HISTÓRIA, ARTES VISUAIS E MÚSICA – IMAGENS DE UMA RELAÇÃO INTERATIVA, ATRAVÉS DE UMA ANÁLISE...

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Este artigo busca refletir sobre as relações entre Artes Visuais e Música noâmbito de momentos específicos da História da Arte, elaborando uma análisecomparativa entre a arte renascentista e a arte barroca e examinando as relaçõesentre artes visuais e Música nestes períodos.

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  • HISTRIA, ARTES VISUAIS E MSICA IMAGENS DE UMARELAO INTERATIVA, ATRAVS DE UMA ANLISE DOS ESTI-

    LOS BARROCO E DO RENASCENTISTA

    Jos DAssuno BarrosUniversidade Federal de Juiz de Fora

    Universidade Severino Sombra (Vassouras)

    Resumo

    Este artigo busca refletir sobre as relaes entre Artes Visuais e Msica nombito de momentos especficos da Histria da Arte, elaborando uma anlisecomparativa entre a arte renascentista e a arte barroca e examinando as rela-es entre artes visuais e Msica nestes perodos. Os elementos essenciais doestilo Barroco e do estilo Renascentista so considerados em oposio de modoa identificar possveis similitudes existentes entre os aspectos pictricos e osaspectos musicais de cada um destes estilos. O artigo parte do pressuposto deque, uma vez que estejam envolvidas pelo mesmo contexto histrico-social, aproduo artstica visual e a produo artstica musical de um mesmo perodo esociedade devem trazer elementos fundamentais em comum, e que, de maneiraanloga, podem ser percebidas mudanas e rupturas entre as artes visuais e so-noras de dois perodos histricos distintos. Metodologicamente, dialoga-se na parteinicial do artigo com o sistema conceitual proposto por Wlfflin para anlise deestilos artsticos. Na parte final do artigo dialoga-se teoricamente com a filosofianietzscheniana, ao utilizar-se os conceitos de apolneo e dionisaco em suaaplicabilidade s artes visuais e msica.

    Palavras-chave: Arte e Msica, Arte Barroca; Arte Renascentista.

    History, Visual Arts and Music - Images of an interactive relation, through ananalysis of the styles Baroque and the Renaissance

    Abstract

    This article attempts to develop a reflection about the relations between visualarts and music in the ambit of specifically historical periods, elaborating acomparative analysis from the renaissance and baroque arts and examining therelations between visual arts and Music inboth of these periods. The essentialelements of the Baroque Style and of the Renaissance Style are considered in

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    opposition in order to identify possible similarities existent between the pictorialand musical aspects of which one of these styles. In the methodological aspects,the initial part of the article dialogues with the conceptual system considered byWfflin for analysis of artistic styles. In the last part of the article, it is establisha dialogue with the Nietzsches Philosophy in the use of the concepts of apolinianand dionysiac.

    Keywords: Art and Music, Baroque Art; Renaissance Art.

    Artes Visuais e Arte Musical apresentam uma longa histria de dilogos eentrecruzamentos, seja atravs da obra de artistas diversificados de cada umdestes campos, seja atravs da anlise crtica de pensadores que se propuserama refletir integradamente sobre estes dois mbitos de expresses artsticas1. Dasconcepes estticas de pintores como Kandinsky e Braque, que vislumbravamrelaes ntimas entre a imagem e o som2, at as experincias de compositorescomo Alexander Scriabin3 que chegou a imaginar um piano foto-cromtico quealm de sons emitisse feixes luminosos de diversas cores4, e at fragrncias per-fumadas no so raros na Histria das Artes Visuais e da Msica os exemplosde artistas que, quando no transitaram entre as duas artes, freqentemente con-ceberam ntimas relaes entre ambas.

    As artes Visuais, entre as quais a Pintura, e a Msica, tm naturalmentecada qual as suas especificidades. Podemos lembrar aqui uma clssica oposioque ser retomada mais adiante: o contraste entre o princpio apolneo e o princ-pio dionisaco (Nietzsche, 1996). Apolo, deus do Sol e pai de toda imagem, odeus por excelncia das artes plsticas, no sentido de que estas so potencial-mente (embora no necessariamente, como provaro vrias correntes da artemoderna) artes figurativas. Dionsio, o deus da embriaguez, ao menos no mbi-to das proposies nietzschinianas, tambm o deus da Msica a arte no-figurativa por excelncia5. Essas relaes so na verdade apenas primrias,referentes a um plano de definies mais amplas, uma vez que tanto a pinturacomo a msica movimentam dentro de si, como veremos, princpios apolneos edionisacos. De qualquer maneira, o projeto de estabelecer uma ponte entre apintura e a msica (e de certa maneira entre o apolneo e o dionisaco), temfascinado diversos artistas em todos os tempos.

    Por outro lado, grandes tericos e estudiosos da arte tm se empenhado emexaminar as ntimas relaes que podem ser estabelecidas entre a Msica e as

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    diversas modalidades de expresso artstica que lidam com imagens. A busca dacompreenso atravs de uma Esttica mais abrangente, que considere a Pintura, aEscultura, a Arquitetura e a Msica de uma mesma poca, ou ainda incluindo ou-tras formas de expresso como a Literatura e a Filosofia, tem sido meta de diver-sos historiadores da cultura e filsofos da arte. Apenas para registrar um exemploclebre, entre outros tantos, podemos citar o esforo de Erwin Panfsky, em umaobra escrita em 1951, com vistas a enxergar as relaes possveis entre a Arquite-tura Gtica e a Escolstica, relacionando Arquitetura, Artes Visuais e Filosofiaem um nico movimento ou sistema de pensamento e criao6.

    O principal objetivo deste ensaio ser o de entrecruzar algumas categoriasde anlise, j tradicionais para a interpretao das obras de arte visuais e sono-ras, com vistas a examinar certos padres estticos e estratgias representativas(na pintura e na msica) de um mesmo perodo tendo sido escolhidos para esteparalelo comparativo os momentos Renascentista e Barroco da Histria da Arte.A discusso envolver a apropriao de alguns conceitos fundamentais da Hist-ria da Arte e da Msica e, ao mesmo tempo, a conscincia dos limites a que serestringem os estudos sobre a arte quando utilizam estas formulaes conceitu-ais. Neste sentido, partiremos de uma reflexo inicial sobre o uso de categoriasgeneralizadoras no estudo da Histria da Arte, indagando simultaneamente sobreos limites de seu uso e a sua necessidade.

    *

    Desde que homem comeou a empreender esforos no sentido de compre-ender racionalmente a Arte, seja a de sua poca ou a de outras pocas, tm sidoelaboradas categorias e conceitos que, de uma maneira ou de outra, so quasesempre redutores e generalizadores. Por diversas razes, as categorias e concei-tos estabelecidos racionalmente freqentemente incorrem em limitaes, parti-cularmente quando estes so concebidos como operacionalizaes para compre-ender os fenmenos artsticos. Em primeiro lugar, isto ocorre porque a Artepossui tambm um aspecto no-racionalizvel: ela tambm o territrio dointuitivo, do espontneo, do surpreendente, da transgresso em relao s nor-mas estabelecidas. Assim, nem o mais completo sistema de categorias e concei-tos racionais pode aspirar a compreender a arte em sua totalidade, ou mesmouma nica obra de arte em sua plena singularidade, pois sempre restar aqueladimenso de uma obra artstica que no passvel de ser compreendida concei-tualmente.

    Em segundo lugar, qualquer sistema de categorias e conceitos bem comoqualquer modelo de racionalizao , em ltima instncia, histrico. Vale dizer,

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    e j mesmo um trusmo nos dias de hoje ressaltar isto, qualquer perspectiva dohomem sobre o prprio homem antes de mais nada produto de sua poca e deseu ambiente cultural, sendo esta perspectiva algo que naturalmente no cessade se transformar continuamente atravs de sua passagem pelo tempo. Por istomesmo, tambm o olhar do homem de determinada localidade e poca histricasobre a arte de seu tempo ou de perodos anteriores sempre apenas um dosolhares possveis sem esquecer que uma mesma comunidade de pensadorespode dar origem a perspectivas interpretativas mais ou menos diversificadas so-bre um mesmo objeto de estudo. Dito de outro modo, nenhum conceito ou cate-goria de anlise pode aspirar a ser absoluto. Se isto fato reconhecido paraqualquer campo de conhecimento nos dias de hoje, tanto mais se mostra aplicvelao campo da Histria da Arte.

