HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO - … · Este trabajo es dividido en tres partes. En la primera es...

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RICARLOS ALMAGRO VITORIANO CUNHA HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO: um possível encontro à luz do paradigma ontológico. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Prof. Dr. José Adércio Leite Sampaio. Belo Horizonte 2010

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  • RICARLOS ALMAGRO VITORIANO CUNHA

    HERMENUTICA E ARGUMENTAO:

    um possvel encontro luz do paradigma ontolgico.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Adrcio Leite Sampaio.

    Belo Horizonte

    2010

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Cunha, Ricarlos Almagro Vitoriano C972h Hermenutica e argumentao: um possvel encontro luz do

    paradigma ontolgico / Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha. Belo Horizonte, 2010.

    323f. : Il. Orientador: Jos Adrcio Leite Sampaio Tese (Doutorado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.

    Programa de Ps-Graduao em Direito . 1. Hermenutica (Direito). 2. Fenomenologia. 3. Verdade. 4.

    Heidegger, Martin, 1889-1976. I. Sampaio, Jos Adrcio Leite. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.

    CDU: 340.132

  • Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha

    Hermenutica e Argumentao:

    um possvel encontro luz do paradigma ontolgico.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Direito.

    ________________________________________________________

    Jos Adrcio Leite Sampaio (Orientador) PUC Minas

    ________________________________________________________

    lvaro Ricardo de Souza Cruz PUC Minas

    ________________________________________________________

    Mrcio Antnio de Paiva PUC Minas

    ________________________________________________________

    Lenio Luiz Streck UNISINOS

    ________________________________________________________

    Rodolfo Viana Pereira UFMG

    Belo Horizonte, 01 de novembro de 2010.

  • Thereza Almagro, pessoa singular e me exemplar,

    que com seu amor incomensurvel deixou o exemplo

    de que por ele e somente por ele pode a vida valer

    alguma coisa.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Mrio Conceio e ao Dalvo Rocha, pela acolhida fraterna em Belo

    Horizonte. A amizade de ambos o mais valoroso presente que levo de Minas

    Gerais.

    Aos Professores Jos Adrcio e lvaro Ricardo pela ateno e lies

    memorveis.

    Ao Professor Mrcio Paiva, por despertar em mim o gosto pela filosofia e

    tornar mais urbano o solo heideggeriano. Uma referncia acadmica a ser seguida.

    Novamente ao Ges, irmo que a vida me reservou, uma eterna amizade que

    poucos tm a sorte de experimentar. Uma referncia de vida que me permitiu este

    momento acadmico.

    Ao Doido, de um lado cada vez mais desorientado e fiel em sua amizade; de

    outro, um registro de admirao por sua companhia e torcida eternas.

    Ao meu pai Ruyter Carlos, que beira dos oitenta anos de idade,

    notoriamente ainda se projeta em meus passos na vida, experimentando

    efusivamente cada um dos meus momentos. Sem ele nada disso seria possvel.

    lindinha, pela cumplicidade no estmulo e na tolerncia por tantos

    momentos distantes, somente explicveis no profundo sentido que o amor e a famlia

    podem ter em nossas vidas.

  • [...] passa-se, enfim, da essncia para a significao, onde o

    importante e decisivo no est em se saber o que so as coisas em si,

    mas saber o que dizemos quando falamos delas.

    (LENIO STRECK)

  • RESUMO

    O presente trabalho dividido em trs partes. Na primeira estudado o panorama

    de crise do Direito, associando-o incorporao do pensamento filosfico e cientfico

    moderno, o qual, contaminado por uma pretenso de universalidade e certeza

    racional, acabou por desumanizar-se. Ademais, o referencial de certeza que fez das

    cincias da natureza o paradigma cientfico moderno e tambm inspirador do Direito

    sucumbiu, com ele arrastando as estruturas jurdicas que o refletiam. Instalada essa

    situao de crise, manifestada na baixa efetividade dos direitos consagrados no plano

    constitucional, elegeu-se o caminho hermenutico para a sua superao. Entretanto,

    no poderia obviamente ser ela tomada no matiz clssico, que est envolvido no

    paradigma sucumbente, mas aquele de ndole filosfica, pelo qual so assinalados os

    caracteres histricos e lingusticos de toda compreenso. Mas mesmo esse modelo

    que se anuncia com Gadamer, necessita ele de modulaes, que ora se apresentam no

    vis do resgate de uma maior dimenso do outro no processo compreensivo do

    Direito. Assim, a exemplo do que fez o prprio Gadamer, voltando-se analtica

    existencial do homem, desenvolvida na ontologia fundamental de Heidegger, a

    transcendncia e o modo de ser-com (Mitsein) sero resgatados para postular

    hermenutica um encontro com a argumentao, ao que aqui se denominar

    hermenutica argumentativa. Como consequncia dessa aproximao, pode-se

    experimentar um ganho compreensivo pelo realinhamento da abordagem do

    fenmeno e evidenciao de ideologias que permeiam o modo impessoal com que o

    homem se pe no mundo.

    Palavras-chave: Crise das cincias. Ps-modernidade. Matematizao do Direito.

    Heidegger. Fenomenologia. Verdade. Dasein. Fundamento.

    Hermenutica filosfica. Argumentao.

  • RESUMEN

    Este trabajo es dividido en tres partes. En la primera es estudiado el panorama de

    crisis del Derecho, ligando l a la incorporacin del pensamiento filosfico y

    cientfico moderno, el cual, contaminado por una pretensin de universalidad y

    certidumbre racional, se qued deshumanizado. Adems, el referencial de certeza

    que hizo de las ciencias de la naturaleza el paradigma cientfico moderno y tambin

    inspirador del Derecho, sucumbi, con ele arrastrando las estructuras jurdicas las

    cuales le reflejaban. Instalada esa situacin de crisis, manifestada en la baja

    efectividad de los derechos consagrados en el plano constitucional, se eligi el

    camino hermenutico para superarla. Sin embargo, no se podra tomarla en el matiz

    clsico, lo cual est envuelto en el paradigma sucumbiente, sino lo de ndole

    filosfica, por el cual, son sealados los caracteres histricos y lingsticos de toda la

    comprensin. Pero incluso este modelo que se anuncia con Gadamer, necesita de

    modulaciones, las cuales ahora se presentan en el modo del rescate de una mayor

    dimensin del otro en el proceso comprensivo del Derecho. As, a ejemplo de lo que

    hizo incluso Gadamer cuando volvi a la analtica existencial del hombre,

    desarrollada en la ontologa fundamental de Heidegger, la transcendencia y el modo

    de ser-con (Mitsein) sern rescatados para la postulacin del encuentro entre la

    hermenutica y la argumentacin, al que aqu se denominar hermenutica

    argumentativa. En consecuencia de esa aproximacin, se puede experimentar un

    gao comprensivo en virtud de la reorganizacin del abordaje del fenmeno y del

    poner en claro las ideologas que permean el modo impersonal con el cual el hombre

    se pone en el mundo.

    Palabras-clave: Crisis de las ciencias. Postmodernidad. Matematizacin del Derecho.

    Heidegger. Fenomenologa. Verdad. Dasein. Fundamento.

    Hermenutica filosfica. Argumentacin.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO..................................................................................................................12

    2 A MODERNIDADE E SUA CRISE................................................................................20

    2.1 Da modernidade .............................................................................................................20

    2.2 O martelo de Nietzsche .................................................................................................32

    2.3 Heidegger e a tcnica moderna ....................................................................................44

    3 O DIREITO E SUA CRISE...............................................................................................52

    3.1 O modelo epistemolgico das cincias naturais como paradigma para as

    cincias sociais.......................................................................................................................52

    3.2 O Direito contaminado pelas cincias naturais ........................................................55

    3.2.1 A subsuno...................................................................................................................56

    3.2.2 A matematizao do Direito ......................................................................................59

    3.2.2.1 Primeiro caso referencial: o benefcio assistencial devido ao idoso...............60

    3.2.2.2 Segundo caso referencial: um desdobramento do caso anterior .....................65

    3.2.2.3 Terceiro caso referencial: causa de menor complexidade.................................70

    3.3 A crise das cincias e a crise do Direito......................................................................72

    3.3.1 Quarto caso referencial: leis interpretativas em matria tributria ...................84

    3.3.2 O Direito a servio da tcnica....................................................................................89

    3.3.2.1 Quinto caso referencial: o custeio da Previdncia Social .................................91

    3.3.2.2 A tcnica como encobrimento da verdade do (e no) Direito............................93

    4 A RELAO SUJEITO-OBJETO....................................................................................98

    4.1 A proposio como sede da verdade.........................................................................101

    4.2 Uma introduo parcial analtica existencial do Dasein ....................................107

    4.2.1 O Dasein como ser-junto-a.......................................................................................111

    4.2.2 O Dasein como ser-no-mundo..................................................................................115

    5 CONCLUSO DA PRIMEIRA PARTE.......................................................................122

  • 6 INTRODUO SEGUNDA PARTE.......................................................................127

    7 A QUESTO DO FUNDAMENTO .............................................................................131

    7.1 O princpio do fundamento........................................................................................133

    7.1.1 Fundamento, verdade e transcendncia ..................................................................138

    8 A QUESTO HERMENUTICA .................................................................................155

    8.1 O impessoal ...................................................................................................................157

    8.2 A fenomenologia ..........................................................................................................165

    8.3 Os existenciais da compreenso e da interpretao ...............................................176

    8.4 A hermenutica filosfica de Gadamer....................................................................192

    8.4.1 A distncia temporal e o princpio da histria efeitual .......................................201

    8.4.2 A questo da aplicao..............................................................................................209

    8.4.3 O crculo hermenutico..............................................................................................211

    8.4.4 A linguisticidade.........................................................................................................216

    9 CONCLUSO DA SEGUNDA PARTE ......................................................................223

    10 INTRODUO TERCEIRA PARTE .....................................................................228

    11 AS CRTICAS HERMENUTICA FILOSFICA ...............................................230

    11.1 O debate com Habermas ...........................................................................................230

    11.2 A crtica de Karl-Otto Apel .......................................................................................237

    11.3 Um balano das crticas .............................................................................................241

    12 COMPREENSO E FUNDAMENTAO ..............................................................246

    12.1 A incluso do outro ................................................................................................252

    12.1.1 O Dasein como ser-com os outros .........................................................................253

    12.1.1.1 O sentido da incluso do outro..........................................................................261

    12.2 A compreenso em trs momentos..........................................................................264

    12.3 A compreenso compartilhada.................................................................................265

    12.3.1 O encobrimento do fenmeno .................................................................................267

  • 12.3.2 Discurso, linguagem e sentido ................................................................................268

    12.4 Hermenutica Argumentativa e Direito.................................................................271

    12.4.1 Hermenutica e argumentao em Paul Ricoeur .................................................272

    12.4.1.1 A lingustica da fala e a lingustica do discurso .............................................277

    12.4.1.2 A dialtica entre compreenso e explicao ....................................................283

    12.4.1.3 Em busca de um fundamento mais originrio................................................287

    12.4.2 A hermenutica argumentativa ..............................................................................288

    12.4.3 Hermenutica e facticidade.....................................................................................291

    12.4.4 O crculo argumentativo .........................................................................................295

    13 CONCLUSO ................................................................................................................304

    REFERNCIAS....................................................................................................................309

  • 12

    1 INTRODUO

    Neste trabalho, buscamos mostrar que, se por um lado, o debate em que se

    envolvem os filsofos do Direito d mostra de que a reflexo tem caminhado na

    busca por novas fundaes que permitam o seu acontecer; por outro, a prxis jurdica

    tem se apresentado ainda presa a marcos histricos herdados da tradio, que

    acabam por mant-lo no velamento. So prticas em que o Direito ainda submerge,

    voltadas busca de segurana e objetividade, prprias de uma pretenso de

    ocupao de um lugar ao lado das cincias da natureza, por muito tempo

    consagradas como o modelo epistemolgico referencial.

