Hermenêutica jurídica sob o olhar crítico de Lenio Streck

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Hermenêutica jurídica sob o olhar crítico de Lenio Streck Publicada em 08/01/2007 http://www.rodrigomoraes.adv.br/artigos.php?cod_pub=11&pagina=1 Autor: Rodrigo Moraes, advogado autoralista, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia, mestre em Direito Econômico e Privado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). (Artigo publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, vol. 11, 2004, p. 343-359). Resumo: O artigo analisa o livro “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito”, de autoria do Professor Lenio Luiz Streck, vanguardista em matéria de hermenêutica. O ensino do Direito no Brasil, segundo o eminente jurista, é alienado, desconectado da realidade social. O presente estudo, com forte influência gadameriana, propõe uma hermenêutica produtiva, em que o papel do operador do Direito adquire potencial criativo e transformador. 1 Considerações preliminares O presente estudo é fruto de uma das avaliações da disciplina Hermenêutica Jurídica, cuidadosamente lecionada, no primeiro semestre de 2003, pelos Professores Paulo Roberto Lyrio Pimenta e Saulo Casali Bahia, no Curso de Mestrado da Faculdade de Direito da UFBA. Tem por finalidade clarear o pensamento crítico do jurista Lenio Luiz Streck. Clarear, como leciona o próprio autor, significa tornar algo leve. Objetiva, portanto, tornar mais leves as densas e relevantes opiniões de Streck. Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Direito, além de Professor do Programa de Pós- Graduação em Direito da UNISINOS-RS (Mestrado e Doutorado), Lenio Streck é vanguardista em matéria de hermenêutica jurídica. Trata-se, nos dias atuais, sem sombra de dúvida, de um dos nomes mais lidos e respeitados do país. O livro de sua autoria intitulado Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, profundo e revolucionário, constitui o principal alicerce de nossa reflexão. O

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Hermenêutica jurídica sob o olhar crítico de Lenio Streck

Publicada em 08/01/2007

http://www.rodrigomoraes.adv.br/artigos.php?cod_pub=11&pagina=1

Autor: Rodrigo Moraes, advogado autoralista, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia, mestre em Direito Econômico e Privado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). (Artigo publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, vol. 11, 2004, p. 343-359).

Resumo: O artigo analisa o livro “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito”, de autoria do Professor Lenio Luiz Streck, vanguardista em matéria de hermenêutica. O ensino do Direito no Brasil, segundo o eminente jurista, é alienado, desconectado da realidade social. O presente estudo, com forte influência gadameriana, propõe uma hermenêutica produtiva, em que o papel do operador do Direito adquire potencial criativo e transformador.

1 Considerações preliminares

O presente estudo é fruto de uma das avaliações da disciplina Hermenêutica Jurídica, cuidadosamente lecionada, no primeiro semestre de 2003, pelos Professores Paulo Roberto Lyrio Pimenta e Saulo Casali Bahia, no Curso de Mestrado da Faculdade de Direito da UFBA. Tem por finalidade clarear o pensamento crítico do jurista Lenio Luiz Streck. Clarear, como leciona o próprio autor, significa tornar algo leve. Objetiva, portanto, tornar mais leves as densas e relevantes opiniões de Streck.

Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Direito, além de Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS-RS (Mestrado e Doutorado), Lenio Streck é vanguardista em matéria de hermenêutica jurídica. Trata-se, nos dias atuais, sem sombra de dúvida, de um dos nomes mais lidos e respeitados do país.

O livro de sua autoria intitulado Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, profundo e revolucionário, constitui o principal alicerce de nossa reflexão. O autor critica o ensino jurídico no Brasil. Traz fortes e irrefutáveis argumentos sobre o distanciamento entre o magistério e a realidade social brasileira. Sob forte influência do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, refuta a hermenêutica reprodutiva, afirmando que objetificar o Direito significa desconectar-se da realidade. Alerta ainda sobre a perda da fé do operador do Direito no processo de construção do discurso jurídico, denominando tal fenômeno de “Síndrome de Abdula”. Analisa a auto-aplicabilidade das denominadas “normas programáticas” e a possibilidade de utilização do Poder Judiciário para o desenvolvimento de políticas públicas. Essa possibilidade deve-se ao fato do deslocamento do centro de decisões dos Poderes Executivo e Legislativo para o Judiciário. 

Cada um desses itens será analisado nos próximos capítulos.

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2 Alienação e Hermenêutica

Etimologicamente, alienação vem do latim (alienus = outro). A alienação jurídica consiste em tornar-se alheio à realidade. É afastar-se dela. Desviar-se. 

