História da Educação - RHE - n. 30

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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NÚMERO 30 Jan/Abr 2010 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/aspheQuadrimestral História da Educação Pelotas v. 14 n. 30 p. 1-276 Jan/Abr 2010

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Volume completo do n. 30 da revista História da Educação - RHE.

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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 30 Jan/Abr 2010

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/aspheQuadrimestral História da Educação Pelotas v. 14 n. 30 p. 1-276 Jan/Abr 2010

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ASPHE

Presidente Maria Stephanou Vice-presidente: Claudemir de Quadros

Secretária: Carla Gastaud

Conselho Editorial Nacional Dra. Carlota Reis Boto (USP) Dr. Claudemir de Quadros Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dra. Flávia Obino Werle (Unisinos) Dr. Jorge Carvalho do Nascimento (UFS) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Marcus Levy Albino Bencosta (UFPr) Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS) Dra. Maria Juraci Maia Cavalcanti (UFC) Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Conselho Editorial Internacional Dr. Alain Choppin (INRP, França) Dr. Antonio Castillo Gómez (Univer. de Alcalá – Espanha) Dr. Luís Miguel Carvalho (Univer. Técnica de Lisboa) Dr. Rogério Fernandes (Univer. de Lisboa) Dr. Antonio Viñao Frago (Univer. de Murcia – Espanha)

Editores Prof. Dr. Claudemir de Quadros Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos

Consultores Ad-hoc Dra. Giana Lange do Amaral (UFPel) Dra. Berenice Corsetti (Unisinos) Dr. Claudemir de Quadros (UFSM)

Editoração eletrônica e capa Flávia Guidotti [email protected]

Imagem da capa Rembrandt. Betsabé e a Carta do Rei David, 1654. Óleo sobre tela, 142 x 142 cm. Paris, Museu do Louvre.

História da Educação Número avulso: R$ 15,00 Single Number: U$ 10,00 (postage included). História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 30 (Jan/Abr 2010) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral. ISSN 1414-3518 v. 1 n. 1 Abril, 1997 1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel CDD: 370-5

Indexação: CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades) Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC EDUBASE (FE/UNICAMP)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................... 5

COMPÊNDIOS PEDAGÓGICOS DE AUGUSTO COELHO (1850-1925): A ARTE DE TORNAR CIÊNCIA O OFÍCIO DE ENSINAR

PEDAGOGICAL COMPENDIUMS FROM AUGUSTO COELHO (1850-1925): THE ART OF MAKING SCIENCE INTO THE TEACHING TRADE

Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto ...................................................... 9

REVISTA DO ENSINO/RS E MARIA DE LOURDES GASTAL: DUAS HISTÓRIAS EM CONEXÃO

REVISTA DO ENSINO/RS AND MARIA DE LOURDES GASTAL: TWO HISTORIES AT CONNECTION

Beatriz T. Daudt Fischer .................................................................................. 61

SOBRE COISAS DE OUTROS TEMPOS: RASTROS BIOGRÁFICOS NAS CRÔNICAS DE CECÍLIA MEIRELES NA “PÁGINA DE EDUCAÇÃO”

ABOUT THINGS FROM OTHER TIMES: BIOGRAPHIC TRACES OF CECILIA MEIRELES’ STORIES IN THE “EDUCATION PAGE”

Ana Chrystina Venancio Mignot ....................................................................... 81

EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE: DIMENSÕES IMATERIAIS DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR

EDUCATION, MEMORY AND IDENTITY: IMMATERIAL ASPECTS OF SCHOOL MATERIAL CULTURE

Claudia Alves ................................................................................................. 101

AS FONTES DO MÉTODO ANALÍTICO DE LEITURA DE JOÃO KÖPKE (1896-1917)

THE SOURCES OF THE ANALYTICAL METHOD OF READING FROM JOÃO KÖPKE (1896-1917)

Mirian Jorge Warde; Claudia Panizzolo ............................................................ 127

INVENTÁRIO E DIGITALIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO MUSEOLÓGICO DA EDUCAÇÃO – UM PROJECTO DE PRESERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO EDUCATIVO

THE INVENTORY AND DIGITALIZATION OF THE HERITAGE MUSEUM OF EDUCATION: A PROJECT OF PRESERVATION AND VALORIZATION OF THE EDUCATIONAL HERITAGE

Maria João Mogarro; Fernanda Gonçalves; Jorge Casimiro; Inês Oliveira............ 153

MEMÓRIAS DE UM PROFESSOR: A INSTIGANTE HISTÓRIA DE VIDA DO PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN - DE IMIGRANTE CONTRATADO COMO SOLDADO MERCENÁRIO NA GUERRA CONTRA ROSAS EM 1851 (ARGENTINA) A PROFESSOR PRIMÁRIO EM COLÔNIA ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL

A TEACHER’S MEMORIES: THE FASCINATING HISTORY OF PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN – FROM AN IMMIGRANT AND MERCENARY SOLDIER ENGAGED IN THE WAR AGAINST ROSAS (ARGENTINA), IN 1851, TO A PRIMARY TEACHER IN A GERMAN COLONY OF RIO GRANDE DO SUL

Luiz Alberto de Souza Marques ....................................................................... 181

NOS TRAÇOS DE CALIGRAFIA, INDÍCIOS DE UM TEMPO ESCOLAR

ON THE STROKES OF CALLIGRAPHY, SIGNS OF SCHOOL TIMES

Luciane Sgarbi S. Grazziotine; Carla Gastaud.................................................. 207

EDUCAÇÃO E ETNIA: AS EFÊMERAS ESCOLAS ÉTNICO-COMUNITÁRIAS ITALIANAS PELO OLHAR DOS CÔNSULES E AGENTES CONSULARES

EDUCATION AND ETHNICITY: THE EPHEMERAL ITALIAN ETHNIC-COMMUNAL SCHOOLS FROM THE PERSPECTIVE OF CONSULS AND CONSULAR AGENTS

Terciane Ângela Luchese; Lúcio Kreutz............................................................ 227

Resenha

HISTÓRIA GERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Eduardo Arriada ............................................................................................. 261

Documento

Cartilha de Doutrina Christã Antonio José de Mesquita Pimentel

REGRAS DE BEM VIVER .......................................................................... 271

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES .............................................. 275

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APRESENTAÇÃO

É com enorme satisfação que a revista História da Educação publicada pela Associação Sul Riograndense de História da Educação (ASPHE) trás á público mais um número de seu periódico. Sempre com a missão de divulgar trabalhos de investigadores nacionais e internacionais de renome na área de história da educação a comissão editorial deste número tem a certeza que mais uma vez tem o prazer de apresentar textos de excepcional qualidade.

Abre este número o trabalho da professora Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto: COMPÊNDIOS PEDAGÓGICOS DE AUGUSTO COELHO (1850-1925): A ARTE DE TORNAR CIÊNCIA O OFÍCIO DE ENSINAR no qual com brilhantismo a autora analisa a obra pedagógica deste renomado autor.

A seguir a professora Beatriz T. Daudt Fischer com o artigo: REVISTA DO ENSINO/RS E MARIA DE LOURDES GASTAL: DUAS HISTÓRIAS EM CONEXÃO analisa a revista mais consagrada da historiografia sobre educação do Rio Grande do Sul a Revista do Ensino e a história de vida de Maria de Lourdes Gastal.

Os dois textos seguintes decorrem da participação das professoras Ana Chrystina Venâncio Mignot e Claudia Alves no XIV Encontro de Pesquisadores de História da Educação do Rio Grande do Sul, realizado em 2009 no qual as referidas professoras participaram como conferencistas respectivamente com os trabalhos: SOBRE COISAS DE OUTROS TEMPOS: RASTROS BIOGRÁFICOS NAS CRÔNICAS DE CECÍLIA MEIRELES NA “PÁGINA DE EDUCAÇÃO” e EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE: DIMENSÕES IMATERIAIS DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR

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A consagrada pesquisadora em História da Educação Mirian Jorge Warde juntamente com Claudia Panizzolo nos brindam com o texto AS FONTES DO MÉTODO ANALÍTICO DE LEITURA DE JOÃO KÖPKE (1896-1917). Trabalho de altíssima qualidade e deve constituir de referência na área.

Os professores portugueses Maria João Mogarro Fernanda Gonçalves Jorge Casimiro Inês Oliveira com o trabalho: INVENTÁRIO E DIGITALIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO MUSEOLÓGICO DA EDUCAÇÃO – UM PROJECTO DE PRESERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO EDUCATIVO contribuem com uma investigação que cada vez mais se torna um imperativo na área da história da educação, isto é, o estudo do processo de preservação e valorização do patrimônio educativo.

Com o trabalho MEMÓRIAS DE UM PROFESSOR: A INSTIGANTE HISTÓRIA DE VIDA DO PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN - DE IMIGRANTE CONTRATADO COMO SOLDADO MERCENÁRIO NA GUERRA CONTRA ROSAS EM 1851 (ARGENTINA) A PROFESSOR PRIMÁRIO EM COLÔNIA ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL o professor Luiz Alberto de Souza Marques aborda um tema de bastante relevância para a historia da educação dos estados do sul do Brasil: os soldados que se tornaram professores após a guerra contra Rosas e que foram muitos e que contribuíram para a difusão de um pensamento mais liberal em diversas áreas da educação germânica.

As professoras Luciane Sgarbi S. Grazziotine Carla Gastaud contribuem com o texto: NOS TRAÇOS DE CALIGRAFIA, INDÍCIOS DE UM TEMPO ESCOLAR trabalho de grande originalidade e densidade analítica.

No artigo:EDUCAÇÃO E ETNIA: AS EFÊMERAS ESCOLAS ÉTNICO-COMUNITÁRIAS ITALIANAS PELO

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OLHAR DOS CÔNSULES E AGENTES CONSULARES os professores Terciane Ângela Luchese e Lúcio Kreutz retomam uma temática sempre atual e importantíssima para a compreensão da história da educação brasileira, no caso específico analisando as escolas étnico comunitárias italianas.

Por fim em nossa tradicional seção DOCUMENTO transcrevemos a parte mais relacionada a educação da Cartilha de Doutrina Christã elaborada por Antonio José de Mesquita Pimentel que sem dúvida contribuirá para a compreensão do processo educativo do século XIX.

Os editores

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COMPÊNDIOS PEDAGÓGICOS DE AUGUSTO COELHO (1850-1925):

A ARTE DE TORNAR CIÊNCIA O OFÍCIO DE ENSINAR

Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto

Resumo O trabalho aqui proposto tem por objetivo analisar alguns manuais de ensino destinados aos cursos de formação de professores e escritos pelo pedagogo português José Augusto Coelho (1850-1925). Autor de uma série de livros voltados para a interpretação da educação, Augusto Coelho buscava apresentar a ideia de pedagogia como uma ciência que pode ser compreendida à luz de um conjunto de leis objetivas. Nesse sentido, apresentava definições de temas e de problemas compreendidos como centrais para se refletir sobre educação. Além disso, indicava métodos e técnicas de ensino a serem empreendidas. Seus tratados educacionais são reveladores, portanto, da maneira pela qual o assunto da Pedagogia veio a se constituir como um objeto teórico de estudo no âmbito das ciências humanas. A educação, para se tornar ciência, precisaria valer-se do repertório de outras ciências contíguas, entrelaçando, de um modo próprio, discursos variados das humanidades.

Palavras-chave: História da educação; pedagogia; ensino; Augusto Coelho; manuais escolares.

PEDAGOGICAL COMPENDIUMS FROM AUGUSTO COELHO (1850-1925): THE ART OF MAKING SCIENCE

INTO THE TEACHING TRADE Abstract The objective of this work is to analyze some teaching manuals destined to teacher education programs and written by the Portuguese pedagogist José Augusto Coelho (1850-1925). Author of a series of books focused on the interpretation of the education, Augusto Coelho tried to present the idea of pedagogy as a science that can be understood in the light of a set of objective laws. In this sense, he presented definitions of subjects and problems understood as being of essence in order to think about the education. Additionally, he indicated teaching methods and techniques to be undertaken. His educational treaties reveal, therefore, how the subject of Pedagogy developed as a theoretical object of study in the

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scope of the human sciences. To become a science, the education would need to make use of the repertoire of other contiguous sciences, and to connect the several discourses of the humanities.

Keywords: History of education; pedagogy; teaching; Augusto Coelho; school manuals.

COMPENDIOS PEDAGÓGICOS DE AUGUSTO COELHO (1850-1925): EL ARTE DE CONVERTIR EN

CIENCIA EL OFICIO DE ENSEÑAR Resúmen Este trabajo se propone a analizar algunos manuales de enseñanza destinados a los cursos de formación de profesores y escritos por el pedagogo portugués José Augusto Coelho (1850-1925). Autor de una serie de libros dirigidos hacia la interpretación de la educación, Augusto Coelho buscaba presentar la idea de pedagogía como una ciencia que puede ser comprendida a la luz de un conjunto de leyes objetivas. En ese sentido, presentaba definiciones de temas y de problemas comprendidos como centrales para reflexionar sobre la educación. Además, indicaba métodos y técnicas de enseñanza posibles. Sus tratados educacionales son reveladores, por tanto, de la manera por la cual el asunto de la Pedagogía pasó a constituirse como un objeto teórico de estudio en el ámbito de las ciencias humanas. La educación, para convertirse en ciencia, necesitaría valerse del repertorio de otras ciencias contiguas, entrelazando, de un modo propio, discursos variados de las humanidades.

Palabras clave: Historia de la educación; pedagogía; enseñanza; Augusto Coelho; manuales escolares.

LES MANUELS PÉDAGOGIQUES D’AUGUSTO COELHO (1850-1925): L’ART DE TRANSFORMER EN

SCIENCE LE MÉTIER D’ENSEIGNANT Résumé Ce travail a pour but d’analyser quelques manuels d’enseignement adressés aux cours de formation de professeurs et écrits par le pédagogue portugais José Augusto Coelho (1850-1925). Auteur d’une série de livres destinés à l’interprétation de l’éducation, Augusto Coelho cherchait à présenter l’idée de la pédagogie comme une science comprise à partir d’un ensemble de lois objectives. Pour ce faire il proposait des définitions de thèmes et de problèmes centraux dans la réflexion sur l’éducation. En outre, il indiquait des méthodes et des techniques à entreprendre. Ses traités éducationnels sont révélateurs alors de la façon dont le thème de la Pédagogie s’est constitué en tant qu’objet d’étude théorique dans le contexte des sciences humaines. Pour devenir une science, l’éducation devrait

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profiter du répertoire des sciences voisines, entremêlant d’une façon propre les discours variés des humanités.

Mots-clés: Histoire de l’éducation; pédagogie; enseignement; Augusto Coelho; manuels scolaires.

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Introdução: o manuseio da pedagogia

Ver e imitar práticas educativas existentes parece ser parte da rotina do aprendizado dos assuntos do ensino. Observar professores experientes e com eles incorporar modos de agir e de atuar em sala de aula constitui elemento fundamental para o êxito da ação docente. A arte da observação costumeiramente é acompanhada pelo hábito da imitação dos usos do ritual escolar. Saber ensinar, em alguma medida, corresponde, portanto, a um saber fazer; a uma arte de ofício.

As sociedades compartilham linguagens. No caso das sociedades escritas, há comunidades de leitores que repartem códigos específicos de leitura. Sendo assim, compreender a lógica dos atos de ler supõe perscrutar as veredas de sentidos comuns, que agem como uma atmosfera de significados coletivos. Os impressos, nas sociedades letradas, podem ser compreendidos como feixes portadores dessa pluralidade de modos de perceber e de interpretar o mundo ordinário. Marta Carvalho, sobre o tema, destaca a necessidade, para os historiadores da educação, de identificar o crivo que separa, nos suportes materiais indicados para professores, as representações e as práticas, as prescrições e os usos; enfim “as normas que regem as estratégias de difusão, imposição e apropriação desses saberes. Para tanto, colocam-se em cena as pedagogias como sistemas de regras. Regras que constituem o campo, os objetos e os objetivos de intervenção escolar, incidindo também sobre os processos de produção, difusão e apropriação da multiplicidade de impressos de destinação pedagógica (CARVALHO, 2001, p.138)”. Também Maria Lucia Spedo Hilsdorf identifica uma dupla face dos modelos pedagógicos: “da circulação para a circularidade. Esta pode ser uma das maneiras de se observar a propagação e a recepção das idéias e das práticas educacionais e pedagógicas (HILSDORF, 2006, p.85-6)”.

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Sob tal perspectiva, haveria a necessidade de estudar os protocolos de leitura efetivamente prescritos nas orientações didáticas impressas nos livros dirigidos aos professores, bem como os modos efetivos mediante os quais, nas práticas rotineiras, aquelas orientações teriam sido apropriadas por diferentes comunidades de leitores. Para Carvalho (2001), a pluralidade de materiais impressos pode ser vistoriada em uma dupla direção: por um lado, haveria realmente necessidade de compreender como se lia; e qual era a interpretação dada àquilo que era lido. Isso, porém, não elimina a necessidade de, na outra margem, reconhecer o sistema de normas que estabelecia as regras da leitura. Nesse sentido, é possível apreender algum nível de intersecção entre os sistemas culturalmente prescritos nas orientações de leitura e as modalidades de apropriação e reinvenção dos sentidos do impresso. Para a autora, os sistemas da pedagogia são regrados e normalizados por dispositivos materiais. Os saberes pedagógicos circulam pelos impressos que dispõem prescritivamente sobre o que ensinar; e especialmente sobre os modos e as técnicas de ensino.

Assim, na materialidade do impresso posto em circulação, é o próprio campo dos saberes pedagógicos que é diferencialmente constituído. Campo configurado não somente por procedimentos de seleção e articulação textual de conteúdos teóricos ou doutrinários da pedagogia, mas também pela materialidade do impresso que os veicula. (CARVALHO, 2001, p.138)

Joaquim Pintassilgo sublinha que, no campo de estudo histórico da formação de professor, é de se notar o lugar de proa ocupado por manuais de ensino, veículos prioritários de expressão de uma dada cultura escolar, que se faz ver como estrutura instituinte de sua época. Os manuais de formação do magistério em finais do século XIX – em Portugal como no Brasil – constituem território fértil para identificar procedimentos mediante os quais seria paulatinamente erigido como ciência o

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campo do discurso da educação. Observa Pintassilgo que, enquanto fontes documentais, os compêndios didáticos de formação do professor sistematizarão princípios e métodos prescritos para o ato de ensinar, construindo, para tanto, “uma linguagem especializada, só acessível aos nela iniciados (PINTASSILGO, 2006, p.198)”.

Como observa Joaquim Pintassilgo, os compêndios teóricos de pedagogia tornam-se, na condição de objetos de investigação, suportes privilegiados para se refletir acerca da formação docente de uma dada época, posto que contribuem para a “consolidação do modelo escolar e da cultura escolar, ao atribuírem legitimidade acadêmica a determinadas formas de organização do tempo e do espaço escolares e de elaboração do respectivo currículo (PINTASSILGO, 2006, p.3)”. Os manuais constituiriam, portanto, ferramentas de controle do trabalho docente “ao prescreverem – nas palavras de Pintassilgo – determinadas práticas como desejáveis (e outras como não adequadas) e ao divulgarem uma concepção definida sobre o que é ser bom professor de instrução primária (PINTASSILGO, 2006, p.3).

Os manuais de pedagogia compilariam, em geral, um conjunto de saberes considerados necessários para inserir o estudante no campo científico da educação. Desde finais do século XIX, pretendia-se afirmar a cientificidade do conhecimento pedagógico, em seus métodos e procedimentos (PINTASSILGO, 2006, p.3). Evidentemente, tais compêndios expressavam também um conjunto normativo, estruturado como elenco de exemplos e de sugestões sobre modos de ordenar a aula, de sentir e viver o magistério, de pensar as relações pedagógicas. O lugar profissional do professor envolvia, como diz Maria Teresa Santos Cunha, um conjunto de valores, de saberes, de normas de conduta, que os postava como “atores privilegiados na formação de mentes, de almas e de corações (CUNHA, 2007, p.92)”. Há muito a tradição pedagógica reputava essenciais alguns atributos do

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professor que remeteriam à herança medieval, onde a figura do mestre e a do clérigo praticamente se confundiam. O magistério como um sacerdócio, a idéia de vocação, de missão, qualidades morais e um dado estoicismo na figura do professor permeiam algum imaginário acerca do tema. O caráter de exemplaridade impresso à figura do professor e aos valores que comporiam sua personalidade tem sido destacado pela literatura. Como sublinha Pintassilgo, a dimensão de apostolado com que tantas vezes é associada à ação do magistério tem como referência um dado ideal de formação. Esse ideal extrapola a mera noção de competência técnica e profissional, para aproximar-se, em última instância, à dimensão de “amor pela Humanidade (PINTASSILGO, 2006, p.183)”. O trabalho do educador, de acordo com a ciência, deveria ser uma escultura da alma, uma obra de arte... O anonimato do professor é compensado pelo reconhecimento de seus discípulos e pelo êxito do seu ensino na representação do ideal.

Destacada pela sua dimensão moral, a nova ciência da educação – nessa autonomia que o século XIX conferiu ao debate pedagógico – é pautada por suas finalidades. Reconhece-se a existência de inevitável conflito entre as tendências pelas quais a natureza nos impele para o mal, para o vício, para a satisfação imediata do desejo; e, na outra margem, a capacidade humana de adiar o prazer, de escalonar a felicidade e até de optar por um possível afastamento de inclinações naturais, com o propósito de proceder ao aprimoramento da moralidade.

Vera Teresa Valdemarin assinala o fato de que pode ser encontrado, nos materiais didáticos de formação de professores um conjunto de diretrizes voltadas para ensinar a ensinar. A autora considera que há uma dimensão epistemológica nesse movimento que migra da teoria do conhecimento para o ato de ensinar ao outro um conjunto de conceitos, de juízos, de saberes. Dos princípios às práticas – diz a autora – fixam-se atividades. Essa transformação do preceito teórico em atividade escolar seria uma das estratégias mais eficazes para a escola mobilizar didaticamente

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os conteúdos do conhecimento teórico: trata-se de uma tradução; de uma forma de “transposição didática, que tem na escola seu lugar de aplicação e que possibilita a compreensão das relações entre escola e cultura (VALDEMARIN, 2004, p.41)”. Pode-se, portanto, dizer que, “embora sofrendo transformações, o conhecimento científico socialmente produzido é um dos elementos constitutivos da cultura escolar (VALDEMARIN, 2004, 187)”. Evidentemente, nos protocolos da leitura indicada para os professores, com muita freqüência, são observadas tendências contemporâneas de formas e de conteúdos da ciência. Seja na identidade dos saberes escolares, seja nos imperativos dos métodos e técnicas recomendados, o discurso constrói-se por alguma remissão ao estado da arte naquele campo específico do conhecimento acadêmico.

Marta Carvalho (2006, 147) identifica, na trajetória dos livros escolares dirigidos à formação dos professores, três orientações distintas: caixa de utensílios, livros de aconselhamento1, e tratados de educação.

1 A perspectiva da “caixa de utensílios”compreende a educação como uma prática reportada a si mesma, debruçada sobre a imitação ou o exemplo de práticas educativas anteriores. O discurso, com isso, mobiliza a crença de que aprender é uma arte derivada de um ver fazer e de um ouvir dizer. Por ser assim, o aprendizado aconteceria mediante o aprendizado dos preceitos básicos dessa prática do ensino. Marta Carvalho refere-se a tal tendência, explicitando que nela o campo do ensino é definido como uma arte – ou um conjunto de técnicas e habilidades -, o que obviamente desvaloriza “quaisquer tentativas de dedução de métodos ou de aplicação mecânica de princípios a partir da filosofia (CARVALHO, 2001, p.149)”. Modelos a serem imitados constituem basicamente o conceito de ensino que é apresentado nesse tipo de impresso pedagógico. Ensinar corresponde a uma arte, ou a uma “prática que se materializa em outras práticas; práticas nas quais a arte de aprender materializa-se no exercício de competências bem determinadas e observáveis em usos escolarmente determinados (CARVALHO, 2006, p.147)”. O modelo de “livro de aconselhamento” é fruto de outra tradição; a dos “livros de aconselhamento de príncipes que tiveram o seu apogeu nos séculos XVI e XVII (CARVALHO, 2006, p.158)”. Elenca padrões religiosos, destaca-se pelo tom prescritivo e moralizante, modelando as virtudes cardeais ao modo de ser professor. São livros

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O ponto de partida do discurso pedagógico expresso nos “tratados de pedagogia” (CARVALHO, 2006) seria - como assinala Carvalho - a construção dedutiva de preceitos educativos dirigidos a evidenciar a condição científica da interpretação pedagógica. Para que efetivamente essa dimensão da ciência fosse evidenciada para os assuntos da educação, seria imprescindível recorrer ao repertório de outras ciências contíguas, especialmente a psicologia, a biologia e a sociologia. A educação era caracterizada pela particularidade de entrelaçar discursos de variadas origens. A configuração do campo da pedagogia como área sistematizada de conhecimento será bastante tributária desses tratados enciclopédicos que se propunham a desvendar os segredos da ação pedagógica, à luz das conquistas da ciência. Observar continuava a ser importante. Mas era imprescindível para o educador - saber o que havia para ser observado. A observação tornava-se, pois, decorrência de pressupostos inscritos no próprio conhecimento pedagógico, transformando-o, a um só tempo, em território multidisciplinar e multifacetado. Fruto de um tempo em que a ciência prometia controle, racionalização do mundo e emancipação, os impressos que falavam da educação, especialmente aqueles construídos no formato de tratados, proporiam - nas palavras de Marta Carvalho:

(...) um novo padrão de organização do corpus dos saberes pedagógicos. Nele, o impresso passa a ser organizado com a pretensão de totalizar e sistematizar doutrinariamente um campo de saberes – o da Pedagogia – investindo-o do caráter de corpus de conhecimentos dedutivamente derivados de conhecimentos filosóficos ou científicos (CARVALHO, 2006, p.157-8)

Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, reconhecia-se a urgência de serem firmados princípios

que pretendem – de acordo com Marta Carvalho (2006, p.158) - recorrer a máximas do senso comum, de algum bom senso, para ensinar a ensinar.

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de ordem teórica. A atividade de ensinar configurar-se-ia paulatinamente como um domínio que integrava tanto a habilidade de, com desenvoltura, saber como ensinar quanto a compreensão dos conteúdos a serem ensinados. Ensinar tornava-se, desse modo, ofício a ser aprendido. Estudava-se o ensino, mais do que o aprendizado (VALDEMARIN, 2004). Esse ensino - arte compreendida a partir da ideia comum de “tato pedagógico” (HERBART, 2003, p.23) - passaria a ser compreendido como ciência. No final do XIX, a pedagogia, apropriando-se de saberes advindos de outros campos do conhecimento (especialmente da biologia e da psicologia), vinha progressivamente apresentada como uma ciência das coisas da educação. O próprio Herbart já dissera que “a pedagogia é ciência que o educador precisa para si mesmo (HERBART, 2003, p.16)”. Cabe recordar que – para Herbart – a pedagogia não envolveria apenas o conjunto de conteúdos relativos à educação, mas a apreensão dos modos adequados de comunicá-los. Dizia ele que não concebia a educação sem ensino; até porque “é fundamental para o educador saber como se determina o seu modo de pensar, uma vez que é a partir do modo de pensar que se formam os sentimentos, e, em função destes, princípios e formas de conduta (HERBART, 2003, p.16)”. O saber pedagógico ganhava, progressivamente, estatuto de conhecimento científico; e se fazia marcar por um discurso explicitamente prescritivo. Os escritos de Augusto Coelho evidenciam essa tendência de compreender o ensino – de arte que era, para uma ciência que se propunha a ser.

Pode-se dizer que a produção teórica de Augusto Coelho no campo da educação - tanto os quatro volumes com que o autor compendia seus princípios de pedagogia quanto os manuais que escreveu para abordar as questões relativas ao ensino primário - situam-se na órbita do que Marta Carvalho classificou como tratados pedagógicos.

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Civilização e pedagogia: dos povos aos indivíduos

Fernando Catroga já sublinhou que a principal obra de Augusto Coelho – os Princípios de Pedagogia – “pretendia entender a evolução da personalidade da criança (e do adolescente) em termos científicos, ao mesmo tempo em que dava às relações entre o meio natural e social e à escola um lugar primordial na aprendizagem (CATROGA, 1988, p.206) ”. Pode-se dizer que, com tal propósito, Augusto Coelho se apropriava em seu trabalho de um caleidoscópio teórico, que englobava um rol bastante vasto de leituras, que iriam de Darwin a Spencer, de Kant a Herbart (LUZURIAGA, 1961).

Dialogando com a produção positivista em educação, a atividade educativa deixava, de ser centrada exclusivamente na figura do professor ou mesmo no primado do método, para considerar aspectos biológicos, psicológicos, cognitivos e sociais. Esses, entrelaçados, permitiriam uma interpretação mais ampla do fenômeno educativo, centrada esta no conceito de aula. Augusto Coelho representa, para seu tempo, um tipo-ideal de intelectual, especialista em decifrar, pela aproximação científica, um ramo específico e direcionado do conhecimento humano – neste caso, a Educação.

Tendo o intuito de produzir e divulgar conhecimento, Augusto Coelho cuidava da circulação intelectual de suas idéias. Marta Carvalho já identificou seus Princípios de Pedagogia – especialmente em seu primeiro volume (eram quatro tomos, publicados entre 1891 e 1893) – como um dos livros citados na bibliografia pedagógica da Escola Normal da Praça, na Primeira República em São Paulo. Para Carvalho, o pensamento pedagógico de Augusto Coelho – à luz daquela sua principal obra, sistematizada como Princípios de Pedagogia - foi construído “dedutivamente a partir da cosmovisão desse sistema filosófico [positivista] e dos seus princípios de hierarquização das ciências, estabelecendo uma correspondência estrita entre a ordem do mundo, a ordem de aquisição dos conhecimentos, a estruturação

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do Tratado e organização da escola (CARVALHO, 2001, p.147)”. Aquele vasto e rigoroso compêndio teórico de Pedagogia expressa idéias concernentes a uma dada natureza filosófica do ensino, e a uma perspectiva teórica nitidamente herdeira de um dado modelo cientificista de darwinismo social – a expressão máxima do discurso que Carvalho (2001; 2006) caracteriza de “tratado pedagógico”.

Manuel Lázaro Ferreira Fernandes observa a preocupação lógica presente na construção do discurso de Augusto Coelho, especialmente nos Princípios de Pedagogia, propostos por seu autor como constitutivos de “uma larga sistematização dos conhecimentos pedagógicos e a construção de uma pedagogia moderna de base científica (FERNANDES, 1995, p.83)”. Trata-se de uma lógica dedutiva. A pedagogia científica tem por premissa a consideração do homem como um animal superior na classificação das espécies, donde decorreria sua elevada capacidade de aprender, derivada de sua “alta complexidade cerebral (FERNANDES, 1995, p.106)”.

António Carlos Correia, na apresentação que faz de José Augusto Coelho no Dicionário de Educadores Portugueses, diz que ele foi, em Portugal, “o iniciador, de fato, de um discurso pedagógico que supera o mero empirismo e que se inspira num modelo teórico que enquadra, orienta e legitima as práticas educativas escolares (CORREIA, 2003, p.223)”. Para Correia, Augusto Coelho foi, antes de tudo, um racionalista em matéria de educação; introduzindo “uma preocupação nova quanto à necessidade de um maior rigor terminológico e conceptual no ensino e discussão das práticas educativas e do ensino (CORREIA, 2003, p.223)”. Foi o autor português que, em sua época, melhor representou a busca de racionalização da Pedagogia. António Carlos Correia sublinha que, referenciado pela matriz de interpretação biológica do positivismo que imperava à época, os quatro volumes do tratado pedagógico de Coelho – Princípios de Pedagogia – serão o principal alicerce que orientará também os

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vários compêndios para uso das Escolas Normais, escritos pelo mesmo autor. Esses manuais - voltados para a formação de professores - retomam, de maneira condensada e mais didática, os preceitos spencerianos (SPENCER, s/d) que orientavam os Princípios de Pedagogia. Sobre o tema, António Carlos Correia recorda que a produção teórica de Augusto Coelho é contemporânea de um contexto de expansão da rede escolar; e principalmente da defesa de uma formação escolar especificamente voltada para formar professores primários. A escola se impunha como um espaço, um tempo e um modo de socialização que ganhava contornos, rituais e protocolos, dentre os quais o livro escolar.

José Augusto Coelho nasce em Sendim em 1850 e morre no Porto em 1925. Foi, de acordo com dados recolhidos por António Carlos Correia (op.cit.), convidado, no início dos anos 80 do século XIX para ser professor na Escola Normal do Porto. Nessa época, já tinha algum reconhecimento entre os intelectuais da época, posto que freqüentava o círculo de Oliveira Martins. Regente da cadeira de Ciências Físico-Químicas e também da cadeira de Pedagogia, diz António Carlos Correia que Augusto Coelho foi, ao longo de sua carreira, colaborador de inúmeras publicações pedagógicas dirigidas algumas por professores e outras por alunos; dentre as quais se destacam a Revista Pedagógica e a Educação Nacional. Em 1894, ocorre sua transferência para Lisboa, onde atuaria como diretor da Escola Normal para o sexo masculino; e depois, em 1902, iria dirigir a Escola Normal do sexo feminino na mesma cidade. Embora fosse reputado como especialista entre os estudiosos da educação, não tinha formação universitária; o que o distanciava dos jogos de poder; o que explicava também sua figura pouco conhecida do grande público. Sua obra, todavia, é uma evidência indelével do vasto repertório pedagógico que desenvolveu ao longo de uma vida dedicada à educação.

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Educação individual como recapitulação do desenvolvimento da espécie

A educação do século XIX ambiciona ser estratégia de reparação moral da Humanidade. O discurso que assim se constrói explicita a necessidade de verificar que os grupos humanos são diferentemente adaptados ao ambiente. Nesse sentido, haveria um progresso derivado do percurso civilizatório mediante o qual, em diferentes níveis de complexidade, nós percorreríamos degraus correspondentes ao desenvolvimento de aptidões mais ou menos especializadas. Como bem destaca Joaquim Pintassilgo, para J. Augusto Coelho, o professor era o ator protagonista do processo pedagógico. Essa era uma visão corrente dentre os manuais de ensino da época: “de todas as profissões, é, sem dúvida, a do educador a mais exigente de boas qualidades; é a mais perigosa, pelas suas funestas conseqüências, quando não é exercida como um sacerdócio e uma autêntica vocação (PINTASSILGO, 2006, p.182)”. Os aspectos da vocação do professor e do tato pedagógico como requisito de método eram recorrentes no cenário dos manuais de formação de professores.

Se Augusto Coelho acredita que o ator principal do processo pedagógico é o educador, ele apresenta também sua preocupação com o outro lado da ação docente: expresso na figura do aluno; aquele cujas condições exteriores de existência serão modificadas (COELHO, 1891, p.351). Por isso, seria fundamental contar com outros elementos prioritários: o instrumento educativo, expresso na ação do primeiro (educador) sobre o segundo (aluno); e o fim ou propósito que norteia essa ação pedagógica; que, no limite, é compreendida como uma atividade voltada para a modificação humana. O objetivo da educação seria, pois, reproduzir, a habilidade da natureza para lidar com a desenvolução dos seres vivos. Se operações espontâneas atuam no terreno da biologia para modificar o ambiente, seria possível, por meio de voluntária ação educativa,

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fazer algo semelhante. Haveria - diz Coelho - uma energia modificadora que possibilita a transformação de tendências humanas impressas pela condição do meio ou pela própria disposição natural. A idéia de educação implica adaptação, ajuste ao ambiente, imposição de modos de ver, de sentir e de julgar2.

(...) Na sistematização pedagógica que vamos realizar será, portanto, o meio físico ou intelectual ou moral a grande fonte donde faremos derivar todas as necessárias

2 Caberia recordar que, no princípio do século XX, Durkheim buscará compreender o caráter eminentemente social que possibilitava o encontro de um veio comum ao ato educativo desenvolvido nas mais diferentes sociedades da história humana. Perscrutar o que poderia haver de comum, para além das especificidades e particularidades reconhecidas nos diferentes sistemas de formação, supunha perceber neles o que os unia: “Não existe nenhum povo que não projete determinado número de idéias, de sentimentos e de práticas que a educação deve inculcar em todas as crianças indistintamente, seja qual for a categoria social a que pertençam (DURKHEIM, 1985, p.49)”. A educação, enquanto prática, deveria, sob tal perspectiva, reforçar, no parecer de Durkheim, a adesão a normas e valores e a sociabilidade. A reprodução social, que – no entendimento de Durkheim - era constituída como uma rede comum de signos e sentidos coletivos para as gerações imaturas, significaria uma partilha necessária à própria preservação e coesão da estrutura social. Ocorre que, ao se referir ao papel do Estado na educação, a perspectiva pública enunciada por Durkheim acarretaria algumas implicações até então não manifestas. Para o autor, o ensino sistematizado faz-se matéria de Estado pelo fato de se constituir como tarefa coletiva do grupo social - compreendido este último sob uma ótica homogênea e uniforme - com o fito de “adaptar a criança no ambiente social para o qual ela se destina (DURKHEIM, 1985, p.58)”. Nessa direção, dever-se-ia imprimir na criança determinadas idéias e sentimentos que a colocassem em harmonia com o meio onde deveria viver. Ora, isso por si implicava já o reconhecimento de desigualdades entre os diversos e inconfundíveis meios de uma mesma sociedade. Contudo, tal ambiente diverso seria não apenas autorizado, mas mesmo recomendável, o que faria com que o objeto último da ação educativa fosse paradoxalmente o de adaptação, conservação, manutenção, reprodução do existente: adaptar, persuadir e evitar o conflito. A sociedade é tomada por legítima e a educação é a ação ampliadora dessa legitimidade. As premissas desse discurso estão presentes em todo debate sobre o qual se desenvolveria o modelo científico da educação.

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energias para realizar a grande obra da educação humana. O fim que a nossa definição impõe à educação do homem é extremamente claro, largo e filosófico. Adaptar uma geração ao ambiente em que deve viver, ajustá-la tanto quanto possível a certo conjunto de idéias e de sentimentos e de relações sociais, à civilização, em suma, que há-de recebê-la no seu seio, não é isto continuar deliberadamente a obra automática da natureza, tornar a humanidade que desponta herdeira da humanidade que desaparece, continuar ininterruptamente a grande obra do progresso humano? Depois de ajustar os homens do futuro ao conjunto geral de uma dada civilização, prosseguir na obra educativa, ajustando as tendências especiais, contidas no meio geral, não será levantar sobre os alicerces duma educação geral as construções variadíssimas de educações especiais, destinadas a conduzirem os homens onde o chama o gênio particular de cada um? (COELHO, 1891, p.352)

Educar era civilizar. Para Augusto Coelho, a fisionomia da sociedade é traduzida pelos vestígios da civilização que ela revela;

(...) devendo o educador, qualquer que seja a época em que viva, adaptar o educando a uma dada civilização na sua forma mais perfeita, isto é, a um conjunto de idéias, de princípios, de sentimentos, é natural inquirir qual deva ser o tom geral de civilização que convirá adaptar a educação das gerações atuais (COELHO, 1891, p.356)

Diz o autor que o caráter mais significativo da civilização de seu tempo teria, no Ocidente, a forma de uma “cooperação produtiva, tendo como instrumento a ciência (COELHO, 1891, p.357)”. O lugar social e público da educação, em tais sociedades, só poderia ser, portanto, o de “adaptar a geração que desponta a essa grande forma de civilização pacífica, que é a honra do nosso século, e se-lo-á, com certeza, dos séculos futuros (COELHO, 1891, p.357)”.

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Verifica-se, no propósito de tornar da educação uma ciência exata e adequada ao seu meio, uma nítida matriz evolucionista, expressa por algum darwinismo social. Este pontua a raça e a vocação dos povos como dimensão fundadora de sua identidade. Além disso, à semelhança de Spencer (s/d), compara-se a infância da raça com aquela do indivíduo na civilização, procurando destacar similitudes e analogias entre o caminho trilhado pela espécie em seu traçado evolutivo e o percurso individual. Herdeiro do discurso médico e higienista que circulava à época (STEPHANOU, 1999, passim), o racismo é, para tanto, inequívoco:

Se a inteligência da raça se desenvolve lentamente, subindo do concreto ao abstrato e organizando associações mais e mais nítidas ou vastas e percebendo relações mais e mais delicadas e elevando-se da lenda poética à história científica, da hipótese empírica à concepção racional e positiva, da explicação dos fenômenos pela intervenção de vontades à noção de experiências conceptuais organizadas, também a inteligência do indivíduo – tanto quanto o permite a noção incompleta que, hoje possuímos acerca de sua evolução psicológica – se revela passando por todos esses estados, se nos mostra erguendo-se do seio do mundo concreto e sensível para se elevar lentamente até as mais abstratas combinações mentais. Sob o ponto de vista emocional e moral, a mesma persistência de analogias. Assim, os sentimentos da raça transformam-se lentamente de egoístas em altruístas, sucedendo à fereza a doçura, ao egoísmo oriental ou romano o altruísmo das nossas sociedades verdadeiramente civilizadas; desta maneira o homem modifica-se para melhor, elevando-se desse fundo de indiferença egoísta, que só ama o que lhe é útil, até esse nobre altruísmo que tantas vezes se traduz em rasgos de ardente patriotismo e de amor para com os outros homens (COELHO, 1891, p.382-3)

Augusto Coelho aqui definirá a educação como uma atitude correlata à dinâmica genética; uma estratégia para

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potencializar as forças vitais do organismo: “operação por via da qual, sob a influência de condições previamente prefixas, desenvolvemos sistematicamente as faculdades físicas e mentais dum indivíduo ou grupo de indivíduos em ordem a aperfeiçoá-los em relação a um dado fim (COELHO, 1909, p.27-8)’. Do mesmo modo, o ensino é compreendido como “operação por via da qual acumulamos sistematicamente na mente dum indivíduo ou grupo de indivíduos determinado número de noções acerca dum dado objeto (COELHO, 1909, p.28)”. Por tudo isso, seria fundamental estipularem-se mecanismos como prêmios que servissem de emulação aos estudantes; e, por outro lado, exigências como a dos exames, que registrariam a materialidade da obrigação na vida escolar. Nem uns nem outros poderiam ser dispensados, à luz da mentalidade do aluno português.

A visão de mundo evolucionista aliava-se a um confessado entusiasmo perante a causa de uma educação cientificamente orientada. Dirigir energias, canalizar aptidões, mobilizar esforços e interesses do aluno seriam tarefas necessárias ao desenvolvimento sistemático sugerido para a ação educativa. Assim como a filosofia, a pedagogia - segundo Coelho - pairaria acima das diferentes ciências. Se aquela tem por primordial função o questionamento e a crítica, essa última acata a mentalidade de seu tempo; e – sem maiores indagações - faz com que seus principais significados sejam espraiados.:

É sublinhada a tradução, por parte do autor, de suas premissas filosóficas; sutilmente expostas como se de possibilidades pedagógicas fossem constituídas. Tal transmutação incidiria diretamente sobre o campo dos saberes escolares. Além de saber como educar e quais as finalidades primeiras da ação educativa, pensava-se ser necessário firmar ‘o quê’ deve ser ensinado. Este seria o campo de intervenção direta do educador; a quem caberia efetuar, com o resguardo da ciência possível, uma síntese que só a pedagogia o habilitaria a fazer. Todos os escritos de Augusto Coelho caminham nessa direção: procurando

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transformar em modos e em roteiros prescritivos uma vasta e complexa filosofia da educação.

Exercício escolar: análise e sínteses recapitulativas

Augusto Coelho escreveu para vários públicos. Pensou a filosofia do ensino, mas dedicou-se a estudar também as reformas e os métodos pedagógicos em voga à época. Seus escritos destacam-se pela marcada inspiração positivista; sem descuidar, todavia, de indicar caminhos para uso específico de situações concretas de ensino. Tratava-se de um pensamento que, abstraído das realidades da sala de aula, pretendia chegar a elas. Daí sua preocupação também quanto à elaboração de alguns trabalhos para um público mais amplo; como obras de divulgação. Cioso de sua preocupação com o ensino e com a formação dos educadores portugueses, produziu vários ensaios pensados como livros didáticos a serem adotados pelas Escolas Normais, dirigidas à formação de professores: Elementos de pedagogia para uso dos alunos das escolas normais primárias; Noções de Pedagogia Elementar; Manual prático de pedagogia.

Os manuais didáticos de Augusto Coelho compendiam o conjunto daquela sua obra primordial – o Princípio de Pedagogia. Nesse sentido, Augusto Coelho sistematizaria – e, ao mesmo tempo, simplificaria - suas matrizes teóricas. Pode-se dizer que, para o caso português, Augusto Coelho teria sido um dos principais nomes da Pedagogia auto-proclamada científica. Sob tal referência, interpelava, em seu trabalho, uma verdadeira constelação teórica, da qual se teria apropriado de maneira muito sua, bastante específica. Nitidamente filiado ao modelo do tratado pedagógico – nos termos da classificação de Marta Carvalho – postulava uma acepção positivista de educação. O ensino era importante. Dever-se-ia, sim, pensar no método. Mas o fundamental seria compreender efetivamente o complexo sistema de mecanismos biológicos, psicológicos, cognitivos e sociais; que,

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entrelaçados, permitiriam uma interpretação mais ampla do fenômeno educativo. Havia claras estratégias de divulgação de modelos teóricos e referências conceituais que – firmadas a partir de algum darwinismo social - reconstituíam tais representações de mundo à luz de um postulado indispensável à pretensão de metodologia para o ensino, intrínseca à escrita das obras de um autor que acreditava na educação como ferramenta e método de regeneração, em futuro, do passado.

O Manual Prático de Pedagogia para Uso dos Professores em Geral e em Especial dos Professores em Geral e em Especial dos Professores de Ensino Médio e Primário constitui declaradamente um material didático para formação de professores. Trata-se de um livro de Pedagogia, que apresenta seu campo de alcance à luz do que nomeava ‘ciência da educação’. O texto é composto por várias partes que integram o que é apresentado como conhecimento científico da matéria da educação. Explica que não seria possível proceder ao ato educativo caso não se conheça “quer do ser que se ensina e educa, quer dos princípios mais essenciais da Ciência teórica em que se funda”. Sem um sólido saber pedagógico, criteriosamente palmilhado, o professor “avançará constantemente às cegas (COELHO, s\d, p.5)”. Isso porque:

Ocupando-se a Pedagogia prática de aplicar na esfera do ensino os princípios fundamentais da Ciência da Educação, ela só poderá ser verdadeiramente racional quando tiver por base da sua constituição o conhecimento, quer do ser que se ensina e educação, quer dos princípios da Ciência teórica em que se funda (COELHO, s\d, p.5)

Para teorizar sobre educação, o autor discorre sobre a constituição fisiológica do homem, em suas estruturas e em suas funções. Mediante nítida caracterização biológica, são sublinhadas as impressões que tendem a se formar no ser humano a partir da influência do ambiente externo. Nesse lugar de adaptação do

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homem ao meio que o circunscreve é que se coloca a potencialidade do ato educativo. As idéias compor-se-iam como frutos do entrelaçamento do ambiente com a fisiologia e a consciência.

A operação intelectual básica implicada no aprendizado consistiria na dinâmica sucessiva de análise e síntese, procedimento mediante o qual o espírito se debruça para decompor e recompor o objeto. Esse modo de operar do pensamento seria essencial para o professor. O aluno – para ter clareza sobre um objeto qualquer – deverá ser a ele apresentado à luz de uma metódica decomposição de suas partes e observação meticulosa de cada uma delas; para em seguida voltar ao todo do objeto, a partir da reunião dos elementos anteriormente decompostos. A decomposição, que resulta na análise do objeto, é o movimento tendente a sua particularização. A síntese, que estrutura a dinâmica de regresso à idéia geral, anteriormente decomposta, será tendente à generalização. De qualquer maneira, o passo final consistiria na comparação das idéias. Tal comparação sugere já um ato de classificação do mesmo objeto. Todos esses atos intelectuais seriam requisitos da formação do juízo; sendo, pelo mesmo motivo, aspectos fundamentais para serem observados na prática de ensino. Diz, a respeito disso, o autor:

A análise e a síntese são, como dissemos, operações da mais alta importância para o professor. Como será, com efeito, possível oferecer ao aluno a noção clara dum objeto, se este não for previamente desagregado nas suas partes e nas partes dessas partes? Como seria, por exemplo, possível oferecer a um aluno, a noção nítida de um relógio, se não procedêssemos em ordem de apresentar-se, primeiramente, como uma síntese obscura e confusa, se, em seguida, lh’o não decompusermos nas suas partes, se não lhe caracterizarmos essas partes, e, se, finalmente, reunindo-as, por síntese, não terminarmos por lh’o apresentar como um todo claro e definido? (COELHO, s\d, p.34)

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Para assinalar a idéia de experiência, o autor reporta-se a operações mentais que estabelecem, no mundo objetivo, relações entre os objetos existentes e as idéias a eles relativas – consubstanciadas em juízos – presentes na mente do sujeito. Trata-se, portanto, de uma estratégia que possibilita a aproximação entre o nível do sujeito e o do objeto. A própria ciência seria um resultado da experiência humana. A educação também. A idéia central do autor reside na hipótese de que o ato de ensinar deve ser efetivamente um processo combinado entre decomposições e recomposições; de maneira a que – por mecanismos de análise e de síntese – possam-se firmar naqueles a quem ensinamos as relações entre as idéias e a realidade.

A teoria pedagógica de Augusto Coelho é muito próxima dos princípios teóricos enunciados no tratado intitulado Pedagogia geral, no qual Johann Friedrich Herbart explicita que o decurso do ensino pode se orientar tanto por uma rota analítica quanto por uma via sintética. O ensino analítico, nesse sentido, optaria por “mergulhar sucessivamente a atenção no cada vez mais pequeno, para assim dar clareza e pureza às noções (HERBART, 2003, p.98)”. Ao decompor o específico, o ensino analítico – de acordo com Herbart – reparte as coisas em partes, até alcançar aquilo que não mais pode ser isolado. A lógica didática dessa operação seria a seguinte: “o que é simples é mais facilmente compreendido do que aquilo que é complexo. As representações têm mais força, tendo-lhes sido subtraída a dispersão através da variedade e multiplicidade (HERBART, 2003, p.100)”. O caminho sintético seria o procedimento mediante o qual se constrói o edifício do pensamento. Ele, a um só tempo, daria os elementos e organizaria suas interligações (HERBART, 2003, p.102).

No limite, tais considerações tinham por pressuposto uma dada idéia de método que supunha uma articulação entre diferentes momentos do ensino. O pensamento de Herbart indicava claramente o caminho que, de alguma maneira, era também abraçado por Augusto Coelho:

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Os elementos maiores compõem-se de mais pequenos e os mais pequenos de outros menores. Em cada elemento menor há quatro graus de ensino a distinguir, uma vez que ele deve conduzir à clareza, à associação, à ordenação e à seqüência desta ordem. O que aqui acontece em rápida sucessão segue mais lentamente, precisamente onde a partir dos elementos ínfimos se compõem os que são imediatamente maiores, e isto com intervalos de tempo sempre maiores, quanto mais elevados forem os graus de consciência que eles quiserem subir (HERBART, 2003, p.87)

Se a primeira seção do Manual de Augusto Coelho centra-se sobre as operações epistemológicas compreendidas na fisiologia e na psicologia humanas, a segunda seção do texto debruça-se sobre o tema da educação. Antes de tudo, procura-se definir os atributos que permitem o ato educativo no tratamento da condição humana. O autor ocupa-se, então, de destacar os fatores inamovíveis da vida do ser: aqueles transmitidos irredutivelmente por efeito da hereditariedade étnica. Há no pensamento do autor a crença em um dado caráter do povo, resultante do efeito de longa duração da matriz étnica herdada.

O evolucionismo era marca de sua época e não deixou de marcar seu pensamento. Coelho ressalta, contudo, que as aptidões intelectuais seriam mais fortes do que aqueles caracteres atávicos – herdados dos antepassados. Haveria, então, um impulso transformador no percurso de desenvolução humana. Nesse sentido, a educação seria ação consciente e intencional com finalidade de aprimorar as condições individuais de vida; e, melhorando o ser individual, contribuir para aperfeiçoar também os povos. Haveria, portanto, um ente coletivo que é o objeto maior da educação professada.

A transformação de cada ser em sua singularidade atingiria o meio – finalidade maior. É por isso que ao educador compete desenhar a cartografia do meio no qual o educando deverá ser adaptado, tanto no sentido físico quanto mental. Ao educador competirá fazer o educando viver no ambiente da civilização.

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Assim, o termo que equivale à prática do educador é - neste texto - a palavra agente. Como agente, o educador contribui em uma dupla mão: tanto semeando o terreno para onde conduzirá seu discípulo quanto modificando nele tudo o que for necessário para que possa adequadamente se adaptar a esse ambiente previamente projetado. Assim define-se: “educação como consistindo na operação destinada a estabelecer em torno do educando as condições exteriores constitutivas do meio em cujo seio se deve desenvolver, em ordem a modificá-lo sistematicamente até o adaptar a uma dada civilização na sua forma mais perfeita (COELHO, s\d, p.70)”.

A educação agiria como um corretor necessário da obra da natureza. Supõe o autor que, durante o percurso da formação educativa, o indivíduo percorreria várias etapas que teriam por finalidade a recapitulação: “em suma, realizando consciente e deliberada e resumidamente durante a curta evolução da vida individual uma obra de aperfeiçoamento como aquela que, em relação à totalidade da raça, a natureza espontaneamente realizará (COELHO, s\d, p.71)”.