    Nessa linha, comeamos por apresentar um quadro da modernidade, marcado

    pela ascenso da razo como arqutipo de construo de um novo mundo. Seguimos

    com a apresentao da sua crise, sobretudo pautada nas incisivas crticas formuladas

    por Nietzsche e Heidegger.

    Realando o papel referencial das cincias da natureza, mostraremos que o

    Direito, mimetizando os seus mtodos e modelos, acabou por, juntamente com elas,

    ver-se tragado por suas insuficincias e incertezas. De fato, o panorama matemtico-

    cientfico, como fruto do seu prprio desenvolvimento, mostrou-se atingido pela

    relatividade dos fenmenos fsicos. As constantes matemticas que davam suporte

    aos teoremas categricos se mostraram dependentes de sistemas referenciais

    escolhidos pelo prprio homem, o que j sinalizava para a impossibilidade de

    alcanar um mundo independente do prprio sujeito que o conhecia. Esse quadro de

    crise do paradigma cientfico rapidamente mostrado, a fim de fundamentar a

    assertiva inicial, no sentido de que se o modelo referencial espelhado colaba, ento o

    Direito, como objeto referido, acaba tambm atingido. Tal o prximo ponto: o Direito

    em crise.

  • 13

    Aqui, pretendemos, muito rapidamente, transitar por alguns problemas que

    ainda penetram na prtica jurdica, tais como a subsuno, como herana lgico-

    formal, e a matematizao dos conceitos, como instrumento da segurana jurdica.

    Por trs de toda crise est o fundamento metafsico da crena na verdade

    absoluta de uma realidade independente do sujeito. Da que, em ltima anlise, toda

    relao do conhecimento seria travada em um sistema complexo, extremado, de um

    lado, pelo objeto conhecido e, de outro, pelo sujeito cognoscente. Uma diferena

    indiscutvel, mas que no se presta necessariamente a justificar uma ciso.

    Portanto, implicitamente, procuramos deixar evidente que essa relao

    sujeito-objeto que se encontra na base das prticas jurdicas voltadas busca de um

    Direito objetivamente vlido e, portanto, passvel de aplicao sem a intromisso de

    deformaes subjetivas. Ainda que implicitamente, estamos fazendo uma ligao

    entre Direito e verdade, posto que, sem essa, no h como ele ser desvelado.

    A analtica existencial do Dasein, aqui explorada parcialmente, servir para

    mostrar a insuficincia daquele modelo cognoscitivo que, vendo a verdade como

    adequao (adequatio intellectus ad rem1), acaba por desconsiderar a subjetividade do

    sujeito. Mostraremos tambm que a verdade, vista como verdade da proposio,

    repousa sobre uma ambiguidade estrutural, j que, antes de a enunciao ser

    verdadeira, preciso que j me encontre na verdade do objeto. s com base nela

    que poderei fazer enunciaes verdadeiras ou falsas. preciso, pois, que

    originariamente eu esteja junto ao objeto para que possa, em minha abertura, a sim

    conhec-lo. Esse mostrar-se prprio do fenmeno se d no desvelamento, designao

    heideggeriana para a prpria verdade.

    O modelo dicotmico pautado na relao sujeito-objeto desconsidera esse

    peculiar modo de ser do homem, a par da sua natural condio de estar-no-mundo,

    expresso complexa que demandar anlise para a sua perfeita compreenso.

    1 Vide item 4.1.

  • 14

    tambm com base nela que veremos a importncia do todo referencial em que se

    inserem os objetos e com o qual j est familiarizado desde sempre o sujeito, tudo

    isso a permitir uma contundente crtica ao modelo em questo.

    Portanto, superada essa parcial anlise dos existenciais do Dasein, resta-nos

    concluir pela impropriedade da utilizao da relao sujeito-objeto, extremada por

    polos cindidos, porquanto desconsidera o modo de ser prprio do sujeito ou, mais

    simplesmente, a subjetividade mesma. Se abalada essa estrutura que, em ltima

    anlise, serve de base ao modo de operar o Direito, ento, abrem-se as portas para

    um repensar o seu prprio ser.

    Com essas consideraes introdutrias, temos um esboo do caminho a ser

    desenvolvido na primeira parte da obra.

    Aqui j se deixa insinuar a densidade filosfica do texto, a qual exige imediata

    justificao. Essa forma de abordar nosso tema no se desvia do foco da Cincia do

    Direito e mesmo do seu objeto de estudo. Na verdade, pretendemos demonstrar que

    h uma essncia esquecida que se presta a fundament-los e essa busca impe um

    caminho crtico que possa superar as aporias e contradies em que eles se

    depararam. Um modo de pensar crtico que possa deixar transparecer a ideologia da

    tcnica, como bem ressalta Ernildo Stein no excerto abaixo (HEIDEGGER, 1996d, p.

    43):

    Num momento de crise da sociedade brasileira, em que uma falsa segurana buscada com o sacrifcio da liberdade; em que se elabora um projeto nacional comprimido dentro de uma viso tecnocrtica, nada melhor que a serena meditao da filosofia. Ela nos ensina a pacincia diante da histria e a coragem para apostar nas possibilidades que se escondem no risco da liberdade. Ela nos mostrar principalmente o verdadeiro lugar da cincia e da tcnica na construo da histria humana. Todo o determinismo que se quer imprimir sociedade brasileira e conscincia nacional, mediante a absolutizao da tecnologia, deve ser desmascarado pela conscincia crtica instaurada pela filosofia. Ela um instrumento de libertao das amarras deste novo positivismo tecnocrtico com que o sectarismo e o interesse nos querem prender.

  • 15

    Portanto, a necessidade de instaurar em novas bases a referida dimenso

    crtica, j seria suficiente a justificar o aporte filosfico ao trabalho. Entretanto,

    podemos ainda melhor sustent-lo, adiantando que, enquanto o mover-se do Direito

    se d no mbito da metafsica clssica, que v o ente enquanto ente, procurando

    assim captur-lo em um conceito que determina o seu ser, deixa a escapar o seu

    prprio fundamento.

    De fato, o movimento das cincias se d em torno de objetos temticos eleitos

    de forma inaugural e pr-cientfica, que abrem o caminho para a sua investigao.

    Esses conceitos fundamentais constituem o fio condutor para o descortinar da regio

    ntica em que se mover aquela cincia. Tais conceitos fundamentais so aquelas

    determinaes em que a regio essencial a que pertencem todos os objetos temticos

    de uma cincia logra a sua compreenso preliminar, que servir de guia a toda

    investigao positiva (HEIDEGGER, 1997, p. 21, traduo nossa2). Ou seja, a cincia

    se projeta adiante em uma regio do ente que lhe previamente determinada, uma

    regio que permite o subsequente perguntar acerca das estruturas assim obtidas.

    Portanto, preciso ao menos reconhecer a existncia de um questionar mais

    originrio3, pela prpria condio de possibilidade dessas cincias, tal como

    2 Conceptos fundamentales son aquellas determinaciones en que la regin esencial a la que pertenecen todos los objetos temticos de una ciencia logra su comprensin preliminar, que servir de gua a toda investigacin positiva. Para conferncia, o texto em alemo: Grundbegriffe sind die Bestimmungen, in denen das allen thematischen Gegenstnden einer Wissenschaft zugrundeliegende Sachgebiet zum vorgngigen und alle positive Untersuchung fhrenden Verstndnis kommt (HEIDEGGER, 1977, p. 14). 3 Esse questionar mais originrio uma expresso que marcar sua presena com certa frequncia ao longo do texto, refletindo a prpria busca por um distanciamento do ponto de vista meramente ntico que domina as cincias em geral, para, no vis ontolgico, reconhecer seu prprio campo de possibilidade. O tema ser melhor abordado adiante. De qualquer forma, neste momento queremos deixar claro que as cincias em geral se desenvolvem em meio a um campo que lhe foi aberto previamente. Exemplificamos: se a biologia se prope a estudar os seres vivos, a prpria delimitao dessa regio de entes (seres vivos) deve ser-lhe previamente dada, sem o que, ficaria ela impossibilitada de avanar sequer um passo. Entretanto, essa j no uma pergunta que seja pertinente biologia como tal, mas uma questo mais originria, cuja resposta posta para ela poder caminhar.

  • 16

    Heidegger assevera (1997, p. 21, traduo nossa4):

    A pergunta pelo ser aponta, por conseguinte, para a determinao das condies a priori da possibilidade no s das cincias que investigam o ente enquanto tal, e que por fim se movem j sempre em uma compreenso do ser, mas que ela aponta tambm para a determinao da condio de possibilidade das ontologias mesmas que antecedem s cincias nticas e as fundam.

    Por isso mesmo, quando Heidegger afirma que o verdadeiro movimento das

    cincias se produz pela reviso mais ou menos radical (embora no transparente para

    si mesma) dos conceitos fundamentais, complementando que o nvel de uma

    cincia se determina por sua maior ou menor capacidade de experimentar uma crise

    em seus conceitos fundamentais (HEIDEGGER, 1997, p. 20, traduo nossa5), que

    j se podem a ver antecipadas as bases para a formulao de Thomas Khun (2006),

    no sentido de que a evoluo cientfica verdadeiramente se d por meio de

    revolues e no da progressividade linear de resultados alcanados no mbito do

    que denominou cincia normal, embora ele no tenha vislumbrado o fundamento

    ontolgico dessa revoluo, como o fez nosso filsofo6.

