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HELOISE PERATELLO E SILVA A NEGAÇÃO DA CARNE: O UNIVERSO DO NÃO COMER E A IDEALIZAÇÃO DOS HÁBITOS ALIMENTARES (1977-2006) CURITIBA 2008

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HELOISE PERATELLO E SILVA

A NEGAÇÃO DA CARNE: O UNIVERSO DO NÃO COMER E A IDEALIZAÇÃO

DOS HÁBITOS ALIMENTARES (1977-2006)

CURITIBA 2008

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A NEGAÇÃO DA CARNE: O UNIVERSO DO NÃO COMER E A IDEALIZAÇÃO

DOS HÁBITOS ALIMENTARES (1977-2006)

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, para requisito parcial para a conclusão do curso de História, departamento de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Profº. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos

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RESUMO

O tema desta pesquisa versa sobre a relação entre alimentação e saúde, baseada nos discursos médicos referentes à adoção/rejeição de alimentos, em especial às interdições ao consumo de carne, na segunda metade do século XX. Neste sentido, buscou-se o entendimento a respeito de como uma questão aparentemente des-historicizada pode assumir significados normativos associados aos saberes que a definem e aos discursos que a legitimam. A pesquisa desenvolveu-se por meio da construção histórica, metodologicamente guiada pela História e Cultura da Alimentação. Foram utilizadas publicações da Revista da Associação Médica Brasileira, entre 1977 e 2006. Notou-se que a primeira menção à carne ocorre em 1977 e se refere à “dieta branda” para um caso de úlcera. A maior parte dos artigos que fazem menção à alimentação, até meados nos anos 1980, reportam-se às dietas para problemas do estômago ou estudos sobre alimentação parenteral. A partir da década de 1990, começam a aparecer artigos abordando a temática da nutrição, por meio de estudos com grupos específicos. A pergunta que inicia a terceira parte refere-se, portanto, à mentalidade médica que possibilita o surgimento de um conhecimento que retoma as interdições alimentares, assentadas nos novos descobrimentos científicos. Embora não haja consenso em relação à carne, o que se verifica é que ela passa a fazer parte do desenvolvimento de um conhecimento que imprime e expressa a necessidade de falar do alimento para proporcionar saúde, como uma medida preventiva.

Palavras-Chave: Alimentação, discursos médicos e carne

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INTRODUÇÃO

Podem-se observar, atualmente, inúmeras manifestações contrárias ao consumo de

carne que suscitam, por exemplo, a problemática das relações entre carne/saúde, carne/meio

ambiente e carne/religiosidade. Tais manifestações são percebidas em diversos momentos da

vida cotidiana: nas pichações em muros1, no aumento paulatino de publicações e programas

televisivos que inserem a negação da carne em suas temáticas, e nas inúmeras discussões,

acadêmicas ou informais que relacionam a carne à biologia, ecologia, filosofia, religião e

medicina. No entanto, as pesquisas nessa área pertencem, majoritariamente, ao universo

europeu e norte-americano, sendo visível a carência de trabalhos deste tipo abordando o

contexto brasileiro.

Para esta pesquisa, procuro entender como uma questão aparentemente des-

historicizada2 assume significados normativos associados aos saberes que a definem, aos

discursos que a legitimam e às práticas que acabam por se tornar cotidianas. Para tanto, elegi

os discursos médicos como a fonte prioritária deste trabalho. A relevância desta pesquisa se

justifica, pois, pelas manifestações verificadas no presente e pelas possibilidades analíticas

suscitadas pela relação entre a produção do conhecimento médico e o estabelecimento de

hábitos alimentares. É por meio das vontades e recusas, das apropriações e comportamentos

que se pode compreender historicamente determinadas experiências humanas. Neste sentido,

a análise de discursos colabora para a construção teórica de um modo de estar no mundo, de

interagir e agir de homens e mulheres enquanto sujeitos coletivos.

A carne sempre foi um dos alimentos mais desejados e passíveis de interdições. Em

muitos sentidos, ostenta, hoje, um papel de vilã por conta de discursos portadores de causas

ecológicas e éticas. A partir destas considerações, objetiva-se reconstruir a trajetória dos

interditos alimentares no âmbito dos discursos médicos, a fim de entender seus

desdobramentos na alimentação moderna e analisar as manifestações recentes que refletem

rejeição para o consumo de carne.

A questão central do trabalho é, portanto, resultado de uma inquietação em relação a

fatos observados atualmente. Mas, como enfrentar o desafio de estudar o presente sem deixar

de historicizá-lo? Quais as melhores abordagens a serem escolhidas? Os fatores que

1 A exemplo das inúmeras pichações verificadas na cidade de Curitiba, nas quais lê-se “carne é crime”. 2 Entendo ser des-historicizada, na medida em que o consumo de carnes, pelos seres humanos, assume uma significação natural, quase como uma essência da espécie.

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possibilitam a exploração de novos temas decorrem de mudanças ocorridas no interior do

próprio campo historiográfico. O estudo de períodos recentes ganhou prestígio com as

revisões interpretativas das últimas décadas, na qual se destaca a noção de acontecimento. Os

historiadores do tempo presente não pensam na longa e na curta duração em oposição, mas

sim nas possíveis interações entre essas duas dimensões. O entendimento de que o mundo

passou por rápidas e grandes transformações nos últimos anos fez com que a noção de

acontecimento mudasse de dimensão, passando a ser entendida como imediata e

compartilhada por indivíduos, grupos e nações3.

A categoria de fontes analisadas faz parte do chamado discurso médico-científico.

Para isto, foram analisadas publicações de uma importante instituição médica brasileira.

Objetivou-se, com isto, procurar continuidades e rupturas na maneira de entender, trabalhar e

sustentar crenças relacionadas à alimentação em geral e ao consumo de carne em particular.

Esta publicação pode ser considerada um produto cultural, por permitir enxergar tanto os

modos de fazer quanto de pensar de um determinado grupo.

O objeto deste estudo diz respeito aos discursos médicos de adoção/rejeição de

alimentos, com especial atenção à interdição da carne. Os discursos a serem analisados

compreendem a nutrição científica e abrangem o período entre 1977 e 2006. O recorte

temporal assim se definiu, pois a primeira menção à carne, nesta revista aconteceu em 1977.

Já o ano 2006 é bastante sintomático quanto à questão da negação da carne e da idealização

dos hábitos alimentares, por conta do lançamento e divulgação de três filmes que abordam o

assunto: A carne é fraca (Brasil); Fast Food Nation ou Nação Fast Food (EUA) e Unser

Täglich Brot ou Pão Nosso de Cada Dia (Alemanha/Áustria).

Em vista de tais considerações, alguns questionamentos orientam este estudo: qual a

relação entre os discursos médicos sobre alimentação e a construção de interdições

alimentares recentes? Até que ponto o discurso médico coloca restrições ao consumo de

carne? De que maneira o desenvolvimento do conhecimento médico estabelece relações com

as práticas cotidianas? Como as fontes analisadas tratam a ingestão de carnes? Essas questões

serviram de mote para a pesquisa e ajudaram a reconstruir os mecanismos ideológicos de

adoção/rejeição de alimentos e o desenvolvimento de hábitos alimentares por meio de uma

possível mediação do conhecimento médico e da nutrição científica.

3 CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em Cena. Campinas: Papirus, 1998. p. 27.

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Os primeiros questionamentos nos conduzem ao estudo das trajetórias dos discursos

de interdição, para que possamos entender seus desdobramentos na criação dos elementos de

rejeição vistos atualmente. Para tanto, foram abordadas as relações entre os discursos médicos

historicamente constituídos, ou seja, aqueles cuja atuação é inconteste, como no caso das

regras que já foram incorporadas ao conhecimento médico-científico e suas intervenções ou

desdobramentos sobre movimentos contemporâneos – como o vegetarianismo e os health

movements. Já a última questão tornou-se pertinente para analisarmos a relação entre

interditos médicos na alimentação e o processo de formação de ideologias.

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CAPÍTULO 1

O tema desta pesquisa versa sobre o tabu alimentar, em especial àquele que recai sobre

o consumo de carne. Tal temática costuma ser foco de interesse em áreas distintas e é

constituída por análises diversas, como a questão da dominação de gênero através do tabu, ou

as interdições de cunho religioso4. Valores simbólicos, religiosos, sociais e culturais estão

relacionados à alimentação.

Algumas abordagens se referem especificamente ao consumo de carne. É possível

encontrar estudos que tentam explicar a lógica da partilha da carne dos animais de grande

porte, cuja conotação social pode ser verificada através da seleção pelo parentesco e

tolerância ao furto ou, ainda, estudos que tratam do conceito de domesticação de animais,

definível, apenas, se entendido também pelo seu significado social (propriedade viva)5. Tais

abordagens demonstram o caráter interdisciplinar verificado nos estudos históricos da

alimentação.

Como o objeto se inscreve nos domínios da História e Cultura da Alimentação, é

importante ressaltar o valor dos alimentos para além de seus aspectos nutricionais. Carlos

Roberto Antunes dos Santos, ao escrever o artigo Por uma História da alimentação, faz a

defesa do uso de ferramentas próprias ao campo multidisciplinar, ou seja, de confrontar a

História com as Ciências Sociais, a Arte e a Literatura, sem prejuízos para a identidade da

História e em favor da riqueza trazida por referências conceptuais de outras áreas6. Partindo

desta mesma premissa, em um estudo realizado em 1989, no Norte do Brasil, pesquisadores

da área de nutrição afirmaram que “é na ação das pessoas, no momento em que escolhem um

alimento, em detrimento de outro, que se pode identificar o grau de comprometimento que

têm com padrões culturais (...) capazes até de impedir que alimentos existentes em

abundância sejam consumidos”7.

No que se refere às abordagens, Ulpiano Menezes e Henrique Carneiro afirmam haver

diferentes dimensões, além das de cunho biológico e nutricional, para o entendimento de

4 CARNEIRO, Henrique; MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A História da Alimentação: balizas historiográficas. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. s.n. v. 5, jan./dez. 1997, p. 44 5 CARNEIRO, Henrique; MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Op. cit. p. 13. 6 SANTOS, C. R. A. dos. Por uma História da alimentação. In: História: Questões e Debates. Curitiba, n.26/27, jul./dez. 1997. pp. 155-156.

7 TRIGO, Marlene et al. Tabus Alimentares em Regiões do Norte do Brasil. In: Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 23. n.6, 1989.

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questões relacionadas à alimentação8. Tal afirmação torna-se relevante, uma vez que o objeto

será analisado sob a perspectiva cultural, indicativa dos velhos e novos hábitos alimentares.

Dentre os fatores que determinam esse estudo, pode-se destacar a influência exercida pelos

elementos característicos da alimentação moderna, assentada na valorização da saúde, da

estética corporal, da dietética, da agricultura biológica e da comensalidade. Para Carlos R. A.

dos Santos, a cozinha moderna não pode ser pensada separada das cadências e ditames da

dietética ou do universo do não comer. Isto acaba fomentando a criação de uma espécie de

cozinha terapêutica, estimulada, por sua vez, pela nutrição científica e pelo apelo da mídia9.