A educação teria como propósito fundamental modificar no indivíduo os caracteres passíveis de desenvolução; atributos que seriam modificáveis. Isso requereria o recurso a exercícios sistemáticos e progressivamente dirigidos, de modo a que a ação educadora incidisse efetivamente sobre as aptidões a serem mobilizadas, sobre tudo o que fosse sujeito a receber a ação do aperfeiçoamento progressivo. Supunha o autor que a ação educativa, atuando progressivamente nas condições individuais teria por efeito de longo prazo a intervenção mais ampla no domínio da espécie, transformando o caráter moral dos povos. Supunha-se que a educação poderia regenerar raças e nações. Daí a relevância da ciência pedagógica como uma tecnologia de intervenção na própria raça. Nesse sentido, as energias intelectuais e físicas devem ser aprimoradas e exploradas por metódicos exercícios; os quais agirão em duas direções: “no primeiro caso,

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adapta determinadas energias, por via de metódicos exercícios, a certos fins; no segundo, mobília o espírito do educando com um certo número de noções acerca do mundo interior e exterior: em suma, no primeiro caso, educa; no segundo, instrui (COELHO, s\d, p.82)”.

A plasticidade humana tem por principal indício a capacidade de aprender. O autor não omite sua crença no poder do exercício escolar (que se segue à exposição/lição do professor) como fonte de aprendizado. Por meio do aprendizado, ocorreria transformação de índoles, aptidões e até mesmo tendências dadas – à partida - pela natureza. Por meio de práticas continuamente exercitadas, parecia possível desenvolver tanto as energias intelectuais quanto as predisposições técnicas e artísticas.

Ao instruir, o educador mobiliaria o espírito do aluno com noções acerca do mundo. Assim, a tarefa da educação seria, portanto, paralela ao ofício da instrução, já que o educador deveria, para cumprir integralmente sua tarefa,

(...) quer mobiliar o espírito do aluno com noções importantes acerca dos processos técnicos ou técnico-estéticos e das matérias-primas a transformar e dos instrumentos a utilizar e dos produtos a realizar, quer adaptar-lhe os sentidos e os movimentos à produção de coisas úteis ou belas; assim, a par da instrução destinada a ministrar noções teóricas, há de avançar paralelamente a educação destinada a ministrar a adaptação prática das mãos e dos sentidos (COELHO, s\d, p.84)

Caberia à Pedagogia – em sua condição de ciência – a formação do espírito e do físico, a educação e a instrução, o desenvolvimento técnico e estético; enfim, a educação moral, física e intelectual. Isso implicava, a um só tempo, a educação do raciocínio, a formação do juízo, o treino da memória, a estruturação de regras de conduta e hábitos de moralidade.

Os princípios de Pedagogia seriam configurados, por sua vez, como se compusessem o corpo do saber humano, perante o

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postulado de uma natureza essencial que preside cada conhecimento a ser transmitido, ensinado e aprendido. Para identificar o conhecimento a ser multiplicado pela ação educativa, dever-se-ia, antes de tudo, “caracterizar a natureza essencial desse objeto de ensino, resumi-lo reduzindo-o aos seus elementos mais fundamentais, decompô-lo e recompô-lo, ordenar e coordenar-lhe os elementos dispondo-os numa certa ordem, e, finalmente, apresentá-lo ao aluno pela maneira mais clara e viva e atraente (COELHO, s\d, p.87-88)”.

Dessa primeira declaração de princípios, evidentemente, serão desmembrados outros preceitos, atinentes, em geral, ao modo por meio do qual esse conhecimento pedagógico viria a se organizar. Essa parte, Augusto Coelho a chama de pedagogia prática, composta fundamentalmente sob o eixo da Didática. Nesse caso, apresenta-se primeiramente a Didática Geral, estruturada mediante o que o autor nomeia de objeto de ensino, método de ensino e processo de ensino. Segue-se a Didática Especial, que se compunha pelas diferentes metodologias de ensino de ciências, de línguas e de aplicações técnicas. A Didática corresponderia a um elemento de aplicação do saber pedagógico. Claramente, se Pedagogia é ciência, Didática é tecnologia. Para ensinar, a operação seria simples:

• Coloca-se, diante da inteligência do aluno, um objeto novo. Este é visto e apreendido como uma totalidade confusa.

• Para tornar familiar o mesmo objeto, cumpre decompô-lo nas diferentes partes que o compõem, de maneira a que tanto as propriedades de cada parte especificamente quanto a relação entre as diferentes partes se tornem clara aos alunos.

• Depois de desagregar as partes do objeto apresentado, o aluno deverá fazer um esforço de reconstituição

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daquele todo anteriormente apresentado. Da análise, passa-se então à tarefa da síntese.

Sem a decomposição, o aluno não descobriria a lógica interna ao objeto. Sem o esforço contrário - da recomposição - o objeto como um todo não apareceria de maneira precisa diante de seus olhos. É por isso que o ato pedagógico seria, no limite, uma recapitulação continuada de objetos que se apresentam e se reapresentam sempre em degraus maiores de complexidade. As noções sobre um assunto que ficam na memória do indivíduo seriam interpeladas por outras informações acerca do mesmo tema; processo que requererá recapitulação das noções já presentes no espírito acerca do assunto, sua rememoração e associação das mesmas noções recapituladas com elementos novos que ampliam o diâmetro do objeto pensado. Ampliar o conhecimento seria adquirir, portanto, mais amplos elementos sobre as mesmas coisas... Aí estaria o maior desafia colocado diante do educador. Sendo assim - supõe Augusto Coelho - a recapitulação das matérias, das informações e dos fatos seria uma das mais preciosas sínteses para fomentar o aprendizado. O professor indicará o objeto e as diferentes partes de que ele se compõe. O espírito do aluno recompõe, pela identificação da relação entre as partes, o objeto completo que lhe havia sido apresentado. Assim, aquela primeira impressão, ainda sincrética do objeto, seria reconstituída em uma compreensão mais profunda porque com mais elementos de compreensão.

Na vida escolar, ao pormos diante da inteligência do aluno um objeto novo, este aparece-lhe sempre como uma síntese, obscura e confusa, de elementos desconhecidos: que cumpre, então, desfazer para lhe dar acerca dele uma noção clara? Primeiramente, desagregando-o nas suas partes e nas partes dessas partes, determinar no seu espírito, quer idéias claras e nítidas acerca de cada elemento trazido à luz, quer relações entre esses elementos e os seus atributos, relações que, convenientemente generalizadas, constituirão para cada

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um deles e para o objeto total as suas propriedades características. Mas a noção de objeto, assim analisado, ficaria incompleta se, depois de haver operado uma tal desagregação nas esferas objetiva e subjetiva, o aluno não reconstituísse, por via de uma síntese bem ordenada quer à custa dos seus elementos abstratos o objeto total oferecido à sua contemplação, quer à custa das noções simples relativas a tais elementos a noção relativa ao objeto composto: só depois de se haverem realizado as duas operações, o objeto primitivo – a princípio uma verdadeira síntese obscura e confusa – se tornará para o aluno uma síntese clara e distinta (COELHO, s/d, p.144)

O esforço da recapitulação da matéria produzirá, na mente do aluno, a síntese, não apenas pela revisão do tema, mas pela ampliação do mesmo no espírito do sujeito: aprende-se pela rememoração continuada, progressiva, em espiral...

Como é sabido, as sínteses desta última espécie são da mais alta importância, visto que só recapitulando uma e muitas vezes noções adquiridas pode o aluno, quer defini-las mais claramente no espírito, quer consolidá-las na mente de uma maneira indestrutível. O professor que, amontoando sucessivamente no espírito do aluno noções variadas, não lhe impõe recapitulações sucessivas, é indigno de tal nome e falseia sua missão; a recapitulação, realizada em condições pedagógicas, é a alma da clareza e consolidação das noções adquiridas e, portanto, uma das bases fundamentais do bom ensino (COELHO, s\d, p.148)

As sínteses recapitulativas, operadas especialmente mediante forma sistemática de sistemas de avaliação ou exames, conduziria essa reconstituição – no espírito do aluno – dos objetos de estudo trabalhados por cada específica matéria, ao longo de um percurso de tempo qualquer - fosse o mês, a semana, o bimestre ou o ano letivo. A temporalidade pedagógica era, assim, constituída. Expunha o texto de Augusto Coelho as bases indicadoras do que

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hoje chamaríamos de “ensino tradicional”. O método era explicitamente verbalista e a operação pedagógica consistia fundamentalmente na exposição e no exercício continuado, articulado e progressivamente tornado mais complexo. O método era seriado e o ensino acontecia pautado por sequências didáticas. Havia, portanto, um modo ordenado de se apresentar aos alunos os conteúdos das matérias. Um segredo do ofício do magistério residia na concentração do professor para que sua aula não fosse desviada do objetivo e do objeto da lição. Era necessário ater-se ao tema e ao problema intelectual exposto verbalmente. Qualquer digressão deveria ser, portanto, bastante disciplinada:

O objeto da lição é sempre o objeto da lição; e as digressões efetuadas na esfera de objetos de ensino - pertencentes, quer à mesma série, quer às séries colaterais - nunca deverão perder, em relação ao objeto principal, o simples caráter de elucidativas, e, portanto, jamais poderão sobrepor-se abusivamente ao assunto fundamental (COELHO, s\d, p.152)

A disposição do conjunto das informações em uma ordenação clara, precisa e didática seria tarefa essencial à boa conformação do saber ensinado. A ordem pedagógica cuidava de estabelecer uma hierarquia, uma seqüência, um lugar e um tempo para apresentação de cada um dos objetos da matéria ensinada: “do homogêneo para o heterogêneo; (...) do obscuro, confuso e indefinido para o claro, distinto e definido; (...) do conhecido para o desconhecido (COELHO, s/d, p.155)”. Uma série de saberes devidamente encadeados constituiria o segredo da ação pedagógica. A mesma coordenação dos argumentos didáticos distribuiria o conhecimento escolar em diferentes disciplinas. Essas expressar-se-iam

[...] quer paralelamente, isto é, ao lado umas das outras, quer encadeadamente sobrepondo-se umas às outras; no primeiro caso, avançando todas a par e surgindo os seus objetos docentes perante o espírito do aluno ao mesmo

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tempo e atraindo assim simultaneamente para direções intelectuais variadas, patentear-lhe-ão o espetáculo oferecido pela história da raça ao criar a ciência; no segundo caso, surgindo umas depois das outras, sobrepondo-se as mais gerais e abstratas às mais particulares e concretas, darão ao aluno o espetáculo oferecido pela história do saber humano ao dispor, em ordem dogmática, as diversas ciências uma vez constituídas (COELHO, s/d, p.160)

Augusto Coelho estabelecia interlocução com os critérios articuladores da transposição do conhecimento pelo argumento didático. Sendo assim, pensava-se a cultura escolar como um programa de ensino, mas também como um método de conhecer.

Tão importante quanto o saber ensinado era atentar para o processo que dava lugar ao ensino. Cabia meditar sobre os modos mediantes os quais “o professor oferecerá ao aluno o objeto do saber cujas noções a este cumpre adquirir e consolidar e lhe desenvolverá as faculdades postas em jogo em tal aquisição e consolidação (COELHO, s/d, p.172)”. A atenção do aluno era, portanto, disputada e conquistada, por meio de um modo de apresentação atraente daqueles que seriam os objetos do ensino. As coisas precisavam ser postas diante dos olhos das crianças de uma maneira clara, distinta, coerente e viva. As faculdades que interagem com o aprendizado não são apenas aquelas que falam ao campo intelectual, mas são também físicas, morais emocionais e afetivas. É por isso que, ao professor, caberá desenvolver algum bom senso – para se orientar na vida prática. Os componentes estruturais emocional, racional e afetivo deverão vir equilibrados em uma justa proporção – a qual será intransigentemente requerida na ação prática.

Um professor sem vida, arrastado, sonolento convida quantos o ouvem ao adormecimento e à apatia; que um certo calor avive, pois, todos os seus atos, prenda às suas palavras todas as atenções, atraia - pela sua exposição - todos os espíritos. Estas qualidades, sendo de caráter

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geral, não podem constituir o patrimônio exclusivo do professor; mas, além delas, outras há que mais especialmente deverá possuir para desempenhar cabalmente as suas difíceis funções (COELHO, s/d, p.175-6)

Em relação ao gesto de ensinar, haveria um duplo critério para assinalar a diferença entre o bom professor e aquele que não o era.

“Em relação ao objeto docente:

• Posse plena do objeto de ensino;

• Espírito de análise, quer para o delimitar e definir clara e nitidamente em relação a outros objetos, quer para o decompor nos seus elementos componentes;

• Espírito de síntese, quer para recompor os objetos à custa dos seus elementos, quer para recompor, recapitular ou resumir as noções que lhes dizem respeito;

• Um certo equilíbrio entre estas duas aptidões, quer para não se perder, mercê de uma análise exagerada, em minúcias inúteis, quer para não se abalançar, mercê de uma síntese precipitada, a unificações mal preparadas.

“Em relação ao método de ensino:

• Espírito bem acentuado de ordenação pedagógica para, numa mesma série, se lhe disporem no mais natural e lógico encadeamento os diversos objetos de ensino.

• Espírito bem ponderado de coordenação, a fim de estabelecer uma racional convergência dos objetos de ensino pertencentes a séries ou disciplinas diversas para com o objeto especial de que tratar, sem contudo se diluir por aqueles a atenção do aluno, com tanta demasia que este fique prejudicado.

“Em relação aos processos de ensino:

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• Clareza e distinção na apresentação do objeto docente das decomposições a efetuar sobre ele, das sínteses a realizar, da ordem a estabelecer entre todas estas operações e elementos;

• Animação proporcionada à natureza do objeto de ensino a ministrar ou da operação a realizar (COELHO, s/d, p.176-7)

Deveria existir uma clara ordenação quanto aos procedimentos adotados para o ensino. Só assim as coisas verdadeiramente importantes seriam efetivamente apreendidas pelo espírito do estudante. Cabia perscrutar o objeto, tendo em vista a definição de boas sínteses. Para tanto, cumpria observar uma ordem metódica para se dispor os vários objetos de ensino. Sob tal procedimento, noções dispensáveis, supérfluas ou confusas deveriam ser afastadas do processo de ensino. Apenas informações claras, sintéticas e concatenadas se manteriam. Propugnava-se uma ordem hábil em classificar previamente o conhecimento transmitido. Naquele final do século XIX, bem como no princípio do século XX, a principal marca do repertório pedagógico em língua portuguesa inscrevia-se na suposição de que o desenvolvimento da criança seria correlato ao desenvolvimento da raça; podendo o primeiro ser compreendido pela apreensão dos códigos que teriam norteado o segundo. Educar era procedimento imprescindível para aprimorar os povos; e fazer prosperar as nações. Ora, compreendia-se, porém, que nem todos seriam atingidos pelo efeito da educação. Não era qualquer um que poderia ensinar; porque apenas os iniciados poderiam despertar aptidões, podar inclinações, desenvolver os caracteres; enfim, modelar a alma. Esta tarefa seria reservada profissionalmente ao educador de ofício. A pedagogia tornava-se, pois, ciência; ao mesmo tempo em que se profissionalizava o ofício do magistério.

A necessidade de criar efetivamente uma ciência pedagógica implicaria o preparo de um profissional dotado de conhecimento e de vontade. A escola falhava - supunha Coelho - porque falhavam os mestres. As lições eram, na maior parte das

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vezes, confusas e o professor geralmente não se fazia capaz de transmitir para os estudantes um conhecimento que ele próprio não teria sido capaz de assimilar. Faltava ao professor o domínio da matéria e a necessária aptidão pedagógica. Desempenhar bem o ofício do magistério era oferecer ao aluno idéias claras, distintas, bem encadeadas uma às outras, estruturadas do mais simples para o mais complexo, do particular para o geral. A marca cartesiana do discurso é inconfundível. Mas o autor se queixa: não era isso que se presenciava nas escolas da época:

Quanto tempo precioso e perdido muitas vezes nas escolas, porque o espírito do professor se arrasta, longa e sonolentamente, através de mil minúcias enfadonhas, descosidas, despidas de verdadeira eficácia docente? E, por outro lado, quantas confusões no espírito do aluno, porque o professor, inábil para realizar uma análise, ponderada e lenta e gradual, do objeto de ensino, lhe atira para a memória atropeladamente noções sem nexo, idéias sem clareza, produtos de análises que foram incompletas, resultados de sínteses que foram intempestivas? E que diremos da falta de ordem metódica na disposição dos diversos objetos de ensino e noções a eles relativas? (...) Se não há clareza na apresentação das idéias, o aluno não as perceberá; se não há distinção, tudo confundirá; se a animação, que todo homem deveria ter falando ou escrevendo, não é no professor proporcionada à operação docente que realiza, umas vezes será demasiadamente vivo e apressado não dando tempo ao espírito do aluno de fixar bem distintamente os elementos duma análise, outras vezes será demasiadamente lento prejudicando, nas sínteses, a impressão do conjunto (COELHO, s/d, p.178-9)

Augusto Coelho explicita a linguagem como privilegiada estrutura para se buscar a correspondência entre pensamento e realidade. O grande auxiliar do professor em seu processo de ensino é a fala: mais do que materiais, matérias e métodos, o autor valorizava esse lugar compartilhado de representação da realidade, constituído pela linguagem verbal: “a tudo se presta a flexibilidade

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da palavra falada, tudo representa, tudo significa; por isso, o seu poder como meio de apresentação docente excede o de todos os outros processos de ensino; e daí a necessidade de a considerar como centro para onde deverão convergir, como subordinados a ela, todos os meios de objetivação pedagógica (COELHO, s/d, p.187)”. A educação se estruturava, assim, como um roteiro prescritivo. A autoridade do compêndio e a palavra diretora do professor em aula seriam os eixos ordenadores do discurso pedagógico.

O livro-compêndio como eco da palavra exposta em classe

Um livro apresentava o outro. O Manual pratico de pedagogia para uso dos professores em geral e em especial dos professores de ensino médio e primário dedicava-se a explicitar os significados didáticos do livro escolar. Para tanto, assinalava suas principais características e os atributos necessários que deveriam conferir sua identidade. Antes de tudo, diz Coelho, o livro de ensino não será um livro-tratado; mas um livro-compêndio (COELHO, s/d, p.208). Não bastava desenvolver o conhecimento na profundidade que este exigiria para finalidades científicas; mas seria fundamental explaná-lo com a clareza suficiente para efeitos didáticos. A idéia de livro-compêndio inscreve-se na tradição enciclopédica: propondo-se a estruturar um mosaico de temas, cuja compreensão forneceria pistas para o desvendamento de aspectos variados do real. Augusto Coelho destaca, porém, que a escrita do livro traduzia a palavra verbalizada. A disposição gráfica corresponderia, pois, aos sentidos inscritos na exposição do professor. Essa adequação daquilo que surge como estrutura fônica para o discurso impresso requereria algumas modificações. Em primeiro lugar, seria distinto o processo de apresentação pedagógica. Havia assim mudanças no método e na própria matéria a ser ensinada. Era imperioso

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encontrar uma linguagem suficientemente clara, capaz de estabelecer hierarquias e seqüências entre saberes pelo livro veiculados. Embora tais matérias devessem primar por alguma objetividade na apresentação, sem excessivas repetições, cumpria atentar para as necessárias “sínteses recapitulativas” (COELHO, s/d, p.211), que possibilitariam a consolidação do conhecimento na memória do aluno.

Sob o ponto de vista da conformidade com o objeto docente, pois que o livro não é mais do que a tradução gráfica da apresentação oral das nossas idéias, cumpre estabelecer o seguinte princípio: que, seja qual for a forma a dar à apresentação das noções, deve ela, no livro, estar sujeita às mesmas regras de conformidade estabelecidas para a apresentação oral. Assim, quando o objeto de ensino dever ser oferecido ao aluno dividido em partes, como na apresentação oral – na apresentação gráfica será adotada a forma partitiva; quando se tratar de teoremas matemáticos, de regras práticas de conduta, de princípios, em suma, que devem ser concisos na expressão, será adotada a forma explicativa-resumida; quando se trate de descrição de lugares ou narrações de fatos, a forma explicativa, mais desenvolvida; e assim por diante (COELHO, s/d, p.211-2)

O livro-compêndio proporcionaria um novo modo de o indivíduo aproximar-se do conhecimento: uma forma diferente de entrar em contato com temas ensinados. Tratava-se de organizar o espaço e o tempo da leitura: da leitura em voz alta, da leitura silenciosa, da leitura em classe, da leitura como tarefa para ir para casa... A exposição e o livro: modos diferenciados de trabalhar com o ensino, no segundo caso, um modo de apresentar as lições que se propõe a ser ‘manual’. A estrutura gráfica e textual do discurso daria pistas acerca da aula a ser desenvolvida. Palavras destacadas, isoladas ou acentuadas em tipos diferentes teriam significados próprios. A divisão dos parágrafos seria também elucidativa do modo de ensino a ser adotado processualmente em cada específica aula.

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Na forma dialogal-socrática, as noções donde há-de derivar a noção a sugerir e as noções auxiliares e a noção principal a descobrir e a resposta destinada a conter a solução do problema – tudo deverá ser, em regra, destacado em parágrafos distintos, e neste ainda salientadas graficamente as palavras destinadas a exprimir as idéias principais e tudo isto ainda bem ordenado em harmonia com o pensamento (COELHO, s/d, p.214)

Ao término de cada capítulo do livro, deveriam ser estruturados quadros sinóticos, organizados para recapitular em sínteses breves a estrutura dos principais tópicos até então trabalhados. Tratava-se de um esforço de síntese, também com o propósito de ensinar o aluno a esquematizar os principais conceitos, buscando associar os elementos do aprendizado, para facilitar o trabalho da memória. Complementando a lição, haveria em seguida um questionário que condensava “as perguntas que o aluno pode fazer a si mesmo, a fim de verificar, de per si, o seu próprio saber, devendo tais perguntas consubstanciar as mais importantes noções relativas ao objeto a considerar (COELHO, s/d, p.215)”.

Para que o livro escolar pudesse se materializar como um recurso interessante para efeitos do aprendizado do estudante, alguns cuidados gráficos deveriam também ser tomados:

1. O formato do livro deve ser elegante e prático;

2. Em todo ele deve dominar uma rigorosa coerência, gráfica e ortográfica;

3. A página não deve oferecer o aspecto de um todo compacto;

4. As linhas devem ser espaçadas ou faiadas;

5. Deve ser confeccionado de maneira a ser metodicamente dividido com toda a clareza e nitidez, em partes, seções, subseções e capítulos, etc.

Tais são, em resumo, as condições – interiores e exteriores – que devem caracterizar o livro de ensino. Neste lugar, cumpre, porém, acrescentar o seguinte: mais

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da habilidade do escritor didático do que dos nossos conselhos e regras depende a concepção dum bom livro escolar. As regras orientam sem dúvida os talentos bem conformados e são, portanto, indispensáveis; mas só as aptidões especiais cabe descobrir, num dado momento, os meios secretos e variados a por em jogo, a fim de conceber, ordenar e exprimir convenientemente os seus pensamentos, e, portanto, constituir um livro de ensino útil e eficaz (COELHO, s/d, p.215-6)”.

O livro de ensino, que, pelo discurso de Augusto Coelho, teria a nítida finalidade de ensinar também o professor (BITTENCOURT, 1993), poderia ser o típico livro do aluno; ou poderia ser o livro do mestre. Este último desenvolvia mais detidamente os conceitos e temas apresentados, colocando a matéria em ordem e prescrevendo indicações e procedimentos pedagógicos a serem adotados.

Com a dupla finalidade de apresentar ao estudante noções novas a serem aprendidas e prover a memória de elementos que a auxiliassem a consolidar os conceitos já apreendidos anteriormente, o livro didático tornava-se protagonista da escolarização. Porém, o autor não se cansava de advertir que o livro – como suporte material do conhecimento - teria eficácia, em geral, inferior à apresentação oral efetuada pelo professor. Sendo assim, o uso do compêndio não substituiria a aula expositiva que – ela sim – deveria introduzir novos temas a serem estudados. O mesmo não ocorria quando se tratava de consolidação de noções já adquiridas. Para esse efeito, o livro era também um instrumento profícuo. Com o propósito de se valer do livro escolar, o professor deveria atentar para tais cuidados com seu uso; sem os quais o resultado poderia ficar comprometido.

Para consolidar o que já havia sido anteriormente aprendido, o livro era tido por instrumento fundamental; um auxiliar indispensável da palavra do professor. Sua tarefa seria primordialmente a de rememorar o aprendizado; tornando-o mais racionalizado. O livro deveria ser principalmente um recurso do

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professor para orientar a lição de casa; ou o estudo para além da escola. Mas, como tal, ele não poderia substituir a aula; daí não ser recomendado que um novo conceito fosse apresentado pelo livro.

É como se a escola pretendesse regrar a leitura, mediando-a pela palavra do profissional autorizado a falar o discurso do ensino: o professor. A aquisição das novas idéias aconteceria a partir da aula expositiva. O mestre explica a matéria; e faz isso de maneira eficaz, com “a viveza, a animação, a maleabilidade duma apresentação oral convenientemente auxiliada pela tangibilidade dos processos empíricos: perante a vida impressiva duma objetivação de tal ordem as páginas do livro são frias e mortas (COELHO, s/d, p.218)”. Augusto Coelho diz que a exposição oral era muito mais eficaz para marcar a alma do aluno:

(...) a nova idéia, envolta nas dobras duma exposição oral, nítida e animadamente produzida, penetra mais facilmente na alma do aluno, vai até o íntimo de sua mentalidade. Uma vez adquirida por ele a idéia, torna-se, porém, necessário consolida-la, amplia-la, resumi-la; ora, para isso é indispensável um instrumento pedagógico que, depois de se haver extinguido a palavra do professor, fixe a idéia recebida através dela e, ampliando-a ou resumindo-a, a ponha diante do espírito do aluno a todo momento – duma maneira indestrutível. (...) Na evolução por que passa uma noção desde sua primeira apresentação ao aluno até a sua consolidação final, não é, em tal caso pelo livro que a devemos iniciar, mas é por ele que a devemos terminar: a apresentação oral, e empírica facilitarão a aquisição da nova idéia; o livro, a sua cristalização e consolidação final (COELHO, s/d, p.218-9)

O livro escolar é compreendido, então, como imprescindível dispositivo de memorização de idéias. Sua função primordial será a de fixar na memória aquilo que, de alguma maneira, fora apreendido anteriormente. Daí o fato de ser a casa do aluno o local privilegiado para o uso do compêndio, fazendo

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parte das tarefas que a escola reserva para o estudante fazer para além da classe. O livro escolar qualifica-se, nesse sentido, como protagonista da ‘lição de casa’. A relevância conferida ao debate sobre o papel educativo do livro tem por suposto tácito o reconhecimento de um modelo científico para sua elaboração; para sua impressão e para seu uso. Seus conteúdos e sua linguagem devem acompanhar a fase educativa atravessada pelo aluno, de acordo com a idade e o nível de desenvolvimento cognitivo para o qual ele seria destinado. Por isso, nem sempre a abstração seria um recurso adequado.

(...) pois que, na fase infantil, a inteligência do aluno não comporta a abstração do livro (...); nos primeiros tempos da escola primária elementar,o livro de ensino irá penetrando lentamente no seu seio até se tornar, na última fase, um instrumento definitivo de objetivação de idéias; nas escolas médias, o livro de ensino, o livro-compêndio, este grande cristalizador sistemático de noções terá o seu principal campo de ação; nas escolas superiores finalmente, perante alunos em pleno desenvolvimento, este apoio indispensável da memória cederá o passo ao livro-tratado, único onde o aluno pode encontrar, em toda a plenitude do seu desenvolvimento, as especialidades superiores que constituem o objeto do seu estudo (COELHO, s/d, p.221)

Em seu programa voltado para A reforma do ensino primário, datado de 1909, Augusto Coelho destacaria algumas observações acerca dos livros de ensino, subdividindo-os em livros do discípulo e livros do mestre. Esses últimos seriam explicitamente “destinados a guiar os professores na apresentação do objeto de ensino, tendo por alvo, quer ampliar e esclarecer as matérias a ensinar, quer oferecer a quem ensina a indicação dos processos de apresentação docente mais eficazes (COELHO, 1909, p.66)”. Note-se que há aqui o reconhecimento do caráter de direção que o livro escolar desempenha. Guia do mestre, será ele praticamente a estruturar o rumo e o ritmo das lições. A feição

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intelectual conferida à elaboração do livro didático é clara; embora haja a recomendação de que o livro não se institua como um substituto da voz do professor, especialmente na função pedagógica pensada para o livro do discípulo:

Em relação à sua função pedagógica – os livros de texto serão considerados, não como instrumentos destinados a iniciar a apresentação de noções novas ao aluno, apresentação que, em regra, deve ser sempre feita intuitivamente pelo professor, mas antes a por a coroa final nos resultados de tal apresentação, resumindo as noções apresentadas, auxiliando a fixação e consolidação destas na mente do aluno e favorecendo, mais tarde, a sua rememoração. (COELHO, 1909, p.66)

Há aqui o reconhecimento do caráter de direção que o livro escolar desempenha. O livro não deveria tornar-se, porém, substituto da voz do professor. Havia o temor de que a cultura impressa suplantasse a escolarização. Seria o livro didático um candidato a abolir a escola nas sociedades? Com esse receio, Coelho indica que o lugar pedagógico do livro não se deveria exceder relativamente ao papel a ele reservado: o de instrumento didático subordinado à vontade do professor. Cabe ao compêndio apenas fazer a conversão, da palavra na aula, para a lição de casa.

Quadros sinóticos: distribuição da matéria nos espaços da folha em branco

O trabalho de Augusto Coelho é minucioso ao intercalar considerações de ordem filosófica e psicológica com a materialidade de temas como o da distribuição dos livros ou as condições dos edifícios escolares e a necessidade de sua adequação para perfazer condições de higiene e de estrutura interna compatíveis com a expectativa pedagógica de freqüência e de aprendizado do coletivo dos alunos. Também os mobiliários escolares são objetos de atenção por parte desse autor; que dá a ver

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seu intuito de adequá-los à idade e à constituição física das crianças.

Augusto Coelho critica, todavia, a voga do ideário de ensino intuitivo, que, do modo como ocorria, reduzia-se – segundo ele - a um modismo, que se propunha, de maneira equivocada a “aplicar a tudo sem ciência nem consciência o mecanismo da processologia intuitiva (COELHO, s/d, p.224)”. O significado primeiro dos processos intuitivos teria sua validação, sem dúvida, na observação da natureza exterior e na perspectiva segundo a qual poderia o próprio aluno construir seu próprio conhecimento, com o auxílio do professor e da experiência advinda do ato de observar o real. Se a função do professor era substancialmente a de apresentar pela exposição oral novos conceitos e noções; se a função do livro era tida sobretudo como a cristalização das primeiras noções recebidas pelo estudante; a eficácia dos processos empíricos estaria em sua capacidade de “realizar, como auxiliares da objetivação oral, a apresentação de noções novas (COELHO, s/d, p.224)”. Porém, aos livros de ensino caberia desenvolver uma tarefa de síntese: a elaboração de esquemas que viessem a destacar as palavras-chave da respectiva lição, de modo a efetuar, por meio disso, o necessário recurso a procedimento de memorização.

Por via deles, é certo, podemos acentuar, e, portanto, consolidar noções já adquiridas; sendo, porém, as sínteses, bem elaboradas, a base de toda a rememoração de noções, a flexibilidade cristalizadora e rememorativa, por exemplo, dos quadros sinóticos no livro dão a este, em relação à função recapitulativa, importância superior aos processos empíricos. As figuras esquemáticas, as ideografias, os próprios objetos reais são, acima de tudo, admiravelmente adaptados à análise dos objetos do saber, análise que há de derivar a aquisição das noções novas acerca deles; mas a recapitulação de idéias já adquiridas, o resumo consolidado dessas idéias, sendo uma operação principalmente de caráter sintético, cabe, acima de tudo, à flexibilidade e à generalidade instrumento de ensino que caracteriza o livro-compêndio como instrumento de ensino. (COELHO, s/d, p.226-7)

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As recomendações indicadas pelo autor poderiam ser, portanto, assim sintetizadas. A linguagem falada seria o centro do processo pedagógico, tendo, porém, recursos auxiliares para proceder à eficácia no processo de ensino. O compêndio didático exerceria essa função auxiliar da linguagem falada:

(...) é um instrumento destinado a consubstanciar as noções que ao aluno cumpre consolidar, quer desenvolvendo-as para as esclarecer, quer reduzindo-as para as recapitular e fixar. Combinando-se entre si, o livro e a linguagem falada devem, pois, auxiliar-se mutuamente; e assim o objeto de ensino será oferecido ao aluno de maneira que a apresentação oral preceda, em regra, a apresentação por meio do livro de ensino (COELHO, s/d, p.228)

Do mesmo modo que o livro age como um elemento de apoio à memória e à fixação do conteúdo na mente do aluno, há íntima conexão entre as fases em que acontece oralmente a exposição da matéria e aquela em que as novas noções serão cristalizadas e desenvolvidas por meio da objetivação que o recurso do texto impresso oferece. Em relação aos processos empíricos, aconteceria o mesmo; eles se situam como subsídio pedagógico do professor e deverão se desenvolver paralelamente à exposição oral e à fixação do escrito. As gravuras do livro constituiriam, por sua vez, a representação do objeto apresentado, devendo, assim, haver correspondência clara entre o assunto sobre o qual versa a lição e a figura gráfica que ali ilustra a matéria: “na mesma página ou na página fronteira, de modo que o aluno, conforme for adquirindo as noções apresentadas no texto as vai mais facilmente esclarecendo por via dos meios ideográficos que tem à vista (COELHO, s/d, p.230-1)”.

O aluno é visto como um “receptáculo de impressões, uma consciência onde brotam sensações e se elaboram idéias e juízos e raciocínios (COELHO, s/d, p.233)”. Ministrar ensino a esse aluno requer, portanto, o ato de desenvolver-lhe as faculdades

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mentais. Instruir-se envolverá alterações no desenvolvimento intelectual. Daí o autor concluir que não há, portanto, ato educativo que possa ser separado do ato de instruir - posto que “a educação é uma resultante natural do próprio ato de instruir (COELHO, s/d, p.234)”. Para o êxito do professor no processo de instrução, haveria um requisito absolutamente necessário como condição primordial para o aluno: mobilizar, para o aprendizado, sua atenção; ou o poder intelectual de que dispõe para se propor a apreender os objetos.

Que o aluno tenha aptidões talhadas para o habilitar a rememorar e associar idéias, a formular juízos, a arquitetar raciocínios, mas que tenha uma atenção ligeira e móvel, e todos os esforços do professor serão infrutíferos para o levar a bom caminho: a atenção é uma parcela da vontade, e o querer aplicado à aquisividade de conhecimentos; por isso, é indispensável que o aluno, para nele o professor realizar qualquer aperfeiçoamento intelectual, acima de tudo queira atender (COELHO, s/d, p.234)

A atenção é aqui vista como uma força imprescindível que impele ao aprendizado e que tem íntima conexão com o poder volitivo daquele que aprende. Sua intensidade será variada “na proporção direta das dificuldades inerentes ao objeto de ensino, dependendo elas, quer da natureza intrínseca dum tal objeto, quer das condições da sua apresentação (COELHO, s/d, p.243)”. Em virtude do fato de a atenção ser um atributo com o qual o aluno precisa contar, compete ao professor disciplinar seus estudantes para que estes venham a querer ser atentos; querer, portanto, aprender. Daí também derivariam os necessários cuidados quanto a uma boa distribuição do tempo escolar, com o fito de que não se venha a exigir do aluno mais do que sua constituição física e a etapa específica de seu desenvolvimento possam permitir. Ao professor, em primeiro lugar, era suposto o estudo das

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(...) predisposições intelectuais do seu aluno, a fim de exigir dele apenas um esforço de aplicação compatível com a sua natureza e tendências;

2º Deve calcular, com o maior cuidado, o tempo que o aluno, sob a sua influência, consagra ao trabalho intelectual e, portanto, ter sempre em vista

a) Que os trabalhos escolares não devem ir além do tempo compatível com as forças de aplicação do aluno;

b) Que entre dois períodos de tempo dedicados, pelo aluno, ao trabalho escolar haja sempre um período compensador de descanso (COELHO, s/d, p.243)

A intensidade da atenção não será fixada de maneira invariável, decrescendo tanto pela persistência por muito tempo de um único objeto de conhecimento quanto pela direção simultânea da mente para um conjunto excessivamente vasto de objetos de saber. Por isso é necessário que o professor saiba apresentar pelo tempo exato a matéria de conhecimento que pretende ser conhecida por seu aluno; nem tempo a mais, nem tempo a menos.

Os modos de ensino deveriam variar de acordo com a matéria a ser trabalhada pela aula; ainda que o autor manifeste sua clara preferência pelo modo de ensino simultâneo. Alguns critérios precisariam, entretanto, ser observados:

Um modo de ensino será tanto mais eficaz quanto maior for o grau em que nele entrarem estas qualidades:

1º Pouco fatigante para o professor;

2º Mais direta a sua ação;

3º Mais compatível com o tempo de que o professor dispõe para o ensino;

4º Mais apto a estabelecer íntima solidariedade entre os alunos do mesmo grupo;

5º Mais próprio para conservar no maior grau de atividade os alunos do grupo. (COELHO, s/d, p.261)

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Organizando e sistematizando a realidade social, o registro escolar passa por “trechos selecionados” de leitura: estes, por sua vez, constituem frações do relato autorizado; do mundo que se pretende contar às crianças, com a finalidade de incutir determinados estados de espírito e de comportamento desejados pelas gerações adultas, particularmente pelas gerações adultas em posição de poder no contexto social. A escola, que periodiza a infância, periodiza também seu passado sócio-histórico. A realidade social, tal como vem registrada nos compêndios didáticos, coloca-se, assim, como a versão recomendada para compreensão.

Augusto Coelho tencionava explicitamente disciplinar o uso do livro. O estudo de seus escritos possibilitam ao estudioso da História da Educação observar os suportes textuais como estratégias de protocolos de leituras autorizadas e recomendadas para a construção de uma sociedade pautada pela cultura das letras. Produzir, escrever, distribuir, ler e divulgar o livro eram tarefas que competiam aos intelectuais: aqueles que falavam da infância para a geração adulta; aqueles que punham em perspectiva os saberes com que a escola imprimia sua marca civilizatória. Augusto Coelho revelava o livro escolar como bandeira e arma a ser empunhada para edificar a feição portuguesa da moderna civilização escolar.

Considerações finais: modos de agir em classe para ensinar com êxito

À guisa de síntese, a obra de Augusto Coelho apresenta roteiros e itinerários acerca do ato de ensinar. A própria pedagogia confunde-se, sob tal perspectiva, com um saber teórico sobre a prática de ensino – que se traveste em ações, mediante o domínio do ritual de sala de aula.

Antes de tudo, o professor não é qualquer um; é aquele que dispõe de atributos físicos (robustez para atrair simpatia dos

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alunos); atributos morais (verdadeiro homem de bem) e atributos intelectuais. Neste último caso, ele precisará apresentar “suficiente poder de observação, de retenção, de associabilidade, de indução e de dedução, pois que todos estes modos de ser da atividade intelectual – ao professor como a todo homem – são indispensáveis nos usos da vida (COELHO, 1907, p.35)”. Além de tudo isso, ele deve ter bom senso, visando ao necessário equilíbrio na vida prática. Mas, sobretudo, a tarefa pedagógica se singulariza pela sua dimensão moral: educar a vontade e conduzir o aluno a encontrar por si “as leis e as regras destinadas a conduzi-lo, quer, em geral, a respeitar os princípios de ordem, quer, em especial, a aplicar a atenção ao estudo (COELHO, 1907, p.69)”. Educar a vontade é, enfim, disciplinar. Educar significa contribuir para o aprimoramento do discípulo; e, com ele, da espécie.

Ser professor – nos termos do livro Noções de pedagogia elementar – é mediar palavras e gestos. É, sobretudo, valer-se das próprias características pessoais, com o fito de compor seu estilo de ser professor: uma maneira própria e singular mediante a qual cada um realiza, a seu modo, a ação docente (COELHO, 1907, p.61).

Quanto aos modos de agir em classe, trata-se, por um lado, de expor: apresentar aos alunos – pela via da oralidade – noções novas (COELHO, 1907, p.62). Mas talvez mais importante do que essa função aqui chamada “presentativa” seria a outra tarefa do professor: “rememorativa”. Nesse caso, o professor irá “recordar, resumir e consolidar noções já adquiridas (COELHO, 1907, p.62)”. Augusto Coelho relembra que a exposição da matéria pode recorrer à forma do diálogo; que mobilizará um conhecimento que o aluno já traz consigo. Nos termos do autor, o modo de ensino será dialogal-socrático quando vier a “apresentação do objeto de ensino, entrecortada por meio de perguntas do professor e respostas do aluno, tendo em vista despertar neste noções novas (COELHO, 1907, p.63)”.

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Enfim – apenas para rememorar - a pedagogia é “ciência que trata da educação (COELHO, 1907, p.234)”. Bebe nas outras ciências para proceder à tarefa que é só sua: organizar o conhecimento na forma do ensino. Isso requererá habilidade e destreza na comunicação do saber acumulado. Isso requererá o domínio pleno dos saberes - objeto do ensino. Mas não é só isso: é preciso também saber “limitar, caracterizar, resumir, decompor, recompor, ordenar e apresentar (COELHO, 1907, p.235)”. Por isso mesmo, a pedagogia pode ser compreendida como uma ciência de síntese, que, enquanto tal, opõe-se à dispersão de um mundo desordenado, tendente à fragmentação de múltiplas e desconectadas informações.

A ação pedagógica será, nesse sentido, teórica e prática. Os “pedagogistas” são – para Augusto Coelho - os “elaboradores especulativos (COELHO, 1907, p.235)”. Precisam, para tanto, ter visão de conjunto, espírito enciclopédico, “percepção apta a distinguir, numa dada noção, o essencial do acidental, o fundamental do acessório (COELHO, 1907, p.235)”; além das faculdades de precisão, de clareza e da tendência a ordenar o saber. Já os “aplicadores práticos” seriam os professores de sala de aula; os que efetivamente colocam em ação os preceitos da profissão. Suas características devem ser a simpatia – compreendendo nisso “lhaneza, doçura, suavidade, benevolência, afetuosidade, etc (COELHO, 1907, p.235)”. Sua suavidade e brandura teriam uma dupla dimensão: a eficácia pedagógica e o valor moral. Como o aluno tende a ser sensível a exemplos, ele admirará o professor que agir desse modo; e ele o imitará. Nesse sentido, a pedagogia é pensada como uma ciência que pretende melhorar moralmente a Humanidade. Por ser assim, seus preceitos deverão ser meticulosamente esquadrinhados. Tratava-se de um tempo em que se acreditava em tudo isso: a pedagogia tinha um caráter científico; e seu objeto - sua razão de ser - era o ensino.

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Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto é doutora em História Social pela FFLCH-USP, professora de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP e Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2. E-mail: [email protected]

Recebido em: 15/04/2009 Aceito em: 20/12/2009

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REVISTA DO ENSINO/RS E MARIA DE LOURDES GASTAL: DUAS HISTÓRIAS EM CONEXÃO

Beatriz T. Daudt Fischer

Resumo O texto nasce do depoimento de Maria de Lourdes Gastal (1912-2000), principal responsável por um verdadeiro acontecimento discursivo de meados do século XX: a Revista do Ensino/RS (1951-1978), publicação gaúcha que chegou a atingir cinqüenta mil exemplares, circulando por todo Brasil na década de sessenta. Quem de fato foi esta mulher, formada professora, porém tendo uma trajetória tomada por atividades editoriais? Que relações de poder atravessaram seu cotidiano? Como podemos articular suas iniciativas à própria história do magistério? Estas e outras questões serviram como norte desencadeador do processo de pesquisa biográfica que se desenvolve neste trabalho.

Palavras-chave: Imprensa pedagógica; memória; história da educação.

REVISTA DO ENSINO/RS AND MARIA DE LOURDES GASTAL: TWO HISTORIES AT CONNECTION

Abstract This paper arises from Maria de Lourdes Gastal’s statement, the main responsable for a genuine discursive happening that took place by the middle of the 20th century: the Revista do Ensino (Teaching Magazine) RS (1951-1978), a publication from a southern state of Brazil that reached 50 thousand copies around the country (Brazil) in the 1960s. Who was, in fact, this woman, with a teaching career, but also having her path paved with editorial activities? What sort of power relationships came through her everyday life? How can we relate her initiatives to the history of teaching? These and other issues became the guidelines to the biographical research process that is developed in this paper.

Keywords: Pedagogical press, memory, history of education.

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REVISTA DO ENSINO/RS Y MARIA DE LOURDES GASTAL: DOS HISTORIAS IN CONEXIÓN

Resumen El texto nace de las declaraciones de María de Lourdes Gastal (1912-2000), principal responsable por un verdadero acontecimiento discursivo de mediados del siglo XX: la Revista do Ensino (Revista de la Enseñanza), publicación de Río Grande do Sul que llegó a alcanzar cincuenta mil ejemplares y circuló por todo Brasil en la década de sesenta. ¿Quién fue, de hecho, esta mujer graduada como profesora, aunque con una trayectoria plagada de actividades editoriales? ¿Qué relaciones de poder se mezclaron con su cotidiano? ¿Cómo podemos articular sus iniciativas a la propia historia del magisterio? Estas y otras preguntas sirvieron como norte desencadenador del proceso de investigación biográfica que se desarrolla en este trabajo.

Palabras clave: Prensa pedagógica; memoria; historia de la educación.

REVISTA DO ENSINO/RS ET MARIA DE LOURDES GASTAL: DEUX HISTOIRES EN CONNEXION

Résumé Ce texte naît du témoignange de Maria de Lourdes Gastal (1912-2000), celle qui a été la principale responsable d’un important événement discursif de la moitié du XXème siècle: la création de la Revista do Ensino/RS (1951-1978), une publication du Rio Grande do Sul qui a atteint les cinquante mille exemplaires et qui a circulé partout au Brésil dans les années soixante. Qui a été en fait cette femme, professeur qui a eu une trajectoire vouée aux activités éditoriales ? Quelles relations de pouvoir ont traversé sa vie quotidienne? Comment peut-on mettre ses initiatives en rapport avec l’histoire même de l’enseignement? Ces questions, parmi d’autres, ont servi comme déclencheurs du processus de recherche biographique développée dans ce travail.

Mots-clés: Presse pédagogique; mémoire; histoire de l’éducation.

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Gosto muito de música francesa. Tenho um desgosto tão grande: tive - não sei bem se foi quatro ou cinco - avós que nasceram em Paris. Por que eu não nasci em Paris, mon Dieu? Vim nascer na Rua da Margem...

Com essas palavras inicia o depoimento de Maria de Lourdes Gastal, mulher e professora, nascida em Porto Alegre nos idos de 1912. Fundadora e principal responsável por um verdadeiro acontecimento discursivo de meados do século XX: a Revista do Ensino RS (1951-1978)1. Em meio a suas recordações, lembrando os saudosos tempos da Revista, ela vai, sutilmente, enfileirando outras histórias. Mistura tempos, confunde nomes e datas, e aproveita para incluir também seus lamentos, comparando a situação em que hoje ela se encontra com seus prazeres de outrora: “Tempo bom, Deus do céu! Eu fui rainha de... rainha da primavera do Jocotó (clube social então existente em Porto Alegre). Tem um retrato aí. Tudo são saudades. Tudo são lembranças...”. Na caixa de papéis e outros guardados, muitas fotografias, uma delas mostra uma bela moça, de estatura além da média, vestida elegantemente, manteaux e chapéu denunciando uma tarde de inverno porto-alegrense.

Diante da importância que representou a Revista do Ensino no cenário brasileiro – um dispositivo de normalização e regramento de professoras, a partir de estratégias simultâneas de controle e louvor à resignação (FISCHER, 2005) - considerei pertinente ir ao encontro daquela que teria sido a mentora e desencadeadora mestra desse autêntico monumento editorial. Era preciso, pois, conhecer esta mulher, sua personalidade e crenças, bem como verificar se, através de suas lembranças, apareceriam forças que lhe deram suporte para levar em frente aquela empreitada. Para poder chegar até Maria de Lourdes Gastal fui demarcando o terreno, juntando informações que me permitissem

1 Sobre a Revista do Ensino/RS, ver BASTOS (1997).

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traçar o mapa que me levasse ao tesouro. Quando, enfim, deparei-me com essa mulher, vivi horas de muita emoção. E, ainda que ali estivesse um corpo vergado, carregando o peso de seus 86 anos, ainda que ali se esboçasse um sorriso amargo, escondendo a falta dos dentes, estava diante de mim, sem dúvida, um ser que se impunha por sua presença. Daqueles que jamais passam despercebidos por onde andam, especialmente quando começam a falar.

Aqui, pois, desdobram-se considerações a partir do depoimento de Maria de Lourdes Gastal. Suas memórias pessoais em parte se confundem com a própria história da Revista do Ensino, publicação gaúcha que chegou a atingir cinqüenta mil exemplares, circulando por todo Brasil na década de sessenta. Lembrando os saudosos tempos, dona Maria vai sutilmente enfileirando outras histórias, contando acerca de sua vida, aparentemente uma pessoa medíocre, porém de fato evidenciando práticas de mulher poderosa. Na medida em que a narrativa se desdobra, é possível relacionar o êxito da Revista que dirigia com esta personalidade que ali se revela: inteligência e criatividade, energia e determinação, elementos propulsores para a concretização de práticas que se impuseram por décadas.

Maria, aquela fortaleza dos anos cinqüenta e sessenta, aquela mulher determinada, que enfrentara autoridades proclamando seus ideais através de um importante espaço na imprensa pedagógica, estava ali, rodeada por alguns poucos pertences em seu quarto-e-sala na geriatria: estaria ali também simbolizado o sintoma de decadência do próprio magistério do nível elementar, que ela tanto defendeu em outros tempos? Quem de fato foi esta mulher, formada professora, porém tendo uma trajetória tomada por tarefas jornalísticas? Que relações de poder atravessaram seu cotidiano? Até que ponto suas iniciativas junto à Revista do Ensino atravessam a própria história do magistério? Estas e outras questões serviram como norte desencadeador do processo de pesquisa que se desenvolve neste trabalho. Entretanto,

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querer abarcar a história de toda uma vida, a partir de alguns fragmentos, é tarefa vã. Uma biografia – assim como a identidade - sempre será similar a um jogo de quebra-cabeça, ao qual faltam algumas peças e, por mais que se queira dar o formato final, nunca se chegará a completá-lo integralmente. Este exercício, que tem alguns aportes de dimensão biográfica, é resultado de um processo investigativo que coletou narrativas não só junto à Maria de Lourdes Gastal, mas também ouviu colegas que com ela compartilharam o trabalho nos bastidores da Revista. Além disso, uma leitura dos enunciados recorrentes naquele periódico, sob lentes foucaultianas, serviram como pano de fundo para melhor compreensão do contexto da época. Mais especificamente, aqui o processo de análise centra-se na articulação entre as memórias de Maria Gastal e particularidades da Revista da qual foi mentora. Nesta perspectiva, metodologicamente, em lugar de uma dimensão seqüencial historiográfica, fruto da ilusão da identidade única, apresenta-se a possibilidade de escrever sobre a personagem sem a imposição de cronologias e fechamentos.

Maria, mulher forte, que tantas vezes no passado assumira a palavra em ocasiões decisivas (“ela gostava disso”, diz Júlia, que trabalhou diretamente com ela na editoração da Revista do Ensino) continuava de fato ali. Agora, porém, junto com ela, seus queixumes: “Estou resumida a isso”, diz apontando para seu quarto-e-sala na geriatria. Sem abandonar regras e valores preservados desde a mocidade (“o mal do mundo atual é as mães não serem mais rigorosas com as filhas”), ela acrescentou nestes últimos anos algumas manias e cultivou secretos amores, como sua imensa paixão por Plácido Domingos: “Este dorme comigo todas as noites”, diz apertando contra o peito uma foto do artista na capa do disco long-play. Por alguma razão, entretanto, minha entrevistada punha-se a divagar. De quando em quando, interrompia a si mesma para voltar a me perguntar: “Mas por que mesmo tu queres saber da Revista?”. Escolhia eu, então, outras palavras para lhe explicar as razões que me faziam chegar até ela.

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Assim, aos poucos, Dona Maria iniciou sua viagem ao passado, com frases espaçadas por intervalos silenciosos, seguidos da expressão: “Jesus, clareia minha cabeça!” E, de repente, voltava a recordar detalhes, utilizando um palavreado por vezes quase literário.

Está ali uma típica representante das professoras daquela época e, como as demais, ela hoje ainda se minimiza: “Eu hoje considero que eu fui uma péssima professora. É o que eu sinto pelo que eu sei hoje. Eu não consegui ser boa em nada. Bem boa, fabulosa, extraordinária, não consegui. Eu quis aprender piano, não consegui. Fui até um certo ponto. Ainda tenho as minhas partituras aí. Eu quis aprender canto, a minha garganta falhou por completo...”. Como as demais, ela recorda quão restritos eram seus espaços: “Eu não tinha quase o que fazer porque voltava do trabalho, ficava com a mamãe. Então, [ouvia] uma novelinha pelo rádio...”. E também, como as demais mulheres de seu tempo, revela costumes caracterizados pela fiel obediência: “Minha mãe estava já velhinha, não podia quase andar... Era bastante impertinente, rigorosa comigo, graças a Deus!”

E, de ponto em ponto, vai ali se traçando um texto que, com vagar, chega aos primórdios da Revista do Ensino:

Nós éramos muito amigos do José Bertaso, irmão do seu Henrique Bertaso, que era o cabeça maior da editora [Globo]. E eu vivia, fora do trabalho, eu vivia em casa.... E comecei a escrever coisas para os meus alunos. Foi indo, foi indo e eu achei que já tinha bastante matéria escrita. Fui lá na Livraria do Globo, falei com o José, com quem eu tinha intimidade de conversar. Perguntei: José, há possibilidade de vocês... – até me lembro que eu falei a palavra imprimirem, eu não conhecia, naquele tempo editar, era imprimir – um trabalhinho que eu fiz para os meus alunos, mas que eu acho pode servir para os alunos de outras, também? E ele me disse: Traz, eu entrego pro Henrique, que ele que é encarregado disso. Eu fiz. E acabei imprimindo, publicando, vinte e oito livros. Venderam bem, muito bem até em Portugal. E o mesmo aconteceu depois com a Revista do Ensino.

