esperançado com as conquistas expressadas na nova Constituição, que fora elaborada um ano antes, o país ficou dividido entre o discurso “liberal-social” de Fernando Collor de Mello e o discurso popular e democrático de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas o sentimento de que o Brasil ingressara num período de emergência econômi-ca que parecia infindável e as promessas de que as reformas liberalizantes recolocariam o país no eixo do crescimento acabaram por prevalecer. Ecoan-do o arrazoado da desestatização da economia, que nascera no governo Figueiredo por conta das pendengas do capital nacional relativas aos arran-jos do II PND, advogando a necessidade da transparência e da austeridade nos gastos públicos e embrulhando tudo isso na pregação moralista da “ca-ça aos marajás”, Collor venceu as eleições. Tornou-se assim o responsável pela introdução oficial no Brasil da agenda programática e reformadora do neoliberalismo.

Desde a eleição de Collor, passou a ser voz corrente a inescapável ne-cessidade de reduzir o tamanho do Estado, privatizar empresas estatais, con trolar gastos públicos, abrir a economia etc. Os ganhos prometidos iam do lugar ao sol no mercado global ao desenvolvimento sustentado, da ma-nutenção da estabilidade monetária à distribuição de renda, da evolução tecnológica à modernização do país. Collor não teve tempo para pôr em marcha esse projeto – a não ser muito timidamente o processo de privati-zação25 –, mas a referida pregação ganhou força inegável e passou a coman-dar todos os discursos.

24 A própria política de congelamento de preços, por exemplo, seria impensável com o Estado desenhado pela concepção neoliberal.

25 Ver a respeito Leda M. Paulani, “A dança dos capitais”, Praga, São Paulo, n. 6, 1998.

HEGEMONIA_miolo.indd 119HEGEMONIA_miolo.indd 119 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 116: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

120 • Hegemonia às avessas

Assim, desde o início dos anos 1990, a agenda neoliberal foi colocada na ordem do dia como uma espécie de única saída para as emergências que nos afligiam, a saber, a irresolução do problema da dívida externa e a renitência do processo inflacionário. A securitização dessa dívida e a internacionaliza-ção do mercado brasileiro de títulos de dívida pública, além da liberalização do fluxo internacional de capitais através da alteração operada nas então chamadas contas CC5 (contas exclusivas para não residentes, que permi-tiam, graças a uma lei de 1962, a livre disposição de recursos em divisas), fizeram as divisas voltarem aos cofres brasileiros (elas estavam sobrando lá fora, sem ter para onde ir, mas não viriam para cá sem garantias mínimas de retorno e liberdade para voarem de volta, se farejassem qualquer perigo imi-nente). Graças a isso (um respeitável colchão de divisas), o Plano Real pôde fazer sua mágica de estabilização e resolver a outra emergência, isto é, a per-sistência de taxas de inflação de dois dígitos ao mês. Mas mesmo estabilizada a moeda e solucionado o problema da dívida externa, permanecia difusa-mente a sensação da emergência, e o regime de exceção não arrefeceu.

Passados os tumultuados anos desse primeiro governo civil – sequestro de ativos, aproximação da hiperinflação, impeachment do presidente – o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, embalado no sucesso do Plano Real, venceu as eleições de 1994 (mais uma vez contra Lula) e assumiu o governo federal no início de 1995, com o declarado projeto de “moderni-zar” o país, mais particularmente suas instituições. Esse princípio básico de seu projeto tomou a forma concreta de um ousado e ambicioso plano de pri-vatizações e de uma abertura substancial da economia. Juntamente com essas realizações, uma série de outras providências foram tomadas em paralelo pa-ra transformar o Brasil numa economia financeiramente emergente, a come-çar da própria estabilização monetária, obtida no ano anterior.

O primeiro governo FHC caminhou em meio a uma combinação de reiteradas promessas de um futuro alvissareiro, se esse projeto fosse posto em marcha, e ameaças econômicas de todo tipo, caso as medidas programa-das não fossem adotadas. Antes de detalharmos melhor esse período, cabe, no entanto, retornar a uma transformação, ocorrida ainda no governo Ita-mar, que foi de fundamental importância para a “modernização financeira” do país. Essa recuperação é necessária porque a forma como se operou tal transformação está diretamente ligada à tese aqui esboçada da construção de um estado de emergência econômico no Brasil e à relação dessa constru-ção com as questões propriamente jurídicas envolvidas em sua definição.

HEGEMONIA_miolo.indd 120HEGEMONIA_miolo.indd 120 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 117: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 121

Em 1992, ainda no governo Itamar, a diretoria da área externa do Banco Central, em meio às negociações para internacionalizar o mercado brasileiro de títulos públicos e securitizar a dívida externa, encarregava-se também, na surdina, de promover a desregulamentação do mercado finan-ceiro brasileiro e a abertura do fluxo internacional de capitais26. A partir de mudanças operadas nas contas CC5, o Banco Central abriu a possibi-lidade de qualquer agente, fosse ou não residente, enviar livremente re-cursos ao exterior, bastando, para tanto, depositar moeda doméstica na conta de uma instituição financeira não residente.

Ocorre que essa transformação foi feita de modo completamente irregu-lar, pois uma lei federal não pode ser regulamentada por um órgão de hie-rarquia constitucional inferior. Em outras palavras, o Congresso teria de ser ouvido e não foi. A mudança foi feita singelamente, mediante uma carta circular do Banco Central, um instrumento que não pode conter disposi-ções sobre questões substantivas, mas apenas esclarecer, do ponto de vista operacional, determinações do Conselho Monetário Nacional27. A mudan-ça que essa transformação produziu foi tamanha (a decretação da liberdade de enviar recursos ao exterior) que o mercado permaneceu incrédulo, até que, em novembro de 1993, na gestão de Gustavo Franco na área externa do Banco Central, foi publicada uma “cartilha” que escancarou para os agentes aquilo que eles estavam vendo sem acreditar. Não por acaso a tal cartilha fi-cou conhecida no mercado como “cartilha da sacanagem cambial”. Na épo-ca pouco comentada, porque, em função da oscilação contínua das taxas reais de câmbio e de juros, os altos índices de inflação praticamente invia-bilizavam a especulação com divisas. A medida, absolutamente irregular do ponto de vista jurídico, “justificou-se” pela necessidade de moderni-zar o mercado financeiro brasileiro através de sua desregulamentação. Como que ria o jurista Santi Romano, anteriormente mencionado, a “necessidade” aqui constituiu objetivamente a própria fonte da “lei”.

26 Retomo, desse ponto em diante, considerações já feitas em Leda M. Paulani, Brasil Delivery (São Paulo, Boitempo, 2008).

27 Por esse motivo, as procuradoras da República Valquíria Nunes e Raquel Branqui-nho encaminharam à Justiça Federal, em dezembro de 2003, uma peça de acusação em que pedem a condenação, por crime de improbidade administrativa, de quinze executivos ligados ao Banco Central e ao Banco do Brasil. Ver, a esse respeito, a ex-celente matéria de Raimundo Rodrigues Pereira publicada na revista Reportagem de fevereiro de 2004.

HEGEMONIA_miolo.indd 121HEGEMONIA_miolo.indd 121 9/8/10 4:27:35 PM9/8/10 4:27:35 PM

Page 118: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

122 • Hegemonia às avessas

Esse episódio é interessante porque mostra que, mesmo sem a decreta-ção técnica de um estado de exceção, faz-se tábula rasa da lei sempre que os interesses materiais, embrulhados no discurso da necessidade posta pela emer gência, mostram-se mais poderosos que ela. Mas o sentimento de emer-gência econômica pode estar presente mesmo quando existe a benção do Parlamento. Retomemos então a história da construção do estado de emer-gência econômico no Brasil.

Como adiantamos, o primeiro governo FHC caminhou em meio a uma combinação de promessas de sucesso e ameaças econômicas. Assim, uma sé-rie de medidas, injustificáveis sob qualquer outro ponto de vista, foram ado-tadas em nome do afastamento de toda sorte de fantasmas, por exemplo:

• permitir a valorização injustificável da moeda brasileira até a verdadeira emergência trazida com a crise cambial de janeiro de 1999, que em ape-nas quatro meses varreu do país cerca de 40 bilhões de dólares (ameaça do retorno da inflação);

• aprovar uma lei (a Lei da Responsabilidade Fiscal, que muitos cha-mam Lei da Irresponsabilidade Social) em que os direitos dos credores são colocados acima de quaisquer outros direitos (ameaça da perda de credibilidade);

• abrir a economia de maneira estabanada, permitindo a quebra de várias empresas brasileiras e o aumento do desemprego (ameaça do atraso e da perda do bonde da história);

• vender ao capital internacional (financiando os compradores com di-nheiro público) empresas de setores essenciais e estratégicos, como as empresas de energia elétrica e de telecomunicação (ameaça do desequi-líbrio fiscal e da perda do bonde da história);

• elevar a taxa real de juros a níveis impensáveis (que chegou em algumas ocasiões a mais de 40%) em função das crises financeiras vindas de fora (ameaça da desvalorização da moeda e do retorno da inflação);

• aprovar uma emenda constitucional que isentava da incidência da CPMF os recursos aplicados em bolsas de valores (ameaça do atraso e da perda do bonde da história);

• isentar de imposto de renda a distribuição de lucros de empresas a seus sócios brasileiros ou estrangeiros e a remessa de lucros ao exterior (idem).

Por essas e por outras é que se pode dizer que, a partir do Plano Real, há um sentimento difuso de “emergência econômica”, no sentido de exceção,

HEGEMONIA_miolo.indd 122HEGEMONIA_miolo.indd 122 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 119: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 123

que acompanha a emergência do país como promissor mercado financeiro. Tudo se passa como se aos poucos estivesse sendo decretado um estado de exceção econômico que justificasse qualquer barbaridade em nome da ne-cessidade de salvar o país, ora do retorno da inflação, ora da perda de credi-bilidade, ora da perda do bonde da história. Mas será com o governo Lula e o neoliberalismo petista que virá a emergência definitiva do estado de emergência em combinação com a hegemonia às avessas28 que o país come-ça a experimentar.

O governo Lula, a decretação definitiva do estado de emergência econômico e a hegemonia às avessas

Quando Lula assume e abraça com determinação inimaginável o recei-tuário ortodoxo de política econômica, o discurso oficial justificou tudo isso com a tese de que estávamos à beira do abismo, a economia brasileira derretia como manteiga e desfazia-se como gelatina, ou seja, estávamos num típico estado de emergência que implicaria a admissão, mesmo por um go-verno “de esquerda”, mesmo por um governo do PT, de medidas o mais duras possível (e, até um mês antes, injustificáveis), a saber:

• elevação do superávit primário, para além do exigido pelo FMI (de 3,75% para 4,25% do PIB);

• enorme aumento da então já elevadíssima taxa básica de juros (de 22% para 26,5% ao ano);

• brutal corte de liquidez (pelo aumento do compulsório dos bancos), que, da noite para o dia, tirou de circulação 10% dos meios de pagamento.

Sem a decretação “branca”, porque não “técnica”, desse estado de emer-gência econômico (os fantasmas mobilizados foram o do descontrole mone-tário e o do default externo)29 teria sido praticamente impossível a um governo do PT, eleito precisamente para mudar essa política, adotar e justificar essas medidas. Mas de tanto insistir na tese da beira do precipício, gerou-se a ex-pectativa de que tal estado de emergência era mesmo uma exceção, e que o regime então adotado tinha um caráter passageiro. Estava subentendido no

28 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.29 Para uma discussão a respeito do caráter falacioso desses fantasmas então mobiliza-

dos, ver Leda M. Paulani, Brasil Delivery, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 123HEGEMONIA_miolo.indd 123 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 120: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

124 • Hegemonia às avessas

discurso oficial que, tão logo fosse ultrapassada a emergência, as coisas volta-riam “ao normal”, isto é, o governo do PT finalmente adotaria seu próprio programa de governo, um programa antineoliberal, de resgate do processo de desenvolvimento e de término da construção da Nação.

Surge então a segunda tarefa do governo Lula, que é a de, com o inesti-mável auxílio da mídia, arregimentar os espíritos, os corações e as mentes para mostrar a necessidade de permanência do regime de emergência, com ou sem a existência da “necessidade” que supostamente o produziu. Fica aí muito claro que o governo Lula fez da criação voluntária desse estado de emergência permanente a prática essencial de seu governo.

Foi esse regime de exceção que se tornou regra que justificou:

• a manutenção das taxas reais de juros mais elevadas do mundo;• o pagamento de um serviço da dívida que ultrapassou, em alguns anos,

8% do PIB, ao mesmo tempo que se repetia, dia após dia, que não havia recursos para ações básicas como a recuperação do sistema público de saúde, a reforma agrária etc.;

• a realização de um superávit primário sempre próximo dos 5% do PIB, ao mesmo tempo que se continuou com o discurso de que temos um enorme déficit e é preciso um esforço ainda maior;

• a transformação do sistema previdenciário brasileiro, acabando com o solidarismo intergeracional e jogando na incerteza o futuro de milhões de trabalhadores dos setores privado e público30;

• a aprovação de uma lei de falência que coloca, no gerenciamento das massas falidas, os interesses dos credores do sistema financeiro à frente dos interesses dos trabalhadores e do Estado;

• a defesa despudorada da independência de direito do Banco Central (ela já existe de fato) para, nas palavras do então ministro do planejamento Guido Mantega, “livrar a sociedade brasileira de presidentes irresponsá-veis e gastadores”.

Não podendo mais usar o álibi da beira do precipício (a taxa de câmbio havia voltado a se valorizar, o risco-país havia caído e o preços dos papéis brasileiros nas bolsas internacionais haviam voltado a subir), o que se pôs no lugar? A necessidade de conquistar definitivamente a credibilidade dos

30 Idem.

HEGEMONIA_miolo.indd 124HEGEMONIA_miolo.indd 124 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 121: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 125

investidores externos, o que implicava a necessidade de afastar definitiva-mente o fantasma da inflação e a necessidade de afastar definitivamente a ameaça de um default externo.

Passou-se a argumentar que, sem isso, as condições para a retomada de um crescimento sustentado não existiriam, pois a “credibilidade” do país ficaria em xeque. Era preciso fazer o sacrifício que fosse necessário para al-cançar esses objetivos. Intensificou-se então a liturgia da paciência, da ne-cessidade de pagar a pena, do sacrifício da “sociedade”, para que se pudesse salvá-la do mal maior.

Nesse contexto, foi ficando cada vez mais difícil apontar as aberrações então produzidas, que qualquer análise simplória da política econômica percebia sem grande dificuldade. As críticas eram sempre envergonhadas e os economistas que se davam conta dos absurdos tinham medo de ser tachados de atrasados e desrespeitadores de contratos31. Qualquer manifes-tação nessa direção era tomada como heresia e pura utopia. Com tudo isso, foi se consolidando o estado de emergência em nome do qual tudo se justi-fica e legitima.

Episódio revelador desse estado de coisas foi a designação, por Medida Provisória (MP), em agosto de 2004, do status de ministro ao presidente do Banco Central. As denúncias que lhe foram feitas pelo Ministério Público de falsidade ideológica e sonegação fiscal, assim como os processos na justiça co-mum que por consequência sofreria, obrigariam o presidente da República a demiti-lo. Mas a “necessidade” de mantê-lo no cargo, sob a pena de desesta-bilizar o mercado financeiro, foi, mais uma vez, a fonte da “lei” que permitiu sustentá-lo. A MP que salvou a pele do presidente do Banco Central foi um claro sinal de que o suposto estado de emergência é, na realidade, o estado per-manente, em que o rompimento das regras não é a exceção, mas a norma.

A crise política, por conta dos escândalos de corrupção que estouraram em meados de 2005, aprofundou ainda mais essa situação. Involuntaria-mente, contribuiu para reforçar o discurso oficial do estado de emergên-cia econômico. Afinal, era preciso salvar a sociedade da ameaça de que a crise política contaminasse a economia. Daí que era necessário tomar cui-

31 Essa situação se alterou um pouco com o espaço que a segunda gestão de Lula pro-piciou aos desenvolvimentistas e sobretudo com o advento da crise internacional, deflagrada em setembro de 2008. Contudo, a dominância do discurso ortodoxo é ainda indiscutível, tanto no mundo acadêmico quanto fora dele.

HEGEMONIA_miolo.indd 125HEGEMONIA_miolo.indd 125 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 122: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

126 • Hegemonia às avessas

dado com a redução dos juros, com a “gastança” do Estado etc. Compro-va-se com tudo isso que o estado e o regime de emergência que ele engendra não têm por finalidade resolver o problema, a “emergência”, para que se volte à normalidade. Sua verdadeira finalidade é manter a situação de emergência, não ultrapassá-la.

Mas não é no terreno stricto sensu econômico que encontraremos a ex-plicação para o sucesso obtido pelo governo Lula nessa prática de governo. Seguindo as pistas já oferecidas por Oliveira32, tentarei argumentar que tal explicação está na combinação desse estado de emergência econômico com aquilo que se poderia chamar, por falta de nome melhor, de “hegemonia às avessas”, sendo esse termo, claramente, uma alusão ao conceito de hegemo-nia que Gramsci tornou clássico.

Na matriz gramisciana original, como se sabe, a hegemonia da classe dominante (a burguesia) é exercida principalmente por meio de uma lide-rança moral e intelectual, que opera no seio da sociedade civil e engendra o consentimento. O preço a pagar por esse tipo de liderança é a desvinculação da classe hegemônica de seus interesses materiais mais imediatos e a realiza-ção de concessões e reformas que atendem aos interesses de outras classes. Assim, confere-se a liderança a uma determinada classe, mas atribui-se tam-bém a ela a responsabilidade pelo avanço da sociedade como um todo. Considerado o binômio “força e consentimento” que, segundo essa matriz teórica, constitui a hegemonia e, nessa medida, o próprio Estado, é eviden-temente no último dos elementos que está a força maior33. Isso posto, Oli-veira suspeita que:

Talvez estejamos assistindo à construção de uma “hegemonia às avessas” típica da era da globalização. A África do Sul provavelmente anunciou essa hegemonia às avessas: enquanto as classes dominadas tomam a “direção moral” da socieda-de, a dominação burguesa se faz mais descarada. As classes dominadas no país [...] derrotaram o apartheid [...]. E, no entanto, o governo sul-africano oriundo da queda do apartheid rendeu-se ao neoliberalismo [...]. Assim, a liquidação do apartheid mantém o mito da capacidade popular para vencer seu temível adver-

32 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.33 “O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parla-

mentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria...” (Gramsci, Cadernos do cárcere, 1932-34/2000, Caderno 13, §37, p. 95).

HEGEMONIA_miolo.indd 126HEGEMONIA_miolo.indd 126 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 123: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 127

sário, enquanto legitima a desenfreada exploração pelo capitalismo mais impie-doso. Algo assim pode estar em curso no Brasil.34

Entendida dessa forma, a “hegemonia às avessas” pode ser interpretada como sendo o resultado de uma separação insólita entre os papéis atribuí-dos à classe hegemônica, tal como concebida por Gramsci: uma classe exer-ce a liderança moral e intelectual, enquanto sua oposta exerce a liderança material. Não é preciso muita argúcia para perceber quão mais confortável é, nesse caso, a posição das classes burguesas, que podem então, com tran-quilidade, exercer sua liderança material (explorar), sem pagar o preço das concessões e reformas, desincumbidas que estão do papel de funcionar co-mo liderança moral da sociedade. Mais que isso, o fato de a liderança moral ser exercida pela classe dominada é muito mais funcional para o exercício da liderança que importa (a material), do que no caso em que ambas as li-deranças são exercidas pela classe dominante.

A mesma situação de hegemonia às avessas pode ser observada pelo lado contrário: ao invés de considerar que a hegemonia é dos dominados (por conta de sua liderança moral), e exercida para fazer a política dos domina-dores, pode-se considerar que a hegemonia continua a ser dos dominadores (continua a ser do capital), mas é operada pelos dominados (que detêm o comando do Estado). Contudo, do ponto de vista de sua funcionalidade pa-ra tocar o processo de acumulação obedecendo à frenética lógica da valoriza-ção financeira, tanto faz de que lado se olhe a figura, o resultado é sempre o mesmo: hegemonia às avessas e estado de emergência econômico funcionam de modo conjunto e sincrônico, e funcionam admiravelmente bem.

O argumento de Oliveira para lançar a hipótese de que algo semelhante à hegemonia às avessas pode estar acontecendo no Brasil é, em poucas pa-lavras, que o correlato brasileiro da derrota do apartheid sul-africano é a ascensão, ao primeiro plano da política, da questão da pobreza e da desi-gualdade e a consequente criação do Bolsa Família35 como forma de derro-tá-las. Em contrapartida, além de praticar uma política econômica hiper-

34 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, na página 26 deste livro.35 É fato sabido que o Programa Bolsa Família não nasceu no governo Lula, consti-

tuindo uma transformação de vários programas sociais de cunho assistencialista existentes no governo FHC, com destaque para o Bolsa Escola. Contudo, a elevação que Lula promoveu nos valores das rendas compensatórias distribuídas, bem como a expansão do programa que ele patrocinou, foi de tal ordem que, não sem razão, o programa é hoje associado diretamente a ele, como se não tivesse existido antes.

HEGEMONIA_miolo.indd 127HEGEMONIA_miolo.indd 127 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 124: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

128 • Hegemonia às avessas

ortodoxa, que penaliza com o desemprego a classe que, em princípio, está exercendo moral e intelectualmente a liderança, Lula teria também seques-trado os movimentos sociais e a organização da sociedade civil. Ao nomear ex-sindicalistas para ministérios e presidências de poderosos fundos de pen-são, seu governo teria feito com que os movimentos sociais praticamente desaparecessem da agenda política36. Sendo assim, se a sociedade está com-pletamente desmobilizada politicamente, de que maneira poderia ter existi-do qualquer reação que fosse às imposturas permanentemente justificadas pelo estado de emergência econômico que a dominância financeira exige? Com a liderança moral sob o comando das próprias classes dominadas, co-mo se insurgir?

Poder-se-ia eventualmente argumentar que, dados a dimensão e o volu-me de recursos envolvidos no Bolsa Família, seria injustificado asseverar que a liderança da classe dominada está sendo utilizada integralmente para operar uma política material (leia-se política econômica e seu entorno ins-titucional) do agrado das classes capitalistas. De acordo com esse tipo de interpretação, a expansão do Bolsa Família estaria funcionando da mesma forma que funcionaram, décadas atrás, a criação dos direitos trabalhistas, os quais permitiram a integração da classe trabalhadora a uma sociedade co-mandada pelo capital. Sendo assim, estaria havendo agora, de fato, uma he-gemonia da classe trabalhadora, a qual, fazendo jus a seu papel de classe hegemônica, estaria concedendo alguma coisa, em termos de política econô-mica, para atender às reivindicações das classes capitalistas. Mas essa inter-pretação das políticas de renda compensatória, tal como a do Bolsa Família, ignora que, ao invés de integrar os excluídos, elas consagram a fratura so-cial: distribuem uns poucos recursos àqueles que jamais conseguirão se in-tegrar, para que se possa dar andamento tranquilo à usual política concen-tradora e excludente (não por acaso, o criador desse tipo de instrumento é um indivíduo de cujo credo liberal ninguém duvida, o economista mone-tarista norte-americano Milton Friedman). No caso do Brasil de Lula, essa verdade é facilmente constatada pela simples comparação entre o que vem gastando o Estado com o Bolsa Família e o que vem gastando com o paga-mento de juros aos detentores de títulos da dívida pública, ou seja, pelo menos dez vezes mais com o último.

36 Segundo a visão de Oliveira, mesmo o MST estaria sendo manietado pela forte de-pendência financeira que tem em relação ao governo, que financia o assentamento das famílias.

HEGEMONIA_miolo.indd 128HEGEMONIA_miolo.indd 128 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 125: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 129

Assim, essa hegemonia às avessas combina perfeitamente com a necessi-dade que tem hoje o sistema de referendar o chamado estado de emergência econômico. Mas essa suspensão permanente da normalidade está direta-mente vinculada ao estado das artes do capitalismo contemporâneo, parti-cularmente se considerarmos que todo o enredo até agora descrito se passa na periferia do sistema, numa economia “emergente”. É o estreitamento dos laços financeiros entre o centro e a periferia que explica boa parte das razões que levam os subservientes estados periféricos a condenar suas socie-dades e a si mesmos a um permanente estado de emergência, em que tudo é permitido e a exceção é a norma. É o que veremos a seguir.

Capitalismo financeiro, estado de emergênciae as relações centro-periferia

Alguns analistas denominam a atual etapa do capitalismo de “regime de acumulação com dominância da valorização financeira”37. A dominância da valorização financeira não significa apenas que tal valorização seja hoje mais importante do que a produtiva. Significa, principalmente, que sua lógica se impõe ao processo total de acumulação e reprodução capitalistas. E quais são as características da acumulação financeira? Ela é rentista, quer dizer, apropria-se da renda gerada no setor produtivo; é curto-prazista, ou seja, arisca a projetos de longo prazo, porque preza antes de tudo a liquidez; é avessa ao risco, mas ao mesmo tempo é instável e arriscada, porque enseja e reproduz a especulação; é exterior à produção, porque não lhe importam as necessidades da atividade produtiva em si, mas tão somente a valorização dos ativos financeiros – originem-se eles ou não da esfera produtiva – e sua liquidez.

A invasão dessa lógica por todos os escaninhos da reprodução do capital é responsável pela difusão das grandes transformações nos processos produ-tivos herdados da época fordista. As necessidades de costumeirizar a pro-dução, flexibilizar o trabalho, encolher os estoques, reduzir o número dos níveis gerenciais e terceirizar serviços e etapas do processo produtivo obe-decem aos imperativos da lógica financeira: dividir os riscos da produção capitalista com os trabalhadores e os consumidores, evitar que o capital fi-que empatado em ativos fixos e estoques de matérias-primas e produtos,

37 François Chesnais, A mundialização financeira, cit.; A finança mundializada, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 129HEGEMONIA_miolo.indd 129 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 126: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

130 • Hegemonia às avessas

preservar e buscar a liquidez onde quer que ela esteja. As novas tecnologias de informação e comunicação, ao contrário do que supõem certas teorias ingênuas, são os veículos que objetivam essa lógica e a tornam mais impe-rativa, não sua causa.

Mas essa lógica tipicamente financeira se reproduz por meio de ativos próprios, muitos dos quais estão incluídos naquilo que Marx chamou de “capital fictício”. Quem ganha dinheiro com a valorização das ações que possui não participou diretamente da produção nem detém o capital mate-rial que efetivamente produz. No entanto, a duplicata de capital que ele tem lhe dá direito a uma parcela da renda real produzida na sociedade. Quem tem um título da dívida pública tem direito sobre a renda real futu-ra da sociedade, mesmo sem vir a participar de sua geração. Esses são dois casos típicos de capital fictício. A mera propriedade desses ativos garante a participação de seus detentores na renda real produzida pela sociedade, sem que estejam diretamente envolvidos em sua produção. Os pos suidores de seus ativos são, portanto, rentistas.

De certa forma, o rentismo é o avesso daquilo que a ideologia liberal diz que o capitalismo é. Segundo esse discurso, o capitalismo é encarnado no espírito animal dos empresários, que, longe de qualquer auxílio e/ ou pro-teção do Estado, enfrentam a concorrência e arriscam seu capital na produ-ção, buscando um retorno maior ao fim do movimento. É daí que vem também, atrelada ao liberalismo, a ideia de que o capitalismo é meritocrá-tico e, portanto, quem se dá mal nessa sociedade não tem méritos e/ ou qualidades e/ ou virtudes suficientes.

Mas o rentismo procura segurança máxima e não arrisca nada, a não ser que haja a perspectiva de um enorme ganho com isso (como ocorreu, por exemplo, nos movimentos especulativos contra moedas de países menos desenvolvidos na segunda metade dos anos 1990). Quer o máximo re-torno, no menor prazo de tempo possível, com o menor risco. O “mérito” maior dessa sorte de aristocracia capitalista não é o animal spirit do sujeito virtuoso disposto a arriscar, mas a mera propriedade de ativos financeiros. Daí porque esse tipo de capitalismo ser denominado também capitalismo patrimonialista38.

Mas como não é possível evitar completamente o risco é preciso trans-formar o jogo capitalista cada vez mais num jogo de cartas marcadas. Aces so

38 François Chesnais, A finança mundializada, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 130HEGEMONIA_miolo.indd 130 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 127: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 131

privilegiado a informações sobre papéis públicos, concorrências públicas, fundos públicos e vendas de ativos públicos tornam-se então fundamen-tais. O poder público maneja negócios e recursos sempre volumosos, de modo que atrelar o rentismo ao poder do Estado parece a forma mais se-gura de aliar retorno elevado e liquidez a segurança (poder e dinheiro cada vez mais juntos).

O capitalismo rentista é, portanto, o avesso do mercado, da concorrên-cia, do risco capitalista, da ausência do Estado. Paradoxalmente, é esse tipo de capitalismo que hoje predomina. Em alguns aspectos, ele lembra os iní-cios do capitalismo, a época da acumulação primitiva, quando os Estados nacionais se formavam como grandes negócios e a acumulação capitalista passava diretamente pelo poder desses Estados.

Pensadores críticos contemporâneos, como Harvey39, têm afirmado a tese de que estaríamos hoje num momento da história capitalista em que os pro-cessos típicos da fase da acumulação primitiva de capital estariam presentes de modo muito mais intenso do que se imagina40. Segundo essa visão, esses processos, que marcaram os primórdios do capitalismo e envolvem fraude, roubo e todo tipo de violência, na realidade nunca saíram completamente de cena, mas exacerbam-se quando ocorrem crises de sobreacu mulação como a que experimentamos. O resgate desses expedientes violentos minora as con-sequências da sobreacumulação, visto que desbrava “territórios” para a acu-mulação de capital antes fora do alcance. Em outras palavras, estaríamos agora numa época de “acumulação por espoliação”, em que se aliam o poder do dinheiro e o poder do Estado, que dela participa sempre – ou diretamente, ou por conivência, ou por omissão. Vários são os exemplos desse tipo de processo, os ataques especulativos a moedas de paí ses fracos, o crescimento da importância dos títulos de dívida pública em todos os países e as priva-tizações, que se generalizaram, estão entre os mais importantes.

Nesse sentido, para dar um exemplo concreto, o processo brasileiro de privatização, que começou em 1990 e teve seu pico no primeiro reina-do de FHC, é paradigmático. Por meio dele, não só se abriram à acumu-lação privada suculentos espaços, como, em muitos casos, fez-se isso com dinheiro público (do BNDES), emprestado aos “compradores” (e às vezes

39 David Harvey, O novo imperialismo, cit.40 A esse respeito, ver também Paulo E. Arantes, “Um retorno à acumulação primi-

tiva”, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 131HEGEMONIA_miolo.indd 131 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 128: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

132 • Hegemonia às avessas

não pago, como no conhecido caso da Eletropaulo/ Enron) a juros sub-sidiados. Além disso, os preços desses ativos foram subavaliados pelo Es-tado e o ágio elevado que naturalmente apareceu, dada a concorrência por esses setores (os serviços industriais de utilidade pública), que são o filé mignon da acumulação produtiva no mundo, está sendo devolvido aos “compra dores” por meio de isenção fiscal, que dura o tempo necessá-rio para compensar o ágio.

Outro exemplo concreto é a transformação pela qual vem passando o sistema previdenciário no Brasil. Com a imposição de tetos de valor redu-zido para os benefícios, primeiro para os trabalhadores do setor privado (FHC), depois para os trabalhadores do setor público (Lula), o Estado abriu imediatamente à acumulação privada todo o imenso território da previdên-cia, sendo que o governo Lula lhe ofertou o presente mais valioso, os servi-dores públicos, de salário médio mais elevado e praticamente sem risco de desemprego.

A diferença entre os inícios do capitalismo e essa sorte de acumulação primitiva contemporânea é que o discurso econômico da época era o mer-cantilismo, que defendia abertamente as práticas protecionistas, a defesa dos mercados pelo Estado e a sociedade entre poder e dinheiro. No capita-lismo de hoje, quando esses dois elementos voltam a andar muito próxi-mos e o capitalismo é marcado pela discricionaridade, pelo compadrio e pelo privilégio, difunde-se a doutrina do mercado como demiurgo, das vir-tudes da concorrência, da competitividade e da eficiência.

Não é à toa, portanto, que o estado de emergência se mostra como uma necessidade do capitalismo, e a exceção se torna a norma. O estado de emer-gência parece ser a única forma de compatibilizar, de um lado, o capitalis-mo rentista com seu conjunto de práticas discriminatórias e seu perma-nente e concreto açambarcamento da riqueza social por uma aristocracia capitalista privilegiada e bem postada junto ao Estado e nele e, de outro, o discurso globalizante, produzido pela doutrina neoliberal e reverberado pela mídia, como se o mercado fosse o grande maestro dessa orquestra.

Como justificar a pessoalidade das relações mercantis, o acesso privi-legiado a informações, concorrências e fundos públicos senão pelo fato de que nos encontramos, afinal, em uma situação de emergência em que as infrações à regra devem ser encaradas com “naturalidade”? Quando se trata de “salvar a sociedade” é preciso ter flexibilidade para que as normas não

HEGEMONIA_miolo.indd 132HEGEMONIA_miolo.indd 132 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 129: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas... • 133

atrapalhem. Isso é mais verdadeiro quando o cenário que abriga esses movi-mentos é o do capitalismo periférico.

No caso do Brasil, por exemplo, podemos apresentar em rounds perió-dicos a história de nossa dependência periférica. Primeiro round: no início fomos puro objeto de espoliação, território de extração de metais preciosos e matérias-primas, como o pau-brasil – ambos elementos de substantiva importância no Centro, em tempos de acumulação primitiva e capitalismo comercial. Segundo round: como parte da relação entre Metrópole e Colô-nia, e depois como país independente, fomos território produtor de bens agrícolas e matérias-primas baratas, que nos arrastaram de ciclo a ciclo e alavancaram a acumulação industrial no Centro do sistema. Terceiro round: já no século XX, fomos o mercado que começou a faltar, em tempos de su-peracumulação industrial, ao capital multinacional do Centro; reconstruí-dos Europa e Japão, o movimento começa a perder fôlego, mas encontra na América Latina, e em particular no Brasil, o território para um novo sur-to expansivo de produção e consumo, adiando a queima do capital excessi-vo. Quarto round: no início do capitalismo rentista, ainda sob a forma de contratos convencionais, o Brasil, e em particular o Estado brasileiro, foi o absorvedor de poupança em dólares que faltava a um capital financeiro ro-busto e ávido por aplicações rentáveis, num mundo em crise aberta depois do choque do petróleo. Quinto e último round (por enquanto...): a securi-tização da dívida externa, a internacionalização do mercado brasileiro de títulos públicos e a abertura dos fluxos internacionais de capital fizeram do Brasil, a partir dos anos iniciais da década de 1990, emergente plataforma de valorização financeira internacional, capaz de proporcionar aos rentistas nacionais e estrangeiros impensáveis ganhos em moeda forte41.

A armação do estado de emergência econômico que presenciamos foi condição de possibilidade para que nossa relação com o Centro passasse da dependência tecnológica típica da acumulação industrial à subser viência

41 Um bom indicador dessa situação é a observação das despesas com rendas da balan-ça de serviços. No caso do Brasil, as despesas com lucros, dividendos e juros de in-vestimentos em carteira (os ativos típicos dessa fase rentista do capitalismo) passa-ram de uma média anual de 276 milhões de dólares nos anos 1980 para 3,76 bilhões de dólares nos anos 1990 e 12,10 bilhões de dólares nos anos 2000 (considerado o período 2000-2008). Para uma análise mais detalhada dos mecanismos que trans-formaram o Brasil em plataforma internacional de valorização financeira, ver Leda M. Paulani e Christy G. Pato, “Investimentos e servidão financeira”, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 133HEGEMONIA_miolo.indd 133 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 130: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

134 • Hegemonia às avessas

financeira típica do capitalismo rentista. No caso do terceiro round, seu mo-mento final exigiu um estado de exceção jurídico; no caso do último, a nor-malidade jurídica exige o estado de emergência econômico, tornando tudo mais simples quando este é combinado com o processo que denominamos, juntamente com Oliveira, de “hegemonia às avessas”.

Nesse contexto, a ascensão ao governo federal de um partido historica-mente de esquerda e historicamente adversário do estado de emergência, que se especializara em denunciar suas arbitrariedades, gerou a expectativa de uma “volta à normalidade”. Tendo o governo adotado o caminho inver-so ao esperado, só lhe restou, postado no papel de liderança moral da socie-dade, agarrar-se de vez ao estado de emergência, decretando sua completa e total normalidade.

O governo Lula configurou-se, portanto, como a derradeira e mais uma vez frustrada esperança de uma refundação da sociedade brasileira, depois da devastação produzida pelos governos militares. Antes dessa frustração, vieram a empolgação com as diretas, a primeira eleição para Presidente, o Plano Cruzado, a Constituinte e o Plano Real. Em todas es-sas oportunidades, prevaleceu a ideia de que retomaríamos a trilha do desenvolvimento e, sobretudo, de que seria resgatado o processo de cons-trução da Nação, interrompido politicamente em 1964 e economicamen-te uma década depois.

Nesse meio tempo, o capitalismo se transformou, assim como se alterou a relação do centro com a periferia. O alcance do estatuto de Nação desen-volvida ficou mais distante e, quanto mais profunda foi se configurando a submissão das elites dos países periféricos aos imperativos da acumulação financeira e aos acenos enganosos do discurso neoliberal, mais distante fica-va. No caso do Brasil, essa submissão foi tão completa que mesmo um go-verno pilotado por um partido operário, nascido de baixo para cima, da árdua luta dos trabalhadores, foi incapaz de escapar dela e teve de decretar o caráter definitivo do estado de emergência econômico. A gravidade quase sem precedentes da crise internacional que ora experimentamos, típica, aliás, desses tempos de acumulação presidida pela lógica financeira, haverá de afirmar a funcionalidade do estado de emergência econômico, bem como a característica sui generis da hegemonia de direito, mas não de fato, com a qual ele está combinado.

HEGEMONIA_miolo.indd 134HEGEMONIA_miolo.indd 134 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 131: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

3

CULTURA, CIDADE E SERVIDÃO FINANCEIRA

HEGEMONIA_miolo.indd 135HEGEMONIA_miolo.indd 135 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 132: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A CULTURA DA SERVIDÃO FINANCEIRA:UMA LEITURA ÀS AVESSAS

Maria Elisa Cevasco

Todos estamos familiarizados com a caracterização do nosso tempo – que hoje alguns chamam de tempos da globalização e até ontem chamavam de pós-modernidade – como o tempo da derrota da esperança de termos um mundo qualitativamente distinto do que vivemos. Em 2009 foi o aniversário de trinta anos da frase famosa de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”.

Para qualquer uma das esferas da vida que se olhe, a palavra-chave pare-ce ser irreversibilidade: não se pode conceber a sociedade sem mercadorias, a vida sem os gadgets da tecnologia contemporânea e não se pode imaginar um outro tipo de economia que não a predicada pelas pautas instituídas pela globalização capitalista, com os enormes custos humanos que esse modo de produção necessariamente acarreta. E o pior é que todos sabem desse custo, mas parecem incapacitados de imaginar outra forma de vida que não seja a da sociedade de consumo e das imagens padronizadas da indústria cultural. Como disse Fredric Jameson no prefácio de seu livro As sementes do tempo: “Em nossos dias, parece-nos mais fácil imaginar a deterioração total do planeta e da natureza do que o final do capitalismo tardio, talvez isso seja devido a uma certa debilidade da nossa imaginação”1.

Compreensivelmente, essa conjuntura acachapante tem encurralado os críticos do sistema. Os do meu campo, da crítica cultural, têm seguido a prática que se pode chamar, seguindo o influente livro de Paul Ricouer2, de hermenêutica da suspeita e buscado usar as ferramentas poderosas do des-manche das ilusões, que é legado da melhor tradição de crítica cultural,

1 Fredric Jameson, As sementes do tempo (São Paulo, Ática, 1997), p. 10.2 Paul Ricouer, Freud and philosophy: an essay on interpretation (New Haven, Yale Uni-

versity Press, 1970).

HEGEMONIA_miolo.indd 137HEGEMONIA_miolo.indd 137 9/8/10 4:27:36 PM9/8/10 4:27:36 PM

Page 133: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

138 • Hegemonia às avessas

para fazer um diagnóstico dos horrores das práticas culturais desses tempos sombrios.

No campo da crítica cultural marxista, a perspectiva mais influente nes-sa tradição da demonstração dos horrores constitutivos da vida sob o ca-pitalismo é a de György Lukács em seu livro História e consciência de classe*, de 1923. Como se sabe, é nesse livro que ele dá mais um passo, a partir da descrição poderosa do funcionamento do sistema em O capital ** de Marx, e mostra como as forças do modo de produção operam sobre os sujeitos, colonizando nossas próprias consciências. A noção-chave de Lukács, a da reificação, parte da descrição da forma mercadoria, em especial de seu poder de operar uma equivalência geral no sistema de trocas, mer-cantilizando todas as relações sociais e escondendo, sob a fantasmagoria do fetiche, as relações entre as pessoas que as produzem. Ele acrescenta a esse quadro a descrição de Max Weber a respeito do processo da racionali-zação dos processos produtivos, que conhecemos como taylorização, e mos-tra como esse processo se estende até nossas configurações mentais. Assim, o sistema deforma tanto o conhecimento e as artes que produzimos como nossos próprios sentidos. Lukács apresenta aí uma exposição do caráter sis-têmico da lógica do capitalismo, um processo que separa, compartimenta-liza, especializa e dispersa, uma força que opera sobre todas as coisas e torna a heterogeneidade homogênea e padronizada3.

É claro que a cultura, enquanto organização dos significados e valores de um determinado grupo social, uma materialização da experiência do vi-vido, é marcada por esse processo de reificação que ela a um só tempo in-corpora, reforça e, para alguns, supera. Com História e consciência de classe está aberta a rota para uma crítica da cultura que, além de fazer o usual, o comentário e a avaliação das grandes obras, expande-se para constituir uma fenomenologia da vida cotidiana sob o capitalismo. É a partir daí que pas-sa a diagnosticar os problemas dessa forma de vida com o projeto claro de contribuir para mudá-la. Os grandes temas da Escola de Frankfurt, como a fetichização dos sentidos na crítica de Adorno, o empobrecimento da expe-

* São Paulo, WMF Martins Fontes, 2003. (N. E.)

** 2. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008. (N. E.)3 Ver, a esse respeito, o ensaio de Fredric Jameson, “History and class consciousness as

an ‘unfinished project’”, em Marcos Soares e Maria Elisa Cevasco (orgs.), Crítica cultural materialista (São Paulo, Humanitas, 2008), p. 13-46.

HEGEMONIA_miolo.indd 138HEGEMONIA_miolo.indd 138 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 134: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A cultura da servidão fi nanceira • 139

riência em Walter Benjamin e a alienação promovida pela colonização do lazer pela indústria cultural, são legados fundamentais para entender o fun-cionamento da cultura em nossos dias. Resta acrescentar aí noções como a de sociedade do espetáculo, na qual, como na formulação exata de Guy Debord, a imagem se revela como a forma final da reificação. E ainda po-demos falar em Jean Baudrillard, cuja presença nesse elenco de marxistas pode ser mal vista, mas sua noção de simulacro, a cópia de uma imagem cujo original não existe, pode ser considerada o passo lógico seguinte no processo de desdiferenciação característico da vida danificada do capitalis-mo que agora abole as separações fundamentais que norteavam nossos mo-dos de pensar. Não se distingue mais o real da imagem, e a imagem recobre tudo. Na formulação de Jameson, nossa modernidade singular se caracte-riza pela penetração máxima da forma mercadoria em todas as esferas da vida, inclusive enclaves antes relativamente autônomos, como a natureza e nosso próprio inconsciente colonizado e mercantilizado pela cultura de massas e pela indústria cultural4.

Uma das consequências para o plano das ideias desse estado de coisas pode ser resumida com a citação de um dos maiores pensadores dos hor-rores desse estágio do capitalismo, Theodor Adorno. Em Prismas, ele avisa: “Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas so-mente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação e a men-tira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas pede silêncio”5.

No entanto, a grande tradição do pensamento marxista nos ensina, des-de Marx no Manifesto Comunista*, a pensar o desenvolvimento histórico e as mudanças sociais de forma dialética, ou seja, pensar o capitalismo, a um só tempo, como o progresso e a catástrofe que representa. O próprio Fredric Jameson nos insta a pensar esse novo tempo do horror positiva e negativa-mente. Segundo ele, é necessário que à ontologia do presente acrescentemos uma arqueologia do futuro, um modo de pensar que ajude a evitar a colo-nização total do que virá pelo eterno presente da forma mercadoria6.

4 Fredric Jameson, Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005), p. 12.

5 Theodor Adorno, Prismas (São Paulo, Ática, 1998), p. 25.* São Paulo, Boitempo, 1998. (N. E.)6 Fredric Jameson, Modernidade singular, cit., p. 250.

HEGEMONIA_miolo.indd 139HEGEMONIA_miolo.indd 139 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 135: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

140 • Hegemonia às avessas

Então, ao invés de mais uma vez apontar o que já sabemos, eu gosta-ria – mesmo sob o risco de ser acusada de indevidamente otimista, para não dizer “bocó” – de escovar um pouco a história do presente a contrapelo e buscar formas do emergente no horror geral da cultura do desmanche. A inspiração teórica vem de Raymond Williams. Para pensar as formas de se opor à cultura que azeita o esquema de trituração da vida e das possibilida-des de mudança em nossa era de disseminação total dos meios de comuni-cação de massa sempre a serviço da classe dominante, Raymond Williams retoma a noção gramsciana de hegemonia, ao seus olhos mais produtiva para o nosso momento do que a de ideologia:

Nos anos 1960, ficou claro que estávamos diante de uma nova forma do estado corporativo, e a ênfase na cultura, que com frequência era considerada nossa posição, sempre foi uma ênfase, pelo menos em meu caso pessoal, no processo de incorporação social e cultural através do qual é mais do que simplesmente a propriedade ou o poder que mantêm as estruturas da sociedade capitalista. Na verdade, a tentativa de definir essa situação nos possibilitou rever partes impor-tantes da tradição marxista, em especial o trabalho de Gramsci, com sua ênfase na hegemonia. Pudemos então afirmar que a dominação essencial de uma de-terminada classe na sociedade mantêm-se não somente – ainda que certamente, se for necessário – através do poder e não apenas – ainda que sempre – através da propriedade. Ela se mantém também, inevitavelmente, pela cultura do vivi-do: aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, que é conti-nuamente renovada em todos as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos, de tal forma que o que as pes-soas vêm a pensar e a sentir é, em larga medida, uma reprodução de uma ordem social profundamente arraigada sobre as quais as pessoas podem até pensar que de algum modo se opõem a elas e às quais muitos vezes se opõem de fato.7

Quer em seus usos mais corriqueiros, como o conjunto de ideias de uma classe dominante que doutrina e manipula as classes dominadas, quer na formulação althusseriana da ideologia, como as relações imaginárias com a nossa situação real ou como um inconsciente imposto pela estrutura so-cial, a acepção de ideologia como falsa consciência depende de um modelo de subjetividade que pressupõe um ser humano passivo, estático e apenas receptivo. Nesse sentido, as noções de ideologia descrevem o “sujeito ideal” da sociedade da indústria cultural, o que é funcional para manter o sistema. Já nesse nível bem primário aparece uma boa razão para repensá-la.

7 Raymond Williams, “You’re a Marxist, aren’t you?” (1975), Resources of hope (Lon-dres, Verso, 1989), p. 74.

HEGEMONIA_miolo.indd 140HEGEMONIA_miolo.indd 140 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 136: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A cultura da servidão fi nanceira • 141

Williams não ignora a força acachapante do capitalismo, turbinado pela “propaganda a favor do mundo”, o conteúdo da cultura veiculada para as massas. Para ele, a hegemonia é a determinação em funcionamento, e satu-ra a vida social a tal ponto que “se constitui como a substância e os limites do senso comum e corresponde à realidade da experiência social”8. Mas é também um processo ativo, heterogêneo, em movimento, uma economia da experiência governada pela coexistência de forças sociais em conflito. Pensar os processos culturais nesses termos afasta a tentação desmobilizado-ra, muito forte e convincente em dias como os nossos de hegemonia de um só sistema, de não fazer nada por que não há saída. Apesar de sua força avassaladora como porta-voz dos valores vigentes, a cultura dominante tem de conviver com elementos residuais, que vêm de outros tempos, e emer-gentes, que traduzem as forças da mudança. Essa convivência é a expressão cultural do fato de que

nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma ordem ou sociedade domi-nante é capaz, na realidade, de abarcar toda a abrangência da prática social humana, da energia humana e das intenções humanas (não se trata aqui do inventário de uma “natureza humana”original, mas, ao contrário, da enorme amplitude e variação, tanto na prática quanto na imaginação, de que os seres humanos são e demonstraram ser capazes) [...]. É fato que as modalidades de dominação operam seletivamente e, portanto, acabam sempre deixando de fora algo da abrangência total das práticas humanas reais e possíveis.9

É essa constatação que abre espaço para teorizar o emergente, o residual e o dominante. As práticas emergentes são muitas vezes cooptadas e neutra-lizadas, mas também questionam as usuais e apontam novos caminhos. É papel da crítica empenhada, além de diagnosticar os problemas da reifica-ção triunfante, procurar desentranhar das práticas vigentes uma alternativa ao que existe. Penso que é justamente aqui, na tentativa e na necessidade de descrever o emergente, de coordenar novas formas de prática e hábito sociais e mentais com novas práticas de produção e de organização econômicas que Williams cunha a expressão “estrutura de sentimento”.

O termo aparece inicialmente em um dos seus primeiros livros, de 1954, como uma resposta a uma constatação analítica:

8 Idem, “Base and superstructure in Marxist cultural theory”, Problems in materialism and culture (Londres, Verso, 1980), p. 37.

9 Ibidem, p. 43.

HEGEMONIA_miolo.indd 141HEGEMONIA_miolo.indd 141 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 137: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

142 • Hegemonia às avessas

Relacionar uma obra de arte com qualquer aspecto da totalidade observada po-de ser, em diferentes graus, bastante produtivo; mas muitas vezes percebemos na análise que, quando se compara a obra com esses aspectos distintos, sempre sobra algo para o qual não há uma contraparte externa. Esse elemento é o que denominei de estrutura de sentimentos, e só pode ser percebido através da ex-periência da própria obra de arte.10

Em The Long Revolution*, de 1961, o próprio Williams justifica a justa-posição esdrúxula dos dois termos: estrutura, diz ele, para dar conta de que se trata de algo “firme e definido”, mas que opera nas áreas menos tangíveis de nossas atividades. Em Marxismo e literatura, de 1977, ele esclarece que a noção de “estrutura de sentimento” procura se opor a um modo de análise bastante arraigado, que considera tanto a sociedade como a produção cul-tural como algo já formado, parte do passado. Isso faz com que seja preciso encontrar outro termo para o que é ativo, presente. Nesse tipo de análise, reforça-se uma das pedras de toque da hegemonia burguesa, a cisão entre o pessoal e o social:

[...] se o social é o fixo e o explícito – as relações, instituições, formações e po-sições que já conhecemos – tudo que for presente e mobilizador, tudo que pa-rece escapar do fixo, do explícito e do conhecido é percebido e definido como o pessoal: isso, aqui, agora, vivo, ativo, “subjetivo”.11

O termo procura dar conta de uma área da experiência que é social e material, mas ainda não completamente articulada. Contudo, essa experi-ência, mesmo que não esteja ainda definida, classificada ou racionalizada, exerce pressões e impõe limites efetivos ao que pensamos, ao que vivemos ou ao nosso modo de agir. Trata-se, como diz Cora Kaplan em um ensaio sobre Williams, do “sentimento vivido de um tempo, suas histórias dinâmi-cas e efêmeras que contêm e revisam as contradições entre as ideologias ri-vais e entre essas e suas oposições ou alternativas radicais”12. O central nessa

10 Raymond Williams e Michael Orrom, Preface to film (Londres, Film Drama Limi-ted, 1954), p. 21-2.

* Nova York, Columbia University Press, 1961. (N. E.)11 Raymond Williams, Marxism and literature (Londres, Oxford University Press,

1977), p. 128. [Ed. bras.: Marxismo e literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.]12 Cora Kaplan, “What we have again to say: Williams, Feminism, and the 1840s”, em

C. Prendergast (org.), Cultural materialism: on Raymond Williams (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1995), p. 231.

HEGEMONIA_miolo.indd 142HEGEMONIA_miolo.indd 142 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 138: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A cultura da servidão fi nanceira • 143

noção é o esforço de incorporar à análise da cultura noções que fazem parte da nossa experiência de obras de arte, mas que ficam normalmente relega-das para a área difusa, mal-explicada e pouco rigorosa das impressões, sen-sações e... sentimentos. Isso tudo em prejuízo do fato de que todos eles, impressões, sensações e sentimentos, fazem parte da experiência do vivido e são motores da fruição da arte.

Claro que essa noção de Williams atraiu muita crítica. Uma das mais bem articuladas é do grupo da nova esquerda britânica, que o entrevistou sobre toda sua obra e editou as entrevistas no livro Politics and letters. Vale a pena reproduzir a troca de objeções, pois esclarecem o significado do termo como pensou Williams e mostram a que ele se opõe:

Pergunta: Sua discussão mais recente de estrutura de sentimentos a descreve co-mo um campo de contradições entre uma ideologia consciente e uma experiên-cia emergente. A ideia de uma experiência emergente, para além da ideologia, parece pressupor uma espécie de contato direto entre o sujeito e a realidade na qual esse sujeito está imerso. Será que isso não deixa a porta aberta para que voltem a entrar noções de “vida” ou de “experiência” como [as que marcam cer-ta estética conservadora]?

Resposta: Não. Isso tem de ficar muito claro. Porque, no fim das contas, o ar-gumento central do primeiro capítulo de The Long Revolution é exatamente que não existe uma forma natural de ver e, portanto, não pode haver um contato direto e imediato com a realidade. Por outro lado, grande parte das teorias lin-guísticas e algumas da semiótica correm o risco de chegar ao extremo oposto, no qual o epistemológico absorve totalmente o ontológico: é apenas em nossas formas de saber que chegamos a existir. Para meus amigos formalistas, que são muitos e gostam de duvidar até mesmo da possibilidade de um referente exter-no, é preciso recordar uma pressuposição fundadora do materialismo, a saber, que o mundo natural existe, mesmo que não lhe confiramos significados [...]. Dito isso, penso que a relação entre significação e referente em nossa própria situação é diferente do que em qualquer outra. É difícil formular isso. Mas, no caso de outras situações, aprende-se apenas através de articulações registradas, tudo que se têm é necessariamente textos e documentos. Certamente, em nossa própria época, obtemos muito mais do que muitos pensam justamente dessas versões de documentação sem fim. Em contraste, no processo da formação da consciência [...] vários tipos de ocorrência interferem nas relações estabelecidas disponíveis entre significação e referência. Essa posição formalista de que não há significado sem um significante implica dizer que vivemos apenas quando articulamos. Ora, talvez isso seja uma generalização a partir da minha própria história, mas penso que as áreas a que chamaria de estruturas de sentimentos formam-se inicialmente quase sempre como um certo distúrbio ou desconfor-to, um tipo específico de tensão, para a qual, quando nos afastamos ou nos lem-

HEGEMONIA_miolo.indd 143HEGEMONIA_miolo.indd 143 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 139: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

144 • Hegemonia às avessas

bramos dela, podemos encontrar um referente. Dizendo de outro modo, o lu-gar específico de uma estrutura de sentimentos é a comparação incessante que deve se dar no processo da formação da consciência entre o articulado e o vivi-do. “Vivido”, se vocês quiserem, é apenas uma outra palavra para experiência, mas temos de encontrar uma palavra para esse nível. Porque tudo isso que não é completamente articulado, tudo que aparece como um distúrbio, uma tensão, um bloqueio, um problema emocional, parece-me ser precisamente uma fonte para as grandes mudanças nas relações entre significante e significado, seja na linguagem literária, seja nas convenções.13

Gostaria de tentar demonstrar a produtividade dessa noção para os nos-sos tempos de desmanche por meio de um modesto exercício de junção de teoria e prática, esboçando uma análise de um fenômeno cultural recente, instigante e bem próximo de minha experiência como cidadã da cidade de São Paulo.

Em nossa cena cultural, o teatro de grupo destaca-se como uma das modalidades que, de maneira mais duradoura, tem buscado, muitas vezes de forma consistente e bem-sucedida, escapar dos limites estreitos da produ-ção segundo os parâmetros da indústria cultural. Seu sucesso é em parte consequência da falta de interesse do mercado: afora os grandes musicais importados dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, ou as peças com ato-res de televisão bem conhecidos do público, teatro não dá lucro. Por outro lado, é um resultado histórico, uma continuação, ainda que em circuns-tâncias muito diferentes, do ativismo e da proeminência do teatro antes e imediatamente após o golpe de 1964, que se traduziu, como se sabe, não somente no mais conhecido Teatro do Oprimido de Augusto Boal e na ambiguidade política do teatro Oficina de José Celso Martinez Correa14, mas nos centros populares de cultura (CPCs) que usavam técnicas do agit-prop e montavam peças em universidades, favelas e portas de fábrica com conteúdo político explícito. O teatro efetivamente existente, segundo seu manifesto de 1961, reduz o teatro a mero entretenimento e a um orna-mento das classes dominantes. Já estava evidente aí que, em uma sociedade desigual como a brasileira, uma sociedade democrática não pode ser cons-truída sem a formação política.

13 Raymond Williams, Politics and letters (Londres, Verso, 1979), p. 167-8.14 Ver, a esse respeito, a análise esclarecedora de Roberto Schwarz em “Cultura e polí-

tica: 1964-1969”, em O pai de família e outros estudos (São Paulo, Paz e Terra, 1978), p. 61-92; Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico (São Paulo, Graal, 1996).

HEGEMONIA_miolo.indd 144HEGEMONIA_miolo.indd 144 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 140: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A cultura da servidão fi nanceira • 145

Alguns dos grupos ativos hoje estão na estrada há muitos e muitos anos, mas adquiriram maior visibilidade quando se reuniram em um movimento coletivo denominado, com acerto, “Arte Contra a Barbárie”. O primeiro documento do movimento é de 1998, ano em que o Brasil completava seu embarque no modelo nocivo de modernização neoliberal. Lembrando que a relação da cultura com a sociedade é bidirecional, ou seja, a cultura refle-te a sociedade, mas também deve dar à sociedade a possibilidade de re-fletir, o manifesto avisa que teatro não deve ser mercantilizado e demanda incentivos públicos para manter esse bem público. A resposta governa-mental foi pequena e tímida, como sempre. Penso que há muita gente na própria área cultural do governo que comprou por inteiro a ideologia vi-gente que dá ao mercado a primazia sobre o pensamento: boa arte é a que vende bem e tem sucesso de público – como se o público não tivesse ele mesmo de ser formado e apresentado a maneiras outras de ver e pensar que não as da colonização mental da indústria cultural.

Se considerada a resposta de incentivo oficial, é um verdadeiro milagre que essas companhias existam e tenham condições de manter um projeto de formação intelectual, uma construção em meio ao desmanche geral. Eu poderia falar da Companhia do Latão, do Feijão, do Bartolomeu, da Ocamorana, do Folias D’Arte, do União e Olho Vivo ou da Companhia São Jorge, mas vou falar do Engenho Teatral, porque seu projeto concentra muito do diferencial que estou tentando marcar aqui.

Para começar, o grupo tem seu próprio teatro, uma bela estrutura de lo na especialmente desenvolvida para o projeto, com lugares confortáveis para duzentas pessoas. A sala de espetáculo tem a peculiaridade de poder ser transportada para diferentes lugares. A ideia é montá-la justamente onde não há casas de espetáculos, como na maioria dos lugares da periferia de São Paulo. O grupo não cobra ingresso e tem meios para levar alunos de escola pública e membros de movimentos sociais e religiosos para seus espetácu-los. Como se vê, trata-se de uma materialização de um projeto que se colo-ca a contrapelo de rigorosamente tudo que estrutura e, portanto, molda o teatro convencional. O grupo existe desde 1975 e decidiu abandonar o circuito comercial já em 1993. Na última contagem, publicada no jornal que é distribuído nas encenações, mais de 175 mil pessoas haviam assistido a suas peças.

Confesso que na primeira vez em que fui assistir a um espetáculo do grupo, no início do ano 2000, imaginei que veria uma ótima ideia ser des-

HEGEMONIA_miolo.indd 145HEGEMONIA_miolo.indd 145 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 141: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

146 • Hegemonia às avessas

manchada pelas limitações dos que se encontram fora do circuito asfixiante, mas muitas vezes profissionalizante, da cultura oficial. Pensei: “Vou ver amadores, com o coração no lugar certo, mas sem grande valor estético para falar como a minha corporação”. Ledo engano: os atores são compe-tentíssimos e lançam-se com gosto na aventura de encenar um texto que é criação coletiva, sem a segurança fácil e enganosa de apresentar nomes con-sagrados pelo mercado das artes.

O último espetáculo da companhia, Outro$ 500, que encerrou sua pri-meira temporada no bairro do Tatuapé no dia 28 de setembro de 2008, é um ponto de chegada importante do grupo. O projeto consumiu mais de dois anos de pesquisa e elaboração. A ideia é ambiciosa e coaduna-se com o espírito da hermenêutica da suspeita que marca a melhor tradição crítica: tentaram entender onde estamos a partir de um exame da história do Brasil desde o Descobrimento. Coerentes com a tradição, buscam, para falar co-mo Benjamim, escovar a história a contrapelo e, ao cortejo dos vencedores, opor o dos vencidos: a história é narrada do ponto de vista dos de baixo, dos que movem os grandes ciclos da produção brasileira como descritos por Caio Prado Júnior no clássico A formação do Brasil contemporâneo*. Vemos encenados os ciclos da cana, do ouro, do café e da industrialização, cada qual moendo os homens e as mulheres que os sustentaram de forma espe-cífica. Como sabem que a identificação com as personagens e a estrutura do drama são instrumentos poderosos para deter a reflexão, o grupo uti-liza várias das técnicas de estranhamento que marcam o teatro político: vários atores fazem o mesmo papel; não há linearidade de tempo; vemos primeiro o Rio de Janeiro da abolição e depois os ciclos da cana e do ouro; os gêneros teatrais se alternam: há momentos de drama, de narrativa épica, de metateatro, de reality show, de dança e de canto. O espectador nunca está seguro de que fio seguir. Trata-se de uma montagem de choques em que cena ilustra cena e muitas vezes uma cena só adquire sentido na se-guinte, por exemplo, quando um atônito Zé Fênix, nome da personagem representante da gente humilde do Brasil, que é feita a cada momento por um ator ou atriz diferente, e perpassa toda a peça, entra em um caminhão – desses que hoje levam trabalhadores rurais e que aprendemos chamar de “caminhão do gato” – que o transporta da abolição da escravatura ao ciclo da cana no Nordeste. O caminhão anacrônico só faz sentido em uma fala

* 23. ed., São Paulo, Brasiliense, 2006.

HEGEMONIA_miolo.indd 146HEGEMONIA_miolo.indd 146 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 142: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A cultura da servidão fi nanceira • 147

posterior do Zé: “Vim da frente, já estava atrás, quando eu pensei que eu ia, eu fui... mais para trás”. A desdiferenciação da exploração ao longo do tem-po torna-se clara então e configura um tema forte da peça, que não é trata-do nunca do ponto de vista moralizante: não se trata de gente má que ex-plora pobres bonzinhos, mas da lógica do sistema, que vige desde o Descobrimento, empreitada, como nos ensinam os historiadores, da expan-são necessária do capitalismo europeu.

O estágio presente do capitalismo é o que abre e fecha a peça. A primei-ra cena se dá antes mesmo de entrarmos no teatro: na fila, os atores apare-cem e vendem produtos e quinquilharias característicos das necessidades inventadas, mas nem por isso menos reveladoras, do capitalismo tardio: um oferece uma “superconsciência mega blaster”, que é totalmente blindada e permite vender a mãe, trair os amigos, tudo sem remorso. Ou então a “mar-melada high-tech”, que arranja até aposentadoria para criança. A animação das vendas é interrompida por sirenes e uma gravação: “A baderna está nas ruas. Entrem todos que a baderna voltou”. Os atores entram e induzem o público a entrar também. A entrada no teatro produz o primeiro choque: toda a plateia, inclusive a porta de entrada que é fechada quando nos aco-modamos, está cercada de grades. No centro, outra grande cela. No chão, ossadas e cabeças decepadas convivem com instrumentos de percussão. No meio dessa cela há um barco com a proa quebrada, encalhado em um mon-te de ossos. Ao lado, uma enorme Pietá sombreada por um esqueleto que traz um cifrão no peito. O mastro do barco é uma grande cruz. Aí serão contados, cantados e dançados os esplendores do Cruzeiro do Sul, inter-rompidos vez por outra pelos ruídos da baderna lá fora – cada tiro que se ouve nos assusta e nos prepara para sermos acalmados pelo mestre de ceri-mônias, que anuncia que ali estamos todos seguros, que a baderna não tem nada a ver com a gente e o show deve continuar. E trata-se mesmo de um show, em que os horrores contados contrastam com a beleza das músicas cantadas, com a pulsação da música africana batucada ao vivo e enfrentan-do, em uma cena memorável, a música sacra da Igreja Católica, com as danças, em especial a da linda atriz loira que no papel de escrava faz a dan-ça comemorativa da festa da botada. Outra beleza vai se impondo: vez por outra a luz se detém na cena e os figurinos e a encenação formam um qua-dro de beleza plástica notável, que complementa as fotos históricas e os quadros projetados no fundo da cena. No fim, quando os atores já estão de novo vendendo “marmelada high-tech”, vê-se um anúncio de televisão de

HEGEMONIA_miolo.indd 147HEGEMONIA_miolo.indd 147 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 143: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

148 • Hegemonia às avessas

que foi decretado um toque de recolher e vai começar uma higienização social. Os atores, como fizeram ao ouvir conosco os tiros, param para dis-cutir se continuam ou não. A posição conformista parece que vai vencer a discussão: afinal, a higienização, diz um deles, não tem nada a ver com gente e precisamos, lembra o outro, tomar conta da propriedade, o teatro do Demo, que faltou na encenação. As duas mulheres se revoltam e se diri-gem para a saída, ao encontro da baderna. Na tela ao fundo, uma foto re-produz os atores no palco, ilustrando a imobilização que marca nossa falta de opções. Mas elas saem e batem a porta.

É claro que essa saída mais levanta perguntas do que as responde. Sair para onde? Por que só as mulheres? Sair em nome de quê? Mas penso que essa saída pode ser lida como um gesto necessário de ruptura com o que é, e que foi preparado pela montagem da peça.

Em meu resumo sumaríssimo, procurei mostrar como vai se estabele-cendo o que podemos chamar, seguindo a linguagem da crítica cultural, de contradição entre forma e conteúdo, entre a beleza que se constrói na ence-nação e os horrores que são contados. Não se trata de estetizar a opressão estrutural, mas sim de fazer com que a demonstração dessa estrutura co-lida com uma outra linguagem, que insinua novas possibilidades. A peça não nega que esses horrores existam; ao contrário, mostra o custo humano absurdo que esse sistema demanda. Mas seu modo de contar essa história nega que esse seja o único sistema possível. A plasticidade das cenas fun-ciona como uma sombra, que emite a mensagem oposta à do conteúdo. Trata-se, nos termos de Williams, exatamente de uma perturbação, de um questionamento ainda não totalmente articulado de nosso sentimento de que não há saída. Penso que o teor mais propriamente político da peça está justamente aí, nesse conteúdo latente de beleza que nega o conteúdo manifesto da história e dá seu outro lado. É à procura desse outro lado, cuja existência a ideologia vigente das inevitabilidades e da falta de alternativas nega, que saem as mulheres da peça.

É claro que os mais afoitos entre nós podem dizer: “Ah, mais aí é pouco. Cadê o programa, as diretrizes, o comando?”. A isso, só posso responder: no momento como o nosso, em que a cultura do desmanche ao mesmo tempo replica, reforça e intensifica a lógica do sistema, essa ruptura é um primeiro passo para mudar nossa imaginação política. O que virá depois depende de articulação e de movimentos. Resta ter esperança de que para isso não tenhamos que esperar mais quinhentos anos.

HEGEMONIA_miolo.indd 148HEGEMONIA_miolo.indd 148 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 144: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

MOEDAS E MOEDEIROS(E UM PINTOR NA CONTRAMÃO)

Luiz Renato Martins

Vamos examinar aqui o modo como a obra artística de Antonio Dias (1944), em torno de 1980, reage e se dispõe ante a emergência do neoliberalismo e da financeirização. Na área das artes plásticas, sua res-posta é, a meu ver, uma das raras que despontou na época na contramão do coro que saudava o fim da luta de classes e o triunfo definitivo do ca-pitalismo liberal.

Convém recordar que Nota sobre a morte imprevista (1965), de Antonio Dias, surge na cena artística brasileira no ano seguinte ao golpe militar1. O trabalho do jovem paraibano, de 21 anos, sugeria, num lance antecipató-rio, um ato de sequestro irônico de elementos da linguagem da pop art norte-americana2; irrompia contra a perplexidade da cena cultural ante o golpe. O trabalho já desvelava o teor de violência contido no movimento militar3.

Essa obra, como reconheceria Hélio Oiticica (1937-1980) em balanço feito em 1967, no catálogo da mostra Nova objetividade brasileira*, provo-

1 Ver Antonio Dias, Nota sobre a morte imprevista, 1965, óleo acrílico, vinil, plexiglas sobre tecido e madeira, 195 x 176 x 63 cm, col. do artista, em Antonio Dias (ed.), Antonio Dias (text. Paulo Herkenhoff e Jorge Molder, Lisboa/ São Paulo, Fundação Calouste Gulbenkian/ Cosac & Naify, 1999), p. 26.

2 Ver, por exemplo, Antonio Dias, The American death, 1967, tinta acrílica sobre tela e duratex, 91,8 x 195,5 cm, col. particular, em Paulo Sérgio Duarte, Anos 60: trans-formações da arte no Brasil (Rio de Janeiro, Campos Gerais, 1998), p. 93.

3 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Vencedor?, 1964, cabide de pé com construção de madeira pintada, tecido acolchoado e capacete militar, 181 x 70 cm, Museu de Arte Contemporânea, Niterói, em Paulo Sérgio Duarte, Anos 60, cit., p. 89.

* Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, de 6 a 30 de abril de 1967.

HEGEMONIA_miolo.indd 149HEGEMONIA_miolo.indd 149 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 145: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

150 • Hegemonia às avessas

cou uma guinada decisiva na arte brasileira4. No mesmo ano, Mário Pedro-sa (1900-1981) observou sobre o aparecimento do “sertanejo Dias”: “Esse rapaz só conhece um purismo – o da nua violência”5.

Em 1968, Faça você mesmo: território liberdade/ Do it yourself: freedom territory (1968)6, estabeleceria com ainda mais profundidade e alcance os princípios do trabalho de Dias. Nessa obra, o solo da prática artística e da experiência do ver – ambas entremeadas conceitualmente, ou seja, sem dis-tinção entre produção e circulação/ recepção – aparece como o próprio tra-balho, na forma de uma porção de piso demarcada com fita adesiva e acom-panhada da palavra de ordem que serve também de título: Faça você mesmo: território liberdade. Incluídas no território da arte, indicado na legenda-tí-tulo como território livre, vinham algumas pedras, com a dimensão de ar-mas de mão. Traziam uma plaqueta de metal pendurada que lembrava as peças de identificação que os soldados trazem no pescoço7. Nas plaquetas vinha escrito o sinal de origem que aqui virou indicação de finalidade to the police. A inversão e a ironia – coisas arrebatadas aos outros – dispunham-se como armas do artista. O que ficava como máxima, para além dos materiais e das circunstâncias, que sempre variam, era que os pontos de vista da liber-dade e do combate, ao partilhar uma mesma situação, determinavam-se reciprocamente – tal como a disposição das pedras e a demarcação do chão, na obra, tornavam evidente.

Depois, Dias foi para o exílio europeu, como outros. Nesse período, en-tretanto, permaneceram vivas a ironia aguda e mordente e a consciência dos fetichismos autorais e do circuito de trocas da arte, seus sinais passaram a se dar por meio de novas estruturas poéticas, sequestradas da arte minimalista

4 Ver Hélio Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade”, em Nova objetividade Brasileira (pref. Mário Barata, Rio de Janeiro, A Cruz, 1967, catálogo de exposição), p. 4-18; Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/ Pro-jeto Hélio Oiticica, 1996, catálogo de exposição), p. 110-20.

5 Ver Mário Pedrosa, “Do pop americano ao sertanejo Dias”, em Aracy Amaral (org.), Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília (São Paulo, Perspectiva, 1981), p. 220; Otília Arantes (org.), Acadêmicos e modernos: textos escolhidos IV (São Paulo, Edusp, 2004), p. 370.

6 Ver Antonio Dias, Do it yourself: freedom territory, 1968, fita adesiva e tipografia sobre piso, 400 x 600 cm, col. particular, em Antonio Dias (ed.), Antonio Dias, cit., p. 25.

7 Ver Antonio Dias, To the police, 1968, bronze, 14 cm de diâmetro, col. particular, em Antonio Dias (ed.), Antonio Dias, cit., p. 23.

HEGEMONIA_miolo.indd 150HEGEMONIA_miolo.indd 150 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 146: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Moedas e moedeiros (e um pintor na contramão) • 151

e da arte conceitual – correntes de algum modo congêneres à filosofia ana-lítica da linguagem e que, então, preponderavam no mundo anglo-saxão8. Eram estruturas mais frias ou distanciadas, ou menos explicitamente senti-mentais, que pareceriam a alguns uma reviravolta ante a linguagem anterior de Dias, à primeira vista mais expressiva9.

Não era bem assim, porque as constantes que de fato preponderavam na linguagem de Dias mantiveram-se marcantes: a ironia, a apropriação da linguagem do outro10, o senso agudo das contradições centro-perife-ria e o senso do combate combinado contra as posições hegemônicas no circuito internacional da arte e contra as posições hegemônicas na ordem geopolítica11.

Não obstante – e aqui o problema que me proponho a enfrentar –, na hora da ascensão de Thatcher (1925) e de Reagan (1911-2004), um punha-do de signos expressivos e algo do repertório da linguagem pictórica expres-sionista voltaram a entrar em pauta na obra de Dias12. Que sentido terá no trabalho do artista a reapropriação do Expressionismo na era da chamada globalização13? É isso o que vamos discutir.

8 Ver, por exemplo, Antonio Dias, A ilustração da arte/ Um e três/ Chassis, 1971-74, madeira envernizada, 110 x 550 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, Arbeiten, works 1967-1994 (text. Paulo Sérgio Duarte e Klaus Wolbert, entrev. Nadja von Tilinsky, Darmstadt/ São Paulo/ Alemanha, Institut Mathildenhöhe/ Paço das Artes/ Cantz Verlag, 1994), p. 19.

9 Ver, por exemplo, Antonio Dias, The occupied country, 1970, acrílico sobre tela, 130 x 16 cm, col. particular. Disponível em: <http://www.antoniodias.com>. Aces-so em: 5 nov. 2008.

10 Ver, por exemplo, Antonio Dias, The day as a prisoner, 1971, acrílico sobre tela, 130 x 195 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 19.

11 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Empire, 1976, óxido de ferro e pigmentos metáli-cos sobre tela, 195 x 55 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: traba-lhos, cit., p 37. Ver também, do mesmo autor, The illustration of Art/ Dazibao/ The shape of power, 1972, serigrafia e acrílico sobre tela, 121 x 317 cm, col. particular, e O país inventado, 1976, cetim, bronze patinado, comprimento 500 cm, col. parti-cular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 77 e 21.

12 Ver Antonio Dias, Re-arranging, 1981, papel feito à mão com grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos, 145 x 122 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 89.

13 Ver Antonio Dias, Campo de luta, 1983, papel feito à mão com acrílico, grafite, óxi-do de ferro e pigmentos metálicos, 60 x 280 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 91.

HEGEMONIA_miolo.indd 151HEGEMONIA_miolo.indd 151 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 147: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

152 • Hegemonia às avessas

Que tipo de antítese se institui, nesta altura, entre os termos do capita-lismo tardio e a reutilização dos materiais expressionistas pelo artista já amadurecido, com uma década e meia de trabalhos realizados, boa parte deles no exílio?

Em tempos de Neoexpressionismo

Como em outras vezes, Dias partirá de uma apropriação crítica ou da negação do discurso hegemônico no mundo da arte. Dessa vez, o objeto a ser negado e capturado ou parodiado é o Neoexpressionismo14. Assim como ocorrera antes com a arte pop, a arte minimalista e a arte conceitual, os clichês característicos da pintura neoexpressionista sofrerão uma tor-ção, um processo de estranhamento ou distanciamento irônico que os esva-ziará de seu conteúdo originário ou corrente.

A intervenção de Dias reage criticamente a um complexo de fatores cor-relatos. Entre o circuito internacional da arte e o circuito financeiro inter-nacional existem não apenas paralelismos ou similitudes metafóricas – sem falar de afinidades intelectuais, como aquelas entre o formalismo nas artes e o monetarismo nas ciências econômicas –, mas muitos canais concretos em comum – que os fluxos recentes promovidos pela desregulamentação financeira neoliberal vieram a intensificar e alargar, acentuando parentes-cos, ligações e afinidades eletivas. No circuito internacional de artes – de-pois de anos de predomínio de uma arte ascética e despojada que ou pre-gava o culto da “boa forma” e da funcionalidade ou o contestava, mas com espírito militante – dá-se um revival da pintura e, em particular, do Neoex-pressionismo, regado a cotações de valor astronômicas15. Vale a pena insistir e detalhar: no mundo, maior é o tempo da ascensão do thatcherismo e do

14 Ver, por exemplo, Georg Baselitz, Frau Amstrand: Nacht in Tunesien (Woman on the beach: night in Tunisia), 1980, óleo e betume sobre tela, 250 x 200 cm, Stedelijk Museum, Amsterdã, em Georg Baselitz, Georg Baselitz (text. e curad. Diane Waldman, Germany, Cantz, 1995, catálogo de exposição), p. 121. Para um caso nacional, ilus-trativo da voga “neoexpressionista”, ver Iberê Camargo, Hora V, 1983, óleo sobre tela, 95,5 x 214 cm, col. particular, em Paulo Venâncio Filho, Iberê Camargo (Rio de Janeiro, Fundação Iberê Camargo, 2003, catálogo de exposição), p. 59.

15 Ver, por exemplo, Georg Baselitz, Tulips, 1981, óleo e têmpera sobre tela, 130 X 97 cm, col. particular, em Georg Baselitz, Georg Baselitz, cit., p. 129.

HEGEMONIA_miolo.indd 152HEGEMONIA_miolo.indd 152 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 148: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Moedas e moedeiros (e um pintor na contramão) • 153

reaganomics, do monetarismo extremado em dura ofensiva contra os movi-mentos sociais e as estruturas sindicais, bem como contra a instituição do Welfare State16 – instituição, até o momento precedente, considerada fun-cional econômica e politicamente para o capitalismo (em concorrência pla-netária com a panóplia burocrática de Moscou).

Paralelamente, nas esferas da vivência e da subjetividade do Ocidente anglo-americanizado, a financeirização toma conta de amplos extratos da sociabilidade e processa-se uma colonização do eu. É o tempo dos yuppies e dos programas que visam, primeiro na Inglaterra de Thatcher e depois em muitas partes do mundo, fazer do trabalhador um similar ou duplo do in-vestidor. Desligava-se aquele, o trabalhador, da Previdência, para fazê-lo acorrer na pele deste, o investidor, aos fundos de pensão17.

Em síntese, a situação põe lado a lado Neoexpressionismo e ascensão do capital fictício. O que um tem a ver com o outro? Fato é que em resposta a esse estado de coisas, Antonio Dias irá se apropriar de clichês do Neoexpres-sionismo e os combinará a alguns outros materiais: elementos da pintura bizantina, resíduos de matérias variadas, pigmentos industriais, solventes, óxidos e alguns signos emblemáticos, como: cifrões, ossos, ferramentas, ban-deiras, planta da galeria etc.18.

Como tudo isso se arranja e para quê? Passemos em revista procedi-mentos e elementos recorrentes e algumas características gerais das obras dos decênios de 1980 e 1990.

16 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Two factories-crossed arms, 1984, 162 x 240 cm, grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 97.

17 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Fábricas de destruição, 1986, 159 x 118 cm, papel feito à mão com grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 96. Ver também The electrician, 1986, 203 x 320 cm, grafite, madeira, borracha e fio de arame sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 99.

18 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Corpo & anima/ The edge of night, 1986, 200 x 300 cm, grafite e gesso acrílico sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, An-tonio Dias: trabalhos, cit., p. 102. Ver também Antonio Dias, Between the factory and the axe, 1987, 95 x 215 cm, acrílico, grafite, borracha e pratos de cobre sobre tela, col. particular; Antonio Dias, Pistol, 1986, 55 x 120 cm, grafite, borracha, arame e pigmentos metálicos sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Anto-nio Dias: trabalhos, cit., p. 104-5.

HEGEMONIA_miolo.indd 153HEGEMONIA_miolo.indd 153 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 149: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

154 • Hegemonia às avessas

Antonio Dias utiliza resíduos de matérias e não cores, de modo a realçar a opacidade dos suportes19. Assim, as superfícies das obras começam por sofrer a aplicação de soluções químicas, pigmentos e diversos resíduos. As telas são preparadas ainda mediante a lavagem de superfícies entintadas ou a subtração, por raspagem ou outro processo, de elementos antes adiciona-dos. Restam resíduos e impregnações20. Trata-se de um expressionismo de laboratório, de textura aparentemente orgânica, mas ordenado e meticuloso na produção de uma “pele” pictórica.

