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    INVESTIMENTOS E SERVIDO FINANCEIRA: O BRASIL DO LTIMOQUARTO DE SCULO1

    Leda Maria Paulani*Christy Ganzert Pato**

    1. De mquinas e dlares

    Um dos sinais mais contundentes do declnio sofrido pela economia brasileira

    nos ltimos 25 anos a trajetria claramente descendente experimentada pela Formao

    Bruta de Capital Fixo2 medida como proporo do PIB (FBKF/PIB).3 Tendo alcanado

    cifras da ordem de 25% em meados dos anos 70, essa razo agora mal chega, quando

    muito, a 14%.

    Observar o comportamento dessa varivel tambm ilustrativo para desfazer

    alguns mitos, como o de que a dcada de 1980 teria sido a dcada perdida. Ao longo dos

    anos de 1980, a FBKF/PIB da economia brasileira foi em mdia de 18,55%. Ainda que

    muito inferior se comparada performance da dcada de 1970 (mdia de 23,10%), essa

    taxa muito mais substantiva do que a observada na dcada de 1990 (15,05%). Depois

    da debacle do Real forte (1999), essa razo caiu ainda mais: a mdia do perodo 2000-

    2004, incluindo este ltimo ano, cai para 14,07% e a mdia do ltimo trinio (2002-2004)

    para 13,60%. E se tomarmos o perodo 1995-2004, que poderamos chamar de a mais

    neoliberal das dcadas, o resultado 14,80%. O mesmo perodo dividido entre seus

    diferentes reinados produz o seguinte: 15,72% para o primeiro reinado de FHC, 14,55%

    para o segundo e 13,47% sob a batuta de Lula-Palocci.

    No tambm demais notar que, ao longo dos confusos anos de 1960

    (inflao em disparada, renncia presidencial, recesso, crise poltica, golpe militar), essa

    mesma varivel atingiu a mdia de 17,81% e que mesmo excluindo dessa dcada o

    comeo do milagre econmico e considerando, portanto, apenas seus conturbados cinco

    primeiros anos (1960-1964), essa mdia , ainda assim, maior (16,21%) do que aobservada na dcada neoliberal (quando, em princpio, estaramos obtendo nosso

    passaporte para o admirvel mundo novo da globalizao) e do que a dos primeiros anos

    1 O presente artigo foi publicado originalmente no livro organizado por Joo Antonio de Paula, Adeus aoDesenvolvimento, publicado pela editora Autntica, de Belo Horizonte, em 2005.* Professora Livre-Docente do Departamento de Economia da FEA/USP e Presidente da SociedadeBrasileira de Economia Poltica (SEP).** Mestre em Cincia Poltica (USP), doutorando em Filosofia (USP), professor do Departamento deEconomia da PUC-SP e Secretrio Geral da Sociedade Brasileira de Economia Poltica (SEP).2 Aos no economistas talvez caiba esclarecer que formao bruta de capital fixo o valor total dosinvestimentos brutos (sem deduzir o uso devido depreciao e obsolescncia) em capital fixo (mquinas eequipamentos, estruturas e edificaes, rebanhos e culturas permanentes) realizados pelas empresaspblicas e privadas no ano. O valor indica o aumento bruto da capacidade produtiva do Pas.3O dados aqui utilizados derivam das sries de PIB e FBKF trazidos a preos constantes de 1980 pelodeflator implcito do PIB, tal como se encontra em: http://www.ipeadata.gov.br/.

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    deste novo sculo (quando estaramos, sob o comando do governo do PT, consolidando

    os fundamentos de nossa economia).

    Grfico 1Formao Bruta de Capital Fixo / PIB (%)*

    1947-2004 (anual)

    0,00%

    5,00%

    10,00%

    15,00%

    20,00%

    25,00%

    30,00%

    1947

    1950

    1953

    1956

    1959

    1962

    1965

    1968

    1971

    1974

    1977

    1980

    1983

    1986

    1989

    1992

    1995

    1998

    2001

    2004

    Fonte de dados primrios: IBGE/SCN e IPEADATA.(*)a preos constantes de 1980.

    Grfico 2Formao Bruta de Capital Fixo / PIB (%)*Dcadas de 1950 a 2000

    (mdia das % anuais de cada dcada)**

    0,00%

    5,00%

    10,00%

    15,00%

    20,00%

    25,00%

    1950 1960 1970 1980 1990 2000

    Fonte de dados primrios: IBGE/SCN e IPEADATA.(*)a preos constantes de 1980 (**)para os anos 2000 foram computadas apenas as mdias de 2000 a 2004.

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    A anmica formao de estoque de riqueza na economia brasileira,

    principalmente a partir dos anos de 1990, tem como uma de suas conseqncias funestas

    a incapacidade de crescer do pas, uma vez que no so criadas, a cada ano, as

    condies para a produo de um fluxo futuro aumentado de bens e servios. Da o

    declnio do PIB e do PIB per capitapercebido ao longo do mesmo perodo.4

    Grfico 3Variao Real Anual do PIB e do PIB per capita(%a.a.)

    1948-2004

    -10,00%

    -5,00%

    0,00%

    5,00%

    10,00%

    15,00%

    1948

    1950

    1952

    1954

    1956

    1958

    1960

    1962

    1964

    1966

    1968

    1970

    1972

    1974

    1976

    1978

    1980

    1982

    1984

    1986

    1988

    1990

    1992

    1994

    1996

    1998

    2000

    2002

    2004

    PIB Var. Real Anual (%a.a.) PIB per capita Var. Real Anual (%a.a.)

    Fonte de dados primrios: IBGE/SCN e IPEADATA.

    Da mesma maneira que ocorre com os dados da FBKF/PIB, tambm aqui os

    dados por dcada desmentem a idia de que teriam sido os anos de 1980 aqueles que

    protagonizaram a dcada perdida. Se tomarmos o crescimento real acumulado do PIB

    ao longo de cada dcada, teremos os seguintes resultados:

    Quadro 1 - Cresc. real acumulado do PIB PIBcrescimento acumulado aolongo da dcada (%)

    PIB per capitacrescimento acumulado aolongo da dcada (%)Dcada*

    1950 99,03 47,87

    1960 80,33 35,51

    1970 131,26 76,17

    1980 33,47 10,13

    1990 19,04 1,57

    Fonte de dados primrios: IBGE/SCN e IPEADATA.

    (*) considera-se dcada o perodo que vai do ano zero ao ano 9

    4Os dados a partir dos quais foram gerados os grficos e cuja fonte original o IBGE (IBGE/SCN) esto emhttp://www.ipeadata.gov.br e http://www.ibge.gov.br.

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    Grfico 4PIB e PIB per capita- crescimento real acumulado ao longo da dcada (%)

    Dcadas de 1950 a 2000*

    0,00%

    20,00%

    40,00%

    60,00%

    80,00%

    100,00%

    120,00%

    140,00%

    1950 1960 1970 1980 1990 2000

    PIB - crescimento real acumulado PIB per capita - crescimento real acumulado

    Fonte de dados primrios: IBGE/SCN e IPEADATA.*para os anos 2000 foram computadas apenas as mdias de 2000 a 2004.

    Como se percebe, os anos de 1980 saem-se muito melhor do que os dez anos

    seguintes, tanto em termos de crescimento do PIB quanto em termos do PIB per capita.

    No caso deste ltimo, alis, o resultado realmente assombroso: os mandatrios dapoltica econmica conseguiram a proeza de fazer o pas crescer per capita, ao longo de

    toda uma dcada, irrisrio 1,57%. Com a escolha do caminho neoliberal, os 15 anos que

    vo de 1990 a 2004 acumularam um crescimento per capitado PIB de 7,33%, ou seja, em

    15 anos o pas conseguiu crescer menos do que nos 10 anos da dcada perdida.

    Mas tomemos agora uma outra srie de dados. Entre o incio de 1975 e o final

    de 2004, as despesas anuais do pas com servios de fatores de produo (lucros e

    dividendos de investimentos diretos e juros de emprstimos intercompanhia; lucros,dividendos e juros de investimentos em carteira; e juros de emprstimos convencionais)

    cresceram 1.085% (passaram de US$ 2 bilhes para US$ 23,7 bilhes), enquanto que, no

    mesmo perodo, o PIB cresceu 129% e o PIB per capita42%. Assim, enquanto o envio

    de renda ao exterior cresceu nesse perodo 10,9 vezes, o PIB cresceu 1,3 vezes e o PIB

    per capitaapenas 0,4 vez.

    Observando com mais detalhes esses dados, percebemos que, do ponto de

    vista de sua composio, essa despesa se altera com o passar do tempo. Os juros de

    emprstimos convencionais marcam os anos de 1980 e so os responsveis pelo

    surgimento da chamada crise da dvida. A partir de meados dos anos de 1990, um outro

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    componente comea a ganhar importncia. So as despesas derivadas de investimentos

    diretos, basicamente lucros e dividendos decorrentes da internacionalizao dos ativos

    produtivos derivada das privatizaes. Nestes primeiros anos do sculo XXI, graas

    crescente internacionalizao do mercado financeiro e ao crescimento de importncia do

    mercado de bnus (ttulos da dvida pblica brasileira cotados nos mercados

    internacionais), vm se elevando as despesas decorrentes de investimentos em carteira,

    as quais constituem hoje a parcela mais importante desses gastos.

