História da Educação - RHE - n. 21

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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NÚMERO 21 Jan/Abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe Quadrimestral História da Educação Pelotas n. 21 p. 1-276 Jan/Abr 2007

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Volume completo do n. 21 da revista História da Educação - RHE.

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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 21 Jan/Abr 2007

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe Quadrimestral História da Educação Pelotas n. 21 p. 1-276 Jan/Abr 2007

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ASPHE

Presidente: Maria Helena Câmara Bastos Vice-Presidente: Maria Stephanou Secretário: Claudemir de Quadros

Conselho Editorial Nacional Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS) Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Conselho Editorial Internacional Dr. Alain Choppin (INRP, França) Dr. Antonio Castillo Gómez (Univer. de Alcalá – Espanha) Dr. Luís Miguel Carvalho (Univer. Técnica de Lisboa) Dr. Rogério Fernandes (Univer. de Lisboa)

Comissão Executiva Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Profa. Dra. Eliane Teresinha Peres

Consultores Ad-hoc Dra. Beatriz Daudt (Unisinos) Dr. Claudemir Quadros (Unifra) Dra. Giana Lange do Amaral (UFPel) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Editoração eletrônica e capa Flávia Guidotti [email protected]

Imagem da capa Deux mères de famille Elizabeth Gardner Le Salon de 1888 Paris

História da Educação Número avulso: R$ 15,00 Single Number: U$ 10,00 (postage included). História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 21 (Jan/Abr 2007) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral. ISSN 1414-3518 v. 1 n. 1 Abril, 1997

1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel

CDD: 370-5

Indexação: CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades) Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC EDUBASE (FE/UNICAMP)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.........................................................................................5

FAZER A HISTÓRIA DO ENSINO DAS LÍNGUAS E DAS CIVILIZAÇÕES ESTRANGEIRAS NO ENSINO SUPERIOR FRANCÊS NO SÉCULO XX HISTORICIZING LANGUAGE AND FOREIGN CIVILIZATION TEACHING IN FRENCH UNIVERSITIES IN THE 20TH CENTURY Emmanuelle Picard; Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz ;Revisão Maria Helena Camara Bastos......................................................................................9

UM MODELO DE ESCOLA NA FRANÇA EM TORNO DE 1660-1740: A ESCOLA CRISTÃ A SCHOOL MODEL IN FRANCE AROUND 1660-1740: THE CHRISTIAN SCHOOL Marcel Grandière; Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz; Revisão Maria Helena Camara Bastos.................................................................................... 23

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (BRASILEIRA): FORMAÇÃO DO CAMPO, TENDÊNCIAS E VERTENTES INVESTIGATIVAS HISTORY OF THE EDUCATION (BRAZILIAN): FIELD ESTABLISHMENT, TENDENCIES AND RESEARCH AREAS Carlos Monarcha ............................................................................................ 51

O ENSINO E A PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA CADEIRA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (1933-1962) THE TEACHING AND THE RESEARCH ON THE HISTORY OF THE BRAZILIAN EDUCATION IN THE SUBJECTS OF PHILOSOPHY AND HISTORY OF EDUACTION (1933-1962) Bruno Bontempi Júnior .................................................................................. 79

AS PESQUISAS NA ÁREA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO A HISTÓRIA DO ATENDIMENTO ÀS CRIANÇAS PEQUENAS NO BRASIL CHILDHOOD EDUCATION RESEARCHES AND HISTORY OF EDUCATION: BUILDING THE HISTORY OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN BRAZIL Alessandra Arce............................................................................................ 107

A ZOOLOGIA FILOSÓFICA NO BRASIL: EXPLORANDO AS MODERNAS CORRENTES DO PENSAMENTO CIENTÍFICO NO COLLÉGIO DE PEDRO II EM MEADOS DO SÉCULO XIX THE PHILOSOPHICAL ZOOLOGY IN BRAZIL: EXPLORING THE MODERN APPROACHES OF THE SCIENTIFIC THINKING IN THE “D. PEDRO” SCHOOL AT THE BEGINNING OF THE XIX CENTURY Karl M. Lorenz ............................................................................................ 133

A LIVRARIA GARNIER E A HISTÓRIA DOS LIVROS INFANTIS NO BRASIL – GÊNESE E FORMAÇÃO DE UM CAMPO LITERÁRIO (1858 – 1920) GARNIER BOOKSHOP AND THE HISTORY OF THE BOOKS FOR CHILDREN IN BRAZIL – GENESIS AND DEVELOPMENT OF A LITERARY FIELD Andréa Borges Leão...................................................................................... 159

HISTÓRIA E ROMANCE: A IDÉIA DE HISTÓRIA EM AS AVENTURAS DE TELÊMACO E AS RELAÇÕES ENTRE O TEXTO HISTÓRICO E A PROSA FICCIONAL NA PASSAGEM DOS SÉCULOS XVII-XVIII HISTORY AND ROMANCE: THE CONCEPT OF “HISTORY” IN “AS AVENTURAS DE TELÊMACO” AND THYE RELATIONSHIPS BETWEEN THE HISTORICAL TEXT AND THE FICTIONAL PROSE BETWEEN THE XVII AND THE XVIII CENTURIES João Paulo Martins....................................................................................... 185

RESENHA PENSADORES SOCIAIS E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Hercules P. Santos....................................................................................... 215

DOCUMENTO APRESENTAÇÃO: A LIGA DO ENSINO NO BRASIL E A REVISTA LIGA DO ENSINO (1883-1884) Maria Helena Camara Bastos......................................................................... 225 REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.1, janeiro de 1884, p.1-30)................. 247

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES ............................................. 275

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 5-7, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

APRESENTAÇÃO

A revista História da Educação em seu número 21 mais uma vez reafirma sua definição editorial no sentido de apresentar a seu público leitor trabalhos de excepcional qualidade na área de História da Educação.

Agradecemos, desde logo, a atenção que a revista tem merecido dos pares da área de História da Educação do Brasil e do exterior no sentido de enviarem para análise trabalhos qualificados que têm contribuído para que este periódico continue a desfrutar alto prestígio na comunidade acadêmica.

A professora Emmanuelle Picard nos brinda com um excepcional trabalho sobre o ensino superior francês: Fazer a história do ensino das línguas e das civilizações estrangeiras no ensino superior francês no século XX. Esta interação com a prática escolar na França sem dúvida é um aspecto cada vez mais dinamizado na área da História da Educação no Brasil.

No artigo seguinte, também da França, o professor Marcel Gradière discorre a imergência da escola cristã na França: Um modelo de escola na França em torno de 1660-1740: a escola cristã. É consenso para os historiadores a importância deste fenômeno educacional para a consolidação do modelo educacional no período do iluminismo francês.

O professor Carlos Monarcha apresenta uma excepcional visão panorâmica do “estado da arte” da história da educação no Brasil em seu texto: História da educação (brasileira) formação do campo, tendências e vertentes investigativas.

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No quarto artigo o professor Bruno Bontempi Junior analisa um aspecto relevante da área de história da educação brasileira: a relação entre filosofia e história da educação. O ensino e a pesquisa em história da educação brasileira na cadeira de filosofia e história da educação (1933-1962) sem dúvida contribuirá para elucidar esta relação tão importante na gênese do campo da História da Educação.

A professora Alessandra Arce trabalha em seu texto: As pesquisas na área da educação infantil e a história da educação : construindo a história do atendimento às crianças pequenas no Brasil constrói um entendimento sobre esta temática sobre a qual a mesma é reconhecida pesquisadora.

Karl Michael Lorenz da Sacred Heart University – Connecticut trata em seu artigo A zoologia filosófica no Brasil: explorando as modernas correntes do pensamento cientifico no Collégio de Pedro II em meados do Século XIX de aspectos vinculados à ideologia do tradicional educandário que moldou o ensino secundário no Brasil no Século XX.

A professora Andréa Borges Leão no texto A Livraria Garnier e a história dos livros infantis no Brasil – gênese e formação de um campo literário (1858-1920) resgata a história de uma das mais tradicionais livrarias do século XIX e de sua contribuição inestimável para a história da educação brasileira.

João Paulo Martins investiga um dos textos clássicos na Área da História da Educação mundial As aventuras de Telêmaco relacionando-o ao fazer histórico. História e Romance: a idéia de história em As Aventuras de Telêmaco e as relações entre o texto histórico e a prosa ficcional na passagem dos séculos XVII-XVIII. Este trabalho contribui para a compreensão da relação entre

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história e prosa ficcional aspecto este muito presente na área de historia da educação em termos teórico-metodologicos.

Na seção Documentos, que já é tradicional em nossa revista, publicamos um dos documentos clássicos da história da educação do século XIX relacionado á Liga do Ensino no Brasil apresentado pela Drª Maria Helena Câmara Bastos.

Com essa publicação, mais uma vez a ASPHE e a revista História da Educação reafirmam seus compromissos com a pesquisa histórica e sua divulgação. Esperamos que os leitores apreciem mais este trabalho.

A comissão executiva

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 9-21, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

FAZER A HISTÓRIA DO ENSINO DAS LÍNGUAS E DAS CIVILIZAÇÕES ESTRANGEIRAS NO

ENSINO SUPERIOR FRANCÊS NO SÉCULO XX1 Emmanuelle Picard

Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz Revisão Maria Helena Camara Bastos

Resumo O ensino de língua e literatura estrangeiras no ensino superior francês, na época contemporânea, só foi o objeto de um número restrito de trabalhos. Este artigo se propõe, a partir do caso do germanismo, traçar a história destas disciplinas desde sua aparição dentro da universidade por volta de 1830 até à época posterior à reforma de 1968. Três grandes etapas aparecem, em um processo contínuo de construção disciplinar: um período de indeterminação, dos anos 1830 aos anos 1880, durante o qual se fala de línguas estrangeiras em geral; um período de especialização, na virada do século, com a aparição das cadeiras de estudos alemães, italianos...; e, enfim, na metade do século XX, um movimento de respeitabilidade que visa elevar estas disciplinas dentro da hierarquia universitária. Palavras-chave: Ensino superior; Línguas estrangeiras; França; Época contemporânea.

HISTORICIZING LANGUAGE AND FOREIGN CIVILIZATION TEACHING IN FRENCH UNIVERSITIES

IN THE 20TH CENTURY Abstract In contemporary period, the study of language and foreign literature teaching in French Universities was the target of a reduced number of works. Since the Germanist case, this article intends to describe these disciplines’histories up to their University introduction around 1830, until the period after the 1968 University Reform. Three big stages of constant process of disciplinary organization appear: an undeterminated process, from the 1830’s to the 1880’s, when we talk about foreign languages in general; an specialization period, at the century turning, with Germain, Italian disciplines and studies.

1 Texto especialmente escrito para publicação na revista. Título original: «Faire l’histoire de l’enseignement des langues et civilisations étrangères dans l’enseignement supérieur français au XXe siècle». Recbido em setembro de 2005.

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Finally, in the middle 20th century, a respectfulness movement which proposes to elevate these disciplines within academic hierarchy take place. Keywords: Further education; Foreign languages; France; contemporary

HACER LA HISTORIA DE LA ENSEÑANZA DE LAS LENGUAS Y DE LAS CIVILIZACIONES EXTRANJERAS

EN LA ENSEÑANZA SUPERIOR FRANCESA EN EL SIGLO XX

Resumen La enseñanza de lengua y literatura extranjeras en la enseñanza superior francesa, en la época contemporánea, sólo fue objeto de un número restricto de trabajos. Este artículo se propone, a partir del caso del germanismo, trazar la historia de estas disciplinas desde su aparición dentro de la universidad alrededor de 1830 hasta la época posterior a la reforma de 1968. Tres grandes etapas aparecen, en un proceso continuo de construcción disciplinar: un período de indeterminación, de los años 1830 a los años 1880, durante lo cual se habla de lenguas extranjeras en general; un período de especialización, en la virada del siglo, con la aparición de las cátedras de estudios alemanes, italianos...; y, en fin, en la mitad del siglo XX, un movimiento de respetabilidad que visa elevar estas disciplinas dentro de la jerarquía universitaria. Palabras-clave: Enseñanza superior; Lenguas extranjeras; Francia; Época contemporánea.

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Dentre todas as disciplinas ensinadas no seio do ensino superior francês, as línguas e civilizações estrangeiras só foram os objetos de um número restrito de trabalhos. A principais referência ainda é a tese de Michel Espagne, consagrada às cadeiras de literatura estrangeiras nas universidades francesas do século XIX2 e os três volumes que dirigiu com Michael Werner e Françoise Lagier3. Centrados no século XIX, esses estudos colocam em evidência as condições do surgimento dessas disciplinas, num primeiro momento indiferenciadas (um professor muda ao longo de sua carreira de uma literatura estrangeira a outra, e até mesmo para a literatura francesa), e que se especializam progressivamente com a implantação das carreiras de maîtrises des conférences4, por volta de 1880, antes de se tornarem cadeiras específicas por volta de 1900. Para o século XX, a produção historiográfica é menos fecunda. Certamente o germanismo foi objeto de alguns trabalhos, mesmo que nenhum deles seja verdadeiramente sintético5, assim como algumas línguas raras6. Mas nenhuma visão de conjunto foi proposta, no que diz respeito a esse domínio de formação específico. O presente artigo propõe uma reflexão metodológica sobre a história do ensino de línguas e de literatura estrangeiras no ensino superior francês do

2 Michel Espagne, Le paradigme de l’étranger. Les chaires de littérature étrangère au XIXe siècle, Paris, Éditions du Cerf, 1993. 3Michel Espgane et Michael Werner (dir.), Philologiques I, II et III, Paris, Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 1990-1992. 4 Maîtrise de conférence: cargo de mestre de conferência, criado em 1880 (Nota do tradutor). 5 Em particular: Michel Espagne e Michael Werner, Les études germaniques en France, 1900-1970, Paris, CNRS-Éditions, 1994; dossier sobre « Les études germaniques en France », Lendemains, n° 103-104, 2001. 6 Por exemplo: Gabriel Garçon, « 1926-1986: soixante années d’enseignement du polonais aux facultés catholiques de Lille », Fédération universitaire et polytechnique de Lille. Ensemble d’écoles supérieures et de facultés catholiques, 2, 1987.

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século XX, tendo por base os resultados da pesquisa realizada pelo autor sobre o germanismo e completada por outros autores que abordam essa questão. Essa última permite propor um modelo cronológico de construção das disciplinas e, ao mesmo tempo, a elaboração de uma perspectiva dos diferentes espaços lingüísticos.

Uma dificuldade preliminar está na questão da definição. Se as disciplinas universitárias nos parecem hoje facilmente identificáveis, a tal ponto que questionamos raramente sua definição exata, não era assim no século XIX, nem na primeira metade do século XX. As categorias atuais são o resultado de um processo classificatório de longa duração. No espaço de 150 anos, partes inteiras do saber foram "confiscadas" por um grupo que, fixando fronteiras aos conhecimentos de sua responsabilidade e determinando os critérios segundo os quais seriam recrutados seus pares e sucessores, construiu progressivamente um conjunto de categorias do saber claramente identificadas, que chamamos disciplina. Este processo se apóia em dois movimentos concomitantes e indissociáveis, apesar de suas cronologias estarem desencontradas: a definição progressiva de um sub-campo do saber e a elaboração das condições de acesso aos cargos (concurso, recrutamento...). O estudo destes procedimentos de qualificação intelectual e social é uma condição essencial à história das disciplinas universitárias. É preciso, no entanto, ter cuidado com uma reificação muito rápida: as disciplinas universitárias foram efetivamente constituídas dentro de um processo interno ao mundo universitário e ao sub-grupo que as compõe; não podemos negar, apesar disso, que elas se inscrevem desde a origem num espaço mais amplo que o campo universitário, quer se trate do campo intelectual no seu conjunto, ou ainda do campo político, e que é preciso se interessar, durante todo o período estudado, às relações que mantém uma disciplina em via de construção com os espaços exteriores sobre os quais ela interfere.

Na ocasião da minha tese de história, fui levada a me perguntar sobre as transformações que conhecia o germanismo universitário francês na metade do século XX, no contexto

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particular das ocupações sucessivas da França pela Alemanha (1940-1944), depois da Alemanha pela França (1945-1949, depois 1955)7. A disciplina, instituída, de fato, quando da criação de cadeiras especializadas nos primeiros anos do século, teve um papel fundamental no conhecimento que as elites francesas tinham da Alemanha no entre guerras. Um professor como Edmond Vermeil, titular da cadeira da Sorbonne a partir de 1936, encarnava a figura do especialista cuja uma das principais atribuições era a explicação do inquietante vizinho ao público intelectual. Era em resposta a esse imperativo que publica em 1940 um imponente volume, L’Allemagne, essai d’explication8, em que tenta explicar o Terceiro Reich por uma perspectiva cultural erudita de tipo filológico. A grande maioria dos germanistas, que exerciam o cargo nessa época, encarnava amplamente a função de "embaixadores" culturais, descrita por Christophe Charle9, inscritos nas trocas culturais dos dois países (que continuavam apesar da chegada de Hitler ao poder), mas endossavam igualmente a de vulgarizadores das realidades alemãs contemporâneas, através de uma intensa atividade editorial nas revistas10. Ao contrário, os germanistas do pós Segunda Guerra Mundial só se ocupam com estudos eruditos sobre a literatura alemã clássica. Essa tendência é muito interessante já que ela se desenvolve em um contexto que oferece aos germânicos

7 Emmanuelle Picard, Des usages de l’Allemagne. Politique culturelle française en Allemagne et rapprochements franco-allemand, 1945-1963. Politique publique, trajectoire, discours, Tese de história do Instituto de estudos políticos de Paris, janeiro 1999. 8 Gallimard. 9 Christophe Charle, La République des universitaires, 1870-1940, Paris, Le Seuil, 1994, p. 345 sq. 10 O exemplo mais impressionante, em relação ao número de artigos produzidos, é o caso de Robert d’Harcourt, titular da cadeira de estudos germânicos no Instituto Católico de Paris. Ver as bibliografias publicadas pelos Cahiers Robert d’Harcourt.

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verdadeiras oportunidades de conhecer a Alemanha contemporânea, e, até mesmo, de exercer um papel no plano cultural dessa última. De fato, os quatro anos de ocupação militar do país vencido por seus quatro vencedores, seguido ainda de seis anos de um regime de controle11, foram a ocasião para que os ocupantes implantassem dispositivos culturais importantes, oferecendo numerosos cargos aos jovens germanistas. Porém, esses últimos só os utilizaram enquanto estratégia de carreira individual e não consagraram nenhum trabalho universitário à Alemanha contemporânea, só ocuparam nas revistas francesas essas posições de especialistas da Alemanha contemporânea destinadas às elites francesas que eram as de seus predecessores. Os germanistas, que ficaram na França, na mesma época seguiram percursos intelectuais idênticos, operando um distanciamento da posição da geração precedente, deixando, dessa forma, o território livre a novos especialistas, não vindos do meio universitário e engajados em disciplinas ou em setores então em construção como a ciência política ou a educação popular12. Se analisarmos as características escolares dos germanistas franceses, das duas gerações (antes e depois da Segunda Guerra Mundial), observamos uma forma de respeitabilidade da disciplina que se traduz pelo aumento sensível dos normalistas, anteriormente presentes de modo mais anedótico. Essa reorientação para os objetos canônicos (a cultura alemã clássica), marcada pela presença cada vez mais importante de indivíduos com trajetórias escolares bastante clássicas e bastante prestigiosas, é um forte indicador de um trabalho interno de

11 Em 1945, a Alemanha é dividida em quatro zonas confiadas aos Ingleses, aos americanos, aos russos e aos franceses, que a administram sob um regime de Governo militar até 1949. Depois dessa data, a RAF reconstituída continua submissa ao controle de três altos comissários: um francês, um inglês e um americano em um certo número de atribuições. Esse dispositivo desaparece apenas em 1955. 12 As duas personalidades marcantes, nesse caso, são Joseph Rovan e Alfred Grosser. Cf. E. Picard, Des usages de l’Allemagne, op. cit.

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legitimação de uma disciplina cuja principal função era a de responder a uma demanda social e que se torna autônoma desse imperativo chega a uma alta posição na hierarquia das disciplinas13.

Esse trabalho preliminar sobre o germanismo permite a elaboração de um conjunto de hipóteses e a construção de ferramentas para respondê-las. Projetando a partir dos trabalhos existentes e das pesquisas sobre os germanistas, é possível propor um modelo de desenvolvimento das disciplinas de língua e civilização estrangeiras, desde metade do século XIX, que permite a observação da construção da disciplina, suas transformações sucessivas e, ao mesmo tempo, sua conquista de uma legitimidade acadêmica.

O primeiro período é da indeterminação. O ensino de línguas e civilizações estrangeiras se estabelece no meio da Faculdade de Letras, com a criação da primeira cadeira dessa matéria na Sorbonne, em 1830, depois com a inscrição de uma cadeira no programa de todas as faculdades existentes em 183614 e sua criação progressiva nos vinte anos seguintes. Durante esse primeiro período, que se estende até os anos 1870-1880, existe uma grande plasticidade no perfil dos professores e uma grande heterogeneidade nas matérias ensinadas. Esse período, durante o qual a universidade não tem outra função que a de conceder o grau, sem oferecer o ensino necessário para isso, é o momento do desenvolvimento máximo de uma oferta de cursos públicos, visando o público intelectual, durante os quais a capacidade oratória e a erudição desempenham um papel de primeiro plano. Para ensinar as línguas e literaturas estrangeiras, basta fingir que as conhece (o doutorado não é obrigatório, e se o professor possui

13 Cf. Pierre Bourdieu, Homo Academicus, Paris, Éditions de Minuit, 1984. 14 M. Espagne, Le Paradigme..., op. Cit., p. 42 sq. Trata-se de um momento de reorganização geral das faculdades de letras com a fixação de uma lista de seis cadeiras, dentre as quais a de língua e literatura estrangeiras.

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esse título, ele só se apóia marginalmente na literatura estrangeira), ter viajado e, sobretudo, estar integrado em redes, ou seja, ter contatos. Um mesmo professor, durante toda sua carreira, falará de assuntos e de países muito diversos, e bastante afastados uns dos outros. Em uma universidade que funciona sobre o prisma das humanidades clássicas, as línguas e literaturas estrangeiras só podem estar na posição de dominadas. A falta de regras acadêmicas (forma e conteúdo do ensino, título dos candidatos...) é prova mais evidente; que podemos completar pela observação das estratégias de carreira dos normalistas: em um período durante o qual o acesso à universidade é difícil, por causa do número restrito de cargos, eles recorrem ao ensino de língua e literatura estrangeiras para iniciar uma carreira universitária, mas abandonam esse ensino assim que lhes é oferecida a possibilidade de voltar à literatura francesa.

É com a criação das maîtrise de conférence e das bolsas de licenciatura e da agrégation15 que observamos as primeiras etapas de uma especialização e o esboço de disciplinas autônomas. A reforma dos anos 1880-1890 impõe uma visão científica do trabalho universitário, induz a uma modificação do perfil dos professores. Os maîtres des conférences são a partir deste momento recrutados segundo uma especialidade em correspondência direta com o objeto de suas teses, especialidade que passam a ensinar permanentemente. O resultado desse movimento de especialização é a criação de cadeiras específicas: "língua e literatura alemã", "língua e literatura italiana"... que provocam uma modificação das condições de eleição dos sucessores. Não se pode mais utilizar os contatos pessoais sem levar em conta critérios mais acadêmicos. Resta, no entanto, uma grande fluidez nos contornos das disciplinas assim instituídas. O título das cadeiras é muito geral e os interesses científicos de seu detentor muito variados: pode tratar-se tanto de literatura medieval quanto de estudos sobre a 15 Agrégation: concurso para lecionar nos liceus e em alguns cursos superiores (Nota do tradutor).

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política contemporânea. A única constante parece ser o prisma cultural herdado dos primeiros anos de ensino de língua e literatura estrangeiras, que tem como conseqüência trabalhos orientados para um conhecimento histórico geral e cultural dos vizinhos. Na véspera da Primeira Guerra Mundial, as disciplinas universitárias parecem, então, constituídas. Tornamos-nos germanistas, no sentido universitário especializado na Alemanha e nos países de língua alemã, seguindo um procedimento bem definido e cujas principais etapas são a agrégation de alemão e uma tese sobre a língua ou a literatura alemã. Diferentemente do período anterior, não se pode mais passar de uma língua à outra. A especialização progressiva se traduz definitivamente pela imposição de fronteiras disciplinares tão rígidas quanto as fronteiras políticas, e muitas vezes sobrepostas. Ao mesmo tempo, essas disciplinas deram apenas um pequeno passo na construção de sua legitimidade. Não podendo rivalizar com as humanidades clássicas na formação do homem culto, elas utilizam para sua promoção e sua afirmação um outro instrumento que lhes permite se inscreverem solidamente nos quadros de formação de um público esclarecido. As universidades especialistas dos países estrangeiros preenchem uma função essencial de resposta a uma demanda social e política, sujeitando-se à exigência de explicação a respeito da outra. Essa posição de especialista se constrói sobre uma mistura de registros de escrita com uma importante produção editorial publicada por revistas ou por casas de edição destinadas a um público erudito16. Essa capacidade de intervenção nos espaços públicos é sem dúvida um dos meios que dispõem esses professores para estabelecer sua legitimidade dentro da instituição, pois mostra sua necessidade em um período onde essas jovens disciplinas são ainda pouco reconhecidas na universidade.