É impossível negar: o ensino jurídico no Brasil é alienado, estandardizado, virtual, desconectado da realidade. Trinta milhões de brasileiros sobrevivem com profundas carências, enquanto constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a miséria (CF, art. 3º, III). A existência do apartheid social (a exemplo de elevadores sociais versus elevadores de serviço) é reforçada pelos meios de comunicação e pelas faculdades de Direito, que legitimam a preconceituosa tese do “cada-um-tem-o-seu-lugar”. É comum a realidade social ser completamente ignorada nas salas de aula, como se observa na seguinte anedota contada por Streck:

[...] No auge de uma abstração filosófica, o filósofo [Hegel] foi interrompido por um de seus alunos, que lhe perguntou: “Mestre, tudo isto que o senhor está dizendo não tem absolutamente nada a ver com a realidade”. Ao que Hegel teria respondido: “Pior para a realidade”... 

Muitos professores de Direito agem dessa forma: estão imersos em algum lugar inexistente, atemporal. Formalistas e “sem os pés no chão” da História, tais “Mestres” fazem pouco caso com a realidade social. Ignoram-na. Fazem de conta que ela não existe. Preferem o comodismo morno e irresponsável das brumas. A omissão, muitas vezes, é feita de forma voluntária e premeditada, com o fito de eximir-se dos inevitáveis riscos e questionamentos impostos pelo mundo real.

Repletos de conhecimentos dogmáticos, mas com uma visão estreita da dimensão do fenômeno jurídico, tais professores possuem enorme dificuldade em lidar com os fenômenos sociais. Essa terrível indiferença é capaz de contaminar toda uma geração de alunos. Os inúmeros efeitos negativos, portanto, são graves e duradouros. 

A anedota contada (“Pior para a realidade...”) é cotidianamente detectável nos tribunais, nos concursos públicos, nos manuais jurídicos e nas faculdades de Direito. Streck critica, veementemente, os civilistas que insistem nos personagens fictícios “Caio, Tício e Mévio”, ainda comuns em provas e manuais jurídicos. Se no Brasil proliferam “Joãos, Pedros, Antônios, Josés, Marias e Terezas”, por que a insistência naquele trio de personagens fictícios? A resposta é simples: a ficcionalização do mundo jurídico visa a afastar o Direito da realidade social. Separar as leis da vida, o verbo da carne.

Na atualidade, a grande maioria das mais de 700 faculdades de Direito existentes no país preparam seus alunos apenas para conflitos interindividuais (Caio versus Tício). Na contemporânea e complexa realidade, contudo, são cada vez mais freqüentes os conflitos transindividuais. Os Movimentos dos Sem Terra e dos Sem Teto, por exemplo, não são analisados nas faculdades de Direito com a profundidade que merecem. Daí a enorme dificuldade (leia-se despreparo) que possuem jovens magistrados em lidar com tais conflitos. 

O autor cita episódios folclóricos (e risíveis) da alienação do ensino jurídico. Um concurso

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público, de âmbito nacional, por exemplo, perguntou qual seria a solução jurídica na hipótese de um gêmeo xipófago ferir o outro. Incomodado com tamanha ficcionalização do Direito, Streck tece uma corrosiva ironia: “Com certeza, gêmeos xipófagos andam armados, e em cada esquina encontramos vários deles...” 

Diversos professores de Direito Penal, para explicar a excludente do estado de necessidade, continuam dando o exemplo fictício de Caio e Tício. Num naufrágio em alto-mar, os personagens disputam para subir em uma tábua que suporta o peso de apenas um deles. Por isso, o outro acaba sendo morto. Streck critica com veemência essa fuga (proposital) da realidade, afirmando que o operador jurídico não quer correr o perigo de ser frontalmente questionado pela realidade que o cerca:

Cabe, pois, a pergunta: por que o professor (ou o manual), para explicar a excludente do estado de necessidade, não usa um exemplo do tipo “menino pobre entra no Supermercado Carrefour e subtrai um pacote de bolacha a mando de sua mãe, que não tem o que comer em casa?” Mas isto seria exigir demais da dogmática tradicional. Afinal de contas, exemplos deste tipo aproximariam perigosamente a ciência jurídica da realidade social...! 

O currículo da esmagadora maioria das faculdades de Direito do país continua a dar grande ênfase na dogmática do Direito Civil. Tal disciplina, não raro, chega a ter o triplo da carga horária destinada ao Direito Constitucional. Daí, na precisa observação de Streck, “a (enorme) dificuldade de ocorrer a angústia do estranhamento com o novo, que é o texto constitucional.” 

A disciplina Hermenêutica Jurídica é tratada por muitos acadêmicos (e diretores de faculdades) com abominável desdém. Somente nos cursos de pós-graduação ela passa a ter um tratamento mais digno. Por que estudar Hermenêutica se o seu conteúdo não é exigido nos tão disputados concursos públicos? Esse é o raciocínio pragmático da nova geração de operadores jurídicos, orientada numa dimensão prático-forense e preocupada apenas nos lotados cursos preparatórios para carreira jurídica. A nova geração, muitas vezes, quer apenas “passar num concurso”. Não importa para que seja. Não importa a vocação (do latim vocare = chamado). O importante mesmo é a “estabilidade”! E não se fala mais em outra coisa a não ser “estabilidade”, “segurança”, “tranqüilidade”, “aposentadoria”...

“Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas”, leciona Streck. Em nosso país, infelizmente, a formação dos novos juízes, promotores e advogados é estritamente dogmática. Daí a enorme dificuldade desse velho modelo tecnicista de profissional para desconfiar do mundo e de suas certezas. A “nova” geração vem se tornando, não raro, mera reprodutora do processo hermenêutico.

Estudar Hermenêutica instiga o senso crítico, a reflexão, a criatividade. Crer que é o bastante memorizar amplo conteúdo dogmático é tão equivocado quanto acreditar que um artista plástico será um grande pintor tão-somente possuindo em seu ateliê grande estoque de tintas. Nesse sentido leciona o poeta-educador mineiro Rubem Alves:

Quando eu era menino, na escola, as professoras me ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas semelhantes. Ensinaram errado. O que me disseram

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equivale a predizer que um homem será um grande pintor por ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as idéias que moram na cabeça do pintor. São as idéias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançar sobre a tela. Por isso, sendo um país tão rico, somos um povo tão pobre. Somos pobres em idéias. Não sabemos pensar. 

Por que assistir às aulas de Hermenêutica se, às vezes, o próprio professor (de forma equivocada) não tem noção da importância (inclusive prática) do conteúdo programático da disciplina? Estudar filosofia do Direito não se confunde com estudar algo abstrato, distante da realidade. Não! “Hermenêutica é experiência. É vida! É este o nosso desafio: aplicá-la no mundo da vida!” 

O estudo é desinstalador. Libertário. Implica em compreender os porquês dos posicionamentos dos juízes e doutrinadores. O estudo da filosofia do Direito revela que o positivismo (avalorativo) é uma grande ilusão. O magistrado agrega seus valores nas decisões. Não existe neutralidade axiológica. Estudar Hermenêutica, em uma só palavra, é abrir os olhos para o mundo vivido. 

Porém, enquanto tal disciplina continua sendo tratada com descaso, cresce o denominado “processualismo”, principalmente no âmbito do Direito Processual Civil, fazendo com que o direito material, muitas vezes, seja sufocado pela formalística cada vez mais supervalorizada, a exemplo de súmulas editadas para obstaculizar o reexame de processos nas instâncias superiores dos tribunais.

A hermenêutica clássica está em crise e “um rompimento com essa tradição do pensamento jurídico-dogmático é difícil e não se faz sem ranhuras”. A crise é reflexo da cultura jurídica massificada/estandardizada, sem qualquer visão crítica e produtiva do Direito.

A alienação tem a ver com o modelo objetificante-reprodutivo, que será rechaçado com veemência no próximo capítulo. O Direito, ao ser objetificado, permite que o operador jurídico justifique sua alienação, o seu estar desconectado da realidade.

3 O processo criativo e produtivo da interpretação 

Lenio Streck relembra a máxima de Heráclito de que é “impossível banhar-se duas vezes na mesma água do rio”. Sob forte influência gadameriana, o autor gaúcho leciona que é impossível reproduzir o sentido da norma. Toda interpretação é sempre produtiva. Nunca reprodutiva. O intérprete é um sujeito mergulhado no rio da História, um ser inserido no mundo a partir de sua historicidade. O processo de desconstrução do pensamento dogmático é denominado pelo autor de Nova Crítica do Direito (NCD), que rompe a possibilidade de autonomia do texto.

A hermenêutica reprodutiva proposta pela dogmática tradicional é alvo de duras críticas:

Quando o operador do Direito fala do Direito ou sobre o Direito, fala a partir do seu “desde-já-sempre”, o já-sempre-sabido sobre o Direito, enfim, como o Direito sempre-tem-sido (é

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como ele “é” e tem sido estudado nas faculdades, reproduzido/estandardizado/banalizado nos manuais e aplicado cotidianamente). O mundo jurídico é, assim, pré-dado (e, conseqüentemente, predado!) por esse sentido comum teórico, que vem a ser, assim, o véu do ser autêntico do Direito! (grifos do autor)

A hermenêutica filosófica de Gadamer propõe uma tarefa criativa. A interpretação proposta pela dogmática tradicional, entretanto, inautêntica e alienante, não considera o intérprete como co-produtor da realidade:

No contexto da dogmática jurídica, os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam a ser analisados como meras abstrações jurídicas, e as pessoas, protagonistas do processo, são transformadas em autor e réu, reclamante e reclamado, e, não raras vezes, “suplicante e suplicado”, expressões estas que, convenhamos, deveriam envergonhar (sobremodo) a todos nós. Mutatis, mutandi, isto significa dizer que os conflitos sociais não entram nos fóruns e nos tribunais, graças às barreiras criadas pelo discurso (censor) produzido pela dogmática jurídica dominante. Nesse sentido, pode-se dizer que ocorre uma espécie de “coisificação” (objetificação) das relações jurídicas. 

A linguagem não pode mais ser considerada uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, mas deve ser vista como condição de ser-no-mundo (Dasein). Condição de possibilidade. O significado é o resultado da tarefa interpretativa. E essa condição de possibilidade permite afirmar que não existe sentido “unívoco” ou “correto”.