    Independentemente de sua composio, o fato que o crescimento dessas

    despesas assusta pela velocidade e pela magnitude j assumida, como se percebe nos

    grficos 5 e 6. Pode-se tambm perceber, pelo grfico 6, como essas despesas vo

    saltando de patamar. De 1947 at o final dos anos de 1970 elas ficam na faixa entre

    US$ 0,5 e 5,0 bi. Nos dois ltimos anos dessa dcada transitam pela faixa de US$ 5 a

    US$ 10 e alcanam em 1981 a faixa dos US$ 10 a US$ 15 bi, onde permanecem nos 15anos seguintes. Entre 1995 e 1996 transitam pela faixa dos US$ 15 a US$ 20 e desde

    1997 encontram-se na faixa dos US$ 20 a 25 bilhes.

    Grfico 5Rendas de InvestimentosDespesas (US$ milhes)

    1947-2004

    -$25.000,00

    -$20.000,00

    -$15.000,00

    -$10.000,00

    -$5.000,00

    $0,00

    1947

    1950

    1953

    1956

    1959

    1962

    1965

    1968

    1971

    1974

    1977

    1980

    1983

    1986

    1989

    1992

    1995

    1998

    2001

    2004

    Servios e Rendas - Rendas - Despesas - Anual - US$(milhes)

    Renda de Investimento Direto - Despesa- US$(milhes)

    Renda de Investimento em Carteira - Despesa - US$(milhes)

    Renda de outros investimentos (juros) - Despesa - US$(milhes)

    Fonte de dados primrios: BACEN/BP.

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    Grfico 6Servios e Rendas Rendas

    (investimento direto + investimento em carteira + juros de outros investimentos + salrios e ordenados)Despesas (US$ milhes)

    1947-2004

    -$25.000,00

    -$20.000,00

    -$15.000,00

    -$10.000,00

    -$5.000,00

    $0,00

    1947

    1950

    1953

    1956

    1959

    1962

    1965

    1968

    1971

    1974

    1977

    1980

    1983

    1986

    1989

    1992

    1995

    1998

    2001

    2004

    Fonte de dados primrios: BACEN/BP.

    Esses dados e figuras mostram de uma forma mais organizada aquilo que j

    conhecido h algum tempo: a partir dos anos 80, as economias hoje ditas emergentes

    passaram de importadoras a exportadoras lquidas de capital. No caso do Brasil temos

    ento, de um lado, o declnio indiscutvel da capacidade da economia brasileira de formar

    capital, dificuldade que comea no incio dos anos de 1980 e no pra de crescer desde

    ento e, de outro, temos, no mesmo perodo, um crescimento tambm indiscutvel e

    bastante acelerado das despesas com rendas de investimento (ou pagamento de servios

    de fatores de produo). Exporta-se crescentemente capital, por um lado, enquanto, por

    outro, produz-se internamente cada vez menos capital.E antes que se diga que estamos comparando bananas com laranjas

    (mquinas e construo civil com dlares) preciso lembrar que, no caso de uma

    economia sem moeda forte como a brasileira, as divisas funcionam to-somente como

    capital, j que no constituem correntemente medida de valor e padro de preos, nem

    funcionam internamente como meio de troca. Concretamente isto significa que a

    importao de mquinas e equipamentos mais sofisticados e/ou de tecnologia (ambos

    elementos indispensveis na periferia do sistema capitalista para uma formao bruta decapital fixo mais vigorosa) potencialmente tanto maior quanto menores forem as

    despesas com pagamentos de renda a proprietrios de fatores no residentes.

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    Isto tudo parece indicar que se altera em alguma medida a natureza da relao

    que prende o capitalismo perifrico brasileiro (e talvez latino-americano) ao centro do

    sistema. Retomemos ento essa questo.

    2. De dependncia e servido

    Embora a natureza da relao centro-periferia de fato tenha sofrido

    transformaes substanciais ao longo do tempo, o signo da dependncia ainda , em

    verdade, a imagem recorrente em toda a histria latino-americana. No caso especfico do

    Brasil, certa vez Paul Singer vez algumas provocaes a respeito dessa nossa linhagem

    submissa, dentro da qual nunca teramos sado da condio de dependncia. Em sua

    acepo, nossa linhagem dependente apenas teria mudado de forma, passando de umainicial dependncia consentida para uma dependncia tolerada e, em seguida, para a

    atual dependncia desejada.5

    Aquela por ele denominada de fase de dependncia consentida (1822-1914)

    compreenderia o perodo no qual inexistiu qualquer dinmica interna capaz de impulsionar

    o desenvolvimento. Um perodo no qual, mesmo nos momentos em que o pas entrava

    em confronto direto com os pases adiantados, a relao de dependncia jamais era

    questionada. Aos olhos de ento no havia alternativas ao desenvolvimento seno pela

    crescente insero subordinada no mercado mundial. A dependncia no era sentida

    nem ressentida como uma forma de subordinao, mas como um estgio pelo qual todos

    os retardatrios tinham que passar,6 viso essa que, graas a figuras como Walt

    Rostow,7perdurou em boa parte do sculo XX.

    J no perodo marcado, segundo Singer, pela chamada dependncia tolerada

    (1914-1973), ns, e todos os demais chamados pases em desenvolvimento, passramos

    a depender dos pases centrais para a obteno de equipamentos, tecnologia,

    componentes e recursos de capital em larga escala. Assistindo entrada de fatores que

    propiciavam uma dinamizao interna da economia, a subordinao em questo era vista,

    pela nova classe dominante, como essencialmente provisria, algo que poderia ser

    superado to logo a industrializao nos emparelhasse com os pases mais adiantados.

    E, finalmente, de 1973 at hoje, viveramos sob a chamada dependncia

    desejada, onde os governos de todos os pases, sem exceo, passaram a depender

    5Provocaes feitas em um debate promovido pelo Instituto de Estudos Avanados da USP sobre a Teoriada Dependncia; v. SINGER, 1998.6SINGER, 1998, p.120.7 Walt Whitman Rostow, que antecedeu Henry Kissinger, Colin Powell e Condoleezza Rice comoConselheiro Nacional de Segurana dos EUA, continuou ativo academicamente at pouco antes de suamorte, em 2003, exatos 43 anos aps o barulho produzido por seu The Stages of Economic Growth.

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    crescentemente do fluxo de capitais financeiros. Um perodo no qual a Amrica Latina, ao

    longo da dcada de 80, assistiu ao abandono do desenvolvimentismo, abertura do

    mercado interno s importaes e entrada incondicional dos capitais estrangeiros. Em

    suma, estaramos assistindo, numa outra clave, a um retorno dependncia consentida,

    pois mais uma vez instaurara-se o consenso de que o processo em curso inexorvel e

    de que todos devem a ele se adaptar se quiserem desfrutar das possibilidades de

    desenvolvimento. como se os 30 anos de desglobalizao [1914-1945], somados aos

    30 anos dourados [1945-1973], no passassem de um parntese, que a restaurao da

    normalidade, na forma de hegemonia do grande capital privado sobre a economia

    capitalista, poderia fechar.8

    claro que tal classificao muito mais uma provocao do que fruto de um

    processo rigoroso de anlise. Mas nem por isso a idia central dessa digresso faz

    menos sentido. Afinal, que estrutura de relao interestatal essa em que todosaquiescem ao mesmo receiturio econmico, ainda que continuem no recebendo as

    prometidas benesses? Que estrutura essa em que mesmo as mais promissoras

    estatsticas da dcada de 1970 jamais entregaram o que prometeram?

    E, de fato, por um bom tempo acreditou-se na promessa desses nmeros.

    ramos dependentes, sim, subordinados, por certo, mas assistamos a taxas de

    crescimento jamais vistas na histria da economia de nosso pas. Da a crena numa

    espcie de novo crculo virtuoso da acumulao capitalista, onde, mesmo dependentes,poderamos, se aplicadas as polticas corretas, assistir ao desenvolvimento da periferia

    rumo a um patamar no qual, dentro em breve, no haveria mais distines, pois todos

    teramos lugar garantido no Novo Renascimento.9 Tal era, de fato, o cerne do

    desdobramento lgico do modelo de desenvolvimento dependente e associado, formulado

    por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto e radicalizado pelo primeiro.10Contra o

    diagnstico corrente das teorias do imperialismo e da acumulao capitalista, Fernando

    Henrique demonstrara que a nova fase de expanso do capital poderia, sim, levar

    industrializao e ao desenvolvimento da periferia do sistema.

    Embora os nmeros apresentados na primeira parte deste artigo j

    desmontem, por si ss, o idlio desse diagnstico, justia seja feita, na dcada de 1960

    Fernando Henrique fora um dos poucos a vislumbrar os fundamentos da nova estrutura

    de dependncia que se forjara e que, contraditoriamente, propiciaria as estatsticas

    assombrosamente positivas da dcada subseqente.

    8SINGER, 1998, p.126.9Fernando Henrique Cardoso, j como presidente, em verso realpolitik(sic); v. CARDOSO,1995b.10A discusso mais detalhada desse desdobramento lgico foi desenvolvida por Christy Pato; v. PATO,2003.