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Portugal ainda tinha, não sei se ainda tem, umas colônias na China. E as professoras portuguesas mandavam pras colegas chinesas. E a Revista também, andou pelo mundo todo.

De fato, tais informações podem ser hoje perfeitamente comprovadas: através de sites de busca da internet, mais especificamente ao inserir o nome de Maria de Loudes Gastal, imediatamente é possível serem localizados livros de sua autoria, escritos em meados do século XX e posteriormente reeditados (http://produto.mercadolivre.com.br)2. Também há veracidade sobre o que refere da propagação da Revista, embora faça confusão entre África e China. Veja o que se diz em setembro de 1961:

Hoje é mais do que uma publicação nacional, pois permuta com revistas pedagógicas de vários países, contando com assinaturas na América do Norte (Flórida, Washington), América do Sul (Argentina, Uruguai, Chile, Perú e Colômbia). América Central (México); na Europa (Portugal, Itália, Espanha, Alemanha e França); África Portuguesa (Moçambique) (p. 8).

Pergunto-lhe como tem início a Revista do Ensino? Após alguns segundos de silêncio, ela reage, narrando:

Eu comprava revistas estrangeiras de educação... comecei a pensar: Mas meu Deus, nós podíamos ter uma revista! Pequena... [...] E, um dia fui lá na editora Globo [falar com o diretor]: O senhor estaria disposto a editar uma revista de educação para professores primários?

2 Entre suas produções, destacam-se diversos livros didáticos, alguns com repetidas edições: Dedé, José, Tião: cartilha. São Paulo, Editora FTD, 1967; Exercícios de Gramática para o 4º ano. Porto Alegre, Editora Selbach, 21ª edição, s/d.; Três Estórias. São Paulo, Editora FTD, s/d; Prosa e Verso. Editora FTD, São Paulo, s/d; Estudos Sociais e Naturais 4º e 5ºano, São Paulo, Editora FTD, 1970.

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Aqui a história comprova ser feita um pouco por acaso e outro tanto porque forças dominantes no mínimo não interpõem obstáculos. Se a referida Revista não tivesse se caracterizado de certo modo – se não tivesse sido o que foi, e tivesse portado textos de Brecht em vez das orações de Gabriela Mistral – não teria frutificado. Ela germinou com tal vigor justamente porque, no solo em que implantou determinados enunciados, encontrou guarida, por décadas.

O depoimento de Maria Gastal revela também o enfrentamento de várias adversidades, não só no plano financeiro, mas também no que se refere à linha editorial. Neste sentido, algumas divergências surgiram, especialmente a partir de 1956, quando o Centro de Pesquisa e Orientação Educacional - órgão então poderoso e influente da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul3 - fica responsável pela supervisão técnico-pedagógica da Revista: “Ele [o CPOE] se metia um pouquinho. Elas [professoras integrantes do Centro] mandando artigos que, na maior parte das vezes, eu concordava em publicar porque eu também não podia ser a única a decidir”. Verifica-se aí certa diplomacia por parte de Dona Maria, o que me faz insistir no tema, buscando saber até que ponto chegava sua autonomia, não só quanto a decisões de ordem administrativa, mas também no que se referia à linha editorial que norteava a Revista do Ensino. Dona Maria reage: “Nunca recebi ninguém mandado por A, B ou C. Não sei se o pessoal me respeitava... Mas nunca aconteceu isso. Eu era a diretora. Quem andou me incomodando um pouquinho foi o CPOE. Que elas queriam mandar. Mas, depois, elas viram que estavam lidando com a filha da Julieta Batista de Oliveira! [riso] Se acalmaram”.

Ao entrevistar Dona Maria, eu – ciente do enorme poder de penetração que a Revista veio a ter, e encontrando na

3 Sobre o Centro de Pesquisas e Orientação Educacional/CPOE, ver Quadros (2007).

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contracapa da edição de agosto de 61 a reprodução de um telegrama do Presidente Jânio Quadros (“ajudarei essa publicação em tudo que esteja meu alcance”) – pergunto: não teria havido interesses políticos, por parte de pessoas ou partidos, com intenção de tirar proveito do sucesso do periódico? A resposta de Maria irrompe com energia:

Teve. Teve o senhor Brizola. Ele, num dos tempos que ele foi governador, ele mandou me chamar e me perguntou qual era a maior quantidade de revista que eu podia oferecer a ele. Eu disse: Seu fulano, Doutor fulano..., não me lembro mais como é que eu o tratava. Eu nunca gostei dele. E digo: O senhor é o dono da revista! Diga o que que o senhor quer. Disse: Ah, eu quero mandar distribuir no Rio de Janeiro. Mas distribuir, assim, pro povo. De cima do caminhão, jogar pro povo.[Pequeno espaço de tempo em silêncio na gravação] Eu tive vontade de dizer pra ele que não! Mas era o governador do Estado. Ele me tratava, sempre, muito bem. Ele até andou querendo me conquistar! Mas eu tinha que respeitar como governador que era, né? Mandei as revistas. Não me lembro mais quantas. Eu tenho, acho que ainda tenho um exemplar aí, cheio de carimbos com tinta vermelha. Uns carimbões grandes pra propaganda dele.

E, com certa dificuldade, vai levantando da cadeira determinada a encontrar aquele tal fascículo: “Deixa eu ver se está aqui. Ele era governador, candidato à presidência da República”. Então, sem dar-se conta de que em sua memória os fatos da história se misturam (em final de 62, Brizola é candidato a deputado federal), passa-me a tal revista, uma das únicas que ainda guarda como se pretendesse um dia, quem sabe, mostrar para alguém provando tal acontecimento.

Raras são as vezes em que Dona Maria se autoriza a falar em política, ainda que, indiretamente sua fala vagueie pelo tema. O conjunto de dados, porém, permite-me classificá-la numa linha de tendência conservadora. Para isso valho-me de fotos coladas nas paredes de seu minúsculo quarto-e-sala, ou de frases dispersas, que

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vai aqui e ali pronunciando. Em relação ao Presidente da República diz: “sou totalmente apaixonada por este homem”. E complementa: “Se o Fernando Henrique [Cardoso] precisasse que eu fosse para a praça, falar bem dele, ah, não tenha dúvida, eu iria!”. Faz também algumas referências a Fernando Collor: “Eu achava que, como político, ele podia ser bom, mas em seguida me decepcionou”. E, entre as lembranças mais remotas, destaca o Secretário de Educação do primeiro governo de Ildo Meneguetti: “Como eu senti a morte do Doutor Liberato [Vieira da Cunha]!”. Estes e outros comentários paralelos fornecem conteúdo suficiente para referendar a posição em que a inscrevo, do ponto de vista ideológico. Não bastassem todos esses explícitos pronunciamentos, uma breve ironia acerca de Luis Inácio Lula da Silva veio confirmar suas preferências. Somente um nome integrando a ala da direita não mereceria jamais seu apoio. Trata-se do Coronel Mauro da Costa Rodrigues, Secretário de Educação no Rio Grande do Sul nos idos de 70. A razão disso está diretamente relacionada à desconsideração e menosprezo que ele teve com a Revista do Ensino. O fato a marcou sobremaneira, a tal ponto que, ao recordar aquele episódio, se enche de indignação e se transfigura, dizendo: “Tu soubeste o que fizeram com tudo que era da revista? O coronel Mauro destruiu tudo! Botou fora! A biblioteca que nós tínhamos, de fazer inveja a muita escola. Infelizmente... Ele não podia [ter feito isso]. Se eu estivesse lá, ele tinha levado – tu desculpa, mas eu vou dizer – eu tinha lhe dado uns pontapés na bunda que [ele] estaria correndo até hoje!”. E, após alguns segundos de silêncio, como se estivesse refletindo no que poderia dizer, dá vazão a sua perspicácia e espirituosidade, exclamando: “E deixaram esse homem voltar pro Rio de Janeiro sem antes pegar uns dias lá no Carandiru! Porque era lá que ele merecia estar!”4.

4 Maiores informações sobre a gestão do Cel. Mauro da Costa Rodrigues é possível encontrar na pesquisa desenvolvida por DUTRA (2006).

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O que mais impressiona ao longo do depoimento de Dona Maria é que não há verbalização explícita referindo crença ou opção religiosa: palavra alguma sobre igreja ou catolicismo. Mas se ali não consigo ouvir aqueles ditos, tão escandalosamente presentes nas páginas da Revista do Ensino, não é porque eles ali não existam. Estão todos lá, seja nas frases entrecortadas, seja nas imagens de Nossa Senhora espalhadas pelo quarto, ou nos santinhos e preces que marcam as páginas de seu caderninho de anotações, orgulhosamente a mim apresentado. Eis aí, precisamente, a comprovação do mesmo fato que envolve a própria história da Revista do Ensino, da forma como ela se gerou e da forma como ela se impôs: não há um sujeito determinante que fala, uma consciência que reflete e conduz. Há práticas e, através delas, enunciados que se materializam. Não que não existam sujeitos individuais, empíricos. É que eles se constituem no interior dos discursos. Perguntada sobre sua filiação religiosa, Maria prontamente responde: “Católica relaxada”. Insisto, então, em saber por que tantos textos na Revista do Ensino carregam aquele fundo moral, religioso e católico, esperando que ela apresente uma justificativa lógica convincente. Mas, como ocorrera em outros momentos dessa pesquisa, desmontavam diante de mim as ilusões formais que me dariam as tradicionais garantias para chegar a causas e efeitos. Dona Maria simplesmente diz: “[A equipe] era de professoras de diferenças religiosas. Inclusive tínhamos a Esther que era judia... Bem, pendia mais pro catolicismo porque a maioria da equipe era de pessoas da igreja católica”.

Na verdade pendia para o catolicismo todo o universo em que se vivia em meados do século XX, em especial nas instâncias educativas. Não só na Revista do Ensino, também nas escolas e na sociedade em geral, conforme pode ser comprovado em outras pesquisas envolvendo tal recorte temporal, entendendo-se por catolicismo um conjunto de práticas religiosas autoritárias,

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controladoras da ordem e dos costumes. Ou se quisermos, à luz de Foucault (2002), um contexto de normalização.

Mas, se ao mesmo tempo, é impossível eliminar o nome de Maria de Lourdes Gastal de todo esta dimensão conservadora, paradoxalmente também é ela a mulher forte e impetuosa que leva em frente a possibilidade do periódico continuar persistindo mesmo em momentos economicamente difíceis. E mesmo que, através de sua narrativa, a história de vida revele circunstâncias pessoais difíceis (em determinada época, uma paixão repentina a faz deixar tudo e ir morar em São Paulo; alguns meses depois retorna “só com uma mala e meu gato”), mesmo assim nunca deixou de lutar em prol do que acreditava.

Sem dúvida, a história de Maria de Lourdes Gastal se confunde com a própria história desta Revista, que tanto influenciou o magistério em meados do século XX. “Sem a Revista do Ensino, eu sou nada na sala de aula” (palavras de uma professora nordestina, referindo-se à Revista do Ensino, num encontro de professores primários, em Goiânia, em 1962). A frase da professora, nos idos dos anos 60, certamente diz muito do período analisado nesta pesquisa, e em que aspectos ele se diferencia dos tempos atuais. Basta que se pense, por exemplo, no quanto hoje estamos imersos num mar de informações, via rádio, televisão, revistas e jornais, além de inúmeras formas menores de impressos que chegam cotidianamente até as nossas mãos; sem falar nas múltiplas possibilidades intercontinentais da comunicação informatizada. Mas na década de cinquenta, como chegavam as notícias até a casa de uma professora? Como ela poderia ficar sabendo das últimas? Obviamente, a escola era um centro de irradiação onde novidades se multiplicavam. Era de lá que ela trazia, e para lá também ela levava informações sobre o que se passava no mundo então acessado pelos limitados meios de comunicação existentes. Mas como ficava, então, a necessidade de atualização nos assuntos didáticos, tão importantes para seu dia a dia? O único recurso, pois, limitava-se a uma simples revista,

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aguardada com grande expectativa a cada mês do ano letivo: a Revista do Ensino. Segundo contam algumas professoras entrevistadas em outra pesquisa (FISCHER, 2005), este periódico vinha preencher um lacuna inestimável na vida das professoras de então, quase sempre queixosas do excesso de teoria em sua formação pedagógica – “a gente não tinha prática nenhuma!” (diz uma professora) – e da carência de sugestões sobre como atuar efetivamente na sala de aula: “Ah, eu adorava a Revista do Ensino! Ela era, assim, mais ou menos, um caderno de cabeceira da gente. Era uma revista cobiçada pelo professor!” (outra depoente).

Impossível, pois, tratar de magistério dos anos cinqüenta e sessenta do século XX sem fazer referência, obrigatoriamente, à Revista do Ensino. Sem dúvida alguma, ela ocupa lugar de destaque entre os meios que ajudaram a constituir esta professora de que aqui se fala. Conforme já fiz menção, aos jovens de hoje talvez seja difícil conceber o cotidiano daquela época, quando não se tinha acesso ao mundo com as facilidades de comunicação tão comuns nos dias atuais. De fato, ser assinante de uma revista naquela época era tão ou mais importante do que hoje receber as imagens virtuais através da TV a cabo, por exemplo, ou mesmo acessar diariamente a internet. Nesse sentido é que se pode compreender por que aquela Revista era aguardada com tal ansiedade, e por que ainda hoje conserva um lugar especial nas lembranças das velhas professoras: “Ah, eu assinei logo. Porque ali eu aprendi. Era a melhor revista do país!” (afirma outra professora depoente).

Mas retornando à Maria de Lourdes Gastal, vejamos alguns recortes que dizem sobre ela e seus discursos: “Grandes sonhos” – esse o título do primeiro editorial da Revista do Ensino, assinado por ela como diretora, fundadora e mentora principal. Ali, na primeira página, concretizava-se o sonho esboçado a partir de reflexões esporádicas de um moça professora, que “não tinha quase o que fazer, porque voltava do trabalho, ficava com a

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mamãe...e uma novelinha pelo rádio...”. Surge, assim, timidamente, a idéia de editar uma revista para o magistério primário, a qual em seguida passará a fazer parte integrante do cotidiano da imensa maioria do professorado gaúcho e, posteriormente alastrando-se mais além. É setembro de 1951 e, por muito tempo ainda se festejará a existência deste “veículo de ensino”, que “vai levar, por todos os recantos de nosso solo, sua mensagem de verdadeira fraternidade àqueles que se dedicam à elevada missão de educar!”. O sonho de Maria, lançando estas “despretensiosas páginas [...] não almejando [...] uma auréola de glória, mas um amplo e real benefício coletivo” (Revista do Ensino, set/51, p.2), torna-se efetivamente uma realidade concreta. Buscando atingir principalmente “o professor que mais precisava, o professor das primeiras letras, como ela dizia” (diz Júlia, referindo-se à “Dona Maria”, com quem trabalhou diretamente, como redatora e secretária), a Revista passa a circular pelos diversos estados brasileiros, chegando até as escolinhas mais distantes.

Ainda que a Revista do Ensino obtivesse grande sucesso, em vários momentos enfrentou crises financeiras, necessitando de estratégias criativas e políticas para sobreviver e, na medida do possível, manter a periodicidade. Inúmeras são as vezes em que Maria Gastal vem a público para justificar atrasos na circulação; numa delas, inclusive, ela inicia com a seguinte expressão: “Mais uma vez, me desculpem”, tentando explicar aos assinantes as razões dos problemas, sempre relacionados “à situação precária das finanças de nosso Estado” (Revista do Ensino, out/63, p.76). Em seu berço, a Revista tem os auspícios da Editora da Livraria do Globo, a qual, porém, “em determinado momento, considerou que a comercialização não pagava o investimento que se fazia e, então, abrimos mão”, diz o Sr. Bertaso (diretor da Livraria do Globo, em resposta a perguntas que lhe fiz num diálogo telefônico). Entre outras colocações, ele reiterou o papel decisivo de Maria Gastal,

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naquela época, para o sucesso do empreendimento, afirmando mais de uma vez que “seu trabalho foi pioneiro e de grande valia”.

Por poucos meses, então, a própria Maria de Lourdes Gastal tenta assumir particularmente as responsabilidades e encargos financeiros, valendo-se para isso das verbas de assinaturas e algumas raras matérias publicitárias. Mas, logo em seguida, inicia tratativas junto ao Governo do Estado e, em dezembro de 1956, a RE passa a se constituir como uma publicação oficial da Secretária de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, sob a supervisão técnica do CPOE.

Em dezembro de 1955, no II Congresso Nacional de Professores Primários, realizado em Belo Horizonte, espalha-se a notícia das dificuldades financeiras por que passa a RE. Os participantes, então, diante da iminência de o professorado não mais contar com “uma publicação do mais alto padrão” e de “encontrar-se o país em risco de ser privado de tão excelente instrumento de progresso pedagógico e intercâmbio gremial”, resolvem fazer uma longa moção, congratulando-se com o Governo gaúcho que “examina no momento a possibilidade de encampá-la, garantindo assim sua sobrevivência” (Revista do Ensino, mar/56, p.5).

Independente dessas alterações permanece a mesma linha editorial assumida desde o início. Tanto que, em determinado momento, Anísio Teixeira comenta: “A Revista do Ensino era particular e hoje é publicada pelo Estado. Não se sente nenhuma diferença. Pública ela era antes, embora editada pela Livraria do Globo, e pública é hoje, embora editada pelo Estado. O público no Rio Grande do Sul não é o oficial, mas o que visa ao público, o que serve ao público...” (Revista do Ensino, maio/57, p. 2).

Nesta perspectiva, é interessante trazer à tona, outro trecho entre seus discursos:

Esta Revista não tem por objetivo defender interesses da classe a que se destina. Esta Revista tem por princípio não tocar em política. Esta revista, entretanto, não pode

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ficar indiferente a uma situação clamorosa e que ofende aos mais elementares princípios da humanidade e de democracia. O que pode esperar do futuro um país onde Professôres Primários não percebem o necessário para viver decentemente, para alimentar-se razoavelmente, para estudar o essencial ao desempenho de sua missão? [...] Apenas queremos desta modesta janelinha de Professora Primária, fazer um apelo aos eminentes brasileiros que governam o país, no sentido de que façam cumprir a lei do salário mínimo – ao menos isso! – nos estados onde Professôres passam privações... (Revista do Ensino, maio/62, p.92).

Com essas palavras Maria de Lourdes Gastal, num dos seus tradicionais editoriais em forma de conversa com as leitoras, revela seu jeito de dizer, e de certa forma, de conseguir levar em frente o projeto da Revista sob sua direção. Sem grandes enfrentamentos com o poder maior, ela tentava aqui e ali, chamar atenção sobre as condições do magistério, mas sem jamais ultrapassar seus próprios princípios conservadores. Maria foi uma empreendedora. Como professora, praticamente só atuou nos dois anos iniciais, logo após sua formatura (“Me formei na Escola Complementar e recebi o diploma no palco do Teatro São Pedro”). Mas soube muito bem trabalhar em benefício da educação. Em sua vida, entretanto, não logrou muitos louros, apenas aqui e ali alguma homenagem em datas redondas dos aniversários da Revista.

No final de seus anos, hospedada numa geriatria na Cidade Baixa, um bairro portoalegrense, esteve basicamente sustentada por seu salário de professora aposentada. Sem filhos, apenas alguns sobrinhos responsabilizaram-se por ela. Lastimavelmente terminou sua trajetória de forma anônima, sem que o magistério, e a comunidade em geral, reconhecesse seus méritos na, sem dúvida, dedicada atuação como colaboradora da história do magistério. Depois que a conheci, eu lhe fazia visitas de quando em quando, levando-lhe caixas de sorvete, um dos seus maiores prazeres nos últimos tempos. Inesquecível seus gesto de

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contentamento diante da variedade de sabores que a tecnologia atual permitia lhe oferecer. Numa manhã de verão do ano 2000, quando decido levar minha filha para compartilhar de mais um momento com Dona Maria de Lourdes, sou informada na porta da geriatria que ela está hospitalizada. Dirijo-me imediatamente para lá. Já não consigo revê-la consciente, e o mesmo ocorre por mais duas visitas. Mesmo assim, a cada vez pego suas mãos e rezo com ela, sem saber ao certo se me ouve. Parece que sim. Falo com ela relembrando sobre os feitos da Revista porque penso que, desse jeito, posso lhe dar ainda alguma alegria. Na manhã de 10 de janeiro, ligo para o hospital para saber notícias e sou informada que ela acabara de falecer.

Ao encerrar gostaria de insistir: querer abarcar a história de toda uma vida, a partir de alguns fragmentos, é tarefa vã. Uma biografia – assim como a identidade - sempre será similar a um jogo de quebra-cabeça, ao qual faltam algumas peças e, por mais que se queira dar o formato final, nunca se chegará a completá-lo integralmente (FISCHER, 2006). Nesta perspectiva até mesmo Pierre Bordieu (1996) já havia alertado acerca de que um relato coerente, com uma seqüência lógica de acontecimentos, pode nos ludibriar, passando uma idéia de utópica completude. Também Bachelard (1988) mais de uma vez enfatiza que, por ser a subjetividade constituída de multiplicidades de instantes, torna-se impossível querer retê-la em forma de totalidade. Por isso, não pretendi discorrer sobre a vida de Maria de Lourdes Gastal, como num clássico processo biográfico. O que quis foi relacionar fragmentos de sua trajetória com possíveis conexões aos enunciados desdobrados na Revista de Ensino – dedicação maior da vida dessa mulher e professora. E, por que não confessar, o que pretendi também, indiretamente, foi compartilhar com as novas gerações um pedaço da história da educação que aí se atravessa e que não se pode olvidar.

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QUADROS, Claudemir. Reforma, ciência e profissionalização da educação: o Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais do Rio Grande do Sul, Tese de doutoramento. PPGEDU/UFRGS, Porto Alegre, 2007.

Beatriz T. Daudt Fischer é professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

Recebido em: 20/03/2009 Aceito em: 20/12/2009

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SOBRE COISAS DE OUTROS TEMPOS: RASTROS BIOGRÁFICOS NAS CRÔNICAS DE CECÍLIA

MEIRELES NA “PÁGINA DE EDUCAÇÃO”1 Ana Chrystina Venancio Mignot

Resumo Adentrar pela urdidura narrativa da crônica “A escola atraente” permite discutir a relação entre objetos escolares e memória e, ao mesmo tempo, examinar o papel desempenhado por Cecília Meireles no debate educacional dos anos 30, do século passado, debate este marcado por uma nova sensibilidade pela infância e que conferiu identidade a uma geração de intelectuais que apostou na constituição do campo educacional. Investigar o horizonte de intervenção da cronista permitiu uma aproximação com um ângulo menos estudado da biografia intelectual da poeta, jornalista e educadora.

Palavras-chave: Cecília Meireles; Escola Nova; biografia; cultura material da escola.

ABOUT THINGS FROM OTHER TIMES: BIOGRAPHIC TRACES OF CECILIA MEIRELES’ STORIES IN THE

“EDUCATION PAGE” Abstract The plot of the story “A escola atraente” (The attractive school) opens a discussion about the relation between school objects and memory and, at the same time, reveals the role played by Cecilia Meireles in the education debates of the 1930’s, which were marked by a new understanding of childhood by a whole generation of intellectuals that had placed their bets in the constitution of the education field. The investigation of Meireles' range of intervention resulted in approaching a less known aspect of her intellectual biography as a poet, journalist and education scholar.

Keywords: Cecilia Meireles; New School; biography; school material culture.

1 Texto apresentado no 14º Encontro Sul-Riograndense de História da Educação, sobre “Cultura Material Escolar: memórias e identidades”, de 27 a 29 de outubro de 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, em mesa-redonda coordenada por Maria Stephanou, da qual participaram, também, Cláudia Alves e Lúcio Kreutz.

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SOBRE COSAS DE OTROS TIEMPOS: RASTROS BIOGRÁFICOS EN LAS CRÓNICAS DE CECÍLIA MEIRELES EN LA “PÁGINA DE EDUCACIÓN”

Resumen Adentrar por la urdidura narrativa de la crónica “La escuela atractiva” permite discutir la relación entre objetos escolares y memoria y, al mismo tiempo, examinar el rol de Cecília Meireles en el debate educacional de los años 30, del siglo pasado, debate que estuvo marcado por una nueva sensibilidad hacia la infancia y que confirió identidad a una generación de intelectuales que apostó por la constitución del campo educacional. Investigar el horizonte de intervención de la cronista permitió un acercamiento con un ángulo menos estudiado de la biografía intelectual de la poetisa, periodista y educadora.

Palabras clave: Cecília Meireles; Escuela Nueva; biografía; cultura material de la escuela.

SUR DES CHOSES D’ANTAN: DES EMPREINTES BIOGRAPHIQUES DANS LES CRONIQUES DE

CECILIA MEIRELES DANS “PÁGINA DE EDUCAÇÃO” Résumé Pénétrer dans la structure narrative de la cronique “A escola atraente” (L’école attirante) permet de discuter la relation entre les objets scolaires et la mémoire et d’examiner à la fois le rôle joué par Cecília Meireles dans le débat éducationnel des années 30 du siècle dernier. Ce débat a été marqué par une sensibilité nouvelle par rapport à l’enfance et il a conféré de l’identité à une génération d’intellectuels qui a cru à la constitution du champ éducationnel. L’investigation de l’horizon d’intervention de l’écrivain a permis l’approche d’un côté moins étudié de la biographie intellectuelle de cette éducatrice, poète et journaliste.

Mots-clés: Cecília Meireles; Nouvelle École; biographie; culture matérielle de l’école.

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Fala-se na escola attrahente para a criança. Que e preciso um ambiente agradável suggestivo rico de inspirações para a infância: accrescente-se que é preciso um ambiente assim, também, para os professores.

Tem-se pensado que o mobiliário feio as paredes sujas, os enfeites fora da moda exercem acção perniciosa sobre as crianças; é preciso não perder de vista a impressão que causa aos professores o mesmo scenario, para o seu trabalho de todos os dias.

Diz-se que a escola triste e aggressiva afasta os alumnos torna-os vadios, mostra-lhes em contraste, a belleza das ruas cobertas de sol, enfeitadas de arvores, onde a liberdade dos passaros canta a sua alegria.

Quantos professores, ainda hoje, não irão à escola sob o peso, a actuação do dever duro e sombrio como uma condemnação?

Deixam a sua casa florida, alegre, clara, onde a vida também canta, seductoramente. Encontram a escola com o conjunto das suas hostilidades: o relógio feroz que não perdoa os atrazos do bonde; o livro do ponto ferocíssimo, com a sua antipathica roupagem de percalina preta e a sua sinistra, numeração, pela pagina abaixo... De toda a parte surgem objectos detestáveis: reguas, globos poeirentos, borrachas revestidas de madeira, tympanos, vidros de gomma arábica, todas essas coisas hediondas que se convencionou fazerem parte integrante da physionomia da escola, e que são acreditadas indispensaveis e insubstituiveis. Coisas mortas. Coisas de outros tempos. Coisas que se usaram nas escolas de nossos avós e de nossos paes. Não se pode pensar em familiaridade em proximidade infantil em vida nova, em educação moderna no meio dessa quantidade de mata-borrões, de mappas com demarcações archaicas, de balanças que não funccionam, de moringas, de gargalo quebrado, de caixinhas de sabonete para guardar giz e das coisinhas armadas nas taboinhas dos armários chamados museus, nas quaes não se pode bolir para não estragar, e que têm um rotulozinho em cima, tal qual os vidros de remédio.

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Vamos pôr fora todas essas coisas velhas? Vamos ordenar uma limpeza geral nas escolas, ainda que fiquem apenas com os bancos para as crianças se sentarem?

O que for sendo preciso irá surgindo, pouco a pouco, das mãos das crianças e dos professores conjuntamente. Ir-se-á povoando a escola não com essas coisas detestáveis que ahi estão, mas com pequenos objectos feitos com carinho, com esse carinho que embelleza e enriquece tudo.

Muitas professoras não teriam na sua casa, com certeza, uma velha moringa dessas que habitam, infallivelmente, as janellas das salas de aula. Não quereriam na sua casa, nem na cozinha da sua casa, semelhante caco. Mas tem-no na escola. É a escola... Mas, então, que é a escola? E que affronta é essa á sensibilidade de centenas de crianças?

A moringa é apenas um exemplo.

Algumas professoras vão com desgosto à escola, dizíamos. Por que não modificam elas esse ambiente que as desagrada? Perguntareis.

Porque acima da sua vontade estão accumuladas muitas rotinas de outras vontades. Porque, algumas vezes, a manifestação de um natural bom gosto, de uma cultura mais apurada, servem de base a ridículas insinuações, e a critica mordazes.

Porque ainda não temos um meio homogêneo, mesmo dentro dos limites do magistério.

Porque ainda não temos, infelizmente, uma totalidade de professores capaz de agir simultânea e solidariamente nesta obra de reorganização pedagógica que representa, para o Brasil inteiro, uma etapa de progresso que todos os esforços devem denodadamente accentuar.

Escrita pela poeta, jornalista e educadora Cecília Meireles, esta crônica é uma das inúmeras publicadas no Diário de Notícias, onde foi editora da “Página de Educação”, entre 1930 e 1933, e, na qual, diariamente, ao sabor dos acontecimentos, focalizava as

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reformas educacionais, a escola, o magistério, a infância, os livros, a leitura e literatura infantil.

Ao longo deste período, procurou cumprir à risca a principal característica das crônicas, no dizer de Machado de Assis, tratando com leveza coisas do cotidiano, sem sangue nem lágrimas.2 Presa aos assuntos do dia-a-dia, ela dialogou com seu tempo, por meio destes textos efêmeros, escritos sob a pressão de prazos, cujo brilho se esgotava na folha seguinte, como observou José de Alencar.3 Ciente disso, em um poema se perguntou

Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias anúncios, fotografias, opiniões...? (...) Aqui, toda a vizinhança proclama convicta: ‘Os jornais servem, para fazer embrulhos’. E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.4

Tomo “A escola atraente”, inicialmente, na perspectiva dos historiadores Sidney Chaloub, Margarida de Souza Neves e Leonardo Afonso de Miranda Pereira na apresentação do livro História em cousas miúdas, quando, ao buscar a especificidade deste gênero literário, alertam que por mais leves e efêmeros que tenham sido os temas tratados nas crônicas para os contemporâneos, elas colocam para os leitores de hoje a

2 Ver MACHADO DE ASSIS: “A semana”, Gazeta de Notícias, 1º de fevereiro de 1894. apud CHALOUB, Sidney, NEVES, Margarida de Souza e PEREIRA, Leonardo Afonso de Miranda (orgs). “Apresentação”. In. História das cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: SP.Editora da UNICAMP,2005, p.10. 3 Idem. Segundo os autores, “Ao correr da pena” foi o título dado por José de Alencar a uma série de crônicas que publicou, em 1854 e 1855, no Correio Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro. 4 MEIRELES, Cecília. In. Mar Absoluto e outros poemas apud. Obras completas. Rio de Janeiro. Editora José Aguilar. 1958, p. 460.

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necessidade de uma cuidadosa operação exegética para decifrar e decodificar os seus termos. 5 Em suas palavras,

Só assim será possível relacionar definitivamente tais textos à realidade que é, a uma só vez, a sua matéria-prima e horizonte de intervenção. Em vista disso, só recentemente esses registros começaram a merecer olhares mais cuidadosos, que apontam sua importância tanto como campo de experimentação literária, quanto como testemunho de um tempo vivido. (...)

Ao acertar contas com seu presente, a crônica teria assim como uma de suas marcas esse caráter de intervenção na realidade, com a qual interagia à moda de uma senhora brincalhona. Longe de refletir ou espelhar alguma realidade, ela tentava analisá-la e transformá-la – valendo-se, para isso, de um tom leve, que atraísse o leitor, e da penetração social das folhas nas quais eram publicadas. (2005, pp. 12-13)

Elejo esta crônica que, como tantas outras escritas por ela, permaneceu esquecida até pouco tempo em velhos jornais, com a intenção de adentrar pela urdidura narrativa para discutir a relação entre objetos escolares e memória. Na medida em que me aproximo do acerto de contas com a realidade, 6 feito pela cronista, procuro sinalizar para o papel por ela desempenhado no debate educacional dos anos 30, debate este marcado por uma nova sensibilidade pela infância e que conferiu identidade a uma geração de intelectuais que apostou na constituição do campo educacional. Deste modo, à moda de Carlo Ginzburg (1989), ao seguir estes rastros, me aproximo de um ângulo menos estudado da biografia intelectual de Cecília Meireles.

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5 Ver CHALOUB, NEVES e PEREIRA (Op.cit) p.19. 6 Cf expressão dos autores anteriormente citados. p.19.

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Ao iniciar a operação exegética,7 a qual se referem os historiadores acima citados, percebo de imediato que as coisas velhas têm sobre a cronista o poder de evocar o passado. O relógio, o livro de ponto, as réguas, os globos, as borrachas, os tímpanos, os vidros de goma arábica, os mata-borrões, os mapas e as balanças, retratam a escola, os métodos de ensino, os gestos dos professores e dos próprios alunos.

Estes objetos não funcionavam para a cronista como a sua madeleine que, no dizer de Pedro Nava, todos têm: no cheiro do mato, no ar da chuva, no ranger das portas, no farfalhar de folhas ao vento noturno, no cheiro de resina nos fogões, no gosto da água na moringa nova,8 pois, diferentemente do tom nostálgico, à moda proustiana, no clássico Em busca do tempo perdido, estes objetos não propiciam reviver doces momentos, voltar à infância idílica, num tempo distante e melhor. O globo, os mapas, os mata-borrões, são coisas mortas. Coisas de outros tempos. Coisas que se usaram nas escolas de nossos avós e de nossos paes. 9 A moringa na janela da sala de aula, tomada como exemplo, é velha e quebrada. Simboliza desleixo, abandono, descaso. Assim como as outras coisas hediondas, arcaicas e ultrapassadas, remetem a um passado que não se quer recuperar, reter, eternizar.

Para a cronista, os objetos falam. Aliás, para o historiador da educação José Maria Hernandes Diaz, tanto ontem como hoje, as paredes, o mobiliário e os utensílios da escola guardam uma ordem convencional, imposta, casual, visível ou um sistema de relações invisível, ordenado, permitido, negociado ou desestruturado em outras ocasiões. (2005, p. 225). Para ele, a história dos objetos escolares é, portanto, em boa medida, a história do modo de atuar

7 Idem. 8 Ver HORTA, Maria de Lourdes Parreiras e PRIORE, Mary, Memória, patrimônio e identidade. In. Boletin 04, Salto para o Futuro: TV Escola, Ministério da Educação. abril de 2005, p.9. 9 Cf crônica de Cecília, citada na epígrafe deste texto.

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na escola, dos projetos educativos reivindicados pelo professor individualmente ou em grupo.

No seu entendimento, os objetos, utensílios e materiais, não são inócuos, pois nos interpelam, atraem ou repelem. Revelam rituais educativos, indicam o currículo explícito ou oculto, a cultura que se transmite ou se produz, a que se impõe ou se rechaça, a que se aceita e integra (op.cit., p. 226). Assim, numa perspectiva histórica,

Cada objeto que observamos na escola ou na sala de aula nos conta sobre o estado da ciência, as técnicas de produção da indústria, sobre o grau de importação-exportação do país, do nível de desenvolvimento econômico de uma sociedade onde se produz ou utiliza, nos diz também como estão atualizados os mestres em matéria pedagógica, a procedência familiar e social de seus usuários ou proprietário, da vida cotidiana da escola (...) (op.cit, p. 233).

A urdidura narrativa da crônica permite compreender que os acontecimentos passados inscrevem suas marcas no espaço físico, nas consciências individuais e na memória coletiva. Para Cecília Meireles, os objetos escolares carregavam representações e valores que constituíam uma dada cultura escolar que precisava ser substituída, apagada, abandonada, esquecida e se constituíam em vestígios que tornam possível revisitar o passado e construir cadeias temporais, que estruturam a percepção e a memória, na perspectiva assinalada recentemente por Margarida Felgueiras (2005, p. 89).

A leitura dos objetos feitos pela cronista permite lembrar as análises também recentes de Rosa Fátima de Souza, quando diz que os artefatos materiais vinculam concepções pedagógicas, saberes, práticas e dimensões simbólicas do universo educacional constituindo um aspecto significativo da cultura escolar (2007, p. 165), que tanto no seu aparecimento, uso, transformação e desaparecimento, revelam práticas educacionais arraigadas e em mudanças.

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As coisas velhas vistas pela cronista, quebradas e empoeiradas, traziam as marcas do tempo. Estes cacos, vestígios do passado que atiçavam lembranças e significados, objeto de indignação, de contestação e de inconformismo, serviam de pretexto para um acerto de contas com um passado que teimava em se fazer presente, indicando uma realidade que precisava ser conhecida, desnudada, desnaturalizada, rechaçada, modificada, superada.

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A Cecília Meireles de “A escola atraente” destoa no tom e no tema do que a consagrou no mundo das letras, mesmo quando elegia a educação, a escola e a sala de aula em seus poemas. Em seu livro O estudante empírico, os objetos escolares funcionam como metáfora para tratar da impossibilidade, da melancolia, da fugacidade e da solidão, temáticas recorrentes em sua obra. “O quadro-negro”, “O Globo” ou “Mapa da Anatonia”, assim como “Hoje desaprendo o que tinha aprendido ontem” 10 e o poema que empresta seu título ao livro, reforçam que a aprendizagem é sempre inconclusa, não se conquista integralmente e não se esgota ao longo da vida:

Eu, estudante empírico, fecho o livro e contemplo.

Eis o globo, o planisfério terrestre, o planisfério celeste, o redondo horizonte, a ilusão dos firmamentos.

10 Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem/E que amanhã recomeçarei a aprender./Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:/Todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas./Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência/Dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo. In Cecília Meireles: Poesia Completa. Vol. II. (organização de Antonio Carlos Sechin). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001. p. 1442.

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E a nossa existência.

Eis o compasso, o esquadro, a balança, a pirâmide, o cone, o cilindro, o cubo, o peso, a forma, a proporção, as equivalências.

E o nosso itinerário.

Saem das suas caixas os mistérios: desenrola-se o mapa dos ossos, com seus nomes; o sangue desenha sua floresta azul; cada órgão cumpre um trabalho enigmático: estamos repletos de esfinges certeiras.

E o nosso corpo.

E os dinossauros são como carros de triunfos, reduzidos à armação; e no olho profundo do microscópio a célula se anuncia.

E o nosso destino.

O professor escreve no quadro o Alfa e o Ômega.

A luz de Sírius ainda lança escadas em contínua cascata.

E lentamente subo e fecho os olhos e sonho saber o que não se sabe simplesmente acordado. Grande aula, a do silêncio.11

Mas, diferentemente deste tom melancólico e nostálgico, por trás do inocente e inofensivo título “A escola atraente”, emerge uma cronista mordaz, crítica, cética e implacável, que, descontente com os rumos da educação, deixa escapar a farpa na lira – expressão tomada de empréstimo de Valéria Lamego (1996). Ela não esconde do leitor o seu horizonte de intervenção: uma totalidade de professores capaz de agir simultânea e solidariamente nesta obra de reorganização pedagógica que representa, para o Brasil

11 “O estudante empírico”. In.Op.cit. pp. 1452-1453.

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inteiro, uma etapa de progresso que todos os esforços devem denodadamente accentuar. 12

Aliás, este horizonte de intervenção, constantemente reafirmado nas linhas e entrelinhas da “Página de Educação”, quando apontou divergências, formulou críticas e encaminhou propostas, foi enfatizado por ela quando encerrou sua participação no jornal, na crônica de despedida:

Aqueles que se habituaram a falar, de uma coluna de jornal, sobre assuntos de seu profundo interesse e chegaram a saber que alguém os ouvia, e participava da inquietude do seu pensamento − criaram um mundo especial, de incalculáveis repercussões, cuja sorte condicionaram à sua, pela responsabilidade a que ficam sujeitos os autores de toda criação.

Esta Página foi, durante três anos, um sonho obstinado, intransigente, inflexível, da construção de um mundo melhor, pela formação mais adequada da humanidade que o habita.(...)

Mas, além de um sonho, esta Página foi também uma realidade enérgica que, muitas vezes, para sustentar sua justiça teve de ser impiedosa e pela força de sua pureza pode ter parecido cruel. 13

Um olhar mais cuidadoso sobre as crônicas de Cecília Meireles permite perceber que ela não escapou das preocupações pacifistas, cientificistas e reformistas que amalgamavam sua geração, características que têm sido, por vezes, negligenciadas por muitos daqueles que se debruçam sobre sua vida e obra. Nelas, no entanto, encontramos pistas sobre a editora da Página de Educação que se tornou uma porta-voz intransigente das reformas educacionais e da escola pública, laica e de qualidade para todos.

12 Cf crônica de Cecília, citada na epígrafe deste texto. 13 MEIRELES, Cecília. Despedida. Diário de Notícias. 12.01.1933. p. 5.

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Em “A escola atraente”, crônica menos contundente do que muitas outras nas quais criticava explicitamente as iniciativas governamentais que visavam implantar o ensino religioso, a indicação de ministros da educação e até mesmo algumas posições defendidas no interior da Associação Brasileira de Educação (ABE), é possível compreender os projetos partilhados com os educadores de sua geração já inscritos em “A responsabilidade dos reformadores”, “A aposta”, “Aquela aposta”,”Uma aposta”, “A penna de aço”, “Ensino cathólico”, “O momento actual e o verdadeiro sentido da educação”, “Um leader”, “Congressos de educação”, “O Ministério da Educação”, “ O caso do Ministério da Educação”, “A 4ª Conferência” ou “ O valor dos manifestos”, dentre outras. 14

Através desta e de outras crônicas, dialoga com os professores com o repertório comum aos educadores de seu tempo que não mediram esforços para racionalizar a escola, de modo a torná-la mais produtiva e atraente, afinada com os preceitos da educação renovada que circulavam, no Rio de Janeiro, capital da república e vitrine do progresso.15 Além de todo um conjunto de dispositivos legais para ampliar o atendimento à demanda escolar, não foram poucos os esforços empreendidos por estes intelectuais para traduzir uma nova sensibilidade pela infância: construção de prédios escolares, aquisição de mobiliário adequado, montagem de bibliotecas infantis, gabinetes, laboratórios e museus escolares, produção e publicação de livros didáticos, por exemplo.

14 Ver MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Antes da despedida: editando um debate. In. NEVES, Margarida de Souza, LÔBO, Yolanda Lima e MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (orgs). Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro. Ed. PUC-Rio: Loyola. 2001. pp. 149-172. 15 Expressão usada por NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progresso – o conceito de trabalho na sociedade brasileira na passagem do século XIX ao século XX: a formação do mercado de trabalho na cidade do Rio de Janeiro. PUC-Rio: Departamento de História/FINEP, 1986.

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De certo modo, a “Página de Educação” se converteu em tribuna privilegiada desta mulher contemporânea da reforma de Fernando de Azevedo (1927-1930), emblemática da afirmação do novo em oposição ao velho, por ter investido na construção da Escola Normal, uma edificação arquitetônica monumental que sinalizava para a centralidade da formação de professores; da montagem dos gabinetes de Geografia, entre outros, que foram instalados nesta escola, sob o comando de Delgado de Carvalho que apostava numa variedade de materiais didáticos, como o globo terrestre, a fotografia, o Atlas e, tudo mais que aproximasse os alunos de uma realidade desconhecida, em oposição ao ensino memorialístico; dos inquéritos de leituras infantis liderados por Armanda Álvaro Alberto na Seção de Cooperação da Família da Associação Brasileira de Educação (ABE), que visavam interferir nas leituras das novas gerações; das exposições de brinquedos infantis organizadas por Francisco Venâncio Filho que pretendiam disseminar, de um ângulo diverso, os cuidados com as brincadeiras das crianças; das tentativas de Anísio Teixeira (1931-1935) de modernizar a educação do Rio de Janeiro, o que passou pela aquisição de livros para as bibliotecas escolares e a inauguração da Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco16, do qual a própria Cecília Meireles foi a primeira diretora; dos debates suscitados pela compra de mobiliário escolar que estimulavam a pena afiada de Frota Pessoa, que lamentava a decisão tomada de não substituir a tradicional carteira escolar pela mesa e cadeira, já utilizadas em alguns jardins de infância desde a administração de Fernando de Azevedo:

16 Sobre a participação de Cecília Meireles na Biblioteca do Pavilhão Mourisco, consultar PIMENTA, Jussara. Leitura e encantamento: a Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco In NEVES, Margarida de Souza, LÔBO, Yolanda Lima e MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (orgs). Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro. Ed. PUC-Rio: Loyola. 2001. pp. 105-120.

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a prescripção da velha carteira escolar, symbolo da coacção, da immobilidade, que eram os princípios cardeaes da escola antiga, significaria um índice de renovação, caracterizada pelo abandono de um móvel inteiramente condemnado, e que figurará em breve, nos museus, ao lado da palmatória e dos emblemas caricaturaes e humilhantes, como hoje já são velhas peças de archivo, o tronco, a galhardeira e o chicote do feitor, em uso antes da abolição. 17

Na “Página de Educação”, Cecília Meireles dialoga com o poder público, com os intelectuais, com os professores, com as famílias, em “O mundo das crianças”, “A propósito das crianças”, “As crianças e os castigos corporais”, “Quando a criança chora”, “Solenidades Cívicas”, “A alma de uma educadora”, “O mal da autoridade”, “Leituras perniciosas”, e tantas outras crônicas escritas ao sabor dos acontecimentos e sob a pressão dos prazos.

Assim, denuncia, critica, elogia e divulga, em sintonia com as iniciativas educacionais que se realizavam mundo afora que traduziam uma nova sensibilidade pela infância. No afã de projetar iniciativas inovadoras, festejou, por exemplo, a vinda de Edouard Claparède ao Rio de Janeiro, em uma de suas crônicas no Diário de Notícias. Em “A visita de um pedagogo notável”, ressaltou a importância de acolher aquele em cuja figura se concentrava “uma expressão personalíssima da psychologia; aplicada, em toda a sua transcedencia, ao conhecimento da criança”. Por isso, argumentava,

Vamos receber a um estrangeiro como se o não fosse, não pelo nosso proverbial espírito de hospitalidade; mas porque os que se unificam nesta confraternização ideológica de tornar o mundo melhor por um respeito elevado e consciente da criança, orientando-a para uma visão total e superior da vida, perdem os contornos nacionais; integram-se na aspiração conjunta da

17 FROTA PESSOA, “Contra a carteira escolar: um debate na Comissão de Normas da Prefeitura”. In Página de Educação, Diário de Notícias, 04/08/1931, p. 5.

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humanidade passam a ser effectivamente, cidadãos do mundo.

Para os que, no Brasil, se agitam, com fervor, pela Reforma Educacional, os que vêem no problema da escola a solução do problema humano, Claparède é um compatriota que apparece reproduzindo, apenas, a forma physica da sua existência no campo da admiração e do respeito em que já se nos installará a sua figura espiritual.

Não poderia chegar em momento mais oportuno. Vem quando os nossos interesses pedagógicos estão no ponto adequado de receber o definitivo retoque de uma prestigiosa presença.

Parece que elle mesmo é uma mensagem que, de longe, nos vem trazer suas palavras de estímulo e esperança.

Parece que chega para nos dizer: ‘A Nova Educação não é um sonho de natureza ephemera. Seus apologistas não são poetas nem loucos, mas homens, apenas, com toda a intensidade moral que a palavra ‘homem’ possa conter: com toda a significação de fraternidade que se lhe possa atribuir, com todo o poder de respeito e amor pela própria vida humana que, dentro della, o nosso desejo de ser melhor seja capaz de fazer existir’ (Diário de Notícias, 5 de setembro de 1930, p.6).

O horizonte de intervenção da crônica “A escola atraente” é bem mais ambicioso do que aparentemente se supõe à primeira vista. Trata-se da construção de uma nova cultura pedagógica que não prescindiu de uma nova materialidade escolar, que interferiu no desenho da cidade, nas crenças e nas práticas docentes e que deixou suas marcas ainda visíveis na memória de professores e na construção da memória de sua geração de educadores, que tem sido interrogada por historiadores da educação.

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Herdeiros que somos da geração de 30, do século passado, ao nos deixarmos surpreender pelo tom e pelo tema empregado

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pela cronista, temos muitas indagações e acertos de contas a fazer com nosso presente. Inevitavelmente nos perguntamos, como educadores, se ainda guardamos a mesma indignação com o abandono da escola pública, com os objetos quebrados e os materiais improvisados.

Como historiadores da educação, esta crônica é um convite para perscrutar os objetos escolares do passado, sem repelir as coisas velhas, mas para interrogá-los, investigando, em suas marcas, os usos, as representações e os significados que carregam. Um trabalho que, certamente, envolve sensibilidade para entrecruzar fontes, com os mesmos cuidados que devem cercar o trabalho com os documentos escritos, isto é, entendendo que, no seu ofício, o historiador:

(...) não é um arqueólogo da documentação, mediador neutro entre a verdade da fonte e a verdade da história, mas aquele que é capaz de formular uma problemática e de construir uma interpretação em que reconhece o encontro entre duas historicidades: a sua própria e a da documentação que utiliza” (NEVES, 1985, p.34-35).

Depois, para impedir o seu desaparecimento encontrando, classificando, preservando estes objetos que falam das idéias e das práticas, das permanências e das mudanças, dos projetos e dos dilemas, que trazem em si mesmos as marcas de outros tempos, nem melhores nem piores, mas diferentes,

Por fim, a crônica “A escola atraente” fornece à comunidade de leitores de hoje, rastros importantes para pensar a vida e a escrita da vida de Cecília Meireles, consagrada poeta, professora atuante e jornalista engajada que não se eximiu do debate político-educacional de seu tempo.

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Ana Chrystina Venancio Mignot é Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É Pesquisadora do CNPq e Cientista de Nosso Estado/FAPERJ. E-mail: [email protected]

Recebido em: 05/11/2009 Aceito em: 20/12/2009

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EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE: DIMENSÕES IMATERIAIS

DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR1 Claudia Alves

Resumo A emergência da noção de cultura material escolar na historiografia da educação recentemente, ao mesmo tempo em descortina horizontes para novas questões e interpretações, impõe desafios que se ligam à própria construção conceitual e sua apropriação. Neste texto, partimos de uma situação vivenciada em pesquisa para discutir as dimensões imateriais que se relacionam à memória e à construção de identidades, percebidas como aspectos que podem e devem ser incorporados pelo historiador no tratamento e problematização das fontes quando pensadas como parte do acervo da cultura material escolar brasileira.

Palavras-chave: cultura material escolar; memória; identidade; pesquisa.

EDUCATION, MEMORY AND IDENTITY: IMMATERIAL ASPECTS OF SCHOOL MATERIAL CULTURE

Abstract The recent onset of school material culture in the education historiography offers challenges connected to the conceptual construction and appropriation of the term itself and, at the same time, asks new questions and proposes new interpretations. Within this context and from a new situation in research, immaterial dimensions related to memory and identity construction are discussed and perceived as aspects that may and shall be incorporated by historians when dealing with the problem of sources as part of the material culture of Brazilian schools.

Keywords: school material culture; memory; identity; research.

1 Texto apresentado no 14º Encontro Sul-Riograndense de História da Educação, sobre “Cultura Material Escolar: memórias e identidades”, de 27 a 29 de outubro de 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, em mesa-redonda coordenada por Maria Stephanou, da qual participaram, também, Ana Chrystina Venancio Mignot e Lúcio Kreutz.

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EDUCACIÓN, MEMORIA E IDENTIDAD: DIMENSIONES INMATERIALES DE LA CULTURA

MATERIAL ESCOLAR Resumen La noción de cultura material escolar en la historiografía de la educación es reciente. Al mismo tiempo en que se abren horizontes para las nuevas cuestiones e interpretaciones, se plantean retos relacionados a su propia construcción conceptual y apropiación. En este trabajo partimos de una situación vivida en la investigación para analizar las dimensiones inmateriales relacionadas a la memoria y a la construcción de identidades, entendidas como aspectos que pueden y deben ser incorporados por el historiador en el tratamiento y problematización de las fuentes que se consideran como parte de la cultura material escolar brasileña.

Palabras clave: cultura material escolar; memoria; identidad; investigación.

ÉDUCATION, MÉMOIRE ET IDENTITÉ: DES DIMENSIONS IMMATÉRIELLES DE LA CULTURE

MATÉRIELLE SCOLAIRE Résumé La notion de culture matérielle scolaire dans l'historiographie de l'éducation est récente. Elle ouvre des horizons pour de nouvelles questions et interprétations en même temps qu’elle pose des défis qui se lient à sa propre construction conceptuelle et appropriation. Dans cet article nous partons d'une situation vécue dans la recherche afin de discuter des dimensions immatérielles qui se rapportent à la mémoire et à la construction des identités, vues comme des aspects qui peuvent et doivent être incorporées par l'historien dans le traitement et l'interrogation des sources considérées comme faisant partie de notre acquis de la culture matérielle scolaire brésilienne.

Mots-clés: culture matérielle scolaire; mémoire; identité; recherche.

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A emergência da noção de cultura material escolar, referida a um conjunto de artefatos, cuja existência, uso e significado se ligam historicamente ao processo de escolarização e à conseqüente disseminação da forma escolar, vem ganhando espaço na escrita recente da história da educação. Dessa forma, os suportes e utensílios que, em diferentes tempos e espaços, foram inventados, mobilizados, transpostos, difundidos para e pela escola, passam a integrar parte do acervo em que os historiadores recortam as fontes de pesquisa para suas questões, assim como ajudaram no surgimento de novos problemas de investigação.