No período seguinte, a mutação disciplinar se faz por uma operação de respeitabilidade. Uma vez a disciplina

16 Cf. P. Olivera, La politique lettrée.

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suficientemente reconhecida, para ter uma relativa perenidade no interior da universidade, falta lhe dar uma legitimidade intelectual à qual ela não pode pretender enquanto encarna-se em escritos destinados ao público erudito. Entramos, então, em um período de uma tomada de autonomia em relação ao campo político com um modelo a alcançar, que é o das disciplinas academicamente prestigiosas: letras clássicas, filosofia, história..., nas quais as funções sociais de especialista são raras. É o período de concentração sobre os objetos canônicos, a literatura clássica, a filologia, as línguas medievais. Os estudos de alemão ganham assim um lugar elevado na hierarquia universitária, a partir da metade do século XX. Alguns indicadores17 mostram um fenômeno menos marcado para as outras línguas que se situam mais próximas da geografia ou das ciências sociais, ou seja, mais abertas socialmente durante o recrutamento e mais voltadas para o prático e o empírico. Uma das explicações poderia ser a parte respectiva consagrada, em cada uma dessas disciplinas, às práticas mais antigas e mais canônicas (filologia) e as mais modernas e científicas (lingüística). O alemão remete à formação mais clássica, segundo um modelo dominante no mundo acadêmico francês que é o das Humanidades. A tradução e o tema alemães podem ser postos em perspectiva com a tradução e o tema latim, exercícios que conservam, mesmo depois da Segunda guerra mundial, as marcas da distinção escolar. Redirecionar a disciplina do germanismo para objetos literários é, então, desvincular-se de uma formação puramente mercantil (o alemão de conversação e, portanto, de comércio) e permitir a aquisição de uma verdadeira cultura letrada.

A reforma universitária, do fim dos anos 1960, introduz uma ruptura nesse processo com o questionamento do sistema de cadeiras anterior e o desenvolvimento de ramos profissionais, dentro dos quais as línguas estrangeiras ganharam um lugar

17 Cf. P. Bourdieu, Homo Academicus, op. Cit., pp. 159-160.

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importante através, principalmente, das LEA ("Línguas Estrangeiras Aplicadas"). A criação de novas universidades na região parisiense será a ocasião do renascimento material de um ensino de civilização, em Vincennes e depois no Instituto Alemão de Asnière, dependente de Paris III. A partir desse momento, a divisão entre os adeptos de uma disciplina literária e os partidários de uma abertura civilizatória se inscreve em uma partição entre os diferentes ramos, mas também entre as universidades, algumas delas se engajando na defesa do germanismo criado após a Segunda Guerra Mundial.

Esse esquema cronológico, relativamente bem conhecido hoje em dia para o germanismo, pode ser proposto pelo estudo das disciplinas adjacentes, a fim de esclarecer o que vem de um processo geral de construção disciplinar e que distingue cada uma das áreas culturais. Para fazer isso, um certo número de pistas deve ser explorado, começando por uma reflexão sobre a construção das hierarquias universitárias e o lugar que aí ocupam essas disciplinas de língua e civilização estrangeiras. O estudo das condições de construção de uma disciplina universitária poderia, assim, ser considerado como a reconstituição de sua evolução dentro do espaço da legitimidade acadêmica. Uma das formas de medir tal fenômeno é a de se interessar pelas características sociais de seus professores, comparando-as às características sociais dos outros professores. Pierre Bourdieu faz esse tipo de pesquisa sobre a universidade dos anos sessenta em Homo Academicus, a presença dos normalistas e dos agrégés sendo utilizada como indicador principal dentro das faculdades de letras. A modificação dos perfis dos professores recrutados, que podem ser facilmente reconstituídos graças aos instrumentos biográficos clássicos (dicionários, notícias necrológicas, títulos e trabalhos...), serve, então, para medir as transformações internas à disciplina.

Uma segunda pesquisa paralela pode ser feita em torno da questão da produção intelectual própria à disciplina, de seus modos de controle, de seus critérios de avaliação. Ela pode ser percebida tanto pelas publicações dos professores, como também

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pela lista de temas de teses e de programas dos concursos, em particular o da agrégation. Torna-se possível, então, medir quais são as normas intelectuais próprias à disciplina que deve respeitar aquele que quer fazer carreira nessa profissão. O centro da legitimidade definido pelo conjunto de temas tratados, no quadro do tríptico "concurso-doutorado-revistas especializadas", permite medir os afastamentos possíveis e impossíveis e o benefício ou o preço a pagar, que são a conseqüência disto, a partir do momento em que colocamos a carreira e as publicações de um professor em perspectiva. Surgem, então, os perfis de excelência, as estratégias de desvio ou de compensação e as trajetórias marginais.

Resta assinalar que este estudo disciplinar não seria totalmente satisfatório se ele se limitasse aos quadros universitários, humanos e intelectuais, desta categorização dos saberes. Como destacamos na introdução, o processo de construção disciplinar deve sempre ser pensado em suas interações com os outros campos, sejam eles intelectuais ou políticos. De fato, no caso do germanismo, não podemos compreender as condições de possibilidade da respeitabilidade, da metade do século passado, se não analisarmos, ao mesmo tempo, o desdobramento exterior da função de perícia política até então reservada aos germanistas. Em uma perspectiva de longa duração, é que o ensino de língua e civilização estrangeiras está longe de se limitar às disciplinas universitárias que o organizam, em particular por causa da tradição, que fazia dos professores de língua e literatura estrangeiras do século XIX "mediadores culturais", destinados ao público letrado. Na época, a distinção entre os viajantes, que faziam discursos sobre os estrangeiros no âmbito "privado" das revistas ou dos salões, e aqueles cuja palavra se inscrevia num âmbito público (cursos universitários), era, no mínimo, tênue. Esta proximidade persiste durante todo o período de criação das disciplinas (III República Francesa), no qual os estudantes e o público culto receberam "ensinamentos" comparáveis. A distinção que implica a concentração da disciplina sobre os objetos eruditos (literatura clássica, língua, filosofia...) cria, então, um espaço vazio

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no qual vão se inscrever outros perfis e outras disciplinas. Assim, a Alemanha contemporânea se torna um objeto importante para a ciência política em plena renascença nos anos cinqüenta. Esta constatação deve conduzir os pesquisadores a não limitar sua pesquisa à disciplina universitária constituída, numa lógica puramente teleológica, mas, de preferência, considerá-la como um elemento central dentro de um dispositivo geral de informação das elites francesas sobre os países estrangeiros.

Emmanuelle Picard - Professora concursada em História, doutora em História pelo Institut d’études politiques de Paris (Tese: Des usages de l’Allemagne. Politique culturelle française en Allemagne et rapprochement franco-allemand, 1945-1963. Politique publique, trajectoires, discours, sous la direction de Jean-Pierre Azéma, 1999). Pesquisadora no Service d’histoire de l’éducation, INRP-ENS (45 rue d’Ulm, 75005 Paris), responsável pela pesquisa « Histoire de l’enseignement supérieur français au XXe siècle ». Lista de publicações no site: http://www.inrp.fr/she/pages pro/picard.htm E-mail: [email protected]

Sabina Ferreira Alexandre Luz - Aluna do sexto semestre do Curso de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista de Iniciação Científica CNPq/PUCRS (2006/1).

Maria Helena Camara Bastos - Doutora em Educação - História e Filosofia da Educação (USP); professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected]

Recebido em: 20/11/2006 Aceito em: 15/03/2007

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 23-50, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

UM MODELO DE ESCOLA NA FRANÇA EM TORNO DE 1660-1740: A ESCOLA CRISTÃ1

Marcel Grandière Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz Revisão Maria Helena Camara Bastos

Resumo A Igreja ajuda a construir um modelo de escola cristã, na segunda metade do século XVII, na França: uma escola contra a desordem da sociedade. Este texto destaca como a organização da escola, a maneira de ensinar, os gestos e hábitos de vidas impostos, e os conteúdos de ensino, participam para essa finalidade de instrução das crianças pobres. Palavras-chave: Regulação social, religião, maneira de ensinar, ordem do tempo, habitus, conteúdo de ensino.

A SCHOOL MODEL IN FRANCE AROUND 1660-1740: THE CHRISTIAN SCHOOL

Abstract In the second half of seventeenth century, the Catholic Church helps to build a Christian school model in France: a school against society disorder. This text underlines how school organization, teaching methods, imposed gestures, life habits, and subjects taught contribute to the purpose of instructing poor children. Keywords: Social regulation, religion, teaching methods, time ordering, habitus, teaching contents UN MODELO DE ESCUELA EN FRANCIA ALREDEDOR

DE 1660-1740: LA ESCUELA CRISTIANA Resumen La Iglesia ayuda a construir un modelo de escuela cristiana, en la segunda mitad del siglo XVII, en Francia: una escuela contra el desorden de la sociedad. Este texto destaca como la organización de la escuela, la manera de enseñar, los gestos y hábitos de vidas

1 Do original: «Un modèle d’école en France vers 1660-1740: l’école chrétienne. IN: GRANDIÈRE, Marcel; LAHALLE, Agnès (Dir.) L’innovation dans l’enseignement français (XVI – XX siècle). Lyon: INRP; Nantes: CRDP de Pays de Loire, 2004. p.35-51. Autorizado pelo autor para publicação na revista História da Educação/ASPHE-UFPel.

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impuestos, y los contenidos de enseñanza, participan para esa finalidad de instrucción de los niños pobres. Palabras-clave: regulación social, religión, manera de enseñar, orden del tiempo, habitus, contenido de enseñanza

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Um modelo de escola se constrói, na segunda metade do século XVIII, na França: uma escola contra a desordem da sociedade. É essa desordem que preocupa as elites, com seu cortejo de misérias, de mortalidades e de violências. Os pobres e os protestantes são considerados responsáveis por esta situação.

A imagem de pobre não é nada favorável. A ignorância popular inquieta os membros da Companhia do Santo Sacramento, particularmente a ignorância religiosa2. O bispo de Vence, Antoine Godeau, no seu Discours sur l’établissement de l’hôpital général fondé à Paris [...] publicado em 1657, chama a eminente dignidade dos pobres, que todos devem venerar, mas aponta igualmente sua ignorância das verdades da religião, sua natureza desregrada, que os leva a roubar, pilhar e mendigar. A privação da liberdade, que organiza o hospital geral, tem por objetivo restabelecer "o status mais santo da pobreza em sua primeira reputação"3.

O modelo de escola, do fim do século XVII e início do século XVIII, participa dessa complexa atitude diante dos pobres e da plebe. O movimento que impõe a criação de escolas acompanha o esforço da instituição das casas de caridade, dos hospitais gerais, para aprisionar e reerguer os pobres. A escola aparece como uma resposta, entre outras, aos males da sociedade. O grande professor primário das escolas de Lyon, Charles Démia, também da Companhia do Santo Sacramento, faz a ligação entre a pobreza, a "profunda ignorância" e "a última libertinagem" da juventude das cidades4. A luta contra a pobreza passa então por uma reforma 2 A Companhia foi fundada em 1629 por um laico, o Duque de Ventadour; um oratoriano, o padre de Condren; um jesuíta, o padre Suffren; e um capuchinho, Philippe d’Angoumois. Seu objetivo era unir as forças católicas para agir na sociedade e cristianizar o corpus social. Ver Alain Tallon, La Compagnie du Saint Sacrement. Paris, Éditions du Cerf, 1990. 3 Alain Tallon, Ibid., p.145. 4 Charles Démia, Règlemens pour les écoles de la ville et diocèse de Lyon [...]. A. Olyer, (s.d), « avis au lecteur ».

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moral. È também a que praticam as irmãs de Saint-Charles d’Angers, cujo ato de estabelecimento data de 1714: quando visitam os doentes, os inquirem sobre os conhecimentos de religião das famílias, do cuidado dispensado com a educação das crianças, das ocasiões de excesso5. O pobre é por sua vez figura de Cristo, "templo animado", natureza desregrada e ameaça social.

Essa imagem complexa se observa particularmente naquelas crianças mais miseráveis. São os rejeitados que são deformados pelos maus costumes e que, em conseqüência, devem ser reerguidos. Démia, no seu Remontrances para as autoridades das cidades6, escreve a propósito dos jovens maus alunos: eles "caem ordinariamente na preguiça; só fazem levar uma vida de libertinos e a vadiar, os vemos em grupos, conversando sobre assuntos devassos, se tornam indóceis, libertinos, jogadores, blasfemos, brigões, entregam-se à imoralidade, ao furto e ao banditismo [...]". Então, deve-se cortar aquilo que é ruim, fazer crescer as sementes de Deus asfixiadas pela desordem. É o que deve ser feito com o pobre de Deus, é reerguê-lo, o liberar dos seus entraves, extirpar o vício que é ativo nele.

Que papel a escola pode ter para levar as crianças no caminho correto.

A organização da escola

A escola é uma organizadora de ordem: ela procura materializá-la no espaço onde as crianças evoluem. Existe toda uma construção modelada do espaço escolar. Parece que a ordem, assim como o tempo, exige a materialização espacial.

5 Règlement pour les écoles de charité gouvernées par Mademoiselle Jallot, (s.d), archives de la communauté. 6 Remontrances [...] aux prévosts des marchands, eschevins [...], Lyon, 1666.

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O espaço da sala de aula

Podemos representar o espaço modelo da sala de aula segundo L’école paroissiale de Jacques de Batencourt7. O prédio, em primeiro lugar, deve estar preferencialmente situado perto da igreja paroquial, mas em um canto, longe da agitação da rua. Batencourt prevê salas grandes, para cem a cento e cinqüenta crianças, iluminadas de cada lado por grandes janelas, e aquecidas por lareiras. Uma pia de água benta permite que as crianças se benzam ao entrarem na sala: a escola é, de fato, segundo l’Essai d’une école chrétienne, publicado em Paris em 1724, "a igreja das crianças".

O centro da sala é o lugar escolhido para receber a imagem do crucifixo: trata-se, em Paris, de uma imagem de papel em talho-doce, de dois pés e meio de altura (ou seja, 81 cm); essa imagem é acompanhada de outras, como da Virgem e dos santos, e de um grande retábulo representando o julgamento final. A imagem do Cristo é a referência da sala, o centro simbólico da escola. Por isso, esse lugar é protegido, desprendido, as carteiras dos alunos encontrando-se afastadas dele. Ele constitui-se até mesmo em pequeno oratório para as freiras do padre Barré em Rouen. Todos os alunos viram-se, individualmente, na direção dessa imagem ao entrarem na sala e todos, de joelhos, ao menos quatro vezes por dia, na direção do mestre.

Cada um e cada coisa em seu lugar!8 A regra é que cada um esteja exatamente no lugar marcado, e que os diversos materiais escolares estejam "encerrados" em um lugar apropriado. O mestre encontra-se em sua cadeira com braços, as crianças

7 L’escole paroissiale ou la manière de bien instruire les enfans dans les petites escoles, Em Pierre Targe, livreiro do arcebispo de Paris, 1654. Utilizamos nesse texto (p. 48 a 50) a edição de 1669: Instruction méthodique pour l’école paroissiale, dressée en faveur des petites écoles, par MIDB, prestre, Paris, Pierre Trichard. 8 "Chacun et chaque chose à sa place!". Nota do tradutor.

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sentam-se nos bancos que ocupam toda a extensão das paredes, reagrupados em pequenos grupos de nível, chamados de "classes", "bancos" ou "bandas", dirigidas por oficiais9. Os bancos podem ter alturas diferentes segundo o nível de leitura que comanda geralmente a organização pedagógica da sala. Existem lugares reservados aos novos alunos, para que sejam reconhecidos pelo mestre e "enquadrados nas práticas da escola" 10 pelas crianças mais avançadas. Quando há mesas para escrever, elas são colocadas perto das janelas; ou senão, a sala possui escrivaninhas quadradas para duas pessoas utilizadas na hora do exercício.

Tudo deve ser posto em seu lugar. As cestas do almoço sobre uma prateleira, com um pequeno cesto para recolher as esmolas, os objetos pessoais sobre ponteiras ou portas-casaco; existe também um armário que é fechado à chave para guardar os livros atribuídos aos pobres, cada um sendo estritamente individualizado, os do mestre, a cesta dos terços levada todo dia para a missa pelo oficial nomeado para isto, os registros e os catálogos da sala, as imagens dos santos. Existe ainda uma estante para receber a cesta de papel e o necessário para a escrita, ou seja, a tinta, os tinteiros portáteis, o pó para secar e as plumas. Essas questões materiais não são apenas detalhes: podemos contar uma

9 "O mestre dividirá sua Escola em quatro ou cinco bancos, segundo a quantidade e capacidade de seus alunos; colocando no primeiro os mais capazes, como são os que aprendem a ler em francês, e nas Letras, a escrever, e a aritmética. No segundo, os que lêem razoavelmente no livro de orações. No terceiro, os que sabem soletrar e associar as palavras. E no quarto, os que aprendem a conhecer suas letras e a juntar as sílabas.", Em Lettre pastorale de Monseigneur l’Évêque de Bayeux touchant les petites écoles, avec une méthode pour apprendre en peu de temps à lire, écrire, faire la catéchisme, et chanter, Caen, 1690, "Manière de conduire une école", p. 59-60. Segundo os Règlements de Charles Démia, op. cit., p. 19, "o mestre dividirá sua Escola em salas diferentes, com relação à capacidade dos Estudantes [...]. Quando a Escola for numerosa, pode-se subdividir cada uma dessas salas em diversas bandas [...]". 10 Jacques de Batencourt, op. cit., chap. II, art. 3.

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pinta11 de tinta por mês em Moulins, e uma centena de pincéis por ano!12

Até mesmo as crianças são cuidadosamente registradas na escola cristã. Trata-se de pôr em ordem as inscrições, ou seja, impedir as mudanças descontroladas de escola, verificar que os mestres não se encarregam de mais estudantes do que o possível para ganhar mais dinheiro (em Paris, a escola paroquial limita a cem o número de estudantes por sala quando o mestre é ajudado por um assistente, e a sessenta quando não o é)13; em Moulins, em Poitiers, a previsão era de cem para o grupo dos grandes, cento e cinqüenta para os pequenos. O registro rigoroso dos estudantes visa ainda o controle das entradas nas escolas de caridade reservadas aos pobres, ou mais pedagogicamente, a classificá-los em grupos de capacidades diferentes que estruturam a escola.

O registro existe em todos os lugares: nele estão inscritos, segundo a data de chegada devidamente estabelecida, os nomes e sobrenomes das crianças, os dados dos pais e mães, do parente que representa a criança órfã, o nome da rua, do pavilhão, da paróquia onde mora a família; algumas informações mais detalhadas próprias para guiar a ação do mestre também são registradas: hábitos e caráter das crianças, sacramentos recebidos (o registro dos Lasallistas marca uma cruz para as crianças que

11 Medida antiga. Nota do tradutor. 12 Règlement concernant la conduite et la direction des écoles charitables établies dans la ville de Moulins, sous le titre et la protection du Saint Enfant Jésus, manuscrito, p. 34, Arch. départ de l’Allier, D. 145. 13 Segundo Batencourt, op. cit., chap. III, "Sobre a admissão das crianças na escola", "É preciso que o mestre seja prudente na admissão das crianças afim de não se sobrecarregar além de suas forças, o que traria um grande prejuízo às crianças [...]", p. 62. As medidas efetuadas por Martine Sonnet, L’éducation des filles au temps des Lumières, Paris, Éditions du Cerf, 1987, nos levam a pensar que as turmas das escolas de caridade de moças em Paris acolhiam efetivamente 60 a 70 alunos, enquanto que os professores e professoras de canto ensinavam menos de 20 crianças.

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comungaram, e um "c" para aquelas que foram confirmadas), incômodos e enfermidades que podem justificar as ausências, se eles sabem ler e escrever... Como a criança é registrada pelos pais, ou o adulto a quem ela foi confiada, o mestre deve aproveitar esse momento para saber se outra escola já foi freqüentada por ela, se a criança é mimada pela família, ou, ao contrário, tratada de forma muito rude, se convive com más companhias. A este primeiro livro pode ser adicionado outro, renovado cada mês, para anotar o pagamento da escolaridade, quando esse último é praticado.

Os Lasallistas são os mais rigorosos na precisão da inscrição: ao catálogo habitual dos alunos admitidos na escola, se acrescentam outros dois: um "catálogo das ordens da lição", onde cada criança é inscrita em seu nível, com a data precisa de sua entrada, e também com uma contagem precisa dos atrasos, das faltas justificadas e o número de vezes que a criança não soube seu catecismo, e enfim o "catálogo para servir à troca de lição dos estudantes da escola" destinado aos inspetores, para lhes dar as indicações necessárias ao controle das mudanças das lições. Fora das escolas Lasallistas, há um sistema de catálogo (diferente do registro) que permite uma rápida visualização dos presentes e dos ausentes: em Paris, murais de madeira para colocar o nome dos oficiais e de todos os alunos sobre pequenas cartolinas amarradas com cordinhas e, portanto, facilmente desamarradas. Em Moulins, um mural com furos (seis diante de cada nome, um para cada dia da semana) permite o mesmo controle das faltas.

A organização do tempo

A ordem da escola necessita ainda da tomada de consciência da passagem do tempo pelas crianças para que elas tenham um bom domínio sobre ele. Aprender a se situar no tempo cotidiano, semanal e anual, ser capaz de compreender e de ter percepção da duração, essas são aquisições essenciais realizadas na escola. Elas são suscetíveis de evitar a desordem da vida habitual aos pobres, segundo uma imagem frequentemente retomada. A

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não-ocupação, o ócio, na realidade a desordem temporal, conduzem ao vício, à libertinagem e à violência.

Daí a vontade de organizar bem o tempo na escola, ritmado pelo sininho do mestre, o sinal do irmão lasallista, o batimento de suas mãos, o lançamento de curtas invocações religiosas. Chegar "na hora marcada" é uma exigência repetida dos métodos. As aulas duram quatro/cinco horas, às quais é preciso acrescentar um tempo de repetição antes da chegada do mestre de manhã e à tarde, mais o tempo de celebração do sacrifício da missa, obrigatória.

Eis uma "disciplina das escolas" tipo, segundo a expressão da Lettre pastorale de Bayeux: suponhamos que as escolas abram às 7 e meia, sabendo que existe praticamente em todos os lugares uma diferença de meia hora entre o inverno (entre o dia de todos os Santos e a Páscoa) e o verão. Os oficiais, sob a direção dos intendentes, dirigem, então, a escola. A chegada do mestre às 8 horas é marcada pela recitação das preces da manhã, de joelhos, a classe inteira virada para o crucifixo. É o primeiro exercício da turma, já que ele permite a memorização de todas as preces que ritmarão sua vida de adulto. Até às nove horas são feitas as lições de leitura, graças a uma hábil organização na qual os alunos mais adiantados fazem os outros estudarem. Quando terminam a lição, continuam a repetir sozinhos, sem barulho, ou podem pegar seus trabalhos manuais, como as meninas de Rouen. Às 9 horas, as leituras estão globalmente terminadas, ao menos para os mais avançados. Preces rápidas marcam a hora: o tempo pertence a Deus e é bom que as crianças construam o tempo cotidiano em referência a ele. Também é o tempo do almoço para todos, inclusive para os mais pobres que recebem uma esmola de seus companheiros. Na volta, os exemplos de escrita preparados pelo professor ou o professor assistente, são distribuídos, assim como as plumas rigorosamente arrumadas em um catálogo específico que pode ser uma tábua pequena com furos onde são inscritos os nomes daqueles que escrevem. Os menos adiantados que ainda não tinham lido, podem fazê-lo agora. A manhã

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termina às 10 horas com preces: as crianças são tão logo conduzidas em filas, duas a duas, à igreja para a missa.

Depois do jantar, a aula é conduzida da mesma forma: preces, leituras, depois escrita. Há, no entanto, na segunda hora, uma meia-hora consagrada ao cálculo com a pluma ou com o "jet"14 para os mais avançados, e o último quarto de hora é reservado ao pequeno catecismo, que é feito todos os dias no final da tarde.