Em relação às interdições ao consumo de carne, a mídia atuou de maneira expressiva,

em 1996, quando se percebe uma mudança comportamental como a atestada por Claude

Fischler, ao afirmar que o aumento de casos da doença bovina, popularmente denominada

como “vaca louca”, fez com que pesasse sobre o hambúrguer a suspeita mortal que pesava

sobre a carne de boi, tendo como conseqüência o aumento do consumo de pizza em países

europeus10. Este autor comenta ainda, que o discurso médico e a cultura de massa possuem

um ótimo entrosamento para a interiorização das mensagens médico científicas, ou seja, o

discurso médico e o discurso midiático, principalmente no que se refere à magreza, seguem a

mesma marcha e trabalham pelas mesmas representações e pelos mesmos mitos11.

Observação semelhante fez Jean-Louis Flandrin, ao escrever que “apreciadores da

boa comida, ecologistas, consumidores obcecados pelo receio de absorverem alimentos

tóxicos defendem uma posição contrária (ao consumo de alimentos industrializados), cada

vez mais influente e que, por sua vez, poderia revelar-se um exagero (...). Todavia, a crise da

‘vaca louca’, que grassa no momento em que estamos escrevendo essas linhas, torna a

incerteza particularmente angustiante”12.

O interesse da historiografia por temáticas como a alimentação e tabus alimentares é

conseqüência de transformações ocorridas desde os primeiros anos dos Annales, com Marc

Bloch e Lucien Febvre, passando por Fernand Braudel, quando a alimentação ganhou

destaque através da publicação das enquetes, reunidas posteriormente no livro Pour une

histoire de l’alimentation, de Jean-Jacques Hémardinquer. Ou ainda pela influência de

8 CARNEIRO, Henrique; MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Op.cit. p. 13. Aqui os autores comentam a impossibilidade de tratar de temas como: fome e patologias alimentares, segurança alimentar, jejuns e dietas, demografia, adoção/rejeição de alimentos e gosto, apenas no âmbito restrito da nutrição. 9 SANTOS, Carlos R. A. dos. Alimentação moderna: fusão ou confusão. Texto apresentado no Congresso “Os sabores gastronômicos”, realizado pela UnB, jul.2006, Brasília. 10 FISCHLER, Claude. A Mcdonaldização dos costumes. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 857. 11 FICHLER, Claude. L’homnivore. Paris: O. Jacob, 1990, p. 310. 12Ibid. p. 707

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historiadores que não eram ligados à Escola dos Annales, a exemplo de Norbert Elias, Johan

Huizinga ou Jules Michelet13, que trataram de questões como crenças e sentimentos e –

especificamente Elias – dos padrões de comportamento à mesa como parte do processo

civilizador.

Embora essas influências tenham sido decisivas para a incorporação da alimentação

nos estudos históricos, foi a proposta posterior, elaborada pela chamada Nova História, que

possibilitou o triunfo desta temática. Isto se deve, em boa medida, pela aproximação entre

história e ciências sociais. De acordo com Carlos Z. F. de Sena Junior, “a partir da

importação de modelos teóricos e metodológicos das outras disciplinas das ciências humanas

que a História se desenvolveu conceitualmente. Houve o tempo da sociologia, da psicologia

e, principalmente, da antropologia, que durante longos anos nutriu a história de conceitos-

chave, como o de cultura, por exemplo (cultura material, cultura simbólica, cultura popular e

cultura de elite, entre outras)”14.

De acordo com Ulpiano Menezes e Henrique Carneiro, as pesquisas em História e

Cultura da Alimentação contemplam, basicamente, cinco enfoques: o biológico, o econômico,

o social, o cultural e o filosófico. Nesta perspectiva, um mesmo objeto pode mudar de

natureza em conformidade com o enfoque escolhido15. Sob o ponto de vista biológico,

destacam-se o estudo de Colin Spenser, The heretic’s feast. A history of vegetarianism16, de

1995, e o livro de Nick Fiddes, Meat, a Natural Symbol17, lançado em 1991, ambos sem

tradução para o português. Nos dois casos, a dimensão biológica é complementada com a

análise de implicações sociais, culturais e históricas a respeito do consumo de carne. O estudo

de Fiddes analisa o lugar central ocupado pela carne na dieta convencional, tratando-a como

um “símbolo natural”. Ele questiona o fato de argumentos nutricionais, históricos, políticos e

econômicos não serem suficientes para demonstrar tal centralidade18. Já a análise de Spencer

concentra-se na histórica relação entre humanos e o consumo de carne. O autor divide o

13 CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios sobre teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 132 14 SENA JUNIOR, Carlos Zacarias F. de. A dialética em questão: considerações teórico-metodológicas sobre a historiografia contemporânea. In: Revista Brasileira de História v. 24 n. 48. São Paulo, 2004. 15 Ibid. p. 11 16 SPENCER, Colin. The heretic’s feast. A history of vegetarianism. Hanover: University Press of New England, 1995. 17 FIDDES, Nick. Meat, a Natural Symbol. London: Routledge: 1991. 18 Segundo o autor: “This analysis is an attempt to redress the balance and, sometimes by deliberate overstatement, to demonstrate the importance of a social side of food habits which is all to often overlooked by a society convinced of its sophisticated rationality”. Ibid. p. ix

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estudo em blocos temporais, nos quais destina grande atenção aos aspectos religiosos e

filosóficos de cada época.

Seguindo a linha de estudos de ampla abordagem cronológica, temos a obra de Jean-

Louis Flandrin e Massimo Montanari, História da Alimentação, publicada no Brasil em 1998.

Muitos textos abordam o lugar da carne ao longo da história e o papel simbólico representado

por ela. Além disso, o livro representa uma importante referência geral sobre os hábitos

alimentares, com abordagens diversas, úteis à compreensão das relações entre homens e

alimentos19.

Já a relação entre os homens e a carne segue com a importante contribuição de Claude

Fischler, autor do livro L’homnivore, de 1990, no qual analisa a história do homem enquanto

ser onívoro, sob a perspectiva de sua evolução e representações20. Neste sentido, o autor

ocupa-se da questão da mudança ao longo desta história alimentar específica. Para ele:

Se a alimentação humana necessita ser estruturada, ela é ao mesmo tempo fundamentalmente estruturante: individualmente porque, como nós temos visto, ela socializa e acultura a criança; coletivamente porque ela simboliza e traduz, nas suas regras, o triunfo da cultura contra a natureza, da ordem social contra a selvageria21. Para Fischler, o biológico e o social, o fisiológico e o imaginário são fatores

estreitamente ligados ao ato alimentar.

Do ponto de vista cultural, ressalta-se a importância de trabalhos que analisam as

formas de consumo dos alimentos enquanto espaços de articulação de sentido, valores e

mentalidades22. Entre os estudos que contemplam os valores simbólicos assumidos pela carne,

cito o texto de Julia Twigg, Vegetarianism and the meaning of meat, de 1983, sobre a

diferenciação social de gênero e sua relação com a carne23. A autora comenta a associação

entre carne e virilidade, fato que, posteriormente, terá implicações diversas, como o próprio

movimento vegetarianista24. Javier Lifschitz, no texto O alimento-signo nos novos padrões

19 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 20 FICHLER, Claude. L’homnivore. Paris: O. Jacob, 1990. 21 “Si l’alimentation humaine a besoin d’être structurée, elle est en même temps fondamentalement structurante: individuellement parce que, comme nous l’avons vu, elle socialise et acculture l’enfant; collectivement, parce qu’elle symbolise et traduit dans sés règles le triomphe de la culture contre la nature, de l’ordre social contre la sauvagerie” Op. cit. p. 389-390. 22 CARNEIRO, Henrique; MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Op.cit. p. 17. 23 TWIGG, J. Vegetarianism and the meaning of meat. In: MURCOTT, A., ed., The sociology of food and eating. Essays on the sociological significance of food. Aldershot: Gower, 1983. 24 CARNEIRO, Henrique; MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Op.cit. p. 23.

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alimentares25, estuda o alimento enquanto significação no âmbito da cultura material. Apesar

de centrar-se na questão da produção de alimentos-signos sob a lógica econômica e industrial,

o autor faz a análise do alimento “significado” e afirma que “já no Antigo Testamento

(Levítico) existem prescrições dietéticas que classificam as carnes em "puras e impuras" (...).

Isto é, a alimentação está enraizada na cultura, está carregada de significações históricas, de

curta ou longa duração, que se relacionam com os diversos contextos socioculturais”26.

Sobre a questão dos tabus alimentares, destaco o estudo de Mary Douglas, Pureza e

Perigo27, publicado originalmente em 1966 e reeditado em 1996. Douglas procura na tradição

bíblica conceitos de pureza e perigo associados à alimentação, com especial destaque aos

animais interditos. Pode-se perceber, entre as definições de sagrado e profano, que vários

alimentos carregam tal designação.

Fato observado também por Carlos R. A. dos Santos ao mencionar o exemplo do

pão28, que é considerado alimento sagrado, tanto no público quanto no privado. Para além das

categorias alimentares de sagrado/profano, pensemos nas mesmas categorias, mas atribuídas

aos discursos médicos. Pode-se fazer uma analogia na qual o discurso médico-científico

representaria o sagrado enquanto as práticas populares representariam o profano. Carlo

Ginzburg faz essa diferenciação, em Mitos, emblemas e sinais, ao comentar a ligação entre

medicina e os saberes indiciários. Para ele, “talvez só no caso da medicina a codificação

escrita de um saber indiciário tenha dado lugar a um verdadeiro enriquecimento (mas a

história das relações entre medicina culta e medicina popular ainda está por ser escrita)”29.

É emblemático também o polêmico estudo de Claude Lévi-Strauss intitulado O cru e o

cozido, no qual procura uma lógica de qualidades sensoriais em sociedades próximas pela

história, geografia e cultura30. Ele utiliza categorias empíricas, como cru, cozido, seco,

molhado, fresco e podre, para criar ferramentas conceituais a fim de estabelecer proposições

que expliquem uma lógica de qualidades sensoriais em diferentes sociedades31.

Em abordagens que contemplam o âmbito nacional, cito o estudo de Luís da Câmara

Cascudo, História da Alimentação no Brasil. Apesar do enfoque etnográfico, a publicação 25 LIFSCHITZ, Javier. O alimento-signo nos novos padrões alimentares. Revista Brasileira de Ciências Sociais. ANPOCS, n. 27. Sobre a simbologia dos alimentos ver: BARTHES, Roland. Pour une psycho-sociologie de l’alimentation contemporaine. Annales, n° 16, pp. 977-86, 1961. 26 Ibid. p. 4. 27 DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1996. 28 SANTOS, C. R. A. dos. Por uma História da alimentação. In: História: Questões e Debates. Curitiba, n.26/27, jul./dez. 1997. pp. 157. 29 GINZBURG. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 167. 30 LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Mitológicas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 31 Ibid. p. 11.

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trata dos padrões alimentares do país, incluindo menções aos tabus na alimentação brasileira.