O conceito que precede, antecipa e abarca a noção em foco é o de cultura escolar, amplamente debatido nos meios da história da educação brasileira nas últimas décadas, onde chegou pela vertente francesa de sua configuração. Recuperando a história da emergência desse conceito, Diana Vidal (2005, p. 7-12) destacou a circulação de textos de Jean Hébrard, André Chervel e Claude Forquin, na década de 1990, por meio da revista Teoria & Educação. Embora a autora também faça referência aos textos de David Hamilton, Thomaz Popkewitz, Michael Apple e Ivor Goodson, seu relato demonstra que o intercâmbio, desenvolvido a partir da USP, com os pesquisadores do Institut National de Recherche Pédagogique, e a presença marcante da reflexão historiográfica de Roger Chartier foram elementos decisivos na adoção do conceito pelos historiadores brasileiros. O artigo de Dominique Julia que abriu a publicação da Revista Brasileira de História da Educação transformou-se, por fim, na referência mais citada a esse respeito.

Apesar das nuanças nos modos de operar com o conceito, a materialidade dos suportes da atividade escolar – portadores dos indícios das práticas educativas, mas também de sua normatização, das formas de controle, bem como dos conteúdos selecionados no conjunto de saberes eleitos pela escola – impôs-se como parte da problemática da pesquisa histórica em educação, acompanhando a incorporação dos estudos em torno da cultura escolar. Decifrar os

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ângulos da cultura escolar implicava debruçar-se sobre os diferentes instrumentos de ensino da leitura, do cálculo, dos conceitos e os diversos suportes da escrita, assim como os ambientes pensados e construídos para abrigar as atividades da escola, a partir da segunda metade do século XIX.

Recortada na ampla rede de relações culturais que constrói a escola e suas práticas, a cultura material escolar não pode, portanto, ser pensada fora delas. Entretanto, o fascinio da memória materializada, a partir da qual se constituem as fontes do historiador, vê-se acrescido de uma especie de intimidade quando se agrega aos objetos um pertencimento à cultura material escolar. Há um risco de que se tornem excessivamente próximos, muito conhecidos. Naturalizados por uma especie de identidade comum.

Por isso, o recurso às contribuições do debate historiográfico mais amplo permite encontrar parâmetros de análise que articulem a materialidade da escola à produção cultural que envolve outros âmbitos da vida social. Pensar a cultura material escolar implica construir problemas de investigação impregnados de escolhas teóricas que exigem a aproximação dos trânsitos e das vertentes que, a partir das décadas de 1980 e1990 se desenharam no estudo histórico da cultura material. Como lembra Souza (2007, p. 169),

É preciso ter em vista que os artefatos são produtos do trabalho humano e apresentam duas facetas: eles têm uma função primaria (uma utilidade prática) e exercem funções secundarias, isto é, simbólicas. Significa considerar que os artefatos são indicadores de relações sociais e como parte da cultura material atuam como direcionadores e mediadores das atividades humanas, o que confere aos objetos um significado humano.

Concordando com esse ponto de vista, Gonçalves e Faria Filho (2005, p. 52) argumentam que nosso olhar e perguntas devem nos levar a perceber, nos indicios, nos sinais, na materialidade, as práticas de que os objetos são portadores e/ou que formalizam...

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Um repertorio dos elementos materiais da cultura escolar, desde os prédios até as lousas, passando por manuais, uniformes, cadernos escolares, instrumentos de escrita e os mais diversos materiais, vem sendo construído, paulatinamente, como resultado de pesquisas e projetos de preservação de acervos escolares. Tomá-los como portas de entrada para a compreensão dos processos educativos que ocorrem no espaço escolar exige o movimento de conectá-los às práticas que os circunscrevem.

Essas práticas são de diferentes ordens, situadas em momentos distintos da historicidade dos artefatos e contextos materiais. Produção, circulação, recepção são âmbitos que comportam, cada um deles, um conjunto de práticas que, mesmo que não se iniciem no espaço escolar, para ele confluem e dele se espraiam, instaurando e/ou reforçando novas ações e significados, fortalecendo discursos, estimulando posturas, interditando outros tantos discursos e posturas.

Se a produção de materiais não é algo próprio do espaço escolar, prioritariamente caracterizado pelo consumo tanto de artefatos confeccionados para o seu uso – embora possam ser apropriados fora dos muros das escolas (por exemplo, o livro didático, cartilhas de alfabetização, cadernos, carteiras etc.) (SOUZA, 2007, p. 177) – como produzidos para usos sociais os mais diversos e para ela canalizados, uma dimensão produtiva pode ser apreendida nas formas como, no interior da escola, se criam e recriam determinados elementos da cultura material escolar. Os livros escolares, por exemplo, enquanto objeto material, são, em geral, produzidos por editoras, mas os historiadores da educação têm demonstrado a participação ativa dos professores como autores, o que implica uma concepção originaria da atividade de ensino. Mesmo o objeto em si pode ser produzido dentro da escola, quando se trata de uma proposta pedagógica que assim o determine.

Enfatizamos essa dimensão porque se trata de um aspecto importante no presente texto. Escolhemos discutir as relações entre cultura material escolar, memória e identidade a partir de

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um exemplo empírico em torno de um artefato mais abordado pelos historiadores como registro e, portanto, testemunho do passado, do que por seu caráter educativo, participante do conjunto de dispositivos mobilizados pela escola no seu intento de cumprir uma dada função social.

Com essa escolha, objetivamos contribuir com o debate acerca da problemática referente à delimitação de fronteiras para o que denominamos como cultura material escolar e a necessária operação, já assinalada por outros autores, de pensar esses artefatos a partir do seu uso social, que toma a escola como locus. Para isso, precisamos ter atenção com o que entendemos por atividade educativa, tendo em conta que a escola ensina muito mais do que os conteúdos prescritos, e o processo de socialização é parte dos mecanismos que constroem e reafirmam os lugares sociais e as representações que os justificam.

Esse é um aspecto fundamental na reflexão sobre as relações entre cultura material e o papel da memória na construção de identidades. A questão que trazemos ao debate é: Como a cultura material escolar pode nos auxiliar a entender a inscrição de atitudes, de autoconceitos, de pertencimentos, de identidades? Qual o lugar da memória nesse processo? Longe de ambicionar responder às questões em toda a sua complexidade, partimos aqui de uma situação coletada em ambiente de pesquisa histórica, enfocando alguns aspectos dessa relação.

A fotografia escolar como exemplo

Para discutir algumas das relações que podem ser percebidas entre os três termos que estão no título – educação, memória e identidade – e a cultura material escolar, retomo aqui uma narrativa que é fruto de uma pesquisa de uma de minhas orientandas de mestrado. Na busca de compreender a construção de identidades de mulheres negras, Giane Elisa Sales de Almeida (2009) empreendeu a coleta de depoimentos memorialísticos de

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um grupo de mulheres de uma cidade média brasileira, que viveram parte da infância e adolescência nas décadas de 1950 e 1960, quando a expansão da educação pública começou a criar oportunidades mais significativas de inclusão das classes populares. Intentava-se verificar as oportunidades reais de acesso à escola, vividas por esse grupo, além de interrogar os modos como a escola, por meio das ações de seus sujeitos, lidava com a presença desse público.

Um desses depoimentos trouxe à tona um acontecimento muito significativo para uma delas, mas que, por contraste, ajudou a traduzir um interesse recorrente demonstrado pelo grupo. A depoente contou que um fato significativo em sua vivência de escola envolveu o dia marcado para a produção das fotografias individuais dos alunos, aquelas que se tornaram clássicas, em que as crianças, portando seus uniformes sentavam-se à frente de uma mesa ou carteira escolar, com os bracinhos sobrepostos, às vezes com um sorriso no rosto, a representação do globo terrestre ao lado, um mapa ou quadro-negro ao fundo, enfim, a criança envolta em vários signos da cultura material escolar, pronta para ser imortalizada pelas lentes de um fotógrafo.

Mas aquela menina negra, que tinha saído de casa arrumadinha e penteada pela mãe, não resistiu às brincadeiras e, no momento de ser fotografada, já estava completamente despenteada. A professora, que estava penteando as demais crianças para a foto, na vez dela, recusou-se a penteá-la, dizendo: “Seu cabelo não tem jeito de se pentear”. E a menina não tirou a fotografia.

Esse caso elucidou, para a pesquisadora, a forma insistente como as outras mulheres entrevistadas – dentre as que tinham efetivamente freqüentado a escola por algum tempo, que não era a maioria – voltavam à fotografia escolar, que aparecia como um registro sempre positivado, como uma espécie de troféu dentre os objetos significativos da memória dos tempos de escola. Em verdade, a foto era um troféu, no sentido de que, para obtê-la,

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mesmo que as depoentes não demonstrassem consciência disso em suas falas, tinham superado barreiras que, na experiência de uma delas, demonstraram-se intransponíveis. O conjunto de sentidos associados à fotografia escolar fazem, então, emergir as delicadas e intricadas relações entre memória, identidade e cultura material escolar, que só são percebidas na pesquisa que penetra nas práticas cotidianas, aquelas que subvertem intenções e sentidos institucionalizados, ao mesmo tempo em que os reafirmam. Derivada dos saberes e práticas destinados à disciplinarização do corpo infantil, a fotografia escolar aparece, no fato narrado por aquela mulher negra, como a ferramenta eficaz de imposição de padrões de comportamento, beleza, infância, corpo, individualidade, identidade.

Mas, para além dessa funcionalidade, essa narrativa é tomada, aqui, como provocação ao debate a respeito de alguns aspectos da relação entre memória, identidade e cultural material escolar, partindo do pressuposto de que ela é construída não só na interface, mas também como parte da produção social de cultura, que implica, para a escola, sua participação nos movimentos de apropriação, releitura, recriação de elementos da cultura material em geral.

Selecionamos quatro aspectos para os quais queremos chamar a atenção, em se tratando da fotografia escolar.

Primeiro aspecto: das relações entre escola e fotografia

O primeiro deles diz respeito à forma particular como a escola se relaciona com a fotografia em geral, e com o retrato, neste caso particular. A fotografia enquanto resultado de ciência, técnica e arte (CIAVATTA, 2002, p. 15), integra a visualidade2

2 Utilizamos aqui o conceito tratado por Meneses, que entende que a visualidade deve ser entendida como objeto detentor, ele também, de historicidade e como plataforma estratégica de elevado interesse cognitivo (2003, p. 11).

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que caracteriza o “oculocentrismo” do mundo moderno (MENESES, 2003, p. 13). Isso significa dizer que, para além de ser entendida como monumento (LE GOFF, 1992), operação fundamental no seu tratamento como fonte para a pesquisa histórica, a fotografia é parte de um tempo histórico em que a sua materialidade instaura formas de viver, sentir, olhar e atuar sobre o mundo, ao mesmo tempo em que resulta de processos que, embora esparsos temporalmente, nela aparecem concentrados.

Vidal (1998, p. 77), baseando-se nas análises de Pierce, nos alerta sobre as diferentes dimensões que nela se imbricam: a de ícone, que ao representar um referente o congela na imagem; a de indício que nos auxilia a perceber a forma de olhar de um certo tempo histórico; a simbólica, que nos dá conta do quanto sua representação é atuante na construção-transformação do real.

Pensar as relações entre escola e fotografia exige, então, a consideração desses aspectos teóricos e históricos. A fotografia como elemento de registro dos prédios escolares monumentais de fins do século XIX e início do XX, registro de atividades pedagógicas, de facetas educativas da escola e representação de seu projeto educativo, registro dos sujeitos da escola, professores e alunos, como construtores da nacionalidade e da modernidade, tem sido muito útil e provocado questões para a história da educação que não pretendemos abordar neste artigo.

Vale a pena, entretanto, tentar perceber algumas distinções que demarcam o nosso recorte. Uma primeira distinção diz respeito à escola fotografada na sua dimensão pública e da fotografia de âmbito privado presente na escola. Essa distinção não é simples, nem pode-se tomá-la como expressão de uma fronteira previa e claramente estabelecida, sobretudo quando se leva em conta as tênues demarcações entre público e privado na história brasileira. Mas, para os objetivos deste texto, trata-se de um risco necessario.

As fotografias dos espaços, artefatos e práticas escolares, realizadas com fins de registro pelo poder público, seja para

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documentação e/ou propaganda ou produzidas por agentes privados com objetivos de divulgação pública – como no caso da imprensa – possuem, a nosso ver, um caráter de produção, guarda e circulação que as diferencia do tipo de fotografia de que tratamos no caso presente. A fotografia escolar, objeto de nossa reflexão, define-se por ter sido produzida no espaço público da escola, em geral por um agente privado, e com a previsão de circulação e preservação em espaços privados, as habitações familiares.

Como objeto histórico, portanto, insere-se numa linha de tradição que, integrando a visualidade contemporânea, produz-se na interface com a forma escolar enquanto modo de socialização característico do mundo moderno, onde ganhou preponderância sobre outros modos de socialização (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, p. 11). Entendida dessa forma, torna-se possível compreender o seu potencial educativo, não no sentido da sistematização de saberes que é parte da ação escolar, mas no de inserção no mundo social, com todas as suas forças de manutenção e os movimentos idiossincráticos que isso comporta.

Os registros públicos dos espaços e atividades escolares datam, no Brasil, da segunda metade do século XIX. Acompanhando os avanços técnicos e a difusão de seu uso3, conhece-se registros fotográficos de escolas, antes mesmo que o registro fotográfico se irradiasse como prática corrente4 dos agentes públicos e privados. Mas há um itinerário, ainda pouco historiado, entre esse registro público e a introdução da fotografia de caráter privado no espaço escolar. Como o tema é bastante

3 Alguns historiadores assinalam o surgimento da fotografia em 1833, com difusão bastante restrita até 1850, quando a invenção do cartão de visita fotográfico, no rastro da produção em série de instatâneos, contribui para sua penetração, atingindo inclusive as classes menos abastadas (VIDAL, 1998, p. 79). 4 Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Julia Falivene Alves, por exemplo, localizaram fotografias desde os anos 1860, no trabalho de pesquisa que deu origem ao álbum Escolas Profissionais Públicas do Estado de São Paulo: uma história em imagens (Álbum Fotográfico). Centro Paula Souza, 2002.

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abrangente e foge aos limites do presente trabalho, nossa intenção restringe-se a assinalar que pode-se inferir que, na relação entre escola e fotografia, há um percurso em que o registro fotográfico transitou de documentos produzidos com vistas a comporem o acervo de memória pública, para registros que integrassem o acervo pessoal de memória de professores e alunos, parte da constituição de memória da vida privada.

Segundo aspecto: o retrato como imagem de si

Tratamos inicialmente da fotografia, procurando enfocar a historicidade desse artefato no âmbito da visualidade que caracteriza a modernidade, mas também de como essa visualidade se realiza na escola e a envolve como objeto e partícipe na multiplicação de imagens. Introduzimos, então, uma primeira distinção que incorporamos ao debate sobre a fotografia escolar como parte da cultura material escolar: o caráter público ou privado de sua produção, guarda e circulação. Uma segunda distinção torna-se importante nessa aproximação da fotografia escolar: a especificidade do retrato no âmbito do registro fotográfico.

O retrato remete à materialização da imagem de si, uma imagem a ser preservada, uma imagem que rompe a barreira do tempo, imortalizando aquela fração de vida, e, com ela, um pouco da própria pessoa. Trata-se de um gesto que remete a uma tradição que, na Antiguidade, associava-se à escultura e aos afrescos, e ganhou, no Renascimento, a conquista técnica da pintura. Retratar-se ou fazer-se retratar, associando a imagem a um nome, uma trajetória, uma vida, uma obra, constituiu-se como prática cultural de pequenos círculos, de figuras notáveis, de gente poderosa, econômica e politicamente, com recursos para garantir essa execução. Não que homens e mulheres de outros extratos sociais deixassem de ser retratados em imagens de cenas cotidianas de trabalho, ambientes familiares ou de diversão. Mas estavam lá

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anônimos. São anônimos para nós, o público que olha para essas imagens.

A invenção da fotografia introduziu a popularização, a partir do século XIX, dessa possibilidade de ser retratado. Numa sociedade em que a dimensão privada da vida social já havia configurado espaços e grupos familiares restritos, a fotografia logo passou a integrar o acervo de memórias das famílias, penetrando gradativamente com seus saberes, ferramentas, objetos e normas (MAUAD, 1997). Na vida pública, substituiu, em grande parte, a pintura, na sua função de imortalizar os poderosos, além de ser requisitada para integrar o arsenal de estratégias acionadas para legitimar projetos de governos em suas construções de hegemonia. O caso do fotógrafo Augusto Malta, contratado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, àquela época capital da República, para registrar as grandes transformações no panorama urbano no inicio do século XX, é emblemático desse tipo de uso público (CIAVATTA, 2002).

Mas a fotografia também exigia recursos materiais para ser produzida ou adquirida. A foto é mercadoria, que resulta de outras mercadorias: a máquina, o papel, os agentes químicos, os suportes dos negativos, parte delas em processo de desaparecimento nos dias atuais. As fotografias se tornaram parte do patrimônio das famílias e a quantidade que constitui o acervo é um demonstrativo, também, da condição de classe dos indivíduos que as compõem5. No Brasil das décadas de 1950/60 é possível imaginar que o acesso aos retratos de família entre negros pobres fosse bastante restrito, a despeito do desenvolvimento industrial e urbano que começava a caracterizar o país.

Apropriado pela escola, esse tipo de retrato passava a constituir parte da cultura material a ela associada. Como não estamos tratando da fotografia em geral, essa prática se inscreve

5 Algo semelhante pode-se dizer a respeito dos filmes domésticos, enquanto documentos imagéticos em acervos privados.

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como geradora de um produto que tangencia o núcleo, propriamente dito, da cultura material escolar, que, poderíamos dizer, é constituído por cadernos, lápis e correlatos, lousas, livros, quadros murais, carteiras, enfim, materiais diretamente associados ao ensino, utilizados com a finalidade de fazer acontecer o saber escolar no aluno. Por outro lado, a dimensão educativa desse tipo de retrato é inegável. Uma gama de valores se insere no gesto de retratar os alunos, ao conceder-lhes um lugar particular na história, como portadores dos atributos que só a escola lhes poderia conferir. No mesmo gesto, fortifica os padrões de comportamento que lhe são pertinentes, retoma o enquadramento do retrato impregnando-o das intenções que compõem a escolarização.

Neste debate, queremos chamar atenção para a forma como a cultura material escolar, gerada na interface da produção cultural em geral, torna possível uma apropriação particular de produtos culturais, acentuando e explicitando sua função educativa, nas exigências postas pela escolarização.

Terceiro aspecto: o objeto situado nas relações sociais

Um terceiro aspecto que cabe no presente debate é o de que, no caso da escola brasileira, embora não seja exclusividade dela, é preciso analisar as formas específicas como um pressuposto profundamente anti-democrático encontra formas de atualizar-se na materialidade da escola, ora conformado por sua cultura material, ora denunciado por ela. No caso relatado, a interdição à fotografia aparece como a revelação do racismo, persistente como herança de séculos de escravidão negra.

A fotografia escolar, então, precisa ser analisada considerando-se um conjunto de gestos, de saberes e de sentidos implicados na sua produção. O que a foto enquadra é um cenário produzido na e pela escola. A seleção de objetos seguiu critérios afinados com os valores que a escola tem compromisso de

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difundir, os símbolos que deve cultuar. Essa seleção impõe-se como parte das estratégias que se dirigem às famílias das crianças em processo de socialização. A ação educadora confere à escola o papel de reafirmar, por meio do seu modo específico de socialização, valores e posturas consoantes com as formas de dominação. A escola situa-se e é chamada a colaborar na construção de um campo de tensões articulado às relações que sustentam a vida social. Sua ação estende-se para além do aluno, atingindo a rede social em que ele está inserido.

A relação entre família e escola, longe de constituir-se de forma pacífica e harmoniosa, construiu-se a partir de disputas e negociações que mobilizaram forças sociais e intelectuais. Esforços de intelectuais engajados em tornar a escola uma realidade presente na vida de crianças dos mais diversos grupos sociais geraram discursos, projetos e ações apontados para consolidar o elo entre família e escola. A crença no poder da escola em modelar o comportamento familiar, idealizado a partir de uma representação moderna do núcleo familiar, moveu iniciativas presentes no Brasil desde princípios do século XX, e que ganharam consistência à medida que a escola se instituía como elemento aceito e incorporado como espaço de socialização da infância (MAGALDI, 2007, p. 11-24).

Nas décadas de 1950/1960, quando se passou o fato narrado pela depoente, a escola já se havia imposto como autoridade frente ao poder da família. Muitos traços de modelagem dos corpos, dos gestos, das expressões já se encontravam assimilados por boa parte da sociedade, mesmo pelos segmentos que ainda não conseguiam acesso à educação escolar. A expansão do modo de vida urbano e do trabalho industrial facilitavam essa difusão trazendo para os espaços de convivência as prescrições da cultura escolar, ao mesmo tempo em que levavam para a escola os produtos culturais produzidos em diferentes tradições, e que passavam a ser repaginados à luz dos princípios de organização e circulação dos saberes escolarizados.

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No discurso pedagógico constroem-se representações da família, muitas vezes tida como incapaz, despreparada para lidar com a educação dos filhos, ao mesmo tempo em que se buscam formas de aproximar a família da escola (FARIA FILHO, 2002, p. 82). Embora o impacto desses discursos na prática cotidiana possa ser relativizado, a percepção da família como instituição secundaria na educação das crianças já havia se difundido fortemente naquele período. É possível inferir, ainda, que o novo público atingido pela escola, de camadas sociais mais pobres, fosse o alvo privilegiado desse tipo de representação.

A produção da fotografia escolar se transformava, então, em mais uma oportunidade de reafirmar, para a família, o padrão esperado de higiene, cuidado com a aparência, contenção nos gestos. Cuidado e disciplina passam a ser tomados como indicadores do pertencimento a um grupo. No caso da fotografia, sua produção incluía o filtro que designava quem poderia ser retratado. Na medida em que a escola oferecia uma alternativa que, em princípio, seria para todos, a implementação prática fazia emergir outras estratégias de reconversão à desigualdade. No caso brasileiro, desigualdade associada ao lugar histórico construído para os negros e à difícil incorporação desse público, num processo de idas e vindas (DÁVILA, 2006; MÜLLER, 2008; VEIGA, 2008).

A cultura material escolar precisa ser analisada, então, como fruto de relações, assim como componente delas. O objeto se interpõe entre as pessoas, podendo ser elo de ligação ou fronteira. Tanto pode aproximar como afastar. Constitui lugares, hierarquias, assinala diferenças e desigualdades. Penso que esse é um viés importante a ser resgatado na crítica àquelas perspectivas pedagógicas que acreditam que materiais mais bem elaborados podem dar conta da tarefa educativa. Também deve fundamentar argumentos que se contraponham à visão de que a tecnologia é, por si só, elemento de democratização do acesso ao conhecimento.

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Quarto aspecto: cultura material, memória e identidade

Um quarto aspecto que considero interessante nessa reflexão é o que se refere à força das memórias de vivências escolares. Dependendo da geração, do grupo social, da localização geográfica, do gênero, isso comporta diferenças, às vezes, bastante acentuadas. Entretanto, entre os indivíduos que freqüentaram os espaços escolares, a força de socialização que eles portam imprime marcas profundas na construção de identidades, e esse fato pode ser constatado nas memórias recolhidas em atividades de pesquisa.

Esse aspecto pode nos conduzir a várias questões que emergem das relações entre cultura material escolar, memória e identidade, e seria impossível abordar todas elas neste artigo. Mas pontuaremos algumas, dentre as muitas que podem ser incorporadas à análise de nosso caso empírico, entendendo que essa discussão só faz sentido se mantiver, como horizonte de referência, a reflexão sobre a escola brasileira na relação com os diferentes grupos sociais.

Os estudos a respeito da memória, no campo historiográfico, têm procurado nutrir-se do conhecimento produzido, sobretudo, por estudos em psicologia social (Sá, 2005), enquanto a discussão em torno da identidade tem fortes referentes na psicanálise, na antropologia, na linguística e, também, na filosofia e na história (CLAVAL, 1999, p. 12-14). A questão fundamental da subjetividade na sua relação com os processos sociais e culturais atravessa esse amplo debate.

Os fenômenos da subjetividade, envolvendo sentimentos e pensamentos pessoais, não podem ser compreendidos a partir de uma perspectiva puramente individual. Embora guardem distinções, subjetividade e identidade são conceitos que, em larga medida se superpõem. Por isso, aparecem utilizados de forma intercambiável. Precisando melhor os dois conceitos temos que:

“Subjetividade” sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. O termo envolve os pensamentos e as emoções

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conscientes e inconscientes que constituem nossas concepções sobre “quem nós somos”. A subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais. Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e na qual nos dotamos de identidade. Quaisquer que sejam o conjunto de significados construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles proprios, assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si proprios. As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (WOODWARD, 2007, p. 55)

A construção de identidades envolve, então, processos subjetivos, de internalização de construções simbólicas. Essas construções, longe de serem naturais, são construções culturais e sociais que buscam, em elementos exteriorizados, materiais, formais, rituais, o meio de sua expressão. A linguística e a antropologia estruturalistas frisaram o compromisso com os dualismos presente nas estruturas de pensamento. Embora esse ponto de vista mereça as críticas que recebeu pela generalização que embutiu em suas conclusões, a percepção de certas oposições binárias pode nos ajudar a refletir sobre a forma como se constroem identidades que demarcam lugares sociais.

No caso que trazemos para nosso estudo, a fronteira entre os que poderiam e os que não poderiam ser retratados é parte de uma construção identitária que implica a delimitação da diferença. Todo processo de construção de identidades pressupõe a linha demarcatória entre o eu e o outro, ou entre nós e os outros. Agregam-se sujeitos em torno de algo que é assumido como comum, em oposição a outros que não partilhariam daquele mesmo atributo. Por isso, Silva escreveu que assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis (2007, p. 75).

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Como essa determinação do que é próprio e do que difere entrelaça-se a critérios que hierarquizam os componentes de um certo universo, as marcas que são selecionadas para a composição de um padrão identitário também aparecem impregnadas de critérios de valor que as qualificam como superiores em relação às que se posicionam como externas ou opostas. Se pensarmos no retrato escolar como um artefato cuja produção no interior da escola fortalece a construção da identidade do estudante como partícipe de uma comunidade educada, as práticas envolvidas na sua produção ganham sentido. Há um confronto estabelecido e fomentado entre os iguais e os diferentes.

Essa produção identitária que encontra na escola um lócus de realização, entretanto, como vimos frisando, não esgota nela mesma, nem responde a finalidades puramente escolares. A idéia de identidade legitimadora (CASTELLS, 1999, p. 24) pode nos ajudar a pensar essa produção tendo como referência o próprio lugar que a escola foi chamada a ocupar no projeto nacional republicano. A adesão dos sujeitos a essa comunidade imaginada que é a nação (ANDERSON, 2005) resultou de muito investimento cultural, em que todo um sistema simbólico foi mobilizado para sua configuração. É conhecido o potencial de violência conjugado a essas ações, e o caso de que tratamos é emblemático nesse sentido.

A memória, como produção do momento presente denuncia o quanto algumas experiências são decisivas e ficam retidas como âncoras no psiquismo individual. Le Goff (1984, p. 476) nos lembra que a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje... Essa relação, entretanto, não é pacífica, posto que a propria construção da identidade também não o é. A memoria constitui-se como campo de disputa (POLLAK, 1989): das disputas que estão na origem de sua elaboração às disputas que, no presente, desenham as lutas por sua apropriação, seu apagamento, sua ocultação.

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Memória e identidade são conceitos que remetem a processos sempre inacabados e continuamente confrontados com as circunstâncias sócio-culturais dos tempos que se sucedem. Por esse motivo, a perspectiva teórica mais aceita para sua utilização é a construtivista, ou seja, aquela que descarta a possibilidade de chegar a uma essência, um núcleo fixo e definitivo de sua constituição. Isso não significa, entretanto, que sejam tão mutantes que não possamos apreendê-las. São construções históricas, ligadas a lugares institucionais, que organizam a experiência pessoal e social (HALL, 2007, p. 108-111). Remetem a jogos de poder, estruturas e mecanismos de dominação.

No caso do retrato, um elemento que pode, ainda, ser associado nessa análise é o da visualidade nessa constituição de memória e identidade. Meneses (2003, p. 17) chama a atenção para as especificidades que caracterizam as imagens nos processos de produção de sentido:

... nossa postura habitual pertinente à imagem analógica, como muitos já notaram, é fundamentalmente uma relação sentimental.

Embora o autor esteja discutindo as dificuldades que se apresentam aos pesquisadores que lidam com imagens, é possível utilizar a mesma observação para o poder da imagem na construção da memória e da identidade. Para além, então, da problemática que envolve o retrato escolar, como artefato da cultura material escolar, o seu atributo de visualidade imprime-lhe uma força constitutiva de significados que não pode ser desconsiderada em nossa análise.

Finalmente, um último aspecto que queremos frisar, por outro lado, é o potencial contraditório que necessitamos perceber em todos esses processos. A cultura material escolar, seja em manifestações particulares, ou pensada no seu conjunto, não possui o poder absoluto de conformar modos de pensar, sentir, dizer e agir. As formas de percepção e elaboração dos mecanismos

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postos em marcha, pela escola, por parte dos diferentes grupos nas suas construções identitárias comportam uma dialética que permite surgir o imprevisto, o que subverte. Retornando à narrativa exemplar de que partimos, aquela mesma vivência que poderia reforçar o lugar subalterno para o qual foi empurrada pela atitude da professora, atuou como um dos fatores de indignação que levaram aquela menina a se tornar militante do movimento de defesa dos direitos das populações negras, contra todas as formas de racismo.

Não que se deva apostar nesse efeito contrário para justificar ou minimizar os efeitos perversos que esse tipo de experiência possui nos sujeitos. Mas queremos encerrar frisando que a cultura material escolar tem sua historicidade marcada por um campo de relações, que é rico, múltiplo, contraditório, e merece atenção dos pesquisadores.

Considerações finais

A fotografia escolar, tomada como indício da cultura material escolar, provoca diversas questões ao pesquisador de história da educação, algumas das quais tentamos discutir neste texto. Interessou-nos, particularmente, a problemática da pesquisa que se propõe a tomar os artefatos da cultura material escolar para a compreensão das relações entre escola, memória e identidade.

Alguns cuidados destacam-se como componentes importantes dos procedimentos de pesquisa, para os quais intentamos chamar a atenção. O primeiro deles diz respeito à necessária relação entre a cultura material escolar, tomada como vestígio de práticas associadas à sua produção, uso, circulação e apropriação. Os objetos, assim como os edifícios, para produzirem sentidos, participam de sistemas simbólicos integrados em amplos circuitos de produção sócio-cultural.

Por outro lado, participam diferentemente, de maneiras que guardam relações com suas funções de uso, suas características

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materiais e os tempos/espaços de sua presença como dispositivo escolar. Em nosso caso particular, o artefato imagético, encaminhou-nos a buscar os aportes teórico-metodológicos pertinentes ao seu tratamento na pesquisa. A observação de Menezes (2003, p. 29) sintetiza um conjunto de preocupações em torno desse objeto:

Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em várias dimensões, usos e funções. O emprego de imagens como fonte de informação é apenas um dentre tantos (inclusive simultaneamente a outros) e não altera a natureza da coisa, mas se realiza efetivamente em situações culturais específicas, entre várias outras. A mesma imagem, portanto, pode reciclar-se, pode assumir vários papéis, ressemantizar-se e produzir efeitos diversos.

Essa observação parece-nos bastante adequada à preocupação que orientou nosso texto. No nosso estudo, interessou-nos, sobretudo, o que a imagem escondia, ou melhor, a ausência daquela imagem no acervo de memórias de uma determinada família. Essa percepção só foi possível, porque a pesquisa não se restringiu aos artefatos, mas chegou a eles por meio dos depoimentos coletados, com vistas a garimpar memórias de um grupo específico: mulheres negras de uma certa faixa etária de uma determinada cidade. A delimitação tornou-se, aqui, o parâmetro que nos permitiu acessar à riqueza de uma experiência capaz de provocar questões ainda caras aos educadores brasileiros.

Se, de um lado, essa cultura material se interpõe nas relações sociais, de outro, é possível pensar que a sua simples presença é um indício de muitas relações que estão para além da escola, mas para ela confluem. Quando me refiro a isso, penso no fenômeno do empobrecimento radical das escolas públicas nas periferias metropolitanas. Em conferência pronunciada em simpósio promovido pela UFF e UERJ sobre Estado e Poder, o historiador argentino Juan Javier Balsas referiu-se à forma como está se consolidando, entre os jovens de países latino-americanos a

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naturalização de que as escolas públicas são para os pobres, escolas particulares são para a classe média e os ricos devem estudar em escolas especiais, de alta tecnologia, dirigidas às suas necessidades.

Perguntaríamos: como a pobreza material das escolas públicas colabora para construir identidades conformadas dentre os grupos subalternos, ao reafirmar, de forma evidente, que eles não têm direito a uma escola materialmente rica?

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Claudia Alves é Doutora em História Social pela USP. Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Presidente da Sociedade Brasileira de História da Educação na gestão 2007-2009. E-mail: [email protected].

Recebido em: 05/11/2009 Aceito em: 20/12/2009

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AS FONTES DO MÉTODO ANALÍTICO DE LEITURA DE JOÃO KÖPKE (1896-1917)

Mirian Jorge Warde Claudia Panizzolo

Resumo Após duas décadas de defesa e propaganda do método sintético, João Köpke se tornou ativo divulgador do método analítico para o ensino da leitura. Em cinco textos publicados entre 1896 e 1917, produzidos em circunstâncias distintas e para diverso público, Köpke chama em apoio ao seu método analítico autores europeus e norte-americanos tanto por seus princípios como por suas experiências pedagógicas; dentre eles: J. Jacotot, A. Bain, A. Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker, G. Stanley Hall e J. Chubb. Neste artigo, maior atenção é conferida às referências norte-americanas que se repetem, com especial ênfase à psicologia de Stanley Hall e ao método de ensino da leitura de Meiklejohn, ressaltados e colocados em convergência por Köpke em seus escritos finais.

Palavras-chave: João Köpke; História da Educação; História da Leitura; método sintético; método analítico.

THE SOURCES OF THE ANALYTICAL METHOD OF READING FROM JOÃO KÖPKE (1896-1917)

Abstract After two decades advertising and defending the synthetic method, João Köpke became active disseminator of analytical method for teaching reading. In five texts published between 1896 and 1917, produced in different circumstances for different publics readers, Köpke seeks the support of American and European authors, for their principles as well as for the education experience, to his analytical method. as by theirs principles as by theirs educational experiences. Among those authors: J. Jacotot, A. Bain, A. Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker, G. Stanley Hall and J. Chubb. In this article, attention is given to repeated American references with special emphasis on the psychology of Stanley Hall and the method of teaching reading of Meiklejohn, highlighted and placed on convergence by Köpke in his final writings.

Keywords: João Köpke; History orf Education; History of reading; Synthetical Method; Analitical Method.

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LAS FUENTES DEL MÉTODO ANALÍTICO DE LECTURA DE JOÃO KÖPKE (1896-1917)

Resumen Después de dos décadas de defensa y propaganda del método sintético, João Köpke se tornó activo divulgador del método analítico para la enseñanza de la lectura. En cinco textos publicados entre 1896 y 1917, producidos en diferentes circunstancias y para públicos diversos, Köpke cita autores europeos y norteamericanos que, tanto por sus principios como por sus experiencias pedagógicas, le sirven de apoyo a su método analítico; entre ellos se encuentran: J. Jacotot, A. Bain, A. Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker, G. Stanley Hall y J. Chubb. En este artículo, se le confiere mayor atención a las referencias norteamericanas, sobre todo y con especial énfasis, a la psicología de Stanley Hall y al método de enseñanza de la lectura de Meiklejohn, resaltados y colocados en convergência por Köpke en sus últimos escritos.

Palabras clave: João Köpke; História de la Educación; História de la Lectura; método sintético; método analítico.

LES SOURCES DE LA MÉTHODE ANALYTIQUE DE LECTURE DE JOÃO KÖPKE (1896-1917)

Résumé Après deux décennies de défense et de publicité de la méthode synthétique, João Köpke est devenu un promoteur de la méthode analytique dans l’enseignement de la lecture. Dans cinq textes publiés entre 1896 et 1917 et produits dans des circonstances différentes et pour un public diversifié, Köpke cite, à l’appui de sa méthode analytique, des auteurs européens et nord-américains, aussi bien par leurs principes que par leurs expériences pédagogiques, dont: J. Jacotot, A. Bain, A. Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker, G. Stanley Hall et J. Chubb. Dans cet article on confère une attention spéciale aux références nord-américaines qui se répètent, surtout à la psychologie de Stanley Hall et à la méthode d’enseignement de la lecture de Meiklejohn, mis en relief et en relation par Köpke dans ses derniers écrits.

Mots-clés: João Köpke; Histoire de l’Éducation; Histoire da la Lecture; méthode synthétique; méthode analytique.

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Introdução

João Köpke (1852-1926) bacharelou-se em Direito pela Academia do Largo de São Francisco em 1875, mas dedicou a maior parte da sua vida ao ensino, uma vez que foi por mais tempo professor, diretor e autor de material didático do que advogado1. Envolveu- s e com a causa republicana e educacional, tendo sua atuação marcada pela inquietação criadora e renovadora tanto quanto pela coerência de princípios e pelo pioneirismo na divulgação de suas idéias modernas e práticas.

Pertenceu a um grupo de intelectuais que, além de defender a reforma social pela reforma da educação, empreendeu experiências de escolarização apropriando-se de referenciais internacionais, destacadamente os norte-americanos. João Köpke não foi, po r ém, um “homem de partido”, em sentido estrito, e, ainda que comungasse dos ideais republicanos, não se converteu em porta voz de um grupo ou em liderança de um movimento. Köpke foi, antes de tudo, um pedagogista que dedicou parte significativa de sua vida à criação de teorias, práticas e instrumentos para educar os cidadãos da República. Expressou seu pensamento político-pedagógico pondo em circulação, na imprensa, nas escolas, nos livros para crianças e nas conferências, uma pedagogia moderna, sinônimo de científica e republicana.

Foi uma figura-chave para a realização da educação inovadora vivida e difundida por São Paulo durante a transição do

1 Em 1875, J. Köpke foi nomeado promotor público em Itapeva da Faxina (SP), onde também trabalhou como advogado. Em seguida, foi removido para as comarcas de Jundiaí, Campinas e, por fim, para a Capital. “Em São Paulo acumulou às atividades na promotoria, o trabalho como advogado (...). Contudo sua carreira foi curta e a magistratura preterida pela opção que o acompanharia por toda a vida: a Educação” (PANIZZOLO, 2006, p. 101).

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Império para a República. Teve ao longo das décadas de 70 e 80 do séc. XIX, uma atuação intensa, profunda e coerente abrangendo experiências com o ensino elementar e secundário em estabelecimentos de vanguarda como o Colégio Pestana, o Colégio Florence, o Culto à Ciência, a Escola Primária Neutralidade – Instituto Henrique Köpke.

Além de se dedicar à abertura e manutenção de escolas, bem como para a definição de um novo campo pedagógico, João Köpke foi pioneiro na divulgação e implantação do método analítico para o ensino da leitura e dedicou-se a uma profícua produção de livros de leitura.

Este artigo focaliza cinco textos publicados por João Köpke entre 1896 e 1917 em defesa do método analítico para o ensino da leitura. Após quase duas décadas da primeira edição da sua cartilha Método rápido para aprender a ler (1874), posteriormente relançada com o título Método racional e rápido para aprender a ler sem soletrar (1879), na qual se vale do método da silabação, Köpke se tornara ardoroso defensor do método analítico pela palavração, que, além de sistematizar nos referidos textos, nele se ancora para elaborar cartilhas, livros de leitura e outros livros didáticos para a escola elementar e secundária.

Os cinco escritos de que aqui se trata foram gerados em circunstâncias distintas e com formatos diferençados: dois deles, datados de 1896 e 1916, foram elaborados com vistas a conferências proferidas, respectivamente, no Instituto Pedagógico Paulista situado na antiga Escola Normal da Rua da Boa Morte e nas dependências do Jardim da Infância anexo à Escola Normal de São Paulo.

As idéias inovadoras e pioneiras de João Köpke apresentadas nas conferências o converteram em um precursor em relação a esse ensino, mas também o colocaram no epicentro de acirradas polêmicas e disputas com os professores paulistas.

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As primeiras polêmicas foram veiculadas na Revista de Ensino e dizem respeito às discordâncias de professores e escritores didáticos paulistas no que se refere ao modo de processar o método analítico.

A Revista de Ensino publicou um artigo, de Ramon Roca Dordal, dedicado aos mestres progressistas. Nele, além de invocar Pestallozzi e os princípios da educação intelectual e do ensino integral, o autor ressalta a importância do primeiro livro para crianças, ao mesmo tempo em que apresenta A Cartilha Moderna de sua autoria. Dordal a apresenta como sendo detentora dos requisitos fundamentais para o ensino público paulista, que estaria demandando um livro ao agrado das crianças, fácil ao trabalho do professor e, que fosse pautado no ensino da leitura pelo método analítico.

A seus objetivos, Dordal contrapôs o método patenteado por João Köpke em sua conferência de 1896, considerando-o de aplicação impossível, posto demandar um ensino individualizado, além de requerer do professor habilidades de desenhista e metodizador. Escreve Dordal:

Apresentar um desenho, esboçado rápida e elegantemente à vista do próprio aluno, e depois, em palestra, alegremente, ir animando-o até que ele consiga conhecer, explicar, ler e reproduzir os caracteres gráficos que compõem as sentenças que puderam ser formuladas a respeito desse desenho, e logo, compor, com o próprio aluno, a historieta, que o mesmo desenho inspirar, seria, digo, a última palavra no ensino da leitura, constituída, na frase do distinto educador, o passo mais seguro na integralização do ensino primário. Mas, atualmente, mesmo durante muito tempo, será isto possível nas escolas públicas? (DORDAL, 1902, p.214).

Ainda no mesmo número da Revista de Ensino, Joaquim Luiz de Brito, normalista da turma de 1882, membro da diretoria da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo e redator efetivo da Revista escreveu um artigo em que defendia

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entusiasticamente a Cartilha Moderna, de Ramon Roca Dordal, expondo suas discordâncias em relação ao apresentado por João Köpke, “por não ser ele aplicável em nossas escolas, onde o ensino é feito coletiva e não individualmente, e nem serem todos os professores desenhistas” (BRITO, 1902, p.322).

No número seguinte da Revista de Ensino, de outubro de 1902, João Köpke publicou uma carta aos professores L. Brito e R. Roca Dordal, na qual, sob a alegação de consciência profissional e baseado na Conferência de 1896, contestou as críticas recebidas. Quanto à exigência dos professores serem exímios desenhistas, Köpke esclareceu julgar secundário e até mesmo dispensável o emprego dos desenhos para o método, podendo os professores recorrer a estampas, clichês topográficos ou a cartazes reclamáticos e folhinhas. Köpke refutou também a acusação do uso exagerado da memorização, alegando que sua proposta visava, ao contrário da decoração, o entendimento verdadeiro das palavras. Na apresentação dos princípios, invocou a didática que considerava ser a mais adiantada do mundo, a americana. Köpke recorreu ainda ao professor Meiklejohn da Universidade de St. Andrews, em sua obra The problem of teaching to read acerca do emprego do método analítico:

Do embaraço, em que fico, sem dúvida por obtusidade do meu intelecto, se levanto os olhos para a didática mais adiantada do mundo, a americana, ali vou encontrar a distinção entre a instrução individual e coletiva nos readings-books, readers, primers ou cartilhas e no reading-charts ou mapas murais de leitura, os primeiros para uso do indivíduo, as segundas, da classe; exatamente como, na aula de geografia, o aluno manuseia o Atlas e a classe completa o mapa, isto é, o aluno naquele, vai desajudado do amparo do mestre, e a classe, neste acompanha-lhe a palavra e o gesto através das grandes características, traçadas de modo nítido e facilmente percebíveis à distância por muitos olhos, guiados pela luz que uma só mão espalha pela superfície das regiões exploradas (KÖPKE, 1902, p.777).

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A leitura e a análise dos artigos de Roca Dordal, Brito e Köpke indicam não só um acirrado debate sobre qual método e qual cartilha seria o mais adequado para o ensino da leitura e escrita, como também apontam para entendimentos diversos a respeito do método analítico.

Portanto o eixo de divergência não estava no fato de ser o método analítico da palavração inaplicável às classes de ensino coletivo, nem tão pouco na habilidade de desenhar dos professores. O problema se encontrava no fato de Roca Dordal e Brito entenderem que as palavras escolhidas para processar o método deveriam ser monossílabas e dissílabas, apresentando, assim, um método analítico pela palavração baseado nos procedimentos do método sintético pela silabação, enquanto para Köpke a escolha das palavras deveria considerar a composição das frases e sentenças independentemente do aspecto fonético, ou seja, por meio de um método analítico pela palavração partindo da elaboração coletiva do texto.

Ainda nesse mesmo ano, fértil na acirrada polêmica sobre o método analítico para ensino da leitura, Arnaldo de Oliveira Barreto publicou na Revista de Ensino um artigo em tom moderador e conciliador, em que indica a tolerância como solução para os problemas relativos aos métodos de ensino.

No entanto, o problema estaria ainda longe de alcançar resolução e durante os vinte anos subsequentes; outras cartilhas seriam criadas, tendo cada uma a pretensão de tornar-se a única e verdadeira repositória do método analítico, dessa forma acirrando ainda mais os debates e disputas por prestígio profissional e lucro financeiro.

O que aqui se examina, assim, são textos de combate; contudo, é com eles que João Köpke tanto confere uma feição sistematizada ao método analítico para o ensino de leitura como dá a saber as vertentes de pensamento e os autores em que se apoiou ou se inspirou para adoção e divulgação do referido método por meio da elaboração e publicação de livros de leitura e

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séries graduadas para a escola primária e secundária. Com esses escritos publicados num período de vinte anos, Köpke quebrou a monotonia das retóricas de parca consistência e rarefeita erudição, mobilizando ensaístas e investigadores pouco ou nada conhecidos nos meios educacionais brasileiros.

Embora tenha se envolvido em embates políticos ou ideológicos que, possivelmente, extrapolavam o seu conhecimento a respeito do fundamento republicano ou monarquista de um método de ensino, do sentido deste ou daquele procedimento didático, o certo é que para além de suas predileções políticas e pedagógicas Köpke acabou por se tornar epicentro do que Berta Braslavski denominou, muitas décadas depois, de “querela do método”, referindo-se ao embates que envolverem pedagogistas argentinos, brasileiros e outros em torno do método de ensino da leitura e escrita (cf. BRASLAVSKI, 1962, 1971).

Neste artigo, a atenção recai sobre os autores referidos por João Köpke como suportes para o método analítico tal como o entende e o operacionaliza em livros de destinação didática. O espectro dos nomes mencionados não é pequeno; inclui ensaístas, filósofos, psicologistas, pedagogistas europeus e norte-americanos. Da conferência de 1896, A leitura analytica, constam de pronto, porém de passagem, os indefectíveis Pestalozzi e Froebel, sucedidos por outros tantos também referidos de relance, que se diluem na prevalência de nomes tais como o de Joseph Jacotot, Alexander Bain, Isaac Taylor, Gabriel Compayré, William Preyer, James Sully, G. Stanley Hall, bem como o da muito elogiada Miss Marcia Browne. Excetuados o primeiro e a última, os demais comparecem explicitamente pela relação com os estudos que Köpke denomina de “psico-fisiológicos”.

Na carta de 1902, intitulada Ensino da leitura, são poucas as referências mobilizadas em apoio às suas proposições: retornam Jacotot louvado, mais uma vez, pelo aforismo com o qual se consagrou: “tudo está em tudo” e Miss Browne, a quem torna a prestar reverências; de novidade, aparece Meiklejohn. É

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com ele que Köpke encerra a carta prometendo enviar “em breve” para a Revista “um resumo do trabalho mais completo que conheço sobre o problema do ensino da leitura: o livrinho [The problem of teaching to read] de Meiklejohn” (Köpke, 1902, p.792) a que havia aludido anteriormente.

O compromisso foi honrado, uma vez que a matéria de 1903, publicada com o mesmo título da carta, Ensino da leitura, é integralmente dedicado ao tal “livrinho” de Meiklejohn, não exatamente para resumi-lo, como o próprio Köpke se corrige ao início, “porquanto”, diz ele:

o que faço é adaptar à nossa língua a parte do trabalho que se refere especialmente à língua inglesa, cuja ortografia, muito mais anômala, fundamenta a argumentação do emérito educacionista, e trasladar para o vernáculo a parte que se refere à escolha do melhor processo, uma vez que se suponha verificada a existência de uma notação gráfica perfeita, qualificativo de que está muito longe a portuguesa (Köpke,1903, p.1175).

Esses escritos dos primeiros anos do século XX, sugerem a transição do estilo adotado por Köpke na conferência de 1896 para o que se consagrará nos escritos de 1916 que encerram seu envolvimento nas polêmicas em torno dos métodos de ensino da leitura e da escrita: o número de menções ou referências passageiras pouco ou nada contextuadas diminuem, bem como o leque de correntes e ramos de conhecimento perde em amplitude para se concentrar em poucos e decisivos nomes quer da Psicologia quer da Pedagogia renovada; nos dois casos, é flagrante a transferência da legitimidade argumentativa dos filósofos-ensaístas europeus para os filósofos-cientistas ou, melhor dizendo, filósofos voltados aos estudos empíricos e experimentais.

Na conferência e na carta datadas de 1916, Köpke retorna a Meiklejohn, inclui Chubb, Carpenter e outros, mas desta feita é Stanley Hall que ocupa o lugar central, entre os

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produtores da nova psicologia científica que dá base à também nova pedagogia experimental.

Köpke inova também nos escritos de 1916 ao trazer à cena para testemunharem em seu favor em torno de cinco educadores norte-americanos; são pedagogistas experimentais, renovadores dos métodos de ensino envolvidos nas lidas escolares cotidianas. Dentre esses, é flagrante o espaço reservado a Coronel Francis Parker, diretor da Escola Laboratório da Universidade de Chicago criada em 1894 por John Dewey, e mentor do experimento curricular nela implantado, bem como a Sarah Louise Arnold, autora de livros destinados à escolarização elementar, dentre os quais a Arnold Primer, traduzida para o português e publicada em 1907, por encomenda de Oscar Thompson, então Diretor da Instrução Pública Paulista.

É provável que Köpke não tenha sido o primeiro e nem o mais judicioso do seu tempo, mas com certeza foi dos mais originais e bem fundamentados propugnadores dos procedimentos analíticos para o ensino da leitura nos meios educacionais brasileiros dos primórdios republicanos. É cabível pensá-lo como um exemplar daqueles intelectuais que, à época, se profissionalizavam e se especializavam em assuntos educacionais, gravitando entre os produtores ou criadores e os difusores do saber pedagógico. Tem cabimento também cogitar que esse seu duplo e concomitante engajamento tenha levado Rangel Pestana a honrosamente nomeá-lo seu alter ego em matérias educacionais (cf. HILSDORF, 1986; PANIZZOLO, 2006).

Diplomado por uma das poucas e eficazes instituições de formação de elites intelectuais e políticas brasileiras, a Academia de Direito de São Paulo, na qual tudo se aprendia nas artes do bem-falar, mas não necessariamente do bem-pensar e do bem-agir, João Köpke não guardou, ao longo do tempo, a verborragia eruditista dominante entre os seus contemporâneos sobre os quais, quer nas lidas congressuais quer nas acadêmicas, pesavam somente os encargos da persuasão, uma vez que estavam livres das

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mais modernas práticas de demonstração de provas documentais ou factuais que se impunham crescentemente nos ambientes científicos a partir de universidades européias e norte-americanas.

Dirigidos aos seus pares em assuntos educacionais, os textos de Köpke de 1902 e 1903 sinalizam para um novo estilo em que o esforço de convencimento vem diretamente associado à apresentação de evidências nascidas dos seus próprios experimentos ou de fontes abalizadas. Köpke se revela, até os últimos escritos de 1916, crescentemente atualizado com as mais novas tendências da Pedagogia e da Psicologia quer européias quer norte-americanas.

Além disso, tinha familiaridade com a língua inglesa, além da espanhola, da italiana, e da francesa, bastante conhecida dos ilustrados da época. A habilidade de leitura da língua inglesa já lhe estava plenamente constituída quando, saído da Academia de Direito, após breve interregno como promotor público, Köpke passou a se dedicar ao magistério, compartilhando-o com Rangel Pestana, Caetano de Campos, Américo Brasiliense, para citar apenas alguns dos seus parceiros de lidas pedagógicas. Com essa habilidade, Köpke pode buscar fontes originárias de países anglófonos e lê-las diretamente na língua original, dispensando, assim, as intermediações usuais, tanto das traduções para o Francês ou o Espanhol de obras escritas originariamente no Inglês, quanto dos relatos europeus sobre a escola ou a pedagogia norte-americanas, dentre os quais se sobrelevam os de Hippeau e de Buisson.

Esses são alguns dos traços do intelectual João Köpke que, de maneira bastante singular, se reportava a autores e obras que mal haviam entrado no circuito internacional, bem como estudava os relatos de iniciativas escolares que mudariam a configuração pedagógica e escolar dos Estados Unidos e de algumas regiões da Europa; na sua grande maioria, eram desconhecidos daquelas primeiras gerações de pedagogistas

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brasileiros envolvidos quer na modernização do ensino quer na instalação do regime republicano no Brasil.