A construção do tempo da semana é adquirida graças a alguns momentos específicos que a ritmam: o dia ou meio-dia de folga nas quintas geralmente, os dois grandes catecismos das quartas e dos sábados, a partir de quinze para as três da tarde. A escola também procura situar as crianças no tempo do ano, graças a preparação dos mistérios de cada festa dominical ou de obrigação, com momentos mais marcados correspondendo às grandes festas religiosas do calendário litúrgico. As férias se situam em torno do mês de outubro. A ordem da escola tende, dessa forma, a garantir uma formação completa das crianças, uma educação total, onde o espaço, o tempo, a ordem das coisas são rigorosamente organizados. A ambição da escola é a de ensinar as crianças a regularem suas vidas.

A maneira de ensinar

A maneira de ensinar mostra igualmente essa busca pela ordem que caracteriza o período 1660-1740. O modelo de escola que é construído então pode ser caracterizado segundo três pontos essenciais: a seqüência da aprendizagem, a organização dos alunos em classes, a disciplina exigida das crianças.

14 Peça chata e geralmente redonda que servia antigamente para fazer cálculos. Nota do Tradutor.

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Organização em seqüência da aprendizagem

Os pedagogos querem impor a organização em seqüência da aprendizagem, a ordenação meticulosa dos gestos para aprender, e fazem uma análise tão precisa quanto o possível de todas as etapas dessa operação. Procuram estabelecer uma verdadeira estratégia que pode se assemelhar à taxionomia moderna, com seus numerosos itens.

Vamos pegar o exemplo da escrita, particularmente significativo. O método supõe primeiramente uma organização séria. Os alunos oficiais ou "intendentes da escrita" são encarregados da gestão dos montes de papel apertados em um armário ou em uma caixa, da distribuição das folhas do dia e dos exemplos preparados pelo mestre, ou comprados na cidade na casa de um mestre da escrita. Quanto a maneira de aprender a escrita, ela é, segundo os métodos, muito rigorosa. Trata-se de pôr em harmonia os dedos, o punho, o braço e o conjunto do corpo. Tudo deve ser perfeitamente controlado, ou senão corre-se o risco de ter borrões de tinta, bicos de pluma esmagados, "orelhas" que destroem os cantos das folhas! Escrever é uma técnica do corpo que só é aprendida com muito método, exercícios e correções.

A primeira dificuldade a ser vencida é a de segurar a pluma, ou seja, de aprender a posição do polegar (à esquerda), do indicador e do dedo médio (à direita). Soltar a mão é uma operação tão delicada que os Lasallistas propõem, no começo, dar às crianças bastonetes marcados com três cavidades para elas aprendam a posicionar corretamente os dedos. A harmonia dos dedos depende também da maneira como as falanges estão dobradas. Quanto ao punho, ele não deve encostar-se à mesa, mas deve ser mantido ligeiramente alto pelos outros dedos. O braço esquerdo, ao contrário, fica sobre a mesa e sustenta o corpo. Até mesmo o porte do corpo é imposto: "nem muito inclinado sobre o papel, nem muito reto, mas numa agradável média" segundo

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Batencourt15. Ele aconselha ainda de "baixar medianamente a cabeça e os ombros em direção à escrita" e de não apoiar seu estômago sobre a mesa.

Evidentemente, isso não é tudo! Pois, quando o corpo é endireitado, é preciso pensar no movimento da pluma. Isto significa que é necessário ser capaz de escrever direito sobre as folhas. Os mestres utilizam para isso transparentes, ou folhas que "endireitam-se" elas mesmas, a primeira linha somente para as crianças que começam a manter corretamente suas mãos. Quanto ao movimento circular, as crianças normalmente o adquirem exercitando com o o e o i (ou o c), aprendidas as primeiras letras, absorvendo assim os modelos que o mestre fez e que eles têm sob os olhos. O método de Bayeux propõe uma espécie de transparente feito de osso desengordurado aplicado sobre o exemplo, e sobre o qual eles podem traçar e apagar as letras do alfabeto16. Depois do o e do i, as crianças das escolas de Bayeux passam ao a (feito de um o e de um i), ao f, m e n, que são todas consideradas "letras iniciais" que preparam a escrita das outras letras.

Durante a aprendizagem começa a difícil operação de talho da pluma. Trata-se aqui também de um conjunto de gestos extremamente técnicos e delicados, pois eles dependem tanto da escrita que queremos praticar (redonda, bastarda) quanto do material (pluma mais ou menos seca). É preciso abrir a ponta do tubo, o talhar bem levemente, e fazer um bico17. Podemos ver toda a arte de controlar a si mesmo que supõe a aprendizagem da escrita.

15 Jacques de Batencourt, L’école paroissiale, op. cit., p. 199. 16 Lettre pastorale de Monseigneur l’Évêque de Bayeux, op. cit., Caen, 1680, p. 69. 17 Para saber "como é preciso talhar a pluma", ver o Livre d’écriture [...] escrit et gravé par Louis Senault, Paris, 1668.

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A pedagogia do monitorado

As crianças são organizadas em "classes", segundo seu nível, sobre a responsabilidade de um oficial. Sua fileira no grupo depende também do seu progresso e mérito. O lugar ocupado na sociedade da escola é adquirido, mas é preciso defendê-lo a todo instante contra as pretensões dos colegas. Quando o mestre, ou o oficial encarregado da leitura, reúne mais ou menos dez crianças diante do alfabeto18 pendurado em uma prateleira de madeira, ele começa sempre interrogando o primeiro da "classe", ou seja, o mais avançado. Ele pratica da mesma forma com os grupos que chegaram à leitura de um livro: determina todas as mudanças de leitores, do mais avançado ao último, com uma vareta ou o toque de um sininho, tendo confirmado no início que todas as crianças possuem a mesma obra, com a mesma impressão. Todos devem manter o dedo sobre a palavra lida, dizendo baixo o que o leitor pronuncia em voz alta.

A organização da escola pela nomeação de oficiais é uma das características principais da pedagogia das pequenas escolas. Eles atendem sob o título de mestres, intendentes, capelães, visitantes, porteiros, decuriães, "dizainières"...19 Esses oficiais são numerosos: vinte "dizainières" nas escolas do padre Barré, aproximadamente o mesmo em Lyon quando se conta os decuriães, encarregados de um "grupo" de crianças. E visto que eles mudam muito (segundo os métodos e as tarefas, a cada quinze dias, a cada mês ou de outra forma), podemos pensar que a maioria das crianças, durante os três ou quatro anos que passam na escola, tem acesso a essa honra de receber um cargo do mestre.

Esses oficiais não fazem figuração: eles exercem o cargo na escola de manhã e à tarde, antes da chegada do mestre, e o

18 Lettres pastorales de Monseigneur l'Évêque de Bayeux, op. cit., Caen, 1680, p. 69. 19 Dizainière: pessoa encarregada de uma quantidade de crianças. É um ofício, uma função confiada a uma aluna que é chamada "dizainière".

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ajudam em seguida na atividade pedagógica da turma. Dessa forma, são os mestres assistentes ou intendentes que fazem reinar a ordem no começo de cada meio-dia, que vigiam o resto de seus colegas, inclusive os outros oficiais, garantem que cada um faz sua tarefa, que as crianças se dirigem aos seus lugares e que não conversam. Eles anotam os culpados para que sejam punidos. O mestre os utiliza ainda durante a aula para os exercícios de leitura e de escrita de maneira a atenuar a sobrecarga das crianças. O porteiro tem autoridade para impedir a entrada na sala daqueles que não estão vestidos de maneira correta. Quanto aos decuriães, seu papel é importante, pois são eles que fazem recitar as lições e dirigem em seguida o pequeno grupo do qual são responsáveis. Existe até oficiais visitantes que investigam as condutas domésticas nas famílias: a obediência e o respeito devido aos pais, assim como a saudação de manhã e à noite, as relações entre meninos e meninas, a prece comum que deve ser dita todos os dias. É, portanto, pela prática que a desordem inerente às crianças é controlada na escola.

As relações na classe. Os castigos

As relações entre o mestre e os alunos são marcadas por uma grande reserva. A familiaridade não existe, nos regulamentos pelo menos: não se pode brincar. Existe uma ordem nas relações que não se deve romper. Se a escola é a igreja das crianças, ela deve ensinar o respeito e a dignidade do porte.

As comunicações são as mais breves possíveis. Sinais sonoros, pequenas preces ou exortações anunciam as diferentes atividades da escola. O mestre deve manter-se distante em qualquer ocasião. Também é recomendado aos mestres que fiquem afastados da vida social, que se divirtam longe da visão dos pais e das crianças.

As crianças, que não se comovem com o silêncio do mestre e que infringem as regras, devem ser punidas. A obrigação de proceder dessa maneira, a menos que o mestre tenha cometido

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um erro grave, mas também a prudência que requer o castigo, são considerações importantes que fazem parte do modelo de escola. Trata-se de endireitar naturezas marcadas pelo pecado original e permitir que as graças depositadas por Deus desabrochem. Os textos das Escrituras são sem nenhuma ambigüidade sobre a necessidade de endireitar as crianças. Mas se os princípios são sem falha, a prática não o é e necessita muitas precauções: é preciso fazê-los reconhecer seus erros, evitar de castigar sem razão, evitar também de fazê-lo em um momento de raiva e de exaltação. É preciso ainda impedi-los de gritar durante o castigo, de murmurar depois. Um bom castigo é aceito pela criança castigada. Os mestres devem evitar tocar na cabeça da criança e ter atenção de nunca bater com as mãos; eles aplicam a sentença, sobretudo, nas mãos (palmatória) ou nas nádegas quando usam o chicote. Por isso a precaução de aplicá-la em um lugar separado, ou atrás de uma cortina, para o exemplo de todos, preservando, no entanto, o pudor: pode ser perigoso mostrar uma criança em uma posição impudica, mesmo que para castigá-la.

O ensino

A noção de ordem prevalece sempre no que concerne o ensino dado. O que deve saber uma criança que sai da escola depois de somente alguns anos de presença mais ou menos regular? Ler sem dúvida, escrever, e no melhor caso, contar. Isto é clássico, mas é preciso ir mais longe.

A hierarquia da sociedade

A criança aprende a se situar em relação às outras pessoas que a cercam. A primeira preocupação dos métodos é de construir uma hierarquia de pessoas, de conscientizar, particularmente as crianças pobres, que existe uma ordem de relações na qual elas devem se inserir. É, sem dúvida, um dos primeiros benefícios da escola, o que define melhor seu papel

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simbólico em uma sociedade vista como profundamente perturbada.

A criança deve dominar a ordem de relações entre as pessoas com as quais vive. A ordem de sua vida depende dessa conscientização. A relação com Jesus, filho de Deus, é, evidentemente, a primeira, já que ele é o coração da escola. É ele que saudamos ao entrar na sala, retirando o chapéu, pegando água benta na pia batismal, ajoelhando-nos diante do crucifixo, ou fazendo uma reverência, como as meninas de Rouen nas escolas de Nicolas Barré20. Os exercícios de leitura começam pelo sinal da cruz21. Todo dia há missa, ou na parte da manhã antes das aulas, ou em torno de 10-11 horas, depois de duas ou três horas de trabalho. É com Cristo que falamos na escola, através das preces da manhã, das orações recitadas a cada hora, das preces do fim da aula. Aliás, a criança só fala praticamente com ele, acrescentando também a Virgem e os Santos, já que ela deve ficar em silêncio durante toda a aula, só falar com o mestre caso seja necessário, a comunicação na sala se faz principalmente através de sinais. E para que as crianças compreendam bem a preeminência absoluta do Cristo na hierarquia social, as faltas de atenção e os barulhos feitos na relação com ele não merecem o perdão e são punidos com o castigo do chicote22. 20 Sobre a obra de R.P. Barré, ver: Nicolas Barré, Oeuvres complètes, Paris 1994, et Nicolas Barré, L’éducation des pauvres aux XVIIe et XVIIIe siècles, Actes du colloque Nicolas Barré, religieux minime, 1621-1686, Cahiers scientifiques de l’université d’Artois, 1998, estudos reunidos por Marie-Claude Dinet e Marie-Thérèse Flourez. 21 Segundo L’école paroissiale, "De la méthode à montrer les lettres", p. 173, "para mostrar bem as letras, é preciso que eles comecem fazendo bem o sinal da cruz". 22 Na Conduite des écoles chrétiennes, de Jean-Baptiste de La Salle, chap. V, "Des corrections en general", p. 147-149, a correção por varas, e até a expulsão da escola, são aplicadas às crianças desobedientes, pouco estudiosas, brigonas, as que não rezam na igreja e as que se mostraram "imodestas" na missa e no catecismo.

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As outras imagens da escola são a Virgem, São José, o anjo guardião, os santos da diocese e da paróquia, todos representados por imagens. Os santos principais do calendário cristão só são colocados em uma prateleira de madeira na ocasião de sua festa para que se conheça o mistério de cada um deles. A hierarquia entre eles é manifestada pelo tempo durante o qual permanecem na dita prateleira e pelo tamanho dos cartazes23. A ordem de relações se estende evidentemente às pessoas com autoridade que cercam a escola, ou seja, primeiramente ao padre cuja autoridade é sempre afirmada, depois aos diretores que tem a seu cargo a gestão das aulas, quando um bureau das escolas foi constituído, segundo o modelo de Lyon de Charles Démia24. É o caso, por exemplo, em Moulins, em Poitiers, em Bayeux e em Toul25.

A criança também deve situar o mestre na ordem de relações: sua imagem é claramente desenhada pelos métodos. O esforço para colocá-lo em evidência é considerável. Em primeiro lugar fisicamente, pois ele se instala sobre um estrado em uma cadeira com braços. Em seguida simbolicamente, porque ele representa Jesus Cristo diante de suas crianças. O discurso episcopal dos métodos não hesita em desenhar uma imagem dos mestres e das mestras de escola que os afastam do comum, os aproximando do ministério divino. Quais são as características

23Ver Batencourt, op. cit., "Les meubles de l’école", p. 51 et sq, et Démia, op. cit., p. 29-30. Esse último prescreve para cada escola "uma pequena cartolina ou moldura para colocar a imagem do catecismo, que é mudada a cada festa". 24 Segundo uma ordem dada pelo bispo de Lyon datando de 1672, e cartas de porte de 1680. 25Esses escritórios das escolas, criados com a iniciativa dos bispos, são sempre presididos por um eclesiástico e compostos de "diretores" escolhidos entre os principais eclesiásticos e os notáveis laicos da cidade onde são estabelecidos, esses últimos geralmente vindos das cortes de justiça. O tesoureiro é sempre laico.

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dessa imagem ideal do mestre?26. Os clichês repetidos da função são a "santidade do emprego", sua dificuldade e o pouco reconhecimento do público, o exemplo devido às crianças27. A humilhação e os sofrimentos são praticamente inseparáveis do emprego. No entanto, lhes é necessária muita bondade e caridade para suportar a irregularidade das crianças e a desordem dos pais, dos quais a escola também tenta impor a autoridade, assim como a dos oficiais da escola a quem o mestre confiou uma tarefa particular que os situa acima de seus colegas. Nada como a prática de uma responsabilidade para situar-se a si mesmo na hierarquia da sociedade civil e respeitá-la!

Se a escola cristã tenta construir a corrente da integração social, ela procura romper, paralelamente, certas relações existentes. É uma característica do modelo de escola lutar contra as festas de máscaras, na ocasião do carnaval. Os mestres de Lyon retêm especialmente os estudantes depois do jantar da terça-feira gorda para impedir "qualquer ocasião de dissipação e de libertinagem" 28. Nos dias de carnaval, eles organizam debates de catecismo para reter as crianças na aula. A escola cristã luta ainda contra as más companhias e os jogos do cabaré, contra tudo que representa a desordem do corpo e do espírito. No entanto, procura agrupar as crianças em uma confraria, como a de Saint-Enfant- 26 Apesar dos esforços da Igreja, no entanto, essa imagem não corresponde à realidade. Em uma carta destinada ao bispo de Oloron de 15 de março de 1737, o intendente de Béarn, M. de Balosre, fala dos regentes como sendo "cópias de domésticos" dos padres, "homens mercenários e pouco capazes". Archives nationales, Fonds du Clergé, G8 643. 27 "Acima de tudo, a vida dos Mestres e Mestras deve ser exemplar e edificante, porque as crianças absorvem com mais facilidade os defeitos de seus Mestres, do que as suas virtudes: e como o que elas vêem marcam-nas mais do que o que elas ouvem, [...] quando os primeiros exemplos que lhes foram dados, são exemplos de libertinagem e de desordem", Lettre pastorale de Monseigneur l’Évêque de Bayeux, op. cit., Caen, 1690, p. 28. 28 Charles Démia, op. cit., p. 17. Jacques de Batencourt, op. cit., p. 99, também quer "desviar as crianças da libertinagem do Carnaval".

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Jésus na escola da diocese de Lyon, e chega, inclusive, a ajudar aqueles que mereceram se estabelecer na casa de um mestre para aprender uma profissão29. A escola interpreta bem, portanto, o seu papel de reconstrutor da ordem junto as crianças que são consideradas como vivendo, por natureza, na desordem da vida.

A disciplina dos gestos

O segundo aprendizado importante da escola é o domínio de si, um domínio que os afasta da rudeza e que torna mais digna a categoria de criança de Deus. É por isso que a disciplina dos gestos é uma aquisição importante, como nos mostra Georges Vigarello em Le Corps redressé: "o corpo é o primeiro lugar onde a mão do adulto marca a criança"30. Quais gestos, quais atitudes a escola espera ensinar?

A principal noção que guia os mestres e mestras de escola é a da modéstia31. A modéstia é a disciplina do corpo, dos gestos, da voz, das roupas. A escola caça os impulsos que levam aos socos, às "pancadarias", à exaltação do discurso, às palavras grosseiras, às injúrias e aos insultos; ela ataca ainda toda falta de pudor referente à parte baixa do corpo. As imundices do corpo são, doravante, escondidas, e as crianças que vão às suas necessidades assinalam com precaução sua presença.

A parte mais visível da modéstia concerne à limpeza e à conduta. O porteiro vigia particularmente os cabelos penteados, sem parasitas, as roupas abotoadas, que estejam mais limpas

29 Charles Démia, Ibid, p. 49. 30 Le corps redressé. Histoire d’un pouvoir pédagogique, Paris, Jean-Pierre Delarge, 1978. Introduction. 31 Segundo o dicionário de Furetière, a modéstia fica próxima do pudor e da moderação. "A modéstia dos eclesiásticos edifica muito o povo: é preciso que a modéstia deles apareça muito em suas ações, à sua mesa, no seu trem." O Dictionnaire de l’Académie (1672) marca ainda mais a evolução da palavra em direção a moderação na maneira de se conduzir, de falar, de se vestir.

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possíveis e que não estejam rasgadas, mesmo que eles sejam muito humildes. A modéstia da roupa exclui qualquer vestígio de vaidade e de orgulho, como as plumas, os frisados e o pó-de-arroz nos cabelos. As crianças contaminadas com doenças como a sarna, a acaríase e as escrófulas não são aceitas na aula. A modéstia concerne também o passo, regular, a atenção para não fazer barulho com seus tamancos entrando na sala, o controle de seus gestos (é proibido se coçar na missa e durante as preces, de respirar ruidosamente, de olhar tudo sem reserva). "A maneira de ficar em silêncio é que as crianças estejam cobertas, os braços cruzados, o olhar baixo, sem que elas abaixem no entanto a cabeça, nem que curvem o corpo, comportando-se como hipócritas..." 32. São ainda assinalados como impudicos, pelos oficiais, aqueles que falam, que empurram os colegas nas filas, que fazem barulho nas ruas...

O controle dos gestos é particularmente sensível nos rituais de entrada na aula, bem descritos nos métodos. Entra-se na sala como em uma igreja33. As crianças aprendem a pôr seu corpo em harmonia com o lugar que elas freqüentarão durante toda sua vida: a igreja paroquial. Os corpos tornam-se menos rudes na escola e se liberam das asperezas do populacho. A gestual de entrada se desenrola sempre dessa forma: tirar o chapéu, colocando-o debaixo do braço, pegar água benta, ficar em silêncio, caminhar modestamente, ajoelhar-se diante do crucifixo ou reverenciar-se, rezar preces curtas em voz baixa (Pater e Ave Maria geralmente), caminhar até o lugar atribuído. Tendo a criança controlado seu corpo, ela se preparou em espírito para repetir em voz baixa suas lições e as respostas do catecismo, antes da chegada do mestre.

32 Règlements concernant la conduite et la direction des écoles charitables établies dans la ville de Moulins, op. cit., art. 50. 33 Ver Marcel Grandière, "les petites écoles ou les églises des enfants", p. 7-37, L’idéal pédagogique en France au dix-huitième siècle, op. cit.

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Esse último, aliás, não é poupado da exigência de modéstia: moderação dos gestos, cor escura da roupa, controle da voz, ar severo; o mestre cria uma compostura que faz as crianças e os pais lhe respeitarem. É fazendo referência aos eclesiásticos, um modelo para os mestres, que o dicionário de Furetière define o termo da modéstia. A virtude da modéstia dos mestres, segundo Batencourt, "tempera as ações relacionadas à visão, à audição e ao toque. É por isso que o mestre deve ser bastante cauteloso para não ter uma visão dispersa, mas modesta: não enferrujar os olhos e fazer gestos de touro contra suas crianças; nunca bater nelas com seu chapéu, ou boina, mas somente com a vara, a palmatória, ou a vareta, nos dedos e nunca na cabeça"34.

Existe ainda toda uma gestual do chapéu bastante simbólica do controle de si e da aprendizagem da relação com os outros. O chapéu é generalizado, daí a importância de conhecer seu uso. O princípio é, evidentemente, de descobrir a cabeça para saudar, e de recobri-la um pouco depois, quando somos íntimos ou da mesma categoria. Na escola cristã, os alunos descobrem a cabeça toda vez que fazem o símbolo da cruz, ou seja, quando entram na sala, no começo da leitura quando o "banco" de leitores se levanta, e toda vez que uma prece vai ser dita. Em Poitiers, quatro badaladas do sino ritmam o fim do almoço das 9 horas e a recitação das graças: a primeira é para tirar o chapéu, a segunda para se levantar, a terceira para virar em direção ao crucifixo, a quarta, enfim, para cantar a prece. Os alunos retiram ainda seu chapéu cada vez que eles falam com o mestre para recitar suas lições ou lhe pedir alguma coisa, ou ainda quando uma pessoa importante entra na sala.

A disciplina dos gestos na aprendizagem

A aquisição da leitura não escapa dessa disciplina dos gestos. Lembremos que a leitura está no centro da organização

34 Jacques de Batencourt, op. cit., art. V, p. 23.

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pedagógica da aula e que ela comanda a distribuição dos alunos nas diferentes "classes", segundo o progresso nessa aprendizagem: as crianças percorrem nove níveis de leitura35, começam a escrita (seis níveis) no sétimo nível de leitura, e a aritmética (cinco níveis) no quarto nível de escrita. A longa duração da aprendizagem da leitura, sua estrita gradação segundo as etapas precisas, a exigência de um rigoroso respeito do método, tudo mostra que se trata de adquirir bem mais que uma simples competência operacional.

Essa aprendizagem é primeiramente, para muitos alunos do povo, uma formação humana de rigor e de controle de si. As longas e repetitivas seções de aprendizagem sistemática das letras e das sílabas, depois a soletração rigorosa das palavras que são decompostas em elementos, a leitura por palavras, por linhas e por frases, tudo nessa aprendizagem estritamente regulamentada lembra que a leitura é, em primeiro lugar, um exercício de controle de si mesmo. O domínio da voz faz parte do exercício: é necessário lutar contra a balbuciação das crianças nas preces que só pronunciam sons misturados sem compreender nada. Sem dúvida é também o caso dos adultos... De onde a insistência dos mestres, que nos parece incompreensível hoje em dia, na pronunciação exata das letras e das sílabas, na acentuação determinada de todas as letras que devem ser ouvidas, inclusive as últimas como o r no sanctificetur do Pater Noster. Todas as preces são recitadas destacando-se as sílabas para marcá-las bem36. Não insistimos o suficiente até aqui sobre a difícil saída do mundo da oralidade das

35 Os nove níveis de leitura são os seguintes: lista do alfabeto; lista das sílabas; silabário (soletrar apenas); silabário (para a leitura destacando as sílabas); segundo livro: leitura acompanhada; terceiro livro: pontuação, números; saltério (livro dos salmos) para ler em latim; cortesia; manuscritos e registros. Ver Yves Poutet, Génèse et caractéristiques de la pédagogie lasallienne, éditions Don Bosco, 1995. 36 É preciso, segundo L’école paroissiale, op. cit., p. 6, "aprender bem a pronunciar o Pater, a Ave Maria, o Credo, o Confiteor, em latim e em francês, e também o Benedicite, e as preces do exercício do cristão". Essa recomendação é geral.