    Por fim, resta acrescentar que nenhum artista se reduz rigorosamente aopadro de excelncia de sua poca, havendo mesmo os que criam os seusprprios padres individuais e se afastam em menor ou maior grau da concepooficial de arte do seu tempo. Exemplos notveis disto so os pintores renascen-tistas Hieronymus Bosch (c.1450 c.1516) e Pieter Bruegel, o Velho (1525 1569), cada qual desenvolvendo um estilo surpreendentemente singular em meioao modelo hegemnico da pintura renascentista. Em que pese os elementos co-muns que estes dois pintores to singulares possam possuir em relao aos de-mais pintores renascentistas, as suas especificidades e dissonncias em relaoao modelo de excelncia da arte europia renascentista destaca-se de tal modoque no h como situ-los em posies mpares na Histria da Msica. Casoscomo estes obrigam o analista a indagar constantemente at que ponto uma obraou artista em questo podem ou devem ser examinados como representativos deum padro cultural mais amplo.

    Estas so as consideraes das quais precisamos partir. Toda obra de arte simultaneamente produto de uma poca, de uma cultura, e de artistas individu-ais sendo que no entrecruzamento destas vrias linhas de fora que o estudi-oso de arte pode almejar construir modelos explicativos satisfatrios para a com-preenso do estilo artstico de uma determinada poca e, mais especialmente, demodelos explicativos voltados para a compreenso da produo de artistas espe-cficos localizados em determinada poca.

    De qualquer forma, se as categorias e conceitos estabelecidos racional-mente so sempre limitadores, difcil prescindir deles a no ser que se renunciea uma reflexo sistematizada sobre o fenmeno artstico. Ou seja, a no ser quepretendamos nos recolher ao estado no-racional de fruio da obra de arte, osconceitos e categorias surgem inevitavelmente, queiramos ou no. E, enfim, con-tanto que tenhamos plena conscincia de sua relatividade, esses conceitos e ca-

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    tegorias podem nos ajudar a compreender efetivamente, em maior ou menormedida, certos aspectos da arte.

    Um desses sistemas de conceitos para a compreenso da obra de arte foielaborado por Heinrich Wolfflin no princpio do sculo XX. Tal sistema revelou-se bastante eficaz para a compreenso dos modelos artsticos do Renascimentoe do Barroco, que foram tratados comparativamente pelo autor tomando-se porbase a pintura e a arquitetura7.

    Wlfflin estabelece uma tipologia a partir de alguns pares de opostos queiremos discutir a seguir e que so os seguintes: linear-pinturesco; planar-recessional; forma fechada / forma aberta; multiplicidade-unidade. Essesconceitos fundamentais produzem ainda outros desdobramentos que podem serexpressos tambm em pares, como esttico-dinmico, simtrico-assimtri-co, e assim por diante. assim que, nesta perspectiva, o Renascimento apareceassociado aos conceitos de linear, planar, forma fechada, multiplicidade, etambm aos simtrico e ao equilbrio. Enquanto isso, o modelo barroco circulapelas idias opostas: pinturesco, recessional, forma aberta, unidade, assime-tria, movimento. O que se far a seguir aproveitar algumas das categoriasdesenvolvidas por Wolfflin para estabelecer uma aproximao entre pintura emsica dos perodos renascentista e barroco. Quando tais categorias no foremsuficientes, recorrer-se- a outras.

    Um dos pares de conceitos propostos por Wolfflin refere-se ao atributolinear, tpico da pintura renascentista, em oposio ao pinturesco barroco. poraqui que comearemos.

    Por linear, entende-se que todas as figuras e formas significativas no inte-rior de uma determinada construo artstica so claramente delineadas. Cadaelemento slido apresenta limites bem definidos e claros. Desta maneira, cadafigura se destaca como se fosse uma pea de escultura efeito que muito habi-tualmente realado por uma iluminao uniforme, este que outro recursotipicamente renascentista. Isto no impede, naturalmente, que certas tcnicasdesenvolvidas no final do prprio perodo renascentista tenham comeado gradu-almente a superar o aspecto linear que predominara na fase mais caractersticadeste estilo de poca. Mas esta questo no poder ser tratada aqui.

    A linearidade pode ser comprovada em inmeros quadros renascentistas.Tomaremos como exemplo o clebre mural A Escola de Atenas, de Rafael8.

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    Neste quadro, cada figura ou elemento de arquitetura bastante claro epassvel de ser isolado dos demais com um mnimo de esforo de apreenso.Embora integrados a um conjunto mais amplo que lhes d sentido, cada figura ougrupo de figuras neste quadro conserva uma espcie de autonomia. A idia deRafael neste mural foi a de homenagear grandes pensadores da Antigidade Cls-sica. Nele aparecem representados filsofos antigos de tempos diversos. Platoe Aristteles aparecem destacadamente no centro do quadro, e tambm estopresentes diversos outros pensadores clssicos como Scrates, Digenes, Pit-goras, Epicuro, Ptolomeu e Euclides.

    No poderemos nos ater a explicar cada um destes personagens, pois istofugiria aos objetivos deste texto, mas o importante ressaltar que o observadorda obra pode examinar sem dificuldade cada quadrinho particular dentro destequadro maior. No canto direito inferior do quadro, por exemplo, o matemticoEuclides demonstra um teorema para alguns discpulos, e no canto inferior es-querdo quem centraliza um outro grupo o clebre filsofo Pitgoras. Na partecentral inferior aparece uma figura isolada a de Digenes, filsofo grego que

    Figura 1. Raffaelo Sanzio, A Escola de Atenas (1509)

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    criticava as posses materiais e que na representao de Rafael aparece relaxa-damente esparramado nos degraus. Um pouco esquerda vemos outra figuraisolada, o filsofo Herclito outro severo crtico da frivolidade humana e que,na representao de Rafael, aparece solitrio e pensativo com a cabea apoiadano brao esquerdo. Cada grupo ou figura isolada funciona, de certa forma, comoum quadrinho menor dentro do quadro mais amplo (questo qual voltaremosmais adiante), e possvel isolar cada elemento constituinte do todo precisamen-te porque os desenhos so muito bem delimitados. Os contornos das vrias figu-ras e objetos so bem delineados e destacam-se do fundo, os grupos separam-seespacialmente uns dos outros, os elementos de arquitetura os enquadram. Tudo muito claro e fcil de ser percebido objetivamente.

    Apenas como um exemplo desta tendncia ao seccionamento interno quese estabelece no padro de representao da pintura renascentista, podemos vis-lumbrar dentro do quadro A Escola de Atenas vrias sees entre outras, comoas exemplificadas acima.

    Cada quadrinho acima selecionado detalhes do Quadro maior que osconstitui em uma totalidade pode ser contemplado como uma seo parte,com certo nvel de autonomia embora bem integrada no todo. Seccionadas empartes autnomas, estas sees no perdem propriamente o seu sentido. Elas socomo partes do quadro que narram a sua pequena histria em particular, e todasessas histrias juntam-se em uma histria maior que constitui o grande planonarrativo do quadro como um todo. Tambm interessante observar que outrasmaneiras de se dividir o quadro poderiam se apresentar, j com relao aos pla-nos de afastamento das imagens em relao ao observador. Este aspecto serdiscutido em seguida, quando examinarmos outro aspecto importante das manei-ras renascentistas de representao pictrica, e que pode ser denominado repre-sentao planar. Apenas para antecipar este ponto, seria possvel pensar aquiem um primeiro mais plano, mas prximo do observador que contempla o quadro,e que se constitui de todas as figuras que se acham ao nvel do p da pequenaescada de trs degraus. Sentado nas escadas displicentemente, Digenes situa-se em um ponto que j se coloca a meio caminho em direo ao grande grupo depessoas que, situadas no patamar mais alto da escada e centralizadas pelas figu-ras de Plato e Aristteles, povoam um segundo plano de observao. Atrsdeles, iniciam-se camadas de profundidade determinadas pela arquitetura destegrande recinto que seria esta imaginria Escola de Atenas criada por Rafael.

    Os exemplos acima evocados seja os seccionamentos que podem serfeitos para a compreenso do quadro na sua superfcie, seja os seccionamentosque se referem a planos de profundidade vm a nos mostrar que, quando nospomos a contemplar um quadro como este de Rafael, facilmente torna-se poss-

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    vel vislumbrar seus compartimentos internos e planos de afastamento, muito bemdelimitados e separados uns dos outros. De igual maneira, cada figura parece terno seio destas vrias microformas que se articulam o seu lugar prprio, separan-do-se de outras figuras e do prprio ambiente que as cerca. Todas se relacionam,mas conservam sua identidade formal, sua cor prpria e local.

    O contrrio disto ocorre nas obras barrocas, das quais daremos como exem-plo O Rapto das Filhas de Leucipo, de Rubens9, e a Ronda Noturna, de Rem-brandt10. Nestas pinturas barrocas, ao contrrio, podemos aplicar o conceito opostoao linear: o pinturesco. As figuras, ento, no so uniformemente iluminadase muito menos isolveis umas das outras. Antes, fundem-se umas s outras emum caso sendo vistas atravs de uma luz forte e unidirecional, para considerar oquadro de Rubens, e em outro caso unificadas pela sombra envolvente no quadrode Rembrandt. Esta luz unidirecional ou esta sombra englobante funcionam aquicomo poderosos elementos intermediadores entre cada elemento do quadro e otodo composicional. Assim, o contraste entre sombra e pores de luz no qua-dro A Ronda Noturna de Rembrandt contribui para realar ou obscurecer irre-gularmente um elemento e outro, e ainda para indeterminar os contornos dasfiguras que acabam se fundindo na sombra sem fronteiras bem definidas.