A César o que é de César

Para se ter uma idéia mais clara e articulada da inflexão operada por João Köpke no perfil dos autores e no padrão de referências utilizadas foram compostos os quadros abaixo. Neles é possível visualizar três características já apontadas, além de uma quarta que será a seguir detalhada.

Quanto às três características anteriormente expostas, são elas: a) a focalização dos filósofos-cientistas/empírico-experimentais; b) a eleição das psicologias empírico-experimentais como suporte para a renovação pedagógica e c) a prevalência das pedagogias extraídas da experiência.

No Quadro 1 está registrada uma quarta característica das fontes citadas por Köpke em defesa do seu método analítico para o ensino da leitura aos quais confere legítima autoridade para dirimir dúvidas, dissipar equívocos ou mesmo amortecer os golpes a que vinha sendo submetido, bem como dos autores que ganham proeminência de 1896 a 1916 ou, ainda, da vertente da “boa psychologia”, como o próprio Köpke qualifica as bases nas quais apóia seu método de ensino e os procedimentos didáticos que a ele se vinculam.

Foram registrados 29 nomes aludidos como fontes inspiradoras ou de fundamentação, dos quais 19 constam como autores de estudos originais e 10 como mentores de experiências pedagógicas inovadoras ou autores de materiais de destinação didática. Entre os primeiros constam apenas um norte-americano e um europeu que imigrou para os EUA quando criança e lá permaneceu; os demais são europeus que permaneceram no Continente de origem; no segundo grupo, todos são norte-americanos.

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Nos limites deste artigo, interessa focalizar os autores de estudos originais, ou seja, os produtores de saber filosófico ou científico – independentemente de terem publicado, também, escritos de destinação didática ou de vulgarização –, considerando tanto a distribuição quanto a freqüência e os contextos em que são citados.

Dezenove (19) nomes foram registrados, dentre os quais constam: sete nascidos na Grã-Bretanha; dois alemães; dois franceses, um norte-americano e um suíço. Neles estão concentrados 82% das citações, ou seja, é o grupo dos autores mais freqüentes nos textos de Köpke aqui abordados2; entretanto, comparecem com peso bastante diferençado e com grande variação no tempo, do primeiro texto de 1896 aos escritos de 1916.

Quadro 1 – Frequência dos autores citados por João Köpke (1896-1917).

Autores F Alexander Meiklejohn 6 Granville Stanley Hall 6 Joseph Jacotot 4 William Benjamin Carpenter 3 Alexander Bain 2 Friedrich Froebel 2 Isaac Taylor 2 Percival Ashley Chubb 2 Gabriel Compayré 1 James Sully 1 Johann Bernhard Basedow 1 Johann Heinrich Pestalozzi 1 William Thierry Preyer 1

2 Não foi possível situar os outros seis nomes que completam a lista, uma vez que são mencionados de passagem e, em alguns casos, constam com grafias diferentes.

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Destaque-se, de um lado que: Jacotot, Froebel e Pestalozzi são referidos nos dois primeiros textos, e se apagam nos demais, sendo que Jacotot com bastante ênfase ao início; Compayré – é mencionado apenas no primeiro texto em meio a um rol de outros nomes; Basedow – é mencionado em 1916 em contexto um tanto difuso.

De outro lado, estão os outros oito autores; aparecem em momentos distintos e apresentam freqüências bastante diferençadas, no entanto, a análise empreendida dá sustentação ao entendimento que Köpke selecionou e reuniu esses autores como uma constelação na qual ancora seus argumentos em favor do método analítico para o ensino da leitura: cada um dos autores ocupa uma posição específica e exerce uma função em relação ao conjunto.

Não se trata de pensar essa constelação já constituída quando da primeira conferência de 1896; assim, não se apresenta em cada texto isoladamente; a sua inteira configuração só se deu a partir da análise textual, intertextual e contextual dos cinco escritos.

Preyer, Sully e Taylor, por exemplo, aparecem apenas no primeiro texto com uma ou duas referências, sendo que a Taylor é conferido maior relevo3. Bain aparece no primeiro texto e

3 Alguns dos títulos publicados:

∗ PREYER, Willism. (1888-1889). Mind of the child. New York: Appleton. Originalmente publicado em 1881, o livro reuni importantes artigos sobre a psicologia da criança.

∗ SULLY, James. (1874). Sensation and intuition: studies in psychology and aesthetics. London: H.S. King; _______. (1892). The Human Mind. London:, Longmans, Green & co.; _______. (1895). Studies of Childhood. New York: D. Appleton.

∗ TAYLOR, I. (1883). The Alphabet: an Account of the Origin and Development of Letters. London, K. Paul, Trench & co.; _______. (1864). Words and Places: or Etymological Illustrations of History, Ethnology, and Geography. London; Cambridge: Macmillan and Co.; _______. (1874). Etruscan Researches. London; Cambridge: Macmillan and Co.

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reaparece no último4. Chubb e Carpenter surgem apenas na conferência de 1916, ocupando espaço de razoável relevo5. Por fim, Meiklejohn e Stanley Hall, respectivamente, o inglês que imigrou para os EUA com oito anos de idade e o único norte-americano nativo desse rol de autores6. 4 Alguns dos títulos de:

∗ BAIN, Alexander: (1855). The Senses and the Intellect. London: Parker; _______. (1859). The Emotions and the Will. London: Parker; _______. (1870). Logic. London: Longmans, Green, Reader & Dyer.; _______. (1872). Mind and Body. London: Henry S. King.; _______. (1879). Education as a Science. London: C.K. Paul. Além dos manuais/compêndios escolares que contam com grande número de reedições: Higher English Grammar (1863); Manual of Rhetoric (1866); Manual of Mental and Moral Science (1868); A First English Grammar (1872); Companion to the Higher Grammar (1874); Rhetoric (nova ed.1887, 1888); On Teaching English (nova ed.1887, 1888). 5 Alguns das obras de:

∗ CHUBB, Percival A.: (1893). Editor of Essays of Montaigne. London: s/e; _____. (1902). The teaching of English in the elementary and secondary school New York: Macmillan Co.; _____. (1931). On the religious frontier: from an outpost of ethical religion. New York: Macmillan Co.

∗ CARPENTER, William B. (1839). Principles of general and comparative physiology, intended as an introduction to the study of human physiology, and as a guide to the philosophical pursuit of natural history. London: John Churchill; _____. (1844). On the microscopic structure of shells. Report of the 14th meeting of the British Association for the Advancement of Science held at York, p. 1-24; _____. (1852). "On the Influence of Suggestion in Modifying and directing Muscular Movement, independently of Volition", Royal Institution of Great Britain, (Proceedings). (12 March 1852), p.147-153; _____. (1874). Principles of Mental Physiology, with their Applications to the Training and Discipline of the Mind, and the Study of its Morbid Conditions. London: King; _____. (1888). Nature and man: essays scientific and philosophical. London: Kegan Paul, Trench & Co. 6 Seleta de títulos publicados por Meiklejohn e Stanley Hall:

∗ MEIKLEJOHN, Alexander. (1920). The Liberal College. Boston: Marshall Jones; _______. (1923). Freedom and the College. New York, Century._______. (1942). Education between Two Worlds. New York, London: Harper & Brothers; _______. (1948). Free Speech and its Relation to Self-Government. _______. (1960). Political freedom; the constitutional powers of the people. New York: Harper.

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Quadro 2 – Origem dos autores citados por João Köpke (1896-1917). Autores Nascimento País de origem País de destino

Alexander Bain 1818-1903 Grã-Bretanha

[Escócia] -

Alexander Meiklejohn 1872-1964 Grã-Bretanha [Inglaterra]

Imigrou para os EUA em 1880

Friedrich Froebel 1782–1852 Alemanha - Jules Gabriel Compayré 1843-1913 França - Granville Stanley Hall 1844-1924 Estados Unidos -

Isaac Taylor 1829-1901 Grã-Bretanha [Inglaterra] -

James Sully 1842-1923 Grã-Bretanha [Inglaterra] -

Johann Bernhard Basedow

1724-1790 Alemanha -

Johann Heinrich Pestalozzi 1746-1827 Suíça -

Joseph Jacotot 1770-1840 França -

Percival Ashley Chubb 1860 – 1960 Grã-Bretanha Transferiu-se para os

EUA em 1889 William Benjamin

Carpenter 1813-1885 Grã-Bretanha [Inglaterra] -

William Thierry Preyer 1841–1897 Grã-Bretanha [Inglaterra]

Transferiu-se para a Alemanha em 1855

Fonte: BORING (1950); FLANNERY (1995), WOODWARD, ASH (1982).

Stanley Hall surge nas páginas finais do primeiro texto para retornar com toda a força nos dois textos de 1916;

∗ HALL, G. Stanley. (1878). Notes on Hegel and His Critics. Journal of Speculative Philosophy, Nº12, p. 93-103; _______. (1881). Aspects of German Culture. Boston: James R. Osgood & Co.; _______. (1882). The Moral and Religious Training of Children. Princeton Review, Nº 20, p. 26-48.; _______. (1892). Moral Education and Will Training. Pedagogical Seminary, Nº 2, p. 72-89.; _______. (1904). Adolescence: Its psychology and its relations to physiology, anthropology, sociology, sex, crime, religion and education. New York: Appleton; _______. (1911). Educational Problems. London, New York: Appleton; _______. (1923). Life and Confessions of a Psychologist. New York: Appleton.

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Meiklejohn surge na carta de 1902 e a ele é dedicado integralmente o escrito de 1903, retornando nos dois textos finais.

Para Köpke, funcionam conjugadamente como organizadores da constelação de autores, obras e experiências; operam como pedra angular com os quais dimensiona os projetos pedagógicos em disputa e se orienta em meio à avalancha de informações que lhe chegam pelas ciências e pelas experiências que despontam por todos os lados.

É possível identificar pelo menos 5 eixos que neles se articulam:

a) o exame empírico experimental da cognição humana; b) a subordinação das pesquisas sobre a mente ou a

capacidade humana de intelecção ao evolucionismo darwiniano, com especial ênfase ao sentido de desenvolvimento e ao caráter adaptativo implicados nos atos cognitivos;

c) a inscrição da criança como objeto privilegiado de investigação; como corolário;

d) a eleição das instituições e dos procedimentos de ensino como alvos privilegiados quer de estudo quer de intervenção e, ainda,

e) o entendimento da linguagem, escrita ou falada, como expressões máximas da vida mental uma vez que nela se condensam os esforços de sobrevivência da espécie humana; dito de outra forma, a linguagem entendida como instrumento e veículo da cognição, bem como o seu índice por excelência.

Não se tem aí características genéricas que se possa utilizar em tantos outros autores e em tantas outras constelações de pensamento que emergiram ao longo do século XIX e começo do XX. Köpke reuniu em favor do método analítico um grupo bastante peculiar, de feições muito singulares. Excetuados Taylor e Meiklejohn, os demais são nomes decisivos na constituição da Psicologia como disciplina autônoma carreando para dentro dela a temática em torno da mente e da intelecção, os

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procedimentos das ciências naturais e as abordagens da Fisiologia: Bain, Carpenter e Preyer foram fundamentais nesse processo; no caminho por eles aberto, seguiram Sully e Stanley Hall. Carpenter e Preyer aportaram nas pesquisas sobre o desenvolvimento mental humano vindos, respectivamente, da Zoologia e da Medicina que os colocou, pronta e diretamente em contato com as revoluções que andavam se dando no campo das ciências naturais e biológicas7 (CRAWFORD, 1915; MARSHALL, 1984; ROSS, 1972).

O livro de Preyer The mind of the child, publicado em dois volumes, entre 1888 e 1889 marca a entrada da criança no campo dos estudos psicológicos sistemáticos. Stanley Hall providenciou a sua imediata tradução para o Inglês e nele incluiu uma densa introdução para torná-lo palatável ao puritanismo norte-americano. Poucos anos depois, com a entrada franqueada nos kindergartens, Hall replica o estudo de Preyer e dos seus resultados deriva uma seqüência de artigos e conferências que culminaram na criação da disciplina específica para o estudo da criança, o child studies, na qual se pretendia a confluência de abordagens, incluindo a pedagógica, sob a batuta da psicologia de base experimental. Na mesma direção de Preyer e Hall, Sully se dedica ao estudo da criança e da infância.

A Köpke interessaram largamente os resultados dessas investigações sobre as estruturas e os processos de cognição e sobre o desenvolvimento mental da criança em particular, tanto quanto o interessaram os escritos sobre educação saídos da pena daqueles homens de ciência que se envolveram intensamente com a reforma da escola e do currículo e a modernização dos métodos do ensino em seus países8.

7 Preyer defendeu a primeira tese de doutorado na Alemanha de orientação darwiniana. 8 De Taylor e Sully não se tem notícias de equivalente envolvimento com o ensino elementar e secundário

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Nesse campo, é Meiklejohn que o auxilia a compor a idéia da modernidade escolar e pedagógica.

Bain, Chubb, Carpenter e Preyer estenderam o raio de suas intervenções pedagógicas no tempo e no espaço por meio de manuais e livros didáticos com edições que atravessaram diferentes reformas de ensino ao longo do século XX. Esses materiais de ensino serviram para Köpke moldar seus livros de leitura e séries graduadas para a escola primária e secundária.

A síntese singular que ele realiza desse conjunto homogêneo e ao mesmo tempo diversificado de referências, contudo, não ter se ancorado efetivamente no lugar e no papel que os seus autores destinaram a língua, à linguagem e, por decorrência, à literatura como a mais alta expressão do homem civilizado.

Stanley Hall, Sully e Preyer estudaram os processos de aquisição e desenvolvimento da linguagem na infância. Bain e Taylor revolucionaram os estudos filológicos, lógicos e gramaticais da língua inglesa. Suas pesquisas alteraram os padrões do ensino do Inglês nas escolas inglesas e escocesas, que estenderam para outros territórios da Grã-Bretanha. Ambos provocaram a criação da disciplina Literatura Inglesa nas universidades britânicas, que Bain assumiu pela primeira vez, em meados do século XIX, quando lecionava na Universidade de Aberdeen, na Escócia. Por sua parte, os estudos filológicos de Taylor afetaram os padrões até então dominantes de explicação da origem do alfabeto utilizado pelos povos que deram origem ao Inglês arcaico.

Guardadas as proporções de tempo e espaço, Percival Chubb ocupa, nos Estados Unidos, lugar equivalente no que tange à radical mudança nos padrões de ensino da língua inglesa.

O uso das fontes

O que Köpke apanhou desses oito autores e como os articulou coerentemente?

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A subordinação dos procedimentos de ensino aos processos do desenvolvimento mental; partindo da análise para a síntese repetimos, diz Köpke, “a lei do nosso processo” (cf. KÖPKE, 1896, p. 25). Köpke se apóia em Bain, Carpenter, Preyer e Hall para realizar a tal subordinação; ao fazê-lo chamou em socorro as referências matriciais da psicologia do desenvolvimento mental que tomou a vereda aberta por Darwin para atacar as interpretações cartesianas e kantianas dominantes. Com isso, Köpke entrou em rota de colisão tanto com os procedimentos tradicionais de ensino que guiavam o aprendizado da leitura e da escrita como se a criança portasse as mesmas condições mentais de aprendizagem do adulto, quanto com outras vertentes evolucionistas. Nesse caso, há de se atentar para as discordâncias implícitas de Köpke com o evolucionismo positivista de Spencer, bastante difundido entre os pedagogistas brasileiros da época, que mantinham rígido entendimento da mente infantil uma vez que pensavam a evolução como processo para realização natural e necessária de etapas pelas quais a espécie teria passado.

Assim se pode compreender a sensibilidade de Köpke para o problema da sobrecarga [surmenage] que se impõe sobre a criança quando submetida a exigências cognitivas incompatíveis ou a estímulos inconsistentes com a sua experiência (cf. Köpke, 1986).

É nesse sentido que Stanley Hall funciona para Köpke como pedra angular da “boa psicologia” de que se vale para a sua “boa pedagogia”. Em Hall encontrou a criança no centro dos estudos sobre a vida mental e os processos de cognição, bem como viu os primeiros esforços de colocar as descobertas dos estudos sobre a criança (child studies) a serviço da reforma da escola e do ensino.

Köpke reteve como suas fontes centrais nomes associados a radicais reformas escolares e pedagógicas a partir dos seus países de origem. Sem exceção, os oito astros da constelação kopkeana investiram na mudança dos currículos e dos métodos de escolas

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elementares e secundárias. No caso de Bain, Chubb, Carpenter e Preyer, as suas iniciativas pedagógicas renovadoras se patentearam e se espraiaram no tempo e no espaço por meio de manuais e livros didáticos que serviram, mais das vezes, para a difusão de suas próprias descobertas científicas. Köpke se utiliza, em várias passagens, desses materiais pedagógicos para sustentar a organização que adotara em seus próprios mais didáticos.

Nesse âmbito pedagógico, Köpke reuniu expoentes do processo de modernização da Língua Inglesa e do seu ensino, quer na Grã-Bretanha quer nos Estados Unidos.

Bain realizou estudos sobre a Gramática e a Lógica da Língua Inglesa, submetendo-as ao crivo das análises da mente e dos processos mentais adaptativos. Com base nos resultados obtidos, elaborou novos padrões de ensino de gramática língua inglesa e composição, que se espraiaram da Escócia para outros países de língua inglesa por meio de manuais didáticos de Gramática. Coube também a Bain assumir a primeira cadeira de Lógica e Literatura Inglesa criada na Escócia; nela, potencializou o estudo da literatura inglesa para o domínio da língua e o conhecimento da cultura.

Por outros caminhos, Isaac Taylor, contemporaneamente, empreendia estudos filológicos em línguas antigas e modernas adotando procedimentos comparativos relativamente desconhecidos. Seus resultados derrubaram interpretações consolidadas sobre a origem e difusão da língua inglesa, bem como da passagem do Inglês arcaico para o moderno que tem em Shakespeare sua máxima expressão literária. Com isso, Taylor escreveu obras sobre a formação do alfabeto e da língua sobre os quais se apoiaram as reformas do ensino da língua inglesa no que se incluiu o uso da literatura.

Chubb é apontado, nos Estados Unidos, como um marco no processo de mudança dos antigos padrões do ensino da língua inglês adotados nas escolas norte-americanas. Seguindo o rastro dos seus antecessores e, como ele, cidadãos britânicos, Chubb

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investira na Inglaterra de origem na modernização do ensino da língua visando os jovens ingleses, portanto, falantes nativos. Seus intensos contatos com os EUA, e principalmente sua decisão de para lá se mudar, deram a Chubb a oportunidade de alargar os horizontes das mudanças pedagógicas pretendidas: nas escolas, nas fábricas, nas ruas dos EUA, como em nenhum país da Grã-Bretanha, e quiçá do mundo, se mesclavam centenas de línguas e dialetos trazidos não só pelas levas de imigrantes estrangeiros como pelos próprios nativos originários de ambientes culturais e sociais muito distintos.

Os EUA se afiguraram para Chubb um laboratório onde se podia testar infinitas alternativas para o ensino da língua não só ao falante nativo como ao estrangeiro a ser ajustado às regras lingüísticas do novo país. Chubb investiu centralmente nos procedimentos de ensino que colocavam o aprendizado escrito e falado da língua no instrumento-chave para o mergulho do aprendiz na cultura inclusiva; com isso, trabalhou em favor da inclusão, como material pedagógico, de uma enorme gama de textos da vida cotidiana.

Por fim, Meiklejohn que funciona como chave-mestra com a qual do ensino da língua, a leitura e a escrita a um projeto educacional de maior escopo. O “livrinho” de Meiklejohn “The problem of teaching to read”, ao qual Köpke dedica um artigo, fala dos problemas implicados no ensino da leitura que decorrem de ser a língua a máxima ferramenta da mente para o conhecimento e o instrumento por excelência para o pertencimento em uma civilização.

É de Meiklejohn que Köpke extrai a inspiração para, em diferentes passagens dos seus cinco textos, remeter à civilização grega de onde extrai exemplos de literatura e do significado da expressão escrita. Meiklejohn testou, em mais e um experimento escolar em que esteve envolvido, o abandono de currículos fechados em favor do estudo de temas: no primeiro ano, o estudo da civilização grega; no segundo, a civilização inglesa; os estudos

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desses temas poderiam se prolongar pelo tempo que se considerasse necessário para que os alunos tivessem ensejo de adquirir crescente domínio da palavra escrita e falada, e para que aumentassem suas habilidades de compreender aquelas civilizações por meio da palavra escrita.

Consideração final

Desde a publicação de sua primeira cartilha, em 1874, Köpke se viu envolvido em celeumas que projetavam o perímetro dos assuntos pedagógicos, para muito além das suas agências e dos seus agentes. Embora não tenha se furtado aos embates, as ações e reações de Köpke sugerem, de um lado, certa indisposição em face das questões político-filosóficas levantadas pelos seus opositores, que a um só tempo elidiam os reais problemas de instrução das crianças e dos jovens, tal como os compreendia, interceptando a adoção de procedimentos eficazes, como aqueles que estava a oferecer seja por meio de iniciativas institucionais seja na forma de materiais de destinação didática.

Ainda que agastado, por quase quatro décadas, Köpke não se furtou aos combates; contudo, resistiu milimetricamente a adotar as armas dos contendores. Bem ao contrário, aos ataques políticos, respondeu com projetos pedagógicos de contornos cada vez mais nítidos; em face das incursões filosófico-especulativas contrárias, comprometeu crescentemente os assuntos de ensino com as novas ciências do homem, radicalizando as bases da escola no campo empírico e os procedimentos do bem ensinar, no saber experimentado.

Referências

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Mirian Jorge Warde – Universidade Estadual Paulista – UNESP-Araraquara. E-mail: [email protected]

Claudia Panizzolo – Universidade Federal de Alfenas – Unifal. E-mail: [email protected]

Recebido em: 15/05/2009 Aceito em: 20/12/2009

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INVENTÁRIO E DIGITALIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO MUSEOLÓGICO DA EDUCAÇÃO – UM PROJECTO

DE PRESERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO EDUCATIVO1

Maria João Mogarro Fernanda Gonçalves

Jorge Casimiro Inês Oliveira

Resumo Neste texto apresenta-se o Projecto Inventariação e Digitalização do Património Museológico da Educação, desenvolvido pelo Ministério da Educação português. As escolas que integram o Projecto possuem importantes colecções de património museológico e pretende-se realizar a sua inventariação, preservação e divulgação. As instituições escolares foram acolhendo muitos objectos ao longo do tempo e tem-se em consideração o percurso destas instituições, onde os materiais foram utilizados e reutilizados. Estes materiais integram-se, historicamente, no campo de diversas disciplinas, desempenhando um papel fundamental na interconexão entre o conhecimento científico e a alquimia a que este conhecimento foi sujeito para se transformar em matéria de ensino. Estabelece-se assim a convergência com as actuais políticas de valorização da educação e do património cultural, com investigações e organização de museus dedicadas à escola, ao seu património e memória em diversos países. É um movimento transnacional, cujas semelhanças evidenciam a globalização da forma escolar e dos seus materiais.

Palavras-chave: Património educativo; inventário; museologia; cultura escolar.

1 Comunicação apresentada no VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, dedicado ao tema Cultura Escolar, Migrações e Cidadania, que se realizou no Porto, Portugal, de 20 a 23 de Junho de 2008. Os dados aqui apresentados referem-se a esta data.

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THE INVENTORY AND DIGITALIZATION OF THE HERITAGE MUSEUM OF EDUCATION: A PROJECT OF

PRESERVATION AND VALORIZATION OF THE EDUCATIONAL HERITAGE

Abstract In this paper we present the Project entitled The Inventory and Digitisation of the Museum Heritage of Education, developed by the Portuguese Ministry of Education. The schools that are part of the project have major collections of museum heritage and our aim is to carry out its inventory, to preserve and to promote them. These schools received many objects throughout time and we take into account the life of these institutions, where these objects were used and reused. Historically, these objects are connected to several of the subjects taught; they play a key role in the interconnection between scientific knowledge and the alchemy to which this knowledge was subjected in order to become teaching material. We establish, therefore, the convergence with the current policies that value education and cultural heritage, with research and organisation of museums dedicated to the school, to its heritage and legacy in several countries. It is a transnational movement, and the similarities between countries emphasise the globalisation of the school form and its materials.

Keywords: Educational heritage; inventory; museology; school culture.

INVENTARIO Y DIGITALIZACIÓN DEL PATRIMONIO MUSEOLÓGICO DE LA EDUCACIÓN – UN PROYECTO

DE PRESERVACIÓN Y VALORIZACIÓN DEL PATRIMONIO EDUCATIVO

Resumen En este texto presentamos el Proyecto Inventario y Digitalización del Patrimonio Museológico de la Educación, desarrollado por el Ministerio de la Educación portugués. Las escuelas que integran el Proyecto poseen importantes colecciones de patrimonio museológico y se pretende realizar su inventario, preservación y divulgación. Las instituciones escolares fueron acogiendo muchos objetos a lo largo del tiempo y se lleva en cuenta su recorrido, dónde se utilizaron y reutilizaron los materiales. Estos materiales se integran, históricamente, al campo de diversas disciplinas, teniendo un papel fundamental en la interconexión entre el conocimiento científico y la alquimia a que este conocimiento estuvo sujeto para transformarse en materia de enseñanza. Se establece, de ese modo, la convergencia con las actuales políticas de valorización de la educación y del patrimonio cultural, con investigaciones y organización de museos dedicadas a la

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escuela, a su patrimonio y memoria en diversos países. Se trata de un movimiento transnacional, cuyas semejanzas evidencian la globalización de la forma escolar y de sus materiales.

Palabras clave: Patrimonio educativo; inventario; museología; cultura escolar.

INVENTAIRE ET DIGITALISATION DU PATRIMOINE MUSÉOLOGIQUE DE L’ÉDUCATION – UN PROJET DE

PRÉSERVATION ET DE VALORISATION DU PATRIMOINE ÉDUCATIF

Résumé Dans ce texte nous présentons le Projet Inventaire et Digitalisation du Patrimoine Muséologique de l'Éducation, développé par le Ministère de l'Éducation portugais. Les écoles qui intègrent le Projet possèdent d'importantes collections de patrimoine muséologique et l’objectif est réaliser leur inventaire, conservation et divulgation. Les institutions scolaires ont accueilli beaucoup d'objets au long du temps et nous avons en considération le parcours de ces institutions, où ces objets ont été utilisés et réutilisés. Ces matériels s'intègrent, historiquement, dans le champ de diverses disciplines, en jouant une position fondamental dans l'interconnexion entre la connaissance scientifique et l'alchimie qui transforme cette connaissance en matière d'enseignement. S'établit ainsi la convergence avec les actuelles politiques de valorisation de l'éducation et du patrimoine culturel, avec les recherches et l’organisation de musées dévoués à l'école, à son patrimoine et sa mémoire, dans divers pays. C'est un mouvement transnational, dont les similitudes prouvent la globalisation de la forme scolaire et de leurs outils matériels.

Mots-clés: Patrimoine éducatif; inventaire; muséologie; culture scolaire.

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O Projecto Inventário e Digitalização do Património Museológico da Educação tem o objectivo de proceder ao inventário e digitalização dos bens de interesse museológico sob tutela do Ministério da Educação que se encontram em antigos liceus e escolas técnicas, com vista a salvaguardar, proteger e divulgar esses bens. Este projecto integra escolas secundárias de diversas regiões do país.

Património e cultura material da escola: a realidade portuguesa face ao movimento internacional

Este projecto insere-se na problemática da cultura material da escola, relativamente à qual têm vindo a ser construídas perspectivas de análise no campo da história, da sociologia e da etnoantroplogia. Os objectos educativos são cientificamente perspectivados como artefactos de grande valor simbólico e patrimonial, mas também como parte de uma narrativa histórica que os integra nos seus contextos, atribuindo-lhes significado e colocando-os em articulação com os actores sociais que os usaram em diversos ambientes educativos – nas práticas de ensino em que foram incorporados como recursos, nas formas de produção tecnológica que permitiram a sua elaboração e nos circuitos de distribuição que garantiram a resposta comercial às exigências de uma modernidade pedagógica que os reclamava como parte das novas correntes da educação.

Preservar, estudar e divulgar os objectos da escola é um trabalho que se torna urgente realizar, pois existe um número restrito de publicações sobre este tema e vastas colecções destes materiais que correm o risco de desaparecer.

As instituições escolares que fazem parte deste projecto (tais como muitas outras escolas portuguesas) foram acolhendo estes objectos ao longo do seu tempo de vida, por isso estamos a tratar de materiais que se foram agregando nas escolas desde meados do século XIX, quando surgiram os primeiros liceus e

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depois, na segunda metade do mesmo século, quando foram criadas as escolas técnicas. No entanto, estas instituições receberam peças que lhe podem ser anteriores e pertenceram, antes, a outros organismos, entretanto extintos. Se alargássemos este universo e englobássemos os materiais específicos do ensino primário, mais perecíveis, estaríamos a considerar objectos que podem ser ainda mais antigos. Estamos, deste modo, a mover-nos num arco temporal longo que se prolonga, pelo menos, até aos anos 70 do século XX.

O estudo sistemático do património cultural da educação tem em consideração a história das próprias instituições seleccionadas, em que se inserem os objectos e no contexto das quais eles foram utilizados e reutilizados. Assim, as monografias das escolas permitem enquadrar os materiais, a constituição dos espólios e o seu percurso nas instituições. No seu leque diversificado, o património educativo inclui a arquitectura escolar, com o edifício das escolas, o espaço envolvente e sua funcionalidade, os equipamentos, os materiais de uso quotidiano, os materiais didácticos (instrumentos científicos para o ensino das várias ciências, quadros parietais, caixas métricas, ábacos, etc.), os meios audiovisuais, os trabalhos de alunos, os cadernos escolares e muitos outros. Também abarca materiais em suporte de papel, correlacionados com os objectos referidos, tais como catálogos de casas editoras, manuais de ensino (que incorporam os materiais didácticos nos processos de ensino-aprendizagem), documentos de arquivo (requerimentos de professores, notas de compra, recibos, inventários antigos, etc.) e literatura articulada com o tema. Por seu lado, a imprensa de educação e ensino ocupa um lugar importante, pela divulgação que faz destes objectos e pelos artigos onde se aborda a utilização dos mesmos em contextos escolares.

Nos últimos anos do século XX assistiu-se, em Portugal como em outros países, à emergência de um significativo interesse pela escola e pelo seu passado. Novos olhares foram dirigidos pelos historiadores e investigadores da educação sobre o património e a

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materialidade da escola, dando também uma atenção renovada às memórias dos actores educativos. Vários projectos de investigação e intervenção foram desenvolvidos sobre estas temáticas (Mogarro, 2006: 79-82).

Internacionalmente, este movimento de preservação e valorização do património da educação tem vindo a ganhar uma relevância crescente nos campos científicos da educação, da história e da sociologia, nomeadamente no espaço europeu. Articulando linhas de investigação, neste domínio, com iniciativas de grande fôlego que conferem visibilidade à história da escola e ao património da educação em vários países, surgiram, nos últimos anos, publicações cujos autores pertencem às comunidades científicas da história da educação e estão, simultaneamente, ligados à criação, revitalização e direcção de centros e museus de educação de prestígio internacional. Foram desenvolvidos projectos desta natureza em vários países (França, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Alemanha e Espanha) onde encontramos museus de educação de referência.

Este tema insere-se, pois, numa dinâmica internacional e importa estudar os procedimentos no domínio da pesquisa, investigação, levantamento, inventariação, catalogação, digitalização e gestão das colecções de materiais educativos, assim como a tipologia estabelecida por esses centros e museus para objectos desta natureza. As formas de divulgação das suas colecções e as actividades desenvolvidas por estas instituições são também importantes, pela inserção que alcançaram nos meios científicos, na comunidade internacional e entre o grande público.

Em França, uma obra colectiva de referência sobre o património da educação nacional (Alexandre-Bidon et al., 1999) articula-se com a acção desenvolvida pelo Musée National de l’Éducation (Rouen), que pertence ao INRP – Institut National de Recherche Pédagogique. Em Espanha, os livros que surgiram sobre esta temática (Escolano Benito, 2007; Escolano Benito & Hernández Díaz, 2002; Ruiz Berrio, 2000) inserem-se num

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movimento que também conduziu à criação do Mupega – Museo Pedagoxico de Galicia e, mais recentemente, ao CEINCE – Centro Internacional de Cultura Escolar, que se assume como um centro de memória que, dirigido por Escolano Benito, se tem vindo a afirmar internacionalmente. Na Grã-Bretanha, os estudos mais teóricos sobre a materialidade da escola (Lawn & Grosvenor, 2005) tem a sua correspondência em várias iniciativas do mesmo género.

A lista de museus e colecções relativas à história da educação e da infância, organizada pela Secção da História da Educação da Katholieke Univesiteit Leuven (Schoolmusea), da responsabilidade de Karl Catteeuw, revela o interesse da comunidade universitária por esta temática, mas principalmente a importância e dimensão que a museologia escolar e educativa alcançou em diversos países. No panorama internacional, verifica-se um interesse convergente, relativamente à investigação nesta temática, a par da organização de instituições museológicas dedicadas ao mesmo universo e iniciativas de variado tipo que adoptam a escola, o seu património e a memória como tema. As iniciativas desenvolvidas no Brasil são exemplo desta realidade, em diversos estados e estão representadas neste Congresso. É um movimento transnacional, cujas semelhanças evidenciam a globalização da forma escolar e dos objectos materiais que a configuraram.

Será assim possível avaliar as experiências desenvolvidas em Portugal, efectuar um exercício comparativo com o foi realizado em outros países e elaborar propostas para uma mais eficaz salvaguarda, preservação, divulgação e conhecimento do património cultural da educação. Neste sentido, se incluem as acções e os produtos previstos neste projecto.

Em Portugal, algumas destas linhas também se verificam. Historicamente, o museísmo pedagógico conheceu dois momentos importantes com o Museu Pedagógico Municipal de Lisboa (1883),

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de Adolfo Coelho, e a Biblioteca Museu do Ensino Primário (1933), dirigida por Adolfo Lima (Mogarro, 2002; 2003).

O Museu Pedagógico de Adolfo Coelho reflectiu a crença ilimitada nas potencialidades da escola e da educação como factor de progresso e desenvolvimento, assim como a necessidade de criação dos museus nacionais que se responsabilizassem pela difusão da pedagogia e pela formação de professores. Com características comuns aos que surgiram em outros países, e que se inspiraram nas grandes exposições universais, estes museus ilustram as tecnologias emergentes e a sua conquista do campo educativo. Por seu lado, a Escola Museu do Ensino Primário expressa, na sua organização, as ideias do primeiro director, Adolfo Lima, cujas concepções, próprias da Educação Nova, tinham muito em comum com as de Adolfo Coelho. No entanto, a instituição que dirigiu foi fortemente controlada pelo regime estadonovista e a sua acção foi condicionada por esse enquadramento.

Já no regime democrático, a necessidade de preservar, estudar e divulgar o património educativo tem uma genealogia. No campo do estudo científico sobre o património da educação, é fundamental tomar como referência um levantamento que, em 1996-97, incidiu sobre as instituições escolares do sistema de ensino não superior em Portugal, abrangendo os espólios arquivísticos, bibliográfico e museológico. Este levantamento foi realizado no âmbito da acção de um grupo de trabalho nomeado pelo Ministro da Educação e coordenado por António Nóvoa2. Este grupo foi investido da missão de estudar as características de instalação e funcionamento do que seria o Instituto Histórico da Educação, no âmbito do qual existiria um museu (ou uma rede de museus) da educação. O trabalho realizado foi publicado (Nóvoa, 1998) e o Instituto Histórico da Educação foi criado, tendo depois

2 Despacho nº 137/ME/96, de 17 de Julho e Despacho nº 218/ME/96, de 25 de Setembro.

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sido extinto. Neste estudo realça-se a riqueza patrimonial sob tutela do Ministério da Educação e das escolas portuguesas: “uma documentação vastíssima, que nunca foi objecto de um plano global de selecção e tratamento” (Nóvoa, 1998: 25). Embora realçando o meritório trabalho desenvolvido pelos técnicos de Arquivo do Ministério, Nóvoa e a sua equipa alertavam então para os perigos da inexistência desse plano global de preservação e estudo do património, realçando que as iniciativas3 pontuais, desenvolvidas anteriormente com objectivo similar, “nunca dispuseram das infraestruturas e dos recursos humanos e materiais necessários a uma intervenção eficaz e duradoura” (idem).

No âmbito do referido estudo, o património museológico dos liceus e escolas técnicas foi considerado bem conservado e de qualidade. De entre estas escolas, 26 já possuíam então projectos museológicos próprios ou em colaboração, o que demonstra a existência de uma dinâmica significativa pela preservação e divulgação do seu património institucional. Ficaram registadas iniciativas como as salas-museu, os espaços de exposição e a participação em exposições de âmbito mais vasto. Este património museológico das instituições tem sido preservado por iniciativa de particulares (professores, técnicos, funcionários) e das próprias escolas. Encontramos assim núcleos museológicos que se mantém até hoje, como é o caso das Escolas Secundárias José Estêvão – Aveiro, Jácome Ratton – Tomar, Passos Manuel e Gil Vicente, ambas em Lisboa. A consistência e unidade destas iniciativas são garantidas pela própria instituição e pela sua estabilidade.

São exemplos de múltiplas iniciativas locais, que se encontram um pouco por todo o país, apresentando uma grande diversidade na natureza e objectivos dos projectos, no perfil das

3 Nóvoa apresenta e caracteriza seis iniciativas anteriores que visavam a preservação, estudo e divulgação do património museológico da educação e que foram desenvolvidas com apoio governamental, mas sem que houvesse continuidade desse trabalho (Nóvoa, 1998: 25-27).

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pessoas e instituições que neles se empenham e os apoiam e nos resultados que obtém.

As realidades diversificadas que estão subjacentes à designação de museologia educativa, na actualidade, correspondem a dois movimentos profundos, de natureza diferente relativamente ao património:

a) Um movimento dos investigadores e historiadores da educação que desenvolveram novos olhares sobre os fenómenos educativos, dando uma atenção crescente à materialidade da escola e ao seu património e inserindo-os nas actuais correntes epistemológicas, assim como nas agendas internacionais de investigação.

b) Uma atitude de preservação e cuidado face ao património das escolas, desenvolvido ao longo de décadas pelas pessoas em geral, com carácter particular, mas que só agora adquire visibilidade quando se descobrem fundos materiais ou simples objectos que permaneceram esquecidos. Mesmo que silenciados, esses materiais foram trazidos do passado até ao presente pela acção dessas pessoas. As numerosas iniciativas que se registam, atestam esta atitude.

Uma terceira dimensão diz respeito aos políticos que ocupam o campo de decisão e a quem compete definir e garantir políticas nesta matéria, de forma consistente e sustentada.

Há, pois, dois movimentos convergentes, embora de natureza e objectivos diversos. A realidade actual evidencia a dimensão mais vasta deste interesse, enraizando-o numa procura social de identidade e de fixação da memória em torno da escola. Adquire assim um novo sentido e urgência a tarefa de recuperar, preservar, estudar e divulgar o património escolar e educativo, o que passa pela necessidade de definir orientações e dar consistência a este movimento social e científico sobre a escola, a sua história e memória.

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Percurso do projecto museológico

A Secretaria-Geral (SG) é um serviço central do Ministério da Educação (ME) que tem, entre outras atribuições, a missão de preservar e valorizar o património histórico do ensino e da educação, de natureza arquivística, bibliográfica, museológica e arquitectónica sob a responsabilidade do ME.

Na prossecução destas atribuições, e dando continuidade ao trabalho de levantamento a nível nacional dos bens de interesse museológico sobre tutela do ME, executado pelo grupo de trabalho coordenado pelo Professor António Nóvoa, a SG deu início, em 2003, ao Programa SIDIME – Sistema Integrado de Documentação e Informação do Ministério da Educação – com o objectivo estratégico de disponibilizar on-line, através de um Portal, todo o espólio de natureza arquivística, documental e museológica do ME.

Numa das vertentes deste programa enquadra-se o projecto Inventário e Digitalização do Património Museológico da Educação, onde ao longo do seu percurso podemos observar as seguintes fases:

Fase 1 – projecto-piloto – ano lectivo 2004/2005

Com o objectivo de realizar o inventário e a digitalização dos bens de interesse museológico sob tutela do ME que se encontram em antigos Liceus e Escolas Industriais, foi assinado, em 8 de Novembro de 2004, um Protocolo de Colaboração entre o Instituto Português de Museus (IPM), a SG/ME e a Direcção Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo (antiga DREL, actual DRELVT), com vista a salvaguardar, proteger e divulgar esses bens, e cuja baliza cronológica será a década de 1970 (25 de Abril). Considerou-se que os objectos posteriores a esta data careciam de análise individualizada dos especialistas em História da Educação.

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Nesta fase piloto, ficaram afectas ao Projecto 4 escolas secundárias localizadas na região de Lisboa (Camões, Gil Vicente, Passos Manuel e a Marquês de Pombal) e definiu-se que a metodologia seguida, depois de avaliada, seria estendida a outras Escolas da rede pública com espólios de reconhecido valor patrimonial.

Assim sendo, no ano lectivo 2004/2005, a SG, em conjunto com a DREL, desenvolveu uma acção de sensibilização junto dos presidentes executivos das escolas (escolhidas a partir do levantamento realizado em 1996), a fim de os motivar a participar no projecto e para afectar equipas de professores para esta actividade (3/4 por escola). Estas equipas receberam formação na área da História da Educação e sobre a inventariação de colecções – Programa Matriz –, efectuada pelo IPM/Direcção de Serviços de Inventário. A SG forneceu a todas as escolas o software de referência (Matriz) e equipou-as com o material informático e fotográfico necessário para os trabalhos de inventariação e digitalização, assim como o material de marcação de peças.

Entretanto, foi constituído um Grupo de Trabalho com técnicos da SG, que fazia a gestão e a dinamização do projecto, os contactos com as escolas e com os parceiros (IPM e DREL). Embora este projecto seja da responsabilidade da SG, teve nesta fase uma co-coordenação com o IPM/Direcção de Serviços de Inventário, que era responsável pelas orientações técnicas de inventariação, tendo em conta as especificidades do Programa Matriz, de forma a uniformizar o carregamento da base, sendo igualmente da sua responsabilidade a validação das fichas Matriz.

No final do ano lectivo, foi efectuada uma avaliação dos resultados de forma a permitir observar quais os pontos que havia a melhorar e a metodologia a seguir no futuro. Os resultados obtidos permitiram-nos verificar que, apesar da grande aceitação do projecto entre a comunidade educativa, havia aspectos sobre os quais os professores tinham dificuldades e que necessitavam de um acompanhamento mais personalizado, específico e científico. A

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projecção do projecto tinha suscitado grande interesse da parte de outras escolas da DREL que desejavam integrá-lo. Na realidade, esta hipótese fazia parte da estratégia inicial da SG, assim como estendê-lo às escolas das outras direcções regionais de educação, com quem iniciou os primeiros contactos neste período.

Fase 2 – alargamento do projecto a outras escolas da DRELVT – ano lectivo 2005/2006

Conforme o previsto, o projecto foi alargado neste ano lectivo a mais 5 escolas secundárias da DRELVT (Rainha D. Leonor, M.ª Amália Vaz de Carvalho, Pedro Nunes, em Lisboa, e Jácome Ratton – Tomar) e Bocage – Setúbal, perfazendo um total 8 escolas (Escola Secundária Camões saiu do projecto).

Com a integração de novas escolas e terminado o Protocolo de Colaboração com o IPM/Direcção de Serviços de Inventário, havia a necessidade de reorganizar o projecto de forma a colmatar os aspectos menos positivos, identificados no ano anterior, e criar uma estrutura cientifica e técnica mais habilitada para que os resultados futuros pudessem assentar em metodologias e práticas consistentes.

Neste sentido, foi elaborada uma proposta de consultoria científica com a especialista em História da Educação (Professora Dr.ª Maria João Mogarro) e foi integrada no grupo a museóloga (Dr.ª Inês Oliveira) que, para além da sua formação em museologia, possuía também experiência na base de dados Matriz. Iniciou-se assim um novo ciclo, em que os resultados obtidos projectaram o projecto, de forma mais consistente, para além da comunidade educativa, alargando-se à comunidade científica e a sectores mais vastos da população.

Fase 3 – alargamento do projecto a escolas das DRE do Centro e do Alentejo – anos lectivos 2006/2008

Com a consolidação do projecto – durante os anos lectivos 2005/06 e 2006/07 – estavam criadas as condições para se iniciar

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o processo de integração de escolas das outras Direcções Regionais de Educação. Esta incorporação começou a ser planeada ainda durante o ano 2006/2007, e beneficiando da experiência anterior, as novas equipas de professores receberam formação específica e focalizada nos pontos essenciais para o desenvolvimento do seu trabalho de inventariação das colecções, nomeadamente da base de dados Matriz. Esta formação foi dada por elementos da equipa de trabalho da SG, conjuntamente com técnicos de fotografia das direcções regionais de educação.

Integraram assim o projecto museológico da educação, no início do presente ano lectivo, mais 3 escolas secundárias das DRE’s do Centro e do Alentejo, respectivamente: Avelar Brotero (Coimbra), Campos Melo (Covilhã) e José Estêvão (Aveiro); Gabriel Pereira (Évora), Mouzinho da Silveira (Portalegre) e Diogo de Gouveia (Beja). Atingia-se um total de 14 escolas secundárias.

O suporte técnico: o Programa Matriz e o processo de adequação

Os bens patrimoniais, enquanto «testemunhos» de uma cultura são igualmente valorizados pela informação a eles associada e, neste sentido, conservar essa informação é tão vital como a preservação do próprio objecto. É nesta lógica que a documentação4 tem sido considerada como a base fundamental para as demais práticas museológicas, não devendo limitar-se à recolha de dados sobre o objecto, pese embora a importância dessa 4 A documentação museológica é composta pelos seguintes itens: a «aquisição» dos bens, isto é, o modo de ingresso do objecto que pode ser uma aquisição, uma doação, um empréstimo ou permuta; elaboração de um «livro de registo ou de inventário», onde se procede à entrada dos objectos e sua identificação; realização da «pesquisa» com o objectivo de recolher e organizar toda a informação possível sobre as peças; a constituição de «fichas de inventário» individuais sobre cada objecto.

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informação, mas objectivar a reflexão sobre o acervo, produzir conhecimento a partir dele e constituir um elemento de integração do património na comunidade.

Neste sentido, o processo de documentação realizado no âmbito do Projecto de Inventário e Digitalização do Património Museológico da Educação tem-se revelado fundamental para o conhecimento desse património, para a sua valorização e consequente preservação e divulgação, possibilitando a construção de uma base de dados que funciona como uma fonte de informação e conhecimento sobre o património educativo.

No que concerne à documentação museológica, a estrutura informativa a reunir sobre o objecto pode ser organizada em informações intrínsecas, que se obtêm a partir da análise das características físicas dos objectos, nomeadamente a composição, a matéria, a técnica, as dimensões, a cor, etc.; e informações extrínsecas, obtidas através de outras fontes permitindo conhecer os contextos de criação/produção, a(s) sua(s) função(ões) e significado(s). É este tipo de dados extrínsecos que possibilita a contextualização do objecto numa determinada cultura, tornando-os seu testemunho, e dotando-o de um valor histórico, estético, científico, simbólico e até económico.

A constituição de uma base de dados para a realização do inventário e respectiva documentação das colecções deve ter em conta a especificidade dos espólios a tratar, adaptando-se às necessidades de inventariação, pesquisa e acção de cada escola e ainda permitir a organização dessas informações intrínsecas e extrínsecas. Em suma, a ficha de inventário deve ser pensada para servir as especificidades do acervo de cada instituição, tendo por objectivo o registo de todas as informações consideradas pertinentes.

No caso deste Projecto, a adopção da ficha de inventário Matriz decorre do protocolo realizado com o então Instituto Português de Museus (IPM), instituto que apoiou, numa primeira fase, o projecto e que realizou a formação dos professores.

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A adopção desta ficha Matriz revelou, no entanto, alguns constrangimentos na medida em que foi pensada para o inventário, documentação e gestão do património móvel dos museus tutelados pelo IPM e, como tal, vocacionada para responder às necessidades dessas instituições museológicas com colecções essencialmente nos domínios das Artes Plásticas e Artes Decorativas, Etnologia e Arqueologia. Neste sentido, os diversos Campos da ficha Matriz reflectem essa vocação, tal como as Normas de Inventário editadas pelo IPM que definem o seu preenchimento (Pinho & Freitas, 2000).

Na sequência dessa constatação, verificou-se a urgência de encontrar um caminho de adaptação da ficha Matriz à realidade do Projecto e foi nesse contexto que o Grupo de Trabalho da SG-ME, em parceria com as equipas de professores das diversas escolas, procedeu à criação de um Guia Prático de Inventário onde cada “campo” da ficha Matriz foi reinterpretado e redefinido. Este Guia Prático procurou igualmente contribuir para a uniformização do exercício de inventariação e proporcionar a cada inventariante o acesso a um conjunto de instruções e exemplos práticos de modo a facilitar o processo de documentação (Mogarro, Gonçalves & Oliveira, 2007).

Para a sua elaboração seguiu-se a estrutura das Normas de Inventário do IPM e foi descrito em pormenor o tipo de dados a preencher tendo em conta a especificidade do espólio e a informação a recolher.

No que diz respeito à ficha Matriz encontra-se organizada em duas partes: o cabeçalho, que permite uma identificação sumária da peça com a respectiva imagem; e os separadores, com diversos campos que possibilitam a documentação da peça, através da palavra escrita, da fotografia e do registo de vídeo e de som.

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Cabeçalho

Separadores

O cabeçalho da ficha permite identificar o proprietário da peça, a sua denominação e título, o número de inventário bem como catalogá-la dentro de uma classificação em três níveis - Super Categoria, Categoria e Subcategoria. Os separadores, por seu turno, organizam a informação recolhida sobre os objectos e todos os eles estão divididos em diversos campos de escrita corrente, para registar as informações intrínsecas, nomeadamente a «Identificação» da peça em termos da sua descrição física; «Informação Técnica» ao nível da matéria e técnica; «Dimensões»; «Marcas e Inscrições» que a peça possa eventualmente ter; e «Estado de Conservação». Permite igualmente inscrever as informações extrínsecas às peças nos separadores de «Localização» da peça na instituição; «Imagem/Som»; «Autoria»; «Produção» da peça ao nível do seu fabricante, centro de fabrico e local de execução; «Origem» da peça e seu historial no que respeita ao seu percurso, aos contextos de criação e utilização e possíveis

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transformações quanto à sua função e forma; «Datação» por data ou período cronológico; «Incorporação» da peça na instituição e respectiva data e modo de incorporação; «Exposições» em que tenha participado; «Bibliografia» utilizada e recolhida para a obtenção de informações sobre as peças; e «Observações» para registo de informação adicional.

No processo de revisão e adaptação da ficha Matriz às colecções de natureza educativa, salientam-se os campos de classificação dos objectos. Exceptuando a Super Categoria, nível classificatório predefinido para “Artes Plásticas/Artes Decorativas”, “Etnologia” e “Arqueologia” (que não podia ser alterada, impondo o próprio programa a impossibilidade de adaptação), as Categorias e Subcategorias foram adaptadas, resultando numa redefinição do mapa de classificação dos espólios. Assim, os objectos são classificados de acordo com a técnica ou tipologia (Categoria) e área do saber ou disciplina curricular em que era utilizado (Subcategoria).

O campo Elemento de um Conjunto, destinado a relacionar peças que, pela leitura estética ou funcional, fazem parte de um conjunto, tem permitido associar objectos que pertencem a uma mesma colecção, nomeadamente os quadros parietais, agrupados segundo características temáticas, estéticas e de autoria.

Por seu turno, o levantamento das marcas e inscrições da peça, pela sua transcrição para o respectivo campo e associação de imagem de pormenor, tem possibilitado o levantamento de logótipos de produtores de materiais didácticos, construindo-se uma base de dados iconográfica significativa. Este campo tem maior interesse para o conhecimento do património educativo quando associado aos campos Autoria e Produção, dado que possibilita conhecer, nomeadamente, os autores e a sua profissão, assim como os produtores, os locais de fabrico e os distribuidores.

Em muitos casos, a obtenção das informações extrínsecas ao objecto é possível recorrendo aos arquivos das próprias escolas.

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Um exemplo é o preenchimento do campo Incorporação, que permite identificar o modo de entrada da peça na instituição e respectiva data. Dado a pertinência destas fontes, foi estabelecido que os documentos deveriam ser digitalizados e associados ao campo Documentação associada, do separador Bibliografia.

O Património Museológico da Educação: caracterização, divulgação e produções

O programa Matriz permite a constituição uma Base de Dados que se configura como uma ferramenta poderosa para o estudo, preservação e divulgação do património educativo. Apesar das dificuldades encontradas na adaptação da ficha Matriz aos materiais de natureza educativa, dispomos agora de uma fonte de informação e conhecimento sobre o património museológico das escolas portuguesas, que tem a sua vertente de divulgação ao público na plataforma MatrizWeb. Através deste sítio da Internet é possível aceder a alguns dos campos da base de dados5 e às peças previamente seleccionadas segundo critérios que se prendem com a escolha dos objectos que melhor caracterizam o espólio de cada escola. Essa selecção permitiu, até ao momento, disponibilizar ao público 2441 peças das 5966 inventariadas.

A observação das peças presentes no MatrizWeb permite verificar que se tratam de espólios diversificados, que integram objectos classificados em diversas categorias, nomeadamente «Instrumentos científicos», «Materiais didácticos», «Cerâmica», «Mobiliário», «Fotografia», «Pintura», «Escultura», «Instrumentos e utensílios» e «Têxteis», existindo, no entanto, uma predominância dos objectos adquiridos pelas escolas para as

5 A plataforma MatrizWeb disponibiliza ao público parte da informação registada na ficha de cada peça: uma imagem do objecto e uma informação sucinta do mesmo, especificamente a sua identificação, classificação, datação, dimensões, n.º de inventário e descrição.