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    Em sua tese de livre-docncia, de 1963,11ele j esboara os contornos dessa

    nova estrutura do sistema capitalista e seus arranjos internos peculiares s economias

    nacionais. Pesquisando a ideologia e a nova face do empresariado brasileiro, percebera

    que h muito ele j no se encaixava na estratgia da marcha para o desenvolvimento,

    calcada na aliana entre a burguesia nacional, o trabalhador, e o Estado, todos unidos

    frente ao capital internacional. Aprofundado em 1971,12num trabalho publicado logo aps

    o estardalhao de sua obra escrita com Enzo Falleto13 e onde ele procurava deslindar

    tambm as caractersticas do empresariado argentino, Fernando Henrique j percebera

    novos padres de relao entre as empresas industriais nacionais e o mercado

    internacional. A esse fenmeno ele deu o nome de internacionalizao do mercado

    interno, uma espcie de estrutura bsica das situaes de dependncia que antevia,

    em muitos aspectos, a configurao mundial que se daria, dcadas depois, sob o rtulo

    de globalizao.Nessa nova realidade, que parece uma banalidade aos olhos de hoje mas que,

    de fato, no era evidente nos anos de 1950 ou de 1960, observava-se que quanto mais

    moderno era o setor, tanto mais forte eram seus vnculos com o exterior. Contrariamente,

    quanto mais atrasado o setor, tanto mais fracas essas relaes, donde se desdobrava

    outro aparente trusmo, tambm comprovado por FHC em suas pesquisas: quanto mais

    vinculados ao exterior, menos favorveis eram os empresrios s alianas com o

    operariado, e vice-versa.Dessa forma, Fernando Henrique demonstrara que j no existia, na dcada de

    1970, uma burguesia nacional disposta a aliar-se com os chamados setores populares,

    sendo que os nicos setores ainda alinhados a esse nacional-populismo seriam aqueles

    que no tinham se reorganizado frente s transformaes em curso. Em outras palavras,

    por no terem vocao poltica hegemnica, as burguesias industriais dos pases

    dependentes no seriam a mola impulsora do processo de emancipao nacional, tal

    como preconizado por muitos tericos ansiosos pela chegada das revolues burguesas

    periferia do sistema.14

    Assim, a anlise dos empresrios ligados ao capital externo permitira a

    concluso sobre a existncia de articulaes entre os grupos sociais que, em seu

    comportamento concreto, ligavam de fato a esfera econmica poltica. A chamada

    dependncia mostrava-se assim no apenas como uma simples varivel externa, mas

    como a expresso interna do prprio capital, como um tipo especfico de relao entre as

    classes e grupos que implicava uma situao de domnio que mantinha estruturalmente a

    11V. CARDOSO, 1972 [1963].12V. CARDOSO, 1971.13V. CARDOSO; FALLETO, 1981 [1969].14CARDOSO, 1971, p.197.

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    vinculao econmica com o exterior. E, no entanto, a nova face desse sistema, a

    internacionalizao do mercado interno nos pases perifricos, abrira a possibilidade

    estrutural para a compatibilidade entre dependncia poltica e desenvolvimento

    econmico,15 invalidando assim a crena de que o desenvolvimento s seria possvel

    atravs de uma aliana entre empresa nacional e Estado que enfrentasse o poderio do

    grande capital multinacional.

    Fernando Henrique por certo no previu que a dcada de 1970, no Brasil,

    assistiria a uma variao real do PIB de 131,26% e a uma variao real do PIB per capita

    de 76,17%. Tampouco apoiou, por isso, o governo militar. Mas identificou justamente o

    surgimento desse novo arranjo, no qual o regime capitalista produzia vnculos entre o

    capital externo e a estrutura interna dos pases da periferia, conduzindo-os a uma

    reorganizao administrativa, tecnolgica e financeira, que implicava a reordenao das

    formas de controle social e poltico.16No caso especfico do Brasil e de alguns pases daAmrica Latina, a reorganizao do Estado atravs da reorganizao do prprio regime

    poltico deu-se de forma a permitir uma centralizao autoritria, necessria

    consolidao do modo capitalista de produo nas economias dependentes. Assim, os

    sedutores nmeros da dcada de 1970 pareciam confirmar o diagnstico inicial sobre o

    surgimento de uma nova etapa de desenvolvimento, na qual se articulavam a economia

    do setor pblico, as empresas monopolistas internacionais e o setor capitalista moderno

    local, naquilo que ele chamou de trip do desenvolvimento-associado.17

    Contudo,quando inseridos no contexto de uma srie mais longa, tais nmeros, ao no se

    sustentarem por muito tempo, indicam no o surgimento de uma nova etapa de

    desenvolvimento algo que no pode ser confundido com industrializao mas a

    emergncia de uma nova configurao do prprio capital, onde a industrializao da

    periferia tornara-se necessria para a nova plataforma de valorizao que comeava a

    surgir e que, de incio, necessitava da internacionalizao da prpria produo, embora

    prescindisse de seu desenvolvimento posterior.

    Mas antes de dar nome aos bois, lembremos, acerca de um dos pilares

    necessrios gnese desse fenmeno, o Investimento Externo Direto (IED), o Projeto

    Harvard sobre a Empresa Multinacional um estudo em larga escala desenvolvido de

    1965 at o incio da dcada de 1970, e cujo coordenador geral era Raymond Vernon. O

    mote inicial do estudo era que, [...] de uma hora para outra, parece que os estados

    soberanos comearam a sentir-se destitudos,18 demonstrando-se a partir da que o

    agente principal dessa transformao era a empresa multinacional. As perguntas ento na

    15CARDOSO, 1971, p. 198-199.16CARDOSO; FALLETO, 1981 [1969], p. 128.17CARDOSO, 1995a, p.107.18VERNON, 1978 [1971], p. 1.

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    ordem do dia relacionavam-se nova configurao de poder que esse agente estava

    produzindo, uma vez que uma empresa como a GM tinha vendas anuais em torno de 25

    bilhes de dlares, montante superior, poca, ao PNB de nada menos que 130 pases.

    No diagnstico de Vernon, em 1967 e 1968, 561 matrizes eram responsveis

    por 90% do investimento direto americano no exterior,19mas para os critrios do estudo

    foram consideradas apenas 187 empresas como aptas a receberem o rtulo de empresas

    multinacionais. Estas 187 compreendiam no s as empresas manufatureiras mais

    conhecidas, com importantes investimentos no exterior, como tambm todas as principais

    empresas americanas produtoras de matrias-primas. Ressalte-se ainda que dentre o

    grupo das 500 maiores, da revista Fortune, 180 eram responsveis por mais de duas mil

    das 2,5 mil subsidirias estrangeiras de todo o grupo de empresas da lista.

    Em 1965, uma pesquisa feita pelo Departamento de Comrcio americano,

    abrangendo 264 matrizes americanas e suas subsidirias estrangeiras, mostrou que estasempresas foram responsveis por cerca de metade de todas as exportaes americanas

    de bens manufaturados, sendo que as transaes entre matrizes e filiais representavam

    cerca de um tero desse montante.20

    Em face desses dados o autor da pesquisa no tinha dvidas sobre a

    importncia das multinacionais para a economia dos EUA, mas perguntava-se qual seria

    a importncia dos interesses estrangeiros dessas empresas para as economias dos

    outros pases em que atuavam. E, nesse caso, a rubrica outros pases compreendia noapenas a periferia do sistema, mas tambm o prprio centro. Lembre-se, por exemplo,

    que na dcada de 1960 as empresas americanas controlavam 100% da industria de

    rolamentos e a maior parte da industria de equipamentos eltricos pesados na Itlia.

    Controlavam ainda mais de 75% da produo de grafita e 40% do ramo de computadores

    na Gr-Bretanha, alm de responderem por mais de 90% da produo de grafita, mais de

    40% da industria de equipamento telegrfico e telefnico e mais de 35% da produo de

    tratores e mquinas agrcolas da prpria Frana!21

    No toa a dcada de 1970 cunhara um novo termo para as relaes

    interestatais. A moda de ento era o termo interdependncia. Ns crescemos porque

    nossa economia depende de vocs, e a sua economia cresce porque depende da relao

    com a nossa. Um neologismo barato para o mesmo fenmeno que Fernando Henrique

    antecipara, embora no de forma to simplista e idlica.22

    19VERNON, 1978 [1971], p. 23, nota 1.20VERNON, 1978 [1971], p. 12.21VERNON, 1978 [1971], p. 20.22A verso ufanista, do Novo Renascimento, viria somente anos mais tarde, eliminando de vez a j inicialfalta de negatividade contida na idia de desenvolvimento dependente.

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    Com efeito, se atentarmos para os resultados da balana de pagamentos dos

    pases envolvidos, veremos que eles pesavam muito mais na conta da periferia do que na

    dos pases centrais. Em verdade, de 1960 a 1968, aproximadamente US$ 1 bi em novos

    recursos era transferido anualmente s subsidirias americanas em pases menos

    desenvolvidos. Mas, em contrapartida, US$ 2,5 bi eram remetidos anualmente, sob a

    forma de lucros e dividendos, apenas s matrizes americanas,23 sendo que o Brasil

    respondeu, ao longo da dcada de 1970, por uma remessa anual mdia de US$ 314 mi,

    relativos apenas a despesas de lucros e dividendos de investimentos diretos. Esses

    nmeros saltaram para mdias anuais de US$ 969 mi, US$ 2.589 mi e US$ 4.477 mi, nas

    dcadas de 1980, 1990, e nos anos de 2000 a 2004, respectivamente. Em termos

    relativos ao PIB, tais remessas apresentaram, nos mesmos perodos citados (dcadas de

    60, 70, 80, 90 e os primeiros 5 anos de 2000) mdias anuais de 0,14%, 0,25%, 0,36%,

    0,42% e 0,85%, respectivamente.24E, no entanto, a aparente sinergia que se configurarana relao de dependncia apresentada na dcada de 1970, quando obtivramos nossos

    melhores perfis estatsticos, no acompanhou o aumento desses indicadores de nossa

    suposta interdependncia virtuosa. De fato, passado o surto de industrializao

    perifrica decorrente da internacionalizao da produo calcada na multinacional,25 o

    processo retoma, na dcada de 1990, seu curso normal de concentrao e centralizao

    na aplicao de recursos produtivos. Seno vejamos:26

    de 1986 a 1990, as exportaes mundiais cresceram mdia anual de 14,3% eo fluxo de investimento direto estrangeiro mdia de 24,7%. Entre 1991 e 1993

    esse crescimento foi em mdia de 3,8% e 12,7% respectivamente, enquanto

    em 1995 foi de 18% e 40%;

    em 1995, 92% do estoque total de investimento direto estrangeiro, medido pela

    sada, originara-se dos pases desenvolvidos, mas 73% desse mesmo estoque,

    medido pelo ingresso, encontrava-se nos mesmos pases desenvolvidos;

    cerca de 90% das sedes das empresas transnacionais estavam localizadas empases desenvolvidos, enquanto 40% das subsidirias encontravam-se em

    pases em desenvolvimento;

    90% do crescimento do investimento direto estrangeiro observado de 1994 a

    1995 correspondeu a investimentos em pases desenvolvidos;

    23VERNON, 1978 [1971], p. 186-187.24Nmeros calculados a partir do Balano de Pagamentos do Brasil, disponvel em http://www.bcb.gov.br/.25 Multinacional esta que progressivamente assume seu verdadeiro interesse aptrida, tornando-setransnacional.26Os dados a seguir enumerados provm de: UNCTAD. World Investment Report, 1991 a 1996.