    Outro par dicotmico importante na abor-dagem proposta por Heinrich Wlfflin para a an-lise de representaes iconogrficas figurativas o que poderemos chamar de planar-recessio-nal. Nas obras renascentistas, tipicamente pla-nares, identifica-se facilmente, como j foi nota-do no pargrafo anterior, uma srie de planosparalelos que organizam regularmente a profun-didade do conjunto de imagens, e nestes planosde composio os vrios elementos isolados sodistribudos.

    Assim, como se disse, se na Escola deAtenas um primeiro plano dado pelos grupos edegraus mais prximos ao observador; j o se-gundo plano desenvolve-se em torno das figuras

    centrais de Plato e Aristteles e se estende simetricamente por outros gruposde pessoas e objetos; enquanto isso, o ltimo plano corresponde arquitetura defundo que faz o olhar convergir para uma pequena porta aberta para o infinito,perfazendo-se com tudo isto uma organizao em trs planos paralelos. Estestrs planos, alis, so bem assinalados pela seqncia de arcos e outros elemen-tos da arquitetura, e desde j vale lembrar que era muito comum entre os pintores

    Figura 2. Rubens, O Raptodas filhas de Leucipo. (1618)

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    renascentistas (como tambm oser entre os pintores neo-cls-sicos do sculo XVIII) a utili-zao dos suportes arquitetni-cos para criar a iluso de pro-fundidade e construir a perspec-tiva.

    Tudo se passa de manei-ra distinta nos quadros de Ru-bens e Rembrandt. Nestesexemplos barrocos, o princpiode organizao se d em termosde diagonais em recesso. Acomposio de O Rapto dasfilhas de Leucipo dominadapor figuras dispostas em ngulo

    em relao ao plano do quadro e que se afastam ou se aproximam do espectadorem profundidade: na esquerda, o Raptor inclina-se em direo a uma das mulhe-res desnudas, mais avanada, e a agarra em uma das pernas. Um pouco maisavanado aparece o outro raptor que agarra a outra mulher desnuda, mais prxi-ma do observador. Mas todas estas figuras esto muito entrelaadas, de sorteque seria impossvel separ-las em planos bem definidos e muito menos em se-es isoladas dentro da obra. De maneira anloga, tambm na Ronda Noturnade Rembrandt as figuras principais parecem se movimentar diagonalmente, ago-ra para a frente e para a esquerda.

    A organizao recessional tem um desdobramento que oportuno comen-tar: ela impede que a percepo da obra seja conduzida atravs de um padro defixidez ou estabilidade. Na segunda parte deste texto veremos que a idia demovimento caracterstica no apenas da pintura como tambm da msicabarroca. As idias de estabilidade e equilbrio na concepo renascentistas, ede movimento nas obras barrocas, tambm aparecem em decorrncia ao tercei-ro par de conceitos: forma fechada forma aberta.

    A forma fechada bastante tpica do Renascimento: todas as figuras in-cludas na Escola de Atenas esto equilibradas dentro da moldura do quadro, aomesmo tempo em que a composio se baseia em verticais e horizontais querepetem a forma da moldura e sua funo delimitadora. Assim, nesta pintura deRafael as horizontais enfticas dos degraus contrastam com as verticais das fi-guras e das paredes que sustentam os arcos. O que j foi comentado acerca daspequenas sees internas que podem ser estabelecidas no interior do quadro v-

    Figura 3. Rembrandt, Ronda Noturna (1648)

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    se tambm reforado por este aspecto. Na verdade, os diversos aspectos queaqui estamos considerando tendem a se reforar reciprocamente: a forma fecha-da, a tendncia compartimentao interna, a estabilidade, a organizao planardo material visual estes diversos aspectos interagem uns sobre os outros, sopartes integradas de um mesmo sistema de representao pictrica.

    J nas composies barrocas verificamos a ocorrncia mais freqente daforma aberta. A construo em linhas diagonais contrasta ento com as horizon-tais e verticais da moldura e determina relaes de distncia, trazendo um dina-mismo s figuras e a um conjunto que agora no parece mais estar contido sim-plesmente na estrutura de emolduramento. A moldura, alis, costuma nas obrasbarrocas cortar as figuras pelos lados deixando-as pela metade, e em algumascomposies as cenas representadas parecem se estender para muito alm doslimites espaciais impostos pela moldura, como se quisessem ganhar o infinito.

    Por fim, o ltimo par proposto por Wolfflin para a anlise de obras renas-centistas ou barrocas o que relaciona multiplicidade e unidade. De certamaneira, estes dois conceitos informam todos os anteriores. Entende-se por mul-tiplicidade, para alm do fato de que se multiplicam as temticas internas quecompem o enredo mais abrangente, o fato j mencionado de que a pintura re-nascentista composta de partes distintas e de ambientes relativamente diferen-ciados. Conforme j vimos, nestes casos a obra apresenta-se internamente sec-cionada, sendo cada seo plena de sua cor prpria, particular e local, e sendopor vezes possvel examinar certos grupos e elementos como se fossem peque-nos quadros dentro do quadro, separados uns dos outros ainda que mutuamentearticulados em uma totalidade maior que unifica a variedade. Para o caso de AEscola de Atenas, j vimos como seria possvel subdividir o quadro em quadri-nhos menores, cada qual com um subtema particular e destacado mais ou menosclaramente das demais sees. Fora o polisseccionamento imediato, os renas-centistas tinham ainda outros recursos que contribuam para isolar os vrios ele-mentos em uma multiplicidade de unidades independentes, como era o caso daj mencionada utilizao de uma luz difusa em A Escola de Atenas.

    Por outro lado, a unidade o ponto de partida da pintura barroca, muitasvezes obtida por meio da luz forte dirigida. Em O Rapto das Filhas de Leucipo,j vimos como todas as unidades esto inextricavelmente interligadas, de modoque nenhuma delas poderia ser isolada. Pode-se dizer que, enquanto o artistarenascentista parte da variedade (multiplicidade) e busca uma unidade a partirdesta variedade, o artista barroco percorre o caminho inverso: ele parte de umaconcepo unitria da obra de arte e logo procura estabelecer uma variedade naunidade. Os elementos internos a uma composio barroca so fundamental-mente ligados, se entrelaam e invadem uns aos outros, esto como que profun-

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    damente mergulhados em uma unidade maior que pode ser obtida por recursosdiversos, que vo desde a unificao pela luz ou pela sombra at a unidade esta-belecida a partir do movimento, do entrelaamento dos planos recessionais ou dafuso de contornos que se perdem em sombras, tornando pouco ntidas as fron-teiras e delimitaes de elementos que de outra forma poderiam ser isoladoscomo nas pinturas renascentistas. Comprove-se essa srie de recursos nos exem-plos j citados. No Rapto das Filhas de Leucipo, temos o recurso do entrelaa-mento dos vrios elementos, que adicionalmente so unificados por um movimen-to contnuo; e na Ronda Noturna, de Rembrandt, a sombra e o fundo escuro soos grandes elementos unificadores.

    Uma reflexo sobre o conjunto de categorias associveis ao barroco nosmostra que a grande caracterstica da pintura barroca a sua concepo unit-ria da obra de arte, uma vez que os demais aspectos j examinados o pintures-co, o recessional, a forma aberta, o movimento, a assimetria contribuem antesde qualquer coisa para impulsionar a imagstica barroca em direo a uma unida-de final que ao mesmo tempo seu ponto de partida. Tal concepo unitriatambm pode ser facilmente verificvel na escultura ou na arquitetura, e mesmona concepo urbanstica (no esquecendo que as grandes avenidas, estas viasunificadoras do conjunto urbano proliferam principalmente a partir das cidadesbarrocas). Mas tambm na Msica poderemos examinar essa concepo unit-ria da obra de arte barroca, bem como sua contrapartida renascentista funda-mentada na variedade. Veremos isto em seguida11.