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práticas de ensino, com destaque para os «Instrumentos científicos» e os «Materiais didácticos».

Escola

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Total

Escola Sec. Bocage (Setúbal) 242 158 400Escola Sec. Campos Melo (Covilhã) 9 9Escola Sec. Gil Vicente (Lisboa) 2 7 188 19 480 1 1 698Escola Sec. Jácome Ratton (Tomar) 10 22 43 51 126Escola Sec. Mª Amália Vaz de Carvalho (Lisboa) 7 10 32 2 14 65Escola Sec. Marquês de Pombal (Lisboa) 23 156 1 15 28 223Escola Sec. Mouzinho da Silveira (Portalegre) 42 42Escola Sec. Passos Manuel (Lisboa) 92 463 555Escola Sec. Pedro Nunes (Lisboa) 178 2 180Escola Sec. Rainha D. Leonor (Lisboa) 5 126 12 143Total 32 166 9 23 22 15 775 21 1322 15 29 12 2441

Categorias

No domínio da divulgação do projecto, tem-se recorrido a diversos processos, produtos e actividades nos quais estão envolvidos a Secretaria-Geral do ME e as equipas de professores das escolas. No âmbito da Secretaria-Geral, destacam-se as seguintes iniciativas:

Matrizweb – como o Programa Matriz, para além do inventário dos objectos (Ficha Matriz) e da gestão das colecções, permite o acesso e a pesquisa às mesmas, foi instalada em Maio de 2005, no sítio do Museu Virtual da Educação/Património Museológico, a primeira exposição na plataforma Matrizweb, que serve, simultaneamente, como fonte de informação e de divulgação dos acervos museológicos escolares. É nesta aplicação que são instalados regularmente os objectos que as escolas vão inventariando, depois de efectuada a sua validação. Nem todos os objectos inventariados na base de dados Matriz estão disponíveis, quer por razões técnicas e científicas, quer por razões de segurança dos próprios acervos6. 6 Ver: http://edumuseu.sg.min-edu.pt.

Entretanto, no ano de 2009, a base de dados Matriz foi substituída pela In Arte e todas as peças estão disponíveis ao público através do interface In Web, que substituiu o MatrizWeb, neste mesmo endereço electrónico.

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Exposições temáticas – com a necessidade de expandir e divulgar o projecto por outros pontos de acesso, a SG aderiu ao convite da ParaRede, e participou no projecto-piloto da plataforma eExhibitions e instalou duas exposições temáticas nesta aplicação – Instrumentos Científicos da Educação, em 2006 e Imagens Parietais da Educação, em 20077.

Peça do Mês – também em 2006, o Grupo de Trabalho da SG iniciou a actividade Peça do Mês com o objectivo de salientar, todos os meses, uma peça de entre as melhores inventariadas pelas escolas, de forma a motivar as equipas de professores e para despertar o interesse da comunidade escolar e do público para a variedade de espólios que a base contém8.

Dia Internacional dos Museus – desde 2005 que a SG comemora este dia com a realização de vários eventos, em conjunto com as escolas afectas ao projecto, para apresentar a dinâmica, as práticas e os resultados que o projecto museológico da educação vai obtendo, e para os quais convida a participar/intervir a comunidade educativa, os gabinetes ministeriais do ME, os dirigentes do ME, a comunidade cientifica ligada à História da Educação e a comunidade local, de forma a envolver e sensibilizar os vários intervenientes para a importância da salvaguarda dos bens museológicos da educação e realçar a contribuição deste projecto para a construção da memória educativa.

Um olhar sobre o Património Museológico da Educação – é o tema da exposição que esteve patente nas montras do Ministério da Educação, na Av. 5 de Outubro, durante o mês de Março de 2008, e em que participaram as 14 escolas que integram o projecto, representadas através de 14 painéis que ilustram os espaços educativos actuais e antigos acompanhados por objectos representativos das suas colecções, os quais integram a base de dados Matriz. Esta exposição encontra-se, desde o final de

7 Disponíveis em http://www.eexhibitions.net/ 8 Pode ser visitada em http://www.sg.min-edu.pt/museu0b.htm

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Março e até ao final do ano lectivo, a percorrer todas as escolas do projecto das três DRE’s e no próximo ano lectivo vai ser apresentada nas instalações das DRE’s e em outros espaços educativos, com o objectivo de levar o projecto museológico às comunidades escolares e locais e, cada vez mais, envolver e sensibilizar estes actores para a preservação do património educativo.

Património Cultural do Ensino & da Educação – foi tornado público pela SG, no evento da comemoração do Dia Internacional dos Museus, dia 16 de Maio de 2008, no Palácio Valadares, em Lisboa (ex-Escola Secundária Veiga Beirão), mais um ponto de acesso ao património museológico da educação, cuja consulta pode ser efectuada através de endereço próprio9.

Ao nível da participação das escolas, a maior parte delas, desde o início da sua integração no projecto, contribuem, através de várias actividades e outras dinâmicas, para levar à comunidade escolar, à comunidade local e a outros parceiros, o projecto e as suas colecções, sempre com o propósito de chamarem a atenção não só para o seu trabalho, como para a importância da valorização e conservação dos acervos museológicos que constituem a memória das próprias instituições escolares.

De entre as várias iniciativas, destacamos: a preservação ou criação de Museus de Escola ou de Núcleos Museológicos; actividades desenvolvidas sobre os temas do património nos clubes de História ou de História da Escola; exposições temáticas e palestras, assim como visitas guiadas aos espaços museológicos e a colecções específicas, consideradas de interesse relevante pela instituição; integração de temas sobre o património educativo em actividades lúdicas, didácticas, científico-pedagógicas e multidisciplinares; programas próprios das escolas no Dia Internacional dos Museus, dedicados a alunos, antigos alunos e pais, assim como à comunidade, em que se desenvolvem muitas

9 Consultar http://projectobame.blogspot.com/

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das actividades referenciadas; participação com rubricas específicas nos jornais escolares e com espaços próprios em feiras pedagógicas, com o objectivo de divulgar o projecto e promover a educação patrimonial; elaboração de brochuras temáticas e catálogos, estes com as peças dos espólios da respectiva escola; concepção e produção de materiais de divulgação sobre temas associados ao projecto, como marcadores de livros e postais.

O esforço formativo e de disseminação do conhecimento, tendo como tema central este projecto, os temas e as actividades a ele associados, encontra outros canais em diferentes escolas, como a divulgação através de sites e da plataforma Moodle de e-learning de cada instituição, assim como a sua inclusão em blogs.

Muitas iniciativas integram-se em comemorações (como aniversários) que são relevantes para a escola, podendo também surgir em relação directa com determinadas áreas disciplinares (como biologia, física, química) ou cursos específicos (formação feminina, marcenaria, serralharia) que se pretendem valorizar no percurso histórico da instituição. Várias destas escolas estabeleceram protocolos e projectos com outras escolas e instituições, quer nacionais, quer estrangeiras, em torno da temática do património museológico, do seu estudo, preservação e utilização em actividades pedagógicas.

Conclusão

Com este projecto, aprofunda-se o conhecimento existente sobre o tema, ao nível da realidade portuguesa, desenham-se hipóteses de comparação com outros países e definem-se processos e formas para a preservação e valorização dos fundos museológicos da educação. Um dos seus objectivos é tornar acessível à comunidade científica o conhecimento dos fundos patrimoniais e culturais a estudar, contribuindo para o desenvolvimento de linhas de investigação sobre a cultura material e o património educativo em Portugal, tal como se regista em outros países com cujas

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comunidades científicas se têm consolidado relações e projectos de cooperação internacional. O levantamento e estudo do património museológico nas escolas permite estabelecer as correlações dos materiais com as disciplinas escolares e a sua história, assim como o seu papel/função de conexão entre o conhecimento científico produzido e a alquimia a que este conhecimento é sujeito para se transformar em matéria de ensino. Outro segmento importante é o estudo dos autores destes objectos, que os conceberam ou adaptaram, e as casas editoras, produtoras e distribuidoras. Pode-se assim elaborar um mapa dos locais de produção destes materiais e articulá-los com os locais onde eles foram usados em contextos educativos, estabelecendo os circuitos de produção, circulação e apropriação dos modelos culturais e pedagógicos, através da materialidade com que se foram configurando nos objectos inventariados.

As escolas que integram o projecto assumem um importante papel na inventariação, preservação e divulgação do seu património museológico, tendo também colocado em evidência que os seus espólios constituem um recurso didáctico significativo, a utilizar em actividades desenvolvidas no âmbito da docência, da própria escola e de relação com a comunidade. Está hoje demonstrado a poderosa dimensão simbólica dos objectos ordinários que utilizamos quotidianamente ao longo da vida e aqueles que remetem para esse elemento que é comum às pessoas – a escola – têm um enorme poder de atracção. Os materiais educativos fazem parte da cultura da escola, assim como da memória e identidade que cada instituição escolar vai construindo ao longo do seu processo de existência, mas também da memória que as pessoas guardam da sua infância e juventude e dos objectos que utilizavam nas suas escolas.

Este projecto consolidou-se e ganhou visibilidade ao longo dos seus anos de existência. Como todos os projectos, terá um fim; mas esperamos que dê lugar a iniciativas mais sólidas, de âmbito mais geral e que articulem os diferentes espólios do ME

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(bibliotecas, arquivos e museus) num sistema integrado de informação, que permita correlacionar os dados sobre temas educativos, consultando fontes de diversas proveniências. No futuro próximo, o funcionamento deste projecto terá de equacionar novas realidades no campo educativo – algumas das escolas que o integram vão ser objecto de intervenção com vista à modernização do parque escolar, num ambicioso programa de requalificação arquitectónica que foi implementado pelo governo, e terão de ser repensados os processos e formas de trabalho para o inventário e digitalização do património museológico dessas mesmas escolas. Esperemos que esse futuro consolide e dê consistência a uma política continuada de preservação, valorização e divulgação do património educativo, nomeadamente da sua componente museológica.

Referências

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RUIZ BERRIO, J. (org.) (2000). La cultura escolar de Europa. Tendências históricas emergentes. Madrid: Biblioteca Nueva.

Maria João Mogarro é Doutora em História da Educação, Investigadora da Universidade de Lisboa - UI&DCE e Professora Coordenadora da Escola Superior de Educação de Portalegre. Consultora do Projecto “Inventário e Digitalização do Património Museológico da Educação”. E-mail: [email protected]

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Fernanda Gonçalves é Licenciada em Design Visual, Assessora do Quadro Único do Pessoal do Ministério da Educação (ME) português e desempenha funções técnicas na Direcção de Serviços de Informação e Documentação da Secretaria-Geral do ME, como Gestora do Projecto “Inventário e Digitalização do Património Museológico da Educação” e da vertente museológica do Projecto “BAME – Bibliotecas, Arquivos e Museus da Educação – nas Escolas”. E-mail: [email protected]

Jorge Casimiro é Licenciado em Física pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Trabalhos de investigação em Física do Estado Líquido e estudos em História e Filosofia das Ciências. Assessor Principal do quadro do Ministério da Educação, actualmente requisitado pela Estrutura de Missão para os Assuntos do Mar (Ministério da Defesa Nacional), tem obra escrita diversa, nas áreas do ensaio, poesia, tradução, ficção e crítica literária. É um comunicador de ciência. E-mail: [email protected]

Inês Cavadas de Oliveira, Licenciada em História da Arte com Mestrado em Museologia, inventariante no projecto de “Inventário e Digitalização do Património Museológico da Educação” enquanto estagiária na Secretaria-Geral do Ministério da Educação. E-mail: [email protected]

Recebido em: 12/06/2009 Aceito em: 20/12/2009

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MEMÓRIAS DE UM PROFESSOR: A INSTIGANTE HISTÓRIA DE VIDA

DO PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN - DE IMIGRANTE CONTRATADO COMO

SOLDADO MERCENÁRIO NA GUERRA CONTRA ROSAS EM 1851 (ARGENTINA) A PROFESSOR

PRIMÁRIO EM COLÔNIA ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL

Luiz Alberto de Souza Marques

Resumo O presente estudo apresenta a história de vida do Professor Frederico Michaelsen, personagem marcante na história da educação do município de Nova Petrópolis - RS. O eixo principal do texto consiste numa carta endereçada pelo professor ao jornal Deutsche Zeitung de Porto Alegre, em junho de 1889, em que relata a difícil, e não menos curiosa, trajetória de um professor nos primeiros anos da nova colônia, a partir de sua dispensa do exército brasileiro e do batalhão de artilharia contratado na Alemanha e conhecido como soldados Brummer. A pesquisa não se atém somente aos dados biográficos do professor Frederico, mas procura contextualizar, em sua singular trajetória, as condições da sua vinda para o Brasil, a Guerra contra o ditador Rosas (Argentina), a permanência no Rio Grande do Sul, a vida na nova colônia e o exercício do magistério, entre outras atividades comunitárias que tecem essa instigante e curiosa história de vida. A abordagem adotada para a montagem do trabalho foi a de abertura do texto da carta e, nele, a inserção dos diferentes episódios, acompanhando a narrativa de Frederico Michaelsen.

Palavras-chave: História de vida; memória; educação; história da educação.

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A TEACHER’S MEMORIES: THE FASCINATING HISTORY OF PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN – FROM AN IMMIGRANT AND MERCENARY SOLDIER

ENGAGED IN THE WAR AGAINST ROSAS (ARGENTINA), IN 1851, TO A PRIMARY TEACHER IN A

GERMAN COLONY OF RIO GRANDE DO SUL Abstract This paper presents the history of Professor Frederick Michaelsen’s life, a striking character in the history of education of Nova Petropolis, Rio Grande do Sul. The main axis of the text is a letter by the professor to the Deutsche Zeitung newspaper in Porto Alegre, in June 1889, which reported the difficult, but rather curious story of a professor in the early years of the new colony, starting from his discharge of the Brazilian army and of the German artillery battalion, where he had been contracted as a Bummer soldier. The research is not limited to the biographical data of Professor Frederick, but seeks to contextualize the conditions of his coming to Brazil, the war against dictator Rosas (Argentina), the way of life in the new colony and his teaching practice in Rio Grande do Sul, among other community activities that draw this curious and fascinating life story. The text frame is based on an opening letter followed by different episodes narrated by Frederick Michaelsen.

Keywords: Life story; memory; education; education history.

MEMORIAS DE UN PROFESOR: LA INSTIGANTE HISTORIA DE VIDA DEL PROFESOR FREDERICO MICHAELSEN - DE INMIGRANTE CONTRATADO COMO SOLDADO MERCENARIO EN LA GUERRA

CONTRA ROSAS EM 1851 (ARGENTINA) A MAESTRO PRIMARIO EN UNA COLONIA ALEMANA DE RIO

GRANDE DO SUL Resúmen Este estudio presenta la historia de vida del Profesor Frederico Michaelsen, personaje importante de la historia de la educación del municipio de Nova Petrópolis - RS. El eje principal del texto consiste en una carta enviada por él al diario Deutsche Zeitung de Porto Alegre, en junio de 1889, en donde relata la difícil, y no menos curiosa, trayectoria de un profesor en los primeros años de la nueva colonia, a partir de su dispensa del ejército brasileño y del batallón de artillaría contratado en Alemania y conocido como soldados Brummer. La pesquisa no se atiene tan sólo a sus dados biográficos, sino que busca contextualizar, en su singular trayectoria, las condiciones de su llegada a Brasil, la Guerra contra el dictador Rosas (Argentina), la estadía en Rio Grande do Sul, la vida en la

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nueva colonia y el ejercicio del magisterio, entre otras actividades comunitarias que tejen su interesante y curiosa historia de vida. Para montar el trabajo se abrió el texto de la carta y, en él, se insirieron los diversos episodios, acompañando la narrativa de Frederico Michaelsen.

Palabras-clave: Historia de vida; memoria; educación; historia de la educación.

LES MÉMOIRES D’UN PROFESSEUR: LA FASCINANTE HISTOIRE DE VIE DU PROFESSEUR FREDERICO MICHAELSEN – D’IMMIGRANT ENGAGÉ COMME

SOLDAT MERCENAIRE DANS LA GUERRE CONTRE ROSAS EN 1851 (ARGENTINE) À INSTITUTEUR DANS UNE COLONIE ALLEMANDE AU RIO GRANDE DO SUL Resumé Ce travail présente l’histoire de vie du Professeur Frederico Michaelsen, un personnage remarquable dans l’histoire de l’éducation de la ville de Nova Petrópolis – RS. L’axe principal du texte est une lettre que ce professeur a adressée au journal Deutsche Zeitung de Porto Alegre, en juin 1889, dans laquelle il raconte le parcours difficile et curieux d’un professeur dans les premières années de la nouvelle colonie, à partir de sa dispense de l’armée brésilienne et du bataillon d’artillerie embauché en Allemagne connu comme les soldats Brummer. La recherche ne se borne pas seulement aux données biographiques du professeur Michaelsen, mais elle cherche à contextualiser, dans sa trajectoire singulière, les condition de son départ pour le Brésil, la guerre contre le dictateur Rosas (Argentine), sa vie au Rio Grande do Sul, dans la nouvelle colonie, l’exercice de l’enseignement parmi d’autres activités communautaires qui tissent cette vie fascinante et curieuse. Le travail s’organise à partir de l’ouverture du texte de la lettre et de l’insertion sur lui des épisodes divers, tout en accompagnant le récit de Frederico Michaelsen.

Mots-clés: Histoire de vie; mémoire; éducation; histoire de l’éducation.

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“Landesknecht! Mercenário para servir o Brasil? Brummer! É vergonhoso e digno de pena ver-se como mercenário de uma nação estranha. Mas quando se segue com espírito humilde o enrodilhado destino que levou a cada qual a encetar tal caminho, então se aprende a julgar o seu fazer e agir. Leviandade, gosto de aventura, desconhecimento, apertos e outros acontecimentos empurram a uns tantos passos dos quais a gente se arrepende mais tarde.

Não era meu desejo vender-me como mercenário de guerra, quando em 1851 cheguei a Hamburgo. Mas os “prementes acontecimentos” foi que me fizeram deixar cair nas mãos de um grupo de alegres irmãos, que se haviam engajado.

E assim me deixei embrulhar e segui também para o Brasil”.

Lenz (1997, p. 15)

O professor ou o personagem

Segundo pesquisa genealógica conduzida por Ido Michaelsen (1995, p. 23), trineto, “Frederico Michaelsen, nasceu na cidade de Hamburgo, na Alemanha, em 19 de fevereiro de 1829, filho de Rebeca Michaelsen, supostamente abandonado nas escadarias da igreja de St. Michaelis e também supostamente criado por um tal de Sr. Hildebrand e batizado em 4 de março do mesmo ano, nessa mesma igreja”. O nascimento e a paternidade deixam alguns pontos não efetivamente esclarecidos, apesar das evidências coletadas por Ido em sua viagem à Alemanha, visando incrementar sua busca pelas origens da família Michaelsen. Em outra versão, Frederico é filho de Gottlieb Michaelsen, casado com Emillie Hillebrand.

Na Europa, Michaelsen lutou como membro do exército alemão na guerra contra a Dinamarca (mesmo sendo ele descendente de dinamarqueses), batalhão esse formado em 1848 e

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dissolvido em 1851, com o término da referida contenda. Recrutado para servir como soldado no exército brasileiro na Guerra contra o ditador Rosas, chega o Brasil nesse mesmo ano.

Após o fim da guerra Brasil/Argentina/Uruguai, permanece no Brasil e fixa residência primeiramente em Campo Bom/RS, onde se casou com Joana Philipine Mertins, também de origem alemã, natural da mesma cidade, em 13 de abril de 1853. Desse casamento nasceram 10 filhos. Esses laços matrimoniais dissolveram-se somente com o falecimento de Philipine em 1887. Casou-se novamente em 1889 com Anna Twassog, da cidade de Ijuí/RS. Frederico Michaelsen faleceu em 21 de janeiro de 1902, com 73 anos.

A Carta

Conforme reportagem extraída da “Deutsche Zeitung”, Edição nº 52, de 01/07/1898, jornal editado por Von Koseritz, transcrita pelo professor Renato U. Seibt e publicada no jornal A Ponte, de Nova Petrópolis, em novembro de 1987, temos um único testemunho escrito, legado por Frederico Michaelsen em uma humorada crônica de seu cotidiano como professor na recém instalada colônia de Nova Petrópolis.

DIRETRIZES PARA OS JOVENS QUE DESEJAREM SEGUIR A CARREIRA DO MAGISTÉRIO NA FALTA DE OUTRAS OCUPAÇÕES

“Em vista das interessantes narrativas do velho camarada Pilke, a respeito de sua vida movimentada como professor e alto funcionário da Justiça e finalmente como aposentado, quero esforçar-me a apresentar aos leitores algo de minha vida e das minhas experiências no cargo de professor.

Mesmo que da minha escola não tivessem saído grandes espíritos, como daquela de Pilke, mas posso demonstrar

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que tive a honra de ter comerciantes, presidente de câmaras de vereadores, oficiais de todas as armas e mais um respeitável público entre os meus alunos. Devo acrescentar ainda que até um médico e profeta saiu de minha escola...

Quando terminou a guerra contra o ditador Rosas, fomos dispensados do exército, mesmo sem grandes despedidas, sem as quais também passamos...”

Os Brummers

Alberto Schmid, jornalista alemão que esteve no Brasil entre 1908 e 1911, produziu um texto sobre os 60 anos da chegada da Legião Alemã ao RS que foi editado no jornal Deutsches Volksbatt, em 1911 (1997, p. 11). Essa mesma legião, que mais tarde passou a ser denominada Brummer1, começou a se constituir a partir da formação do exército que viria para auxiliar os brasileiros contra o ditador Rosas. Para tal, o Imperador D. Pedro II enviou para a Europa o Ten. Cel. Sebastião do Rego Barros com a incumbência de contratar soldados. Na Alemanha, encontrou homens que compunham o exército de Schleswig-Holstein2, que já era formado por voluntários, e dissolvido em 1851. Essa nova legião começou a ser formada em 1851 e totalizou 1.800 soldados, entre eles 50 oficiais.

Flores (1997, p. 8), ao prefaciar o livro Memórias de Brummer, cita que “os legionários ficaram na maior parte como força de reserva. Dos 1.800 homens apenas 80 artilheiros sob o

1 Brummer é um termo com diversas versões. A mais recorrente é a de que relaciona a palavra brummer com a as grandes moedas de cobre de 40 réis que recebiam os mercenários no Brasil. 2 Exército de Schleswig-Holstein, conforme Schäfer, (1997, p. 51foi montado pelo ducado de Schleswig e do condado de Holstein para a defesa do primeiro na tentativa de ser anexado pela Dinamarca, em 1848, e dissolvido em janeiro de 1851.

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comando prussiano e uma centena de sapadores3, incorporados ao exército nacional, lutaram em Monte Caseros, onde se derrotou o ditador Rosas, combatendo valentemente, abrindo forças inimigas.”

Nas obras consultadas, não há nenhuma referência a que Frederico Michaelsen tenha lutado ao lado dos oitenta soldados da artilharia na batalha final, embora estivesse alistado para aquele batalhão.

O contrato

Ao ingressar no batalhão, o soldado recebia 25 táleres4 da moeda pátria. O deslocamento para o Brasil era por conta do contratante. Ao término de quatro anos de serviço militar (período de validade do contrato) cada soldado poderia receber 22.500 braças5 quadradas de terras coloniais ou viagem de retorno gratuita a qualquer porto Europeu em caso de optar pelo regresso. Outra forma de pagamento seria receber 80$000 em ouro.

Flores (1997, p. 8), ao fazer referência às condições com que se deparavam os soldados Brummer no período contratual após o final da guerra, registra:

Desarmados e carentes de treino militar, mal alimentados, com veste rota e sem calçados, numa flagrante falta de planejamento por parte de quem os contratou, segundo Lenz, a metade desertou - com a conivência das autoridades brasileiras, que assim se desobrigavam do pagamento de cláusula contratual; a

3 Cfe. Aurélio, sapador = Soldado ou outro indivíduo que executa trabalhos de sapa - abertura de fossos, trincheiras e galerias subterrâneas. 4 Antiga moeda alemã de prata, cfe. Aurélio. 5 Cfe. Lenz (1997, p. 38), a braça equivale a 22 cm; assim as 22.500 braças quadradas equivaleriam a 49.500 metros quadrados aproximadamente, 4,9ha, lote rural que os imigrantes recebiam na época.

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quarta parte morreu de frio, subnutrição e doenças decorrentes de carência alimentar ou cardápio inadequado. Apenas cerca de 450 aguardaram engajados o término do prazo contratual. Aos que permaneceram no Brasil, somou-se um número incerto de legionários deserdados do Uruguai e que retornaram para o Rio Grande do Sul no pós-guerra.

Essas condições de miséria e abandono também estão presentes nos textos dos demais Brummers que relataram suas memórias.

Ainda conforme as memórias de Schmidt (1997, p. 13) “dentre os nomes de soldados e oficiais aparecem não poucos que mais tarde podem ser encontrados na história do Rio Grande do Sul”. Entre os citados, encontra-se o nome de Michaelsen.

A viagem

Em sua pesquisa, Michaelsen (1995, p. 36) constata que “Frederico Michaelsen foi o primeiro, de sobrenome Michaelsen, a pisar em solo brasileiro, e isto aconteceu em 24 de maio de 1851, na cidade do Rio de Janeiro. O embarque na Alemanha aconteceu em 7 de abril, na cidade de Hamburgo, viajando sob o comando do Comandante Henrichesen no navio Hamburg.”

Nesse ponto, os relatos posteriores evidenciam que os dados nem sempre coincidem no tocante ao embarque para o Brasil. De acordo com as evidências nos textos de Lenz e Schnack (1997), Michaelsen embarcou no veleiro Heinrich, no porto de Hamburgo, em 22.6.1851, sob o comando do Capitão Boyen. Neste mesmo veleiro viajaram os soldados que compunham a 4ª bateria do Regimento de Artilharia, num total de 156 soldados, chegando ao porto do Rio de Janeiro em 24 de agosto de 1851.

Lenz (1997, p. 97) relata em suas memórias: “Pouco sei do posterior destino de meus camaradas, porque eu e mais três companheiros recebemos terras em plena selva, onde tive poucas

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relações com o mundo exterior. Só mais tarde fiquei sabendo do destino de alguns. Vários dos oficiais abraçaram o ofício de agrimensor: Hennig, Brinkmann, Mützel, Schlimmerpfennig, Gärtner e Wedelstedt. Outros oficiais assim como subtenentes e cabos, dedicaram-se ao magistério: Meyer, Röhe, Michaelsen, Anderson.” Na nominata de Brummer que, conforme Sch (1997), foram surgindo ao longo das traduções e outras informações posteriores, Michaelsen, Hennig, Brinkmann, Mützel, Wedelstedt, Schnack, Gärtner e Lenz viajaram no veleiro Heirich.

Os termos empregados “meus antigos camaradas” permitem deduzir que o grupo esteve junto tanto na viagem como na composição do batalhão, o qual, conforme o autor, se compunha de 400-500 homens no total. Ainda, nas memórias de Lenz, “os homens de nossa bateria formavam um mapa demográfico multiétnico, com gente de todos os cantos e recantos de nossa então ainda não unificada pátria. Velhos e jovens, brutos, grosseiros e mal educados, mas também polidos e com fina educação. A maioria já conhecia a vida de soldado por experiência própria”.

A guerra

Em suas memórias, Lenz (1997, p. 20) relata que:

Dez ou 12 dias após a nossa chegada no Rio de Janeiro, fomos trazidos a bordo de um vaso de guerra brasileiro, e seguimos para o Rio Grande do Sul. Com o que teve início uma vida miserável. Dez dias como arenques imprensados na cobertura, praticamente impossível de se deitar por causa da sujeira e da umidade. Comida também miserável de charque mal preparado e feijão preto. Quando à noite não se era enganado pelos homens do navio, podia se falar de sorte. Em Desterro, onde paramos por algumas horas, vieram até o navio botes com ovos e frutas que naturalmente logo acabavam.

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Ainda no relato de Lenz, ao chegarem a Pelotas/RS, foram alojados de forma rude e sem as mínimas condições de abrigo. Diz o autor (ibidem, p. 12):

A 1ª e 2ª baterias de nosso Regimento estavam acampadas em grandes alojamentos perto da praia; a 3ª e 4ª (a bateria de Michelsen – grifo meu), em casas de moradia em local afastado da cidade. Para melhor aproveitar o acanhado espaço, os homens dormiam em beliches. Colchões não havia, de sorte que tivemos que deitar sobre a tábua crua. Quem podia, comprava uma esteira de junco e uma coberta leve. Quem conservou sua coberta do Rio, utilizou-a, mais o manto para improvisar uma cama. O pior eram os insetos. Pulgas e mais pulgas! Especialmente judiadas estavam a 1ª e 2ª baterias junto do rio. Para nos defendermos um pouco da praga, surgiu a idéia de se fazer um saco do lençol, meter-se nele à noite e amarrá-lo próximo ao queixo. Assim estávamos de certa maneira protegidos. A casa não podia ser lavada porque não era assoalhada.

As condições de sobrevivência reveladas por Lenz demonstram, mais uma vez, que os imigrantes europeus no século XIX, ao chegarem ao Brasil, seja na condição de mercenários, seja na de colonos com suas famílias para trabalhar na terra, encontraram uma realidade diversa daquela prometida e que servia de atração para seduzi-los. Ao tocarem o nosso solo, os sonhos se desfizeram e as promessas de abundância se transformaram numa dura realidade de pobreza, num território inóspito e desconhecido.

A viagem para Montevidéu

Ainda em conformidade com as memórias de Lenz (1997, p. 22):

Após dois dias de viagem cheia de privações, atingimos Montevidéu. Para alojamento mostraram-nos as instalações abandonadas de um grande matadouro, pois

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as demais acomodações disponíveis já estavam ocupadas pela Infantaria brasileira e pelos sapadores alemães. O pagamento de nossa etapa foi feito nos grandes kupfermüzen, moeda prussiana, bastante mais pesada que a brasileira. Dinheiro, pois, possuíamos, mas não havia ninguém para nos vender comida. Só ao anoitecer apareceram alguns civis, oferecendo por bom dinheiro pão e queijo. Felizmente auxiliaram-nos os soldados brasileiros e os sapadores com as sobras de sua carne crua. Seis dias acampamos nessa quinta, sem barracas, ao desabrigo e sobre a terra crua.

Esses dissabores pelas quais passaram os soldados alemães foram determinantes para que um expressivo número deles desertasse, outros ficaram “loucos” ou fizeram do suicídio um ato de libertação de uma forma de miséria em um continente estranho e numa guerra que não mostrava sua face.

O final da guerra e a dispersão

Continua a crônica de Frederico Michaelsen:

Meu primeiro emprego assumi no final de 1852, em “quatro colônias”, perto de Campo Bom. Ali trabalhei como professor e ao mesmo tempo como trabalhador rural durante seis meses. Recebi em pagamento por todo esse tempo; “um bolivian”6 (moeda de 800 réis) uma capa de chuva, uma camisa e uma calça (ambas tecidas na própria colônia), um chapéu de palha estilo calabrês e um par de tamancos. Com esse equipamento mais parecia um condenado as galés do que um professor!

Apresentei-me ao “pai dos Brummers”, o Sr. J. Felter, em Campo Bom, que costumava socorrer os “Brummers” sem pátria. Aqui encontrei imediatamente uma “brilhante” função, ganhando quatro Mil réis por mês! Minhas funções eram as seguintes: pela manhã abrir as

6 Cfe. Dicionário Aurélio, moeda boliviana, de prata, que circulou no RS.

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covas onde eram curtidos os couros (Felter tinha um curtume junto da casa de negócios), moer cascas para fazer tanino, algumas vezes trabalhar na roça, e finalmente submeter-me a todos os serviços domésticos. A tarde lecionava para as crianças e à noite colocava em ordem a contabilidade e as anotações diárias da casa de negócios. Estas obrigações cumpri durante oito meses, mas durante todo esse tempo não consegui economizar nada! Além de tudo, não era respeitado pelas mocinhas... Não poucas vezes era obrigado a escutar, nos bailes, quando uma daquelas belas era convidada a dançar com um “Brummer”:

- Eu não danço com mercenários...

A pouca simpatia da população para com os Brummers

Seguindo o relato de Lenz (1997, p. 41):

Já comentei que os Brummers de uma maneira geral não gozavam da simpatia de lusos e teuto-brasileiros, o que era bem compreensível. Quando o Sr. Koseritz usou a expressão de que os Brummers eram o fermento da população alemã no Rio Grande do Sul, isto era apenas uma maneira de se expressar e, ao menos naqueles tempos, ninguém podia dar crédito, porque muitos Brummer eram tudo menos eleitos de seu povo. Havia entre eles muitos capazes, mas é de duvidar que eles tenham colaborado efetivamente para o progresso da germanidade. Se uma dúzia ou mais foram professores nas colônias, fizeram-no para sobreviver e na primeira oportunidade em que aparecia algo melhor, davam as costas ao magistério. Só um número muito pequeno de Brummer, como o velho e já falecido Michaelsen, em Nova Petrópolis, persistiu na profissão de professor e nela prestou bons serviços.

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A contribuição dos Brummer para a Educação

Michaelsen (1995, p. 39) destaca a importância que os soldados Brummer, que aqui chegaram com um bom nível de instrução trazidos da Alemanha, tiveram para com a educação na região colonial. “Em 1872 Carl von Koseritz observou que mais da metade dos professores das colônias alemãs eram Brummer e foram eles que educaram muitos teuto-brasileiros, que tiveram atuação destacada na vida gaúcha, no período de 1872 até 1920.”

Entre estes mestres se destacam Koseritz e Wichmann, em Pelotas; Michaelsen e Oye, em Nova Petrópolis; Roehe, em Campo Bom; Jurgensen, em Mundo Novo; Emílio Meyer, em Novo Hamburgo; todas cidades do Rio Grande do Sul.

Kreutz (2003, p. 163), citando o jornal Deutsches Volsblatt que, em edição de 19 de janeiro de 1922, faz referência à formação cultural dos Brummer, afirma que além de dominarem diferentes línguas, contribuíram substancialmente para o associativismo, a difusão da imprensa e a participação política com idéias e posições precisas sobre a organização econômico-social e política, formando, com isso, uma elite intelectual entre os imigrantes alemães que, ao se destacarem nos concursos para professor estadual, promoviam a melhoria do magistério na época. Ainda conforme Kreutz (idem, ibidem), “Por volta de 1870, mais da metade dos professores na colônia era Brummer.”

No ano de 1853 casei e decidi fundar minha escola, por conta própria. Inicialmente tinha nove alunos e mais tarde treze. Entre estes o futuro profeta e médico milagroso J. Maurer, esposo da famosa Jacobina. Consegui elevar os meus rendimentos de 500 réis para 6.500 réis mensais. Naquele cargo privilegiado acabei adquirindo um cavalo por 12 Mil réis. Lamentavelmente o pobre animal tinha um olho só e rengo de uma perna.

João Jorge Maurer, citado por Costa (2004, p.115), diz que:

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Um colono analfabeto que um dia afirmou ter ouvido vozes celestiais que o aconselharam a curar seus semelhantes. Ex-auxiliar de curandeiro João Jorge se tornou famoso na região como o “wunderdoktor” doutor maravilhoso. Jacobina Maurer, sua mulher, era acometida por crises de ausência, sonambulismo e ataques do tipo epilético, sintomas associados na colônia à capacidade de curar.

Essas curas levaram à formação de um grande grupo de seguidores composto de mais de 700 pessoas, moradores no morro Ferrabrás, no atual município de Sapiranga/RS, que passaram a ser conhecidos como Mucker ou, na memória local, um grupo de fanáticos. Criaram uma espécie de comunidade isolada e, devido a uma forma própria de viver que não seguiam nem o protestantismo nem o catolicismo, religiões através das quais a colônia alemã se dividia, passaram a ser hostilizados pela população. Esse grupo, em 1873, passou a ser liderado por Jacobina, acabando por serem mortos num combate que reuniu colonos e soldados.

Continua a crônica de Frederico Michaelsen:

No dia 1º de maio de 1854 assumi como professor na Linha Hortêncio, conhecida como ‘Picada dos Portugueses’. Ali eu assinei um contrato por quatro anos, recebendo a moradia e terras para plantar, além disso um salário fixo de dez Mil réis mensais.

Devia lecionar para todas as crianças da comunidade cujo número oscilava entre 30 e 40. Estas davam suas contribuições mensais em moedinhas que somavam 13, 14 ou 15 Mil réis.

Além das minhas tarefas como professor estava ao meu encargo o serviço da Igreja nos domingos quando o pastor estivesse ausente. Este vinha de São Leopoldo, cada três meses. Eu presidia as devoções, fazia as leituras bíblicas e a leitura dos sermões além de iniciar os cânticos da comunidade. Por esse trabalho recebia 20 Mil réis por ano e de cada membro da comunidade uma ‘quarta’ de

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feijão preto7 e duas quartas de milho, in natura. Renda extra: numa festa de noivado recebi ‘uma pataca’8 para fazer o discurso oficial, além de ter o direito de comer e principalmente beber à vontade! Mas a minha bagagem espiritual! Levei vazia para casa. (Michaelsen mencionou “sacola espiritual” do que o leitor pode deduzir que nada aprendeu de importante naquela festa de modo a levá-la vazia para casa.)

No dia 1º de maio de 1858 este contrato brilhante chegou ao final. Sua renovação por mais quatro anos significou um aumento de dois Mil réis mensais de modo que passei a receber doze Mil réis fixos, e anualmente de cada associado o dobro em produtos agrícolas: 2 quartas de feijão preto e 4 quartas de milho, mas tive que assumir o compromisso de conseguir prédicas novas pois as antigas estavam muito maçantes!

Naquele período aconteceu a fundação de Nova Petrópolis (1858) e os imigrantes que vinham da Pomerânea, Saxônia e França ficavam retidos em “Linha do Hortêncio”, pois não podiam tomar posse imediatamente das suas terras. Se os novos colonos tivessem algum dinheiro eu teria feito bons negócios, pois morriam em grande número, principalmente as crianças, e como não havia pastor no local o professor atendia aquelas funções. Mas pela graça de Deus todos aqueles foram entregues à terra. (Nota: Frederico Michaelsen presidia os enterros gratuitamente, pois os colonos eram muito pobres.)

Nova Petrópolis – A fundação da colônia

A fundação da colônia de Nova Petrópolis ocorreu em 7 de setembro de 1858, pelo presidente da Província do Rio Grande

7 Cfe. Dicionário Aurélio, uma medida inglesa de capacidade equivalente a 1,136 litro. 8 Moeda antiga de prata, no valor de 320 réis.

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do Sul, Conselheiro Ângelo Muniz Ferraz, voltada ao assentamento de colonos alemães.

Piccolo em Contribuição para a História de Nova Petrópolis (1989, p. 50), ao analisar os relatórios periodicamente apresentados ao governador da província, “o relatório apresentado por Ângelo Muniz Ferraz à Assembléia Provincial na sua 1ª sessão de 1858, em 5 de novembro, é o melhor documento para esclarecer as circunstâncias que determinaram a fundação de Nova Petrópolis”. Transcrição de parte do referido relatório:

Achei reunidos muitos elementos para a prosperidade dessa nova colônia, inclusive a melhor estrada de rodagem que a natureza pode oferecer em terrenos de serra. As águas são permanentes, cristalinas e abundantes; os terrenos de uma fertilidade assombrosa; os matos frondosos e ricos de madeiras, e com seus tabuleiros convenientemente inclinados para receberem todos os instrumentos aratórios. Em virtude disto, criei aí uma colônia e mandei medir nesse lugar prazos coloniais e pela sua posição e configuração de seu terreno a denominei ‘Nova Petrópolis’. No dia 7 de setembro do corrente ano, sua instalação teve lugar. Para ali tenho encaminhado, por várias vezes, 273 colonos sendo 158 homens e mulheres 115.

Os colonos

Segundo o estudo de Piccolo (1989, p. 54):

Os primeiros imigrantes de Nova Petrópolis (de 1858 a 1859) foram na sua grande maioria originários da Pomerânia, província da Prússia. Eram lavradores e professavam a religião protestante (luteranos). Com os pomeranos também vieram colonos provenientes da Saxônia, em sua maioria igualmente lavradores e protestantes. Em menor escala, vieram lavradores de diversas procedências tanto protestantes como católicos das províncias renanas da Prússia e Baviera; do Grão-

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ducado de Baden; Grão-ducado de Hessen; da Alsácia e Silésia.

Continua a crônica de Frederico Michaelsen:

Em 1862 assumi a escola na Linha Nova onde também recebi moradia e terras para plantar, 500 réis por cada aluno, eram 40 a 50. No dia 08 de janeiro de 1867 assinei meu primeiro contrato oficial como professor em Nova Petrópolis com o falecido Dr. José da Silva Flores que na época era Diretor Geral do Ensino. Recebi 50 Mil réis por mês. Este contrato foi renovado por duas vezes, cada vês com a duração de um ano.

Ainda sobre a educação em Nova Petrópolis

Buscando complementar os dados sobre os primeiros anos da formação do sistema de ensino de Nova Petrópolis, o relato de Piccolo (1989, p. 82) registra que:

A 2 de setembro de 1864, o diretor da colônia de Nova Petrópolis (Frederico Guilherme Bartholomay) informava que nas linhas Olinda e Imperial havia nada menos do que 104 menores, de ambos os sexos, necessitados de instrução primária. Pedia, então que fossem estendidos a Nova Petrópolis os benefícios da Lei 579, de 17 de maio de 1864, que autorizava a presidência da Província a contratar professores particulares para ensinarem as primeiras letras dentro das colônias provinciais. Em 14 de setembro enviava nova relação de menores necessitados de instrução primária; eram 84, de ambos os sexos, das linhas Christina, Sebastopol, Pirajá e Barros Pimentel.

Ainda no texto de Piccolo (1989, p. 98) encontra-se:

Em 1870 o relatório do Presidente João Sertório registrava que a colônia possuía apenas duas aulas subvencionadas, uma na povoação, cujo professor era

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Frederico Michaelsen, e outra na Linha Sebastopol, cujo professor era Augusto Muxfeld. Existiam mais duas aulas particulares, uma na Linha Imperial e outra na Linha Pirajá em estado lastimoso. Os moradores das demais linhas pediam a criação de outras aulas públicas. Em 1873, a primeiro de março, o presidente Dr. João Pedro Carvalho de Moraes, falando na abertura da 1ª sessão da 15ª legislatura, dava o seguinte quadro da Colônia de Nova Petrópolis: Quanto a instrução primária pública, havia 36 alunos na aula criada na povoação, 28 alunos na aula na Linha Sebastopol e 31 alunos em aula da linha Olinda. Todas essas aulas foram criadas por Lei Provincial nº 771, de 4 de maio de 1871.

As terras de Michaelsen

Dando continuidade ao texto de Piccolo (1989, p. 62):

Pelo cadastro pode-se perfeitamente verificar que muitos colonos receberam menos e outros mais de 100.000 braças quadradas como prescrevia a lei. Os prazos9 eram desiguais, não só em áreas como em qualidade. Um mesmo prazo podia ter partes boas e partes ruins. E nem sempre a área pequena e a má qualidade do terreno foram supridas com outras concessões. Na Linha Povoação o maior foi o de nº 5, com 100.500 braças quadradas, distribuído, em 1863, a Frederico Gilherme Bartholomay, que pagou o valor no prazo e vendeu-o, em 1866, ao professor Frederico Michaelsen, natural de Hamburgo, protestante.

A condição de proprietário rural foi determinante para que Frederico Michaelsen tenha fixado raízes na colônia de Nova Petrópolis e lá prestado serviços à comunidade. É nessa mesma 9 O estudo mais detalhado sobre o Projeto de Restauração Católica estudado na Tese de Doutorado do professor Lúcio Kreutz se encontra no capítulo 6 - O professor paroquial católico teuto-brasileiro: função religiosa, sociocultural e política (2003, p. 157 a 192).

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região que se encontra a maioria de seus descendentes, muitos deles ainda na condição de pequenos proprietários, praticando a agricultura no interior do município.

A trajetória como professor de escola pública

Os primeiros contratos do professor Frederico foram com a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul – Município de São Leopoldo e Distrito de Porto dos Guimarães – São Sebastião do Caí, para a cadeira de Nova Petrópolis. Os dados que seguem foram coletados pela Escola Estadual Padre Werner, Nova Petrópolis, e disponibilizados para a pesquisa de Michaelsen (1995, p. 85), cuja fonte é o Inventário de códices da Instrução Pública – I-86; Arquivo Histórico de Porto Alegre – página 65. A Escola da Povoação de Nova Petrópolis foi criada pela Lei 771, de 04 de maio de 1871.

Frederico Michaelsen foi nomeado através de portaria da Presidência, em 20 de outubro de 1876, para interinamente reger essa cadeira. Entrou em exercício a 8 de janeiro de 1871, por despacho do Diretor Geral. Removido para a cadeira de Colônia Santo Ângelo na Cachoeira, pelo ato de 20 de fevereiro de 1882, e restabelecida pela Lei nº1461, de 30 de abril de 1884.

1876; Naquele ano todos os contratos foram cancelados e eu fiz um exame como normalista e fui contratado novamente para o mesmo cargo, no mesmo lugar. Lecionei por 10 anos como professor interino, com 80 Mil réis mensais.

Neste cargo permaneci até a Proclamação da República em 1889 quando recebi o título de efetivo, com 100 Mil réis.

Por ato de 10 de julho de 1891 tornou-se efetivo no magistério.

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Em 1891 recebi um abono por 25 anos de serviço, de 25%, chegando então a 125 Mil réis mensais. No ano de 1894 os salários dos professores foram aumentados e passei a receber 170 Mil réis mensais.

Por ato de 3 de setembro de 1895 reverteu para a sede de Nova Petrópolis. Em 5 de outubro de 1895 foi-lhe mandado abonar a gratificação correspondente a uma parte de seus vencimentos, por ter completado 25 anos de efetivo serviço no magistério.

A importância da escola e do professor numa comunidade colonial alemã

Rambo (2003, p. 69) faz referência à escola na colônia alemã como um dos instrumentos para a sustentabilidade dos valores culturais e religiosos. Conforme o autor, “em todos os núcleos coloniais cuidou-se, então, desde o início, de fundamentar a escola e a educação em bases sólidas.”

A participação comunitária era imprescindível para a construção, instalação e consolidação da escola. A comunidade deveria estar presente e participando ativamente em todos os momentos da vida escolar.

Ainda, segundo Rambo (ibidem), “dentre os membros da comunidade escolar elegia-se a diretoria da escola (Schulvorstand). Composta de poucas pessoas, a diretoria encarregava-se diretamente da construção do prédio da escola; preocupava-se também com a instalação interna e com o material didático.”

Outro papel importante no encargo da diretoria era a seleção do professor. Objetivando a sua integração à comunidade, oportunizava-lhe, além da remuneração, casa e terra para trabalhar com sua família. Em contrapartida, essa mesma diretoria fiscalizava seu desempenho profissional e sua conduta social. Dessa forma, mantinham junto à escola, além do espírito comunitário, o controle sobre o modelo educacional a que se

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propunham, perpetuando valores fundamentais para a consolidação da cultura transplantada.

Rambo (2003, p. 70.) se refere à escola como fator de orgulho para as comunidades:

A quase obsessão dos colonizadores alemães pela escola ultrapassou em muito o simples dado de poder contar com uma. Transformaram-na no elemento estratégico fundamental, capaz de garantir-lhes a sobrevivência e o progresso. Na escola encontravam a fórmula pela qual terminariam por se firmar, em definitivo, como cidadãos brasileiros.

Quanto à atividade docente, esta consistia, além dos ensinamentos da língua e de uma aritmética centrada em necessidades das práticas no cotidiano, básicas para o gerenciamento da vida produtiva nas colônias, na transmissão dos valores religiosos e a continuidade dos valores culturais essenciais na construção da cidadania. A disciplina era uma premissa para a consolidação dos princípios éticos e morais, tanto no campo familiar quanto no social. Mesmo havendo sistemas educacionais diferenciados entre as comunidades evangélicas e católicas, a convivência social nas colônias cultivava os mesmos valores. Tanto o professor paroquial católico como o professor comunitário estavam submetidos ao mesmo controle ético e o saber ler era uma exigência fundamental para a prática religiosa entre a comunidade protestante.

A presença constante desses valores na vida comunitária é reforçada por Rambo. Para o autor (2003, p. 71),

alertava-se para o fato de que uma comunidade ou uma família somente podem funcionar corretamente quando há respeito mútuo, quando são observados os limites dos direitos e deveres, e à autoridade se reconhece o seu lugar legítimo.

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Nas antigas colônias alemãs, freqüentemente encontram-se modelos distintos de escolas, segundo a vinculação a uma crença religiosa específica. Como nas áreas coloniais havia a presença de colonos, tanto católicos como luteranos, as escolas, portanto, seguiam os moldes ditados pela hierarquia religiosa e serviam de instrumento da consolidação e continuidade da vinculação religiosa trazida da Europa.

Lúcio Kreutz (2003, p. 157), ao estudar o papel do professor paroquial na comunidade teuto-brasileira vinculada à Igreja Católica Romana, cuja presença era imprescindível na estrutura e organização social e política da comunidade, afirma que cabia ao professor um papel típico nas comunidades coloniais:

As funções do professor paroquial junto às comunidades rurais católicas teuto- brasileiras do Rio Grande do Sul (RS) eram muito mais amplas e diversificadas do que as meramente docentes e restritas à escola. Ele foi um elemento de unificação, um agente de síntese e promoção das percepções do grupo humano no qual se inseria ativamente seja no campo social, político, religioso ou cultural.

No desempenho dessa função, conforme o local onde ela se concretizava, o professor recebia diferentes denominações, porém todos com marcante identidade comunitária. No estudo de Kreutz (2003, p. 161), encontram-se expressões dadas a essa mesma figura: “professor paroquial” ou Pharrschulleherer. Entre elas, “professor comunitário” ou Gemeindelehrer; “professor colonial” ou Kolonieleher; “professor de picada” ou Pikadenschullehrer. Esse mesmo estudo define o termo “colônia alemã” como um conjunto de núcleos comunitários rurais estruturados e habitados por imigrantes provindos da Alemanha e seus descendentes.

Para Kreutz (2003), compreender o papel destinado a esse professor remete à compreensão do projeto de Restauração Católica Regional, coordenado pelos padres jesuítas alemães que,

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por meio dos professores, visavam dinamizar nas comunidades rurais a formação e animação religiosa e cultural9.

Quanto às comunidades luteranas, Walter Koch (2003) examina a escola comunitária evangélica sob o prisma de um contexto social específico num ambiente novo – a colônia. Segundo o autor, as escolas alemãs seguiam modelos distintos e eram conhecidas como “escolas evangélicas”. Para efeito desse estudo, o foco incidirá sobre o modelo comunitário que consiste numa estrutura de vida em comunidade, fundamental nas áreas coloniais para assegurar uma educação cristã-evangélica aos filhos de seus seguidores.

Afirma Koch (2003, p. 193):

Foram elas as primeiras a surgir, na falta de um sistema educacional oficial suficientemente abrangente, oferecendo de início apenas o ensino fundamental. Eram as Gemeindeschulen, nas quais freqüentemente o pastor era o único professor. Quando a comunidade não tinha o pastor próprio, recorria-se à contratação de qualquer pessoa, mais ou menos habilitada para o cargo.

Michaelsen descreve em sua carta, como foi citado anteriormente, o seu exercício em algumas das funções religiosas na falta do pastor e se deduz que, devido a sua vinculação à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, o modelo de escola a que servia, mesmo sendo professor de ensino público, seguia a tradição evangélica, tendo a comunidade como base de sustentação.

E assim termina a crônica de Michaelsen:

Quem tiver vontade e persistência suficiente, pode imitar-me. Nova Petrópolis, 30 de junho de 1898 Frederico Michaelsen

Hoje, na cidade de Nova Petrópolis/RS, passados 106 anos do falecimento do professor Frederico, o nome Michaelsen

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continua sendo uma referência. Entre as homenagens que lhe foram prestadas, destacam-se nomes de avenida e de escola. Seu túmulo está localizado no Parque do Imigrante, junto a uma réplica de aldeia alemã do início da colonização e da primeira igreja protestante (Luterana) erguida na colônia. São inúmeros os seus descendentes, destacados na política, no comércio, na educação, na cultura, na agricultura, no jornalismo e em serviços reconhecidos pela contribuição dada à história e à sociedade local.

Referências

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FLORES, HILDA. Prefácio. In: Memórias de Brummer. Porto Alegre: EST, 1997.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KOCH, Walter. A escola evangélica teuto-brasileira. In. Etnia e Educação: a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres. Florianópolis: Ed. da UFSC; Tubarão: Editora Unisul, 2003.

KREUTZ, Lúcio. O professor paroquial católico teuto-brasileiro: função religiosa, sociocultural e política. In: Etnia e Educação: a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres. Florianópolis: Ed. da UFSC; Tubarão: Editora Unisul, 2003.

KREUTZ, Lúcio. Magistério e imigração alemã: 1995. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1985.

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LENZ, Cristóvão; SCHAFFER, Henrique; SCHNACK, Jorge Júlio. Memórias de Brummer. Porto Alegre: EST, 1997.

MICHAELSEN, Ido Inácio. Família Michaelsen no Sul do Brasil. Nova Petrópolis, RS: Editora Amstad, 1995.

PICCOLO, Helga L. Langraf. Contribuições para a história de Nova Petrópolis. Caxias do Sul, RS: EDUCS,1989.

RAMBO, Arthur Blasio. O teuto-brasileiro e sua identidade. In: Etnia e Educação: a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres. Florianópolis: Ed. da UFSC; Tubarão: Editora Unisul, 2003.