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    EUA, Alemanha, Reino Unido, Japo e Frana responderam por cerca de dois

    teros das sadas de investimento direto estrangeiro em 1995.27

    Ora, se ao fim e ao cabo a tnica continua sendo a da concentrao do fluxo

    de investimentos entre os pases centrais a trade, como prefere Chesnais28 onde

    entramos ns, a periferia, nesse processo? Assim, se nas dcadas de 1940 e 1950 Caio

    Prado Jr. e Celso Furtado se perguntavam sobre o sentido da colonizao, cabe-nos

    agora indagar sobre qual o sentido da industrializao. Havamos deixado em suspenso a

    afirmao de que a industrializao da periferia era absolutamente necessria nova

    plataforma de valorizao que comeava a surgir. Retomemos ento o fio da meada que

    leva a essa nova plataforma: a esfera financeira.

    Ainda que parcela considervel e crescente das transaes financeiras no

    tenha nenhuma contrapartida no nvel real da economia, a esfera financeira alimenta-se

    da riqueza criada pelo investimento na produo e pela mobilizao de nova fora detrabalho. O descolamento entre essas instncias, a gradativa reconstituio de uma

    massa de capitais procurando valorizar-se de forma exclusivamente financeira, como

    capital de emprstimo, s pode ser compreendida levando-se em conta as crescentes

    dificuldades de valorizao do prprio capital investido na produo. Em termos

    histricos, os lucros no repatriados, mas tambm no reinvestidos na produo, e

    depositados no setor off-shore, em Londres, deram ao mercado de eurodlares sua

    arrancada bem antes do choque do petrleo. Assim, os crditos concedidos aos pasesem desenvolvimento criaram o primeiro processo, no perodo contemporneo, de

    transferncia de riquezas em larga escala. E as sucessivas transferncias para as

    instituies financeiras dos pases capitalistas avanados, dos juros devidos pela

    obteno de crditos bancrios dos consrcios desses pases, fizeram com que a esfera

    financeira se consolidasse ainda mais.29

    A industrializao da periferia, portanto, responde ao mesmo tempo aos

    anseios de um capital que buscava novas praas de investimento produtivo, em funodas crescentes dificuldades de valorizao observadas no centro do sistema, e aos

    anseios de uma esfera financeira em vias de expanso e autonomizao, e que exigia,

    portanto, no s a expanso dessas praas afinal, a prpria moeda fiduciria envolvida

    no fluxo de renda de investimentos diretos , em si, uma forma de capital fictcio30 mas,

    principalmente, a canalizao de seus fluxos para os mecanismos de valorizao que ela

    27 Talvez no seja demais lembrar que, das 373 mudanas legislativas observadas em vrios pasesmonitorados pela UNCTAD no perodo de 1991 a 1994 e relativas aos regimes nacionais para investimentoestrangeiro, apenas cinco no foram no sentido de maior liberalizao e desregulamentao.28 A trade de que fala Chesnais, e na qual se concentra o fluxo de IED, formada por Europa, EUA eJapo; v. CHESNAIS, 1996.29CHESNAIS, 1998, p.15-17.30V. GUTTMANN, 1998.

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    prpria comeara a criar. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a vinda do capital

    produtivo para a periferia dava uma sobrevida ao processo de acumulao estritamente

    produtivo, que perdera o flego aps o esgotamento das possibilidades abertas pela

    reconstruo do ps-guerra, j se preparavam as condies para a dominncia financeira

    que advinha.

    Na primeira etapa do advento dessa dominncia, nos anos de 1970, a periferia

    aparece como a demanda que faltava, num mundo em crise aberta depois do choque do

    petrleo, para a absoro da abundante oferta de crdito e liquidez ento existente,

    enquanto, numa segunda etapa, ela surge como mercado emergente, no sentido de um

    locusde valorizao financeira sempre possvel, mas guarnecido agora dos instrumentos

    (ativos cotados em bolsas) e da poltica econmica (princpios neoliberais) necessrios

    para maximizar o ganho, minimizando riscos e evitando sustos, como o da onda de

    moratrias que assolou o continente latino-americano nos anos de 1980.31O sistema nose perpetuou em sua primeira etapa porque, a despeito dos gigantescos lucros auferidos

    no perodo, no suportou o efeito Volcker (aumento exponencial das taxas de juros

    americanas ao final dos anos de 1970), levando crise das dvidas do incio da dcada

    de 1980 e s primeiras fases de um amplo movimento de desregulamentao monetria e

    financeira, que ensejariam a passagem para a segunda etapa. A industrializao,

    portanto, se insere num movimento de internacionalizao financeira indireta dos

    sistemas nacionais fechados, a ante-sala daquilo que viria a se consolidar somente apsa securitizao da dvida externa dos pases da periferia e a formao, nesses pases, de

    mercados de bnus nacionais interligados aos mercados financeiros dos pases do centro

    do sistema.

    Eis, pois, nosso palpite inicial sobre o sentido da industrializao:32

    diversamente da mera aparncia fenomnica contida no diagnstico dependentista sobre

    a internacionalizao dos mercados internos que jogava com a idia de

    homogeneizao do capital e, portanto, do espraiamento das possibilidades de

    desenvolvimento, desde que se soubesse jogar as regras do jogo a internacionalizao

    da produo foi apenas o substrato necessrio ao desenvolvimento ulterior da verdadeira

    cabine de comando do capitalismo contemporneo: a esfera financeira, agora finalmente

    mundializada.33

    31No por acaso Belluzzo (2004) denomina ditadura dos credores a esse novo momento de ascenso dasaltas finanas ao comando mundial do sistema capitalista.32 Dizemos palpite porque tal hiptese se insere no contexto de um trabalho ainda em andamento,desenvolvido por ns no Grupo de Pesquisa sobre Instituies do Capitalismo Financeiro CAFIN, na USP(registrado no CNPq).33 Quando estuda os ciclos de reproduo no incio do Livro II, muito antes, portanto, de enfrentarteoricamente a discusso sobre o capital a juros, diz Marx sobre a verdadeira natureza do capital: [no cicloglobal do capital] o processo de produo aparece apenas como elo inevitvel, como mal necessrio, tendo

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    Se estivermos certos sobre o sentido da industrializao e lembrando dos

    indicadores decrescentes arrolados na primeira parte deste texto , a prpria natureza da

    relao que prende o capitalismo perifrico brasileiro ao centro do sistema no pode mais

    ser definida como de dependncia, pelo menos no no mesmo sentido com que o termo

    foi usado anteriormente. Afinal, como forma de expresso interna do prprio capital, ainda

    que a dependncia comportasse a assimetria, sua legitimao entre as classes e grupos

    sociais decorria da compatibilidade estrutural entre dependncia poltica e

    desenvolvimento econmico (mesmo que mera industrializao). Ou seja, a legitimao

    do processo a interverso do econmico no poltico se dava pelos acenos da

    possibilidade de ganhos mtuos.

    Mas e agora? Qual o fundamento da legitimao de um processo no qual

    todos aquiescem ao mesmo receiturio econmico, mesmo no recebendo as prometidas

    benesses? Perguntemo-nos: que monstro de vcio esse que ainda no merece o ttulode covardia, que no encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito,

    e a lngua se recusa nomear?34

    Antes de avanarmos em nosso palpite para a soluo deste enigma, cabe um

    pequeno parntese. Logo aps a publicao, em 1946, de seu Studies in the

    Development of Capitalism,35Maurice Dobb iniciaria um longo debate acerca da transio

    do feudalismo para o capitalismo. Nesse debate que envolveu figuras como Paul

    Sweezy, Rodney Hilton, Christopher Hill e H. Kohachiro Takahashi , uma das grandespreocupaes dizia respeito a como, afinal, se dava, no mundo feudal, a interverso do

    econmico no poltico. Em outras palavras, qual era o substrato que dava sentido e

    sustentao s relaes de servido enquanto simultnea expresso poltica e

    fundamentao econmica do modo de produo de uma poca? Entendida a servido

    enquanto uma obrigao imposta ao produtor pela fora, independentemente da sua

    vontade, para satisfazer as exigncias econmicas do senhor (overlord) quer tais

    exigncias tomassem a forma de servios a prestar, quer a de taxas a pagar em dinheiro

    ou em espcie Dobb fez por definir o feudalismo como virtualmente idntico prpria

    concepo de servido.36Ou seja, diante da preocupao em definir o feudalismo como

    um modo de produo, Dobb procurou ressaltar aquilo que, em sua viso, melhor resumia

    no s a relao poltica entre senhor e servo mas o contedo scio-econmico dessa

    obrigao que os conectava. A palavra servido lhe caia bem, pois traduzia o feudalismo

    em vista fazer dinheiro. Todas as naes de produo capitalista so, por isso, periodicamente assaltadaspela vertigem de querer fazer dinheiro sem a mediao do processo de produo (MARX, 1983 [1867],p.44).34Inevitvel retomar as mesmas indagaes de Etienne de La Botie, feitas h mais de 400 anos, acerca daservido voluntria; v. LA BOTIE, 1986 [1577], p.13.35Traduzido no Brasil sob o ttulo deA Evoluo do Capitalismo; v. DOBB, 1986 [1946].36DOBB, 1986 [1946], p.27.