A respeito do simbolismo da comida, vale destacar o texto de Roberto da Matta, Sobre o

Simbolismo da Comida no Brasil32, de 1987, que contribui para o entendimento sobre a

sociedade brasileira e o papel da comida para a definição das identidades e da memória. Em

abordagem mais regional encontra-se o estudo de Carlos R. A. dos Santos, História da

Alimentação no Paraná33, no qual há uma análise da inserção de determinados alimentos,

inclusive a carne, na província do Paraná no século XIX. Este estudo é importante, na medida

em que possibilita uma análise historiográfica do consumo alimentar dos habitantes deste

estado.

Quanto às relações entre história e medicina, destaco o texto de Maria Helena C. de A.

Cardoso, História e Medicina: a herança arcaica de um paradigma, no qual a autora

questiona se, entre medicina e história, existem fundamentos comuns de construção e

interação. Um ponto importante levantado é a afirmação de que a atual utopia da conquista da

saúde está relacionada ao entendimento de que o indivíduo tenha o poder de conhecer, por um

lado “seu patrimônio genético e, por outro esteja apto a avaliar as influências ambientais e

os modos de comportamento que podem favorecer a conjunção de dois fenômenos aleatórios:

o inato e o adquirido”34. Já a tese de Sônia Maria de Magalhães, intitulada Alimentação,

saúde e doenças em Goiás no século XIX, contribui para a construção de um quadro

historiográfico composto por trabalhos que envolvem a relação dialógica entre alimentação e

medicina35. A autora destaca as ideologias médicas envolvendo hábitos e interdições

alimentares. Apesar do estudo se referir ao século XIX, é um bom exemplo de trabalho que

analisa a alimentação por meio das práticas médicas.

Para o estudo do objeto, colocado em uma perspectiva de análise que envolve o estudo

dos discursos, é importante a explicação de conceitos chaves como cultura, discurso e

representação. Para Edward P. Thompson, a cultura é constituída por um conjunto de

diferentes recursos, havendo sempre uma troca entre o escrito e o oral, no qual a cultura torna-

se uma arena de conflitos. Ela nem sempre é, pois, consensual e livre de contradições36.

32 DA MATA, R. Sobre o Simbolismo da Comida no Brasil. O Correio, Rio de Janeiro, v.15, n.7, pp.22, jul.1987 33 SANTOS, Carlos Roberto A. História da Alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. 34 CARDOSO, M. H. C. de A. História e Medicina: a herança arcaica de um paradigma. In: História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 6, n. 3. Rio de Janeiro: nov. 1999/fev. 2000. 35 MAGALHÃES, Sônia Maria de. Alimentação, saúde e doenças em Goiás no século XIX. Tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual Paulista, 2004. 36 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Introdução: Costumes e Cultura. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

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Roger Chartier compartilha desta mesma idéia, ainda que a faça em outros termos. Ele

propõe um conceito de cultura enquanto prática e seu estudo deve estar associado às

categorias de apropriação e representação. Para ele, “as práticas visam a fazer reconhecer

uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a significar

simbolicamente um estatuto e uma posição”37. Alguns elementos encontrados nos discursos

médicos precedem a uma idealização dos hábitos alimentares e geram, conseqüentemente,

representações sobre esses hábitos.

Sobre tais representações, Mássimo Montanari e Jean-Louis Flandrin observam inversões

em antigos comportamentos alimentares, a exemplo dos alemães, que antes eram

extraordinários comedores de carne e hoje estão propensamente marcados pelo

vegetarianismo. Isto pode ser verificado na reportagem da revista alemã Der Spiegel,

intitulada Pommern unter Palmen38, ao comentar que os habitantes da cidade de Pomerode,

em Santa Catarina, podem ser considerados mais alemães que os nascidos na própria

Alemanha. Há um destaque para os pratos típicos servidos nos restaurantes da cidade

catarinense, que seriam fartos como no passado, enquanto a atual cozinha alemã prefere evitar

gorduras e calorias, estimulada por tendências médicas.

Retomando Chartier, objetos culturais como esta reportagem seriam produzidos entre

práticas e representações, e os sujeitos produtores e receptores circulariam entre estes dois

pólos. Neste sentido, José D’Assunção Barros39 refere-se às práticas e representações como

“modos de fazer” e “modos de ver”, respectivamente. Desta forma, há uma necessidade de

entender o contexto médico no qual estes discursos foram gerados e a maneira como eles

recaem sobre o cotidiano.

Ao comentar o “problema” histórico, Julio Arostegui esclarece que “a pesquisa histórica

surge de ‘achados’ – de novas fontes, de novas conexões entre as coisas, de comparações –

ou surge de insatisfações com os acontecimentos existentes, insatisfações que, por sua vez,

são provocadas pelo surgimento de novos pontos de vista, de novas ‘teorias’, ou de novas

curiosidades sociais”40. O desenvolvimento da pesquisa histórica está diretamente

relacionado à disponibilidade e interpretação das fontes. Desta forma, optamos por dois tipos

de fontes: o discurso médico de um lado e os documentos de saúde pública de outro.

37 CHARTIER, Roger. À beira da Falésia. A História entre certezas e inquietações. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. p. 73. 38 Esta revista é considerada a maior do país, em número de leitores. São contabilizados cerca de um milhão de leitores. 31.03.2008 39 BARROS, José D’Assunção. O campo da História. Especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004 40 AROSTEGUI, Julio Op. cit. p. 470.

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CAPÍTULO 2

2.1. A CARNE

Neste capítulo será feita a análise da presença da carne no cotidiano e o seu status nos

discursos médicos ao longo da história. O estudo da humanização da conduta alimentar parece

estar intrinsecamente ligado à questão do consumo de carne. Os estudiosos do tema costumam

fazer associações entre a carne e a humanização dos hábitos alimentares. Como exemplo, se

pode citar o questionamento feito por Jean-Louis Flandrin, a respeito da carne fresca e da

invenção dos banquetes.

Outra associação pode ser pensada na mesma direção proposta por Cathèrine Perli ao

escrever sobre as estratégias alimentares nos tempos pré-históricos. A autora comenta que

mudanças ambientais ocorridas na África forçaram os homens a uma alimentação mais rica

em carnes. Este fato gerou uma série de mudanças, como a melhor organização das caçadas,

que, por sua vez, teria levado ao desenvolvimento das faculdades intelectuais, da

comunicação e da divisão por sexo das atividades do grupo. Perli chega a comentar que “a

caça teria praticamente dado origem à organização social e familiar, considerada como

tipicamente humana. É por ter se tornado caçador que o australopiteco teria se tornado

humano”41.

O consumo de carne na antiguidade sempre foi emblemático, pois não era

considerado, pelas populações antigas do Mediterrâneo, um bem tão primordial quanto outros

produtos42. No entanto, de acordo com Cristiano Grottanelli, “o consumo de carne, apesar de

secundário, estava revestido de ideologia e simbolismo”43. Neste período os animais

domésticos não eram criados para o consumo – exceto o porco – e a quebra desta interdição

representava um problema, pois o animal doméstico estava inserido numa situação de caráter

pragmático, a exemplo do boi, uma vez que era utilizado para as atividades de trabalho.

Grottanelli cita uma passagem de Heródoto para confirmar a relação direta entre o

consumo ritual e a matança animal, ou seja, o consumo, neste caso, era seguido da idéia de

sacrifício como forma ritual, “os sistemas sacrificiais que admitem o consumo de uma parte

41 PERLI, Cathèrine. As estratégias alimentares nos tempos pré-históricos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 39. 42 MONTANARI, Massimo. Sistemas alimentares e modos de civilização. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 114. 43 GROTTANELLI, Cristiano. A carne e seus ritos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 120.

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da vítima caracterizam-se principalmente pela partilha dos animais sacrificados entre os

homens e os deuses e pelo banquete dentro do grupo social”44. Além desta questão, havia a

interdição às carnes que não foram mortas pelo homem, representando um problema de

higiene. Neste período, é possível encontrar movimentos religiosos, como os pitagóricos e o

movimento órfico, que se posicionavam contra o ato de matar um animal.

A carne é um dos alimentos mais sujeitos à interdições. É possível encontrar restrições

de vários tipos. As de caráter religioso são especialmente curiosas e importantes, pois foram

formuladas há muito tempo, mas ainda são verificadas em vários grupos. Os dois casos mais

emblemáticos são as regras alimentares hebraicas e muçulmanas. As interdições hebraicas

referem-se ao ajuste dos animais ao plano divino. Os animais estão divididos em: água, terra e

ar. Os que habitam a água devem nadar, os da terra devem andar e os do ar, voar. Aqueles que

são de um espaço, mas usam o meio de locomoção de outro estão desobedecendo ao plano

divino, logo, são prescritos pela cultura judaica. Não existe a aceitação de seres híbridos, “na

alimentação autorizada, a integridade é um componente de ‘pureza’”45.

A proibição da carne de porco, bastante emblemática e característica dessa cultura,

acontece porque o porco, apesar de ser um animal que anda e ter o casco fendido em dois

(condição importante para definir a pureza de um animal), ele não rumina. Não há muitas

menções além desta inadequação para justificar a proibição do porco. De acordo com Mary

Douglas, pode-se interpretar as antigas prescrições relacionadas à carne por dois cominhos

distintos: o de que as interdições são arbitrárias e sem sentido, ou seja, o de que as regras

alimentares não são simbólicas e sim éticas e disciplinares, ou entender as determinações

alimentares dentro de um esquema que pensa as atitudes divididas entre positivas e negativas,

entre aquelas que agradam à santidade e fazem o homem evoluir ou aquelas que o afastam do

caminho considerado certo.46

Em muitos casos, as interdições acontecem por simples oposição às práticas que se

quer diferenciar. Isto quer dizer que, entre os israelitas ou cristãos, ocorre a adoção de

determinadas regras a fim de possibilitar coerência do grupo e fomentar um sistema de

identificação baseado na oposição ao outro, neste caso, representado pelas religiões pagãs. No

entanto, como lembra Douglas, apesar da recusa a determinados hábitos alimentares, existe a

44 Ibid. p. 127. 45 SOLER Jean. As razões da Bílbia: regras alimentares hebraicas. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 87. 46 DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 67.

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adoção de outros. A lógica que rege a adoção/rejeição é bastante singular a cada religião e

está ligada à maneira de conceber o passado e interagir com as influências externas47.

A religião pode explicar, também, a variação de um modelo alimentar a outro. Após a

disseminação da religião cristã, na Europa, houve o aumento do consumo de carne e a

diminuição das práticas sacrificiais. Apesar dessa constatação, não se pode dizer que a

religião católica elimina por completo a idéia de sacrifício, pelo contrário, ela empresta, de

alguma forma, do conjunto de ritos pagãos. Com o passar do tempo, o modelo ideológico

alimentar greco-romano se modificou em razão da influência das culturas cristã e germânica,

em especial na maneira de conceber o consumo da carne. Ainda que a tríade pão, óleo e vinho

faça parte da cultura cristã, a carne passou a desempenhar um papel diferente no entendimento

religioso, principalmente no que concerne à conotação de sacrifício.