SCH, A. Memórias e vivências de um velho Brummer - pelos 60 anos da chegada de legião alemã ao RS. Introdução. In: Memórias de Brummer. Porto Alegre: EST, 1997.

SCHMITZ, Arsênio José Pe. Uma nova imagem para Nova Petrópolis. São Leopoldo, RS: Publicação do Autor, 1975.

SEIBT, Renato U. Nova Petrópolis, RS. Jornal A Ponte, nov. 1987. (Tradução de texto Publicado no Deustdche Zeitung, Nº 52, em 01.07.1889).

Luiz Alberto de Souza Marques é doutor em Eduação e atualmente é professor da Universidade do Sul de Santa Catarina - Unisul/SC. E-mail: [email protected].

Recebido em: 10/12/2008 Aceito em: 20/12/2009

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NOS TRAÇOS DE CALIGRAFIA, INDÍCIOS DE UM TEMPO ESCOLAR

Luciane Sgarbi S. Grazziotine Carla Gastaud

Resumo O trabalho examina um caderno de caligrafia como indício expressivo da cultura escolar, esse caderno foi escrito por uma aluna do 4º ano primário da Escola Duque de Caxias, do município de Bom Jesus, Rio Grande do Sul, em 1943. A análise detém-se em dois aspectos deste artefato cultural e pedagógico: externalistas e internos. Os primeiros dizem respeito particularmente a análise das relações entre o conteúdo das frases/palavras que servem como exercícios de caligrafia e o contexto social, político e cultural da época, em uma produção de sentido que está presente nos “enunciados” propostos pelo professor e reproduzidos pela aluna. Os segundos se referem à materialidade do caderno, questões gráficas da escrita, capa, tipo de letra, ferramenta utilizada para a escrita, com o entendimento que o objeto não existe para além de seu suporte. A análise do caderno de caligrafia de Dona Rosa articula aspectos da cultura escolar relativas a essa região geográfica com as correntes pedagógicas da época e os padrões sociais vigentes.

Palavras-chave: Cultura escolar, Memória, História da educação.

ON THE STROKES OF CALLIGRAPHY, SIGNS OF SCHOOL TIMES

Abstract This piece of work examines a calligraphy notebook as expressive representation of school culture, this notebook was written by a female student in the 4th year of primary school at Escola Duque de Caxias, in the city of Bom Jesus, Rio Grande do Sul, in the year of 1943. The analysis concentrates in two aspects of this cultural and pedagogic object: external and internal. The first refer particularly to the analysis of the relation between the content of sentences/words which work as calligraphic exercise and the social political and economical context at the time, in a production of meaning present on the 'titles' proposed by the teacher and reproduced by the pupil. The later refer to the materiality of the book, graphic issues on the writing, the cover, type of writing, the tool used for writing, with the understanding that the object does not exist outside its materiality. The analysis of the notebook of Mrs Rosa Maria Rosa articulates

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aspects of the related to this geographic region with the pedagogic practices of the time and operating social codes.

Keywords: School culture; Memory; History of education.

EN LAS LÍNEAS DE CALIGRAFIA, INDÍCIOS DE UN TIEMPO ESCOLAR

Resumen El trabajo examina un cuaderno de caligrafia como indício que expresa una cultura escolar, este cuaderno fué escrito por uma niña del 4º año de primário de la Escuela Duque de Caxias, localizada en la municipalidad de Bom Jesus, en el estado de Rio Grande do Sul. El cuaderno fué hecho en el año de 1943. El análisis se detiene a dos aspectos de este artefacto cultural y pedagógico: externos y internos. Los primeros dicen respecto al análisis de las relaciones entre el contenido de las frases/palabras que sirven como actividades de caligrafia y el contexto social, político y cultural de la época, en una producción de sentido que está presente en los “enunciados” propuestos por el profesor y reproducidos por la alumna. Los segundos se refieren a la materialidad del cuaderno, cuestiones gráficas de la escrita, capa, tipo de letra, herramienta utilizada para la escritura, con la comprensión de que el objeto no existe para mas allá de su sustentáculo. El análisis del cuaderno de caligrafia de Doña Rosa vincula aspectos de la vida escolar relativos a esta región geográfica, con las vertientes pedagógicas de la época y con los padrones sociales de aquel tiempo.

Palabras clave: Cultura escolar; Memoria; Historia de la educación.

DANS LES TRAITS DE CALLIGRAPHIE – LES INDICES D’UN TEMPS SCOLAIRE

Résumé Dans ce travail on examine un cahier de calligraphie comme un indice expressif de la culture scolaire. Ce cahier a appartenu à une élève de la quatrième année de l’école primaire Duque de Caxias, de la ville de Bom Jesus, Rio Grande do Sul, en 1943. L’analyse se fixe sur les aspects externes et sur les aspects internes de cet objet culturel et pédagogique. Les premiers se rapportent particulièrement à l’analyse des relations entre le contenu des phrases/mots qui servent aux exercices de calligraphie et le contexte social, politique et culturel de l’époque, dans une production de sens qui est présente dans les « énoncés » proposés par le professeur et reproduits par l’élève. Les autres aspects se rapportent à la matérialité du cahier, aux questions graphiques de l’écriture, à la couverture, au type de lettre, à l’outil utilisé pour l’écriture, en comprenant que l’objet n’existe pas au-delà

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de son support. L’analyse du cahier de calligraphie de Dona Rosa met en rapport des perspectives de la culture scolaire appartenant à cette région géographique avec les courants pédagogiques de l’époque et avec les paradygmes sociaux en vigueur.

Mots-clés: Culture scolaire; mémoire; histoire de l’éducation.

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“nada desperta em mim mais saudades que o jogo das letras. [...] Acomodavam-se elegantes no atril inclinado, cada qual perfeita, e ficavam ligadas umas às outras segundo a regra de sua ordem, ou seja, a palavra da qual faziam parte como irmãs. [...] Admirava-me como tanta modéstia podia coexistir com tanta magnificência. Era um estado de graça. E minha mão direita que, obedientemente, se esforçava por obtê-lo, não conseguia.” (W. Benjamin)

A caligrafia é uma das operações, realizadas na escola, envolvidas no processo de aquisição das competências gráficas. Estudar as práticas de caligrafia, é uma possibilidade de “comprender de modo crítico e interpretar históricamente [ ] los testimonios de la actividad de escritura de la humanidad que llegaron hasta nos otros” (Petrucci, 2003, p74). Esse trabalho examina um caderno de caligrafia escrito por uma aluna do 4º ano primário da Escola Duque de Caxias, do município de Bom Jesus, Rio Grande do Sul, Brasil, cidade situada nos Campos de Cima da Serra, a 270km da capital do estado. O caderno, como indício expressivo da cultura escolar, foi preenchido em 1943, tempo em que o exercício da caligrafia era uso corrente na escola primária.

Caligrafia, segundo Bastos e Stephanou, “é arte de escrever com letra bela e bem formada [ ] Busca aperfeiçoar e afinar os sentidos da mão e a ortopedia do corpo, condições fundamentais para desenvolver hábitos de ordem, disciplina e estética do texto” (2008, p2). A análise do caderno de caligrafia, que propomos aqui, detém-se, entre outros, nos aspectos externalistas desse artefato cultural e pedagógico. Particularmente, na análise das relações entre o conteúdo das frases ou palavras que servem para os exercícios de caligrafia e o contexto social, político e cultural da época, com uma produção de sentido desejada, presente nos “enunciados” propostos pelo professor e reproduzidos

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pela aluna1. Aspectos relativos a uma análise internalista, como a materialidade do caderno, questões gráficas da escrita, capa, tipo de letra, ferramenta utilizada para a escrita, também são analisados.

A cidade de Bom Jesus, colonizada por imigrantes alemães, italianos e portugueses, não apresenta um predomínio étnico acentuado. A cidade teve início como núcleo de passagem para os tropeiros que conduziam gado a caminho de São Paulo, no final do século XVIII, e ali encontravam abrigo e pastagens. O primeiro povoado iniciou em 1878, com a criação da Capela de Bom Jesus do Bonfim pelos açorianos que se juntaram aos bugres já habitantes da região. Os alemães começaram a chegar em 1893, os italianos na década seguinte. A emancipação se deu em 1913.2

Em 1943, o ano do caderno de caligrafia, o acesso à cidade era difícil, a viagem da capital do Estado até o município demorava em média dois dias, havia que dormir no caminho. Os jornais demoravam a chegar. O rádio cumpria um importante papel, através dele o mundo chegava à comunidade, segundo Elias Tomé Saliba, “equipada com transmissores de 50 kilohertz, em ondas médias e curtas, a Rádio Nacional chegava com uma recepção quase perfeita a boa parte do país” (1998, 350). O Repórter Esso, a Rádio Nacional, a Rádio El Mundo de Buenos Aires, traziam notícias da guerra e do Brasil.

Como diz Chauí, o Estado fascista e populista

1 Conforme entrevista, concedida por Rosa Maria Rosa, pertencente ao Acervo de Memória Oral do Município de Bom Jesus, RS. 2 Para saber mais sobre a formação do município, ABREU, Ennio Farias e ABREU, Marisa da Costa, Bom Jesus - histórias de uma cidade. Caxias do Sul: UCS-EST, 1977; ABREU, Ennio Farias e ABREU, Marisa da Costa. Bom Jesus – duas épocas. Caxias do Sul: UCS-EST, 1981 e SANTOS, Lucila Sgarbi; MACIEL Vera Lúcia Maciel (orgs). Bom Jesus na Rota do tropeirismo no Cone Sul.: EST 2004

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[...] usava diretamente os meios de comunicação: os programas (de rádio) deviam “decantar as belezas naturais do país, descrever as características pitorescas das regiões e cidades, irradiar cultura, enaltecer as conquistas do homem em todas as atividades, incentivar relações comerciais” e, voltando-se para o homem do interior, contribuir "para seu desenvolvimento e sua integração na coletividade nacional". (2000, p.37)

A Escola Duque de Caxias - o nome da escola já faz alusão ao herói imperial da integração nacional, exaltado pelo Estado Novo - primeira escola particular da cidade, não tem registros nos arquivos do município. A primeira referência à sua existência apareceu no depoimento da professora Rosa Maria Rosa, autora do caderno de caligrafia, colhido para integrar o Acervo Municipal de Memória Oral, do Arquivo Histórico de Bom Jesus. Outros depoimentos corroboraram as informações sobre a escola Duque de Caxias e seu proprietário, o professor João Telatin.

D. Clotilde Camargo Grazziotin relata em sua entrevista3 que

o professor era Seu João Telatin, a aula era particular, o professor lecionava na cidade para muitos alunos e vinha pra fazenda dar aula só pra mim, com 12 anos fui para o internato em Vacaria, a aulas do professor Telatin permitiram que eu acompanhasse o internato.

A Escola Duque de Caxias funcionou somente na década de 40, tinha caráter misto e oferecia a possibilidade de internato para alunos que vinham de outras localidades. Em seu depoimento ao Arquivo Histórico de Bom Jesus, Rosa conta suas experiências escolares, que foi alfabetizada em casa pela mãe, que veio para Bom Jesus onde estudou com o Prof. Telatin e sua esposa até o

3 Entrevista realizada em 1997 faz parte do acervo do Arquivo Histórico de Bom Jesus.

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admissão, e oferece detalhes sobre o casal de professores e sobre a Escola Duque de Caxias,

"eles moravam em cima, embaixo tinha duas salas de aula, uma cozinha e o banheiro. [...] Faziam festas de páscoa, piquenique - a gente ia de ônibus. Tinha São João com fogueira e tudo. [...] Eles eram católicos, preparavam para a primeira comunhão e crisma, eram bem amigos do Padre Geraldo. Tinham compromisso com as crianças de baixa renda – meninas bem pobrezinhas estudavam lá. [...] A escola era bem estruturada, tinha biblioteca, os cadernos eram timbrados, os alunos desfilavam no sete de setembro, tinha hora cívica.”

Em entrevista posterior, D. Rosa contou que os castigos físicos, relatados por tantos alunos da época não eram empregados naquela escola, “no máximo saíam da sala de aula por algum tempo para pensar”. Indagada sobre as práticas da sala de aula, disse que os exercícios de caligrafia eram semanais e não tinham caráter de punição.

Expressar-se corretamente por escrito e de forma legível era importantíssimo (mais do que verbalmente) porque, diz J.I. Roquette em seu Código do Bom-Tom, “escripta manent”4 –a escrita permanece. E predica sobre o que chama de comunicação epistolar

Admirável invento que aproxima os ausentes dos presentes, encurta as distâncias, mitiga as saudades, adoça o dissabor da separação, estreita os vínculos da amizade, nutre n’alma o fogo da esperança, e ainda depois da morte conserva um monumento durável da afeição e ternura com que dois corações se amaram.5

4 Roquette, JI, organizado por Lilia Moritz Shwarcz. 1997: 267. 5 Id. Ibid. p. 266.

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Entretanto, para que tal comunicação - essencial para uma pessoa que deseja ser reconhecida como polida, bem criada e educada - se dê a contento, recomenda por primeiro “aos filhos” escrever claramente, com boa letra:

Se não soubesse que tendes boa letra, a primeira coisa que vos diria é que, antes de entrar em comércio epistolar com alguma pessoa respeitável e autorizada era preciso que aprendêsseis a escrever, se não perfeitamente pelo menos de um modo inteligível, porque as pessoas a quem escreveis não estão obrigadas a adivinhar o que Ihes quereis dizer ou a perder o seu tempo a decifrar o que lhes escreveis.6

A caligrafia era uma atividade usual7 nas escolas e declaradamente servia para exercitar a mão na tarefa capacidade de produzir uma escrita homogênea, harmônica e elegante. A caneta esferográfica ainda não existia, “escrevia-se com caneta-tinteiro. Algo que, para o bom uso, exigia paciência, certa destreza e, sobretudo cautela. O perigo de sujar papéis, mesas e roupas era sempre iminente. Enfim, escrever, no passado pré-caneta esferográfica, dava trabalho”8 Imagine-se o empenho que devia ser posto em preencher os cadernos de caligrafia para levar essa tarefa a bom termo.

O caderno de caligrafia9, objeto desse trabalho, fazia parte do material escolar dos alunos das quartas séries da Escola Duque de Caxias em 1943. Ele mede 23 x 16 cm, 16 folhas, com 13 linhas duplas em cada página. A capa, em papel rosa, traz

6 Id. Ibid. p. 268 7 O uso da caligrafia na sala de aula, não se opõe ao ideário escolanovista, dominante no período, ao contrário o reforça na medida em que segue a lógica da racionalidade, disciplinarização e da homogeneização. Ver Monarcha, 1989. 8 Ferreira, 2004: 279. 9 O exemplar pertence ao acervo da Prof. Lucila Maria Sgarbi Santos.

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impresso em preto os logotipos da Escola Duque de Caxias e da Editora Pão dos Pobres. Escrito a caneta-tinteiro traz o nome da aluna e o uso que terá, nas linhas pontilhadas destinadas a esse fim.

Todas as páginas foram preenchidas com letra cursiva e trazem uma “nota”, um valor atribuído pelo professor que não guarda relação aparente com a qualidade do trabalho realizado pela aluna. Não foi possível estabelecer nenhuma regularidade entre a avaliação do professor e alguma característica, erro ou borrão do caderno de caligrafia. A nota parece ser atribuída de maneira arbitrária.

Em cada folha do caderno uma frase era apresentada pelo professor e repetida, como é da natureza do exercício da caligrafia, da primeira à última linha pela aluna.

As frases que lemos no caderno algumas vezes carecem de sentido por terminarem abruptamente. A interrupção da frase e mesmo de uma palavra ao final da linha torna alguma delas incompreensíveis para nós que, provavelmente, eram significativas para os coetâneos. Algumas ainda são próximas a nós, como “a preguiça é mãe de todos...” 10 um ditado usado ainda hoje e por isso sabemos o final da frase como se escrito estivesse. Por outro lado, a frase “onde não entra luz não entra...” 11 não é mais de uso corrente12 e não conseguimos depreender o que não chegou a ser escrito. Pelo teor dominante nas outras frases do caderno, pode-se especular sobre um provável caráter moralizante, mas é impossível sabê-lo. Pode ser uma modificação do provérbio de origem portuguesa “Onde não entra o sol entra o médico”, existente também em italiano, como também pode ser uma referência à luz do saber ou da fé.

10 Frase número 28 do caderno. 11 Frase número 32 do caderno. 12 Não conseguimos achar ninguém que pudesse completar o ditado.

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Algumas frases são inteligíveis e não vão deixar de ser num futuro previsível, tal como “Pedro Alvares Cabral desco...”, que as crianças continuam lendo e escrevendo.

Se algumas frases param no meio, outras continuam na página seguinte13, justamente as únicas que trazem nomes próprios e que aludem ao Presidente da República e ao Intendente do Estado, valorizando os grandes nomes da nação. Ressaltar esses políticos ilustres no cenário da época vai no sentido de uma história fundamentada nos “grandes homens” que mitifica os vultos históricos da nação e cria nas crianças o sentido de sua importância.

Encontramos assim que “O presidente da República é o...” “Dr. Getúlio Dorneles Vargas”, e que “O interventor federal é o Tte. Cel...” “Ernesto Dorneles e é gaucho”. Esse segundo conjunto se enquadra na campanha que o Rio Grande do Sul (mas não somente ele) desenvolvia para que os intendentes nomeados fossem naturais do estado.

Além disso, essa frase, formada pelas linhas de duas páginas diferentes, é datada: o Tte. Cel. Ernesto Dornelles14 foi intendente no período de 11/9/1943 a 1/11/1945 o que permite estabelecer que a referida frase foi escrita, depois da posse do intendente, entre setembro de 1943 e o final do ano letivo.

O conjunto de trinta e duas frases “casuais” do caderno de caligrafia foi por nós inventariado e as sentenças agrupadas conforme o seu conteúdo. Nesse processo identificamos três categorias: frases cívicas, frases moralizantes, frases neutras.

Classificamos como cívicas as frases que trazem idéias nacionalistas e ufanistas, ressaltando a beleza, a pujança e a natureza sem par. Frases que produzem sentimentos de orgulho, de pertencimento e civismo como a que ocupa a terceira página do

13 Quando as frases aparecem diferentes a cada linha - “cabendo” mais progressivamente – reproduzimos aqui a frase mais longa. 14 Gaúcho de São Borja e parente de Getúlio Vargas.

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caderno, “A nossa pátria é rica e bela”. Essas idéias estavam no ar, talvez através dos programas de rádio desse período, de que fala Chauí15. A essa primeira frase seguem-se outras de mesmo caráter16: “Salvemos a nossa pátria”, “Brasil capital Rio de Janeiro”, “O Brasil é meu paiz”, “O presidente da República é o...”, “Dr. Getúlio Dorneles Vargas”, “Amazonas capital Manaus”, “O interventor federal é o Tte. Cel...”, “Ernesto Dorneles é gaucho”, “O Brasil é o maior da América”, “Pedro Alvares Cabral desco...” “Quem não ama sua pátria é...”, “Ama com fé e orgulho a tua pa..”.

Esse bloco pode ser subdividido em dois: um conjunto de frases generalizantes relativas ao orgulho e à grandeza da pátria e do Brasil e outro relativo a conhecimentos geográficos e históricos como a capital do Amazonas ou o nome do presidente da república. O primeiro pretende um efeito direto: ama tua pátria, o segundo parece procurar identificação e integração: conhecer para amar. Ambos buscam produzir sentimentos de pertença. Nesse sentido, escreve Souza que, neste período “a educação passa a ser vista como instrumento de construção da unidade nacional” que deveria ser instituída e mantida “a partir da incorporação e/ou eliminação de elementos heterogêneos e estranhos ao projeto de nacionalidade proposto pelo Estado Novo”. (2004, p.104)

Todas essas frases devem ser entendidas no contexto da Era Vargas, da Segunda Guerra Mundial e dos efeitos nacionalistas que ela produz na sociedade brasileira. No ano de 1942 havia manifestações nas ruas exigindo que o Brasil declarasse guerra às potências do Eixo, o que aconteceu em 31 de agosto. Os habitantes de Bom Jesus, como todos os brasileiros, ouviram pelo rádio a declaração de guerra:

Em legítima defesa de nossa honra, fizemos o que nos cumpria. Declaramos o estado de beligerância com os

15 Op Cit. p.2 16 Reproduzidas aqui na ordem em que estão no caderno: 6, 7, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 22, 23, 29 e 31.

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agressores e nos tornamos aliados das nações que defendem os princípios da lealdade e a autodeterminação dos povos, contra os que preferem a política de presa. [...] não desejávamos a guerra. Tivemo-la, entretanto, e o que agora nos cabe fazer está na consciência de todos os brasileiros. (Silva, 1980, p.61)

Em seu depoimento, Rosa valoriza o traço patriótico do perfil do professor Telatin, “...ele era muito patriota.”, diz também que o professor tinha um sotaque estrangeiro carregado e enfatiza seu civismo “...se hasteava a bandeira todos os dias” e “...se cantava o Hino em todas as datas comemorativas”. Isso corrobora Chauí quando afirma:

durante o Estado Novo (1937-45), a luta contra a dispersão e a fragmentação do poder enfeixado pelas oligarquias estaduais (ou a chamada "política dos governadores") e a afirmação da unidade entre Estado e nação, corporificados no chefe do governo, levaram, simbolicamente, à queima das bandeiras estaduais e à obrigatoriedade do culto à bandeira e ao hino nacionais nas escolas de todos os graus. (Chauí, 2000, p.37)

Em 1943, ano em que Rosa Maria Rosa preencheu seu caderno de caligrafia, a FEB, (Força Expedicionária Brasileira), foi estruturada. Em 1944 o Brasil enviou as primeiras tropas para a guerra na Europa. Estando o país em guerra, pode-se pensar que as frases de conteúdo patriótico cumpriam duplo papel: desenvolver nos alunos o sentimento patriótico e reafirmar para o professor italiano, seu próprio pertencimento e lealdade à pátria de adoção.

Sem esquecer as muitas e diferentes maneiras de apropriação possíveis por parte das crianças, pode-se dizer que no caso da aluna Rosa Maria Rosa, informante nesse artigo, o professor Telatin parece ter tido sucesso em desenvolver nos alunos o sentimento patriótico. O teor do caderno de caligrafia pode ser reconhecido no discurso por ela escrito e declamado na

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solenidade do dia da bandeira em 19 de novembro de 1943, que a autora guarda até hoje.

No discurso reproduzido acima17 a autora realça as qualidades pátrias representadas na bandeira nacional. Alinha chavões e superlativos, cores e adjetivos para dizer que a terra é rica, a natureza é generosa e o quanto essas características estão bem simbolizadas nas cores do “pano sagrado”, expressando o fundo patriótico que permeia tantas das frases da caligrafia. 17 O original integra o acervo da Prof. Lucila Maria Sgarbi Santos.

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Sob a designação de moralizantes, reunimos as frases que ressaltam positivamente atitudes desejadas e desabonam comportamentos considerados inadequados, como "Devemos aproveitar bem o tempo”, frase encontrada na primeira página do caderno. Na seqüência aparecem18: “Devo fazer silêncio na escola”, “O aluno obediente é estimado”, “Devemos fazer silêncio na aula”, “Devo atender mais o professor”, “Em silêncio aprenderas com mais faci...”19, “Faça o bem sem olhar a quem”, “O menino mentiroso é feio”. “Jesus Cristo morreu na cruz”, “Resai de manhã e a noite”, “A melhor bebida é a água pura”, “Devemos respeitar as pessoas ido...”, “Falem pouco e estudem muito”, “A preguiça é mãe de todos...”, “Os países civilizados são os mais”, “A mentira é um grande mal” e “Onde não entre luz não entra...” 20

Nessa relação, assim como na anterior, também se pode identificar duas vertentes, uma relacionada diretamente à escola e com o comportamento de um bom aluno, “Devo fazer silêncio na escola”, “O aluno obediente é estimado”, “Devemos fazer silêncio na aula”, “Devo atender mais o professor”, “Em silêncio aprenderas com mais faci...”, “Falem pouco e estudem muito” e outra vertente, relacionada ao cotidiano, prescrevendo quais atitudes são esperadas de um bom cidadão.

O bom aluno deve fazer silêncio, prestar atenção, respeitar o professor, ser obediente. O bom cidadão não deve mentir, deve rezar, ser temente a Deus, ser bondoso, respeitador e livre de vícios, qualidades há muito apregoadas pelos contos moralizantes

18 Reproduzidas aqui na ordem em que estão no caderno: 2, 4, 5, 8, 12, 17, 18, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 30 e 32. 19 Algumas vezes as frases não cabem inteiras na página, a cada linha aparecem diferentes “cabendo” mais progressivamente. Nesses casos reproduzo a frase mais longa 20 Presumimos a intenção moralizante apesar da interrupção da frase não permitir adivinhar o final, pode ser uma adaptação do provérbio de origem portuguesa “Onde não entra o sol entra o médico”, que também existe em italiano, como também pode ser uma referência à “luz do saber”.

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de Perrault e dos Irmãos Grimm, que transpõem os limites da Europa moderna.

Consideramos neutras as frases que não têm uma intencionalidade aparente, são elas21: “A gaivota segue o vapor” e “O Itagiba é um avião gaúcho” que parecem meramente descritivas. Apesar disso, até onde pudemos determinar, o Itagiba não é o nome de um avião gaúcho, mas sim o nome de um dos navios brasileiros22 afundados no ano anterior, episódio que acirrou a opinião pública e precipitou a entrada do Brasil na guerra23.

Em alguns casos a classificação é simples e evidente, em outros foi necessário recorrer à contextualização histórica para identificarmos os fatos e personalidades que estavam em destaque na época, para assim fazer inferências e tentar entender de forma mais específica seu sentido.

O ideário escolanovista dominante neste período, segundo Monarcha

[...] procurou mobilizar política e ideologicamente as classes sociais em torno de uma mesma questão: a superação do atraso nacional e o ingresso no moderno. À pedagogia cabia gerar uma nova forma de sociabilidade, compatível com os ideais da racionalidade e produtividade. (1989, p.19)

Que melhor meio para alavancar esse conjunto de intenções que a escola?

A construção do Estado Racional tornou-se estratégica para os pioneiros da educação renovada, pois a partir dele tornava-se possível empreender a reordenação e a disciplinarização, banindo tudo o que é fragmentário,

21 Reproduzidas aqui na ordem em que estão no caderno: 13 e 19. 22 O Itagiba foi torpedeado e afundou em 17 de agosto de 1942. 23 Cinco navios brasileiros foram afundados em agosto de 42 por submarinos, quase 600 pessoas morreram nos naufrágios.

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heterogêneo e contraditório. Ao Estado racional ou positivo, concebido como entidade fria e neutra, pólo universal, cabia administrar as classes hostis e egoístas, que, perseguindo interesses individuais produziam uma crescente instabilidade social. (1989, p.19)

Os diferentes espaços da escola são campo fértil na formação da desejada “consciência nacional”. Unificada em torno de um só pensamento, sem as fragmentações e desajustes tão condenados pelo Estado Novo, a escola traz possibilidade de implementação desse ideário em todos os espaços que potencialmente se tornam espaços de formação da racionalidade moderna. O caderno de caligrafia na perspectiva por nós analisada confirma essa suspeita na medida em que faz da intencionalidade de repetição mecânica com fins técnicos, um lugar de doutrinação em função de outros objetivos que vão além do caráter meramente “anatômico” da escrita.

As frases por nós analisadas no caderno como um todo, remetem a várias possibilidades de estudo, a opção por seu conteúdo foi apenas uma dessas possibilidades. Do total de trinta e duas frases dezesseis têm caráter moralizante, doze tem caráter cívico e duas são as qualificadas como neutras, esses números mostram justamente que o professor Telatin, além do objetivo de tornar a escrita “parelha” e “mais bonita”, não desprezava a oportunidade de, através do conteúdo das frases designadas para o exercício da caligrafia, imprimir nos alunos sentidos, formas de ser e de pensar.

O exercício mecânico da caligrafia somado aos conteúdos transmitidos encontrados nas frases utilizadas nesse caderno pretende a formação de cidadãos e trabalhadores capazes de contribuir para a “grandeza da nação”.

O caderno de caligrafia de Rosa Maria Rosa possibilita refletir sobre como, a partir de práticas escolares, se dá a produção de um sujeito com virtudes cívicas e patrióticas, numa cidade do interior do Rio Grande do Sul, em um período emblemático da política de nacionalização do ensino. Oferece também a

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possibilidade de se perceber como o mundo se inscreve na sala de aula, colocando personalidades e “fatos” da história - Getúlio Vargas, Ernesto Dorneles, o navio Itagiba – na tarefa repetitiva da caligrafia.

Imprimir nos alunos sentidos, formas de ser e de pensar é tarefa a que a escola se dedica com afinco. O caderno de caligrafia serve a um currículo, mais do que isso, traz um discurso que produz seu próprio objeto, selecionado a partir do contexto histórico, com interesse em formar uma determinada identidade, de aluno e de cidadão.

Afinal qual o sentido da caligrafia na forma como está posta no material analisado? Num primeiro momento, sem maiores reflexões, seu intento é o de somente exercitar a letra tornando-a bonita, de acordo com a própria etimologia da palavra, cali=bonita e grafia=letra. Ao trabalharmos o conteúdo das frases, no entanto, o universo do caderno aponta para outras formas de análise. Seu conteúdo representa uma tentativa, consciente ou não, por parte do professor, de produzir um bom aluno e cidadão com características desejáveis no contexto social da época.

Em que medida pode-se afirmar que os alunos da Escola Duque de Caxias compartilharam do desejo de seu professor? Para Chartier24 a produção de sentido está vinculada a “[...] uma relação dialógica entre as propostas do texto e as categorias interpretativas de seus leitores”. Assim como a D. Rosa, os outros alunos que fizeram caligrafia foram protagonistas de inúmeras digressões, que independiam da vontade do professor, nesse diálogo entre o sentido desejado por ele e o sentido dado pelos próprios alunos a essa prática.

Também o exercício de repetir a frase prescrita, possibilita, depois de adquiridas as competências gráficas, “uma apropriação diferencial de seu uso e suas formas, podendo mesmo levar a

24 Chartier, 2003:8.

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criação de estilos singulares, inspiradores de novos modos de grafar, apesar e para além das técnicas rígidas do dispositivo escolar” (Bastos e Stephanou, 2008, p22).

Cadernos de caligrafia são ainda fabricados, vendidos e preenchidos. Que frases ocuparão as linhas dos cadernos de caligrafia em 2006?

Crianças nas séries iniciais, principalmente no processo de alfabetização exercitam neles uma “melhor escrita”. Em muitas escolas, os cadernos de caligrafia ainda fazem parte das listas de material escolar do começo de cada ano, não obstante as opiniões sobre seu uso estarem longe da unanimidade.

Essa fôrma, onde a escrita se desenrola e conforma, fica gravada não na nossa pele, mas em nossos gestos, em nossos olhos, em nossa memória. Como diz Benjamin, “a mão pode ainda sonhar com essa manipulação (do jogo das letras), mas nunca mais poderá despertar para realizá-la de fato” 25.

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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II – Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1993.

25 Benjamin, 1993:105.

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Documentos

Entrevistas de Rosa Maria Rosa e Clotilde Grazziottin depositadas no Acervo de Memória Oral do Arquivo Histórico Municipal de Bom Jesus.

Caderno de Caligrafia de Rosa Maria Rosa acervo da Profª Lucila Maria Sgarbi Santos.

Discurso do Dia da Bandeira de Rosa Maria Rosa acervo da Profª Lucila Maria Sgarbi Santos.

Luciane Sgarbi S. Grazziotin é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUC RS. Professora do Centro de Filosofia e Educação da Universidade de Caxias do Sul/UCS; professora colaboradora do Mestrado em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected].

Carla Rodrigues Gastaud é Mestre em História pela UFRGS, doutoranda em Educação na UFRGS e professora no Instituto de Ciências Humanas da UFPel. E-mail: [email protected].

Recebido em: 03/04/2009 Aceito em: 20/12/2009

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EDUCAÇÃO E ETNIA: AS EFÊMERAS ESCOLAS ÉTNICO-COMUNITÁRIAS ITALIANAS

PELO OLHAR DOS CÔNSULES E AGENTES CONSULARES

Terciane Ângela Luchese Lúcio Kreutz

Resumo O objetivo deste artigo é reconstruir brevemente a história das escolas étnicas da chamada Região Colonial Italiana no Rio Grande do Sul, a partir dos olhares registrados por cônsules e agentes consulares. Considerando os contextos culturais, sociais, políticos e econômicos que permeiam a trama histórica dos processos de imigração, em especial de italianos para o Rio Grande do Sul a partir de 1875, a análise abrange o final do século XIX e início do século XX, momento em que houve maior participação e importância desta forma de escolarização. Utilizando fontes historiográficas diversificadas, mas privilegiando os relatórios consulares, o artigo analisa esta iniciativa ímpar de organização escolar, procurando contribuir para o conhecimento da história da educação brasileira.

Palavras-chave: Etnia; escolas étnico-comunitárias italianas; cônsules.

EDUCATION AND ETHNICITY: THE EPHEMERAL ITALIAN ETHNIC-COMMUNAL SCHOOLS FROM THE

PERSPECTIVE OF CONSULS AND CONSULAR AGENTS

Abstract The article briefly traces the history of the ethnic schools in the area of Italian colonization in the state of Rio Grande do Sul, Brazil on the basis of the views recorded by consuls and consular agents. Taking into account the cultural, social, political and economic contexts that pervade the history of the immigration processes, particularly of Italian immigrants to Rio Grande do Sul from 1875 onwards, the analysis covers the end of the 19th and the beginning of the 20th century, as in this period this form of school education had its largest share and biggest importance. By using diverse historical sources, but focusing on consular reports, it analyzes this unique initiative of school organization, trying to contribute to a better knowledge of the history of Brazilian education.

Keywords: Ethnicity; Italian ethnic-communal schools; Consuls.

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EDUCACIÓN Y ETNIA: LAS EFÍMERAS ESCUELAS ÉTNICO-COMUNITARIAS ITALIANAS ATRAVÉS LA

MIRADA DE LOS CÓNSULES Y AGENTES CONSULARES

Resumen El objetivo de este artículo es reconstruir brevemente la historia de las escuelas étnicas de la llamada Región Colonial Italiana en Rio Grande do Sul, a partir de las miradas registradas por cónsules y agentes consulares. Considerando los contextos culturales, sociales, políticos y económicos que traspasan la trama histórica de los procesos de inmigración, en especial de italianos hacia Rio Grande do Sul a partir de 1875, el análisis abarca el final del siglo XIX y el comienzo del siglo XX, momento en que hubo mayor participación e importancia de esta forma de escolarización. Utilizando fuentes historiográficas diversificadas, pero privilegiando los informes consulares, el artículo analisa esta iniciativa singular de organización escolar, buscando contribuir con el conocimiento de la historia de la educacíón brasileña.

Palabras clave: Etnia; escuelas étnico-comunitarias italianas; cónsules.

ÉDUCATION ET ETHNIE: LES ÉFÉMÈRES ÉCOLES ETHNIQUES – COMMUNAUTAIRES ITALIENNES

SOUS LE REGARD DES CONSULS ET DES AGENTS CONSULAIRES

Résumé L’objectif de cet article est de reconstruire brièvement l’histoire des écoles ethniques de la Région Coloniale Italienne du Rio Grande do Sul, à partir des regards registrés par des consuls et des agents consulaires. Considérant les contextes culturels, sociaux, politiques et économiques qui font partie de la trame historique des processus d’immigration, spécialement de celle des italiens, au Rio Grande do Sul à partir de 1875, l’analyse comprend la fin du XIXème siècle et le début du XXème siècle, moment où cette forme de scolarisation a été significative. En utilisant de sources historiographiques diverses, mais en privilégiant les rapports consulaires, on analyse cette initiative singulière d’organisation scolaire, en cherchant à contribuer à la connaissance de l’histoire de l’éducation brésilienne.

Mots-clés: Ethnie; écoles ethniques-communautaires italiennes; consuls.

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[...] maestro Luigi Petrocchi, um benemérito insegnante, che da sei anni presta i più relevanti servigi alla italianità e alle colonie [...] consigliando i coloni ad istruirsi, aiutandoli ad aprire delle scuolle nei punti più lontani. (Vittorio Buccelli, 1905)1.

O presente estudo é resultado parcial da pesquisa “Escolas étnico-comunitárias na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul” que está sendo desenvolvida junto à Universidade de Caxias do Sul.

As escolas étnicas eram ‘aulas’ elementares que ensinavam as noções básicas de escrita, leitura e cálculo. Na maioria dos casos, eram instituídas por iniciativa das próprias comunidades. As que funcionavam na zona urbana, em geral, foram resultado do empreendimento das Sociedades de Mútuo Socorro. As rurais, eregidas pelas próprias famílias da comunidade que, mediante a inexistência de escolas públicas ou pela própria distância, escolhiam o professor entre os moradores, aquele que era um pouco mais instruído. A respeito disso, descrevia o cônsul De Vellutis em 1908:

Nos centros urbanos e nas sedes das colônias rurais, essas escolas são mantidas pelas Associações Italianas ou melhor, surgem sob seus auspícios. No mínimo, são as associações que fornecem o local e os móveis e utensílios necessários. Nas colônias, entre as linhas que não contam com escolas brasileiras, os nossos compatriotas procuram sustentar as próprias custas, uma pequena escola para seus filhos, confiando-a a algum colono mais instruído do lugar. Existem também algumas associações de fabriqueiros de várias capelas das linhas que se esforçam em manter abertas pequenas escolas italianas. Em geral,

1 “[...] professor Luigi Petrocchi, um emérito ensinante, que a seis anos presta os mais relevantes serviços à italianidade e às colônias [...] aconselhando os colonos a instruírem-se, ajudando-os a abrirem suas escolas nos pontos mais distantes.” Vittorio Buccelli, 1905.

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pode-se afirmar, com certa satisfação que, os nossos compatriotas tem amor à sua escola italiana. Mas os sacrifícios que eles fazem não são suficientes e tem que lutar com grandes dificuldades para conceder uma remuneração para eles sempre pesada, aos professores que são mais pobres do que eles.2

De Vellutis, mesmo descrevendo e enaltecendo o ‘amor’ que os imigrantes tinham pela escola italiana, reconhecia as dificuldades, as precariedades e apontava como principais razões as dificuldades econômicas das famílias e a concorrência com as escolas confessionais. Em suas palavras:

Afora poucas, a maior parte das nossas escolas tem uma vida difícil. Elas atravessam, enfim, neste momento um período muito crítico. Por um lado, a crise econômica, agravada pelas recentes calamidades, colocou muitos colonos numa situação de miséria. Por outro lado, soma-se a isso a invasão de congregações francesas que, expulsas de seu país, vieram refugiar-se nesse Estado, instalando nas colônias escolas para ambos os sexos, as quais fazem grande concorrência às nossas, porque admitem gratuitamente alunos pobres, cobrando apenas dos que podem pagar.3

Portanto, já em 1908, De Vellutis sinalizava para as dificuldades que, em outros indícios documentais também foi possível encontrar, apontando para a efemeridade dessas iniciativas.

2 O Estado do Rio Grande do Sul e a Crise Econômica durante o último qüinqüênio – Extraído do Relatório do Cav. Francesco De Velutiis, Régio Cônsul de Porto Alegre, fevereiro de 1908. p. 348. 3 O Estado do Rio Grande do Sul e a Crise Econômica durante o último qüinqüênio – Extraído do Relatório do Cav. Francesco De Velutiis, Régio Cônsul de Porto Alegre, fevereiro de 1908. p. 349 a 350.

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As escolas étnico-comunitárias italianas: principais características

O ensino, nas escolas étnicas, era em italiano (em geral dialetos como o vêneto) e, em alguns períodos, elas receberam material didático do Governo Italiano. Ressalta-se que os imigrantes falavam os dialetos maternos de suas respectivas regiões de origem, conheciam mal o italiano, o que, de certa forma, dificultava, inicialmente, o uso dos livros didáticos.

Entre os imigrantes italianos, as escolas comunitárias se multiplicaram principalmente na zona rural e tiveram características étnicas, especialmente pela questão da língua (dialetos).

Muitas das escolas foram organizadas pelos pais e comunidade que criavam aulas e o professor era pago para que ministrasse os conhecimentos básicos de leitura, escrita e cálculos. Essas iniciativas foram muito comuns no interior das colônias. Diversos foram os casos em que as famílias de imigrantes uniram-se para empreenderem em mutirão a construção da escola, geralmente uma pequena casa de madeira rústica, apesar de, nos primeiros tempos, as aulas terem funcionado na própria casa do professor ou em casa de alunos. Essas aulas, em sua maioria, já em meados de 1910, tinham se tornado públicas, portanto em sua maioria de efêmera duração. De acordo com o imigrante Júlio Lorenzoni, estabelecido em Dona Isabel:

A absoluta falta de escolas do Governo Brasileiro obrigava o colono a escolher as pessoas mais aptas para ensinar a ler, escrever e fazer contas àquela mocidade toda, sob pena de criarem-se na maior ignorância, verdadeiramente analfabetos. Precisavam então conformar-se com o melhor que houvesse, pois não eram professores formados os que iam lecionar, mas sim os que, na Itália, tivessem recebido uma razoável instrução e que, mediante módica retribuição, se sujeitassem a desempenhar a árdua tarefa de mestre, o que procuravam

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fazer da melhor maneira. (LORENZONI, 1975, p. 126).

Entre os imigrantes havia alguns professores com formação em sua terra natal, mas seu número era insuficiente para suprir a carência, a demanda por escolas. Consoante Giron, "[...] entre os imigrantes da Colônia Caxias, apenas quatro se identificaram como professores, sendo os responsáveis pelas primeiras escolas particulares regionais. Foram eles Giacomo Paternoster, Abramo Pezzi, Clemente Fonini e Marcos Martini." (GIRON, 1998, p. 90).

Vale salientar que as escolas étnico-comunitárias foram, como ressalta Kreutz, muito importantes para os imigrantes, especialmente entre os alemães. Também refere-se a essas iniciativas como algo muito peculiar na História da Educação brasileira, caracterizando-as como iniciativas que

[...] não se desenvolveram de forma isolada, cada uma restrita a seu núcleo. Foram assumidas pelas respectivas comunidades de imigrantes, vinculadas a uma instância maior, isto é, à coordenação das respectivas confissões religiosas. Além disso, eram escolas étnicas porque retratavam aspectos culturais importantes da respectiva etnia, como língua e costumes. (KREUTZ, 2005, p. 72).

Entre os imigrantes estabelecidos na Região Colonial Italiana, houve as escolas mantidas pelas comunidades rurais que se formaram em torno da capela e também aquelas criadas e mantidas por Sociedades de Mútuo Socorro (a sua maioria estabelecidas em área urbana).

As iniciativas dos imigrantes são o resultado também das condições de ensino em que se encontrava a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em fins do século XIX, como já referido. Conforme o estudo realizado por Schneider, durante a década de 1870, a instrução pública, no meio rural, era muito precária. Ela não podia ser regulada pelas mesmas normas que a

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maioria das escolas da Província, já que os filhos de imigrantes falavam dialetos diferentes e os professores teriam dificuldades de ensinar se não compreendessem o que seus alunos falavam (SCHNEIDER, 1993, p. 356). Surgia, então, um grande problema: onde conseguir professores que compreendessem os dialetos italianos, dominassem o idioma nacional e se dispusessem a deslocar-se até as colônias e ali permanecerem para ministrar suas aulas? Destaca-se, concordando com Kreutz que:

A dimensão étnico-cultural é construída e reconstruída constantemente num processo relacional em que os grupos e indivíduos buscam, selecionam, ou relutam em função do significado que fenômenos e processos tem para eles. Por isto a educação e a escola são um campo propício para se perceber a afirmação dos processos identitários e os estranhamentos e as tensões decorrentes da relação entre culturas. (KREUTZ, 2001, p. 123).

Entre os agentes educativos principais que se mobilizaram na busca da escola podem ser citados os agentes consulares, para os quais, além da difusão dos conhecimentos elementares a escola étnica tinha o sentido de difusão da italianitá (italianidade), discurso assumido pelas próprias associações de mútuo socorro que também tinham um cunho nacionalista.

Relembro que as Sociedades de Mútuo Socorro eram associações que assumiram, em diferentes contextos, funções de intermediação e preservação dos laços com a pátria de origem através de festividades cívicas - italianitá, foram espaços de auxílio mútuo em caso de doença, morte ou sinistro, e muitas também assumiram atividade de ensino.

Em 1882, foi criada, em Dona Isabel, a Sociedade Artística de Mútuo Socorro Regina Margherita (mencionada no capítulo 1), que contava inicialmente com 40 sócios. Através do incentivo de Enrico Perrod, em 1884 surgiu uma escola italiana. Lorenzoni descreveu-a afirmando que:

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Seu primeiro mestre foi o senhor Isidoro Cavedon, que residia na Linha Santa Eulália e o Inspetor Escolar era o Reverendo Padre João Menegotto, pároco local (...) Devido, ao ordenado mínimo que lhe era outorgado, e também à distância que o separava da família, pouco depois pediu sua demissão sendo substituído pelo senhor Santo Bolzoni. (LORENZONI, 1975, p. 123 e 124).

O terceiro professor da escola italiana, mantida pela Sociedade de Mútuo Socorro, foi o próprio Júlio Lorenzoni4. Em suas memórias, ele relata como foi selecionado para assumir a cadeira de professor, seus ganhos salariais e as tarefas que lhe eram incumbidas:

Prestei o devido exame perante o Inspetor Escolar e mais dois membros, no dia doze de maio daquele mesmo ano [1884]. Na sessão ordinária da sociedade, realizada no dia dezenove do mesmo mês fui aprovado para desempenhar provisoriamente o cargo de professor elementar, nas mesmas condições do meu antecessor, a saber: trinta mil-réis mensais. Tinha a obrigação de dar aulas cinco horas por dia (menos os festivos) e servir, ao mesmo tempo, de secretário da Sociedade. [...] No primeiro dia de junho abri minha escola, atendendo a nada menos que cinqüenta alunos. O local da escola, ao mesmo tempo sede da Sociedade, era uma espaçosa sala, na propriedade do senhor Henrique Enriconi, bem arejada e com luz suficiente. [...] Depois de três meses, o meu ordenado de professor foi aumentado de dez mil-réis e, com esse mísero pagamento, desempenhei o árduo serviço até dezembro de 1889 [na p.179 consta março de 1889]. Naquela ocasião, era nomeado para as funções de agente postal e deixava o meu cargo com o senhor Alberto Bott, que me substituiu. Recordo ainda, com viva satisfação, que, durante todo o tempo desempenhei o

4 Lorenzoni naturalizou-se brasileiro em 1887. Códice 0006, AHGM. E o solicitante assina o documento. A naturalização significava maiores facilidades de aceitação seja participando dos rumos políticos, seja podendo candidatar-se a cargos públicos como, posteriormente, o fez.

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magistério nessa ex-colônia (cinco anos e sete meses), sempre tive uma freqüência média superior a quarenta alunos e pude constatar que muitos desses conseguiram tirar grande proveito dos ensinamentos que, com verdadeira paixão à arte de ensinar, procurei ministrar-lhes. (LORENZONI, 1975, p. 123 e 124).

Lorenzoni imigrara aos 14 anos e, na Itália, freqüentara o ensino elementar. Atendeu a escola até 1889, quando foi nomeado ajudante do correio e, após, agente postal. O salário passara a setenta mil-réis mensais, uma melhora significativa se comparado ao que recebia como professor: 40 mil-réis mensais.

Foram criadas quinze escolas italianas mistas nas diversas linhas, todas, porém, dependendo da Sociedade, cujos membros se interessavam pelo seu funcionamento e lhes distribuía os parcos recursos que possuía. O Real Consulado Italiano de Porto Alegre encaminhava à Sociedade Regina Margherita o que esta necessitava em livros e meios para atender professores e alunos, material este proveniente do Governo da Itália. A média da população escolar naquela época era de cerca de quinhentos alunos. Os subsídios às escolas rurais, por parte da Sociedade, duraram até fins de 1894, quando uma a uma foram sendo fechadas, por abandono de parte das autoridades consulares, suspendendo os subsídios, e pela falta de recursos da Sociedade para mantê-las em funcionamento. (LORENZONI, 1975, p. 124 a 126). Lorenzoni enumera as escolas mistas e rurais italianas da colônia Dona Isabel: 1ª) na Linha Pedro Salgado, mestre Santo Bolzoni; 2ª) na Linha Palmeiro, 6, mestre Luís Casanova5; 3a) na Linha Palmeiro, 33, mestre Eoli Secondo; 4a) na Linha Palmeiro, 100, mestre João Casagrande; 5a) na Linha

5 Luigi Casanova chegara em 1878 no Brasil e estabeleceu-se em ¼ do lote n. 01 da linha Palmeiro. Nascido em 1850, era católico, alfabetizado e declarava-se agricultor. Casado com Cecília, em 1883 tinha 3 filhos: Ernesto de 5 anos, Isabel de 3 e Domenico de 8 meses. Haviam imigrado também Antônio e Antônia Casanova, seus pais. Censo de 1883, colônia Dona Isabel, AHGM.

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Palmeiro, 160, mestre Henrique Bernardi6; 6ª) na Linha Jansen, 47, mestre Francisco Tochetto; 7a) na Linha Jacinto, 40, mestre Ferdinando Strapazzon; 8a) na Linha Geral - São Valentim, mestre Antônio Longhi; 9a) na Linha Santa Eulália, 6, mestre Pedro Bassin; 10a) na Linha Faria Lemos, 47, mestre Antônio Poletto7; 11ª) na Linha Graciema, 16, mestre Antônio Martinelli; 12ª) na Linha Leopoldina, 47, mestre Celestino Maines; 13a) na Linha Leopoldina, 103, mestre Alexandre Castelli8; 14a) na Linha Santa Bárbara, mestre Agostinho Brum; 15a) na Linha Santa Teresa, mestre Félix Montanari;9 16ª) na Linha Passo do Rio das Antas, mestre Carlos Cigerza.

As escolas italianas estavam todas a cargo de imigrantes que, na sua comunidade, aceitavam dedicar parte de seu tempo ao ofício de professor. Poucos eram os que exerciam exclusivamente a docência. A maioria desses professores, (observe-se que eram todos homens), somavam a atividade de ensino com o trabalho na agricultura ou com a manutenção de outra atividade econômica,

6 Enrico Bernardi chegara ao Brasil em 1880 estabelecendo-se no lote 182 da Linha Palmeiro. Alfabetizado, católico, nascido em 1843, casado com Amália. Em 1883 tinha dois filhos: Tancredi de 4 anos e Ercilia de 6 meses. Censo de 1883, colônia Dona Isabel, AHGM. 7 Antonio Poletto era de Sacile, Pordenone e imigrou para o Brasil em 1885, já casado e com filhos. Estabeleceu-se na Linha Faria Lemos, Bento Gonçalves. (GARDELIN e COSTA, 1992, p. 251). 8 Alessandro Castelli era filho de Antônio e Ângela Capella, nascido em Castagneto, Província de Torino, a 23 de setembro de 1848. Era militar de 2ª categoria, chegara ao Brasil em 1877, estabelecendo-se no lote 103 da Linha Leopoldina. Casou-se em 3 de março de 1878 com Maria Capalonghi, natural de Cremona. (GARDELIN e COSTA, 1992, p. 214). 9 Felice Montanari nasceu em 12 de outubro de 1860 em Pieve Saliceto, Província de Reggio Emilia, filho de Giuseppe e Annunciata Vilani, casou-se com Annunciatta Brozzi. Chegou no Brasil em 1885 com a esposa, uma filha e duas irmãs. Estabeleceu-se no lote 136 da Linha Leopoldina. (GARDELIN e COSTA, 1992, p. 246).

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seja comercial ou manufatureira. Muitos assumiram também encargos comunitários.

Em Conde D´Eu foi com a fundação da Sociedade Stella d´Itália, em 1884, que organizaram a escola italiana. Conforme os estatutos dessa Sociedade, artigos 75º a 81º, a escola italiana masculina e feminina era mantida com as mensalidades pagas pelos pais e administrada por um regulamento especial, aprovado pelo Cônsul da Itália em Porto Alegre.10

A escola mantida pela Sociedade Stella d’Itália, ao ser criada, tinha como finalidade “[...] contribuir para o progresso moral e intelectual dos filhos dos colonos sócios e não-sócios com o meio de ensinamento que é dado essencialmente em italiano, com professor italiano, testes italianos, deverá ter sempre viva recordações do alfabeto da pátria distante.”11 A Sociedade, seguindo a proposta e a recomendação de seu presidente honorário, Conde Antônio Greppi, Cônsul da Itália em Porto Alegre, estabelecera uma escola puramente italiana elementar, masculina e feminina. Na implantação da escola, como também no seu andamento e administração, estava encarregado o Conselho Administrativo, o qual nomearia uma comissão especial e direta para a escola. O Conselho Administrativo da Sociedade era, também, encarregado da escolha do nome do professor, estabelecendo condições relativas tanto às retribuições mensais que perceberia quanto ao número e horário de lições, à duração do tempo do ano escolar. Qualquer pai de família, sócio ou não-sócio, poderia usufruir da escola mediante pagamento. Se sócio, pagaria 500 réis mensais mandando um filho, 800 réis mandando dois filhos e 1000 réis mandando três. Para os não-sócios,

10 Estatuto da Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Stella D’Itália, 10/03/1884. Arquivo Histórico Municipal de Garibaldi. 11 Artigo n. 75 do Estatuto da Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Stella D’Itália, 10/03/1884. Arquivo Histórico Municipal de Garibaldi.