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    tanto enquanto modo de produo da vida material como enquanto processo de vida

    social.

    Sweezy criticou tal definio, apontando-lhe sua impreciso e generalidade,

    haja vista que a servido pode existir em sistemas que nada tm de feudal; e mesmo

    quando relao dominante de produo, a servido tem estado, em diferentes pocas e

    em diversas regies, associada a diferentes formas de organizao econmica.37

    Curioso lembrar ainda que o prprio Engels escrevera, numa de suas ltimas cartas a

    Marx, que [...] a servido e a dependncia no so uma forma peculiarmente medieval-

    feudal, encontramo-las por toda a parte ou em quase toda a parte onde os conquistadores

    possuem a terra cultivada para eles pelos velhos habitantes.38

    Esse longo parntese, que em verdade um pisar em ovos, presta-se to-

    somente a antecipar ao leitor o carter potencialmente controverso de nossa soluo ao

    enigma enunciado. Da mesma forma que a palavra dependncia mostrou-se no limitadaa contextos histricos especficos servindo para nominar os perodos de dominao

    colonial explcita, mas podendo representar tambm, como foi o caso na dcada de 1970,

    o contedo scio-econmico de uma relao poltica moderna , suspeitamos que o

    carter do vnculo que prende hoje o capitalismo perifrico brasileiro ao centro do sistema

    s pode ser definido em termos de servido.

    primeira vista imagina-se que a servido s exista para um pela vontade de

    um outro. O escravo procedendo do senhor. Mas, nessa frmula, se obscurece amide overdadeiro fato a ser interrogado: de que forma tantos homens, tantas cidades, tantas

    naes suportam muitas vezes um tirano s, que no possui nada mais do que o poderio

    que eles prprios lhe do? Como entender, portanto, que o senhor procede do escravo?

    Como entender que a relao senhor-escravo, antes de ser a relao entre dois

    elementos realmente separados, possa ser interna ao mesmo sujeito? Em outras

    palavras, parece-nos que para bem compreender hoje a relao que nos prende ao

    centro do sistema preciso compreender no o consentimento dominao algo muito

    mais prximo do contedo da relao de dependncia tal como ela havia sido at agora

    diagnosticada , mas a obstinada vontade de produzi-la, algo s apreensvel pelo

    conceito de servido, no caso, servido financeira.

    E para que no nos acusem de funcionalismo exacerbado, lembremos que

    essa passagem da dependncia servido no nada estranha ao fato de as elites

    brasileiras nunca terem se importado muito com sua crnica heteronomia. bem verdade

    que, por conta de ventos histricos muito particulares, elas foram empurradas aventura

    do desenvolvimento autnomo e soberano. Mas, superada essa fraqueza momentnea

    37SWEEZY, 1971 [1954], p.20.38ENGELS, F. apud SWEEZY, 1971 [1954], p.20.

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    (... e cheia de riscos o Brasil quase foi dominado pelas foras populares no incio dos

    anos de 1960!), voltaram a sua posio usual, submissa, mas tranqila.39

    Colocado o problema em outros termos, pode-se dizer que a dependncia que

    FHC, com dficit de negatividade, diagnosticara, era uma dependncia pressuposta, uma

    dependncia que se negava na possibilidade de vir a ser superada pelo desenvolvimento

    do elo dominado da relao. Tratava-se, portanto, de uma espcie de combinao de

    dependncia com modernidade, de relao hierrquica com possibilidade de ascenso. A

    posio efetiva da dependncia, sua configurao como servido que implica a vontade

    do servo na reproduo da relao servil (a dependncia desejada) s ocorreria mais

    tarde. Seria preciso a consolidao do regime de acumulao sob dominncia financeira e

    a posio da periferia latino-americana como plataforma de valorizao financeira

    internacional para que a dependncia encontrasse uma forma de existncia adequada a

    seu conceito. H, portanto, uma certa congruncia entre, de um lado, uma dependnciaque se pe inicialmente como o inverso de si mesma, visto que era percebida como

    desenvolvimento, e, de outro, o fato de a industrializao da periferia poder ser vista como

    um dos momentos iniciais do desenvolvimento do regime de acumulao sob dominncia

    da valorizao financeira.

    Olhando mais concretamente o movimento, diramos que, sem o

    desenvolvimento que a relao de dependncia produziu por aqui, no estaramos hoje

    guarnecidos das condies materiais necessrias para nossa transformao emplataforma de valorizao financeira internacional (ou ser que h outra explicao para o

    fato de os pases africanos no poderem desempenhar esse mesmo papel?). Mas

    condies materiais podem no bastar, e no bastavam. A herana do mundo regulado e

    potencialmente inflacionrio, humanamente condescendente e estatizante da etapa

    anterior exigia profundas transformaes institucionais para que essa condio material

    se transmutasse em condio efetiva para a posio do Brasil como mercado

    emergente.

    No incio dos anos de 1990, o advento do neoliberalismo enquanto doutrina e

    coleo de prticas de poltica econmica veio preencher a lacuna que faltava para que

    essa transformao institucional tivesse lugar. Travestida em pregao pela

    modernizao do pas, empurrada pelo argumento de que estaramos perdendo o bonde

    da histria e a possibilidade de adentrarmos o admirvel mundo novo da globalizao, a

    doutrina neoliberal funcionou como discurso de convencimento, num pas recentemente

    redemocratizado e com o movimento de massas se institucionalizando, para que se

    operassem as mudanas que nos colocariam decisivamente no papel de prestamistas (no

    39Alm do mais, a possibilidade, hoje maior do que nunca, de se desterritorializar a riqueza tornou essaposio ainda mais confortvel.

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    sentido de prestacionistas). Tomadas essas providncias, o delivery40 do pas estaria

    pronto. Vamos a elas ento.

    3. Da era neoliberal e de suas providncias

    O Brasil do final dos anos de 1980 no estava adequadamente preparado para

    desempenhar seu papel na nova etapa da mundializao financeira. Em primeiro lugar, as

    altas taxas de inflao que persistiam por aqui produziam abruptas oscilaes no nvel

    geral de preos e em sua variao. Naquelas condies complicava-se sobremaneira o

    clculo financeiro que comanda a arbitragem com moedas e a especulao visando

    ganhos em moeda forte (a taxa de cmbio real e a taxa real de juros sofrem contnuasoscilaes). De outro lado, com o carter fortemente centralizado e regulado da poltica

    cambial de ento, a valorizao financeira porventura alcanada no tinha a liberdade

    necessria para pr-se a salvo, em caso de turbulncia. Portanto, no s os ganhos eram

    incertos, como no havia segurana de que seriam efetivamente auferidos, na

    eventualidade de existirem.

    Um outro problema, tambm provocado pela persistncia do fenmeno da alta

    inflao,41era a dificuldade de controlar os gastos do Estado. No caso do Brasil, com uma

    histria muito particular no que concerne ao processo de indexao,42a complicao era

    ainda maior, ensejando a criao de um sem-nmero de conceitos de dficit para lidar

    com a situao. A dificuldade em perceber a exata dimenso dos gastos pblicos no

    parecia uma boa credencial para um pas disposto a entrar no circuito mundial de

    valorizao financeira. Tendo em vista o carter rentista desse tipo de acumulao, e

    considerando que uma de suas bases mais importantes a dvida pblica, a anarquia nos

    gastos pblicos produzida pela alta inflao era uma complicao e tanto, pois

    precarizava a extrao de renda real que deve valorizar esse capital cado do cu, em

    40 O termo remete a um artigo escrito por Leda Paulani no incio do governo, Brasil Delivery: a polticaeconmica do governo Lula, publicado na Revista de Economia Poltica de outubro de 2003. Alm dasevidentes relaes do termo com as transformaes que acabamos de comentar, preciso registrar que, poca desse artigo, ele tinha sido colocado na ordem do dia pelo ento secretrio de Assuntos Externos doMinistrio da Fazenda, prof. Otaviano Canuto, segundo quem: a palavra da moda delivery, como bemanunciou um corretor de Wall Street. A gente est prometendo e a gente est entregando.41Alta inflao foi o termo encontrado para designar fenmenos inflacionrios como o do Brasil, em queos nveis gerais de preos nem se comportavam de forma civilizada, nem descambavam para ahiperinflao, permanecendo por longo tempo na casa dos dois dgitos ao ms.42A esse respeito ver Paulani (1997).

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    que se constituem esses papis.43 Nessas condies, como poderia o pas ser

    considerado um emergente mercado financeiro?