Streck, baseado em Gadamer, afirma que a interpretação contemporânea é filosófica e não mais metódica. Os denominados métodos ou técnicas de interpretação exoneram o juiz de responsabilidade. Não raro, o magistrado atribui ao legislador as injustiças que decorrem de suas sentenças. 

Sendo assim, resta ultrapassada a velha e polêmica discussão sobre as teses objetiva (voluntas legis) e subjetiva (voluntas legislatoris). Nesse sentido leciona Streck:

Com a aparência da busca do “real” sentido do texto jurídico, mediante a utilização de artifícios do tipo a busca da mens legis, do espírito do legislador, da ratio essendi do Direito etc., e na crença da existência de um legislador racional, constroem-se, parafraseando Umberto Eco, “simulacros de enunciações”.

É através do discurso que atingimos o mundo dos objetos. A relação não é mais, portanto, sujeito-objeto, e sim sujeito-sujeito:

Passa-se, enfim, da essência para a significação, onde o importante e decisivo não está em se saber o que são as coisas em si, mas saber o que dizemos quando falamos delas, o que queremos dizer com, ou que significado têm as expressões lingüísticas (a linguagem) com que manifestamos e comunicamos esse dizer das coisas. 

Não existem conceitos ensimesmados. O texto legal não existe em si mesmo. Não pode ser tratado como mero objeto. A condição-de-ser-no-mundo determina o sentido do texto legal a partir de uma pré-compreensão, pois só é possível compreender uma coisa inserindo-a em uma bagagem de conhecimentos prévios, ocorrendo, assim, uma fusão de horizontes:

Do texto sairá, sempre, uma norma. A norma será sempre produto da interpretação do texto. [...] É por isto que um mesmo texto dará azo a várias normas. A norma será sempre,

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assim, resultado do processo de atribuição de sentido (Sinngebung) a um texto. Este texto, porém, não subsiste como “um ente disperso” no mundo. O texto só é na sua norma. Quando olhamos um texto, o nosso olhar já atribuirá uma determinada norma a esse texto. 

A lei, destarte, nunca é “em-si-mesma”. Dar ao texto legal um sentido-em-si-mesmo é incorrer no erro denominado por Streck de “fetichização da lei”. O modelo gadameriano pretende “uma apresentação do texto histórico de uma maneira inovadora: a máxima fidelidade à letra de um texto não é garantia de sua (cor)reta compreensão.” 

J. J. Calmon de Passos traz uma bela imagem para explicar a “coisificação” do Direito, típica do viés tradicional da dogmática jurídica. Afirma que, sendo o Direito produzido pelo homem, não se reifica, como acontece com os produtos, frutos do trabalho humano. O Direito, pois, é incapaz de reificação (tornar-se produto). Ele só existe enquanto está sendo produzido ou aplicado. Assim também acontece com a Música. O produto é indissociável do processo de produção. Vale a pena transcrever o esclarecedor pensamento do eminente Mestre baiano:

Quando o cantor silencia, quando o virtuose deixa de tocar seu instrumento, tudo cessa. A música não é mais como realidade objetiva. A partitura na qual foram consignadas as notações musicais, que permitem reproduzir a melodia por outrem que não o seu criador ou primitivo executor, não é melodia, não é som, não é música, nem harmonia, nem acordes. É inexistência para o ouvido e para a sensibilidade do homem, mera possibilidade [...] Cada vez que se reproduzir a melodia, esta reprodução será de algum modo também um ato de criação, porque marcado pela personalidade e pela técnica do intérprete. [...] Também o Direito não é o texto escrito, nem a norma que dele formalmente se infere, nem os códigos, nem as consolidações, nem as leis, nem os decretos, nem as portarias, nem os tratados e monografias. Tudo isso é silêncio. Tudo isso são apenas possibilidades e expectativas. O Direito somente é enquanto processo de sua criação ou de sua aplicação no concreto da convivência humana . [...] Acreditar-se que o processo jurisdicional é um liqüidificador, data venia, é auto ilusão, perigosa pelo potencial de risco que envolve para os demais, ou manipulação ideológica criminosa, pelo mal que determina socialmente. Ele é violino e partitura. Sem o virtuose, só obteremos ruído. 

Por exemplo, não existe somente uma interpretação correta da obra lítero-musical intitulada “Drão”, de autoria do genial Gilberto Gil. Djavan interpreta essa mesma canção de forma diferente do autor. Nem por isso pode-se dizer que sua interpretação é inautêntica ou errada. 

Eros Roberto Grau utiliza outra bela metáfora para ilustrar a tese da inviabilidade da única solução correta:

Suponha-se a entrega, a três escultores, de três blocos de mármore iguais entre si, encomendando-se, a eles, três Vênus de Milo. 

Ao final do trabalho desses três escultores teremos três Vênus de Milo, perfeitamente identificáveis como tais, embora distintas entre si: em uma a curva do ombro aparece mais

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acentuada; noutra as maças do rosto despontam; na terceira os seios estão túrgidos e os mamilos enrijecidos. Não obstante, são, definitivamente, três Vênus de Milo – nenhuma Vitória de Samotrácia.