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massas populares, onde os dialetos misturavam consideravelmente as sonoridades, talvez porque os pesquisadores se colocam naturalmente do lado do mestre que ensina, e não do ponto de vista da criança que aprende, da cultura de onde saíram. Essa exigente saída do mundo da oralidade foi feita através da aprendizagem das sílabas e da marcação das letras importantes para colocar em evidência as palavras, para isolar os elementos que constituem as produções sonoras efetuadas. Tudo é, então, arrumado na escola modelo, inclusive a voz, e, sobretudo, a ordem das palavras, que as crianças se esforçam para aprender fazendo exercícios de determinação de cada elemento.

No campo da aritmética, a escola procura o mesmo rigor dos gestos pela adoção de uma iniciativa bastante precisa dos métodos, em parte teórico evidentemente, já que existe uma grande distância na educação entre a demanda institucional e as realizações concretas. As crianças que chegam até esse nível de cálculo aprendem a "controlar a mão e a pena", a praticar as quatro operações e a resolver os problemas que estão relacionados a uma dessas operações. O "jet" na mão (p. 50-51) permite conhecer e manipular as diferentes ferramentas de conta do Antigo Regime para dominá-las. A criança aprende numa primeira etapa o valor dos caracteres, depois o jeito de colocar os "jetons". Os exercícios consistem a nomear as "somas" (os números) num primeiro momento, a somar, ou seja, reagrupar as unidades de sol e de livres37 em 5, 10, 20 e 100.

O essencial do trabalho concerne, no entanto, o uso do "jet" à pluma: a aprendizagem dos números árabes, das técnicas operacionais que são aprendidas com muita precisão, de maneira a compreender bem as regras de numeração. O rigor, a ordem da iniciativa são absolutamente necessários para a realização das diferentes operações, com os livres, sous e deniers, como na multiplicação (p. 52). Quanto às divisões, L’école chrétienne de

37 Moedas do Antigo Regime francês. Nota do tradutor.

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Jacques de Batencourt dá apenas explicações sucintas: as regras de divisão podiam, certamente, ser aprendidas na escola, mas, sobretudo, nas salas dos mestres escritores ou nas escolas de matemática que prolongavam para alguns alunos o curso das pequenas escolas.

Conclusão

O modelo de escola que constroem os clérigos durante o reinado pessoal de Luis XIV aparece como uma ferramenta para pôr em ordem uma sociedade agitada pela violência e pela miséria. Essa escola privilegia a ordem moral, a aquisição das regras, dos gestos, da ordem em geral. Ela se interessa pelas aprendizagens que permitem a integração na sociedade, a entrada na corrente de relações que a estruturam. É por esse lado que ela vai pouco a pouco se secularizar e se afastar da imagem de "igreja das crianças" que a impregnam fortemente no final do século clássico.

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Imagens

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Fonte das imagens

Instruction méthodique pour l'école paroissiale, dressée en faveur des petites écoles, divisée en quatre parties [...], Jacques de Batencour, Paris, P. Trichard, 1669.

Marcel Grandière - Professor universitário, colabora com as pesquisas do SHE - Service d'histoire de l'éducation de l'INRP (Paris) e da equipe de pesquisa l'IUFM des Pays-de-la-Loire. Pesquisa sobre a escola como dispositivo de regulação social, do século XVII ao XIX. Tem publicado, entre outras obras: L'Idéal pédagogique en France au dix-huitième siècle (Oxford, 1998) e La formation des maîtres en France. 1792-1914, INRP, 2006. E-mail: [email protected]

Sabina Ferreira Alexandre Luz - Aluna do sexto semestre do Curso de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista de Iniciação Científica CNPq/PUCRS (2006/1).

Maria Helena Camara Bastos - Doutora em Educação - História e Filosofia da Educação (USP); professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected]

Recebido em: 11/12/2006 Aceito em: 15/03/2007

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 51-77, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (BRASILEIRA): FORMAÇÃO DO CAMPO, TENDÊNCIAS E

VERTENTES INVESTIGATIVAS Carlos Monarcha

Resumo As reflexões apresentadas a seguir resultam de estudos que venho realizando sobre a constituição e institucionalização da história da educação como domínio de conhecimento disciplinar. Por meio desses estudos, procuro situar, analisar e interpretar o desenvolvimento da pesquisa e produção do conhecimento histórico em educação, no Brasil, a partir da década de 1930, e, dentre outros objetivos, esboçar a trajetória da formação do campo de conhecimento e ao mesmo tempo identificar e problematizar tendências e vertentes historiográficas. Para esta exposição organizei um roteiro de exposição em quatro momentos por mim considerados cruciais. No primeiro momento procuro acompanhar a trajetória dos estudos históricos em educação como demanda do Estado, aqui o período privilegiado remete aos anos 30 a 50; no segundo momento: o foco recai sobre o que denomino de "escola paulista" de estudos históricos em educação nos anos 50 a 70; o terceiro momento tem pano-de-fundo a criação e a expansão dos programas de pós-graduação em educação, no Brasil, a partir da década de 1970; e por fim, o quarto momento, o presente contemporâneo. Palavras-chave: História da Educação; Tendências e vertentes investigativas.

HISTORY OF THE EDUCATION (BRAZILIAN): FIELD ESTABLISHMENT, TENDENCIES AND RESEARCH

AREAS Abstract The following reflexive thoughts resulted from the studies I have been doing about how the History of Education has been constituted and institutionalized as a discipline. Through these studies I have tried to situate, analyze and understand the development of the research and the production of the historical knowledge in Education, in Brazil, since the 1930s. Among other aims, I tried to understand the way in which the field of knowledge was shaped and, at the same time, identify and question the historiography tendencies and directions. This paper was organized in four different moments, which I considered crucial. At first I tried to trace the way the studies about

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the History of the education were conducted as matters of state (from 1930s to 1950s); Secondly the focus was on the historical studies on education of the so called “escola paulista” (from 1950s to 1970s). The third moment has as its background the creation and development of the post-graduation programs in Education in Brazil since the 1970s; and finally, the moment we are living in. Keywords: History of the Education; Tendencies and Research Areas.

HISTORIA DE LA EDUCACIÓN (BRASILEÑA): FORMACIÓN DEL CAMPO, TENDENCIAS Y

VERTIENTES INVESTIGATIVAS. Resumen Las reflexiones que se presentan en ese texto resultan de estudios que he realizado sobre la constitución e institucionalización de la historia de la educación como dominio de conocimiento disciplinar. Por medio de esos estudios, busco ubicar, analizar e interpretar el desarrollo de la investigación y producción del conocimiento histórico en educación, en Brasil, a partir de la década de 1930, y, además de eso, esbozar el camino de formación del campo de conocimiento y, al mismo tiempo, identificar y poner en discusión tendencias y vertientes historiográficas. Para esta exposición organicé un guión en cuatro momentos por mí considerados cruciales. Primeramente, busco acompañar el camino de los estudios históricos en educación como demanda del Estado, aquí el periodo privilegiado se refiere a los años 30 a 50; el segundo momento: el foco recae sobre lo que llamo de “escuela paulista” de estudios históricos en educación en los años 50 hasta 70; el tercer momento tiene como escenario la creación y la expansión de los programas de posgrado en educación, en Brasil, a partir de la década de 1970; y por fin, el cuarto momento, el presente contemporáneo. Palabras-clave: Historia de la Educación; Tendencias y Vertentes Investigativas.

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De imediato, gostaria de formular duas cláusulas de reserva: (i) a organização da exposição em quatro momentos tem como propósito facilitar a expressão do meu ponto de vista, não possuindo, portanto, propósitos de rígida periodização ou faseologia; e (ii) as reflexões apresentadas têm caráter provisório e devem ser retomadas e adensadas em outras oportunidades, se for possível.

No Brasil, a prática de interpretar e reinterpretar o passado, visando a conferir um sentido a formação social, intensificou-se nos anos 30, aprofundando-se com isso a institucionalização dos "estudos brasileiros" e/ou "estudos sociais", conforme terminologia de época. Nos domínios universitários e organismos estatais recém-criados, iniciava-se o fenômeno polemicamente denominado de "fase científica" e/ou "era universitária" das ciências humanas e sociais, no Brasil, conforme formulações de Fernando de Azevedo e Manoel Bergström Lourenço Filho. Contudo, vale ressalvar que, para tais autores, os antecedentes desse processo de institucionalização remontavam às reformas de ensino concretizadas nos anos precedentes, quando, dentre outros, foram introduzidos nos currículos das escolas normais conteúdos de sociologia e psicologia aplicadas à educação.1 De fato, nos anos 30, o processo de institucionalização das ciências humanas e sociais ganhou maior visibilidade, ensejando a configuração de campos disciplinares e temáticas de investigação.

Sabemos que o interesse renovado pelos estudos brasileiros ocorreu num contexto de unificação política e cultural, desencadeado pela revolução outubrista e projetos de construção

1A respeito das formulações "fase científica" e/ou "era universitária", utilizadas como categorias de análise do crescente e contraditório processo de institucionalização do pensamento social, no Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos observa: "Compromisso diferente, todavia, e mais grave, é assumido por quem lê na periodização institucional uma periodização epistemológica, ou teórica". Cf. Santos (2002).

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do Estado-Nação. Nesse contexto, vicejaram interpretações globalizantes de natureza histórico-sociológica empenhadas sobremaneira na apreensão das grandes linhas evolutivas da formação social e da identidade nacional. Em suma: num contexto político e cultural simultaneamente modernizador e autoritário, no qual o Estado reforçava seu poder institucional e simbolizador, consolidou-se uma consciência historiográfica nacional.

Estudos históricos em educação

Hoje, é possível verificar que, entre os anos 30 a 50, presenciou-se um esforço relativamente denso e concentrado que objetivava conferir visibilidade e sentido à trajetória da educação brasileira na Colônia, Império e República. Nesses anos, foram instituídos conteúdos de história da educação geral e do Brasil nos currículos acadêmicos das escolas normais, institutos de educação e faculdades de filosofia. Data de então o aparecimento de manuais didáticos destinados a suster o ensino da matéria História da Educação, como, por exemplo, Noções de História da Educação, de Afrânio Peixoto, História da Educação: evolução do pensamento educacional, de Raul Briquet, Pequena história da educação, de Francisca Peeters e Maria Augusta de Cooman; e Lições de história da educação: rigorosamente de acordo com programa das escolas normais, de Teobaldo Miranda Santos.

Grosso modo, esses manuais apresentam uma configuração assemelhada, referindo-se à "evolução da educação" por períodos: educação na Antigüidade Clássica, na Idade Média cristã, Idade Moderna renascentista e Idade Contemporânea laica e científica, sendo que, nos períodos concernentes às idades Moderna e Contemporânea, o foco tende a recair nas construções dos Estados nacionais europeus e nos respectivos sistemas de educação, reservando-se para o "caso brasileiro" um apêndice ilustrativo, no qual se sobrelevavam os fatos que concerniam à

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"reconstrução educacional", ou seja, ao chamado "movimento da Escola Nova".

No que se refere especificamente à esfera da Educação, além das reorientações enfáticas do sistema de ensino, estruturou-se um sistema institucional de dimensões nacionais destinado à investigação e aos estudos em educação, cabendo papel de relevo ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), criado, em 1938, como órgão do Ministério da Educação e Saúde Pública, então sob o comando do controverso Gustavo Capanema.

Dirigido inicialmente por Lourenço Filho, o INEP, uma das instituições representativas do processo de modernização do Estado brasileiro, que então trazia para si novas funções de ação e gestão, empenhou-se também na organização de material bibliográfico, estatístico e legislativo, visando a auxiliar "o trabalho na obra comum da educação nacional" (Lourenço Filho, 1945).

No decreto-lei de criação do INEP, assinado por Getúlio Vargas e Gustavo Capanema, competia a esse órgão federal, entre outros objetivos: "Organizar documentação relativa à história e ao estudo atual das doutrinas e das técnicas pedagógicas, bem como das diferentes espécies de instituições educativas", propondo planos de "levantamento da bibliografia Pedagógica Brasileira, desde os tempos coloniais"; e de "sistematização da documentação pedagógica do país, nos seus diferentes aspectos de legislação, federal e estadual, movimento escolar e fatos dignos de aí figurarem como subsídios para a história da educação" (Lourenço Filho, 1964).

Durante as gestões de Lourenço Filho e Murilo Braga, os técnicos do INEP, tendo como referência o ano 1808 — data que assinalou o início do processo de centralização dos poderes administrativo, militar e político, em decorrência da transferência da Corte portuguesa para o Brasil — publicaram na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos a seção "Bibliografia pedagógica brasileira" e a série de boletins Subsídios para a história da educação brasileira, destinada à "coleta sistemática da documentação ocorrente" nas três esferas do poder público —

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federal, estadual e municipal — e definida pelos idealizadores como "ementário dos fatos e atos de maior relevo, na vida educacional do país".

É nesse momento que vem a público a célebre "Bibliografia pedagógica da América Latina" organizada por Ernesto Galarza e Lourenço Filho e publicada no Handbook of Latin American studies for 1938 (Cambridge: Massachusetts, 1938).

De par às iniciativas e realizações do INEP que pretendiam estabelecer bibliografias e eleger fontes históricas para o estudo da educação, concretizou-se o que Francisco Venancio Filho denominou de "obra ciclópica", de Primitivo Moacyr. Esta consistia basicamente de recopilações de legislação sobre instrução pública, nos períodos imperial e republicano, elaborada pelas autoridades provinciais e estaduais.

Com efeito, Primitivo Moacyr publicou seis títulos volumosos na prestigiosa série Brasiliana, então dirigida por Fernando de Azevedo: A instrução e o Império. Reformas do ensino: 1854-1888 (1938); A instrução e o Império. Subsídios para a história da educação no Brasil: 1854-1889 (1938); A instrução e as províncias. Subsídios para a história da educação no Brasil: 1835-1889. Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo (1939); A instrução e as províncias. Subsídios para a história da educação no Brasil: 1834-1889. Das Amazonas às Alagoas (1939); A instrução e as províncias. Subsídios para a história da educação no Brasil: 1834-1889. Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás (1940); e, por fim, A instrução pública no estado de São Paulo. Primeira década republicana: 1890-1893. 2 v. (1942).

Já incentivado por Lourenço Filho, Primitivo Moacyr elaborou, especificamente para o setor de documentação histórica do INEP, sete volumes contendo material recopilado sobre instrução pública no Brasil. E com o selo do Ministério da Educação e Saúde e Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, o autor publicou: A instrução e a República – A Reforma Benjamin

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Constant (1941); A instrução e a República – Código Fernando Lobo. (1941); A instrução e a República – Código Epitácio Pessoa. (1941); A instrução e a República – Reformas Rivádavia e Carlos Maximiliano (1942); A instrução e a República – Reforma João Luiz Alves-Rocha Vaz. (1944); A instrução e a República – Ensino Técnico Industrial: 1892-1928 (1941); A instrução e a República – Ensino agronômico. (1941).

É fato que, outrora, o sociólogo norte-americano Emilio Willems tenha elogiado a obra de Primitivo Moacyr, afirmando que ela "constitui valiosíssima fonte para investigações no terreno da Sociologia Educacional" (Willems, 1939). Igualmente se sabe que Lourenço Filho ressaltou que "o autor vem realizando um notável trabalho de sistematização dos documentos históricos da educação no Brasil". Entretanto, Roque Spencer Maciel de Barros, em A ilustração brasileira e a idéia de universidade (1959), introduziu uma série (pertinente) de cláusulas de reserva em relação ao conjunto da obra de Primitivo Moacyr, constatando paráfrases equivocadas, omissão da indicação das fontes, "de modo tal que não podemos sequer saber se omitiu, como faz mais de uma vez em relação a outros documentos, qualquer coisa do texto original" (Barros, 1959).

Mas, seja como for, podemos dizer que, ao longo dos anos 30 e início dos anos 40, uma conjugação de fatores — tais como a consolidação do Estado nacional, a voga ascendente dos estudos brasileiros, a estruturação e expansão da educação nacional e a centralidade do tema da educação nacional no imaginário político-social — favoreceram sobremaneira o surgimento uma consciência duplamente sociológica e histórica do passado cultural e educacional do país.

Certamente, um dos índices mais visíveis dessa consciência remete à obra monumental A cultura brasileira: Introdução ao estudo da cultura no Brasil (Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE, 1943), de Fernando de Azevedo, cujo parecer para publicação foi exarado curiosamente pelo padre inaciano

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Leonel Franca, outrora severo contraditor do chamado "movimento da Escola Nova".

Como sabemos, a obra volumosa constituiu o texto de abertura do primeiro censo demográfico e econômico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, retomando-se, assim, a iniciativa dos realizadores do censo demográfico e econômico de 1920, primeiro censo concretizado com metodologia confiável, cujo ensaio introdutório Evolução do povo brasileiro, foi elaborado por Oliveira Vianna.

No que diz respeito A cultura brasileira, trata-se de obra que, parafraseando François Furet, promoveu a "conciliação da idéia nacional com a idéia enciclopédica", isto é, conjugou o estudo da genealogia da nação e a cronologia do progresso técnico-científico e cultural.

Na terceira parte do livro — "A transmissão da cultura" —, tem-se uma abordagem específica da evolução da educação brasileira, mediante seleção de fatos do passado. Objetivava, pois, preparar aquilo que o autor pretendia anunciar como segmento áureo de uma linha de evolução ascendente e progressiva da educação ou ainda como cúpula da modernidade educacional brasileira: o "movimento de reconstrução educacional" do qual fora um dos protagonistas. Posteriormente, a parte terceira do livro foi editada separadamente, sob o título Transmissão da cultura, e utilizada como bibliografia de referência nas faculdades de filosofia.

Autor de uma das primeiras resenhas críticas de A cultura brasileira, Antonio Candido considerava: "As suas conclusões — este é felizmente um livro que conclui — brotam do rigoroso trabalho de pesquisa documental e bibliográfica, à qual o autor nos dá a impressão, na grande maioria das vezes, de se ter dirigido com espírito desprevenido de pré-noções diferentes" (Candido, 1944, p.57).

As iniciativas e realizações do INEP, concernentes aos estudos e pesquisas sobre bibliografia pedagógica e subsídios históricos, a "obra ciclópica" de Primitivo Moacyr e a "obra

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monumental" de Fernando de Azevedo explicitavam o empenho de pensar e explicar a nação em perspectiva estrutural e genética. Portanto, podemos dizer que essa produção intelectual destinava-se a promover uma espécie de fusão entre ciência do passado e ciência da nação: tratava-se de dotar a nação de uma genealogia e de um sentido, bem como de formar uma consciência nacional, não por imposição de moldes institucionais, mas por esforço da cultura.

Nessa conjuntura intelectual e política, movimentada pelo afã de registrar e dar a conhecer a bibliografia relacionada aos estudos brasileiros, insere-se também o célebre Manual bibliográfico de estudos brasileiros (Rio de Janeiro: Record, 1949), dirigido por Rubens Borba de Morais e William Berrien, o primeiro subdiretor dos Serviços Bibliotecários da ONU, o segundo professor da Universidade de Harvard.

O manual contém balanços introdutórios e bibliografia especializada sobre arte, direito, educação, etnologia, filologia, folclore, geografia, história do Brasil, literatura, música, sociologia e teatro, assinados por autores representativos do sistema intelectual: Alice Canabrava, Astrojildo Pereira, Caio Prado Junior, Donald Pierson, Gilberto Freire, Francisco de Assis Barbosa, Herbert Baldus, Manuel Bandeira, Mattoso Câmara Junior, José Honório Rodrigues, Mário de Andrade, Odilon Nogueira de Mattos, Pierre Monbeig, Sérgio Buarque de Holanda, Raul Briquet e Lourenço Filho.

A seção "Educação" encontrava-se organizada em dois tópicos: "(De 1500 a 1889) – Brasil Colônia – Brasil Reino", de autoria de Raul Briquet e "(De 1889 a 1941) – Brasil República", de autoria de Lourenço Filho.

Nos respectivos balanços introdutórios, Briquet e Lourenço Filho analisaram e explicaram o movimento geral relativo "à formação histórica do país", os percalços advindos da inexistência de uma "orientação nacional do ensino" e, por fim – e sobretudo – a progressiva construção da educação nacional, nos anos 30 e 40. Todavia, a despeito das iniciativas e realizações

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citadas anteriormente, o eminente historiador José Honório Rodrigues, no final dos anos 40, ajuizava de maneira inclemente que

A história da educação no Brasil ainda não foi escrita. Os estudos publicados sobre a evolução geral do ensino em seus vários graus carecem de pesquisa, desconhecem as fontes e repetem-se na compilação dos fatos sumariados. O levantamento bibliográfico já feito, não exaustivamente, pode servir como um roteiro inicial, para estudo mais sério. (RODRIGUES, 1949, p. 196)

Honório Rodrigues fundamentava seu juízo no argumento de que "os educadores ou publicistas que têm escrito a história da educação desconhecem os princípios da pesquisa histórica e se limitam a repetir os trabalhos anteriores". Noutras palavras, na visão do historiador, a produção do conhecimento histórico não havia atingido, ainda, a sua forma científica e propriamente universitária.

Por fim, convém lembrar que, um pouco mais tarde, isto é, já em pleno clima do nacional-desenvolvimentismo, quando se debatiam os impasses inerentes à modernização brasileira, aprofundou-se ainda mais o processo de institucionalização das ciências humanas e sociais, na vertente aplicada e intervencionista.

Fenômenos tais como a retomada da democracia, a aceleração da urbanização e a industrialização contribuíram para que o tema da educação nacional e de sua reforma se tornasse central, no pensamento social modernizador configurado por uma inteligência socialmente engajada e sumamente empenhada na apreensão dos mecanismos que acelerassem a transição da sociedade patrimonial para a ordem aberta e competitiva. É desse período, por exemplo, a criação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em 1956, e do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), em 1955.

Idealizado por Anísio Teixeira, então diretor do INEP, como "centro de pesquisa e de assessoria técnica", o CBPE

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integrava antropólogos, sociólogos e educadores, objetivando equacionar os problemas brasileiros de educação mediante articulação da perspectiva nacional com as singularidades regionais; para tanto, propôs-se integrar o planejamento educacional com a pesquisa social. Com o advento do CBPE e de seus congêneres regionais, localizados no Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul, explicitava-se novamente o desejo de intervir e reorientar os rumos da educação nacional.

Para esta discussão, que pretende traçar um esboço histórico da história da educação (brasileira) enquanto domínio disciplinar, é oportuno salientar que, dentre outras iniciativas, coube à Divisão de Documentação e Informação Pedagógica do CBPE viabilizar projetos editoriais destinados à divulgação de bibliografia pedagógica e fontes históricas, como, por exemplo, o volume intitulado "Bibliografia sumária da história da educação no Brasil" (1959). O órgão igualmente idealizou a série "Levantamentos bibliográficos", de que infelizmente publicou apenas o volume Fontes para o estudo da educação no Brasil — Bahia (CBPE, 1959), de Luís Henrique Dias Tavares; contudo, editou anualmente a série Bibliografia brasileira de educação, única bibliografia nacional do campo das ciências humanas e sociais, de tipo analítico e de circulação sistemática. Por fim e sobretudo, ao encerrar este tópico, é preciso observar que essa fase fecunda da progressiva institucionalização dos estudos históricos em educação e de construção de fontes encontrava-se em contigüidade com as mutações da esfera da cultura política.

Sobre a "escola paulista" de história da educação

No caso do estado de São Paulo, desde a criação da Escola Livre de Sociologia e Política, em 1932, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1934, as ciências humanas e sociais cristalizaram-se, desde o

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ponto de vista institucional e universitário, colocando em cena profissionais com formação acadêmica dotada de graus de excelência.

Conquanto Fernando de Azevedo, na condição de titular da cátedra de Sociologia da FFCL-USP e autor de Princípios de sociologia (1935) e Sociologia educacional (1940), estimulasse a pesquisa em educação segundo as exigências do espírito sociológico, a produção desse tipo de pesquisa ocorreu de modo incisivo, entre os anos 50 e 60, tendo como pano de fundo as questões relativas ao processo de modernização urbano-industrial e a Campanha de Defesa da Escola Pública, a qual culminou com a edição do "Manifesto dos educadores. Mais uma vez convocados" (1959), redigido por Fernando de Azevedo e assinado por 189 pessoas — acadêmicos, professores, cientistas e escritores, educadores — contrárias ao substitutivo apresentado pelo deputado Carlos Lacerda ao projeto de Diretrizes e Bases da Educação, então em fase de tramitação no Congresso Nacional. Noutras palavras, tal produção acadêmica se concretizava numa conjuntura intelectual marcada pela afirmação da pesquisa em moldes acadêmicos rigorosos e pela campanha de "reconstrução educacional", movimentada não só pelos debates sobre a LDBEN, mas também pela constatação dramática da degradação dos sistemas públicos de ensino e permanência dos índices históricos de analfabetismo da população, então, em torno de 50%.