    *

    Tal como ocorre de modo geral com a pintura renascentista ou com a cons-truo arquitetnica do mesmo perodo, tambm a msica do Renascimento apre-senta freqentemente formas polisseccionadas. Ou seja, neste caso as diversaspartes internas a uma pea musical so facilmente identificveis e se apresentamcomo unidades menores, embora obviamente interligadas. Por vezes, a separa-o entre as mltiplas sees tornada ntida mediante o recurso rtmico, perce-bendo-se uma cadncia muito clara ao final de cada seo que a separa daseo seguinte. Essas cadncias so freqentes nos madrigais e chansons dois gneros polifnicos tipicamente renascentistas. Em gneros em que no ocor-rem cadncias muito ntidas, e em que as mltiplas sees como que se entrela-am (tal como ocorre nos motetos), o polisseccionamento contudo perceptvelporque cada uma das sees tem como que uma cor prpria e particular, demaneira anloga ao que ocorreria em uma pintura renascentista em que o autorcriasse nuances de cor, luz e perspectiva dentro do conjunto maior.

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    Na msica renascentista, o que d cada seo essa cor particular aqui-lo que chamaremos de tema. Em um moteto ou uma chanson renascentista,cada seo gerada por tema um pequeno motivo musical que, enunciado poruma das vozes, logo repetido pelas demais com ou sem alguma variao, massempre em outra altura para que fique caracterizada a textura polifnica e aautonomia das diversas vozes. Vale lembrar que os motetos, madrigais ou chan-sons so composies para diversas vozes musicais em alturas diferentes que serespondem umas s outras e so ouvidas simultaneamente, freqentemente comalguma diversificao rtmica que lhes assegura certa autonomia de umas emrelao s outras. A este mtodo de apresentao musical chamamos habitual-mente de polifonia. Exemplos clssicos de motetos politemticos, polifnicos epolisseccionados so os de Josquin des Prs ou de Orlando de Lassus, dois com-positores renascentistas mais clebres, respectivamente dos sculos XV e XVI12.

    Examinaremos o polisseccionamento da obra musical renascentista a par-tir de uma anlise da composio O Canto dos Pssaros, clebre chanson deautoria de Clement Janequim, compositor francs do sculo XVI13.

    Antes de adentrarmos a questo formal, convm observar que nesta com-posio, como em muitas outras, Janequin tematiza a Natureza. Esta uma ten-dncia perfeitamente integrada ao quadro de atitudes renascentistas e que tam-bm aparece em outras formas de expresso artstica, nas quais uma nova valo-rizao da natureza faria com esta passasse a ser um tema bem presente naproduo pictrica e tambm concepo arquitetnica.

    Conforme poder ser observado em uma audio atenta de O Canto dosPssaros, Janequim procura imitar musicalmente sons de pssaros atravs de re-cursos onomatopicos, o que um trao caracterstico de muitas das obras destecompositor. A msica toda a capela, isso , para vozes humanas sem o concur-so de instrumentos musicais. A linguagem est enquadrada dentro da j citadapolifonia imitativa, sendo percorrida por temas musicais que aparecem imitadosnas diversas vozes. Como ocorre freqentemente nas chansons, alm de seremdistinguveis temas particulares que separam por contraste as vrias sees, ocor-rem tambm cadncias muito ntidas ao final de cada uma delas, o que facilita adelimitao das vrias sees. J vimos que este trao a delimitao mais oumenos clara de sees internas muito caracterstico da concepo artstica doRenascimento, manifestando-se tambm nas artes visuais do perodo.

    A estrutura musical de Le Chant des Oiseaux pode ser explicitada peloesquema formal abaixo:

    A B A C A D A E A F A G A

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    Note-se, a partir do esquema bastante simples proposto acima, que a msi-ca dividida em mltiplas sees, cada qual representada por uma letra, sendoque as sees mpares so similares musicalmente e por isso foram representa-das pela mesma letra A. Por outro lado, as sees pares so distintas no s dassees do tipo A como tambm entre si, e por este motivo foram representadaspor letras distintas (B, C, D, etc....). Em uma obra musical, as partes internas voobviamente se sucedendo no tempo, uma depois da outra e assim sucessivamen-te, de modo que neste caso o ouvinte escuta a parte A, logo depois a parte B,volta a escutar a parte A, escuta a parte C, e assim por diante. Alis, uma dife-rena entre a obra musical e a pintura precisamente a de que, na Msica,ocorre a passagem da forma atravs do tempo como se uma histria estivessesendo contada atravs de sons enquanto na pintura a forma toda exposta deuma nica vez para aquele que observa um quadro. Vale dizer, neste ltimo casoas partes ou sees da obra so regies do espao pictrico que, por um motivoou outro, se destacam das outras regies (ou tematicamente, ou por um efeito desombra e luz, o por um predomnio de certa cor, ou atravs de recursos vrios deperspectiva, ou mesmo em virtude de sub-campos temticos gerados pelas figu-ras representadas). J na msica, as partes se sucedem no tempo e so identifi-cveis atravs de mudanas mais ou menos perceptveis no padro de sonorida-de. A forma musical poder-se-ia dizer, produz ambientes sonoros distintos quepodem ser captados com menor ou maior facilidade pelos ouvintes de msica, deacordo com o seu prprio nvel de competncia auditiva.

    A forma musical que aparece no Canto dos Pssaros de Janequin no eraincomum na arte renascentista, e mais tarde voltaria a ser freqente no Classi-cismo da segunda metade do sculo XVIII precisamente um estilo de pocaque voltaria a apresentar suas formas fundamentadas em contrastes temticos esees bem definidas (por oposio concepo unitria do Barroco, tal comoveremos oportunamente). No perodo Clssico da Histria da Msica, que secelebrizou pela contribuio de trs dos maiores compositores da msica ociden-tal Haydn, Mozart e Beethoven esta forma era especificamente chamada deforma rond, e muito freqentemente aparecia nos ltimos movimentos dassonatas, concertos e sinfonias. Por outro lado, se quisermos evocar um campomusical mais recente onde aparece com bastante freqncia uma forma anlogaa esta, podemos remeter tambm aos chorinhos brasileiros, onde tambm comum este tipo de forma musical fundado na recorrncia alternada de umaseo de msica que faz as vezes de refro musical14.

    A lgica das formas tipo A-B-A-C-A-D-A-E-A simples: enquanto a uni-dade da obra assegurada pela repetio de material musical similar nas seesmpares, as sees pares apresentam material musical sempre novo, com o que

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    se assegura a variedade e o contraste temtico ao longo da msica.No Canto dos Pssaros, obra musical que se prope a traduzir musical-

    mente o canto de vrios pssaros atravs da linguagem vocal polifnica, isto feito precisamente nas sees pares contrastantes. Em cada uma delas imita-do um pssaro novo, sempre por meio de recursos onomatopicos e de um dilo-go rtmico entre as vrias vozes que traz a estas sees um grande dinamismo euma surpreendente inventividade. Cada uma dessas sees ser diferente detodas as outras, como se tivesse a sua cor prpria e particular que obtida apartir de um novo efeito sonoro.

    Em contrapartida, as sees mpares tipo A so similares entre si, e cor-respondem a trechos musicais onde no aparecem efeitos onomatopicos. Seexaminarmos os compassos iniciais da partitura, veremos que a primeira seoA bem como as suas similares fundamentada em um motivo temticoinicial. O motivo inicial entoado pelo contratenor (a segunda voz, considerandocomo primeira a de registro mais agudo) e j no compasso seguinte este imedi-atamente respondido pelo tenor (a voz imediatamente mais grave). Mais adiante,na segunda metade do terceiro compasso, a vez da voz superior, e por fim dobaixo no stimo compasso.

    Cada um dos pentagramas refere-se a uma das quatro vozes que soamsimultaneamente nesta obra musical

    Figura 4. Trecho inicial da partitura de Le Chant des Oiseaux, de ClementJanequin.

    O que d uma identidade a esta primeira seo da msica precisamenteesse tema recorrente, que aparece sucessivamente em cada uma das vozes,embora no necessariamente na mesma altura (isto , se na primeira apario otema se inicia com a nota l, na segunda apario, j em outra voz, ele pode seiniciar com a nota r, como de fato ocorre no exemplo). Da mesma forma,tambm ser este mesmo tema que mais adiante, nas demais sees do tipo A,

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    assegurar uma unidade mais ampla obra, apesar da imensa variedade e multi-plicidade introduzidas pelas inventivas sees contrastantes que se ocupam deimitar onomatopeicamente o som de pssaros. Todo o segredo desta forma estportanto em alternar o j conhecido com o inteiramente novo. Eis a como ocompositor francs do sculo XVI conseguiu assegurar unidade na variedade.