    Segundo o discurso neoliberal que comea a ser dominante no incio dos anos

    de 1990, o Estado no dava conta de sua tarefa de preservar a estabilidade monetria e

    organizar as contas pblicas tambm por conta de seu peso demasiado grande, herana

    perversa de um tempo em que se imaginara que o desenvolvimento nacional soberano

    era possvel na periferia e que o Estado era o instrumento mais importante para tornar

    efetiva essa possibilidade. Ora, um Estado com tantas demandas e tantas tarefas no

    tinha como garantir ganhos reais s aplicaes financeiras, nem como se especializar

    na administrao das finanas e na gesto da moeda, condies todas essas

    imprescindveis para considerar um determinado pas como mercado emergente.

    O ambiente no qual os negcios aconteciam tambm no ajudava. Como

    convencer os capitais da seriedade do pas na disposio de impulsionar o ganhofinanceiro com uma legislao que, em caso de colapso empresarial, punha frente dos

    direitos dos credores financeiros os direitos dos empregados (dvidas trabalhistas) e os

    direitos do Estado (dvidas tributrias)? No nvel do Estado, como garantir que seus

    recursos seriam prioritariamente canalizados para honrar os compromissos financeiros se

    os governantes no eram submetidos a um rigoroso controle de suas aes?

    Na questo previdenciria estava mais um srio obstculo para que o pas de

    imediato se integrasse na nova etapa da mundializao financeira. Nosso sistemaprevidencirio era marcado pelo regime de repartio simples, caracterizado pela

    solidariedade intergeracional e pela posio do Estado como seu principal ator. Esse

    sistema no combinava com os novos tempos, no s por conta do peso inaceitvel

    dessas despesas no oramento pblico, como pela privao, sofrida pelo setor privado,

    de um mercado substantivo e promissor, at ento praticamente monopolizado pelo

    Estado.

    Finalmente, a constituio de 1988 era absolutamente incompatvel com as

    pretenses rentistas da nova etapa. Com o oramento engessado por inmeras

    vinculaes obrigatrias, o Estado tinha pouca liberdade para promover polticas que,

    supostamente destinadas a sustentar o equilbrio das contas pblicas, visavam na

    realidade abrir espao para sua atuao como lastreador do pagamento do servio da

    dvida pblica.

    Era evidente, portanto, que, se o pas quisesse entrar na nova etapa do jogo

    financeiro internacional, profundas transformaes teriam de ser feitas no quadro

    institucional em que se movia a economia brasileira. E elas foram feitas. Como j

    43A expresso de Marx (vide captulo XXIV do livro I de O Capital), que considera a dvida pblica comoum tpico exemplar de capital fictcio.

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    mencionamos, a difuso cada vez maior do discurso neoliberal que foi produzindo,

    desde o governo Collor, os argumentos necessrios para promover, num pas recm-

    democratizado, com um ativo movimento social e ainda comemorando as conquistas de

    1988, esse tipo de mudana. No incio do que se pode chamar de uma era neoliberal,

    Collor foi eleito, contra o projeto popular representado por Lula e o PT, com o discurso do

    social liberalismo, enfeitado pela bravata da caa aos marajs. Desde ento passou a

    ser voz corrente a inescapvel necessidade de reduzir o tamanho do Estado, privatizar

    empresas estatais, controlar gastos pblicos, abrir a economia etc. Collor no teve tempo

    para pr em marcha esse projeto a no ser muito timidamente o processo de

    privatizao mas a referida pregao ganhou fora inegvel e passou a comandar todas

    os discursos.

    no governo Itamar que tm lugar as primeiras mudanas de peso no sentido

    de preparar o pas para sua insero no circuito internacional de valorizao financeira.Em 1992, a diretoria da rea externa do Banco Central, em meio s negociaes para

    internacionalizar o mercado brasileiro de ttulos pblicos e securitizar a dvida externa,

    resolvendo a pendncia que vinha desde 1987, encarregava-se tambm, na surdina, de

    promover a desregulamentao do mercado financeiro brasileiro e a abertura do fluxo

    internacional de capitais.44

    Utilizando um expediente criado por uma lei de 1962 as chamadas contas

    CC5, contas exclusivas para no residentes, que permitem a livre disposio de recursosem divisas , o BACEN operou duas grandes mudanas. Em primeiro lugar, alargou o

    conceito de no residente, incluindo a no apenas as pessoas fsicas ou jurdicas que

    estivessem em trnsito pelo pas, mas tambm as contas livres de instituies financeiras

    do exterior (instituies financeiras estrangeiras no autorizadas a funcionar no pas).

    Alm disso, as CC5 passaram a poder remeter livremente para o exterior no apenas os

    saldos em moeda domstica resultantes da converso da moeda estrangeira com a qual

    os no residentes tivessem entrado no pas, mas igualmente todos e quaisquer saldos.

    Abriu-se com isso a possibilidade de qualquer agente, independentemente de ser ou no

    residente, enviar livremente recursos ao exterior,45bastando, para tanto, depositar moeda

    domstica na conta de uma instituio financeira no residente.46

    44Retomamos, deste ponto em diante, consideraes j feitas por Leda Paulani em outros momentos; cf.PAULANI, 2004, e PAULANI, 2005.45 Por essa poca, o presidente do Banco Central era Francisco Gros e o diretor da rea externa eraArmnio Fraga. O interessante que, depois de tantas dcadas de controle, o mercado permaneceuincrdulo quanto a essas mudanas at que, em novembro de 1993, j na gesto de Gustavo Franco narea externa do BACEN, foi publicada uma cartilha que escancarou para os agentes aquilo que elesestavam vendo sem acreditar. No por acaso a tal cartilha ficou conhecida no mercado como Cartilha daSacanagem Cambial.46 As procuradoras da Repblica Valquria Nunes e Raquel Branquinho encaminharam Justia Federal,em dezembro de 2003, uma pea de acusao em que pedem a condenao, por crime de improbidade

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    Essas mudanas produziram, em conjunto, a forma e a substncia da insero

    do Brasil nas finanas de mercado internacionalizadas. O lanamento de ttulos de dvida

    brasileira cotados no exterior confirmaram o pas no papel de emissor de capital fictcio,

    que viabiliza a valorizao financeira e garante a posteriori a transferncia de parcelas da

    renda real e do capital real para essa esfera da acumulao. A liberalizao financeira

    vem garantir o livre trnsito dos capitais internacionais, que podem assim maximizar o

    aproveitamento das polticas monetrias restritivas e de juros reais elevados. Sem o

    destravamento do mercado, por exemplo, os mais de US$ 40 bilhes que saram do pas

    entre setembro de 1998 e janeiro de 1999, atemorizados com a iminente desvalorizao

    do real, no teriam podido faz-lo, amargando duras perdas.

    Ainda no governo Itamar, surge o plano Real, que catapulta FHC, ento

    ministro da Fazenda, para a Presidncia da Repblica. Vendido como mero plano de

    estabilizao, absolutamente necessrio tendo em vista os problemas produzidos pelapersistncia da alta inflao (desestruturao das cadeias produtivas, elevado imposto

    inflacionrio, que prejudica principalmente as classes de renda mais baixa, deteriorao

    da capacidade fiscal do Estado etc.), o Plano Real foi em verdade muito mais do que isso.

    Em primeiro lugar, ele resolveu o problema que impedia praticamente o funcionamento do

    pas como plataforma de valorizao financeira internacional. Mesmo com a abertura

    financeira j tendo sido formalmente operada, ela permaneceria letra morta, do ponto de

    vista de suas potencialidades em termos de atrao de capitais externos de curto prazo,se o processo inflacionrio no tivesse sido domado. Alm disso, o plano abriu espao

    para uma srie de outras mudanas que teriam lugar no governo de FHC. A abertura da

    economia, as privatizaes, a manuteno da sobrevalorizao da moeda brasileira, a

    elevao indita da taxa real de juros, tudo passou a ser justificado pela necessidade de

    preservar a estabilidade monetria conquistada pelo Plano Real.47

    no mesmo contexto que se deve igualmente analisar a edio, em maio de

    2000, da Lei Complementar n. 101 (Lei da Responsabilidade Fiscal LRF). A partir da

    administrativa, de 15 executivos ligados ao BACEN e ao Banco do Brasil. Elas argumentam que essatransformao das CC5 foi feita de modo irregular, pois uma lei federal no pode ser regulamentada por umrgo de hierarquia constitucional inferior. Em outras palavras, o Congresso teria de ser ouvido... Amudana, porm, foi feita singelamente, mediante uma cartacirculardo Banco Central. Uma carta circularum documento que tem o papel exclusivo e restrito de esclarecer normas e regulamentos editados peloConselho Monetrio Nacional (veja-se, a esse respeito, a excelente matria de Raimundo RodriguesPereira, publicada na revista Reportagemde fevereiro de 2004).47 Por essas e por outras que se pode dizer que, a partir do Plano Real, h um sentimento difuso deemergncia econmica, no sentido de exceo, que acompanha a emergncia do pas como promissormercado financeiro. Tudo se passa como se aos poucos estivesse sendo decretado um estado de exceoeconmico que justifica qualquer barbaridade em nome da necessidade de salvar o pas, ora do retorno dainflao, ora da perda de credibilidade, ora da perda do bonde da histria. A esse respeito, alis, tudo indicaque o estado de exceo, antes ainda difuso, tenha sido definitivamente decretado no governo Lula.Pesquisa sobre esse tema est sendo implementada por Leda Paulani no mbito do CAFIN Grupo dePesquisa sobre Instituies do Capitalismo Financeiro.