    4 La pregunta por el ser apunta, por consiguiente, a determinar las condiciones a priori de la posibilidad no slo de las ciencias que investigan el ente en cuanto tal o cual, y que por ende se mueven ya siempre en una comprensin del ser, sino que ella apunta tambin a determinar la condicin de posibilidad de las ontologas mismas que anteceden a las ciencias nticas y las fundan. Para conferncia, o texto em alemo: Die Seinsfrage zielt auf eine apriorische Bedingung der Mglichkeit nicht nur der Wissenschaften, die Seiendes als so und so Seiendes durchforschen und sich dabei je schon in einem Seinsvrstandnis bewegen, sondern auf die Bedingung der Mglichkeit der vor den ontischen Wissenschaften liegenden und sie fundierenden Ontologien selbst. (HEIDEGGER, 1977, p. 15). 5 El verdadero movimiento de las ciencias se produce por la revisin ms o menos radical (aunque no transparente para s misma) de los conceptos fundamentales. El nivel de una ciencia se determina por su mayor o menor capacidad de experimentar una crisis en sus conceptos fundamentales.. Eis o texto em alemo para conferncia: Die eigentlichte Bewegung der Wissenschaften spielt sich ab in der mehr oder minder radikalen und ihr selbst nicht durchsichtigen Revision der Grundbegriffe (1977, p. 13). 6 A antecipao confirmada em outra oportunidade (HEIDEGGER, 2009, p. 40):

    da essncia da existncia do homem que a filosofia seja jogada de volta sempre de novo para o comeo. E quanto mais radicalmente isso for compreendido, isto , quanto mais originariamente a investigao (se) deixa evocar para trs, tanto mais seguramente move-se para frente. O avano nas cincias positivas, seguramente, no consiste no fato de recolher

  • 17

    Em resumo, as cincias tm no ente o objeto do seu estudo, sendo ele

    tematizado em face de diversas possibilidades que so abertas pelo prprio ser, da a

    necessidade de recuar um passo para, antes de partir de conceitos fundamentais que

    lhe so dados, a cincia possa repensar esses prprios fundamentos, momento em

    que se pode dizer que nenhuma cincia possvel, sem vir acompanhada pela

    questo que pergunta pelo ser (HEIDEGGER, 2009, p. 35). A esse ponto

    retornaremos ao longo da segunda parte do trabalho, momento em que se insinua

    um caminho na busca de uma possvel superao do ponto de vista ancilosado com

    que o Direito tomado, o caminho hermenutico.

    Mas a hermenutica que aqui se anuncia est longe daquela tradicional,

    entendida como teoria cientfica da arte de interpretar (MAXIMILIANO, 1984, p. 1)

    ou simplesmente, como cincia da interpretao. No se trata de uma normatizao

    de um processo interpretativo7, mas de um acontecer que se experimenta no modo de

    ser do prprio homem. Hermenutica a prpria compreenso, a qual, como

    existencial humano, est a mais originariamente que qualquer metodologia que lhe

    pretenda determinar. Por isso mesmo, precedero a exposio da hermenutica

    filosfica, algumas notas acerca do mtodo fenomenolgico e um avano sobre a

    analtica existencial do Dasein, com o estudo dos existenciais da compreenso e da

    interpretao.

    Segue-se ento uma abordagem dessa hermenutica, tal como apresentada por

    Gadamer, onde as suas marcas fundamentais sero expostas. Aqui iremos destacar a

    relevncia da tradio que nos marca em nossa estrutura prvia da compreenso, a

    qual no nos permite mais assumir um modelo interpretativo assptico, em que o

    sentido seja algo no texto, que possa ser resgatado por um procedimento cientfico

    resultados e empilh-los como sacos num depsito de mercadorias; antes o avano sempre e cada vez uma reforma filosfica dos conceitos fundamentais, uma compreenso radicalizada do ente ele mesmo.

    7 Como se depreende em Limongi Frana: A interpretao, portanto, consiste em aplicar as regras, que a hermenutica perquire e ordena, para o bom entendimento dos textos legais (2008, p. 19).

  • 18

    metodicamente determinado. J sempre estamos junto aos entes e sob uma maneira

    prvia de v-los e entend-los. Portanto, a compreenso ser o resultado de uma

    fuso de horizontes, onde o texto no poder jamais ser tomado como o envoltrio de

    um sentido oculto; seno como um dos elementos participantes da compreenso.

    Tambm se esvaem por a quaisquer tentativas de resgate de uma psicologia

    hermenutica, aos moldes de Schleiermacher, eis que na escrita, o sentido do falado

    esta a por si mesmo, inteiramente livre de todos os momentos emocionais da

    expresso do anncio (GADAMER, 2002a, p. 571).

    Daremos ainda destaque ao papel da linguisticidade em todo compreender,

    eis que, com Gadamer, ser que pode ser compreendido linguagem.

    Porm, antes que essa historicidade de toda compreenso se evidencie na

    descrio da hermenutica filosfica, teremos um captulo determinante para o todo

    da obra, que retrata as lies de Heidegger acerca do princpio do fundamento. Aqui

    estar marcada a nossa prpria finitude e a impossibilidade de um fundamento

    inconcusso. Seremos determinados por uma hermenutica da facticidade e aquela

    estrutura nos levar transcendncia como momento relevante da existncia, o qual

    servir de substrato a algumas concluses que sero lanadas na terceira parte do

    trabalho.

    Nesta ltima etapa do estudo, iniciaremos com as crticas levantadas ao

    carter universal da hermenutica filosfica, mediante a reconstruo do debate que

    se instalou entre Habermas e Gadamer, acrescendo-lhe das questes aventadas por

    Apel e terminando com nossa prpria indicao da insuficincia da sua

    hermenutica, por no conceder ao outro a dimenso que se impe no processo

    compreensivo.

    Aqui basicamente a tese se apresenta em dois tpicos bem demarcados. O

    primeiro determinado pela postulao de um lugar para a fundamentao no

    processo hermenutico, ele mesmo fundamentado nas razes ontolgicas do Dasein, o

    que nos permitir estabelecer uma ponte entre a hermenutica e a argumentao.

  • 19

    Associado a esta ideia, apresenta-se o segundo ponto da tese, que diz respeito

    assuno de que sendo um postulado de essncia do humano o fato de que -com os

    outros, no se pode negligenciar o papel relevante que na compreenso ele assume,

    exatamente porque ser-com compartilhar a verdade de um mesmo que se

    apresenta para ns. Assim, sob a base da mesmidade que o papel realinhador da

    hermenutica filosfica (e argumentativa) eclodir, permitindo a aduo de um

    importante argumento contra as crticas da relatividade que a ela so imputadas.

    Se o problema inicialmente levantado a crise do Direito, a hiptese que ora

    pretendemos ver confirmada a de que a hermenutica um possvel caminho para

    a sua superao, mas no naquela acepo clssica; e sim como hermenutica

    filosfica, porm modulada por uma insero do elemento argumentativo no

    processo compreensivo.

  • 20

    1. PARTE

    A CRISE DA MODERNIDADE E O DIREITO EM CRISE

    2 A MODERNIDADE E SUA CRISE

    2.1 Da Modernidade

    O que a modernidade? Quando ela comeou? Ela j terminou?

    O foco de nossas reflexes, como j adiantado na introduo, no est voltado

    modernidade propriamente dita e ao seu colapso. Sobretudo no temos a pretenso

    de posicion-la em termos precisos (se que tal empreitada possvel), no vis de

    um relato historiogrfico. Da que as perguntas que iniciam o subitem nos servem

    apenas de balizas para introduzirmos o tema.

    Comecemos por situ-la no tempo e no espao (GIDDENS, 1991, p. 11):

    "modernidade" refere-se a estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia. Isto associa a modernidade a um perodo de tempo e a uma localizao geogrfica inicial, mas por enquanto deixa suas caractersticas principais guardadas em segurana numa caixa preta.

    Em uma tentativa de definir o moderno, pode-se afirmar ser ele um perodo

    marcado pela descontinuidade, ruptura, distanciamento com o que antigo. Como

  • 21

    aponta Habermas, A palavra modernus foi utilizada inicialmente no final do sculo

    V para diferenciar um presente tornado cristo de um passado pago (2001, p. 168).

    Passa-se a um ideal de transcendncia, em que o antigo deve ser superado e, dessa

    superao, aflora um corolrio imediato: a necessidade de uma nova fundao.

    Porque se deve quebrar com a tradio8, impe-se desvalorizar essa pr-histria

    imediata e distanci-la para fundar-se de modo normativo a partir de si mesmo

    (HABERMAS, 2001, p. 168).

    Esta necessidade de autocertificao da modernidade, porque distanciada dos

    substratos antigos, hauridos da tradio que repudia, faz com que suas bases sejam

    alocadas em torno da razo9.

    Da o dizer dos filsofos iluministas que das querelas entre antigos e

    modernos parece que o problema se resolve a favor dos ltimos, posto que a

    civilizao moderna, ps-medieval, porque apoiada na razo, mostrava-se superior

    (LYON, 1998, p. 37).

    Para os nossos propsitos, importa destacar que a modernidade marcada,

    mais do que por um conjunto de teorias ou cosmovises, por uma atitude

    fundamental de centrar no homem a reflexo que busca captar o mundo de forma

    totalizadora, a abarcando todo o seu prprio modo de pensar e de agir, ao que

    denominaremos humanismo moderno. nesse sentido que se afirma que talvez

    melhor do que a poca seria falar da conduta, de uma nova sensibilidade diante da

    realidade e da vida (TEIXEIRA, 2005, p. 10).

    Nesse contexto, a figura de Ren Descartes paradigmtica. Mais do que uma

    renovao do conhecimento, mais do que uma rearticulao do agir moral, seu

    8 Por tradio podemos entender os modos de vida e cosmovises dos antigos, um conjunto de regras estabelecidas pela comunidade da aldeia, pela vida religiosa e litrgica, ou pelos ancios ou reis que estavam no poder (LYON, 1998, p. 37). 9 Nas precisas palavras de Habermas (2001, p. 170), uma modernidade que se tornou reflexiva deve justificar segundo parmetros prprios a escolha desses modelos e criar toda normatividade a partir de si mesma. A modernidade deve se estabilizar a partir da nica autoridade que lhe restou, a saber, da razo.