Sabemos que, nessas décadas, a Sociologia havia se tornado a disciplina científica por excelência, originando a "escola paulista de sociologia", com Florestan Fernandes, regente da cadeira de Sociologia I da FFCL-USP, tanto à frente do esforço de autonomização da sociologia científica, fundada no método empírico-indutivo, quanto igualmente envolvido na defesa da escola pública e de reformas estruturais na sociedade nacional.

Pertence a esse momento tenso e conflitante de posições político-ideológicas o aparecimento dos volumes coletâneos Diretrizes e Bases da Educação (São Paulo: Pioneira, 1960), organizado por Roque Spencer Maciel de Barros, o qual contava

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com um extenso rol de autores colaboradores — Almeida Jr; Carlos Mascaro, Fernando de Azevedo, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, João Villalobos, Laerte Ramos de Carvalho, Maria José G. Werebe, Moysés Brejon, entre outros; e Educação e sociedade no Brasil (São Paulo: Dominus, 1966) de Florestan Fernandes, publicação composta pela reunião de artigos de intervenção. Certamente, esses dois volumes constituem excelentes índices para a compreensão do clima de opinião (acadêmica e paulista) sobre defesa da escola oficial e a necessidade de reformar as políticas públicas em prol de algo maior, a saber, a "reconstrução educacional", que tinha como escopo sincronizar desenvolvimento nacional, democracia, melhora de condições de vida e expansão da educação popular.

No contexto acadêmico, concebia-se a "sociologia educacional", assim se dizia, não como uma das ciências da educação, mas sim como área da Sociologia enquanto domínio disciplinar matricial. Para melhor exemplificar essa discussão, convém dar voz às petições de princípios de dois intelectuais atuantes à época.

Na comunicação científica "O papel do estudo sociológico da escola na sociologia educacional", apresentada no I Congresso Brasileiro de Sociologia, Antonio Candido ponderava:

Notemos que a sociologia da educação pouco existe como teoria e quase nada como pesquisa. No campo teórico avultam relativamente poucos esforços, como os de Waller e Fischer, que veremos em separado, ou de Fernando de Azevedo; no mais a argumentação vai escorregando francamente para a Filosofia ou a Teoria da Educação. As pesquisas são em número limitado e de qualidade duvidosa. E as mais das vezes escapam igualmente à sociologia rumo às sondagens e levantamentos administrativos, de um lado, às investigações psicológicas, de outro. Assim a sociologia da educação tem-se apresentado sobretudo como matéria de ensino — e a maioria absoluta da produção, no gênero, compunha-se até há bem pouco, e no Brasil ainda se

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compõe, de compêndios, manuais e tratados. (CANDIDO 1955, p.119)

Ou, como considerava Luiz Pereira, no livro A escola numa área metropolitana, sub-intitulado "monografia sociológica sobre o funcionamento interno e as relações da escola primária com o meio social local". Dizia ele: "Considerar a sociologia da educação como mais uma sociologia especial representaria colaborar para a manutenção do estado de pequena ou frouxa integração do conhecimento sociológico do campo educacional na sociologia em geral" (PEREIRA, 1960, p.141). E concluía seu pensamento, afirmando uma necessidade premente: "Passar decididamente da era dos manuais para a da investigação da realidade", para assim formular diagnósticos objetivos.

Com efeito, a essa época, a matéria Sociologia da Educação, ensinada em escolas normais, institutos de educação e faculdades de filosofia, sobrevivia graças ao auxílio de manuais, então bastantes populares, como, por exemplo, Sociologia educacional e Lições de sociologia educacional, de Aquiles Archêro Junior; Sociologia educacional: introdução ao estudo dos fenômenos educacionais e de suas relações com os outros fenômenos sociais e Sociologia aplicada: para as escolas de professores dos Institutos de Educação e Faculdades de Educação, Ciências e Letras, de Delgado de Carvalho; Noções de sociologia educacional: de acordo com os programas das faculdades de filosofia, e dos institutos de educação, de Teobaldo Miranda Santos; Sociologia educacional, de David Snedden.

É desse período, em que se outorgava à Sociologia o poder (e a virtude) de descrever e explicar cientifica e objetivamente a realidade social, a emergência de uma produção intelectual vinculada ou não à obtenção de títulos acadêmicos, e difundida no formato de publicações internas da FFCL-USP, artigos em periódicos, comunicações cientificas e volumes coletâneos. Sem ter a pretensão de esgotar a enumeração da produção acadêmica engendrada no clima intelectual da cadeira de

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Sociologia I, — produção que, de certa maneira, constituiu a identidade disciplinar da sociologia educacional como área da Sociologia Geral — é importante relembrar alguns títulos que garantiram um lugar expressivo nos debates intelectuais da época, no que dizia respeito ao status e às finalidades dos estudos sociológicos em educação.

Dentre outros, cabe ressalvar: "Contribuição ao estudo de problemas do ensino rural", de Antonio Candido e José Querino Ribeiro, tese originariamente apresentada no IV Congresso Normalista de Educação Rural, realizado em São Carlos,SP, em outubro de 1951 (cf. Pequenos estudos sobre grandes problemas educacionais (alguns aspectos do ponto de vista da administração escolar). São Paulo: 1952);; A estrutura da escola: contribuição sociológica dos Cursos especializados de administração escolar (Caderno n.5, São Paulo: FFFCL –USP, 1953) e "As diferenças entre o campo e a cidade e o seu significado para a educação" (Pesquisa e Planejamento, São Paulo, 1957, p.51-65), ambos de Antonio Candido; Ensaio de uma teoria da administração escolar, de José Querino Ribeiro (1952); "Educação e planejamento: aspectos da contribuição de Karl Mannheim para análise sociológica da educação (Boletim n.252, FFCL-USP, 1960) de Marialice Foracchi; Educação e sociedade: leituras de sociologia da educação (São Paulo: Nacional, 1964), antologia de escopo didático organizada por Marialice Foracchi e Luiz Pereira.

Boa parte desses títulos exibe uma armadura conceitual rígida, pois, antes de tudo, tratava-se de firmar o quadro conceitual próprio da nascente sociologia acadêmica, centrada preferencialmente no estudo sociológico da escola e da cultura que lhe era própria. Já no transcurso da década de 70, a pesquisa sociológica em educação evoluiria mais abertamente para o estudo das políticas públicas.

Simultaneamente ao quadro anteriormente descrito, ocorria a retomada dos estudos históricos em educação, com a participação de sujeitos do discurso acadêmico que, então,

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adentravam na cena universitária, portando valiosos títulos obtidos na FFCL-USP e conquistando postos na hierarquia acadêmica, como foi o caso de Laerte Ramos de Carvalho, catedrático de História e Filosofia da Educação, e Roque Spencer Maciel de Barros, Livre-docente na cadeira de História e Filosofia da Educação e Assistente-docente da mesma cadeira.

No clima de comemorações do IV Centenário da cidade São Paulo, em 1954, efeméride que estimulou o aparecimento de interpretações do processo de formação de São Paulo, em perspectiva histórico-cultural, tais como, História e tradições de São Paulo, de Ernani Silva Bruno, e De comunidade a metrópole: biografia de São Paulo, de Richard Morse, Ramos de Carvalho concluía, no texto intitulado "O ensino em S. Paulo" publicado em Ensaios paulistas (1956):

Não é fácil escrever a história do ensino em São Paulo, desde o estabelecimento dos jesuítas aos dias atuais, pois, apesar da boa vontade de alguns estudiosos, estamos muito longe de dispor dos elementos indispensáveis a um trabalho de síntese. Não há legítima história sem sério e criterioso levantamento de dados de toda ordem e, infelizmente, no caso do ensino paulista, quase nada a esse respeito existe.(CARVALHO, 1956, p. 56)

Por ora basta dizer que, mediante a adoção de modelos teórico-explicativos e métodos críticos, professores pesquisadores vinculados, ou ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, ou à FFCL, mais especificamente à Seção de Pedagogia, ou, ainda, aos recém-criados institutos isolados de ensino superior, localizados no interior do estado, passaram a se dedicar à produção do conhecimento histórico em educação com a finalidade de, entre outras, avaliar (e intervir) nas políticas educacionais da época; ou seja, a retomada dos estudos históricos estava em correspondência com as reformas de ensino, no Brasil, e a elaboração de políticas públicas alternativas.

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É quando o CRPE — dirigido, sucessivamente, por Fernando de Azevedo, Laerte Ramos de Carvalho, Querino Ribeiro, Carlos Corrêa Mascaro, José Mário Pires Azanha — e a Seção de Pedagogia tornaram-se centros de convergência e irradiação da pesquisa educacional comprometidos de certo modo com o planejamento educacional e as reformas de ensino nos níveis estadual e federal, então em andamento.

Por conseguinte, nos anos 60, ladeado por Casemiro dos Reis Filho, Heládio César Gonçalves Antunha, Jorge Nagle, Maria de Lourdes Mariotto Haidar, Rivadavia Marques Júnior e alunos da Seção de Pedagogia, Ramos de Carvalho converteu-se em figura central na empresa intelectual que resultou na retomada dos estudos históricos, em moldes tipicamente científicos e universitários. Com efeito, Ramos de Carvalho empenhou-se na teoria e na prática historiográfica, com o objetivo de organizar e concretizar uma "ampla pesquisa sobre a educação nacional, de 1930 a nossos dias", conforme assinalava Maciel de Barros.

Um dos resultados dessa retomada diz respeito à elaboração de um extenso levantamento de "fontes primordiais", assim se dizia, intitulado "Bibliografia referente à História da Educação Brasileira de 1925/1935 existente nas bibliotecas de S. Paulo (Capital)", texto datilografado inédito, datado de 1961. Formou-se assim um valioso e inédito corpus documental, que viria a suster a produção do conhecimento histórico em educação nas décadas seguintes. Gradativamente, esse corpus foi ampliado por diversos professores dos institutos isolados, mediante localização, reunião e classificação de fontes documentais, organizando-as em índices remissivos, inventários, listas e repertórios, publicados em anais, revistas acadêmicas, boletins e livros ou, ainda, anexados a dissertações e teses.

De uma parte, a iniciativa de Ramos de Carvalho e colaboradores consistiu, de um lado, em diferenciar de outros campos científicos os estudos históricos em educação, compreendidos como domínio disciplinar dotado de método crítico próprio, fundado na objetividade científica e em reconstruções

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exaustivas, mediante enquadramento monográfico erudito, baseado em documentação copiosa, para retirar sua substância de fontes primárias; de outro, procurou determinar a relevância social dos estudos históricos em educação, mediante justificativa de "aprender com o passado" (para poder intervir no presente), segundo suas palavras, proferidas no célebre I Seminário de Internacional de Estudos Brasileiros, realizado em São Paulo, em 1971, evento científico-acadêmico que suscitou balanço crítico da situação das ciências sociais e humanas, conforme se vê nos anais do referido evento. Em suma: esse esforço de objetividade, levado a efeito por diferentes sujeitos, objetivava conferir legitimidade intelectual e relevância social aos estudos históricos em educação, com recurso à construção de objetos, métodos e lugar específico entre as humanidades.

Configurava-se, dessa forma, a escola historiográfica paulista, cujas características podem assim ser sumariadas: documento como sinônimo de fato histórico, enquadramento monográfico, narração descritiva e aparelho de notas copioso como prova e demonstração, uma vez que tal escola ambicionava restituir integralmente o passado. Configurava-se, portanto, uma espécie de "história historicista", cujas sínteses históricas se constituíram em referência permanente.

Sob o influxo da produção acadêmica elaborada por professores empenhados também na obtenção de títulos acadêmicos, os estudos históricos em educação passaram a ser concebidos como ciência destinada a interpretar o sentido geral da evolução da educação, no Brasil, como podemos observar em Educação e sociedade na Primeira República, de Jorge Nagle, A Reforma de 1920, de Heládio César Antunha, O ensino secundário no império brasileiro, de Maria de Lourdes Mariotto Haidar, A educação e a ilusão liberal, de Casemiro dos Reis Filho, O ensino normal no estado de São Paulo no período da Primeira República, de Leonor Maria Tanuri. Pouco a pouco, foram sendo conjugadas práticas antes separadas: o magistério da disciplina e a produção de

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conhecimento, isto é, a teoria e a prática da história da educação tornaram-se atividade profissional e universitária.

Clivagens historiográficas e reorientações heurísticas: grandes visagens históricas (e finalistas) & pequenos (e inéditos) objetos

Nas últimas três décadas, os estudos históricos em educação foram beneficiados com a institucionalização, seguida de consolidação e expansão, dos programas de pós-graduação em Educação. Em conseqüência, inserta numa estrutura acadêmica de ensino e pesquisa, a história da educação (brasileira) paulatinamente se consolidou como disciplina acadêmica, nos currículos de cursos de graduação e pós-graduação, emancipando-se gradativamente de outros domínios disciplinares conexos, a saber: a História da Educação Geral, da qual constava como apêndice, da Filosofia da Educação, com a qual tendia a confundir-se como história das idéias sobre educação, e, por vezes, da Sociologia da Educação. Paralelamente aos programas de pós-graduação em Educação, criaram-se instâncias reguladoras da produção do conhecimento histórico em educação, originando uma discussão em âmbito nacional relativamente à produção do conhecimento histórico.

Desse modo, a paisagem intelectual, delineada pela matriz historiográfica herdada das décadas anteriores, passou por sucessivas clivagens, das quais decorreu a adoção de outros modelos teórico-explicativos e métodos críticos, reorientando-se enfaticamente os rumos da teoria e prática da história da educação. Essas clivagens partilham de desígnios comuns: romper com teorias e práticas historiográficas antecedentes e contemporâneas consideradas ultrapassadas, a fim de promover ampliações originais do campo de estudos. De certo modo, essas tendências e vertentes foram beneficiadas pelas intensas revisões

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e/ou reorientações da historiografia, processadas pela crítica universitária.

Num olhar de sobrevôo, é possível dizer que uma primeira clivagem na paisagem intelectual seguida de reorientações enfáticas explicitou a vontade de diferentes sujeitos dos discursos acadêmicos de produzir um outro tipo de conhecimento histórico em educação, visando à apreensão totalizadora do fenômeno educativo, por meio da apreensão dialética da interconexão entre educação e estruturas sociais e econômicas. Para tanto, elegeram-se outros modelos teórico-explicativos e métodos críticos derivados, por exemplo, ou dos marxismos — acadêmicos ou não (Marx, Gramsci, Althusser, Establet, Shaff, Enguita) —, ou da sociologia (Bourdieu, Passeron), ou do estruturalismo (Foucault), ou, ainda, da teoria crítica (Adorno, Benjamin, Horkheimer, Habermas), por exemplo. Foi-se dando, assim, lugar a uma problemática que colocou como questões centrais as relações entre educação, base material da sociedade de classes, atividade ideológica, relações de produção, exercício de poder, reprodução ideológica, crítica ideológica, crítica da cultura, revisão da periodização e assim por diante.

Denotando forte empenho político, essa clivagem, cujas primeiras manifestações remontam aos anos 70, década de reorientações enfáticas, no ensino, concretizadas por políticas educacionais que defluiam do regime autoritário em vigência, incorporou nos domínios dos estudos históricos, em educação, as perspectivas analíticas concernentes ao tema da luta de classes e da crítica ideológica. Isso se deu de maneira mais consistente, no momento em que mudanças na grande política conduziam à retomada da vida democrática e à expansão das oportunidades de escolarização, no Brasil. Naquele momento, foram reativadas as energias utópicas e promessas de um futuro melhor, de sorte que se relevou, novamente, a Educação como uma das grandes questões da política nacional, tendo sido necessário rever o modo de pensá-la, com vistas a mudanças sociais e políticas sentidas como justas e necessárias.

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Por conseguinte, diferentes sujeitos alteraram os percursos da prática acadêmica, nos estudos históricos em educação (e na pesquisa educacional como um todo), e passaram a operar com determinadas filosofias da História, de modo a sustentar a prática historiográfica (por vezes, em detrimento da pesquisa documental sistemática), de sorte que diferentes sujeitos do discurso acadêmico articularam a análise retrospectiva à prospecção histórica, para, assim, poderem validar teórica e politicamente mudanças socialmente desejadas.

Temas de pesquisas, tais como organização escolar, doutrinas pedagógicas, instituições de ensino, políticas educacionais, Estado e educação, educação e sociedade, formulados nas décadas antecedentes à instalação dos programas de pós-graduação, permaneceram legitimados e vigentes. Todavia, houve, então, uma interpenetração desses temas com análises políticas, face às urgências sociais colocadas pela retomada da democracia, no país.

Uma análise preliminar da cultura histórica subjacente a essa clivagem possibilita a identificação de um conjunto representativo de autores e textos também preocupados em fixar o sentido da educação nacional, mediante concessão de privilégio à cronologia de fatos históricos considerados irrefutáveis e comprovadores daquele movimento teleológico anteriormente detectado e que possibilitou o advento de uma educação progressivamente laicizada, científica, moderna e nacional, contudo não universalizada.

Na abordagem dos fatos da educação, ocorreu uma certa aproximação com a cultura política, elegendo-se a esfera da política como matéria preferida, pois, por meio dela, entendia-se que se concretizariam as possibilidades de mudanças, devendo-se, portanto, atentar para as transformações em curso. Noutras palavras, tratava-se de configurar uma "história como ciência da transformação", digamos assim, reafirmando-se, tal como acontecera nas décadas anteriores, a pertinência acadêmica e a relevância social da pesquisa em educação. De um modo ou de

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outro, havia na produção historiográfica um diálogo crítico com a conjuntura política e intelectual que lhe era presente.

Mas, é bem verdade que ainda vigia em certos nichos acadêmicos a oposição entre discurso ideológico e discurso científico, aquele lacunar, este pleno e cuja objetividade permitiria a ansiada determinação completa do objeto, muito embora já se debatesse com mais clareza a história da educação como representação ou conhecimento produzido e se decidisse pela retomada do contato estreito com a loquacidade das fontes históricas e se defendesse o direito à subjetividade, isto é, à interpretação.

Uma outra clivagem na paisagem intelectual concretizada na década de 1990, seguida também de reorientação enfática nos estudos históricos em educação, explicitou novamente o desejo de diferentes sujeitos, dos discursos acadêmicos, de produzir um outro tipo de conhecimento histórico em educação. Nessa empreitada, foram adotados outros modelos teórico-explicativos e métodos críticos, dessa feita, derivados da Nova História (Le Goff, Nora, De Certeau) e da (Nova) História Cultural (Chartier), seguidos de uma ampliação do estoque de objetos de investigação e temas de estudos, mediante incorporação de teorizações de autores que analisam a educação em perspectiva histórica (Nóvoa, Vinão-Frago, Narodowski, Julia) e sociológica (Petitat, Apple, Hérbrard, Forquin, Chervel, Scott, Vincent), objetivando esclarecer os nexos internos e dinâmicos dos processos internos à esfera escolar e seus derivativos. E, ainda que com certa perda de empenho político e certa dispersão, no campo da pesquisa científica, essa segunda clivagem expandiu o âmbito do campo de conhecimento, tornando-o mais sensível a outras problemáticas e interpelações, assim como demandando a construção de outras fontes documentais e de outros métodos, para analisá-las e interpretá-las.

Gradativamente, num contexto acadêmico caracterizado pelo intercâmbio e internacionalização da pesquisa e impacto constante de novidades temáticas e metodológicas, fundamentadas

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no pressuposto gnosiológico de que "tudo é objeto histórico", foram acolhidos e legitimados, nos estudos históricos em educação, outros temas e objetos de conhecimento, como, por exemplo: gênero, infância, identidades, tempo, disciplinas e formas escolares, modos de ler, métodos de ensino, profissão docente, instituições escolares, periodismo pedagógico e, sobretudo, cultura escolar; temas e objetos hoje amplamente trivializados, no sistema intelectual acadêmico.

Com efeito, as filiações de diferentes sujeitos do discurso acadêmico a outros modelos e métodos, articuladamente à expansão da construção de temas e objetos, visam a identificar, descrever, explicar e interpretar a educação em perspectiva microscópica, no momento histórico que coincide duplamente com a crise da identidade moderna do sistema escolar brasileiro e com a chamada "crise de paradigmas" (isto é, o aparente esgotamento das grandes visagens histórias) de investigação e conhecimento científicos (isto é, estruturalismo, funcionalismo e marxismo). Todavia, nessa segunda clivagem, observa-se uma prática acadêmica preocupante, qual seja, a tendência de colocar à prova determinados modelos teórico-conceituais, em detrimento do escrutínio da heurística documental. Noutras palavras, cede-se à velha e conhecida tentação, característica das ciências humanas e sociais, de conformar e validar a análise e interpretação da aplicação de grades de conceitos e categorias.

Breve balanço: o presente contemporâneo

De uma parte, ao longo do tempo, diferentes sujeitos dos discursos acadêmicos, empenhados na elevação do padrão acadêmico-científico dos estudos educacionais, contribuíram decisivamente para os seguintes aspectos: (i) autonomização dos estudos históricos em educação enquanto domínio disciplinar; (ii) configuração de tendências e vertentes historiográficas; (iii) prolífica expansão desses estudos, possibilitando discernir com

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mais clareza entre as concretizações de processos educativos e os discursos sobre educação; (iv) advento da teoria e prática historiográfica, envolvendo debates de ordem epistemológica, ontológica e metodológica, ao colocarem em circulação uma profusão de estudos teóricos de larga repercussão, no decorrer dos debates (e dissensos) acadêmicos; (v) alteração na concepção de fontes históricas e no uso do documento, portanto, crítica à noção de fato histórico como dado objetivo; (vi) compreensão mais clara da escrita da história como prática social circunstanciada; (vii) crítica à ideação clássica referente às relações entre infra-estrutura e superestrutura, ou seja, negação da anterioridade e/ou determinação das estruturas econômicas e sociais sobre a produção espiritual.

De outra parte, contemporaneamente, a produção do conhecimento histórico em educação (assim como nas demais ciências humanas e sociais) encontra-se ainda sobressaltada pela crise dos –ismos e pelas vagas sucessivas de modelos teórico-explicativos e métodos críticos, provocando desaparecimento e surgimento de temas e objetos de investigação, pelo aparente esgotamento de esquemas analíticos legitimados.

Contudo, podemos dizer que, neste momento, estamos diante de um certo paradoxo, a saber: em conseqüência do descarte da noção de totalidade (que obviamente não deve ser confundida com abordagem macrossocial), boa parte da expansão dos estudos históricos vem se processando graças à retração tendente a reduzi-los ao estudo da escola e fenômenos derivativos. Todavia, não é desejável e oportuno reduzir tais estudos à esfera escolar fechada sobre si mesma.

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Carlos Monarcha - Professor Adjunto (Livre-Docente) na Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista/campus de Araraquara.

Recebido em: 15/12/2006 Aceito em: 15/03/2007

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 79-105, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

O ENSINO E A PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA CADEIRA DE

FILOSOFIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (1933-1962)1

Bruno Bontempi Júnior

Resumo Este artigo apresenta a trajetória da cadeira de Filosofia e História da Educação, desde a sua constituição em 1933 até 1962, quando, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, o professor Laerte Ramos de Carvalho deu início às primeiras pesquisas acadêmicas em história da educação. Explora fatores "internos" e "externos" da história das disciplinas, tais como os perfis institucionais, as prescrições curriculares, as disputas ocorridas no mundo acadêmico e as relações entre as "disciplinas vizinhas", a fim de tecer uma rede de personagens e acontecimentos que confira à disciplina a sua "identidade histórica". Palavras-chave: história das disciplinas, Filosofia e História da Educação, Roldão Lopes de Barros, Laerte Ramos de Carvalho.

THE TEACHING AND THE RESEARCH ON THE HISTORY OF THE BRAZILIAN EDUCATION IN THE

SUBJECTS OF PHILOSOPHY AND HISTORY OF EDUACTION (1933-1962)

Abstract This article presents the trajectory of the Cathedra of Philosophy and History of Education, since its constitution in 1933, until 1962, when, at the College of Philosophy, Sciences and Literature of the University of São Paulo, the professor Laerte Ramos de Carvalho commenced the very first academic researches on history of education. The article explores both "internal" and "external" factors in the history of disciplines, such as institutional profiles, prescriptions of the curriculum, struggles occurred in the academic world, and relationships between "neighbouring disciplines", in order to weave a net, made by characters and facts, that gives to the discipline its "historical identity".