Grandes superfícies, nas quais os acidentes e as irregularidades de textura se configuram como partículas de um sistema, surgem frequentemente im-pregnadas do pó cinzento-prateado do grafite, uma das “cores” recorrentes nos trabalhos de Dias no período21. Tais partículas parecem evocar um proces-so de unificação da sensibilidade, em larga escala. Como essa é a cor geral das armas (punhais, fuzis, aviões) e também a dominante dos automóveis fabrica-dos na época, já se vê bem de onde vem e para onde vai essa reforma da sen-sibilidade. Pode-se com ela falar de “exércitos de consumidores” e de certa militarização do consumo, na medida em que o uso ostensivo de griffes e sím-bolos identificatórios de grupos se dissemina e cria novos uniformes22.

Assim, se na obra de Dias que respondia ao golpe militar de 64, com os trabalhos da Nova Figuração e da Nova Objetividade, os sinais e efígies de partes do corpo remetiam ao Expressionismo e à dor maior da hora, nas obras feitas na era da hegemonia artística neoexpressionista, são vultos de ferramentas, ossos e cifrões, enfim, símbolos descarnados do trabalho vi-vo e do trabalho morto, do valor e da morte, que nos recordam o que resta da vida. Desse modo, é delimitado um teatro de operações23.

19 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Ossuary, 1987, 130 x 272 cm, grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 107.

20 Ver, por exemplo, Antonio Dias, People’s wings, 1988, 120 x 240 cm, acrílico e gra-fite sobre tela, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 113.

21 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Evolution, 1988, 130 x 370 cm, acrílico e grafite sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 115.

22 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Economy, 1988, 190 x 270 cm, acrílico, grafite e ouro composto sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 116.

23 Ver, por exemplo, das obras antigas, Antonio Dias, Os restos do herói, 1966, acrílico, óleo e vinil sobre madeira e tecido estofado, 185 x 178 x 35 cm, col. particular. Dis-

R

HEGEMONIA_miolo.indd 154HEGEMONIA_miolo.indd 154 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 150: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Moedas e moedeiros (e um pintor na contramão) • 155

Além dos signos referidos e das grandes superfícies – cuja extensão su-gere ilimitação –, as pinturas trazem também outros elementos que funcio-nam como chamarizes24. São os constructos em ouro, cobre ou metais bri-lhantes, em formas ovais, circulares ou sugerindo circuitos dourados. São ícones – se os entendermos como circuitos do valor – cuja aplicação na su-perfície dos trabalhos evoca a arte bizantina25, conforme lembra Mário Pe-drosa a respeito da pintura de Dias no pós-6426. Além dessa família de íco-nes, constituída de duplos da auréola e da moeda, há outra: a dos frascos e recipientes de perfumes (que são referidos nos títulos das obras). Perfumes seduzem e despertam divagações. A referência a essências aromáticas, que em vista da famigerada planaridade ou bidimensionalidade da pintura é certamente irônica, não é supérflua nem destituída de estratégia27. Frascos de perfumes servem, aqui, de símbolos ou signos portantes do fetiche ou da aura da mercadoria. Alusões a recipientes de venenos e à morte completam tal panóplia de época.

Uns e outros, formas brilhantes e vultos de frascos, evocações da sedu-ção e da morte, todos, enfim, constituem tópos da mitologia própria ao des-fecho da Guerra Fria ou à afirmação da supremacia global das forças da

ponível em: <http://www.antoniodias.com>. Acesso em: 5 nov. 2008. Ver também América, o herói nu, 1966, tinta acrílica sobre madeira, tecido acolchoado e duratex, 83 x 61 x 10 cm, col. particular. Das obras mais recentes, ver Campo de luta, 1983, papel feito à mão com acrílico, grafite, óxido de ferro e pigmentos metálicos, 60 x 280 cm, col. particular, e Young Swiss artist, 1986, 130 x 195 cm, grafite, óxido de ferro, gesso acrílico, papel e encáustica sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 91 e 103.

24 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Generator, 1988, 195 x 130 cm, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 119.

25 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Diapason, 1988, 130 x 195 cm, grafite, ouro com-posto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 121. Ver também, de Antonio Dias, Sun photo as self-portrait, 1991, 200 x 200 cm, grafite e ouro composto sobre tela, col. particular, e Indepen-dent heart, 1989, 169 x 199 cm, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 123 e 131.

26 Ver Mário Pedrosa, “Do pop americano ao sertanejo Dias”, cit., p. 221; Otília Aran-tes (org.), Acadêmicos e modernos, cit., p. 371.

27 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Parfum & poison, 1989, 100 x 160 cm, grafite, ou-ro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 143.

HEGEMONIA_miolo.indd 155HEGEMONIA_miolo.indd 155 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 151: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

156 • Hegemonia às avessas

economia de mercado28. Com sua volta à pintura e mediante a reabilitação de procedimentos pictóricos que evocam a arte bizantina, Antonio Dias discorre sobre a nova religião universal, a dos valores voláteis, como o per-fume e os derivativos, que são perfumes de valores, sem esquecer do brilho dos cifrões29. Na nova Constantinopla imaginária, que o artista explora e perscruta com o raio X de suas telas, caiu um muro, ergueu-se outro: o de Wall Street30.

Nos campos ou nas áreas de cor, onde tais ícones e figuras de valor se instalam, eles reinam isolados como logotipos ou marcas comerciais. À sua volta, dissemina-se, em geral sobre um único substrato cromático, uma mi-ríade de microfenômenos: pontos diferenciados da textura (empastes, gra-nulados etc.), rastros de pinceladas, vestígios de vultos que lá estiveram e deixaram de estar, em suma, muitos sinais de ausências, posto que, é desne-cessário insistir, o tempo da acumulação concentrada e vertiginosa, o tempo da grana concentrada, é também o tempo da promoção e da invenção de carências, do dispêndio de luxo31.

Trata-se de uma economia pictórica orgânica e rica de singularidades, que por meio dessas diversas “moedas pictóricas” – pinceladas, empastes ou coisa símile – evoca o modo de ser das subjetividades32. Tudo isso se refere,

28 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Beaten Ausländer, 1993, 24 x 18 cm cada, acrílico, malaquita e óxido de ferro sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 136-7. Ver também Tijolinhos, 1990, 40 x 65 cm, acrílico, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 144.

29 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Bricks, 1991, 40 x 120 cm, acrílico, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 145.

30 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Marca, 1993, 90 x 140 cm, acrílico e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 151.

31 Ver, por exemplo, Antonio Dias, All the colors of man, 1993-94, 100 x 240 cm, acrí-lico, grafite, malaquita, óxido de ferro e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 117. Ver também Container for poi-son, 1993, 90 x 120 cm, malaquita, óxido de ferro e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 154.

32 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Duas coisas, unidas pelo olhar, 1993, 90 x 120 cm, malaquita, óxido de ferro e ouro composto sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 155.

HEGEMONIA_miolo.indd 156HEGEMONIA_miolo.indd 156 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 152: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Moedas e moedeiros (e um pintor na contramão) • 157

com ironia, ao Neoexpressionismo e à sua suposta matéria de eleição, a subjetividade contemporânea33.

Que subjetividade é essa? Um olhar atento às questões e à história acu-mulada da obra de Dias terá elementos eloquentes para concluir: o eu que se expressa, nessa pauta de símbolos dispostos pelo autor, é o eu que calcula 34. O que a estratégia pictórica de Antonio Dias nos diz é, em suma: o Neo-expressionismo é o Expressionismo do Investidor. Desse modo, e segundo a torção que Dias lhe aplica, o Neoexpressionismo fala de economia, inves-timentos e trocas simbólicas35. Seu discurso se assemelha aos dos novos ge-rentes, dos especialistas corporativos, dos jornalistas especializados em fi-nanças e investimentos36.

Na operação do pintor que simula e parodia o Neoexpressionismo – operação severa como um congelamento –, os elementos desse estilo per-dem, portanto, todo sentido subjetivo real, para aparecerem como mera fantasmagoria, imagens ilusórias de um regime de subjetividade perdido37. São sinais glaciais de subjetividades vazias, que só voltam a circular como trabalho morto e maquinal.

Figuram uma expressão da subjetividade automática do capital, referida exclusivamente a si; subjetividade narcísica que calcula os lances, simula ris-cos, contabiliza benefícios e custos, sem se projetar num todo maior38. Des-se modo, os elementos do Neoexpressionismo, relidos e reencenados pela

33 Ver, por exemplo, Georg Baselitz, Flaschentrinker: Bottle Drinker, 1981, óleo sobre tela, 162 x 130 cm, col. particular, em Georg Baselitz, Georg Baselitz, cit., p. 133.

34 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Two similar containers, 1989, 90 x 120 cm, mala-quita e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 155.

35 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Caramuru, 1992, 195 x 325 cm, acrílico, grafite, malaquita e ouro composto sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 156.

36 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Man flying, 1991, acrílico, grafite, óxido de ferro, ouro composto e folha de cobre sobre tela, 95 x 340 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 142.

37 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Ich, 1989, grafite e folha de cobre sobre tela, 300 x 200 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 140.

38 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Room for sorrow, 1989, 160 x 130 cm, acrílico, grafite, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 141.

HEGEMONIA_miolo.indd 157HEGEMONIA_miolo.indd 157 9/8/10 4:27:37 PM9/8/10 4:27:37 PM

Page 153: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

158 • Hegemonia às avessas

ironia de Dias, não vão além de si e, reflexos da irreflexão, admitem provar de seu próprio vazio39. Se é fato que no Neoexpressionismo, conforme su-gerem as montagens de Dias, o sofrimento real, o pathos do sujeito histórico do Expressionismo, deu lugar ao prisma narcísico do eu do investidor, o estilo em questão terá algo da histeria40. Será tal um gozo deslocado, e re-presentado, a reencenação de uma manifestação da subjetividade que não se deu porque em seu lugar a substância era a do capital41.

Para bem apreciarmos a medida e o alcance, a ciência da mira de Dias, é preciso ter presente que a criação de tais “cenários”, ou contextos de sig-nificação, não supõe uma teologia do signo, um ato semântico piedoso e acrítico. A consciência do terreno em que se trava o combate, aquele do ter-ritório da arte, e a economia própria da arte constituem sempre o objeto primeiro e prioritário das ações de Dias. Os conflitos endógenos da prática da arte precedem todos nessa obra e funcionam como caminho incontorná-vel até os demais conflitos que ela evoca. Consoante a isso, não há peça da obra que apresente superfície ou técnica homogênea. Em consequência, a recepção é instada a se dar aos saltos, a conquistar dialeticamente pontos de vista diferentes ou distintos graus de reflexão42.

Radicados na dimensão histórica – entendida ora como história geral, ora como história da arte –, os trabalhos de Antonio Dias inter-relacionam,

39 Para o contraste entre a pintura de Dias da década de 1990 e a “pintura contempo-rânea” (leia-se neoexpressionista), que “funde a imagem num simulacro de cena” do ato pictórico, ver texto de Paulo Sérgio Duarte em Antonio Dias, Antonio Dias: tra-balhos, cit., p. 28.

40 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Corpo, 1990, grafite e ouro composto sobre tela, 195 x 130 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 134.

41 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Dots/ Skin, 1994, 80 x 150 cm, acrílico, grafite, óxido de ferro, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Anto-nio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 158.

42 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Brazilian painting/ Bosnia’s jungle, 1994, 60 x 160 cm, acrílico, malaquita, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 159a. Ver também Brazilian pain-ting/ Bosnia’s jungle, 1994, 80 x 120 cm, acrílico, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 159b, e Brazilian painting/ Bosnia’s jungle, 1994, 90 x 150 cm, acrílico, malaquita e óxi-do de ferro sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 160.

HEGEMONIA_miolo.indd 158HEGEMONIA_miolo.indd 158 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 154: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Moedas e moedeiros (e um pintor na contramão) • 159

desse modo, domínios que a divisão social do trabalho e a reificação geral dos processos cognitivos levou a serem considerados estranhos e apartados entre si43.

Na combinação da experiência imanente do olhar com a da reflexão, o observador é levado a reconstruir as partes de um processo histórico maior, muito mais amplo que os trabalhos de arte com que depara44. Tais traba-lhos levam o observador a refletir sobre “uma totalidade”, para usar pala-vras de Dias, “que existe fora do quadro, e que de lá o invade”45. Na ação crítica do artista em questão, é esse todo que se exprime de modo estrutu-ral e rítmico46.

43 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Brazilian painting/ Bosnia’s jungle, 1994, 80 x 140 cm, acrílico, malaquita, óxido de ferro e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 161.

44 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Brazilian painting/ Coluna vertebral, 1994, 180 x 240 cm, acrílico, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 163.

45 Ver Antonio Dias, “Em conversação”, entrevista com Nadja von Tilinsky, em Anto-nio Dias: trabalhos, cit., p. 54.

46 Ver, por exemplo, Antonio Dias, Corpo, 1990, 195 x 130 cm, grafite, óxido de ferro, ouro composto e folha de cobre sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 133. Ver também Invader, 1992, 179 x 249 cm, acrílico, gra-fite, malaquita sobre tela, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: traba-lhos, cit., p. 146; Antonio Dias, Raiva organizada, 1993, acrílico, grafite sobre tela, 200 x 260 cm, col. particular, em Antonio Dias, Antonio Dias: trabalhos, cit., p. 147; Antonio Dias, Autonomia/ Pessoa nefasta, 2000, acrílico, folha de ouro e co-bre sobre tela, 150 x 150 cm, col. particular.

HEGEMONIA_miolo.indd 159HEGEMONIA_miolo.indd 159 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 155: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A RENDA DA FORMA NA ARQUITETURADA ERA FINANCEIRA

Pedro Fiori Arantes

Já faz algum tempo que a arquitetura embarcou no universo midiático das marcas, a ponto de as obras serem concebidas para gerar renda de um novo tipo, que não apenas a velha renda fundiária. Os novos edifícios são desenhados para circular como se fossem “logotectures” – na expressão de Frank Gehry1, uma das estrelas de maior brilho do atual establishment da ar-quitetura, autor do celebrado Guggenheim de Bilbao. É o que reconhece também, sem meias palavras, outro arquiteto de grife, Jacques Herzog, um dos responsáveis pelo projeto da New Tate: “Se a arte e a arquitetura são agora mais do que nunca instrumentos políticos, é porque estão cada vez mais próximas do universo das marcas”2. A sofisticação técnica ostensiva, a diferenciação das superfícies e a exuberância formal passaram a ser requisi-tos para constituir imagens arquitetônicas exclusivas, capazes de valorizar os investimentos e, consequentemente, as cidades que os disputam.

Com a passagem da hegemonia do capital industrial para a das finanças globalizadas – o reino do capital fictício, segundo Marx –, surgem, nas no-vas paisagens urbanas, figurações surpreendentes produzidas por uma arqui-tetura de ponta – aquela que explora os limites da técnica e dos materiais, quase sem restrições, inclusive orçamentárias. O que se vê por toda parte são formas que aparecem como o exato contrário da sobriedade tectônica e espacial, que via de regra se submetia ao rigor da geometria euclidiana e dominava a arquitetura moderna. Em sua “liberdade” inventiva, alimen-

1 O termo é empregado no documentário de Sydney Pollack, Esboços de Frank Gehry (2005, 84 min.)

2 Jacques Herzog, citado por Luis Fernández Galiano, “Diálogo y logo: Jacques Her-zog piensa en voz alta”, Arquitectura Viva, n. 91, ago. 2003, p. 26.

HEGEMONIA_miolo.indd 161HEGEMONIA_miolo.indd 161 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 156: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

162 • Hegemonia às avessas

tam-se, nessa nova fase do capitalismo, de um paradoxo técnico-formal: quanto mais informe, retorcido, “desconstruído” ou “liquefeito” o objeto arquitetônico, maior seu sucesso de público e, portanto, seu valor como imagem publicitária. Este é o grau zero da arquitetura, agora reduzida a um jogo de formas aparentemente sem regras e limitações de qualquer es-pécie, em busca do grau máximo da renda – fenômeno de que nos ocupa-remos aqui.

Do ponto de vista da acumulação capitalista, essas obras são exceções e não a regra na produção social do espaço. Exceções em diversos sentidos. Embora respondam por menos de 0,1% da produção arquitetônica mun-dial, ocupam a quase totalidade das revistas especializadas, das exposições e prêmios, além de se tornarem parâmetros para o sucesso profissional. O tipo de valorização que promovem é de outra natureza que a do mercado imobiliário stricto sensu. Essas obras, em geral, não estão diretamente à ven-da, apesar de muitas vezes fazerem parte de estratégias de “cidades à venda” ou de valorização das marcas. Seu valor de uso é o de representação e distin-ção. Elas não compõem o tecido urbano corriqueiro e, em geral, não pre-cisam obedecer às legislações de uso do solo. São exceções que pretendem constituir-se em “fatos primários” da cidade, reconhecidos como monu-mentos, mesmo quando a encomenda é privada. A renda que geram é simi-lar à renda fundiária, porém diferente: é uma renda monopolística in-trínseca à sua forma arquitetônica única e espetacular.

Por isso, essa arquitetura obtém mais dividendos na circulação do que com sua produção, ou melhor, sua produção é comandada pelos ganhos advindos da sua divulgação midiática e da capacidade de atrair riquezas (por meio de investidores, turistas, captação de fundos públicos etc). Tra-ta-se de uma arquitetura que circula como imagem e, por isso, já nasce co-mo figuração de si mesma, num círculo tautológico de redução da expe-riên cia arquitetônica à pura visualidade, resultado da busca incessante pelo ineditismo e pelo que denominamos renda da forma.

Nesses projetos, os softwares mais avançados podem ser empregados, além de máquinas programáveis e até robôs, mas o velho artesão e a ex-ploração sem peias do trabalho precarizado e migrante continuam na base. Essas obras mobilizam forças produtivas, também nesse sentido alternando recorrências e excepcionalidades, como a aplicação pioneira de novos mate-riais e técnicas (ou a retomada de habilidades artesanais e de outros campos produtivos) que não estão à disposição da produção imobiliária corriqueira.

HEGEMONIA_miolo.indd 162HEGEMONIA_miolo.indd 162 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 157: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 163

São, desse modo, agentes de uma inovação restrita, que não quer se demo-cratizar, pois o segredo de sua rentabilidade é a manutenção do monopólio, isto é, da exceção.

As mudanças que analisaremos nas técnicas de representação e de pro-dução, e no padrão das formas arquitetônicas indicam uma ruptura maior do que a crítica ao pós-modernismo deu comumente a entender. Podemos estar entrando numa nova fase de percepção, produção e consumo do fato arquitetônico que parece modificar alguns dos principais fundamentos das fases anteriores.

Afinidades eletivas

Não será demais lembrar que o Movimento Moderno na arquitetura, des de seus primeiros manifestos na década de 1920, definiu um programa que elegia como principal aliado e exemplo a ser seguido o capital indus-trial – mais adiante, o próprio Estado e, na periferia, as “burguesias nacio-nais” e seus governos desenvolvimentistas. Da engenharia à estética industrial, a inspiração maquinista e racionalista norteou experiências construtivas e urbanísticas. Mesmo em caráter experimental, eram quase sempre proje-tos para serem multiplicados em escala de massa. Daí a afinidade com a seriação industrial, mesmo que pouco realizada na prática. Concreto, aço e vidro eram os novos materiais empregados nas formas prismáticas, em geral ortogonais e abstratas, despidas de ornamentos. Tornaram-se objeto de pesquisa e projeto os edifícios industriais, de escritórios, grandes infra-estruturas e casas operárias (“máquinas de habitar”) – componentes do capital fixo e do fundo de reprodução da força de trabalho que integram o processo produtivo inerente à acumulação capitalista. A cidade, de seu la-do, era pensada como um tecido urbano relativamente uniforme, separado apenas por suas funções, um modelo no qual a renda diferencial intraur-bana tenderia a zero.

O capital industrial e o trabalho assalariado representavam o polo mo-derno, enquanto o proprietário fundiário e sua renda da terra (heranças do Antigo Regime e promotores da irracionalidade urbana), o arcaico. Na dis-puta pela partição da mais-valia, a arquitetura moderna fez aliança com os setores produtivos, com o capital enquanto função, mais do que como pro-priedade. Tal simbiose, contudo, foi a rigor mais estilizada do que efetiva com os ramos industriais mais avançados, sobretudo o setor automobilísti-

HEGEMONIA_miolo.indd 163HEGEMONIA_miolo.indd 163 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 158: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

164 • Hegemonia às avessas

co, porém ocorreu de fato com as grandes construtoras e governos moder-nizadores, em cujos canteiros de obra o que vigorava era mesmo a mais re-trógrada exploração.

Na arquitetura contemporânea, se a aliança é mais uma vez com os se-tores dominantes, ou seja, com o polo mais dinâmico e próspero da econo-mia, ela se verifica com o próprio capital em sua forma financeira, e em particular com a indústria do entretenimento e a nova “economia do aces-so”, baseada na renda. Na verdade, a associação histórica da arquitetura sempre foi com os donos do poder e do dinheiro, sobretudo com a proprie-dade privada, da terra e do capital. Existe uma tendência da arquitetura em se apegar às rendas e não aos lucros, dada sua fixidez e seu custo elevado3. É quase uma “fatalidade” de sua natureza: ela reitera o fundiário e o finan-ceiro, mesmo que não o faça de modo voluntário. Por ser um bem único, sempre detém alguma renda de monopólio. Na arquitetura moderna, havia uma contratendência que procurava minimizar o poder da renda e das fi-nanças, associando-se aos setores produtivos e governos nacionais moder-nizadores, mas na era da mundialização financeira não há mais nenhuma força que contrarie esse poder. Como veremos, as implicações no plano das dimensões construtivas e sociais da arquitetura serão profundas: a arquite-tura rentista abdica de certos conteúdos em benefício de usos “improdutivos”4, próprios à esfera da circulação e do consumo (terminais de transporte, shop-ping centers, hotéis, estádios, museus, salas de concerto, parques temáticos etc.). Seu desejo não é mais de seriação e massificação, mas de diferenciação e exclusividade. Produz objetos únicos e marcantes que “pousam” nas cida-des, potencializando a renda diferencial e o capital simbólico, o que esta-mos denominando de renda da forma.

3 Segundo David Harvey, não apenas a arquitetura, mas todo o campo cultural privi-legia as rendas monopolistas. As mercadorias culturais possuiriam uma dinâmica diferenciada em relação às convencionais, pois sua linguagem de excepcionalidade, originalidade e autenticidade é decisiva para o estabelecimento das rendas (Ver “El arte de la renta: la globalización y la mercantilización de la cultura”, em Capital fi-nanciero, propriedad inmobiliaria y cultura, Barcelona, Universidad Autónoma de Barcelona, 2005).

4 Adoto o termo em referência à noção de “trabalho improdutivo” para Marx, isto é, aquele que não gera diretamente mais-valia e que se apoia justamente em sua distri-buição e partição.

HEGEMONIA_miolo.indd 164HEGEMONIA_miolo.indd 164 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 159: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 165

Arquitetura de marca

Na virada do século XXI, os arquitetos do star system passaram a desen-volver imagens cada vez mais elaboradas do poder e do dinheiro. Com a palavra novamente Herzog: “[...] trabalhamos com a materialidade física da arquitetura porque só assim podemos transcendê-la, ir mais longe e chegar inclusive ao imaterial”5.

Alcançar o “imaterial” por meio da mais tectônica das artes, a arquitetu-ra, num aparente contrassenso, é produzir um valor intangível socialmente mensurável, como o valor de representação de um poder corporativo (de um governo, de uma empresa, de uma Igreja ou de um país). A diferença é que, agora, essa força espetacular da arquitetura não é mais requisito único de regimes absolutistas, autocráticos ou fascistas, mas de grandes estraté-gias de negócio associadas ao turismo, a eventos culturais e esportivos, ao marketing urbano e à promoção de identidades empresariais. O fato é que nenhum arquiteto moderno, diante de suas (agora) prosaicas caixas de vi-dro, aço e concreto, poderia ter antecipado o grau de sofisticação técnica e exuberância formal que a “arquitetura de marca” está alcançando.

A ascensão das marcas, mesmo as de empresas produtoras de mercado-rias tangíveis, está sobretudo associada à nova hegemonia financeira, segun-do a qual a imagem e o nome da marca se sobrepõem ao valor-trabalho das mercadorias que a empresa produz (ou terceiriza), acrescentando-lhes um valor de novo tipo: uma espécie de renda de representação das próprias mercadorias. Cumprem, como imagem que se destaca do corpo prosaico do objeto, um papel similar ao da abstração do dinheiro. O diferencial de ex-clusividade da marca é justamente ser uma forma de propriedade que não pode ser generalizada. O monopólio sobre seu uso é uma forma de renda, por isso é patenteada e, de forma correlata à terra, protegida por cercas jurídicas (e por vezes reais) para controle do acesso. Essa autonomização das formas de propriedade produz, ao mesmo tempo, uma autonomização da forma como pura propriedade. A forma torna-se capital por meio de um fenômeno imagético, no qual é remunerada como capital simbólico, pela renda da forma.

Essa relação entre o objeto físico e os valores imateriais não ocorre ape-nas no plano da ideologia, evidentemente. Ela tem fundamentos produti-

5 Jacques Herzog, citado por Luis Fernández Galiano, “Diálogo y logo”, cit., p. 29.

HEGEMONIA_miolo.indd 165HEGEMONIA_miolo.indd 165 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 160: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

166 • Hegemonia às avessas

vos e faz parte de um processo de valorização do capital de novo tipo. Atual-mente, todas as grandes empresas sabem fazer produtos similares com a mesma competência técnica, a diferença está nos valores imateriais que ca-da produto é capaz de incorporar por meio de estratégias de marketing, branding e design. Segundo Naomi Klein, as grandes corporações percebe-ram rapidamente que:

todo mundo pode fabricar produtos [...] essa tarefa ignóbil pode ser delega-da a terceiros [...] enquanto as matrizes estão livres para se concentrar em seu verdadeiro negócio – criar uma mitologia corporativa poderosa o bastante para infundir significado a esses toscos objetos, apenas assinalando-os com seu nome.6

Essa busca pela “transcendência corporativa” é um fenômeno relativa-mente recente, quando um grupo seleto de empresas percebeu que cons-truir e fortalecer suas imagens de marca, em uma corrida pela ausência de peso, era a estratégia para alcançar um novo tipo de lucratividade7. “Esses pioneiros declaram audaciosamente que produzir bens era apenas um as-pecto incidental de suas operações”, afirma Naomi Klein, “pois sua verda-deira meta era livrar-se do mundo das coisas”. Ou procurar “fazer crer que cada produto adquiria um estatuto superior ao de coisa”, como se tivesse uma “alma”, um “núcleo espiritual”8.

A estratégia estava dando certo, pois as empresas que investiam na capi-talização de suas marcas passaram a inflar como balões e a valer no mercado várias vezes mais do que no papel – numa impressionante capitalização fictícia. Mesmo que seguissem produzindo mercadorias palpáveis (cada vez menos diretamente), seus lucros se elevavam muito acima da média porque haviam se tornado verdadeiros “agentes produtores de significados”, como se fizessem parte da indústria cultural.

6 Naomi Klein, Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido (Rio de Janeiro, Record, 2004), p. 46.

7 É bom lembrar, no entanto, que essa estratégia não decorre exclusivamente da atual dominância financeira no regime de acumulação. A possibilidade de desviar lucros diferenciais da taxa média remonta, no fundo, à própria órbita produtiva: as formas rentistas de hoje estão, na verdade, exponenciando mecanismos de concorrência en-tre capitais, sobretudo quando fabricam diferenças imaginárias para abocanhar uma porção maior do lucro total.

8 Ver Naomi Klein, Sem logo, cit., cap. 1; Isleide Fontenelle, O nome da marca (São Paulo, Boitempo, 2004), p. 177 e 180.

HEGEMONIA_miolo.indd 166HEGEMONIA_miolo.indd 166 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 161: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 167

Parece que estamos presenciando uma espécie de “deslocamento” ou “mudança de estatuto” da forma mercadoria9. Além de gerar mais-valia por meio do trabalho, ela aufere rendas de modo crescente, assumindo a condição de mercadoria cultural – por natureza, distinta da mercadoria prosaica e, por isso, portadora de uma renda adicional, de tipo monopo-lista10. Mais que isso, o fato de cada empresa produzir mercadorias supos-tamente exclusivas limita as possibilidades de comparação entre produtos e trabalhos equivalentes. A própria medida de trabalho socialmente ne-cessário estaria assim deixando de expressar o valor, que passaria a sofrer uma “desmedida”11.

A articulação entre renda e lucro no interior das mercadorias introduz na lógica produtiva uma dinâmica nova, um “traço rentista” que não deve ser subestimado. Segundo François Chesnais, na contabilidade das “empre-sas-rede” passou a ocorrer uma “‘confusão das fronteiras entre o ‘lucro’ e a ‘renda’”12. Não por acaso, a “gestão de marcas” tornou-se a especialidade preocupada justamente em definir o ponto ótimo de tal combinação.

Na arquitetura não é diferente. Os arquitetos da era financeira, ao con-trário dos modernos, não procuram soluções universalistas para serem re-produzidas em grande escala – o que anularia o potencial de renda mono-polista da mercadoria. O objetivo é a produção da exclusividade, da obra única, associada às grifes dos projetistas e de seus patronos. O sucesso es-trondoso de algumas obras e seus arquitetos, contudo, acaba estimulando a repetição das mesmas fórmulas projetuais, reduzindo a cada duplicação de volumetrias similares sua competência para gerar rendas de exclusividade. A arquitetura de marca tem assim um limite comercial que a obriga a ado-tar soluções inusitadas e sempre mais chamativas: se diversas cidades alme-jarem uma obra de Frank Gehry, por exemplo, perderão progressivamente a capacidade de capturar riquezas por meio de projetos desse tipo.

9 Ambos são termos utilizados por Isleide Fontenelle.10 David Harvey, “El arte de la renta”, cit.11 Eleutério da Silva Prado, Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria (São

Paulo, Xamã, 2005); Jorge Grespan, O negativo do capital (São Paulo, Hucitec, 1998).

12 François Chesnais, “A emergência de um regime de acumulação financeira”, Praga, São Paulo, n. 3, 1997, p. 37.

HEGEMONIA_miolo.indd 167HEGEMONIA_miolo.indd 167 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 162: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

168 • Hegemonia às avessas

Duplo fetichismo

Ao caracterizar a sociedade do espetáculo como o estágio avançado do capitalismo no qual tudo virou representação, Guy Debord estava justa-mente apontando para o fato de que a práxis social teria definitivamente se cindido entre realidade e imagem. O espetáculo é, pois, a anti-história, o antitrabalho e a antipolítica. Trata-se de um mundo tautológico em que os meios se confundem com os fins, uma gestão de abrangência máxima das condições da existência por uma segunda realidade imaterial, separada, mas integrada. O termo “espetáculo” já havia sido adotado por Benjamin para definir a estetização da política como prática central do fascismo. Debord, entretanto, completa o argumento definindo o espetáculo não apenas como manifestação de regimes totalitários, mas do próprio capital. Em sua defi-nição mais conhecida, “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”13.

A descrição que passou a se generalizar a partir da década de 1970 é a de que viveríamos uma transição da modernidade para a chamada pós-moder-nidade – com uma correspondente transição da centralidade da lógica eco-nômica da produção para a circulação e o consumo. A capacidade de con-trole acurado sobre a forma e sobre a imagem passa, em consequência, a ser um elemento decisivo. Presenciamos, por isso, a inflação vertiginosa do design. “O sistema de valor de troca estendeu-se a todo o domínio dos sig-nos, formas e objetos [...] em nome do design”, afirma Baudrillard. Imagem e produto podem circular como uma coisa só, como produtos-imagem com “signos valores de troca”14. Segundo Hal Foster, nessas condições, o produ-to não é mais um objeto, mas um dado a ser manipulado15.

Essa transformação é contemporânea da expansão da financeirização co- mo fenômeno hegemônico global. É o momento em que a lógica do capital fictício passa a comandar a das forças produtivas reais, como previra Marx, em O capital. O tempo e a forma do capital portador de juros passam a se impor sobre os demais e servem como nova medida. De um lado, o tempo

13 Guy Debord, A sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro, Contraponto, 1997), p. 25.14 J. Baudrillard, citado por Hal Foster, Design and crime (and other diatribes) (Lon-

dres, Verso, 2002), p. 18; tradução livre.15 Ibidem, p. 21; tradução livre.

HEGEMONIA_miolo.indd 168HEGEMONIA_miolo.indd 168 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 163: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 169

se projeta para a frente, com os juros comandando – de forma ditatorial – a expectativa de lucros futuros e as decisões do presente. De outro, a for-ma-dinheiro deixa de estar articulada com seu conteúdo, descolando-se de seu fundamento. O capital pretende desgarrar-se do trabalho e instituir uma dominação sem sujeitos.

No campo da produção das mercadorias, pois é ainda disso que estamos tratando, a expansão da lógica do capital portador de juros sobre todas as outras esferas da economia e da cultura se exprime por meio de uma auto-nomização do significado em relação à materialidade dura dos produtos. Na produção de mercadorias, a racionalidade do capital fictício se expres-sa com a troca de um produto imaginário (como o “nome da marca” ou a “experiência”) por dinheiro – isto é, a transformação em capital daquilo que originalmente não é. Como na sua forma financeira, essa é a possibilida-de que o capital procura para valorizar-se, desprendendo-se da materiali-dade dura dos produtos.

O que estamos presenciando é uma manifestação mais avançada do fetichismo da mercadoria, pois não se trata apenas da separação entre produto e produtor, mas entre o produto real e sua imagem como produ-to imaginário – que passa a circular e a valorizar-se com certa autonomia. O fetiche em sua primeira manifestação, como fetichismo da mercadoria, é a separação entre o fazer e o feito, a autonomização do produto em relação ao produtor. O encantamento da mercadoria, que parece nascida por iniciativa própria, negando sua origem, é uma abstração primeira. O exem-plo dado por Marx é o da mesa que passa a dançar, como numa sessão espí-rita. Esse fetiche de primeiro grau está associado à formação de valor na produção de mercadorias, bens tangíveis que cristalizam a energia do traba-lho fisicamente aplicado.

Já o fetichismo na fase atual do capitalismo vai além dessa alienação inicial. Ele poderia ser comparado com o que Marx denominou no livro III de fetichismo do capital financeiro, como forma de autonomização da pro-priedade e de sua representação. Essa segunda abstração não é mais interna à mercadoria, como no primeiro caso, mas aparece como uma força exter-na. No fetichismo do capital, o dinheiro parece gerar mais dinheiro a des-peito da produção e do trabalho, como se o valor nascesse da própria cir-culação. Essa segunda abstração passa a sobredeterminar a primeira, como forma mais acabada de exposição. Segundo Marx, nesse momento o fetiche

HEGEMONIA_miolo.indd 169HEGEMONIA_miolo.indd 169 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 164: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

170 • Hegemonia às avessas

encontra sua “forma pura” e “não traz nenhuma cicatriz, nenhuma marca de seu nascimento”16.

Pode-se afirmar que, de forma similar à autonomização do dinheiro em relação à mercadoria, ocorre a da imagem em relação ao objeto – ambas são manifestações do fetiche em sua forma potencializada. A imagem também se torna um ativo financeiro, como uma renda que adquire uma figuração. Como afirma Debord, “o espetáculo é a outra face do dinheiro: o equiva-lente geral abstrato de todas as mercadorias [...] o espetáculo é o dinheiro que apenas se olha, porque nele a totalidade do uso se troca contra a totali-dade da representação abstrata”17.

Se o primeiro fetiche ainda estava preso à produção do valor e ao mun-do de Prometeu, ou seja, à liberação de forças produtivas, ao “fogo do tra-balho” que lambe as matérias inanimadas, despertando-as18, no fetiche de segundo grau prevalece o reino de Midas, em que tudo que o dinheiro toca passa a reluzir, tal qual sua imagem, ao mesmo tempo que se desumaniza – o processo de acumulação desprende-se de seus fundamentos.

Na produção da cultura e, no caso da arquitetura, a passagem de um ao outro tipo de fetichismo tem consequências importantes. Como afirma Fredric Jameson, “há uma diferença radical no papel da abstração no mo-dernismo e no pós-modernismo”19. A abstração pós-moderna está associada à financeirização, que, no âmbito da produção do espaço, encontra como equivalente ao capital portador de juros, e intimamente ligado a ele, a espe-culação imobiliária e suas rendas. O problema colocado por Jameson é o de definir as novas mediações entre economia financeira/ rentista e inflação cultural, levando-se em conta a especificidade da arquitetura.

O fetichismo da mercadoria, na crítica de arquitetura, é um verdadeiro tabu, enfrentado por poucos. Creio que devemos ao arquiteto Sérgio Ferro a interpretação mais contundente dessa verdadeira interdição, em seu en-

16 Karl Marx, O capital (São Paulo, Nova Cultural, 1988), t.1, liv. III, cap. XXIV, p. 279.

17 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 34.18 Karl Marx, O capital, cit., t.1, liv. I, p. 146.19 Fredric Jameson, “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliá-

ria”, em A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização (Petrópolis, Vozes, 2001), p. 173.

HEGEMONIA_miolo.indd 170HEGEMONIA_miolo.indd 170 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 165: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 171

saio sobre “O canteiro e o desenho”20. A dificuldade passava por definir a arquitetura como uma fusão entre arte e mercadoria, como protagonista na produção do valor, o que lhe permitia ser decifrada segundo a interpretação de Marx. A crítica ao fetiche da mercadoria na produção da arquitetura permitiu vislumbrar um espaço até então oculto: o canteiro de obras. A contradição entre desenho e canteiro, que está na base da separação entre os produtores e seu produto, é o mote da crítica de Sérgio Ferro.

Em seus textos mais recentes, Sérgio Ferro também nota que a mudança na natureza do fetiche torna insuficiente a crítica à alienação do produtor para explicar a produção contemporânea. As utopias modernas, segun-do ele, mal ou bem sempre foram “construtivas”, em consonância com os avanços da indústria e da engenharia. Nos projetos arquitetônicos de hoje, os preceitos construtivos convencionais são ironizados por aberrações ele-mentares, tramas embaralhadas, geometrias não euclidianas, pilares inclina-dos, curvas oblíquas, volumes irregulares, cascatas de formas aleatórias. Um poço sem fundo da autonomia formal que encontra nas novas ferramentas tecnológicas de projeto a possibilidade de transladar o gesto artístico em processo produtivo factível no canteiro de obras. O desenho no computa-dor aumenta sua força e permite figuras que antes seriam irrealizáveis com régua e compasso. A arquitetura pende para o escultórico e a imagem da obra acabada torna-se um evento midiático.

A arquitetura pós-moderna, ou “simulada”21, ao incorporar recursos e expedientes da mídia, principia, decididamente e quase ao pé da letra, a desmaterializar-se. Nesse contexto, ocorre uma exacerbação do formalismo, uma reabilitação do frívolo, um predomínio do significante sobre o signi-ficado, enfim, estamos diante de uma arquitetura em que o “fútil assume proporções metafísicas”22. Malabarismos formais convertidos em apoteose publicitária dão origem a uma tectônica que não guarda mais relação com a escala humana e com a estática dos objetos. Segundo Peter Fuller, trata-se de “um fluxo de imagens que parecem mais reais do que a própria reali-dade”, o que dá “a impressão de um mundo físico em que as coisas foram

20 O ensaio, de 1976, foi revisado e republicado em Arquitetura e trabalho livre (São Paulo, Cosac & Naify, 2006).

21 A expressão “arquitetura simulada” é adotada por Otília Arantes, em O lugar da ar-quitetura depois dos modernos (São Paulo, Edusp, 1994).

22 Ibidem, p. 65.

HEGEMONIA_miolo.indd 171HEGEMONIA_miolo.indd 171 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 166: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

172 • Hegemonia às avessas

desmaterializadas ou reduzidas a superfícies”23. O design das mercadorias, dos objetos mais simples aos edifícios mais complexos, passa por uma ex-pansão da estética das aparências, das embalagens e das “peles”, cada vez mais sofisticadas e chamativas, num “obsceno reino chapado das superfí-cies”, na expressão de Otília Arantes, em que a mera provocação da imagem desmancha qualquer propósito construtivo.

Sai de cena Le Corbusier, com seu “modulor” e suas “máquinas de mo-rar”, e entra Frank Gehry, o arquiteto-ícone da pós-modernidade financei-ra. Como Midas, ele tem a capacidade de transformar seus prédios, amon-toados irregulares de aço, titânio e vidro, em verdadeiras minas de ouro. Sua clientela, como se verá nas análises a seguir, já não são mais os Citroën e Vargas de Le Corbusier.

Um mestre da instabilidade

A primeira grande tentativa de Frank Gehry de realizar uma fusão entre arquitetura e marketing deu-se no projeto do Walt Disney Concert Hall, no centro de Los Angeles. O projeto de Gehry, datado de 1988, pretendia destacar-se radicalmente de seu entorno, cercado por imensas torres de es-critório. Era uma dobradura irregular, em placas reluzentes de aço, como uma caixa encouraçada que fosse explodida pelo impacto de um bólido. O paradoxo visual residia na fluidez completa das formas recobertas por uma superfície dura, típica de blindagem militar. As junções complexas entre volumes e suas curvaturas dissimuladas eram, entretanto, um desafio cons-trutivo que punha à prova o conhecimento da engenharia. O projeto de Frank Gehry colocou um novo problema para a arquitetura e a indústria da construção em pleno centro do capitalismo avançado: o edifício-emblema, vencedor de concurso público, ao começar a ser desenvolvido, mostrou-se inexequível. Aquele ícone da nova identidade urbana era irrepresentável em desenho, impossível de ser corretamente calculado e orçado. Acabou recu-sado por escritórios de projeto e empresas de construção e, assim, a Disney suspendeu sua execução.

Gehry, entretanto, não desistiu da empreitada e foi descobrir nas in-dústrias aeroespacial e automotiva um programa de modelagem digital que pudesse transformar sua ousadia escultórica em um edifício exequível. O

23 Ibidem, p. 51.

HEGEMONIA_miolo.indd 172HEGEMONIA_miolo.indd 172 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 167: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 173

Catia, da francesa Dessault Systèmes, permitiu que as maquetes de criação de Gehry, feitas de papelão, massinhas de modelar e folhas de alumínio, pudessem ser esquadrinhadas e lidas a laser. O programa transformava as maquetes em grids tridimensionais, definindo coordenadas que permitiam detalhar a estrutura, peças e superfícies, e testar seu comportamento está-tico. O Catia permitia o desenho paramétrico de formas irregulares com membranas contínuas e suaves, como queria Gehry, construídas a partir de curvas de Bézier e de superfícies algorítmicas.

Ainda assim, a Disney não estava completamente certa de seu investi-mento. Foi graças à parceria com o mais agressivo homem de negócios da cultura, Thomas Krens, diretor do Museu Guggenheim, que Gehry pôde construir de fato suas gigantescas flores metálicas. Em 1997, Gehry inau-gurou o projeto que se tornou um verdadeiro emblema arquitetônico da globalização: o Museu Guggenheim de Bilbao. O museu é uma espécie de navio de guerra cubista, ancorado no rio Nervión, recoberto de chapas de titânio que reluzem ao sol como ouro. Gehry decompôs o campo pers-péctico em múltiplos pontos de fuga, dando a sensação de movimento e instabilidade.

A liberdade formal do museu, no limite do gesto aleatório, expressa a ausência de formas modelares que definiram a espacialidade arquitetônica até recentemente. Trata-se de uma espécie de “instabilidade semiótica” pro-posital, uma composição inapreensível que foge das matrizes visuais assegu-radoras e converge, enfim, para os fundamentos da nova economia e da desestabilização do próprio mundo do trabalho. A fluidificação das formas revela uma real dimensão de classe, se for permitido falar do que afinal está em jogo: a alegação vanguardista corriqueira de que tal “desmanche” repre-senta o fim de referências estáveis e sufocantes não deixa de incluir, como se fosse apenas um detalhe, o desmanche das instituições próprias ao campo do trabalho.

O Guggenheim Bilbao é, por isso, bem-sucedido não apenas como sur-preendente aparato técnico/ estético, como também, ou sobretudo, enquan-to estratégia rentista. Ao ser divulgado pelos canais midiáticos como o ápice da produção arquitetônica recente, gerou fabulosas rendas de monopólio para os diversos agentes envolvidos. Como já constatara David Harvey, as intervenções urbanas têm se especializado em construir “lugares” exclusi-vos, capazes de exercer um poder de atração significativo sobre os fluxos de

HEGEMONIA_miolo.indd 173HEGEMONIA_miolo.indd 173 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 168: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

174 • Hegemonia às avessas

capital24. Nesse caso, a obra teria sido capaz de transformar a decadente e escura capital basca, que vinha sofrendo os efeitos da desindustrialização e da crise em seus estaleiros, numa das atrações do turismo mundial. Hal Foster chega a dizer que, depois dessa obra, a arquitetura não foi mais a mesma e vivemos, a cada novo projeto do gênero, uma espécie de “efeito Bilbao”25, no qual cada cidade procura construir um espetáculo de magni-tude similar com o objetivo de atrair novos fluxos de capital. O museu é o resultado mais bem-sucedido de co-branding urbano até o momento, asso-ciando as “marcas” Guggenheim, Bilbao, Gehry, Dessault e da construtora Idom numa alavancagem midiática conjunta. A iniciativa pioneira foi ca-paz de capturar a super-renda imagética da operação, enquanto outras cida-des e corporações corriam atrás da mesma estratégia.

A megacorporação de entretenimentos norte-americana, dessa vez, havia ficado para trás. Após o sucesso estrondoso de Bilbao, a Disney autorizou fi nalmente a construção de sua sala de concertos na capital da Califórnia, inaugurada apenas em 2003, quinze anos após a elaboração do projeto.

A 125 quilômetros de Bilbao, em Rioja, o arquiteto foi convidado para construir a Cidade do Vinho, um “templo dedicado ao néctar dos deuses”, a convite da casa Marquês de Riscal, em 2001. O espaço dionisíaco tem co-mo programa: um museu da vinicultura, uma loja de vinhos (que não ven-de só as garrafas da casa), 43 suítes cinco-estrelas, um restaurante de pri-meira linha e um spa dirigido pela cadeia Les Sources de Caudalie. O acesso a essa experiência custa de 400 a 1400 dólares a diária. A “parceria” com o cada vez mais financeirizado mondo vino não foi casual26. A inicia-tiva associa dois tipos de rentismo, o do vinho27 e o da arquitetura. David Harvey, atualizando o exemplo de Marx, comenta que, na atual indústria globalizada do vinho, não é mais a tradição que garante as maiores rendas aos melhores terroirs, mas a prática discursiva do mercado de experts, que constrói critérios de avaliação de gosto cujos maiores favorecidos são os produtores que modernizam seus métodos e adotam estratégias de marketing.

24 David Harvey, “El arte de la renta”, cit.25 Hal Foster, Design and crime, cit., p. 42.26 Ver, por exemplo, a descrição da modernização da economia do vinho no documen-

tário Mondovino, de Jonathan Nossiter (2004, 134 min.).27 Marx, para explicar a teoria da renda diferencial da terra em O capital, utilizou co-

mo um de seus exemplos a produção de vinhos.

HEGEMONIA_miolo.indd 174HEGEMONIA_miolo.indd 174 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 169: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 175

O novo edifício de Gehry dá status inovador à casa Marques de Riscal e região, colaborando para o fortalecimento global da marca e ao mesmo tem-po atraindo turistas, enólogos e enófilos para o referido “templo”.

A obra de Gehry brota do meio da cidade medieval de sobrados de pe-dras de arenito como um jorro de vinho espalhando ondulações e reflexos metalizados púrpuras – figuração rentista, tal como um borbotão de ri-queza (como a do petróleo) emergindo da terra. O arquiteto faz uma míni-ma concessão ao arenito local em alguns dos volumes do edifício, mas que são soterrados pelas cachoeiras de metal. As ondas, em tom violáceo e baunilha, fazem uma alegoria às cores e aos buquês dos vinhos. Há, de fato, um choque total entre o edifício e seu entorno, sem nenhuma preo-cupação contextual (contrariando a vertente regionalista/ vernacular tão em voga na Espanha).

Esse é um fenômeno recorrente nos projetos contemporâneos, no qual os edifícios se apresentam como totalidades em si, desgarrando-se da ci-dade, de qualquer contexto ou território. Cumprem funções para além do lugar e do local, são edifícios e infraestruturas transnacionais de circulação do capital. Essa arquitetura se torna, por isso, autorreferente, tal como as finanças. Daí a irrelevância do contexto – não há mais por que se preocupar em formar a cidade, um mundo coeso, eventualmente homogêneo. Assim, pode-se chegar a um verdadeiro “espaço delirante”, sem restrições de estru-tura, materiais, recursos e mesmo de qualquer uso. Como afirma Hal Foster, “sem os constrangimentos clássicos da arquitetura (resistência dos ma-teriais, estrutura, contexto), sua arquitetura rapidamente se torna algo arbi-trário e autoindulgente (porque essas curvas e não outras?) – os fãs de Gehry tendem a confundir essa arbitrariedade com liberdade”28.

Em seu recente projeto para o DG Bank, em Berlim, Gehry produz novamente um choque contrastante, dessa vez entre a sobriedade exter-na do edifício e seu interior surpreendente. No pátio central do prédio, ele pousa uma cobertura irregular reluzente (de novo Midas), que poderia tam-bém ser interpretada como uma ironia norte-americana do arquiteto, como se uma derradeira bomba dos aliados tivesse ali sido lançada. Abrigada sob essa resplandecente massa informe, espécie de coração do sistema, está a mesa do board, conectada mundialmente por meio de telões de vídeocon-ferência. Quem olha da rua o edifício não chega a notar a intervenção de

28 Hal Foster, Design and crime, cit., p. 40.

HEGEMONIA_miolo.indd 175HEGEMONIA_miolo.indd 175 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 170: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

176 • Hegemonia às avessas

Gehry, a menos que entre e veja, por entre a colunata, os reflexos metaliza-dos que vêm de seu coração. Aqui, a alegoria do capital financeiro – um choque de visualidade que cega – é mais sofisticada que as cascatas de vinho em Rioja.

Seja pela comparação com o conjunto do edifício do banco, estruturado segundo a forma tríptica convencional (dois pilares e uma viga), ou mesmo pela própria intuição estática que a força da gravidade nos dá, a surpresa formal da intervenção de Gehry impede a compreensão de como foi feita. A massa irregular da cobertura em chapas de cobre aparece como uma má-gica, contrariando as regras da física e da engenharia. A cobertura superior do pátio central, toda em vidro, eleva-se acima do gabarito do prédio, como se tivesse sido estufada pela explosão interior do volume em cobre. A forma curvilínea e aerodinâmica é dada por uma espetacular treliça metálica ten-sionada por cabos de aço. Mais uma vez, a imagem se destaca da tectônica do corpo do objeto como algo que paira acima de sua banal materialidade.

Na verdade, há aqui alguns truques. A estrutura do volume central é toda composta por pórticos ondulados em aço e recoberta por painéis de cobre (externamente) e de madeira (internamente), constituindo superfí-cies fluidas, que escondem as estruturas e todas suas artimanhas para per-manecer de pé. Uma solução aparentemente ousada, mas que se vale da técnica corriqueira da “armação oculta”, normalmente utilizada em escultu-ras grandes e ocas, como a Estátua da Liberdade, em Nova York29.

A produção do valor segue na base

Se ainda formos procurar nas obras de Gehry expressões da contradição entre desenho e canteiro, próprias ao fetiche de primeiro grau, encontrare-mos diversas – o que comprova, aliás, que um tipo de fetiche não substitui o outro, mas sobrepõe-se a ele. Numa comparação com os arquitetos mo-dernos – que desenhavam artesanalmente a nanquim e normógrafo em pa-pel vegetal, mas propunham a padronização e a seriação de componentes pré-fabricados para montagem rápida em canteiro – pode-se dizer que hou-ve uma estranha inversão entre esses polos. Gehry alcançou um patamar industrial de prática projetual, amparado por novas tecnologias de modela-

29 A lembrança é de Leonardo Benevolo, em Arquitetura do novo milênio (São Paulo, Estação Liberdade, 2007), p. 205.

HEGEMONIA_miolo.indd 176HEGEMONIA_miolo.indd 176 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 171: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 177

gem virtual (vindas da indústria avançada) que permitem desenhos irreali-záveis por instrumentos manuais e automatizam os cálculos complexos de engenharia. Entretanto, sua profusão formal, em que nenhuma curva repe-te outra, acaba por exigir uma produção ultraflexível (pré-industrial, mas hoje também pós-industrial). O resultado é que seus canteiros de obra se tornam verdadeiras oficinas de joalheria. Não há repetição de peças, cada parte do produto é diferente da outra. Em Bilbao, por exemplo, uma parte das placas de titânio foi cortada e aplicada manualmente em canteiro30.

A precisão milimétrica de peças complexas produz um jogo de monta-gem “demencial”, “um pesadelo”, contam os construtores – trata-se de uma exatidão irracional para a arquitetura, que não dá espaço para as adaptações e pequenas correções necessárias em uma obra. O saber e a habilidade do trabalhador da construção, bases de seu poder, são mais uma vez deprecia-dos pela inovação tecnológica capitalista. Se, num extremo, o arquiteto-es-trela pesquisa novos limites da criação livre – ou da autonomia –, o tra-balhador no canteiro é reduzido a um autômato – heteronomia máxima. Operários que trabalham em obras de Gehry afirmam que “não podem confiar na sua experiência e intuição para acertar, pois devem obedecer apenas ao comando da máquina. Cada peça encaixa em um espaço reticu-lado imaginário, ditado pelas coordenadas do software. Nem um único erro é permitido, sob pena de as demais peças não encaixarem ao final”. Dada a precisão dos cortes em máquinas de controle numérico, a menor imperfei-ção pode comprometer todo o conjunto. Em uma estrutura convencional, um erro de alguns centímetros pode ser corrigido pela equipe que executará a alvenaria, mas em um edifício de Gehry, com curvas em espiral no espaço, esses centímetros em determinado ponto podem se transformar em metros em outro ponto. Como afirma um engenheiro de obra, “o velho ditado, você mede duas vezes e executa uma”, não vale para uma obra como essa, pois “você tem que medir cada ponto uma dúzia de vezes”. A consequência é que o tempo despendido e o custo se elevam. Um jovem operário encar-regado da montagem afirma: “É um pesadelo! Dois milímetros fora numa primeira junta e você terá vinte fora na outra ponta. Um pesadelo!”31

30 Hal Foster, Design and crime, cit., p. 36. Mesmo arquitetos high-tech e herdeiros do ra-cionalismo, como Norman Foster e Renzo Piano, não adotam completamente a pers-pectiva da produção seriada, aceitando uma profusão de peças especiais em suas obras.

31 “How to make a Frank Gehry Building”, em New York Times, 8 abr. 2001.

HEGEMONIA_miolo.indd 177HEGEMONIA_miolo.indd 177 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 172: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

178 • Hegemonia às avessas

Ou seja, a entrada do projeto na era digital-midiática, no caso de Gehry (mas não só), não levou a uma produção igualmente mecanizada, mas a canteiros cujas montagens são ainda artesanais, em que os operários não têm, entretanto, qualquer liberdade própria ao artesão – são verdadeiros autômatos reproduzindo e encaixando a cada milímetro as curvas projeta-das pelo arquiteto. São peças especiais, únicas, de superfícies não pensadas originalmente para garantir uma fácil execução – na prática, um desrespeito pela produção, tão ao gosto do capital financeiro.

O último projeto de Gehry para o Guggenheim será a nova filial do museu em Abu Dabi, capital dos Emirados Árabes, enclave paradigmático da nova economia rentista, como bem descreveu Mike Davis32. Nessa obra, Gehry teria trabalhado sem restrição orçamentária, com o objetivo confesso de superar Bilbao, por solicitação de Thomas Krens e dos magnatas do pe-tróleo. O projeto, numa península do Golfo Pérsico (o mesmo que tem abrigado diversas outras “intervenções” do poder americano), é uma repeti-ção das fórmulas desconstrucionistas anteriores, mas em escala muito supe-rior – não deixando de lembrar Bagdá bombardeada. O projeto participa da transição da renda petroleira (naquele momento em alta33, mas algum dia em extinção) para as novas formas de rentismo – como parques temáti-cos, hotéis espetaculares, novos museus de grife, ilhas da fantasia, centros financeiros de lavagem de dinheiro etc.

A outra face de obras como essa é a extração bruta de mais-valia: os canteiros de obras nos Emirados (e o novo Guggenheim não deverá ser ex-ceção) são verdadeiros campos de trabalho semiescravo, povoados por imi-grantes desprovidos de direitos e qualquer proteção trabalhista ou sindical. Conta Mike Davis que “o boom na construção (que emprega um quarto da

32 Mike Davis, “Sand, fear and money in Dubai”, em Evil paradises (Nova York, The New Press, 2007), p. 60. Segundo Davis, os Emirados Árabes, comandados por um xeique, que é ao mesmo tempo emir e CEO dos grandes empreendimentos, unifi-caram poder político e econômico sob um só comando, numa “verdadeira apoteose dos valores neoliberais do capitalismo contemporâneo: uma sociedade que poderia ter sido desenhada por economistas da Universidade de Chicago”. E alcançaram o que para os conservadores americanos era apenas um sonho: construir “um oásis de livre iniciativa sem impostos de renda, sindicatos e partidos de oposição (não há eleições)”, abastecido pelo fluxo da renda petroleira em alta.

33 Uma alta “especulativa”, pois se trata de um preço que presentifica um futuro de escassez e faz uma comparação com outras aplicações financeiras, pouco tendo a ver com o custo de produção.

HEGEMONIA_miolo.indd 178HEGEMONIA_miolo.indd 178 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 173: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 179

força de trabalho) é transportado nas costas de um exército de paquistane-ses e indianos mal pagos, trabalhando em viradas de 24 horas, seis dias e meio por semana, num calor de derreter o asfalto”34. Sem limites legais e morais que o refreiem, o capital tem como impulso natural “a sucção desmesurada da força de trabalho”, até o limite de sua “exaustão prematura e aniquilamento”35.

Sua reprodução social também foi planejada de modo que os operá-rios se tornem invisíveis aos visitantes. Ainda segundo Davis, “alojamentos sombrios nas periferias, nos quais seis, oito ou até doze trabalhadores são amontoados num único quarto, em geral sem ar-condicionado ou banhei-ros funcionando, são necessários para garantir aos turistas a imagem ofi-cial da cidade suntuosa, sem pobreza ou favelas”36. Nada muito diferente do que se passou com os “candangos” na construção de Brasília, cinquenta anos antes – com a diferença de que aqui havia a promessa de um dia eles se tornarem cidadãos.37

A imaterialidade das novas formas, assim, está longe de pairar no ar. Com a crise do Welfare, a nova riqueza pode se assentar livremente na ve-lha máquina de extração sem peias de mais-valia absoluta, funcionando sem descanso para ampliar a acumulação e contrabalançar a tendência de queda da taxa de lucros nos setores que dispensam trabalho vivo. Os Emi-rados Árabes evidenciam de forma caricata um fenômeno que ocorre em escala global de forma quase generalizada. Mesmo nos países centrais, os canteiros de obra representam uma espécie de “vanguarda da desintegração”38

34 Mike Davis, “Sand, fear and money in Dubai”, cit., p. 65.35 O capital, cit., t. 1, liv. I, p. 184 e 203. No caso, aniquilamento em sentido estrito;

segundo Javier Montes, só em 2004, Paquistão, Índia e Bangladesh repatriaram 880 cadáveres de trabalhadores da construção civil. Ver Arquitectura Viva, n. 111, Madri, 2006, p. 36.

36 Mike Davis, “Sand, fear and money in Dubai”, cit., p. 65.37 Uma comissão de empresários brasileiros da construção civil esteve nos Emirados

Árabes em busca de novidades para a organização de seus canteiros e encontrou lá um verdadeiro “paraíso” da exploração do trabalho. Carlos Leal, do Sinduscon, vol-tando da viagem afirmou que lá “não existe paternalismo, o que torna a relação empregador-empregado mais transparente e correta”. A euforia dos empresários foi descrita em “Dubai e os megaprojetos”, Construção Mercado, n. 60, jul. 2006.

38 Tomo aqui emprestada a expressão de Roberto Schwarz para se referir ao Brasil em “fim de século”, em Sequências brasileiras (São Paulo, Cia. das Letras, 1999).

HEGEMONIA_miolo.indd 179HEGEMONIA_miolo.indd 179 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 174: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

180 • Hegemonia às avessas

do mundo do trabalho: concentram trabalhadores imigrantes e de origem étnica distinta, precarizados do ponto de vista dos direitos, com baixos salá-rios e jor nadas extensas, submetidos a riscos permanentes de acidentes e intoxicações, além do alto grau de informalidade decorrente das cadeias de subcontratação, o que também representa baixo grau de sindicalização39.

E quanto mais as diversas formas de rentismo levam a uma redistribui-ção perversa do lucro social, apropriando-se de fatias consideráveis dele sem levar em conta as reais proporções da produção, mais se exige dos setores produtivos que ampliem a exploração. Na mundialização financeira, for-mas modernas e arcaicas seguem se articulando, mas com o sinal invertido: o rentismo passa a polo moderno e o setor produtivo, a arcaico.

Associada a todos esses feitos, e por isso mesmo, a marca Frank Gehry atualmente explora a venda de softwares de projeto – mais uma forma de renda, a “renda do saber”, devidamente protegida pela cerca das patentes. Suas obras servem de publicidade das possibilidades do software que seu escritório desenvolveu, o Digital Project (uma adaptação do Catia para a construção civil, associada a programas de planejamento e gestão de obra), em parceria com a Dessault e a IBM. A empresa Gehry Techonologies pro-mete aos usuários a chance de criar com a mesma liberdade que tornou Gehry um mito, o que os outros programas não permitem. Mas se não for esse o caso, a ferramenta promete ser eficiente para melhorar a produtivi-dade em obras convencionais. Gehry já equipou os 3 mil profissionais do maior escritório de arquitetura do mundo, o SOM (Skidmore, Owings and Merrill), e vende pacotes para a China – o maior canteiro de obras de que já se teve notícia40.

Rumo à desmaterialização

Para que nosso argumento não fique prejudicado, por ter se restringido ao mais espetacular de todos os arquitetos contemporâneos, seria necessário pelo menos indicar que ele é válido igualmente para diversas obras dos de-

39 Ver, por exemplo, a análise comparativa da pioneira “desconstrução” dos direitos sociais na construção civil na coletânea organizada por Gerhard Bosch e Peter Phi-lips, Building chaos: an international comparison of deregulation in the construction industry (Londres, Routledge, 2003).

40 Informações obtidas em: <http://www.gehrytechnologies.com>. Acesso em: 15 mar. 2008.

HEGEMONIA_miolo.indd 180HEGEMONIA_miolo.indd 180 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 175: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 181

mais arquitetos-estrela de hoje – entre eles, Rem Koolhaas (no Centro de Convenções em Lille, na torre da CCTV em Pequim ou no complexo tu-rístico de Jebel al Jais), Jean Nouvel (tanto na torre Agbar, em Barcelona, e sua similar, em Doha, quanto na Ópera de Dubai), Zaha Hadid (só nos Emirados Árabes, o Museu de Artes Cênicas de Abu Dabi e as torres Signa-ture de Dubai, coassinadas por Schumacher), Daniel Libeskind (com seu projeto para o marco zero do World Trade Center) e tantos outros, como o mais high-tech dos arquitetos contemporâneos, Norman Foster (que deixou sua marca definitiva na City de Londres, alterando totalmente seu skyline ou projetando o maior aeroporto do mundo, em Pequim, na forma de um dragão – competindo com as estações, aeroportos e pontes do não menos requisitado por suas estruturas orgânicas e high-techs, a multiplicar “asas de pássaros” mundo afora, o espanhol Santiago Calatrava). Quase todos agra-ciados pelo Nobel da arquitetura, o prêmio Pritzker.

Para efeito demonstrativo, detenho-me apenas em uma dessas obras, dos arquitetos suíços também vencedores do Pritzker, em 2001, Jacques Herzog e Pierre de Meuron, defensores confessos da “arquitetura de marca”, como se viu na abertura deste texto, e que se tornaram famosos graças à reforma, nos anos 1990, da usina que passou a abrigar a New Tate Modern, em Londres.

A dupla adota uma proposta estética em seus projetos em certo sentido oposta à de Gehry, utilizando formas geométricas relativamente simples, como, por exemplo, no projeto da Bodega Dominus, um retângulo de es-pessas paredes de pedras justapostas, como gabiões, e, mais recentemente, na planta triangular do Fórum das Culturas, em Barcelona. Suas estruturas são, em geral, mais racionais, moduladas – há, por assim dizer, uma pro-messa de produtividade, de pré-fabricação de componentes. Mas o que nos interessa aqui é o fato de os arquitetos suíços, mesmo nos projetos aparen-temente mais contidos, explorarem progressivamente o tratamento das “pe-les” até seu limite.

Não custa insistir: a prevalência das superfícies em relação às estruturas é o que permite a mágica de sua desmaterialização e transformação em imagem midiática. Elas possibilitam quebrar a massa, a densidade e o peso aparentes de prédios gigantescos, como afirmou Charles Jencks41. A arqui-

41 Citado por Fredric Jameson, “O tijolo e o balão”, cit., p. 202.

HEGEMONIA_miolo.indd 181HEGEMONIA_miolo.indd 181 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 176: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

182 • Hegemonia às avessas

tetura pós-moderna quer diminuir a massa e o peso enquanto enfatiza o volume e o contorno – “a diferença entre o tijolo e o balão”, na expressão de Jameson, ou entre modernidade pesada e modernidade leve ou “líqui-da”, nos termos de Bauman. São princípios que já estão presentes em par-cela da arquitetura moderna, mas agora são projetados em um mundo espa-cial inteiramente discrepante, pois já não operam de acordo com as oposições binárias modernas, explica Jameson.

Wolfgang Fritz Haug, ao analisar a abstração na estética das mercado-rias, aponta justamente o elemento de superfície como componente funda-mental. Segundo ele, existe uma diferenciação estrutural que permite liber-tar a superfície de qualquer funcionalidade que não a de aderir à mercadoria como uma pele, “lindamente preparada”, não apenas como proteção envol-tória, mas como “verdadeiro rosto a ser visto” antes do próprio corpo da mercadoria. A superfície torna-se uma nova mercadoria, explica Haug, “incomparavelmente mais perfeita que a primeira”, e desprende-se desta descorporificando-se e correndo pelo mundo inteiro como um “espírito colorido da mercadoria, circulando sem amarras”42. Ninguém estaria mais seguro contra seus “olhares amorosos”, pois essa aparência abstraída (ou en-cenada) é sempre mais perfeita tecnicamente.

Herzog e De Meuron demonstram ousadia na experimentação de epi-dermes arquitetônicas cada vez mais inusitadas e imateriais. Passaram de uma experiência de arquitetura mais monolítica, com texturas em pedra, cobre e chapas enferrujadas, para invólucros sempre mais leves e high-tech. Sejam vidros serigrafados e suportados por aranhas metálicas, como na biblioteca de Brandenburgo; placas poliméricas que refratam a luz de for-ma multicolorida, no centro de dança Laban, em Londres; losangos de vidros côncavos e convexos, na Loja Prada de Tóquio; ou as membranas infláveis do Allianz Arena, o estádio de Munique que sediou a abertura da Copa de 2006.

Este último é o exemplo mais acabado e espetacular dos feitos da dupla suíça. Jacques Herzog afirma que o estádio se tornou um modelo de “pro-jeto-logo [marca] para um país ou um clube, uma ferramenta para entrar em um mercado”43. O estádio é a edificação esportiva mais midiática já

42 Wolfgang Fritz Haug, Crítica da estética da mercadoria (São Paulo, Unesp, 1996), p. 75.

43 Citado por Luis Fernández Galiano, “Diálogo y logo”, cit., p. 26.

HEGEMONIA_miolo.indd 182HEGEMONIA_miolo.indd 182 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 177: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A renda da forma na arquitetura da era fi nanceira • 183

construída para um grande evento, com sua imagem surpreendente, como um enorme pneumático iluminado (de azul, vermelho ou branco), divul-gada pela mídia incessantemente para os quatro cantos do globo. As imagens da arena em construção revelam a técnica de abstração do projeto44 – afinal, como tornar um pesadíssimo estádio em algo leve como um balão? A estru-tura interna é relativamente convencional: arquibancadas em concreto ara-mado, coroadas por uma cobertura de treliça metálica. Nada muito diferen-te da geração de estádios construídos na Europa nas últimas décadas. Para quem acompanhou as etapas da construção, a surpresa ficou por conta do momento em que a superfície inflável e iluminada começou a ser aplicada sobre o corpo do edifício, produzindo um estranhamento desconcertante. Quando a cobertura membranosa passa a envolver toda a estrutura de con-creto, o efeito mágico se completa. A iluminação, que nos demais estádios concentra-se em seu interior, é dirigida também para o exterior: dentro, o espetáculo esportivo, fora, o espetáculo arquitetônico, capitalizando a ci-dade de Munique, a alta tecnologia alemã e os próprios arquitetos. Graças ao sucesso desse projeto, a dupla H&dM foi imediatamente contratada para o projeto do estádio olímpico de Pequim-2008 e, mais recentemente, pelo governo de São Paulo para projetar o novo e espetacular complexo de dança e ópera localizado na antiga “cracolândia”, no centro da cidade.

Não há, entretanto, com o que se surpreender. Como lembra Sérgio Ferro, desde o princípio o capital pôs a arquitetura a seu serviço e trans-formou-a em forma-fetiche do objeto construído. O capítulo a que esta-mos assistindo é apenas mais uma de suas metamorfoses. A novidade agora é que a forma arquitetônica está sendo explorada em seus limites materiais, até a inversão de seus fundamentos construtivos. A financei-rização empurra a arquitetura para uma arriscada fusão com a forma pu-blicitária e a indústria do entretenimento. A relação clássica de forma e função, expressa na tectônica do objeto arquitetônico, parece estar sendo liquefeita para que a arquitetura possa circular mundialmente como ima-gem de si mesma.

44 O canteiro do Allianz Arena é apresentado no documentário Construindo o superes-tádio, de Su Turhan e Silvia Beutl (2005, 45 min.), Discovery Channel. A obra foi executada por 1,5 mil operários de 20 países diferentes, em regime de três turnos, para cumprir o prazo de inauguração exigido pela Fifa.

HEGEMONIA_miolo.indd 183HEGEMONIA_miolo.indd 183 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 178: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

184 • Hegemonia às avessas

Além disso, a economia rentista está levando a arquitetura a esferas de valorização cada vez mais distantes das reais necessidades humanas45. São mínimas ou mesmo inexistentes as iniciativas desses arquitetos-estrela para procurar soluções que possam ao menos amenizar a condição de pobreza da imensa maioria do globo. A outra face da arquitetura de marca, rendida ao espetáculo, é um planeta em urbanização acelerada e povoado por favelas, sem solução técnica à vista e sem horizonte de transformação política46. Um planeta sombrio que nenhuma estrela pretende iluminar.

45 Compreendidas aqui não como uma ontologia, mas no sentido de uma objetividade histórica, quando se pode socialmente definir prioridades, como nos explica, por exemplo, Herbert Marcuse em A ideologia da sociedade industrial: o homem unidi-mensional (Rio de Janeiro, Zahar, 1974), p. 26-8.

46 Ver o quadro descrito por Mike Davis em Planeta Favela (São Paulo, Boitempo, 2006).

HEGEMONIA_miolo.indd 184HEGEMONIA_miolo.indd 184 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 179: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

CIDADES PARA POUCOS OU PARA TODOS? IMPASSES DA DEMOCRATIZAÇÃO

DAS CIDADES NO BRASIL E OS RISCOSDE UM “URBANISMO ÀS AVESSAS”

João Sette Whitaker Ferreira

Nessa virada para o século XXI, o urbanismo brasileiro parece viver uma nova era, afinada com o espetáculo da globalização. Bairros de negócios com modernas torres, shopping centers cada vez mais luxuosos, sofisticados túneis e ousadas pontes, salas de espetáculo capazes de receber os grandes shows culturais globalizados são exemplos de que nossas grandes cidades parecem ter alcançado a desejada condição de “cidades globais”, graças ao que chamaremos aqui de “urbanismo de mercado”.

Para deleite dos empreendedores, o mercado imobiliário, em especial em nossas maiores cidades, parece não ter freios: bairros inteiros estão sendo transfigurados e verticalizados. São Paulo e Rio de Janeiro digladiaram-se para sediar os Jogos Olímpicos, a nova moda entre cidades que se preten-dem “globais”1, até que a segunda saiu vitoriosa, num elã de patriotismo que sacudiu a nação, para receber os jogos de 2016, com previsão de gran-des e milionários projetos urbanos. Grandes e custosos projetos também estão previstos para outra grande conquista, a Copa do Mundo de 2014. Projetos de water fronts viraram moda, de Puerto Madero, em Buenos Aires, à Estação das Docas, em Belém.

A Sala São Paulo, construída na antiga estação de trem Júlio Prestes e considerada uma das mais modernas salas de concerto do mundo, permitiu à metrópole paulistana inserir-se no seleto clube da elite da música erudita internacional e ao mesmo tempo promoveu a valorização e a elitização da área central da cidade por meio de um significativo investimento público. Aliás, o uso da cultura como alavanca para a valorização fundiária e imobi-

1 “Wannabe world cities”, nos termos de J. Short, “Urban imageneers”, em A. E. G. Jonas e D. Wilson (orgs.), The urban growth machine: critical perspectives two decades later (Nova York, State University of New York Press, 1999).

HEGEMONIA_miolo.indd 185HEGEMONIA_miolo.indd 185 9/8/10 4:27:38 PM9/8/10 4:27:38 PM

Page 180: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

186 • Hegemonia às avessas

liária tornou-se nesse início de século a nova receita para a região, que ago-ra ganhou o projeto de uma escola de dança projetada pelo arquiteto do Ninho de Pássaro, em Pequim, orçado em nada menos que 600 milhões de reais. Na mesma direção, Rio de Janeiro, Curitiba e outras cidades disputa-vam o privilégio de ter, após Nova York e Bilbao, seu Museu Guggenheim. Em muitas de nossas grandes cidades, novas parcerias público-privadas eram anunciadas para alavancar ambiciosos planos de urbanização.

Alguma coisa nova estava no ar. O urbanismo tradicional, herdeiro do funcionalismo modernista, repaginado segundo o clientelismo do regime militar – aquele dos planos tecnicistas pouco aplicados2, das grandes obras viárias e das fontes luminosas propícias a superfaturamentos –, embora até hoje recorrente, cedia espaço para uma “nova” visão “moderna e globaliza-da” da gestão urbana. Uma visão importada das grandes cidades do mundo desenvolvido, segundo a qual a cidade deve ser gerenciada como uma em-presa3. Esse modelo do urbanismo internacional foi gerado no bojo do avanço liberal da era Reagan/Thatcher e apropriou-se de nomes da gestão empresarial, como “planejamento estratégico” e “marketing urbano”, para promover a ascensão das “cidades globais”, apresentadas pelos governos, na mídia e nas universidades, como a única configuração urbana capaz de ga-rantir a sobrevida das cidades no competitivo contexto da “globalização” econômica4. Um modelo de submissão absoluta ao mercado, que parecia ter feito suas provas em cidades europeias e norte-americanas e passava a ser importado para nossa realidade, na velha tradição das “ideias fora do lugar”.

As origens de um “urbanismo de mercado”nos moldes do liberalismo globalizado

A propagação dessa receita urbana partiu dos países industrializados e teve motivações muito pragmáticas. A partir de meados da década de 1970,

2 Flávio Villaça, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Bra-sil”, em C. Deák e S. Schiffer (orgs.), O processo de urbanização no Brasil (São Paulo, Edusp/ Fupam, 1999), p. 169-244.

3 C. Vainer, “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do pla-nejamento estratégico”, em Otília B. Arantes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), O pensamento único das cidades: desmanchando consensos (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 75-104.

4 João S. W. Ferreira, O mito da cidade global: o papel da ideologia na produção do es-paço urbano (São Paulo, Vozes, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 186HEGEMONIA_miolo.indd 186 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 181: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 187

no cenário de crise de superprodução e desemprego, desconcentração in-dustrial em muitas cidades europeias e norte-americanas e alta competitivi-dade, a possibilidade de alavancar parcerias milionárias com o setor privado para a construção de polos urbanos capazes de atrair grandes empresas e negócios globais mostrou-se uma via de salvação para prefeitos submersos em graves crises de governabilidade.

É nesse contexto que surgia a já comentada receita dos investimentos culturais e esportivos como ótima oportunidade para construir as infraes-truturas necessárias e transformar áreas obsoletas e quase falidas em polos de atração do grande capital global5, receita esta inaugurada ainda nos anos 1970 pelo Centro Cultural Georges Pompidou, em Paris6. A partir daí, com apelo cultural ou não, uma onda de grandes obras “revitalizadoras” de centros urbanos propagou-se pelos países centrais, produzindo centros de convenções e de negócios, museus e salas de espetáculos, arenas espor-tivas, modernos aeroportos. Tais investimentos ganhavam toda sua poten-cialidade lucrativa quando associados aos Jogos Olímpicos e a exposições universais. Em uma simbiose de interesses políticos e imobiliários, esse no-vo paradigma de urbanização transformava os espaços obsoletos e degrada-dos decorrentes da reestruturação produtiva em fantásticas oportunidades para a realização do capital.

O planejamento urbano modernista e funcionalista, tão útil no ciclo econômico anterior para organizar as cidades nos moldes da economia for-dista e da sociedade de consumo de massa que se criava a partir do pós-guer-ra, foi aos poucos rechaçado por sua pouca flexibilidade e seu forte caráter estatal regulador, dando espaço para um “gerenciamento” das cidades su-postamente mais ágil para enfrentar os problemas da obsolescência urba-na – ou, em outras palavras, mais eficaz para integrar as cidades à lógica da economia financeirizada e globalizada. Os grandes conjuntos habitacionais do pós-guerra, embora na época tivessem cumprido seu papel de provisão habitacional em massa, foram execrados por seus vícios modernistas.

5 Otília B. Arantes, “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”, em Otília B. Arantes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), O pensamento único das cidades, cit., p. 11-74.

6 A construção do centro levou à polêmica incorporação urbana do Quartier de L´Horloge e do bairro do antigo mercado dos Halles.

HEGEMONIA_miolo.indd 187HEGEMONIA_miolo.indd 187 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 182: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

188 • Hegemonia às avessas

Esse novo padrão de intervenção urbana, baseado em “grandes proje-tos”, é hoje a regra na maioria dos países do capitalismo central. Na onda do liberalismo crescente e do enfraquecimento do Estado de bem-estar so-cial, deixa-se para trás a regulação estatal do espaço público para dar livre curso à ação de empreendedores privados, sempre associados a festejados arquitetos de renome internacional. São lançados ininterruptamente gran-des empreendimentos de “recuperação” de qualquer área remanescente que ainda se preste a uma intervenção: resquícios de bairros operários, áreas fa-bris abandonadas ou mesmo o vazio deixado pelas torres gêmeas do World Trade Center. É evidente que o resultado é um forte processo de valorização fundiária e imobiliária, que transforma esses setores das cidades em nichos de oportunidades para o capital. Daí decorre a chamada “gentrificação” urbana, ou seja, a expulsão da população original e sua substituição por uma população de renda muito superior.

Na esteira de cidades como Baltimore, Nova York, Londres, Paris, Bar-celona e muitas outras, vemos, da década de 1980 até hoje, a constante aplicação do modelo dos “grandes projetos de revitalização urbana” co-mo novo paradigma para o planejamento urbano no mundo. Em Bilbao, o projeto futurista do arquiteto Frank Gehry para o museu Guggenheim, construído numa área portuária em desuso, assegurou para a cidade um lugar ao sol na rota dos fluxos globais de turistas e capitais. Em Londres, uma das mais recentes operações foi a construção do Domo do Milênio, projeto do festejado arquiteto Richard Rogers para uma antiga e obsoleta área industrial de produção de gás, vizinha às docas, já urbanizadas por uma grande operação imobiliária em décadas anteriores. Em Paris, a área onde ficavam as usinas Renault, em Boulogne-Billancourt, é hoje um gigantes-co canteiro de obras de um empreendimento imobiliário considerado pelos críticos um verdadeiro “parque de diversões para demiurgos, urbanistas e promotores imobiliários”7.

Na maioria desses casos, os interesses privados foram alavancados por importantes investimentos públicos. Por exemplo, na grande operação de renovação das docas londrinas no fim dos anos 1990, num processo de “revitalização” e valorização do antigo “cinturão vermelho” dos bairros ope-

7 Disponível em: <http://yakasolutions.typepad.com/rives_de_seine/boulogne_billan-court>. Ver também, sobre o projeto: <http://www.ileseguin-rivesdeseine.fr/main.htm>. Acesso em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 188HEGEMONIA_miolo.indd 188 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 183: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 189

rários da cidade, cerca de 1,3 bilhão de dólares de fundos públicos foram investidos, o que não evitou, aliás, um grande desastre imobiliário, dada a insuficiência do transporte coletivo previsto para a área8. Somente mais de uma década depois é que o empreendimento se recuperou, graças à cons-trução – pelo governo e com mais recursos públicos – de uma nova linha de metrô servindo a região. Em Barcelona, foram 5,5 bilhões de dólares públicos investidos na preparação dos Jogos Olímpicos de 1992, cujas obras de urbanização se tornaram a coqueluche dos planejadores das “cida-des globais”9.

Essa mobilização de importantes fundos públicos para alavancar pro-jetos de renovação urbana quase sempre foi legitimada para a população justamente com o discurso de que essa seria a porta de entrada definitiva para o chamado “arquipélago das cidades globais”, o que permitiria a atra-ção de um volume de capital muito maior do que o investido pelo Estado. Um prognóstico arriscado, como em qualquer operação capitalista. Os ba-lanços, aliás, nunca são muito transparentes. Além das Docklands, não raro vêm à tona notícias de dificuldades financeiras não previstas, como no caso dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, ou da cidade de Nova York, no início deste século10.

Brasil: “Urbanismo de mercado” x reforma urbana?