Esses três escultores “produziram” três Vênus de Milo. Não gozaram de liberdade para, cada um ao seu gosto e estilo, esculpir as figuras ou símbolos a que a inspiração de cada qual aspirava – o princípio de existência dessas três Vênus de Milo não está neles. 

O intérprete musical, sem dúvida, precisa de técnica. Não basta inspiração. É preciso estudo cotidiano. Transpiração. Para um violonista, por exemplo, existem exercícios técnicos para a mão esquerda, denominados “escalas”, e para mão direita, chamados “arpejos”, que visam a proporcionar mais velocidade, clareza e precisão no toque das notas. O comprimento das unhas, assim como o modo de lixá-las, têm importância para a obtenção de uma boa sonoridade, de um bom timbre. Mas, é sempre a técnica que está a serviço da Música, e não o contrário. Mais do que meros movimentos de dedos, a técnica violonística está ligada ao desenvolvimento da percepção musical. A finalidade precípua da técnica é ouvir e tocar melhor. Virtuosismo sem sensibilidade e criatividade é atividade em vão, que, inclusive, desfigura e distorce a arte musical. 

Rubem Alves comenta com ares poéticos:

Como é que se aprende a gostar de piano? O gostar começa pelo ouvir. É preciso ouvir o piano bem tocado. [...]Um pianista, quando toca, não pensa nas notas. A partitura já está dentro dele. Ele se encontra num estado de “possessão”. Nem pensa na técnica. A técnica ficou para trás, é um problema resolvido. Ele simplesmente “surfa” sobre as teclas seguindo o movimento das ondas. [...]Acontece que o domínio da técnica é cansativo e freqüentemente aborrecido. Antigamente, o aprendiz de piano tinha de gastar horas nos monótonos exercícios de mecanismo do Hannon. Mas mesmo os grandes pianistas que já dominaram a essência da técnica têm de gastar tempo e atenção debulhando as passagens complicadas que não podem ser pensadas ao ser tocadas. Todo pianista tem de dominar os estudos de Chopin, de dificuldades técnicas transcendentais, maravilhosos.Mas só têm paciência para suportar o aborrecimento da técnica aqueles que foram fascinados pela beleza da música. Estuda-se a técnica por amor à interpretação. (grifos nossos)

Os juízes, contudo, pensam, não raro, somente na técnica, esquecendo o processo criativo do Direito. Ora, os concursos públicos consistem em mero teste de conhecimentos técnicos! E isso é um perigo, porque a escolha dos magistrados observa tão-somente o direito posto pelo Estado, esquecendo a função produtora de normas. O juiz, para ser bom intérprete, precisa transcender o tecnicismo, fascinando-se pela beleza da produção do Direito, que nunca será pronto e acabado, mas sempre “partitura” sujeita a novas interpretações. A técnica deve estar a serviço do Direito, e o Direito, a serviço da pessoa humana. 

Daí por que Eros Roberto Grau afirma temer os juízes, que, segundo ele, em regra (que comporta exceções), não têm consciência da função produtiva de normas. In verbis:

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Temo os juízes, ao depois, porque eles são escolhidos segundo critérios que procuram apurar a sua habilitação e qualificação não para o exercício da prudência (phrónesis), porém para o exercício de uma técnica (tekné), o que decorre da circunstância de o direito ser visualizado exclusivamente como poiésis ( = direito posto pelo Estado), e não como uma praxis social – perversão que seria superada ainda pelo conhecimento da força normativa dos princípios.

Os juízes pretendem ser técnicos; e o são, em regra, a serviço nem ao menos da Justiça, mas de quem lhes dá emprego, o Estado. De técnicos se transformam, em regra, em burocratas (...).

4 A “Síndrome de Abdula” e o “crime do porte ilegal de fala”

Streck critica a força que se atribui à chamada “jurisprudência dominante”. Quando surge uma nova lei e ainda não existe jurisprudência, tampouco “dominante”, os operadores do Direito sentem-se completamente órfãos, abandonados. Não raro, aguardam, passivamente, o pronunciamento do “correto” significado do novel diploma legal pelos doutrinadores renomados do país:

Toda vez que surge uma nova lei os operadores do Direito, inseridos nesse habitus [...] tornam-se órfãos científicos, esperando que o processo hermenêutico-dogmático lhes aponte o (correto) caminho, dizendo para eles o que é que a lei diz (ou quis dizer)...” 

O operador jurídico sofre de “Síndrome de Abdula”, a falsa impressão de que o seu papel se limita na reprodução dos sentidos previamente dados por aqueles que possuem a “fala autorizada”. A estória abaixo, extraída de um conto de Italo Calvino, é contada pelo autor gaúcho: 

Alá ditava o Corão para Maomé, que, por sua vez, ditava para Abdula, o escrivão. Em determinado momento, Maomé deixou uma frase interrompida. Instintivamente, o escrivão Abdula sugeriu-lhe a conclusão. Distraído, Maomé aceitou como palavra divina o que dissera Abdula. Esse fato escandalizou o escrivão, que abandonou o profeta e perdeu a fé. Abdula não era digno de falar em nome de Alá.