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    LRF, negociada por FHC com o FMI no calor da crise que levou desvalorizao do real

    em janeiro de 1999, a preocupao central do administrador pblico passa a ser a

    preservao das garantias dos detentores de ativos financeiros emitidos pelo Estado. O

    propsito da LRF era e estabelecer uma hierarquia nos gastos pblicos que coloca em

    primeirssimo e indisputvel lugar o credor financeiro, em detrimento da alocao de

    recursos com fins distributivos (polticas de renda e polticas pblicas de modo geral) e da

    viabilizao de investimentos pblicos. Por outro lado, a austeridade fiscal da LRF, que

    exige de prefeitos e governadores esse tremendo aperto e a reduo impiedosa dos

    gastos na rea social, no impe nenhum controle ou sano aos que decidem a poltica

    de juros e elevam a dvida pblica do pas em favor dos credores nacionais e

    internacionais.

    Alm da consolidao do Plano Real com as privatizaes e a abertura

    comercial, os oito anos de FHC produziram tambm uma srie de benefcios legais aos

    credores do Estado e ao capital em geral, que no deixaram dvidas quanto seriedade

    de suas (boas) intenes para com esses interesses. Em carta ao FMI de setembro de

    2001, o governo brasileiro reafirmou sua disposio para estudar meios de evitar ou

    reduzir o impacto negativo da CPMF nos mercados de capitais. Em dezembro do ano

    seguinte, aprovou-se a Emenda constitucional n. 37, que isenta da incidncia desses

    tributos os valores aplicados em bolsas de valores. No mesmo sentido, passou a ser

    isenta de imposto de renda a distribuio de lucros de empresas a seus scios brasileiros

    ou estrangeiros e a remessa de lucros ao exterior. 48

    Dentro do esprito de guarnecer o pas dos dispositivos institucionais

    necessrios para sua insero na mundializao financeira, o governo FHC promoveu

    ainda uma mudana substantiva no sistema previdencirio. Conforme j adiantado, o

    sistema previdencirio brasileiro era estruturado predominantemente pelo regime de

    repartio simples e constitua praticamente um monoplio do Estado. Esse tipo de

    regime marcado pela chamada solidariedade intergeracional (quem trabalha gera renda

    para quem no trabalha), sendo, portanto, tanto mais equilibrado financeira e

    atuarialmente quanto maiores forem o crescimento, o emprego e o rendimento mdio dos

    trabalhadores.

    Pretextando dficits insustentveis que acabariam por sufocar o Estado,49 o

    governo de FHC comea, em 1998, a mudar esse sistema, elevando o prazo para a

    48As informaes foram retiradas de Maria Fattotelli (2004).49Cabe registrar que esse tipo de clculo considera sempre como gasto previdencirio aquilo que no podeser tomado como tal. A aposentadoria rural, empurrada goela abaixo dos conservadores pela Constituiode 1988, constitui efetivamente um grande programa de renda mnima, talvez o maior do continente, j queesse benefcio passou a constituir-se num direito do trabalhador rural, tenha ele contribudo ou no, uma

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    requisio dos benefcios e impondo tetos (bastante reduzidos) para seu pagamento. Ao

    promover essas alteraes, o governo aumenta por tabela a importncia da previdncia

    privada, que passa a ser necessria para complementar a futura aposentadoria. Comea

    assim a se construir o mercado privado de previdncia, j h alguns anos reivindicado

    pelo sistema financeiro.

    Ao contrrio do que ocorre no regime de repartio simples, no regime de

    capitalizao, que caracteriza o mercado privado, no h solidariedade intergeracional.

    Cada um responde apenas por si e tem um retorno futuro proporcional a sua capacidade

    de pagamento corrente. Aos gestores desses fundos cabe administrar os recursos neles

    depositados por longo perodo de tempo, de modo a garantir o rendimento financeiro

    necessrio para honrar os compromissos previdencirios futuros. Sendo assim, esse

    regime busca a maior liquidez, no menor perodo de tempo, e com o menor risco possvel,

    o que torna os ttulos de renda fixa, particularmente os ttulos da dvida pblica, os ativos

    por excelncia de seus portflios. claro que, dada essa lgica, os fundos de penso

    sero to mais bem-sucedidos quanto maiores forem as taxas de juros. De outro lado,

    quando aplicam em renda varivel (aes), eles buscam evidentemente aqueles papis

    com maior capacidade de valorizao, e esses papis so, hoje, aqueles pertencentes s

    empresas que melhor executam os programas de dowsizing, de terceirizao e de

    flexibilizao de mo-de-obra. Assim, o equilbrio financeiro desses fundos est na

    dependncia de um comportamento das variveis macroeconmicas chave que

    perverso do ponto de vista do crescimento e do emprego, pois joga no sentido da

    elevao dos juros bsicos, da reduo da mo-de-obra formalmente empregada e da

    queda do rendimento mdio dos trabalhadores. A perversidade desse comportamento

    parte das contradies inerentes a um sistema que v diminuir o capital produtivo que

    gera renda real enquanto engorda o capital financeiro que extrai renda real do sistema

    e incha ficticiamente nos mercados secundrios, exigindo ainda mais renda.

    Mas, por mais que tentasse, FHC no conseguiu implementar, na questo

    previdenciria, todas as mudanas requeridas para que sua conformao se adaptasse

    ao novo figurino, j que sua reforma ficou restrita aos trabalhadores da iniciativa privada.

    Por incrvel que parea, a reforma visando estender essas mudanas tambm aos

    trabalhadores do setor pblico foi justamente o primeiro projeto de flego em que se

    empenhou o governo Lula no incio de sua gesto. A exemplo do que FHC fizera com a

    vez que seja, ao sistema previdencirio. Assim, os recursos despendidos com o pagamento desse tipo debenefcio, apesar de integrarem o grupo de gastos relacionados seguridade social, no podem serentendidos como gastos previdencirios, aproximando-se mais dos gastos relativos a programascompensatrios de renda. Os especialistas no tema dizem, alis, que este o verdadeiro programa derenda mnima do Brasil (cf. MARQUES; MENDES, 2004).

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    previdncia dos trabalhadores do setor privado da economia, o projeto de Lula, alm de

    estender os perodos de contribuio, passou a prever tetos (reduzidos) de benefcios

    tambm para os trabalhadores do setor pblico. (Mas, diferentemente de FHC, que no

    ousou dispensar as regras de transio, a proposta original do governo do PT foi ao

    parlamento sem elas, cabendo aos congressistas a introduo das mudanas que

    tornaram menos radical a reforma proposta).50

    Ao completar a transformao idealizada por FHC, mataram-se vrios coelhos

    de uma s cajadada. Em primeiro lugar, criou-se finalmente o grande mercado de

    previdncia complementar que h mais de duas dcadas vinha despertando a cobia do

    setor financeiro privado, nacional e internacional. Cabe ressaltar que, nesse sentido, a

    viabilizao da reforma no setor pblico representa a abertura de perspectivas de

    acumulao que no esto presentes quando se considera o mercado previdencirio

    oriundo do setor privado da economia. Apesar de substantivamente maior do que o

    nmero de trabalhadores do setor pblico, o mercado constitudo pelos empregados do

    setor privado possui renda mdia menor e enfrenta a ameaa do desemprego. A abertura

    desse novo e suculento espao de valorizao foi, portanto, o primeiro dos grandes tentos

    marcados pelo novo governo com a aprovao da reforma. Alm disso, com a elevao

    das contribuies, da idade e do tempo de trabalho para a obteno do benefcio, alm da

    taxao dos inativos, o governo contou pontos tambm no intocvel objetivo do ajuste

    fiscal. Pde ainda, atravs de um bem-pensado programa de defesa publicitria dessa

    iniciativa, colocar os funcionrios pblicos como os grandes viles do descalabro social do

    pas, recuperando, sintomaticamente, a caa aos marajs da campanha de Fernando

    Collor, e vender a idia de que o intuito da reforma era simplesmente o de fazer justia

    social.

    Concluda esta reforma, ficou quase pronto o pas para, trajado a rigor

    (mortis?), participar do circuito da valorizao financeira. Mais alguns detalhes, como a

    nova lei de falncias (aprovada em fevereiro de 2005),51a autonomia do Banco Central

    50Mais uma ousadia ( direita, sempre) do novo governo foi a imposio de contribuio aos inativos, queFHC tentara inmeras vezes sem conseguir. No custa lembrar que o fator bsico do insucesso de FHC emtodas essas tentativas foi a oposio feroz proposta feita justamente pelo Partido dos Trabalhadores (sic).51As dvidas trabalhistas que antes, sem limitao, encontravam-se no primeiro lugar da fila para orecebimento dos recursos da massa falida, continuam em primeiro lugar, s que agora restringidas pelolimite de R$ 39 mil. O que exceder esse limite vai para o ltimo lugar. As dvidas financeiras garantidas porbens mveis ou imveis, que ocupavam antes o terceiro lugar, passaram a ocupar o segundo lugar, frentedas dvidas tributrias. No custa lembrar que, na carta de intenes ao FMI, assinada por Antnio Palocci eHenrique Meirelles em fevereiro de 2003, constava o compromisso de aprovar uma nova Lei de Falnciasque garantisse os direitos dos credores, ou seja, o recebimento pelo setor financeiro, em condiesprivilegiadas, das dvidas acumuladas pelas empresas falidas. Uma lei semelhante foi proposta pelo mesmoorganismo Argentina.