A expansão neoliberal gerada pela reestruturação produtiva alcançou nosso país a partir da década de 1990, e os ditames do Consenso de Wash-ington provocaram importantes transformações econômicas, hoje bastante conhecidas: forte desregulação e enfraquecimento do papel do Estado, pri-

8 A canadense Olympia & York, maior incorporadora do mundo na época, faliu em decorrência do insucesso da urbanização de Canary Walf. Ver João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

9 De fato, os urbanistas catalães, tendo à frente Jordi Borja, tornaram-se assíduos con-sultores internacionais de governos interessados em aplicar o planejamento estraté-gico, como no caso de Santo André para o Projeto Eixo Tamanduatehy. Ver, por exemplo, artigo de Borja para a Prefeitura de Bahía Blanca, com título dos mais ex-plicativos: “Las ciudades en la globalización: planificación estratégica y proyecto de la ciudad” (Argentina, 1999).

10 Folha de S.Paulo, “Nova York pode falir, adverte o prefeito”, 20 out. 2002. Dispo-nível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u46669.shtml. Acesso em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 189HEGEMONIA_miolo.indd 189 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 184: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

190 • Hegemonia às avessas

vatizações e abertura do mercado interno para o capital internacional, des-nacionalização da indústria e precarização absoluta das relações trabalhistas, abandono de projetos de políticas públicas estruturais e adoção de políti-cas de assistência social pontuais etc.11 Embora não tenham sido notadas de imediato, também estavam incluídas no “pacote” as novas receitas urba-nísticas importadas do “Primeiro Mundo”.

O que tornou o quadro mais complexo foi o fato de que a expansão neoliberal chegou ao Brasil justamente quando o país começava a redemo-cratizar-se e assistia à paulatina chegada ao poder de grupos políticos mais comprometidos com a democracia e as causas sociais. Ser favorável à demo-cratização ou mesmo indignar-se – no discurso – com a pobreza são posi-cionamentos políticos bastante cristalinos que não remetem a grandes po-lêmicas. Ou se é ou não. A questão não é tão simples, porém, quando se trata do posicionamento econômico num quadro de crise estrutural e, mais ainda, de promoção de políticas públicas que eventualmente, e de alguma forma, possam desestabilizar a relação de forças e o poder das elites domi-nantes. Ou seja, o fato de termos governos democráticos não garantia em nada que estes não adeririam às receitas econômicas do neoliberalismo. A contradição daí resultante estava no fato de que governos agora “democrá-ticos” e com discurso social adotariam, em nome da busca de uma “moder-nização globalizada”, o modelo econômico neoliberal cujas consequências seriam justamente o agravamento da concentração de renda e da tragédia social. Como os governos municipais ganharam uma inédita autonomia na condução das políticas urbanas a partir da Constituição de 1988, era mui-to provável que a contradição na condução da política econômica contami-nasse, por assim dizer, o campo do urbanismo.

Assim, por um lado, na década de 1990 chegaram ao poder municipal governos de alinhamento progressista e fortemente amparados pelos movi-mentos populares que promoveram importantes avanços nas políticas so-ciais, inclusive nos campos habitacional e urbano. Ancorando-se na nova Constituição e em especial nos artigos (182 e 183) que tratavam da função social da propriedade urbana, Recife, Santo André, Porto Alegre, Diadema, Belo Horizonte e São Paulo, entre outras, passaram a ser referência de van-guarda na implantação de mecanismos de democratização da gestão da ci-

11 João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 190HEGEMONIA_miolo.indd 190 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 185: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 191

dade e de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida da população mais pobre.

Por outro lado, porém, no bojo do pensamento neoliberal, o apelo do “urbanismo de mercado” e do planejamento estratégico apresentava aos go-vernantes que decidissem promover a aproximação público-privada na con-dução de projetos de “renovação” urbana calcados nos interesses do capital uma tentadora oportunidade de deixar “marcas” de modernização nas cida-des. Paulatinamente, esse modelo urbano e sua receita de parcerias com o setor privado na busca de investimentos encontraram nesse cenário um am-biente propício a sua expansão – ainda mais num país em que o mercado imobiliário sempre teve, por assim dizer, vida bastante fácil.

Esse antagonismo entre um urbanismo conduzido pelo Estado e com-prometido com a “reforma urbana” democrática e outro calcado na aproxi-mação com o capital privado se acentuaria cada vez mais. Para entendê-lo, vale retomar aqui um pouco da história da luta pela reforma urbana a partir da Constituição de 1988.

Os artigos 182 e 183 da Constituição traziam alguns “instrumentos” supostamente capazes de dar ao Estado mais poder para enfrentar os dese-quilíbrios urbanos de nossas cidades. No entanto, teriam de esperar tre-ze anos para serem efetivamente regulamentados pelo Estatuto da Cidade, em 2001. Contudo, antes mesmo de 1988, alguns municípios brasileiros já haviam implementado instrumentos de controle urbano de caráter demo-cratizante, como, por exemplo, as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), que permitiam legislações urbanísticas específicas para áreas precárias, vin-culando-as sobretudo a programas de regularização fundiária em favelas. Recife aplicou Planos de Regularização das Zeis (Prezeis) e regulamentou um complexo sistema de gestão participativa. O Orçamento Participativo também era experimentado em algumas cidades, como em Porto Alegre. Em Santo André, as Áreas de Especial Interesse Social foram aprovadas em 1991 para viabilizar a urbanização de favelas12. Tais iniciativas marcaram nesse cenário uma perspectiva inovadora, no sentido de que reconheciam

12 João S. W. Ferreira e Daniela Motisuke, “A efetividade da implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação ini-cial”, em Laura Machado de Mello Bueno e Renato Cymbalista (orgs.), Planos di-retores municipais: novos conceitos de planejamento (São Paulo, Annablume, 2007), p. 33-58.

HEGEMONIA_miolo.indd 191HEGEMONIA_miolo.indd 191 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 186: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

192 • Hegemonia às avessas

uma grande parcela da população urbana como cidadã e seus locais de mo-radia, mesmo que informais, como parte da cidade, e buscavam garantir sua recuperação e a melhoria de suas condições de vida. A reivindicação de uma reforma urbana, originada nos movimentos de moradia das periferias ainda na época do regime militar, parecia ganhar uma nova e promissora perspec-tiva de efetivação.

Com a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, parecia que essas experiências pioneiras iriam difundir-se pelos municípios brasileiros. O Es-tatuto preconizava a gestão democrática da questão urbana, o enfrentamen-to da retenção de terras para fins especulativos, a regularização fundiária e a concessão de uso habitacional em terras públicas, entre outros avanços. A obrigatoriedade de elaboração de planos diretores para a aplicação desses instrumentos fez com que muitos municípios os discutissem e o tema ga-nhasse nova importância no meio acadêmico.

Contudo, isso não significava que sua aplicação seria fácil, ou ainda efe-tiva. E por uma razão muito clara: a reforma urbana, no sentido da demo-cratização das cidades, é uma questão essencialmente política, e a socieda-de brasileira não estava aberta para romper a relação de forças por meio da qual as classes dominantes impuseram uma urbanização marcada pela drás-tica segregação socioespacial. Além disso, o modelo tradicional e arcaico do urbanismo de grandes obras viárias – objeto de superfaturamento e instru-mento político-eleitoreiro – continuava com toda a sua força.

Nesse jogo de forças, se o Estado atacasse a retenção de terras ociosas para fins especulativos, exigisse a construção de habitações de interesse so-cial em imóveis vazios, investisse pesadamente em infraestrutura urbana nas periferias, desse direito de propriedade a moradores de favelas e de lotea-mentos clandestinos, combatesse a ação desenfreada e destrutiva do merca-do imobiliário, ele estaria atuando no sentido contrário ao de sua história, de sua lógica patrimonialista de defesa dos interesses dominantes – interes-ses que se polarizam no extremo oposto, no controle do acesso à terra, na proteção quase sagrada da propriedade fundiária restrita às classes domi-nantes, na prioridade dos investimentos nos bairros mais ricos, na exclusão socioespacial como instrumento de dominação, questões que têm quinhen-tos anos de consolidação no Brasil. Assim, a um Estado “público” compro-metido com os “novos” instrumentos urbanísticos e com a democratização das cidades, contrapunha-se o próprio Estado, em razão de suas caracterís-ticas patrimonialistas, de sua instrumentalização pelas classes dominantes,

HEGEMONIA_miolo.indd 192HEGEMONIA_miolo.indd 192 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 187: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 193

dos antagonismos de nossa formação social e das condicionantes históricas de nosso subdesenvolvimento.

Assim, na última década do século XX, as cidades brasileiras viviam um duplo e contraditório movimento: de um lado, dispunham de um no-vo instrumental legal que lhes permitia implementar uma reforma urbana democrática; de outro, sofriam pressão econômica para adotar novos mo-delos liberais de planejamento. A possibilidade de aplicação desses instru-mentos, porém, esbarrava no fato de estes terem sido pensados na lógica do Estado-providência, e não na da urbanização subdesenvolvida e do Es-tado patrimonialista.

A produção do espaço urbano e os entraves do urbanismono subdesenvolvimento

O solo urbano tem seu valor determinado por sua localização13. Uma localização é melhor que outra em função, é claro, de suas condições físicas (vista, orientação, relevo), mas principalmente de sua infraestrutura urba-na, que a torna mais acessível, mais equipada, mais propícia à edificação. Como é o Estado quem produz a infraestrutura, a localização urbana e sua valorização são fruto dos investimentos públicos realizados. Assim, como afirma Deák, “a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que antagônico, à regulação pelo mercado” do acesso ao solo urbano14.

Uma das grandes contradições da cidade capitalista está, portanto, no fato de que, enquanto a valorização de um imóvel é determinada por inves-timentos públicos, o lucro obtido com ela é auferido individualmente pelo empreendedor ou proprietário. Foi para regular e mediar esse antagonismo entre mercado e sociedade que o keynesianismo do pós-guerra, regulador da economia, tornou-se também regulador da produção do espaço urbano por meio dos chamados instrumentos urbanísticos. Nos países centrais, a partir dos anos 1950 e no contexto do Estado de bem-estar social e da cons-trução das economias de consumo de massa, o Estado teve o papel de ga-rantir uma produção homogênea de infraestrutura em toda a cidade, evi-

13 Flávio Villaça, Espaço intraurbano no Brasil (São Paulo, Studio Nobel/ Fapesp/ Lilp, 2001).

14 Csaba Deák, A busca das categorias da produção do espaço, tese de livre-docência, Fa-culdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2001.

HEGEMONIA_miolo.indd 193HEGEMONIA_miolo.indd 193 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 188: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

194 • Hegemonia às avessas

tando a exclusão das parcelas populacionais de menor renda, construindo equipamentos acessíveis a todos e recuperando, com tributos, parte do lu-cro obtido pelo mercado em decorrência dos investimentos públicos em infraestrutura – o que os estudiosos chamam de “mais-valia urbana”.

No Brasil, entretanto, os investimentos públicos em infraestrutura fo-ram claramente direcionados e concentrados nas áreas ocupadas pela popu-lação de alta renda15. Pela lógica peculiar do subdesenvolvimento, o Estado – se entendido no sentido público importado da realidade das democracias desenvolvidas – é um “não Estado”. Ele não planeja ações para a superação do atraso, mas confunde; não organiza, mas desestrutura; não facilita, mas embaralha e burocratiza os procedimentos administrativos. Não porque se-ja incompetente, como às vezes se propaga, mas porque é muito eficaz na produção da segregação socioespacial, que emperra o desenvolvimento in-dependente, redistributivo e includente e poderia contrariar o equilíbrio de forças políticas, o poder das elites internas e os interesses externos que his-toricamente se alimentam desse atraso.

A acelerada industrialização e urbanização “com baixos salários” das dé-cadas de 1950 a 1970, que levou a um crescimento econômico significati-vo, porém condicionado à manutenção da pobreza, traduziu-se no âmbito urbano por um padrão de absoluta segregação socioespacial, que chamamos de “urbanização desigual”. Como explica Maricato:

Inaugura-se assim o urbanismo que iria se consolidar durante todo o século XX no Brasil: a modernização excludente, ou seja, o investimento nas áreas que constituem o cenário da cidade hegemônica ou oficial, com a consequente se-gregação e diferenciação acentuada na ocupação do solo e na distribuição dos equipamentos urbanos.16

Nesse cenário, a “melhor” política habitacional era a “não política”: dei-xar a população que migrava para os grandes centros industriais sem alter-nativas habitacionais, sem condições de acesso à terra urbanizada e à mercê de loteadores clandestinos, que disseminaram a ocupação informal das pe-riferias17. A autoconstrução tornou-se a alternativa de moradia que melhor

15 Flávio Villaça, Espaço intraurbano no Brasil, cit.16 Ermínia Maricato, Habitação e cidade (São Paulo, Atual, 1997).17 Ao contrário dos países centrais, Brasil viveu uma espécie de Estado de “deixe-es-

tar” social, não só porque deixar a população à própria sorte era a melhor forma de não encarecer os custos da força de trabalho, mas também porque o Estado

HEGEMONIA_miolo.indd 194HEGEMONIA_miolo.indd 194 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 189: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 195

permitia a manutenção do baixo custo da força de trabalho18. Resultou desse modelo urbano um forte antagonismo entre uma parte quase exage-radamente “desenvolvida” das cidades, beneficiada por constantes e impor-tantes investimentos públicos em infraestrutura e objeto da ação do merca-do, e outra sujeita a um “aparente” caos, na verdade bastante funcional do ponto de vista das necessidades da acumulação19.

Avanços e impasses do urbanismo democrático

Quando da ascensão de partidos de esquerda às prefeituras, no fim da década de 1980, era inevitável acreditar que instrumentos urbanísticos do Estatuto das Cidades pudessem exercer a mesma função reguladora para a qual foram criados e transformar o Estado em promotor de uma ordem inversa, de distribuição das riquezas e de justiça social. Contudo, a verdade escondida era a de que dificilmente poderiam, por si só, alterar o equilíbrio de forças e alavancar a reforma urbana e a redemocratização do acesso à terra. Os treze anos que se levaram para que os artigos da Constituição fos-sem tão somente regulamentados em uma lei definitiva – o Estatuto das Cidades – já foram um sinal inequívoco de que a esperada inversão da lógi-ca não ocorreria tão facilmente.

Seria incorreto dizer, porém, que a política urbana brasileira não tenha logrado, nas últimas décadas, alguns avanços. Santo André e Porto Alegre, beneficiados pela continuidade de gestão por mais de um mandato20, ex-perimentaram com certa efetividade alguns dos instrumentos urbanísti-cos para a regularização fundiária ou a delimitação de Zeis. No que tange à política para favelas, a ideia da erradicação total (e expulsão sistemática) deu lugar, em muitos municípios e nos programas federais, a políticas de incor-poração à cidade por meio de sua urbanização. Esforços para uma regulari-zação fundiária mais ampla foram às vezes promovidos, e equipamentos de

era promotor do “laissez-faire” (deixe-fazer), ou seja, da livre iniciativa e dos in-teresses empresariais.

18 Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 130.

19 Ibidem, p. 59.20 Lembramos que é quase impossível conceber políticas urbanas socialmente transfor-

madoras em menos de oito ou dez anos.

HEGEMONIA_miolo.indd 195HEGEMONIA_miolo.indd 195 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 190: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

196 • Hegemonia às avessas

educação e saúde foram implantados em áreas pobres de periferia em algu-mas cidades.

A criação do Ministério das Cidades, em 2002, e as ações daí decorren-tes, como a implantação do Conselho das Cidades (com participação dos movimentos populares), a criação do Fundo Nacional de Habitação de In-teresse Social (FNHIS) e a estruturação de uma política de financiamento com envolvimento de municípios e estados, significaram outro avanço im-portante na luta pela reforma urbana no Brasil. Recentemente, políticas de desenvolvimento federais – mesmo que criticáveis em muitos aspectos – incluíram em seu rol de investimentos a questão dos assentamentos precá-rios e da habitação social. A possibilidade de incorporação dos instrumen-tos do Estatuto da Cidade nos Planos Diretores municipais, mesmo que enseje disputas políticas duras nos municípios, e mesmo que às vezes seja vista pelo campo da esquerda com otimismo exagerado, ao menos trouxe a discussão da reforma urbana para a agenda política dos municípios.

Mas há de se convir que tudo isso foi, pelo menos até agora, de pouca efetividade. De maneira geral, o quadro urbano brasileiro continua ain-da trágico e inalterado: em média quase metade da população das grandes metrópoles vive em condições precárias, seja em favelas, loteamentos irre-gulares, cortiços ou mesmo na rua. Essa porcentagem não diminuiu, ao contrário, as periferias pobres continuam crescendo mais do que a média. Os centros das cidades, em compensação, estão se esvaziando e sobram imó-veis desocupados, que não cumprem sua função social de propriedade ur-bana, por mais que exista o Estatuto da Cidade. Hoje, no Brasil, o número de imóveis vazios chega a 6 milhões (para um déficit de 8 milhões!). Em todo o país, as áreas de proteção ambiental estão tomadas por ocupações precárias de alta densidade habitacional, já que não resta aos pobres outra alternativa diante da falta de oferta de moradias, seja pelo Estado, seja pelo mercado. A porcentagem de domicílios sem saneamento ainda é significa-tiva, até mesmo nas metrópoles, e nestas o transporte público precário con-some horas e horas dos trabalhadores mais pobres. Enchentes e desmorona-mentos são comuns, e a irregularidade fundiária na cidade informal parece insolúvel. Em inúmeras cidades, continuam os processos autoritários de ex-pulsão da população pobre para a periferia, quase sempre em ações capita-neadas pelas prefeituras, em sintonia com o mercado. Nesse cenário, as leis parecem ser de muito pouco efeito.

HEGEMONIA_miolo.indd 196HEGEMONIA_miolo.indd 196 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 191: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 197

As experiências de gestões “democráticas e participativas” das últimas dé cadas, que se utilizaram dos instrumentos do Estatuto da Cidade, pode-riam ser vistas como um caminho de planejamento urbano desejado para a reversão da injustiça urbana no Brasil. Contudo, elas ainda não levaram a transformações mais consistentes. Em que pese a luta dos movimentos po-pulares e de muitos grupos organizados da sociedade civil, tais avanços pa-recem não ser suficientes para gerar as profundas transformações econômi-cas, políticas, sociais e culturais necessárias para a reforma urbana.

Uma das razões possíveis dessa dificuldade pode estar no fato de que os grupos de técnicos que participam dessas gestões, com intenções absoluta-mente verdadeiras de promover mudanças estruturais na cidade, defronta-ram-se, ao assumir as prefeituras a partir dos anos 1990, com uma máquina de governo afundada na tradição de procedimentos centralizadores, auto-ritários e ineficazes de um urbanismo funcionalista e burocrático, que havia se consolidado durante os anos da ditadura militar e perdurava nas décadas seguintes. Uma máquina aperfeiçoada durante séculos não para ser “públi-ca”, mas sim para desarticular e dificultar qualquer tentativa de transforma-ção da lógica de produção do espaço urbano desigual.

O aparato municipal de gestão urbana é quase sempre fragmentado, compartimentado pelas disputas internas de poder, abalado pelos projetos políticos pessoais, pela corrupção e pelo clientelismo, distante da popula-ção e de suas reivindicações e praticamente ineficaz – quando não coniven-te por alimentar-se da desigualdade – para promover alguma transformação social mais significativa nas cidades. Os governos de esquerda ficaram não raramente engessados nas dinâmicas restritivas da administração, afogados pelo ritmo alucinante das demandas emergenciais, cerceados pela suposta restrição financeira para investimentos sociais (que, na verdade, é decorren-te da falta de uma decisão política de se inverter de vez as prioridades de investimentos), obcecados pela chamada “governabilidade” e preocupados em manter uma imagem eleitoral palatável e pouco radical entre as classes médias e altas.

Some-se a isso o fato de que a recondução ao poder, após curtas gestões de esquerda, de políticos identificados com os setores mais atrasados, arcai-cos e clientelistas de nossas elites desmantelava todo e qualquer avanço con-seguido pelo governo anterior. Por fim, há de se lembrar que, diante dos problemas estruturais do capitalismo e, mais especificamente, do subdesen-volvimento, é difícil esperar que apenas políticas públicas mais “democráti-

HEGEMONIA_miolo.indd 197HEGEMONIA_miolo.indd 197 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 192: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

198 • Hegemonia às avessas

cas” sejam suficientes para resolvê-los, por mais que essa seja a vontade legí-tima de setores sociais progressistas.

A “solução” e a proliferação do “urbanismo de mercado”

Diante disso, não é difícil entender como a solução urbanística dos “grandes projetos” e das parcerias público-privadas tenha surgido, nesse complexo e contraditório quadro de transição, como uma espécie de salva-ção, num polo oposto ao da reforma urbana e da crença nos instrumentos urbanísticos democratizantes. As perspectivas de investimentos propiciadas pelas parcerias com o mercado privado, o resultado vistoso e a aura de “mo-dernidade” desses empreendimentos eram a garantia de certa “popularida-de” e, portanto, de sucesso (sobretudo político-eleitoral) para seus autores na condução da política urbana. E ainda com a vantagem de identificá-los com uma imagem de gestão eficaz e atualizada, além de favorecer o merca-do imobiliário, tradicionalmente um setor propício a engordar os caixas das campanhas eleitorais.

Os modelos do “planejamento estratégico” e das “cidades globais” pas-saram a ser seguidos por muitas administrações municipais, sobretudo as conservadoras, habituadas à imiscuição sem constrangimentos do público com o privado. Se a “globalização econômica” pretendia nos fazer acreditar que a abertura do mercado e a desregulação econômica seriam o único, o melhor e o mais rápido caminho para nossa entrada no Primeiro Mundo, essas teorias urbanas pretendiam nos convencer de que a única saída para as cidades subdesenvolvidas sobreviverem no “novo” contexto globalizado se-ria a competição entre elas, numa disputa pela atração dos cobiçados capi-tais internacionais21.

Assim, com a justificativa de que era “importante” tornar-se uma “cida-de global”, formaram-se coalizões entre o Estado, as elites fundiárias e imo-biliárias22 a fim de garantir a destinação dos fundos públicos – quando não a doação de terras públicas – para vistosas e supérfluas obras nos “distritos de negócios” e abrigar modernas torres de padrão “globalizado”. No Rio de Janeiro, em 1993, implementou-se um “planejamento estratégico” que mon-

21 João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.22 Ver a esse respeito o conceito de “Urban growth machine”, proposto por Logan e

Molotch nos EUA (1990) e detalhado em João S. W. Ferreira, O mito da cidade glo-bal, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 198HEGEMONIA_miolo.indd 198 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 193: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 199

tou falsos consensos para a legitimação de uma gestão moldada no “market-ing de cidades”, e que a tratava como empresa para satisfazer a lógica do “rebatimento, para a cidade, do modelo de abertura e extroversão econô-micas propugnado pelo receituário neoliberal para o conjunto da economia nacional”23. A financeirização econômica dos anos 1990 deu ainda mais impulso a esses grandes empreendimentos, pois novas regras mais permissí-veis transformaram os fundos de pensão, em especial os nacionais de em-presas públicas, em grandes financiadores dessas “modernização”.

Em geral, os empresários imobiliários estabeleceram acirrada competi-ção entre si – apoiados em lobbies no governo – para assegurar o privilégio de ter sua “frente” de atuação escolhida como a centralidade a ser promo-vida pelas novas políticas urbanas. Em São Paulo, foi a região da avenida Berrini e da Marginal Pinheiros que ganhou tal batalha: em apenas 3 anos de governo, foram investidos, num pequeno quadrilátero de cerca de 60 quilômetros quadrados, 4 bilhões de reais de dinheiro público – ou a meta-de do orçamento municipal anual na época – em operações destinadas a promover a valorização fundiária da região24, que em decorrência teve um acréscimo de cerca de 2 milhões de metros quadrados construídos entre 1991 e 200025 e tornou-se a área mais cara da cidade26. Tal receita urba-na criou uma espécie de “pensamento único” nas cidades27, defendido pelo mercado imobiliário (o maior beneficiado), pelo Estado (que garantia assim uma imagem de modernidade) e pela mídia. Por fim, a academia alimen-tava o modelo, reproduzindo aqui uma teoria em voga nos grandes centros universitários do exterior, mesmo que descolada da nossa realidade.

O interessante é que a observação de dados empíricos mostrou que, no caso de São Paulo, a cidade não apresentava nenhum dos atributos econô-

23 C. Vainer, “Pátria, empresa e mercadoria”, cit., p. 80.24 O valor não computa o astronômico montante relativo aos precatórios das desapro-

priações na avenida Faria Lima, e nem mesmo a ponte estaiada, inaugurada somen-te em 2008.

25 O uso do solo segundo o cadastro territorial e predial (São Paulo, Sempla, 2002).26 João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.27 O lançamento do livro O pensamento único das cidades, organizado por Otília Aran-

tes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer (Petrópolis, Vozes, 2000), sem dúvida provo-cou uma clara inflexão no cenário de relativa apatia acadêmica no qual o “pensa-mento único” liberal das “cidades globais” vinha se firmando.

HEGEMONIA_miolo.indd 199HEGEMONIA_miolo.indd 199 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 194: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

200 • Hegemonia às avessas

micos e físico-espaciais apontados pelos teóricos das “cidades globais”28. No entanto, apoiando-se nessa falsa realidade, as elites urbanas conseguiram canalizar recursos públicos para a construção dessa e de outras “ilhas globa-lizadas”, que, na verdade, apenas ensejam uma rápida valorização fundiária e imobiliária e geram lucros extraordinários.

Mais do que nunca, e sem cerimônias, em se tratando de administra-ções municipais de direita, os instrumentos do “urbanismo de mercado” se sobrepuseram aos do Estatuto da Cidade, quando não os confundiram. De fato, os setores ligados ao mercado conseguiram inserir no Estatuto um ins-trumento que, mesmo travestido de “interesse social”, nada mais era do que uma ferramenta de valorização imobiliária: as “Operações Urbanas Con-sorciadas”, cujo nome já indica a inclinação para as parcerias público-pri-vadas e que se difundiram, por exemplo, em São Paulo. Ao vender o direito de construir acima do permitido para arrecadar recursos para financiar me-lhorias urbanas na própria área, ele subordina o planejamento urbano aos interesses do mercado, já que as prefeituras passaram a resumir sua política urbana à busca de “nichos” já valorizados, nos quais o mercado pudesse ter interesse em comprar mais permissividade construtiva, em detrimento das periferias esquecidas29.

Em 2009, sempre sob a batuta de uma gestão conservadora e fortemen-te identificada com o mercado imobiliário, São Paulo parece ter atingido o auge do “urbanismo de mercado”, servindo de modelo para todo o Bra-sil: adotou, em áreas chamadas de “intervenção urbana”, o mecanismo da “Concessão Urbanística”. Por meio deste, numa interpretação um tanto duvidosa juridicamente, a prefeitura dessa vez transferiu para o mercado imobiliário nada menos que a prerrogativa de desapropriar terrenos nas áreas em que queira investir, e o “direito” para tal. No Rio de Janeiro, a pre-feitura transferiu por licitação ao setor privado, no caso o grupo do empre-sário Eike Batista, a prerrogativa de urbanizar a Marina da Glória, dan-

28 João S. W. Ferreira, O mito da cidade global, cit.29 João S. W. Ferreira e Ermínia Maricato, “Operação Urbana Consorciada: diversifi-

cação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade?”, em Letícia Marques Osório (org.), Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras (Porto Alegre/ São Paulo, Sérgio Antônio Fabris, 2002); Maria-na Fix, “A ‘fórmula mágica’ da ‘parceria’: operações urbanas em São Paulo”, Cadernos de Urbanismo, Rio de Janeiro, ano 1, n. 3, 2000, p. 23-7.

HEGEMONIA_miolo.indd 200HEGEMONIA_miolo.indd 200 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 195: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 201

do-lhe poderes até de organizar concurso público de arquitetura e urbanismo, para o qual foram convidados os mais festejados arquitetos internacionais.

Um deles, aliás, viu o filão oferecido não só no Rio de Janeiro, mas também na metrópole paulistana. Sir Norman Foster, um dos grandes no-mes dos “grandes projetos urbanos” pelo mundo, “prepara, em parceria com empresários de São Paulo, um plano de revitalização para uma ampla região degradada entre a Mooca e o Ipiranga”30. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo:

para iniciar o empreendimento, o grupo conta com a aprovação do Projeto de Lei da Concessão Urbanística, que vai ser votado nesta semana na Câmara Mu-nicipal. A concessão urbanística permite à prefeitura delegar à iniciativa priva-da, mediante licitação, obras de reurbanização de grandes áreas de São Paulo.

Os lucros obtidos por tais operações são inequívocos, como mostra o próprio jornal:

Caso a prefeitura conceda ao grupo autorização de reurbanizar a região com base no projeto de Foster, a estimativa é de que os empreendedores possam ter um lucro operacional de R$ 3 bilhões. Estão previstos 20 prédios de 200 me-tros, de uso misto, com espaço para escritórios, residências, bares e hotéis. O terreno onde funcionava a fábrica da Ford daria lugar a um shopping center. Esses empreendimentos permitiriam ao mercado vender 2 milhões de metros quadrados em imóveis e arrecadar R$ 9 bilhões.31

Claro, como em qualquer boa parceria público-privada digna do “novo” paradigma do planejamento urbano, a cidade “ganharia” muito com isso.

Em contrapartida, seriam construídos pelos investidores 360 mil metros qua-drados de área verde: um parque central e outro ladeando a avenida do Estado. O custo da desapropriação dos imóveis é de R$ 900 milhões. Empresários gas-tariam ainda R$ 75 milhões na despoluição do solo da região e mais R$ 200 milhões em infraestrutura e prédios públicos, como escola e equipamento de saúde. A prefeitura também ganharia com a arrecadação de R$ 500 milhões em venda de títulos de potencial de construção (Cepacs) e R$ 410 milhões anuais em impostos.32

30 “Britânicos se inspiram em Milão para mudar área industrial de SP”, O Estado de S. Paulo, 20 abr. 2009.

31 Ibidem.32 Ibidem.

HEGEMONIA_miolo.indd 201HEGEMONIA_miolo.indd 201 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 196: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

202 • Hegemonia às avessas

Como em todos esses projetos, os “cálculos” são confusos e distorcidos: os custos com desapropriações não são nenhuma “contrapartida” para a ci-dade, já que fazem parte dos custos do empreendimento. O mercado “gas-taria” 275 milhões de reais com a despoluição do solo e equipamentos pú-blicos, além dos custos de implantação do parque. Ou seja, cerca de 10% do lucro final e 3% da arrecadação total de 9 bilhões de reais!

Na mesma direção, a prefeitura e o governo de São Paulo lançaram a construção de uma nova sede para a Companhia Municipal de Dança, no centro da cidade, com projeto de nada menos que do autor do famoso Ni-nho de Pássaro, o estádio de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Se já causam espanto os 25 milhões de reais pagos a ele pelo projeto, o que dizer dos fabulosos 600 milhões de reais orçados para a obra? O que acontece, nesses dois casos, com os atuais moradores da Mooca e do Centro, diante da impiedosa valorização que fatalmente os expulsará? Quanto não pode-ria ser feito em melhorias urbanas, habitacionais e sociais, no centro com 600 bilhões de reais?

Com a Copa do Mundo em 2014, para a qual a festança de construção de estádios com valores que giram em torno de centenas de milhões e para os quais se fala cada vez mais em comprometimento de fundos públicos, e com os Jogos Olímpicos em 2016, para os quais a primeira medida anun-ciada é o comprometimento de quase 9 bilhões de reais para a construção de uma linha de metrô que ligará o privilegiado bairro da Barra da Tijuca à zona sul, o “urbanismo de mercado” parece ter chegado ao seu apogeu. A falta de transparência, os indícios de malversação de recursos públicos e a transformação das cidades em meros palcos para os grandes negócios imo-biliários são hoje as práticas urbanas que mais proliferam no país. E, no caso desses megaeventos esportivos, o que é mais curioso é que se trata de projetos liderados por um governo “de esquerda”, historicamente compro-metido com as demandas populares.

Um urbanismo às avessas?

Talvez esteja aí a mais intrigante expressão do que poderíamos chamar de um “urbanismo às avessas”: no âmbito federal, um governo de esquerda assumiu a liderança da implementação do modelo urbano alavancado pelos Jogos Olímpicos e pela Copa do Mundo. Mas também no âmbito munici-pal, como em São Paulo, o novo instrumento da Concessão Urbanística,

HEGEMONIA_miolo.indd 202HEGEMONIA_miolo.indd 202 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 197: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 203

embora tenha sido implementado por uma gestão abertamente compro-metida com o mercado imobiliário, foi inicialmente idealizado e proposto no bojo do Plano Diretor elaborado para a cidade durante a gestão “demo-crática e popular” do Partido dos Trabalhadores (2000-2004). Se não é tão estranho que o “urbanismo de mercado” tenha sido amplamente adotado por governos comprometidos com os interesses do mercado imobiliário, é entretanto surpreendente ver como ele passou a ser um elemento central nas plataformas de gestão de muitos governos de esquerda.

É bem verdade que a identificação no Brasil de governos “de direita” ou “de esquerda” nunca foi fácil. As características de nossa formação levaram a um embaralhamento desses conceitos, dada a tradição demagógica e po-pulista das elites, a manutenção e a manipulação da pobreza para alimen-tar o sistema econômico e político, o papel perverso da grande mídia, de tal sorte que as relações entre o “público” e o “privado” nunca foram claras, o acesso desigual à propriedade é pouco questionado, a desigualdade no en-tendimento e na aplicação das leis virou norma aceita e qualquer política pública minimamente voltada para os pobres, mesmo que insuficiente, assis-tencialista ou manipuladora, será faturada eleitoralmente como uma iden-tificação de um compromisso “de esquerda”.

Assim, não fica fácil para a opinião pública discernir quanto o “urbanis-mo de mercado”, afinado com o sonho de acesso ao mundo globalizado e ancorado na propalada “eficiência” do setor privado, é apenas um instru-mento de lucro para o grande capital e para os empreendedores imobiliá-rios, ou quanto é um instrumento de “progresso” e de “modernidade” – sobretudo porque o que se entende por esses termos é também bastante confuso. Conforme apontaram muitos intérpretes da formação nacional, no Brasil o “mito da modernização” confunde o que é apenas crescimento econômico e sofisticação para poucos com o que deveria ser desenvolvi-mento para toda a sociedade.

Ver nas obras urbanas – mesmo que claramente superfaturadas e muitas vezes obviamente inúteis – um sinal de eficiência administrativa e política tornou-se no Brasil uma tradição de avaliação de “boas” ou “más” adminis-trações. Tal cultura ajuda ainda mais a confusão, já que os grandes proje-tos urbanos “de mercado” promovem obras ainda mais modernas e vistosas. Por isso o entendimento do que seja um governo “progressista” ou “conser-vador”, a diferenciação de compromissos com os dominantes ou com os dominados, a manutenção ou a inversão das prioridades das políticas públi-

HEGEMONIA_miolo.indd 203HEGEMONIA_miolo.indd 203 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 198: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

204 • Hegemonia às avessas

cas urbanas não são processos de fácil discernimento. Talvez seja por isso que os primeiros governos petistas, na passagem da década de 1980 para a de 1990, aqueles que iniciaram a tentativa de aplicação de instrumentos urbanísticos mais democráticos, adotaram uma “marca” que não deixasse dúvidas e os destacassem naquele complexo e contraditório quadro: chama-vam-se de governos “democráticos e populares”.

Mas, diante do difícil desafio de ter de transformar a correlação de for-ças na produção do espaço urbano apenas com “instrumentos urbanísti-cos”, não demorou muito para que os “encantos” do “urbanismo de mer-cado” seduzissem também setores dessas administrações “democráticas e populares”. Os mecanismos de parceria com o setor privado, supostamen-te “gratuitos” para o Estado, foram então revestidos de uma roupagem de “modernidade”. Mesmo que sua principal característica fosse não enfrentar, mas sim exacerbar a exclusão socioespacial urbana, o modelo passou a ser veemente defendido, por mais contraditório que pareça, por governos que se alçaram ao poder justamente pelo voto das camadas excluídas e segrega-das da cidade formal.

Na ideia da hegemonia às avessas, “não são mais os dominados quem consentem em sua própria exploração. São os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a ‘direção moral’ não questione a forma da exploração capitalista”33.

Não há dúvida de que os dominantes de Santo André devem ter visto de bom grado – e talvez com certa surpresa – a possibilidade de serem condu-zidos por um governo petista que lhes propunha implantar a mais festejada “grande intervenção urbana” do fim da década de 1990, o chamado Projeto Eixo Tamanduatehy, de forma muito mais ousada do que qualquer admi-nistração anterior já havia pensado em fazer. O projeto visava “revitalizar” uma extensa área industrial “obsoleta” ao longo da avenida do Estado, e ti-nha todos os ingredientes do “urbanismo de mercado”. Lançado em 1997, não sem uma visita do mais ilustre dos consultores internacionais do “pla-nejamento estratégico”, o catalão Jordi Borja, o projeto estendeu-se por uma década, promovendo uma grande operação imobiliária para a “recon-versão” da região e gerando significativa valorização fundiária e consequen-

33 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

HEGEMONIA_miolo.indd 204HEGEMONIA_miolo.indd 204 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 199: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 205

te reintrodução da área no circuito imobiliário e financeiro. Era a marca de um “petismo moderno” na gestão urbana, amplamente difundido pela mí-dia, que se alavancou graças aos investimentos públicos de melhoria da infraestrutura urbana, graças à negociação para o uso e até mesmo para o repasse de terras ao setor privado, graças às isenções fiscais, aos processos de desapropriação muito favoráveis ao capital e às reduzidas “contraparti-das” exigidas34.

Mas essa confusão conceitual alcançaria também os meios especializa-dos, acadêmicos e técnico-administrativos, favorecendo ainda mais a con-solidação do “pensamento único”. Isso porque a construção ideológica do Planejamento Estratégico, que visa “desregular, privatizar, fragmentar e dar ao mercado um espaço absoluto”35, e ainda estabelece as linhas de gestão para uma “cidade empresa”36, necessita antes de tudo criar consensos entre todos os agentes locais para legitimar-se. Vainer mostrou como o Planeja-mento Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro foi uma “bem-orquestrada farsa” com o objetivo de legitimar “projetos caros aos grupos dominantes da cidade”. A questão é que, nesse esforço de legitimação conceitual, e para embaralhar um pouco mais as coisas, o “urbanismo de mercado” incorpo-rara alguns dos preceitos mais caros aos setores urbanistas de esquerda.

De fato, o Planejamento Estratégico insiste fortemente em questões co-mo a gestão participativa e a importância do “terceiro setor” e dá ênfase ao papel dos governos locais na criação de “polos geradores” da renovação ur-bana competitiva. Para isso, preconiza a existência tanto de consensos entre os atores locais envolvidos como de governos “inteligentes, decididos, ho-nestos, eficazes”, mesmo que isso sirva no fim para criar, nas palavras de um especialista, “uma estratégia de desenvolvimento econômico, obviamente centrada na iniciativa empresarial privada, em torno de projetos que façam da cidade um ente competitivo”37. Ora, a participação popular, a gestão

34 Isabel A. P. Alvarez, A reprodução da metrópole: o Projeto Eixo Tamanduatehy, tese de doutorado, Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2009.

35 Ermínia Maricato, Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana (Petrópolis,Vozes, 2001), p. 59.

36 C. Vainer, “Pátria, empresa e mercadoria”, cit.37 Manuel Castells, “Sobreviver na globalização”, Revista Urbs, São Paulo, set.-out.

1999.

HEGEMONIA_miolo.indd 205HEGEMONIA_miolo.indd 205 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 200: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

206 • Hegemonia às avessas

democrática e descentralizada, a importância de poderes locais honestos e decididos e o papel responsável e cidadão da sociedade civil são procedi-mentos há muito presentes na pauta dos movimentos urbanos de esquerda, dos quais o Planejamento Estratégico se apropriou.

Para piorar ainda mais a situação, as agências de financiamento interna-cionais, e também a ONU, passariam a preconizar na década de 1990, pelo viés camuflado do liberalismo, os mesmos conceitos “de esquerda”, finan-ciando mundo afora a adoção pelos governos municipais de programas re-vestidos dessa roupagem “social”. Para o Banco Mundial, as políticas urba-nas teriam de “formular políticas e medidas que abordem os três problemas centrais do crescimento urbano: a redução dos obstáculos à produtividade urbana, o alívio da pobreza e a ordenação do meio ambiente”38. Como bem explica Isabel Alvarez, “o verniz da ‘redução da pobreza’ mal esconde o ca-ráter intrínseco de definir políticas urbanas que pudessem ancorar o cresci-mento econômico e, portanto, o processo de valorização do capital”39.

Em 1996, em Istambul, durante a conferência Habitat II, promovida pela ONU, os consultores Borja e Castells apresentaram um documento – mais bem um receituário – produzido sob encomenda da Habitat sobre os desafios da “gestão local” em tempos de globalização. A metodologia dos organismos internacionais é selecionar porções do território especialmente representativas das problemáticas existentes, elegê-las para sofrer interven-ções locais “exemplares”, que serão chamadas de “best practices”, e então difundi-las pelo mundo em luxuosas publicações, apoiadas por textos teó-ricos produzidos por seus técnicos. O planejamento público de caráter uni-versal dava oficialmente lugar a práticas de “gestão” pontuais e de eficiência quantitativa absolutamente irrisória, sem nenhum efeito estrutural de transformação. Comentando o encontro de Istambul, Maricato afirma:

Apesar da roupagem democrática e participativa, as propostas dos planos estra-tégicos, vendidos às municipalidades latino-americanas, combinam-se perfeita-mente com o ideário neoliberal que orientou o “ajuste” das políticas econômi-cas nacionais por meio do Consenso de Washington (que, aliás, também vestiu uma roupagem democrática).40

38 Banco Mundial, apud Isabel A. P. Alvarez, A reprodução da metrópole, cit.; grifo meu.

39 Isabel A. P. Alvarez, A reprodução da metrópole, cit., p. 109.40 Ermínia Maricato, Habitação e cidade, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 206HEGEMONIA_miolo.indd 206 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 201: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 207

Assim, as posições “de esquerda” aparentemente adotadas pelos organis-mos de financiamento tiveram um efeito importante para o fortalecimento do “urbanismo às avessas”, já que foram esses financiamentos que permiti-ram, a partir da década de 1990, uma grande parte das políticas habitacio-nais e urbanas municipais no Brasil. Enfrentando a ingovernabilidade es-trutural das cidades brasileiras, porém pressionados por forte expectativa de redemocratização urbana, muitos governos de esquerda perceberam nos financiamentos internacionais para a realização de “best practices” uma bem-vinda solução para seus problemas.

Como seria de se esperar, isso gerou muita ambiguidade, pois, no inte-rior mesmo dessas gestões, posições entusiasmadas com tais perspectivas de financiamento e de realização de limitados projetos “sociais” passaram a confrontar-se com aqueles que mantinham, uma vez no poder, coerência com o discurso democratizante que para ali os tinha conduzido. Assim, muitas vezes, em uma mesma gestão, enquanto de um lado se promoviam programas de “renovação” urbana baseados nos modelos de parcerias pú-blico-privadas, de outro se implementavam projetos sociais pioneiros, de caráter democrático e mais estruturais. Santo André, por exemplo, ao mes-mo tempo que implantava seu grande projeto Eixo Tamanduatehy, tão alinhado com os ditames do planejamento neoliberal, tornava-se, no polo opos to, uma referência nacional pela ação de sua Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano e por suas políticas de regularização de favelas, de implementação de Zeis, de provisão habitacional e de utilização dos de-mais instrumentos do Estatuto da Cidade.

Essa ambiguidade também marcaria, por exemplo, a gestão petista da Prefeitura de São Paulo, entre 2000 e 2004. De um lado, enquanto imple-mentava uma política habitacional bastante variada, que melhorava consi-deravelmente o sistema de transporte público de massa, e construía equi-pamentos de educação e cultura na periferia nos quais promovia também importante programa de regularização fundiária, de outro adotava o discur-so do “urbanismo de mercado” como principal mote de suas intervenções urbanas na cidade formal.

É provável que, quando do início dessa gestão, especialistas do setor imobiliário tenham pensado que a fantástica “máquina de crescimento” paulistana, promovida pelas gestões conservadoras anteriores e responsável pela criação da “centralidade terciária e global” da avenida Berrini, estivesse com os dias contados. Entretanto, a ideologia da “competitividade urbana”

HEGEMONIA_miolo.indd 207HEGEMONIA_miolo.indd 207 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 202: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

208 • Hegemonia às avessas

já havia se enraizado o suficiente para confundir até os técnicos e urbanistas “de esquerda” do governo, e a ideia de projetos urbanos alavancados por altos investimentos públicos em consonância com o mercado tornou-se mais forte do que nunca. O primeiro ato do governo foi a aprovação da Operação Urbana Água Espraiada, justamente na região da avenida Berrini, que se tornaria a vitrine urbanística da gestão. O discurso era que esses re-cursos “sairiam da iniciativa privada” e os projetos resultantes, defendidos enfaticamente pelos “novos” urbanistas do governo, teriam um “efeito si-nérgico” que beneficiaria a urbanização dos bairros pobres adjacentes.

Mas essa não seria a única vitrine urbanística da gestão petista, que no Plano Diretor de 2002 promoveria a proliferação de novas operações urba-nas como eixo da política urbanística (subordinada à lógica do mercado). Como apontava reportagem da Folha de S.Paulo de 1o de julho de 2001:

sem recursos orçamentários para tocar as obras que podem mudar a cara e a di-nâmica da cidade, a Prefeitura de São Paulo aposta nas operações urbanas para conseguir fazer intervenções de maior peso urbanístico. Nas palavras da prefeita Marta Suplicy, “elas são a saída para os investimentos na atual situação financei-ra da cidade”.

O “urbanismo de mercado” entrava na agenda governamental assumin-do oficialmente seu caráter de “salvação”.

Em 2002, a prefeitura lançou um concurso público para a “reconversão” do Largo da Batata, área de forte característica popular encravada no cora-ção da Operação Urbana Faria Lima. Um artigo da revista Urbs, da Asso-ciação Viva o Centro, um think tank voltado para a “revitalização” do cen-tro conforme os interesses empresariais, expunha o real significado daquele concurso: a “limpeza social” de um trecho apontado como “deteriorado”, no qual a presença exagerada de ônibus (e, pressupõe-se, de seus usuários) parecia impedir um urbanismo de “perfil” mais “sofisticado”:

Por abrigar as conexões entre várias linhas de ônibus, não é paradoxal a presen-ça do deteriorado Largo da Batata na ponta de uma avenida com o perfil da avenida Brigadeiro Faria Lima, que tange o bem cuidado Jardim Europa e abri-ga um shopping como o Iguatemi, considerado o mais sofisticado da cidade.41

41 Na reunião realizada no início da gestão para discutir essa “prioridade” urbanística, da qual este autor participou, ficou claro o embate entre urbanistas tradicionalmen-te ligados à reforma urbana, veementemente contrários ao projeto, e os “novos ges-tores”, alinhados com as receitas urbanas em voga.

HEGEMONIA_miolo.indd 208HEGEMONIA_miolo.indd 208 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 203: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 209

Sem ser tão direto, um dos “novos urbanistas” da gestão e então pre-sidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), Maurício Faria, afirmava no mesmo artigo que “o Largo da Batata é hoje um ponto de de-sestruturação e, portanto, a requalificação da área interessa a todos, e mais, não pode ser entendida como excludente”42. Em um típico pensamento “às avessas”, tratava-se de promover, com o concurso, “um grande eixo terciário moderno em todos os sentidos, da arquitetura contemporânea aos proces-sos de adição de valores, cujo efeito é irradiador”. Os dominados assumiam de vez a ideia de que mecanismos de mercado, tão caros aos dominantes, poderiam promover a “inclusão” social, graças a seu efeito “irradiador”. Sintomaticamente, entre os membros do júri do concurso estava Eduardo Leira, urbanista espanhol e consultor internacional sobre “cidades globais”. Quem passa hoje pela região se depara com os resultados desse urbanismo arrasa-quarteirão e com a “limpeza” que ele proporcionou, abrindo as por-tas para a valorização da área.

A condução de uma política urbana claramente liberal no bojo de um governo de esquerda, quando os dominados capitaneiam uma “revolução moral [...] que se transforma, e se deforma, em capitulação ante a explora-ção desenfreada”43, ganhou ainda mais sentido quando em 2004 a prefeitu-ra lançou mais um concurso, em moldes parecidos com o do Largo da Ba-tata. Com a pergunta “como deve ser a cidade do século XXI?”, lançava-se o desafio a arquitetos e urbanistas de criar um “bairro novo”, dessa vez na “degradada” região da Barra Funda, uma região subutilizada nas proximi-dades do centro e de grande potencial imobiliário. Existia ali uma gleba vazia de cerca de 1 milhão de metros quadrados, parte dela originalmente pública, de propriedade da Telesp, que havia sido transferida para a Telefô-nica em seu processo de privatização (e mantida vazia desde então).

Para não deixar dúvidas sobre o interesse imobiliário, a revista Vejinha on-line de novembro de 200544, em artigo intitulado “Terrenos milioná-rio$”, apontava “seis das mais cobiçadas áreas que restam nas melhores re-

42 “O novo Largo da Batata”, Revista Urbs, n. 27, jul.-ago. 2002. Disponível em: <http://vivaocentro.org.br/publicacoes/urbs/urbs27.htm#urbanismonacional>. Acesso em: 10 out. 2009.

43 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.44 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/vejasp/especial_guia_imobiliario/p_146.

shtml>. Acesso em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 209HEGEMONIA_miolo.indd 209 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 204: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

210 • Hegemonia às avessas

giões paulistanas”. Lá estava o terreno de 251 mil metros quadrados da Telefônica, cujo preço estimado era de 100 milhões de reais. Dizia o texto, indicando claramente o papel que o concurso iria exercer: “O espaço deve ter as suas chances de venda ampliadas com a decisão da prefeitura de criar um novo bairro na região”. Vale lembrar que, na ótica de um governo pro-gressista e comprometido com as mudanças sugeridas pelo Estatuto da Ci-dade, uma área como essa, vazia havia anos à espera de valorização, deveria ser combatida por mau uso e destinada à habitação de interesse social. Uma urbanização de densidade moderada indicaria um potencial para abrigar cerca de 40 mil pessoas, e uma postura governamental corajosa de en-frentamento das dinâmicas tradicionais de ocupação do espaço, condizente com o Estatuto da Cidade, poderia exigir que se destinassem habitações sociais para ao menos 25% dessa população, ou 10 mil pessoas.

Contudo, o edital do concurso pedia apenas 600 unidades desse tipo, para cerca de 2,5 mil pessoas apenas, ou 6% do total. Pressupunha-se, por-tanto, a criação de um bairro elitizado, dentro dos padrões da urbanização desigual, sem espaço para os mais pobres. O mais surpreendente é que esse aspecto do edital era tão “importante” para o governo que este, na premia-ção, esqueceu-se dele, já que foi o terceiro colocado que mereceu o prêmio, mesmo sem ter proposto habitações de interesse social – embora não tenha deixado de sugerir um “setor tecnopolitano” bem ao gosto do “urbanismo de mercado” globalizado. No júri, vale destacar a presença de Alfred Garay, consultor internacional alinhado com o novo modelo urbano e principal responsável por um dos mais paradigmáticos “grandes projetos” liberais da América Latina, o de Puerto Madero, em Buenos Aires.

Essa grande intervenção urbana, entretanto, nunca foi realizada: a ges-tão seguinte – de alinhamento conservador – recusou-a por ser uma marca política por demais identificada com o governo anterior! O avesso do aves-so: um governo de direita descartando uma política claramente favorável ao mercado por ser a marca de um governo... de esquerda! Mas o “insucesso” do plano urbanístico não significou um fracasso dos objetivos empresariais em jogo. Em decorrência do concurso, houve uma forte valorização fun-diá ria e imobiliária da região, e o bairro antes pouco visado tornou-se uma nova área de efervescência do mercado. Embora parte dos envolvidos no projeto talvez não imaginasse esse desfecho, ingenuamente crente no cará-ter “democrático” do concurso, o fato é que este representou uma grande mobilização do poder público – num governo de esquerda – para promover

HEGEMONIA_miolo.indd 210HEGEMONIA_miolo.indd 210 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 205: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 211

uma “renovação urbana” que, mesmo não tendo saído do papel, entregou de bandeja ao mercado um cardápio de projetos urbanísticos e realizou para ele uma significativa ação de marketing.

Assim, em 2007, a área foi adquirida por uma importante construtora por 125 milhões de reais, ou seja, com uma valorização de 25% em ape-nas 2 anos45. A proposta era criar ali “um grande conjunto residencial, seguindo o modelo do que o mercado convencionou chamar de condo-mínio-clube”46. O projeto previa a construção de cerca de 30 torres, com um valor global de venda (VGV) potencial de 2 bilhões de reais. Um im-portante concurso público e um ambicioso “grande projeto urbano”, pro-movidos por uma prefeitura “democrática e popular”, resultaram assim em uma fantástica valorização fundiária e na previsão de transformação do so-nhado “bairro novo” em uma das tipologias mais elitistas e segregadoras de assentamentos urbanos, a do condomínio fechado. “Como deve ser a cidade do século XXI?”, perguntava o edital do concurso.

A marca da ambiguidade desse “urbanismo às avessas” acentua-se pelo fato de que, como já foi dito, a prefeitura empenhou-se ao mesmo tempo na elaboração de projetos sociais mais transformadores. E para aumentar ainda mais a confusão, as gestões seguintes, conservadoras e de direita, exa-cerbaram a tal ponto o urbanismo “de mercado” e o favorecimento do setor privado, como no exemplo já comentado das “concessões urbanísticas”, que os “grandes projetos” da gestão petista acima descritos parecem agora qua-se insignificantes. Mas o que se viu em São Paulo e em Santo André serviu de referência, e não são poucas as prefeituras de esquerda que, desde então, têm reproduzido o “urbanismo de mercado” com a mesma intensidade e com a mesma certeza de que esse é o caminho para a modernidade e de que ele tem, sim, um suposto caráter “democrático”.

Esse modelo também se consolida porque difunde a ideia de que esses grandes empreendimentos dão “lucro” para a cidade, beneficiando-a. Jogos Olímpicos ou Copa do Mundo são bem vistos, pois “alavancam investi-mentos”, sem que se questione em algum momento se essa conta, na pon-ta do lápis, faz realmente sentido, e se esse dinheiro considerável não seria mais bem aplicado não em estádios e afins, mas em transporte público, sa-

45 Tomamos o preço sugerido no artigo de 2005, acima citado.46 Valor Econômico, “Tecnisa compra área de 244 mil m² da Telefônica por R$ 135

milhões”, São Paulo, 22 jan. 2007.

HEGEMONIA_miolo.indd 211HEGEMONIA_miolo.indd 211 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 206: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

212 • Hegemonia às avessas

neamento, habitação social, urbanização de favelas, escolas e assim por dian-te. É o “mito da modernização” fazendo efeito no campo do urbanismo.

Assim, duas décadas depois da Constituição de 1988, o Brasil vive, na condução de suas políticas urbanas e habitacionais, um curioso momento. De um lado, os avanços da Constituição e do Estatuto da Cidade parecem ter trazido a esperança de uma mudança possível rumo à construção de ci-dades democráticas, e por isso amplos setores especializados, da academia e das administrações, alinhados na defesa da reforma urbana, depositam nos “instrumentos urbanísticos” uma crença de transformação que às vezes beira a supervalorização. De outro lado, o “urbanismo de mercado” e sua roupagem “democrática” dão a falsa impressão de que podemos ter cida-des “modernas” comparáveis às do Primeiro Mundo, o que é um tanto irônico, já que lá no Primeiro Mundo, depois de décadas de políticas neo-liberais, a reestruturação produtiva e a decadência do Estado-providência fazem com que sejam mais aquelas cidades que estejam se tornando pare-cidas com as nossas.

Mas a aparência de que alcançamos aqui um “novo” patamar de urba-nização escamoteia uma realidade preocupante: por trás desse urbanismo “modernizante”, continuam a reproduzir-se, ainda mais fortemente nos go-vernos de direita, práticas urbanas arcaicas, clientelistas, corruptas, de ex-pulsão dos pobres e de segregação espacial, de favorecimento a grupos eco-nômicos, em mais uma faceta de nossa “modernização conservadora”.

O mais intrigante é que o planejamento urbano socialmente transfor-mador no Brasil parece ser tão simples quanto politicamente difícil é sua realização. Tratar-se-ia “tão somente” de inverter as prioridades de investi-mentos públicos e realizar, em essência, cinco níveis de ações urbanísticas: a produção em massa de moradia para os pobres, a implantação de sanea-mento básico generalizado, a estruturação de sistemas de transporte público de massa, em detrimento dos investimentos viários para os carros, e a pro-visão de equipamentos públicos em todas as periferias.

O caminho para isso deve passar por um novo patamar de implicação da população usuária da cidade, sobretudo da “cidade informal”. O que politicamente também não é fácil. Enquanto a democracia parece se conso-lidar, tem-se a impressão de que a participação dos usuários nas decisões de políticas urbanas é cada vez menos lembrada. A “participação” da sociedade, um processo que, aliás, é exigido pelo Estatuto da Cidade, vem se resumin-do à exibição para a população de planos já prontos, lindamente apresenta-

HEGEMONIA_miolo.indd 212HEGEMONIA_miolo.indd 212 9/8/10 4:27:39 PM9/8/10 4:27:39 PM

Page 207: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Cidades para poucos ou para todos? • 213

dos, tecnicamente complexos, em “audiências públicas”, em que muito se deixa falar e se escuta47.

Ora, transformações urbanas que afetam cada um dos usuários da cida-de, e mais fortemente aqueles que dela são excluídos, deveriam ser discuti-das por meses ou até anos em planos locais, promovidos por gestões descen-tralizadas e tendo como fio condutor a preservação dos direitos adquiridos, o respeito ao direito de moradia, a inclusão dos pobres na cidade “que fun-ciona”, a urbanização dos bairros precários, a inversão das prioridades dos investimentos públicos e assim por diante. É um enorme desafio, mas nada impossível. É evidente que, com a crítica aqui apresentada, não se pode menosprezar, e muito menos jogar fora, todos os avanços decorrentes dos esforços intensos de um enorme número de pessoas que se dedica à trans-formação democrática de nossas cidades. Avanços estes que certamente de-mandarão muitos anos para se consolidar, sobretudo diante do peso das transformações políticas necessárias, mas que mostram ser o caminho mais consistente para a realização da chamada reforma urbana. Entretanto, não há como negar que o “urbanismo às avessas” pode confundir e assim atrasar ainda mais esse processo.

47 Flávio Villaça, “As ilusões do Plano Diretor”, São Paulo, 2005. Disponível em: <www.flaviovillaca.arq.br/livros01.html>. Acesso em: 24 ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 213HEGEMONIA_miolo.indd 213 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 208: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

VERDE, AMARELO, AZUL E BRANCO:O FETICHE DE UMA MERCADORIA

OU SEU SEGREDO1

Cibele Rizek

Dona Cida Brasil é uma costureira de mão cheia. Habilidosa, conseguiu produzir o molde para a bandeira brasileira – uma bandeira difícil de fazer. O losango amarelo e o círculo azul estampado em silk screen dos dois lados precisam ser perfeitamente encaixados no retângulo verde, e dona Cida teve de montar e desmontar várias bandeiras até achar o jeito de encaixar e cos-turar, em dupla face, a bandeira brasileira. Também não deve ter sido fácil encontrar uma dona Cida Brasil lá em Cidade Tiradentes, disposta a traba-lhar muito por muito pouco e a oferecer as habilidades conseguidas com muitos anos de costura, com muita prática de oficina, para poder finalmen-te produzir os moldes e ensinar as outras costureiras a produzir corretamen-te a bandeira brasileira. Durante nossa conversa2, percebi que tinha orgulho

1 Este texto nasceu das surpresas e dos achados da pesquisa de campo em Cidade Ti-radentes. Ao lado desses achados, as considerações que o compõem têm por base uma longa colaboração com o Institut de Recherche pour le Développement (IRD) em uma investigação que começou sob a coordenação de Robert Cabanes e Vera da Silva Telles e tomou outros rumos, desembocando em um projeto aprovado pelo CNPq cujo eixo principal é o elo (mais ou menos perdido pela literatura, mas todos os dias presente nas incursões de campo) entre o trabalho e a cidade, entre o traba-lho e a constituição dos territórios da precariedade. Do ponto de vista das questões que inspiraram essas incursões a campo e a leitura dessas informações aqui presen-tes, este texto se ancora nas dimensões de análise levantadas por mais um instigante texto de Francisco de Oliveira, bem como as discussões que dele surgiram no âmbi-to do Projeto Hegemonia às Avessas, aprovado pelo CNPq e desenvolvido pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic).

2 Realizei uma entrevista mais formal com d. Cida Brasil e tive outras conversas infor-mais com ela. Seu nome neste texto é uma referência a apenas uma parte da forma como é conhecida. Algumas outras informações sobre a pesquisa de campo realizada serão expostas mais adiante.

HEGEMONIA_miolo.indd 215HEGEMONIA_miolo.indd 215 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 209: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

216 • Hegemonia às avessas

de muitas coisas: orgulho de decifrar o modo de produzir a bandeira, orgu-lho de não precisar do dinheiro da cooperativa em que trabalhava, já que podia contar com uma aposentadoria que ela considerava razoável – do ma-rido falecido, funcionário público, cujos provimentos tinham se mantido integralmente na pensão que recebia –, orgulho dos filhos criados e sufi-cientemente “bem de vida” para não depender do dinheiro dela.

Dona Cida Brasil trabalha em uma cooperativa/ONG/empresa do ex-tremo leste de São Paulo. Aqui, ela receberá o nome fictício de Atrito3, em-bora o nome de dona Cida Brasil não seja tão fictício assim, já que é conhe-cida pelo apelido Brasil no local onde produz as bandeiras utilizadas pelo Ministério dos Esportes do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Dona Cida, assim como o gerente da cooperativa, orgulhavam-se de ser as responsáveis pela produção daquelas bandeiras que foram levadas pelos atletas brasileiros para os últimos Jogos Olímpicos, em Pequim.

Seguindo, de um lado, leituras, incursões e inquietações teóricas e, de outro, achados empíricos, topei com a produção inusitada dessa mercado-ria de tanta carga simbólica que é a bandeira do Brasil, reificada e enfeitiça-da por tantas camadas de opacidade, sobretudo no contexto de produção que será descrito a seguir. Acompanhar o processo que decifrou sua monta-gem complicada foi, antes de mais nada, a possibilidade de observá-la como produto do trabalho de corte, costura, encaixe e estamparia, em um galpão infernalmente quente e desconfortável do extremo leste de São Paulo, em meio a indistinções, indefinições e ambiguidades cuja trama esta pesquisa e este texto gostariam de poder começar a decodificar. Hegemonia? Embara-lhamentos entre processos e suas significações? A vitória do menos pior so-bre quaisquer outras possibilidades e alternativas? Trabalhadores precariza-dos a serviço das benesses dos programas sociais do governo de Luiz Inácio Lula da Silva? Hegemonia às avessas? Todas essas questões, esboçadas no âmbito do projeto e do seminário Hegemonia às Avessas, acabaram por de-sembocar na descrição e narrativa de um achado de pesquisa que, para além dos clássicos processos de fetichização, acabou por encontrar novas limina-ridades, novas dimensões porosas, que talvez permitam identificar os traba-lhadores precarizados dessa falsa cooperativa como “mercadorias políticas”,

3 Em texto sobre essa mesma cooperativa, esta autora e Isabel Georges denomina-ram-na com essa mesma alcunha. Ver Isabel Georges e Cibele Rizek, “Periferia dos direitos”, em Anais Anpocs, Caxambu, 2008.

HEGEMONIA_miolo.indd 216HEGEMONIA_miolo.indd 216 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 210: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 217

pagos – ou antes mal pagos – por um conjunto de verbas provenientes das parcerias com o Estado, bem como de seus programas sociais embaralhados.

O contexto e a produção

Cidade Tiradentes é um bairro relativamente recente da cidade de São Paulo, data dos anos 1980 e foi construído pelo Estado na forma de um agregado de conjuntos habitacionais que tinham por função primeira alojar populações deslocadas por intervenções urbanas, bem como acomodar can-didatos ao “sonho da casa própria” nas bordas distantes da cidade. Os con-juntos do bairro já tiveram o apelido de “caixotes da exclusão” e são por-tadores de fortes estigmas em torno da ideia de precariedade e pobreza, associadas a índices importantes de violência que apenas recentemente co-nheceram alguma diminuição4. Também é importante dar destaque à ideia de que Cidade Tiradentes traz, como marca de nascença, a porosidade entre legalidade e ilegalidade. Assim, por exemplo, o comércio que surgiu em tor-no dos principais eixos de circulação é abrigado em garagens e supostos quintais, em situação de completa ilegalidade. Parte considerável da popu-lação dos conjuntos mora ali por contrato de gaveta – completamente ile-gal, mas na prática “impossível de coibir”, conforme aponta a própria Co-hab. Outra parte não paga e nunca pagou as prestações do imóvel onde mora e uma terceira fundou a associação da qual trataremos a seguir, nas-cida como uma associação de moradores que reivindicava, por meio de ins-tâncias e meios jurídicos, uma diminuição dos valores das parcelas de paga-mento à Cohab.

Essa associação se desdobrou em “ONG”, tal como se autodenomina em seu site, em órgão de assistência social e/ou trabalho social e – também de forma autodenominada – em “cooperativa de trabalho”, mais propria-mente uma empresa. É parceira do governo Lula e também de outras em-presas, cujos associados, beneficiários, público-alvo, trabalhadores coope-rados ou trabalhadores assalariados apresentam, por sua vez, altos índices de “informalidade”, de precariedade e mesmo de ilegalidade, dados a dureza das formas de exploração e o grau de arbitrariedade com que são tratados,

4 De acordo com informações de pesquisa de campo, essa redução do número de ho-micídios resulta de um aumento do controle do tráfico e/ou do assim chamado “cri-me organizado” sobre o território.

HEGEMONIA_miolo.indd 217HEGEMONIA_miolo.indd 217 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 211: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

218 • Hegemonia às avessas

devidamente encobertos pelo caráter de “trabalho social”, “cooperativa”, “ONG”, “associação”.

Essa ambiguidade é um dos elementos mais interessantes e instigantes desta investigação, bem como um dos elementos que estariam no centro da discussão levantada pelo seminário realizado pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania e do projeto de pesquisa que lhe deu origem. Afinal, como caracterizar esse modo de exploração do trabalho e as relações e for-mas de legitimação que o envolvem? Trata-se, a meu ver, de um exemplo das dificuldades que podem estar presentes nesse modo peculiar de domi-nação que Francisco de Oliveira chamou, na falta de melhor caracterização, de “hegemonia às avessas”5.

Uma breve descrição de Cidade Tiradentes é importante para que pos-samos determinar como essa ambiguidade e esses índices de exploração e de uso do trabalho são possíveis – vistos ao mesmo tempo como política e eco-nomicamente funcionais em vários âmbitos. Talvez seja necessário, na des-crição desse contexto, destacar o fato de que qualquer caracterização do bairro e de sua população deveria começar pela notação de um conjunto de incertezas. A primeira se refere ao número de habitantes desse distrito loca-lizado na Zona Leste da cidade de São Paulo. De acordo com os dados ofi-ciais, Cidade Tiradentes possuía 190 mil habitantes em 2000. A informa-ção sobre o número atual da população, porém, é fortemente questionada pelos moradores e pelos movimentos sociais e associações “do pedaço”. Em visita realizada em maio de 2008, obtivemos um conjunto de respostas so-bre as cifras populacionais que variavam de 200 mil a 600 mil pessoas. A impossibilidade de conhecer os dados mais elementares a respeito do distri-to tem a ver com a forte opacidade que o cerca. Por exemplo, quantos apar-tamentos estariam desocupados? Quantos estão ocupados de modo irregu-lar (o que é impossível detectar com clareza)? Quantos contratos de gaveta levaram à substituição dos moradores iniciais? Em relação às habitações su-postamente unifamiliares, a mesma indefinição permeia, apenas para citar um exemplo, sua expansão e verticalização. Pode-se dizer o mesmo do nú-mero de famílias em coabitação etc. Esse caráter nebuloso se estende ainda,

5 Ver o artigo publicado na revista Piauí, em janeiro de 2007. Esse também é o tí-tulo do projeto de pesquisa encaminhado ao CNPq e aprovado em agosto de 2007, de autoria de vários pesquisadores, entre os quais Francisco de Oliveira e Cibele Rizek.

HEGEMONIA_miolo.indd 218HEGEMONIA_miolo.indd 218 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 212: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 219

e com mais razão, para as favelas do entorno: os chamados “Jardim Maravi-lha” e “Buraco do Gato”.

Desse ponto de vista, por mais controle das informações que o Estado tenha, é possível afirmar que esse mesmo Estado promoveu, na própria ori-gem do bairro, essa dimensão nebulosa que não permite um grau maior de conhecimento sobre o território e suas populações, já que tornou perma-nentes situações transitórias (como a de populações de risco “provisoria-mente” alojadas em Cidade Tiradentes desde o governo de Luíza Erundina) e ocupou parcelas de terrenos que deveriam estar destinados à preservação ambiental, impossibilitando a regularização final da propriedade. Além dis-so, parte significativa dessas irregularidades ou situações liminares entre as dimensões legais e ilegais acabou por se aprofundar com o fato de que gru-pos de moradores vinculados ao tráfico adquiriram controle sobre os con-juntos habitacionais ou partes deles6.

De qualquer modo, a título de contextualização, é necessário dizer que Cidade Tiradentes está situada no extremo leste da capital, a 35 quilôme-tros de seu marco zero. O distrito abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, com cerca de 40 mil unidades, a maioria construída na década de 1980 pela Companhia Metropolitana de Habita-ção de São Paulo (Cohab), pela Companhia de Desenvolvimento Habi-tacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) e por grandes emprei-teiras que se valeram do último grande financiamento do Banco Nacional da Habitação (BNH) antes de seu fechamento. Chama a atenção, portanto, o caráter híbrido de um território marcado pela produção estatal de habi-tação social em grandes conjuntos habitacionais, fartamente criticados na literatura sobre cidades e provisão de moradia7, e ao mesmo tempo, e talvez por esse mesmo caráter estatal, crivado desde o seu nascimento por um con-junto significativo de irregularidades8.

6 Ver a esse respeito Ana P. Lavos, Sociabilidades em conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado: o caso da Cohab Cidade Tiradentes, tese de mestrado em Arquitetura e Urbanismo, EESC/ USP, São Carlos, 2009.

7 Ver N. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria (São Paulo, Estação Liberdade, 1998).

8 Mônica V. de Souza afirma que 72% do território de Cidade Tiradentes se encontra em área de preservação ambiental. Ver Transformações recentes no extremo leste de São

HEGEMONIA_miolo.indd 219HEGEMONIA_miolo.indd 219 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 213: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

220 • Hegemonia às avessas

O bairro – e toda a porção periférica que ocupa na franja da cidade – foi pensado e produzido como um grande conjunto periférico monofuncional, do tipo “bairro dormitório”, para onde se faria o deslocamento compulsó-rio de populações atingidas por obras públicas. O poder público foi respon-sável por parte considerável dessas remoções. É importante observar que o distrito não possuía nenhuma infraestrutura necessária à reprodução da vi-da (transporte, saúde, educação, comércio de proximidade). Isso estimulou uma resposta vinculada a um padrão informal – quando não irregular ou simplesmente ilegal – de uma grande quantidade tanto de pequenos negó-cios (instalados em garagens improvisadas) quanto de mobilizações e movi-mentos que vão desde defesa de direitos até programas assistenciais, inclu-sive de geração de emprego e renda no âmbito local9. Além da vastidão dos conjuntos habitacionais que passaram a predominar na região, onde mo-ram as cerca de 160 mil pessoas que compõem a chamada “cidade formal”10, constituiu-se também uma “cidade informal”, formada por favelas e lotea-mentos clandestinos e irregulares, instalados em áreas privadas, que são ha-bitados por cerca de 60 mil pessoas. Cidade Tiradentes possui, portanto, uma população estimada em 220 mil habitantes categorizados por situa-ções diferentes de acesso a condições urbanas e de serviços, bem como por

Paulo: Itaim Paulista e Cidade Tiradentes (texto de qualificação de doutoramento apresentado ao programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, USP, São Carlos, 2007).

9 Conforme aponta texto de Isabel Georges e Cibele Rizek: “No final da década de 1970, o poder público iniciou o processo de aquisição de uma gleba de terras situa-da na região, que era conhecida como fazenda Santa Etelvina, então formada por eucaliptos e trechos da Mata Atlântica. Os conjuntos de prédios residenciais come-çaram a ser construídos, modificando a paisagem, e o local começou a ser habitado por enormes contingentes de famílias, que aguardavam na ‘fila’ da casa própria de companhias habitacionais”. Ver A periferia dos direitos, apresentado no 32o Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2008.

10 Parte da literatura sobre os processos de urbanização utiliza fortemente a distinção entre cidade formal e cidade informal, ou ainda entre cidade legal e cidade real. Es-sas separações e modos de classificação são bastante enraizadas e têm larga história tanto no pensamento político brasileiro (Brasil real/Brasil legal) quanto na reflexão sobre o urbano. Como essas classificações parecem estar fortemente em xeque nos contextos abordados nesta pesquisa e neste texto, as aspas são mais do que mero ins-trumento de relativização. Com elas queremos expressar nossa distância em relação a esses modos de compreensão que separam o legal do real, o formal do informal no contexto brasileiro contemporâneo.

HEGEMONIA_miolo.indd 220HEGEMONIA_miolo.indd 220 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 214: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 221

estratos diferenciados de renda11. As áreas ocupadas pela “cidade informal” são as lacunas deixadas pela construção dos prédios da Cohab, pelas ocupa-ções nas bordas dos conjuntos e também pela expansão da mancha urbana12.

A composição da população de moradores de Cidade Tiradentes está di-retamente ligada ao processo de constituição do bairro, feita ao sabor de ca-madas de intervenção estatal que, se por um lado “resolvia” a questão das in-tervenções do Estado ou do mercado imobiliário em outras áreas da cidade, por outro deslocava parcelas inteiras de população pobre para a franja leste, sem levar em conta suas necessidades mais elementares13. Assim, a população

11 Há 71 equipamentos na “cidade formal” e 3 na “informal”; a renda média do chefe de família varia de 500 a 1200 reais na “cidade formal” e de 200 a 500 reais na “in-formal”; o analfabetismo vai de 0 a 10% na “cidade formal” e de 10 a 20% na “infor-mal”. Dados disponíveis em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br>. Acesso em: 4 set. 2008.

12 Uma observação sobre as fronteiras da cidade de São Paulo se faz necessária. Essas fronteiras são limites do território administrativo do município e com frequência se combinam com a expansão dos outros municípios que compõem a Região Metro-politana. São territórios recentes, constituídos pela ocupação legal ou ilegal das fran-jas da cidade, de acordo com a disponibilidade de terras e seu desenho nos últimos vinte anos. Essa disponibilidade para além das chamadas “periferias consolidadas” acabou por gerar uma expansão da ocupação sobre as áreas de preservação ambien-tal. Esses territórios são alvos privilegiados dos programas sociais, assim como são facilmente identificáveis como territórios da pobreza urbana. Cabe notar ainda que o crescimento populacional desses territórios é significativamente maior do que o dos demais territórios e distritos da cidade. Essas fronteiras urbanas, identificadas como hiperperiferias, fronteiras ou zonas periurbanas, são também territórios on-de pululam associações e comunidades, programas públicos e privados, ONGs, em meio a um processo de crescimento que se contrapõe a um encolhimento popula-cional da chamada cidade consolidada. Alguns dados disponíveis em artigo de H. Torres mostram a dimensão desse fenômeno: entre 1990 e 2000 o conjunto da ci-dade de São Paulo cresceu 1,4% ao ano, mas esse índice corresponde a um cresci-mento negativo de -1,3% ao ano da chamada cidade consolidada e a um crescimen-to demográfico de 6,3% ao ano das fronteiras; nesse mesmo período, a chamada periferia consolidada apresentou uma taxa de crescimento próxima do conjunto (1,3% ao ano). O mesmo autor mostra que a população dessas franjas, exatamente porque cresce a um ritmo muito maior do que o restante da cidade, correspondia, em 2000, a 30% da população da cidade, contra cerca de 14% do total de habitan-tes em 1990. Ver H. Torres, “Fronteira urbana”. Disponível em: <http://www.cen-trodametropole.org.br/abep2004>. Acesso em: abr. 2006.

13 Desse ponto de vista, é importante mencionar o chamado Setor G, ocupado por parcelas de população deslocada pela operação urbana Águas Espraiadas na zona sul

HEGEMONIA_miolo.indd 221HEGEMONIA_miolo.indd 221 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 215: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

222 • Hegemonia às avessas

de Cidade Tiradentes chegou aos conjuntos basicamente em função desses deslocamentos, combinados ou não com a “realização do sonho da casa pró-pria”, ali onde essa realização parecia ser possível – nas bordas da cidade, em terrenos ocupados irregularmente pelo poder público, na ausência de outra opção de moradia. Também se pode afirmar que o bairro foi ocupado como lugar de passagem, e não de destino, por uma parcela dessa população que pretendia se mudar, assim que possível, para bairros mais consolidados.

Logo, a situação do distrito em relação aos processos de segregação so-cioespacial da metrópole paulistana é bastante clara desde sua origem. Dis-trito pobre, fronteira leste do município, Cidade Tiradentes recebeu popu-lação da cidade de São Paulo desde os anos 1980. Sua composição e perfil podem ser brevemente desenhados pelos índices que se seguem: a renda média em Cidade Tiradentes é de cerca de 1,8 salários mínimos (dados re-lativos a abril de 2006) e a renda familiar média é de 3 salários mínimos; parte considerável dos moradores (48,5%) nasceu na cidade de São Paulo e, entre os que não nasceram na capital paulista, o tempo de migração é con-sideravelmente alto (22,3 anos)14, o que acaba por confirmar um conjun-to de informações divulgadas pela grande imprensa sobre a origem e o modo de ocupação inicial do distrito, que chegou a ser conhecido como “caixo-te de exclusão”15.

da cidade de São Paulo ao longo dos anos 1990. Essa operação urbana e a remoção populacional daí decorrente foram objeto de investigação de Mariana Fix, em Par-ceiros da exclusão (São Paulo, Boitempo, 2001).

14 Ver Centro de Estudos da Metrópole, Associativismo e redes sociais: condições de acesso a políticas sociais para populações de baixa renda (relatório de traba-lho, mar. 2008).

15 “Os moradores mais antigos contam que foram ‘jogados’ no local no início dos anos 80, logo após a construção das primeiras habitações. A região fora ocupada por uma fazenda da época da escravidão, com senzala e pelourinho. Mais recentemente, par-te da antiga sede da propriedade escravocrata foi destruída para a construção de um terminal de ônibus. Os primeiros habitantes do conjunto contam que as moradias e as ruas eram absolutamente iguais. Ninguém conhecia os vizinhos. Pessoas volta-vam do trabalho e se perdiam, pois não tinham referências do caminho de casa. Não havia transporte, nem comércio, nem serviços. Gilson Negão, diretor da Sociedade Comunitária Fala Negão da zona leste, lembra, por exemplo, que uma população predominantemente negra do Bexiga foi levada para lá devido ao processo de deso-cupação dos cortiços: ‘Houve casos de pessoas que ficaram dias perdidas. O sujeito saía para trabalhar e depois não conseguia encontrar a própria casa’” (“Cidade Tira-dentes é memória negra”, Folha de S.Paulo, 20 set. 2003).

HEGEMONIA_miolo.indd 222HEGEMONIA_miolo.indd 222 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 216: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 223

Esse contexto ancora um primeiro momento de reconhecimento e rea-ção da população à situação em que se encontrava: falta de transportes pú-blicos, precariedade e/ou escassez de serviços públicos, aliados à crescente crise econômica e de emprego e ao aumento indiscriminado e sem medida uniforme das prestações pagas à Cohab. Desse quadro inicial nasceu a asso-ciação em questão, fortemente vinculada à questão da moradia e das pres-tações da “casa própria”, ganhando outros sentidos e significados a partir de seu desenvolvimento posterior. Foi também no âmbito dessa associação que um conjunto de elementos se produziu e se reproduziu como parte de uma dinâmica impossível de ser identificada apenas com a mão do Estado, ou resultante de sua iniciativa, ou apenas com as relações e di mesões” associa-tivas” da “sociedade civil”.

Trata-se de localizar, no percurso dessa associação/ONG/empresa/coo-perativa, as dimensões que mesclaram crescentemente legalidades e ilega-lidades, programas oficiais e modos de exploração do trabalho – incom-patíveis com quaisquer regulações formais, assistencialismo de programas oficiais de combate à pobreza e às precárias condições de vida – com a pro-dução de legitimidades ancoradas na proximidade e no favor, devidamente redefinidas. Trata-se, portanto, de identificar um objeto que traz em si to-das as aparentes ambiguidades presentes na fronteira tênue entre formali-dade e informalidade, trabalho social e exploração/funcionalização da po-breza, regularidade e irregularidade, legalidade e ilegalidade, que parecem participar do processo de constituição do distrito de Cidade Tiradentes, modulando-se conforme a situação de trabalho e a inserção produtiva re-queriam, mas também conforme se alternaram os canais e formas de legiti-mação ao longo das últimas décadas. Essa capacidade de modulação plásti-ca, esse caráter adaptável desses processos (vistos, por vezes, como virtuosos, já que se assentariam na autodefesa e na capacidade de organização da po-pulação) parece ser um dos elementos centrais das dimensões que ao mes-mo tempo escondem e revelam as novas relações entre produção e cidade, os novos territórios de produção que estão além e aquém dos territórios e porções fabris da cidade industrial clássica, com suas chaminés, seus sheds, seus edifícios, margeados de várias formas de habitação operária – da vila operária construída e mantida pela empresa (ou o que restou delas) às habi-tações econômicas, cortiços e pedaços inteiros constituídos pelo esforço do autoempreendimento da casa própria.