Streck faz uma analogia do desencanto do personagem Abdula, que perdeu a fé, com os atuais operadores jurídicos, que também amargam uma descrença no seu poder criativo e produtor do Direito. “Não se consideram dignos-de-dizer-o-verbo” , não têm consciência do seu potencial, do seu poder de construtor do processo hermenêutico.

Vem ocorrendo no campo jurídico uma nova forma de divisão (social) do trabalho, uma dicotomia criação-aplicação do Direito. In verbis: 

Os hermeneutas – que possuem a fala autorizada no campo da dogmática jurídica dominante – fazem o que se poderia chamar de trabalho intelectual, restando para os operadores/aplicadores do Direito uma espécie de trabalho “manual” de reprodução. 

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Streck tece dura crítica ao que denomina de “fala autorizada”, vinda do “monastério de sábios”. Chama-os, ironicamente, de “os eleitos”. Questioná-los é correr o sério risco de ter de responder pelo crime de “porte ilegal da fala”:

Quem se rebelar, quem tiver a ousadia de desafiar esse processo de confinamento discursivo, enfim, quem tentar entabular um contradiscurso, um discurso crítico, responde(rá) pelo (hediondo) crime de “porte ilegal da fala”.... 

Trazemos a lume uma passagem bíblica que auxilia a compreensão do tema em comento. O texto diz que Deus não se limita aos canais oficiais de estruturas e instituições, mas propõe ampliação do círculo de profetas. Critica aqueles que se arvoram como portadores exclusivos da Revelação, aqueles que se autoproclamam os únicos autorizados a transmitir a palavra de Deus aos homens:

Moisés saiu e comunicou as palavras de Javé ao povo. Depois reuniu setenta anciãos do povo e os colocou ao redor da tenda da reunião. Então Javé desceu na nuvem, falou com Moisés, separou uma parte do espírito que Moisés possuía, e a colocou nos setenta anciãos. Quando o espírito pousou sobre eles, puseram-se a profetizar; mas, depois, nunca mais o fizeram.

Dois homens do grupo tinham ficado no acampamento: um se chamava Eldad e o outro Medad. Embora estivessem na lista, não tinham ido à tenda. Mas o espírito pousou sobre eles e começaram a profetizar no acampamento. Um jovem foi correndo contar a Moisés: “Eldad e Medad estão profetizando no acampamento!” Josué, filho de Nun, que desde a juventude era ajudante de Moisés, interveio: “Moisés, meu senhor, proíba-os de fazer isso”. Moisés, porém, respondeu: “Você está com ciúme por mim? Oxalá todo o povo de Javé fosse profeta e recebesse o espírito de Javé!” (Números 11, 24-29) 

Muitos hermeneutas agem com a arrogância e auto-suficiência de Josué, filho de Nun. Consideram-se os únicos eleitos oficialmente para interpretar as normas jurídicas. A ampliação do círculo dos intérpretes descriminalizaria o que Streck denomina de “crime do porte ilegal da fala”. 

O alemão Peter Habërle, em semelhante ponto de vista, afirma que o processo hermenêutico não pertence somente aos juízes, mas a cada cidadão, intérprete destinatário da norma, que não deve tolerar uma passiva submissão. Propõe esse autor, em síntese, a ampliação do círculo de intérpretes, tendo em vista que a sociedade aberta (pluralista) leva a uma multiplicidade de interpretações, possibilitando o encontro da realidade com o processo hermenêutico. Afirma que limitar a hermenêutica aos juízes “eleitos” significa “empobrecimento” e “autoengodo”. 

Reacender a fé do operador do Direito. Resgatar a sua auto-estima. Acreditar no seu potencial, no seu poder de produtor do processo hermenêutico. É o que faz Lenio Streck, que convida energicamente a desinstalar da apatia morna e medrosa. Falta ao operador jurídico mais ousadia, mais coragem para enfrentar o desafio de ser produtor do Direito, e não mero reprodutor sem qualquer opinião, valor ou senso crítico. 

Streck não nos subestima. Pelo contrário, acredita que o Direito é instrumento de transformação da realidade social. Assim como o saudoso poeta e compositor Gonzaguinha cantava em seu samba intitulado “E vamos à luta”: “Eu acredito é na rapaziada que segue

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em frente e segura o rojão. Eu ponho fé é na fé da moçada, que não foge da fera e enfrenta o leão...”

5 O deslocamento do centro de decisões para o Poder Judiciário

No Estado Liberal, o centro de decisões era o Poder Legislativo. No Estado Social, o Executivo. No atual Estado Democrático de Direito em que vivemos, o centro de tensão passou a ser o Judiciário. Esse deslocamento no centro de decisões (revolução copernicana) trouxe ao Poder Judiciário um perfil intervencionista, um papel transformador. 