Durante toda a Idade Média, na Europa, eram considerados nobres, os assados de

caças e aves domésticas. A carne bovina constituía a chamada carne de açougue e era

utilizada, na maioria das vezes, para fazer caldos. Até o século XVIII houve um aumento do

uso da carne de açougue para a preparação de assados, sopas e carnes de panela. Além disso,

começou a haver uma melhor distinção dos diferentes cortes e peças de carne – em oposição à

tradição medieval de assar a caça inteira. Os livros destinados às donas de casa burguesas

eram os que mais mencionavam os usos de diferentes partes e cortes de carne, talvez porque,

diferente da realidade principesca, fosse necessário aproveitar melhor as carnes de açougue48.

A partir desta atitude, a aristocracia passou a consumir as diversas partes da carne de

açougue. Pensando em distinção social, há uma considerável mudança: os que antes comiam

caça e aves são os que agora passam a comer os bons cortes. Algumas partes passam a ser

secundárias e descartadas. Flandrin usa como exemplo a carne de porco: primeiro foram

refutadas as orelhas, depois as costelas, seguidas do focinho, barriga, vísceras e lombo. Em

1670, por exemplo, o rei da França só comprava toucinho de porco, que representava a

gordura utilizada numa época em que a manteiga ainda não havia se difundido por completo.

A situação assim evoluiu até que se verifica uma nova atitude em relação ao porco: o presunto

ocupa o espaço de destaque e as outras peças praticamente desaparecem, por algum tempo,

das mesas mais requintadas49.

47 Ibid. p. 65. 48 FLANDRIN, Jean-Louis. A distinção pelo gosto. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 276. 49 Ibid. p. 277.

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De acordo com Paolo Sorcinelli, em 1908 o médico Albetoni escrevia que era inegável

a importância dos alimentos à base de carne para a saúde, pois suas “propriedades protéicas

alimentam os centros nervosos e apresentam o mérito de aumentar a “atividade social” dos

indivíduos, inclusive a conjurar as doenças mentais”50. A prescrição envolvendo a carne

também era observada em albergues italianos na primeira metade do século XX, que

aplicavam o critério da diferenciação dietética em função do sexo. Assim, a quantidade de

carne de boi cozida dada aos homens era superior à destinada para as mulheres51.

2.2. A CARNE NO CONTEXTO ATUAL

É importante entender como um alimento se insere em uma comunidade, grupo ou

sociedade, articulado a uma série de regras específicas. Sua inserção está ligada a um

conjunto de referências e a uma estrutura total do pensamento. No caso da carne no Brasil,

pode-se dizer que os animais aceitos e os interditos, de modo geral, são aqueles carregados de

algum caráter simbólico formulado dentro de um grupo específico. É o caso da interdição à

moréia no Pará, por se assemelhar à cobra e o caso de cães e gatos em todo o país. As

variações entre o que é ou não aceito ocorrem de um domínio cultural a outro, mas existem

fatores comuns a vários contextos como, por exemplo, as classificações de “parentesco” com

o animal. Tomadas as devidas proporções, a definição de animal doméstico se assemelha à

conotação antiga dada ao boi e ao carneiro, por exemplo.

Em muitos sentidos, e não apenas em relação à carne, comida e saúde se articulam

com o trabalho. Neste caso, a doença é percebida como uma situação que priva o organismo

de seus afazeres. O ciclo se fecha pela associação que percebe o trabalho como a atividade

que propicia a comida – mas ao mesmo tempo exige a comida. A relação comida-trabalho-

saúde determina, ainda, o que deve ser servido na refeição52. Woortmann analisa como a

relação com o trabalho determina as escolhas alimentares.

Assim, um alimento deve nutrir e prevenir contra as doenças que, por sua vez, afastam

o indivíduo de seu trabalho no campo. Além disso, a associação pode ser feita lembrando as

50 SORCINELLI, Paolo. Alimentação e saúde. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 795. 51 Ibid. p. 800. 52 WOORTMANN, Klaas Axel A. W. O sentido simbólico das práticas alimentares. In: Coletânia de Palestras do 1º Congresso Brasileiro de Gastronomia e Segurança Alimentar. Brasília: UnB, 2004. p. 14.

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relações de gênero entre comida, trabalho e aspectos da arquitetura das casas. Para ele, o cru e

a despensa estão relacionadas ao homem, enquanto o cozido e a cozinha são destinados à

mulher, ou seja, o papel sexual dos membros da família estão ligados aos ideais alimentares.

É comum observar, no país, que na preparação de uma marmita para alimentar um

operário em seu espaço de trabalho – portanto um espaço público – a carne deve ser colocada

por cima, em franca alusão ao seu significado simbólico. Quanto à saúde, alguns estudos

fazem oposição à refeição fria – que faz mal à saúde e a refeição quente, que faz bem.

Woortmann demonstra que em muitas regiões do país os alimentos são percebidos por sua

natureza enquanto quentes e frios. Assim, a carne, por exemplo, quando é branca, é

considerada fria e quente quando é amarelada ou vermelha é considerada quente. “Há um

critério geral que define a qualidade do alimento: sua relação percebida com o organismo

humano. Comidas quentes são aquelas percebidas como ofensivas ao aparelho digestivo,

enquanto as frias são consideradas ofensivas ao aparelho circulatório”53. Não são apenas as

comidas, mas também as doenças que podem ser percebidas pelo binômio quente-frio. Assim,

ferimentos sem pus e doença dos rins, seriam frias, enquanto a diarréia e ferimentos

inflamados seriam quentes.

Outro ponto de análise para a participação da carne no cotidiano é a respeito de seu

papel social. É emblemática, também, a questão da mulher. Em muitas culturas o ciclo

fisiológico da mulher ganha destaque. Assim, devem-se cercar de cuidados, entre os quais as

interdições alimentares se tornam fundamentais e se articulam de modo a formar uma

economia simbólica. “O churrasco domingueiro também implica uma inversão de papéis. É

comida, mas é preparado pelos homens ao ar livre, no pátio, enquanto as mulheres preparam

na cozinha as várias modalidades de salada e os preparativos, isto é, os componentes

secundários que “acompanham” a carne”54.

Seguindo a idéia de que a comida relaciona-se com as formas de trabalho, Elle F.

Woortman, ao pesquisar as comunidades teuto-brasileiras do Rio Grande do Sul, destaca que,

quando os homens estavam ligados apenas ao trabalho no campo, havia uma idéia de que a

comida deveria ser forte e pesada para que se pudesse agüentar o tipo de trabalho. Quando a

porcentagem de homens que passa a trabalhar em outras atividades, consideradas menos

53 Ibid. pp. 26-27. 54 WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. A lógica e a simbólica dos sabores tradicionais. In: Coletânia de Palestras do 1º Congresso Brasileiro de Gastronomia e Segurança Alimentar. Brasília: UnB, 2004. p. 53.

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desgastantes, a comida do cotidiano passa a ser mais leve e a banha e margarina cedem lugar

ao óleo de soja e margarina, por exemplo55.

Outro exemplo refere-se à inserção da mulher no mercado de trabalho. Em especial na

década de 1980 é sentida uma grande mudança nos cardápios domésticos, com a inclusão de

uma boa parte de alimentos congelados, ou com o aumento do consumo de refeições fora de

casa. O discurso médico logo passou a voltar-se para os problemas relacionados ao comer fora

e às doenças decorrentes da má alimentação. Além do discurso médico, houve o aumento da

preocupação com a higiene, ou seja, a segurança alimentar envolta ao ato de comer fora.

Existe aí uma dicotomia: há a necessidade de comer fora ou de preparar alimentos

congelados, mas há o apelo para a questão da saúde e beleza, que preconiza uma alimentação

natural e diversificada56.

No que se refere à relação da carne com a medicina, pode-se dizer que, em muitas

regiões do país existem prescrições entre alimentação forte e fraca, “a categoria forte associa-

se à categoria sadio (e não adequada ao doente). Idealmente, uma pessoa sadia deve comer

comida forte para continuar sadia, para ter resistência para o trabalho, para reproduzir a

‘força para trabalhar’. No entanto, não são todos os que podem comer comida forte; esta

pode, de fato, “ofender”. O que se coloca aqui é uma relação percebida entre a comida e o

organismo”57. O que se percebe é que deve haver uma diferenciação entre a comida para

mulheres, velhos e crianças. A associação entre diferentes organismos, e diferentes

prescrições ligando as características do organismo a diferentes normas alimentares lembram

as prescrições dietéticas da antiguidade.

Atualmente, nas grandes cidades, existe uma variação das condutas alimentares, como

lembra Márcia Flausino: “é certo que os hábitos alimentares, adquiridos desde a infância,

são bastante arraigados. Lembremo-nos: até bem poucos anos, as crianças eram obrigadas a

comer legumes e frutas, mas o consumo de carne não era tão estimulado. Hoje, as crianças

são levadas pela mão dos pais para comer sanduíches de fast food em que o principal

ingrediente é a carne processada”58. A prática alimentar, neste sentido, faz com o gosto seja

reeducando, o que representa, na prática, uma mudança estrutural e não conjuntural.

55 Ibid. p. 56. 56 FLAUSINO, Márcia Coelho. Gastronomia da fome e segurança alimentar. In: Coletânia de Palestras do 1º Congresso Brasileiro de Gastronomia e Segurança Alimentar. Brasília: UnB, 2004. p. 78. 57 WOORTMANN, Klaas Axel A. W. Ibid. p. 13. 58 FLAUSINO, Márcia Coelho. Ibid. p. 79.

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A questão do fast food é bastante emblemática e tratada incansavelmente pela mídia e

pelos médicos. Como exemplo tem-se os filmes Super Size Me, de Morgan Spurlock, no qual

o próprio diretor se submeteu, durante um mês, a uma dieta em que consumia apenas produtos

do McDonald’s. Durante o período ele engordou mais de 10 kg e, por meio de monitoramento

freqüente, verificou-se que seus níveis de colesterol aumentaram tanto que chegou ao nível de

comprometer seu sistema circulatório. Outro filme que discute o tema chama-se Fast Food

Nation, no qual a história desvenda o lado cruel da indústria de alimentos que abastecem as

lanchonetes de comida rápida nos Estado Unidos. Estes dois filmes foram produzidos no

contexto norte-americano, mas bem poderiam servir ao contexto brasileiro.

Por outro lado, chama a atenção o apelo para a questão da saúde, feito por diversas

indústrias alimentícias. Neste sentido, “O fornecimento regular de informações sobre hábitos

alimentares e estilos de vida saudável está atrelado a condições impostas pelo lucrativo

mercado de alimentos industrializados (...) O grande paradigma é o consumo e a inclusão

social, em detrimento da cultura e da cidadania”59.