  • 22

    ambicioso projeto consiste no estabelecimento de um substrato unificador de tudo

    isso, a unidade da razo. Pretende estabelecer um grande sistema hierarquizado que,

    partindo dos fundamentos, chegue s consequncias, graas a um trabalho

    unificador da razo. Ademais, o seu carter universal se d em decorrncia do seu

    papel harmonizador da teoria com a prtica, posto que o conhecimento, tal como

    Descartes o v, no est limitado ao sentido comum de cincia, mas ao agir prtico

    tambm. Por isso, nada escapa ao seu imprio10.

    Em uma alegoria interessante, Descartes estrutura as diversas reas do

    conhecimento com apoio na figura de uma rvore, onde as razes representariam a

    metafsica; o tronco, o conhecimento fsico-matemtico; e, finalmente, os ramos e

    frutos abarcariam a medicina, as artes mecnicas (tecnologias) e a moral. Nessa

    rvore do saber, para que aqueles frutos sejam colhidos, ela deve estar firmemente

    apoiada em suas razes. Ademais, frutos saudveis devem nascer de troncos que

    estendam a estabilidade e a segurana das razes que lhe servem de substrato, o que

    se verificar onde a teoria e os seus fundamentos estiverem sustentados em

    conhecimentos absolutamente verdadeiros, tarefas que sero empreendidas com o

    auxlio da razo. Essa absoluta universalidade da razo assim destacada por

    Franklin Leopoldo e Silva (DVD):

    Ela se constitui agora como aquele vetor universal que vai dotar todas as dimenses humanas daquilo que mais prprio, daquilo que justamente mais humano, mais caracteristicamente humano, e por isso ns dizemos que est sendo fundado aqui o

    10 Aps reconhecer que aquele que se dedica ao cultivo do campo e paralelamente arte musical de algum instrumento no poderia almejar a mesma desenvoltura que aquele que a apenas um dos ofcios se entregasse, afirma Descartes que seria equivocado pretender aplicar o mesmo raciocnio s cincias, uma vez que elas estariam unificadas em um princpio nico, a razo humana. O excerto esclarecedor (DESCARTES, 1985, p. 12):

    Com efeito, visto que todas as cincias nada mais so do que a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e idntica, por muito diferentes que sejam os objetos a que se aplique, e no recebe deles mais distines do que a luz do sol da variedade das coisas que ilumina, no h necessidade de impor aos espritos quaisquer limites. Nem o conhecimento de uma s verdade, como se fora a prtica de uma nica arte, nos desvia da descoberta de outra; pelo contrrio, ajuda-nos.

  • 23

    humanismo moderno, a capacidade humana de conhecer com autonomia, independentemente de qualquer dogma, de qualquer autoridade externa razo, a possibilidade de conhecer e de agir em liberdade.

    Essa racionalidade vai operar atravs de regras metdicas que assegurem o

    ideal de certeza buscado11. H um ramo do conhecimento, a matemtica, onde

    espontaneamente esse mtodo j aplicado com grande xito, pelo que, devemos

    desvend-lo, utilizando-o como paradigma para estend-lo universalmente. Esse

    setor do conhecimento, que viria mostrando-se o mais evidente e seguro, est

    apoiado em certas condies de certeza que a se manifestam, as quais devem ser

    estendidas aos demais ramos do conhecimento. So os fundamentos metdicos, por

    ele denominados arcanos do saber.

    A reconstruo do conhecimento com base nesse mtodo vai partir da rejeio

    de todo saber estabelecido12. Essa dvida metdica, que a todo conhecimento pe em

    suspenso, vai conduzi-lo ao encontro da subjetividade, fazendo dela o marco

    caracterstico fundamental da modernidade. Em suas reflexes afirmar que mesmo

    tudo pondo em dvida no poderia duvidar de que est duvidando e, portanto, ao

    faz-lo, acaba por afirmar o sujeito (penso, logo existo). Essa subjetividade,

    ademais, marcada pelo exerccio da liberdade, j que praticar a dvida exerc-la

    na recusa em aceitar as verdades herdadas da tradio e, mais radicalmente, como

    consectrios lgicos, os seus fundamentos e a sua autoridade. Assim, na

    constatao da existncia, como primeira descoberta da reflexo, que teremos o

    primeiro testemunho dado pela subjetividade da sua liberdade e do seu poder.

    Mesmo quando Descartes reconhece a existncia de Deus e v o homem como

    criatura finita e dele dependente, ainda a essa liberdade e essa autonomia da razo

    11 A pujana do mtodo determinada em sua regra IV, onde a sua necessidade afirmada para a procura da verdade (DESCARTES, 1985, p. 23). 12 Nesse sentido, a regra III (DESCARTES, 1985, p. 18):

    No que respeita aos objetos considerados, h que procurar no o que os outros pensaram ou o que ns prprios suspeitamos, mas aquilo de que podemos ter uma intuio clara e evidente ou que podemos deduzir com certeza; de nenhum outro modo se adquire a cincia.

  • 24

    no se veem prejudicadas, posto que minha limitao e dependncia so frutos da

    representao que tenho em meu intelecto da prpria ideia de Deus. a partir dela,

    que me reconheo finito. Da porque

    [...] se Deus continua, como na tradio Crist, essa derradeira instncia, esse primeiro princpio de verdade, no entanto, cabe ao sujeito, doravante, julgar todos os seus pensamentos e todas as suas aes, e esse julgamento ser livre, o sujeito que vai adequar livremente s regras do verdadeiro, aos parmetros dessa jurisdio da verdade, tudo aquilo que ele puder pensar. Portanto, ainda que o sujeito reconhea Deus como princpio da verdade, caber a ele adequar livremente os seus pensamentos e as suas aes a esse princpio. (SILVA, 2005)

    Enfim, Deus permanece o fundamento da realidade, no entanto, agora, este

    fundamento se d por meio da subjetividade do homem (TEIXEIRA, 2005, p. 11).

    Ademais disso, a dicotomia estrutural que pe o homem como substncia

    corprea de um lado; e substncia pensante, de outro, vai proporcionar uma

    hipertrofia da subjetividade, posto que se tudo aquilo que mensurvel na extenso

    do espao est fora dessa interioridade, o que a isso no se subsume interior e lhe

    pertence. Portanto, os valores, significados e fins devero ser expostos a partir do

    prprio sujeito.

    Sob nova formatao, essa hipertrofia da subjetividade tambm

    acompanhada por Kant, quando, instaurando o que ele mesmo denominou de

    revoluo copernicana, estabeleceu uma nova transcendncia, que parte do objeto

    para a sua objetividade, onde o conhecimento no tomado como uma mera

    reproduo de uma realidade qualquer, mas como uma constituio apririca do

    objeto pela subjetividade humana (OLIVEIRA, 2001, p. 9). Assim, toda indagao

    acerca dos objetos de nossa experincia pressupe um questionamento sobre as

    condies de possibilidade de todo conhecer, e esses elementos constitutivos de todo

    objeto no so em si outro objeto ao lado dos demais, que poderiam ser investigados

    pelas cincias, mas elementos transcendentais que submetem toda experincia a essa

    formatao pela subjetividade cognoscente.

  • 25

    Em decorrncia dessa mediao consciencial a filosofia kantiana est

    marcada pelo carter antropocntrico do pensamento moderno, tal como anota

    Manfredo Arajo de Oliveira (2001, p. 10):

    A ontologia tradicional substituda pelo que poderamos chamar de objetologia transcendental, uma teoria do processo de objetivao, que vai culminar na lgica transcendental. Que a ontologia se faa lgica significa que, em ltima anlise, a instncia geradora do sentido de todo o real a subjetividade finita e nisto consiste o antropocentrismo.

    Esse elemento marcante do moderno exigir posteriormente uma reflexo

    histrica centrada no sujeito, de forma que, embora de delimitao complexa, pode-

    se afirmar que a modernidade vem associada ideia de secularizao ou laicizao,

    caracterizada pela desvinculao da tradio religiosa, que acabaria por outorgar ao

    homem, via razo, a autocertificao do mundo. Para Teixeira (2005, p. 42), a

    modernidade ostentaria trs traos interdependentes:

    [...] o primeiro trao diz respeito vinculao entre modernidade e racionalidade. Trata-se do imperativo de adaptao dos meios aos fins que se persegue, tendo como objetivo de fundo erradicar as ignorncias geradoras de crenas e de comportamentos irracionais [...] O segundo trao postula a partir do sonho de racionalizao, um modo particular de relao com o mundo que se resume na afirmao fundamental da autonomia do indivduo-sujeito capaz de fazer o mundo no qual vive e de construir ele mesmo as significaes que do um sentido sua prpria existncia. Uma terceira feio da modernidade implica a forma de organizao social caracterizada pela diferenciao das instituies e pela especializao dos diferentes domnios da atividade social.13

    Para Habermas (2001, p. 169/170), o moderno como ruptura com o passado,

    sustentado na razo humana, leva a um dinamismo sem precedentes. H uma

    abertura radical ao futuro e o presente ganha projeo nesse quadro, posto que

    13 O autor complementa afirmando que segundo Ari Pedro Oro, isto quer dizer que a economia, a cincia, a esttica, a poltica, o jurdico etc., cada uma destas esferas funcionam segundo uma lgica prpria, tendo como caracterstica principal a autonomia da ordem temporal que se emancipa da tutela da tradio religiosa (A.P. ORO, A religio entre os universitrios do sul do Brasil, Revista Eclesistica Brasileira 63, 2003, p. 847) (TEIXEIRA, 2005, p. 42).

  • 26

    funciona como uma fonte de eventos singulares e contingentes onde a

    transitoriedade vai ganhar espao. A histria vista ento como uma fonte de

    gerao de problemas onde o tempo seria o escasso recurso para enfrent-los, pelo

    que acabariam, por sua presso, sendo empurrados para o futuro. Tudo isso faria

    com que a verdade passasse a receber o que denominou de ndice histrico. Se h

    uma pretenso de alcanar uma verdade desligada dessas amarras, a compreenso

    da prpria modernidade passa a ser o problema. Isso justificaria a autorreflexo

    crtica da prpria modernidade.

    Foi Hegel quem originariamente afirmou no plano conceitual essa relao

    entre modernidade e racionalidade, o que faz dele, segundo Habermas, o primeiro

    filsofo a elaborar um conceito claro de modernidade que engendrasse a dinmica

    interna de suas figuras14.

    Inicialmente ligou a modernidade ideia de novo tempo, aquele de

    nascimento e trnsito para uma nova poca em que O esprito rompeu com o

    mundo de seu ser-a e de seu representar, que at hoje durou; est a ponto de

    submergi-lo no passado e entregar-se tarefa de sua transformao (HEGEL, 1992,

    p. 26). Esse tempo moderno se consumiria na expectao do futuro, atravs daquilo

    que denominou de Zeitgeist (esprito do tempo), anunciado com a Revoluo

    Francesa e o Iluminismo. exatamente a que reside a distino entre o tempo

    moderno e o antigo, qual seja, a abertura dimenso do futuro: em cada momento

    do presente (que se consome a si mesmo no engendramento e na expectao do

    novo) se repete e se intensifica o limiar de um novo e epocal comeo (GIACOIA

    JUNIOR, 1993, p. 49)15.