    Este tipo de forma no de maneira nenhuma o nico que ocorre na msi-ca renascentista. Muitos motetos do sculo XVI, para dar um exemplo, so fun-damentados em sees inteiramente contrastantes (A-B-C-D-E-F-G, etc.), cadaqual baseada em um motivo novo que lhe d uma identidade prpria. Nessescasos, a unidade da obra costuma ser assegurada pela unidade do texto potico,caso se trate de msica vocal. Essa unitextualidade foi alis uma conquistapaulatina da msica renascentista: lentamente a politextualidade herdada damsica medieval, onde por vezes trs ou quatro textos distintos se sobrepunhamnas diversas vozes, foi dando lugar utilizao de um texto nico para todas asvozes e sees15.

    oportuno reconhecer uma diferena formal significativa entre o moteto ea chanson do sculo XVI16. Enquanto uma chanson como O Canto dos Pssa-ros apresenta sees nitidamente pontuadas por cadncias rtmicas facilmenteperceptveis auditivamente, j no moteto as vrias sees se entrelaam, encade-ando-se sem limites determinados de maneira mais enftica. Isso significa que,enquanto as outras vozes esto terminando o material temtico referente seoanterior, j aparece o tema da nova seo na voz restante. Em seguida, as demaisvozes j comeam a imitar o novo motivo e j estamos inteiramente no novoambiente temtico. Desta forma, as fronteiras entre uma seo e outra ficammenos claramente definidas que nas chansons e nos madrigais. Em todo ocaso, o trabalho politemtico suficiente para estabelecer um polissecciona-mento neste gnero to tipicamente renascentista que o moteto.

    Do que foi visto at aqui, possvel perceber desde j uma similaridadeentre a concepo expressa por uma pintura renascentista e a que transparecena msica do mesmo perodo. Em ambos os casos, o artista cria a partir de umamultiplicidade, e ento se empenha em assegurar uma unidade com que possaabarcar a totalidade da obra.

    Veremos em seguida que um interrelacionamento entre a produo pictri-ca e musical pode ser encontrado tambm para o perodo barroco, porm funda-do em uma maneira de conceber a arte diametralmente oposta que se dava naarte renascentista: agora se ir partir da unidade, desta se desdobrando a vari-edade buscada pelo artista. neste aspecto particularmente sutil que a concep-o artstica Barroca se ope ao modo de pensar a Arte que aparece mais predo-minantemente entre os pintores Renascentistas.

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    Da mesma forma que a pintura barroca constituda a partir de uma pers-pectiva de unicidade, tambm a msica barroca est predominantemente erigidaem torno do princpio de unicidade composicional.

    Sero comuns, aqui, as formas que funcionam como verdadeiros blocosmonolticos, sem que seja possvel distinguir muito bem as parties internas.Por vezes as fugas, invenes e preldios de frmula fixa se enquadram nessecaso. Essas so de certa maneira peas musicais unitrias na sua estruturaformal, que no podem rigorosamente ser divididas em sees internas: quandomuito, elas permitem entrever ou entreouvir regies sonoras onde se notamcomo que nuances da mesma cor, mas sem que haja efetivamente uma mudan-a de ambiente que produza uma sensao de contraste.

    Tambm so comuns na msica barroca as formas binrias, mas que naverdade so apenas bipartidas do ponto de vista cadencial, e no do ponto devista composicional. O que permite essa notvel unidade composicional de umapea barroca que, freqentemente, toda ela deriva de uma nica idia musical,mesmo nas formas cadencialmente bipartidas.

    Tudo se passa como se a maneira barroca de conceber a msica estejaobcecadamente ligada a uma necessidade de fazer toda a obra derivar do mesmoelemento, da mesma idia musical que impulsionada para frente ao longo detoda a pea, desenvolvendo-se a partir de recursos imitativos e impulsionadapelas modulaes que mergulham a obra em um grande movimento contnuo.

    Um compositor barroco provavelmente consideraria mesmo desproposita-da a maneira renascentista de construir peas musicais politemticas e polissec-cionadas a partir das diversas idias musicais que vo se apresentando sucessi-vamente. Possivelmente. tambm lhe pareceria particularmente estranha a ma-neira clssica que surgiria depois do perodo barroco, pois tambm os composi-tores clssicos da segunda metade do sculo XVIII trariam tona uma estticafundamentada no contraste de idias musicais distintas. O perodo clssico quese inaugura na segunda metade do sculo XVIII e que tem em Mozart e Haydnos seus grandes impulsionadores, culminando por fim com a obra de Beethoven mostra-se alis como um novo classicismo, o que tambm ocorre na histria dapintura (onde habitualmente se designa este perodo de neoclssico, reservando adenominao clssico para o prprio perodo renascentista).

    H algo de comum, no que se refere essencialidade das tendncias for-mais, entre o perodo Renascentista do incio da Idade Moderna e o perodoClassicista da segunda metade do sculo XVIII. E ambos contrastam, cada qual sua maneira, em relao ao estilo Barroco. Tal como os compositores renas-

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    centistas, os compositores classicistas do sculo XVIII tambm tendiam a cons-truir suas formas musicais com base no contraste temtico, como se partissemprimeiro da multiplicidade contrastante para s depois atingir a unidade composi-cional da obra atravs da cuidadosa articulao de suas partes internas em for-mas como a que vimos anteriormente. Renascentistas e classicistas, enfim, ten-diam a construir suas formas musicais a partir de idias musicais distintas, oupelo menos atravs de sees de msica de algum modo contrastantes.

    Diante dessas duas estticas a ele opostas, e que o ladeiam cronologica-mente, o compositor barroco teria sempre algo a objetar caso pudssemosimaginar um debate imaginrio entre os trs estilos. O barroco, defensor de umaesttica da unidade, preferiria em todos os casos guardar uma nova idia musicalpara a composio seguinte, e continuar construindo a sua pea musical em tornode um nico tema a partir do qual toda a composio gravitaria. As composiespolitemticas dos clssicos e renascentistas sempre lhe soariam como um des-perdcio de vrias idias musicais que bem poderiam cada qual gerar a sua pr-pria pela musical, ao invs de se amontoar conflituosamente dentro de uma mes-ma composio. Ou, antes, talvez lhe ocorresse sarcasticamente que os compo-sitores que precisam abarrotar uma pea de uma pluralidade de temas so aque-les que no se tornaram capazes de desenvolver imaginativamente um mesmo enico tema sem que se perca o interesse da obra.

    J um clssico teria a objetar na msica barroca que ela carece daqueladramaticidade musical que s pode ser obtida mediante o choque e o contrastede personagens musicais distintos e s formas unificadas do barroco responde-ria com formas baseadas em temas contrastantes que se enfrentam musicalmen-te no decorrer de uma mesma pea (a chamada forma-sonata um exemplo),ou ento com formas ternrias mais simplificadas tipo ABA onde a seointermediria to contrastante quanto possvel em relao s duas sees ex-tremas.

    Naturalmente que tal dilogo entre pocas distintas nunca existiu, e nopodemos falar disto seno metaforicamente, uma vez que devemos sempre lem-brar que um estilo de poca vai como que deslizando para o outro sem que nin-gum perceba exatamente como e quando ocorreu a transferncia de um padroesttico ou composicional para outro. Voltemos, neste momento, ao perodo bar-roco, com suas formas musicais que partem da unidade temtica e que somentea partir da comeam a construir a variedade.

    Dentre as diversas formas unificadoras do Barroco, poucas conseguiramrealizar de maneira to eficiente o ideal de fazer derivar toda a obra de um ele-mento fundamental como a FUGA. Essa forma atinge a sua suprema realizaona primeira metade do sculo XVIII com Joo Sebastio Bach17.

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    O mecanismo de construo da FUGA relativamente simples. Neste caso,teremos mais uma vez aqui o modo de apresentao polifnico, onde a obra mu-sical envolve planos meldicos separados cantados por vozes separadas. Dito deoutra forma, teremos aqui vrias vozes musicais que, embora soando simultane-amente, conservam certa autonomia. No caso da Fuga, trata-se de uma polifo-nia imitativa, onde as vrias vozes tm umas com as outras uma relao dialoga-da. Se por exemplo uma voz expe um motivo ou um tema, uma outra logo aseguir o reproduz em outra altura, com ou sem modificaes essenciais.

    Alm de polifnica imitativa que tambm foi o caso do exemplo musicalrenascentista apresentado no artigo anterior a Fuga monotemtica; isto ,existe um nico tema que enunciado logo no incio da composio por uma dasvozes e que a partir da vai ser imitado ou desenvolvido de diversas maneiras ato final da pea. Este aspecto monotemtico da obra precisamente o que distin-gue com maior clareza uma pea musical barroca de uma pea musical renas-centista.

    Figura 5. Trecho inicial da partitura da Fuga n 1, do Cravo Bem Temperadode Johan Sebastian Bach

    Johan Sebastian Bach, seguramente o maior dos compositores barrocos,comps inmeras fugas ao longo de sua vida. Podemos dar como exemplo umadas fugas da clebre coletnea O Cravo Bem Temperado (a Fuga n 1). Comotoda Fuga, veremos aqui uma pea polifnica onde o material temtico vai pas-sando sucessivamente de uma a outra voz, de modo que poderemos acompanhareste desenvolvimento atravs das curvas de apoio acima ou abaixo de cada gru-po temtico18. importante deixar claro que, quando deixa de entoar o materialtemtico principal, nem por isso uma determinada voz deixa de soar; ao contr-rio, ela segue adiante, embora em segundo plano, j que apenas vai fazendo soar

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    notas musicais que no tem mais importncia temtica e apenas complementama harmonia e a rtmica da composio.