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mediante pagamento de 1000 réis por um filho, 1500 réis por dois filhos e de 2000 réis por três.12

Houve diversas associações de imigrantes italianos também nas zonas rurais. Foi o caso da sociedade Camilo Cavour, localizada na Linha Santa Eulália e fundada em 1888, e a Umberto I da Linha Jansen, fundada em 1894, ambas na antiga Colônia Dona Isabel e que atuavam na difusão da instrução. Em Caxias e em Conde d´Eu, havia várias Sociedades de Mútuo Socorro e, também nestas, como citado anteriormente, existiram iniciativas escolares e recebimento de material didático. Os subsídios fornecidos pelo governo italiano para essas escolas constituíam-se na remessa de livros didáticos e materiais de ensino. Não era previsto o pagamento dos professores, que deveriam contar apenas com as mensalidades dos alunos, no caso das escolas italianas da Região.

Válido salientar que as autoridades italianas, como os cônsules, preocupavam-se com a falta quase absoluta de instrução nos núcleos coloniais. É possível encontrar, em todos os relatórios consulares, registros que retratam a situação das colônias, mencionando a falta de escolas e a necessidade do governo italiano intervir, passando a apoiar a educação, enviando livros e material escolar. Certamente transparece a perspectiva de manutenção dos laços culturais com a Pátria-mãe, a Itália, através do ensino.

As escolas étnico-comunitárias da Região Colonial Italiana pelo olhar dos cônsules

Diversos cônsules e agentes consulares descreveram em seus relatórios a precariedade e mesmo a importância em angariar maiores investimentos por parte do governo italiano para a manutenção e melhoria das escolas étnico-comunitárias. Em visita 12 Conforme os Artigos n. 76 a 79, do Estatuto da Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Stella D’Itália, 10/03/1884. Arquivo Histórico Municipal de Garibaldi.

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às colônias enviaram relatórios descrevendo, por vezes de forma contraditória, a situação dessas escolas.

Em 1882, Pascoale Corte informou que a Colônia Dona Isabel possuía uma escola primária italiana freqüentada por 61 crianças e Caxias, duas escolas italianas.13

Enrico Perrod, cônsul italiano em Porto Alegre, escreveu, em seu relatório de 1883, que sua visita às colônias da serra tinha como um dos intuitos principais formar um juízo do estado intelectual e das aspirações que nutriam, quanto à instrução daqueles colonos.14 Enumerou que os mesmos lhe fizeram, em sua visita, dois pedidos apenas: estradas e escolas, já que o que eles podiam fazer a respeito já o tinham feito. Referindo-se aos custos para a instrução, constatou que os valores eram elevados:

[...] o dinheiro ainda é raro e o preço dos livros elevadíssimo. Um abecedário custa 500 réis (1,25 liras), uma pequena gramática, 1 mil réis (2,50 liras), e um simples livro de leitura, entre 2,50 e 5,50 liras. [...] Sobre uma média de rendimentos calculada em 300 franco ao ano, segundo meus cálculos, cada pai reserva pois, cerca de 60 a 70 francos para a instrução dos filhos. E que pediram a mim? Não subsídios pecuniários, mas livros escolares.15 (grifos meus).

Perrod lamentou afirmando que seria uma calamidade permitir que a instrução elementar se extinguisse nas colônias, e nada havia de se esperar das escolas brasileiras, já que as aflições e lamentos em relação àquelas eram constantes por parte dos colonos, e as autoridades locais pouco faziam. Assumindo uma

13 L’Itália all’Estero Nell’Ultimo Decênio – Studi dell’Avv. Cav. Pascoale Corte – Roma – Tipogragia Ereti Bota – 1882. 14 PERROD, Enrico. Le colonie brasiliane Conde d’Eu e Dona Isabela, 1883. Apud: DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST / Caxias do Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI, 1985, p. 26 e 27. 15 Id. Ibidem, p. 27.

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postura depreciativa com relação às autoridades locais, o cônsul pretendia enfatizar a necessidade e importância das escolas italianas. E, referindo-se exclusivamente à colônia Dona Isabel, informou:

Em Dona Isabel há uma escola pública onde leciona uma senhora, mas a maior parte dos pais retiram dela seus filhos, e os enviam para a de um professor italiano, de quem vi o diploma de licença ginasial, e outros certificados de elogio dados pelas autoridades municipais italianas [trata-se de Julio Lorenzoni]. Cada criança paga mensalmente 1 mil réis para freqüentar as aulas. Na Linha Palmeiro há também uma escola, mantida com grandes dificuldades pelos próprios colonos. O professor chama-se Santo Bolzoni. Dele também vi os diplomas e certificados recebidos das autoridades municipais italianas. Na verdade, é desoladora a situação destes professores. Sabem que são mais cultos, e mesmo assim, embora trabalhem tanto quanto os demais colonos, encontram-se na impossibilidade de fazer a menor economia. Conseguem apenas sobreviver, enquanto muitos de seus concidadãos, em breve tempo, conseguem um modesto patrimônio. De outro lado, como estes concidadãos jamais pagaram diretamente o professor, agora fazem dificuldades em tirar de suas duras fadigas uns 60 ou 70 francos anuais para a instrução de um filho, ou 150 francos, para quem possui mais de um.16 (grifos meus).

No ano de 1884, Pascoale Corte, também cônsul, visitou novamente as colônias e referiu-se à situação da instrução em Dona Isabel:

A colônia possui na sede uma sociedade italiana de mútuo socorro, com 85 sócios e um capital de reserva de cerca de 2 mil francos.[...] Esta sociedade abriu uma escola italiana que conta com cerca de 60 alunos, de ambos os sexos. Há também uma escola pública mista, mantida pelo governo e uma banda de música, organizada por

16 Id. Ibidem, p. 33 e 34.

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diletantes italianos. Nas várias linhas, contudo, talvez por falta de professores, a instrução é bastante descuidada, embora depois de minha visita me tenha sido prometido em diversas linhas, principalmente na Palmeiro, que serão abertas escolas, pagando os colonos uma mensalidade aos professores.17 (grifos meus).

Outro relatório, de Eduardo de Brichanteau, de 25 de março de 1892, noticiou que existiam 7 escolas públicas, das quais 2 eram na sede e 5 nas linhas. Essas escolas, segundo ele, eram pouco freqüentadas pelos filhos dos colonos, que preferiam as italianas. Estas também perfaziam um total de 7, sendo muito freqüentadas, especialmente a da sede. Brichanteau afirmou que os alunos eram em sua maioria nascidos no Brasil, sendo apenas 7% os italianos. Na escola italiana, mantida na sede pela Sociedade de Mútuo Socorro Regina Margherita, as aulas eram gratuitas para os filhos de sócios, já que o subsídio público era suficiente para o pagamento dos professores. A Sociedade cedia o local, os móveis e arcava com pequenas despesas. Nas outras escolas étnicas, cada aluno pagava em média 500 réis mensais. Por fim, acrescentou Brichanteau que “[...] em geral os colonos desejam que as escolas italianas progridam, mas, assim como na Itália, há também aqui os que pouco se preocupam com a instrução de seus filhos."18 Chamam atenção duas questões: uma é a oposição entre Perrod, o qual declarou que os colonos solicitavam a abertura de escolas, enquanto Brichanteau afirmou que havia, como na Itália, os que não se interessavam por elas. Outra, é o discurso sobre a preferência por escolas italianas, o que precisa ser relativizado, já

17 CORTE, Pascoale. 1884 Apud: DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST / Caxias do Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI, 1985, p. 42. 18 BRICHANTEAU, Eduardo dos Condes Compans de. 25/03/1892. Apud: DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST / Caxias do Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI, 1985, p. 66.

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que a aprendizagem do português era considerada por muitos uma necessidade para a convivência / sobrevivência na ‘nova Pátria’.

Em 1903, Ciapelli, cônsul em Porto Alegre, expôs, entre outros aspectos, sobre o que ele denominou de “condições intelectuais e morais dos colonos italianos”:

[...] a instrução é escassa e descuidada. Existem, é verdade, muitas escolas, mas todas em condições didáticas e financeiras pouco satisfatórias. [...] Muitos deixaram a cidadania de origem para abraçarem aquela do novo país que vivem; mas no fundo se mantém bons italianos, se bem somos sinceramente afeitos a sua segunda pátria. Nas colônias quase todos tomam parte da vida pública, parte ocupando empregos nas administrações das comunas, na polícia, nos municípios e todos se distinguem pelo bom senso, pela lealdade e pela justa forma como atém-se ao exercício de suas funções.19

Ressaltou a precariedade das escolas mantidas na época, bem como a inserção dos imigrantes nas administrações locais, evidenciando-se os diversos processos de naturalização.20

De certa forma, as escolas ditas italianas foram importantes na manutenção da língua e do culto da Itália como a pátria dos filhos dos imigrantes. Entre os anos de 1891 e 1896, assumiu como agente consular, em Caxias do Sul, Domenico Bersani, tendo sido também Inspetor Escolar oficial das escolas de língua italiana existentes na léguas que constituíam Caxias. (ADAMI, 1971, p. 22). Em Bento Gonçalves, o padre e também

19 ROMA. Bollettino dell’Emigrazione. Ministero degli Affari Esteri. Tip. Nazionale di G. Bertero, n. 04, 1903. Lo Stato di Rio Grande del Sud (Brasile) e l’immigrazione italiana (Da um rapporto del R. Console a Porto Alegre, Cav. E. Ciapelli, agosto de 1901). 20 No Arquivo Histórico e Geográfico de Montenegro foi possível localizar, apenas no ano de 1887, 52 pedidos de naturalizações de imigrantes estabelecidos em Conde d’Eu e Dona Isabel (posteriormente Garibaldi e Bento Gonçalves). Códice 0006, AHGM.

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agente consular, Giovanni Menegotto, foi, por alguns anos, inspetor escolar. A importância do professor como elemento de ligação entre os imigrantes, a cultura e língua italianas foi reconhecida pelo governo da Itália que, no final do século XIX, designou o professor-agente, com o objetivo de fazer a ligação entre os imigrantes e as autoridades consulares italianas. (DE BONI, 1985, p. 71). Umberto Ancarini e Luigi Petrocchi foram professores e agentes consulares enviados da Itália para Caxias e Bento Gonçalves. Bagé, Porto Alegre e Alfredo Chaves foram municípios que também receberam professores com formação e que assumiam a tarefa de agentes consulares concomitantemente.

Coube ao Cônsul Ciapelli coordenar os primeiros anos de trabalho dos professores e agentes consulares locais. Os jornais noticiaram a vinda:

O nosso amigo José Chiaradia, presidente da sociedade Operária Príncipe de Nápoles, recebeu um ofício do Sr. Agente Consular do Reino da Itália nesta vila, comunicando-lhe que já seguiu de Porto Alegre o Sr. Ancarini que aqui vem substituir aquele agente e exercer o cargo de professor a expensas do governo da Itália.21

Adiante, na seção italiana, o mesmo jornal informou:

Provimento para nossas escolas coloniais

O Régio Ministério dos Fazeres Exteriores comunicou ao Cônsul Cav. Ciapelli que partiram para a Capital [Porto Alegre] o prof. Ancarini e o Sr. Mantovani. Este será destinado para agente consular com o encargo de ensinamento em Alfredo Chaves. O prof. Ancarini será destinado do Real Consulado para a colônia Caxias.

21 Jornal “O Cosmopolita” – Órgão dos Interesses Coloniais. Caxias, 12 de junho de 1904, Ano II, n. 103, p. 04. Redatores diversos. Editor-proprietário: Maurício N. de Almeida. Jornal semanal, distribuído aos domingos, possuía uma seção italiana.

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O mesmo Ministério informou ao Cav. Ciapelli que decidiu enviar um professor para a escola de Bagé e e um outro para a nova escola de Porto Alegre, dependente da União Meridional Vittorio Emanuele III.” [ tradução minha].22

No mês de julho de 1904, foram feitos vários anúncios pela Sociedade Príncipe de Nápoles acerca do funcionamento da nova escola italiana, que estaria em sua sede. Era destinada aos meninos e teria como professor principal Umberto Ancarini. Publicava também as disciplinas a serem ministradas:

Escola Italiana Príncipe de Nápoles

A partir do endereçamento do Cav. Enrico Ciapelli, Cônsul da Itália, que tanto preza em seu coração a instituição das escolas italianas nas colônias do Rio Grande do Sul, o Governo Italiano aderindo também ao interesse da Sociedade Operária Príncipe de Nápoles que sempre procurou para instituir uma escola italiana em Caxias, que enviava como encarregado da dita escola o Prof. Cav. Umberto Ancarini. Se traz ao conhecimento dos habitantes desta vila que no próximo mês será aberta a Escola Italiana Masculina de grau inferior e superior na sede da sociedade anteriormente nominada, que com patriótico sentimento, é seu promotor. O ensinamento compreenderá das seguintes matérias: Língua italiana. Língua portuguesa. Língua francesa. História Italiana e Brasileira. Geografia. Matemática. Geometria. Desenho. Caligrafia. Canto. Ginástica e exercícios militares. As inscrições do alunos serão recebidas todos os dias pelo Sr. Mario Marsiay secretário da Sociedade Príncipe de Nápoles.23 [tradução minha].

22 Jornal “O Cosmopolita” – 12 de junho de 1904, Ano II, n. 103, p. 03 – seção italiana. 23 Jornal “O Cosmopolita” – 17 de julho de 1904, Ano II, n. 108, p. 03 – seção italiana. O mesmo anúncio foi publicado novamente em 24 de julho de 1904, n. 109.

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Seriam ensinados 3 idiomas, desenho, canto, ginástica, exercícios militares, entre outras matérias. Inicialmente, propunha o ensino apenas para meninos mas, no ano seguinte, a esposa de Ancarini assumiu, como ele mesmo noticiou, que a “[...] escola privada italiana feminina, foi aberta em sua própria residência pela senhora Iró Ancarini, e conta já, após 3 meses, com 18 alunas, pertencentes às melhores famílias locais.”24

Além da aula diurna foi oferecida outra oportunidade para aqueles que não haviam se alfabetizado: o ensino noturno para adultos. Iniciativas inovadoras para o período, para o local e que receberam investimentos apenas anos depois por parte das autoridades locais (o ensino noturno para adultos teve investimentos posteriores por parte da Intendência de Caxias, que passou a compreender a importância de gerar oportunidades de estudo àqueles que não haviam freqüentado aulas em idade regular). Chamam atenção, também, as matérias a serem ensinadas, incluindo o desenho e o ensino de três idiomas – o italiano, o português e o francês. Em início de agosto, a Sociedade publicou novamente anúncio sobre o Curso Noturno. Para os adultos mais pobres, que desejassem aprender a leitura, houve oportunidade também. As aulas foram dadas em sábados e domingos. Ancarini ensinou a leitura da língua italiana, gratuitamente.

No entanto, mesmo mediante essas iniciativas, o número de alunos não foi muito elevado, possivelmente porque havia custos e os beneficiados eram apenas os que viviam na vila e seus arredores mais próximos. Ancarini, em relatório de 1905, relatou sobre a própria escola: “[...] na vila abriu-se há oito meses uma

24 ANCARINI, Humberto. Relatório: A colônia italiana de Caxias, Rio Grande do Sul, Brasil, 1905. In: DE BONI, Luis A. (org.). A Itália e o Rio Grande do Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 57.

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escola masculina italiana, com sede na Sociedade Príncipe de Napoli, contanto atualmente com 25 inscritos.”25

Ancarini, nesse mesmo relatório, registrou observações pessoais sobre a instrução na Região, especialmente em Caxias. Segundo ele, o governo do Estado provia o melhor que podia a instrução nos municípios. Eram mantidas 20 escolas mistas, dispersas pelas diversas linhas, freqüentadas por alunos que não distassem mais de meia hora a cavalo do local da escola. O município de Caxias mantinha outras 4 escolas rurais, onde ensinavam a língua portuguesa. Informava que a população escolar pública era, em média, de mil alunos e que o governo fornecia gratuitamente às escolas livros e material escolar. Porém, lamentava ele: “[...] mas poucos são os pais que dão verdadeira importância à instrução e à educação. Para muitos, estas são palavras sem sentido.” A partir disso, pergunta-se: por que Ancarini afirmava isso? A justificativa para tal observação é muito interessante, já que permite pensar em qual escola as comunidades realmente desejavam. Ele registrou, na seqüência do relatório:

Na sede, mais do que em outros lugares, é perceptível a indiferença pelo estudo de nossa língua, especialmente nas donzelas e nos jovens. E não faltam os que mostram repugnância em falar italiano, considerando como humilhação o fato de falar a língua que chamam dos imigrantes. A grande maioria dos imigrantes não conhece e jamais conheceu a língua italiana. Os colonos que vivem no interior falam somente o dialeto vêneto ou mantuano; e os que vivem na sede falam dialeto e mais ainda o português, que é a língua que os permite comunicar-se com os brasileiros. [...] Os mais importantes da sede e as famílias mais abastadas utilizam

25 ANCARINI, Humberto. Relatório: A colônia italiana de Caxias, Rio Grande do Sul, Brasil, 1905. In: DE BONI, Luis A. (org.). A Itália e o Rio Grande do Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 57.

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cartões escritos em português – e alguns também em língua italiana – para visitas, augúrios e participações.26

É perceptível que o não interesse pela escola passa pela questão da língua. Ancarini constatou que o italiano, que muitos dos imigrantes desconheciam, não era considerada, pelas novas gerações, uma aprendizagem necessária ou atrativa. Pretendiam aprender o português. De certa forma, o professor espantava-se que as identificações dos negócios da sede já traziam o letreiro em português, bem como os próprios cartões pessoais.

Ao visitar colonos nas diversas léguas, o referido professor falara com os mesmos e buscara persuadi-los da importância da escola. E constatou que

[...] muitos desejariam vivamente ter uma escola, dirigida por algum colono, para dar aos filhos um pouco de instrução. E não seria difícil encontrar nos diversos travessões alguém que se encarregasse do ensinamento do italiano, dando-se-lhe, naturalmente, uma pequena retribuição mensal, que seria paga pelos alunos. Seria preciso, também dar aos alunos um subsídio em livros, cadernos e penas e uma recompensa ao final do ano, a título de encorajamento.27

Ancarini sugeriu que o governo italiano subsidiasse tais iniciativas, multiplicando a rede de escolas que ensinassem o italiano. Foi uma preocupação do professor a falta de proximidade nas relações, inclusive, comerciais da Itália com o “próspero estado sulino onde tantos compatriotas haviam se estabelecido e progrediam.”28

26 ANCARINI, Humberto. Relatório: A colônia italiana de Caxias, Rio Grande do Sul, Brasil, 1905. In: DE BONI, Luis A. (o rg.). A Itália e o Rio Grande do Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 56. 27 Id. Ibidem, p. 56. 28 Id. Ibidem, p. 57.

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Em tempos já passados, registrou Ancarini, teria havido muitas outras iniciativas de escolas italianas empreendidas pelos colonos, mas que tiveram vida breve, seja pela falta de apoio ou de material escolar.

Por mais de uma vez fui convidado pelos colonos para visitar as escolas particulares desse município, onde o ensino é feito em língua italiana por colonos de ambos os sexos. São quatro escolas particulares e foram abertas por que naqueles lugares não há escolas brasileiras. Seus mestres improvisados – alguns ensinam já a (sic) 5 anos – cumprem seu ofício com dedicação e amor. Os alunos e alunas destas escolas atingem o número de 170 e, na falta de salas especiais no local, a instrução é feita na capela.29

O processo escolar em Bento Gonçalves, especialmente durante o início de século XX, foi descrito em diversos relatórios elaborados por Luigi Petrocchi30. Ele veio como professor subsidiado pelo Governo Italiano e serviu de agente consular no município, entre os anos de 1903 e 1909 (pelas informações obtidas). Em seu relatório de 1903, noticiou:

A nova escola italiana adquire sempre mais simpatia mesmo entre as autoridades do país. No corrente ano, na seção de

29 Id. Ibidem, p. 57. 30 “Luigi Petrocchi era natural de Pistóia, na Itália. Emigrou par ao Brasil por volta de 1900, com os dois filhos maiores, deixando a esposa e outros dois filhos em Pistóia. Além de atuar como agente consular em Bento Gonçalves, Petrocchi foi professor em uma escola do mesmo município.” IOTTI, Luiza Horn. O olhar do poder – a imigração italiana no Rio grande do sul, de 1875 a 1914, através dos relatórios consulares. Caxias do sul: EDUCS, 1996, p.163. Consta que após sua saída de Bento Gonçalves, Petrocchi assumiu o cargo de Vice-Cônsul em Florianópolis conforme OTTO, Claricia. As escolas italianas entre o político e o cultural. IN: DALLABRIDA, Norberto (org.). Mosaico de Escolas – modos de educação em Santa Catarina na Primeira República. Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 135.

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trabalhos femininos, estavam inscritas 9 crianças filhas de brasileiros. Em 2 anos de vida, a escola deu um pouco de instrução a mais de 100 analfabetos e conseguiu obter frequência máxima mesmo de filhos de gente que sempre se mostrou cética em matéria de instrução. (DE BONI, 1985, p. 68; grifos meus).

Em outro relatório, de julho de 1904, Petrocchi considerou:

Geralmente é reconhecida a importância da escola italiana neste estado, visto que só por meio da escola mantém-se vivo o culto das memórias pátrias, cultivam-se o espírito e a mente, difundem-se a língua e a cultura italiana. O envio de outros professores-agentes, da parte do governo italiano, continua a ser vivo desejo de todos os compatriotas que vivem nos vários centros coloniais. E mesmo os brasileiros, que com justa razão querem conservar e difundir seu idioma, sua literatura e seu sentimento de nacionalidade, não se opõem a que nossos colonos enviem seus filhos à escola italiana, pelo contrário, admiram esta escola, estudam o método didático que nela é adotado e vêm assistir os exames. Deixam a cada um total e plena liberdade de manifestar seus sentimentos patrióticos, e tomam parte, sem constrangimento, nas festas de caráter italiano.(...) As escolas públicas, colocadas sob a fiscalização direta do intendente e dos conselheiros, são mantidas pelo Estado. Em todo o município há 18 escolas públicas, das quais 9 são masculinas, 2 femininas e 7 mistas. As escolas italianas, subsidiadas pelo governo da Itália com material didático, chegam a 24, somadas aqui também as que foram abertas no corrente ano. (DE BONNI, 1985, p. 71 e 74; grifos meus)

A escola italiana adquiria ‘sempre mais simpatia’, o ‘culto das memórias pátrias’, estas e outras enunciações discursivas produzidas por Petrochi assinalam o forte vínculo com o movimento pela italianitá, pensando na defesa e na preservação de hábitos, costumes, tradições e do idioma da Pátria-mãe. A escola

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se tornou um espaço de formação e manutenção de laços afetivos, culturais, políticos e econômicos com a Itália.

Já em dezembro de 1905, Petrocchi escreveu novo relatório, afirmando que a instrução deixava muito a desejar, pois em todo o território havia apenas 18 escolas públicas brasileiras e cerca de duas dezenas de pequenas escolas italianas, dirigidas estas de boa vontade por imigrantes que, pouco se importando com sacrifícios e privações de toda a sorte, ensinavam o que sabiam e como podiam, sem ao menos terem a certeza de poderem cobrar ao final do mês o mil réis a que tinham direito.

Petrocchi registrou, em 1905, que a iniciativa de implantação da escola com ensino em italiano gerou desconfianças. Discutira-se sobre as intenções e objetivos que estavam ‘por trás’ do ensino e dos materiais que eram enviados pela Itália. Com o passar do tempo conquistas foram sendo obtidas, conforme os registros de Petrocchi:

Quando, em 1901, foi fundada a escola "Petrocchi" na vila de Bento Gonçalves, alguns procuraram obstaculizá-la de todas as maneiras, porque suspeitavam que nos auxílios que o governo italiano lhe garantira supunham esconder-se alguns fins políticos ocultos. Afirmavam que a existência de escolas italianas no Brasil era um grande empecilho para a formação e afirmação mais vigorosa da nacionalidade brasileira. Duvidavam que a nacionalidade e a soberania brasileira não viessem a ser abaladas pelo ensinamento da história e de línguas estrangeiras ministrado aos filhos de colonos italianos. Para eles, não se deveria estudar nada além da língua portuguesa. Em pouco tempo os temores desapareceram. Ninguém mais tentou opor-se à escola italiana, quando se percebeu que ela não era um foco de política hostil, mas um local onde se ensinava a amar a pátria de origem e a de adoção. Tal escola, juntamente com as outras, respondia à missão regeneradora da juventude, a qual, sem instrução, acabaria por viver uma existência brutalizada e não constituiria um povo orgulhoso de bom nome de sua pátria de origem. (DE BONI, 1985, p. 113).

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A ‘prática regeneradora da juventude’ a que Petrochi se referiu foi uma preocupação constante nos relatos das autoridades consulares italianas. Trata-se de um viés biológico, de considerar a necessidade de preservação da raça. “Gente sã, bem nutrida e satisfeita” escreveu Antonelli em 1899.31 Aliavam o argumento da superioridade racial com o viés do trabalhador ordeiro e disciplinado, o responsável pelo desenvolvimento econômico da Província, como escreveu Perrod em 1883: “[...] as colônias italianas são o futuro e a única âncora de salvação para a prosperidade e progresso desta Província.”32

No ano de 1905, o Cônsul Chiapelli afirmou que o Governo Brasileiro aumentava o número de escolas, mas não podia atender as necessidades de todos os centros. Destacou que os professores públicos, por causa da diferença de língua e de índole, não tinham condições de melhorar a intelectualidade e a moralidade do ambiente. Por fim, aconselhou:

Seria interessante, portanto, fundar escolas italianas, e trazer da Itália professores honestos e capazes, aos quais se poderia confiar também as funções de agentes consulares, contribuindo assim também para a proteção dos concidadãos além da sua instrução. Foi feita experiência neste sentido a qual deu bons resultados; parece que foi decidido levá-la a outras localidades. Seria utilíssimo também fundar mais escolas para crianças.33

31 ANTONELLI, Conde Pietro (Ministro Real no Rio de Janeiro). O Estado do Rio Grande do Sul e a imigração italiana. In: DE BONI, Luis A. (org.). A Itália e o Rio Grande do Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 11. 32 PERROD, Enrico. Le colonie brasiliane Conde d’Eu e Dona Isabela, 1883. Apud: DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST / Caxias do Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI, 1985, p. 15. 33 CIAPELLI, Enrico. Lo stato di Rio Grande del Sud. Relatório do Cav. Enrico Ciapelli, Cônsul em Porto Alegre – 1905, p. 954.

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No parecer de Chiapelli, era necessário investir mais na abertura de novas escolas italianas bem como difundir a presença de professores-agentes, como tinha sido o caso de Luigi Petrocchi, de Bento Gonçalves. Evidencia-se em seus registros a perspectiva de uma hierarquização das etnias pois menospreza as iniciativas públicas, retratando-as como menos capazes de ensinar, de moralizar e de educar para a retidão.

Outro relatório em que são esclarecidas e avaliadas as iniciativas escolares no Rio Grande do Sul é de 1908, escrito por De Vellutis, também Cônsul em Porto Alegre. No capítulo nove de seu relatório afirmou serem:

[...] numerosas as escolas italianas no Rio Grande do Sul. Somente nas Colônias Caxias, Bento Gonçalves, Guaporé, Antonio Prado, Alfredo Chaves e Garibaldi há cerca de cinqüenta e cinco, além de haver quatro em Porto Alegre, uma em Pelotas, uma em Bagé, e outras em Silveira Martins, Jaguarão, Vila Rica, Cruz Alta, etc.34

É questionável a consideração de que eram numerosas as escolas italianas se observada a dimensão espacial à qual o Cônsul se referiu. Na continuidade, considerou serem cerca de 80 as escolas providas de livros e materiais escolares. Muitas das escolas das sedes ou centros urbanos eram mantidas pelas Associações Italianas que forneciam o local, os móveis e os utensílios necessários à escola. Registrou que, com esforço, muitas comunidades rurais mantinham suas pequenas escolas italianas, remunerando parcamente os professores, os quais “[...] eram mais pobres do que eles (pessoas da comunidade)”.35

34 O Estado do Rio Grande do Sul e a Crise Econômica durante o último qüinqüênio – Extraído do Relatório do Cav. Francesco De Velutiis, Régio Cônsul de Porto Alegre, fevereiro de 1908. p. 348 a 350. 35 Id.ibidem, p. 348 a 350.

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Mesmo afirmando que as escolas italianas eram numerosas, que os compatriotas tinham amor às mesmas, reconhece que elas enfrentavam dificuldades pois as escolas públicas, gratuitas e com ensino em português eram mais procuradas e solicitadas. Da mesma forma, classificava como invasão o estabelecimento por parte de congregações religiosas, especialmente destacando as Irmãs francesas (e aí está uma questão étnico-religiosa), que acolhiam gratuitamente alunos pobres, fazendo grande concorrência. No mesmo relatório, De Vellutis ainda destacou que:

De acordo com sua importância, disciplina e método, são dignas de destaque as três escolas dirigidas pelos professores-agentes, em Bento Gonçalves (Escola Petrocchi), em Porto Alegre (Vitório Emanuelle III) e em Pelotas (Escola das Sociedades Reunidas), as quais podem servir de modelo às outras. Os dois mestres-agentes que moravam em Porto Alegre e Pelotas foram agora transferidos para Caxias e Santa Maria onde fundaram outras duas escolas.

As Sociedades Italianas são mais de quarenta. [...] Há outras que mantém escolas italianas como a Umberto I, a Elena de Montenegro, a Vitório Emanuelle III e a Giovanni Emanuel, em Porto Alegre, as Sociedades Reunidas em Pelotas, a Príncipe di Napoli de Caxias, etc.36

Em 1912, Beverini, Cônsul em Porto Alegre, relatou que, ao visitar as colônias, encontrara muitas localidades sem escolas públicas, onde os colonos unidos haviam fundado escolas próprias, tendo como professor um deles, o que melhor sabia ler, escrever e fazer cálculos.

Tive oportunidade de visitar muitas destas escolinhas e senti-me satisfeito com seus resultados; notava-se o zelo

36 Id.ibidem, p. 348 a 350.

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do mestre que se sentia lisonjeado por ter sido escolhido para tal encargo e notei grande freqüência por parte dos alunos, já que os colonos fundaram a escola e possuíam justo amor próprio de conservá-la.37

Progressivamente as pequenas escolas isoladas e as mantidas pelas associações iam sendo fechadas. Desde 1889, em Roma, havia sido criada a Associação Dante Aligheri, com a liderança de Giacomo Venezian. Sua criação aconteceu em momento político em que a Itália, sob a liderança do Ministro Crispi, buscava modernizar a diplomacia italiana e difundia a perspectiva de que mantendo-se vivo o sentimento italiano, através da instrução e da educação, seria possível obter vantagens comerciais junto aos emigrados estabelecidos em diferentes países.38 Sobre a Sociedade Dante, Otto escreveu:

[...] a mais antiga e a mais difusa sociedade leiga nascida com o objetivo de ‘exportar a italianidade’ nas localidades de imigrantes italianos, em todos os continentes. Sua finalidade prioritária era tutelar e ‘difundir a língua e a cultura italiana fora do Reino’, principalmente através de escolas italianas no exterior.[...] Incentivava e colaborava na fundação de bibliotecas populares, divulgava livros e promovia conferências. (OTTO, 2003, p. 117 e 118).

Importante salientar que, nos núcleos coloniais em estudo, houve, em Caxias, no ano de 1915, uma ação coordenada

37 MINISTERO DEGLI AFFARI ESTERI – Comissariato dell’emigrazione Bollettino dell’Emigrazione (pubblicazione mensile). Anno XII, n. 10, 15 de agosto de 1913. Nella zona coloniale agrícola del Rio Grande del Sud (Stati Uniti del Brasile) Appunti e osservazioni del Cav. G. B. Beverini, Cônsul de Porto Alegre, abril de 1912, p. 1060 e 1061. 38 Sobre as relações da diplomacia italiana com o Brasil, especialmente no período de Crispi veja-se CERVO. Amado Luiz. As relações históricas entre o Brasil e a Itália: o papel da diplomacia. Brasília: editora da UNB; São Paulo: Instituto Italiano de Cultura, 1992.

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pelo Comitê local da associação Dante Alighieri. Tratava-se da fundação de uma escola italiana na sede:

Presentes os senhores Dr. Vicenzo Bonancini e Adalgiso Zanellato foi inaugurada na segunda-feira a escola de italiano, criada pelo Comitê Dante Alighieri desta cidade. O Cav. Beverini, Régio Cônsul da Itália entregou à escola numerosos livros e cadernos. Nossas felicitações e sinceros aplausos.39

As aulas iniciaram em 15 de março, tendo como professora Amália Bancalari. As inscrições eram feitas na redação do jornal Cittá de Caxias e junto à farmácia D’Arrigo.40 Não foi possível localizar outros indícios, seja do funcionamento de tal escola ou de outras iniciativas do Comitê Dante Alighieri em Caxias ou na Região em estudo.

O progressivo fechamento das escolas étnico-comunitárias na Região Colonial Italiana

Se, ao final do século XIX, “[...] tínhamos também escolas italianas, com público significativo, em Alfredo Chaves, Antônio Prado, Bagé, Bento Gonçalves, Caxias, Encantado, Estrela, Garibaldi, Guaporé, Jaguarão, Lajeado, Pelotas, Porto Alegre, Silveira Martins.”(2000, p. 93), como constatou Maestri, ao longo da primeira década do século XX essas aulas foram desaparecendo. Isso ocorreu pela dificuldade dos pais manterem o investimento (em especial pelo elevado número de filhos), pelo crescimento de ofertas de escolas de outras modalidades ou pela própria desistência do professor mediante as parcas remunerações 39 Publicação de 12/02/1915, do Jornal Corriere d’Itália, de Bento Gonçalves. Museu Histórico Casa do Imigrante. 40 Publicação de 10/03/1915, do Jornal Corriere d’Itália, de Bento Gonçalves. Museu Histórico Casa do Imigrante.

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(o que por vezes era feito em espécie – feijão, trigo, milho...) e, também, por opção dos imigrantes pela escola pública. Para Giron, “[...] na década de 1920, das escolas italianas poucas sobreviviam em alguns municípios da região colonial, porém em vias de extinção, sendo mal vistas pelo governo estadual e mal assistidas pelo governo italiano.” (GIRON, 1998, p. 92).

Outro elemento a ser considerado, em se tratando das escolas étnicas nos anos de 1920, é a propaganda fascista, inclusive com o envio de professores comprometidos com os fascios italianos. Entretanto, numericamente as escolas italianas já eram em número bastante reduzido. Consoante o estudo de Giron, no momento em que o fascismo se preparava para modernizar o ensino que seria destinado a preparar as populações dos núcleos coloniais italianos para as necessidades do regime fascista, as condições para o funcionamento das escolas deixavam de existir. No ensino, conclui Giron, “[...] pouco ou nada conseguiu realizar o fascismo na região colonial”. (GIRON, 1994, p. 104). Considerando que “o papel da escola ‘italiana’ foi muito importante na manutenção da língua e do culto da Itália como a pátria dos filhos dos imigrantes”, essas aulas étnicas, ensinando em língua italiana, tiveram vida curta. Os professores, no final do século, naturalizaram-se e passaram a lecionar nas escolas públicas. (GIRON, 1994, p. 58).

Cabe ainda ressaltar que a campanha de nacionalização ocorreu desde a Primeira Grande Guerra, o que motivou o Estado a incentivar a supressão dessas escolas étnicas e a expandir o ensino público gratuito. A presença das escolas confessionais particulares; a inexistência de recursos para manter as escolas, seja por parte do governo italiano que contribuía apenas com o material escolar, ficando o pagamento dos professores a cargo das mensalidades pagas pelos alunos, seja por parte dos pais; a baixa qualidade de ensino já que apenas as noções rudimentares de leitura, escrita e aritmética eram trabalhadas, sendo que, quando havia o ensino da história e da geografia, eram os da Itália apenas

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os ensinados, são fatores que, considerados no conjunto, permitem compreender a curta duração da maioria das escolas étnicas italianas. (GIRON, 1994, p. 100).

Sabe-se que a partir dos anos de 1920 as escolas étnicas italianas foram sendo progressivamente passadas para escolas públicas sendo que em 1938, quando da nacionalização compulsória, as mesmas já não tinham importância expressiva.

Referências

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KREUTZ, Lúcio. Imigrantes e projeto de escola pública no Brasil: diferenças e tensões culturais. In: Educação no Brasil: história e historiografia. Sociedade Brasileira de História da Educação (org.). Campinas: Autores Associados, 2001.

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OTTO, Claricia. As escolas italianas entre o político e o cultural. In: DALLABRIDA, Norberto (org.). Mosaico de Escolas – modos de educação em Santa Catarina na Primeira República. Florianópolis: Cidade Futura, 2003.

SCHNEIDER, Regina Portela. A instrução pública no Rio Grande do Sul (1770 - 1889). Porto Alegre: ed. Universidade/UFRGS/EST edições. 1993.

Terciane Ângela Luchese é doutora em Educação pela Unisinos e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected] ou [email protected]

Lúcio Kreutz é doutor em Educação pela PUC/SP, bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPQ e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

Recebido em: 10/03/2009 Aceito em: 20/12/2009

Resenha

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HISTÓRIA GERAL DO RIO GRANDE DO SUL Eduardo Arriada

BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (Coordenação Geral). História Geral do Rio Grande do Sul. 5 volumes. Passo Fundo: Méritos Editora. 2006/2009.

Vol. 01. Colônia. “O ensino nas crônicas do Prof. Coruja” [309-322]. Ana Inez Klein.

Vol. 02. Império. “A Instrução” [449-489]. Jaime Giolo.

Vol. 03. República Velha. “A Educação: construindo o cidadão” [287-311]. Berenice Corsetti.

Vol. 04. República (1930-1985). “A Educação” [315-333]. Elomar Tambara; Claudemir de Quadros; Maria Helena Camara Bastos. “Educação Superior (1930-1985)” [335-354]. Clarissa Eckert Baeta Neves.

A obra História Geral do Rio Grande do Sul sob a coordenação geral de Nelson Boeira e Tau Golin, como o próprio título anuncia, constitui-se de cinco volumes publicados pela Méritos Editora de Passo Fundo, onde os mais diversos aspectos da história do Rio Grande do Sul, no tempo e no espaço são contemplados.

Nos moldes da História Geral da Civilização Brasileira, que teve a organização de Sérgio Buarque de Holanda e Boris Fausto, a referida obra através de um vasto panorama, reúne o esforço de diversos pesquisadores, “mais de cem”, segundo os próprios organizadores “inseridos em múltiplos espaços historiográficos contemporâneos, especialmente nas

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universidades”. Sabendo de antemão as enormes dificuldades que esse tipo de trabalho acarreta, os organizadores esclarecem na apresentação que: “publicações coletivas jamais conseguiram harmonizar o conflito entre cronologia, temário e concepção autoral”; do mesmo modo, “as melhores publicações reconhecem diferentes orientações teóricas, mesmo em obras orientadas por escolas historiográficas, e preferem transformar uma situação aparentemente problemática em recurso de método”.

Embora perceptível em diversos momentos as divergências, as concepções antagônicas, as interpretações diferentes, esses problemas não são vistos como tal, ao contrário, na apresentação geral isso fica bem definido: “O ineditismo deste trabalho transcende os comprometimentos celebristas e instrumentalizadores do passado”. Sua preocupação principal é disponibilizar uma história metodologicamente sistematizada, sem, contudo, “abdicar das tensões entre seus autores”.

Nosso interesse particular é salientar o espaço destinado à história da educação. Embora incorpore a análise de várias épocas e espaços, a partir de múltiplas metodologias e fontes, a coletânea chama a atenção também por se constituir num percurso cronológico no tempo. Os trabalhos incluídos nos diversos volumes examinam aspectos da educação sul-rio-grandense num período que abrange desde a educação colonial até os anos 80 do século XX.

No primeiro volume (Colônia), sob a direção de Fernando Camargo, Ieda Gutfreind e Heloisa Reichel, temos o artigo de Ana Inez Klein, “O Ensino nas crônicas do professor Coruja” [309-322]. Embora a especificidade seja o estudo das crônicas memorialísticas de Antônio Álvares Pereira, vulgo, Coruja; a própria autora esclarece que elas podem “contribuir para a história da educação no período colonial”, desse modo, o texto atenta para as práticas de ensino levadas a efeito antes mesmo de se consolidar no país um sistema escolar organizado em séries graduadas, contando com matérias de estudo estruturadas e métodos didáticos

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específicos. Nessa época um dos métodos de ensino adotado foi o de ensino mútuo, também conhecido como método lancasteriano ou método monitoral. Coruja foi um dos defensores e divulgadores desse método, tendo uma atuação enquanto professor e educador, tanto no Rio Grande do Sul, como no Rio de Janeiro. Deixou uma vasta obra didática, incluído ai, livros de gramática, de história, até manuais para o ensino de latim.

O segundo texto de autoria de Jaime Giolo, denominado “A Instrução” [449-489], foi publicado no segundo volume (Império), sob a direção de Helga Iracema Piccolo e Maria Medianeira Padoin aborda a educação durante o período imperial, dando a conhecer diversos aspectos relacionados ao projeto do Estado de estruturação da escola pública. Trabalhando (principalmente) com fragmentos de leis, regulamentos, relatórios e falas das autoridades públicas, traça um amplo painel desse contexto. Discute a implantação do método de Lancaster, suas dificuldades e limites. Analisa também o impacto do Ato Adicional de 1834, que outorgava “autonomia” para as Províncias em determinados aspectos da educação. A República Rio-Grandense (1835-1845) recebe do autor uma esmerada abordagem. O texto ainda se debruça sobre o ensino secundário, salientando a atuação de Caxias na criação do primeiro estabelecimento secundário público na Província, ou seja, o Liceu D. Afonso. Por fim, discute as últimas décadas do século XIX, pontuando o aparecimento da Escola Normal. Na interpretação do autor, a escola no período imperial foi muito mais fenômeno de discurso do que de prática. A educação das massas era uma idéia fora de lugar.

O terceiro texto, de autoria de Berenice Corsetti “A Educação: construindo o cidadão” [287-311], faz parte do Tomo II, do 3º Volume, dedicado a República Velha (1889-1930), volumes sob a direção de Ana Luiza Setti Reckziegel e Günter Axt. Esse volume trata predominantemente da sociedade e da cultura. Reunindo textos relativos a experiências levadas a efeito

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no século XX, ressalta o desenvolvimento e consolidação de aspectos relativos a uma cultura escolar e profissional docente. Mas isso não significa que os artigos estejam organizados tendo-se em mente uma temporalidade linear e ascendente. Como bem esclarece a autora, o texto propõe-se a abordar as características que marcaram a educação rio-grandense nesse período, particularmente no que tange a sua incorporação ao projeto de desenvolvimento econômico liderado pelos dirigentes positivistas. Desse modo, a educação foi instrumento fundamental à construção da cidadania nos moldes capitalistas. Ao tratar as relações entre público e privado no campo educacional, enfoca as mediações e disputas ocorridas em relação à expansão da rede escolar nos anos entre 1889 e 1930. Em sua abordagem, a autora salienta três aspectos relevantes desse processo: uma reflexão sobre modernidade e modernização; uma discussão sobre a relação entre Estado e a Igreja (políticas, contradições, conflitos e mediações); e por fim uma apreciação sobre a escola pública, cuja expansão no período é elemento que merece ser bem compreendido. Entre outras conclusões, a autora aponta o significativo papel desempenhado pelos dirigentes republicanos na organização de uma escola segundo o ideário positivista. Como um campo marcado por contradições, conflitos e mediações, a educação gaúcha nesse período em relação ao império, na opinião da autora, teve avanços. A expansão do ensino, a diminuição do analfabetismo, a modificação curricular e programática, representaram aspectos progressistas da ação republicana.

Os dois últimos textos, “A Educação (1930-1980)” [315-333] de Elomar Tambara, Claudemir de Quadros e Maria Helena Camara Bastos; e “Educação Superior (1930-1985)” [335-354] de Clarissa Eckert Baeta Neves, estão publicados no volume 4, República: da revolução de 1930 à ditadura militar (1930-1985), com direção de René Gertz.

O primeiro desses textos retoma alguns aspectos abordados por Berenice Corsetti, isto é, o papel desempenhado

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pelos positivistas, salientando a atuação dos mesmos no Congresso Nacional, onde diversas de suas idéias serão consubstanciadas na Reforma Rivadávia Correa em 1911. Esse ideário estava alicerçado na máxima positivista: “ensine quem quiser, onde quiser e como puder”; o que se refletia em três preceitos doutrinários: abolição dos privilégios de diplomas; redução da intervenção do Estado ao simples papel de auxiliar da iniciativa privada em relação ao ensino secundário e superior; e manutenção integral do ensino primário oficial não obrigatório. Os articulistas dividem o texto em diversos tópicos, salientando o papel normatizador do Estado, a sua própria burocratização onde pontua depois de 1935 a Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública, órgão que compreendia a Diretoria Geral da Instrução Pública, Diretoria de Higiene e Saúde Pública, Assistência a Alienados, Museu Júlio de Castilhos e Biblioteca Pública, bem como a superintendência da Universidade de Porto Alegre. Discutem a Educação durante o Estado Novo, o papel de Coelho de Souza, de atuação forte e proeminente à frente da Secretária da Educação, período de intenso movimento de reforma do sistema educativo do Estado e implantação do processo de nacionalização do ensino. A nacionalização do ensino promoveu o reaparelhamento da Secretaria da Educação e Saúde Pública à execução de uma reforma educacional que se inseriu num contexto de reorganização e racionalização dos serviços de Instrução Pública. Nesse âmbito, entre 1937 e 1971, a Secção Técnica da Diretoria Geral de Instrução Pública e, depois, o Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais (CPOE/RS) tiveram papel proeminente no planejamento, organização e avaliação do processo educacional no Rio Grande do Sul. O ideário da Escola Nova encontra-se presente nas tecnologias projetadas para organizar, supervisionar e avaliar o sistema educativo, bem como professores e estudantes. O próprio CPOE, criado em 1943, espelha esse contexto. Do mesmo modo, a criação da Revista do Ensino (1951-1978), marca a ação do Estado na divulgação das políticas públicas em

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relação à educação. Associada às prescrições pedagógicas, às práticas escolares e à teoria, contribuiu decisivamente à formatação que o processo de renovação educacional assumiu, moralizando o professor como agente da política. Abordam ainda o movimento “Nenhuma criança sem Escola”, durante o governo de Leonel Brizola, as políticas educacionais pós 64, finalizando com um rápido e sucinto panorama dos anos 80.

Por fim, o último texto a tratar com exclusividade o campo da educação, escrito por Clarissa Eckert Baeta Neves, discute a “Educação Superior (1930-1985)”. Para a autora o surgimento das Instituições de Ensino Superior vincula-se aos processos de modernização das sociedades. Justificando esse processo, aponta três fenômenos significativos da constituição do sistema de ensino superior. O primeiro, refere-se à emergência da idéia de universidade e à centralização da oferta desse grau de ensino na capital do estado. O segundo fenômeno foi o da intensificação do processo de interiorização da educação superior a partir da década de 50. O terceiro fenômeno diz respeito ao impacto da Reforma Universitária de 1968 sobre o ensino superior e seus desdobramentos. Conclusivamente, a autora indica que os anos de 1930 a 1985, corresponderam a uma sucessão de momentos em que se tomaram decisões responsáveis pela formatação do sistema de educação superior no estado. Uma delas foi a disposição do governo estadual de não assumir compromissos com a sustentação de instituições próprias de ensino superior, buscando sempre a federalização como solução para esse dilema.

O objetivo dos diversos textos com certeza foi o de ampliar e pluralizar as possíveis interpretações dadas às práticas e proposições educativas. Não supõem a escrita de uma única história, mas favorecem leituras do passado a partir de fontes e objetos variados, quais sejam: memórias, leis de ensino, regulamentos, relatórios, tabelas, ofícios, etc. Estruturando, desse modo, uma coletânea de textos que tratam de experiências educativas a partir de diferentes perspectivas.

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As escolhas dos métodos e fontes evidenciadas nos vários artigos decorrem da valorização das diversas facetas e períodos examinados no âmbito da história da educação. O que perpassa nos textos apresentados é a mobilização que os diferentes escritores vêm provocando e ainda podem provocar nos pesquisadores da história da educação, e em seus respectivos campos de investigação.

Eduardo Arriada é professor doutor da Universidade Federal de Pelotas. Membro do CEIHE (Centro de Estudos e Investigação em História da Educação), da ASPHE e da Sociedade Brasileira de História da Educação. E-mail: [email protected].

Recebido em: 10/11/2009 Aceito em: 20/12/2009

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Documento

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Cartilha de Doutrina Christã Antonio José de Mesquita Pimentel

REGRAS DE BEM VIVER

Foi o homem creado para amar e servir a Deus n’esta vida, e gozar da sua gloria na outra. Para o conseguir, funde-se bem na humanidade e caridade.

Os vestidos sejam decentes; os olhos andem compostos; seja o fallar moderado, e com prudencia; não porfie, para não ser tido por teimoso; não injurie a ninguém; não offenda ao seu rei; não gaste mal suas rendas; ouça, veja, e cale, viverá vida folgada; sua porta cerrará, seu visinho louvará, se quiser viver em paz; não ouça pratica inúteis, e muito menos as sensuaes, fuja de todas a murmuração, seja recolhido trazendo o coração no CEO; de todos diga bem, para que todos fallem bem de si; respeite a todos, para se d’lles respeitado; fuja de toa a ociosidade, e de demandas e pleitos, que são a ruína da alma e da bolsa; fie-se de poucos, e a ninguém julgue mal; attribua tudo a bem; a todos console; a todos dê boas respostas; a todos faça o bem que puder, e será de todos amado.

Evite os escândalos em si e nos outros; a ninguém deixe de cortejar, fazendo a saudação costumada. A ninguém tenha por inferior a si, antes tenha por superior. Não dia nem faça cousa nenhuma, que depois de dizer ou fazer, tenha pezar de a ter feito ou dito; pense as cousas antes de as fazer; quando quiser fazer alguma cousa repare nas conseqüências que d’ahi se seguem. Não tirem satisfação a pessoa nenhuma, porque sempre há-de ficar mal. Não apure muito a saúde nem a gerção. Não se faça mais do que é, repare sempre para os seus precedentes. Não gaste mais do que tem, fuja de toda a superficialidade e avareza; acompanhe com os seus iguaes e fuja dos vícios; deixe os prodigos, e aborreça a companhia dos maus; no comer seja moderado, e nunca por

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appetite; evite as culpas pequenas, se não quer cahir nas grandes; evite a occasião, se não quer cahir no pecdado.

Terá por maior honra tudo que for virtude, e por maior affronta o vicio; soffra a todos, para que todos soffram; nunca obre contra o que entender que é justo, e muito menos contra a consciência; fuja de tudo que é enganar ao próximo; preze-se mais de bom christão, do que de cortezão; seja devoto quando puder; as suas conversas sejam com os mais virtuosos; nunca se dê por satisfeito no bem obrar aspirando sempre á maior perfeição, tendo por mau empregado o tempo em que não fizer algum pregresso na virtude; nem se deixe acobardar com o que pedirão. Procure imitar os outros no bem espiritual, e evitar os vícios que reconhece no seu próximo. Mostre-se sempre compassivo com os necessitados, ajudando-os quando puder, não reparando em que sejam seus inimigos; faça bem a quem lhe fizer mal.

Lembre-se frequentemente quem foi, quem é, quem será, da morte, do juízo, do castigo reservado para os maus, e do premio para os bons, e com isso refreará os vícios e os appetites desordenados. Viva como se em aquelles momentos houvesse de dar contas a Deus; ame a justiça, a mansidão e a boa consciência, evite jogos illicitos, e toda a occasião de peccados, e ruína de sua alma e do proximo; leia livros Moraes, e cresça na virtude. Assim nas doenças como na saúde, no bem e no mau que lhe aconteça, sempre se conforme com a vontade divina; pois melhor se alcança o céo pelas penalidades, do que pelas propriedades; conseve a amizade dos bons amigos; procure a graça dos inimigos; repare que nunca de fazer o mal se seguiu bem.

Nunca perca a amizade de Deus por conservar a dos homens, nem por desconfiado irrite a benevolencia d’este; attribua sempre á boa parte as cousas do seu próximo.

Só prometta o que póde, não se tomo como o mais poderoso; não julgue tudo o que vê, nem acredite quando lhe disserem sem se informar; não cria tudo que ouve; não conceda tudo quando lhe pedem, nem negue o justo, as negócios grandes

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não se resolvem sem conselhos dos sábios e prudentes, consultando a Deus com fructuosa oração, ao qual tema e ame: O primeiro lhe servirá para não peccar, e o segundo para o bem obrar.

Conserve a gravidade e a serenidade com todos; dissimule e perdôe aggravos, e Deus lhe perdoará; não se faça grande nem rico; não queira ser lisonjeado; o que não quer se saiba, não o Diga a ninguém. Aparte de si todo o affecto ás temporalidades e gostos terrenos. Governe-se pela verdade conhecida e não pela opinião rebuçada e menos segura. Não diga o que quer, para não ouvir o que não quer. Não se faça mandador aonde não fôr senhor, porque não ha cousa mais feia do que governar na casa alheia.

A Deus attribua todo o bem, e a si tudo o que é vicio; seja muito devoto a Virgem Maria, imitando as suas virtudes, reze a sua Caroá, meditada, com a devida attenção; receba os Sacramentos da Penitencia e Comunhão com toda a devoção; procure ter confessor prudente, devoto e sabio; cuide em fazer pela sua alma, em quanto vivo o que puder; faça testamento em quanto tem saude, instituindo por testamenteiro o mais virtuoso e temente a Deus.

Logo de manhã se porá de joelhos, offerecendo as obras d’aquelle dia a Deus, como se diz no fim do catalogo. A’noite examine a consciencia dê graças a Deus; tenha um bocadinho de oração mental; encommende-se ao seu Anjo da Guarda e durma só o preciso.

Omnia t men scripta superiorum, AC Sancta Martris Eclésia judicio, correctionique subdo, ET sbmitto.

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