1 Meus agradecimentos a Kazumi Munakata pela leitura crítica e sugestões feitas à primeira versão deste artigo.

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Keywords: history of disciplines, Philosophy and History of Education, Roldão Lopes de Barros, Laerte Ramos de Carvalho. LA ENSEÑANZA Y LA INVESTIGACIÓN EN HISTORIA DE LA EDUCACIÓN BRASILEÑA EN LA CÁTEDRA DE FILOSOFÍA Y HISTORIA DE LA EDUCACIÓN (1933-

1962) Resumen Este artículo presenta el camino de la cátedra de Filosofía y Historia de la Educación, desde su constituición en 1933 hasta 1962, cuando, en la Facultad de Filosofía, Ciencias y Letras de la Universidad de São Paulo, el profesor Laerte Ramos de Carvalho dió início a las primeras investigaciones académicas en historia de la educación. Explora factores “internos” y “externos” de la historia de las disciplinas, tales como los perfiles institucionales, las prescriciones curriculares, las disputas ocurridas en el mundo académico y las relaciones entre las “disciplinas vecinas”, a fin de tejer una rede de personajes y sucesos que confira a la disciplina su “identidad histórica”. Palabras-clave: historia de las disciplinas, Filosofía y Historia de la Educación Roldão Lopes de Barros, Laerte Ramos de Carvalho.

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De acordo com Lepenies (1983), o passado da filosofia difere do passado das ciências especializadas por permanecer vivo, mantendo-se capaz de engendrar infinitas polêmicas. Um filósofo pode discordar de Descartes, Leibniz ou Hegel, mas não pode jamais repudiá-los como ultrapassados, como o fazem eventualmente o químico ou o físico, por exemplo, com seus predecessores. Deriva dessa peculiaridade um problema para as histórias da filosofia, conquanto do mesmo presentismo que nutre a pujança filosófica resultam, na maior parte das tentativas de historiar o passado, narrativas que são puras classificações, simples cronologias ou meras oportunidades para criticarem-se dogmas e doutrinas. De acordo com o autor, é também inerente às tradicionais histórias da filosofia o tratamento de cada modalidade do conhecimento como um todo unificado e auto-suficiente, tal como um edifício isolado e independente que, embora situado na cidade, pode ser dela abstraído para uma boa compreensão de sua economia interna (cf. 1983, p.37-39).

Pode-se dizer que a História das Ciências tenha reforçado o "internalismo" que recebeu como legado das histórias da filosofia ao despedaçar-se em uma miríade de histórias das ciências, que em suas narrativas passaram a "criar-se por si próprias, a si próprias, como se existissem independentemente e se desenvolvessem em sistema fechado" (cf. Serres, 1974, p. 161). Em adição, a noção de que a história da ciência eqüivaleria a um processo gradativo pelo qual fatos, teorias e métodos foram sendo adicionados ao estoque de conhecimentos presentemente reunidos, restringiu o trabalho dos historiadores a duas tarefas principais: determinar quando e por quem cada fato, teoria ou lei científica contemporânea foi descoberta ou inventada; descrever e explicar "os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno texto científico" (cf. Kuhn, 2001, p. 20).

Assim, premidos pela obsessiva busca de objetividade por parte de seus praticantes e consumidores, os historiadores das ciências incumbiram-se de construir para elas um passado

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destituído das formas da pseudociência, moldando-as à maneira dos artigos científicos, ou seja, como narrativas ultra-racionais em que só se relata o que, a posteriori, parece útil, racional e científico (cf. Fourez, 1995, p. 167). "Desse ponto de vista – afirma Fourez – o ‘progresso’ avança sempre com uma lógica implacável, racionalizando os caminhos percorridos para se chegar onde se está", com o que são descartados a subjetividade do cientista, a interferência de fatores "externos", as descontinuidades, em outras palavras, os processos históricos que presidem ao que Chalmers (cf. 1994, p. 14) denomina "fabricação das ciências".

Tal como na imagem clássica de Charles Beard (apud Schaff, 1991, p. 65), lançados para fora pela porta principal, os fatores "externos" retornam à história das ciências pelos fundos. Considerando plausível a assertiva de que "a competição entre segmentos da comunidade científica é o único processo histórico que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de outra" (cf. Kuhn, 2001, p. 27), não pode haver dúvidas sobre a grande utilidade, para uma disciplina ou campo de estudos, de um discurso competente sobre a sua própria história, que faça o passado conduzir ao presente pela trilha racional do progresso do conhecimento.

Evidentemente, os historiadores das ciências cumprem um papel imprescindível nas lutas travadas no campo intelectual, uma vez que a eles cabe justamente a tarefa de produzir memórias e erigir tradições. As reconstruções do passado de uma disciplina ou ciência consagram-se freqüentemente à invenção e à atribuição de vínculos e legados a seus praticantes, por meio de resgates ou descartes de autores e obras que passam a ostentar nas narrativas significados pertinentes ao que se pretende definir como conteúdo ou método próprio ou alheio, com o fim de estabelecerem entre "sucessores" e "predecessores" desejáveis identidades históricas. Essa partilha resolve, a posteriori, as desarmonias e descontinuidades passadas, produzindo uma pacificada "memória" ou "tradição", e o faz apagando a história conflituosa das disputas por posições hierárquicas, reconhecimento dos pares ou

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hegemonização de um discurso objetivo sobre o mundo, erigindo em seu lugar um inimigo imaginário: a pseudociência, a metafísica ou a religião.

A história das ciências e das disciplinas atrelada seja à forma "presentista" e "epistemológica" da tradicional história da filosofia, com sua obstinação objetivista, seja ao "partidarismo" acadêmico travestido de história, em regra oculta os processos pelos quais o conhecimento se produz, é apropriado, difundido, reciclado ou abandonado por seus praticantes. Se a segunda forma persiste como "memória", resta, em favor do avanço do conhecimento sobre a área, inverter a razão que comanda a primeira modalidade, ou seja, subordinar as inquirições filosóficas aos resultados da investigação histórica. Para Warde (cf. 1998, p. 89), tal inversão teria pelo menos duas vantagens: a de alimentar novas pesquisas históricas, porque contribuiria para ampliar o grau de liberdade da História com relação à Filosofia e assim abrir um diálogo mais franco com outras disciplinas, e a de contribuir para alargar o horizonte de erudição dos pesquisadores.

Se, ao menos desde os ensaios de Kuhn (1962) aceita-se que toda pesquisa científica encontra-se estruturada por elementos sociais, ditos "externos", cabe ainda aos historiadores das ciências e disciplinas assumir a sua presença e valor, e então identificá-los, pesá-los, relacioná-los, a fim de produzirem um conhecimento cada vez mais completo e relacional sobre os processos "internos" e "externos" de que ela é composta. Para tal, é necessário partir de um interesse menos imediato, dito "de resgate", e realizar mais sistematicamente a crítica das fontes e a ampliação do corpus documental para a construção dos objetos. A tal história das disciplinas, privilegiar as séries de influência e as relações de continuidade que conformariam internamente os princípios e os caracteres diferenciais presentemente identificados é um procedimento menos relevante do que seria a busca por restaurar os dinâmicos e múltiplos "processos de domesticação e de peregrinação" que fazem da história de cada disciplina a história de uma rede de relações interdisciplinares, sejam elas de aliança,

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emulação, imitação ou desprezo com relação a suas contemporâneas (cf. Lepenies, 1983).

Se é verdade que as idéias e procedimentos que cada disciplina defende como seus em cada momento histórico remetem-se à base social e institucional em que puderam florescer e circular, entretanto, a hipertrofia do "contexto" de produção comumente faz com que se aprisione o movimento das idéias a uma cadeia infalível de determinações, ou que se encarcerem os praticantes das ciências em classes sociais portadoras de ideologias fechadas, ou ainda que se reduzam as ciências e disciplinas "aos jogos miúdos e mesquinhos dos departamentos e cátedras" (cf. Warde, 1997, p.313). Talvez seja possível construir o objeto da história das disciplinas mediante a articulação de elementos variados, tais como a análise interna de obras, a biografia de seus praticantes, a reconstrução dos programas e da organização das instituições acadêmicas, mas também as disputas em torno de fronteiras disciplinares, as hierarquias inerentes ao campo intelectual, as redes de sociabilidade e a memória dos que circularam pelas instituições de ensino e pesquisa, pela mídia e pelos partidos e agremiações.

Partindo das premissas até aqui expostas e fundamentado nos resultados das pesquisas realizadas para a elaboração de minha tese de doutoramento A cadeira de História e Filosofia da Educação da USP entre os anos 40 e 60: um estudo das relações entre a vida acadêmica e a grande imprensa (2001), este artigo procura apresentar a trajetória do ensino e da pesquisa em história da educação brasileira na cadeira de Filosofia e História da Educação, desde 1933, quando ela é instituída no Instituto de Educação, a 1962, véspera de sua "departamentalização" na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL). Embora não queira se impor como modelo de aplicação dos princípios já evocados, a narrativa que ora se apresenta contempla em parte algumas das possibilidades de "cruzamentos" entre os ditos fatores "internos" e "externos", tais como os perfis das instituições, as prescrições curriculares e

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programáticas, as disputas do mundo acadêmico, as relações de vizinhança entre as disciplinas, com os quais teceu-se uma rede de personagens e acontecimentos em vista da construção de um objeto plausível: a configuração da disciplina, entendida, afinal, como o produto histórico dessas interseções.

Primeiros tempos da Filosofia e História da Educação: disciplina subsidiária

Quando a Escola de Professores da Escola Normal da Capital foi incorporada ao Instituto de Educação "Caetano de Campos" (1933), a disciplina Filosofia e História da Educação passou a compor o quadro curricular do curso de formação profissional, ao lado de Biologia Educacional, Psicologia Educacional, Sociologia Educacional, Educação Comparada e Metodologia do Ensino Secundário (cf. Universidade de São Paulo, 1953a, p.14)2.

O status das disciplinas componentes do currículo do Instituto de Educação não era, entretanto, equivalente: enquanto a Sociologia, a Biologia e a Psicologia, consideradas "ciências matriciais" da Educação, eram destinadas à formação científica dos professores, a Filosofia e História da Educação, compósito de duas matérias que não eram propriamente denominadas de ciências, tinha a função auxiliar de ministrar-lhes a formação moral. Isto significa, de acordo com Warde (cf. 1998, p.91), que a História da Educação implantou-se como apêndice da Filosofia da Educação e que passou a ter, em função dos objetivos previamente traçados no ideário escolanovista, sua eficácia medida pelo que poderia oferecer de justificativas para o presente e de guia para a

2 As disciplinas ditas de "formação profissional" foram instituídas no currículo das escolas normais primeiramente nas reformas de Minas Gerais (1927), Distrito Federal (1928) e Pernambuco (1928), compondo o "ciclo profissional" de dois anos, subseqüente ao "propedêutico", de três (cf. Tanuri, 2000, p.70).

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construção do futuro, e não pelo que fosse capaz de explicar e interpretar dos processos históricos objetivos da educação.

A regência da cadeira de Filosofia e História da Educação coube ao normalista Roldão Lopes de Barros (1884-1951), que iniciara a sua longa trajetória no magistério em 1911, ao tomar posse da cadeira de Pedagogia e Educação Cívica na Escola Normal Primária. Quanto à formação e orientação teórica do lente pouco se sabe, a não ser que não tinha formação específica em História ou Filosofia e que freqüentou um dos cursos de Ugo Pizzoli no Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental (cuja tônica residia na contrafação da "pedagogia filosófica" pela "pedagogia científica"), tendo produzido uma monografia a respeito da memória, calcada nas formulações de Alfred Binet (cf. Monarcha, 1999, p.275-276).

Em que pese o presumível impacto dos cursos de Pizzoli no Gabinete, o fato é que nem todos os seus participantes quiseram ou tiveram oportunidade de praticar, como professores do ensino normal, o que nele aprenderam. De acordo com Tavares (cf. 1995, p.137-138), Lopes de Barros preferiu manter na cadeira de Pedagogia e Educação Cívica as diretrizes de antigos regentes Cyridião Buarque e Sampaio Dória, mais inclinados à filosofia do que propriamente à psicologia científica e às questões experimentais da disciplina. Segundo apurou Monarcha (cf. 1999, p.258), Lopes de Barros esmerou-se na "vulgarização dos temas fundamentais de determinadas escolas de psicologia", divulgando o pensamento de William James como "base doutrinária do método analítico para o ensino da leitura".

Se Lopes de Barros não se inclinava às experiências, também as restrições regimentais do Instituto de Educação trataram de afastá-lo da pesquisa. É que, quando da fundação da Universidade de São Paulo (1934), foram estipuladas nos regulamentos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) e do Instituto de Educação (IE) diferentes funções e responsabilidades para os seus respectivos catedráticos: enquanto que, para os da FFCL a pesquisa e produção do conhecimento

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ocupavam um lugar privilegiado, para os do IE a exigência maior era a de ministrar um "ensino eficiente" (cf. Evangelista, 1997). Mesmo com a reforma de 1937, que a seu modo procurou corrigir tal discrepância de funções e de status entre os professores das duas instituições vinculadas, coube a Lopes de Barros a regência de uma cadeira desobrigada de produzir conhecimento, mas encarregada apenas de sua transmissão: a cadeira IV, de Filosofia e História da Educação (cf. Evangelista, 1997). Somando-se a isto a verdadeira aversão de Lopes de Barros a ver suas idéias impressas (cf. Azevedo, 1961), tem-se uma boa explicação para o fato de não haver textos por ele assinados e datados dos anos em que esteve à testa da cadeira.

Segundo Evangelista (1997, p.162-163), o curso de Filosofia e História da Educação dado por Lopes de Barros dividia-se em duas partes: em História, o professor tratava da educação entre os gregos, romanos, medievos e renascentistas, abordava os filósofos da educação" Locke, Rousseau, Pestalozzi, Herbart, Fröebel, Spencer e Dewey, e encerrava com um aceno para a educação brasileira, apresentando o Manifesto dos pioneiros da escola nova, do qual ele próprio fora signatário. Em Filosofia da Educação, Lopes de Barros abordava os fins da educação, os graus de ensino e suas relações, a organização do currículo na escola secundária e os princípios para a orientação do professor.

Na cadeira IV a Filosofia, que ocupava dois anos do curso, prevalecia sobre a História (um ano), e mesmo no programa de História a ênfase recai sobre às idéias pedagógicas de autores "universais", tendo a história da educação brasileira um espaço insignificante, aparecendo como "apêndice" ao final do curso, a exemplo do que ocorria nos livros didáticos da época (Nunes, 1996). Vale observar que, muito embora Lopes de Barros sequer professasse religião (Azevedo, 1961), predominava como caráter geral do programa o que Nunes (1996) e Warde (1998) interpretaram como sendo um padrão "cristão", ou seja, uma narrativa contínua, que parte dos modelos de formação supostamente adotados pelas sociedades antigas e medievais para

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completar-se com os pensadores da educação das idades Moderna e Contemporânea (cf. Warde, 1998, p.92). Tal padrão, impresso desde cedo nas instituições de formação do magistério, deveu-se principalmente à origem da maioria de seus professores e à natureza da bibliografia por eles utilizada (cf. Warde e Carvalho, 2000):

Finalmente, quanto à inclusão do manifesto no programa de História, é preciso considerar que os programas examinados referem-se aos anos anteriores a 1938, em que o documento ainda era, para alunos e professores do curso normal, uma peça política viva. Sua inclusão no programa, portanto, não foi uma abertura de Lopes de Barros à história da educação brasileira, mas apenas o aproveitamento de uma ocasião para que o lente difundisse as idéias que subscrevera – ele que, há muito, militava nas lutas pela modernização e pela democratização da educação nacional. Um outro elemento reforça essa hipótese: de acordo com Milton da Silva Rodrigues, Roldão Lopes de Barros provava a qualidade de "idealista" em sua maneira de lecionar, pois em seus cursos procurara "muito mais influir sobre a mentalidade de seus alunos, do que simplesmente fornecer-lhes informações, fazendo sempre disso um instrumento para aquilo" (cf. Universidade de São Paulo, 1953b, p.167-168).

Roldão Lopes de Barros esteve vinculado à Sociedade de Educação, instituição que, fundada em 1922 por Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Renato Jardim, congregava membros do magistério paulista e profissionais representativos de diversas áreas de atuação e tinha como principais finalidades difundir idéias educacionais renovadoras e estabelecer relações com o Estado, a fim de interferir nas políticas educacionais. Como membro da Sociedade de Educação, que publicou, de agosto de 1923 a dezembro de 1924, a Revista da Sociedade de Educação, Lopes de Barros alinhou-se entre os que defendiam o método analítico de ensino da leitura, repudiavam os "receituários técnicos" oferecidos aos professores primários pela Revista Escolar (cf. Mortatti, 2000, p.181) e afirmavam-se adeptos da "pedagogia científica" e da idéia

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de promover, no ensino e nos impressos a ele destinado, elementos para uma formação cultural adensada e de escopo geral para o magistério.

Em 26 de julho de 1923, na quarta sessão ordinária da Sociedade de Educação, Lopes de Barros apresentou à entidade uma "proposta de se lembrar aos poderes públicos a possibilidade e as vantagens do arrendamento das terras pertencentes ao Estado, revertendo os lucros em benefício da instrução" (cf. Nery, 1999, p.33). No levante paulista de 1924 integrou a Polícia Municipal, em 1932 participou direta e ativamente da chamada Revolução Constitucionalista (cf. Universidade de São Paulo, 1953c, p.163-164) e, naquele mesmo ano, assinou o Manifesto dos pioneiros da educação nova, documento que, como foi visto, passou a incluir em seus programas de curso no Instituto de Educação.

A transferência da cadeira para a Faculdade de Filosofia

Em 1938, entendendo ser um dos principais objetivos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras preparar o magistério secundário, o Governo do Estado de São Paulo extinguiu o Instituto de Educação para atribuir a formação pedagógica em nível universitário à FFCL, criando assim a Seção de Educação, que funcionou até a reforma federal de 1940, transformando-se em seguida na Seção de Pedagogia. O mesmo Decreto 9.268-A, de 25 de junho de 1938, que regulamentou o fechamento do Instituto, determinou a transferência dos professores efetivos da Escola de Professores – e de seus assistentes – para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, fazendo com que esta passasse a contar, a partir do segundo semestre daquele ano, com os professores Antônio de Almeida Júnior (Biologia Educacional), Noemy da Silveira Rudolfer (Psicologia Educacional), Fernando de Azevedo (Sociologia Educacional), Milton da Silva Rodrigues (Estatística e Educação

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Comparada) e Roldão Lopes de Barros, de Filosofia e História da Educação (cadeira XLV).

O assistente de Lopes de Barros, José Querino Ribeiro (apud Bernardo, 1989), lembra que a recepção e os primeiros tempos dos professores e assistentes transferidos do Instituto de Educação para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo não foram momentos agradáveis3. As situações desconfortáveis vividas por alunos e professores ligados às novas cátedras e aos novos cursos da parte pedagógica indicam ter vigido uma espécie de "estatuto informal" ao incorporarem-se os novos cursos e cátedras no conjunto da FFCL. A reposição reiterada desse "estatuto" ajuda a explicar as vicissitudes que as cadeiras da Seção de Pedagogia viveram no período de sua permanência na FFCL.

Segundo Antunha (1974, p.112) o "provimento automático" das cadeiras da Seção de Educação afetava o regime de contratos então vigente na Faculdade de Filosofia, gerando inquietude e hostilidade da parte dos aspirantes, uma vez que, como catedráticos, os novos professores do Instituto automaticamente assumiam posições de liderança na Faculdade4. Com efeito, após a Segunda Guerra, quando grande parte dos professores estrangeiros contratados retornava aos seus países de origem e aumentavam as pressões internas a fim de levar a

3 José Querino Ribeiro (1907-1990) foi nomeado assistente da cadeira de Administração e Legislação Escolar do Instituto de Educação. Licenciou-se em Ciências Sociais, obteve grau de doutor em História da Civilização Brasileira na FFCL, onde ocupou sucessivamente os cargos de 1o assistente na cadeira de História e Filosofia da Educação (1938); assistente, e depois catedrático, da cadeira de Administração Escolar e Educação Comparada (respectivamente, em 1948 e 1953). 4 Dentre os privilégios inerentes ao posto de catedrático incluíam-se não só a "propriedade" do conhecimento de sua área, mas também a participação, com direito a voz e voto, nos mais importantes órgãos deliberativos e executivos dos institutos universitários. Aos catedráticos cabia, "de fato, o governo da Universidade" (cf. Antunha, 1974, p.140).

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Faculdade a se organizar segundo o regime vigente nas demais unidades da Universidade, deu-se o rompimento da breve experiência de "moratória do regime de cátedras" e teve seu lugar a corrida desabalada pela efetivação de catedráticos.

Assim, ainda que resultando na alegação já clássica da "inferioridade científica" dos assuntos pedagógicos de que se ocupavam as cadeiras oriundas do Instituto de Educação, a discriminação para com os professores e alunos recém-chegados à FFCL foi em grande parte alimentada por um sentimento de angústia dos "filósofos" diante da invasão de espaços e da conspurcação das vias legítimas de ascensão hierárquica pelos "pedagogos". Além do mais, a antigüidade do Instituto de Educação, nascido da Escola Normal de São Paulo, trazia para a "nova" faculdade o ranço inconveniente das "velhas" instituições e de seus padrões de formação profissional, tão distantes dos primeiros e seminais sonhos "desinteressados" dos mentores da Universidade, Júlio de Mesquita Filho, Paulo Duarte e Fernando de Azevedo.

Alguns professores estrangeiros da casa não só desprezavam as disciplinas que compunham a formação pedagógica, como também faziam campanha aberta contra elas. Contrários às disciplinas pedagógicas, mestres como o matemático italiano Luigi Fantapié, por exemplo, defendiam que bastava a formação científica de qualidade para que o professor tivesse condições de operar a transformação do conteúdo aprendido em conteúdo a ser ensinado nas escolas normais e secundárias (cf. Castrucci apud Freitas, 1993, p.74). Os aconselhamentos fundamentados nessa concepção não só intensificavam a discriminação, como contribuíam para reproduzir, pelo menos nas seções de Ciências da Faculdade de Filosofia, a velha prática de destinar apenas os "fracassados" à carreira do magistério secundário.

Dentro da própria Seção de Pedagogia vigiam estatutos diferentes para os cursos e para os praticantes das diversas disciplinas. O curso de Pedagogia era "desinteressado", enquanto o

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de Didática era "profissional", tendo derivado disto a oposição entre os dois tipos de profissionais que nelas se formavam, que passaram a "competir pela autoridade científica de definir qual o discurso e o saber-fazer legítimos acerca do ensino" (cf. Garcia, 1994, p.48).

O curso de Pedagogia, por seguir a organização e o formato dos demais cursos da FFCL, era tido como um espaço legítimo para a reflexão e produção de conhecimento acerca do ensino, em detrimento do curso de Didática, este considerado um desdobramento inútil, uma vez que as disciplinas Psicologia da Educação, Sociologia Educacional, Fundamentos Biológicos da Educação e Administração Escolar, de função essencial nas licenciaturas, eram apenas subsidiárias nos cursos de Pedagogia (cf. Garcia, 1994, p.105). Assim, seja porque passaram a constituir a substância de outros cursos (como os de Sociologia ou Psicologia), seja porque representavam a parte central do curso de Pedagogia, algumas das disciplinas pedagógicas que não integravam o núcleo das "didáticas" foram se aproximando gradativamente das chamadas disciplinas "de conteúdo" (cf. Castro, 1992, p.234). Era este o caso de Filosofia e História da Educação, que constituíam disciplinas obrigatórias do curso de Pedagogia e do curso de Didática para pedagogos, e que, na parte geral do curso de Didática, atendiam pelo nome de Fundamentos Filosóficos da Educação (cf. Tomazetti, 2000).

A transferência para a faculdade não trouxe à Filosofia e História da Educação a alteração do estatuto original de disciplina auxiliar, complementar ou depositária das ciências matriciais do campo, que herdara dos modelos de currículo criados nos anos 30 para as escolas normais. No Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a História da Educação aparece como "matéria subsidiária da formação da consciência pedagógica e da formação técnica do ensino primário" (cf. Universidade de São Paulo, 1935b, p.391). Modificações, entretanto, houve em certos aspectos de sua organização e funcionamento.

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Quanto à orientação didática da cadeira (que em 1942 passou a se chamar História e Filosofia da Educação), o Anuário informa que a praxe era "partir sempre de uma visão geral dos assuntos para concluir, nos fins de curso, com estudos monográficos", tal como se procedia em várias outras cadeiras daquela faculdade. Isto indica que, embora tenha-se mantido a antiga divisão dos cursos em duas partes (História Geral e Filosofia da Educação), o translado para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras implicou mudanças no teor e na condução dos cursos da cadeira, em favor de uma equiparação às demais cadeiras daquela escola superior. Um acréscimo importante aos cursos regulares deu-se a partir de 1940, quando, paralelamente ao curso de História Geral, instituiu-se o curso de História do Brasil, a cargo do assistente José Querino Ribeiro (cf. Universidade de São Paulo, 1953b, p.465).