    Na Fuga n 1, em D Maior19, o tema ocupa basicamente os dois primei-ros compassos; ele soa pela primeira vez na segunda voz e logo a seguir emiti-do por cada uma das outras trs vozes (primeiro na voz superior, e depois nasduas vozes mais graves). Trata-se no caso de uma fuga a 4 vozes, e o tema imitado pela voz superior to logo esta 1 voz intermediria conclui sua exposiodo tema (isto , no 3 tempo do 2 compasso da partitura) s que em outra alturae outra tonalidade. Somente depois que a voz superior conclui sua exposio dotema, entra em cena uma voz mais grave (a 3 voz) reexpondo-o mais uma vez.As sucessivas exposies do tema ocorrem sucessivamente. Desde que a Fugaseja tocada por um bom pianista (essa fuga foi composta originalmente para cra-vo) cada entrada do tema deve ficar muito clara e no se misturar s demaisnotas musicais que soam juntas. O instrumentista, alis, deve estar preparadopara ressaltar o tema que por vezes est oculto no conjunto de todas as vozes.Seu trabalho principal deve ser exatamente o de ressaltar o tema que vai sendoalternado pelas diversas vozes e a partir desta explicitao da forma que elepode ser bem sucedido em transmitir um prazer esttico ao seu ouvinte. Explici-tar cada apario do tema na voz adequada equivale a contar uma boa estria, afazer com que o ouvinte perceba muito claramente o que est acontecendo, umavez que o segredo esttico da composio de uma fuga que ela toda baseadaem um nico tema musical.

    Um exame atento desta partitura, mas tambm uma audio acurada, podemostrar que o tema reaparece ao longo de toda a composio, do incio ao fim.Nos momentos em que ele no est soando, via de regra o compositor aproveitapara desenvolver um pequeno fragmento musical tirado do prprio tema, sejaimitando esse fragmento num habilidoso dilogo entre as diversas vozes, sejamodificando-o ligeiramente, invertendo-o, tocando-o de trs para diante, de cimapara baixo, ou de tantas maneiras quanto a sua inventividade permitir.

    O importante para a nossa presente discusso que, a partir de uma nicaidia musical, o compositor consegue aqui fazer derivar a composio inteira. Eleconsegue realizar nesse tipo de forma musical a busca barroca de uma unidadequase absoluta, e no toa que as formas fugatas adquiriram tanta popularida-de entre alguns compositores barrocos.

    A Fuga no a nica forma musical que um compositor barroco tinham sua disposio para obter a almejada unidade primordial, fazendo com que tudose derivasse de uma nica idia musical. Mesmo nas j citadas formas bipartidas(formas binrias) tambm podemos identificar claramente o princpio da unidadecomposicional. Pode-se tomar como exemplos deste caso tanto as danas que

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    constituam as sutes barrocas. Uma sute uma pea maior que contm peque-nas peas dentro dela. Nesta poca, estas peas eram derivadas de danas po-pulares que os compositores estilizavam para serem tocadas por um instrumentoou mais. Johan Sebastian Bach tambm escreveu muitas sutes, e tambm outroscompositores do mesmo perodo.

    As danas includas em uma sute possuam muito habitualmente uma for-ma bipartida, no sentido em que se podem notar duas sees separadas por umacadncia bem marcada e que pode ser claramente percebida auditivamente. Napartitura de uma dana de sute, essa cadncia corresponde ao compasso que antecedido por uma barra dupla. Mesmo o ouvinte que no esteja habituado a leruma partitura musical, poder ficar consciente dessa separao entre as duassees simplesmente ouvindo uma boa gravao.

    A peculiaridade da forma binria barroca (AB) que, apesar das duassees bem distinguveis por esta cesura rtmica, o material musical que as infor-ma essencialmente o mesmo. Apenas ele aparece na parte B desenvolvido oualterado, por vezes apenas transposto para outras tonalidades. A mudana detonalidade na msica barroca como que corresponde quela diagonal recessio-nal que vimos na pintura do mesmo perodo, e que tinha o papel de dar movimen-to a toda a composio e impulsion-la para uma determinada direo.

    Em partituras de msicas que possuam esta forma podemos identificarfacilmente a identidade de material musical entre as duas sees se examinar-mos o primeiro compasso da msica e o primeiro compasso da segunda seo, oumesmo se nos limitarmos a ouvir atentamente uma boa gravao. Em geral, nasegunda parte (B) o elemento gerador da composio aparece ligeiramente mo-dificado (s vezes apenas uma mudana de altura e de tonalidade, mas outrasvezes corresponde a uma variao) De todo modo, trata-se fundamentalmenteda mesma idia musical, e no de uma nova idia musical contrastante.

    Tambm comum ocorra neste tipo de formas musicais um contnuo de-senvolvimento do motivo gerador sucessivamente atravs de diversas tonalida-des, at que se retoma a tonalidade inicial e a msica se conclui. Note-se queeste fluxo contnuo da msica, sobretudo nas composies de Bach, transmite-nos uma idia de movimento que pode ser muito adequadamente associada aodinamismo da pintura barroca.

    Um grande nmero de formas similares pode ser encontrado no repertriobarroco, tomando-se os mais variados compositores. Ao lado das formas unit-rias como as fugas, as formas binrias com unidade composicional hegemoni-zam todo um perodo da composio musical. Estas diversas formas que partemda unidade, e que s a partir desta unidade primordial constroem a variedade, so

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    certamente a contrapartida de formas pictricas que possuem na luz unidirecio-nal ou no jogo de sombra e luz o seu instrumento unificador.

    Algumas palavras ainda devem ser ditas acerca do uso de contrastes noestilo Barroco. O fascnio pelos contrastes que sabemos ser to tpico da litera-tura barroca e, logo veremos, tambm da pintura e da msica do mesmo perodo no deve ser entendido como incompatvel em relao obsesso barroca pelaunidade. Deve ser esclarecido, para a melhor compreenso da oposio estticaentre o Renascimento e o Barroco, e tambm deste em relao ao Neoclassicis-mo do sculo XVIII, que se a msica barroca no lida com contrastes temticos(isto , duas ou mais idias musicais organizando a msica) ela lida amplamentecom outros tipos de contrastes. uma criao tipicamente barroca o estilo con-certato (o concerto um gnero musical que lida com a oposio de gruposcontrastante em relao densidade sonora). E a pera, o espetculo dramtico-musical por excelncia, tambm inveno barroca.

    O que se deve entender em relao questo do contraste, que no Bar-roco os contrastes se do no mesmo lugar. Nada mais esclarecedor sobre istodo que as esculturas e esttuas de Aleijadinho, o mesmo tempo firmemente anco-radas no cho e expressando o desejo de alcanar o infinito20. Nada mais eluci-dador do que o jogo de claro escuro na pintura de um Rubens ou de um Rembran-dt, que se do literalmente no mesmo lugar, por assim dizer, como elementosindissociveis da composio, amalgamados na unidade da obra. Tambm naMsica, o jogo de tonalidades que se opem e sucedem uma outra fazem partede um mesmo movimento, o contraste timbrstico e de densidades instrumentais parte de um mesmo movimento unidirecional para a frente, a se perder no tempoda msica que, no fosse isso impossvel, poderia no se acabar nunca. Os efei-tos de espao infinito, aberto e capaz de extravasar para fora, assegurados tantopelos pintores como pelos arquitetos barrocos, so os correspondentes desta msicaque poderia no se acabar nunca.

    Ao contrrio disto, os contrastes na msica e na arte renascentista (e tam-bm na msica e na arte do neoclassicismo iluminista) estabelecessem-se a par-tir de lugares distintos. Uma seo musical contrasta com a outra, cada qual comseu lugar muito bem definido no interior da organizao musical, da mesma for-ma que, na pintura renascentista, os vrios ambientes se opem uns aos outrossem se misturarem, cada qual conservando a sua identidade, o seu delineamentoe a sua luz prpria. Os contrastes renascentistas no se constituem em amlga-ma, no se estabelecem como tenses no interior de um mesmo ser. Cada seoque contrasta com a outra, na msica ou na pintura renascentista, faz isso de seulugar prprio e especfico no interior da obra, como se tivssemos no um nicoser submetido a intensos contrastes (como no Barroco), e sim vrios seres que se

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    contrastam uns com os outros no interior de um mesmo eco-sistema. A pluralida-de, enfim, a base da obra de arte renascentista, da mesma forma que a unidade(embora uma unidade que traz os contrastes para dentro de si) o ponto departida da obra de arte barroca. Seria talvez possvel dizer que, do ponto de vistasemitico, Renascimento e Barroco abordam de maneira distinta os seus paresde contrastes. Enquanto no Renascimento teramos uma oposio por contrarie-dade (dois contrrios que no se misturam), no Barroco teramos oposies porcontraditoriedades (plos que interferem um sobre o outro, que so gestados umdo outro, e resolvidos dialeticamente em uma unidade maior). Eis aqui dos pa-dres estticos que se distinguem perfeitamente, e que marcam to claramente asua distncia como o apolneo e o dionisaco na filosofia nietzscheniana (Ni-etzsche, 1872).