O Direito e o Poder Judiciário devem assumir a tarefa de transformação da realidade. Tal missão, de alta relevância, não se confunde com uma postura alienada diante do mundo. 

O autor assume expressamente uma postura substancialista, assim como fazem os consagrados juristas Paulo Bonavides, Celso Antônio Bandeira de Mello, Eros Roberto Grau e Fábio Konder Comparato. O Poder Judiciário passou a assumir um importante papel, uma postura transformadora da realidade. 

Os direitos sociais-fundamentais assegurados pela Carta Magna de 1988 ainda não foram concretizados. Muitas vezes em face da inércia do Poder Executivo na implementação de políticas públicas.

É evidente que não se pode pretender que o Judiciário passe a ditar políticas públicas lato sensu ou que passe a exercer funções executivas [...] A mudança de postura dos operadores jurídicos, agindo em várias áreas de políticas públicas deixadas ao largo pelo Poder Executivo, já por si só provoca(ria) discussões que leva(ria)m os Poderes Legislativo e Executivo à reformulação de suas linhas de atuação, mormente no que concerne às prioridades orçamentárias. Ou seja, o Direito nessa linha, passa(ria) a ser utilizado não como instrumento de redução de complexidades ou reprodução de uma dada realidade, e sim, como um mecanismo de transformação da sociedade. 

O garantismo reforça a responsabilidade ética do operador do Direito, pois consiste em buscar a implementação dos direitos sociais fundamentais. Mas “não se constitui em uma panacéia para a cura dos ´males` decorrentes de um Estado Social que não houve no Brasil, cujos reflexos arrastadores deve(ria)m indignar os lidadores do Direito” , adverte o autor. O garantismo pode, sim, servir de eficaz instrumento para o resgate das promessas da modernidade, revalorizando o Poder Judiciário, que passa a fazer parte da arena política.

O autor defende a auto-aplicabilidade das chamadas “normas programáticas”:

Todos os dispositivos constitucionais são vinculativos e têm eficácia. [...] Hoje não há normas (textos jurídicos) programáticas. As assim denominadas “normas programáticas” não são o que lhes assinalava a doutrina tradicional: “simples programas”, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, etc., juridicamente desprovidas de qualquer vinculariedade. 

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Segundo o autor “não há um dispositivo constitucional que, em si mesmo, seja programático ou de eficácia limitada ou plena. O texto constitucional é/será aquilo que o processo de produção de sentido estabelecer como arbitrário juridicamente prevalecente.” 

Streck explica ainda o que entende por “proibição do retrocesso social”. Segundo ele, “é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade”. 

Encontram-se abaixo exemplos de interpretações não-despistadoras, ou seja, que não tornam inócuo o texto constitucional. Sem dúvida, em tais decisões, os problemas sociais não foram deslocados pelo despistador discurso dogmático tradicional. 

5.1 Direito à saúde 

Lenio Streck faz dura crítica ao Estado do Rio Grande do Sul, que interpôs recurso para impedir entrega de remédio a uma criança com Aids, alegando: 1) periculum in mora a favor dele – Estado; 2) que o art. 196 da Carta Magna não possui auto-aplicabilidade. “O Poder Judiciário ´resolveu` o conflito jurídico, mas não o conflito social”, observa o mestre gaúcho.

Sobre as interpretações possíveis do art. 196 da Constituição Federal, elogia decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que afirmou ser irrelevante a existência ou não de previsão orçamentária: 

A existência de previsão orçamentária própria é irrelevante, não servindo tal pretexto como escusa, uma vez que o executivo pode socorrer-se de créditos adicionais. A vida, dom maior, direito natural, não tem preço, mesmo para uma sociedade que perdeu o sentido de solidariedade, num mundo marcado pelo egoísmo, hedonismo e insensível.

Mas a solução dessa problemática orçamentária não é tarefa tão simples assim. Streck constata tal complexidade:

Este talvez seja o maior problema a ser enfrentado por aqueles que, como eu, advogam as teses substancialistas: de que maneira é possível compatibilizar o papel de garante da Constituição – em particular dos direitos sociais- fundamentais, com a necessidade, de outro lado, de não criar encargos desprovidos de uma adequada cobertura financeira (o financeiramente possível) para o equilíbrio do Estado?

5.2 Direito à educação

O art. 205 da Constituição afirma que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. E na hipótese de falta de vagas na rede pública?

Na cidade de Rio Claro, o Promotor de Justiça ingressou com uma ação civil pública (instrumento do Estado Democrático de Direito) para obrigar a municipalidade a criá-las, para que no ano letivo de 98 nenhuma criança ficasse fora da escola, sob pena de multa diária, além de responsabilizar penalmente o prefeito, que poderia ser destituído do cargo e ficar inabilitado para o exercício de cargo ou função pública por cinco anos. O juiz

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determinou, liminarmente, a criação de vagas. Não houve contestação por parte da prefeitura. [...] É possível utilizar o Judiciário para o desenvolvimento de políticas públicas. [...] Por meio dele é possível exigir das autoridades que cumpram seus deveres, que tomem atitudes. 