HEGEMONIA_miolo.indd 223HEGEMONIA_miolo.indd 223 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 217: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

224 • Hegemonia às avessas

No entanto, o caráter de bairro dormitório clássico também não pode ser tomado como elemento definidor desse mar de conjuntos habitacionais, quase todos bastante “degradados” em suas condições de durabilidade e ha-bitabilidade. Como se pôde observar ao longo da pesquisa de campo, parte significativa da força de trabalho, em especial a força de trabalho feminina empregada e/ou “cooperada” por falta de qualquer outra opção de emprego ou inserção produtiva, vinha de trajetórias de ocupação que passavam pelas “oficinas” de costura do bairro. Estas funcionavam (ou ainda funcionam) nas salas apertadas das casas ou dos apartamentos e reúnem mulheres em torno da atividade mal remunerada que abastece lojas e confecções (algu-mas presentes em shopping centers de alto padrão de consumo), pequenas confecções do Brás e do Pari (antigas zonas industriais da cidade) ou mes-mo as barracas da “feirinha da madrugada”. Assim, todas as mulheres entre-vistadas na associação, mulheres que permaneceram em seus postos, eram consideradas “boas costureiras”, já que traziam para a produção “cooperati-vada” habilidades – algumas como as da dona Cida Brasil – difíceis de des-crever com palavras. É curioso perceber que, assim como as mercadorias produzidas ocultam um segredo, as novas conformações urbanas nas bor-das da cidade também escondem seu caráter de território produtivo de uma nova espécie – a do trabalho a domicílio em “oficinas” de costura, re-produzidas a título de virtuosas iniciativas da “sociedade civil”, bem-suce-didas experiências de associativismo “civil”, no âmago dessa “nova insti-tucionalidade” que não é trabalho a domicílio nem fábrica, e encobre de modo talvez mais perverso, e certamente mais enigmático, suas formas brutais de exploração.

O percurso da associação: da luta pela moradiaà produção em série de mercadorias

A Associação dos Mutuários e Moradores do Conjunto Santo Estevão e Adjacências, antiga comissão de moradores do conjunto Santo Estevão, foi fundada em 1993. Um dos dois presidentes fundadores, antigo morador do conjunto, é hoje o presidente financeiro da associação16. O presidente é ad-

16 Em 2008, nenhum dos dois continuava morando no bairro. O gerente da coopera-tiva, um dos mais significativos dirigentes da associação, afirmou aos pesquisadores durante uma visita à associação/cooperativa que tinha se mudado do bairro por uma questão de segurança. “Ganhamos muito dinheiro com isso aqui, e aí, bom, tem

HEGEMONIA_miolo.indd 224HEGEMONIA_miolo.indd 224 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 218: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 225

vogado e ex-operador da Bolsa de Valores de São Paulo falido em 1992, quando veio para Cidade Tiradentes com a família. Sua esposa teve um ate-liê de costura ao lado da cooperativa, onde fabricava seu vestuário pessoal com as costureiras mais experientes. Depois que levou seis tiros na rua em 1996, o presidente não circula mais pelo local – ele tem duas balas alojadas no corpo até hoje. A associação fez um acordo com a polícia militar e o cor-po de bombeiros para a construção de um posto avançado da polícia e um canil (que deixou de existir em 2007)17.

A associação nasceu assim das reivindicações em torno da questão cen-tral de Cidade Tiradentes: a moradia e seu preço. A partir da conquista da tutela antecipada e de outras sentenças judiciais favoráveis, as atividades so-ciais e econômicas (como, por exemplo, a construção do complexo polies-portivo e do ambulatório médico, bem como a parceria com a polícia, de-finida pelos próprios atores como um trabalho de “pacificação” do local) desdobrou-se nas operações da cooperativa de costura, fundada em 2004. Os cooperados construíram um galpão e adquiriram maquinário, parte de-le doada por um grande banco privado e pelo Estado (no total, são mais de trinta máquinas de costura de todos os tipos, mesas de corte e bancos de trabalho para confecção de bolas). É preciso dizer ainda que a área ocu-pada pela associação é uma área da Cohab: uma encosta do bairro situada entre um importante eixo de circulação e a continuação do tecido urbano constituído pelas habitações unifamiliares de um dos últimos setores cons-truídos e por diversos conjuntos de apartamentos.

Por intervenção de Lúcia Alckmin, esposa do então governador do Es-tado de São Paulo, a cooperativa obteve seu primeiro contrato com a fábri-ca de brinquedos Estrela: produzia roupas de bonecas a 10 centavos a pe-ça. Com dificuldades para obter capital – como cerca de 17 mil reais por

muita inveja, muito problema, até ameaça de morte já recebi, então resolvi me mu-dar com a minha família para Itaquera.” Há muitos boatos em torno desse enrique-cimento. Alguns trabalhadores relatam exemplos de nepotismo e arbitrariedade e sinais explícitos de riqueza (como um chofer ou um carro da marca alemã Mercedes Benz). Evidentemente não é possível apurar a realidade ou os fundamentos desses boatos, mas é certo que há uma visível situação de arbitrariedade que perpassa as relações de trabalho, bem como sinais de aberta desigualdade de condições de vida entre o “gerente” e sua família e os trabalhadores do chão de fábrica.

17 Isabel Georges e Cibele Rizek, “Periferia dos direitos”, em Anais Anpocs, Caxambu, 2008.

HEGEMONIA_miolo.indd 225HEGEMONIA_miolo.indd 225 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 219: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

226 • Hegemonia às avessas

3 ou 4 meses de trabalho –, a cooperativa passou também a produzir brin-des para o McDonalds. Surgiu então a ideia do “brinde social” e os coo-perados tentaram também estabelecer parceria com algumas empresas privadas. Chegaram a contatar a Associação Brasileira das Indústrias Têxteis (Abit), mas a “parceria” não se efetivou por intervenção do então prefeito, José Serra, que alegava que a operação da associação seria irregular, pois es-tava localizada em terreno ocupado18.

A instituição da cooperativa de trabalho a partir da associação ganhou fôlego e visibilidade a partir de 2005. Foi nesse momento que, por meio de contatos entre os dirigentes da associação e um dos partidos da base do go-verno Lula, o PCdoB, ganhou espessura um conjunto de relações entre o que poderia ser identificado como um empreendimento de economia so-lidária e o Estado – crescentemente disponível para esse tipo de iniciativa. Esse “convênio” com o Ministério dos Esportes encerrou um período difí-cil, em que a permanência de algumas costureiras só foi possível graças ao trabalho autoagenciado para pequenas oficinas do Brás ou bancas de feiras e “feirinhas”. O esforço foi reconhecido pela direção da “cooperativa”, já que foi ele que garantiu a continuidade do negócio; como contrapartida, essas costureiras obtiveram postos de trabalho qualificados.

O primeiro convênio com o Ministério dos Esportes foi assinado por Agnelo Queiroz, do PCdoB, no primeiro governo Lula e continuou na ges-tão de Orlando Silva, também do PCdoB19. Surgiram então mais dois “pro-jetos sociais”: Pintando a Cidadania e Segundo Tempo. O “empreendi-mento” passou a fornecer material escolar ao Ministério dos Esportes, como bolas, bonés, sacolas e camisas, destinados a um projeto de atividade extra-escolar para crianças “carentes”. Esse projeto, conhecido como Segundo Tempo, acabou sendo implantado pela associação no entorno da coopera-tiva, já que havia ali condições para acolher cerca de 5 mil crianças (a infra-estrutura necessária foi construída em uma imensa área pública ocupada pela associação e não financiada diretamente pelo Ministério dos Esportes).

18 Ibidem.19 O jornal Folha de S.Paulo, em 2 de março de 2008, no artigo intitulado “Ministério

dá R$ 14 mi à ONGs do PCdoB”, relata que entre 2006 e 2007 o Ministério dos Esportes repassou para a Confederação Nacional das Associações de Moradores, di-rigida por integrantes do comitê central do PCdoB, e outras entidades 5,2 milhões de reais.

HEGEMONIA_miolo.indd 226HEGEMONIA_miolo.indd 226 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 220: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 227

A implantação desse programa permitiu que a associação recebesse cerca de 15 reais por criança ao dia para mantê-las em atividades extraescolares. A partir da combinação desses elementos, e da íntima parceria e colaboração com o governo federal, a “cooperativa” deslanchou de forma definitiva.

Configurou-se, assim, uma “parceria” com um “ cliente fixo”, cujo pe-dido é sempre solvável. Em 2007 e 2008 foram produzidas cerca de 250 mil camisetas ao ano, a um custo de 8 reais por camiseta, além de bonés e saco-las. Essa produção foi responsável, em 2007, por um rendimento de cerca de 4,5 milhões de reais, dos quais 30% teriam sido destinados ao paga-mento da força de trabalho. O restante, sempre conforme as informações da gerência, teria sido usado para a compra de material. Mesmo assim hou-ve descontinuidade no pagamento, já que a prestação de contas não foi regularizada. Essas dificuldades geraram quase um ano de paralisia. Nesse período, 600 trabalhadores entraram e saíram da cooperativa, entre eles moradores oriundos das parcelas mais vulneráveis da região: mulheres ne-gras, idosas, com deficiências, responsáveis pelo sustento de jovens e crian-ças, e presidiários (A associação/cooperativa/ONG/empresa utiliza o tra-balho realizado em prisões e completado em domicílio, em especial o de costura de bolas a partir de kits montados na cooperativa, pago por peça20. Ao contrário dos presidiários e dos trabalhadores em domicílio, as costu-reiras da cooperativa recebem por produção, com variações individuais sig-nificativas de 500 a 2 mil reais21. As jovens, sem qualificação, são recrutadas localmente e trabalham com arremate; as mais experientes, todas com expe-

20 Conforme relato de trabalhadores, o pagamento é extremamente variável, chegando a 2,50 reais por bola costurada. Para que o rendimento seja compatível com as ne-cessidades mais elementares, é preciso familiaridade com o trabalho. Assim, quando começa a costurar bolas a partir dos kits, um trabalhador pode levar até um período inteiro para concluir o trabalho.

21 Informações imprecisas sobre as oscilações salariais foram coletadas em entrevistas com algumas trabalhadoras. Essa oscilação pode ser atribuída tanto à fidelidade e à continuidade do trabalho nos tempos de “vacas magras” como à experiência e à pos-sibilidade de treinar trabalhadoras mais jovens e menos experientes. Desse ponto de vista, dona Cida Brasil é um caso emblemático, na medida em que utilizou toda sua experiência, inscrita em suas mãos e na possibilidade de “trabalhar o tecido e os en-caixes”, para montar os bonecos e protótipos da bandeira brasileira. Utilizando suas habilidades incorporadas por uma vida de trabalho, d. Cida passou também a trei-nar outras trabalhadoras, o que se incorporou à sua rotina de trabalho de modo “na-turalizado” e invisível.

HEGEMONIA_miolo.indd 227HEGEMONIA_miolo.indd 227 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 221: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

228 • Hegemonia às avessas

riência em fábrica e, em muitos casos, com mais de 45 anos, fazem a costu-ra em “linha de produção”. Nenhuma delas recebe quaisquer outros bene-fícios, e a contribuição para o INSS “fica a critério de cada uma”, conforme indicação da gerência22.)

Em 2008, a cooperativa trabalhou com cerca de noventa costureiras, se-lecionadas a partir de fevereiro (só quinze se mantiveram na cooperativa durante o ano, sem convênio, enquanto procuravam trabalho terceirizado no Brás)23. Houve uma inversão de prioridades quando a cooperativa obte-ve um contrato para a fabricação de 7 mil bandeiras nacionais – contrato que teve prioridade sobre os outros pedidos. Com isso, cada esportista bra-sileiro que participou dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, levou uma bandeira fabricada na Atrito e um panfleto da associação. Tudo isso ganhou destaque e publicidade quando, no fim de 2007, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, visitou a empresa/cooperativa/ONG/associação e lhe deu um status exemplar.

A partir desse conjunto de dimensões, digamos, bastante heterodo-xas, acabou sendo plausível que, sob péssimas condições de trabalho, em que os trabalhadores não têm acesso nem mesmo a papel higiênico, as idas ao banheiro são rigorosamente controladas e não há pagamento de horas extras nem qualquer garantia de continuidade de emprego e rendimento, um conjunto de pessoas possa imprimir em camisetas e outros itens o slogan “Brasil, um país de todos”... ou ainda se orgulhar de produzir a bandeira utilizada em jogos e práticas esportivas de escolas e de programas sociais.

Trabalhadores na bandeja:cenas de observação da miséria funcionalizada

“Ei, vocês por acaso são do PCdoB?”, sussurrou um trabalhador que fa-zia kits de costura para presos e trabalhadores em domicílio. Diante da ne-

22 Em nossas várias incursões a campo, constatamos que nenhum trabalhador costuma contribuir para o INSS, já que essa contribuição é descontada ou paga diretamente pelo trabalhador, o que diminui ainda mais os parcos “rendimentos” auferidos pelo trabalho.

23 Diante das oscilações da produção e da compra do material produzido pela coopera-tiva, mais uma vez as poucas trabalhadoras remanescentes trabalharam por iniciativa e procura própria, assim como parte das oficinas de costura do bairro, fornecendo peças de “modinha” para o Brás – tanto para as lojas como para a feirinha da madru-gada. Como afirmou o gerente, “elas mesmas se viraram para continuar o trabalho”.

HEGEMONIA_miolo.indd 228HEGEMONIA_miolo.indd 228 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 222: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 229

gativa firme, o trabalhador pediu para conversar com a equipe de pesquisa, longe dali. Marcamos a entrevista e o trabalhador compareceu ao encontro marcado, pedindo ajuda para denunciar a situação criada pela cooperativa/empresa/ONG/associação. Entre os muitos elementos dessa conversa, sou-bemos, e confirmamos depois, que os trabalhadores da Atrito tinham por obrigação incontornável comparecer aos atos e manifestações convocados pelo PCdoB. Mais do que obrigação, a punição por não comparecer era a metade do rendimento mensal do trabalhador. Além disso, situações de maus tratos, assédio moral, nepotismo, ganhos ilícitos, acordos espúrios e todo tipo de irregularidades foram denunciados por esse trabalhador que, enquanto processava o empregador anterior, fazia um “bico” na Atrito.

Afinal, depois de um processo de “acumulação primitiva”, era o vínculo com o PCdoB e, por seu intermédio, com o governo federal que garantia o “empreendimento”. Outros vínculos se abriam em um vasto leque que se iniciara com a primeira-dama do Estado de São Paulo, Lúcia Alckmin, e se estendera às grandes empresas (auxiliadas pela associação no recrutamen-to local de mão de obra), à delegacia de polícia (cujas relações andavam um tanto estremecidas) e ao tráfico (“afinal, traficante também quer o melhor para os seus filhos”, como afirmava o gerente, que se orgulhava de fazer par-te da pacificação de Cidade Tiradentes). O sucesso dos empreendimentos permitiu que parcelas inteiras de trabalhadores e, em especial, de trabalha-doras sem emprego e sem renda vissem na associação/cooperativa a possibi-lidade de algum rendimento (“é uma bênção para mim”), sobretudo diante das gigantescas dificuldades de transporte do bairro.

Interessa explorar algumas dimensões desse processo. O primeiro vem do alto grau de reconhecimento que a Atrito adquiriu por sua atuação nos limites entre o trabalho social, a autocaracterização como ONG e o caráter empresarial com que realiza o processo de acumulação vinculado a um uni-verso de “mercadorias políticas”, segundo o argumento e a noção utilizados por Michel Misse24.

A ideia central da argumentação de Misse diz que a “eficiência” e a cir-culação das mercadorias políticas dependem da existência de um mercado decorrente de uma “demanda social”, isto é, de uma adesão comum (ao me-nos ambígua ou parcial) da população que resulta do fato do compartilhar

24 Ver Michel Misse, “As ligações perigosas: mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio”, Contemporaneidade e Educação, v. 1, n. 2, 1997, p. 93-116.

HEGEMONIA_miolo.indd 229HEGEMONIA_miolo.indd 229 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 223: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

230 • Hegemonia às avessas

de uma mesma representação social25. Nesse sentido, a apresentação no si-te da associação das formas como ela atua “para a comunidade” é um indi-cador muito significativo da contribuição ativa para a construção constante desse consentimento e da criação de uma demanda por “projetos sociais” (mais do que ou em vez de uma demanda por direitos, cuja impossibilidade e/ou inexistência foi naturalizada), isto é, de pacificação social no sentido de evitar ou silenciar outras formas de expressão26. O caráter dos empreen-dimentos, por um lado, e das próprias “políticas sociais”, por outro, acabam por legitimar, não sem algum grau de conflito, os processos que permitem e conformam esse conjunto de liminaridades e ambiguidades, tanto no âm-bito do governo Lula quanto no âmbito local, seu deslizar para a ilegalidade e sua adesão à prática do “menor custo”.

É fácil constatar, nos textos abaixo, a fabricação e o caráter quase in-questionável dessa mediação moral como alternativa do menos pior. Os programas e as linhas de atuação são apresentados a seguir, tal como cons-tam do site da associação.

Segundo TempoÉ um programa do Ministério do Esporte em parceria com Atrito que tem co-mo principal objetivo fazer a inclusão social de crianças e jovens em situação de risco, por meio de atividades esportivas, recreativas, reforço escolar e alimentar, atendimento pedagógico, médico e odontológico. [...]

Projeto Guri-Polo AtritoInaugurado no bairro Cidade Tiradentes em agosto de 2005, em parceria com a Associação Projeto Guri e a Secretaria de Estado da Cultura, o Projeto Gu-ri-Polo Atrito desenvolve, por meio da música, habilidade e potencialidade de crianças e adolescentes de áreas culturalmente carentes, reconhecendo essa arte como agente de fortalecimento na construção da cidadania. [...]

25 Em seu artigo (“As ligações perigosas”, cit.), o autor dá exemplos que mostram essa ambiguidade, assim como a aderência paradoxal da sociedade a valores como exi-gência para seu funcionamento, o que permitiria, dessa forma, a permeabilidade constante entre o legal e o ilegal. Afirma: “Tudo se passa como se não houvesse in-congruência [entre a propina e a corrupção]”.

26 Houve algumas tentativas de processar a associação. Essas tentativas tiveram um ca-ráter rigorosamente individual e, apesar de ter obtido ganho de causa em primeira instância, a trabalhadora que iniciou o processo não havia recebido nenhuma inde-nização até fim de 2008 e início de 2009.

HEGEMONIA_miolo.indd 230HEGEMONIA_miolo.indd 230 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 224: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 231

Pintando a CidadaniaO programa Pintando a Cidadania é um programa do Ministério do Esporte em parceria com a Atrito que objetiva gerar trabalho e renda local. Foi implan-tado no bairro Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, em janeiro de 2005. Desde que o programa foi implantado na Atrito, além de promover a in-clusão social por meio da geração de renda e emprego, contribui também para o desenvolvimento socioeconômico de um bairro considerado o mais carente e populoso da cidade de São Paulo, hoje com cerca de 400 mil habitantes. [...]Cidade Tiradentes é um bairro que abriga cerca de 400 mil pessoas [sic]. Loca-lizado no extremo leste da capital paulista, o bairro não dispõe de recursos bá-sicos ao desenvolvimento da vida nos dias de hoje. Sua infraestrutura se resume a escolas, uma delegacia, duas companhias da Polícia Militar, doze unidades de saúde, algumas creches, dois mercados de médio porte e um terminal de ôni-bus. Cidade Tiradentes é um bairro que não conta com bancos, empresas de médio e grande porte, hipermercados, emprego e acesso a cultura e lazer. Com a chegada do programa Pintando a Cidadania foi possível suprir uma das maio-res carências do bairro, o emprego. Possibilitou ofertar emprego a pessoas de poucas oportunidades no mercado de trabalho, como senhoras com idade aci-ma de 40 anos, jovens de 18 a 24 anos, sem qualificação profissional, ex-inter-nos do sistema penal e pessoas portadoras de necessidades especiais.27

Escolinha de esportes olímpicosCriadas em 2006, as escolinhas têm como principal objetivo formar jovens atle-tas olímpicos. As crianças e adolescentes que participam do programa Segundo Tempo na Atrito e possuem mais aptidão para determinada modalidade espor-tiva são encaminhadas a integrar a escolinha de esportes olímpicos [...].

Nesse sentido, diante do processo de “descentralização” das políticas so-ciais, vinculado a um processo de modulação e de transformação das rela-

27 A utilização do trabalho de presidiários permite apontar o vínculo entre o sistema prisional e o trabalho em muitas direções. Por um lado, o trabalho de costura das bolas não é exercido exclusivamente por presidiários, pois parte dele é realizado em domicílio no próprio bairro. Percebeu-se ainda, ao longo das entrevistas realizadas, uma permanente desqualificação do trabalho dos presos, considerado de baixa qua-lidade. A utilização desse tipo de trabalho remete às casas de trabalho (workhouses) mencionadas por Foucault em várias ocasiões, especialmente em O poder psiquiátri-co (São Paulo, Martins Fontes, 2006). Além dessa referência, a situação de explora-ção da pobreza e a situação de liminaridade entre trabalho social, empresariamento e autoempresariamento remete à generalização da forma empresa a favor e contra o mercado, também discutida por Foucault em La naissance de la biopolitique (Paris, Gallimard/ Seuil, 2004).

HEGEMONIA_miolo.indd 231HEGEMONIA_miolo.indd 231 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 225: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

232 • Hegemonia às avessas

ções entre Estado e sociedade civil em torno do combate à pobreza e de novas mediações passíveis de serem aproximadas da noção de “mercadorias políticas”28, esses novos “empreendedores morais”29 altamente profissionali-zados reivindicam seu lugar, cumprindo até mesmo funções de Estado, co-mo deixa claro esta afirmação da gerência da associação: “Aqui... é por isso que a gente fala que nós somos o Poder Público dentro da Cidade Tiraden-tes. Por quê? O subprefeito aqui, ele diz que nós queremos ser um poder paralelo. Não, poder paralelo é você, porque você entrou agora”.

Além dessa declaração, que faz coincidir a associação/empresa/ONG/cooperativa com o Estado, outra confissão, feita também aos sussurros, surpreendeu os pesquisadores: “Pois é... Ganhamos muito dinheiro com isso aqui [o gerente aponta para o galpão de trabalho onde funciona a co-operativa] e tem gente que não se conforma. Então, [recebemos] várias ameaças de morte e tivemos de mudar para outro bairro com as nossas famílias...”30.

28 Mais uma citação de Misse poderia esclarecer as afirmações contidas nesse parágra-fo: “O que distingue, em geral, uma atividade econômica ‘formal’ de outra ‘infor-mal’ é sua maior ou menor subordinação à regulamentação estatal. Não se pense, no entanto, que essas atividades são inteiramente separadas, constituindo ‘setores’ bem demarcados [...]. Diferentes formas de ‘flexibilização’ informais participam da cons-tituição de empresas econômicas ‘formais’ e a informalidade ilegal de certas ativida-des econômicas pode dirigir-se, ao mesmo tempo, para ‘fachadas’ formais ou mesmo mobilizar recursos em empresas legais. Múltiplas e complexas redes sociais se desen-volvem a partir dessas diferentes estratégias aquisitivas, legais e ilegais, relacionando ‘mundos’ que o imaginário moral prefere considerar inteiramente separados entre si” (“As ligações perigosas”, cit., p. 113).

29 Conforme sugestão de Isabel Georges, a partir de H. S. Becker, Outsiders: studies in the sociology of deviance (Nova York/ Glencoe, The Free Press, 1963). Em sua análise sobre as práticas vinculadas ao fumo de maconha, o autor desenvolve a perspectiva de análise do trabalho de lobbying. No texto de Isabel Georges e Cibele Rizek, “A periferia dos direitos”, propõe-se o uso desse conceito no sentido de busca de legiti-midade de atividades formalmente ilegais.

30 Muitos rumores a respeito dessa mudança foram mencionados em entrevistas fora da cooperativa. Um trabalhador afirmou que o gerente morava em uma mansão com piscina em Itaquera e possuía um BMW, com chofer, para levar a esposa e ou-tros parentes à cooperativa todos os dias. Outros mencionaram imóveis de lazer, na praia. Evidentemente não coube constatar a veracidade ou não dessas afirmações. É importante ressaltar, no entanto, que essas falas assimilam o dirigente (mais ausente) e o gerente (mais presente no âmbito da produção) da cooperativa ao lugar e ao sta-tus de patrões.

HEGEMONIA_miolo.indd 232HEGEMONIA_miolo.indd 232 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 226: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Verde, amarelo, azul e branco • 233

Outro elemento significativo diz respeito à fabricação em grande escala das camisetas nas quais se imprime a frase e o logo “Brasil, um país de todos”. Observando o processo de infestação (a montagem das camadas de malha que deverá seguir para o corte), feita a mão por dois trabalhadores (um dos quais, conforme denúncia de outro trabalhador, cunhado do gerente), per-guntamos se não havia uma máquina ou qualquer outro instrumento que tornasse o trabalho menos monótono e pesado. O gerente, um tanto indigna-do, respondeu: “Mas nosso objetivo aqui é dar e não economizar trabalho!”.

Ainda uma última observação, registrada apenas nos cadernos de cam-po, pode ser reproduzida aqui para explicitar algo de uma legitimidade tam-bém ambígua. Observando uma linha de montagem da bandeira brasileira, iniciei uma conversa informal, longe dos gravadores, com algumas costu-reiras. Elas me perguntaram se eu conhecia alguma cooperativa ou centro de triagem de resíduos sólidos nas redondezas. “Porque eu acho que deve ser melhor, né? Talvez seja melhor do ponto de vista do dinheiro e do tra-balho, porque aqui, como você vê, é uma benção, mas é duro....”

Da produção da bandeira brasileira à catação e triagem de lixo – esse parece ser o espectro de possibilidades resultantes dessa perversa combina-ção entre situação urbana, crise do emprego, dificuldades e precarizações de toda ordem, entre as dimensões formais e informais de uma inserção pro-dutiva e urbana marcada pela ambiguidade de um consentimento e de uma coerção produzidas por novas e estranhas combinações, resultantes ainda de processos inéditos de fetichização, hegemonização às avessas, mediações morais e naturalização de um mundo de necessidades e privações distante da possibilidade de uma reinvenção sempre provisória da possibilidade da igualdade e, por seu intermédio, da possibilidade da política.

Dona Cida Brasil, mas também cada uma das costureiras desempre-gadas, presidiários, trabalhadores em domicílio, deficientes e moradores de antigos bairros dormitórios nas franjas das cidades brasileiras constituem uma força de trabalho que, na bandeja de um processo nada claro de acu-mulação do capital, é reinserido produtivamente, reaproveitado, sem len-ço nem documento, na contramão de quaisquer direitos ou benefícios, na contramão da possibilidade de sua constituição como sujeitos de direitos, de mãos atadas pelas cordas das mediações morais dos empreendimentos sociais, pelos vínculos embaralhados do combate e da assimilação da pobre-za, nas tessituras das novas formas de produção entrelaçadas aos territórios híbridos das bordas da cidade.

HEGEMONIA_miolo.indd 233HEGEMONIA_miolo.indd 233 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 227: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

4

AMÉRICA LATINA E ÁFRICA DO SUL NA ENCRUZILHADA

HEGEMONIA_miolo.indd 235HEGEMONIA_miolo.indd 235 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 228: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A TEORIA DA CONJUNTURAE A CRISE CONTEMPORÂNEA

Carlos Eduardo Martins

Premissas teóricas e metodológicas paraa análise das conjunturas

A crise da economia mundial iniciada em 2008 tem causado grande impacto nos meios de comunicação e no pensamento social. Mais que uma simples recessão, apresenta de fato elementos de depressão ao produzir um intervalo de crescimento negativo, o que leva muitos a caracterizá-la como uma reedição da grande crise de 1929. Terá procedência essa comparação? Como podemos interpretá-la? Quais são seus determinantes e seu alcan-ce? Que mudanças político-ideológicas e conjunturais pode suscitar? Essas questões são de enorme pertinência não apenas para as ciências sociais, mas também para a ação política.

Vivemos um período de grande aceleração do tempo histórico provoca-da pelas amplas transformações materiais e sociais trazidas pela globaliza-ção. Essa aceleração produz choques, contradições e entrelaçamentos de tendências e contratendências. Distinguir a articulação específica das forças sociais que se combinam e se confrontam nas realidades que se apresentam é de importância central para identificarmos sua perenidade e nexo históri-co. É alto o risco de se tomar fenômenos transitórios e aparentes por pro-fundos e estruturais, em função do dinamismo de nosso tempo, o que exige do pesquisador uma extrema cautela. Para lidar com essa temporalidade, em que o fluxo histórico se intensifica, estabelecendo vínculos crescentes simultaneamente entre o futuro e o passado, a investigação social deve bus-car os instrumentos conceituais de longa duração, submetendo-os sem ces-sar ao crivo dos processos empíricos. A construção da ciência na contem-poraneidade exige cada vez mais a articulação crescente entre o abstrato e

HEGEMONIA_miolo.indd 237HEGEMONIA_miolo.indd 237 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 229: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

238 • Hegemonia às avessas

concreto, entre retrospectiva e prospectiva para teorizar a história ao mesmo tempo como fluxo e estrutura.

Essa perspectiva tem sido particularmente desenvolvida nas ciências so-ciais pelo amplo movimento que busca aproximar as correntes de pensa-mento braudeliano e marxista e encontra sua expressão mais avançada no desenvolvimento de uma teoria do sistema mundial. Para isso, concorrem as análises do sistema-mundo, desenvolvidas em especial por Immanuel Wal-lerstein e Giovanni Arrighi; as contribuições da teoria marxista da depen-dência, elaboradas sobretudo por Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Mari-ni, pensadas pelos autores como a etapa inicial da construção de uma teoria do sistema mundial; as teorias da revolução científico-técnica, fortemente inspiradas nos Grundrisse e em O capital; e as teorias dos ciclos longos.

A obra de Fernand Braudel constitui uma referência indispensável pa-ra a construção de conceitos de longa duração. Ele aponta a existência de múltiplas dimensões do tempo, diferenciadas, simultâneas e articuladas, que condicionam umas às outras e configuram um movimento dialético de deslocamento: são as estruturas, as conjunturas e o cotidiano. As estruturas configurariam as prisões da longa duração que se moveriam lentamente, desgastando-se e condicionando as possibilidades do existir. As conjunturas seriam inflexões cíclicas que afetariam as primeiras, incorporando-se a seu movimento de desenvolvimento e desgaste. E o cotidiano, inscrito nos mar-cos gerais estabelecidos por estruturas e conjunturas, representaria a com-posição anárquica e altamente imprevisível do dia a dia que interage com as dimensões anteriores.

Esse enfoque foi amplamente desenvolvido por Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi no Fernand Braudel Center. Immanuel Wallerstein desig-nou pelo conceito de moderno sistema mundial a estrutura do que chama de capitalismo histórico1. O moderno sistema mundial representa a combi-nação entre a economia-mundo capitalista, seus fluxos de capitais e mer-cadorias, e a superestrutura que lhe permite o controle do poder político:

1 Immanuel Wallerstein, El moderno sistema mundial: la agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI (Madri, Siglo XXI, 1979); El moderno sistema mundial: el mercantilismo y la consolidación de la economía-mundo europea 1600-1750 (Madri, Siglo XXI, 1984); El moderno sistema mundial: la segun-da era de gran expansión de la economía-mundo capitalista, 1730-1850 (Madri, Siglo XXI, 1998).

HEGEMONIA_miolo.indd 238HEGEMONIA_miolo.indd 238 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 230: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 239

o sistema interestatal. Para Wallerstein, o capitalismo constitui a gênese de sua estrutura de poder desde o século XVI, com a construção de uma eco-nomia euro-americana. Através dela, libertou as trocas de longa distância dos custos políticos exigidos pelos impérios, ampliou o mercado mundial para incluir a oferta de suprimentos básicos à Europa Ocidental e criou uma estrutura econômica monopólica, voltada para a obtenção do super-lucro. Essa estrutura desenvolveu o sistema interestatal, a partir do século XVII, como o eixo de uma superestrutura jurídico-política para o protago-nismo do capital e sua mundialização. Ao limitar a territorialidade do poder coercitivo, o sistema interestatal estabeleceu uma assimetria espacial entre o capital e os Estados, em favor do primeiro. Este se aproveita da competição estatal pelo capital circulante para impor seus interesses, invertendo a rela-ção entre os poderes econômicos e políticos, tal como era configurada nos grandes impérios da Antiguidade e, em menor medida, na Idade Média.

Giovanni Arrighi analisou com precisão a forma de coordenação do mo-derno sistema mundial2. Aponta que esta se realiza por hegemonias que li-mitam a anarquia e estabelecem padrões monetários, jurídicos e ideológicos organizadores do sistema interestatal. As hegemonias combinam consenso e coerção, utilizando a força como recurso em última instância. Trata-se de um padrão que se desenvolve não apenas no plano interestatal, mas tam-bém no intraestatal, uma vez que a reivindicação da legitimidade no plano internacional por um Estado vincula-se à capacidade de garanti-la interna-mente. Para reivindicar com êxito a hegemonia, um Estado deve possuir um grau bastante assimétrico de poder econômico (produtivo, comercial e financeiro) sobre os demais. Assimetria, segundo Wallerstein, que lhe per-mita vender seus produtos no mercado competidor a preços mais baixos que os produtores locais. Nem sempre é necessária a liderança militar, em-bora seja frequente, mas é preciso ao menos um equilíbrio geopolítico de forças que impeça o Estado mais poderoso de exercê-la contra a liderança econômica, como no caso das Províncias Unidas, derrotada militarmente pela Grã-Bretanha durante sua hegemonia, e da cidade de Gênova, prote-gida pela Espanha. Cada hegemonia amplia o liberalismo global, isto é, o grau de circulação de capitais e mercadorias na economia-mundo, o espaço

2 Giovanni Arrighi, O longo século XX (São Paulo/Rio de Janeiro, Edunesp/Contra-ponto, 1996), Caos e governabilidade no Moderno Sistema Mundial (Rio de Janeiro, Contraponto, 1999). Adam Smith em Pequim (São Paulo, Boitempo, 2008).

HEGEMONIA_miolo.indd 239HEGEMONIA_miolo.indd 239 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 231: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

240 • Hegemonia às avessas

territorial desta e os mecanismos de consentimento em que se baseia (repre-sentação política e sua amplitude social). Todavia, as formas ideológicas de que se utilizará para isso são complexas e diferem bastante entre si.

As hegemonias configuram os ciclos políticos-institucionais do capita-lismo histórico. Oscilam pendularmente entre as formas cosmopolitas-im-perialistas e as corporativas-nacionalistas. Ambas aumentam a densidade do moderno sistema mundial, isto é, os volumes absoluto e relativo das trocas e dos investimentos internacionais, desenvolvendo as tendências seculares do capitalismo histórico. As hegemonias cosmopolitas-imperialistas intro-duzem inovações político-institucionais que ampliam radicalmente os li-mites espaciais da economia-mundo, e as corporativas-nacionalistas im-plementam profundas modificações organizacionais, mas conservam em grande parte os limites espaciais anteriores. Os ciclos se dividem em fases de expansão material e financeira. Estas culminam em períodos de caos sis-têmico que correspondem a guerras mundiais de aproximadamente trinta anos, proporcionais em extensão à dimensão da economia-mundo. As guer-ras destroem anarquicamente os excessos de competição e de capacidade internacionais e, com eles, parte da densidade do sistema mundial, para re-lançá-lo em outra etapa de desenvolvimento.

Cada oscilação do pêndulo corresponde à combinação entre duas pers-pectivas temporais simultâneas: a do retorno cíclico e da irreversibilidade do tempo, abrindo uma perspectiva de interpretação da realidade de extra-ordinária fecundidade. À hegemonia da Espanha-Gênova, seguiu-se a das Províncias Unidas, depois a britânica e por fim a norte-americana. A hege-monia como sistema de poder não exclui o imperialismo, mas articula-se com ele, subordinando-o a sua direção.

O imperialismo é um sistema de poder que exige o controle político e territorial de um Estado ou formação social por outro. É extremamente útil para a expansão dos limites territoriais da economia-mundo e a anexação de regiões externas a ela. A vinculação da lógica capitalista às políticas territo-rialistas da nobreza de origem medieval foi decisiva para a conquista colo-nial das Américas, cujo custo não podia ser calculado em termos estrita-mente capitalistas. A anexação da Ásia e da África pela Europa Ocidental pôde basear-se muito mais no cálculo que a conquista das Américas e, por-tanto, no protagonismo político das forças capitalistas e liberais, em função das disparidades militares impulsionadas pela revolução industrial europeia,

HEGEMONIA_miolo.indd 240HEGEMONIA_miolo.indd 240 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 232: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 241

ainda que esse elemento por si só seja insuficiente para explicá-la3. Estabe-lecida a integração econômica a uma nova divisão internacional do tra-balho, o imperialismo torna-se desnecessário do ponto de vista da lógica global do sistema, uma vez que a dominação passa a repousar nas classes dominantes nativas, integradas ao protagonismo do capital internacional, como assinalaram as teorias da dependência. Entretanto, esse ajuste não se fez de maneira fácil, dada a própria dimensão anárquica e competitiva do capitalismo histórico. Projetos imperialistas dirigidos ao centro do siste-ma contra o sistema interestatal foram elaborados durante as bifurcações de poder, inerentes aos períodos de caos sistêmico, mas foram amplamente derrotados: a Espanha imperial, a França napoleônica e a Alemanha nazista buscavam por meio da política (monopólio da violência) subordinar a eco-nomia e prorrogar ou estabelecer sua dominação sobre o moderno siste-ma mundial.

O conceito de capitalismo histórico utilizado pelos autores é de gran-de importância. Por ele, analisam os processos de acumulação de capital tal como se desenvolveram historicamente, possibilitando a visualização dos primórdios do sistema de dominação capitalista e suas tendências de longa duração. Identificam as tendências seculares dessa estrutura: a acumulação ilimitada e a tendência decrescente da taxa de lucro, como polaridades an-tagônicas e indissolúveis e fundamentos de seus ciclos. Arranjos organi-zacionais historicamente provisórios garantem o predomínio da primei-ra, mas, ao se esgotar, dão lugar à primazia da segunda. Novos padrões de organização são estabelecidos, fundando-se em ultima instância nas possi-bilidades estruturais de desenvolvimento da acumulação ilimitada, mas se as impulsionam, desgastam-nas. Wallerstein e Arrighi partem ainda do con-ceito de capitalismo histórico para assinalar que a acumulação de capital vincula-se ao monopólio, sendo este produzido pela restrição da competi-ção mediante a articulação de atores privados ao Estado. Apontam ainda que a criação de um sistema-mundo capitalista precedeu o desenvolvimen-to da chamada Revolução Industrial, iniciando-se com o controle econômico e orçamentário dos Estados europeus pelos capitais comercial e usurário.

A perspectiva neobraudeliana desenvolvida por Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi representa um aporte extremamente importante para a

3 Deve-se agregar a decadência do Império Mogol. Ver Giovanni Arrighi, O longo sé-culo XX, cit., 1996.

HEGEMONIA_miolo.indd 241HEGEMONIA_miolo.indd 241 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 233: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

242 • Hegemonia às avessas

renovação do pensamento marxista. Todavia, apresenta também algumas li-mitações; a principal é o abandono de uma teoria da mais-valia e do concei-to de modo de produção. Entretanto, esses limites podem ser ultrapassados, uma vez que não são necessários e podem ser ressignificados. O conceito de capitalismo histórico articula-se bastante bem com a concepção de Marx de que, na transição entre modos de produção, a política joga um papel decisivo. O modo de produção capitalista iniciou-se pelo controle político da superestrutura, da mesma forma que a ditadura do proletariado é o ele-mento-chave de organização da transição para o socialismo. Foi isso que permitiu no capitalismo o posterior desenvolvimento da base econômica do modo de produção, suas forças produtivas e relações de produção, e poderá fazê-lo, segundo Marx, num hipotético e futuro modo de produ-ção comunista, caso o proletariado consiga impor sua hegemonia política para afirmar a transição socialista. O capitalismo criou um sistema-mundo de poder em que se articulou por trezentos anos com a liderança política da nobreza, controlando as políticas de Estado para impulsionar a busca de superlucro, mediante a pilhagem, a colonização e o tráfico de escravos co-mo suas principais fontes de acumulação ilimitada. Entretanto, apenas pô-de transformar-se de sistema-mundo em sistema mundial, com o pleno desenvolvimento de suas tendências seculares, mediante o estabelecimen-to de sua base específica de forças produtivas e relações de trabalho: a revo-lução industrial e o assalariamento, que impulsionaram o capital produti-vo como eixo de articulação dos capitais comercial e usurário e, com ele, a instituição e a expansão da taxa de mais-valia.

Se as versões braudeliana e neobraudeliana de capitalismo histórico apon-tam corretamente as identidades entre os distintos processos históricos de acumulação capitalista para definir, na acumulação ilimitada, o significado geral do conceito de capitalismo, falham, entretanto, na análise das condi-ções materiais que a impulsionam e a sustentam secularmente, tornando-se insuficientes para abordar o processo histórico de construção, desenvolvi-mento, desgaste e obsolescência dessa estrutura. Para isso, deveriam incluir o conceito de modo de produção capitalista, cujo eixo central de forças produtivas, segundo Marx, é a grande indústria.

A Revolução Industrial afirmou-se como o paradigma de desenvolvi-mento da economia mundial entre 1780-1970. Estabeleceu o princípio mecânico, desvalorizou a força de trabalho, incrementou a taxa de mais-va-lia e reduziu drasticamente a população empregada no campo. Durante

HEGEMONIA_miolo.indd 242HEGEMONIA_miolo.indd 242 9/8/10 4:27:40 PM9/8/10 4:27:40 PM

Page 234: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 243

esse período, as contradições, para a taxa de lucro, entre o aumento da taxa de mais-valia e o decréscimo relativo da massa de valor representada pela força de trabalho, principalmente em função do aumento da taxa de desem-prego, foram solucionadas de modo favorável com as ondas longas de ele-vação da produtividade, a apropriação dos excedentes gerados nas periferias e a estabilidade político-institucional do sistema.

A partir de 1970, com a convergência tecnológica microeletrônica, ini-ciou-se a mundialização da revolução científico-técnica. Esta estabelece o princípio automático no lugar do mecânico e substitui progressivamente o trabalho manual pelo intelectual. Se a Revolução Industrial reduziu dras-ticamente a proporção do trabalho agrícola, concentrando-o no setor se-cundário e de serviços, a revolução científico-técnica tende a fazer o mes-mo com o trabalho manual, restringindo-o a uma proporção residual. Marx analisou esse processo do ponto de vista lógico-histórico em O capital e mais profundamente nos Grundrisse. Para o autor, a ciência seria uma força produtiva revolucionária, de natureza pós-capitalista, que apenas de forma parcial pode ser submetida ao capital. Ele assinala que o desenvolvimento da ciência tende a zerar o valor, uma vez que este depende não do trabalho que se incorpora à produção, mas daquele que se despende no processo de produção. A ciência ultrapassa o trabalho coletivo e estabelece o trabalho universal que se acumula infinitamente através das gerações, configurando um estoque de conhecimento gratuito que intervém de modo crescente na produção, garantindo as necessidades básicas da humanidade. A automação tende a eliminar o trabalho da produção direta e reestrutura as qualificações da força de trabalho, ameaçando o princípio da mais-valia relativa. Nesta, a produtividade vinculava-se à desvalorização da força de trabalho, substi-tuindo o saber operário pela máquina e ampliando a taxa de mais-valia. Ao suprimir largamente o trabalho manual, a automação redefine as demandas sociais de trabalho em direção ao trabalho intelectual, vinculando a pro-dutividade ao aumento do valor da força de trabalho, uma vez que passa a depender do aumento do tempo de formação do trabalhador. Essa contra-dição é resolvida pelo capital através da superexploração do trabalho, isto é, com o aumento do desemprego estrutural, reduzem-se os preços da força de trabalho por debaixo de seu valor, sustentando a taxa de mais-valia.

A automação apresenta ainda outra importante contradição para a taxa de mais-valia. Ao reduzir a massa de valor representada pela força de traba-lho a uma parcela muito diminuta da jornada de trabalho, restringem-se

HEGEMONIA_miolo.indd 243HEGEMONIA_miolo.indd 243 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 235: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

244 • Hegemonia às avessas

cada vez mais os impactos dos aumentos da produtividade sobre a elevação da taxa de mais-valia. Limita-se também a conversão de mais-valia extraor-dinária em lucro extraordinário, objetivo principal da inovação, segundo Marx. A mais-valia extraordinária amplia a massa de mercadorias sem re-duzir o valor social de cada unidade, por isso, como menciona Ruy Mauro Marini, dirige-se principalmente ao consumo suntuário e gera sua deman-da a partir da economia relativa de gastos com a força de trabalho. Ao redu-zir-se de maneira significativa a economia de valor com a força de trabalho que se obtém com a inovação tecnológica, a mais-valia extraordinária en-contra dificuldades de realização, pois a massa de mercadorias acrescenta-da pelo desenvolvimento da produtividade não encontra demanda equi-valente na transferência de valor do trabalho para o capital por efeito da introdução do progresso técnico.

A revolução científico-técnica recebeu amplo tratamento teórico-meto-dológico na obra de Radovan Richta, difundindo-se pelo pensamento mar-xista e ganhando em Theotonio dos Santos seu principal intérprete. O de-senvolvimento da revolução científico-técnica debilita estruturalmente o capitalismo histórico e faz girar o pêndulo das tendências seculares do mo-derno sistema mundial em favor da queda da taxa de lucro. Entretanto, esse movimento é de longa duração e articula-se com outros que podem limitá-lo parcialmente e conter provisoriamente suas dimensões disrupti-vas. Esses movimentos são os ciclos. Além dos ciclos sistêmicos, de dimen-são político-institucional, possuem grande relevância para a análise da con-juntura os ciclos de Kondratiev.

Os ciclos de Kondratiev são ondas de cinquenta a sessenta anos de du-ração, divididas em fases A (de expansão) e B (de financeirização). Surgi-ram a partir da Revolução Industrial e expressam a combinação entre novos paradigmas tecnológicos e organizacionais e seus efeitos sobre a taxa de lu-cro. O surgimento desses novos paradigmas exige novas formas de organi-zação do trabalho, das empresas, do Estado, e novos conteúdos de políticas públicas. Entretanto, esse é um processo lento. Durante o desajuste entre as dimensões físicas e organizacionais das novas tecnologias, cai significativa-mente a taxa de lucro e a acumulação tende a se deslocar para o setor finan-ceiro, apoiando-se nos juros e na geração de capital fictício, o que provoca significativa redução nas taxas de crescimento econômico per capita. Du-rante as fases em que essas dimensões se ajustam, a taxa de lucro sofre uma forte ascensão e a acumulação se reorienta para o setor produtivo, elevando

HEGEMONIA_miolo.indd 244HEGEMONIA_miolo.indd 244 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 236: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 245

significativamente as taxas de crescimento per capita. O ajuste é instável e desenvolve-se numa trajetória pontuada por inovações primárias, secundá-rias e terciárias. Em seu conjunto, os Kondratievs descrevem fases A, divi-didas em retomada, prosperidade e maturidade, e fases B, em crise, depres-são e recuperação. Cada uma dessas subfases compõe períodos decenais e dão lugar aos chamados Juglars, ciclos estudados por Marx e ligados à subs-tituição dos meios de produção. Os Juglars absorvem a tendência prepon-derante do Kondratiev, isto é, as fases A deste prolongam e intensificam seu crescimento, ocorrendo o inverso durante a financeirização.

Os ciclos de Kondratiev foram teorizados inicialmente por Nicolai Kon-dratiev entre os anos 1920 e 1930 e influenciaram diversas correntes mar-xistas, entre elas o trotskismo. Essas oscilações também foram observadas por Joseph Schumpeter e repercutiram sobre a corrente neoschumpeteria-na. Todavia, tanto Schumpeter quanto Trotsky procuraram negar seu ca-ráter sistemático, atribuindo-lhe a condição de onda, ao invés de ciclo, por razões apenas em parte distintas. Trotsky admitia somente os ciclos decenais observados por Marx. Qualificava-os de endógenos e atribuía às ondas lon-gas caráter excepcional, na medida em que dependeriam supostamente de fatores externos ao processo de acumulação, como as lutas de classes, as guerras, as descobertas tecnológicas ou geográficas. Schumpeter, por sua vez, considerava o capitalismo um sistema em equilíbrio, cabendo a fatores externos, como os empresários inovadores, introduzirem seu dinamismo. A busca do lucro, visto como renda diferencial, por meio de inovações tecno-lógicas, colocaria o sistema em desequilíbrio. As inovações se desenvolve-riam em cachos: inovações primárias, secundárias e terciárias se sucederiam, levando o sistema a novo ponto de equilíbrio, diferente do anterior.

O pensamento neoschumpeteriano avançou bastante na análise das on-das longas, sobretudo com as obras de Christopher Freeman e Carlota Perez. Elaborou os conceitos de paradigmas tecnoeconômicos e trajetórias tecnológicas, identificou historicamente a existência de cinco grandes on-das, mas manteve o compromisso com a noção de equilíbrio schumpete-riana, que impediu a compreensão da acumulação ilimitada como parte da estrutura capitalista e dos ciclos como uma das formas de expressão de seu desenvolvimento. O pensamento trotskista alcançou alto nível de sofistica-ção com a obra de Ernst Mandel. Ele revisou as críticas de Trotsky aos ci-clos, suavizando-as, mas manteve a dualidade endógeno/exógeno que era parte do esquema de análise do autor russo-ucraniano. Mandel assinalou

HEGEMONIA_miolo.indd 245HEGEMONIA_miolo.indd 245 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 237: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

246 • Hegemonia às avessas

que o desenvolvimento do capitalismo num sistema efetivamente mundial e o crescente controle que proporciona sobre a natureza por meio do pro-gresso técnico, diminuíam a autonomia relativa de fatores como a natureza e a inovação tecnológica. Entretanto, apontou que a luta de classes perma-necia como variável exógena ao poder capitalista, ainda que restringisse sua potencialidade libertadora ao período específico da primeira quinzena sub-sequente ao estalo da crise que inicia a fase B do Kondratiev.

Em verdade, a polarização endógeno/exógeno é uma falsa questão para a compreensão da problemática dos ciclos. Ela é oriunda do liberalismo e da fragmentação que este provoca no pensamento social. Todo processo social constitui-se de uma articulação específica que se desenvolve sobre os elementos geográficos, territoriais, tecnológicos e culturais da vida humana que lhes são relativamente autônomos. O capitalismo criou uma podero-síssima força de articulação oriunda de suas tendências seculares, capaz de incorporar em grande parte a natureza e os processos sociais. Os Kondratievs são oscilações que correspondem ao desenvolvimento estrutural do modo de produção capitalista, de suas forças produtivas e relações de produção. O longo movimento pendular de ajustes e desajustes entre as dimensões materiais e subjetivas das tecnologias vincula-se ao predomínio da maqui-naria, como força produtiva, sobre a condição humana e intelectual dos trabalhadores. E a alternância entre desenvolvimento produtivo e finan-ceirização, ao protagonismo da acumulação ilimitada. A luta de classes tem sua autonomia relativa, mas não é um componente exógeno às estruturas capitalistas e a sua expressão cíclica: é inerente ao movimento dessas estru-turas, desenvolve-se com sua expansão e afeta seu curso, podendo, no li-mite, interrompê-lo. Entretanto, essa possibilidade não é independente das condições materiais de existências, vinculadas, em última instância, à expan-são do tempo secular do capitalismo. A reprodução dos Kondratievs, dos ciclos sistêmicos ou dos Juglars assinala o protagonismo do capital na lu ta de classes e o desenvolvimento das estruturas capitalistas de que são par te. Os Kondratievs têm se manifestado com razoável regularidade na história do capitalismo e sido extensamente observados nos períodos de 1790/1810-17 até 1844-51; 1844-51/1870-75 até 1890-96; 1891-96/1914-20 até 1939/45; 1939-45/1967-73 até 1991/94; e 1991/94 até 2015/20 (?).

A articulação entre as tendências seculares e a perspectiva cíclica permi-te situar a história como uma força viva, constituindo um instrumento teó-rico-metodológico de grande importância para a análise das conjunturas.

HEGEMONIA_miolo.indd 246HEGEMONIA_miolo.indd 246 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 238: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 247

O tempo assume múltiplas dimensões, aparecendo simultaneamente como fluxo e estrutura, prospectiva e retrospectiva. A repetição cíclica, ao incidir sobre outro ponto de desenvolvimento da estrutura capitalista, cria uma temporalidade nova e original, ao mesmo que relança velhos temas e ques-tões, articulando-os em outro contexto para suscitar novas respostas.

A conjuntura atual e os desafios do século XXI

Nossa tese é que a conjuntura contemporânea se caracteriza pela com-binação de três movimentos simultâneos e de longa duração: a mundializa-ção da revolução científico-técnica, a crise de hegemonia dos Estados Uni-dos – processos que se estabelecem desde o início dos anos 1970 – e um ciclo expansivo de Kondratiev, que se inicia em 1994. Tanto a mundiali-zação da revolução científico-técnica quanto a crise de hegemonia dos Esta-dos Unidos atuam no sentido de deprimir a taxa de lucro, mas esse proces-so é contido pelo ciclo expansivo de Kondratiev que se inicia em 1994. Esse ciclo de expansão restabelece os altos níveis da taxa de lucro e da taxa de crescimento per capita na economia mundial, mas sofre os efeitos desses processos mais longos: a taxa de crescimento per capita fica abaixo do pe-ríodo dos anos dourados, entre 1950 e 1973, e da potencialidade tecnoló-gica atual; o eixo geopolítico do crescimento da economia mundial se des-loca para o Leste asiático e a taxa de lucro se recupera com certa dificuldade, dependendo da difusão da superexploração do trabalho da periferia para os centros decadentes, onde se situa por debaixo dos níveis do pós-guerra.

A fase A desse Kondratiev divide-se em: retomada, que se institui entre 1994 e 2000, prosperidade, que se estabelece entre 2002 e 2008, e maturi-dade, que pode ser projetada possivelmente para 2010-2015/20. O fim do ciclo longo expansivo faria convergir os três grandes movimentos de queda da taxa de lucro, tornando-se altamente provável que lance a economia nu-ma longa depressão e abra um período de crise geral do sistema capitalista, de caos sistêmico, similar ao de 1914-1945. Os períodos de crise geral do sistema combinam o esgotamento da trajetória dos padrões organizacio-nais econômicos e políticos vigentes. Nesse sentido, a crise de 2008-2010, apesar de trazer elementos de depressão, seria apenas um curto período de transição para uma nova expansão de aproximadamente cinco a dez anos. Ela se diferencia amplamente da crise de 1929: seu epicentro é um centro decadente e não o centro dinâmico da economia mundial; não pode do

HEGEMONIA_miolo.indd 247HEGEMONIA_miolo.indd 247 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 239: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

248 • Hegemonia às avessas

mesmo modo ser caracterizada como uma crise geral do capitalismo, que envolva uma ruptura de seus padrões políticos de organização. O aumento da intervenção estatal e o desenvolvimento do capitalismo de Estado, que a crise vem provocando, não é uma ruptura com os padrões neoliberais que organizam a economia mundial desde os anos 1980. O aumento da intervenção estatal e sua vinculação com o setor financeiro têm sido am-plamente praticados pelo neoliberalismo e ainda que haja certo recrudes-cimento de medidas protecionistas, não há sinais de que estas possam limi-tar uma nova expansão do comércio mundial nos próximos dez anos. A profundidade da crise de 2008, todavia, indica a existência de uma crise estrutural em marcha.

Durante os anos 1990, ainda sob a influência da crise mundial dos anos 1980, manejou-se a ideia de que viveríamos uma longa depressão. Iniciada nos anos 1970, esta se prolongaria pelo fato de o capitalismo encontrar sua etapa superior num regime de acumulação ideal, financeirizado, pautado numa moeda flexível e na força das armas. A recuperação do crescimento entre 2002 e 2007 pôs esse enfoque em segundo plano, mas algumas inter-pretações apressadas da crise de 2008 tentam restabelecê-lo. Essas afirma-ções, porém, não encontram sustentação empírica4. A taxa de crescimento do PIB per capita entre 1994 e 2008 (2,6%) mais que duplicou a do pe-ríodo de 1974 a 1993, conforme os indicadores da OCDE, tabulados por Angus Maddison. A crise deverá reduzi-la – para o largo intervalo ini-ciado em 1994 –, afastando-a dos 2,9% ao ano de 1950 a 1973 e aproxi-mando-a dos 2,3% ao ano de 1939 a 1973, quando se inclui a década do caos sistêmico dos anos 1940. Todavia, permanece muito acima dos 1,2% ao ano da fase B do Kondratiev de 1974 a 1993. A taxa de lucro nos Estados Unidos, país que oferece as fontes estatísticas para calculá-la, caiu de 10,3% para 6,5% nos intervalos de 1959 a 1967 e 1968 a 1992. Subiu para 8,2% no intervalo de 1994 a 2007, sem recuperar o patamar da década de 1960, mas nesse mesmo período elevou-se significativamente a massa de lucros

4 A ideia de um império global capaz de sobrepor-se à competição e ao sistema inte-restatal para estabelecer o valor de maneira sustentável, independentemente das condições reais de produção, não encontra precedentes no capitalismo histórico e no moderno sistema mundial. Esses projetos se originaram nos períodos de caos sis-têmico e buscaram submeter o sistema interestatal a forças pré-capitalistas, dada a incapacidade dos blocos históricos que os sustentavam de impor seu protagonismo pelo poder econômico.

HEGEMONIA_miolo.indd 248HEGEMONIA_miolo.indd 248 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 240: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 249

gerada pelas corporações estadunidenses fora dos Estados Unidos, o que indica níveis superiores de taxa de lucro em outras regiões da economia mundial, como a China e o Leste asiático. Em 1967, a parcela de lucros no exterior gerada pelas empresas não financeiras estadunidenses equivalia a 5% do total alcançado. Entre 1994 e 2007, essa parcela se elevou para 17%, atingindo 23% nas crises de 2001 e 20085.

A fase A do novo Kondratiev apresenta características muito especiais. Se, por um lado, desloca a acumulação para a taxa de lucro, as crises do modo de produção capitalista e da hegemonia estadunidense atuam sobre a recuperação da taxa de lucro, limitando-a. A automação reduz a massa de valor representada pela força de trabalho e estabelece a contradição entre a inovação tecnológica e a valorização do capital. A taxa de mais-valia apre-senta incrementos cada vez mais medíocres e o segmento de alta produti-vidade incorpora uma parcela restrita do conjunto dos trabalhadores. A conversão de mais-valia extraordinária em lucro extraordinário apresenta dificuldades: a economia de valor produzida pela substituição da força de trabalho por maquinaria, que transfere parte do fundo de consumo dos trabalhadores para o capital e se incorpora parcialmente à demanda que constitui o consumo de luxo, torna-se cada vez mais insuficiente para aten-der às expectativas de valorização da massa ampliada de mercadorias que circula em busca do lucro extraordinário.

Tais processos levam à busca de formas complementares ao processo produtivo de valorização do capital, sem eliminar sua centralidade, e à di-fusão da superexploração do trabalho como instrumento de elevação da taxa de mais-valia. A superexploração estabelece altos níveis de desemprego nos países centrais, para que os preços da força de trabalho caiam abaixo de seu valor, e gera um excedente de capital que não se reinveste no setor produtivo deles. Esse excedente de capital busca a valorização no setor fi-nanceiro ou no exterior, colocando em crise a divisão internacional do tra-balho em centros, semiperiferias e periferia, e proporcionando uma janela de oportunidade aos países periféricos que fornecem uma força de trabalho com qualidade similar e mais barata que a dos países centrais.

A crise de hegemonia dos Estados Unidos se combina com essas neces-sidades da fase ascensional deste Kondratiev, oferecendo-lhe processos de

5 Veja-se o Economic Report of The President 2010. Disponível em: <http://www.gpoaccess.gov/eop/>. Acesso em: 24 ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 249HEGEMONIA_miolo.indd 249 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 241: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

250 • Hegemonia às avessas

valorização auxiliares. A sobrevalorização do dólar, que impulsiona os dé-ficits comerciais estadunidenses, e a dívida pública dos Estados Unidos são seus principais instrumentos. O dólar sobrevalorizado e a dívida pública têm sido utilizados, desde os anos 1980, em maior ou menor grau, pelos governos estadunidenses como recursos de empoderamento econômico de sua burguesia e de atração de capitais, diante da perda de competitividade dos Estados Unidos para a economia mundial, em particular para o Leste Asiático. Entretanto, esses instrumentos são limitados: fortalecem proviso-riamente o poder financeiro estadunidense, mas impulsionam dívidas e de-bilitam seu setor produtivo. A sobrevalorização do dólar eleva os preços de exportação em moeda estrangeira para as distintas economias nacionais e favorece a sustentação mundial da mais-valia extraordinária, impulsionan-do a migração dos investimentos das empresas estadunidenses para outras regiões, que podem pagar a força de trabalho em moeda local e realizar o valor da produção em dólar. A dívida pública, por sua vez, funciona como instrumento de criação de capital fictício, ao absorver e valorizar o capital global excedente que não encontra os meios suficientes para fazê-lo no setor real da economia.

Entretanto, as taxas de juros, durante a fase expansiva do Kondratiev, tendem a se nivelar abaixo do crescimento da economia. A dívida pública, após um pico de 1979 a 1994, quando saltou de 33% para 66,7% do PIB, estabilizou-se e desceu suavemente para 58% durante o governo democrata de Bill Clinton, em 2000. No governo Bush, impulsionada pelo aumento dos gastos militares, a dívida pública recuperou os patamares de meados dos anos 1990, alcançando 65,5% do PIB. Mas essa elevação foi insuficiente para atender à demanda por lucro extraordinário gerada pelo dinamismo da economia.

Durante a fase B do Kondratiev do pós-guerra, o Estado organizou, por meio da dívida pública, o mercado de valorização do capital fictício. Entre-tanto, no período iniciado em 1994, não pôde fazê-lo da mesma forma. Coube ao setor privado organizar essa tarefa mediante a valorização de ati-vos financeiros vinculados ao setor real da economia: entre 1994 e 2000, esse mercado se concentrou nas ações da Bolsa de Valores estadunidense do segmento de alta tecnologia e, entre 2005 e 2007, nos títulos vinculados às hipotecas imobiliárias. Mas a valorização desses ativos chocou-se com os limites de demanda da economia estadunidense, uma vez que em última instância se articulava com o setor real da economia. Esta não sustentou a

HEGEMONIA_miolo.indd 250HEGEMONIA_miolo.indd 250 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 242: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 251

expansão das mercadorias e os preços necessários às expectativas de lucros dos investimentos financeiros 6. Em 2001/02, o governo estadunidense bai-xou os juros e reduziu os impostos sobre as empresas como forma de esti-mular a recuperação econômica. Essas medidas aqueceram a economia, mas criaram a armadilha de uma enorme superacumulação de capital, que resul-tou na crise iniciada em meados de 2007 e levou à drástica intervenção do Estado para sustentar em grande parte os valores de ativos podres.

Nesse novo período de longo crescimento, o Estado eleva seus níveis de intervenção para, por meio do exercício do monopólio da violência, trans-ferir recursos do conjunto da sociedade para os monopólios, sustentando a expectativa de apropriação de lucros extraordinários pelo grande capital, uma vez que parte significativa destes já não pode ser gerada pelo movimen-to específico do capital produtivo. Entretanto, como as políticas públicas se organizam para a sustentação da taxa de lucro, o processo se dá de forma distinta: as taxas de juros deixam de ser o instrumento-chave de dívida pú-blica que se constitui abertamente por meio de enormes transferências dos recursos públicos. Estas buscam amortecer as contradições entre o capital produtivo e os investimentos financeiros articulados a esse mesmo capital, de um lado, e a sustentação do lucro extraordinário. Essa é a especificidade da intervenção do Estado no novo Kondratiev, que torna obsoleta as pre-tensões de retorno ao velho keynesianismo de pleno emprego nos marcos do capitalismo contemporâneo. O Estado intervém não mais para sustentar a associação entre pleno emprego e produtividade, mas para sustentar lu-cros extraordinários em detrimento do emprego e da produtividade.

A crise e as medidas anticíclicas, iniciadas no final do governo Bush fi-lho, implicaram o forte desgaste de liderança política do neoliberalismo, versão contemporânea do pêndulo cosmopolita-imperialista, na economia mundial. Ao ser realizada de forma concentrada, diferentemente do perío-do Reagan-Bush pai, quando se distribuiu por mais de uma década, a inter-venção desnudou os profundos vínculos de classe do Estado com o grande capital nos centros da economia mundial. O resultado foi um novo impul-so estrutural ao desenvolvimento dos movimentos antissistêmicos que de-

6 A difusão da superexploração do trabalho aos Estados Unidos elevou drasticamente o coeficiente de Gini, que ascendeu de 0,403 para 0,47 entre 1980 e 2007, manten-do os salários reais em níveis inferiores aos do fim dos anos 1960 (Economic Report of The President, 2010).

HEGEMONIA_miolo.indd 251HEGEMONIA_miolo.indd 251 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 243: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

252 • Hegemonia às avessas

verá marcar a próxima década. A eleição de Barack Obama deve ser vista como parte desse contexto.

O governo Obama enfrenta uma agenda interna e externa de pressões crescentes para mudanças sociais, políticas e econômicas, mas sua capaci-dade de satisfazê-las é muito limitada. As perspectivas de retorno ao velho ideal social-democrata são muito improváveis. Herda uma brutal crise da economia estadunidense e dá prosseguimento a forte aumento da dívida pública para sustentar lucros extraordinários e o capital fictício. Compro-mete grande parte de sua capacidade de ação com os setores monopólicos e não consegue atender às demandas dos movimentos sociais e das lideranças nacionalistas que se afirmam no mundo contemporâneo. Seleciona o aten-dimento das pressões sociais internas, uma vez que sua especificidade está na tentativa de acomodar os choques entre movimentos sociais e capital fi-nanceiro para buscar resgatar a legitimidade interna e posteriormente a ex-terna do Estado norte-americano. Entretanto, mesmo internamente, suas propostas sociais são de alcance reduzido7. O elevadíssimo índice de endi-vidamento reduzirá o potencial de crescimento estadunidense, o que limi-tará a posterior redução dos altos níveis de desemprego alcançados durante a crise: 9,5% em junho de 2009, e 9,7% no primeiro semestre de 2010.

O comprometimento financeiro dos Estados Unidos reduzirá sua capa-cidade de liderança para impulsionar os processos de transformação da eco-nomia mundial no sentido da sustentabilidade, inclusão e paz8. O desloca-mento do dinamismo do crescimento econômico para o Leste asiático se aprofundará. Apesar da eleição de Obama, os Estados Unidos deverão con-

7 No informe A new era of responsibility: renewing America’s promise (2009), o governo Obama estima a elevação da dívida pública e do déficit público, entre 2008 e 2009, de 70,2% para 90,4%, e 3,2% para 12,3%, respectivamente. As previsões são ainda de que a dívida pública alcance cerca de 100% do PIB em 2011, mantendo-se nesse patamar durante a década, na medida em que o déficit público apresente taxas simi-lares ao crescimento da economia a partir de 2012 (cerca de 3%). A previsão do informe é que, de 2008 a 2019, as despesas do governo federal aumentem 178% com juros, 128% com programas de saúde, 86% com seguridade social e 46% com defesa. Disponível em: <http://www.gpoaccess.gov/usbudget/fy10/pdf/fy10-newe-ra.pdf>. Acesso em: ago. 2010.

8 A possibilidade de uma nova crise decenal na segunda metade da próxima década poderá exaurir o que resta da hegemonia estadunidense e acelerar a transição para um novo padrão monetário mundial.

HEGEMONIA_miolo.indd 252HEGEMONIA_miolo.indd 252 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 244: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A teoria da conjuntura e a crise contemporânea • 253

tinuar a perder liderança política na próxima década. A agenda mundial dificilmente será estabelecida por sua decadente hegemonia. Os governos latino-americanos tomam a iniciativa de estabelecer os temas da agenda com os Estados Unidos – caso de Cuba e sua reincorporação à OEA, fim do bloqueio e restabelecimento democrático em Honduras – e desenvolver te-mas próprios, independentemente da participação estadunidense – novos rumos para a integração regional que contemplem a cooperação financeira, tecnológica, científica e cultural e não priorizem a competição e a concor-rência econômica, e a articulação política entre América Latina, Ásia e Áfri-ca. Abre-se um enorme espaço para a reorganização geopolítica da eco-nomia mundial. Nesse processo, os Bricas – caso se inclua a África do Sul – poderão desempenhar um papel-chave.

A América Latina ingressa na próxima década dividida em três grandes forças políticas e sociais: neoliberais, terceira via e neonacionalistas. Os neo-liberais mantêm as políticas do consenso de Washington e o alinhamento aos Estados Unidos e situam-se à direita do espectro político, tendo seu eixo na região (Colômbia e México); a terceira via, baseada principalmente no Brasil, Uruguai e Chile, busca combinar políticas sociais, maior indepen-dência na política externa – e, no caso do Brasil, certa recuperação da indús-tria nacional –, com as políticas econômicas neoliberais; os neonacionalis-tas desenvolvem o capitalismo de Estado em direção a formas participativas e, nos casos mais radicais, de transição ao socialismo. O neonacionalismo assume em geral uma perspectiva latino-americanista e suas maiores ex-pressões são Venezuela, Bolívia, Equador e Paraguai, às quais se articulam o socialismo cubano e o sandinismo na Nicarágua. A Argentina se articula com moderação e limitações a esse processo.

O Brasil desempenha um papel central para a manutenção da hege-monia dos Estados Unidos na região. Um novo padrão de desenvolvimento para a região poderá se desenvolver com sua aproximação ao neonaciona-lismo, articulando no continente a formação de um novo bloco geopolítico com Ásia e África. Mantidas as tendências atuais, a China deverá ser o prin-cipal parceiro comercial da América Latina nos próximos vinte anos. A questão que se coloca é o que significará a aproximação com a China: a re-primarização de nossas economias na esteira de uma conjuntura de elevação dos preços dos produtos primários que, provocada pela expansão da de-manda chinesa, deverá permanecer ao longo da próxima década; ou a uti-lização desse momento favorável para investir os excedentes comerciais na

HEGEMONIA_miolo.indd 253HEGEMONIA_miolo.indd 253 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 245: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

254 • Hegemonia às avessas

elevação da qualificação, da saúde e do bem-estar de nossos povos e no au-mento de nossa capacidade de gerar valor agregado?

A resposta a essa questão dependerá das lutas políticas e sociais na re-gião. Caso predomine a articulação entre neoliberais e terceira via, a repri-marização de nossa economia aprofundará as desigualdades internas e a superexploração do trabalho e provocará o fortalecimento da fração agroex-portadora das burguesias locais, produzindo um período de crescimento econômico ecologicamente predatório e de baixa sustentabilidade. Caso o neonacionalismo consiga atrair para si o centro político da região, pode-se abrir espaço para um novo desenho de políticas públicas, com impactos não apenas regionais, como também globais rumo à transição para um mun-do multipolar.

HEGEMONIA_miolo.indd 254HEGEMONIA_miolo.indd 254 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 246: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

CONSTRUINDO A HEGEMONIA NAAMÉRICA LATINA: DEMOCRACIA E LIVRE MERCADO, ASSOCIAÇÕES EMPRESARIAIS

E SISTEMA FINANCEIRO1

Ary Cesar Minella

Dirigido aos jovens de todo o mundo, duas organizações norte-ameri-canas – o Centro Internacional para a Empresa Privada (Center for Inter-national Private Enterprise, Cipe) e o Fundo Nacional para a Democracia (National Endowment for Democracy, NED) –, patrocinam em 2010 um concurso de ensaios sobre democracia, empreendedorismo e participação da mulher na sociedade. A proposta é um “convite” para pensar “sobre co-mo criar oportunidades para os jovens a fim de fortalecer a democracia e o setor privado em seus próprios países”2.

O que representam essas duas organizações e o que podem ter em co-mum com outras organizações na América Latina, como o Instituto Apoyo, no Peru, ou o Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equi-dad y el Crecimiento (Cippec), na Argentina? Ou ainda com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e o Centro de Divulgación del Conocimiento Económico para la Libertad (Cedice), da Venezuela? Mais ainda, o que isso tem a ver com o tema que nos ocupa aqui?

Ao analisar as associações de bancos na América Latina, deparei-me com algumas referências que me levaram a examinar o Cipe e, a partir dele, o NED. No caso dos bancos, identifiquei a formação de uma rede que per-mite estabelecer uma conexão entre as associações a partir da presença si-

1 Trabalho desenvolvido com apoio do CNPq. Agradeço a colaboração de Maria Lau-ra Gomez, Gabriela Augusta da Silva, Leonardo Salles e Álvaro Pereira Santos, alu-nos do Curso de Ciências Sociais da UFSC.

2 Podem participar estudantes e jovens profissionais com idades entre 18 e 30 anos; o prêmio é de mil dólares para cada um dos três temas propostos. Disponível em: <http://www.cipe.org/essay>. Acesso em: 8 abr. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 255HEGEMONIA_miolo.indd 255 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 247: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

256 • Hegemonia às avessas

multânea de uma mesma instituição financeira na direção de associações de bancos em diferentes países3. De uma perspectiva que procura analisar as co-nexões das associações de classe do empresariado (e em especial das empresas e grupos econômicos que as comandam) com outras formas de organização, dirigi a pesquisa para as organizações genericamente definidas como políti-co-ideológicas. Um exemplo era oferecido pelos Institutos Liberais fundados no Brasil nos anos 1980 e mantidos por grandes empresas brasileiras e mul-tinacionais, incluindo grupos financeiros4. E um deles, o Instituto Liberal do Rio de Janeiro, havia estabelecido uma “parceria” com o Cipe.

Este artigo apresenta os primeiros resultados da pesquisa e tem um ca-ráter exploratório-descritivo que socializa com o leitor algumas bases empí-ricas, o que permite ampliar elementos interpretativos sobre a realidade la-tino-americana contemporânea. Analiso em primeiro lugar o NED, depois o Cipe, seguido de um primeiro levantamento sobre o modo como o siste-ma financeiro se insere nas redes de organizações a elas vinculadas; por fim, elaboro reflexões preliminares sobre o significado dessas articulações.

1. Rearticulação da ação do governo e das corporações norte-americanas: a criação do NED

Ao final dos anos 1970 e início dos 1980, o governo dos Estados Unidos redefiniu parte de sua estratégia de atuação e intervenção no exterior. O contexto global inclui um questionamento interno e externo das operações da Agência de Inteligência Americana (CIA), as implicações das ditaduras apoiadas na América Latina e as transformações que se operavam na econo-mia capitalista. Além do Executivo, o Legislativo norte-americano e as em-presas privadas foram envolvidos nesse processo.

Quando finalmente, em 1983, o governo Reagan e o Congresso dos Es-tados Unidos aprovaram a formação do NED, estavam institucionalizando,

3 Ary Cesar Minella, “Representação de classe do empresariado financeiro na América Latina: a rede transassociativa no ano 2006”, Revista de Sociologia e Política, n. 28, jun. 2007, p. 31-56.

4 Denise Barbosa Gros, “Institutos liberais e neoliberalismo no Brasil da Nova Repú-blica”, Teses FEE, Porto Alegre, Fundação de Economia e Estatística Siegfried Ema-nuel Heuser, n. 6, 2003, e “Institutos liberais, neoliberalismo e políticas públicas na Nova República”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, fev. 2004, p. 143-59.

HEGEMONIA_miolo.indd 256HEGEMONIA_miolo.indd 256 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 248: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 257

por meio de uma organização não governamental, mas sustentada com re-cursos governamentais, um dos canais fundamentais de sua atuação e inter-venção no exterior5. Uma peça fundamental na construção de uma hege-monia que se caracterizou como neoliberal, mas é sobretudo uma tentativa de atender a reestruturação capitalista em curso, conforme os interesses es-tratégicos do governo e das empresas norte-americanas.

A formação do NED foi seguida pela criação do Center for Internatio-nal Private Enterprise (Cipe), e a ele também se vincularam o National De-mocratic Institute for International Affairs (NDI) e o National Republican Institute for International Affairs, mais tarde denominado International Republican Institute (IRI). Também se filiou ao NED o Free Trade Union Institute (FTUI), um dos institutos criados pela American Federation of Labor – Congress of Industrial Organisations (AFL-CIO) para atuar no ex-terior6. O NDI e o IRI7 são institutos associados ao Partido Democrata e ao Partido Republicano respectivamente; o Cipe constituiu-se como uma en-tidade da U. S. Chamber of Commerce (Câmara Americana de Comércio), uma poderosa organização empresarial à qual se vinculam mais de uma cen-tena de associações empresariais no mundo. Em 1997, a AFL-CIO unificou seus quatro institutos de atuação no exterior, criando o American Center for International Labor Solidarity (Acils), também conhecido como So lidarity Center8. A estrutura do NED representa assim uma articulação estratégica

5 A história do NED desde sua própria perspectiva aparece em artigo de David Lowe, “Idea to reality: a brief history of the National Endowment for Democracy”. Dispo-nível em: <http://www.ned.org/about/nedhistory.html>. Acesso em: 12 maio 2008.

6 Para mais detalhes sobre a formação do NED ver David Lowe, “Idea to reality”, cit.; Hernando C. Ospina, “A mão (quase) invisível de Washington”, Le Monde Diplo-matique, Brasil, jul. 2007, disponível em: <http://diplomatique.uol.com.br/acervo.php?id=2102&tipo=acervo>, acesso em: 7 ago. 2007; Eric T. Hale, A quantitative and qualitative evaluation of the National Endowment for Democracy, 1990-1999 (te-se de doutorado, Departamento de Ciência Política, Universidade Estadual de Loui-siana, dez. 2003); Nicolas Guilhot, “Les professionnels de la démocratie: logiques militantes et logiques savantes dans le nouvel internationalisme américain”, Actes de la recherche en sciences sociales, n. 139, 2001-2003, p. 53-65; James M. Scott e Kelly J. Walters, “Supporting the wave: Western political foundations and the promotion of a global democratic society”, Global Society, v. 14, n. 2, 2000, p. 237-57.

7 Em 2005, com outras organizações, o IRI organizou no Congresso Nacional brasi-leiro um seminário sobre reforma política no país.

8 Institutos unificados: Free Trade Union Institute (FTUI), criado em 1977 para atuar na Europa, especialmente na Espanha e em Portugal; American Institute for Free

HEGEMONIA_miolo.indd 257HEGEMONIA_miolo.indd 257 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 249: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

258 • Hegemonia às avessas

entre o Estado norte-americano, os dois partidos políticos dominantes, as empresas norte-americanas e a cúpula do movimento sindical.

De acordo com Lowe, os objetivos do NED definidos em sua funda-ção são:

encorajar o desenvolvimento de instituições democráticas através de iniciativas do setor privado; facilitar o intercâmbio entre grupos do setor privado (especial-mente entre os quatro institutos integrados ao NED) e os grupos democráticos no exterior; promover a participação não governamental em programas de trei-namento democrático; fortalecer os processos democráticos no exterior em co-operação com as forças democráticas locais; promover a cooperação entre o se-tor privado dos Estados Unidos e aqueles no exterior “dedicados aos valores culturais, instituições e organizações democráticas pluralistas”; e encorajar o de-senvolvimento democrático consistente com os interesses dos Estados Unidos e dos grupos que recebem a assistência.9

O mesmo autor – que, aliás, é vice-presidente do NED – destaca que a formalização dessa instituição como uma organização não governamental, apesar de financiada pelo governo dos Estados Unidos, “permite que possa apoiar forças políticas democráticas em situações repressivas ou politica-mente sensíveis, em que o apoio do governo dos Estados Unidos [...] pode ser diplomática ou politicamente inviável”10. Como observam Scott e Wal-ters11, o NED permite desenvolver políticas que normalmente seriam im-pedidas por princípios de soberania e não intervenção e essa “diplomacia informal” é um elemento potencialmente útil para a política externa. Essa di-mensão intervencionista foi denunciada no próprio Congresso norte-ame-ricano desde o início da formação do NED.

O NED é uma organização juridicamente privada, mas seu orçamento está presente no Departamento de Estado e deve ser aprovado pelo Con-gresso norte-americano. Os recursos são repassados basicamente pela Usaid.

Labor Development (AIFLD), criado em 1962 para operar na América Latina; Afri-can-American Labor Center (Aalc, 1964) e o Asian-American Free Labor Institute (Aafli, 1968). Ver Wilson Aparecido Costa de Amorim, A evolução das organizações de apoio às entidades sindicais brasileiras: um estudo sob a lente da aprendizagem orga-nizacional (tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007)

9 David Lowe, “Idea to reality”, cit.10 Ibidem, p. 8.11 James M. Scott e Kelly J. Walters, “Supporting the wave”, cit., p. 255.

HEGEMONIA_miolo.indd 258HEGEMONIA_miolo.indd 258 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 250: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 259

Nos anos 1990, recebeu entre 30 milhões e 35 milhões de dólares por ano, parte dos quais é operada diretamente pelo NED (entre 40% e 45%) e ou-tra é repassada para as quatro organizações, que também recebem fundos de outras fontes, como empresas privadas12. Os recursos são utilizados para fi-nanciar atividades e organizações de diversos tipos no exterior: centros de pesquisa e formulação de políticas públicas (conhecidos como think tanks), ONGs, associações empresariais e de trabalhadores, partidos políticos e or-ganizações diversas da sociedade civil13. Ao mesmo tempo, contribui para o processo de onguização da política social, conforme menciona Oliveira14, articulando-se com o conjunto de forças que interferem nas políticas públi-cas. Na avaliação de Petras15, um conjunto de ONGs criadas ao longo dos anos 1980 e 1990 desenvolveu uma ação política para minar o crescimento de movimentos sociais que se opunham ao modelo neoliberal.

O NED recebe fundos específicos para apoiar iniciativas em “países de interesse especial”, como ocorreu com Polônia (Sindicato Solidariedade), Chile, Nicarágua, países do Leste Europeu, África do Sul, Mianmar (antiga Birmânia), China, Tibete e Coreia do Norte. Depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, fundos especiais foram dirigidos para os países com significativa população muçulmana no Oriente Médio, África e Ásia Cen-tral16. Segundo estimativas oficiais do NED, cada dólar investido em pro-gramas no exterior gera fundos adicionais equivalentes a oitenta centavos provenientes de outras fontes, como ONGs, fundações privadas e organiza-ções governamentais17. Uma das principais iniciativas do NED foi a criação

12 Ibidem, p. 239.13 Entre 1990 e 1997, o NED financiou diretamente 1.754 programas no mundo,

com um total de 153,2 milhões de dólares (James M. Scott e Kelly J. Walters, “Su-pporting the wave”, cit., p. 243-4).