    A propsito da dicotomia entre o apolneo e o dionisaco, poderamos reme-ter a esttica renascentista a um predomnio de Apolo, o harmonizador dos con-trrios, e a esttica do Barroco a um predomnio de Dionsios, o deus que incor-pora os contrrios, que se dilacera por dentro mas reatualiza a unidade em umeterno devir. O mergulho dionisaco, alis, corresponde perda da individualiza-o (lembremos que a esttica renascentista individualiza explicitamente os seustemas e sees internas, dotando-as de uma luz prpria e de contornos muitoprecisos, que posicionam os diversos temas em uma separao por contrarieda-de). O dionisaco, ademais, corresponde perda de si mesmo (e que metforaseria mais apropriada para a perda de si mesmo do que a forma fuga, onde ummesmo tema perde-se a cada instante em um passado musical que fica para trspara, em seguida, renascer em uma nova verso em meio ao devir da grandeunidade composicional?)21.

    A esttica barroca tem algo de dionisaco no sentido de que, j o vimos, tributria do devir, do movimento, da impulso para a frente, do eterno trnsitorumo ao infinito das formas abertas. O tema que se impulsiona para a frente naMsica Barroca, recria-se e reatualiza-se necessariamente atravs de novas to-nalidades e alturas, de novas verses do mesmo tema (a recriao de um temamusical na sua forma inversa, retrgrada ou retrgrada-inversa, como se o com-positor estivesse utilizando tipos diferentes de espelhos, era bastante comum napolifonia barroca). Podem ser citados ainda, como recursos adicionais que seincorporam Esttica do Movimento proposta pela Msica Barroca, o uso datcnica do baixo contnuo, que atravs de um instrumento que dita a base daharmonia e do movimento rtmico ajuda a impulsionar a msica para diante. Damesma forma, no por acaso que a modulao (passagem de uma tonalidadea outra) adquire um desenvolvimento extraordinrio no perodo barroco, sendooportuno observar que a modulao em uma msica barroca utilizada para

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    tambm impulsionar a msica para diante (ao contrrio do que ocorre com o usoda modulao no estilo clssico do sculo XVIII, que atende ao interesse de criarzonas de contraste harmnico para os diferentes temas musicais, cada qual coma sua cor musical especfica).

    Percebe-se, aqui, que a Msica Barroca no se encontra de nenhum modoem desacordo com relao Literatura Barroca, esta que vai buscar na antteseuma de suas figuras e estratgias retricas preferidas, e nem em relao Es-cultura Barroca, que lida habitualmente com tensionamentos diversos. Na Msi-ca Barroca, se quisermos ir mais alm, teremos, para a realizao deste jogo detenses sob o fundo temtico unificado, aspectos especficos que vo desde o jmencionado contraste de densidades sonoras diversificadas (o estilo concertato)at o jogo contrastante de dinmicas alternando o piano e o forte (uma din-mica em degraus, ao invs da dinmica em gradaes que seria to tpica doperodo clssico). Na pintura barroca, da mesma forma, por demais evidente ojogo que se estabelece visualmente entre o claro e escuro.

    Por fim, ainda com relao a esta mesma questo da multiplicidade, queapontamos constituir o ponto de partida do modo de criao tpico dos artistasrenascentistas (evoluindo a partir da para a unidade), preciso ressaltar a singu-lar relao que tambm existe entre os artistas barrocos e a multiplicidade, masde um outro modo. Tal como assinala Germain Bazin, grande estudioso do Barro-co, o que interessava ao artista barroco era atingir a apreenso e compreensoda multiplicidade dos fenmenos (BAZIN, 1994, p.2), mas, acrescentemos desdej, isto se dava de uma maneira bastante especfica: tratava-se de integrar estamultiplicidade em um todo compreensivo ou, melhor dizendo, parte-se aqui des-te todo, desta luz unidirecional que a tudo traspassa, para em seguida atingir amultiplicidade dos fenmenos, envolvendo e adornando a cada um deles de modoespecial. Trata-se ento, para o caso da arte barroca e da arte renascentista, deduas maneiras distintas de tratar a multiplicidade.

    Renascimento e Barroco, enfim ao menos quando consideramos o pa-dro de excelncia predominante em cada um destes estilos de poca marcammuito claramente o seu mtuo distanciamento esttico, embora na verdade osegundo estilo tenha surgido do primeiro ao mesmo tempo em que as sociedadesrenascentistas deslizavam historicamente para o universo social e poltico dassociedades barrocas que j se encontram consolidadas em diversas partes daEuropa no sculo XVII.

    Os exemplos que estudamos neste ensaio mostram que possvel, enfim,estabelecer um paralelo entre as formas musicais e as estratgias de representa-o pictrica relacionadas a um mesmo perodo da Histria da Arte e da Msica,o que pudemos verificar ser especialmente verdadeiro tanto para o perodo re-

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    nascentista como para o perodo barroco. A uma esttica que parte da variedadepara atingir a unidade tal como vemos na msica e na pintura renascentista podemos contrastar uma outra esttica tpica da msica e da pintura barroca,onde se parte da unidade para a partir da atingir a variedade.

    esta unidade de elementos definidores de uma mesma esttica de umacerta ordem ou maneira de conceber a obra de arte que permite que falemosem estilos de poca para vrios momentos da Histria da Arte e da Msica noOcidente. Por outro lado, embora este assunto no v ser desenvolvido aqui, osculo XX traria como grande novidade ao padro de desenvolvimento da Hist-ria da Arte precisamente o rompimento em relao unidade dos estilos depoca. J no encontraremos mais, seja na Pintura ou na Msica do sculo XXem diante, um nico grande estilo definidor de uma poca, e por esta razo, paraestes perodos mais contemporneos, costumamos falar em correntes estti-cas diferenciadas que convivem umas com as outras no interior de um mesmogrande perodo. O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo, o Abstracionismo eoutras correntes estticas da pintura so movimentos contemporneos, que sedo simultaneamente em uma mesma poca. Da mesma forma, o Atonalismo, oNeoclassicismo contemporneo, os Nacionalismos, e outras tantas correntes queenveredam para experincias musicais ainda mais radicais como o Microtonalis-mo e a Msica Concreta, constituem todos a variedade de correntes musicaisque comeam a aparecer na msica erudita do novo sculo.

    De qualquer modo, para os perodos mais recuados da Histria da Arte precisamente aqueles em que podemos identificar os chamados estilos de po-ca a utilizao de conceitos como os elaborados por Heinrich Wlfflin para aanlise pictrica mostra-se particularmente eficaz, desde que tenhamos plenaconscincia de seus limites. Podemos da mesma forma relacion-los aos concei-tos que aparecem mais habitualmente na anlise musical, estabelecendo umaanalogia entre a Msica e a Pintura de cada perodo. A luz unidirecional queatravessa diagonalmente uma organizao pictrica barroca o equivalente aotema musical que se movimenta incessante e sucessivamente atravs das diver-sas vozes musicais, e os espaos compartimentados da pintura renascentista,onde cada figura parece iluminar-se a partir de si mesma e adquirir contornosbem definidos, bem o equivalente da superposio de sees musicais, cadaqual com a sua luz e a sua temtica prpria, que pudemos ver nas composiesmusicais renascentistas. Para o caso do Renascimento e do Barroco, eis portan-to alguns elementos iniciais para um estudo comparativo de dois estilos artsticosde poca que se iluminam reciprocamente a partir de algumas oposies funda-mentais, simultaneamente alcanados pela anlise de duas formas de expressoartstica distintas: a Msica e a Pintura.