No entanto, apesar de todo o discurso e campanha midiática, há muita desinformação,

ainda a respeito da qualidade nutricional dos alimentos industrializados. Tânia Montoro fez

um estudo no qual analisou o caderno de turismo de três jornais de grande circulação no país,

a fim de entender como a imagem da gastronomia é construída e veiculada, para ela “A

imagem da gastronomia nos jornais analisados, desta forma, reduz-se à ‘boa culinária’

simplificando o fazer gastronômico e os processos envolvidos desde o plantio até o consumo

dos alimentos. Poucos profissionais envolvidos no setor são ouvidos nas reportagens e

matérias destacadas ao assunto nas edições. Químicos, nutricionistas, agentes sanitários,

agricultores, tecnólogos de alimentos, biólogos, bioquímicos, médicos não se configuram

como atores e fontes para os jornalistas e editores das matérias sobre gastronomia”60.

Por fim, vale lembrar que em todos os tempos e em praticamente todas as culturas,

sempre existiu a relação entre alimentação e saúde. Isso porque, não somente a abundância ou

escassez estão diretamente ligadas à sobrevivência humana, como também porque as

explicações médicas sobre os gêneros alimentícios sempre influenciaram as atitudes humanas

perante a comida, “daí a noção comum de regime para a regulamentação do corpo e do

59 Ibid. p. 88. 60 MONTORO, Tânia. A construção de imagens da gastronomia nos cadernos de turismo dos jornais brasileiros. In: Coletânia de Palestras do 1º Congresso Brasileiro de Gastronomia e Segurança Alimentar. Brasília: UnB, 2004.P. 113.

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Estado”61. Henrique Carneiro Ele lembra ainda, da importância dos chamados alimentos-

drogas: álcoois, cafeína, ópio e cogumelos, “o alimento é o primeiro e o maior dos

paradigmas do comportamento moral, ou seja, da aquisição de autocontrole”62. O autor

menciona o crescimento de problemas de saúde como obesidade, diabetes e distúrbios

cardiovasculares, como ligados à fetichização das mercadorias, ou seja, do estímulo à indução

deliberada do vício alimentar. Um exemplo de todo esse contexto é, novamente, a questão do

fast food. A demanda por consumidores e por matéria-prima para girar essa indústria

alimentícia, faz com que importantes setores da sociedade e o próprio sistema alimentar

sofram uma brusca modificação. Como exemplo tem-se o sistema alimentar baseado no

consumo de carne, carboidratos e açúcar.

2.3. HISTÓRIA, ALIMENTAÇÃO E MEDICINA

Alimentação e saúde sempre possuíram algum tipo de ligação. Ora acentuada, ora

arrefecida, o fato é que as condutas alimentares são muitas vezes influenciadas diretamente

pelo conhecimento médico. Desde que o homem passou escolher os alimentos, dentro de

todas as possibilidades dadas pela natureza, as escolhas tornaram-se um importante fenômeno

histórico e cultural. A humanização das condutas alimentares não só predispôs os seres

humanos a escolher o que vão comer, mas principalmente à atribuir significados aos

alimentos. De acordo com Jean-Louis Flandrin, os homens parecem ter agido, em cada região,

selecionando e escolhendo alimentos que a natureza oferecia, mas sempre obedecendo à

diversidade de sua cultura. Caso contrário, como explicar o fato de franceses comerem

escargots e rãs, os ingleses sopa de tartaruga e os escoceses bucho de carneiro, se em todas as

regiões da Europa existem escargots, rãs, tartarugas e carneiros?63 Ou seja, não basta saber o

que se come, é preciso entender como se construíram as regras que determinam aquilo que

efetivamente se leva à mesa.

Dentre tantas regras a que a alimentação está sujeita, apenas algumas adquirem a

conotação de interditos alimentares, podendo aparecer sob a forma de tabus religiosos,

higiênicos e dietéticos. Os interditos de cunho dietéticos são extremamente importantes para

61 CARNEIRO, Henrique. Comida e Sociedade. In: Coletânia de Palestras do 1º Congresso Brasileiro de Gastronomia e Segurança Alimentar. Brasília: UnB, 2004. P. 141. 62 Ibid. p. 143. 63 FLANDRIN, Jean-Louis. Humanização das condutas alimentares. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 30.

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se entender a cozinha da antiguidade, por exemplo. De acordo com Edda Bresciani, as receitas

do antigo Egito lembram, muitas vezes, prescrições médicas. Isto ocorre tanto pela

organização da receita, quantidade de ingredientes e técnicas de preparação, quanto pelo

próprio uso da receita como remédio. A autora cita um exemplo de preparo com fins

terapêuticos: “Receita para cozer a carne de modo a curar as indisposições estomacais.

Tomar o lírio, misturá-lo à carne de pombo cozida com carne de ganso, funcho, uma porção

de favas, água quente, farinha absorvente; juntar uma infusão de trigo e dois pés de chicória;

cortar em pedaços bem miúdos, coar, beber, [macerar...] coar, beber”64.

Massimo Montanari escreve que, para entender o modelo de civilidade que se

desenhava na organização greco-romana é preciso pensar em três valores distintos: a

comensalidade, os tipos de alimentos consumidos e a cozinha dietética. O autor lembra que,

além dos rituais e regras, os próprios gêneros alimentícios servem para identificar os seres

humanos enquanto seres civilizados e não-civilizados. Neste sentido, a carne distingue a

alimentação dos homens da alimentação dos deuses, enquanto o pão, alimento da civilidade

por excelência, distingue os bárbaros dos civilizados por representar um produto “cultural”65.

O que se conclui deste exemplo é que o civilizado é aquele que fabrica seus alimentos numa

clara distinção àqueles que se alimentam de produtos prontos, coletados diretamente da

natureza. Além da associação com a civilidade, o pão ganha status em decorrência da ciência

médica, uma vez que era visto como o alimento ideal por estar de acordo com o equilíbrio

entre quente, frio, seco e úmido (preceitos hipocráticos). Sobre o diálogo com a medicina na

antiguidade, o autor comenta que “é na noção de “dieta”, de uma norma cotidiana – e

encontramos aí a “regra” como fundamento do comportamento civilizado – ditado pelo

estado de saúde do indivíduo, pelo tipo de trabalho que desempenha, por sua idade e sexo

depois por suas condições exteriores, meio e clima que, junto com as condições subjetivas

contribuem para determinar os valores humorais”66. É importante salientar, como faz o

próprio Montanari, que tais valores são essencialmente utopias e modelos ideológicos, que

apenas em partes correspondem à realidade cotidiana, assim como apenas parte da população

empenhava tempo e dinheiro para cuidar da saúde e seguir as prescrições médicas

relacionadas à alimentação.

64 Livro de Medicina, em demótico (século II d.c). pg. 78. 65 MONTANARI, Massimo. Sistemas alimentares e modelos de civilização. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 108. 66 Ibid. p. 117.

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Em relação à medicina antiga, pode-se dizer que estava fundamentada em três ramos

principais: a cirurgia, a farmacologia e a dietética. “Plenamente convencidos da importância

da alimentação na vida do homem, são ou doente, os antigos preocupavam-se com a relação

de causalidade entre a alimentação e a saúde e com a relação entre dietética e outros ramos

do saber médico”67. A alimentação atuava de forma a possibilitar o equilíbrio dos humores

corporais. A antiguidade se ocupou por muito tempo dessa fisiologia dos humores,

desenvolvida por Hipócrates. Segundo esta teoria, as doenças eram conseqüência do

desequilíbrio dos quatro humores corporais: sangue, linfa, bílis amarela e bílis negra. Para se

descobrir nos alimentos os efeitos terapêuticos, eles eram observados a fim de estabelecer

uma classificação prévia e qualificá-los entre: seco, úmido, quente e frio. Além das

propriedades próprias de cada alimento, era importante conhecer as transformações que eles

poderiam sofrer em decorrência do modo de preparo. Assim, se um alimento era considerado

demasiado seco, poderia ser preparado de forma que o deixasse úmido, obedecendo,

novamente ao princípio de equilíbrio. Quanto aos animais, suas propriedades terapêuticas

poderiam variar, também, conforme a parte do corpo que se consumia68.

Uma outra característica atribuída à medicina antiga, refere-se à alimentação utilizada

não somente para tratar os doentes, mas para conservar a vitalidade entre os homens de boa

saúde. Assim, as prescrições médicas influenciavam diretamente a cozinha e, por serem

dotadas de preocupações terapêuticas, eram partidárias da moderação. A própria história das

receitas e preparações alimentares deve muito aos conhecimentos médicos. A idéia de

equilíbrio influenciou as misturas a serem feitas e as formas de preparo dos alimentos: “eles

ferveram, cozeram, misturaram e temperaram as substâncias fortes e não-temperadas com

aquelas que são fracas, conformando-as todas à natureza e ao poder do homem [...] que

nome mais justo ou mais adequado se poderia dar a essa descoberta e a essa procura que

não medicina?”69

Na passagem da Antiguidade para a Idade Média, a oposição entre duas civilizações

distintas – greco-romana e germânica – repercutiu sobre o modelo alimentar europeu. Em

termos gerais, no entanto, pouca coisa mudou na relação entre alimentação e medicina, pois

os preceitos hipocráticos continuaram a vigorar e a dietética era uma constante na vida

cotidiana. O lugar ocupado pela terapia alimentar começa a ser abalado em meados do século

67 MAZZINI, Innocenzo. A alimentação e a medicina no mundo antigo. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 255. 68 Ibid. p. 257. 69 Ibid. p. 262.

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XVII. Ainda neste período, na França, era comum encontrar importantes tratados de dietética,

tais como: Le cuisinier français (1651), Le thresor de santé (1607) e L’art de bien trailer

(1674). No entanto, parecia haver uma importante mudança de mentalidade alimentar e

dietética que transformaria a relação estabelecida entre alimentação e os preceitos médicos.

Esta mudança pode ser resumida da seguinte forma: “a partir do século XVII, os cozinheiros e

os comilões franceses esquecem, progressivamente, essas funções dietéticas e limitam-se a

levar em consideração a harmonia dos sabores”70.

O gosto aparece como um dos ideais alimentares procurados. Porém, por mais que o

gosto se ligue de alguma forma á dietética, como por exemplo, por meio do uso de temperos

que eram empregados conforme orientações médicas, que deveriam ser consumidos conforme

a personalidade de cada um, daí a necessidade de ser vir à francesa. Mas o que está em

discussão aqui, é a mudança do eixo norteador do ideal alimentar. Em termos historiográficos,

o que se verifica no ambiente alimentar faz parte de uma situação mais abrangente como

aquela atestada por Phillipe Áries. Para este autor as transformações ocorridas a partir do

século XVI e intensificada no século XVIII, fizeram mudar a maneira como as pessoas

concebiam e levavam a vida cotidiana.

Havia a necessidade de um cuidado de si, de um cuidado com as etapas da vida e sua

utilidade que era novidade, se comparado ao período anterior. Toda essa atenção dispensada

para o próprio comportamento fez aparecer um refinamento e neste sentido o gosto se torna

um valor autêntico do período71. Em relação à alimentação, Áries esclarece que “não só se

difunde uma grande culinária de mestres, como a cozinha comum se torna mais exigente,

mais requintada – os pratos rústicos e grosseiros se tornam receitas tradicionais, porém

caprichadas e até sutis”72.