O conteúdo do curso de História do Brasil era extenso e partia das "condições gerais da Educação na Europa e especialmente em Portugal na época do descobrimento" até a "Influência da Universidade de Coimbra", para o segundo ano; e de "D. João VI: intenção e ação da obra educacional neste período; advento das influências francesas" até "A Educação no Brasil atual: O Manifesto dos Educadores Brasileiros. A Reforma Francisco de Campos", para o terceiro (cf. Universidade de São Paulo, 1943, p.289-290). Todo este percurso, entretanto, não foi cumprido. No ano letivo de 1945, por exemplo, Querino Ribeiro tratou apenas dos tópicos "A instrução em Portugal antes do descobrimento" e "A educação no Brasil antes dos jesuítas"5, de modo que, como o curso não prosseguia no 3o ano, à turma de 1945 foi ensinada apenas a história da educação jesuítica em Portugal. 5 As informações a respeito do programa da cadeira XLV, que são aqui cotejadas com os registros publicados nos Anuários, foram obtidas nos diários de lançamento de matéria (cf. Arquivo pessoal de Laerte Ramos de Carvalho. Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo).

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Não obstante, para a exigüidade geral do programa pode ter contribuído a maleabilidade da carga horária efetivamente cumprida nos cursos daquela faculdade em suas três primeiras décadas de funcionamento. Assim, embora estivessem reservadas quatro horas semanais para "aulas teóricas" no curso de História da Educação da segunda série, e três horas no de Filosofia da Educação para a terceira série, sabe-se que "a carga horária não era rígida" e que "o horário era realmente decidido pelo professor conforme as necessidades do seu curso" (cf. Freitas, 1993, p.93). Desse modo, a "cultura institucional" da faculdade encarregou-se de reduzir a carga dos cursos da cadeira.

Em 1946 e 1947, tendo Lopes de Barros se afastado em virtude de doença, ficaram a cargo de Querino Ribeiro grande parte das aulas. Com relação ao curso de História do Brasil, tendo reduzido o número de aulas sobre a educação jesuítica, o assistente logrou estender em 1946 o conteúdo até o "panorama do ensino no Brasil no fim do século XVIII", indicando com isso sua familiaridade com o tempo histórico pertinente à pesquisa que realizara para fins de doutoramento em História da Civilização Brasileira6. Em 1947, incluíram-se as seguintes modificações no programa: a introdução de um Seminário de Filosofia, de que participaram como convidados os catedráticos da FFCL João Cruz Costa e André Dreyfus, e a inclusão, à frente da seqüência tradicional, ou seja, do percurso histórico que vai dos jesuítas a D. João VI, dos temas "O meio físico e sua influência na formação cultural brasileira" e "O elemento étnico na formação da cultura brasileira". Pela primeira vez verifica-se nos diários menção à 6 Querino Ribeiro defendeu em 12/11/43 a tese de doutoramento A memória de Martim Francisco sobre a reforma dos estudos da Capitania de São Paulo (Ribeiro, 1945), primeira tese acadêmica sobre história da educação brasileira apresentada na FFCL-USP. Orientada por Alfredo Ellis Jr., catedrático de História da Civilização Brasileira e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a obra segue o tradicional modelo do IHGB, ou seja, uma narrativa em que prevalece a "reunião de informações, atos, legislativos e regulamentares, as notícias e os fatos pertinentes" (cf. Carvalho, 2000, p.921).

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pesquisa documental: "Trabalho de pesquisa nos Arquivos do Estado sobre documentos inéditos", no dia 29/9/1947.

Em 1948, Querino Ribeiro conseguiu a sua transferência definitiva para a cadeira de Administração Escolar e Educação Comparada. Para a substituição do assistente de Lopes de Barros foi convidado um jovem licenciado em Filosofia, Laerte Ramos de Carvalho (1922-1972), que naquele momento ocupava o cargo de assistente de Cruz Costa na cadeira I de Filosofia7. A Ramos de Carvalho, que assumiu cumulativamente as duas assistências, foi a princípio entregue o curso de História do Brasil; menos de dois anos depois, ou seja, no mesmo ano em que defendeu a tese de doutoramento em Filosofia (1951), o professor assumiu a cadeira de História e Filosofia da Educação em caráter interino, em razão do falecimento de Roldão Lopes de Barros. Em 1955, ao obter o primeiro lugar no concurso para a mesma cátedra, conseguiu galgar o posto mais alto da hierarquia acadêmica. Essa trajetória meteórica (que poderia ter sido ainda mais rápida se o concurso, realizado em 1952, não tivesse sido impugnado, fazendo com que a nomeação demorasse quase três anos) demonstra que a opção de Ramos de Carvalho pela mudança de área poderia estar escorada na mais viva confiança de que os caminhos para a ascensão acadêmica lhe estavam franqueados.

Ramos de Carvalho havia sido aluno de Cruz Costa no Departamento de Filosofia8, tendo sob sua orientação publicado um substantivo trabalho em História da Filosofia: a tese A formação filosófica de Farias Brito (1951). Mesmo que com este

7 Nascido em Jaboticabal (SP), Ramos de Carvalho ingressou em 1940 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, concluiu o bacharelado em 1942 e a licenciatura em 1943, assumindo em janeiro de 1944 o cargo de primeiro assistente da cadeira de Filosofia, a convite de Cruz Costa, permanecendo nessa condição até 1955. 8 Entenda-se "departamento" como o conjunto das cadeiras de Filosofia. Esta denominação só foi oficializada em 1963, embora fosse de uso corrente entre alunos e professores.

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trabalho Ramos de Carvalho tenha afrontado em muitos aspectos as opiniões dos "filosofantes municipais" ligados a Miguel Reale e ao Instituto Brasileiro de Filosofia, rivais declarados da cadeira de Filosofia da Universidade de São Paulo, a verdade é que a repercussão da obra em seu próprio "departamento" não foi muito positiva. É que, para a nova geração que nele surgia (e cujos nomes de maior destaque eram Bento Prado Jr. e José Arthur Giannotti), a inclinação para a história do pensamento brasileiro, linha de pesquisa a que Cruz Costa conduzia o seu "sucessor natural", era mesmo desprezível (cf. Arantes, 1994). Assim, a migração de Ramos de Carvalho da prestigiada cadeira I, de Filosofia, para a desprestigiada Seção de Pedagogia, poderia ser em parte explicada pela oportunidade que o assistente de Cruz Costa encontrou de livrar-se da condição desconfortável que o legado de seu mestre lhe impingira, e de quebra, alcançar mais cedo do que se poderia esperar o posto de catedrático na Universidade, uma vez que, com a saída de Querino Ribeiro, não haveria um "sucessor natural" para Lopes de Barros a pleitear a regência da cadeira de História e Filosofia da Educação.

Além desse, havia ainda outro fator a atrair Ramos de Carvalho para a cadeira de História e Filosofia da Educação: a demanda de conhecimento sobre educação (e de autoridade acadêmica reconhecida na área) para fomentar e legitimar os comentários educacionais que o professor vinha publicando em O Estado de S. Paulo (OESP) desde 1946. A convite de Júlio de Mesquita Filho, que dessa forma procurava restaurar o discurso político do periódico, interrompido no Estado Novo, Ramos de Carvalho encarregou-se (a partir de 1946, como colaborador, e de 1947, como responsável pelas colunas não assinadas de "Notas e Informações") de comentar os assuntos da educação à luz dos ideais liberais do jornal, erguendo, desde o momento em que o lançamento do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional passou a exigir uma nova aliança dos "educadores

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paulistas" em prol da educação brasileira, as bandeiras da escola pública e da universidade9.

A posse da cadeira, tanto quanto a inclinação para o estudo das "idéias pedagógicas", que materializou na tese de cátedra As reformas pombalinas da instrução pública, podem ser creditadas em maior grau aos interesses derivados da atuação jornalística de Ramos de Carvalho em O Estado de S.Paulo, do que propriamente à formação acadêmica inicial do professor (calcada no programa filosófico de Maugüé e mesclada do nacionalismo de Cruz Costa e do rigor metodológico de Lívio Teixeira). Esta "demanda externa", que pesou decisivamente na ocupação do posto máximo da disciplina por um homem ligado ao jornal, prolongou sua ação por muitos anos. No período de sua regência (1955-1968), Ramos de Carvalho nomeou sucessivamente dois ex-alunos da Filosofia para o cargo de assistente, Roque Spencer Maciel de Barros e João Eduardo Villalobos, conduzindo-os também às colunas de "Notas e Informações" do jornal O Estado de S. Paulo. Com isto, o regente proporcionou aos homens de sua confiança a possibilidade de reproduzirem a sua própria trajetória acadêmica, vinculando a ascensão na hierarquia acadêmica à conquista do direito e da legitimidade de proferir o discurso educacional de OESP. Dessa forma, no mesmo movimento de tomada definitiva da cadeira XLV pelos imigrantes do Departamento de Filosofia, conquistava a História e Filosofia da Educação o direito à última palavra no discurso político-educacional da época, haja vista que seus homens falaram por três decênios (de meados da década de 1940 a fins da década de 1970) pela boca do jornal que cedo se tornara o veículo autorizado das idéias dos liberais paulistas.

9 Ver, a esse respeito, o livro organizado por Roque Spencer Maciel de Barros, Diretrizes e Bases da Educação. São Paulo: Pioneira, 1960.

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A história da educação brasileira reconfigura a cadeira

Em que pese o justificável interesse pela história da educação brasileira que despertavam aqueles debates no front da grande imprensa paulista, nos primeiros anos de atividade de Ramos de Carvalho como assistente da cadeira XLV o curso de História do Brasil não recebeu maior atenção do que nos tempos de Roldão e Querino; entre 1948 e 1950 houve até mesmo uma redução drástica do conteúdo e das aulas. Em princípio, isto poderia ser explicado pelo fato de Ramos de Carvalho encontrar-se ocupado com sua tese de doutoramento em Filosofia, para que despendia tempo e esforços que seriam necessários para a atualização no assunto; além disso, a atualização requerida não se afigurava como tarefa possível porque, do ponto de vista de um bacharel formado nos padrões da Faculdade de Filosofia, ainda não havia à disposição um montante de conhecimentos sobre história da educação no Brasil que pudesse ser reconhecido como cientificamente válido.

Em 1955, quando foi homologado o seu título de catedrático, Ramos de Carvalho deu início a um processo de reformulação da cadeira de História e Filosofia da Educação, em que a história da educação brasileira passou a ocupar um lugar de destaque, em que as práticas de ensino e pesquisa fizeram-se mais assemelhadas às de outras cadeiras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em que o status relativo da disciplina foi alterado para melhor. Diversos fatores contribuíram para essa configuração: a legitimidade granjeada pelo respeito da comunidade acadêmica ao regente (cujo artigos se estampavam nos editoriais de OESP, e que ostentava dois títulos acadêmicos de peso, obtidos naquela mesma instituição); a adoção de certas práticas de ensino vigentes nas demais cadeiras da faculdade; a dedicação à pesquisa acadêmica original, destinada à formação de doutores em educação.

Embora Ramos de Carvalho tenha mantido, ao longo dos anos em que exerceu a regência da cadeira de História e

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Filosofia da Educação, a estrutura curricular básica da antiga cadeira do Instituto de Educação, percebe-se que práticas mais afins à FFCL foram sendo paulatinamente adotadas, tais como o uso de livros clássicos em detrimento dos manuais, a intensificação das atividades de escrita e comunicação oral feitas por alunos, a sintomática substituição do antigo termo "sabatina", marcadamente normalista, pelo acadêmico "argüição", para se referir às provas orais (Universidade de São Paulo, 1953c) e, finalmente, a produção das primeiras pesquisas acadêmicas em história da educação no Brasil.

A intenção de produzir monografias para fundamentar o estudo da história da educação brasileira baseava-se na constatação de que o conhecimento acumulado sobre o assunto era ainda insuficiente para alimentar os cursos regulares da cadeira. Sendo assim, Ramos de Carvalho visava a promover a realização de pesquisas originais, justamente para produzir o conhecimento que faltava ser incorporado ao ensino da história da educação brasileira, uma vez que acreditava não haver "legítima história sem sério e criterioso levantamento de dados de toda ordem" (cf. Carvalho, 1956, p.600).

As pesquisas foram sendo estimuladas pelo regente no interior dos próprios cursos regulares da cadeira de História e Filosofia da Educação, destacadamente no curso de Especialização, cumprido no quarto ano por alunos escolhidos, tendo em vista o doutoramento em futuro próximo. A tese de doutoramento de Heládio Antunha, A reforma de 1920 da instrução pública no Estado de São Paulo (1967), por exemplo, surgiu da combinação de um seminário realizado sobre a Reforma Sampaio Dória com a organização de uma pesquisa baseada em entrevistas feitas com educadores coetâneos.

Em 1962, Ramos de Carvalho convocou antigos alunos de Pedagogia, dentre os quais Jorge Nagle e Casemiro dos Reis Filho, para que participassem de um projeto pioneiro de investigação e escrita da História da Educação Brasileira, que consistia na produção de monografias que pudessem gerar em seu

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conjunto uma visão mais alargada de nossa história educacional. Segundo testemunhos de alguns dos participantes, as diretrizes do orientador incluíam a localização e a socialização das fontes documentais e a necessidade de criar uma periodização específica para a história da educação brasileira, que fosse independente dos critérios político-administrativos até então utilizados (cf. Nagle, 1999; Tanuri, 1999).

Além da orientação de Ramos de Carvalho e das discussões coletivas e periódicas, os doutorandos passaram a contar com o decisivo apoio do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE-SP), dirigido à ocasião pelo próprio regente, que lançou mão de sua estrutura e pessoal a fim de facultar aos doutorandos o acesso ao maior número de documentos e fontes bibliográficas. Tal iniciativa lhes permitiu usar, por exemplo, o Serviço de Documentação e Intercâmbio, onde podiam aceder à documentação legislativa referente à República e até mesmo reproduzi-la. Beneficiando-se das instalações e do auxílio dos funcionários do CRPE-SP, os doutorandos realizavam a contrapartida participando de seminários e palestras ou escrevendo artigos para o periódico Pesquisa e Planejamento.

A relação simbiótica entre a cadeira de História e Filosofia da Educação e o CRPE-SP contribuiu para que fossem realizados alguns dos projetos de pesquisa que originaram as teses defendidas pelos licenciados na USP e nos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo (reunidos na atual UNESP) no decorrer dos anos 60 e 70. A escrita histórica de toda uma geração de pesquisadores deve ser, pois, em grande parte creditada à atuação de Ramos de Carvalho, não só como orientador direto das pesquisas, mas como regente da cadeira de História e Filosofia da Educação, posição em que conduziu a disciplina rumo a uma nova configuração, na qual a História sobrepujou a Filosofia, a História do Brasil comandou os interesses de pesquisa, e foi instituída a investigação científica com fontes documentais inéditas. Pode-se dizer, especialmente quando

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se atenta para o esforço verificado de estabelecer uma periodização autônoma para a história da educação brasileira, ou seja, livre dos marcos de nossa história político-administrativa, que uma "identidade cognitiva" diversa daquela original então se esboçava: um método de produção do conhecimento já colocava em cheque as interpretações veiculadas nos livros canônicos e nos manuais de ensino.

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Bruno Bontempi Júnior é Doutor em Educação: História e Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da PUC-SP. Seus últimos trabalhos a respeito do tema do presente artigo foram "O Estado de S.Paulo e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo: o pensamento educacional convergente", publicado na Revista do Mestrado em Educação da Universidade Federal de Sergipe (n.4, 2000) e "A educação brasileira e a sua periodização: vestígio de uma identidade disciplinar", publicado na Revista Brasileira de História da Educação (n.5, 2003). Coordena o grupo de pesquisa Internacionalização-nacionalização de padrões pedagógicos e escolares do ensino secundário e profissional (São Paulo, meados do século XIX ao pré-Segunda Guerra Mundial) e integra o grupo de pesquisa Americanismo e educação: a fabricação do "homem novo", coordenado por Mirian Jorge Warde. Endereço para correspondência: Rua Harmonia, 445 apto. 63 CEP 05435-000 Sumarezinho São Paulo-SP. Endereço eletrônico: [email protected]

Recebido em: 20/01/2007 Aceito em: 15/03/2007

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 107-131, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

AS PESQUISAS NA ÁREA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:

CONSTRUINDO A HISTÓRIA DO ATENDIMENTO ÀS CRIANÇAS PEQUENAS NO

BRASIL1 Alessandra Arce

Resumo O presente trabalho tem por objetivo, através da análise da produção acadêmica na área de Educação Infantil e de História da Educação presente nas teses e dissertações defendidas entre 1987 e 2001 nos programas de Pós-Graduação de nosso país, apresentar elementos que forneçam uma visão ampla do que se tem pesquisado a respeito da história da Educação Infantil, apontando para as lacunas existentes neste campo. Palavras-chave: História da Educação, Educação Infantil, Pesquisa Educacional.

CHILDHOOD EDUCATION RESEARCHES AND HISTORY OF EDUCATION: BUILDING THE HISTORY

OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN BRAZIL Abstract The aim of this paper is to present an analysis of the academic production in early childhood education and history of education that appears in doctorate thesis and masters degree dissertations between 1987 and 2001 in Brazil. This paper intends to present the variety of researches done in the field of early childhood education, looking forward for its floss. Keywords: History of Education, Early Childhood Education, Educational Research

1 Este artigo foi apresentado na forma de trabalho na 27 Reunião Anual da ANPEd no grupo de trabalho de História da Educação. Este trabalho contou com financiamento da FAPESP para sua realização. Gostaria de agradecer em especial a Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos pela leitura cuidadosa do texto e por suas sugestões.

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LAS INVESTIGACIONES EN EL ÁREA DE LA EDUCACIÓN INFANTIL Y LA HISTORIA DE LA

EDUCACIÓN: CONSTRUYENDO LA HISTORIA DEL ATENDIMIENTO A LOS NIÑOS PEQUEÑOS EN

BRASIL Resumen Este trabajo tiene el objetivo de presentar elementos que suministren una visión amplia de lo que ha investigado la historia de la educación de la primera niñez a través del análisis de la producción académica en el área de la Educación Infantil y de la Historia de la Educación presente en las teses y disertaciones defendidas entre 1987 y 2001 en los programas de Pos-Graduación de nuestro país, apuntando así, los huecos existentes en este campo. Palabras-clave: Historia de la Educación, Educación Infantil, Investigación Educacional.

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Considerações Iniciais

Este artigo é fruto de pesquisa realizada dentro da agenda de trabalhos/2003 do grupo nacional de pesquisa "História, Sociedade e Educação no Brasil"(HISTEDBR), visando fornecer elementos para a construção do projeto de pesquisa coletivo do grupo intitulado provisoriamente "Reconstrução Histórica da Educação Pública no Brasil". O objetivo deste artigo é através da análise da produção de teses e dissertações nas áreas de Educação Infantil e História da Educação de 1987 a 2001, nos programas de Pós-Graduação de nosso país, apresentar elementos que forneçam uma visão ampla do que se tem pesquisado a respeito da história da Educação Infantil.

Para tanto, este texto encontra-se dividido em três partes: a primeira ‘Considerações Iniciais’ descreve como foi realizado este trabalho; a segunda parte, intitulada ‘As Pesquisas na área de Educação Infantil e seus protagonistas’, tem por objetivo apresentar sucintamente de que forma os pesquisadores e grupos de pesquisa têm investigado a história da Educação; a terceira parte intitulada ‘A Educação Infantil e a História da Educação – uma ainda tímida porém promissora relação’, elenca e analisa os resultados da pesquisa realizada apontando para possíveis caminhos de pesquisa que viriam a fortalecer os trabalhos de construção da história do atendimento educacional às crianças pequenas em nosso país.

O material utilizado neste artigo foi fruto do levantamento realizado junto ao banco de teses da CAPES, que se constitui atualmente no maior banco de dados referente à produção dos Programas de pós-graduação no Brasil. Programas esses que centralizam e organizam os grupos de pesquisas dos quais derivam os trabalhos produzidos tanto na área de Educação Infantil como de História da Educação. Para chegar ao

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levantamento que apresentarei tive que utilizar diversos descritores na localização das dissertações e teses que procurava, pois esta produção encontra-se muito difusa e muitas vezes em programas de pós-graduação que não pertencem à área de educação. Os descritores utilizados foram os seguintes: educação infantil, educação pré-escolar, educação pré-primária, creche, jardim-de-infância, parque infantil, Pestalozzi, Froebel, Montessori, história da educação, salas de asilo, Freinet, Decroly, Dewey, jogo, brinquedo, roda de expostos e infância, criança, crianças, psicologia infantil, psicologia do desenvolvimento. Assim, utilizando-me destes descritores procurei ano por ano de 1987 a 2001 os trabalhos relacionados à história da educação de crianças menores de 06 anos, ou seja, história da educação infantil, lendo os resumos, para mais tarde acessar os trabalhos. Para complementar a busca e precisar mais as informações, recorreu-se ainda ao CD Rom produzido pela ANPEd que mapeou, também, as teses e dissertações produzidas, entretanto, somente nos programas de pós-graduação em educação desde a década de 70 até o ano de 1997. Passo, agora, portanto, à segunda parte desse trabalho onde apresento as primeiras pesquisas realizadas no âmbito da História da Educação Infantil, bem como seus protagonistas.

As Pesquisas na Área de Educação Infantil e seus protagonistas

A primeira pesquisa com caráter histórico foi o de Sônia Kramer na forma de dissertação de mestrado defendida em 1981 (publicada em livro com sua 5º edição datada de 1995), intitulando-se "História e Política da Educação Pré-Escolar no Brasil – uma crítica à educação compensatória". Nessa obra a autora procura traçar a trajetória histórica do atendimento a crianças menores de 6 anos no Brasil desde a República Velha até a segunda metade da década de 70. Esse trabalho foi um dos

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primeiros a levantar críticas à predominância da psicologia como norteadora dos trabalhos na área e das propostas educacionais que, em sua maioria, adotavam a abordagem da educação compensatória. A autora, por meio da apresentação das instituições destinadas à assistência e educação das crianças no período estudado, denuncia o descaso e a falta de políticas definidas para a educação infantil. A crítica, efetuada no trabalho, é construída a partir dos estudos a respeito da infância como categoria histórica. Como referência teórica principal aparece o trabalho de Ariès "História Social da Criança e da Família".

A dissertação de Kramer trouxe ainda características que marcaram muitas das produções subseqüentes que procuraram reconstruir a história deste atendimento, são elas: o fato do pesquisador/a ser alguém que pesquisa sobre a educação de crianças menores de 6 anos e a partir de seus trabalhos (que geralmente envolvem o estudo das políticas públicas ou investigação de metodologias e práticas pedagógicas) procura, com o auxílio do resgate histórico, fortalecer ou desvelar posições e/ou discursos vigentes, seja para criticá-los como para lançar novas luzes sobre antigas questões da área; a estreita ligação entre a reconstrução histórica e a análise das políticas públicas destinadas à educação infantil; a presença constante de uma preocupação com as práticas pedagógicas implementadas no cotidiano das salas de aula travando-se quase sempre uma batalha na busca da definição da função deste tipo de atendimento; por fim o privilegiamento do estudo de instituições nas investigações de caráter histórico tendo-se como fontes documentos oficiais e periódicos.

O segundo trabalho de pesquisa foi produzido por Rosa Lutero Oliveira em forma de dissertação de mestrado em 1985 sob o título "Educação Pré-Escolar: uma análise crítica de dissertações e teses (1973-1983)", na qual a autora analisa 17 dissertações de mestrado e duas teses de doutorado defendidas em programas de pós-graduação localizados em São Paulo e no Rio de Janeiro, no período de 1973 a 1983. A autora apresenta como

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temas recorrentes de pesquisa nos trabalhos analisados os seguintes: monitoria de mães, políticas de educação pré-escolar, objetivos da pré-escola e proposta curricular; havendo uma grande influência nestes estudos da educação compensatória calcada na teoria da privação cultural. Este estudo ilustra a presença forte da psicologia como norteadora das pesquisas realizadas na área, o que reduzia o campo de investigação prescindindo de pesquisas de cunho histórico, antropológico, filosófico e sociológico. Esse segundo trabalho é diferente do primeiro, pois não aborda a história da educação infantil, mas sim as pesquisas que tinham por objeto a educação infantil. Sua importância reside na apresentação da produção da área onde ficam visíveis as lacunas existentes e as áreas mais enfatizadas.