    14 Ver HABERMAS, 2002, p. 24. 15 Ou ainda, como diria HABERMAS, Enquanto no Ocidente cristo os novos tempos significavam a idade do mundo que ainda est por vir e que despontar somente com o dia do Juzo Final [...] o conceito profano de tempos modernos expressa a convico de que o futuro j comeou: indica a poca orientada para o futuro, que est aberta ao novo que h de vir. (2002, p. 9).

  • 27

    O que resulta dessa conscincia histrica e temporal a ideia de oposio do

    novo tempo ao passado, com a consequente necessidade de autofundamentao, ou

    seja, porque no pode obter dele seu fundamento, necessita criar com base em si

    mesma a sua prpria normatividade. Assim, seu ncleo marcado pela ciso com o

    antigo, tal como o remarca Giacoia Junior (1993, p. 51):

    [...] o horizonte da experincia do tempo se recolhe sobre a vivncia de uma subjetividade descentrada, despojada de referncias adquiridas e sedimentadas, desligada das convenes do cotidiano [...] O presente atual, que se consome em si mesmo, torna-se, desse modo, o nico ponto de referncia da modernidade, que no pode mais adquirir a conscincia de si valendo-se da oposio relativa a uma poca recuada e superada, transformada em figura do passado.

    Essa ideia de rompimento com o antigo se inicia com o sentido esttico, no

    mbito da arte16. Tal o confirma a crtica contundente de Baudelaire, para quem a

    Modernidade, com o seu valor esttico historial, seria marcada pelo momento, de

    onde se impe a necessidade de tirar da moda o que esta pode conter de potico no

    histrico, de extrair o eterno do transitrio (BAUDELAIRE, 1996, p. 23). Da advertir

    que (o artista) De tanto se enfronhar nele (o antigo), perde a memria do presente;

    abdica do valor dos privilgios fornecidos pela circunstncia, pois quase toda nossa

    originalidade vem da inscrio que o tempo imprime s nossas sensaes (1996, p.

    27)17.

    Esse sentimento de autocompreenso forjado no ncleo esttico da arte de

    vanguarda foi logo recuperado filosoficamente por Hegel. A Modernidade, ao

    romper com os critrios de medida do passado, acabou gerando fragmentaes que,

    ao mesmo tempo, exigiram uma estabilizao que somente pde ser alcanada a

    partir de si mesma. Essa autocertificao e autofundamentao estariam baseadas no

    16 Cf. HABERMAS, 2002, p. 13. 17 Com essa advertncia, critica a constncia com que os artistas modernos insistem em retratar seus personagens com a indumentria dos antigos e, radicalizando, aponta para o sentido catastrfico de pretender reproduzir uma marina atual pela insero de antigos galees com seus mastros e velames (BAUDELARIE, 1996, p. 23, 24 e 27).

  • 28

    princpio da subjetividade, apresentado como autorreflexo, uma curvatura do

    sujeito sobre si prprio, para racionalmente fornecer o estatuto da validao de

    qualquer questo, na esfera do saber, da moral ou da arte. Da a necessidade de

    desenvolvimento do conceito de Absoluto, no qual a razo se testifique como

    potncia unificadora que, a partir da reflexo, possa superar toda diviso, dissolver

    toda positividade, engendrando de seu prprio interior as referncias normativas

    que reconciliem a modernidade consigo mesma. (GIACOIA JUNIOR, 1993, p. 52-

    53).

    Como dissemos, essa realidade moderna fragmentria, dissolvendo aquele

    amlgama proporcionado pela religio nos planos da cincia, da moral e da arte,

    entre vida religiosa, Estado e sociedade. A filosofia teria por objetivo recuperar na

    racionalidade aquele poder unificador da religio, e o faria no interior da prpria

    dialtica do esclarecimento, j que ela no poderia servir-se de nenhum outro

    instrumento, que no o da reflexo.

    De ver-se ento que a modernidade gera um paradoxo intestinal, pois ao

    mesmo tempo em que se mostra superior, experimenta um estado de permanente

    crise, ao mesmo tempo em que promete progresso e emancipao, o mundo moderno

    tambm o mundo do esprito tornado estranho a si mesmo e alienado de si

    (GIACOIA JUNIOR, 1993, p. 51). A superao do sentimento de perda da totalidade,

    gerado pelas fragmentaes instauradas com a modernidade, em decorrncia do

    destronamento da religio, passa a ser tarefa da filosofia, que pretende alcanar tal

    objetivo pela fora unificadora da razo tornada absoluta18, mas essa regenerao da

    fora coesiva religiosa fracassou, tal como atesta Giacoia Junior (1993, p. 54):

    18 A tematizao do todo seria uma necessidade esquecida pela filosofia clssica que, no af de entender os objetos de nossa experincia, esqueceu-se de v-los em suas inter-relaes. Da que o novo papel da razo seria o de estabelecer aquilo que Manfredo de Oliveira denominou unidade diferenciada: O conhecimento humano destri a unidade das coisas e penetra seus elementos: a razo destri esta negao e reconstitui a unidade do real, mas agora enriquecida de seus elementos constitutivos (2001, p. 10).

  • 29

    Nos termos desses diversos conceitos de razo, a esta cumpriria superar as distncias e as diferenciaes produzidas pela dinmica do princpio da subjetividade, valendo-se de um movimento que se probe o acesso a qualquer normatividade exterior reflexo, uma vez que a modernidade, por sua prpria essncia, deve produzir toda referncia normativa a partir de si mesma, num movimento estabilizador de autocertificao. Todas essas tentativas de reconciliao das fragmentaes da modernidade, fundando-se no estabelecimento de um novo conceito de razo, com base na dinmica interna do princpio da subjetividade e do aprofundamento da dialtica da Aufklrung, fracassam, por razes diversas, ao tentar compensar, no elemento razo, a perdida fora de coeso e integrao social outrora emanada da religio.19

    Portanto, esse quadro moderno est marcado por uma inquietude prpria de

    uma problemtica associada ao tempo, que se mostra incapaz de dar conta das

    questes que se renovam. E isso compreensvel, posto que, em nome da razo,

    foram rejeitados os dogmas da tradio (at ento inquestionveis e inabalveis), os

    quais geravam tranquilidade e produziam certa segurana. Como afirma David

    Lyon, a modernidade debilita o eu, pois se na sociedade tradicional, a identidade

    dada, na modernidade ela construda (1998, p. 37). Ento, de certa forma, essa

    crise de autoridade acabou por refletir-se em uma crise de identidade.

    Por outro lado, o mundo foi reconquistado pela razo, nela que se encontra o

    substrato seguro para a sua reconstruo. A f agora tem outro destinatrio e, de

    forma aparentemente paradoxal e curiosa, em meio a esta turbulncia das dvidas

    modernas, a extremada confiana depositada na razo acabava por refletir-se

    tambm em uma crena na sua capacidade de produo de liberdade e progresso.

    Nessas primeiras linhas, temos a impresso de que a modernidade se deixa

    mostrar, ainda que de forma muito incipiente. E dizemos isso porque ela

    plurimorfa, um caleidoscpio que se apresenta em reflexos dinmicos e de mltiplos

    matizes, da porque marca diversamente os muitos socilogos e filsofos que iro

    19 Quando Giacoia Junior aqui menciona os diversos conceitos de razo, quer se referir aos sentidos distintos que lhe emprestam os hegelianos de esquerda e os de direita. As fragmentaes constatadas na modernidade deveriam ser recompostas na dialtica do prprio esclarecimento, de tal forma que a esquerda hegeliana a v como libertria reapropriao de foras essenciais, produtivamente exteriorizadas, mas confiscadas; ao passo que os de direita a veriam como um fato compensatrio pela dor das inevitveis cises (GIACOIA JUNIOR, 1993, p. 54).

  • 30

    enfrent-la como tema. Profundos avanos na rea tecnolgica repercutiro no modo

    de ser da prpria sociedade. Uma industrializao crescente acaba sendo formatada

    em nveis de especializao cada vez maiores, onde a linha de produo

    multiplicada e a diviso de tarefas incrementada (ver o exemplo do fordismo). Nos

    tempos modernos de Chaplin h quem veja, como Durkheim, valores positivos nessa

    especializao, propulsora de uma solidariedade orgnica capaz de realar a

    interdependncia entre as pessoas. Por outro vis, Max Weber ver a modernidade

    marcada pela racionalizao, uma atitude calculista que se propaga

    exponencialmente aos mais variados setores da vida humana. Ela vai dominar o

    mtodo da cincia e evidenciar-se na apurao contbil entre lucros e perdas,

    promovida pelo capitalista. Estar tambm presente no regramento a que se submete

    o burocrata institucional, dentre outros.

    Novas tcnicas e tticas para afirmar a disciplina marcam tambm a

    modernidade. O cmbio, por exemplo, faz-se sentir no mbito do sistema prisional,

    como bem salientou Michael Foucault ao retratar o modelo de priso Panopticon,

    onde os detentos acabavam promovendo a prpria vigilncia. Vejam-se os mtodos

    cruis e brutais da antiguidade, voltados manuteno da ordem estabelecida, so

    ali substitudos pela autodisciplina e pelo autocontrole.

    Para Karl Marx a modernidade marcada pelo modo capitalista predominante

    na sociedade, o qual a conduz sob a direo do lucro e da explorao, responsvel

    pela alienao dos trabalhadores de sua prpria humanidade, ocultada sob o manto

    de um sistema de trocas, decorrente de relaes objetivas e impessoais que mascaram

    as relaes pessoais e familiares.

    Portanto, especializao, racionalizao, disciplina, explorao, alienao,

    dentre outras, so, em linhas muito breves e meramente exemplificativas, uma

    pequena amostra das mltiplas percepes possveis do que se costuma chamar de

    modernidade.