  • 51Histria, Artes Visuais e Msica Imagens de uma relao interativa, atravsde uma anlise dos estilos Barroco e do Renascentista

    Um questionamento maior acerca do que estaria ligando cada uma destasestticas a Renascentista ou a Barroca a um determinado contexto histrico-social mais amplo poderia encetar uma discusso posterior. Estes relacionamen-tos entre Histria, Sociedade e Arte atravs das vrias produes pictricas emusicais de cada perodo tm sido objeto de reflexo para estudiosos diversos.Muitos por exemplo relacionam a forma unitria barroca que surge na civiliza-o ocidental a partir do sculo XVII a um mundo histrico-social atravessadopor projetos unificadores como o das grandes monarquias absolutas ou o dasigrejas crists em disputa por um domnio pleno sobre o seu universo de devotos,fora a extraordinria ampliao dos horizontes intelectuais ocasionadas pelas novasdescobertas cientficas (o Barroco, reino da forma aberta, pode ser perfeitamen-te relacionado ao fascnio do homem pelo infinito que comea a ser descortinadopelas novas descobertas cientficas)22. Do mesmo modo, a busca de projetosunificadores, poderamos ir mais alm, estaria expressa no prprio traado dasruas de uma cidade tipicamente barroca e na arquitetura de seus prdios. E aoestudo desta obsesso pela unidade, base de uma esttica barroca unificadora,poderamos acrescentar alguns outros aspectos fundamentais que aparecem tan-to na pintura, como na arquitetura ou na msica barroca como por exemplo ogosto pelo adorno na arquitetura ou pelos ornamentos na msica, estes bons re-presentantes do desejo de assegurar a variedade a partir de uma unidade pr-estabelecida. De igual maneira, o jogo de tenses entre matria e esprito, entreo profano e o divino, entre emotividade e razo, entre extravasamento e conten-o, sempre controlados por uma poderosa esttica de fundo unificador, eis aquielementos que tambm podero ser encontrados na arte desta mesma poca.

    Todos estes aspectos, enfim, da concepo unitria da obra atravessadapor um incessante movimento unidirecional ao amplo uso do ornamento ou aoobstinado controle sobre os contrrios, so expresses bem definidas de umahistria e de uma sociedade especficas que acolhem os modos de expressotipicamente barrocos. Raciocnios anlogos poderiam se tambm elaborados paraa busca de uma relao entre a arte e a sociedade renascentistas. Mas estes,certamente, constituiriam uma nova discusso, envolvendo diversificadas hipte-ses e teorias.

    Recebido em 16 de junho de 2008

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    FONTES VISUAIS E SONORAS

    BACH, Johan Sebastian. Fuga n 1 do Cravo Bem Temperado livro 1 [Lei-pzig: 1720]. Munich: Urtex, 2000; CD-Rom: BACH, Johan Sebastian. The WellTempered Clavier Book 1. pianista: Jos Carlos Martins. Claremont (Califr-nia): Concord, 1981.

    JANEQUIN, Clment. Le Chant des Oyseaux. Paris : Harmonia Mundi, 1963.Ensemble Clment Janequin, HMC 901099. [CD-Rom]

    JANEQUIN, Clment. Le Chant des Oyseaux. [Paris: 1528]. New York: Brou-de Brothers, 1980.

    RUBENS, Petrus Paulus. O Rapto das filhas de Leucipo, 1618. ost. 222 x 219cm. Munich: Alte Pinokothek.

    REMBRANDT, Harmenszoon van Rijn. Ronda Noturna, 1642. ost. Amsterd:Rijksmuseum.

    BIBLIOGRAFIA

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    BENT, Margaret. The Medieval Motet. In Tess Knighton and David Fallows(orgs.). Companion to Medieval and Renaissance Music. New York: Schir-mer Books and Maxwell Macmillan International, 1992. 114-19

    BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. So Paulo: Perspectiva, 1995,p.263-270.

    DA VINCI, Leonardo. Tratatto della Pintura. New York: Newton Compton,1996.

    DART, Thurston. Interpretao da Msica. So Paulo: Martins Fontes, 1990.

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    HOLLY, Michael Ann. Wlfflin and the imagining of the baroque In: BRY-SON, Norman (ed.). Visual culture: images and interpretation. Hanover: Univer-sity Press of New England, 1994, pp. 347-364.

  • 53Histria, Artes Visuais e Msica Imagens de uma relao interativa, atravsde uma anlise dos estilos Barroco e do Renascentista

    KIEFER, Bruno. Histria e significado das formas musicais. Porto Alegre:Editora Movimento, 1990.

    LICHTENTEIN, Jacqueline (org). O Paralelo das Artes. Rio de Janeiro: Edito-ra 34, 2005..

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    MOORE, Douglas. Guia dos estilos musicais. Lisboa: Edies 70, 1990.

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    PANFSKY, Erwin. Arquitetura Gtica e Escolstica. So Paulo: MartinsFontes, 1991 [original: 1951].

    TOMAS, Lia. O poema do fogo: mito e musica em Scriabin. Sao Paulo: Anna-blume, 1993.

    WEBERN, Anton. Caminho para a Msica Nova. So Paulo: Novas Metas,1984.

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    WLFFLIN, Heinrich. A Arte Clssica. So Paulo: Martins Fontes, 1990 [origi-nal: 1899].

    WLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da Histria da Arte, So Pau-lo: Martins Fontes, 1982 [original: 1915].

    NOTAS1 De outro lado, a crtica s concepes de integrao entre as diversas artes tambm tem os seusrepresentantes ilustres, e pode ser dado o exemplo de Baudelaire, que insistia em chamar atenopara a especificidade das artes. Para uma seleo de pequenos textos de Baudelaire sobre estatemtica, extrados de suas obras completas, ver LICHTENTEIN, Jacqueline (org). O Paralelo dasArtes. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005, p.104-113. Referncia: BAUDELAIRE, Charles. Ouvrescompletes. Paris: Gallimard, 1961. Por outro lado, uma reflexo sobre a especificidade das artes japarece m Leonardo da Vinci (Tratatto della Pintura. New York: Newton Compton, 1996, p.23-25).2 Diversos dos quadros de Kandinsky, particularmente aqueles que ele denomina Composies, soconcebidos como se fossem improvisaes de acordo com um modelo musical. Sobre as possibilidades

  • 54 REVISTA ESBOOS N 19 UFSC

    de interao entre Msica e Pintura, na tica do prprio Kandinsky, ver a sua Carta a Schoenberg,datada de 18 de janeiro de 1911 e publicada em LICHTENTEIN, Jacqueline (org). O Paralelo dasArtes. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005, p.120-123.3 Sobre a concepo musical de Alexander Scriabin, compositor russo nascido em 1872, ver TOMAS,Lia. O poema do fogo: mito e musica em Scriabin. So Paulo: Annablume, 1993.4 J se registra desde o sculo XVIII a tentativa de construir dispositivos capazes de sincronizar Imagense Msica, sendo um dispositivo denominado Ocular Harpsichord e projetado pelo Padre Louis Ber-trand-Castel, em 1734, a primeira experincia conhecida desta modalidade. Tratava-se de uma esp-cie de rgo que, alm dos sons, emitia luzes coloridas medida que eram pressionadas as teclas. Masatribui-se a Scriabin a primeira pea musical visando execuo audiovisual: Prometeu o Poema doFogo, composta em 1910 e estreada em Nova York em 1915.5 Na mitologia grega, Apolo na verdade tambm o Deus da Msica, e teria vencido um duelo musicalcontra Pan. Contudo, para estabelecer a dicotomia entre apolneo e dionisaco, o Nietzsche opta poragrupar em torno da imagem de Apolo o impulso de construir formas ntidas e bem delimitadas, quetambm um de seus domnios, e contrape este impulso a embriaguez dionisaca, na qual se encaixamuito bem a Msica como arte abstrata por excelncia. Referncia: NIETZSCHE, Friedrich. O nasci-mento da tragdia. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.6 PANFSKY, Erwin. Arquitetura Gtica e Escolstica. So Paulo: Martins Fontes, 1991 [original: 1951]7 Wolfflin esrcere pouco antes da entrada do sculo XX duas obras onde desenvolve empricamentesuas proposies: (1) WLFFLIN, Heinrich. Renascimento e barroco; estudo sobre a essncia do estilo esua origem na Itlia. So Paulo: Perspectiva, 1989 [original: 1898] e (2) WLFFLIN, Heinrich. A ArteClssica. So Paulo: Martins Fontes, 1990 [original: 1899]. Em 1915 publicaria a sistematizao de seumtodo, com o livro Conceitos Fundamentais da Histria da Arte (So Paulo: Martins Fontes, 1982)[original: 1915]. Sobre o sistema proposto por Wlfflin, ver ainda HOLLY, Michael Ann. Wlfflin andthe imagining of the baroque In: BRYSON, Norman (ed.). Visual culture: images and interpretation.Hanover: University Press of New England, 1994, pp. 347-364.8 SANZIO, Rafael. Escola de Atenas, 1509. Vaticano: Palcio do Vaticano, Stanza della Segnatura.9 RUBENS, Petrus Paulus. O Rapto das filhas de Leucipo, 1618. ost. 222 x 219 cm. Munich: AltePinokothek.10 REMBRANDT, Harmenszoon van Rijn. Ronda Noturna, 1642. ost. Amsterdam: Rijksmuseum.11 As diferenas entre a Msica Renascentista e a Msica Barroca tem sido tratadas por diversos