14 Francisco de Oliveira, “A dominação globalizada: estrutura e dinâmica da domina-ção burguesa no Brasil”, em Eduardo Basualdo e Enrique Arceo (orgs.), Neolibera-lismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales (Buenos Aires, Clacso, 2006), p. 284.

15 James Petras, “Imperialism and NGOs in Latin America”, Monthly Review. v. 49, n. 7, dez. 1997b e “NGOs: in the service of imperialism”, Journal of Contemporary Asia, v. 29, n. 4, p. 429-40, 1999.

16 David Lowe, “Idea to reality”, cit.17 James M. Scott e Kelly J. Walters, “Supporting the wave”, cit., p. 254.

HEGEMONIA_miolo.indd 259HEGEMONIA_miolo.indd 259 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 251: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

260 • Hegemonia às avessas

do World Movement for Democracy, que articula pessoas e organizações que apoiam a democracia ao redor do mundo18.

Em 2006, num contexto de eleições presidenciais e legislativas (Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Haiti, México, Nicarágua, Peru e Venezuela), o NED financiava 95 projetos em 11 países latino-americanos, incluindo 14 projetos regionais. Mais de um terço dos projetos dirigia-se à região subandina (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), a maio-ria deles concentrada na Venezuela e dirigida a organizações que desenvol-viam ações e políticas de oposição ao governo Chávez19.

Estabeleceu-se uma espécie de divisão de trabalho na atuação dessas or-ganizações: enquanto o NED atua de forma ampla, o IRI e o NDI agem com organizações políticas (em especial partidárias), o Solidarity Center atua com organizações da classe trabalhadora e o Cipe, com o universo empresa-rial. Escapa às possibilidades analíticas deste artigo examinar o grau de arti-culação de suas atividades em um determinado país ou conjuntura específica. De qualquer forma, não é surpreendente constatar que no Peru, enquanto o Cipe apoia programas de organização da agenda dos empresários, o Solida-rity estimula a organização dos trabalhadores mineiros terceirizados, ou que apoiem no Brasil, respectivamente, o Instituto Brasileiro de Governança Cor-porativa e as iniciativas das centrais e federações sindicais dos trabalhado-res20. O Cipe passa a ser o foco central da análise na sequência deste artigo.

2. Center for International Private Enterprise (Cipe)

Dentro da estratégia de atuação do NED, cabe ao Cipe dirigir sua atua-ção para o universo empresarial, especialmente para as associações de classe

18 Esse movimento já realizou seis assembleias mundiais: Nova Délhi (1999), São Pau-lo (2000), Durban (2004), Istambul (2006) e Kiev (2008). A mais recente foi reali-zada em Jacarta, entre 11 e 14 de abril de 2010.

19 Nesse país, o NED financiou atividades relacionadas com a independência e a trans-parência do poder judiciário, direitos humanos e organizações da sociedade civil. Disponível em: <http://www.ned.org/grants/06programas/highlights-lac06.html>. Acesso em: 12 maio 2008. Para mais detalhes ver Eva Golinger, El código Chávez. Descifrando la intervención de los Estados Unidos en Venezuela (Havana, Editorial de Ciencias Sociales, 2005) e Bush vs. Chávez: La guerra de Washington contra Ve-nezuela (Havana, Editorial José Martí, 2006).

20 Wilson Aparecido Costa de Amorim, A evolução das organizações de apoio às entida-des sindicais brasileiras, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 260HEGEMONIA_miolo.indd 260 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 252: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 261

e organizações da sociedade civil sob sua influência, buscando seu envolvi-mento na formulação e implementação de políticas públicas orientadas pelo interesse do mercado. Como foi mencionado, embora receba fundos gover-namentais, o Cipe é uma entidade privada, vinculada à Câmara Americana de Comércio. Segundo sua própria referência, a Câmara Americana de Co-mércio “é a maior federação empresarial do mundo e representa mais de 3 milhões de empresas de todos os portes, setores e regiões” e “inclui cente-nas de associações, câmaras de milhares de locais e mais de 100 Câmaras Americanas de Comércio em 91 países”21.

Ao analisar a virada neoliberal nos Estados Unidos nos anos 1970, Har-vey22 cita o histórico memorando de Lewis Powell à Câmara de Comér-cio dos Estados Unidos em agosto de 1971, quando estava prestes a assumir um posto na Suprema Corte, por indicação de Richard Nixon. Nesse docu-mento, Powell faz uma defesa do sistema norte-americano de livre mercado e preconiza a necessidade de mobilizar esforços contra aqueles que queriam destruí-lo. Para isso, a ação individual não seria suficiente. Segundo ele:

a força reside na organização, no planejamento e na implementação meticulo-sos de longo prazo, na coerência da ação durante um período indefinido de anos, na escala de financiamento que só se obtém por meio do esforço conjun-to e no poder político que só se obtém por meio da ação unida e de organiza-ções de alcance nacional.23

Powell propôs à Câmara de Comércio desenvolver uma ação direta em universidades, escolas, meios de comunicação, mercado editorial e Cortes de Justiça para reverter o quadro e mudar o pensamento das pessoas sobre “as empresas, o direito, a cultura e o indivíduo”24. Segundo Harvey, “é difí-cil dizer que influência direta teve essa injunção à entrada na luta de clas-se”. Todavia, diz ele, “sabemos que a Câmara de Comércio depois disso ampliou sua base de 60 mil empresas, em 1972, para mais de um quarto de

21 Disponível em: <http://www.uschamber.com>. Acesso em: 13 jun. 2008.22 David Harvey, O neoliberalismo: história e implicações (São Paulo, Loyola, 2008).23 Lewis Powell, citado por David Harvey, O neoliberalismo, cit., p. 52.24 Ibidem, p. 53. Advogado de empresas, Powell participava do conselho administrati-

vo de onze delas. Esse documento ficou conhecido também como “Manifesto Po-well” e está disponível em: <http://www.reclaimdemocracy.org/corporate_accoun-tability/powell_memo_lewis.html>. Para breves comentários sobre o texto, ver nesse mesmo endereço: “The Powell Memo, Introduction”, de 3 de abril de 2004.

HEGEMONIA_miolo.indd 261HEGEMONIA_miolo.indd 261 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 253: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

262 • Hegemonia às avessas

milhão, dez anos mais tarde” e, em associação com a National Association of Manufacturers, reuniu recursos para fazer lobby e promover pesquisas25.

Filiada à Câmara Americana de Comércio, a Associação de Câmaras Americanas de Comércio na América Latina (Association of American Chambers of Commerce in Latin América, AACCLA), com sede em Wa-shington, representa as Câmaras existentes em vários países do continente. O Cipe reconhece que sua filiação à Câmara de Comércio dos Estados Uni-dos facilitou sua entrada na região26.

Apesar de ser vinculado à Câmara de Comércio, os fundos do Cipe pro-vêm basicamente do governo dos Estados Unidos, que repassa parte direta-mente pela Usaid e outra pelo NED. Os recursos de outras fontes são pou-cos (1% em 2002, 6% em 2004 e 3% em 2005)27.

Desde sua fundação, o Cipe articulou sua ação financiando mais de mil organizações e iniciativas locais em mais de cem países e conduziu progra-mas de treinamento na administração de associações empresariais na África, Ásia, Europa, Eurásia, Oriente Médio e América Latina. Sua atuação prin-cipal se realiza por “parcerias” com organizações locais, em especial com associações empresariais, think tanks, ONGs, universidades e outras organi-zações da sociedade civil. No desenvolvimento dos programas conjuntos, essas organizações locais entram com recursos obtidos de outras fontes.

Segundo este autor, nos primeiros anos o Cipe concentrou seus pro-gramas naqueles países que haviam demonstrado um empenho favorável ao desenvolvimento das empresas privadas e da democracia. Posteriormente, porém, ficou claro que a abordagem do Cipe poderia ser aplicada em países onde era fraco o empenho governamental para o capitalismo e a democra-cia, desde que encontrasse “dedicadas e corajosas” organizações parceiras. Foi assim, por exemplo, que o Cipe apoiou programas na Rússia e na Nigé-ria. Conforme a ideologia desse empreendimento, estimular o “surgimento de associações empresariais e think tanks é parte vital da promoção da cul-

25 Ibidem, p. 53.26 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of

Cipe’s global programs, 1984-1999 (Washington, DC, Cipe, 2001, p. 64).27 Entre elas estão o próprio Departamento de Estado, a ONU, o Banco Mundial e

sua International Finance Corporation (IFC), ONGs como a Global Corporate Governance Forum e grandes empresas norte-americanas (Cipe, Annual Report, 2003, p. 4).

HEGEMONIA_miolo.indd 262HEGEMONIA_miolo.indd 262 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 254: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 263

tura democrática e impulso para reforma econômica”28. No final dos anos 1980 ampliou suas operações com programas na África e na Ásia. Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e as primeiras eleições “parcialmente livres” na Polônia e na Hungria, o Center passou a atuar na Europa Central e do Leste e, a partir de 1991, na Rússia e na Ucrânia. Em meados dos anos 1990 havia estabelecido programas na China e no Vietnã29.

No começo dos anos 1990, o Cipe ampliou suas parcerias com empre-sas, instituições multilaterais e ONGs. São exemplos disso as conferências realizadas com o World Bank Institute em 1998 e 1999, a conferência sobre o combate à corrupção em países em desenvolvimento, em associação com a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), e o trabalho com organizações privadas e públicas durante a Conferência so-bre a Mulher, realizada em 200030.

Uma avaliação sobre os primeiros quinze anos (1984-1999) de atuação do Cipe considerou o impacto de 365 projetos realizados com 200 “organi-zações parceiras” em 63 países e concluiu que 5% dos projetos tiveram um resultado excepcional, 25% um alto impacto, 53% um efeito médio e 17% um efeito baixo31. Na avaliação do Cipe, três programas tornaram-se funda-mentais: a) os programas de treinamento para dirigentes de associações em-presariais, líderes de think tanks e jornalistas econômicos; b) os programas de apoio legislativo e econômico, especialmente para dar suporte à legisla-ção e às reformas favoráveis ao livre mercado; c) as redes de reforma econô-mica, estabelecidas depois da realização de uma série de conferências ao redor do mundo cujo objetivo é “estabelecer uma conexão entre as organi-zações parceiras do Cipe, buscando compartilhar experiências e recursos, bem como definir agendas de reforma para o futuro”32.

Segundo Geurts et al.33, as estratégias do Cipe estão focadas em refor-mas institucionais e o “coração de todos os projetos ” é a “advocacy”, o que

28 John Bohn, “Cipe at 15 years: lessons learned”, em Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 15.

29 Ibidem, p. 14-5.30 Ibidem, p. 17.31 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of

Cipe’s global programs, cit., p. 1.32 John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 16.33 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of

Cipe’s global programs, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 263HEGEMONIA_miolo.indd 263 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 255: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

264 • Hegemonia às avessas

significa a promoção efetiva de uma legislação que leve a mercados abertos e encoraje a participação do setor privado na definição das políticas públi-cas. O objetivo é desenvolver políticas que fortaleçam os mecanismos de mercado e o avanço dos interesses empresariais. A articulação com as orga-nizações locais é central na abordagem e elas devem ser ativas na elaboração e implementação dos projetos (“empoderamento das organizações locais”). Outro aspecto fundamental de sua ação realiza-se por meio do Business Association Management Training, que permite identificar potenciais orga-nizações parceiras e líderes, muitos dos quais, segundo o Cipe, acabam ocu-pando postos centrais no setor público e no privado. O Cipe desenvolve um programa de comunicação que desempenha um papel central em sua estra-tégia de construir demanda por reformas democráticas orientadas para o mercado. Uma variedade de canais é utilizada para divulgar informações, inclusive internet e publicações diversas.

Na avaliação de Bohn34, na ocasião presidente do Cipe, o fato de este trabalhar com organizações “parceiras” ao redor do mundo proporciona ri-cos inputs sobre as transformações em curso e permite identificar tendên-cias centrais que ultrapassam as fronteiras nacionais e regionais e desempe-nham papel importante na globalização. Se isso contribui para avaliar os mecanismos de funcionamento do mercado e a relação entre capitalismo e democracia, como acredita Bohn, permite também redefinir ou incorporar novos programas de ação.

Os principais programas de ação incluem: a) combate à corrupção; b) promoção da governança corporativa; c) reformas institucionais para levar o setor informal para a economia formal; d) reforço do papel da mulher e da juventude (programas, cursos, organizações, educação); e) promoção da governança democrática; f ) redução das discrepâncias de renda por meio da iniciativa empresarial35; g) desenvolvimento das associações empresa-riais; h) reforma na legislação e nas regulações que dificultam as atividades empresariais; i) acesso à informação, para alcançar maior transparência no

34 John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 9.35 O Cipe apoia o desenvolvimento de iniciativas empresariais que gerem emprego e

renda, em especial por meio de pequenas e microempresas. No entanto, as pequenas e médias empresas também desempenham papel político e devem ser mobilizadas para dirigir as reformas; as associações empresariais seriam um instrumento efetivo para isso (ver John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit.).

HEGEMONIA_miolo.indd 264HEGEMONIA_miolo.indd 264 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 256: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 265

governo, na divulgação e no entendimento dos princípios democráticos orientados para o mercado36.

As associações empresariais são consideradas fundamentais para a parti-cipação do setor na sociedade civil e atores-chave para a definição de políti-cas públicas. Portanto, o Cipe estabelece um vínculo estreito com essas or-ganizações, estimulando e apoiando a participação dos empresários no processo político37. O centro elaborou um manual de orientação para mo-bilizar a “comunidade empresarial” no sentido de influenciar a reforma de políticas públicas, estabelecendo as prioridades empresariais no campo le-gislativo e da regulação38. Segundo avaliação publicada em 2002, esse ma-nual alcançou grande sucesso no desenvolvimento de uma agenda empre-sarial nacional em países como Haiti, Argentina e Ucrânia e em agendas re gionais na Rússia. Além disso, estava em aplicação em países do Orien-te Médio39. Em 2003, o Cipe abriu escritórios no Afeganistão e no Iraque com o objetivo de “desenvolver a capacidade da comunidade empresarial de contribuir para a emergência de uma sociedade democrática estável”40.

Na avaliação do Cipe, apesar da emergência de um consenso sobre a im-portância da democracia e da economia de mercado, muitos países não conseguem estabelecer arranjos institucionais favoráveis ao seu desenvolvi-mento. Assim, mesmo as melhores políticas teriam problemas de imple-mentação em razão da “ausência de instituições e normas apropriadas”. A entidade identifica-se com a interpretação segundo a qual os limites ou fra-cassos das políticas neoliberais se devem ao fato de que elas não foram acompanhadas de reformas institucionais: “O fracasso das reformas do Con-senso de Washington na América Latina obrigou os formuladores de políti-cas a dar mais atenção às reformas institucionais, uma posição que o Cipe

36 Ver <http://www.cipe.org/about/AboutCipe.pdf>, acesso em: 25 abr. 2008, e John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit.

37 Cipe, Annual report, 2004, cap. 1, p. 7-8. Disponível em: <http://www.cipe.org/publications/report/archives>. Acesso em: set.-out. 2008.

38 Cipe, Guía para la agenda nacional empresarial: la voz de las empresas. Disponível em: <http://www.cipe.org/regional/lac/pdf/spanishnba.pdf>. Acesso em: 5 set. 2008. Essa orientação aos empresários apresenta-se de forma mais aprofundada em publicação do Cipe organizada por Larry S. Milner, Business associations for the 21st Century: a blueprint for the future (2. ed., Washington, DC, Cipe, 1999).

39 Cipe, Annual report, 2002, p. 41.40 Cipe, Annual report, 2003, p. 133.

HEGEMONIA_miolo.indd 265HEGEMONIA_miolo.indd 265 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 257: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

266 • Hegemonia às avessas

defende de longa data para a região”41. Segundo o Cipe, essa é uma oportu-nidade para que os programas desenvolvidos pela organização tenham um impacto significativo na região.

2.1 Atuação do Cipe na América LatinaEm seus primeiros anos, a maior parte dos recursos do Cipe foi dirigida

para a América Latina e o Caribe, no contexto das mudanças ocorridas nos anos 1980. No final da década, segundo avaliação do Cipe, “quase todos os países da região haviam abandonado a política de substituição de im-portações em favor de um sistema econômico orientado pelo mercado” e “quase todos os países haviam avançado na adoção de formas democráticas de governo”42.

No período de 1984 a 1999, o Cipe financiou 109 projetos na América Latina e no Caribe, envolvendo 50 organizações em 19 países. Os recursos envolvidos nessa atividade atingiram US$ 9.375.047,0043. O impacto des-ses programas foi considerado excepcional ou alto em 41% dos casos e mé-dio em 50% deles, destacando assim a região com os melhores resultados alcançados no período pelo Cipe. O apoio aos projetos foi maior entre 1984 a 1994, declinando nos 5 anos posteriores em favor das operações rea-lizadas na Europa Central e do Leste e na Eurásia. Na avaliação do Cipe, grande parte dos projetos apoiados foi importante para as reformas institu-cionais ocorridas nos países latino-americanos e outros contribuíram com elementos-chave para a governança democrática (democratic governance).

Segundo avaliações internas do Cipe, um dos elementos que explicaria o “sucesso” de sua atuação no continente é a capacidade das organizações parceiras de adaptar os programas às condições locais de cada país. O Pro-grama de Apoio Legislativo é mencionado como exemplo. Criado pelo Cen-tro de Orientación Económica (COE), na República Dominicana, o pro-grama baseava-se na análise “não partidária” da legislação, de modo acessível e apoiada por estudos em profundidade realizados por uma equipe de eco-nomistas e tecnocratas44. Esses relatórios basicamente analisavam as leis em

41 Cipe, Annual report, 2002, p. 31. 42 John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 14.43 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of

Cipe’s global programs, cit., p. 60.44 John Bohn, “Cipe at 15 years”, cit., p. 16.

HEGEMONIA_miolo.indd 266HEGEMONIA_miolo.indd 266 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 258: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 267

debate no Legislativo, resumiam os efeitos da legislação sobre os setores pú-blico e privado, o orçamento nacional e o sistema legal, e apresentavam re-comendações específicas para representação, revogação, rejeição ou emendas. Os relatórios eram distribuídos entre os legisladores, a mídia e o público45. Segundo o Cipe, até 1999, em pelo menos doze países, essa atividade foi realizada com sucesso e os relatórios produzidos constituíram uma fonte de informação que permitiu aos legisladores participar e tomar decisões em questões econômicas fundamentais46.

Em 2002, os programas da organização buscavam implementar “insti-tuições ausentes” na economia de mercado e suprir o “déficit de gover-nança democrática”, além de “apoiar os líderes empresariais e os pensadores pró-mercado na implementação das reformas institucionais e o papel da imprensa na investigação da corrupção nos setores público e privado”47. No relatório anual de 2004, o Cipe avaliou que se agudizara a “crise da demo-cracia” em países como Venezuela, Equador, Peru e Bolívia. Em 2009, de-senvolvia 21 programas em 12 países da América Latina48 (ver anexo).

A seguir examino em mais detalhes a presença do Cipe no Peru e na Argen-tina e identifico intervenções do NED (diretas ou através do IRI e do NDI).

2.2 Os parceiros no Peru: o Instituto Libertad y Democracia (ILD)e o Instituto Apoyo

Segundo a avaliação do Cipe, o ILD é amplamente reconhecido por sua atuação no estabelecimento de um consenso em torno da economia de mercado no Peru durante os anos 1980 e dos pilares dos programas de re-forma econômica durante os anos 199049. A figura de destaque é o funda-dor do ILD, Hernando De Soto50.

45 Cipe, Annual report, 2003.46 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of

Cipe’s global programs, cit., p. 65. Segundo o Cipe, a avaliação dessa atividade indi-cou que 65% dos projetos de apoio legislativo tiveram um impacto alto ou excep-cional na América Latina (ver ibidem, p. 63). O programa foi aplicado também na África, na Ásia e na Europa Central.

47 Ibidem, p. 31.48 Cipe, Annual report, 2009.49 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of

Cipe’s global programs, cit., p. 61.50 Cipe, Annual report, 2003, cap. 6, p. 6.

HEGEMONIA_miolo.indd 267HEGEMONIA_miolo.indd 267 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 259: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

268 • Hegemonia às avessas

Entre 1981 e 1984, o ILD, então com um pequeno grupo de pesquisa-dores, analisou a situação do mercado informal no Peru e passou a defender um processo de mudanças que teria permitido reduzir o procedimento de registro legal de um negócio e ajudado milhares de empresas a passar do setor informal para o formal da economia51. De Soto avaliou que uma das formas de superar a economia informal e o atraso do capitalismo em geral no Peru era legalizar os títulos de propriedade dos lotes urbanos e habita-ções da população pobre, criando assim a possibilidade de serem utilizados como garantia de acesso a serviços (água, eletricidade) e de obtenção de em-préstimos para pequenos negócios52.

Em 1984, o ILD recebeu os recursos do primeiro programa de apoio do Cipe. Isso teria contribuído para criar um sistema mais estável de governo e minar o apoio ao Sendero Luminoso, constituindo-se assim, na avaliação do Cipe, uma abordagem alternativa para “combater o terrorismo”53. Se-gundo Islam, a obra de Soto The other path: The invisible revolution in the Third World*, publicada originalmente em 1986, oferecia “aos pobres uma alternativa à revolução: o empreendedorismo [entrepreneurship]”54. Essa perspectiva, que também identificava na debilidade das instituições a bar-reira primária para o crescimento empresarial e destacava a importância do desenvolvimento de instituições (como garantia de contratos, mercado fi-nanceiro e sistema judicial), teve uma boa acolhida no Cipe e passou a ser divulgada nas organizações multilaterais55.

Para sua atuação política no Peru nos anos 1990, o Cipe estabeleceu vínculos com outra organização: o Instituto Apoyo56. Criado em 1989 para

51 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 61, e Nafisul Islam, “Making the ‘extralegal’ legal”, em CIPE, Strategies for policy reform: experiences from around the world (Washington, DC, Cipe, 2007), p. 54-8.

52 Nafisul Islam, “Making the ‘extralegal’ legal”, cit., p. 55.53 Cipe, Annual report, 2003, cap. 1 e 6, p. 2 e 13, respectivamente.* Nova York, Basic Books, 2002. (N. E.)54 Segundo o Cipe, essa obra teria revolucionado a maneira de pensar dos acadêmicos,

especialistas em desenvolvimento e governantes sobre o papel do direito de proprie-dade (Cipe, Annual report, 2003, cap. 1, p. 2).

55 Nafisul Islam, “Making the ‘extralegal’ legal”, cit., p. 55-6.56 Segundo levantamento realizado pelo Foreign Policy Research Institute (FPRI) da

Filadélfia, em um universo de 5.080 think tanks e organizações da sociedade civil,

HEGEMONIA_miolo.indd 268HEGEMONIA_miolo.indd 268 9/8/10 4:27:41 PM9/8/10 4:27:41 PM

Page 260: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 269

realizar pesquisa de política econômica, esse instituto é vinculado à Apoyo, uma entidade privada de consultoria empresarial fundada em 1977, duran-te o governo militar.

O Instituto Apoyo começou a realizar o serviço de assessoria legislativa justamente no momento em que o governo de Fujimori iniciava seu pro-grama de estabilização financeira e reforma econômica. Assim, entre julho de 1990 e fins de 1992, o Cipe repassou 150 mil dólares para o programa de Apoio ao Congresso do Instituto, que, por sua vez, fez um aporte de 90 mil dólares para o programa. Na avaliação de Mashek, o serviço de relató-rios legislativos mensais foi recebido com grande entusiasmo no Congresso, inclusive por parlamentares da “esquerda moderada”57. O serviço “era novo no Peru, e ainda único”, e também alimentava a imprensa diária, editoriais e colunistas, além de painéis de discussão nos canais de televisão.

O serviço sofreu descontinuidade quando o Congresso foi fechado, em abril de 1992. A formação da Assembleia Constituinte, porém, mobilizou o Cipe e o Instituto Apoyo para revisar e apresentar propostas sobre os itens econômicos. Conforme informações de Mashek, as propostas foram conso-lidadas em quatro relatórios distribuídos no Congresso, no Executivo, na imprensa e na comunidade empresarial, além de outras instituições58. Uma série de encontros foi planejada com os parlamentares encarregados da ma-téria econômica e alguns deles teriam trabalho em estreita relação com o Instituto Apoyo. Também se estabeleceu contato e coordenação com o Mi-nistério da Economia.

O Instituto Apoyo esteve presente até 2005, quando, em parceria com o Cipe, realizou uma série de discussões que serviu de base para a definição de uma Agenda Empresarial Nacional para o Peru e representa todo um programa de governo que visava as eleições presidenciais de 2006. No pe-río do de 2005 a 2007, o Cipe apoiou iniciativas para o desenvolvimento da governança corporativa no país em parceria com a Asociación de Empresas

408 estão na América Latina, das quais 21 no Peru. O Instituto Apoyo foi conside-rado um dos cinco melhores think tanks do continente. Os demais são da Argentina (dois), do Brasil e do Chile. Disponível em: < http://www.apoyo.com>. Acesso em: 4 set. 2008.

57 Robert W. Mashek, Performance and prospects for Legislative Advisory Programs in Latin América (Washington, DC, Cipe), 15 mar. 1993, p. 100.

58 Ibidem, p. 101.

HEGEMONIA_miolo.indd 269HEGEMONIA_miolo.indd 269 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 261: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

270 • Hegemonia às avessas

Promotoras del Mercado de Capitales (Procapitales)59 e a Universitad Perua-na de Ciencias Aplicadas (UPC)60.

A partir de 2006, o Cipe passou a apoiar as atividades da Confederación de Instituciones y Empresas Privadas (Confiep), uma organização fundada em 1984 que reúne a maioria dos setores empresariais do país, incluindo a Asociación de Bancos de Peru (Asbanc). Em pauta, a atualização da Agenda Nacional de Reformas Econômicas no Peru e a implementação das refor-mas institucionais que, segundo essa confederação, não teriam avançado o suficiente no país. Entre os pontos abordados, a revisão e difusão da agenda de reformas para o novo Congresso e o papel dos empresários na reforma educacional61.

2.3 Os parceiros do Cipe na Argentina: Ieral, Cippec e CEFO Instituto de Estudios Económicos de la Realidad Argentina e Lati-

noamericana (Ieeral) foi organizado em 1977 por empresários da cidade de Córdoba, juntamente com a Fundación Mediterránea, à qual está vincula-do62. Em 1996 passou a denominar-se Instituto de Estudios de la Realidad Argentina y Latinoamericana (Ieral). O objetivo da fundação é promover pesquisas sobre questões econômicas, a fim de criar um espaço para discus-são e formulação de propostas de políticas econômicas a partir da perspec-tiva empresarial. “A metodologia de trabalho imposta pela Fundación Me-diterránea, desde sua criação, é a interação permanente entre empresários e técnicos”63. O Ieral contou com uma equipe de economistas dedicados em

59 Fundada em 18 de julho de 2001, com sete associados; em 2008, reunia cinquenta empresas. Seu objetivo é desenvolver o mercado de capitais e implementar práticas de governança corporativa. Disponível em: <http://www.invertir.org.pe>. Acesso em: 4 set. 2008.

60 Em 2005 foi realizada uma pesquisa sobre Governança Corporativa com 4 mil em-presas peruanas. Ver Cipe, Annual report, 2005, 2006 e 2007.

61 Disponível em: <http://www.confiep.org.pe>. Acesso em: 4 set. 2008. 62 Para uma análise detalhada sobre a Fundación Mediterránea e o Ieral ver os traba-

lhos de Hernán Ramírez, La Fundación Mediterránea y de como construir poder: la génesis de un proyecto hegemónico (Córdoba, Ferreyra, 2000) e “Institutos de estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996”, Anos 90, Porto Alegre, v. 13, 2006, p. 179-214.

63 Ieral, Orígenes y objetivos. Disponível em: <http://www.ieral.org>. Acesso em: 25 set. 2005.

HEGEMONIA_miolo.indd 270HEGEMONIA_miolo.indd 270 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 262: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 271

tempo integral à pesquisa. Domingo Cavallo, presidente do instituto, assu-miu o Ministério da Economia em janeiro de 1991 e formou parte de sua equipe com pesquisadores do Ieral64. Segundo Geurts et al.65, muitos dos relatórios produzidos pelo Ieral serviram de base para as propostas de refor-ma da economia argentina adotadas por Cavallo. Conforme já menciona-do, o Programa de Apoio ao Legislativo, desenvolvido entre março de 1988 e fevereiro de 1993 naquele país, canalizou quase 1 milhão de dólares, dos quais cerca de 450 mil dólares saíram dos fundos do Cipe.

A partir de meados dos anos 1990, o Ieral ampliou suas pesquisas pa-ra outras áreas, como educação, saúde, justiça e seguridade e sua influência teria se estendido também para outras reformas, como as do trabalho, da lei do consumidor, da taxa de administração e do serviço civil66. O Banco In-teramericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial também fi-nanciam projetos desenvolvidos pelo Ieral67.

O apoio do Cipe ao Ieral aparentemente diminuiu a partir da crise eco-nômica que assolou o país entre 2001 e 200268 e que, segundo Braun et al.69, levou também a um questionamento de um conjunto de think tanks en-quanto fonte de análise política e recrutamento de quadros para o Estado70.

64 Hernán Ramírez, “Institutos de estudos econômicos de organizações empresariais”, cit., p. 187-8.

65 Geoffrey Geurts, Steven Rogers e John D. Sullivan (orgs.), Impact and results of Cipe’s global programs, cit., p. 61.

66 Ibidem, p. 61; Cipe. Annual report, 2003, cap. 3, p. 5-6.67 Fontes de financiamento do Ieral em 2003: 50% de “organizações filantrópicas” ar-

gentinas, 25% de organizações internacionais (“filantrópicas e de crédito”), 15% de recursos governamentais (diferentes níveis) e o restante de contribuições empresa-riais e individuais (fonte: Gabriel Sánchez, diretor de pesquisa e vice-presidente do Ieral, em março de 2004. Disponível em: <http://www.researchandpolicy.org/con-sultas>. Acesso em: 25 set. 2005).

68 As referências ao Ieral no relatório do Cipe de 2003 são pouco precisas. Informa apenas que continua realizando atividades de análise legislativa para influenciar o Congresso e a opinião pública.

69 Miguel Braun, Antonio, Cicioni e Nicolas J. Ducote, “Think tanks in developing countries: lessons from Argentina”, em Diane Stone e Andrew Deham (orgs.), Think tank traditions: policy research and the politics of ideas (Manchester, Manches-ter University Press, 2004).

70 Além de Domingo Cavallo, Humberto Petrei e Aldo Dadone, da Fundación Medi-terránea, membros do Centro de Investigaciones Sociales sobre el Estado (Cisea), e

HEGEMONIA_miolo.indd 271HEGEMONIA_miolo.indd 271 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 263: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

272 • Hegemonia às avessas

A partir de 2002, o Cipe passou a apoiar o Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equidad y el Crecimiento (Cippec), organiza-ção que procura desenvolver um consenso sobre a necessidade de reforma política e econômica na Argentina, atuando na formulação e na implemen-tação de políticas públicas71. Em pouco tempo, além do Cipe, o centro pas-sou a contar com apoio de várias fundações e organizações da sociedade civil e recursos de organismos como o Banco Mundial e o Banco Interame-ricano de Desenvolvimento (BID)72. Mas é importante destacar que o apoio do NED ao Cippec foi muito mais amplo e provavelmente fundamental para consolidá-lo. Assim, além do Cipe, o NED canalizou recursos para o Cippec de forma direta, em especial por meio do IRI. No período de 2002 a 2007 o Cippec recebeu dessas organizações mais de 900 mil dólares (somente do IRI recebeu 525 mil dólares).

Além de sua atuação no Congresso argentino, o Cippec também opera com o Ministério da Educação em programas educacionais73 e com organi-zações da sociedade civil (coordena na América Latina o Programa de Alian-zas de la Sociedad Civil, do Instituto para o Desenvolvimento Interna-cional–Overseas Development Institute [ODI], uma think tank britânica financiada por outras fundações de pesquisa, organizações internacionais, ONGs e empresas).

Em 2006, dentro de sua estratégia de apoio à governança corporativa na América Latina, o Cipe articulou sua atuação com a Fundación Centro de Estabilidad Financiera (CEF) com o objetivo de desenvolver um padrão

Dante Caputo e Felipe Sola, do Centro de Estudios Macroeconómicos de Argentina (Cema), Roque Fernandez e Carlos Rodriguez também ocuparam importantes pos-tos no comando do Estado (ver Miguel Braun, Antonio Cicioni e Nicolas J. Duco-te, “Think tanks in developing countries”, cit.).

71 Ver: <http://www.cippec.org>, e Cipe, Annual report, 2002 e 2007. Entre os onze “jovens profissionais” que fundaram o Cippec em 2000, oito tinham em comum a formação (mestrado ou doutorado) na Universidade de Harvard (quatro em políti-cas públicas, três em economia, um em administração pública e outro em política educacional). Os demais se formaram na London School of Economics, na Univer-sidade de Northwestern na Universidade de Chicago. Disponível em: <http://www.cippec.org/Main.php?do=contentShow&id=4>. Acesso em: 29 set. 2008.

72 Além da capital, o Cippec atua em onze províncias argentinas e conta com um staff de 82 pessoas.

73 Miguel Braun, Antonio, Cicioni e Nicolas J. Ducote, “Think tanks in developing countries”, cit., p. 211; Cipe, Annual report, 2005 e 2007.

HEGEMONIA_miolo.indd 272HEGEMONIA_miolo.indd 272 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 264: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 273

de medição da qualidade das práticas de governança corporativa nas insti-tuições financeiras na Argentina. Também desenvolveu um código de ética e de responsabilidade social para servir como um guia para instituições fi-nanceiras, bem como para agências financeiras reguladoras74.

2.4 Estratégias do Cipe para o período 2007-2012Em fevereiro de 2007 o Cipe divulgou um documento a respeito da es-

tratégia da organização para o período de 2007 a 201275. As considerações seguintes estão baseadas nesse documento.

Na avaliação do Cipe, a emergência do “populismo” e do “protecionis-mo” são dois grandes desafios a serem enfrentados. Esse “novo populismo”, segundo o documento, procura desvincular a liberalização política das re-formas de livre mercado e livre comércio e, ao mesmo tempo, busca refor-çar laços políticos e econômicos regionais contrários à reforma global. Isso formaria o núcleo do que se denominou “recuo da democracia” (democracy backlash). “O desafio para os próximos anos é sustentar o ímpeto das refor-mas democráticas e do livre mercado”76.

Na América Latina, alguns países estariam vinculados ao “recuo demo-crático”: Venezuela, Bolívia e Argentina são os exemplos citados. O presi-dente Hugo Chávez é considerado responsável pelo desenvolvimento de um sistema político com um Executivo sem controle; na Argentina, a pre-sidência estaria concentrando superpoderes em detrimento do Congresso; e, na Bolívia, o presidente “demonstrou desprezo pelo Estado de direito e pelos direitos de propriedade por nacionalizar hidrocarboneto e ter avança-do na expropriação de terras”. Deixando claro que esses países estariam no centro da estratégica do Cipe para a América Latina, o documento afirma: “É essencial que se desenvolvam estratégias de combate a essas ameaças ao longo dos próximos cinco anos”77.

O Cipe considera que, apesar dos resultados macroeconômicos positi-vos em muitos países na região, existe um questionamento sobre a “qua-lidade do desenvolvimento”. Sondagens de opinião apontam claramente

74 Cipe, Annual Report, 2006.75 Cipe, Five year strategy 2007-2012. Disponível em: <http://www.cipe.org/about/

strategy5year.pdf>. Acesso em: ago. 2010.76 Ibidem, p. 3.77 Ibidem, p. 34; grifo meu.

HEGEMONIA_miolo.indd 273HEGEMONIA_miolo.indd 273 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 265: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

274 • Hegemonia às avessas

que a população, apesar de apoiar a democracia, sente-se frustrada por não ser beneficiada diretamente pelo sistema78. São necessários esforços para criar instituições que tratem a “frustração popular” e criem prosperidade para a maioria da população da região. O fortalecimento das instituições inclui uma reforma política, o reforço dos direitos de propriedade e estru-turas jurídicas que garantam o cumprimento das leis. Reformas institucio-nais são fundamentais para garantir uma democracia verdadeira e sustentá-vel, segundo o documento79.

Está clara a estratégia de manter as articulações com organizações locais, especialmente think tanks, associações empresariais e organizações da socie-dade civil. Cinco temas foram considerados o foco da atuação a ser desen-volvida. O primeiro é atuar na formação de propostas econômicas para os partidos políticos. O objetivo é combater as propostas “populistas” e desen-volver uma abordagem centrada em governança, reformas institucionais e educação cidadã acerca das vantagens das políticas propostas. O segundo foco de atuação é a reforma do setor informal. O exemplo inspirador vem da atuação do Instituto Libertad y Democracia, no Peru. Existem razões polí-ticas no interesse pelo setor informal: o Cipe avalia que ele oferece uma ba-se importante para as políticas populistas, e o fortalecimento de pequenas e médias empresas é de interesse do Cipe. O terceiro foco é capacitar o setor privado para participar de forma mais ativa nos processos de definição das po-líticas públicas, sempre com o objetivo de criar um consenso em torno da democracia e das reformas pró-mercado. Ao mesmo tempo, como quarto foco, o Cipe seguirá apoiando a implementação da “governança corporativa e a cidadania corporativa” (corporate citizenship), como mecanismos para for-talecer o mercado de capitais e atrair investimentos. Finalmente, o quinto foco de atuação será o combate à corrupção, que, segundo avaliação do Cipe, representa um custo elevado para as empresas que atuam na América Latina (estimam-se em 10% os custos de transação envolvidos em corrupção).

3. Cipe e o sistema financeiro

Como mencionei na introdução deste texto, ao iniciar a pesquisa atual, parti da estrutura de representação de classe do empresariado financeiro na América Latina, expressa na rede transassociativa das associações de bancos

78 Cipe, Five year strategy 2007-2012, cit., p. 35-6.79 Ibidem, p. 35.

HEGEMONIA_miolo.indd 274HEGEMONIA_miolo.indd 274 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 266: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 275

e indaguei sobre as possíveis conexões que se estabeleciam com outros espa-ços de articulação e organização de classe. Encontrar no caminho o Cipe – e, em consequência, o NED – alargou o horizonte da pesquisa e descortinou um universo de relações e significados bem mais amplo do que eu imagina-va de início.

Esse movimento exploratório-descritivo preliminar permitiu identificar algumas conexões com o sistema financeiro e, mais especificamente, com a estrutura de classe expressa nas associações de bancos. Para efeito analítico, considerei que a interconexão entre esses níveis poderia se estabelecer dire-tamente, tanto por essas associações como pelas instituições financeiras, em especial aquelas de maior centralidade na rede transassociativa.

A rede de parceiros do Cipe, uma organização atrelada aos interesses es-tratégicos do governo e das empresas dos Estados Unidos, não esgota o uni-verso de organizações político-ideológicas que se vinculam ao sistema finan-ceiro, e nem sequer podemos afirmar que estas sejam as mais significativas. Ainda assim, os vínculos identificados dão conta da complexa relação que se estabeleceu entre os Estados Unidos e organizações internas na América Latina para construir sua hegemonia a partir de meados dos anos 1980.

Um sentido mais geral dessa conexão é dado pelo posicionamento do Cipe de considerar o papel fundamental das associações empresariais como atores políticos fundamentais no processo de implementação das reformas políticas e econômicas voltadas para o mercado. Em outro sentido, as pro-postas de reformas de livre mercado coincidem com o discurso das associa-ções do setor financeiro, embora nem sempre quando se trate de abertura do próprio setor.

Em termos mais específicos, pode-se identificar o envolvimento direto de instituições financeiras no financiamento de algumas das organizações que realizaram ou ainda mantêm “parcerias” com o Cipe. Uma primeira referência é a participação das instituições financeiras privadas, juntamen-te com outras empresas, brasileiras e multinacionais, no financiamento dos Institutos Liberais organizados no Brasil a partir de 1983, conforme foi mencionado80. Um desses institutos, o do Rio de Janeiro, foi quem estabe-leceu uma “parceria” direta com o Cipe.

80 Alguns exemplos são bem emblemáticos da relação com os Institutos Liberais, como é o caso de Roberto Konder Bornhausen, do Unibanco, que ocupou a presidência de várias entidades de classe do setor.

HEGEMONIA_miolo.indd 275HEGEMONIA_miolo.indd 275 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 267: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

276 • Hegemonia às avessas

Um segundo exemplo refere-se às organizações envolvidas no programa mundial de governança corporativa estimulado pelo Cipe, em estreita asso-ciação com a Usaid. Instituições financeiras (Bradesco, Santander, Itaú Unibanco) estão entre as empresas “associadas patrocinadoras” que contri-buem diretamente para a manutenção do Instituto Brasileiro de Governan-ça Corporativa (IBGC). O Itaú envolveu-se diretamente na ampliação da cobertura jornalística sobre governança corporativa por meio do Prêmio IBGC-Itaú Jornalismo, cujo objetivo é estimular os jornalistas a produzi-rem matérias sobre o tema (em 2009 o instituto unificou os Prêmios Traba-lhos Acadêmicos e de Jornalismo e instituiu o Prêmio IBGC-Itaú Uniban-co: Academia e Imprensa)81.

No Chile, uma das principais fontes privadas de recursos do Centro pa-ra el Gobierno de la Empresa é o espanhol Banco Santander, um dos mais centrais na rede transassociativa. Na Argentina, o Cipe atua nesse campo com a Fundación Centro de Estabilidad Financiera (CEF), uma organiza-ção criada durante a crise de 2001 com o objetivo de “contribuir para a análise, o debate e a formulação de políticas públicas em temas relacionados aos serviços financeiros”82. A Asociación de Bancos Privados de Capital Ar-gentino (Adeba) participa do Conselho de Administração do CEF83. O projeto desenvolvido pelo CEF com apoio do Cipe em 2007-2008 está re-lacionado com a governança corporativa entre as empresas financeiras que operam na Argentina. Situação semelhante podemos encontrar no México, onde o Centro de Excelencia en Gobierno Corporativo (CEGC)84 inclui a

81 É também uma forma de contornar a restrição estatutária do IBGC sobre a pu-blicação de matérias pagas. Disponível em: <http://www.ibgc.org.br>. Acesso em: 2 abr. 2010.

82 O Mercado a Término de Rosario (Rofex) e o Instituto Argentino de Ejecutivos de Finanzas (Iaef ) são os fundadores do CEF. O site da organização não identifica ex-plicitamente o conjunto de financiadores, que inclui, além dos fundadores, fontes multilaterais e bilaterais, institutos públicos e privados, assim como aportes indivi-duais. Disponível em: <http://www.cefargentina.org>. Acesso em: 13 out. 2008. Ver em especial CEF: Memoria de Actividades, 2006).

83 A Adeba foi criada em 1972, com a denominação de Asociación de Bancos Argen-tinos, e reorganizada com o nome atual em abril de 2003 por iniciativa de bancos privados argentinos. Disponível em: <http://www.adeba.info/institucional.html>. Acesso em: ago. 2010.

84 O CEGC foi fundado em março de 2004 pela Universitad Anáhuac del Sur e pela empresa Deloitte de México, com o apoio e a assessoria da Universidade de Yale, o

HEGEMONIA_miolo.indd 276HEGEMONIA_miolo.indd 276 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 268: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 277

Asociación Mexicana de Bancos entre os sete membros de seu Conselho Consultivo Institucional85. Na Argentina, o Instituto Argentino para el Gobierno de las Organizaciones (Iago) foi organizado pela Fundación Empresarial para la Calidad y la Excelencia (Fundece) e o Instituto para el Desarrollo Empresarial (Idea), uma organização que conta com mais de quatrocentas empresas associadas, entre as quais bancos locais e estrangei-ros86, e associações de classe, incluindo a Asociación de Bancos de la Argen-tina (ABA) e a Asociación de Bancos Privados de Capital Argentino (Adeba).

No caso argentino, bancos locais e estrangeiros encontram-se entre as empresas mantenedoras da Fundación Mediterránea, ao qual o Ieral está vinculado. Entre as instituições privadas, é o Citibank que estabelece uma conexão indireta entre o Cipe e algumas associações de bancos, por sua participação simultânea na diretoria daquelas associações e na diretoria das Câmaras Americanas de Comércio em vários países da América Latina87. Pode-se constatar que, na parceria direta com as organizações de represen-tação de classe do empresariado na América Latina, o Cipe privilegia aque-las de maior representatividade setorial, nas quais normalmente as associa-ções de bancos também participam, como, por exemplo, a Confederación de Instituciones y Empresas Privadas (Confiep), da qual participa a Asocia-ción de Bancos de Peru (Asbanc).

Considerações finais

Neste artigo examinei aspectos particulares de um processo mais amplo de relações que se estabelecem entre organizações norte-americanas insti-

Banco Mundial e o National Association of Corporate Directors (NACD), uma or-ganização vinculada aos membros dos conselhos empresariais que se dedica à ques-tão da governança corporativa e está localizada na capital norte-americana.

85 Os demais membros são: Instituto Mexicano de Ejecutivos de Finanzas, Nacional Fi-nanciera, Bolsa Mexicana de Valores, Confederación de Cámaras de la Industria, Asociación Mexicana de Intermediarios Bursátiles e o Club de Empresarios Bosques.

86 Entre as dezenove instituições financeiras mencionadas como associadas, encon-tram-se ativos participantes das associações de classe como o Citibank, o ABN Amro, o Banco Itaú, o Deutsche Bank e o HSBC. Disponível em: <http://www.ideared.org>. Acesso em: 13 out. 2008.

87 Em 2008, o Citibank estava presente na diretoria das Câmaras Americanas de Co-mércio nos seguintes países: República Dominicana, Guatemala, Peru, Equador (Quito), Uruguai, Brasil (Rio de Janeiro).

HEGEMONIA_miolo.indd 277HEGEMONIA_miolo.indd 277 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 269: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

278 • Hegemonia às avessas

tuídas no começo dos anos 1980 e organizações na América Latina, com o objetivo de não apenas renovar a ordem capitalista no continente, mas tam-bém de desenvolvê-la conforme os interesses estratégicos do governo e das empresas dos Estados Unidos. A análise das informações sintetizadas neste artigo possibilita algumas reflexões.

Em termos gerais, as organizações norte-americanas aglutinadas em tor-no do NED tratam de criar e manter um consenso geral no continente em torno de um eixo fundamental representado por democracia e livre mer-cado. No fim dos anos 1980, quando as principais propostas econômicas foram definidas em torno do chamado Consenso de Washington, uma rede de entidades já estava atuando na América Latina, com apoio financeiro e organizacional, no sentido de formular e implementar políticas públicas convergentes com o consenso mencionado. Coube ao Cipe atuar de forma mais direta nos interesses empresariais e nas organizações a eles vinculadas, enquanto o Solidarity Center atuava em organizações de trabalhadores. As associações empresariais foram estimuladas a assumir um papel central na definição das políticas públicas e atuar nos poderes executivo e legislativo. Em seu conjunto, identificamos um processo de construção de hegemo-nia no sentido gramsciano do termo. Como sugere Mato88, a expansão das ideias neoliberais não é simples consequência das políticas econômicas im-postas por instituições financeiras multilaterais e/ou FMI, mas é – além disso e até cronologicamente antes – a ascendência dessas ideias que é o “re-sultado de práticas de atores sociais” que participam de redes transnacionais e promovem de longa data “um sentido comum” de natureza neoliberal. A forma e o ritmo que assumiu a expansão do ideário e a implementação de políticas neoliberais estiveram condicionados pelas situações específicas de cada país, em um contexto de reestruturação econômica global89. A cria-ção de um consenso em torno de reformas econômicas e políticas alcançou relativo sucesso, considerando as políticas públicas adotadas pela maioria

88 Daniel Mato, 2007a, p. 22.89 Para uma análise detalhada, incluindo casos nacionais, ver em Eduardo Basualdo e

Enrique Arceo, “Los cambios de los sectores dominantes em América Latina bajo el neoliberalismo”, em Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y expe-riencias nacionales (Buenos Aires, Clacso, 2006), p. 15-26. E o livro de Sebastião C. Velasco e Cruz, Trajetórias: capitalismo neoliberal e reformas econômicas nos países da periferia (São Paulo, Unesp, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 278HEGEMONIA_miolo.indd 278 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 270: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 279

dos países do continente ao longo das décadas de 1980 e 1990 e a influên-cia que os valores capitalistas têm na região. Um processo que se estabelece não sem resistências e movimentos contra-hegemônicos, que ganham força especialmente quando as implicações sociais, políticas e econômicas do mo-delo adotado se revelam de forma mais clara. É quando também se percebe o alcance limitado da democracia que essas organizações estão dispostas a aceitar: uma democracia que não pode contrariar o mercado, tampouco questionar os interesses estratégicos dos Estados Unidos.

Deve-se ter presente que a atuação do NED e suas quatro organizações foi em parte desenvolvida no passado por meio da Central de Inteligên-cia Americana (CIA), como reconhecem vários autores, inclusive dirigentes do próprio NED. A atuação por meio de centros de pesquisa e de formu-lação de políticas públicas, e também por ação política direta, realizou-se em todo o continente para interferir nos processos políticos locais e contri-buiu para desestabilizar e derrubar governos na região90.

A análise da atuação do Cipe deve ser realizada levando em conta o con-junto de ações desenvolvidas pelo NED e considerada no contexto mais amplo da política externa norte-americana. O NED e as quatro organiza-ções a ele vinculadas expressam a articulação entre o Estado e as grandes empresas norte-americanas, combinada com um setor de cúpula da classe trabalhadora daquele país e os dois partidos políticos dominantes (Repu-blicano e Democrata). Sua articulação, organização e atuação envolve uma rede que inclui órgãos do governo dos Estados Unidos, associações empre-sariais, think tanks, intelectuais, universidades, centros de pesquisa, mídia, grupos econômicos e financeiros, ONGs e outras organizações da socieda-de civil nos Estados Unidos e na América Latina. Além disso, como foi pos-sível perceber, instituições do Grupo Banco Mundial (o próprio Banco e o IFC) e o BID se integram a essa estratégia, pois se constatou que algumas organizações “parceiras” do Cipe também recebem fundos dessas institui-ções. Dessa forma, a atuação do Banco Mundial e do BID não se realiza apenas na dimensão macroeconômica e de forma direta com os governos, mas também reforça essa extensa rede de ação em favor de reformas políti-

90 No caso brasileiro, um exemplo significativo é o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes) e seu papel no golpe de Estado de 1964 e no primeiro governo mili-tar (sobre esse caso, ver em especial René Armand Dreifuss, 1964: a conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe, 3. ed., Petrópolis, Vozes, 1981).

HEGEMONIA_miolo.indd 279HEGEMONIA_miolo.indd 279 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 271: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

280 • Hegemonia às avessas

cas e de livre mercado, segundo os interesses hegemônicos dos Estados Uni-dos. Embora escape do alcance deste artigo, é necessário ter presente que no período, além da estratégia política e ideológica descrita em parte neste tra-balho, os Estados Unidos mantiveram uma ativa estratégia militar e amplia-ram acordos e bases militares na década de 1990, estendendo sua presença militar na Europa Central e em mais de cem países ao redor do globo91.

Na América Latina atuam também outras organizações que não se vin-culam diretamente aos interesses estratégicos dos Estados Unidos, man-tendo com eles tanto campos de articulação como de concorrência. Al-gumas delas estão vinculadas a partidos políticos europeus. Alguns países criaram organizações similares para atuar no exterior, como o Canadá com seu International Center for Human Rights and Democratic Development (ICHRDD), criado em 199092. Outras são controladas por instituições pri-vadas e desempenham um papel fundamental na promoção das ideias neo-liberais em escala mundial, como o Institute of Economic Affairs (IEA) e Atlas Economic Research Foundation93. Entre as organizações latino-ame-ricanas que receberam recursos dessa fundação, algumas também foram apoiadas pelo Cipe (por exemplo, o Instituto Libertad y Democracia no Peru e o Centro de Divulgación del Conocimiento Económico na Vene-zuela). No âmbito da ONU, especialmente a partir de 1993, os Estados Unidos se defrontaram com diferentes concepções e propostas de atuação na promoção da democracia94.

91 James Petras, “Os fundamentos do neoliberalismo”, em Waldir J. Rampinelli e Nil-do Ouriques (orgs.), No fio da navalha: crítica das reformas neoliberais de FHC (São Paulo, Xamã, 1997a) e José L. Fiori (org.), O poder americano (Petrópolis, Vozes, 2004).

92 Scott e Walters desenvolvem um estudo comparativo entre o NED, o International Center for Human Rights and Democratic Development (ICHRDD) e a West-minster Foundation for Democracy (WFD), estabelecida pelo governo da Inglater-ra em 1992 (“Supporting the wave”, cit.). Abelson compara think tanks do Canadá e dos Estados Unidos (“Do think tanks matter? Opportunities, constraints and incentives for think tanks in Canada and the United States”, Global Society, v. 14, n. 2, 2000, p. 213-36).

93 Denise Barbosa Gros, “Institutos liberais e neoliberalismo no Brasil da Nova Repú-blica”, cit.; Daniel Mato, 2007a.

94 Jerry Pubantz, “The US–UN relationship and the promotion of democratic na-tion-building”, Societies Without Borders, n. 2, 2007, p. 93-116.

HEGEMONIA_miolo.indd 280HEGEMONIA_miolo.indd 280 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 272: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 281

O fato de realizar parcerias com o Cipe não significa que as organiza-ções passem a depender necessariamente da organização norte-americana. As parcerias se fazem num contexto de convergência de interesses do ponto de vista da manutenção e da renovação de uma ordem capitalista, mas o papel que as organizações podem desempenhar nesse processo pode sofrer variações importantes. Como já foi mencionado, as organizações locais operam também com diferentes fontes de financiamento. A estratégia é de longo prazo, mas o Cipe operacionaliza suas ações por meio de projetos específicos de apoio organizacional, político e financeiro, com objetivos e prazos definidos. Esse procedimento lhe permite operar com grande flexi-bilidade para manter, redefinir ou romper as parcerias, em função dos re-sultados alcançados, das alterações conjunturais em cada país ou de suas próprias prioridades, que são definidas em termos de sua atuação global. Como observa Cruz, para analisar a política do neoliberalismo “é preciso ver como os grupos/tendências políticos identificados com essa perspectiva atuam, que problemas enfrentam, que alianças precisam estabelecer para se colocar em posição de implementar seus projetos”95.

O sistema financeiro vincula-se de diversas formas à rede de organiza-ções mencionada. Como se viu, instituições financeiras multilaterais como o Banco Mundial e o BID apoiam algumas dessas organizações. Associações de representação de classe do setor financeiro participam de associações em-presariais que também recebem recursos do Cipe. Instituições financeiras privadas, especialmente grupos financeiros, participam e doam recursos. O Citigroup, por exemplo, tem uma presença ativa nas associações de ban-cos na América Latina, assim como nas Câmaras Americanas de Comércio existentes no continente. Mas é necessário destacar sobretudo que o sistema financeiro na América Latina, em ritmos e graus diversos de intensidade, sofreu um profundo processo de abertura, desregulamentação e privatiza-ção, política que o NED e especialmente o Cipe apoiaram e contribuíram para estabelecer.

O modelo de democracia institucional que os Estados Unidos preten-dem exportar para o mundo, além de essencialmente articulada com a eco-nomia de livre mercado, busca gerar posições aliadas ou amistosas com seus interesses políticos e econômicos. Não se trata de implementar, manter e

95 Sebastião C. Velasco e Cruz, Trajetórias, cit., p. 41.

HEGEMONIA_miolo.indd 281HEGEMONIA_miolo.indd 281 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 273: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

282 • Hegemonia às avessas

renovar uma ordem democrática e capitalista em cada país apenas; ela deve articular-se com os interesses estratégicos da potência hegemônica. Dessa forma, o campo da disputa democrática cria alianças e também rivalidades com as iniciativas de outros países capitalistas, que também desenvolvem ações semelhantes por meio de organizações específicas. Ao mesmo tempo, não consegue ocultar as contradições com práticas internas e, especialmen-te, externas de atuação. As debilidades também se revelam quando se depa-ram com processos locais que questionam a economia de livre mercado e os interesses dos Estados Unidos, ou se conectam com movimentos populares, como está ocorrendo atualmente em alguns países da América Latina. Que o modelo de democracia e o esforço do governo e das empresas norte-ame-ricanas para implementá-lo ao redor do mundo seja eivado de contradições não deixa de colocar um significativo desafio teórico e político em torno da questão da democracia96. Guilhot faz uma análise da cooptação de intelec-tuais para esse processo de defesa de uma democracia conforme a visão e o interesse do governo e das empresas norte-americanas97. Para Callari, essa cruzada pela democracia se vincula à nova forma do imperialismo e requer das forças políticas da esquerda e do discurso marxista o engajamento no terreno do debate sobre democracia98. Levanta assim novas questões rela-cionadas com o imperialismo99.

A partir da rede de organizações que se inseriram na estratégia do gover-no e das empresas norte-americanas, das práticas que dela derivam e das forças sociais e políticas que logram mobilizar a partir de meados dos anos 1980, é possível perceber uma estrutura complexa e abrangente de relações.

96 Atilio A. Boron, “Crisis de las democracias y movimientos sociales en América La-tina: notas para una discusión”, Observatorio Social de América Latina, ano 7, n. 20, maio-ago. 2006; Noam Chomsky, Estados Fallidos: el abuso de poder y el ataque a la democracia (Buenos Aires, Zeta, 2007), em especial cap. 4: “Fomento de la demo-cracia en el extranjero”.

97 Nicolas Guilhot, “Les professionnels de la démocratie”, cit.98 Antonio Callari, “Imperialism and the rhetoric of democracy in the age of Wall

Street”, Rethinking Marxism, v. 20, n. 4, out. 2008, p. 700-9.99 Leo Panitch e Colin Leys (orgs.), Socialist register 2004: o novo desafio imperial (Bue-

nos Aires, Clacso, 2006) e Socialist Register 2005: o império reloaded (Buenos Aires, Clacso, 2006); David Slater, “Imperial powers and democratic imaginations”, Third World quarterly, v. 27, n. 8, 2006, p. 1369-86s; James Petras, “NGOs: in the service of imperialism”, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 282HEGEMONIA_miolo.indd 282 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 274: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 283

Mesmo que não tenham conseguido evitar as contradições geradas pela im-plementação em maior ou menor grau das políticas neoliberais, definiram e estruturaram um padrão de atuação e luta de classes do qual ainda se deve alcançar uma melhor compreensão.

Anexo

América Latina e Caribe: organizações parceiras do Cipe (1984-2009) que, em diferentes momentos e com intensidades diversas,

receberam apoio do Cipe

Argentina: Asociación Argentina de Mujeres Empresarias y Profesiona-les; Centro de Estudios sobre la Libertad; Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equidad y el Crecimiento (CIPPEC)*; Centro para la Apertura y el Desarrollo de América Latina (CADAL); Centro para la Aplicación de Políticas Públicas; Fundación Acción para la Inicia-tiva Privada (AIP); Fundación Centro de Estabilidad Financiera (CEF)*; Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas (FIEL); Fundación del Tucumán; Instituto Argentino para el Gobierno de las Or-ganizaciones (IAGO); Instituto de Estudios Contemporáneos; Instituto de Estudios de la Realidad Argentina e Latinoamericana (IERAL) - Fun-dación Mediterránea.

Bolivia: Cámara de la Industria y Comercio de Santa Cruz (CAINCO); Centro de Estudios de la Realidad Económica e Social (CERES); Confede-ración de Empresarios Privados de Bolivia; Fundación Milenio*.

Brasil: Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil; Instituto Atlântico; Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC); Instituto Liberal do Rio de Janeiro (ILRJ).

Caribe (região): Council of Eastern Caribbean Manufacturers.

Chile: Cámara de la Producción y del Comercio de Concepción (CPCC); Centro de Estudios Públicos; Centro para el Gobierno de la Empresa – Fa-cultad de Ciencias Económicas y Administrativas, Universidad Católica de Chile (FEAUC); Fundación de Economía y Administración de la Univer-sidad Católica; Instituto Latinoamericano de Doctrina y Estudios Sociales (ILADES); Libertad y Desarrollo (LYD); Unión Social de Empresarios Cristianos (USEC).

(continua)

HEGEMONIA_miolo.indd 283HEGEMONIA_miolo.indd 283 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 275: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

284 • Hegemonia às avessas

Colômbia: Asociación Colombiana Popular de Industriales; Confedera-ción Colombiana de Cámaras de Comercio (CONFECÁMARAS)*; Fun-dación Corona; Fundación para el Desarrollo Integral del Valle del Cauca; Fundación para la Educación Superior y el Desarrollo (FEDESAR-ROLLO)*; Fundación Respuesta; Instituto Colombiano de Estudios Avan-zados en Administración; Instituto de Ciencia Política (IPC)*.

Costa Rica: Federación de Entidades del Sector Privado de Centroaméri-ca e Panamá; Instituto Latinoamericano de Gerencia de Organizaciones (ILGO)

Cuba: Alianza Democrática Cubana; Promoting Reform in Cuba (Pro-grama)*.

Equador: Alianza Equidad*; Asociación Nacional de Empresarios (ANDE); Bolsa de Valores de Quito (BVQ); Fundación Alternativa para el Desarrollo (FA); Instituto Ecuatoriano de Economía Política (IEEP)*.

El Salvador: Asociación Nacional de la Empresa Privada (ANEP).

Guatemala: Cámara de la Libre Empresa; Centro de Investigación Econó-mica Nacional (CIEN).

Haiti: Center for Free Enterprise and Democracy; Cámara de Comercio y Industria de Haití (CCIH); Private Sector Alliance for Development.

Jamaica: Fund for Multinational Management Education.

México: Centro de Estudios sobre Economía y Educación; Centro de Ex-celencia en Gobierno Corporativo (CECG)*; Confederación Nacional de Cámaras de Comercio; Confederación Patronal de la Republica Mexicana (COPARMEX).

Nicarágua: Cámara de Comercio de Nicaragua; Consejo Superior de la Empresa Privada (COSEP)*; Fundación Panamericana para el Desarrollo (FUPAD).

Panamá: Consejo Nacional de la Empresa Privada (CONEP)*; Asociación Panameña de Ejecutivos de Empresa.

Paraguai: Federación de la Producción, la Industria y el Comercio (FE-PRINCO); Fundación Paraguaya de Cooperación y el Desarrollo; Funda-ción Desarrollo En Democracia (DENDE)*.

(continua)

HEGEMONIA_miolo.indd 284HEGEMONIA_miolo.indd 284 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 276: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Construindo a hegemonia na América Latina • 285

Peru: Confederación Nacional de Instituciones Empresariales Privadas (CONFIEP); Instituto APOYO; Instituto de Economía de Libre mercado (IELM); Instituto para la Libertad y la Democracia*; Instituto INVER-TIR*; PROCAPITALES; Universidad Peruana de Ciencias Aplicadas (UPC).

República Dominicana: APEC Centro de Educación a Distancia; Com-mittee for Progress in Democracy; Greater Newark Chamber of Commer-ce; Centro de Orientación Económica.

Uruguai: Centro para el Estudio de Asuntos Económicos y Sociales(CERES).

Venezuela: Centro de Divulgación del Conocimiento Económico para la Libertad (CEDICE)*; Centro Empresarial de Conciliación y Arbitraje (CEDCA); Confederación Venezoelana de Industriales (CONINDUS-TRIA)*; Consejo Nacional del Comércio y de los Servicios; Liderazgo y Visión (LYV); Asociación Venezolana de Ejecutivos (AVE).

Vários países (Argentina, Bolivia, México, Nicaragua e Peru): Pro Mujer.

América Central: Federación de Entidades Privadas de Centroamérica y Panamá (FEDEPRICAP).

Fonte: Elaborado por equipe de pesquisa a partir de: a) CIPE. “Global Partners 1984-2003”. Disponível em: <http://www.cipe.org/publications/report/archives/AR_ 2003.pdf>; b) CIPE. Annual Report 2004, 2005, 2006, 2007 e 2009; c) pesquisa na in-ternet para identificar nomes originais das organizações.

(*) Parcerias vigentes em 2009.

HEGEMONIA_miolo.indd 285HEGEMONIA_miolo.indd 285 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 277: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

QUE TIPO DE LIDERANÇA É CHÁVEZ?

Gilberto Maringoni

O presidente venezuelano Hugo Chávez Frías tem merecido uma classi-ficação mais ou menos unânime por parte de seus adversários, ao longo da última década. É a de que ele não passaria de um político populista, como tantos já surgidos na América Latina.

Chávez encarnaria mesmo uma liderança desse tipo? Seus apoiadores se apressam em dizer que não. O sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal afirmou, em 2004, o seguinte: “Acusam Chávez de populista, mas creio que isso não é correto, e que é autenticamente revolucionário, ainda que tam-bém populachero”1.

Antes de entrar na polêmica, é bom lembrar que o termo populista tem sido alardeado pelo pensamento conservador como peça de acusação contra toda figura pública que se afaste dos caminhos da ortodoxia liberal, ainda hegemônica no mundo. Quem externar contrariedade à pretensa racionali-dade técnica das políticas de ajuste estrutural em favor do fortalecimento do caráter público do Estado ou tentar materializar orientações de distri-buição de renda ou de justiça social ganhará logo a pecha de populista nas páginas e telas da grande imprensa mundial. Equipara-se assim o populis-mo à demagogia, à mentira e à conversa mole de políticos espertalhões para se manter no poder.

Não é novidade que o pensamento neoliberal tenha sido pródigo na apropriação de determinados conceitos para – em uma eficiente luta ideo-lógica – mudar-lhes completamente o significado. Assim, o embate entre

1 Ernesto Cardenal, “Venezuela: uma nova revolução na América Latina”. Disponí-vel em: <http://resistir.info/venezuela/cardenal_04mai04_port.html>. Acesso em: 24 ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 287HEGEMONIA_miolo.indd 287 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 278: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

288 • Hegemonia às avessas

direita e esquerda não existiria mais. Em seu lugar existiriam os atritos entre o moderno e o arcaico. Direitos sociais adquiridos por trabalhadores, após décadas de lutas, não passariam de privilégios. Reforma e mudança, antigas bandeiras da esquerda, agora são palavras de ordem de governos neocon-servadores para justificar restrições nos regimes previdenciários, trabalhistas e educacionais. No Brasil, por exemplo, um dispositivo legal, editado em 2001 e destinado a comprometer a administração pública com o pagamen-to de dívidas financeiras, ganhou o sonoro nome de Lei de Responsabilida-de Fiscal. A adjetivação de populista ganhou ares de desmascaramento de-finitivo para maus governantes. Populista seria algo arcaico, fora de moda e atrasado em um mundo que se globaliza e se interliga aceleradamente.

O que é populismo?

O conceito de populismo é elástico e complexo o suficiente para alcan-çar qualquer coisa, tempo e lugar. O Dicionário de política, organizado por Norberto Bobbio, ressalta:

O populismo não conta efetivamente com uma elaboração teórica orgânica e sistemática. [...] Como denominação, amolda-se facilmente a doutrinas e a fór-mulas diversamente articuladas e aparentemente divergentes. [...] As dificulda-des do populismo se ressentem da ambiguidade conceitual que o próprio termo envolve.2

A socióloga venezuelana Margarita López Maya, por sua vez, assinala o seguinte: “O populismo não é, estritamente falando, nem um movimento sociopolítico, nem um regime, nem um tipo de organização, mas funda-mentalmente um discurso que pode estar presente no interior de organiza-ções, movimentos ou regimes muito diferentes entre si”3.

Não existe uma caracterização única para definir o fenômeno. Uma clas-sificação geral do que seria um líder populista, comumente aceita, dá con-ta de tratar-se do dirigente que estabelece vínculos e canais diretos com a população, sem a mediação de entidades ou organismos institucionais. Um personagem com tais atributos se relacionaria com multidões, acima de

2 Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de política (5. ed., Brasília, UnB/ LGE, 2004), p. 980.

3 Margarita López Maya, Populismo e inclusión en el caso del proyecto bolivariano (iné-dito, 2004).

HEGEMONIA_miolo.indd 288HEGEMONIA_miolo.indd 288 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 279: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Que tipo de liderança é Chávez? • 289

partidos, parlamentos, sindicatos etc. Há componentes centralizadores e autoritários na figura do chefe populista. Na falta de mediações, ele geral-mente se torna a própria encarnação do Estado no imaginário das camadas populares.

Mesmo assim, tal classificação é inexata. A historiadora brasileira Ânge-la de Castro Gomes destaca o que seria a “seleção de variáveis histórico-so-ciológicas” possíveis de se vislumbrar no modelo populista: “Um proletaria-do sem consciência de classe; uma classe dirigente em crise de hegemonia e um líder carismático”4.

A figura do “pai dos pobres”, no caso de Getúlio Vargas no Brasil (1930-1945 e 1950-1954), a de redentor dos “descamisados”, quando se alude a Juan Domingo Perón na Argentina (1946-1955), ou a de Lázaro Cárdenas no México (1934-1940) representam expressões da condensação de um projeto de nação em uma só pessoa, algo que ocorre em momentos muito particulares da história. Ao mesmo tempo, os três líderes buscaram, em seu tempo, construir uma institucionalidade baseada em partidos e or-ganizações sindicais, que canalizassem as energias da crescente classe operá-ria em formação em seus países, e no atendimento de reivindicações longa-mente feitas por tais setores.

Não se podem examinar tais manifestações do populismo apenas por seus aspectos exteriores ou suas manifestações fragmentadas. É necessário observar quais as bases objetivas levaram a seu surgimento.

O populismo é uma expressão própria de sociedades de capitalismo tar-dio, de industrialização e urbanização aceleradas e de consequentes deslo-camentos de grandes contingentes humanos do campo para a cidade. Tais fatores raramente estiveram presentes nos países de desenvolvimento indus-trial menos intensivo em espaços de tempo tão curtos, como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos. Margarita López Maya sintetiza bem a ques-tão: “O populismo aparece como [...] uma maneira particular de fazer po-lítica na América Latina, associado ao período de trânsito das sociedades agroexportadoras para as industriais”5.

4 Ângela de Castro Gomes, “O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito”, em Jorge Ferreira (org.), O populismo e sua história, de-bate e crítica (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001), p. 26.

5 Margarita López Maya, Populismo e inclusión, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 289HEGEMONIA_miolo.indd 289 9/8/10 4:27:42 PM9/8/10 4:27:42 PM

Page 280: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

290 • Hegemonia às avessas

A historiadora brasileira Maria Helena Rolim Capelato avança nessa conceituação:

Na perspectiva da sociologia da modernização, o populismo foi caracterizado como um momento de transição de uma sociedade tradicional para a moderna (o que implica um deslocamento do campo para a cidade, do agrário para o in-dustrial). No que se refere ao político, a teoria explica o populismo como uma etapa do desenvolvimento das sociedades latino-americanas que não consegui-ram consolidar uma ideologia e uma organização autônomas.6

Mais adiante, diz o seguinte: “Acredito que os novos estudos sobre os referidos governos denominados populistas permitem afirmar que um traço comum os caracteriza: a introdução de uma nova cultura política, baseada no papel interventor do Estado nas relações sociais”7.

Os casos brasileiro, argentino e mexicano, na primeira metade do sé-culo XX, são ilustrativos. Os países souberam aproveitar uma conjuntura internacional pós-crise de 1929 e duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) para incrementar processos de industrialização iniciados nas primeiras décadas do século. Nos três exemplos, a centralidade da ação es-tatal na economia tornou-se decisiva para o desenvolvimento. Aplicando políticas nacional-desenvolvimentistas de substituição de importações, os três, em ritmos próprios e obedecendo a condicionantes internos e externos, lograram tornar-se, em poucas décadas, sociedades industriais e urbanas.

Esse padrão se assentava em três agentes básicos: o Estado, o capital es-trangeiro e o capital privado nacional, como sócio menor. O capital estran-geiro entrou de forma crescente, à medida que os poderes públicos ofere-ciam condições cada vez mais vantajosas de investimento e de retorno.

Os dados dessas transformações, quando confrontados com as mudan-ças demográficas, são surpreendentes. No caso brasileiro, a parcela de popu-lação urbana passou de 31,2% em 1940 para 49% em 1960, alcançando 67,6% em 19808. Na Argentina, o processo foi mais precoce: 37,4% dos

6 Maria Helena Rolim Capelato, “Populismo latino-americano em discussão”, em Jorge Ferreira, O populismo e sua história, cit., p. 136.

7 Ibidem, p. 163.8 Ipece – Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Retratos do Brasil e

do Ceará: indicadores sociais e econômicos. Fortaleza, 14 abr. 2005. Disponível em: <http://www.sfiec.org.br/palestras/economia_e_financas/ipece/ibge.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 290HEGEMONIA_miolo.indd 290 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 281: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Que tipo de liderança é Chávez? • 291

argentinos viviam nas cidades em 1895; em 1914 já eram 52,7% e em 1960, 72%9. No México de 1940, por sua vez, 35,5% dos habitantes ocu-pavam as zonas urbanas; duas décadas depois, essa fatia alcançava 50,7% e, em 1980, 76,3% dos mexicanos estavam fora das zonas rurais10.

Mais do que um exercício estatístico, tais números apontam para o bru-tal processo de desenraizamento de milhões de pessoas e de alteração de padrões de vida e referências familiares, sociais, afetivas e culturais seculares. No plano político, estava selado o fim de uma legalidade baseada em oligar-quias rurais e em suas instâncias de poder, como o latifúndio e a Igreja, em favor de uma sociedade de massas sem parâmetros de identidade definidos de imediato. Essas levas de exilados do campo, juntamente com os fluxos de imigrantes, europeus em sua maioria, viriam a formar a classe operária dos três países, com reivindicações até então inéditas. As lutas por direitos so-ciais, trabalhistas e cidadãos criaram demandas que o velho Estado oligár-quico não mais conseguia atender.

A história brasileira é exemplar. A partir da década de 1910, e mais acentuadamente a partir da seguinte, começa a oligarquia agrária a perder força para a nascente burguesia urbana, ao mesmo tempo que se avolumam as demandas operárias e cresce o descontentamento entre os chamados se-tores médios da sociedade.

Quando a insatisfação se transforma em revolta aberta e atinge as forças armadas, surgem conflitos sérios no interior das classes dominantes e um gol-pe muda a face do país em 1930. O chefe da rebelião, Getúlio Vargas, assume a Presidência da República e inicia um governo ditatorial que muda radical-mente o desenho institucional brasileiro. Logo nos primeiros anos de gestão, Vargas promulga uma nova constituição e enfraquece o domínio político das oligarquias rurais. Busca, como base social de sustentação, os vastos contin-gentes de trabalhadores urbanos e setores das diminutas camadas médias.

Ao mesmo tempo que reprime movimentos sociais organizados, o go-verno Vargas atende parte das reivindicações históricas dos trabalhadores, como registro profissional, jornada de oito horas e salário mínimo. Tais me-didas se consubstanciam em um arcabouço legal de normatização do traba-

9 Censos Nacionales de Población y Atlas Demográfico de la República Argentina. Resultados provisionales (Buenos Aires, Indec, 1991).

10 Consejo Nacional de Población – Conapo, 1986.

HEGEMONIA_miolo.indd 291HEGEMONIA_miolo.indd 291 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 282: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

292 • Hegemonia às avessas

lho, além de vincular solidamente os sindicatos ao Estado. Mais do que a concessão de direitos, existia, por trás de tudo, a tentativa de enquadrar o movimento social. Havia um projeto de país em execução, dirigido de mo-do autoritário com o auxílio de uma hábil política econômica. Esta atendia os reclamos de paz social de vários setores do capital e incorporava a classe operária no jogo político.

Agindo diretamente no atendimento das insatisfações populares e ma-nejando frações da burguesia, surgia a figura do líder populista, dirigindo o país acima das instituições, entre outros motivos, por serem irrelevantes pa-ra o jogo político ou por estarem em processo de formação. Assim, o popu-lismo varguista possuiu características aparentemente díspares, mas com-plementares dialeticamente. Era a um só tempo nacionalista e progressista, autoritário e elitista.

Com diferenças de aplicação, o modelo teve sucedâneos externos, como na Argentina da mesma época. Luiz Alberto Moniz Bandeira lembra:

O golpe militar de 1943 abatera a predominância da oligarquia agrário-expor-tadora na direção da Argentina de Perón, cuja força crescia, tratava de organizar um sistema de poder similar àquele que Vargas organizara no Brasil, após a re-volução de 1930, ao entretecer, como alicerce, a aliança dos militares com os trabalhadores e as classes médias urbanas, em torno de um projeto de industria-lização e de desenvolvimento nacional.11

No México, o populismo foi identificado a partir do governo de Lázaro Cárdenas, iniciado em 1934, e no desenho de um projeto nacional que in-cluía a classe operária como parceira da burguesia, por meio do atendimen-to de inúmeras reivindicações de demandas sociais.

Com características particulares a cada local, líderes que buscaram reali-zar campanhas ou administrações lastreadas no que se poderia chamar de nacional-estatismo apareceram ao longo do século XX em processos origi-nais por boa parte da América Latina. Além de Vargas, Perón e Cárdenas, podem ser arrolados nessa lista dirigentes de um espectro que vai do centro até a esquerda, como Augusto Sandino (El Salvador), Jacobo Arbenz (Gua-temala), João Goulart e Leonel Brizola (Brasil), entre outros12.

11 Luiz Alberto M. Bandeira, Brasil, Argentina e Estados Unidos, da Tríplice Aliança ao Mercosul (Rio de Janeiro, Revan, 2003), p. 210-1.

12 A lembrança é de Daniel Aarão Reis Filho, “O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita”, em Jorge Fereira, O populismo e sua história, cit., p. 375.

HEGEMONIA_miolo.indd 292HEGEMONIA_miolo.indd 292 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 283: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Que tipo de liderança é Chávez? • 293

Margarita López Maya nota ainda:

O populismo não pode nem deve reduzir-se a juízos de valor negativos centra-dos em seus potenciais atributos demagógicos ou de manipulação dos interesses das massas, pois, se bem que tal característica possa acontecer – e muitas expe-riências populistas o constatam –, trata-se de um conceito muito mais rico que isso, que provou capacidade explicativa para um fenômeno que ocorre na Amé-rica Latina em momentos de crise de hegemonia e facilitou a inclusão política de setores populares no século XX.13

O populismo permitiu a entrada das massas empobrecidas no cenário político latino-americano. Em alguns casos, tornou-as protagonistas do pro-cesso. Até seu advento, a vida política estava centrada especialmente nas disputas entre facções das oligarquias agrárias. O populismo democratizou a atividade política.

Com base no que foi exposto, em que aspectos a prática política de Hugo Chávez pode ser caracterizada como populista e que populismo seria esse?

A situação venezuelana

Chávez está a quilômetros de distância da demagogia de setores conser-vadores, que se valeram da prática populista como maneira de exercer seu domínio político. O dirigente venezuelano tem um discurso acentuada-mente antioligárquico, anti-imperialista e, na prática, demarcador de inte-resses de classe. É preciso, mais uma vez, atentar para as condições objeti-vas sobre as quais se formou e atua a administração do ex-tenente-coronel do Exército.

A Venezuela viveu uma crise política e social profunda desde 1983, quando os preços do petróleo tiveram uma queda acentuada no mercado internacional. Foi o início de um longo ciclo de baixa, que perdurou pelos dezesseis anos seguintes. Como consequência, as vidas política, social e cul-tural do país, organizadas em torno da renda petroleira, entraram em pa-rafuso. A sucessão de turbulências vivida até a eleição de Chávez, em 1998, resultou em uma quebra dos padrões de convivência internos, construídos ao longo de várias décadas.

O marco da ruptura deu-se em 27 de fevereiro de 1989. Nesse dia, Ca-racas e as principais cidades venezuelanas foram palco de uma imensa rebe-

13 Margarita López Maya, Populismo e inclusión, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 293HEGEMONIA_miolo.indd 293 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 284: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

294 • Hegemonia às avessas

lião social. O evento ficou conhecido como Caracazo e encerrou um ciclo histórico. Quebrou-se ali um pacto político, que havia se alicerçado no pre-ço do petróleo e havia possibilitado a convivência entre dois partidos de centro-direita e a exclusão dos setores populares da disputa política, sem que a alternância no poder e os aspectos formais da democracia liberal fos-sem colocados em questão. Um feito, em um continente pontilhado de di-taduras militares e golpes de Estado.

Em 4 de dezembro de 1988, Carlos Andrés Pérez foi eleito presidente da República pela segunda vez. Mais do que ninguém, o líder do partido Ação Democrática personalizava a prosperidade petroleira vivida na década anterior e sua situação de crescimento econômico, altos níveis de emprego e melhoria constante no padrão de vida da população. Sua campanha e sua vitória se deram sob o signo da promessa de dias melhores14.

No entanto, a situação, do ponto de vista das contas públicas, era preo-cupante. Como resultado da queda dos preços internacionais do petróleo, as reservas do Banco Central, que em 1985 alcançavam 13,75 bilhões de dólares, despencaram para 6,67 bilhões de dólares no final da gestão de seu antecessor, Jaime Lusinchi. A inflação alcançava 40,3% ao ano, o desem-prego chegava a dois dígitos e o salário real havia despencado. Uma aguda fuga de capitais completava o quadro15.

Em 16 de fevereiro de 1989, Pérez dirigiu-se ao país para anunciar que o governo havia firmado um memorando com o Fundo Monetário Internacio-nal16. O objetivo de tudo era a liberação de um empréstimo de 4,5 bilhões de dólares. A contrapartida, concretizada no dia 25, um sábado, era salgada: o pacote incluía a desvalorização da moeda nacional, a redução do gasto públi-co e do crédito, liberação de preços, congelamento de salários e aumento dos preços de gêneros de primeira necessidade. A gasolina sofreria um reajuste imediato de 100%. Isso resultaria, segundo anunciado, numa majoração de 30% nos bilhetes de transporte coletivo. Na prática, esses reajustes chegaram também a 100%. Nada disso havia sido ventilado durante a campanha.