  • 31

    Nesse colapso temporal, marcado pelo rompimento com o passado e, na

    instabilidade do presente que se renova em problemas que o tempo no d conta de

    resolver, pressionando-os para o futuro, parece mostrar-se uma trajetria linear que

    contabiliza um saldo positivo, j que, de uma sociedade completamente modificada

    em seu modo de ser, experimenta-se um modo de vida sem retorno, porque

    facilitado pelas conquistas da cincia, refletidas na tecnologia a servio do homem. A

    razo, como nova destinatria da f aparenta cumprir com o seu propsito, o que

    seria confirmado nas referidas conquistas. O mundo caminha sob sua orientao e de

    forma progressiva. Entretanto, essas suas promessas no vo se cumprindo, e as

    premonies dos observadores mais crticos vo se confirmando (ao menos em

    parte), de forma a deixar mostrar a ambivalncia da modernidade20, a gerar as

    condies para o seu prprio colapso.

    De fato, a crise de autoridade leva substituio da base religiosa pela

    cientfica, entretanto, quem efetivamente fala a razo instrumental, onde o que se

    perquire efetivamente o que serve e funciona. Em acurada sntese, destaca David

    Lyon (1998, p. 57):

    Ao proclamar a autonomia humana e ao pr em movimento o processo que permitiria que a razo instrumental fosse a regra da vida, a modernidade deu incio a uma mudana que terminaria melancolicamente, se no desastrosamente. O progresso parecia propcio, e era preferido providncia. Mas a promessa de progresso azedou. Nada ficaria imune aos ditames da razo ctica e calculista, incluindo a prpria razo [...] o abandono da tradio, a secularizao e a racionalizao escarneciam desses incios aparentemente honestos e inocentes.

    20 Como destaca Anthony Giddens (1991, p. 16), a modernidade um fenmeno de dois gumes. De um lado, o desenvolvimento das instituies sociais modernas e sua difuso em escala mundial criaram oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existncia segura e gratificante que qualquer tipo de sistema pr-moderno; de outro, o lado sombrio que se tornou transparente na destruio massiva do meio ambiente, em decorrncia da explorao industrial, no uso arbitrrio do poder poltico, marcado por exemplos de despotismos que muito maltrataram a humanidade (o holocausto, por exemplo, para no falar dos regimes militares totalitrios que to bem vivenciamos em nosso pas), o uso militar da tecnologia nuclear etc. A todas essas constataes podemos agregar tambm aquelas crticas sociolgicas apontadas por Marx, Weber, Adorno etc.

  • 32

    A crena na suposio de que a modernidade nos conduziria a uma ordem

    social mais segura desabou, o que acabou por levar junto com ela a ideia de

    metanarrativas capazes de dar conta do caminho seguro de nossa aventura terrena,

    marcada por um passado definitivo e por um futuro previsvel21. A humanidade

    firmou a crena de estar vivendo um novo mundo, cujos elementos estruturais ainda

    no se pem claramente, mas deixa a marca da conscincia de crise, crise contra a

    razo instrumental22.

    Esse perfil da modernidade antecipado por Nietzsque, com sua contundente

    crtica metafsica e seus consectrios, como adiante veremos.

    2.2 O martelo23 de Nietzsche

    J em Plato encontramos a soluo para o problema do ser no

    reconhecimento de um mundo idealizado, contraposto ao mundo das meras

    aparncias em que o homem habita. O fundamento do real estaria naquele mundo

    das formas puras, do qual teramos reminiscncias que permitiram assim alcan-lo

    intelectualmente pelo uso da razo.

    Aproveitando-se desse projeto, o mundo medievo alocou o divino nele, como

    referncia e medida das aes e do conhecimento humanos.

    21 Nas palavras de Lyotard, Simplificando al mximo, se tiene por postmoderna La incredulidad con respecto a los metarrelatos (2006, p. 10) 22 como anota Manfredo de Oliveira (2001, p. 7):

    A modernidade, sua significao e sua contribuio para a antropognese esto de novo em debate. A crise cultural que vivemos crise contra a razo, contra a ilustrao, numa palavra, contra a modernidade. A crtica da razo instrumental desenvolvida pela modernidade desemboca numa crtica modernidade enquanto tal, e, em ltima anlise, numa crtica prpria razo, que vista como instrumento de represso.

    23 Aqui uma referncia obra O crepsculo dos dolos, em que Nietzsche expressamente nos remete a sua filosofia a golpes de martelo, com o qual tocaria os dolos, a fim de ouvir ressoar o som oco proveniente de suas entranhas insufladas (1984, p. 4).

  • 33

    Na sequncia, a secularizao expulsou Deus do seu trono, colocando o

    homem como senhor do seu mundo, mas ainda assim no reconheceu a sua morte.

    Nietzsche a declarar aos homens (2001a, p. 120, traduo nossa)24:

    No ouviste falar daquele louco que, em plena luz do dia, corria pela praa pblica com sua lanterna acesa, gritando sem cessar: Busco Deus! Busco Deus! Como estavam presentes muitos que no acreditavam em Deus, seus gritos provocaram uma gargalhada: Perdeu-se?, dizia algum. Perdeu-se como uma criana?, perguntava outro. Estava escondido? Tem medo de ns? Embarcou? Emigrou? E essas perguntas seguiam acompanhadas de sorrisos em coro. O louco encarou-os e, cravando-lhes o olhar, exclamou: Onde est Deus? Vou-lhes dizer. Ns o matamos, vocs e eu, todos ns somos seu assassinos [...]

    De fato, na praa do mercado, plena alegoria de nosso espao pblico, onde a

    razo se instala luminosa para mostrar as verdades absolutas, onde as convices

    mais profundas esto sedimentadas, somente um louco, um absolutamente incapaz,

    como uma criana, poderia disparar uma pergunta tal como posta: onde est

    Deus?. Ser que algum que no pertence mais a esta terra, que emigrou para

    rinces distantes e no est a par dos acontecimentos que por aqui so correntes, que

    aps Newton seria insano falar em Deus, que o homem no cr mais em qualquer

    explicao testa do universo, sendo a sua razo quem governa o mundo!

    Cinicamente debocham do louco.

    Ocorre que os homens modernos, aqueles da praa do mercado, no se deram

    conta da grandeza do seu ato. Ao expulsarem Deus do seu trono, com ele se foi

    juntamente o porto seguro da direo e do sentido que nos governavam. Estamos

    sem um horizonte de sentido prvio, deixados ao autogoverno das nossas vidas, no

    24 No oste hablar de aquel loco que en pleno da corra por la plaza pblica con una linterna encendida, gritando sin cesar: Busco a Dios! Busco a dios! Como estaban presentes muchos que no crean en Dios, sus gritos provocaron a risa. Se te ha extraviado?, deca uno. Se ha perdido como un nio?, preguntaba otro. Se ha escondido? Tiene miedo de nosotros? Se ha embarcado? Ha emigrado? Y estas preguntas iban acompaadas de risas en coro. El loco se encar con ellos, y clavndoles la mirada, exclam: Dnde est Dios? Os lo voy a decir. Le hemos matado, vosotros y yo, todos nosotros somos sus asesinos []

  • 34

    se podendo, portanto, revolver a histria em busca de um substrato estvel que nos

    d tal direo. No podemos mais voltar quele porto porque o queimamos. Se, de

    um lado, Deus o Deus estatutrio cristo; de outro, no menos certo v-lo como

    designativo do mundo idealizado platnico, essncia da filosofia de Nietzsche

    (antiplatonista). No temos mais elementos para estabelecer a distino entre o

    verdadeiro e o falso, o certo do errado, o real da aparncia.

    A grandeza do ato praticado pelos modernos deve exigir do homem uma

    dignificao de mesma amplitude. Uma verdadeira emancipao que a razo no

    fornece. Ao contrrio, continuamos arraigados ao ideal de busca de um sentido para

    o mundo e para nossas vidas, os quais seguem sendo buscados fora do evento.

    por isso que, dada a nossa cegueira racional, necessitamos de algum de

    fora, desprovido da razo, um louco, para lembrar-nos que essa busca frentica v,

    pois Deus est morto e fomos ns quem o matamos. assim que, a exemplo de

    Digenes, cinicamente comparece o louco diante de ns, desestabilizando nossas

    colunas, debochando da pseudoluminosidade em que nos encontramos, afinal

    estamos em plena luz do dia, e com uma lanterna mostra-nos o caminho errado em

    que nos encontramos.

    Esclarecidos que somos, ns os modernos, rimos debochadamente do louco e

    dizemos: ele no sabe o que diz, ele no sabe o que faz; ao que, no menos cnico,

    ele lhes crava seu olhar e encarando-os responde: absolutamente o contrrio, so

    vocs precisamente que no sabem o que fizeram e o que fazem. E o silncio se

    instala, concluindo o louco que chegou demasiado cedo para a mensagem, pois os

    homens ainda no se deram conta do que fizeram (NIETZSCHE, 2001a, p. 121-122,

    traduo nossa25):

    25 Al llegar a este punto, call el loco y volvi a mirar a sus oyentes; tambin ellos callaron, mirndole con asombro. Luego tir al suelo la linterna, de modo que se apag y se hizo pedazos. Vine demasiado pronto dijo l entonces -. Mi tiempo no es an llegado. Ese acontecimiento inmenso est todava en camino, viene andando; mas an no ha llegado a los odos de los hombres. Han menester tiempo el relmpago y el trueno, la luz de los astros ha menester tiempo; han menester los actos, hasta

  • 35

    Ao chegar a este ponto, calou-se o louco e voltou o seu olhar a seus ouvintes; tambm eles se calaram, olhando-o com assombro. Depois lanou ao solo a sua lanterna, de modo que se apagou e se fez em pedaos. Vim demasiado cedo, disse ento, meu tempo ainda no chegou. Esse acontecimento imenso est ainda a caminho, vem andando, mas ainda no chegou aos ouvidos dos homens. O relmpago e o trovo necessitam de tempo, a luz dos astros necessita de tempo, os atos dele necessitam at depois de realizados, a fim de que sejam vistos e compreendidos. Esse ato est ainda mais longe dos homens do que a estrela mais distante e, sem embargo, eles o executaram!.

    rica a alegoria. Nasce uma supernova, mas essa estrela somente anos aps

    este instante ser percebida, pois at a luz precisa de tempo para que dela tenhamos

    conta. Da mesma forma o trovo, somente aps um lapso temporal que o seu som

    nos alcanar. Tambm o mesmo ocorre com o grandioso ato que marca a

    modernidade, pois a despeito de havermos matado Deus, ainda no nos demos conta

    dele e continuamos a buscar o porto seguro que ns mesmos destrumos.

    No prefcio obra Alm do Bem e do Mal, Nietzsche afirma que o mais

    funesto e duradouro erro dogmtico o erro platnico do esprito puro e do bem em

    si. A crtica se dirige matriz que ser reproduzida na filosofia subsequente, qual

    seja, a da oposio idealista entre o sensvel e suprassensvel26. Essa exaltao

    metafsica de valores e coisas, que a priori instauram a regra de correo de nossas

    representaes e atitudes, compromete o prprio gozo da vida e a imanncia do ser.