Para exemplificar o enfraquecimento dos princípios dietéticos, Flandrin utiliza estudos

com a carne de boi. Em 1607, o tratado Le thresor de santé fazia a seguinte constatação: “[A

carne] engendra um sangue bastante grosseiro que é origem de diversas doenças naqueles

que são dotados de um temperamento melancólico (...) a utilização freqüente desta carne

engendra avareza, câncer, cólera, lepra, febre quartã ou inchação do baço com hidropsia”73.

A leitura deste trecho deve ser feita com algum cuidado, pois essa idéia não quer dizer que a

70 FLANDIN, Jean-Louis. Da dietética à gastronomia, ou a libertação da gula. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, pp. 670-671. 71 ARIÈS, Philippe. Para uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 12. 72 Ibid. p. 13. 73 FLANDRIN, Jean-Louis. Ibid. pp. 670-671.

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carne de boi era detestada ou pertencente ao universo dos interditos alimentares, mas sim, que

sob ela recaía certa desconfiança. O que Flandrin nota é que, no mesmo período em que

aparece a prescrição alimentar descrita acima, é verificável também, o aumento do consumo

de carne de boi e o aumento do número de cadernos de receitas que a incluem na alimentação.

É importante lembrar que neste mesmo período Brillat-Savarin escreve Physiologie du

goût, importante tratado de gastronomia que traz essa mesma discussão referente ao gosto.

Para Savarin, “o gosto é aquele de nossos sentidos que nos põe em contato com os corpos

sápidos, por meio da sensação que causam no órgão destinado a apreciá-los. O gosto, que

tem por excitadores o apetite, a fome e a sede, é a base de várias operações que resultam no

crescimento, desenvolvimento e conservação do indivíduo, e na reparação de suas perdas

causadas pelas evaporações vitais”74.

Com isto, pode-se perceber um afrouxamento do preconceito social e cultural ligado a

esta carne. A pergunta pertinente, neste caso, é se a tendência verificada em relação à carne

reflete o abandono da antiga dietética. No entanto, mais do que perceber se há ou não um

abandono, é importante entender quais foram as condições para que isso acontecesse, ou o

que fez com que essas pessoas esquecessem a antiqüíssima preocupação com a dietética e

deslocassem a preocupação para a questão do gosto.

O tratado L’art de bien traiter escreve, em relação aos pombos domésticos o seguinte:

“tal carne exige uma vinagrete (...) depende só do gosto; mas para falar a verdade, a maneira

melhor e mais saudável que se possa existir de comer o assado é devorá-lo ao sair do espeto,

sem estar inteiramente cozido e sem lhe adicionar tantas precauções desagradáveis, que com

sua natureza estranha destroem o verdadeiro gosto das coisas”75. Neste trecho é possível

perceber a influências dos dois discursos: preocupação com a saúde e valorização do gosto.

Obviamente a dietética não foi esquecida por completo. É inegável a presença do pão

branco, do vinho tinto e do velho e bom caldo de carne na dieta de doentes antes da invenção

da penicilina. No entanto, o modo como a alimentação passa a tratar a medicina sofre uma

transformação a partir do século XVII. No século seguinte começam a aparecer algumas

tendências médicas que tratam a alimentação pela sua função nutricional.

Estas idéias serão desenvolvidas no XIX, quando percebe-se uma preocupação maior

em associar algumas deficiências físicas à má alimentação, sob a influência de uma ciência

74 BRILLAT-SAVARIN. A fisiologia do gosto. São Paulo: Cia das Letras. p. 41. 75 FLANDRIN, Jean-Louis. Ibid. p. 678.

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médica de inspiração positivista76. Aumentam o número de relatórios e pesquisas a fim de

demonstrar os danos fisiológicos de uma alimentação deficiente, e aumentam o número de

adeptos à movimentos de reforma alimentar, repleto de conselhos pseudo-científicos e que

prescreviam dietas livres de alimentos que eram considerados nocivos pela ciência.

Harvey Levenstein exemplifica esse período por meio de personagens como o norte-

americano William Sylvester Graham, pregador protestante que considerava a carne e as

especiarias como formas perigosas de estimulação do sistema nervoso77. Esta forma de pensar

se inseria no “movimento de reforma dietética que se manifestou na transmissão do século

XIX para o XX apoiava-se, assim como o primeiro, em novas idéias científicas que,

supostamente, deveriam contribuir para a melhoria da saúde e, ao mesmo tempo da

moralidade do país”78.

Foi também com a onda positivista, que a ciência dietética sofreu uma profunda

mudança após a descoberta de que a energia dos alimentos se media por calorias. Os novos

conhecimentos e idéias elaboradas ganharam o nome de New Nutrition. O alcance de suas

idéias, no início, não foi muito amplo, mas na primeira metade do século XX começou a se

disseminar. Neste mesmo período a indústria alimentícia descobriu o poder do apelo às

vitaminas. Além da própria indústria, o governo americano impôs um novo modelo alimentar

baseado nas vitaminas. “Embora tenha acabado por contribuir para a transformação dos

regimes alimentares no mundo inteiro, essa doutrina, que insistia sobre o papel das

vitaminas, desencadeou efeitos particularmente precoces nos Estados Unidos. Isso deve-se ao

fato de que, em suas preferências alimentares, os americanos das classes média e alta já

estavam dispostos a privilegiar os cuidados com a saúde em relação às preocupações

gastronômicas”79.

Ainda segundo Levenstein, a posição dos médicos neste período era ambivalente, pois

eles temiam que as pessoas buscassem soluções e recursos fora do domínio médico. O receio

era tanto que, na década de 1930, as organizações médicas norte-americanas se reuniram para

limitar os pontos de vendas de vitaminas em pílulas e direcionar a campanha de consumo

vitamínico para a indústria alimentícia. Assim, tanto médicos quanto empresários poderiam

76 SORCINELLI, Paolo. Alimentação e saúde. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 798. 77 LEVENSTEIN, Harvey. Dietética contra a gastronomia: tradições culinárias, santidade e saúde nos modelos de vida americanos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 827. 78 Ibid. p. 829. 79 Ibid. p. 833.

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tirar proveito da situação. A associação das vitaminas aos alimentos produzidos pela indústria

fez perdurar, até a década de 1970, a idéia de que os alimentos americanos eram de um valor

nutritivo e qualidade inigualável80.

Outro momento importante refere-se à produção em massa de produtos prontos para o

consumo. Houve uma verdadeira revolução na indústria para poder atender à nova demanda

de consumidores ávidos pelas facilidades desses produtos. Neste contexto, saúde e

gastronomia ficavam em um segundo plano. O imaginário relacionado à modernidade e à

comodidade tornou infrutífera, por algum tempo, a preocupação com a qualidade nutritiva dos

alimentos. A década de 1970 representa a reviravolta deste quadro. O próprio caráter de

contestação da época fez emergir a moda dos alimentos naturais. Neste período aparece o que

se pode chamar de Negative Nutricion, ou seja, a relação de determinados alimentos ou

hábitos alimentares aos problemas de saúde. Contraditoriamente, esse período foi marcado

também pelo excessivo apelo da classe média à satisfação de seus desejos e, neste sentido, a

carne é um dos alimentos mais emblemáticos.

Atualmente pode-se dizer que a saúde é um dos discursos constantes na alimentação. É

possível encontrar uma profusão de produtos industrializados que fazem menção à sua

qualidade “saudável”. Sobre tais observações, Mássimo Montanari e Jean-Louis Flandrin

notam inversões em antigos comportamentos alimentares, a exemplo dos alemães, que antes

eram extraordinários comedores de carne e hoje estão propensamente marcados pelo

vegetarianismo. Isto pode ser verificado na reportagem da revista alemã Der Spiegel,

intitulada Pommern unter Palmen81, ao comentar que os habitantes da cidade de Pomerode,

em Santa Catarina, podem ser considerados mais alemães que os nascidos na própria

Alemanha. Há um destaque para os pratos típicos servidos nos restaurantes da cidade

catarinense, que seriam fartos como no passado, enquanto a atual cozinha alemã prefere evitar

gorduras e calorias, estimulada por tendências médicas.

O Brasil possui essa mesma trajetória alimentar, ainda que por aqui os mesmos fatos

acorram com alguma defasagem. Um exemplo é que, enquanto a New Nutricion vigorava nos

Estados Unidos o Brasil lutava com a questão da fome e era possível encontrar discussões

como a que fez Gilberto Freyre, apontando que a causa do subdesenvolvimento não era um

80 Ibid. p. 835. 81 Esta revista é considerada a maior do país, em número de leitores. São contabilizados cerca de um milhão de leitores. 31.03.2008.

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problema da mestiçagem ou coisa parecida, mas sim, da baixa qualidade nutricional da

alimentação de boa parte da população brasileira82.

A trajetória das condutas alimentares é extremamente importante para entender a

relação que o alimento estabelece com a medicina, em épocas cujo desenvolvimento do

próprio saber médico ainda não estava tão desenvolvido. Mas como entender o papel da

alimentação na medicina atual, após toda a evolução da farmacopéia e dos conhecimentos

científicos ligados à fisiologia e à composição dos alimentos? A resposta talvez esteja no

concomitante desenvolvimento das engenharias alimentares e da nutrição que, principalmente

na segunda metade de século XX, passaram a organizar um conhecimento capaz de trazer o

alimento novamente para o saber médico.

82 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. São Paulo: Global, 2004.

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CAPÍTULO 3

3. REVISTA DA ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA

Além da trajetória das relações entre medicina e alimentação, pode-se pensar a

articulação destes dois campos em termos epistemológicos. De modo geral, a história entra ao

lado da medicina por meio do estudo das relações de produção e de poder que os homens

estabelecem entre si e a natureza. Saúde e doença são importantes para a historicidade e para a

geração de uma consciência histórica, pois colocam em pauta a realização de um viver em um

determinado espaço e tempo.

Maria Helena Cardoso utiliza historiadores como Thomas Laqueur, Robert Darnton e

Natalie Davis para explicar como a História Cultural, mesmo com o uso de diferentes fontes,

permite ao historiador organizar mentalmente outras formas de vida a fim de torná-las

compreensíveis e familiares. Neste sentido, o que vale é a importância da observação, do

entendimento e da busca de articulação entre eventos e fatos que são os componentes do que

se pode chamar de semiologia da história83. É neste ponto que história e medicina se cruzam:

a herança de um paradigma comum no qual o conhecimento indutivo, apesar de centrado no

particular e no específico, visa à generalização.

De acordo com Carlo Ginzburg, tal modelo epistemológico começa a se formar no

final do século XIX, quando é possível observar a afirmação de um paradigma indiciário

justamente na semiótica. Para ele, a estratégia cognoscitiva do historiador permanece

individualizante, mesmo que o indivíduo represente um grupo social ou uma sociedade

inteira.84. “Neste sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros

nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o

conhecimento histórico é indireto, indiciário e conjetural”85. Ginzburg acredita que a

medicina foi, talvez, uma das únicas ciências a apresentar um quadro com características

indiciárias e ainda manter todo o seu prestígio, mas lembra que a história das relações entre

medicina culta e medicina popular ainda está por ser escrita86.