14 Heinz Sonntag e Thaís Maingón, Venezuela: 4F-1992 (Caracas, Nueva Sociedad, 1992), p. 63.

15 Fonte: Banco Central da Venezuela.16 Ver Margarita López Maya, “Venezuela: la rebelión popular del 27 de febrero de

1989, resistencia a la modernidad?”, Revista Venezolana de Economía y Ciencias So-ciales, n. 5, abr.-set. 1999, p. 177-99.

HEGEMONIA_miolo.indd 294HEGEMONIA_miolo.indd 294 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 285: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Que tipo de liderança é Chávez? • 295

Antes das 6 horas da manhã da segunda-feira, dia 27, começaram os primeiros protestos. Ao longo daquele dia e dos subsequentes, a rebelião tomou as ruas de Caracas e de outras cidades. Saques, barricadas e enfren-tamentos com as forças de segurança compuseram uma semana violenta e sangrenta. Familiares e grupos de direitos humanos conseguiram apurar um total de 396 vítimas fatais. Os feridos contavam-se aos milhares e era quase impossível estimar os prejuízos materiais. Os centros médicos contabiliza-ram entre 1 mil e 1,5 mil mortos17.

A crise econômica se aprofundou, com dramáticas consequências so-ciais. A Venezuela encerrou aquele ano com uma queda de 8,5% no PIB18 e uma taxa de inflação de 81%19. A parcela da população que vivia abaixo da linha de pobreza aumentou de 15% no fim de 1988 para 45% dois anos depois. Até o final de seu mandato, Pérez eliminaria as regulamentações bancárias, acabaria com a maior parte dos controles de preços, privatizaria a companhia telefônica nacional (Cantv), o sistema de portos, uma impor-tante linha aérea (Viasa), e abriria a indústria petroleira e outros setores es-tratégicos ao capital privado20.

Quebrou-se, em fevereiro de 1989, a imagem que os venezuelanos fa-ziam de si mesmos. Segundo ela, o país seria um modelo de democracia e tolerância no continente, com eleições regulares, instituições, direitos civis, partidos com sólidas bases sociais etc. Rompeu-se um padrão de convivên-cia construído ao longo de todo o século. Os canais de mediação de deman-das entre a população e o Estado (partidos políticos e sindicatos), que du-rante décadas resolveram conflitos variados, mostraram-se inúteis quando a crise se tornou irreversível. A engrenagem política que sobreviveu ao Cara-cazo perdeu grande parte de sua legitimidade.

Quando vence as eleições, em 6 de dezembro de 1998, Chávez se vê diante de uma sociedade esgarçada e sem referenciais institucionais com

17 Steve Ellner e Daniel Hellinger (orgs.), La política venezolana en la época de Chávez (Caracas, Nueva Sociedad, 2003), p. 48.

18 Dados do Banco Central da Venezuela. Disponíveis em: <http://www.bcv.org.ve/excel/7_1_14.xls?id=435>. Acesso em: ago. 2010.

19 Dados da Fundación Cidob, Disponíveis em: <http://www.cidob.org/es/documen-tacion/biografias_lideres_politicos/america_del_sur/venezuela/carlos_andres_pe-rez_rodriguez>. Acesso em: ago. 2010.

20 Steve Ellner e Daniel Hellinger (orgs.), La política venezolana en la época de Chávez, cit., p. 23.

HEGEMONIA_miolo.indd 295HEGEMONIA_miolo.indd 295 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 286: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

296 • Hegemonia às avessas

credibilidade. O país se arrastava em um caos econômico de proporções gi-gantescas, que gerou em sua esteira uma aguda crise social, política e insti-tucional. Sua chegada ao Palácio de Miraflores sacramentou a falência do sistema institucional e partidário, cujas raízes haviam sido fincadas em 1958, após a queda do general Marcos Pérez Jiménez.

Partidos, sindicatos e os próprios órgãos de Estado viram suas legiti-midades evaporar. Sem alicerces organizativos claros para o exercício mínimo da democracia representativa, era difícil vislumbrar outro ca-minho na Venezuela se não o exercício da liderança em linha direta com as massas.

Chávez valeu-se dos preços internacionais excepcionalmente altos do petróleo, entre 2004 e 2008, para ampliar programas sociais, fortalecer o poder de intervenção do Estado, estatizar empresas antes privatizadas e dar impulso a sua agenda internacional. Ao fazer isso, descolou-se da ortodo-xia liberal. Se abstrairmos seu discurso, sua ação interna se mostra como caudatária de uma espécie de desenvolvimentismo petroleiro. Há na conduta do mandatário venezuelano semelhanças com as experiências capitalistas de fortalecimento do poder público, realizadas nos anos 1930 em parte do mundo industrializado.

Tal conduta, em um meio internacional adverso e sem referências maio-res para a esquerda, mostra que Chávez não se adaptou ou não se amol-dou ao modelo hegemônico. Seu governo ajudou a mudar a face política da América Latina.

Populismo progressista

Há aqui uma distante semelhança com características de algumas ex-periências históricas: a Venezuela é uma sociedade em transformação, em processo de definição de novos arcabouços institucionais e políticos. O movimento social organizado ainda é incipiente. As entidades sindicais e associativas, assim como os partidos políticos populares, ainda estão em fa-se de amadurecimento, com pouca representatividade real entre a popula-ção. Em uma frase, inexistem pontos de apoio institucionais sólidos. Assim, a relação de Hugo Chávez em linha direta com a população não é uma op-ção, mas uma necessidade. Não se tratava – e não se trata – de uma vontade pretensamente caudilhesca ou autoritária, como acusam seus inimigos, mas de uma adaptação às condições objetivas encontradas.

HEGEMONIA_miolo.indd 296HEGEMONIA_miolo.indd 296 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 287: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Que tipo de liderança é Chávez? • 297

Chávez é não só o líder, mas o principal e praticamente único garan-tidor do processo político em curso em seu país. É porta-voz central de seu governo, assim como o grande intelectual, formulador e estrategista das ações do Estado. Não é de espantar que sua prática tenha, de fato, contor-nos populistas. É preciso lembrar, contudo, que ninguém é populista por-que e quando quer. Isso corresponde a necessidades históricas objetivas.

Por fim, é preciso chamar atenção para um marco distintivo da ação chavista em relação a muitos líderes históricos do continente. Seu populis-mo tem características progressistas na realidade venezuelana. Ao liderar o processo constituinte e estabelecer novos parâmetros institucionais, Chávez tornou-se o fiador da legalidade e logrou empurrar para a periferia da ativi-dade política os setores das classes dominantes que tentaram derrubá-lo. Se tal ação lograr construir canais democráticos de participação, sua ação po-pulista poderá, dentro de algum tempo, negar a si mesma.

HEGEMONIA_miolo.indd 297HEGEMONIA_miolo.indd 297 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 288: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A DESORIENTAÇÃO DO “ESTADO DESENVOLVIMENTISTA” NA ÁFRICA DO SUL*

Patrick Bond

A vitória do Congresso Nacional Africano (CNA) nas eleições de abril de 2009 nunca foi motivo de dúvida, mas o que foi de importância crucial para as políticas radicais duráveis na África do Sul foi a dramática enxurrada de votos a favor da facção de Thabo Mbeki, do CNA, por parte dos leais de Jacob Zuma, primeiro na conferência do partido em Polokwane, em de-zembro de 2007, e depois nos próprio governo, em setembro de 2008. Cru-cial como indicação da instabilidade da coligação política dominante. Resta saber se esse fato vai desviar ou não do caminho o falso “Estado desenvolvi-mentista” sul-africano.

Embora o termo “Estado desenvolvimentista” se refira mais comumente às experiências do Sudeste asiático, que combinam crescimento e diversifi-cação manufatureira com sistemas políticos autoritários, eu me aproprio do termo de maneira abusiva para nomear – no contexto sul-africano – uma combinação de neoliberalismo macroeconômico com megaprojetos de de-senvolvimento insustentáveis, embalada com políticas de ação afirmativa e apoio retórico a políticas industriais mais coerentes. Embora o ministro das Finanças, Trevor Manuel, apareça nas pesquisas como o quarto líder políti-co mais bem-conceituado na lista eleitoral do CNA em 2009, garantindo em troca que suas políticas econômicas neoliberais prosseguirão sob o man-dato do presidente Jacob Zuma, há, entretanto, uma potencial guinada pa-ra a esquerda tanto em microprojetos quanto na parte industrial da política econômica. Alec Erwin – o homem mais frequentemente identificado com projetos de exportação grandiloquentes, multibilionários e camaradas

* Tradução de Fernando Rogério Jardim.

HEGEMONIA_miolo.indd 299HEGEMONIA_miolo.indd 299 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 289: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

300 • Hegemonia às avessas

com o capitalismo – foi exonerado do Ministério das Empresas Públicas por ocasião do massacre eleitoral dos pró-Mbeki contra os pró-Zuma em setembro de 2008. (Curiosamente, Alec Erwin foi substituído por uma ine-ficaz ministra pró-Mbeki e ex-ministra da Justiça, Brigitte Mabandla, en-volvida em inúmeras controvérsias.) O ex-estrategista do sindicalismo, que volta e meia dizia ter continuado marxista, estava na berlinda como o prin-cipal responsável pelo apagão elétrico da Eskom no início de 2008.

Para ser exato, a ascensão de um sindicalismo mais genuíno e da influên-cia comunista na coligação partidária dominante desde 2006 conseguiu di-recionar recursos públicos substanciais para projetos em prol dos pobres, em vez de comerciais, tais como o Seguro Saúde Nacional. Além disso, não só os índices reais de investimento caíram drasticamente até os níveis de dois dígitos do período de 1995 a 2005 (porque a inflação subiu muito mais rápido que os índices nominais de investimento), como também o or-çamento de fevereiro de 2009 de Trevor Manuel sofreu um brusco déficit (3,8%), após três anos de próspero superávit. Ainda assim, continuamos a desconfiar de Jacob Zuma quando ele afirma aos líderes das finanças mun-diais – tais como os diretores do Merril Lynch e do Citibank, bastiões das práticas econômicas responsáveis – sua intenção de não relaxar as atuais res-trições monetárias e fiscais. Para ilustrar, o próprio Jacob Zuma disse em Los Angeles, em dezembro de 2007:

Algumas pessoas têm dito que se Jacob Zuma assumir o país, o governo pende-rá para a esquerda, por causa do apoio dos sindicatos, que são de esquerda, e do Partido Comunista Sul-Africano [...] e que as políticas econômicas do governo mudarão. Eu prefiro pensar que esse não é um assunto relevante, mas sou grato pela oportunidade de esclarecer isso; e gostaria de dizer a vocês, irmãos e irmãs, que nada mudará.1

É claro que a trajetória do governo poderá mudar se a esquerda ganhar impulso, porque a economia nacional e mundial continua a afundar em 2009 (o último trimestre de 2008 assistiu a uma retração espetacular da produção industrial, especialmente a automobilística e ao primeiro o PIB negativo em dez anos). Se a esquerda perder o ímpeto, e se a cooptação dos princi-pais líderes comunistas do CNA e da lideranças do governo conti nuar, co-mo é bem provável que aconteça, nós presenciaremos uma relegitimação

1 Christelle Terreblanche, “No changes, Zuma vows”, Independent on-line, 9 dez. 2007.

HEGEMONIA_miolo.indd 300HEGEMONIA_miolo.indd 300 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 290: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 301

das políticas macroeconômicas e microprogressistas neoliberais, e os me-gaprojetos em andamento produzirão mútua-dependência, desperdício e corrupção. Apenas para ilustrar, a eletricidade e a água potável são dois ser-viços públicos que enfrentam condições de escassez cada vez piores e deve-riam ser distribuídos gratuitamente e em maior quantidade para a popula-ção necessitada. Entretanto, megaprojetos estão saindo do papel para que as empresas e a rica população branca tenham acesso ilimitado a água po-tável e eletricidade.

Esses elefantes brancos precisam passar por uma análise crítica. Infeliz-mente, embora o interesse popular tanto pelas macropolíticas como pelos microprojetos tenha crescido, é necessária uma fusão de forças políticas ver-de e vermelha, rural e urbana, trabalhista e comunitária, feminista e antir-racista para deter isso e apresentar estratégias desenvolvimentistas alternati-vas ainda não disponíveis. No entanto, inúmeros indicadores de lutas sociais nos dão algum alento.

O neoliberalismo e seus estragos

Consideremos, em primeiro lugar, oito áreas de progresso e de proble-mas socioeconômicos e ambientais que representam pontos de tensão na era pós-apartheid, como resultado das políticas pós-1994 ou mesmo das per-turbações estruturais mais profundas que remontam às décadas passadas:

• nos anos imediatamente pós-apartheid, a desigualdade aumentou; em 2001, com o aumento das prestações assistenciais, ela teve um leve recuo, mas isso significou um salto no coeficiente de Gini de menos de 0,6 em 1994 para 0,72 em 2006 (0,80, se excluirmos as prestações assistenciais)2;

• o índice oficial de desemprego simplesmente duplicou (de 16% em 1994 para quase 32% no início dos anos 2000, caindo para 26% no final da década; mas se incluirmos aqueles que desistiram de procurar emprego, o índice mais realista fica próximo dos 40%), em consequên-cia da importação tanto de produtos do Sudeste asiático em setores de mão de obra relativamente intensiva (confecção, tecelagem, calçados, equipamentos e eletrônicos) como de técnicas de produção intensivas em capital (especialmente na mineração e na siderurgia);

2 Hilary Joffe, “Growth has helped richest and poorest”, Business Day, 5 mar. 2008.

HEGEMONIA_miolo.indd 301HEGEMONIA_miolo.indd 301 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 291: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

302 • Hegemonia às avessas

• a oferta de moradia para milhões de pessoas malogrou pelo fato de que as unidades produzidas eram muito menores que as “caixas de fósforos” da época do apartheid, ficavam afastadas do trabalho e da infraestrutu-ra municipal, eram construídas com material pouco durável, ofereciam serviços públicos de péssima qualidade e eram confrontadas com uma dívida ainda mais alta se e quando o crédito estava disponível;

• embora água e eletricidade ainda sejam oferecidas a muitas pessoas de baixa renda, os preços aumentaram de forma dramática desde 1994, le-vando a cada ano milhões de pessoas a enfrentar cortes por não poderem pagar a multa aplicada à segunda suspensão de fornecimento;

• a deterioração do sistema de saúde, combinada com a aids, causou uma drástica diminuição da expectativa de vida, de 65 anos no período da liberação para 52 anos uma década depois3;

• o sistema de educação faliu por causa do custo excessivo de cobertura e da austeridade fiscal, levando 35% dos estudantes a abandonar a escola na 5a série (índice pior que nos vizinhos Namíbia, Lesoto e Suazilândia) e 48% na 12a série; além disso, de acordo com o mais recente senso es-colar (2001), 27% das escolas estão sem água, 43% sem energia e 80% sem bibliotecas e computadores4;

• os problemas ambientais são cada vez mais graves, conforme pesquisa financiada pelo próprio governo para o relatório “Panorama Ambiental” de 2006; segundo o representante oficial do Estado, a pesquisa “apon-tou um declínio generalizado nas condições ambientais”5;

• o crescimento da criminalidade foi acompanhado de uma verdadeira corrida armamentista: sistemas de segurança privados, alarmes, muros, cercas, condomínios fechados, bloqueios em ruas e até em rios tornaram os bairros da classe operária mais vulneráveis a assaltos, arrombamentos,

3 Pali Lehohla, “State of the world population: 2004”. Disponível em: <http://www.statssa.gov.za/news_archive/17sep2004_1.asp>. Acesso em: 25 ago. 2010. CNN, “Life expectancy in Africa cut short by aids”, 18 mar. 1999, e em: <http://edition.cnn.hu/HEALTH/9903/18/aids.africa.02/index.html>.

4 Salim Vally e C. A. Spreen, “Education rights, education policy and inequality in Sou-th Africa”, International Journal of Educational Development, v. 26, n. 4, 2006.

5 South Africa Government Information. “‘The State of our environment should re-main under a watchful eye’ Government release the 2006 Environment Outlook - State of the Environment Report and urges that more work needs to be done”. Dis-ponível em: <http://www.info.gov.za/speeches/2007/07062911151001.htm>. Acesso em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 302HEGEMONIA_miolo.indd 302 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 292: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 303

roubos de carros e outros crimes pequenos (houve crescimento de mais de um terço nessa categoria entre 1994 e 20016, com um pequeno de-clínio desde então), assim como a índices epidêmicos de estupros e ou-tros crimes violentos. Crimes de colarinho-branco (inclusive evasão de capital) não são vigiados ou têm aparentemente uma penetração organi-zada nas altas rodas do serviço policial sul-africano.

O “Estado desenvolvimentista” pretende reverter o processo. Contudo, dado o abuso dos investimentos direcionados a alguns dos maiores “elefan-tes brancos” em construção neste momento, a reversão durará tanto quanto o boom artificial da construção civil:

• o complexo industrial Coega, na Metrópole Nelson Mandela (área que inclui a velha Porto Elizabeth e Uitenhage), onde grande quantidade de água e eletricidade pode ser consumida num único dia pela nova fundi-ção (a Alcan e a Rio Tinto também se comprometeram, apesar de no início de 2008 serem evidentes problemas como redução do forneci-mento de energia);

• as gigantescas represas do Projeto Águas do Planalto de Lesoto (as maio-res da África), que desde 1998 têm desviado as águas de Lesoto pelo rio Senqu, drenando o lençol freático do Free State para o insaciável com-plexo industrial Gauteng, em especial para resfriar as caldeiras das usi-nas termelétricas e encher as piscinas de Johannesburgo (a terceira gran-de represa deve ser aprovada em 2009);

• os caros, luxuosos e desnecessários novos estádios para a Copa do Mun-do de 2010, que no início de 2009 já ultrapassavam três vezes o custo inicial;

• a corrupção generalizada de 43 bilhões de rands no comércio de armas, que envolveu grande parte das facções zumita e mbekita do CNA, a co-meçar da cúpula;

• os reatores nucleares da Pebble Bed, que custam centenas de bilhões de rands, além de outras centenas de bilhões de rands gastos com usinas termelétricas (apesar da já grande contribuição da África do

6 Institute for Security Studies (ISS). Disponível em: <http://www.iss.co.za/pgcontent.php?UID=1>. Acesso em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 303HEGEMONIA_miolo.indd 303 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 293: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

304 • Hegemonia às avessas

Sul para o agravamento das condições climáticas, com suas emissões de carbono7;

• a rede de trens de alta velocidade, estimada em mais de 20 bilhões de rands, que ligará Johannesburgo, Pretória e o aeroporto O. R. Tambo e somente será acessível à elite rica.

Os limites deste texto somente nos permitem examinar em detalhe um desses grandes projetos (o Coega). Os recursos públicos podiam ter ido pa-ra a base da pirâmide social de forma muito mais direta, não fosse o contex-to neoliberal mais amplo. O início dos anos 2000 testemunhou um otimis-mo crescente de que a crise emergente dos mercados nacionais dos anos 1990 – que englobou a África do Sul – poderia ser superada e a reavaliação internacional da maioria de nossas empresas nacionais não afetaria negati-vamente nosso crescimento. Com efeito, em 2001, a taxa de lucro do gran-de capital sul-africano recuperou o declínio na atividade comercial entre 1970 e 1990, atingindo a nona melhor posição entre as maiores economias mundiais (muito à frente das taxas de lucro nos Estados Unidos e na China, de acordo com um estudo do governo britânico8). A realidade, no entanto, é que os altos lucros das empresas não são prenúncio de crescimento econô-

7 “Um investimento de 4 milhões de randis foi autorizado por Erwin, em 2008, para melhorar a imagem do poder nuclear na África do Sul... Entre outras coisas, marketei-ros estão procurando identificar os assim chamados ‘embaixadores nucleares’ no intui-to de legitimar o poder nuclear nas comunidades e no mundo dos negócios... Parale-lamente às pesquisas de opinião pública houve o desenvolvimento de um vocabulário nuclear nas onze línguas oficiais do país. Isso ‘asseguraria que o discurso público a res-peito de questões relacionadas com a energia nuclear fosse acessível a todos os sul--africanos’.” Como observou Dominique Gilbert, coordenador do grupo de trabalho anti-nuclear Pelindaba, menos de duas semanas antes de Erwin renunciar, o contrato com os marketeiros deveria ser cancelado imediatamente, com o financiamento indo para um processo de consulta pública sobre o futuro da política energética. Organiza-ções da sociedade civil e ONGs têm repetidamente exigido uma solução energética alternativa para a crise energética sul-africana em que a energia nuclear urânio-alimen-tada não esteja envolvida, ‘em contraste com os esforços de Erwin para avançar naqui-lo que está cada dia mais parecendo com sua agenda particular’” (SA Press Association, “R4m for govt nuclear ‘research’ project”, 2 set. 2008). Contudo, apesar de um ex- -presidente anti-nuclear interino, Kgalema Motlanthe (ex-secretário do sindicato dos mineiros), o financiamento PBMR permaneceu no orçamento de 2008.

8 Laura Citron e Richard Walton, “International comparisons of Company Profi-tability”. Disponível em: <http://www.statistics.gov.uk/articles/economic_trends/ET587_Walton.pdf>. Acesso em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 304HEGEMONIA_miolo.indd 304 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 294: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 305

mico sustentável, mas resultado de contradições persistentes e profunda-mente enraizadas:

• com relação à estabilidade, o rand (comparado a uma cesta de moedas estrangeiras) perdeu mais de um quarto de seu valor em 1996, 1998, 2001, 2006 e 2008, a pior marca entre todas as grandes economias glo-bais. Isso mostra quão vulnerável aos mercados financeiros internacio-nais a África do Sul se tornou, graças à progressiva liberalização do con-trole cambial iniciada em 1995;

• a África do Sul assistiu ao crescimento do PIB nos anos 2000, mas não levou em conta o esgotamento de seus recursos não renováveis. Se, além desse fator, considerarmos a poluição, a África do Sul teria um PIB per capita negativo (de, ao menos, $2 ao ano), de acordo com o próprio Banco Mundial9;

• a economia sul-africana tem se orientado muito mais para os lucros rá-pidos dos mercados financeiros do que para a produção de bens reais, em parte devido à extremamente elevada taxa de juros desde março de 1995 (quando se relaxou o controle cambial do rand). A taxa de juros pós-inflacionária se elevou a níveis recordes por uma década na história econômica sul-africana, com frequência atingindo dois dígitos (mas após um pico de 3,5% em meados dos anos 2000, o crédito ao consu-midor e o crédito imobiliário foram fortemente pressionados por uma forte inadimplência);

• os dois setores mais bem-sucedidos entre 1994 e 2004 foram as comu-nicações (12,2% de crescimento anual) e as finanças (7,6% de cresci-mento anual), ao passo que os setores de mão de obra intensiva, tais como têxteis, calçados e mineração aurífera, diminuíram de 1% a 5% ao ano e, em geral, a manufatura como parte do PIB também declinou;

• o governo admite que o nível geral de emprego caiu 0,2% ao ano entre 1994 e 2004, mas esses 0,2% são um problema bastante subestimado, já que a definição oficial de emprego inclui ocupações como “mendi-cância”, e “caça de animais selvagens para alimento” e “cultivo do pró-prio alimento”;

• o problema da intensidade excessiva de capital na produção – máquinas demais por trabalhador – certamente se agravará, pois a Corporação pa-

9 Banco Mundial, Where is the wealth of nations? (Washington, DC, 2006), p. 66.

HEGEMONIA_miolo.indd 305HEGEMONIA_miolo.indd 305 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 295: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

306 • Hegemonia às avessas

ra o Desenvolvimento Industrial (uma agência do Estado) prevê que o setor com mais investimentos no período de 2006 a 2010 seja o siderúr-gico, com um crescimento maciço de 24% em investimentos fixos ao ano; mas espera-se que o emprego setorial caia 1,3% ao ano, a despeito de (ou por causa de) todo esse novo investimento;

• no geral, o problema da “greve de capital” – falta de investimentos das empresas de grande porte – continua, na medida em que a formação de capital fixo bruto estagnou entre 15% e 17% no período de 1994 a 2004, não sendo suficiente para cobrir o custo da depreciação dos equipamentos;

• as empresas investiram os lucros obtidos, mas não todo na África do Sul: na mesma época da liberalização política e econômica, a maioria das em-presas presentes na Bolsa de Valores de Johannesburgo – Anglo American, De Beers, Old Mutual, AS Breweries, Liberty Life, Gencor (hoje o nú-cleo da BHP Billiton), Didata, Mondi e outras – transferiram seus fun-dos e suas principais cotas de ações para mercados estrangeiros de ações;

• a fuga de lucros e dividendos dessas firmas é uma das duas razões prin-cipais por que o déficit das contas correntes sul-africanas aumentou bruscamente para um dos maiores do mundo (superado em meados de 2008 apenas pela Nova Zelândia) e, por isso, é o maior perigo em caso de instabilidade monetária, tal como aconteceu na Tailândia (5%) em meados de 1997;

• outra causa para o déficit nas contas correntes é a balança comercial ne-gativa, culpada pelo imenso fluxo de importações após a liberação alfan-degária, que o crescimento das exportações não conseguiu compensar;

• outra razão para a “greve do capital” é a questão da superprodução ex-perimentada na indústria existente (altamente monopolizada), na medi-da em que a capacidade de utilização da manufatura caiu consideravel-mente de 80% em média nos anos 1970 para 70% no começo dos anos 2000;

• os lucros privados evitam investimentos em instalações, equipamentos e fábricas e buscam retornos especulativos rápidos na Bolsa de Valores de Johannesburgo: houve um aumento de 50% no preço das ações na pri-meira metade dos anos 2000, e o boom imobiliário que começou em 1999 elevou os preços dos imóveis em mais de 200% em 2004 (em com-paração com os míseros 60% de aumento no mercado imobiliário nos Estados Unidos pouco antes do estouro da bolha, de acordo com o FMI).

HEGEMONIA_miolo.indd 306HEGEMONIA_miolo.indd 306 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 296: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 307

Esses profundos dilemas estruturais têm raízes não apenas na liberaliza-ção pós-apartheid, mas também nas persistentes vulnerabilidades associadas à economia da era do apartheid. Devido à liberalização tanto do comércio estrangeiro (de agosto de 1994 em diante) como do mercado financeiro (a partir de março de 1995), o déficit nas contas correntes é perigosamente alto (10,4% esperados para 2009), em comparação com economias equiva-lentes. No início de 2009, a revista The Economist apontou a África do Sul como “o país mais arriscado” dos dezessete mercados econômicos emergen-tes. Os principais problemas são o elevado déficit nas contas correntes, as reduzidas reservas e o alto custo de rolagem dos papéis da dívida externa a curto prazo (o terceiro pior caso, após a Coreia do Sul e a Indonésia).

[Além disso,] os bancos sul-africanos dependem de empréstimos, muitas vezes tomados do exterior, para financiar empréstimos contraídos nacionalmente e, por isso, serão pressionados pela escassez mundial de crédito [...]. O rand, moe-da que já se desvalorizou fortemente, continua sendo uma das mais vulneráveis moedas dos mercados emergentes.10

Ironicamente, uma das razões da redução das reservas e do ameaçador déficit nas contas correntes é o aumento das taxas de lucro das empresas sul-africanas – lucros que, por sua vez, serão desviados de forma ilegal pela repatriação dos dividendos para os novos centros financeiros no exterior. Os lucros das empresas são em geral substanciais, em comparação com os salários dos operários, que chegaram ao seu ponto mais baixo desde o fim dos anos 1980. No entanto, um problema contínuo é que os lucros do setor manufatureiro têm caído dramaticamente desde o início dos anos 1980, em relação aos lucros financeiros e especulativos. As vantagens da exportação na África do Sul estão em poucas áreas e são difíceis de manter (em alguns casos, estão sujeitas à dramática volatilidade dos preços de venda) – tais co-mo componentes automotivos, filtros para piscinas, vinhos, carvão e metais básicos. Além disso, os baixos níveis de investimento fixo persistem, espe-cialmente nos setores privados, em parte devido à excessiva capacidade ociosa das instalações e equipamentos existentes. Isso ajuda a explicar o bai-xo nível de investimentos estrangeiros diretos, em contraste com o influxo de capital volátil, atraído pelos níveis anteriormente significativos de inves-

10 “Economics focus: Domino theory”, 26 fev. 2009. Disponível em: <http://www.economist.com/research/articlesBySubject/displayStory.cfm?story_id=13184631&amp;subjectID=348918&amp;fsrc=nwl>. Acesso em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 307HEGEMONIA_miolo.indd 307 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 297: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

308 • Hegemonia às avessas

timentos reais na África do Sul. Nenhum desses processos é salutar; ao la-do dos preços extremamente inflacionados da eletricidade e da alimentação (bem como do petróleo no primeiro semestre de 2008), gerarão ainda mais tensões sociais – um tópico ao qual retornaremos na conclusão.

O projeto Coega e o Estado desenvolvimentista

Consideremos em mais detalhes uma história extrema, mas bastante re-veladora. Durante a última década, o governo sul-africano começou a revol-ver terreno para aquilo que poderá ser o maior subsídio para a zona indus-trial e para o porto Coega – localizado a quase vinte quilômetros de Porto Elizabeth, dentro do perímetro municipal da baía Nelson Mandela. Os fundos estão indo não apenas para as demandas de eletricidade do projeto Coega, que inclui uma fundição de alumínio já prevista e um complexo au-tomotivo, mas também para a sugerida refinaria da Petro SA, orçada em 40 bilhões de rands. Os defensores do governo afirmam que o Coega represen-ta com perfeição a política industrial e de desenvolvimento macroeconômi-co, mas os críticos do projeto o consideram um “assistencialismo corporati-vo” gratuito e repleto de características socialmente impiedosas e ecologicamente predatórias – bastante evidentes agora, graças à renovada atenção que está sendo dada às mudanças climáticas.

Numa mensagem em sua revista eletrônica, no fim de 2006, Thabo Mbeki enfatizou o projeto Coega como sendo um exemplo máximo dos “marcos miliários da era da esperança”:

A companhia líder da indústria de alumínio, a Alcan, entrou em acordo quanto ao fornecimento de eletricidade que tornaria possível a ela construir uma imen-sa fundição de alumínio no porto de Ngqura/Coega. Com efeito, essa foi outra das muitas boas notícias de 2006, a despeito da campanha encabeçada por al-gumas poucas pessoas em nosso país que apresenta o novo porto de Ngqura/Coega como o símbolo notável do fracasso e da estupidez do nosso governo de-mocrático, liderado por esse movimento!

O Coega, se não for o símbolo mais notável, é decerto um dos inúmeros exemplos do fracasso e da estupidez dos governos pós-apartheid, que repre-senta a correlação entre o “capitalismo camarada” e os efeitos negativos das mudanças climáticas e ambientais11. Os enormes subsídios estatais canaliza-

11 Além do grande número de projetos dispendiosos e inúteis apontados acima, vimos também políticas macroeconômicas neoliberais ineficazes, desenvolvimento de desas-

HEGEMONIA_miolo.indd 308HEGEMONIA_miolo.indd 308 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 298: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 309

dos para a suposta fundição e para muitos outros beneficiários empresariais, seriam mais bem dirigidos para satisfazer as grandes demandas sociais repri-midas no Eastern Cape.

No fim, de 2006, respondendo à crítica que eu mesmo apresentei no jor-nal The Mercury de Durban, Ongama Mtimka, diretor executivo da Coega Development Corporation, endossou sem perceber os principais pontos de minha crítica: “O comentário de Cynthia Carroll, segundo a qual o projeto Coega possui a melhor infraestrutura que ela já viu pelo mundo afora, só reafirma a competitividade da nossa Zona de Desenvolvimento Industrial Coega, em comparação com seus congêneres estrangeiros”. Poucas semanas antes, Cynthia Carroll, presidente e diretora executiva da Alcan Primary Me-tal, havia negociado um acordo de redução de preços da eletricidade para uma siderúrgica canadense. Logo depois, ela foi nomeada diretora executiva do escritório da Anglo American, mostrando que o infame “Complexo Energético Minerador”12 que une o capital minerador sul-africano, a organi-zação paraestatal Eskom e o Ministério da Indústria e Comércio Exterior havia se internacionalizado e se desvencilhado de sua face puramente patriar-cal. O acordo para o barateamento da energia elétrica foi amplamente ridi-cularizado. Como afirmou o colunista do jornal Business Day Rob Rose:

Se o Coega é o equivalente do castelo fantasma, ele tem uma característica par-ticular: o governo o construiu por 7,5 bilhões de rands e sem nenhum morador; abriu suas portas e nem um flanelinha o invadiu. [...] Dado o absurdo consumo de energia da fundição de alumínio, a melhor coisa a fazer seria vendê-la para o ferro-velho. Acima de tudo, a Alcan está recebendo um desconto especial pelos maciços 1.350 MW de potência de que ela precisa, por meio de um precinho camarada com a Eskom, sob o (bizarramente denominado) “programa de fixa-

tres microeconômicos, aumento da desigualdade social e do desemprego, uma política de combate à aids descrita por muitos especialistas como “genocida”, agravamento da degradação ambiental, incentivo sem precedentes ao consumismo materialista, cor-rupção política generalizada, larga especulação nos mercados imobiliário e de ações, alianças com potências imperiais (ou seja, venda de armas para os invasores do Iraque), venda de armas para regimes políticos opressivos, falhas no comércio multilateral e nas reformas financeiras, aspirações subimperialistas (através do programa intitulado “No-va Parceria para o Desenvolvimento da África”), repressão da democracia no Zimba-bwe, na Suazilândia e na Birmânia e aumento da repressão estatal interna.

12 Ben Fine e Zav Rustomjee, South Africa’s politicale economy (Johannesburgo, Uni-versity of the Witwatersrand Press, 2006).

HEGEMONIA_miolo.indd 309HEGEMONIA_miolo.indd 309 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 299: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

310 • Hegemonia às avessas

ção de preços da eletricidade para o desenvolvimento”. As etapas de fundição do alumínio são especialmente intensivos em energia elétrica, e 1.350 MW é o equivalente a quase 4% de toda a capacidade energética da África do Sul (37 mil MW). Mas a Eskom, sendo a Eskom, está mantendo em segredo o preço exato que vem cobrando da Alcan. A ONG Earthlife Africa afirma com razão que o perigo é que a Eskom esteja subsidiando um projeto que gerará menos de mil empregos de período integral. [...] Também é sabido que a maior parte do alumínio produzido pela Alcan em Coega será enviado para o mercado exterior, em vez de ser beneficiado e valorizado em nosso país. Nos anos 1950, o alumí-nio foi apelidado de “eletricidade congelada” por causa da imensa quantidade de energia necessária para produzi-lo. Alguém poderia dizer então que o gover-no sul-africano está simplesmente permitindo à Alcan “exportar eletricidade barata” – num momento em que não estamos exatamente esbanjando capaci-dade excedente.13

Além da infraestrutura feita sob medida, que inclui 1 bilhão de rands para residências para a elite branca e um grande porto de 20 metros de ca-lado, a principal atração do projeto Coega é a eletricidade ultrabarata. Ao mesmo tempo, porém, é evidente que a ingerência da Eskom no curso da privatização deixou a companhia sem investimentos suficientes e com so-brecargas frequentes (falhas no fornecimento de energia) no início de 2008. A empresa norte-americana AES pretendia anunciar a construção de uma usina privada ainda maior em Porto Elizabeth para aumentar o fornecimen-to da Eskom, mas logo depois de gerar expectativas e especulações ela des-mentiu o compromisso. A lista da Eskom e seus acordos camaradas para uns poucos e poderosos usuários empresariais inclui a usina siderúrgica Lakshmi Mittal (anteriormente denominada Iscor), as operações minera-doras da Anglo American e as fundições da BHP Billiton.

Quando foi comprada pela Rio Tinto, a Alcan assinou um contrato de 25 anos de fornecimento de eletricidade com a Eskom – eletricidade que cobrada abaixo dos 0,14 rands por hora que a maioria das indústrias geral-mente paga. Durante muito tempo, a África do Sul foi o paraíso da energia elétrica barata. Em 2008, contudo, tornou-se evidente que as fontes de energia elétrica eram escassas e que assim que o mercado mundial de alumí-nio começasse a arrefecer, os executivos da Alcan desmantelariam suas ope-

13 Rob Rose, “Minister has a cheek threatening electricity consumption fines”, Busi-ness Day, 4 jun. 2007.

HEGEMONIA_miolo.indd 310HEGEMONIA_miolo.indd 310 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 300: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 311

rações. Dito e feito: quando em meados de 2008 os seis anos de prosperi-dade da commodity se interromperam de repente, a siderúrgica Rio Tinto, sob o controle da BHP Billiton, afundou, logo após a companhia australia-na esbarrar na crise financeira global.

Até a crise elétrica, o site do projeto Coega (www.coega.co.za) antecipa-va a incorporação da fundição, o novo e vasto porto (que começaria a fun-cionar no fim de 2008), um terminal de contêineres, uma zona petroquí-mica com uma imensa refinaria operada pela estatal Petro SA e uma Zona de Desenvolvimento Industrial (ZDI). Investimentos públicos de pelo me-nos 12 bilhões de rands eram esperados, incluindo os mais de 2 bilhões de rands em isenções fiscais para a Alcan, além de enormes quantidades de ter-ra, água e energia elétrica baratas. Os novos empregos previstos no porto e na ZDI seriam os mais caros de toda a África, quando avaliados em termos de capital investido por trabalho. Onde quer que as novas fundições de alu-mínio e de manganês fossem construídas, os custos ambientais do projeto Coega – em termos de consumo de recursos hídricos, poluição do ar, dis-pêndio de eletricidade e impacto no ambiente marinho – seriam imensos. A infraestrutura em construção não tem precedentes em toda a África e in-viabiliza quaisquer instalações alternativas de desenvolvimento para o aten-dimento das necessidades básicas dos cidadãos da Metrópole Mandela e de todo o Earsten Cape.

Por essa razão, a controvérsia tem acompanhado o processo de tomada de decisões sobre a construção do porto e da ZDI. Rumores sobre conflitos de interesses entre os principais atores do projeto atrapalham a governança. Além da controvérsia, há o fato de que o projeto Coega foi inicialmente ar-quitetado para ser uma forma de as indústrias europeias envolvidas na ven-da de armas para a África do Sul poderem “compensar”, criando empregos, e o governo poder justificar à opinião pública o escândalo dos 6 bilhões de rands em corrupção na compra de armas. Mas há aqui custos sociais igual-mente significativos. Milhares de famílias foram deslocadas para a constru-ção da infraestrutura do parque industrial Coega; e aquelas famílias que continuaram na área terão de pagar taxas ambientais ao novo projeto. Os custos do projeto Coega envolvem muito mais que os 10 mil empregos per-didos em setores da economia que ou serão fechados, ou serão impedidos de se expandir, como as salinas, a maricultura, a pesca, a agricultura e o eco-turismo, como mostrado na tabela abaixo:

HEGEMONIA_miolo.indd 311HEGEMONIA_miolo.indd 311 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 301: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

312 • Hegemonia às avessas

TABELA 1Custos diretos e custos de oportunidade da ZDI e do porto Coega14

Setor perdas em salários(milhões de rands

por ano)

perdas em empregos(n. de postos de

trabalho)

produção nas salinas 20 136

maricultura 116 875

pesca* não estimado não estimado

agricultura* 510 7500

ecoturismo 60 975

Total 706 9486

* Os impactos na agricultura são de longo prazo e, portanto, têm natureza diferente das outras perdas de emprego e de salários.

Os ativistas da comunidade e os ambientalistas têm apontado alternati-vas muito melhores para a criação de empregos e para o progresso econô-mico e social, caso tais recursos fossem utilizados de outras maneiras. Em 2001, um grupo cívico, a Coalizão da Metrópole Mandela pela Sustentabi-lidade, propôs um cenário alternativo para o desenvolvimento econômico, pelo qual se priorizavam os investimentos em infraestrutura para as neces-sidades fundamentais da população em todo o Eastern Cape e, em Coega, ecoturismo apoiado pelo Estado, agricultura e pesca marinha em pequena escala e nas mãos do povo negro.

Se as instalações industriais não fossem prejudicadas pela crise financei-ra internacional, o Coega iria contribuir rapidamente para a mudança cli-mática, num momento em que as emissões de carbono na África do Sul já caminham para vinte vezes mais que a dos Estados Unidos, num cálculo per capita. Ironicamente, enquanto a tinta secava do contrato de doação de energia da Eskom para a Alcan, o ministro do Meio Ambiente, Martinus van Schalkwyk, retornava triunfante das negociações para o tratado sobre

14 Fonte: Cálculos de Steven Hosking e Patrick Bond, em Patrick Bond, Unsustainable South Africa (Londres, Merlin Press, 2002).

HEGEMONIA_miolo.indd 312HEGEMONIA_miolo.indd 312 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 302: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 313

mudanças climáticas, realizadas em Nairóbi, em novembro de 2006, afir-mando que “a África do Sul alcançará a maioria de suas principais me-tas”. Essas metas incluíam “mecanismos de desenvolvimento sustentáveis” (MDS) e investimentos como os créditos de carbono recomendados pelo Protocolo de Kyoto – metas que em algum momento teriam de ser levadas em conta pelos investidores do Coega. Investindo em projetos de MDS no Terceiro Mundo, que supostamente reduziriam as emissões de carbono, os poluidores do Norte rico podem comprar o direito de continuar a emitir carbono nos níveis atuais. Visto que a Alcan havia se comprometido a usar tecnologias relativamente eficientes no consumo de eletricidade em Coega, a organização norte-americana Enviromental Defense sugeriu que o projeto fosse considerado merecedor de investimentos de MDS pelos grandes po-luidores mundiais, o que lhes permitiria manter seus índices atuais de emis-sões. Existem inúmeros problemas no novo sistema de comércio de emissões, e projetos como o Coega mostram por que esse mercado não deveria ser expandido a ponto de gerar novos problemas ecológicos, sem exigir uma redução das emissões totais e globais15.

Richard Fuggle, professor de estudos ambientais da Universidade da Ci-dade do Cabo e um dos mais respeitados ambientalistas sul-africanos, com-bateu o aumento de emissões de carbono provocado pelo projeto Coega em seu discurso de despedida e descreveu Van Schalkwyk como “um político inconsequente [...] e incapaz de pressionar os empresários para que consi-derações ambientais tenham precedência sobre o desenvolvimento insus-tentável”. Segundo Richard Fuggle:

chega a ser patético que Van Schalkwyk tenha detalhado as virtudes dos treze pequenos projetos da África do Sul para obter créditos de carbono com os MDS do Protocolo de Kyoto, mas não tenha expressado desânimo pela Eskom vender 1.360 MW por ano de energia elétrica derivada de queima de carvão para uma indústria de alumínio estrangeira. Nós temos, hoje, um dos mais elevados índi-ces de emissão mundial de carbono por dólar de PIB. Somando o carbono que será emitido para fornecer energia a essa única fábrica, em breve nós estaremos em primeiro lugar nesse placar duvidoso.16

15 Patrick Bond, Rehana Dada e Graham Erion (orgs.), Climate change, carbon trading and civil society (Pietermaritzburg, University of Kwazulu-Natal Press, 2008).

16 Richard Fuggle, “We are still indifferent about the State of our environment”, Cape Times, 6 dez. 2006.

HEGEMONIA_miolo.indd 313HEGEMONIA_miolo.indd 313 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 303: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

314 • Hegemonia às avessas

O que dizem os advogados e defensores do Coega sobre esse tipo de crí-tica? Em 2002, como ministro da Indústria e Comércio Exterior, Alec Erwin chamou a análise acima de “polêmica malfeita e destinada a defender sua óbvia oposição prévia ao projeto. Eu nem faria esses comentários se o documento tivesse algum mérito real. Mas não tem. Nós fizemos várias dis-cussões abertas com grupos responsáveis pelo meio ambiente e atuaremos intimamente com eles” (os pontos específicos defendidos por Alec Erwin foram avaliados em detalhe e rejeitados na análise que escrevi em coautoria com o economista Stephen Hosking)17. A resposta do diretor executivo da Coega Development Corporation (CDC), Ongama Mtimka, publicada no The Mercury, recorria a outras considerações, relacionadas às acusações de corrupção:

O argumento conforme o qual “as consultas públicas e o processo participativo associado ao desenvolvimento do porto e da ZDI têm sido insatisfatórios” é factualmente incorreto e difamador com respeito ao caráter da CDC. Todos os procedimentos concernentes ao lançamento do projeto e aos investimentos fo-ram seguidos. [...] Não há evidências de conflitos de interesse entre os princi-pais atores do processo de tomada de decisões que “embaracem sua governan-ça”. Essa declaração é maliciosa e, baseada em alegações infundadas, prejudica a integridade da CDC.18

As alegações são mesmo graves. Envolvem um conflito de interesses com um ator-chave do processo de tomada de decisões: o gerente de opera-ções Achilles Limbouris. Investigações levaram a sua (aparentemente justi-ficada) demissão da Coega Development Corporation (CDC) apenas duas semanas antes da publicação do relatório de Ongama Mtimka. Achilles Limbouris mantinha “contato com uma empreiteira, a Scribante Construc-tion [...] que foi contratada para uma empreitada de 85 milhões de rands [...] [e vazou] informações delicadas e confidenciais da CDC [...] para o ambiente externo à empresa”19.

Mas o problema é aparentemente mais profundo e envolve compensa-ções pelo famoso acordo de armas, que possibilitou negociações com a fa-bricante alemã de submarinos Ferrostaal, em troca dos prometidos (mas

17 Alec Erwin, “Criminal not to develop Coega”, Eastern Province Herald, 1 fev. 2002.18 Mtimka Ongama, “Only history will vindicate Coega”, The Mercury, 28 dez. 2006.19 Coega Development Corporation, “Coega manager dismissed over misconduct”,

Porto Elizabeth, 11 dez. 2006, comunicado de imprensa.

HEGEMONIA_miolo.indd 314HEGEMONIA_miolo.indd 314 9/8/10 4:27:43 PM9/8/10 4:27:43 PM

Page 304: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 315

jamais concretizados) investimentos dela em Coega20. O Serviço Público de Auditoria só começou a se preocupar, de acordo com seu diretor Colm Allan, quando “o projeto Coega efetivamente afundou com a debandada da BHP Billiton como sua âncora. O que ressuscitou o Coega, segundo Colm Allan, foi:

o acordo ilegal do então ministro da Defesa Joe Modise com o consórcio ale-mão [em 13 de junho de 1999] para a aquisição de três submarinos avaliados em 4,5 bilhões de rands, como compensação à promessa da Ferrostaal de cons-truir uma siderúrgica de 6 bilhões de rands em Coega [...]. [Pouco tempo de-pois, quando se aposentou,] Joe Modise comprou ações e foi nomeado presi-dente de uma companhia que vem ganhando contratos para conduzir as obras do projeto Coega.

Segundo Colm Allan, apesar de Joe Modise ter falecido logo em se-guida, outros executivos passaram a orientar o projeto, entre eles Mafika Mkwanazi (então assessor do diretor administrativo da Transnet), Saki Ma-cozoma (então diretor administrativo da Transnet) e o presidente do conse-lho diretivo da CDC, Moss Ngoasheng.

A CDC é uma empresa privada que está editando contratos para arrancar di-nheiro dos contribuintes. Mas como é uma empresa privada, as demonstrações financeiras da CDC não podem ser auditados pelo escritório do auditor-geral. A CDC também não precisa cumprir a exigência de publicar relatórios finan-ceiros detalhados, conforme solicitado pela Lei do Gerenciamento das Finanças Públicas.21

Todas as entidades ambientais se mobilizaram contra o Coega, inclusive a Earthlife Africa, a Zwartkops Trust, os Valley Bushveld Affected Parties e os produtores de frutas cítricas. No entanto, para mudar decisões políticas, é preciso uma campanha articulada – que una ambientalistas, trabalhado-res, comunidades e demais cidadãos – por políticas radicalmente novas, que atendam as demandas da sociedade e não o apetite do mundo econômico por alumínio. Em maio de 2007, houve manifestações coordenadas contra a Alcan em Porto Elizabeth, Richards Bay e Johannesburgo. A ONG Earth-life Africa tentou esclarecer melhor os acordos que haviam sido firmados

20 Terry Crawford-Browne, Eye on the money (Cidade do Cabo, Umuzi, 2007).21 Colm Allan, “Coega, conflicts of interest and the arms deal”, Public Service Ac-

countability Monitor Report, Grahamstown, Rhodes University, 24 jul. 2001.

HEGEMONIA_miolo.indd 315HEGEMONIA_miolo.indd 315 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 305: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

316 • Hegemonia às avessas

em Coega por meio da Lei de Promoção do Acesso à Informação, consul-tando a Eskom sobre o preço da energia elétrica, as condições de forneci-mento e o poder da Alcan para vender a eletricidade não consumida. A res-posta, segundo a Earthlife Africa, foi “um completo e absoluto silêncio [sobre] questões legítimas referentes ao bem-estar e ao fornecimento de lon-go prazo à população sul-africana” 22.

Por fim, no final de 2008, o que pareceria ser o último prego do caixão do Coega se revelou um incrível manancial de informações: a publicação de uma biografia hagiográfica sobre o poderoso ministro das Finanças, Trevor Manuel, escrito por Pippa Green, ex-assessor de imprensa do ministro. Um ataque de cinco páginas ao projeto Coega – começando com a frase “você deve estar louco para acreditar que é uma boa ideia” (citação de um dos as-sessores de Trevor Manuel) – transformou o debate num embate entre a responsabilidade fiscal (Manuel) e o socialismo irresponsável (Erwin). Co-mo ministro das empresas públicas, Alec Erwin disse a Pippa Green que havia uma diferença ideológica fundamental nas teorias econômicas: “A mi-nha é basicamente marxista. Trevor Manuel não é um economista marxista – não porque se oponha a Marx, mas porque nunca o estudou” (um ponto que Pippa Green nega, usando uma citação descontextualizada de Trevor Manuel de um trecho do terceiro volume de O capital, contra os excessos nos gastos públicos). Alec Erwin supostamente se inspirou na análise da ca-deia de valores de Bruno Bettelheim quando promoveu o projeto Coega, esperando conexões anteriores e posteriores na produção de alumínio23.

Conclusão

O conflito surreal sobre o “Estado desenvolvimentista” sul-africano não seria resolvido pelos interesses conflitantes do Coega, pelo “capitalismo ca-marada”, pela corrupção e pelas loucas teorias pseudomarxistas sobre o ca-pitalismo na semiperiferia, vulgarizadas pelos dois ministros da economia mais neoliberais do país. Ultimamente, foi a crise mundial do capitalismo que tornou inviáveis as grandes fundições de alumínio, mas mesmo assim a equipe de Jacob Zuma pretende dar prosseguimento ao Coega (por en-

22 Earthlife Africa, “Eskom’s secret deal with Alcan: refusal to release details”, Johan-nesburgo, 20 fev. 2007, comunicado de imprensa.

23 Pippa Green, Choice not fate (Johannesburgo, Penguin, 2008), p. 524-8.

HEGEMONIA_miolo.indd 316HEGEMONIA_miolo.indd 316 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 306: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

A desorientação do “Estado desenvolvimentista” na África do Sul • 317

quanto, sem suas fundições), bem como a outros aspectos do projeto do “Estado desenvolvimentista”, entre eles a maciça expansão da energia nucle-ar proposta por Alec Erwin.

Em 2007, Ben Fine apontava para o caráter pobre do debate sobre o desenvolvimento sul-africano. No entanto, manifestava alguma esperança:

O governo justifica sua repentina virada para o Estado desenvolvimentista co-mo se nos bastidores sempre tivesse esperado que a economia se apresentas-se suficientemente estabilizada, firme e segura. A meu ver, essa é uma simples reinvenção das políticas econômicas e sociais da década passada, uma manei-ra de justificar as políticas de crescimento, empregabilidade e redistribuição, quando na verdade se procura afastar-se delas. A ascensão do suposto Estado desenvolvimentista é um expediente retórico do governo que indica sua crença de que o trabalho está sendo feito pela metade, e que hoje as condições são fa-voráveis às políticas intervencionistas e megalomaníacas. [...] Em segundo lu-gar, é claro, as políticas de ascensão do Estado desenvolvimentista são um pre-texto para amansar as críticas contra as iniciativas econômicas e sociais do governo. Em particular, é óbvio a incapacidade do governo de lidar com níveis altos e ascendentes de desemprego e pauperização, enquanto o aumento da influência do povo negro tem florescido especialmente como manancial para o enriquecimento da elite branca. [...] Em poucas palavras, eu daria um viva ao Estado desenvolvimentista por sua guinada no quadro das políticas públi-cas, outro viva se conduzisse a políticas mais progressistas e intervencionistas na prática, e um terceiro e mais alto viva se identificasse, desafiasse e mobili-zasse com propriedade os interesses políticos e econômicos subjacentes que impediram tais políticas no passado.24

É sempre fácil aplaudir a retórica na África do Sul, onde a ideia de “dis-cursar como esquerdista” enquanto se “caminha como direitista” correspon-de à crítica feita por Frantz Fanon ao nacionalismo africano. A outra rea-lidade, a dura realidade dos sul-africanos comuns, simplesmente não foi disfarçada pela propaganda do “Estado desenvolvimentista”. De fato, o que esses fenômenos representam é um regime neoliberal duradouro que agrava sistematicamente o fardo do povo, enquanto adota políticas que beneficiam o capital sediado no exterior, inclusive o capital nacional antes baseado nos negócios da classe branca africana. O que podemos verificar a partir do caso Coega é que esse tipo de abordagem é recorrente no planejamento e na im-plementação de megaprojetos, tanto quanto em políticas nacionais comuns.

24 Ben Fine, “Looking for a developmental State”, Alternatives International, 12 set, 2007. Disponível em: <http://www.alterinter.org/article1195.html?lang=fr>. Aces-so em: ago. 2010.

HEGEMONIA_miolo.indd 317HEGEMONIA_miolo.indd 317 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 307: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

318 • Hegemonia às avessas

Da mesma maneira, a única reação lógica – mas até agora, apenas um fragmento do que é necessário – é a oposição social, interna, político-eco-nômico-ambiental sustentada pela sociedade civil organizada, dada a au-sência de um partido de esquerda que se oponha ao Congresso Nacional Africano. Provavelmente, ocorrem mais protestos sociais por pessoa na Áfri-ca do Sul que em qualquer outra parte do mundo. Além dos mais de 30 mil “encontros” formais entre 2004 e 2007, dos quais a maioria foram protestos (e cerca de 10% foram “distúrbios”), há protestos espontâneos e não regis-trados pela polícia, com uma concentração entre 2004 e 2007 na província de Gauteng, onde foram realizadas mais de 50% de todas as “manifestações encomendadas”25.

Daí o duplo movimento descrito por Polanyi: intervenções excessivas do mercado, crise econômica e “capitalismo camarada” gerando reações de sindicatos e comunistas de centro-esquerda dentro da aliança partidária do-minante, e dramáticos protestos – às vezes denominados de extrema-es-querda – das forças cívicas independentes e não oficiais. O futuro reserva novos desgostos para as confusões do “Estado desenvolvimentista”, mas não está claro quais combinações políticas produzirão novas rebeliões no inte-rior do projeto de Jacob Zuma, ou pelo eventual lançamento de partidos operários sérios, ou simplesmente pelas batalhas sociais em marcha pela so-brevivência quotidiana e contra o neoliberalismo. Eis os processos aos quais devemos nos manter atentos, oferecendo a eles nossa solidariedade.

25 Instituto Liberdade de Expressão e Centro de Pesquisa Sociológica da Universidade de Johannesburg, “National trends around protest action”, Johannesburgo, fev. 2009, p. 13.

HEGEMONIA_miolo.indd 318HEGEMONIA_miolo.indd 318 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 308: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

DO APARTHEID AO NEOLIBERALISMO

José Luís Cabaço

Uma sociedade colonial

A sociedade do apartheid, que se explicitou na atual República da África do Sul depois de 1948, representou o modelo mais estruturado, no plano social, e mais desenvolvido, no plano econômico, de todas as sociedades coloniais do continente africano.

Sua definição como colônia resulta de alguns fatores determinantes: ela era resultado de uma conquista do território e da dominação administrativa por parte de uma minoria originária da Europa em sua fase de expansão mercantil-capitalista; a ordem político-social e a economia foram contro-ladas e apropriadas pelas comunidades ocupantes, que impuseram os pró-prios interesses por meio de mecanismos de poder e repressão; a superes-trutura que sustentava a dominação e a opressão fundava-se na afirmação da superioridade “civilizacional” da minoria estrangeira (o que se traduziu na polarização tendencial da sociedade, cuja fronteira passava pela ideologia racista); o problema político fulcral era a chamada “questão indígena”, para usar a expressão consagrada por Mahmood Mamdani1.

Com a penetração capitalista, a “questão indígena” surgiu como pro-blema central na política interna da ordem colonial no continente africano. Era expressão, no seio dos grupos dominantes, de um conflito latente entre as estratégias traçadas nas metrópoles e “os que vivem no terreno”. As pri-meiras obedeciam aos imperativos da conjuntura internacional e aos inte-resses das respectivas economias em competição, e eram seduzidas pelos

1 Mahmood Mamdani, Ciudadano y súbdito: África contemporánea y el legado del colo-nialismo tardio (Madri, Siglo XXI, 1998), p. 5.

HEGEMONIA_miolo.indd 319HEGEMONIA_miolo.indd 319 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 309: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

320 • Hegemonia às avessas

potenciais lucros, quer da exploração de mão de obra qualificada autóctone, muito barata, quer da gradual criação de mercados nas colônias. A promo-ção econômica dos colonizados – não sua promoção política – era favorável aos desígnios que perseguiam. Os segundos, pelo fato de se sentirem uma minoria estatística potencialmente ameaçada, constituíam um grupo soli-dário, cuja unidade se consubstanciava na “superioridade” da civilização de que se consideravam portadores e que representava a própria sobrevivência em face da maioria colonizada. A consolidação de sua segurança – física, dos bens apropriados e da condição de estrato social dominante – depen-dia da capacidade de controle das populações submetidas. Seu instinto de sobrevivência dizia-lhes que a promoção econômica representava um peri-go político e uma ameaça à hegemonia “civilizacional”. Paralelamente, eles viam no protecionismo dos governos coloniais aos produtos metropolita-nos um obstáculo ao rápido enriquecimento. O compromisso colonialista se negociava na inevitável complementaridade de ambas as partes, a me-trópole assegurando força e capitais e os colonos garantindo ocupação e presença.

Se num primeiro momento o fato colonial conduziu os estrangeiros à definição de uma oposição fundada na cor da pele e na cultura, num mo-mento sucessivo (e na senda da colonização britânica) a definição das popu-lações autóctones começou a ser definida em termos tribais. A passagem da raça à tribo ocorre em paralelo com o desenvolvimento das colônias como campo de estudo privilegiado da etnologia europeia. Retomando Mamda-ni, a “tribalização” do colonizado trazia grandes vantagens ao processo de dominação sobre a maioria: “À diferença da raça”, explica o autor, “a tribo ia dissolver a maioria dos colonizados em várias minorias tribais e, além dis-so, permitia argumentar que a identidade tribal era [ao contrário da identi-dade fundada na ‘raça’] tanto natural como tradicional”2.

Contudo, a criação dos “mapas étnicos” não anulava a segregação racial dominante nas sociedades coloniais africanas. As identidades tribais tinham existência simplesmente no interior da dicotomia que as sustentava, frag-mentando a resistência dos povos, estimulando referências tradicionalistas e repropondo rivalidades ancestrais que deveriam obstar à conscientização susceptível de emergir de uma reação unitária à dominação racista.

2 Ibidem, p. 100.

HEGEMONIA_miolo.indd 320HEGEMONIA_miolo.indd 320 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 310: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 321

Contradições sobrepostas

A emergência do nacionalismo africano constituiu a resposta à política do “dividir para reinar”. Opondo-se à tribalização política, o pensamento africano da primeira metade do século XX faz próprio o apelo oriundo da diáspora (principalmente do centro e norte do continente americano e de alguns pensadores africanos na Europa) e proclama um anticolonialismo baseado na unidade da resistência articulada em termos do denominador “raça”. O pan-africanismo, sob a bandeira de uma “África para os africa-nos”, leva esse ímpeto unitário até a unidade intrínseca de todos os povos negros do continente, e seus intelectuais buscam nos fundamentos das cul-turas oprimidas, destroçadas ou amordaçadas, uma “negritude” regenerado-ra. As reivindicações fundamentais eram de liberdade e dignidade, consubs-tanciadas no direito de participar das decisões, da independência política e, mais tarde, a dispor da própria vida e das riquezas de sua terra.

Raça e classe se articulam, na totalidade despótica e rapaz da ordem co-lonial, em duas formas de exclusão, uma superestrutural (a segregação ra-cial) e a outra estrutural (a exploração do trabalho). Os “brancos pobres”, quando existiam, eram beneficiados por serviços sociais (assistência médica, educação, pensões e subsídios etc.) e leis protetoras (reserva de emprego e cidadania plena, por exemplo) e incorporados na esfera ideológica da bur-guesia colonial, reforçando a representação da coincidência entre raça e classe. A sobreposição da ideologia da superioridade racial do dominador e da condição objetiva do dominado no processo produtivo é um elemento essencial na compreensão da realidade africana.

Na luta pela liberdade, a contradição determinada pelo racismo torna-se preponderante na consciência africana. A discriminação persegue o(a) ho-mem/mulher colonizado(a) em cada momento de sua vida. Está presente na própria epiderme, colada a sua condição de súdito(a) e marginalizado(a). É na cor da pele, na história e na cultura que ela representa, que o coloni-zado identifica, em primeiro lugar, a impossibilidade intrínseca de mobili-dade social no quadro do capitalismo que se vai instalando em sua terra.

O sistema lhe acena com a promessa de ascensão ao preço de uma rup-tura radical com a própria história e cultura, da renúncia a sua humanidade. Mas quando negocia essa humilhante opção, ele descobre, como diz Fanon, “que o racismo e o desprezo se mantêm”3. O colono nunca o aceita como

3 Frantz Fanon, Os condenados da terra (Lisboa, Ulisseia, s.d.), p. 46.

HEGEMONIA_miolo.indd 321HEGEMONIA_miolo.indd 321 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 311: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

322 • Hegemonia às avessas

igual, nunca lhe permite a paridade de estatuto e de oportunidades. O “as-similado”, diz Memmi em seu romance autobiográfico, perde sua unidade fundamental, deixa de se reconhecer e de ser reconhecido e procura-se em vão4. Em um ensaio seu, o autor é peremptório: na situação colonial, “a as-similação revelou-se impossível”5. O dualismo da sociedade é irredutível.

A tomada de consciência da própria exploração como classe se esbate sob o manto sufocante e fatalista da exclusão racista. Essa contradição, mui-to mais que a condição de trabalhador explorado, separa-o dele próprio e impede o acesso ao usufruto das mercadorias e dos serviços que a sociedade “branca” ostenta diante de seus olhos. A libertação anticolonial é, antes de mais, a da condição de discriminado, e o nacionalismo africano esgota-se nessa conquista. Com a independência política, o colonizado resgata sua humanidade, mas não resolve a condição de dependente, de súdito, de ex-plorado. A mobilidade social conquistada vai se realizar, com análogas difi-culdades, no contexto desigual da ordem estrutural herdada.

A debilidade das economias africanas no momento da independência política, os vínculos de subordinação às antigas metrópoles coloniais, a es-pecificidade político-antropológica dos estratos sociais que podiam ser os motores da libertação econômica e uma conjuntura internacional desfavo-rável estão entre as causas mais evidentes da dificuldade histórica de trans-formar a natureza das relações de produção definidas pela ordem colonial.

Alguns movimentos guerrilheiros que lutaram e derrotaram o colonia-lismo intuíram as limitações do combate travado e procuraram, em opções socialistas, converter a euforia da vitória numa tomada de consciência da condição de dependência. As elites revolucionárias não souberam, porém, interpretar de forma criativa a tarefa que tinham se proposto. Na linha do pensamento de esquerda dominante na época, fizeram uma leitura orto-doxa das categorias sociológicas e marxistas do Ocidente, sem aprofundar o estudo do modo de produção colonial e da forma como os trabalhadores se inseriam, estrutural e subjetivamente, no processo de produção de bens. Não menos importante para a pequena burguesia colonizada que ocupou os aparelhos estatal e político, revelou-se o fato de que as mordomias e os

4 Albert Memmi, A estátua de sal (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008), p. 50.5 Idem, Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador (Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1967), p. 108.

HEGEMONIA_miolo.indd 322HEGEMONIA_miolo.indd 322 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 312: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 323

padrões de consumo que tinham caraterizado a sociedade dos colonizadores se incorporavam simbolicamente na representação do poder que se cons-truía nas novas nações.

O projeto político desvinculou-se da realidade que pretendia transfor-mar e naufragou em verbalismos demagógicos ou soluções populistas. Os grupos dirigentes perderam-se na ambiguidade das intenções ou nos pró-prios instintos de classe: uns acabaram soçobrando politicamente; outros, em nome do pragmatismo, renderam-se aos privilégios do poder e ao fascí-nio do consumismo.

Um colonialismo “desenvolvido”

Todas as sociedades coloniais na África acabaram exprimindo especifici-dades dentro da matriz comum que caraterizava aquele sistema de domina-ção. Na África do Sul, a originalidade determinante terá sido o fato de, na primeira metade do século XX, o poder político ter sido apropriado direta-mente pelo grupo de colonizadores mais enraizado no território, a nação afrikaner, que havia muito tinha deixado de se referir a uma metrópole eu-ropeia. Esse colonialismo interno permitiu que a política e a economia se estruturassem segundo uma agenda que respondia, no plano nacional e in-ternacional, aos interesses das classes dos colonos – a base social do poder instituído – e não, como nas restantes possessões africanas, em diálogo su-bordinado com os desígnios imperiais das metrópoles.

Os boer (da palavra holandesa para “camponês”), como são normalmen-te designados os afrikaner, sustentaram uma guerra sangrenta contra os in-teresses imperiais britânicos para defender a própria autonomia políti-co-cultural e manter o controle das imensas riquezas do subsolo (das quais o ouro se tornou estrategicamente dominante) que viriam a constituir os fundamentos da acumulação do capitalismo nacional. Embora militarmen-te derrotada, a nação boer ganharia gradualmente ascendência política no contexto do modelo pluripartidário instituído para a comunidade branca e, respondendo de forma mais direta aos interesses e aspirações dos colonos, venceria as eleições de 1948.

O caráter dual da sociedade, marca da dominação colonial, manifes-tou-se no país de forma institucional por meio de leis, normas, regulamen-tos e práticas que determinavam as relações entre as comunidades, definin-do os campos da política, dos direitos humanos e da vida social, as relações

HEGEMONIA_miolo.indd 323HEGEMONIA_miolo.indd 323 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 313: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

324 • Hegemonia às avessas

com a riqueza do território, por meio da segregação econômica e do acesso diferenciado a bens e serviços e até a relação com a natureza, pela ocupação seletiva do território rural e urbano. O zelo de políticos e legisladores do apartheid teceu uma exaustiva rede de oposições que discriminavam o coti-diano das populações submetidas.

A África do Sul, como já referido, é o único país africano onde o capita-lismo colonial ganhou dinâmicas endógenas no quadro do imperialismo. As raízes do fenômeno remontam à revolução mineira da segunda metade do século XIX, quando começaram a ser explorados importantes depósitos de diamantes (1867) e de ouro (1886). A ação militar para a ocupação da totalidade do território às populações autóctones foi imediatamente desen-cadeada, após o que o império britânico se concentrou na dominação das repúblicas boer que tinha reconhecido na década de 1850. A guerra an-glo-boer (1899-1902) colocou frente a frente, fato inédito na África, duas comunidades de colonizadores em luta pelo poder. Após a vitória, a Ingla-terra criou quatro colônias. Logo em 1910, elas viriam a ser unificadas na União Sul-Africana e o governo, sempre em nome da Coroa, transferido para a comunidade branca residente. A soberania integral sobre o território seria outorgada aos colonos em 1931, consagrando um regime político de colonialismo interno.

Com a indústria mineira, nasce na África do Sul o sistema de produção capitalista. Segundo Davis, O’Meara e Dlamini, é nesse setor que se im-planta um sistema de exploração de trabalho assalariado em vasta escala, o qual, não obstante as baixas remunerações, amplia o mercado interno de mercadorias e cria as condições para o desenvolvimento capitalista na agri-cultura e na indústria de transformação. O escasso teor de ouro (uma onça para quatro toneladas de rocha), a dispersão das minas e a profundidade de extração tornam a atividade muito onerosa e estão no origem tanto do re-gime de exploração intensiva e coerciva da mão de obra como da rápida concentração de capital em poderosas corporações6.

A política laboral ensaiada e teorizada nesse setor de atividade viria a re-forçar a institucionalização do apartheid. A necessidade de mão de obra a baixo custo potencializa, em situação colonial, sua racialização. O governo sul-africano cria o regime de trabalho migratório com contratos de curto

6 Rob Davis, Dan O’Meara e Sipho Dlamini, The struggle for South Africa: a reference guide (Londres/New Jersey, Zed Books, 1988), p. 7-9.

HEGEMONIA_miolo.indd 324HEGEMONIA_miolo.indd 324 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 314: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 325

prazo, fazendo uso do argumento tipicamente colonialista de que o salário representava um complemento da economia doméstica do trabalhador afri-cano, cuja família permaneceria ligada à produção agrícola de subsistência e para junto da qual ele regressaria após o término do compromisso contra-tual. Esse retorno era estimulado pelo fato de os trabalhadores viverem em “compounds” (acampamentos) onde não eram permitidas as famílias. Mui-to cedo, a Câmara das Minas (associação dos proprietários) começou a uti-lizar trabalhadores recrutados nos países vizinhos, tentando atenuar o im-pacto do trabalho assalariado e a pressão da urbanização na transformação da vida das populações africanas locais.

A história do trabalho na África do Sul, é óbvio, tem implicações polí-ticas e sociais que transcendem a argumentação antropológica. O dilema central dos racistas sul-africanos, especialmente depois da tomada do poder pelo Partido Nacional boer, é o de responder às necessidades do capitalismo interno em crescimento, evitando a proletarização e a urbanização de uma classe trabalhadora negra, o que comprometeria uma identidade fundada na tribo e as respetivas redes tradicionais de solidariedade.

Para forçar a tribalização dos camponeses africanos, o Estado introdu-ziu, em 1913, a Lei de Terras Indígenas (Native Land Regulation Act), pe-la qual se destinavam 8% da terra arável para produtores africanos que, nessas áreas, poderiam ser detentores de títulos de propriedade (a percen-tagem foi duas décadas mais tarde ampliada para 13%). A mesma lei de-terminava o número de famílias que podiam viver nas terras reservadas aos agricultores de ascendência europeia, como arrendatários desses colonos ou como mão de obra assalariada. Os restantes deviam ser reconduzidos às áreas a eles reservadas.

Sob o olhar complacente das autoridades locais, os agricultores brancos iam contornando a aplicação rigorosa da medida em conformidade com as necessidades de mão de obra ou de renda proveniente das terras não apro-veitadas. A participação da África do Sul na Primeira Guerra Mundial, tor-nando escassa a disponibilidade de trabalhadores brancos, levou as autori-dades nacionais a abrandar o controle estrito da lei e, por volta de 1920, uma classe trabalhadora africana semiespecializada começava a fixar-se em algumas periferias urbanas.

O governo, terminado o conflito, preocupou-se com a perspectiva da formação de um proletariado negro e tomou novas medidas restritivas para obstar à livre circulação dos africanos. A prática dos documentos controla-

HEGEMONIA_miolo.indd 325HEGEMONIA_miolo.indd 325 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 315: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

326 • Hegemonia às avessas

dores da livre circulação era comum desde os tempos da escravatura por meio de regulamentos locais. Como acenado, a conjuntura internacional e as necessidades do capitalismo em expansão fizeram com que a aplicação real dessas medidas obedecesse, de região para região, e até em conformida-de com o setor produtivo, a critérios pragmáticos. Diante da crise econômi-ca de 1929, os setores produtivos voltam a exercer pressão sobre o governo para permitir uso mais amplo de mão de obra a baixo custo (isto é, ne-gra), com acesso a tarefas mais qualificadas.

Logo depois, a África do Sul decide participar da Segunda Guerra Mun-dial. Ao esforço produtivo acrescido que a decisão pedia, juntava-se a mobi-lização de muitos milhares de brancos, com os consequentes efeitos na ofer-ta de trabalhadores qualificados em todos os sectores produtivos. Em tempos de guerra, o recurso à imigração de operários europeus tornava-se difícil.

Embora mantidas a divisão racial do trabalho (a colour bar) e a filo-sofia política que a norteava, o fim do conflito mundial veio encontrar um grande número de famílias africanas residindo nas periferias urbanas e com trabalho permanente. Desde 1920, a população negra periurbani-zada duplicara.

Na década de 1920, nasceu o movimento sindical africano, organizado na ICU (Industry and Commerce Worker’s Union of South Africa) e agre-gando também trabalhadores rurais. A crise de 1929 e medidas repressivas do regime levaram a sua extinção uma década mais tarde. Com a participa-ção do Partido Comunista Sul-Africano, constitui-se nos anos de 1930 uma nova organização, o CNETU (Council of Non-European Trade Unions), que ganhou dimensão suficiente para proclamar em 1946 a primeira greve geral pela paridade salarial.

Nas eleições para brancos que se sucederam ao fim da guerra, o Partido Nacional apresentava-se com um programa explicitamente racista, tenden-te, segundo seu slogan, a “pôr os africanos em seu lugar e os indianos fora do país”: preconizava o rígido controle da circulação de mão de obra negra e sua recolocação nas “reservas” como forma de assegurar força de trabalho para a agricultura em crise. Além disso, defendia, para esse setor, a fixação subsidiada de preços ao produtor, consolidando o apoio político dessa base eleitoral que havia décadas votava majoritariamente pelo United Party (um partido mais liberal e de influência britânica). A plataforma do Partido Nacional é a da institucionalização do desenvolvimento separado das raças (forma extremista do indirect rule britânico), que viria a ser conhecido pelo

HEGEMONIA_miolo.indd 326HEGEMONIA_miolo.indd 326 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 316: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 327

sistema do apartheid. A retumbante vitória eleitoral demonstra o quanto esse programa respondia aos interesses (e às angústias) dos colonos.

Os anos do apartheid institucional

As medidas tendentes à “desproletarização” dos negros são imediatas. Logo em 1950, o governo racista publica o Popular Registration Act, pelo qual todos os habitantes do país são oficialmente registrados segundo a “ra-ça”. Em 1951, é instituído o Bantu Authority Act, que cria as “homelands” ou bantustões (áreas reservadas para negros e da administração das quais participavam os chefes tradicionais), e são instituídos tribunais industriais com poderes para definir, em cada setor de atividade econômica, o nível de acesso dos trabalhadores “não brancos”. A partir de 1952, a “Natives (Abo-lition of Passes and Coordination of Documents) Law” institui, para todo o território, um documento único que substitui o conjunto de certidões e atestados que os homens africanos eram obrigados a transportar com ele, facilitando o controle nacional de sua circulação pela polícia. A Lei do Pas-se torna-se política do Estado. É contra a inclusão das mulheres na aplica-ção dessa lei, em 1960, que o ANC desencadeia a ação de desobediência civil que culminará no massacre de Sharpesville, em 16 de junho, data sim-bólica da resistência anti-apartheid. Em 1955, três milhões de negros são transferidos à força para as “homelands” de origem e remetidos à vida triba-lizada. Grande parte da força de trabalho assalariada permanente era, assim, administrativamente reconvertida em mão de obra migratória.

A década da institucionalização do apartheid é também a década do desenvolvimento do nacionalismo africano. O debate nacionalista tem na África do Sul grandes figuras, como Albert Luthuli, William Gumede, Yus-suf Dadoo, Oliver Tambo, Nelson Mandela, Walter Sizulu, Joe Slovo, Win-nie Mandela, entre muitos outros, que dialogam com ideias vindas do resto do continente, da diáspora americana, dos países de leste. É um período de difícil luta política e social e de grandes proclamações que marcarão o futu-ro do país.

Os trabalhadores negros reorganizam-se. Em 1954, cria-se o South African Congress of Trade Unions (Sactu), no qual conflui o que resta do CNETU, e que em breve seria proibido, tornando-se clandestino. O ANC (African National Congress), que nascera em 1912 como o partido da pe-quena-burguesia negra, transforma-se em movimento de massas e, interdi-

HEGEMONIA_miolo.indd 327HEGEMONIA_miolo.indd 327 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 317: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

328 • Hegemonia às avessas

tado em 1960, reestrutura-se na ilegalidade em aliança com o Partido Co-munista da África do Sul, proibido dez anos antes. A aliança ANC/PCAS/Sactu radicaliza sua ação e cria, no ano seguinte, o uMkhonto we Sizwe, seu braço armado do qual Mandela foi um dos dirigentes.

O esforço dos movimentos nacionalistas sul-africanos centra-se na cria-ção e na consolidação de uma classe trabalhadora consciente de sua condi-ção de explorada, na qual novos laços de solidariedade nasçam a partir das relações de produção e ultrapassem as afinidades étnicas. Contudo, as orga-nizações laboristas brancas (que representavam em sua maioria esmagadora trabalhadores especializados e semiespecializados) recusam qualquer afini-dade com os sindicatos negros, cujas reivindicações, em geral, são vistas co-mo uma ameaça a seus privilégios. A barreira racial continua prevalecendo sobre a identidade de classe.

De 1950 até aos finais de 1960, a indústria de produção de bens registra assinalável expansão. É o período da política da substituição de importa-ções, expressão de estabilidade econômica conseguida pela fixação do preço internacional do ouro.

Mas, como explica Gelb, em 1973, quando entra em colapso o sistema monetário acordado três décadas antes em Bretton Woods e instala-se a crise petrolífera, a política sul-africana de substituição de importações ma-nifestava já os primeiros sintomas de esgotamento7. Como reflexo da con-sequente espiral inflacionária, verifica-se uma sucessão de greves dos traba-lhadores africanos pressionando os salários. O movimento reivindicativo vai se politizando e a crise social se agrava, acompanhando a deterioração estrutural da economia. A indústria sul-africana não era competitiva no plano internacional: a produtividade era baixa e a tecnologia, ultrapassada. Crescia vertiginosamente a dependência das importações.

No ano seguinte, inicia-se a transição para a independência das colônias portuguesas, com regimes saídos de guerrilhas vitoriosas, com políticas ra-dicais e internacionalistas e comprometidos com a libertação total do con-tinente. Angola e Moçambique tinham constituído, até então, a “barreira protetora” das fronteiras do apartheid e negros e brancos sul-africanos, com sentimentos antagônicos, acompanhavam atentamente a evolução dos acontecimentos.

7 Stephen Gelb, Inequality in South Africa: nature, causes and responses (Johannesbur-go, The Edge Institute, 2003), p. 25.

HEGEMONIA_miolo.indd 328HEGEMONIA_miolo.indd 328 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 318: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 329

Quando ocorre, em 1976, a revolta dos estudantes em Soweto, sufocada em sangue, o nome de Samora Machel, herói da libertação de Moçambi-que, é cantado pelos jovens em revolta ao lado de Steve Biko, ícone das no-vas gerações urbanizadas na África do Sul. A indignação mundial pelo mas-sacre dos jovens de Soweto alimenta o movimento internacional das sanções econômicas ao regime e encarece sua dependência do exterior. O governo boer ensaia então algumas reformas (a chamada política do petty-apartheid): acelera a “autonomia” dos bantustões, promove os serviços sociais para “não brancos”, em especial no campo da educação e do treino profissional, abran-da o controle sobre o influxo de africanos para as cidades.

Por pressão dos setores capitalistas nacionais, em busca de soluções para a crise, inicia-se um processo de gradual integração de mão de obra africana em níveis profissionais mais qualificados e remunerados. Segundo Stephen Gelb, já citado, a despesa social per capita com a população africana, que tinha se mantido durante muitos anos em 12% da despesa equivalente para a população branca, começa a subir. Em 1990, antes do processo de demo-cratização nacional, atingiria os 28%8.

Instala-se na sociedade uma desigualdade intrarracial que se acentuará de ano para ano. Embora a desigualdade entre raças permaneça dominan-te até a queda do apartheid, o fator classe social vai emergindo e corroendo laços de solidariedade que até então percorriam a identificação racial. Cres-ce claramente a incidência da ocupação profissional na aferição do fosso econômico e dos níveis de pobreza entre a população negra, e a tradicional sobreposição raça-classe começa a deslocar-se. A urbanização de estratos ca-da vez mais numerosos de africanos e a proletarização dos trabalhadores torna-se tendência irreversível. Uma burguesia de quadros qualificados e comerciantes toma forma no seio da comunidade negra.

A passagem para a sociedade democrática

Sitiadas no plano interno e internacional, as classes aliadas no poder ra-cista fazem novos esforços de sobrevivência. Para o capital, era patente que o apartheid, mesmo “reformado”, tornava-se inaceitável para o crescimento da economia na África do Sul. Entre outros motivos, a política do regime dificultava seu acesso ao mercado de capitais, com a consequente escassez

8 Ibidem, p. 13.

HEGEMONIA_miolo.indd 329HEGEMONIA_miolo.indd 329 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 319: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

330 • Hegemonia às avessas

de moeda forte e a necessidade de recorrer a fontes especulativas; os emer-gentes mercados africanos, mais sensíveis aos preços do que à qualidade dos produtos, eram economicamente atrativos, mas politicamente inter-ditados; e, finalmente, a instabilidade social inflacionava o preço da mão de obra especializada com reflexos na produtividade, aumentando os cus-tos de produção.

Em 1989, verifica-se um acontecimento crucial e com repercussões que se prolongam até os nossos dias. Sob a direção da nova e poderosa central sindical que entretanto se constituíra, a Cosatu (Congresso dos Sindicatos da África do Sul, criado em 1985 e com quase de 2 milhões de aderentes), é lançada uma campanha contra o “Labour Relations Act”, a lei que regu-lava as relações de trabalho. O patronato tomou a iniciativa de propor aos sindicatos uma aliança tática, que foi aceita. Acordou-se uma plataforma de entendimento segundo a qual se reconheciam os direitos de ambas as partes e se exigia do governo a revisão da lei e a aceitação do princípio de que toda a futura legislação laboral teria de ser aceita pelas organizações dos trabalha-dores e dos patrões. Nascia o triângulo de concertação trabalho-capital-Es-tado. Em 1993, já depois da democratização, o National Economic Forum consagraria o modelo tripartite de gestão das relações de trabalho.