    Essa estrutura instaura uma vida cotejada ao parmetro e, sobretudo, cerceada sua

    obedincia. Anula-se a pulso do acontecimento e nos faz verdadeiros mortos-vivos.

    Somos arrebatados da vida e isso provoca o niilismo, a vontade de nada que

    compromete a inocncia do acontecimento e do seu papel redentor. Essa remisso a

    algo transcendente, invariavelmente inexistente para ao filsofo, estabelece o niilismo

    como estado psicolgico, explicado na busca por um sentido que no est no prprio

    acontecimento, como por exemplo, a submisso a um cnone tico superior.

    despus de realizados, para ser vistos y entendidos. Ese acto todava ms lejos de los hombres que la estrella ms lejana. Y sin embargo, ellos lo han ejecutado! 26 Cf. GIACOIA JUNIOR, 1997, p. 31.

  • 36

    Na filosofia de Nietzsche o sentido instaurado aqui mesmo, na prpria

    vivncia, no havendo espao para outro mundo, transcendente e verdadeiro, tal

    como explica Amauri Ferreira (2006, p. 8):

    Como somos produtos da nossa relao com a realidade (aspecto reativo, consciente), h tambm em ns uma capacidade de produo desconhecida (aspecto ativo, inconsciente), que no obedece a nenhuma forma a priori. Tudo que produzido no mundo no o resultado de uma adaptao a um determinado modelo de perfeio: o que afirmado (sic) a capacidade relacional das foras. As relaes entre as foras produzem a realidade. Mas em toda relao de foras h uma vontade necessariamente relacional -, o que leva Nietzsche a dizer que o mundo vontade de potncia.

    Portanto, o nico sentido o que caracteriza o prprio mundo como vontade

    de potncia, a qual, dominada por seu lado negativo, negar a imanncia e ceder s

    foras reativas que procuraro sustentar os valores recebidos. Recusa-se a vontade de

    afirmao plena pela preservao de valores que pertencem a outro mundo, um

    mundo fictcio, de ideias puras e transcendentes, ou seja, o que se afirma

    sustentado pelo que se nega. O outro lado do reativo o ativo, em que a afirmao

    pura se instala e os pressupostos que do suporte negao, aqueles valores fictcios

    que auxiliariam o homem a suportar a sua prpria existncia, so recusados para

    permitir o reconhecimento do devir, da imanncia, do evento.

    Em Assim Falou o Zaratustra, Nietzsche desfere, em estilo vigoroso, a sua

    crtica a essa dicotomia celestial. Humaniza Deus atribuindo-lhe a imperfeio, que o

    leva a criar um mundo terreno para esquecer-se de sua dor e sofrimento

    (NIETZSCHE, 2001b, p. 26-27, traduo nossa27):

    27 Cierto da, Zaratustra proyect su ilusin ms all de los hombres, como todos los alucinados del ultramundo. Entonces le pareci el mundo la obra de un dios doliente y atormentado [...] El creador quera desplazar los ojos de si mismo, entonces cre el mundo. Alegra embriagadora es para quien sufre desplazar los ojos de su dolor y olvidarse. Alegra embriagadora y olvido de s mismo: tal me pareci un da el mundo. Este mundo, eternamente imperfecto, imagen, e imagen imperfecta, de una eterna contradiccin, una alegra embriagadora para su imperfecto creador.

  • 37

    Certo dia Zaratustra projetou sua iluso para alm dos homens, como todos os alucinados do ultramundo. Ento lhe pareceu que o mundo era obra de um deus doente e atormentado [...] O criador queria deslocar os olhos de si mesmo, ento criou o mundo. Alegria embriagadora para quem sofre deslocar os olhos de sua dor e esquecer-se. Alegria embriagadora e esquecimento de si mesmo: tal me pareceu um dia o mundo. Este mundo, eternamente imperfeito, imagem, e imagem imperfeita, de uma eterna contradio, uma alegria embriagadora para seu imperfeito criador.

    Sua caricatura de Deus se presta a denunciar que a projeo da felicidade para

    o ultramundo fruto de homens doentes e fatigados, fracos que pretendem lanar-

    se de um s salto ao fim, deixando de querer a vida. Todos os deuses so obras deles

    (NIETZSCHE, 2001b, p. 28, traduo nossa28):

    Doentes e decrpitos foram os que depreciaram o corpo e a terra, quem inventou as coisas celestes e as gotas de sangue redentor; e esses venenos doces e lgubres foram do corpo e da terra de onde os tomaram emprestados! As estrelas lhes pareciam demasiado distantes para salvarem-se de sua misria. Ento, puseram-se a suspirar: Ah! Que no haja caminhos celestiais para que possamos deslizar a outro ser e a outra felicidade! Por isso inventaram seus artifcios e suas bebidas sangrentas. Estes ingratos acreditaram que estariam arrebatados para longe de seus corpos e desta terra.

    A esses homens, o filsofo dirige a seguinte mensagem: Que no escondam

    mais sua cabea na areia das coisas celestes, e sim que a ergam orgulhosamente, uma

    cabea terrestre que cr o sentido da terra! (NIETZSCHE, 2001b, p. 28, traduo

    nossa29).

    28 Enfermos y decrpitos fueron los que despreciaron el cuerpo y la tierra, quienes inventaron las cosas celestes y las gotas de sangre redentora; y estos venenos dulces y lgubres fueron del cuerpo y de la tierra de donde los tomaron prestados! Las estrellas les parecan demasiado lejanas para salvarse de su miseria. Entonces, se pusieron a suspirar: Ay! Que no haya caminos celestiales para que pudiramos deslizarnos a otro ser y a otra felicidad! Por eso inventaron sus artificios y sus bebidas sangrantes. Estos ingratos se creyeron arrebatados lejos de su cuerpo y de esta tierra. 29 Que no escondan ya ms su cabeza en la arena de las cosas celestes, sino que la yergan orgullosamente; una cabeza terrestre que cree el sentido de la tierra!

  • 38

    Portanto, em Nietzsche, no h espao para falar-se em progresso30, o mundo

    um jogo de foras em que a vontade de potncia quer afirmar-se. Nesse jogo, negao

    e afirmao vo estar sempre em confronto, individualizando comportamentos

    humanos reativos e ativos. Nos primeiros, nega-se a instabilidade do prprio jogo

    para afirmar a tradio; no segundo, afirma-se o devir, negando-se as formas prvias.

    Para o filsofo, o domnio da vontade de potncia afirmativa pressupe que a fora

    reativa deva ser primria, preponderante. Ocorre que essa hierarquia invertida

    quando o sentido de adaptao que toma o seu lugar, quando as foras reativas

    assumem o seu posto, fazendo do homem apenas um transportador de valores que

    lhe so dados. Diante deste quadro, afirma Ferreira (2006, p. 11)

    [...] a vida humana submete-se apenas sua conservao e, para isso, tem a constante necessidade de controlar as foras reativas. Os valores que so gerados e mantidos passam a servir apenas para manter a sobrevivncia de um modo de vida que precisa investir em ideias puras, separadas da realidade. Princpio do julgamento da vida: a realidade dura, violenta, cruel e, portanto, deve ser julgada. o nascimento do lugar do juzo.

    Esse deslocamento de foco para um supramundo busca dar algum sentido

    vida humana, salv-lo do catico, uma muleta que o auxilia a suportar o fardo da

    existncia. A vontade que a se instaura no aquela de potncia, mas uma vontade

    de nada. Um nada dissimulado31 que despreza o corpo, que projeta o homem para

    alm da terra, a um mundo idealizado, onde desfrutaria o ideal de vida boa que aqui

    30 Taxativamente o afirma em O Anticristo (NIETZSCHE, 2001c, p. 290):

    La humanidad no representa una evolucin hacia lo mejor o ms fuerte o ms alto en la manera que hoy se cree. El progreso es sencillamente una idea moderna, es decir, una idea falsa. El europeo actual sigue estando en su valor muy por debajo del europeo del Renacimiento; la evolucin ulterior no tiene por qu ser intensificacin, elevacin, fortalecimiento, por una necesidad cualquiera.

    31 Essa vontade de nada seria dissimulada por um vocabulrio retrico (NIETZSCHE, 2001c, p. 293):

    No se dice nada: se dice en cambio ms all, o Dios, o la vida verdadera, o Nirvana, salvacin, bienaventuranza Esta inocente retrica, originada en la idiosincrasia religioso-moral, aparece enseguida como mucho menos inocente cuando uno comprende qu tendencia se oculta aqu bajo el manto de unas palabras sublimes: la tendencia hostil a la vida.

  • 39

    no se instaura. , portanto, na afirmao da fora reativa que encontramos o

    niilismo.

    Se a modernidade, com a secularizao, mitigou esta fico do alm-mundo,

    nem por isso deu vazo s foras ativas de que falava Nietzsche. O niilismo apenas

    ingressou em um segundo estgio, em que o papel do sacerdote32 foi deslocado ao

    ideal racional. Da reao aos valores divinos surgiu a necessidade de sua

    substituio, sem que com isso fosse afastada a ideia de um universal contraposto ao

    individual. A lei, outrora divina, agora humana. O homem racional instaura a sua

    realidade e suas leis, disfarando novamente a vontade de nada pela vontade de

    verdade. Como afirma Amauri Ferreira, o incio do mito do progresso, em um

    mundo que se orgulha no precisar mais de Deus (2006, p. 37). E complementa:

    O lugar do juzo permanece, mas agora ocupado pelo homem. A origem da vontade, anteriormente divina, torna-se humana, demasiado humana: parte de um sujeito para ser finalizada numa construo neste mundo. O homem, dotado da racionalidade, acredita que poder, enfim, construir a sua felicidade aqui [...] fundamental percebermos que esse processo apenas mais um disfarce, bastante sutil, da vontade de nada, agora sob o traje da razo. a conscincia, diz Nietzsche, que quer interferir no resultado do lance de dados.

    E sobre esse solo pretensamente seguro da razo Nietzsche dir: Que importa

    minha razo? Est vida por cincia como o leo o est por alimento? pobreza,

    imundice e compassivo descontentamento de algum consigo mesmo. (2001b, p. 11,

    traduo nossa33).

    O niilismo est correlacionado ideia de decadncia que abre espao sua

    manifestao. A crtica modernidade sobressalta na sua explicao (GIACOIA

    JUNIOR, 2000, p. 55):

    32 Em sua Genealogia da Moral (1998) Nietzsche vai introduzir a figura do sacerdote ascptico judaico, encarregado de arrebatar o rebanho de ovelhas humanas. 33 Qu importa mi razn! Est vida de ciencia como el len lo est de alimento? Es pobreza, inmundicia y compasivo descontento de uno mismo.