83 CARDOSO, M. H. C. de A. História e Medicina: a herança arcaica de um paradigma. In: História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 6, n. 3. Rio de Janeiro: nov. 1999/fev. 2000. 84 GINZBURG. Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p. 157. 85 Ibid. p 157. 86 Ibid. p. 167.

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Paul Veyne também compartilha esta idéia, pois acredita que história e medicina

voltam-se para os acontecimentos individualizantes para neles encontrar uma espécie de

generalidade ou, mais precisamente, uma especificidade87. Cardoso lembra que os

apontamentos médicos, seus registros e a repercussão de suas experiências sobre saúde e

doença são, também, parte de narrativas sobre a história, uma vez que algumas questões

transbordam o campo biológico e ligam-se às estruturas do viver sócio-coletivo88. A narrativa

aparece aqui, pois, como uma necessidade para entender os significados entre as dimensões

sociais e individuais dos saberes médicos, “somente por meio de uma abordagem em enredo,

interconectando essas circunstâncias alteradas com os agentes biológicos e as condições

sociais, é que será possível analisar as dimensões culturais das narrativas médicas e de como

essas narrativas situam as doenças e os doentes”89.

De acordo com Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, os arquivos médicos que tratam de

diagnósticos, devem obedecer a um cuidado de tradução e a uma reorganização do sistema de

equivalências. Isto porque o discurso médico, quase sempre polissêmico, pode trazer uma

percepção diferente que se teve e se transmitiu aos homens no tempo90. A respeito da doença,

esses autores escrevem que ela se dispersa entre os objetos que a nomeiam, mas não a

constituem, ou seja, é difícil pensá-la por seu funcionamento histórico particular, mas sim,

pela relação que fazemos, hoje, com a idéia de doença. Essa é uma característica que não

acontece por acaso, ela está relacionada ao discurso histórico da medicina e das instituições

médicas.

Sobre a medicina, os autores lembram que no final do século XVIII e início do XIX, a

crescente pretensão de máximo rigor nas ciências faz com que uma inquietação reapareça

sempre: a de que o parceiro verdadeiro do médico não é a doença, nem a humanidade, porém,

o homem doente. Sobre a relação com a história os autores escrevem que “os textos sobre as

práticas médicas deixam transparecer confissões menos ordenadas, aparentemente, porém

mais próximas, talvez, do corpo penosamente vivido”91. Neste mesmo sentido, Michel

Foucault escreve sobre o nascimento da clínica e afirma que o saber médico não é mais

formado em meio a um jardim patológico, ele se forma a partir de uma consciência médica

generalizada e difusa no espaço e no tempo. 87 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. 88 CARDOSO, M. H. C. de A. História e Medicina: a herança arcaica de um paradigma. In: História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 6, n. 3. Rio de Janeiro: nov. 1999/fev. 2000. 89 CARDOSO, M. H. C. de A. ibid. 90 REVEL, Jacques. História e doença. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976, p. 143. 91 Ibid. p. 147.

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Pode-se pensar, também como a análise de discurso deve ser aplicada para a área da

saúde. O discurso e sua análise podem ser entendidos como meio de captar e interpretar a

linguagem, pois pelo uso da linguagem se explicam fenômenos e conceitos. Sendo assim, a

compreensão do discurso exige a compreensão das relações sociais que ele expressa. O

discurso se relaciona ao contexto no qual foi produzido, “na saúde, os discursos dos sujeitos

projetam sua visão de sociedade, da natureza, da historicidade das relações, da forma de

organização da sociedade, das condições de produção e reprodução social”92.

Para a aplicação da análise de discurso na área da saúde, é preciso compreender a

característica médica de articulação entre subjetividades, indícios e particularidades, às

questões estruturais. Neste sentido, o discurso ultrapassa a linguagem e começa a agir,

também, como forma de argumentação e construção da realidade e de sentidos determinados

ideologicamente. As formas em que a análise de discurso pode se desdobrar são: observações

estruturadas, entrevistas por meio de instrumentos previamente estabelecidos, grupo focal e

análise documental em registro93. Para que a análise se torne efetiva, é necessário o

conhecimento do contexto da produção do discurso, para a interpretação das categorias que

dele emergem. Assim, a análise ou entendimento do contexto acabam por revelar as

implicações e motivações pessoais do autor que o produziu ou daqueles que dele se

apropriaram.

Existem ainda, algumas possibilidades interdisciplinares para as pesquisas na área da

saúde, dentre as quais: história da doença, percepções sobre o adoecer e o morrer,

representações sociais, políticas públicas, etc. A base para o desenvolvimento desta pesquisa

aconteceu nestes mesmos termos da interdisciplinaridade, mas evidenciada na área das

ciências humanas.

Dentre as possibilidades analíticas proporcionadas pelo estudo de arquivos médicos,

iremos nos ater ao lugar ocupado pela carne e pela alimentação. Para isto, foram analisados os

discursos contidos na Revista da Associação Médica Brasileira, que aqui iremos chamar de

RAMB. O uso de periódicos médicos para a construção histórica se justifica pela importância

para a disseminação do conhecimento médico-científico. Atualmente, no Brasil, existem

milhares de publicações na área. A segmentação também é bastante verificável. Desde que

passaram a fazer parte do cenário científico, os periódicos permitem trocas científicas e

92 MACEDO, Laura Cristina; LAROCCA, Liliana Muller; CHAVES, Maria Nolasco; MAZZA, Verônica de Azevedo. Análise de discurso: uma reflexão para pesquisar em saúde. In: Revista Interface, v. 12, n. 26, jul./set. 2008, p. 650. 93 Ibid. p. 650.

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encorajam debates fora do espaço institucionalizados das escolas de medicina. Tais trocas

acabam por promover a uniformização de conceitos científicos em todo o mundo94.

O periódico analisado, bem como tantos outros disponíveis para consultas, segue um

mesmo padrão e prioriza a cientificidade. Ao todo foram analisados 150 exemplares, entre

1977 e 2006. Em relação ao periódico em si, verificou-se que, durante o período, não

ocorreram grandes mudanças editoriais, no entanto, algumas modificações, ainda que sutis,

podem ser apreendidas. Uma delas é que a maior parte dos estudos se constitui em análises

sobre tratamentos científicos e a observação de pacientes submetidos a tais procedimentos.

Normalmente, os artigos relatam experiências feitas pelos médicos. Não há muita discussão

sobre outras formas de tratamento e as abordagens referem-se, majoritariamente, às mesmas

especialidades médicas, como aquelas que tratam os problemas de estômago, intestino, rins e

coração. Os artigos que falam diretamente de alimentação são poucos e, até 1981 não aparece

nada além de estudos sobre nutrição parenteral, jejunostomia e dieta para o tratamento da

úlcera péptica.

A exceção acontece em 1981, com a publicação de três artigos preocupados, de

alguma forma, com a alimentação fora do ambiente hospitalar: um artigo que trata a ingestão

de açúcar fortificado para combater a hipervitaminose A, em estudo feito com crianças de

uma creche paulista, outro que comenta a importância do estímulo ao aleitamento materno, e

por fim, um estudo sobre a nutrição de pacientes internados sem, no entanto, referir-se à

nutrição parenteral ou jejunostomia. Em 1981 acontece, também, a principal mudança

editorial e de editor-chefe da revista. O editorial de dezembro de 1981 é intitulado “Novo

tempo, nova tentativa”. A partir desta mudança, nota-se um aumento de artigos mais

diversificados, ou seja, outras especialidades passam a ter estudos publicados. A nutrição

científica é uma delas.

É importante entender que a medicina, na época, também passa por algumas

modificações, como aquelas verificadas na própria publicação, ao lembrar a importância da

prática médica e da formação do estudante de medicina. Assim, se antes era fácil encontrar

editoriais e artigos preocupados com a legitimação do saber médico e sua atuação na

sociedade, a exemplo dos inúmeros editoriais que tratam a questão da previdência social, a

partir da década de 1980, percebe-se que a preocupação se volta para a base que irá compor a

94 MORAIS, Rosa H. de Santana Girão. A geografia médica e as expedições francesas para o Brasil: uma descrição da estação naval do Brasil e da Prata. In: Revista História, ciências, saúde-Manguinhos, v.14, n.1. Rio de Janeiro jan./mar. 2007.

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formação destes profissionais. Parece haver uma mudança fundamental na mentalidade a

respeito da prática médica.

Dois momentos também são interessantes de mencionar: em 1978 aparece, pela

primeira vez, uma publicidade de alimento na Revista. As publicidades contidas na RAMB

são, majoritariamente, de remédios. Por isso é que uma página destinada à vinculação da

marca Sadia se torna um evento sintomático. É importante lembrar que a indústria alimentícia

utiliza o meio médico como aliado e possível contribuinte para a venda de seus produtos. Um

exemplo desta prática foi estudado por Suely Terezinha S. P de Amorim, a respeito do caso

específico de alimentos destinados ao público infantil, em especial ao uso de leites

industrializados.

Sobre isto, a autora comenta que “entre a indústria e os médicos estabeleceu-se uma

reciprocidade de interesses: enquanto para a primeira interessava a expansão do mercado e

os lucros auferidos, para os médicos interessava manter o poder do conhecimento (...) Essa

forma de poder foi aceita e se manteve porque, como lembra Foucault, não se apresenta

como uma força negativa, que diz não, mas sim como um poder que produz saber, que produz

discurso”95. Amorim também revela que foi em 1981 que o Ministério da Saúde implantou o

Programa Nacional de Aleitamento Materno96 e, talvez por esse motivo, a RAMB tenha

publicado a primeira referência ao tema neste mesmo ano.

Quanto à alimentação geral, foi verificado um grande número de artigos que estudam a

nutrição parenteral. Este tipo de alimentação é aquela dada a pacientes, geralmente em

hospitais, que estão impossibilitados de ingerir alimentos de forma normal, ou seja, os recebem

por meio de sondas e soros. A alimentação parenteral é composta por uma série de nutrientes

considerados essenciais para a manutenção das funções vitais. As discussões normalmente

giram em torno da qualidade do soro e dos componentes da alimentação e as possíveis reações

colaterais. Este tipo de artigo foi o mais encontrado na revista, até a década de 1990. Após este

período, e principalmente após 2000, a maior parte dos artigos relacionados à alimentação trata

a questão da obesidade.

Em relação à carne, é importante salientar, que não foram encontrados artigos

específicos sobre este alimento. A carne aparece, no entanto, como um tema secundário,

95 AMORIM, Suely T. S. P. Alimentação infantil e o marketing na indústria de alimentos: Brasil, 1690-1988. In: História, questões e debates, n.42, 2005, p. 97. 96 Ibid. p. 100.

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colocada em meio a discussões a respeito de determinados tratamentos, ou introduzida em um

contexto de análise nutricional. Para facilitar o entendimento sobre a maneira como a carne é

encontrada no discurso médico, reproduzo alguns trechos encontrados nas revistas analisadas.