Quando o ANC, sob a liderança de Nelson Mandela, vence as eleições e toma o poder, é adotado, em 1994, o Reconstruction and Development Programme (RDP), no qual a política macroeconômica e a política finan-ceira surgiram como aspetos complementares. O foco do documento inci-dia sobre a chamada ação afirmativa, a expansão dos serviços sociais, o in-vestimento público em setores de uso intensivo de mão de obra (habitação e infraestruturas, principalmente), o incentivo ao investimento privado em áreas de apoio aos estratos mais desfavorecidos como forma de estimular a expansão do mercado interno etc. A produção deveria privilegiar a satisfa-ção da demanda nacional.

Para Mandela, as preocupações centrais eram a “desracialização” da so-ciedade e uma política econômica que, melhorando as condições de vida e de trabalho dos mais pobres, permitisse que essa transição se processasse sem perturbações da ordem pública. Arquiteto de um projeto de grandeza humana e de resgate da dignidade de seu povo, ele se concentrou no obje-tivo central que marcara sua geração, a supressão do estigma colonial. Se a eliminação da raça como fator de exclusão social era uma medida clássica (e indispensável) dos processos de descolonização no continente, a promoção

HEGEMONIA_miolo.indd 330HEGEMONIA_miolo.indd 330 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 320: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 331

paralela de uma distribuição mais justa da riqueza social correspondia à ou-tra promessa importante da luta de libertação conduzida pelo ANC.

A concretização da política anunciada pelo RDP implicava a reestrutu-ração do capitalismo sul-africano, comprometia o domínio dos grandes conglomerados e preconizava uma maior intervenção estatal na economia.

Mas os princípios defendidos pela liderança do ANC foram se diluindo, com a transformação individual de alguns de seus mais destacados dirigen-tes após a tomada do poder. Cyril Ramaphosa, o líder da Cosatu na luta anti-apartheid (que negociara o acordo tripartite de 1989), abandonou a política para criar um grande grupo econômico de “capitalismo negro”. Destacados militantes, como Tokyo Sexwale, Patrice Motsepe, Mosiuoa ”Terror” Lekota e tantos outros, beneficiaram-se dos cargos políticos que desempenharam para ingressar nas mais altas posições do mundo empresa-rial e financeiro ou para constituir suas próprias sociedades. Como em mui-tos outros países libertados da opressão colonial, também na África do Sul poder e riqueza se associaram rapidamente.

O reconhecimento dos direitos de propriedade adquiridos durante o apartheid, justificados em grande medida com o argumento da necessidade de estabilidade política e social durante a transição, representou um dos principais obstáculos à transformação da economia sul-africana. Impediu, por um lado, a reforma agrária, deixando os camponeses africanos confina-dos às terras menos produtivas, e manteve incólume a estrutura e os centros de poder da economia capitalista herdada.

Para o grande capital, o apoio dado ao processo de transição visava o acesso facilitado ao mercado de capitais e uma renovação tecnológica que modernizasse a produção e permitisse reduzir a força de trabalho, tornan-do-a competitiva no mercado internacional.

Um acordo tácito foi estabelecido sob pressão das instituições financeiras internacionais: o ANC trocou a estabilidade macroeconômica exigida pelo grande capital pelo empoderamento econômico da burguesia africana.

Para Thabo Mbeki, a quem Mandela entregou a direção da economia e que lhe sucederia como presidente, a globalização não é um fato político, mas, como afirmaria no discurso de abertura do Conselho Nacional Geral do ANC em 2000, “um resultado objetivo do desenvolvimento das forças produtivas para criar riqueza [....] e do impacto que nelas exercem os avan-ços na ciência, tecnologia e engenharia”. Com essa perspetiva tecnocrata, elabora sua estratégia econômica no quadro conjuntural liderado por FMI,

HEGEMONIA_miolo.indd 331HEGEMONIA_miolo.indd 331 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 321: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

332 • Hegemonia às avessas

Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio. Richard Calland, em seu livro Anatomy of South Africa, refere uma conversa tida pelo autor com um importante capitalista negro sul-africano, próximo do poder, que lhe explica a visão política do presidente. Segundo ele, Mbeki defendia a união das elites do país para evitar oposição ao processo de transição e pro-movia a formação de uma burguesia negra, armada de uma firme cons-ciên cia de nacionalismo africano, embora sabendo “da inevitabilidade de sua acomodação com o capitalismo branco”9.

Com efeito, logo em 1996 o RDP foi revisto e substituído por um novo programa, o Gear (Growth, Employment and Redistribution).

A política macroeconômica é o ponto focal do novo programa. Acei-ta-se explicitamente o princípio de que a política social e de desenvolvimen-to setorial depende do crescimento global do capitalismo nacional. A redis-tribuição é tratada como processo à parte, financiada pelo resultado desse crescimento. A nova política privilegia a produção para exportação.

Os resultados estatísticos da política neoliberal do Gear são elucidativos. Analisando as categorias sociais mais bem remuneradas (gestores, políticos, altos funcionários, profissionais e técnicos de elevada qualificação) segun-do a classificação racial do apartheid, a porcentagem de brancos permane-cia, em 2001, a mais expressiva (44%), seguida dos negros (41%), mestiços (9%) e indianos (7%). Seekings e Nattrass10 mostram como, após o Gear, potencializou-se a classe mais alta, a qual se desracializou, enquanto dimi-nuiu o contingente da classe média (embora melhorando o nível de vida) e piorou o estrato mais baixo da população, constituído pela classe operária marginalizada, os desempregados em aumento e aquilo que os autores cha-mam de subclasse, isto é, aqueles estratos marginalizados e marginais cuja trajetória tendencial de vida conduz não à perspetiva de uma possível inte-gração social, mas cada vez mais para “fora” da sociedade organizada. Todos esses estratos sociais permaneciam constituídos exclusivamente por negros.

O fosso da desigualdade entre as classes dominantes e esse último setor da sociedade tem crescido desde 1996 e é mais crítico do que nos últimos anos do apartheid.

9 Richard Calland, Anatomy of South Africa: who holds the power? (Cape Town, Zebra Press, 2006), p. 268.

10 Jeremy Seekings e Nicoli Nattrass, Class, race and inequality in South Africa (Dur-ban, University of Kwazulu-Natal Press, 2006), p. 337.

HEGEMONIA_miolo.indd 332HEGEMONIA_miolo.indd 332 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 322: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 333

Os últimos desenvolvimentos

É nesse quadro de agravamento da desigualdade social, de frustração dos trabalhadores em relação às expectativas da democracia e de crescente crise social e política que se devem ler os desenvolvimentos políticos recen-tes na África do Sul e a humilhante derrota de Mbeki, no último congresso do ANC.

À “desracialização” da sociedade colonial não correspondeu, como vi-mos, a melhoria das condições de vida material a que as populações aspira-vam. No campo, o reconhecimento dos direitos de propriedade adquiridos no regime do apartheid impediu o acesso dos camponeses africanos à terra. A política estatal exigia a compartipação dos camponeses na compra, o que, para estes, tornava incomportável a aquisição de propriedade rural. Segun-do o relatório de 2003 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Huma-no, existiam então cerca de 69 mil pedidos de concessão de terra, mas ape-nas cerca de 3% do total da terra arável da África do Sul tinham sido transferidos. Para a satisfação de todos os pedidos até aquela data, e para cumprir a promessa de ajuda, o Estado teria de gastar ainda 31 trilhões de rands, cerca de 4,5 trilhões de dólares ao câmbio da época, não previstos no orçamento de despesas.

Livres do estigma racial, dos obstáculos jurídicos à mobilidade social e das restrições de circulação, as classes trabalhadoras urbanizadas ou periur-banizadas defrontaram-se com o espectro do desemprego e da marginali-zação dos benefícios da modernidade. Em 2002, regista Patrick Bond, o desemprego atingiu 45% da força de trabalho, o mais elevado índice da his-tória da África do Sul11.

A tomada de consciência do processo econômico de exclusão deixa de estar coberta pela capa da discriminação racial. As greves, organizadas e es-pontâneas, ressurgem como instrumento de luta dos trabalhadores. Os sin-dicatos, parte na tripla aliança anti-apartheid (ANC, PCAS e Cosatu), que tinham dado um voto de confiança ao governo nas duas primeiras eleições democráticas, começam a distanciar-se da linha insofismavelmente neolibe-ral perseguida pelo Executivo. Em seus documentos, criticam a interpreta-ção de alguns princípios sobre os quais fundaram esse voto de confiança: o empoderamento (africanização do poder e controle da economia) é, para os

11 Patrick Bond, Unsustainable South Africa (Londres, Merlin Press, 2002), p. 6.

HEGEMONIA_miolo.indd 333HEGEMONIA_miolo.indd 333 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 323: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

334 • Hegemonia às avessas

sindicatos, social e não individual; o Estado deve manter-se forte e intervir na transformação da economia; os serviços sociais e as políticas distributivas devem prevalecer sobre o enfoque macreconômico etc.

A luta política desloca-se para o interior do ANC. A demissão, em 2005, de Jacob Zuma, vice-presidente da República e figura carismática da luta armada de libertação, sob alegação de corrupção, é entendida pelas massas populares e a base do ANC como uma manipulação do poder para afastar um dirigente crítico à estratégia econômica seguida pelo Executivo. Com efeito, Mbeki havia ordenado aos serviços secretos uma vasculha minuciosa da vida privada de seu vice e os fatos alegados foram passados imediatamen-te à grande mídia, pública e privada, que os publicou com grande destaque e sensacionalismo. Em 2004 e 2005, a ação da imprensa foi devastadora, mas a população de baixa renda recebeu-a como uma campanha política e identificou em Zuma seu líder. No Congresso do ANC de dezembro de 2007, em Polokwane, Jacob Zuma derrotou claramente Thabo Mbeki e foi eleito presidente do partido com o apoio dos sindicatos, organizações da juventude e da mulher, da maioria dos comitês de base e dos comunistas.

Mbeki e a vice-presidente, Mlambo-Ngcuka, renunciaram aos cargos e o ANC indicou Kgamela Montlanthe, segunda figura da ala vencedora, co-mo presidente interino até as eleições gerais. Um grupo de importantes per-sonalidades partidárias da linha político-econômica de Mbeki abandonou o ANC e constituiu, em desafio à liderança de Zuma, um novo partido, o Congress of the People (Cope).

Conclusão

Ninguém está em condições de prever os desenvolvimentos políti-co-econômicos da África do Sul nos próximos anos. A experiência africana é fértil em exemplos de elites representativas das forças sociais nacionalistas que, uma vez no poder, sucumbem à sedução das mordomias e das oportu-nidades individuais que sua posição lhes proporciona.

Mas, indiscutivelmente, o processo político, social e econômico desse grande país (que a globalização transformou em plataforma continental de seu projeto hegemônico) representa um caso de estudo privilegiado de mui-tas questões vitais para a interpretação da tragédia que assola o continente. Em nenhuma outra colônia do continente é tão evidente a relação entre ra-ça e classe, entre política colonial e desenvolvimento capitalista. Em nenhu-

HEGEMONIA_miolo.indd 334HEGEMONIA_miolo.indd 334 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 324: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Do apartheid ao neoliberalismo • 335

ma outra nação africana como na África do Sul, a identidade de classe das massas assalariadas dá indícios de poder prevalecer sobre a consciência ra-cial dos negros. Em nenhum outro país do continente, o embrião do con-flito de classe intrarracial foi tão evidente e marcante.

O percurso da África do Sul segregada e seus desdobramentos pós-apar-theid são indicativos do insucesso da opção capitalista na resolução das fe-ridas abertas pelo colonialismo. A aplicação do modelo neoliberal agravou, apesar da libertação política e da riqueza do país, as desigualdades sociais que a ordem racista institucionalizou. Os conflitos ganham contornos de confrontação entre as classes sociais, independentemente do fator raça.

O debate em curso anuncia uma política que parece voltar ao programa RDP dos dois primeiros anos de governança democrática. O sucesso ou o fracasso da nova elite dirigente dependerá dos interesses de classe que cons-tituírem as prioridades de sua ação e da maior ou menor capacidade, por parte da liderança, de interpretar e de saber dialogar com os anseios das duas Africas que continuam a coexistir, aquela em que prevalecem valores “tradicionais” e a que se rege pelos parâmetros da modernidade, as quais, parafraseando Ayittey, operam por princípios e lógicas diferentes12.

12 George Ayittey, Africa in chaos (Nova York, St. Martin’s Griffin, 1999), p. 14.

HEGEMONIA_miolo.indd 335HEGEMONIA_miolo.indd 335 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 325: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

4

O SOCIALISMO APÓSO DESMANCHE

HEGEMONIA_miolo.indd 337HEGEMONIA_miolo.indd 337 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 326: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

REENCONTRANDO O COMUNISMODA EMANCIPAÇÃO

Álvaro Bianchi

Se levarmos a sério revistas e suplementos culturais de jornais diários – e por que não fazê-lo? –, um espectro ronda o mundo: o espectro do comu-nismo. Na América Latina, fala-se sem constrangimentos a respeito do “so-cialismo do século XXI” e discute-se acaloradamente a respeito da exis-tência ou inexistência de processos de transformação social no continente. A conjuntura política europeia certamente não é a mesma, mas isso não im-pede que, sob várias fórmulas, a própria ideia de comunismo esteja sendo retomada: Antonio Negri escreveu sobre o “comunismo da imanência”, Alain Badiou tratou da “hipótese comunista”, Slavoj Žižek fala da “reabili-tação do comunismo”. É de se convir: essa desenvoltura toda seria inimagi-nável alguns anos atrás. Pois o socialismo e o comunismo não haviam sido definitivamente derrotados pelo liberalismo? A queda do Muro de Berlim não havia sepultado definitivamente as utopias?

O que significa, então, esse resgate? Trata-se de um gesto desesperado que revela mais a impotência de seu sujeito que sua força? Sim, para alguns não passa disso mesmo. Quando, nos capítulos finais de seu livro De quoi Sarkozy est-il le nom?, Alain Badiou relança aquilo que chama de “hipótese comunista”, ele está pensando em uma reação ao que considera uma derro-ta. Mas então por que esse grito encontra eco e reverbera? O espaço em que esse grito é ouvido é aquele criado pela crise do neoliberalismo. Que o neo-liberalismo como ideologia esteja em crise é algo que seus próprios defen-sores afirmam depois do colapso dos mercados financeiros. Não é mera coincidência o fato de o Prêmio Nobel de Economia ter sido dedicado, em 2008, a Paul Krugman, um dos mais ácidos críticos da desregulamentação dos mercados. Paradoxalmente, o desmanche das formas históricas que as ideias do socialismo e do comunismo haviam adquirido, respectivamente a

HEGEMONIA_miolo.indd 339HEGEMONIA_miolo.indd 339 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 327: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

340 • Hegemonia às avessas

social-democracia e o stalinismo, foi sucedido pelo desmanche da forma histórica que o liberalismo assumiu.

É, pois, em um espaço vazio de ideias que o “socialismo do século XXI” e o “comunismo” repercutem. Um espaço vazio porque ainda não foi pre-enchido por ideias capazes de expandir-se e ocupar todos os lugares. Não faltam ideias com alcance universal para tal, mas faltam aquelas que tenham assumido a força material para isso. Entretanto, a situação é favorável ao desenvolvimento da teoria para aqueles que não têm saudades das formas históricas que viraram pó e das ideias que não deixavam ninguém pensar. Para socialistas/comunistas que recusam as formas históricas da social-de-mocracia e do stalinismo, a estrada parece livre. Pode-se, agora, criticar abertamente o liberalismo sem correr o risco da marginalidade política ou intelectual. Pode-se, agora, discutir livremente sobre o socialismo e o comu-nismo, sem que argumentos de autoridade ou autoridades sem argumen-tos interrompam o debate. Pode-se, assim, retomar em condições favoráveis para a crítica uma questão primeira: o que é o socialismo/comunismo hoje? A resposta de Alain Badiou a essa pergunta é simples e clara e pode ajudar, por meio de um diálogo crítico, a investigar esses conceitos após o desmanche.

Para o filósofo francês, a “hipótese comunista” estaria assentada no Ma-nifesto comunista*, de Marx e Engels, e afirmaria as seguintes ideias-chave:

• que é possível superar a subordinação do trabalho a uma classe domi-nante;

• que é possível uma organização coletiva que elimine a desigualdade na distribuição de riquezas e a divisão do trabalho;

• que é possível que a apropriação privada desapareça como forma de or-ganização social;

• que é possível superar a existência de um Estado coercitivo separado da sociedade civil1.

O comunismo seria, assim, uma ideia reguladora capaz de orientar uma prática social, um modelo intelectual sempre renovado. Na prática social, essa ideia invariante assumiria suas diferentes formas. Fazer a história da hi-pótese comunista seria, assim, reconstruir as diversas formas que essa ideia

* São Paulo, Boitempo, 1998. (N. E.)1 Alain Badiou, De quoi Sarkozy est-il le nom? (Paris, Lignes, 2007), p. 131.

HEGEMONIA_miolo.indd 340HEGEMONIA_miolo.indd 340 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 328: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Reencontrando o comunismo da emancipação • 341

reguladora assumiu com o passar do tempo. Na era moderna, essa hipótese teria assumido duas formas nitidamente demarcadas. Na primeira, vigente entre a Revolução Francesa e a Comuna de Paris, portanto entre 1792 e 1871 aproximadamente, ocorreu o estabelecimento da hipótese comunista e esta assumiu o perfil de um movimento que esteve cada vez mais sob a direção da classe operária2.

A segunda dessas formas teve lugar entre a revolução bolchevique e a Revolução Cultural chinesa e foi marcada pela realização dessa hipótese e pelo perfil de partido que ela assumiu. Segundo Badiou, a segunda forma teria dado conta dos problemas evidenciados pela primeira. Na Comuna de Paris, a forma movimento deixou evidentes seus limites. Os communards não conseguiram criar um poder estável nem estender a revolução a toda a França. Não foram nem sequer capazes de defender Paris quando esta foi assediada pelas forças da contrarrevolução. A forma partido, por sua vez, teria realizado aquilo que o século XIX havia sonhado. Mostrou-se eficien-te para conduzir a revolução à vitória e mostrou ser capaz não apenas de construir um poder estável, como também de defender esse poder do assé-dio inimigo3. Para Badiou, uma primeira característica do século XX foi sua paixão pelo real: “O século XIX anunciou, sonhou, prometeu; o século XX declarou que ele fazia, aqui e agora”4. A forma partido teria sido um dos instrumentos privilegiados dessa realização dos sonhos.

No entanto, a nova forma partido trouxe novos problemas consigo. Foi capaz de conduzir a revolução à vitória e transformar o sonho em realidade. Foi uma máquina de guerra eficaz em um século cuja outra característica é a guerra, as guerras ferozes que o marcaram, mas também a semântica da guer-ra que organizou os discursos a partir dos quais o século se pensou5. Mas essa nova forma da hipótese comunista não teria sido capaz de construir aquilo que Marx denominou “ditadura do proletariado”, um Estado transi-tório que organizava sua própria extinção. O resultado foi uma nova forma de autoritarismo e burocratismo que se expressou na prolongada crise daque-les países nos quais primeiramente a hipótese comunista teria se realizado.

2 Ibidem, p. 139-41.3 Ibidem, p. 141-5.4 Idem, O século (Aparecida, Ideias e Letras, 2007), p. 58; ver também De quoi Sarko-

zy est-il le nom?, cit., p. 143.5 Ibidem, p. 60-1.

HEGEMONIA_miolo.indd 341HEGEMONIA_miolo.indd 341 9/8/10 4:27:44 PM9/8/10 4:27:44 PM

Page 329: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

342 • Hegemonia às avessas

O argumento de Badiou, apesar de simples e claro, deve ser compreen-dido no complexo contexto metapolítico definido por ele. De fato, o filó-sofo francês recorreu a duas estratégias diferentes em seu pequeno livro. Na primeira, ele procura compreender aquilo que é e pergunta-se a respeito: “De quoi Sarkozy est-il le nom?”. A perspectiva de Badiou é vincada pe-la antropologia do nome de Sylvain Lazarus6. Para este, o nome é o real, é aquilo que é pensado no pensamento e não deve ser objetivado por uma definição ou referente. O nome não pode ser nomeado. Por isso, não tem uma definição e a historicidade pura de sua singularidade, ou seja, aquilo que seria apreendido pela definição, permanece impensável. A singularida-de do nome seria apenas apreendida em seus lugares, ou seja, pela mate-rialidade das prescrições que permitiriam localizá-lo numa multiplicidade homogênea. Assim, o nome “política revolucionária” entre 1792 e 1796 po-deria ser apreendido em sua singularidade nos debates da Convenção, nas sociedades sans-cullotes e no Exército do ano II7.

Apreender o nome naquilo que ele indica em sua singularidade é, assim, descrever os lugares que permitem localizá-lo em uma multiplicidade ho-mogênea. Para Badiou e Lazarus, a multiplicidade homogênea dos lugares é coextensiva à natureza prescritiva do nome. Assim, quando o lugar dei-xa de existir, o modo político daquilo que é nomeado também cessa. “Por exemplo, desde que os sovietes, que são um dos lugares da política bolche-vique, desapareceram (logo, desde o outono de 1917), o modo político bol-chevique, do qual Lenin nomeia o pensamento, deixa de existir”8. Ai está a razão por que Badiou não pôde escolher como estratégia investigar aquilo a que o comunismo dá o nome. Se fizesse isso, seria levado a concluir que: a) o comunismo cessou de existir e que isso aconteceu muito antes de 1989; ou b) o comunismo poderia ser apreendido em sua singularidade nos pro-cessos de Moscou e no gulag soviético, na perseguição aos intelectuais du-rante a Revolução Cultural chinesa, nos massacres promovidos pelo Khmer Vermelho, na execução do general Arnaldo Ochoa, em Cuba.

6 Sylvain Lazarus, Anthropologie du nom (Paris, Seuil, 1996).7 Alain Badiou, Compêndio de metapolítica (Lisboa, Instituto Piaget, 1999), p. 44

e 47.8 Ibidem, p. 49.

HEGEMONIA_miolo.indd 342HEGEMONIA_miolo.indd 342 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 330: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Reencontrando o comunismo da emancipação • 343

“Um se divide em dois”, escreveu Badiou9, recordando e levando a sério uma daquelas banalidades filosóficas de Mao Tsé-tung que encantaram jo-vens franceses. Esse filosofema expressa um antagonismo não dialético que se resolve sem a superação interna da contradição pela supressão de um dos dois termos. Para concluir que o comunismo cessou de existir muito antes de 1989, Badiou deveria identificar no stalinismo (em todas as suas varian-tes) o antagonista não dialético do comunismo, o stalinismo como o sim-ples cancelamento do comunismo. Mas Badiou foi um francês maoista e, embora tenha se distanciado de suas origens, nunca rompeu explicitamente com elas e isso o impede de chegar a esse ponto. “Dois se fundem em um”, diziam os opositores de Mao na “grande luta de classes no campo da filo-sofia”, para expressar a síntese dos termos contraditórios nessa simplória dialética. Para concluir que o comunismo pode ser apreendido em sua sin-gularidade pelo gulag, os termos contraditórios comunismo e stalinismo deveriam ser fundidos em uma nova síntese. Mas Badiou foi um sofisticado maoista francês e isso o impede de chegar a esse ponto.

É verdade, como muitos franceses de sua geração, sua querida geração marcada pelos eventos de 1968 que para Lazarus representam uma coupure, Badiou foi maoista. Sob vários aspectos, o maoismo francês é completamen-te singular, pois incorpora vários elementos da cultura política e intelectual desse país: ele contemplou uma recusa ao stalinismo soviético que ia muito além do próprio Mao Tsé-tung e que repercutiu a crescente ruptura da ju-ventude com o Partido Comunista Francês; encontrou na Revolução Cul-tural uma crítica à divisão do trabalho similar àquela que intelectuais como André Gorz haviam produzido; enfatizou a crítica ao “primado das forças produtivas”, traduzindo em termos voluntaristas a recusa althusseriana ao economicismo; procurou “ir ao povo”, do mesmo modo como os prêtres-ou-vriers haviam feito logo após a Segunda Guerra. Mas, em sua singularidade, esse maoismo francês não deixou de reproduzir as linhas essenciais da linha chinesa.

O próprio Badiou, também é verdade, espelhou, embora não sem ingê-nuo incômodo, a apologética que caracterizou esse movimento. Assim, em 1976, escreveu em sua Théorie de la contradiction, sob o impacto da Revo-lução Cultural chinesa, que “apenas o empreendimento maoista desenvolve

9 Idem, De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 99-100.

HEGEMONIA_miolo.indd 343HEGEMONIA_miolo.indd 343 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 331: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

344 • Hegemonia às avessas

integralmente o que os proletários fazem e nos permite reconhecer o incon-dicional e permanente caráter de sua revolta”10. Essa ideia Badiou nunca renegou. Ainda em 2002, ele escrevia: “O livrinho vermelho de Mao foi nosso guia, não como dizem as marionetes, como um catecismo dogmáti-co, mas, pelo contrário, na medida em nos permitia esclarecer e intervir de novos modos em todo tipo de situações disparatadas que eram desconheci-das para nós”11. O fracasso da Revolução Cultural teve efeitos avassaladores sobre a extrema-esquerda francesa. Badiou refletiu profundamente sobre esses efeitos e sobre a própria Revolução Cultural. Notável é, sobre essa perspectiva, sua conferência de 2002 a esse respeito e a conclusão a que che-ga: a Revolução Cultural foi uma “experiência política que saturou a forma do partido-Estado” e “a última sequência política significativa que é ainda interna ao partido-Estado”12.

O fracasso da Revolução Cultural teria, segundo o filósofo francês, evi-denciado a impossibilidade de libertar a política dos estreitos quadros do partido-Estado que a aprisionavam13. Dessa experiência, Badiou chegou a uma conclusão de alcance supostamente universal: a política emancipatória deve emancipar-se do modelo do partido, deve ser política sem partido. A crítica aos limites da Revolução Cultural assumia assim a forma da crítica de toda representação e a defesa de uma política sem representação. Mas esta última é uma conclusão à qual é possível chegar a partir do balanço a respeito do fracasso da Revolução Cultural? É possível identificar a incapa-cidade de autorreforma do partido-Estado-Exército, ou seja, do partido bu-rocrático, com a incapacidade de todo partido de conduzir um processo revolucionário.

Esse é um claro limite das conclusões postas por Badiou. A aposta da Revolução Cultural foi sempre uma aposta na capacidade de Mao Tsé-tung de enfrentar a burocracia do partido. Mas Mao Tsé-tung era parte da pró-pria burocracia que dizia enfrentar. O culto à personalidade denunciado por Badiou14 nunca foi um acidente, um desvio, ou um limite da Revolução

10 Idem, Théorie de la contradiction (Paris, François Maspero, 1976), p. 22.11 Idem, La Révolution Culturelle: la dernière révolution? (Paris, Les Conférences du

Rouge-Gorge, 2002), p. 4.12 Ibidem; ver também De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 102.13 Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 29. 14 Ibidem, p. 26-9.

HEGEMONIA_miolo.indd 344HEGEMONIA_miolo.indd 344 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 332: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Reencontrando o comunismo da emancipação • 345

Cultural. Era uma parte inalienável dela própria, era a afirmação de sua per-sonificação. Consternado, Badiou concluiu quase trinta anos depois de ver sua aposta fracassar:

pode-se sustentar que “Mao” é um nome intrinsecamente contraditório no campo da política revolucionária. Por um lado, é o nome supremo do parti-do-Estado, seu presidente incontestável, aquele que detém, como chefe militar e fundador do regime, a legitimidade histórica do partido comunista. Por outro lado, “Mao” é o nome daquilo que no partido não é redutível à burocracia de Estado.15

Haverá de fato contradição nesses lugares distintos dos quais Mao Tsé-tung é o nome? O enunciado da contradição pressupõe que a burocra-cia só encontrava seu espaço na administração direta do Estado. Mas o pró-prio Badiou em seu relato identifica outros espaços. Há o Exército, o lugar do qual Lin Biao era o nome e que foi usado por este para impedir em agos-to de 1966 que os membros do Comitê Central do Partido Comunista Chinês que se opunham a Mao Tsé-tung participassem da reunião, episódio narrado candidamente por Badiou, sem se dar conta de que revela o caráter antidemocrático do PCC e do próprio Mao Tsé-tung16. Há os sindicatos operários, que, liderados por velhos quadros, enfrentaram os Guardas Ver-melhos em Xangai, em 1966, e lançaram um movimento grevista que o fi-lósofo francês não deixa de lamentar, em razão de suas “demandas setoriais de natureza puramente econômica”17. E há ainda a burocracia do partido (ou pelo menos de uma parte deste), que não pode ser identificado de mo-do absoluto com o Estado e cujo nome é Grupo de Revolução Cultural do Comitê Central, uma dúzia de pessoas lideradas por Mao Tsé-tung, segun-do Badiou, com o objetivo de “inspirar aos adversários um medo durável, de modo a preservar o quadro geral do exercício do poder que continuava a ser a seus olhos o partido único”18.

Não interessa aqui discutir se a Revolução Cultural pode ser resumida a um choque de burocracias. O filósofo francês rejeita veementemente esse argumento, mas não deixa de afirmar que o conflito do qual Revolução

15 Badiou, 2004, p. 28.16 Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 11 e 31.17 Ibidem, p. 18.18 Ibidem, p. 20-1.

HEGEMONIA_miolo.indd 345HEGEMONIA_miolo.indd 345 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 333: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

346 • Hegemonia às avessas

Cultural é o nome teve lugar no interior do partido. É essa sua tese e é por isso que chega às conclusões que já foram expostas aqui. O espaço, então, é o partido. Mas quais são forças sociais dessa estranha revolução? Sim, é isso que falta nomear! Quais são, afinal, os sujeitos da emancipação? Estes não são nunca nomeados nem dão nome a ninguém. São o nada. Tendo afirma-do com Althusser que a estrutura não tem sujeito, Badiou termina por che-gar à conclusão de que a subjetividade não tem sujeito.

Pode-se brincar com as palavras e repetir o bordão althusseriano, afir-mando que esse claro limite da abordagem de Badiou é o efeito de um obs-táculo epistemológico. De fato, o filósofo francês tem uma sofisticada teo-ria do sujeito. A importância da crítica althusseriana à “problemática do sujeito” não deve ser menosprezada. De várias maneiras, ela permitiu rom-per com uma concepção do sujeito ao mesmo tempo essencialista, natura-lista e teleológica. Badiou desenvolveu essa crítica na afirmação de que o sujeito “está na dependência de um acontecimento e só se constitui como capacidade de verdade, de modo que sendo sua ‘matéria’ procedimento de verdade, ou procedimento genérico, o sujeito não é de maneira alguma naturalizável”19. O evento é um acontecimento sem passado, e sem futuro, que encontra seu lugar em uma situação sem ser definido ou previsto por meio dela. O sujeito que está na dependência desse evento é intermitente, depende de um evento, começa e acaba20. Daí não poder existir para ele um sujeito da revolução, do comunismo ou da emancipação. Cada evento en-contra seu próprio sujeito.

O problema está justamente nessa intermitência do sujeito, que não é senão a intermitência da própria historie événementielle. Louis Althusser ha-via percebido muito bem que a expulsão do sujeito do âmbito da estrutura exigia a recusa da história. Badiou procurou reconciliar subjetividade e his-tória, mas para tal recorreu ao evento para expurgar destas toda memória e experiência. Por essa razão, o sujeito de Badiou está condenado a fracassar. Ele é recriado a todo momento a partir do ponto zero por um evento sem conexão com os eventos precedentes. Esse sujeito é, por isso, indiferente às derrotas e às vitórias dos movimentos de emancipação ao longo dos séculos XIX e XX. Não tem suas memórias, não adquiriu suas experiências. É por

19 Idem, O século, cit., p. 156.20 Badiou, 1996.

HEGEMONIA_miolo.indd 346HEGEMONIA_miolo.indd 346 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 334: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Reencontrando o comunismo da emancipação • 347

isso que o mais eventual dos sujeitos, um indivíduo, isto é, Mao Tsé-tung, pôde aparecer como o demiurgo. Moisés teria conduzido o povo de Israel através do Egito em direção a Canaã, a terra prometida por Deus a Abraão. A longa marcha liderada por Mao Tsé-tung não ficaria nada a dever a essa façanha. Para Badiou: “Mao certamente fez um serviço infinitamente maior para seu povo, o qual libertou simultaneamente da invasão japonesa, do co-lonialismo desenfreado das potências ‘ocidentais’, do feudalismo no inte-rior do país e da pilhagem pré-capitalista”21.

Uma ruptura radical com o stalinismo e todas as suas formas (e não ape-nas a soviética) exige encontrar esse sujeito perdido do comunismo. O filó-sofo francês critica a articulação do sujeito sobre transcendências coletivas universalizáveis – para os stalinistas, classe operária e partido; para os fascis-tas, raça e nação. Com base no poder de Estado, o stalinismo teria substituí-do os processos políticos reais por tais entidades coletivas transcendentais22. Mas o que o stalinismo substituiu foi justamente a classe operária e o parti-do pelo poder do Estado.

Os obstáculos que Badiou enfrenta não são apenas de ordem epistemo-lógica, são também de ordem política. Sua fidelidade ao maoismo o impede de levar a cabo uma crítica radical desse substitucionismo. Badiou reconhe-ce que o culto à personalidade expressa um processo de substituição política no qual o partido se autonomeia representante da classe operária, fonte he-gemônica da política e única garantia da verdade. A seguir, uma pessoa as-sume o papel de fiador da verdade sob a forma clássica do gênio, que encar-na a capacidade representativa do partido. Mas, para Badiou, o caso de Mao Tsé-tung seria diferente: ele não teria substituído a classe operária e o par-tido, porque sua luta teria tido lugar no próprio partido. Assim, em vez de ser o chefe absoluto do partido real, Mao Tsé-tung seria, “para a massa de revolucionários”, a “encarnação, somente ele, de um partido ainda por vir. Ele é como uma revanche da singularidade sobre a representação”23. Em sua cruzada contra a representação, Badiou comemora o fato de esta ter sido usurpada em nome do futuro por um único indivíduo.

Impossibilitado de chegar à crítica radical do stalinismo, Badiou preci-sou abandonar sua estratégia argumentativa inicial. Para definir o que é o

21 Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 27.22 Idem, De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 159.23 Idem, La Révolution Culturelle, cit., p. 28.

HEGEMONIA_miolo.indd 347HEGEMONIA_miolo.indd 347 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 335: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

348 • Hegemonia às avessas

comunismo seria necessário dizer o que ele nunca foi, seria necessário no-mear sua radical negação. Mas em vez de interrogar-se a respeito daquilo a que o comunismo dá o nome, ou seja, em vez de definir aquilo que o co-munismo é, o filósofo francês apresentou uma segunda estratégia: definir o comunismo como aquilo que deveria ser. Para tal, recorreu a uma ideia re-guladora: o comunismo é uma hipótese. O risco é evidente.

Badiou rejeita explicitamente que sua hipótese comunista seja um pro-grama. Sua recusa a inscrever um projeto político na história leva-o a recu-sar todo programa sociopolítico. A política de emancipação não deveria ter partido nem programa, se não quiser se confundir novamente com o Esta-do. Daí essa política poder ser traduzida sob a forma de prescrições tais co-mo as que se encontram resumidas em sua “hipótese comunista”. Aquilo que nela é afirmado como um conjunto de possíveis é traduzido em enun-ciados prescritivos incondicionais pelos quais vale a pena lutar. Badiou pro-põe agora uma nova prescrição, unidade performativa que poderia traduzir a hipótese comunista nos dias atuais: “Não há mais que um mundo”24.

Separar a política do Estado deve ser, para o filósofo francês, o funda-mento de toda política. Para fazer isso seria necessário negar toda ideia de partido e de representação. Mas é de se perguntar o que fica da política quando são suprimidos os partidos políticos25. Qual é a possibilidade de as prescrições se transformarem em uma força material? Badiou sabe que sua opção está a um passo de confundir-se com a negação da política e o anar-quismo, o qual considera que “nunca foi nada mais do que uma crítica vã”26. Mas não são os anarquistas que ele encontra nesse caminho. Ao defi-nir o comunismo como uma ideia reguladora, o filósofo francês aproxi-mou-se perigosamente de Kant e daquela filosofia política que quer recu-sar27. Pois ao definir a hipótese comunista como uma ideia reguladora, não está ele também se colocando na posição do filósofo que determina de mo-do abstrato os princípios da boa política? As prescrições de Badiou contra-põem-se claramente à preguiçosa política parlamentar da social-democracia e do stalinismo. Mas isso não basta. É evidente que a prescrição de que “não

24 Idem, De quoi Sarkozy est-il le nom?, cit., p. 71.25 Daniel Bensaïd, Résistances: essai de taupologie générale (Paris, Fayard, 2001), p. 157-8.26 Alain Badiou, La Révolution Culturelle, cit., p. 29.27 Idem, Compêndio de metapolítica, cit., p. 21-37.

HEGEMONIA_miolo.indd 348HEGEMONIA_miolo.indd 348 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 336: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Reencontrando o comunismo da emancipação • 349

há mais que um mundo” tem “a forma dogmática de comandos religiosos” e, como tal, não necessita ser confrontada com a prática28. Ela permite manter as mãos limpas, mas não permite muito mais que isso.

A definição da hipótese comunista como uma ideia reguladora não po-de ser considerada suficiente. Se é verdade que o comunismo tem uma di-mensão que permite ao olhar projetar-se sobre o futuro definindo o que ele deveria ser, não pode ser esquecido que o comunismo foi também um mo-vimento e um programa político inscritos na trágica história do século XX. É verdade que, para Lazarus29, o nome não tem história e a própria catego-ria do tempo deveria ser recusada. Nesse ponto, Lazarus, assim como Ba-diou, revela a influência de seu querido Althusser, para quem a filosofia não tinha história. Mas é justamente essa recusa que os impede de avaliar poli-ticamente a história do comunismo. Pois o comunismo deu nome ao mo-vimento de emancipação dos trabalhadores, à Comuna de Paris, à Revolu-ção Russa, à Revolução Chinesa e à Internacional. Mas a capacidade de nomear da palavra “comunismo” foi afetada pelo stalinismo; a relação entre o nome e o real que ela nomeava foi desfeita. Nada mais distante do real do que chamar o resultado histórico do stalinismo de “socialismo real”, pois era justamente a irrealidade desse socialismo aquilo que esse nome nomea-va. Comunismo, então, passou a designar aparelhos burocráticos de sujei-ção dos trabalhadores, assassinato de militantes revolucionários na União Soviética, perseguição dos intelectuais na China. Sim, o ato de nomear é um momento da luta de classes que tem lugar na história. O nome tem his-tória, assim como aquilo que é nomeado.

É preciso, pois, distinguir historicamente aquilo que dá o nome à eman-cipação e aquilo que dá o nome à sujeição, aquilo que dá o nome ao movi-mento revolucionário das classes trabalhadoras e aquilo que é nomeado por Stalin, Tito, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Ho Chi Minh ou Fidel Castro. E é pre-ciso marcar a profunda descontinuidade que há entre essas duas coisas. Se quisermos distingui-las de maneira precisa será preciso ir além daquelas ideias-chave às quais Badiou fez referência em sua definição da hipótese co-munista – superação da subordinação do trabalho, da desigualdade, da apropriação privada e do Estado coercitivo separado da sociedade civil. Pois

28 Daniel Bensaïd, Résistances, cit., p. 164.29 Sylvain Lazarus, Anthropologie du nom, cit.

HEGEMONIA_miolo.indd 349HEGEMONIA_miolo.indd 349 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 337: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

350 • Hegemonia às avessas

foi dizendo agir em nome delas que o stalinismo procurou sua legitimida-de. Será preciso ir além da política performativa que se satisfaz com abstra-tas prescrições. E para tal precisaremos encontrar os agentes sociais dessa superação.

Os agentes da emancipação só podem ser aqueles que se emancipam. Um comunismo da emancipação, por oposição a uma política da sujeição, é um comunismo da autoemancipação. A autoemancipação implica ação autônoma dos sujeitos dessa emancipação. Inerente a essa ideia é a rejeição de toda substituição política ou social desses sujeitos por sujeitos outros que não aqueles que devem se emancipar. Esse sujeito da emancipação tem seu lugar na história. Sua emancipação se dá em nome de um passado que ele quer vingar, de um presente que o oprime e de um futuro que ele deseja. Mas isso só é possível na medida em que acumulou experiências e com base nelas construiu um identidade que lhe permite reconhecer a si próprio, re-conhecer seus iguais e também distinguir seus inimigos.

Essa não é uma ideia incompatível com todas as formas de partido ou de representação. Mas é incompatível com aquelas formas nas quais repre-sentantes e representados se encontram em uma relação de exterioridade. Para compatibilizar a ideia de representação com a ideia de autoemanci-pação é preciso concebê-la como autorrepresentação, ou seja, o sujeito deve representar a si próprio e os representantes não devem ser algo estranho àquilo que é representado, mas devem ser suas partes integrantes. No mes-mo sentido, a organização política da autoemancipação deve ser concebida como auto-organização, ou seja, uma organização que, embora não se iden-tifique com a totalidade do sujeito, é por ele criada a partir de suas experiên-cias históricas.

Como se pode ver, não há muito que inventar. Trata-se, na verdade, de reencontrar o comunismo da emancipação, de emancipar as próprias ideias do socialismo e do comunismo da prisão a que foram condenadas pela so-cial-democracia e pelo stalinismo. Nessa busca, o pior caminho é aquele que identifica a história com um nome próprio. O melhor caminho é ainda aquele que a identifica com a experiência das revoluções nas quais a autoe-mancipação e a auto-organização deixaram de ser prescrições para tornar-se práticas sociais.

HEGEMONIA_miolo.indd 350HEGEMONIA_miolo.indd 350 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 338: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

POLÍTICA COMO PRÁXIS: HEGEMONIAÀS AVESSAS, UM EXERCÍCIO TEÓRICO

Wolfgang Leo Maar

1. O que me atraiu para a presente investigação do Cenedic – integran-te tardio que sou – foi a possibilidade de pensar a sociedade a partir de sua reprodução concreta, ou seja, em seu dinamismo real e não abstrato.

O que a ideia da hegemonia às avessas propõe, o que constitui seu nú-cleo conceitual, é pôr no centro das preocupações a práxis e não o sujeito da práxis. É claro que a ideia do sujeito da práxis também é posta, pois, afinal, o sujeito faz parte da práxis, embora não em uma relação de exterioridade, mas num nexo indissolúvel de pertencimento e participação.

Aqui, penso basicamente na transformação teórica decisiva presente, so-bretudo, na oitava das Teses sobre Feuerbach, conforme a síntese magistral de Marx: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem ao misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no compreender dessa práxis.”1

Nessa experiência refletida da práxis apontada por Marx, cabe destacar a presença “imanente” do sujeito: não está em causa uma práxis que algum sujeito, exteriormente a ela, encena. Ou então alguma elaboração teórica posteriormente praticada por um sujeito e aplicada à “realidade”. A vanta-gem da inovação na conceituação marxista ao apreender a práxis reside jus-tamente em propiciar a aptidão para focalizar, simultaneamente e em sua dialética, os momentos subjetivos e objetivos, ou seja, as determinações da subjetividade e da objetividade sociais.

É fundamental atentar à distinção entre práxis e prática, tendo em vista como a prática, enquanto práxis social, passou por um “esvaziamento” tan-

1 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos (São Paulo, Abril Cultu-ral, 1974), p. 52.

HEGEMONIA_miolo.indd 351HEGEMONIA_miolo.indd 351 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 339: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

352 • Hegemonia às avessas

to de sua dimensão subjetiva – vale dizer, de sua dinâmica social e política transformadora – quanto de sua dimensão objetiva – ou seja, a que se refe-re à realidade efetiva e que não está circunscrita à construção social a que o sujeito julga pertencer. Esse encurtamento da práxis ocorre em decorrência da prática social do trabalho alienado e alienante, trabalho este que se im-pôs como modelo – com pretensão à exclusividade – da prática conforme a cunha universalizada no modo de produção capitalista. Mas cabe enfatizar que a práxis está além da prática praticada, por exemplo, conforme os dita-mes teóricos da teoria “política” atual e suas “aplicações” a uma realidade política, institucionalizada como se fosse “natural”. A própria redução da política como gerência exemplifica esse estado de coisas. Confundir práxis com a prática política conforme essa perspectiva contraria o que Marx examina, decifra e propõe compreender, isto é, precisamente uma política como práxis determinada de permanente autoprodução da rea-lidade social humana, seja na interação dos homens com a natureza, seja em sua interação inter-humana. Não confundir esta última com a “se-gunda natureza” humana, que se impõe aos homens como o faz, “natu-ralmente”, o processo de acumulação capitalista. A hegemonia às avessas caracteriza precisamente uma forma social contemporânea determinada dessa práxis política.

Só assim, nos termos postos por Marx, é possível compreender como a prática seria pautada por uma verdadeira inversão entre os momentos subjetivo e objetivo, que afinal é operada pelo capital. Este último, de objeto produzido que é, instala-se, contudo, como se fosse sujeito efetivo da produção. Ao mesmo tempo, o capital, de objeto que é, furta-se a essa realidade objetiva, parecendo ser “natural”, infenso à transformação pelo verdadeiro sujeito, “nós” enquanto os criadores de trabalho vivo. Aqui, o que o capital aparentaria ser para os sujeitos induz a tratar a práxis pelo que ela parece ser depois da reprodução ampliada em curso, isto é, mera prática, aplicação “neutra” de um sujeito exterior a ela, em relação ao qual é indiferente. Cabe realçar que se trata de uma aparência socialmente ne-cessária, objetiva, e não aparência induzida por alguma visão equivocada do estado de coisas.

A advertência de Marx incide na necessidade de se desfazer essa inversão – a verdadeira reificação promovida pelo modo de produção capitalista – que é, ao mesmo tempo, esvaziadora e formalizante, pela qual a práxis se

HEGEMONIA_miolo.indd 352HEGEMONIA_miolo.indd 352 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 340: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 353

instala como prática, arriscando-se a pôr a perder o momento de efetivo di-namismo da política, que, para além de ser mera prática no real construído pela acumulação do capital, diz respeito à própria práxis como dinâmica de formação ou produção desse real, assim reproduzido de forma ampliada2.

Em vista dessas considerações iniciais, parto de uma apreensão, baseada numa citação de A ideologia alemã, de socialismo – ou “comunismo”, como afirmam os autores na ocasião – não como realização de um ideal a orientar a realidade: “Chamamos de comunismo o movimento real que supera o es-tado de coisas atual. As condições desse movimento (devem ser julgadas conforme a própria realidade efetiva) resultam dos pressupostos atualmente existentes” 3.

Assim, coloca-se a possibilidade de refletir acerca do socialismo a partir da reprodução atual da sociedade, isto é, justamente aquela que acontece nos termos de uma política sob a forma socialmente determinada da hege-monia às avessas.

Como já indicado acima, a novidade posta pela perspectiva da hegemo-nia às avessas é pensar o socialismo situando no centro de nosso processo de apreensão a práxis e não o que se apresentaria como sendo o sujeito, que seria pressuposto abstratamente como construção social e não assumido em sua existência efetiva. Agora já não precisamos pressupor o ou algum/qual-quer sujeito. Este se estabelece simultaneamente à, em estreita vinculação com, de maneira imanente à práxis – que, por sua vez, não se relaciona de modo exterior com um sujeito, pois este, antes, apresenta-se na mesma num nexo de determinações recíprocas. Eis a perspectiva: apreender o so-cialismo a partir das formas sociais da práxis e não a partir do sujeito pres-suposto da práxis, o qual seria posteriormente um possível alvo de críticas como “falso” sujeito, dotado de “falsa” consciência de classe etc.

2 As várias traduções disponíveis das Teses sobre Feuerbach nem sempre levam em de-vida conta essa importante e decisiva questão. Curiosidade à parte, porém, somos instigados a comparar duas versões feitas por José Arthur Giannotti com intervalo de décadas. A primeira, publicada na famosa coleção Os Pensadores (Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos, São Paulo, Abril Cultural, 1974), atenta corre-tamente para o problema; já a segunda (Marx, Porto Alegre, L&PM, 2000) – seria uma inflexão na própria perspectiva do tradutor? – teima em rever o que era “com-preender dessa práxis” como “compreensão dessa prática”, sem a distinção entre prá-tica e práxis enfatizada acima.

3 Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 38.

HEGEMONIA_miolo.indd 353HEGEMONIA_miolo.indd 353 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 341: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

354 • Hegemonia às avessas

Em outras palavras, há uma profunda dependência das formas sociais da práxis que precisa ser levada em devida conta. A mudança, agora,vincula-se fundamentalmente às políticas e não apenas, e ainda mais de maneira me-cânica, aos sujeitos. A hegemonia às avessas é uma forma social determina-da, concreta, de luta de classes, efetiva em todo seu poder real.

A política como práxis na situação vigente encontra-se muito bem caracteri-zada pela hipótese da hegemonia às avessas. Por seu intermédio, a partir das formas sociais da práxis como política que são reificadas, para além do que sejam seus sujeitos, abre-se uma produtiva perspectiva para apreender a di-nâmica das formas sociais da política, do aparente paradoxo entre, de um lado, um eclipse da política de transformação social e, de outro, uma con-solidação de uma prática política instrumental. Mas, mais do que isso, cabe enfatizar que dessa maneira se caracteriza uma forma da práxis política alie-nada, o modo burguês da política, a partir da qual é possível pensar um mo-vimento de superação histórica, ou seja, apreender o dinamismo que possi-bilita pensar – e efetivar – alternativas à situação vigente e seu modelo.

É necessário, por exemplo, pensar o trabalho concreto nos termos da práxis e de suas relações com o momento subjetivo, em vez de insistir no contrário, decorrente da perspectiva “ortodoxa”. Por esta última, a práxis é pensada nos termos do trabalho concreto, juntamente com a relação de ex-terioridade com a dimensão subjetiva que o caracteriza etc. O proletariado não pode ser pressuposto em relação a sua existência prática real, não apenas no trabalho, mas conforme a perspectiva da totalidade, inclusive da políti-ca, ou seja, em relação a sua posição na luta de classes. Que práticas po-lí ticas se associam a determinada forma social de trabalhador? Como a luta de classes se expressa politicamente, não como ideal a ser realizado, mas em sua efetividade cotidiana, presente? A hegemonia às avessas permite pensar a luta de classes em sua extensão política, sem depender de uma configura-ção prévia fixada da classe.

No ensaio Sobre estática e dinâmica como categorias sociológicas4 – escrito em 1961, bem antes de Adeus ao proletariado, de André Gorz* –, Theodor W. Adorno procurou mostrar como, em função da práxis reprodutiva da sociedade, as tendências de desenvolvimento de um possível sujeito da his-

4 Theodor W. Adorno, “Soziologische Schriften I”, em Gesammelte Schriften 8 (Frank-furt, Suhrkamp, 1979), p. 217.

* 2. ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987.

HEGEMONIA_miolo.indd 354HEGEMONIA_miolo.indd 354 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 342: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 355

tória, no sentido de sua potencial transformação, são eclipsadas pela impo-sição da continuidade do vigente. Explicando melhor: quando, em decor-rência do desenvolvimento imanente das forças produtivas, o trabalho já não precisaria persistir como medida de todas as coisas, o que se impõe co-mo ideal da sociedade é justamente o pleno emprego nos termos do tra-balho assalariado. Em decorrência – é isto que importa – impõe-se hege-monicamente esse modo alienado de trabalho, que obstrui a apreensão de alternativas a serem buscadas a partir do mesmo trabalho alienado, mas pa-ra além dele, e consolida a hegemonia do vigente.

Penso que essa questão constitui referência importante no que Chico de Oliveira disse, por exemplo, sobre as mudanças no perfil da composição operária na população de alguns bairros de São Paulo5, ou seja, como as re-lações de trabalho e a inserção pelo trabalho terminam por determinar ob-jetivamente a prática política de cada forma determinada de trabalhador. Como, em sua dinâmica, terminam por configurar até mesmo a “cara” da cidade ao excluir o trabalhador. E o inverso disso – ou seria melhor dizer o avesso –, ou seja, como uma determinada inserção na sociedade, no proces-so concreto de sua reprodução social, direciona as formas sociais da práxis. Importa apreender a determinação da luta de classes não a partir de um su-jeito preestabelecido ou provida de certo horizonte, mas a partir – embora, é claro, sem se restringir dinamicamente a essa situação – da vida concreta, das manifestações da reprodução social que a condicionam.

Há na cidade de São Paulo uma luta de classes que se expressa de forma conservadora e não transformadora. A luta de classes desenvolvida sob as formas concretas, socialmente determinadas aqui e agora nos termos da he-gemonia às avessas, corresponde a trabalhadores que, como classe, estão a milhas de serem agentes do socialismo, embora sejam agentes de sua pró-pria exclusão social da sociedade em que, ainda por cima, figuram como os “verdadeiros” agentes. Esse constitui o imbroglio que nos cabe, a questão imposta e, dialeticamente, posta. Nessa manifestação concreta da práxis po-demos delimitar os elementos a partir dos quais a ação política pode ser aprendida em sua dialética e com seus sujeitos, seus conflitos, suas contra-dições, seus limites.

Em resumo, cabe insistir na questão central: a referência para o trabalho – e a política – é a práxis, e não o inverso. Vale dizer: a utilização do trabalho

5 Folha de S.Paulo, 19 out. 2008.

HEGEMONIA_miolo.indd 355HEGEMONIA_miolo.indd 355 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 343: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

356 • Hegemonia às avessas

em suas formas sociais concretas, determinadas, alienadas e de exploração, como referência para a práxis e, em decorrência, para a política. Do mesmo modo, não cabe usar o trabalhador coletivo em sua forma social determina-da – de trabalhador coletivo pela perspectiva da acumulação, pela perspec-tiva burguesa – como referencial para a análise do sujeito da práxis na polí-tica, por exemplo. Ou considerar suas formas de organização e socialização, até mesmo quando correspondem a uma crítica a sua organização capitalis-ta como eventuais “parâmetros” já configurados para o que seria “socialismo”.

Na hegemonia às avessas, os “dominados” não só são objetivamente su-bordinados à dominação (o que também ocorre na hegemonia que não é às avessas), mas são subjetivamente os agentes da estrutura de dominação, em vez de assumi-la conforme padrões impostos que se tornariam hege-mônicos. São sujeitos imanentes ao âmbito da hegemonia, que não pro-movem a hegemonia de algo “exterior” a si próprios, como se fora mera aplicação de sua situação de avassalados. Os dominados não são pré-cons-tituídos, mas constituem-se como dominados no exercício objetivo da ação política e social em que ocupam uma função e funcionam como executo-res da dominação.

Assim como a política deve ter como referência a práxis, há uma políti-ca que se refere à práxis reduzida enquanto instrumento de aplicação, como prática instrumental. A política reduzida como administração – o esvazia-mento da política – corresponde a uma forma da práxis sustentada no mo-delo estrito do trabalho alienado e alienante conforme a situação vigente. A prática instrumental objetiva que a hegemonia às avessas implica conduz a uma práxis subjetiva reduzida como política, convertida em mera engrena-gem reprodutora da ordem vigente.

Estamos em face da seguinte “contradição em processo”: a hegemonia às avessas, ao mesmo tempo que se apresenta como “política” – por ser hege-monia do vigente –, também resulta na “anulação da política” – porque só administra o presente como vigente, procurando reduzir toda política ao cálculo racional no plano do vigente.

Por isso,não cabe nesse plano pensar numa possível “contra-hegemo-nia”. A hegemonia social e historicamente determinada na forma presente não é uma – possível – “falsa” hegemonia, a ser “ideologicamente” corrigi-da. A hegemonia às avessas retira o que seria a hegemonia do âmbito de uma política segundo formas pré-configuradas, como formas invertidas ou então críticas. Em certa medida, os que seriam caracterizados como os “do-

HEGEMONIA_miolo.indd 356HEGEMONIA_miolo.indd 356 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 344: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 357

minados” são formados no curso da hegemonia às avessas numa dinâmica de que resultaria a sua função de executores da função de reprodução da dominação. Em vez de pensar numa “contra-hegemonia” alternativa, im-põe-se a necessidade de novas formas sociais de politização do próprio pro-cesso de construção social e de sua reprodução, para além dos nexos que, no plano vigente, configuram a forma social da hegemonia.

Há necessidade da experiência do conflito entre política e sua forma social ins-trumental para possibilitar a crítica [...] e uma elaboração alternativa. Não há reflexão crítica que se baste sem se traduzir em experiência prática. É preciso privilegiar um outro leito para o processo de formação social da realidade [...][...], para que se converta em experiência muito além da que se encontra em curso na atualidade.6

Contudo, será que, a partir de suas formas políticas históricas, concre-tas, essa contradição pode se desenvolver em seu dinamismo? Por exemplo, como nova forma do conflito entre Estado e sociedade civil? A partir dessa dimensão política como contradição processante, seria possível pensar o so-cialismo como experiência?

É possível caracterizar a hegemonia às avessas como práxis concentrada nos momentos da socialização (política gerencial-tecnológica) do vigente (enquanto substituto do que seria política na sociedade vigente) e da anu-lação da política da construção da sociedade vigente. Esta última é social e historicamente determinada como política burguesa. A política como prá-xis vai além dessas dimensões determinadas. Como já afirmou Paulo Aran-tes, desapareceu a política burguesa e não a política7. Nesse caso, política burguesa cujo sujeito explícito são trabalhadores.

Mas isso não é trivial. Ocorre uma privatização da política sem haver o momento correspondente de politização dessa apropriação privada. É pre-ciso politizá-la.

Esse seria o primeiro momento da dinâmica do qual pode resultar uma ação transformadora. Ou seja, é necessário mudar a relação entre sociedade e sujeito – que na hegemonia às avessas, conforme o sujeito, é impositiva – em uma relação participativa, dinâmica. Aqui, deveria se situar, por exem-

6 Wolfgang Leo Maar, “O eclipse da política na experiência social brasileira”, em Margem Esquerda, São Paulo, Boitempo, n. 9, 2007, p. 116.

7 Paulo Arantes, Extinção (São Paulo, Boitempo, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 357HEGEMONIA_miolo.indd 357 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 345: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

358 • Hegemonia às avessas

plo, o papel possível dos partidos educadores, tal como outrora modelados como formadores de consciência de classe ou de uma perspectiva crítica de elaboração da relação com a realidade vigente.

Importa antes de tudo destacar que se trata de um resultado históri-co-social determinado. Além disso, mas de modo não menos decisivo, tra-ta-se de enfatizar uma abordagem da práxis em que o sujeito não é apreen-dido num nexo de exterioridade, mas forma-se a partir da práxis em sua forma socialmente determinada de hegemonia às avessas.

2. Na hegemonia às avessas, o sujeito se forma e se determina. O su-jeito precisa ser apreendido simultaneamente à práxis em sua forma de-terminada, política, de hegemonia às avessas. A ordem social vigente ob-jetivamente impõe ao que seriam os “sujeitos” uma função privada na administração do vigente, pela qual eles se experienciam como sujeitos, mas que objetivamente resulta em sua anulação como sujeitos efetiva-mente políticos.

Essa é uma novidade. Não se trata de prescrever ou até mesmo de defi-nir o sujeito anteriormente a sua práxis, mas de modo imanente a ela. As-sim também não seria uma determinada forma social do sujeito que conduz a transição ao socialismo, mas sim uma determinada práxis junto com suas condições de possibilidade efetiva, em que é preciso considerar também o sujeito e, sobretudo, as formas de determinação objetiva do “assujeitamen-to”, da subordinação desse sujeito ao objeto, ou seja, seu avassalamento em relação à sociedade vigente.

O problema já foi examinado ao menos em dois momentos marcantes no debate do socialismo durante o século XX, agora para adquirir contor-nos mais nítidos mediante a caracterização da hegemonia às avessas.

a) O fator subjetivo na política materialista. O trabalhador coletivo “falso”, mas dotado de poder efetivoNum primeiro momento, György Lukács refere-se à questão sob a égide

da “falsa consciência de classe” que é necessária à reprodução da formação social. Em suas palavras:

A reificação de todas as manifestações da vida social é partilhada por burguesia e proletariado. Como afirma Marx: “as duas classes representam a mesma auto-alienação. A primeira sente-se à vontade nela e sente-se confirmada pela mes-ma; apreende a alienação como seu poder e possui nela uma aparência de vida

HEGEMONIA_miolo.indd 358HEGEMONIA_miolo.indd 358 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 346: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 359

humana. A segunda sente-se desconfortável na alienação, em que vê sua impo-tência e a realidade efetiva de uma existência desumana.8

E aponta pouco à frente, no mesmo argumento: “A realidade objetiva do ser social em sua imediatez é a mesma para as classes”9.

A partir desse ponto, há para ele as mediações que converteriam essa rea lidade imediata em realidade objetiva. Mas Lukács falha na expressão da dialética dessas mediações, saltando do proletariado individual empírico para o proletariado como substância, sem contradições. O decisivo, porém, não é o proletariado substantivado, atribuído, mas o proletariado real no vigente; o mesmo que, por sua ação, confirma a burguesia e lhe confere po-der. Para Lukács, o proletariado é o agente do poder da burguesia pela alie-nação em que ele mesmo se encontra e pelo trabalho alienado que produz e reproduz a alienação. Em certo sentido, o proletariado lukacsiano realiza uma “hegemonia” social, o interesse da burguesia; porém o poder da bur-guesia – uma classe “falsa” – é real. É uma classe falsa, por que se centra na alienação, por meio da qual, contudo, é dotada de poder efetivo. O poder está do lado da burguesia.

O problema de Lukács está em que, embora parta da análise da reifica-ção da práxis, imediatamente a seguir ele se empolga em direção a uma de-terminação do sujeito – a consciência atribuída – para, a partir desse ponto, abandonar o exame da práxis.

b) A mudança no fator subjetivo. A política efetiva e seu poder sobre o trabalhador coletivo “verdadeiro”Há um segundo momento para a questão, que é o da teoria crítica da

sociedade, que toma precisamente as dificuldades na determinação do su-jeito como seu ponto de partida.

Já em seus primeiros textos, Max Horkheimer questiona a “possibilida-de de que a situação do proletariado constitui garantia”10 para o conheci-mento verdadeiro. A mera “sistematização dos conteúdos de consciência do proletariado” não oferece uma apreensão de seus interesses. Seria uma

8 György Lukács, História e consciência de classe (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 309.

9 Idem.10 Max Horkheimer,“Teoria tradicional e teoria crítica”, em Walter Benjamin et. al.,

Textos escolhidos (São Paulo, Abril Cultural, 1980), p. 134.

HEGEMONIA_miolo.indd 359HEGEMONIA_miolo.indd 359 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 347: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

360 • Hegemonia às avessas

“teoria tradicional”, isto é, moldada nas “ideias que a burguesia faz de si”11 em função de sua inserção social e, assim, veículo de sua reprodução como sociedade.

Mas é Adorno quem se refere à questão de modo particularmente inte-ressante em seu livro Minima Moralia, no verbete 147, intitulado “Novissi-mum organum”12, ao tratar da mecanização do homem como completude orgânica da reificação. O próprio processo que impõe aos homens a barbá-rie constitui a base de sua sobrevivência. O “proletariado” já não se sente desconfortável, mas, envolvido nas condições da sociedade de massa, trans-forma-se, “inclusive organicamente”, em agente ativo do poder da burgue-sia. Em termos semelhantes, em sua última aula no curso de introdução à sociologia, oferecido em 1969, Adorno se refere novamente ao nexo entre, de um lado, sociedade e democracia e, de outro, teoria social; mas agora mediante uma visão polar, em que à consciência verdadeira cabe, de certo modo, evitar a não realização da democracia. Em suas palavras:

o lado institucional objetivo da sociedade se autonomizou e se consolidou em face dos homens de que a sociedade se compõe. Por outro lado, há de pensar que também os sujeitos fazem parte da sociedade e, para que esta possa ser pre-servada em sua forma vigente, precisa ser acompanhada de uma determinada situação dos sujeitos. Se os sujeitos fossem outros ou se fossem emancipados, como se diz corretamente hoje em dia, então essa sociedade, apesar de todos os meios de coação existentes a sua disposição, provavelmente nem sequer poderia ser preservada nos termos vigentes. O papel do fator subjetivo se transforma no curso do processo social como um todo. Diante de uma integração crescente, a relação base-superestrutura perde sua acuidade anterior. Quanto mais os sujei-tos são presas da sociedade, quanto mais intensa e completamente eles são de-terminados pelo sistema, tanto mais o sistema se conserva não apenas mediante a aplicação de coações aos sujeitos, mas inclusive por intermédio dos mesmos.13

A reflexão de Adorno não se encontra tolhida por uma forma social con-creta de sujeito, mas encontra-se comprometida com a dinâmica da socie-dade de classes. Mas, em que pese esse prisma, mesmo assim o avanço em relação ao passo lukacsiano ainda não destaca com a ênfase necessária o pri-mado da práxis objetiva dos sujeitos em relação à determinação destes en-

11 Ibidem, p. 135.12 Theodor W. Adorno, Minima Moralia (Rio de Janeiro, Azougue, 2008), p. 226.13 Idem, Introdução à sociologia (São Paulo, Edunesp, 2008), p. 340.

HEGEMONIA_miolo.indd 360HEGEMONIA_miolo.indd 360 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 348: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 361

quanto sujeitos. Na apreensão pela perspectiva da hegemonia às avessas, propõe-se pensar que eles seriam sujeitos que se excluem da política nos moldes vigentes. A práxis objetiva dos que – no sentido usual, não crítico – “deveriam” ser apreendidos como sujeitos converte-os em objetos, mas com um “papel funcional no processo de acumulação” decorrente da forma específica da financeirização internacional atual do mesmo14. Já não há uma “inclusão passiva”, como ocorria sob a hegemonia burguesa, mas ocorre uma “exclusão ativa”. Não se trataria já tanto de uma forma difícil de sujei-to, se não de reposicionamento da própria apreensão dos sujeitos. A tarefa residiria em repensar como sujeitos podem se formar, uma vez que na socie-dade vigente já não se formam mais “sujeitos”, mas “objetos”. Ocorre, co-mo mostraram os frankfurtianos, não um processo de deformação de que resultariam subordinados, mas um “novo” processo, o de semiformação, caracterizado como um processo social de desindividuação que seria “vo-luntário”, de “autossubordinação”.

c) A práxis política alienada: dialética e inversão entre subjetivo e objetivoA questão apreendida sob o prisma da hegemonia às avessas constitui

um terceiro momento da discussão, examinada em seus momentos anterio-res a partir das contribuições representadas por Lukács e pela teoria crítica da sociedade. Assim como apreendemos, segundo a dialética hegeliana, a verdade como sendo, a um só tempo, “alvo” e “objeto”, da mesma manei-ra também a política é simultaneamente “fim” e “tema”: abrange ao mesmo tempo a práxis e a compreensão, ou seja, a apreensão da práxis em sua dinâ-mica, em suas formas sociais e históricas, em sua dimensão subjetiva e ob-jetiva. Somente por essa via deixam de ser impostos critérios pressupostos à ação política, para esta ser compreendida no âmbito imanente das contra-dições da realidade efetiva. A rigor, os fins da política se conectam com a inserção da mesma objetivamente na realidade social, de que são simultanea-mente decorrências e condições. Ou seja, a práxis política se conecta inexo-ravelmente à experiência da práxis política.

Ao contrário da versão simplória muitas vezes propalada a respeito, a “teoria crítica da cultura”, configurada nos conceitos de “indústria cultural” e de “semiformação”, é uma teoria política que não se desvia do objeto po-

14 Francisco de Oliveira, “Há vias abertas para a América Latina?”, em Atílio Boron (org.), Nova hegemonia mundial (Buenos Aires, Clacso, 2004), p. 117.

HEGEMONIA_miolo.indd 361HEGEMONIA_miolo.indd 361 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 349: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

362 • Hegemonia às avessas

lítico. É um equívoco pensar que Adorno, por exemplo, teria “recuado” à crítica da cultura, à estética e à literatura, porque a transformação da reali-dade se tornara mais difícil após o declínio revolucionário de sua época. Esse movimento de Adorno não é um “recuo”, mas decorre, ao contrário, como imposição do objeto da crítica, instala-se pela própria realidade da coisa objetiva. A crítica à indústria cultural é a crítica a um sustentáculo ob-jetivo da democracia que é meramente formal, em que a práxis política é reduzida à administração de conflitos e converte-se em esteio da política instrumental calculista. Ela não pode ser praticada sem a mediação necessá-ria da apreensão dessa experiência.

Não só o trabalhador coletivo não se sente desconfortável – o que acon-tece até mesmo em função da distância, pois a possibilidade de entrar em contato coletivo recíproco, ou de se constituir como trabalhador coletivo, existiria apenas pela via do consumo ou da via nacional, como afirma Chico de Oliveira15. Mas ele é levado objetivamente à práxis alienada – até porque a valorização agora se realiza sobre o valor virtual do capital, e não pelo ca-pital como “representante” e “agente” de um processo produtivo, conforme destaca, por exemplo, Laymert Garcia dos Santos16. Não existe a experiên-cia formativa de uma eventual situação de classe, mas a práxis resulta de uma situação objetiva de dominação de classe.

Se hoje a nossa sociedade é caracterizada pela “contenção da transforma-ção”, como assinalou Herbert Marcuse17, não é só por ser desprovida de oposição, como ele explica. Se assim fosse, haveria uma dialética de contra-posição de sujeitos, em certo sentido de pressupostos, cuja interação produ-ziria um vetor político que determinaria a sociedade como resultante de uma aplicação que seria posterior ao jogo de forças. No entanto, ocorre algo além do que é caracterizado por Marcuse apenas “unidimensionalmente” como práxis política – com o perdão antecipado por essa quase heresia em relação a sua obra de mestre, O homem unidimensional. Não só na nossa so-ciedade existe hoje uma contenção da transformação pela inexistência de uma oposição, como diz acertadamente Marcuse, mas, além disso (ou seria

15 Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.), A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 45.

16 Idem, p. 33.17 Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial (Rio de Janeiro, Zahar, 1969),

p. 16.

HEGEMONIA_miolo.indd 362HEGEMONIA_miolo.indd 362 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 350: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 363

aquém?), ela é ativamente reproduzida por quem aparentemente deveria ser seu coveiro e que se situa, em razão de sua própria ação, em grande medida exteriormente à sociedade, motivo por que está impedido de se experienciar como coveiro dessa sociedade. Não só há uma inexistência de oposição, mas há também uma existência ativa de apoio por quem em outra concepção figurava como opositor. Para além de uma dialética entre conservação e transformação, idealisticamente pressuposta, estamos, a rigor, em face de um processo efetivo de reprodução social, material e histórico que exige uma renovada disposição de momentos de objetividade e de subjetividade.

Assim, hegemonia às avessas é a verdade da práxis alienada, isto é, a con-firmação do poder na sociedade real pela reificação, sem que se apele para a ação de um sujeito automático travestido de “capital”. Essa é a sociedade real cons-truída conforme a referência burguesa, e que abrange como sujeito real o trabalhador coletivo em sua existência vigente. Não se trata de “inclusão passiva”, mas de “exclusão ativa”.

Marx, a certa altura de O capital, adverte que os economistas até então haviam apenas apreendido a produção na sociedade e que cabia apreen-der a própria produção da sociedade. Sob pena de reincidência ideológica, é preciso advertir evidentemente que tal produção da sociedade ocorre, e só pode ocorrer, na sociedade: a hegemonia às avessas é uma forma social de-terminada desse acontecer histórico. Por ele, a sociedade capitalista vigente é efetivamente produzida pela perspectiva burguesa nos parâmetros vigen-tes. Seu agente é o “trabalhador coletivo” que não faz a experiência de si no trabalho – questionando assim sua existência como classe –, mas é objetiva-mente resultante da socialização de uma sociedade reificada, em que a for-ma dinheiro aparece em todos os momentos da vida social e vice-versa, e em que a cada momento da vida social adequadamente apreendido está o segredo da forma dinheiro. O trabalhador coletivo real, burguês, rejeitado como dotado de falsa consciência de classe por Lukács é, no entanto, o ver-dadeiro artífice efetivo da produção da sociedade real. Ele é “falso” em sua consciência e, ao mesmo tempo, “verdadeiro”, dotado de poder social real, como destacam em sua análise Negt e Kluge18. Mas o que aparecia como “falso” trabalhador coletivo para Lukács resultava ser “deformado” – ou se-miformado – pela processo de acumulação conforme o prisma adorniano.

18 Oskar Negt e Alexander Kluge, O que há de político na política? (São Paulo, Edunesp, 1999), p. 103.

HEGEMONIA_miolo.indd 363HEGEMONIA_miolo.indd 363 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 351: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

364 • Hegemonia às avessas

Aqui, estaríamos em presença do processo de desindividuação caracterís-tico da sociedade de massas. Agora, no plano da hegemonia às avessas, ele funciona como a mediação por meio da qual se realiza a práxis de repro-dução do vigente. Saímos do âmbito do sujeito para o âmbito da política e da produção do sujeito; não de uma política estabelecida – nesta os su-jeitos são avassalados como agentes de sua exclusão –, porém aberta em suas formas sociais.

Os “dominados” defendem em seus pensamentos e em sua prática os interesses dos “dominadores”; fazem-no, contudo, como resultado de uma imposição objetiva da sociedade, uma práxis efetiva, mas que não é experi-mentada como tal em decorrência da “tecnologização da sociedade”, que, sob a forma social de ganhos – aparentes, mas também efetivos –, obstrui a experiência formada a partir das contradições sociais.

A quantificação em valores de troca fetichistas não só interage com to-das as formas sociais vitais, mas amplia essas formas de modo a abranger o todo social. À forma social mencionada de trabalhador coletivo – bem co-mo, é claro, ao capitalista, – isso significa sobretudo o incremento de obje-tos sob seu cálculo, um incremento da racionalização, da mecanização do mundo que se lhe apresenta; enfim, a perspectiva de um progresso ilimita-do que – interrompido aqui e ali por crises – aponta para uma racionaliza-ção completa da sociedade. Essa seria a chamada “privatização” do sujeito, que restringiria o que seria a ação pública ao plano dos interesses na socie-dade vigente.

Hoje, para além de uma inclusão passiva do trabalho na esfera da socie-dade, deparamos com uma exclusão ativa, política, do trabalho, inclusive exclusão de sua apreensão como classe, que, conforme o processo formati-vo, depende da organização do trabalhador coletivo.

Agora ocorreria uma privatização da política e não mais do sujeito. Isso ocorre nas condições da práxis política pela perspectiva hegemônica presen-te, em que o trabalhador é objetivamente, se não propriamente “organiza-do”, mas certamente direcionado coletivamente na defesa efetiva dos inte-resses do capital. Essa práxis de privatização da política, por sua vez, impõe a necessidade de uma apreensão e da forma social dessa práxis. É preciso haver uma politização da apropriação privada da política.

A questão do socialismo é de práxis histórica e social; encontra-se em nexo com o que se costuma denominar políticas de transição. Hoje, o so-cialismo é questionado sobretudo quando se pensa em termos de um modo

HEGEMONIA_miolo.indd 364HEGEMONIA_miolo.indd 364 9/8/10 4:27:45 PM9/8/10 4:27:45 PM

Page 352: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 365

de produção capitalista sob cuja hegemonia ocorreria uma prática de inclu-são passiva do trabalho e do sujeito histórico social a ele associado. Assim se enquadrariam as políticas populistas e as políticas assistencialistas, por se-rem desprovidas de uma real e efetiva subjetividade e apenas destinadas à adequação à formação social vigente, sem potenciais de inserção crítica e transformadora.

Agora, no entanto, estaríamos diante de uma reprodução do modo de produção capitalista com uma prática social de exclusão política ativa do trabalho, promotor de sua própria exclusão social. Eis a consequência mais terrível da hegemonia às avessas.

O deslocamento do trabalho de sua centralidade é consequência objeti-va de um determinado modo social de reprodução cujo agente são os traba-lhadores da sociedade. Não se trata de colocar esse trabalho no centro nova-mente. Não só porque isso seria impossível, mas porque seria inócuo: foi o que marcou experiências do chamado “socialismo realmente existente”, in-capazes de se vincular à necessidade de uma mudança no modo de produ-ção, de trabalho e de práxis. É preciso ampliar a apreensão do trabalho no âmbito da práxis como autoprodução das formas sociais da sociedade pelos homens em seu processo de produção material, no intercâmbio com a na-tureza e entre si.

Uma das formas sociais a serem inseridas nessa apreensão é a própria exclusão ativa, política, como produção da sociedade excludente do capita-lismo em sua vigência presente. Para conseguir isso, precisamos propiciar “constelações” de relações entre trabalho concreto e suas formas sociais de-terminadas, para compreender adequadamente essa práxis, ao fazer a expe-riência da autoprodução humana da história dos homens como produto social e não natural.

O trabalhador coletivo deve refletir sobre essa questão. Não houve ape-nas um saque do tesouro público rumo à acumulação privada; essa “econo-mização” – agora “financeirização” – da sociedade implicou também um saque da práxis pública e coletiva rumo às atividades privadas acumulativas, e da política como ação privada. O trabalho foi privatizado como trabalho alienado, gerador de valor; aqui, ele se situa no mesmo nível abstrato do dinheiro. Em última instância, é isso que significa o saque ao Estado patro-cinado pelo neoliberalismo. Houve uma “perda” na dimensão política e so-cial do trabalho, que cobra seu preço justamente numa concepção mera-mente produtivista-laboral do trabalhador coletivo como sujeito da história,

HEGEMONIA_miolo.indd 365HEGEMONIA_miolo.indd 365 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 353: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

366 • Hegemonia às avessas

em que a práxis é isolada da experiência refletida de si própria. Essa “perda” não é, a rigor, uma perda, mas é a consolidação ativa do vigente, em que o lugar de sujeito é reservado ao “sujeito morto”, o capital que faz de conta ser um sujeito automático a ser gerenciado e administrado. Essa é a política efetiva de que resulta o chamado “fim da política”. Por isso é equivocado pensar na “ausência de culpa de nós, o povo”; não basta recolocar o traba-lho, já em jornada reduzida, no centro da vida social; é preciso sobretudo atentar e dar dimensão vital ao que se encontra eclipsado no trabalhador coletivo: o que é efetivamente objetivo em sua subjetividade social formati-va, sua aptidão necessária à produção objetiva da sociedade.

É preciso restaurar o momento político do trabalhador coletivo, para além de seu mandato como sujeito da produção; restaurá-lo como sujeito da prá-xis em sua dimensão objetiva – da hegemonia às avessas, por exemplo –, tendo em vista a perspectiva da emancipação como crítica política do modo capitalista vigente de produção e reprodução da sociedade. Essa perspectiva seria o que Adorno, na ausência que percebia em qualquer busca de sentido para além da própria vida humana em sua forma social e material, chamava de ponto de vista da redenção.

Tal reconexão da política é uma verdadeira rememoração, rememoração no sentido em que toda alienação, toda abstração, toda perda, toda reifica-ção é um esquecimento, conforme assinalam Benjamin e Adorno. Mas es-quecimento referido, a rigor, como um “eclipse”, resultado de uma imposi-ção objetiva na práxis a que se vincula a experiência do esquecimento ou da compreensão da práxis. Refere-se a um posicionamento do trabalhador co-letivo em seu nexo com a luta de classes, para ressituar as próprias classes como sujeitos sociais e políticos. E mais: atualizar as formas dessa política, sem permanecer – ainda que criticamente – restrito à prática instrumental ou meio de realização. A consciência de classe é um momento da classe, as-sim como a compreensão da práxis é um momento essencial da própria práxis, segundo a oitava tese sobre Feuerbach. Sujeito e objeto não se iden-tificam, mas também não podem se relacionar como “exterioridades” con-trapostas numa substancialização de agentes em que, de modo imediato, os “trabalhadores” se contrapõem ao capital.

O socialismo após o desmanche depende da apreensão do que ocorreu ao que era o trabalhador coletivo como sujeito da práxis e não unicamente enquanto aparente sujeito do trabalho na sociedade estabelecida. Diz res-peito à compreensão da práxis, conforme a lição genial de Marx, e não só a

HEGEMONIA_miolo.indd 366HEGEMONIA_miolo.indd 366 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 354: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Política como práxis • 367

alguma de suas dimensões, subjetivas ou objetivas, desconectadas, abstraí-das, sem nexo com a dialética característica da práxis como um todo.

Marcuse nos lembra acertadamente que o próprio modo de produzir se tornou ideologia19, isto é, implica uma reconstrução social que aparece co-mo se fosse a sociedade efetiva, em sua totalidade. Adorno diria: sociedade como aparência20, que é sua própria ideologia e onde esta já não seria apren-dida no plano das ideias, mas da aparência social real necessária. Manter o modo de produção, a rigor capitalista, que caracterizava o socialismo em desmanche, significa condenar-se à sociedade como construção ideológica.

Também na crise atual, que seria marcada pela existência de um merca-do aparentemente autorregulado e pela lógica financeira ou do valor vir-tual, menciona-se com frequência a necessidade de uma reconexão desse “estado de coisas” com a “produção material efetiva” de que estaria desco-nectado. Contudo, a mera reconexão nos termos vigentes, sem a atenção devida à própria característica ideológica de construção social dessa esfera da produção material, sem a crítica da práxis, essa rearticulação não seria uma volta do parafuso e muito menos um momento na transformação pos-sível do estado de coisas. Funcionaria apenas como mais um giro da lâmina de moer carne e tudo continua como antes.

19 Herbert Marcuse, “Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber”, em Cul-tura e sociedade (São Paulo, Paz e Terra, 1998), v. 2, p. 113.