  • 40

    Nietzsche interpreta a histria da cultura moderna como escalada do niilismo. Este, por sua vez, deve ser entendido como um sentimento opressivo e difuso, prprio s fases agudas de ocaso de uma cultura. O niilismo seria a expresso afetiva e intelectual da decadncia. Por meio dele, o homem moderno vivencia a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura. Por essa tica, niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valorao tanto no plano do conhecimento, quanto no tico-religioso, ou sociopoltico, ficaram sem consistncia e j no podem mais atuar como instncias doadoras de sentido e fundamento para o conhecimento e a ao. Sintomas desse estado de prostrao podem ser detectados, segundo Nietzsche, em todos os setores da moderna vida social: na arte, plenamente instrumentalizada para fins de entretenimento, ou, como o chamaramos atualmente, capturada nos circuitos da indstria cultural; na poltica e na educao, empenhadas em estabelecer e perpetuar um ideal de homem completamente adaptado aos modos de produo e reproduo de uma sociedade de massas; na moral, na cincia e na filosofia, que se tomaram expresses ideolgicas desse desejo de rebaixamento e nivelao da humanidade, agenciado em escala planetria.

    O niilismo, entretanto, pode servir a um propsito positivo, se essa negao de

    valores vier conjugada vontade de potncia, confirmada pelo deixar fluir as foras

    ativas, atravs da aceitao do acontecimento, da imanncia da vida. Trata-se,

    portanto, de um niilismo ativo, que somente ser afirmado pelo alm-homem.

    preciso uma transformao, uma metamorfose daquele modelo humano consagrado

    at agora, que insiste em permanecer na figura que Nietzsche denominou de ltimo

    homem, o qual dever morrer para dar vida a um novo ser (NIETZSCHE, 2001b, 12,

    traduo nossa34):

    O homem uma corda estendida entre o animal e o super-homem, uma corda tendida sobre o abismo. perigoso passar ao outro lado, perigoso permanecer no caminho, perigoso olhar para trs, perigoso parar-se e perigoso balanar. A grandeza do homem est em ser uma ponte e no um fim; o que h nele digno de ser amado ele ser um trnsito e um crepsculo.

    34 El hombre es una cuerda tendida entre el animal y el superhombre; una cuerda tendida sobre el abismo. Es peligroso pasar al otro lado, peligroso permanecer en el camino, peligroso mirar hacia atrs; peligroso pararse y peligroso temblar. La grandeza del hombre est en ser un puente y no un fin; lo que hay en l digno de ser amado es l ser un trnsito y un crepsculo.

  • 41

    O vigor e a beleza da vida humana estariam nesse caminho para a

    transformao. Um caminho perigoso, mas emocionante; instvel, mas renovador,

    coisa que o homem moderno no aceitou.

    Essa linha de pensamento marca um ponto no caminhar da humanidade que,

    para alguns, instaura o ps-moderno. nessa linha que se situa Habermas, quando

    pe Nietzsche como um ponto de inflexo35. Vimos que em razo do processo de

    esclarecimento, deparamo-nos com uma dilacerao fragmentadora da sociedade, em

    decorrncia da debilitao da fora integradora da religio. Ademais, se esse

    processo no foi fruto de uma produo arbitrria, ento no possvel um retorno

    simplesmente tradio mtico-religiosa e qualquer deficincia deve ser corrigida e

    superada por meio do prprio pensamento esclarecido. nesse sentido que o projeto

    hegeliano ir eleger o princpio da subjetividade, como elemento de regenerao

    daquelas foras coesivas, da derivando a razo como um equivalente do poder

    unificador da religio (HABERMAS, 2002, p. 122).

    Vimos ainda que esse projeto fracassou, a despeito das mltiplas tentativas de

    conceituar a racionalidade para servir quele desiderato redentor. O insucesso do

    programa pe Nietzsche diante de duas possibilidades: submeter mais uma vez a

    razo centralizada no sujeito a uma crtica imanente ou abandonar por completo o

    programa. Nietzsche decide-se pela segunda alternativa. Renuncia a uma nova

    reviso do conceito de razo e despede a dialtica do esclarecimento. (HABERMAS,

    2002, p. 124)36. Ao eleger esse caminho, promover uma adeso ao outro da razo -

    35 Cf. HABERMAS, 2002, p. 121. 36 No mesmo sentido se coloca Giacoia Junior (1993, p. 59):

    Se o efeito mais geral da Aufklrung histrica apenas fortalecer as divises internas j perceptveis nas caractersticas essenciais da modernidade; se a religio da razo emergente do processo de esclarecimento destituda de fora sinttica capaz de renovar e substituir a potncia unificadora da religio tradicional; se o caminho da restaurao imediata o apelo reacionrio de retorno imediato s origens vedado modernidade, em conseqncia da irreversibilidade do progresso das Luzes, ento a sada nietzschiana consistir propriamente em despachar o programa dialtico da Aufklrung, e, por intermdio da crtica histrica da cultura histrica, em renunciar ao projeto moderno de reeditar o conceito de uma razo reconciliadora das prprias fragmentaes.

  • 42

    o mito -, mas no cabe aqui uma anlise da revoluo pretendida por Nietzsche, por

    meio de uma invocao mtica do Dionsio redentor e as aporias a que acaba se

    lanando com sua proposta37.

    Para VATTIMO, a modernidade dominada pela ideia da histria do

    pensamento como uma iluminao progressiva, que se desenvolve com base na

    apropriao e na reapropriao cada vez mais plena dos fundamentos (2002, VI).

    Ora, essa ideia de totalizao exatamente o que Nietzsche pretende superar e, nesse

    ponto vem seguido por Heidegger. Entretanto, o que os aproxima no tanto essa

    crtica, mas a ausncia da tentativa de substituio desse pensamento por outra

    fundao mais verdadeira38.

    Toda essa crtica de Nietzsche se d no mbito da dissoluo de um

    (tlos) pr-determinado que nos conforta, porquanto nos d um sentido para o nosso

    37 A respeito do assunto dir Giacoia Junior (1993, 62):

    Essa tentativa de mudar os rumos do discurso filosfico da modernidade saltando para fora da rbita gravitacional formada pela confluncia entre Racionalidade, Conscincia Temporal e Modernidade, e, desse modo abrir a rota da ps-modernidade, debate-se inexoravelmente nas presas de uma contradio insupervel, contradio de que o discurso nietzschiano sequer se apercebe: a rota de fuga tem que passar necessariamente pelo caminho j trilhado pela arte mais avanada da prpria modernidade. Sendo assim, a rota de fuga s se determina a partir de uma dimenso prpria da modernidade e a exige necessariamente, conservando-a como impulso fundamental.

    38 Nas palavras de Vattimo (2002, VII):

    Mas precisamente a noo de fundamento, e de pensamento como fundao e acesso ao fundamento, radicalmente posta em discusso por Nietzsche e Heidegger. Eles acham, assim, por um lado, na condio de terem de distanciar, criticamente do pensamento ocidental enquanto pensamento do fundamento; de outro, porm, no podem criticar esse pensamento em nome de uma outra fundao mais verdadeira. nisso que, a justo ttulo, podem ser considerados os filsofos da ps-modernidade. O ps de ps-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade, que, na medida em que quer fugir das suas lgicas de desenvolvimento, ou seja, sobretudo da ideia da superao crtica em direo de uma nova fundao, busca precisamente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em sua peculiar relao crtica com o pensamento ocidental.

    Essa marca do pensamento de Nietzsche tambm confirmada por Ibraim Vitor de Oliveira (2004, p. 71):

    Portanto, pode-se dizer que aqueles ditos conceitos metafsicos no so superados por algum outro novo conceito mais eficaz, seja pela abrangncia ou pela simplicidade; eles no so corrigidos como se corrige um erro que se tornou evidente. Outrossim, Nietzsche constata nos prprios conceitos que miram o total a sua precariedade.

  • 43

    caminhar. Sem ele nossa vida tensa, pois direcionada ao sem limite. Deus apenas

    um outro nome do tlos interpretado pelo homem para dar sustentao aos seus

    conceitos e juzos (OLIVEIRA, 2004, p. 54). Anunciada a sua morte, essa lacuna gera

    uma tenso que acaba exigindo a eleio de um outro fim, se no quisermos correr o

    risco do abandono39, da a crescente divinizao e espiritualizao das preposies

    da razo (OLIVEIRA, 2004, p. 54), mas de nada adianta substitu-lo por outro

    conceito (a razo redentora).

    Ao problematizarmos e dissolvermos o , estamos lanados em um eterno

    reiniciar e, portanto, tambm deixados sem qualquer incio (arch) absoluto40. Esse

    quadro ps-moderno repercute diretamente sobre as estruturas da razo dominante

    moderna, em seu intento de orientao e normatizao do mundo da vida. Mas se em

    Nietzsche essa crtica transparece com veemncia, paralelamente a vem o ps-

    moderno tambm marcado por uma imensa abertura, pois sem um fim absoluto a

    que possamos nos orientar, resgatada a pulso do evento e deflagrada uma nova

    aurora que se estabelece na deciso pelo limitado humano. Uma opo que, longe de

    ser um niilismo que justifica a inrcia, prope uma continua transvalorao que

    ultrapassa toda axiologia definitiva41. Essa racionalidade calculista e dominante

    ento despojada de seu trono, sem que se apresente qualquer substituto que no a

    prpria abertura, tal como assinala Ibraim Oliveira (2004, p. 17):

    [...] na gnese do pensamento ocidental, Nietzsche encontra a demarcao de um telos, em cuja direo devem tender a dialtica e as estratgias calculistas da ratio. Trata-se do preestabelecimento de uma meta e de um ponto de chegada para acomodar o total pretendido. Diante disso, a tenso (e dissoluo) teleolgica, muito mais do que identificar Nietzsche como mero destruidor da ratio, situa-o como promotor da abertura, prpria da praticidade e evasividade da vida. Aqui, resta o

    39 Um dos riscos da opo pela dissoluo teleolgica estaria no abandono, uma despatriao que nos seria imposta externamente e, portanto, heternoma. Exatamente por isso, um efeito que no se confunde com a opo pela solido. A respeito do tema, ver OLIVEIRA, 2004, p. 79. 40 Portanto, em Nietzsche falta arch porque no existe tlos (OLIVEIRA, 2004, p. 17). 41 Cf. OLIVEIRA, 2004, p. 75.

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    evento para o qual somente um telos tnue requisitado. Isso porque o telos deve ser constantemente re