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    (que continua firme e forte na agenda do governo Lula),52 o aumento da DRU

    Desvinculao de Recursos da Unio , sua prorrogao para alm de 2007 e a extenso

    desse expediente tambm para os nveis estadual e municipal, e nada mais faltar.53A

    autonomia do Banco Central garantir que a poltica monetria ser conduzida sempre de

    modo a honrar o pagamento do servio da dvida e a premiar, com juros reais

    substantivos, os detentores de papis pblicos. Tem em seu auxlio a DRU, que funciona,

    por outro lado, como o instrumento mais afiado para dar cabo dos estorvos promovidos

    pela Constituio de 1988. A Lei da Responsabilidade Fiscal (que alguns chamam, com

    justeza, de Lei da Irresponsabilidade Social) contribui com sua parte, ao assegurar que os

    papis emitidos por instncias inferiores do poder executivo tambm tenham seu servio

    honrado, enquanto a nova Lei de Falncia trata privilegiadamente o credor financeiro, em

    caso de bancarrota privada.

    Ora, um pas to srio e cnscio no s da necessidade de cumprir as

    obrigaes financeiras, como de premiar com elevado rendimento os detentores de ativos

    financeiros, merece um lugar de destaque em meio aos emergentes, com direito at a

    aspirar ao investment grade. A tendncia, portanto, e isto j o revela claramente o grfico

    5 apresentado na primeira seo (que mostra o enorme crescimento das despesas

    externas com rendas de investimentos em carteira), que a financeirizao da economia

    brasileira se internacionalize cada vez mais. Mas com isto encaminhamo-nos s

    observaes finais deste trabalho.

    4. De indstr ia e finanas, de capital financeiro e capital fict cio guisa de

    concluso

    Segundo Marx, capital industrial todo aquele que, independentemente do

    setor em que atue, toma alternadamente a forma de capital monetrio, capital produtivo e

    capital mercadoria (tangvel ou intangvel), cumpre em cada uma delas uma funodeterminada, e abandona essas formas, para voltar a assumi-las novamente.54 Afirma

    tambm que o capital s pode ser industrial (produtivo) e se reproduzir ampliadamente se,

    do valor excedente de cada etapa, uma parte substantiva j estiver disponvel para a

    52 Em meados do corrente ano, perguntado sobre a necessidade de tal mudana, o atual presidente doBNDES, ento ministro do Planejamento, Guido Mantega, respondeu tranqilamente que se tratava de umaalterao necessria para preservar a sociedade da atuao de presidentes irresponsveis e gastadores,que quisessem fazer o pas crescer a qualquer custo.53Em 1994 foi criado o Fundo Social de Emergncia, denominado depois, mais adequadamente, Fundode Estabilizao Fiscal. Esse fundo foi formado com 20% de todos os impostos e contribuies federais,tornados livres de vinculaes. A partir de 2000, ele foi reformulado e passou a se chamar DRU Desvinculao de Recursos da Unio , tendo sua prorrogao aprovada pelo Congresso Nacional at2007.54Vide o captulo I do Livro II (O ciclo do capital monetrio); MARX, 1983 [1867].

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    etapa seguinte sob a forma de novos meios de produo.55 Em outras palavras, sem

    meios de produzir riqueza, ou com meios que crescem muito lentamente, lento ser o

    crescimento da prpria riqueza e do consumo e bem-estar a ela atrelados.

    Nos momentos de crise, so pequenos os incentivos para que o excedente

    tome prioritariamente a forma de meios de produo, em especial de instrumentos de

    trabalho. Num pas perifrico como o Brasil, esse nunca foi um grande problema, porque

    o dficit de comportamento burgus das elites acabou por empurrar o Estado

    permanentemente a atuar como o grande investidor da economia. Tendo essa atuao

    por locomotiva, o incentivo estava garantido e puxava sem nenhuma dificuldade os

    vages do investimento privado. Na poca em que a industrializao definitiva da periferia

    latino-americana passou a interessar ao centro do sistema, esse processo ganhou em

    fora e dinamismo e, pelo menos no Brasil, apontou para a possibilidade de superao de

    sua condio de pas subdesenvolvido, ainda que sob a forma um tanto contraditria dadependncia.

    Essa confluncia virtuosa aconteceu, no entanto, tarde demais, pois o

    capitalismo j entrava na fase terminal da frmula fordista e milagrosa dos 30 anos

    dourados. Empurrado, por um lado, por uma crise cclica e, por outro, pela desordem

    provocada no sistema monetrio internacional com a desvinculao do dlar americano

    ao ouro, promovida em 1971 pelo governo Nixon, o sistema ia ingressando a passos

    largos na fase da acumulao flexvel e da dominncia financeira. De receptor lquido decapitais passamos rapidamente a exportador lquido de capitais, primeiro sob a forma de

    pagamentos dos juros da dvida externa contrada por meio de contratos convencionais

    de emprstimo, agora como produtores de ativos financeiros de alta rentabilidade.

    Note-se que, se o problema atual se resumisse ao pagamento dos juros dos

    emprstimos convencionais, ele estaria praticamente resolvido, to logo essas antigas

    dvidas estivessem amortizadas. Tratar-se-ia a apenas de avalizar o rentismo clssico

    caracterstico do capital financeiro convencional, entregando a seus proprietrios, por um

    determinado perodo de tempo, uma parcela da renda real produzida pelo capital

    produtivo que sua transferncia de mos teria ajudado a construir.

    Mas a coisa funciona de modo diferente, quando o que est em jogo o capital

    fictcio. O capital que decorre, por exemplo, da transformao do valor de um ativo

    produtivo em aes comporta um elemento de forte arbitrariedade, j que sua dimenso,

    em cada momento, no est mais vinculada a esse capital, mas ao jogo das bolsas (como

    se viu recentemente com a valorizao irracional das aes da chamada Nova Economia

    informtica e telecomunicaes). Mas essa duplicata de capital, como o chama Marx,

    55Vide captulos XXII e XXIII do Livro I (Reproduo Simples e Transformao da Mais Valia em Capital);MARX, 1983 [1867].

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    reclama, como qualquer outro, seus direitos, ameaando, como um fantasma, com sua

    cobrana, j que, no mundo real e concreto, a renda real produzida por seus ativos de

    origem pode no ser nem de longe capaz de dar conta desse recado. Por outro lado, o

    capital que decorre da emisso de ttulos da dvida pblica reclama seus direitos, no a

    um capital real incapaz de atend-los, como pode acontecer com as aes, mas a um

    no capital (o ativo real de origem no existe). Por conseguinte, o atendimento desses

    direitos implica a extrao de renda real da sociedade como um todo. A coisa toda se

    complica ainda mais quando esses papis passam a ser, tambm eles, objeto de cotao

    em bolsas, j que sua dimenso passa ento a fugir do controle de seus prprios

    produtores.

    Ora, num mundo to dominado por esses capitais fictcios e dominado, alm

    disso, pela vertigem de valorizar o valor sem a mediao da produo, nada mais

    interessante do que transformar economias nacionais com alguma capacidade deproduo de renda real, mas sem pretenses de soberania, em prestamistas servilmente

    dispostos a cumprir esse papel e a, dessa forma, lastrear, ainda que parcialmente, a

    valorizao desses capitais. Eliminados os maiores obstculos a esse desempenho (a

    inflao, o descontrole dos gastos pblicos, a falta de garantias dos contratos, a iluso do

    desenvolvimentismo, dentre os principais deles), essas economias esto prontas a

    funcionar como plataformas de valorizao financeira internacional. Assegurada a

    seriedade no tratamento dos direitos do capital financeiro, elas podem funcionar e, nocaso do Brasil, tm funcionado, como meio seguro de obter polpudos ganhos em moeda

    forte.

    Isto posto, acreditamos poder afirmar que no se trata de mera casualidade o

    fato de as curvas de FBKF/PIB e de despesas com rendas de investimento se

    comportarem de modo to completamente invertido no Brasil, quando observadas nos

    ltimos 35 anos. Tampouco parece casual que os indicadores de taxa de investimento e

    de crescimento da era neoliberal sejam to visivelmente piores do que os da assim

    chamada dcada perdida. A despeito da confuso inflacionria e da crise da dvida

    externa, os anos de 1980, certamente influenciados pelas esperanas despertadas pela

    redemocratizao e pela institucionalizao dos movimentos de massa, ainda guardavam

    o esprito da dependncia tolerada de que nos fala Singer, como se o verdadeiro

    desenvolvimento soberano e autnomo ainda estivesse no horizonte.

    s nos anos de 1990 que se consuma a vitria avassaladora da doutrina

    neoliberal e com ela a poltica econmica e as providncias ainda em curso para

    transformar o Brasil num locusde valorizao financeira, particularmente num instrumento

    que, por meios os mais variados, permite substantivos ganhos reais em moeda forte, em

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    detrimento de nossa capacidade de aumentar nosso estoque de riqueza, de crescer e de

    conter o aumento da misria e da barbrie social. Entramos assim na fase da

    dependncia desejada, como se nossa servido financeira fosse a tbua de salvao

    ainda capaz de produzir a incluso do pas no sistema, mesmo que no papel o mais

    subalterno possvel.

    Que nossas elites tenham, com tranqilidade, abandonado os pruridos de

    autonomia e soberania e ingressado nessa rota, no algo que surpreenda,

    considerando sua origem e evoluo.56 O que espantoso e atesta a fora desse

    discurso e desse aceno que o governo de Lula e do Partido dos Trabalhadores, em

    princpio popular e de esquerda, tenha cado nessa armadilha e reproduza agora, como

    se fosse sua, a mesma cantilena. Talvez no haja prova maior de que entramos mesmo

    na fase da servido.

    56 Vide a respeito Paulo Arantes (2004).

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