20 Theodor W. Adorno, Sociologia (São Paulo, Ática, 1986), p. 88.

HEGEMONIA_miolo.indd 367HEGEMONIA_miolo.indd 367 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 355: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O AVESSO DO AVESSO*

Francisco de Oliveira

O artigo “Hegemonia às avessas”1 pretendeu fazer uma provocação gramsciana para melhor entender os regimes políticos que, avalizados por uma intensa participação popular (a “socialização da política”, segundo Antonio Gramsci), ao chegar ao poder, praticam políticas que são o avesso do mandato de classes recebido nas urnas. É o caso das duas presidências do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil. E da destruição do apartheid na África do Sul, por meio de uma longa guerra de posições e das seguidas reeleições do Congresso Nacional Africano (CNA), uma frente de esquerda com forte influência do Partido Comunista.

Quase sete anos de exercício de Luiz Inácio Lula da Silva já tornam pos-sível uma avaliação dessa hegemonia às avessas e dos resultados que ela pro-duziu. Não se parte aqui, e não fiz essa presunção também no artigo provo-cador original, de que Lula recebeu um mandato revolucionário dos eleitores e sua Presidência apenas se rendeu ao capitalismo periférico. Mas o manda-to, sem dúvida, era intensamente reformista no sentido clássico que a socio-logia política aplicou ao termo: avanços na socialização da política em ter-mos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo.

Os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava. O eterno argu-mento dos progressistas conservadores – caso, entre outros, do ex-presiden-

* Uma primeira versão deste artigo foi publicada em Piauí, Rio de Janeiro/ São Paulo, n. 37, out. 2009.

1 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, neste livro.

HEGEMONIA_miolo.indd 369HEGEMONIA_miolo.indd 369 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 356: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

370 • Hegemonia às avessas

te Fernando Henrique Cardoso – é que faltaria, às reformas e ao reformista mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simples-mente, de um pragmatismo irrestrito.

Fernando Henrique Cardoso teve recursos retóricos para justificar uma mudança de posição ideológica que talvez não tenha paralelo na longa tra-dição nacional do “transformismo” (outro termo emprestado do teórico sardo). Luiz Werneck Vianna – um de nossos melhores intérpretes da “re-volução passiva” gramsciana, juntamente com Carlos Nelson Coutinho –, é mais sutil e tem um argumento mais complexo: não se governa o Brasil sem o concurso do atraso não apenas por razões parlamentares, mas porque a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora e não ava-lizaria avanços programáticos mais radicais. Além disso, as fundas diferen-ças e desigualdades regionais, bem como o modo como desde a Colônia se fundiram o público e o privado – vide Caio Prado Jr. –, tornam quase obri-gatório um pragmatismo permanente, que leva de roldão perspectivas mais ideológicas ou meramente programáticas.

Infelizmente para os defensores do eterno casamento entre o avançado e o atrasado, a história brasileira não dá suporte ou evidências do acerto do conservadorismo com enfeite ideológico progressista. Nem mesmo de maneira remota. Até no caso da abolição da escravatura, que talvez tenha de fato subtraído o apoio parlamentar ao trono imperial, abrindo espaço para a República, não se deve perder de vista que ela foi pregada por radi-cais e realizada por conservadores. Nem se pode esquecer que o gabine-te da Lei Áurea era presidido pelo conselheiro João Alfredo, um notório conservador.

A Proclamação da República, entendida modernamente como um gol-pe de Estado, foi conduzida por militares conservadores e, logo em seguida, usurpada pela nova classe paulista que emergia da formidável expansão ca-feicultora. Rui Barbosa, um grande liberal republicano, chega ao Ministério da Fazenda já com Deodoro da Fonseca – e faz uma administração conside-rada temerária – e depois tenta várias vezes alcançar a Presidência por meio das eleições “a bico de pena”, fracassando em todas elas. Os nomes que fi-carão serão os da nova plutocracia paulista: Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves. Por fim, as bases sociais da abolição já vinham sen-do estruturadas pela mesma expansão do café, que, para tanto, promoveu a

HEGEMONIA_miolo.indd 370HEGEMONIA_miolo.indd 370 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 357: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O avesso do avesso • 371

imigração italiana. Não foi a abolição que derrubou a monarquia, mas a expansão econômica violentíssima na virada do século XIX para o XX.

Outro exemplo, mais perto de nós, é o da Revolução de 30. Quem der-rubou o regime caduco da Primeira República foi uma revolução que veio da periferia, do Rio Grande do Sul e da Paraíba, com a associação de Minas em seguida, e contando com a oposição de São Paulo. O atraso, então, ser-viu de base para o avanço? Longe disso. O Rio Grande do Sul tinha uma longa tradição revolucionária, um sistema fundiário mais progressista que o do resto do país, além de uma cultura positivista entre suas elites, sobretudo a elite militar, que forneceu o programa social lançado em 1930 (e susten-tado continuamente por cinco décadas), cujo conteúdo foram as reformas do trabalho e da previdência social.

A historiografia da Unicamp, liderada por Michael Hall, está pondo re-paros à tese de que Getúlio Vargas copiou a Carta del Lavoro. Decisiva mes-mo teria sido a fundamentação positivista, que fez com que a nossa conso-lidação das Leis do Trabalho fosse muito além da legislação italiana. Contra todas as tendências do já principal centro econômico brasileiro, Vargas fez São Paulo engolir goela abaixo um programa industrializante, reformista e socialmente avançado. Não foi à toa que, em 1932, articulou-se em ter-ras bandeirantes uma “revolução constitucionalista” cujo programa é hoje emoldurado com galas de avanço – a fundação da Universidade de São Pau-lo –, mas que na realidade pretendia barrar o avanço das leis reformistas e reforçar a “vocação agrícola do Brasil”. Esse argumento, que ainda frequen-ta as páginas do Estadão (de forma sinuosa, é verdade), era explicitado em prosa e verso pelo jornal hoje plantado às margens malcheirosas do Tietê e pelas principais lideranças paulistas. O atraso governando o país?

O golpe de Estado de 1964, que derrubou o governo João Goulart e terminou com a precária democratização em curso desde 1945, pintou-se com as cores do atraso, mas na realidade realizou o programa capitalista em suas formas mais violentas. Não foi um conflito entre o atraso e o progresso, mas entre duas modalidades de avanço capitalista. O vencedor fez seu o programa do vencido, radicalizando-o e ultrapassando-o. Fincou os novos limites à acumulação de capital muito além do que os vencidos teriam ou-sado, na esteira da evolução do regime chamado varguista-desenvolvimen-tista. A estatização promovida pela ditadura militar significou a utilização do poder estatal coercitivo para vencer as resistências não do atraso, mas das burguesias mais “avançadas”. Nunca a divisa da bandeira foi levada tão ao

HEGEMONIA_miolo.indd 371HEGEMONIA_miolo.indd 371 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 358: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

372 • Hegemonia às avessas

pé da letra quanto naqueles anos: “Ordem e progresso”. Poderosas empresas estatais se fortaleceram nos setores produtivos, fusões bancárias foram fi-nanciadas por impostos pesados, recursos públicos foram usados sem ambi-guidades não para preservar o velho, mas para produzir o novo – como a Aeronáutica e o ITA, criando a Embraer. Avanço ou atraso?

O fim é conhecido: desatada a caixa de Pandora, o regime sucumbiu não ao seu fracasso, mas ao seu êxito em construir uma ordem capitalista avassaladora. O regime militar relegou a burguesia nacional ao papel de coadjuvante, submeteu a classe trabalhadora a pesadas intervenções e não abriu ao capital estrangeiro, como faria supor seu ato mais imediato, a revogação da Lei de Remessa de Lucros de Goulart, que deu pretexto ao golpe.

Melancolicamente, como cantava uma valsa antiga que eu ouvia na voz de Carlos Galhardo – com certeza produzida em Hollywood –, a ditadura terminou seus dias com um general enfadado, que preferia o cheiro de ca-valos ao do povo, encurralada por um poderoso movimento democrático que deitou raízes em praticamente todos os setores da sociedade. O movi-mento pelas Diretas Já, no entanto, teve um desenlace moldado em termos irretorquivelmente brasileiros: um pacto pelo alto, entre o partido oficial de oposição à ditadura e o falido partido da própria ditadura, que entregou a Presidência, numa eleição indireta, a um civil mais conservador que o pró-prio general que saía de sua ronda. Por infelicidade, o poder terminou nas mãos de um acadêmico maranhense de mais do que duvidoso prestígio li-terário. Como diria minha professora d. Delfina, desafiando-nos: “Dou um doce a quem tenha lido os tais Maribondos de Fogo”. Chamava-se José Sar-ney. Continua nos brindando com nomeações ao Senado como se estivesse na praia do Calhau, em São Luís. Quem governa, o atraso ou o avanço?

Houve então o interregno de Fernando Collor, que tinha voto, mas não tinha voz, e de Itamar Franco, que não tinha nem voto nem voz. E então chegou o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pom-pas da Universidade de São Paulo. Fernando Henrique Cardoso realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a ex-tensão das empresas estatais, numa transferência de renda, riqueza e patri-mônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbachev.

Como Antônio Carlos Magalhães, o enérgico cacique da Bahia, foi seu parceiro, confirma-se a tese de que somente se pode governar com o atraso?

HEGEMONIA_miolo.indd 372HEGEMONIA_miolo.indd 372 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 359: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O avesso do avesso • 373

Longe disso. ACM nunca foi um oligarca no sentido rigoroso do termo e, mais que isso, a política econômica de Fernando Henrique jamais esteve sob o controle de Antônio Carlos e assemelhados. A política econômica era reserva de caça exclusiva de FHC e de seus tucanos, hoje banqueiros.

Essa turma se desfez do melhor da estrutura do Estado longamente cria-da desde os anos 1930, cortando os pulsos num afã suicida sem paralelo na história nacional. Honra a São Paulo e a seus ideólogos: Eugênio Gudin não faria igual e o Estadão exultava a cada medida “racional” do governo FHC. Manipulando o fetiche da moeda estável, Fernando Henrique reti-rou do Estado brasileiro a capacidade de fazer política econômica. Com os dois mandatos, os tucanos operaram um tournant do qual seu sucessor veio a ser prisioneiro – com a peculiaridade de que Lula radicalizou no descum-primento de um mandato que lhe foi conferido para reverter o desastre de FHC. É nesse contexto que opera a “hegemonia às avessas”.

Que se pode ver no avesso do avesso? Começando pela economia, que tem sido o argumento maior da era Lula: sua taxa de crescimento médio nos seis anos é inferior à taxa histórica da economia brasileira e, em 2009, previa-se uma queda relativa que o levaria de volta à performance de seu antecessor imediato, o odiado (para os petistas-lulistas) FHC. O crescimen-to tem se baseado numa volta à “vocação agrícola” do país, sustentado por exportações de commodities agropecuárias – o Brasil, um país de famintos, é hoje o maior exportador mundial de carne bovina – e de minério de ferro, graças às pesadas importações da China. Com o simples arrefecimento do crescimento chinês, que de 10% ao ano regrediu para uns 8%, a queda das exportações brasileiras já provocou uma forte retração do PIB agropecuário. As exportações voltaram a ser lideradas pelos bens primários, o que não acontecia desde 1978.

Proclama-se aos quatro ventos a diminuição da pobreza e da desigualda-de, baseada no Bolsa Família. Os dados disponíveis não indicam redução da desigualdade, embora deva ser certo que a pobreza absoluta diminuiu. Mas não se sabe quanto. A desigualdade provavelmente aumentou, e os resulta-dos proclamados são falsos, pois medem apenas as rendas do trabalho, que, na verdade, melhoraram muito marginalmente, graças aos benefícios do INSS e não do Bolsa Família. Quem proclama isso é o insuspeito Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É impossível medir a desigualdade total de rendas: em primeiro lugar, pela conhecida subestimação que é prá-tica no Brasil e, em segundo lugar, por um problema de natureza metodo-

HEGEMONIA_miolo.indd 373HEGEMONIA_miolo.indd 373 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 360: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

374 • Hegemonia às avessas

lógica (conhecido de todos que lidam com estratificações), que é a quase impossibilidade de fechar o decil superior da estrutura de rendas.

Metodologicamente, como lembrou Leda Paulani, as rendas do capi-tal são estimadas por dedução, enquanto as rendas do trabalho são medi-das diretamente na fonte. Medidas indiretas sugerem, e na verdade com-provam, o crescimento da desigualdade: o simples dado do pagamento do serviço da dívida interna, em torno de 200 bilhões de reais por ano, con-tra os modestíssimos 10 bilhões a 15 bilhões do Bolsa Família, não neces-sita de muita especulação teórica para a conclusão de que a desigualdade vem aumentando. Márcio Pochmann, presidente do Ipea, que continua a ser um economista rigoroso, calculou que uns 10 mil a 15 mil contribuin-tes recebem a maior parte dos pagamentos do serviço da dívida. Outro dado indireto, pela insuspeita – por outro viés – revista Forbes, já alinha pelo menos 10 brasileiros entre os homens e mulheres mais ricos do mun-do capitalista2.

Por último, a Fundação Getulio Vargas divulgou, no fim de setembro, uma pesquisa que prova que a classe que mais cresceu proporcionalmente, de 2003 a 2008, não foi a C nem a D. Foi, isso sim, as classes A e B, que têm renda familiar acima de 4.807 reais – e o dado não leva em conta a va-lorização da propriedade, ações e investimentos financeiros.

Do ponto de vista da política, o avesso do avesso é sua negação. Trata-se da administração das políticas sociais. Cooptam-se centrais sindicais e mo-vimentos sociais, entre eles o próprio Movimento dos Sem-Terra, que ainda resiste. A política não só é substituída pela administração, como se transfor-mou num espetáculo diário: o Presidente anuncia com desfaçatez avanços e descobertas que no dia seguinte são desmentidos. O etanol, que seria a pa-naceia de todos os males, foi rapidamente substituído pelo pré-sal, que ago-ra urge defender com submarinos nucleares e caças bilionários. Aliás, o pré-sal prometia reservas que elevariam o Brasil à condição de maior produ-tor mundial de petróleo, superando os países do Golfo e dando, de colher,

2 Essa famigerada lista é liderada por Carlos Slim, mexicano que fica cada vez mais rico, enquanto seu belo país mergulha fundo na mais infame pobreza. Carlos Fuen-tes, o magnífico romancista mexicano de A morte de Artemio Cruz, nos brinda, em seu recente La voluntad y la fortuna, com um implacável retrato do gordo bilionário mexicano, além de nos dar, na tradição dos grandes muralistas do país asteca, um magnífico panorama do México moderno, atolado na miséria e no crime, tendo no pescoço a pedra do Nafta, o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio.

HEGEMONIA_miolo.indd 374HEGEMONIA_miolo.indd 374 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 361: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

O avesso do avesso • 375

os recursos para quitar a obscena dívida social brasileira. Não tardou muito e a Exxon furou um poço... seco. E agora a British Group, associada à Pe-trobras, anuncia a mesma coisa. E as expectativas de reserva passaram de 1 trilhão de barris de petróleo para modestos 8 bilhões.

As previsões da equipe econômica são de mágico de quintal. No princí-pio do ano, em plena crise, o crescimento estimado estava na casa dos 6% para 2009. Pouco a pouco, as previsões – dignas de Nostradamus – foram caindo para 4%, 5%, 3% e hoje se aposta em 1%.

O chamado ciclo neoliberal, que começa com Fernando Collor e já está com seus quase vinte aninhos com Lula, é um ciclo anti-Polanyi, o magis-tral economista e antropólogo húngaro radicado na Inglaterra. O projeto do socialismo democrático de Karl Polanyi começava por deter a autono-mia do mercado e dos capitalistas. Ora, o governo Lula, na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique, só faz aumentar a autonomia do capital, retirando das classes trabalhadoras e da política qualquer possibili-dade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrá-tica. Se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às me-didas de desregulamentação. E todos fomos mergulhados outra vez na cul-tura do favor – viva Machado de Assis, viva Sérgio Buarque de Holanda e viva Roberto Schwarz!

As classes sociais desapareceram: o operariado formal é encurralado e retrocede, em números absolutos, em velocidade espantosa, enquanto seus irmãos informais crescem do outro lado também de maneira espantosa. Em sua tese de doutorado, Edson Miagusko flagrou, talvez sem se dar conta, a tragédia: de um lado da simbólica Via Anchieta, no terreno desocupado on-de antes havia uma fábrica de caminhões da Volks, há agora um acampa-mento de sem-teto, cuja maioria é de ex-trabalhadores da Volks. Do outro lado da famosa via, sem nenhuma simultaneidade arquitetada – aliás, os dois grupos se ignoraram completamente –, uma assembleia de trabalhado-res ainda empregados da Volks tentava deter a demissão de mais 3 mil com-panheiros. Eis o retrato da classe: em regressão para a pobreza. De são Marx para são Francisco.

As classes dominantes, se de burguesia ainda se pode falar, transforma-ram-se em gangues no sentido preciso do termo: as páginas policiais dos jornais são preenchidas todos os dias com notícias de investigações, depoi-mentos e prisões (logo relaxadas quando chegam ao Supremo Tribunal Fe-

HEGEMONIA_miolo.indd 375HEGEMONIA_miolo.indd 375 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 362: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

376 • Hegemonia às avessas

deral) de banqueiros, empreiteiros, financistas, executivos que lhes servem e policiais a eles associados. A corrupção campeia de alto a baixo: do presi-dente do Senado, que ocultou a propriedade de uma mansão, ao ex-diretor da casa, que repetiu – ou antecipou? – a mesma mutreta, passando por se-nadores que pagam passagens de sogras e namoradas com verbas de viagem e deputados que compram castelos com verba indenizatória.

Trata-se de um atavismo nacional? Só os que sofrem de complexo de inferioridade tenderiam a pensar assim. Qualquer jornal norte-americano da segunda metade do século XIX noticiava a mesma coisa. Até a mulher de Lincoln praticava, em conluio com o jardineiro, pequenos “desvios” de verba da casa da avenida Pensilvânia (segundo a famosa má língua de Gore Vidal).

A novidade do capitalismo globalitário é que ele se tornou um campo aberto de bandidagem – que o diga Bernard Madoff, o grande líder da Nas-daq durante anos. Nas condições de um país periférico, a competição global obriga a uma intensa aceleração, que não permite regras de competição que Weber gostaria de louvar. O velho Marx dizia que o sistema não é um siste-ma de roubo, mas de exploração. Na fase atual, Marx deveria reexaminar seu ditame e dizer: de exploração e roubo. O capitalismo globalitário avas-sala todas as instituições, rompe todos os limites, dispensa a democracia.

O avesso do avesso da “hegemonia às avessas” é a face, agora inteiramen-te visível, de alguém que vestiu a roupa às pressas e não percebeu que saiu à rua do avesso. Mas agora é tarde: Obama sentenciou que “ele é o cara” e to-do mundo o vê assim. O lulismo é uma regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda.

HEGEMONIA_miolo.indd 376HEGEMONIA_miolo.indd 376 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 363: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

BIBLIOGRAFIA

ABELSON, Donald E. Do think tanks matter? Opportunities, constraints and incentives for think tanks in Canada and the United States. Global Society, v. 14, n. 2, p. 213-36, 2000.

ADORNO, Theodor W. Soziologische Schriften I. Em: ______. Gesammelte Schriften 8. Frankfurt, Suhrkamp, 1979.

______. Sociologia. São Paulo, Ática, 1986.______. Prismas. São Paulo, Ática, 1998.______. Minima Moralia. Rio de Janeiro, Azougue, 2008a.______. Introdução à sociologia. São Paulo, Edunesp, 2008b.AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo, Boitempo, 2004.AGLIETTA, M. Regulación y crisis del capitalismo. Ciudad del México, Siglo XXI, 1979.ALBERA, François. L’Ob-jeu. Udine, International Film Studies Conference, maio 2001.

Mimeo.ALLAN, Colm. “Coega, conflicts of interest and the arms deal”. Public Service Accounta-

bility Monitor report, Grahamstown, Rhodes University, 24 jul. 2001.ALVAREZ, Isabel A. P. A reprodução da metrópole: o projeto Eixo Tamanduatehy. Tese de

doutorado, Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2009

AMORIM, Wilson Aparecido Costa de. A evolução das organizações de apoio às entidades sindicais brasileiras: um estudo sob a lente da aprendizagem organizacional. Tese de doutorado, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, USP, São Pau-lo, 2007.

ANDERSON, Christopher J.; PONTUSSON, Jonas. Workers, worries and welfare states: social protection and job insecurity in 15 OECD countries. European Journal of Po-litical Research. v. 46, n. 2, 2007. p. 211-35.

ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy (orgs.). Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo, Boitempo, 2009.

ARANTES, Otília B. De “Opinião 65” à 18a Bienal. In: Novos Estudos Cebrap. São Paulo, Cebrap, n. 15, jul. 1986. p. 69-84.

______. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo, Edusp, 1994.______. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. Em: ______; MARICA-

TO, Ermínia; VAINER, Carlos (orgs.). O pensamento único das cidades: desman-chando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000. p. 11-74.

HEGEMONIA_miolo.indd 377HEGEMONIA_miolo.indd 377 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 364: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

378 • Hegemonia às avessas

______; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. O pensamento único das cidades: des-manchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.

ARANTES, Paulo E. Estado de sítio. Em: LOUREIRO, Isabel et al. (orgs.) O espírito de Porto Alegre. São Paulo, Paz e Terra, 2002.

______. “Um retorno à acumulação primitiva: a viagem redonda do capitalismo de aces-so”. Reportagem, jul. 2005.

______. Extinção. São Paulo, Boitempo, 2007.ARANTES, Pedro. Arquitetura na era digital-financeira: desenho, canteiro e renda da for-

ma. Tese de doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2010.

ARONOWITZ, Stanley. The last good job in America: work and education in the new global technoculture. Lanham, Rowman & Littlefield, 2001.

ARRIGHI, G. O longo século XX. São Paulo/Rio de Janeiro, Edunesp/Contraponto, 1996.______. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis, Vozes, 1997.______. Caos e governabilidade no Moderno Sistema Mundial. Rio de Janeiro, Contraponto,

1999.______. Adam Smith em Pequim. São Paulo, Boitempo, 2008.______; SILVER, B. Chaos, governance and modern world system. Minneapolis, Univer-

sity of Minnesotta Press, 1999. ARVELAIZ, Maximilien. Utopia rearmed, Chávez and the Venezuelan left, MS in Latin

American policies. Londres, s.e., 2000.AYITTEY, George. Africa in chaos. Nova York, St. Martin’s Griffin, 1999.BADIOU, Alain. Théorie de la contradiction. Paris, François Maspero, 1976.______. O ser e o evento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, UFRJ, 1996.______. Compêndio de metapolítica. Lisboa, Instituto Piaget, 1999. ______. La Révolution Culturelle: la dernière révolution? Paris, Les Conférences du Rou-

ge-Gorge, 2002.______. De quoi Sarkozy est-il le nom? Paris, Lignes, 2007a.______. O século. Aparecida, Ideias e Letras, 2007b.BALL, Alan M. Imagining America: influence and images in twentieth-century Russia. Lanham,

Rowman & Littlefield, 2003.BALTAR, Paulo Eduardo; KREIN, José Dari. O emprego formal nos anos recentes. Carta

Social e do Trabalho. Campinas, v. 3, 2006. p. 3-10.BANCO MUNDIAL. Where is the wealth of nations? Washington, DC, 2006. p. 66. BANDEIRA, Luiz Alberto M. Brasil, Argentina e Estados Unidos: da Tríplice Aliança ao

Mercosul. Rio de Janeiro, Revan, 2003.BASUALDO, Eduardo. Los cambios de los sectores dominantes en América Latina bajo el

neoliberalismo. Em: _______; ARCEO, Enrique (orgs.). Neoliberalismo y sectores do-minantes: tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires, Clacso, 2006. p. 15-26.

______; ARCEO, Enrique (orgs.). Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires, Clacso, 2006.

BEAUD, S.; PIALOUX, M. Retour sur la condition ouvrière. Paris, Fayard, 1999. [Ed. bras.: Retorno à condição operária, São Paulo, Boitempo, 2009.]

BECK, Ulrich. The brave new world of work. Cambridge, Polity Press, 2000.

HEGEMONIA_miolo.indd 378HEGEMONIA_miolo.indd 378 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 365: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 379

BECKER, H. S. Outsiders: studies in the sociology of deviance. Nova York/ Glencoe, The Free Press, 1963.

BEISSINGER, Mark R. Scientific management, socialist discipline and Soviet power. Cam-bridge, Harvard University Press, 1988.

BELLUZZO, Luiz G. Ensaios sobre o capitalismo no século XX. São Paulo/ Campinas, Unesp/ Instituto de Economia da Unicamp, 2004.

BENEVOLO, Leonardo. Arquitetura do novo milênio. São Paulo, Estação Liberdade, 2007.

BENJAMIN, Walter. L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée. Em: ______. Écrits français. Paris, Gallimard, 2003. p. 149-250. [Ed. bras.: “A obra de arte na épo-ca de sua reprodutibilidade técnica – primeira versão”, em Magia e técnica, arte e po-lítica: ensaios sobre a cultura, São Paulo, Brasiliense, 1987.]

BENSAÏD, Daniel. Résistances: essai de taupologie générale. Paris, Fayard, 2001.BENVENUTI, Francesco. Fuoco sui sabotatori! Stachanovismo e organizzazione industria-

le in URSS (1934-1938). Roma, Valerio Levi Editore, 1988.BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro, Azou-

gue, 2004.BERNSTEIN, Jared. All together now: common sense for a new economy. São Francisco,

Berrett-Koehler, 2006.BETHELL, Leslie; ROXBOROUGH, Ian (orgs.). A América Latina entre a Segunda Guer-

ra Mundial e a Guerra Fria. São Paulo, Paz e Terra, 1991.BIANCHI, Álvaro; BRAGA, Ruy. Brazil: the Lula government and financial globalization.

Social Forces. Chapel Hill, v. 83, n. 4, 2005. p. 1745-62.______. Revolução passiva: o futuro do pretérito. Crítica Marxista. São Paulo, v. 23, n. 23,

2006. p. 34-57.BILBAO, Luis. Chávez y la revolución bolivariana. Buenos Aires, Capital Intelectual S. A.,

2002.BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de po-

lítica. 5. ed., Brasília, Editora UnB/ LGE, 2004.BOHN, John. Cipe at 15 years: lessons learned. In: GEURTS, Geoffrey; ROGERS, Ste-

ven; SULLIVAN, John D. (orgs.). Impact and results of Cipe’s global programs, 1984-1999. Washington, DC, Cipe, ago. 2001. p. 9-19.

BOND, Patrick. Elite transition: from apartheid to neoliberalism in South Africa. Londres, Pluto Press, 2000.

______. Unsustainable South Africa. Londres, Merlin Press, 2002.______ (org.). Fanon’s warning. Trenton (New Jersey), Africa World Press, 2002.______; Dada, Rehana; Erion, Graham (orgs.). Climate change, carbon trading and civil

society. Pietermaritzburg, University of KwaZulu-Natal Press, 2008.BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquili-

nato e difusão da casa própria. São Paulo, Estação Liberdade, São Paulo, 1998.BORJA, Jordi. Las ciudades en la globalización: planificación estratégica y proyecto de la

ciudad. Em: Ciclo de conferencias: La planificación estratégica, un instrumento in-tegral y integrador de desarrollo. Municipalidad de Bahía Blanca, Dirección de pla-nificación estratégica, Argentina, dez. 1999.

______; CASTELLS, Manuel. Planes estratégicos y proyectos metropolitanos. Em: Cader-nos Ippur. Rio de Janeiro, UFRJ, ano XI, n. 1 e 2, 1997.

______; ______. Local and global: managemente of cities in the information age. Londres, UNCHS (Habitat/ ONU) e Earthscan Publications, 1997.

HEGEMONIA_miolo.indd 379HEGEMONIA_miolo.indd 379 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 366: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

380 • Hegemonia às avessas

BORON, Atilio A. Crisis de las democracias y movimientos sociales en América Latina: notas para una discusión. Observatorio Social de América Latina. Buenos Aires, ano VII, n. 20, maio-ago. 2006. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal20/boron.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2008.

BOSCH, Gerhard; PHILIPS, Peter. Building chaos: an international comparison of dere-gulation in the construction industry. Londres, Routledge, 2003.

BOURDIEU, Pierre. La précarité est aujourd’hui partout. Em: Contre-feux. Paris, Liber-Raison d’Agir, 1998. p. 95-101.

BRAUN, Miguel; CICIONI, Antonio; DUCOTE, Nicolas J. Think tanks in developing countries: lessons from Argentina. Em: STONE, Diane; DEHAM, Andrew (orgs.). Think tank traditions: policy research and the politics of ideas. Manchester Universi-ty Press, 2004.

BREEN, Richard. Risk, recommodification and stratification. Sociology. v. 31, n. 3, 1997. p. 473-89.

BRUTUS, Dennis. A simple lust. Portsmouth, Heinemann, 1986.BUCI-GLUCKSMANN, Christine; THERBORN, Göran. Le défi social-démocrate. Paris,

Maspero, 1981.BURAWOY, Michael. Manufacturing consent: changes in the labor process under mono-

poly capitalism. Chicago, Chicago University Press, 1979.______. L’odyssée d’un ethnographe marxiste, 1975-1995. In: ARBORIO, Anne-Marie et

al. (orgs.). Observer le travail: histoire, ethnographie, approches combinées. Paris, La Découverte, 2008. p. 153-68.

CABALLERO, Manuel. Las crisis de Venezuela contemporánea. Caracas, Monte Ávila Edi-tores Latinoamericana, 1998.

CABANES, R.; TELLES, V. (orgs.). Nas tramas da cidade. São Paulo, Humanitas/ IRD, 2006.

CALLAND, Richard. Anatomy of South Africa: who holds the power? Cidade do Cabo, Zebra Press, 2006.

CALLARI, Antonio. Imperialism and the rhetoric of democracy in the age of Wall Street. Rethinking Marxism. v. 20, n. 4, out. 2008. p. 700-9.

CAPPELLI, Peter. The New Deal at work: managing the market-driven workforce. Boston, Harvard Business School Press, 1999.

______. Talent on demand: managing talent in an age of uncertainty. Boston, Harvard Bu-siness Press, 2008.

CARDENAL, Ernesto. Venezuela: uma nova revolução na América Latina. Disponível em: <http://resistir.info/venezuela/cardenal_04mai04_port.html>. Acesso em: 24 ago. 2010.

CARVALHO NETO, A. M. Reestruturação produtiva, jornada de trabalho e participação nos lucros e resultados: novos temas negociados entre empresários e trabalhadores brasileiros, de 1992 a 1998. Em: NABUCO, M. R.; CARVALHO NETO, A. M. (orgs.). Relações de trabalho contemporâneas. Belo Horizonte, PUC/ IRT, 1999.

CASTELLS, Manuel. Sobreviver na globalização. Revista Urbs. São Paulo, set.-out. 1999.______; BORJA, Jordi. As cidades como atores políticos. Em: Novos Estudos Cebrap. São

Paulo, n. 45, jul. 1996. p. 152-66.CASTRO, Antônio B.; SOUZA, Francisco E. P. A economia brasileira em marcha forçada.

Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

HEGEMONIA_miolo.indd 380HEGEMONIA_miolo.indd 380 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 367: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 381

CENSOS NACIONALES DE POBLACIÓN Y ATLAS DEMOGRÁFICO DE LA REPÚBLICA ARGENTINA. Resultados provisionales. Buenos Aires, Indec, 1986.

______. Resultados provisionales. Buenos Aires, Indec, 1991. CENTRO DE ESTUDOS DA METRÓPOLE, Associativismo e redes sociais: condições de

acesso a políticas sociais para populações de baixa renda. Relatório de trabalho, mar. 2008.

CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã, 1996.______. A emergência de um regime de acumulação financeira. Praga, São Paulo, n. 3,

1997.______. A mundialização financeira. São Paulo, Xamã, 1998.______. A finança mundializada. São Paulo, Boitempo, 2005.CHOMSKY, Noam. Estados fallidos: el abuso de poder y el ataque a la democracia. Buenos

Aires, Zeta, 2007.CIPE. Annual report (2000 a 2007). Disponíveis em: <http://www.cipe.org/about/report/

index.php>. Acesso em: set.-out. 2008.______. Five year strategy 2007-2012. Disponível em: <http://www.cipe.org/about/strate-

gy5year.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2008. ______. Global partners: 1984-2003. Disponível em: <http://www.cipe.org/publications/

report/archives/AR_2003.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2010.______. Guía para la agenda nacional empresarial. Disponível em: <http://www.cipe.org/

regional/lac/pdf/spanishnba.pdf>. Acesso em: 5 set. 2008.CIPPEC. Newsletter: 26 oct. 2006. Disponível em: <http://www.cipe.org/publications/

overseas/index.php#2006>. Acesso em: 29 set. 2008.CITRON, Laura; Walton, Richard. “International comparisons of Company Profitabili-

ty”. Disponível em: <http://www.statistics.gov.uk/articles/economic_trends/ET587_Walton.pdf>.

CNN. Life expectancy in Africa cut short by aids. 18 mar. 1999.COEGA DEVELOPMENT CORPORATION. Coega manager dismissed over miscon-

duct. Porto Elizabeth, 11 dez. 2006. Comunicado de imprensa.COHEN, Yves. The Soviet Fordson between the politics of Stalin and the philosophy of

Ford, 1924-1932. Em: BONIN, Hubert; LUNG, Yannick; TOLLIDAY, Steven (orgs.). Ford, 1903-2003: the European history. Paris, Plage, 2003. v. 2, p. 531-58.

COMMONS, John R. Institutional economics: its place in political economy. Nova York, Macmillan, 1934.

COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico. São Paulo, Graal, 1996.CORIAT, B. L’atelier et le chronomètre. Paris, Christian Bourgois, 1982.______. Ohno e a escola japonesa de gestão da produção: um ponto de vista de conjunto.

Em: HIRATA, H. Sobre o “modelo” japonês: automatização, novas formas de organi-zação e de relações de trabalho. São Paulo, Edusp/Aliança Cultural Brasil-Japão, 1993.

COUNCIL OF ECONOMIC ADVISERS. Economic report of the president 2010. Dispo-nível em: <http://www.gpoaccess.gov/eop/>. Acesso em: 24 ago. 2010.

COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia: um conceito em disputa. Em: ______. Inter-venções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo, Cortez, 2006.

COUTINHO, Wilson; ARAGÃO, Cristina (cur.). Opinião 65: 30 Anos. Rio de Janeiro, CCBB, 1995.

HEGEMONIA_miolo.indd 381HEGEMONIA_miolo.indd 381 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 368: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

382 • Hegemonia às avessas

CRAWFORD-BROWNE, Terry. Eye on the money. Cidade do Cabo, Umuzi, 2007.CREISSEL, Annabelle; FEIGELSON, Kristian. Ford, fordisme et stalinisme (1935). Théo-

rème. n. 8, 2005. p. 73-82.CRUZ, Sebastião C. Velasco e. Argumentos sobre as “reformas para o mercado” nos países

em desenvolvimento. Em: ______. Globalização, democracia e ordem internacional: ensaios de teoria e história. Campinas/ São Paulo, Unicamp/ Unesp, 2004. p. 91-115.

______. Trajetórias: capitalismo neoliberal e reformas econômicas nos países da periferia. São Paulo/ Campinas, Unesp/ PUC-SP/ Unicamp, 2007.

DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo, Boitempo, 2006.______. Sand, fear and money in Dubai. Em: ______. Evil paradises. Nova York, The New

Press, 2007.DAVIS, Rob; O’MEARA Dan; DLAMINI, Sipho. The struggle for South Africa: a reference

guide. Londres/ New Jersey, Zed Books, 1988.DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.DE WITTE, Hans. Job insecurity and psychological well-being: review of the literature

and exploration of some unresolved issues. European Journal of Work and Organiza-tional Psychology. v. 8, n. 2, 1999. p. 155-77.

DEÁK, Csaba. A busca das categorias da produção do espaço. Tese de livre-docência, Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2001.

DIAS, Antonio (ed.). Antonio Dias. Texto de Paulo Sérgio Duarte. Rio de Janeiro, Funarte, 1979.

______. Antonio Dias. Texto de Helmut Friedel. Salvador, Paulo Darzé Galeria de Arte, s.d.

______. Antonio Dias: trabalhos 1967-1994. Textos de Paulo Sérgio Duarte e Klaus Wol-bert. Entrevista com Nadja von Tilinsky. Darmstadt/ São Paulo, Institut Mathilde-nhöhe/ Paço das Artes, 1994.

______. Antonio Dias. Textos de Paulo Herkenhoff e Jorge Molder. Lisboa/ São Paulo, Fundação Calouste Gulbenkian/ Cosac & Naify, 1999. Exposição no Centro de Ar-te Moderna José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Por-tugal, 1999.

______. Antonio Dias: o país inventado. Texto de Elisa Byington. Salvador/ Curitiba, Mu-seu de Arte Moderna da Bahia/ Casa Andrade Muricy, 2001. Exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, de setembro a outubro de 2000, e na Casa An-drade Muricy, em Curitiba, de novembro de 2000 a janeiro de 2001.

______. Antonio Dias: o país inventado. Texto de Sônia Salzstein. São Paulo, A. M. L. Dias, 2001. Exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo, de fevereiro a abril de 2001, e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de maio a julho de 2001.

______. Antonio Dias: o país inventado. Texto de Moacir dos Anjos. Recife/ Fortaleza, Fundação Cultural do Recife/ Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, s.d. Expo-sição na Fundação Cultural do Recife e no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, s.d.

______. Antonio Dias: sobre casas, torres, argila e bronze. Texto de Paulo Sérgio Duarte. São Paulo, Galeria Luísa Strina, 2005. Exposição na Galeria Luísa Strina, em São Paulo, 2005.

DIEESE. Distribuição pessoal da renda do trabalho: Brasil 1995-2005. Anuário dos trabalha-dores 2007. São Paulo, Dieese, 2007.

HEGEMONIA_miolo.indd 382HEGEMONIA_miolo.indd 382 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 369: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 383

DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de clas-se. 3. ed. Petrópolis, Vozes, 1981.

______. A internacional capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional (1918-1986). Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1986.

DUARTE, Paulo Sérgio. Anos 60: transformações da arte no Brasil. Rio de Janeiro, Cam-pos Gerais, 1998.

______. A trilha da trama e outros textos sobre arte. Rio de Janeiro, Funarte, 2004.EARTHLIFE AFRICA. Eskom’s secret deal with Alcan: refusal to release details. Johan-

nesburgo, 20 fev. 2007. Comunicado de imprensa.EDWARDS, Paul N. The closed world: computers and the politics of discourse in cold war

America. Cambridge, MIT, 1998.EDWARDS, Richard. Contested terrain: the transformation of the workplace in the twentieth

century. Nova York, Basic Books, 1979.EISENSCHITZ, Bernard (org.). Gels et dégels: une autre histoire du cinéma soviétique

(1926-1968). Paris/ Milão, Centre Georges Pompidou/ Mazzotta, 2002.ELLNER, Steve; HELLINGER, Daniel (orgs.). La política venezolana en la época de Chá-

vez. Caracas, Nueva Sociedad, 2003.______. El sindicalismo en Venezuela en el contexto democrático (1958-1994). Caracas, Fon-

do Editorial Tropykos, Universidad de Oriente, 1995.ERREBLANCHE, Christelle. No changes, Zuma vows. Independent on-line. 9 dez. 2007.ERWIN, Alec. Criminal not to Develop Coega. Eastern Province Herald. 1o fev. 2002.FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa, Ulisseia, s.d. FARBER, Henry S. Short(er) shrift: the decline in worker-firm attachment in the United

States. Em: NEWMAN, Katherine S. (org.). Laid off, Laid low: political and econo-mic consequences of employment insecurity. Nova York, Columbia University Press, 2008. p. 10-37.

FATTORELLI, Maria L. “A grande sangria”. Reportagem, jun. 2004.FAVARETTO, Celso. Opinião de lá para cá. Jornal de Resenhas/ Folha de S.Paulo. 3 jul.

1995.FERREIRA, João S. W. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no

Brasil. Em: Simpósio Interfaces das representações urbanas em tempos de globaliza-ção, 21 a 26 de agosto de 2005. Anais... Bauru, Unesp e Sesc, 2005.

______. O mito da cidade global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano. Pe-trópolis, Vozes, 2007.

______; FIX, Mariana. A urbanização e o falso milagre do Cepac. Folha de S.Paulo. 17 abr. 2000. Tendências e Debates.

______; MARICATO, Ermínia. Operação urbana consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade? Em: OSÓRIO, Letícia Marques (org.). Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades bra-sileiras. Porto Alegre/ São Paulo, Sérgio Antônio Fabris, 2002.

______; MOTISUKE, Daniela. A efetividade da implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial. Em: BUE-NO, Laura Machado de Mello; CYMBALISTA, Renato (orgs.). Planos diretores mu-nicipais: novos conceitos de planejamento. São Paulo, Annablume, 2007.

FINE, Ben. Looking for a developmental state. Alternatives International. 12 set. 2007. Disponível em: <http://www.alterinter.org/article1195.html?lang=fr>.

HEGEMONIA_miolo.indd 383HEGEMONIA_miolo.indd 383 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 370: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

384 • Hegemonia às avessas

______; RUSTOMJEE, Zav. South Africa’s political economy. Johannesburgo, University of the Witwatersrand Press, 2006.

FIORI, José L. O poder global dos Estados Unidos: formação, expansão e limites. Em:______ (org.). O poder americano. Petrópolis, Vozes, 2004.

______. Formação, expansão e limites do poder global. Em: ______ (org.). O poder ame-ricano. Petrópolis, Vozes, 2004.

FIX, Mariana. A “fórmula mágica” da “parceria”: operações urbanas em São Paulo. Cader-nos de Urbanismo. Rio de Janeiro, ano 1, n. 3, 2000. p. 23-7.

______. Parceiros da exclusão. São Paulo, Boitempo, 2001.FOLHA de S.Paulo, “Nova York pode falir, adverte o prefeito”, 20 out. 2002. Disponível

em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u46669.shtml>. Acesso em: ago. 2010.

FONTENELLE, Isleide. O nome da marca. São Paulo, Boitempo, 2004.FOSTER, Hal. Design and crime (and other diatribes). Londres, Verso, 2002.FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. São Paulo, Martins Fontes, 2006.______. Naissance de la biopolitique. Paris, Gallimard/ Seuil, 2004.FREEDOM OF EXPRESSION INSTITUTE AND UNIVERSITY OF JOHANNES-

BURG CENTRE FOR SOCIOLOGICAL RESEARCH. National trends around protest action. Johannesburgo, fev. 2009. p. 13.

FREEMAN, C.; CLARK, J.; SOETE, L. Unemployment and technical innovation: a study of long waves and economic development. Londres, Francis Pinter Publishers, 1982.

FUGGLE, Richard. We are still indifferent about the state of our environment. Cape Ti-mes. 6 dez. 2006.

GALIANO, Luis Fernández. Diálogo y logo: Jacques Herzog piensa en voz alta. Arquitec-tura Viva, n. 91, ago. 2003.

GALVÃO, A. Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil. Tese de doutorado em Ciências Sociais. Unicamp, Campinas, 2003.

GARDEY, Delphine. La dactylographe et l’expéditionnaire: histoire des employés de bureau (1890-1930). Paris, Belin, 2001.

GELB, Stephen. Inequality in South Africa: nature, causes and responses. Johannesburgo, The Edge Institute, 2003. Disponível em: <http://www.commerce.uct.ac.za/Resear-ch_Units/DPRU/DPRU-Conference2004/Papers/Gelb_Inequality_in_SouthAfri-ca.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2010.

GEURTS, Geoffrey; ROGERS, Steven; SULLIVAN, John D. Impact and results of Cipe’s global programs (1984-1999). Washington, DC, Cipe, ago. 2001.

GIDDENS, Anthony. A terceira via. Rio de Janeiro, Record, 1999.GOLINGER, Eva. El código Chávez: descifrando la intervención de los Estados Unidos en

Venezuela. Havana, Editorial de Ciencias Sociales, 2005.______. Bush vs. Chávez: la guerra de Washington contra Venezuela. Havana, Editorial José

Martí, 2006. GOMES, Ângela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a tra-

jetória de um conceito. Em: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.

GRAMSCI, Antonio. (2007). Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 6 v.

HEGEMONIA_miolo.indd 384HEGEMONIA_miolo.indd 384 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 371: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 385

GRAZIOSI, Andrea. Storia dell’Unione Sovietica: L’URSS de Lenin e Stalin (1914-1945) e L’URSS dal trionfo al degrado (1945-1991). Bolonha, Il Mulino, 2007 e 2008. v. 1 e 2.

GREEN, Pippa. Choice not fate. Johannesburgo, Penguin, 2008.GROS, Denise Barbosa. Institutos liberais e neoliberalismo no Brasil da Nova República.

Teses FEE. Porto Alegre, Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser, n. 6, 2003.

______. Institutos liberais, neoliberalismo e políticas públicas na Nova República. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 19, n. 54, fev. 2004. p. 143-59.

GUILHOT, Nicolas. Les professionnels de la démocratie: logiques militantes et logiques savantes dans le nouvel internationalisme américain. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. n. 139, 2001-2003. p. 53-65. Disponível em: <http://www.cairn.info/arti-c l e . p h p ? I D _ R EV U E = A R S S & I D _ N U M P U B L I E = A R S S _ 1 3 9 & I D _ARTICLE=ARSS_139_0053>. Acesso em: 14 ago. 2008.

HACKER, Jacob. The great risk shift. Nova York, Oxford University Press, 2006.HALE, Eric T. A quantitative and qualitative evaluation of the National Endowment for De-

mocracy (1990-1999). Tese de doutorado, Departamento de Ciências Políticas, Uni-versidade do Estado da Louisina, dez. 2003. Disponível em: <http://etd.lsu.edu/docs/available/etd-1105103-140728/unrestricted/Hale_dis.pdf>. Acesso em: 30 out. 2008.

HARASZTI, Miklós. Salaire aux pièces: ouvrier dans un pays de l’Est. Paris, Seuil, 1975.HARRISON, Mark. Comment: Stalinism in post-communist perspective. Europe-Asia

Studies. v. 49, n. 3, maio 1997. p. 499-502.______. Soviety industry and the red army under Stalin: a military industrial complex?

Cahiers du Monde Russe. v. 44, n. 2-3, abr.-set. 2003. p. 323-342.HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo, Loyola, 2004.______. El arte de la renta: la globalización y la mercantilización de la cultura. Em: ______.

Capital financiero, propriedad inmobiliaria y cultura. Barcelona, Universidad Autóno-ma de Barcelona, 2005.

______. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Loyola, 2008.HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo, Unesp, 1996.HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. Em: BENJAMIN, Walter et. al.

Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980.IERAL. “Orígenes y objetivos”. Disponível em: <http://www.ieral.org/institucional.asp>.

Acesso em: 25 set. 2005.IPECE – Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Retratos do Brasil e do Cea-

rá: indicadores sociais e econômicos. Fortaleza, 14 abr. 2005. Disponível em: <http://www.sfiec.org.br/palestras/economia_e_financas/ipece/ibge.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2010.

ISLAM, Nafisul. Making the “extralegal” legal. Em: CIPE, Strategies for policy reform: ex-periences from around the world. Washington, DC, Cipe, 2007. p. 54-8.

JACOBY, Sanford M. Employing bureaucracy: managers, unions and the transformation of work in the 20th century. Nova York, Columbia University Press, 1985.

______. Risk and the labor market: societal past as economic prologue. Em: BERG, Ivar; KALLEBERG, Arne L. (org.). Sourcebook of labor markets: evolving structures and processes. Nova York, Kluwer Academic/ Plenum, 2001. p. 31-60.

HEGEMONIA_miolo.indd 385HEGEMONIA_miolo.indd 385 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 372: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

386 • Hegemonia às avessas

JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo, Ática, 1997.______. O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária. Em: ______.

A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis, Vozes, 2001.______. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro, Civi-

lização Brasileira, 2005.______. History and class consciousness as an “unfinished project”. Em: SOARES, Marcos;

CEVASCO, Maria Elisa (orgs.). Crítica cultural materialista. São Paulo, Humanitas, 2008.

JOFFE, Hilary. Growth has helped richest and poorest. Business Day. 5 mar. 2008. JOSÉ, Beatriz K. Políticas culturais e negócios urbanos: a instrumentalização da cultura na

revitalização do centro. São Paulo, Annablume, 2007.KALLEBERG, Arne L. Nonstandard employment relations: part-time, temporary and

contract work. Annual Review of Sociology. n. 26, 2000. p. 341-65.______. Precarious work, insecure workers: employment relations in transition. American

Sociological Review. v. 74, n. 1, 2009. p. 1-22.______; MARSDEN, Peter V. Externalizing organizational activities: where and how US

establishments use employment intermediaries. Socio-Economic Review. n. 3, 2005. p. 389-416.

______; ______. Labor force insecurity and US work attitudes, 1970s-2006. Em: MAR-SDEN, Peter V. (org.). Social trends in the United States (1972-2006): evidence from the General Social Survey. Princeton, Princeton University Press, 2009.

KAPLAN, Cora. What we have again to say: Williams, Feminism and the 1840s. Em: PRENDERGAST, C. (org.), Cultural materialism: on Raymond Williams. Minnea-polis, University of Minnesota Press, 1995.

KLEIN, Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro, Record, 2004.

KONDRATIEV, Nicolai. Los ciclos largos de la coyuntura económica. Cidade do México, Unam, 1992.

KORNBLITH, Miriam. Del puntofijismo a la Quinta República: elecciones y democracia en Venezuela. Em: Fórum La democracia en América Latina: ¿viabilidad o colapso? Departamento de Ciência Política da Universidade dos Andes, Bogotá, 2003.

KOTKIN, Stephen. Magnetic mountain: Stalinism as a civilization. Berkeley, University of California Press, 1995.

KOULECHOV, Lev. L’art du cinéma et autres écrits. Lausanne, L’Âge d’Homme, 1994.KREIN, J. D. Balanço da reforma trabalhista no governo FHC. Em: PRONI, M.; HEN-

RIQUE, W. Trabalho, mercado e sociedade: o Brasil nos anos 90. São Paulo, Unesp, 2003.

______. Tendências recentes nas relações de emprego no Brasil. Tese de doutorado em Economia Aplicada. Unicamp, Campinas, 2007.

______; SANCHES, A. T. PLR: um balanço das experiências cutistas. Debate & Reflexões. São Paulo, Escola Sindical São Paulo/ Friedrich Ebert Stiftung/ CUT Brasil, n. 12, 2004.

KULEŠOV, Lev. Sobranie sočinenij v treh tomah: teoria, kritika, pedagogika. Moscou, Iskusstvo, 1987.

LANDER, Edgardo. Venezuelan social conflict in a global context. Em: ELLNER, Steve; SALAS, Miguel T. (orgs.). Hugo Chávez and the decline of an “exceptional democracy”. Lanham, Rowman & Littlefield, 2007.

HEGEMONIA_miolo.indd 386HEGEMONIA_miolo.indd 386 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 373: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 387

LANDER, Luis E. (org.). Poder y petróleo en Venezuela. Caracas, Faces-UCV e PDVSA, 2003.

LAZARUS, Sylvain. Anthropologie du nom. Paris, Seuil, 1996. LEHOHLA, Pali. “State of the world population: 2004”. Disponível em: <http://www.

statssa.gov.za/news_archive/17sep2004_1.asp>. Acesso em: 25 ago. 2010. CNN.LEWIN, Moshe. The disappearance of planning in the plan. Slavic Review. v. 32, jun.

1973. p. 271-87.LINHART, Robert. Lénine, les paysans, Taylor. Paris, Seuil, 1976.LÓPEZ MAYA, Margarita. Populismo e inclusión en el caso del proyecto bolivariano. Inédito,

2004.______. Venezuela, la rebelión popular del 27 de febrero de 1989: resistencia a la moder-

nidad? Revista Venezolana de Economia y Ciencias Sociales. n. 5, abr.-set. 1999.LOWE, David. Idea to reality: a brief history of the National Endowment for Democracy.

Disponível em: <http://www.ned.org/about/history>. Acesso em: 12 maio 2008. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo, Martins Fontes, 2003.MAAR, Wolfgang Leo. O eclipse da política na experiência social brasileira. Margem Es-

querda. São Paulo, Boitempo, n. 9, 2007.MADDISON, Angus. La economía mundial, 1820-1992: análisis y estadísticas. Paris,

OCDE, 1997.______. Chinese economic performance in the long run. Paris, OCDE, 1998.______. The world economy: a millennial perspective. Paris, OCDE, 2001.MAMDANI, Mahmood. Ciudadano y súbdito: África contemporánea y el legado del colo-

nialismo tardio. Madri, Siglo XXI, 1998. MANDEL, Ernst. Long waves of capitalism development: the marxist interpretation. Cam-

bridge: Cambridge University Press, 1980.______. O capitalismo tardio. São Paulo, Abril Cultural, 1985.MANDEL, Michael J. The high-risk society: peril and promise in the new economy. Nova

York, Random House, 1996.MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.______. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro,

Zahar, 1974.______. Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber. Em: ______. Cultura e so-

ciedade. São Paulo, Paz e Terra, 1998.MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo, Hucitec, 1996.______. Habitação e cidade. São Paulo, Atual, 1997.______. Contradições e avanços do Habitat II. Em: SOUZA, Ângela G. (org.). Habitar

contemporâneo. Salvador, FAUUFBA, 1997. p. 21-39.______. Planejamento urbano no Brasil: as ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias.

Em: ARANTES, Otília B.; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. O pensamento único das cidades: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.

______. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, Vozes, 2001.MARINGONI, Gilberto, A Venezuela que se inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos

de Chávez. São Paulo. Fundação Perseu Abramo, 2004.______. A revolução venezuelana. São Paulo, Edunesp, 2009.MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia. Cidade do México, Era, 1973.MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América La-

tina. Tese de doutorado. Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2003.

HEGEMONIA_miolo.indd 387HEGEMONIA_miolo.indd 387 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 374: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

388 • Hegemonia às avessas

______. A conjuntura contemporânea e o sistema mundial: os desafios da América Latina no século XXI. Em: ______; Mônica Bruckmann (orgs.). Países emergentes e os novos caminhos da modernidade. Brasília, Unesco, 2008. v. 1, p. 31-51.

MARTINS, Luiz Renato. Armadilhas visuais. Jornal de Resenhas/ Folha de S.Paulo. 3 abr. 1995.

______. Manual de guerrilha. Jornal de Resenhas/ Folha de S.Paulo. 10 mar. 2001. p. 6.MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos. São Paulo, Abril Cultural,

1974.______. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Col. Os Pensadores.______. O capital: o processo de circulação do capital (livro 2). 4. ed. São Paulo, Difel,

1983. 3 v.______. O capital: o processo global de produção capitalista (livro 3). 4. ed. São Paulo,

Difel, 1983. 6 v.______. O capital: o processo de produção do capital (livro 1). 10. ed. São Paulo: Difel,

1985. 2 v.______. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse). 15. ed.

Cidade do México, Siglo XXI, 1987. 3 v.______; ENGELS, Friedrich. Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos

Trabalhadores. Em: ______; ______. Obras escolhidas. Rio de Janeiro, Vitória, 1956.______; ______. A ideologia alemã. São Paulo, Boitempo, 2007.MASHEK, Robert W. Performance and prospects for Legislative Advisory Programs in La-

tin América. Relatório de onze programas legislativos nacionais e regionais na Amé-rica Latina submetido ao Cipe, 15 mar. 1993. p. 59-106. Disponível em: <http://www.cipe.org/programs/evaluations/pdf/laplac_evaluation.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2008.

MATO, Daniel. Cultura, comunicación y transformaciones sociales en tiempos de globa-lización. Em: ______; FERMÍN, Alejandro Maldonado (org.). Cultura y transforma-ciones sociales en tiempos de globalización: perspectivas latinoamericanas. Buenos Ai-res, Clacso, abr. 2007. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/mato/Alvear_C.pdf>. Acesso em: 6 out. 2008.

______. Think tanks, fundaciones y profesionales en la promoción de ideas (neo)liberales en América Latina. Em: GRIMSON, Alejandro (org.). Cultura y neoliberalismo. Bue-nos Aires, Clacso, jul. 2007. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/grim_cult/Mato.pdf>. Acesso em: ago. 2010.

MATTERN, Ernest. Création, organisation et direction des usines. Paris, Dunod, 1925.MELLO E SILVA, Leonardo. O desmanche da classe: apontamentos em torno de uma

pesquisa. Em: OLIVEIRA, Francisco; Rizek, Cibele (org.). A era da indeterminação. São Paulo. Boitempo, 2007.

MEMMI, Albert. A estátua de sal. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.______. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1967.MIAGUSKO, E. Greve dos petroleiros de 1995: a construção democrática em questão. Dis-

sertação de mestrado. Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2001.

MILNER, Larry S. Business associations for the 21st Century: a blueprint for the future. 2. ed. Washington, DC, Cipe, 1999.

HEGEMONIA_miolo.indd 388HEGEMONIA_miolo.indd 388 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 375: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 389

MINELLA, Ary César. Representação de classe do empresariado financeiro na América Latina: a rede transassociativa no ano 2006. Revista de Sociologia e Política. n. 28, jun. 2007. p. 31-56. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n28/a04n28.pdf> e <http://socialsciences.scielo.org/pdf/s_rsocp/v3nse/scs_a03.pdf> (versão em in-glês). Acesso em: ago. 2010.

MISHEL, Lawrence; BERNSTEIN, Jared; ALLEGRETTO, Sylvia. The state of working America 2006/2007. Ithaca/ Nova York, ILR/ Cornell University Press, 2007.

______; BERNSTEIN, Jared; SHIERHOLZ, Heidi. The state of working America 2008/2009. Ithaca/ Nova York, ILR/ Cornell University Press, 2009.

MISSE, M. As ligações perigosas: mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio. Contemporaneidade e Educação. v. 1, n. 2, 1997. p. 93-116.

MORÓN, Guillermo. Breve historia contemporánea de Venezuela. Cidade do México, Fon-do de Cultura Econômica, 1994.

MOTISUKI, Daniela. Reabilitação de áreas centrais: antagonismos e ambiguidades do programa paulistano Ação Centro. Tese de mestrado, Faculdade de Arquitetura e Ur-banismo, USP, São Paulo, 2008.

MOUTET, Aimée. Les logiques de l’entreprise: la rationalisation dans l’industrie française de l’entre-deux-guerres. Paris, Éditions de l’EHESS, 1997.

MTIMKA, Ongama. Only history will vindicate Coega. The Mercury. 28 dez. 2006.NED. Latin America and the Caribbean Program (2000 a 2007). Disponíveis em: <http://

www.ned.org/where-we-work/latin-america-and-caribbean>. Acesso em: 30 out. 2008.NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. O que há de político na política? São Paulo, Edunesp,

1999.NICHOLS, T; BEYNON, H. Living with capitalism. Londres, Routedge and Kegan Paul,

1977.OFFE, C.; WEISENTHAL, H. Two logics of collective action. In: OFFE, C. Disorganized

capitalism. Massachussets, MIT Press, 1985.OFFICE OF MANAGEMENT AND BUDGET. A new era of responsibility: renewing

America promise’s. Disponível em: <http://www.gpoaccess.gov/usbudget/fy10/pdf/fy10-newera.pdf>. Acesso em: ago. 2010.

OITICICA, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. Em: Nova objetividade brasileira. Prefácio de Mário Barata. Rio de Janeiro, A Cruz, 1967. p. 4-18. Catálogo da expo-sição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 6 a 30 abril de 1967.

______. Hélio Oiticica. Textos de Hélio Oiticica, Guy Brett, Haroldo de Campos, Waly Salomão e Catherine David. Rio de Janeiro, Centro de Arte Hélio Oiticica, 1992. Exposição no Witte de With, Center for Contemporary Art, em Roterdã, de feverei-ro a abril de 1992; na Galerie Nationale du Jeu de Paume, em Paris, de junho a agos-to de 1992; na Fundación Antoni Tàpies, em Barcelona, de outubro a dezembro de 1992; no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, de janeiro a março de 1993; no Walker Art Center, em Minneapolis, de outubro de 1993 a fevereiro de 1994; e no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, de setembro de 1996 a janeiro de 1997.

OLIVEIRA, Francisco de. Acumulação monopolista, Estado e urbanização: a nova quali-dade do conflito de classes. Em: MOISÉS, José Álvaro et al. Contradições urbanas e movimentos sociais. São Paulo, Cedec/ Paz e Terra, 1977.

______. Os direitos do antivalor. Petrópolis, Vozes, 1998.

HEGEMONIA_miolo.indd 389HEGEMONIA_miolo.indd 389 9/8/10 4:27:46 PM9/8/10 4:27:46 PM

Page 376: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

390 • Hegemonia às avessas

______. Apocalipse now. Em: OLIVEIRA, F.; COMIN, A. Os cavaleiros do antiapocalipse: trabalho e política na indústria automobilística. São Paulo, Entrelinhas/ Cebrap, 1999.

______. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. ______. Há vias abertas para a América Latina? Em: BORON, Atílio (org.). Nova hegemo-

nia mundial. Buenos Aires, Clacso, 2004.______. A dominação globalizada: estrutura e dinâmica da dominação burguesa no Brasil.

Em: BASUALDO, Eduardo; ARCEO, Enrique (orgs.). Neoliberalismo y sectores do-minantes: tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires, Clacso, 2006. p. 265-91.

______. Hegemonia às avessas. Piauí. Rio de Janeiro/ São Paulo, n. 4, jan. 2007.______; RIZEK, Cibele (orgs.). A era da indeterminação. São Paulo, Boitempo, 2007.OSPINA, Hernando C. A mão (quase) invisível de Washington. Le Monde Diplomatique.

Brasil, jul. 2007. Disponível em: <http://diplo.uol.com.br/imprima1726>. Acesso em: 7 ago. 2007.

OSTERMAN, Paul. Securing prosperity: how the American labor market has changed and what to do about it. Princeton, Princeton University Press, 1999.

PANITCH, Leo; LEYS, Colin (orgs.). Socialist Register 2004: o novo desafio imperial. Buenos Aires, Clacso, 2006.

______; ______. Socialist Register 2005: o império reloaded. Buenos Aires, Clacso, 2006. PAOLI, M. C. Os direitos do trabalho e sua justiça: em busca das referências democráticas.

Revista da USP. São Paulo, n. 21, 1994.PAULANI, Leda M. A dança dos capitais. Praga. n. 6, 1998.______. Brasil Delivery. São Paulo, Boitempo, 2008.______; PATO, Christy G. Investimentos e servidão financeira: o Brasil do último quarto

de século. Em: PAULA, J. A. (org.). Adeus ao desenvolvimento. Belo Horizonte, Au-têntica, 2005.

PAYNE, Douglas W. A Latin last hurrah. Society. Nova York, v. 27, n. 2, jan. 1990. p. 41-52.

PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. Org. Aracy A. Amaral. São Paulo, Perspectiva, 1981.

______. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos IV. Org. e apres. Otília Arantes. São Pau-lo, Edusp, 2004.

PEREZ, Carlota. The present wave of technical change: implications for competitive restruc-turing for institucional reform in developing countries. 1989. Mimeografado.

______. Las nuevas tecnologías: una visión de conjunto. 1986, Mimeografado.PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. Em: RAMPINELLI, Waldir J.; OU-

RIQUES, Nildo (orgs.). No fio da navalha: crítica das reformas neoliberais de FHC. São Paulo, Xamã, 1997a. p. 15-38.

______. Imperialism and NGOs in Latin America. Monthly Review. v. 49, n. 7, dez. 1997b. Disponível em: <http://www.monthlyreview.org/1297petr.htm>. Acesso em: 10 ago. 2008.

______. NGOs: in the service of imperialism. Journal of Contemporary Asia. v. 29, n. 4, 1999. p. 429-40. Disponível em: <http://hmb.utoronto.ca/HMB303H/weekly_su-pp/week-12-13/Petras_NGOsImperialism.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2008.

PINON, Pierre. Atlas du Paris Haussmannien: la ville en heritage du Second Empire à nos jours. Paris, Parigramme, 2002.

HEGEMONIA_miolo.indd 390HEGEMONIA_miolo.indd 390 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 377: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 391

POCHMANN, M.; MORETTO, A. Reforma trabalhista: a experiência internacional e o caso brasileiro. Cadernos Adenauer. Rio de Janeiro, Konrad Adenauer Stiftung, ano 3, n. 2.

POLANYI, Karl. The great transformation. Nova York, Farrar & Rinehart, 1944. [Ed. bras.: A grande transformação, Rio de Janeiro, Elsevier Campus, 2000.]

POWELL, Lewis F. Confidential memorandum: attack of American free enterprise system (To: Mr. Eugene b. Sydnor, Jr., chairman, Education Committee, U.S. Chamber of commerce). 23 ago. 1971. Disponível em: <http://www.reclaimdemocracy.org/cor-porate_accountability/powell_memo_lewis.html>. Acesso em: 31 out. 2008.

PRADO, Eleutério da Silva. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São Paulo, Xamã, 2005.

PUBANTZ, Jerry. The US-UN relationship and the promotion of democratic nation-building. Societies Without Borders, v. 2, n. 1, 2007. p. 93-116. Disponível em: <http:// brill.publisher.ingentaconnect.com/content/brill/swb/2007/00000002/00000001/art00007>. Acesso em: 20 ago. 2010.

PUTNAM, Robert. Bowling alone: the collapse and revival of American community. Nova York, Simon & Schuster, 2000.

RAMÍREZ, Hernán. La Fundación Mediterránea y de cómo construir poder: la génesis de un proyecto hegemónico. Córdoba, Ferreyra, 2000.

______. Institutos de estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996. Anos 90. Porto Alegre, v. 13, 2006. p. 179-214. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/6401/3843>. Acesso em: 20 ago. 2010.

REES, E. A. State control in Soviet Russia: the rise and fall of the workers’ and peasants’ ins-pectorate, 1920-1934. Londres, Macmillan, 1987.

RICHTA, Radovan. La civilización en la encrucijada. Cidade do México, Siglo XXI, 1971.

RICOUER, Paul. Freud and philosophy: an essay on interpretation. New Haven, Yale Uni-versity Press, 1970.

RITTERSPORN, Gabor T.; ROLF, Malte; BEHRENDS, Jan C. (orgs.). Sphären von Öffentlichkeit in Gesellschaften sowjetischen Typs: Zwischen partei-staatlicher Selbs-tinszenierung und Gegenwelten. Berna, Peter Lang, 2003.

RIZEK, Cibele. A greve dos petroleiros. Praga. São Paulo, n. 9, 1998.RODRIGUES, L. M. Partidos e sindicatos: ensaios de sociologia política. São Paulo, Ática,

1990.ROLLE, Pierre. Norme et chronométrage dans le salaire au rendement. Cahiers d’Études de

l’Automation et des Sociétés Industrielles. n. 4, 1962. p. 9-38.ROSE, Rob. Minister has a cheek threatening electricity consumption fines. Business Day.

4 jun. 2007. ROSEFIELDE, Steven. Stalinism in post-communist perspective: new evidence on killings,

forced labor and economic growth in the 1930s. Europe-Asia Studies. v. 48, n. 6, set. 1996. p. 959-87.

SANTOS, T. A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.

SCHUMPETER, J. Business cycles: a theoretical, historical and statistical analysis of the capitalist process. Filadélfia, Porcupine Press, 1989.

HEGEMONIA_miolo.indd 391HEGEMONIA_miolo.indd 391 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 378: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

392 • Hegemonia às avessas

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política: 1964-1969. Em: ______. O pai de família e ou-tros estudos. São Paulo, Paz e Terra, 1978. p. 61-92.

SCOTT, James M.; WALTERS, Kelly J. Supporting the wave: Western political founda-tions and the promotion of a global democratic society. Global Society. v. 14, n. 2, 2000. p. 237-57.

SEEKINGS, Jeremy; NATRASS, Nicoli. Class, race and inequality in South Africa. Dur-ban, University of Kwazulu-Natal Press, 2006.

SENNETT, Richard. The corrosion of character: the personal consequences of work in the new capitalism. Nova York, W. W. Norton, 1998.

SHEARER, David R. The language and politics of socialist rationalization: productivity, industrial relations and the social origins of stalinism at the end of NEP. Cahiers du Monde Russe et Soviétique. v. 32, n. 4, out.-dez. 1991. p. 581-608.

SHORT, J. Urban imageneers. In: JONAS, A. E. G.; WILSON, D. (orgs.). The urban growth machine: critical perspectives two decades later. Nova York, State University of New York Press, 1999.

SIEGELBAUM, Lewis H. Soviet norm determination in theory and practice, 1917-1941. Soviet Studies. v. 36, n. 1, 1984. p. 45-68.

SIEGELBAUM, Lewis H. Stakhanovism and the politics of productivity in the USSR (1935-1941). Cambridge, Cambridge University Press, 1988.

SILVER, Beverly J. Forces of Labor: Workers’ Movements and Globalization since 1870. Cam-bridge, UK: Cambridge University Press, 2003. [Ed. bras.: Forças do trabalho: movi-mentos de trabalhadores e globalização desde 1870, São Paulo, Boitempo, 2005.]

SLATER, David. Imperial powers and democratic imaginations. Third World Quarterly. v. 27, n. 8, 2006. p. 1369-86.

SOUTH AFRICA GOVERNMENT INFORMATION. “‘The State of our environment should remain under a watchful eye’ Government release the 2006 Environment Outlook – State of the Environment Report and urges that more work needs to be done”. Disponível em: <http://www.info.gov.za/speeches/2007/07062911151001.htm>. Acesso em: 25 ago. 2010.

SOUZA, M. V. de. Transformações recentes no extremo leste de São Paulo: Itaim Paulista e Cidade Tiradentes. Texto de qualificação de doutoramento apresentado ao progra-ma de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, USP, São Carlos, 2007.

STANDING, Guy. Global labour flexibility: seeking distributive justice. Nova York, St. Martin’s Press, 1999.

TAVARES DE ALMEIDA, M. H. Crise econômica e interesses organizados. São Paulo, Edusp, 1996.

TAYLOR, Frederick W. The principles of scientific management. Nova York, Harper & Bro-thers, 1911.

THE ECONOMIST. Economics focus: Domino theory. 26 fev. 2009.THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa, vol 1: A árvore da liberdade.

Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.URGENSE. Un taylorisme arythmique dans les économies planifiées du centre. Critiques

de l’Économie Politique. n. 19, abr.-jun. 1982. p. 99-146.VAINER, C. Os liberais também fazem planejamento urbano? Em: ARANTES, Otília B.,

MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. O pensamento único das cidades: desman-chando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.

HEGEMONIA_miolo.indd 392HEGEMONIA_miolo.indd 392 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 379: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Bibliografi a • 393

______. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico. Em: ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. O pensamento único das cidades: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000. p. 75-104.

VALLY, Salim; SPREEN, C. A. Education rights, education policy and inequality in Sou-th Africa. International Journal of Educational Development. v. 26, n. 4, 2006.

VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. Em: DEÁK, C.; SCHIFFER, S. (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Pau-lo, Edusp/ Fupam, 1999. p. 169-244.

______. Espaço intraurbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/ Fapesp/ Lilp, 2001.______. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo, 2005. Disponível em: <www.flaviovillaca.

arq.br/livros01.html>. Acesso em: 24 ago. 2010.VALOR Econômico. “Tecnisa compra área de 244 mil m² da Telefônica por R$ 135 mi-

lhões”. São Paulo, 22 jan. 2007.WALLERSTEIN, I. El moderno sistema mundial I: la agricultura capitalista y los orígenes

de la economía-mundo europea en el siglo XVI. Madri, Siglo XXI, 1979.______. El moderno sistema mundial II: el mercantilismo y la consolidación de la econo-

mía-mundo europea (1600-1750). Madri, Siglo XXI, 1984.______. El moderno sistema mundial III: la Segunda era de gran expansión de la econo-

mía-mundo capitalista (1730-1850). Madri, Siglo XXI, 1998.WEBSTER, E.; LAMBERT, R.; BEZUIDENHOUT, A. Grounding globalization: labour

in the age of insecurity. Oxford, Blackwell, 2008.WESTERGAARD-NIELSEN, Niels. Low-wage work in Denmark. Nova York, Russell Sa-

ge Foundation, 2008.WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. Londres, Oxford University Press, 1977.

[Ed. bras.: Marxismo e literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.]______. Politics and letters. Londres, Verso, 1979.______. Base and superstructure in Marxist cultural theory. Em: ______. Problems in ma-

terialism and culture. Londres, Verso, 1980.______. You’re a Marxist, aren’t you? Em: ______. Resources of hope. Londres, Verso, 1989.______; ORROM, Michael. Preface to film. Londres, Film Drama Limited, 1954.WOLF, Erika. When photographs speak, to whom do they talk? The origins and audience

of “SSSR na stroike” (USSR in construction). Left History. v. 6, n. 2, 2000. p. 53-82.

HEGEMONIA_miolo.indd 393HEGEMONIA_miolo.indd 393 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 380: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

SOBRE OS AUTORES

Alvaro Bianchi, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é professor do Departamento de Ciência Política da mesma instituição, diretor do Arquivo Edgard Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social, secretário de redação da revista Outubro e autor, entre outros livros, de O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política (São Paulo, Alameda, 2008).

Arne L. Kalleberg, professor do Departamento de Sociologia da Univer-sidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, é autor de diversos livros na área de sociologia do trabalho, dentre os quais destaca-se The Mismatched Worker (Nova York, W. W. Norton, 2007). Foi presidente da Associação Americana de Sociologia entre 2007 e 2008.

Ary Cesar Minella, doutor em Estudos Latino-Americanos pela Univer-sidade Nacional Autônoma do México, com pós-doutorado no Departa-mento de Ciência Política da Unicamp e no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), é professor titular na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordena o Núcleo de Estudos Socio-políticos do Sistema Financeiro – Nesfi (www.nesfi.ufsc.br) e é autor do livro Banqueiros: organização e poder político no Brasil, além de diversos ar-tigos publicados em periódicos científicos.

Carlos Eduardo Martins, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É um dos organizadores dos livros A América Latina e os desafios da globalização: ensaios dedicados a Ruy

HEGEMONIA_miolo.indd 395HEGEMONIA_miolo.indd 395 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 381: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

396 • Hegemonia às avessas

Mauro Marini (São Paulo, Boitempo, 2009) e Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006).

Carlos Nelson Coutinho, professor de Filosofia da UFRJ, é autor, entre outros livros, de O estruturalismo e a miséria da razão (São Paulo, Expressão Popular, 2010) e Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (São Paulo, Cortez, 2008), tendo participado do volume Lukács e a atualidade do marxismo (São Paulo, Boitempo, 2002).

Cibele Rizek, mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Ca-tólica de São Paulo (PUC-SP), doutora em Sociologia pela USP e livre-do-cente pela mesma instituição, é professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos – USP. Coorganizadora dos livros A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007), Francisco de Oliveira: a tarefa da crítica (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006) e France/Brésil: politiques de la question sociale (Caen, Presses Universitaires de Caen, 2000).

Francisco de Oliveira, professor titular aposentado de Sociologia da USP, é autor de extensa obra, da qual destacamos Noiva da revolução: elegia para uma re(li)gião (São Paulo, Boitempo, 2008), Crítica à razão dualista: o ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003) e Os direitos do antivalor: a econo-mia política da hegemonia imperfeita (Petrópolis, Vozes, 1998).

Gilberto Maringoni, jornalista, cartunista e doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), é autor de A revolução venezuelana (São Paulo, Editora Unesp, 2009), Tocaia e outros quadrinhos (São Paulo, Devir, 2009) e Barão de Mauá: o empreendedor (São Paulo, Aori, 2007), entre outras publicações.

João Sette Whitaker Ferreira, arquiteto-urbanista e economista, é mes-tre em Ciência Política, doutor em Urbanismo e professor de Planejamento Urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde coordena o Laboratório de Habitação e Assenta-mentos Humanos (LabHab). Também leciona na Faculdade de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie e atua como consultor na área de habitação e urbanismo. É autor do livro O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano (Vozes/Unesp/Anpur, 2007).

HEGEMONIA_miolo.indd 396HEGEMONIA_miolo.indd 396 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 382: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

Sobre os autores • 397

José Luís Cabaço, sociólogo moçambicano com textos publicados em Margens da cultura (São Paulo, Boitempo, 2004), Raça como retórica: a cons-trução da diferença (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001), Eleições, democracia e desenvolvimento (Maputo, Elo Gráfico, 1995) e Repensando estratégias sobre Moçambique e África Austral (Maputo, Instituto Superior de Relações Internacionais, 1991). Sua tese de doutorado pela USP foi publi-cada no livro Moçambique: identidades, colonialismo e libertação (Maputo, Marimbique, 2010).

Leda Maria Paulani, economista, professora titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pesquisadora sênior da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), foi presidente da Sociedade Bra-sileira de Economia Política (SEP) de junho de 2004 a junho de 2008. É autora de Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômi-co (São Paulo, Boitempo, 2008) e Modernidade e discurso econômico (São Paulo, Boitempo, 2005).

Leonardo Mello e Silva, mestre em Sociologia pela Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp), doutor em Sociologia pela USP com pós-doutorado pelo Centre Pierre Naville (Université d’Évry, França), é professor no Departamento de Sociologia da USP, autor de Trabalho em grupo e sociabilidade privada (São Paulo, Editora 34, 2004) e coorganizador de Mudanças no trabalho e ação sindical: Brasil e Portugal no contexto da transnacionalização (São Paulo, Cortez, 2005).

Luiz Renato Martins, doutor em Filosofia, na área de Estética, pela USP, é professor de História, Crítica e Teoria da Arte no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da mesma universidade (ECA-USP). Autor dos livros Manet: uma mulher de negócios, um almoço no parque e um bar (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007) e Conflito e interpretação em Fellini: construção da perspectiva do público (São Paulo, Edusp, 1994).

Maria Elisa Cevasco, doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP e professora titular da mesma universidade, publicou vários artigos e capítulos de livros no Brasil e exterior. Autora de Dez lições sobre estudos culturais (São Paulo, Boitempo, 2003), dentre outras publicações, e coorganizadora de Crítica cultural materialista (São Paulo, Humanitas,

HEGEMONIA_miolo.indd 397HEGEMONIA_miolo.indd 397 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 383: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

398 • Hegemonia às avessas

2008) e Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Rober-to Schwarz (São Paulo, Companhia das Letras, 2007).

Patrick Bond, professor de economia política da Universidade de KwaZu-lu-Natal, em Durban, na África do Sul, destacou-se em temas como os movimentos sociais na África do Sul. É autor de Looting Africa: the econo-mics of exploitation (Scottsville, África do Sul/Londres, Zed Books/ Univer-sity of KwaZulu-Natal Press, 2006), entre outros livros e artigos em revistas especializadas.

Pedro Fiori Arantes, arquiteto e urbanista, doutor pela FAU-USP e pro-fessor de História da Arte e Arquitetura Contemporânea na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é coordenador da Usina, coletivo de asses-soria técnica a movimentos populares em projetos de moradia e urbaniza-ção (http://www.usinactah.org.br). Autor do livro Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões (São Paulo, Editora 34, 2002).

Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: mo-dernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003).

Wolfgang Leo Maar, doutor em Filosofia pela USP, com pós-doutorado pela Universität Kassel, é professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor de O que é política (São Paulo, Brasiliense, 1994) e organizador de O público e o privado: o poder e o saber (Rio de Janeiro, Marco Zero, 1984).

Yves Cohen, conhecido como um dos mais destacados historiadores do taylorismo francês, é professor da Escola de Altos Estudos em Ciências So-ciais (EHESS) de Paris e especialista em História do Trabalho, com pesqui-sas realizadas na Alemanha, nos Estados Unidos e nos arquivos da ex-União Soviética. Dentre seus diversos trabalhos publicados, cabe realçar o livro Organiser à l’aube du taylorisme: la pratique d’Ernest Mattern chez Peugeot, 1906-1919 (Besançon, Presses Universitaires Franc-Comtoises, 2001).

HEGEMONIA_miolo.indd 398HEGEMONIA_miolo.indd 398 9/8/10 4:27:47 PM9/8/10 4:27:47 PM

Page 384: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

E-BOOKS DA BOITEMPO EDITORIAL

& ENSAIOS

A educação para além do capital * formato PDFIstván Mészáros

A era da indeterminação * formato PDFFrancisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.)

Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917 * formato ePubSlavoj Žižek

Bem-vindo ao deserto do Real! (versão ilustrada) * formato ePubSlavoj Žižek

Cinismo e falência da crítica * formato PDFVladimir Safatle

Crítica à razão dualista/O ornitorrinco * formato PDFFrancisco de Oliveira

Extinção * formato PDFPaulo Arantes

Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira * formato PDFFrancisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek (orgs.)

Lacrimae rerum: ensaios de cinema moderno * formato PDFSlavoj Žižek

O que resta da ditadura: a exceção brasileira * formato PDFEdson Teles e Vladimir Safatle (orgs.)

O tempo e o cão: a atualidade das depressões * formato PDFMaria Rita Kehl

Planeta favela * formato PDFMike Davis

Primeiro como tragédia, depois como farsa * formato PDFSlavoj Žižek

Profanações * formato PDFGiorgio Agamben

Videologias: ensaios sobre televisão * formato PDFEugênio Bucci e Maria Rita Kehl

Page 385: HEGEMONIA ÀS AVESSASppgss.ufsc.br/files/2015/10/Francisco-de-Oliveira-Ruy-Braga-Cibele... · Oriente socialista e o Ocidente capitalista ... CIDADE E SERVIDÃO ... AMÉRICA LATINA

& COLEÇÃO MARX-ENGELS EM EBOOK

A guerra civil na França * formato PDFKarl Marx

A ideologia alemã * formato PDFKarl Marx e Friedrich Engels

A sagrada família * formato PDFKarl Marx e Friedrich Engels

A situação da classe trabalhadora na Inglaterra * formato PDFFriedrich Engels

Crítica da filosofia do direito de Hegel * formato PDFKarl Marx

Lutas de classes na Alemanha * formato PDFKarl Marx e Friedrich Engels

Manifesto Comunista * formato PDFKarl Marx e Friedrich Engels

Manuscritos econômico-filosóficos * formato PDFKarl Marx

O 18 de brumário de Luís Bonaparte * formato PDFKarl Marx

Sobre a questão judaica * formato PDFKarl Marx

Sobre o suicídio * formato PDFKarl Marx