A primeira menção à carne aparece em 1977, no artigo: “Existe base racional para o emprego

da ‘dieta branda’ no tratamento da úlcera péptica?”. Neste artigo o autor comenta o seguinte:

A “dieta branda” tem sido recomendada para o tratamento da úlcera péptica desde o início deste século, quando a doença começou a ser melhor caracterizada clínica e radiologicamente e, até hoje, ainda constitui a base da terapêutica, para um considerável número de médicos. A definição mais difundida de “dieta branda” é aquela que a considera como constituída de alimentos não-irritantes, isto é, que não irritam mecânica ou quimicamente a mucosa do trato digestivo superior, que não estimulam a secreção e a motilidade gástricas e que neutralizam a acidez gástrica. Uma análise mais cuidadosa dos alimentos que a compõem revela, entretanto, que suas características nem sempre se enquadram no conceito acima enunciado. (...) A análise de manuais de dietas de vários hospitais americanos revela a existência de considerável variação regional nos constituintes da “dieta branda”. Assim, por exemplo, enquanto o camarão é o alimento permitido no manual do Texas, é proibido na maioria dos demais estados americanos (...) Revendo a literatura, nota-se que os alimentos constituintes das dietas usadas em gastrenterologia o são mais por força da tradição e mesmo do folclore e da crendice popular do que por qualquer razão científica. Algumas das idéias que se tem sobre os alimentos são tão antigas e arraigadas na mente do povo, inclusive dos médicos, que mantêm o seu prestígio mesmo muito depois de contestadas cientificamente (...) As carnes constituem outro grupo de alimentos incluídos nas dietas para úlcera de forma muito peculiar e, sob certo aspectos até irracional. As carnes são usualmente distinguidas pela sua cor. Tradicionalmente, as “carnes brancas”, tais como as carnes de aves e a carne de peixe, são constituintes usuais das “dietas brandas” e recomendadas nas dietas de úlcera, apesar de serem tão potentes estimulantes da secreção ácida do estômago como as “carnes vermelhas”. Estas, representadas pelas carnes de vaca, são só admitidas nas etapas finais do tratamento. A carne de porco, apesar de ser branca, é, por tradição e tabu, proibida em toda “dieta branda”, certamente porque deixa o estômago mais lentamente, sendo por isso considerada de difícil digestão97

Pode-se ligar este trecho à análise feita por Woortamnn, na qual percebe a atuação do

que se chama reima, ou seja, doença. Um corpo reimoso é um corpo doente. Assim, são

prescritos vários alimentos que também podem contribuir para a saúde ou para a doença. “É

na presença da doença, ou de um organismo não-sadio que as prescrições/proscrições

alimentares se apresentam”. Neste caso há uma classificação dos animais reimosos e a 97 Revista da Associação Médica Brasileira, v. 23, n. 1, Janeiro, 1977, p. 32.

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aplicação de um critério muito parecido com aqueles aplicados pelos hebreus para a

classificação de animais puros e impuros. A ambigüidade aparece aqui, como um fator

fundamental. Em uma situação de doença, a impureza se associa ao caráter limiar do

indivíduo.

O tabu se estabelece, pois, por serem impuros e perigosos. É importante, no entanto,

entender a atuação da prescrição em função do corpo doente, isto é, a prescrição recai antes

sobre o corpo do que sobre o alimento. “A decisão a respeito de um dado alimento (...) deve

levar em conta o estado da pessoa que vai consumi-lo (...) esses estados incluem a saúde; a

doença e um conjunto de situações de liminalidade (...) a criação nos dois primeiros anos de

vida, a menstruação, a gravidez, o puerpério, a menopausa, o luto, a convalescença, a purga,

o xamanismo”98. De acordo com Mary Douglas, a idéia de pureza é usada quando o orgânico

participa do social e, portanto, a ingestão de alimentos exerce papel fundamental. Douglas

também fala da idéia de contaminação e como ela faz parte de uma disposição sistemática de

idéias, ou seja, não é uma idéia ou um acontecimento isolado.

A diferença do artigo em relação à Woortamann ou à Douglas é que nele, ocorre a por

uma cientificidade por trás de um fato social e culturalmente estabelecido. A menção aos

alimentos, em especial à carne, foi desmistificado, o que leva a crer que o critério até então

empregado para a diferenciação entre carnes aceitas e carnes interditas deve mudar.

Ao longo das publicações, os estudos que tratam a úlcera péptica, não sofrem grandes

alterações quanto ao posicionamento em relação à carne. Os estudos sobre esta doença vão

diminuindo até desaparecer por completo após 1987 e reaparecer em 2002, mas a discussão

não buscava problemas da “dieta branda” e sim, procurava alternativas para acabar com as

cirurgias para a correção da doença.

Outra forma de inclusão da carne nos artigos foi verificada após 2000, com o aumento

de estudos sobre obesidade e mulheres no climatério (menopausa). Como exemplo tem-se o

trecho:

As mulheres no climatério devem ser orientadas a seguir uma alimentação com restrição de gordura para se adequar às mudanças decorrentes do hipoestrogenismo e diminuir os fatores de risco para DCV. As orientações devem ser feitas de forma prática e simples para que as pacientes consigam adotá-las e serem beneficiadas por tal conduta, como por exemplo: Inclua na sua refeição diária verduras cruas, legumes cozidos e frutas frescas e tempere

98 Maués & M. A. M. Maués, Hábitos e Ideologias alimentares numa comunidade de pescadores no Pará. Citado por WOORTMANN, Klaas Axel A. W. Ibid. p. 13.

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as saladas com azeite de oliva; Coma peixe (cozido, assado, grelhado, cru) pelo menos duas vezes por semana e reduza a quantidade de carnes vermelhas, derivados e embutidos (linguiça, salame, mortadela, etc.); Prefira os leites e derivados desnatados e evite manteiga, margarina, banha vegetal e animal, maionese e preparações que utilizem estes alimentos bem como aquelas gordurosas (feijoada, frituras, etc.)99

Neste caso, se torna clara a alusão que se faz à carne vermelha e à maior quantidade de

gordura como algo a ser evitado pelas mulheres nesta situação. A questão da quantidade de

gordura ingerida é bastante emblemática, tanto por trazer a discussão implícita sobre a carne

vermelha, quanto por ter se tornado um dos pontos mais discutidos pelos médicos e pela

mídia. Vale lembrar que a medicina trata a obesidade, atualmente como um problema de

saúde pública.

De acordo com Claude Fischler, há uma movimentação para que a obesidade seja

reduzida como forma de prevenir numerosos problemas, notadamente os cardiovasculares.

Assim, os médicos se engajaram em uma luta contra a gordura, o que faz com que homens e

mulheres se coloquem em uma situação frenética de intensos regimes100. Para ele, o discurso

médico se associa ao discurso midiático e ambos marcham juntos para a criação das mesmas

representações. “Nos Estados Unidos, o consumo de carne de boi, ovos e manteiga vêm

diminuindo, ao passo que [o consumo] de alguns peixes (declarados ricos em ácidos graxos

poli-insaturados, particularmente do tipo Omega 3 e, portanto benéfico) aumenta. Na

França, se tem visto, a manteiga decair e a carne vermelha também”101.

O autor lembra que há cada vez mais o apelo da indústria agro-alimentar para a

substituição de gorduras, calorias e colesterol. Tal discurso passa, pois, a ser legitimado pela

base científica proporcionada pela medicina. Mesmo que as pesquisas não estejam concluídas,

ou seja, apesar das dificuldades metodológicas e das incertezas, as especulações são logos

transformadas em recomendações para a saúde pública, principalmente nos Estados Unidos,

com o apoio dado pelas instituições e sociedades médicas.

No caso da RAMB, nota-se o mesmo encaminhamento. É nítido o aumento de artigos

que tratam a nutrição científica e, mesmo que a maior parte deles se concentre em pesquisas

sobre desnutrição em crianças carentes ou pessoas acometidas por algum problema de saúde,

99 Revista da Associação Médica Brasileira. V. 49, n. 1, 2003, p. 95. 100 FICHLER, Claude. L’homnivore. Paris: O. Jacob, 1990. p. 309. 101 Ibid. p. 310.

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o que se mostra é uma mudança que traz a questão da alimentação para os debates médico-

científicos.

A alimentação saudável também é preconizada. No artigo “Qualidade da dieta:

avaliação por meio de dois instrumentos de medida”, há a seguinte citação: “o índice dietético

consiste em um instrumento medidor da qualidade dietética”102. Essa qualidade dietética foi

medida por meio de dois métodos: o Índice de Alimentação Saudável (IAS) e Índice de

Qualidade da Dieta Revisado. O objetivo é entender o padrão alimentar do grupo analisado,

pois “o conhecimento claro e atualizado do padrão alimentar é uma necessidade básica para

a formação de planos de intervenções nutricionais”. Os autores também informam que o IAS

está disponível na internet para que qualquer pessoa possa avaliar e acompanhar a qualidade

de sua dieta. O que se percebe, aqui, é que o padrão de alimentação ideal, ou padrão de

qualidade é ditado por um grupo específico que detém o conhecimento sobre os benefícios e

malefícios da alimentação para o corpo.

102 Revista da Associação Médica Brasileira. v. 48, n. 4, 2002, p. 9.

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CONCLUSÃO

Esta pesquisa procurou entender o modo como a alimentação e a medicina se

articulam ao longo da história. A carne aparece, pois, como elemento envolvido neste

contexto, uma vez que, por meio deste alimento uma série de questões são passíveis de serem

verificadas. A pesquisa com uma importante publicação científica ajudou a perceber como a

carne e a alimentação em geral, assumem significados normativos associados aos saberes que

a definem e aos discursos que a legitimam.

A inclusão da carne nos discursos médicos é algo que merece ser observada, pois o

próprio discurso científico fomenta a construção de representações que recaem sobre o

cotidiano. Em vista das análises feitas neste estudo, pode-se dizer que as prescrições médicas

encontraram um espaço bastante valorizado na mídia e nas práticas cotidianas.

O estudo com a Revista da Associação Médica Brasileira permitiu perceber algumas

transformações na postura médico-científica, quando o tema é alimentação. Assim, se verifica

que a carne, apesar de aparecer como tema secundário nos estudos publicados, vem ganhando

espaço, a saber: se em 1977, para no tratamento da úlcera péptica, ocorria a valorização da

carne e a sua prescrição era questionada por pertencer ao universo das crendices populares,

em 2002 ocorre, de fato, a prescrição pela diminuição do consumo de carne vermelha em

mulheres no climatério. Além da transformação em relação ao próprio tema tratado pela

revista, é notável o aumento de estudo que mencionam a carne.

Pode-se concluir que as restrições colocadas à carne, ainda são percebidas de maneira

sutil, mas estão, efetivamente, presentes. Em comparação a outros períodos da história, a

carne ainda aparece relacionada ao corpo que a irá consumir, ou seja, ocorre a adaptação da

interdição do consumo ao velho, jovem, doente, mulher e criança. Parece, pois, haver um

retorno da velha dietética que, baseando-se em prescrições de gorduras, ovos e carnes,

dissemina um ideal alimentar ligado ao conhecimento produzido sob seu domínio.

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