6 Exemplos de distorções da dogmática jurídica brasileira

Trazemos três exemplos de distorções da dogmática jurídica brasileira. 

6.1 Benevolência ao sonegador de impostos

O art. 34 da Lei n. 9.249/95 estabelece a isenção de crime para o sonegador de impostos se o prejuízo for pago antes do recebimento da denúncia. Na opinião de Streck, tal artigo foi criado em proteção da classe média e da elite, trazendo evidentes benefícios aos sonegadores. 

Confrontando esse dispositivo com o art. 16 do Código Penal, o autor afirma que o princípio da isonomia constitucional é frontalmente violado. Isenta-se o crime para os sonegadores, que causam prejuízos a uma infinidade de pessoas, e apenas reduz-se a pena para “o cidadão-comum-não-sonegador”. Vê-se, portanto, que a lei trata com benevolência a sonegação de impostos e com extremo rigor os delitos cometidos pelas camadas pobres da sociedade, tais como o furto. “O braço longo e pesado do Direito Penal atinge somente as camadas pobres da população” , denuncia Streck.

Em decisão inédita nos Tribunais brasileiros, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do RS, por maioria de votos, acatou na integralidade parecer de minha autoria, aplicando o mesmo art. 34 da Lei 9.249 a um caso de furto de bicicleta. No caso, ocorreu o furto do objeto e imediata prisão em flagrante, não restando qualquer prejuízo à vítima. 

6.2 Dificuldade para punir o crime de prevaricação

Existe uma enorme dificuldade para punir um funcionário público de alto escalão que engaveta um processo administrativo ou judicial durante 3 ou 4 anos. Isso porque o crime de prevaricação exige o dolo. O legislador não previu a hipótese de prevaricação culposa. Analisa Streck:

Exige-se, ao que parece, uma espécie de “dolo de engavetamento”. Como contraponto, veja-se o caso de um indivíduo que furta uma galinha e a leva para sua casa. Neste caso, basta que com ela (com a res furtiva) fique alguns minutos, para que, em sendo preso, esteja caracterizado o crime de furto. 

6.3 Caráter patrimonialístico do Código Penal

O Código Penal pune com mais rigor os crimes contra a propriedade do que os contra a vida. Com a Lei n. 9.099/95, que instituiu os juizados criminais, a “surra doméstica” passou a ser tratada com benevolência. O delito de lesões corporais deixou de ser ação pública incondicionada para ser ação pública condicionada. Desde que os ferimentos não

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ultrapassem o âmbito das lesões leves (“que, como se sabe, pelas exigências do art. 129, e seus parágrafos, podem não ser tão leves assim”), o Estado “cruza os braços” e não mais participa como interventor. 

“O Estado assiste de camarote e diz: batam-se que eu não tenho nada a ver com isso” . Aprofunda o autor afirmando que “a prática tem demonstrado que, ao ser surrada, a mulher tem medo de “representar” contra o marido...” 

É urgente uma ruptura dessa lógica patrimonialística, que sufoca a lógica existencial. É tarefa que se impõe ao penalista voltar os olhos à pessoa humana. O Direito Penal não pode ser despido de sua vocação humanista. A pessoa humana é digna porque é, ou seja, pelo simples fato de existir. E não porque tem. Independe da condição socioeconômica, portanto, o respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

7 Considerações finais

Efatá! Jesus Cristo utilizou essa expressão para curar um surdo que lhe pediu para ouvir (Mc 7, 31-37). Efatá significa “Abra-se!”. O pedido foi atendido. Os ouvidos se abriram. O mundo foi (re)descoberto. E a notícia se espalhou...

Não é exagero dizer que o positivista é um surdo que não quer ouvir. A Hermenêutica contemporânea, a voz que diz: “Abra-se!”.

No pensamento de Lenio Streck, o processo hermenêutico deve ter essa dimensão de “abertura”, de crítica ao confinamento dogmático, que impede a transformação da realidade. O objetivo de sua excelente obra “Hermenêutica e(m) Crise” é exatamente esse:

Estabelecer uma clareira no Direito; des-ocultar (novos) caminhos; des-cobrir as sendas (perdidas) de há muito encobertas pelo sentido comum teórico dos juristas (modo cotidiano e inautêntico de fazer-interpretar o Direito), que oculta (vela) a possibilidade de o jurista dizer o novo. 

O jurista precisa ver além. Romper as fronteiras do óbvio, a surdez dos métodos. E ter horizonte significa não ficar preso ao que está mais próximo. O jurista precisa permitir o estranho, o novo, o diferente, que, não raras vezes, é inesperado e imprevisível.

O Direito não é algo pronto e acabado, simplesmente porque o ser humano é um ser inconcluso, que se constrói cotidianamente. A hermenêutica é criativa e produtiva. Nunca reprodutiva. Esse pensamento de matriz gadameriana é analisado com profundidade por Streck.

Abra-se ao novo! Essa é a principal exortação do consagrado autor gaúcho. Vale a pena ouvi-lo com atenção.

8 Referências

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 4. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

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