O terceiro trabalho apresentado sob a forma de tese de doutorado em 1986, foi produzido por Tizuko Morchida Kishimoto intitulando-se "A Pré-Escola em São Paulo (das origens a 1940)". Este trabalho (publicado em livro em 1988) analisa a evolução das instituições que existiram no período escolhido para amparar e atender a infância paulista, destacando a legislação específica para este atendimento, as modalidades adotadas (escolas maternais, jardins-de-infância, salas de asilo e outros) e o significado das mesmas bem como a influência dos teóricos como Montessori, Decroly, Dewey, Froebel entre outros na definição de uma orientação educativa. Este trabalho é o primeiro a trazer uma investigação regionalizada da educação infantil e sua história, por centrar-se somente no estado de São Paulo.

O quarto trabalho foi defendido sob a forma de tese de doutorado por Lucia Regina Goulart Vilarinho, em 1987, intitulando-se "A Educação Pré-Escolar no Mundo Ocidental e no Brasil: perspectivas históricas e crítico-pedagógicas". A autora procura, através da reconstituição da história do atendimento pré-escolar no mundo, analisar no Brasil dois momentos distintos deste atendimento: o período pioneiro (1896-1973) e o período considerado atual na pesquisa (1973-1986); com esta análise

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procura-se mostrar a decisiva influência internacional na área em nosso país. Este trabalho é o primeiro a apontar as ligações entre a expansão e a história do atendimento pré-escolar no mundo ocidental, com a expansão deste tipo de atendimento em nosso país.

O quinto trabalho, também produzido em 1987, apresentado sob a forma de dissertação de mestrado por Lívia Maria Fraga Vieira intitulou-se "Creches no Brasil: de mal necessário a lugar de compensar carências: rumo a construção de um projeto educativo". Utilizando-se de documentos oficiais, a autora acompanha a trajetória da instituição creche no Brasil abrangendo um período longo que vai desde 1940 ao final da década de 1970. A autora procura defender a creche não como espaço de compensar carências, mas sim como opção de educação e socialização da criança. Este trabalho é o primeiro a traçar o tortuoso caminho das políticas sociais destinadas ao atendimento de crianças de baixa renda em creches no Brasil. Como conseqüência tornou-se referência dentro da área. Chamo a atenção para um fato já descrito anteriormente, a autora procura na historicização do atendimento defender uma proposta pedagógica por meio da discussão da função que esta instituição deveria ter no contexto brasileiro.

O sexto e último trabalho foi produzido por Maria V. B. Civiletti como dissertação de mestrado em 1988 sob o título "A creche e o nascimento da nova maternidade". Este trabalho dedicou-se a descrever e analisar os discursos e práticas existentes no Brasil do século XIX relativos ao atendimento de crianças menores de 06 anos, destacando-se o surgimento do discurso a respeito das creches e salas de asilo bem como as relações destas instituições com a chamada das mães das classes populares para abandonarem o trabalho e tomarem conta sua própria prole, melhorando com isso o desempenho masculino no trabalho.

A divulgação destes trabalhos, engajados na definição da função e da necessidade de um atendimento de qualidade na educação infantil, bem como o calor das discussões que

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envolveram o processo da constituinte brasileira no final dos anos oitenta, trouxeram a força necessária para a luta pela consolidação das instituições de atendimento a menores de seis anos em nosso país. Este movimento levou a um crescimento nas pesquisas na área. Segundo Rocha (1999) o número de trabalhos de mestrado de 1990 a 1993 era de 18 ao ano, enquanto que de 1994-1996 este número saltou para 39. Já em nível de doutorado entre 1995 e 1996 foram produzidas 13 teses. Esta qualificação maior dos profissionais da área em nível de pós-graduação levará também à criação de grupos de pesquisas fortes dos quais provem a maioria das produções identificadas no período proposto para este estudo.

Faz-se necessária, portanto, a apresentação destes grupos para um entendimento melhor de como a produção tem ocorrido na área de educação infantil. Um dos primeiros grupos a estabelecer-se na década de oitenta encontra-se na Fundação Carlos Chagas, localizada em São Paulo, e é formado pelos seguintes pesquisadores: Fúlvia Rosemberg, Maria Lucia de A Machado, Maria M. Malta Campos e Moysés Kuhlmann Junior. Fúlvia Rosemberg e Maria Malta através de seus trabalhos de estudo a respeito das políticas públicas para a infância fomentaram muitas pesquisas. Apesar de seus enfoques não serem necessariamente voltados para a história, seus/as orientados/das de mestrado e doutorado produziram muitos trabalhos de cunho investigativo histórico. O trabalho de mestrado de Kuhlmann Junior, orientado por Maria Malta, finalizado em 1990, intitulando-se "Educação Pré-Escolar no Brasil (1899-1922): exposições e congressos patrocinando a ‘assistência científica’", passará a figurar como um dos principais trabalhos e seu autor como um dos nomes de referência no campo das pesquisas em história da educação infantil em nosso país. São estudadas por esse grupo as "políticas e os mecanismos administrativo-financeiros para a área, ligados às questões das creches e pré-escolas, bem como se analisam os processos educativos implementados nos equipamentos de atendimento às crianças,

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trabalha-se com a história educacional do tema"(www.fcc.org.br, 2003).

Outro grupo de pesquisas consolidou-se em torno da criação do "Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos" - (LABRIMP), na Faculdade de Educação da USP/São Paulo em 1987, sob a coordenação de Tizuko Morchida Kishimoto. Kishimoto assim como Kuhlmann também figura como uma referência para as pesquisas históricas na educação infantil, tendo essa pesquisadora orientado muitos dos trabalhos levantados neste artigo. O laboratório ao explorar o brinquedo e o material pedagógico como essenciais na formação de docentes para as escolas infantis produziu artigos, dissertações e teses que reconstroem a história deste atendimento tendo na sua maior parte a prática pedagógica como foco central (www.fe.usp.br/laboratorios/labrimp/histla.htm).

Na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) encontramos o terceiro grupo de pesquisa que se localiza no interior do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diferenciação Sócio-Cultural (GEPEDISC) formado por professores Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação. Esse grupo foi criado em 1995 com o objetivo de "estabelecer um intercâmbio entre pesquisadores de questões sócio-antropológicas relacionadas à diferenciação étnico-sócio-cultural, bem como um melhor relacionamento com especialistas e alunos da área de Educação" (www.lite.fae.unicamp.br/grupos/infantil/gepedisc.html). No interior desse grupo, Ana Lúcia Goulart Faria é a pesquisadora que coordena o Grupo de Estudos em Educação Infantil. Destacar-se-ão pesquisas que buscam uma perspectiva sócio-antropológica e histórica da área.

Na região Sul do país encontram-se dois grupos: o primeiro na Universidade Federal de Santa Catarina situado no Centro de Ciências da Educação (CED) denominado Núcleo de Estudos da Educação de 0 a 6 anos (NEE0A6ANOS), organizado em 1990. Este núcleo de pesquisa possui quatro

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grandes áreas temáticas: História e Política das Instituições de Educação, Identidade das Profissionais da Educação Infantil, Teoria e Prática Pedagógica na Educação Infantil e outras pesquisas associadas. Todos os trabalhos de pesquisa são realizados tendo-se em vista contemplar os seguintes objetivos: "1-aprofundar o conhecimento sobre as instituições que ofertam educação infantil (0 a 6 anos), suas práticas e organização; 2- subsidiar a elaboração de políticas para a área e participar de fóruns e associações; 3- subsidiar o trabalho de formação de educadores nos diversos níveis: graduação, pós-graduação e formação em serviço; 4- organizar e manter Bases de Dados sobre informações que interessem à área"(www.ced.ufsc.br/~nee0a6/aprenee.html). Destacam-se, deste grupo, por suas produções na área de educação infantil os seguintes pesquisadores: Eloísa Acires C. Rocha, Ana Beatriz Cerizara e João Josué da Silva Filho (atual coordenador do núcleo). O segundo grupo GEIN (Grupo de Estudos em Educação Infantil) localiza-se na Universidade Federal do Rio Grande do Sul vinculado à área de Educação Infantil do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação. Consolidado em 1996 o grupo tem por objetivos: "reunir professoras/es pesquisadoras/es da área de educação infantil para discussão de temas ligados à educação de crianças de zero a seis anos, visando fortalecer as pesquisas já existentes e estimular a produção de novas pesquisas e estudos nesse campo; organizar e promover seminários, palestras, debates e cursos sobre temas pertinentes à educação infantil; divulgar publicações e pesquisas produzidas pelas/os professoras/es da área e prestar assessorias e consultorias em função de demandas de órgãos públicos e/ou privados" (www.ufrgs.br/faced/gein/Gein03.htm). Destacam-se, neste grupo, as seguintes pesquisadoras com várias publicações na área: Leni Vieira Dornelles, Jane Felipe Neckel, Maria Isabel E. Bujes, Maria Célia B. de Amodeo, Gladis E. P. da Silva Kaercher, Maria Carmen Silveira Barbosa, Maria Bernadette C. Rodrigues.

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Embora esses grupos de pesquisa não estejam diretamente vinculados à área de História da Educação, deles provem a maioria dos estudos sobre a História da Educação Infantil no Brasil. Diante da existência de alguns grupos por mais de uma década penso que os mesmos também se constituem em objetos de estudos para compreensão da história das pesquisas e da difusão de teorias e práticas pedagógicas para a educação de crianças menores de seis anos no Brasil. "(...) já que o exame dos produtos não exclui a análise dos lugares e das práticas que os instituíram" (Nunes e Carvalho 1993, p.10).

As Pesquisas em Educação Infantil voltadas para a História da Educação – uma ainda tímida porém promissora relação

A partir da exposição realizada no item anterior, como se configurou a produção de teses e dissertações no período de 1987 a 2001? Localizei neste período um total de 29 dissertações de mestrado e 09 teses de doutorado voltadas para uma investigação histórica do objeto educação de crianças menores de 06 anos no Brasil. Dentre estes trabalhos chamou-me a atenção a presença de três estados da arte: o primeiro já apresentado neste texto defendido sob a forma de tese de doutorado por Eloísa Acires Candal Rocha em 1999 no Progama de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas; o segundo defendido sob a forma de dissertação de mestrado em 2000, por Giandréa Réus Strenzel no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina intitula-se "A Educação Infantil na produção dos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil: indicações pedagógicas das pesquisas para a educação das crianças de 0 a 3 anos"; o terceiro defendido também sob a forma de dissertação de mestrado em 2001 por Lucyelena Amaral Picelli, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia,

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intitulando-se "Produção Científica sobre a Educação Infantil nos Mestrados e Doutorados em Educação Física no Brasil". Portanto, a produção de estados da arte ainda é algo forte dentro das pesquisas na área.

Os demais trabalhos foram subdivididos nos seguintes eixos e/ou linhas de pesquisa (os eixos e/ou linhas de pesquisa foram selecionadas a partir das palavras chave utilizadas pelos autores e das linhas de pesquisa nos programas de pós-graduação a que pertencem as produções):

• Instituições Educacionais (10 trabalhos): FARIA, Ana Lúcia Goulart de (1994) – Direito à infância: Mario de Andrade e os Parques Infantis para crianças de família operária na cidade de São Paulo (1935-1938); LIMA, Maria de Fátima (1994)- LBA: Tratamento pobre para o pobre; BATISTA, Maria Aparecida C. (1996) – O primeiro Kindergarten de São Paulo visão da família e educação dos Protestantes Americanos e a Metodologia Froebeliana; PICANÇO, Mônica B. M. de (1997) – A creche na rede pública municipal (1978-1996); FAGUNDES, Magali R. dos (1997) – A creche no trabalho... O trabalho na creche: um estudo do centro de convivência infantil da UNICAMP, trajetória e perspectiva; MARCON, Irineu (1999) – A creche como Instituição Educacional: um estudo documental de Votorantim/MG; MELLO, Ana Maria Araújo de (1999) – A História da Creche Carochinha: uma experiência para a educação de crianças abaixo de três anos em creche; RAMOS, Maria Martha S. (2001) – História da Educação Infantil Pública Municipal de Campinas – 1940-1990; VANTI, Elisa dos Santos (1998) - Fio da infância na trama da história: um estudo da história da infância e da Educação Infantil em Pelotas; MELLO, Débora (1998) - As ações assistenciais na

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criação da creche na Porto Alegre da década de 30: entre a qualidade e a filantropia;

• O Pensamento Educacional: seus intelectuais e sua difusão (10 trabalhos): KUHLMANN JR, Moysés (1990) – Educação Pré-Escolar no Brasil (1899-1922)- Exposições e Congressos patrocinando a ‘Assistência Científica’; GOULART, Áurea Maria (1994) – O Projeto Pedagógico de Maria Montessori; MONÇÃO, Ana Amélia Carneiro (1995) – A Política de Educação Infantil no município de Piracicaba: o discurso pedagógico- 1989 a 1992; KUHLMANN JR, Moysés (1996) – As grandes festas didáticas, a educação brasileira e as exposições internacionais – 1862-1922; PINAZZA, Mônica Appezzato (1997) - A Pré-Escola Paulista à luz das idéias de Pestalozzi e Froebel: memória reconstituída a partir de periódicos oficiais; FILHO LEITE, Aristeo G. (1997) – Educadora de Educadores: trajetória e idéias de Heloisa Marinho; OLIVEIRA, Solange L. de (1999) – Sistema Montessori de Educação no Brasil: memórias das pioneiras nos cursos de formação de professores; CONRAD, Helga Margarete (2000) – O Desafio de ser pré-escola, as idéias de Friedrich Froebel e o início da educação infantil no Brasil; ARCE, Alessandra (2001) – A Pedagogia na ‘Era das Revoluções’ – uma análise do pensamento de Pestalozzi e Froebel; ALMEIDA, Ordália Alves de (2001) – O dito e não feito – o feito e não dito: em busca do compasso entre o falar e o fazer na educação infantil;

• Estado e Políticas Educacionais (09 trabalhos): GIACOMO, Ana Maria (1994) – Condicionantes Históricos Políticos e Legais da Educação Pré-

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Escolar: um estudo sobre especificações e normas; HERMANN, Jussara Neptune (1995) – Poder local e Educação Infantil em Piracicaba/SP: 1977 a 1995; ANDRADE, Marci (1996) – Cem anos de pré-escola pública paulista: a história de sua expansão e descentralização; GOMES, Marineide O. de (1996) – As creches na trajetória de Governos Democráticos: a experiência de Diadema-SP (1983-1996); SILVA, Anamaria S. da (1997) – Políticas de atendimento à criança pequena em MS – 1983-1990; GARCIA, Eliane O de (1998) – O Ministério da Educação e do Desporto e a Política Nacional para a Educação Infantil no Brasil: 1993-1996; SALOMÃO, Julio César (1999) – Infância e Educação Infantil nos documentos e legislações nacionais e internacionais; SERRÃO, Célia Regina B. (2000) – Atos, Sombras e Fatos: o programa creche/pré-escola secretaria do menor – São Paulo (1987-1995); VEIGA, Márcia M. (2001) – O Movimento de Luta pró-creche e a política de Educação Infantil em Belo Horizonte;

• Estados da arte e análise da literatura especializada (04 trabalhos); SOUZA, Gisele de (1997) – Pré-Escola é Escola? Um estudo sobre a contribuição da literatura especializada na constituição da pré-escola como educação escolar no Brasil; ROCHA, Eloísa A. C. (1999) – A Pesquisa em Educação Infantil no Brasil: Trajetória Recente e Perspectivas de Consolidação de uma Pedagogia; STRENZEL, Giandréa R. (2000) – A Educação Infantil na Produção dos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil: indicações pedagógicas das pesquisas para a educação das crianças de 0 a 3 anos; PICELLI, Lucyelena A. (2001) – Produção

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Científica sobre Educação Infantil nos Mestrados e Doutorados em Educação Física no Brasil;

• Práticas escolares (02 trabalhos): GUIMARÃES, Horácio G.(1999) – Canto e Ocupação no Jardim de Infância anexo a Escola Normal de São Paulo nas primeiras décadas da República; BARBOSA, Maria Carmem S. (2000) – Por amor e por força: rotina na Educação Infantil;

• Profissão docente e gênero (02 trabalhos): ARCE, Alessandra (1997) – Jardineira, Tia e Professorinha – a realidade dos mitos -; SOUZA, Jane Felipe de (2000) – Governando Mulheres e Crianças: Jardins de Infância em Porto Alegre na primeira metade do século XX.

Não posso deixar de mencionar que muitos trabalhos possuem estudos que perpassam mais de um eixo, procurei classificá-los de acordo com a linha norteadora das pesquisas realizadas. As fontes adotadas são primordialmente documentos oficiais, periódicos, jornais, impressos, livros e depoimentos. Os períodos estudados abrangem desde o final do século XVIII até 1996, sendo mais estudados o período de 1970 a 1996 e a segunda metade do século XIX. No exame da bibliografia encontrei referências a autores utilizados também nas pesquisas da área de História da Educação tais como: Ariès P., Chartier R., Scott J., Bourdieu P., Foucault M., Hobsbawn e Marx K. Porém existe uma predominância de referências aos trabalhos das precursoras e protagonistas (apresentadas no item anterior) na realização de pesquisas na área de educação infantil. Dentre os autores que produzem e atuam na área de História da Educação Kuhlmann Jr. e seus estudos a respeito da infância e o atendimento a ela destinada destacam-se em número de citações.

Reforçando a constatação de que as relações são ainda tímidas entre os pesquisadores da área da História da Educação e

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da área de Educação Infantil encontram-se estes trabalhos em sua maioria ligados a pesquisadores pertencentes às seguintes áreas de pesquisa em seus programas de pós-graduação:

1. políticas educacionais (06 trabalhos);

2. prática pedagógica e formação do educador (03 trabalhos);

3. sociedade cultura e educação (03 trabalhos);

4. processos de desenvolvimento e educação (03 trabalhos);

5. saberes e práticas escolares (02 trabalhos);

6. educação infantil: estudos e pesquisas sobre a educação da criança de 0 a 6 anos e a produção de conhecimento nesta área (01 trabalho);

7. questões epistemológicas e metodologia da pesquisa em psicologia da educação (01 trabalho);

8. métodos educação infantil e materiais (01 trabalho);

9. processos de desenvolvimento humano (01 trabalho);

10. linguagem subjetividade e educação (01 trabalho);

11. epistemologia do trabalho educativo (01 trabalho);

12. ensino-aprendizagem (01 trabalho);

13. universidade e formação de professores para o ensino fundamental (01 trabalho);

14. ensino de ciências e matemática (01 trabalho).

Contudo os trabalhos defendidos em 2000 e 2001 já começam a aparecer como frutos de pesquisas realizadas em áreas de pesquisa, onde se encontram pesquisadores pertencentes tradicionalmente à área de História da Educação, destinadas

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exclusivamente à investigação histórica, nos programas de pós-graduação, como as seguintes:

1. intelectuais, impressos e instituições educacionais (04 trabalhos);

2. filosofia e história da educação no Brasil séculos XIX e XX (01 trabalho);

3. história, historiografia e idéias educacionais (01 trabalho);

4. tendências do pensamento educacional brasileiro (01 trabalho).

Pude encontrar ainda um trabalho de doutorado defendido no programa de pós-graduação em história social da USP.

Quanto às instituições nas quais os trabalhos foram produzidos encontramos um amplo espectro: USP, USP/RP, PUC/SP, PUC/RJ, PUC/PR, PUC/Campinas., UFF, UFU, UNICAMP, UFSC, UNIMEP, UFSCar, UNESP/Araraquara, UFMS, UFMG, UFRGS, UFP e USF. Entretanto USP/SP concentra a maior parte dos trabalhos 08, seguida pela PUC/SP com 07 e UNICAMP com 05.

Como se pode observar os trabalhos em sua grande maioria têm sido produzidos dentro da área de Educação Infantil. A história, na maior parte dos casos, é inserida como um acessório às discussões que se pretende travar. Ainda permanece como forte eixo o ‘Estado e Políticas Educacionais’, apesar do eixo ‘Pensamento Educacional: seus intelectuais e sua difusão’ concentrar o maior número de produção. Entretanto, poucos trabalhos concentram-se no estudo da história da educação infantil anterior à década de 70, perde-se assim, uma perspectiva de longa duração, das (des)continuidades que permitiriam captar os conflitos e rupturas na história desse atendimento. Observamos um número baixo de pesquisas dedicadas ao estudo histórico da

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profissão docente para esta faixa etária, assim como da infância como categoria histórica. Não se estaria explorando pouco esses dois protagonistas e ao mesmo tempo objetos das práticas pedagógicas? Ou o tímido contado com as pesquisas realizadas no campo da história da educação têm contribuído para pequena expressividade dessas investigações na área de educação infantil?. A história regional tem uma aparição significativa, contudo, como a maior parte da produção está concentrada na região sudeste, esta domina expressivamente o cenário das pesquisas, portanto, observa-se uma tendência à falta de representatividade do olhar local e regional para a compreensão das diversidades. Com relação às pesquisas que possuem como foco o Pensamento Educacional gostaria de ressaltar a forte presença de estudos voltados para a aplicação e ideário pedagógico de Friedrich Froebel, Pestalozzi e Montessori, sem, entretanto, trabalhar-se a difusão do ideário desses autores em consonância com sua divulgação fora do Brasil. Não posso deixar de ressaltar que muitos autores importantes para a cristalização de práticas educacionais na educação de crianças menores de 06 anos encontram-se inexplorados ou superficialmente re-visitados, tais como: Claparède, Dewey, Paper-Carpantier, Pauline Kergomard, Comenius entre outros. A existência de somente um trabalho dedicado ao estudo de educadores/as brasileiras/os que se dedicaram à consolidação da educação de crianças menores de 06 no Brasil destaca-se apontando para uma lacuna profunda na difusão do pensamento educacional destinado a essa faixa-etária. A história dos conteúdos de ensino aparece apenas nos estudos sobre rotinas de trabalho na educação infantil, havendo assim uma carência no estudo dos manuais produzidos para serem utilizados com as crianças, bem como os produzidos para a formação de professores. Apenas um trabalho debruçou-se sobre a questão da educação comparada de forma detalhada, a inserção da história da educação infantil brasileira necessita ser visualizada dentro do contexto mundial de estabelecimento de práticas e de produções dedicadas à área.

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Este estudo constata que houve uma ampliação no campo das pesquisas em história da educação infantil, abriu-se o leque de opções investigativas superando-se paulatinamente a quase exclusiva relação com a psicologia. Todavia, confirma-se o que já fora constatado por Rocha (1999, p. 109), ou seja, ainda são poucos os trabalhos de pesquisa que têm como foco a pesquisa histórica, diante do boom da produção nos mestrados e doutorados destinados a educação de crianças menores de 6 anos. Este fato deve-se à ainda existente crença na área de que a história da educação infantil não passa de uma sucessão recente de fatos, ou seja, ainda não se reconhece a historicidade das práticas e produções da área. O que leva muitos pesquisadores a realizar sínteses generalistas desta história como forma de superação do passado, ou seja, o passado aparece como algo distante e muitas vezes ausente das discussões estando o presente quase que desconectado do que o antecedeu. Assim produz-se um número ainda pequeno de investigações que evitem reducionismo e superficialismos e a área torna-se aberta a modismos que muitas vezes não fazem mais do que repetir idéias existentes ou apresentadas em outros períodos da história da educação brasileira e mundial.

Por outro lado, a recorrência desse tipo de equívoco nas pesquisas a respeito da história da educação infantil decorre também da tímida aproximação existente entre os pesquisadores da área de História da Educação e os pesquisadores da área de Educação Infantil. Esta relação frágil foi confirmada no trabalho de Catani e Faria Filho (2001), que realizou um levantamento da produção do G.T. de História da Educação de 1985-2000, aonde se percebe a escassa presença de pesquisas voltadas para a Educação Infantil. O diálogo entre as duas áreas de pesquisa: Educação Infantil e História da Educação é fundamental e será frutífero. A história da educação de crianças menores de 06 anos suas práticas, seu pensamento educacional, sua formação docente, suas instituições educacionais, suas relações de gênero e etnia, seus intelectuais e sua memória ainda carecem de estudos detalhados e

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investigações que as tomem como constituintes de um campo de pesquisa que possa unir interdisciplinarmente essas duas áreas de produção.

Referências

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ARCE, Alessandra (1997) – Jardineira, Tia e Professorinha: a realidade dos mitos – Campo Grande/MS: UFMS, dissertação de mestrado

ARCE, Alessandra (2001) – A Pedagogia na ‘Era das Revoluções’ – uma análise do pensamento de Pestalozzi e Froebel – Araraquara/SP: UNESP, tese de doutorado

BARBOSA, Maria Carmem S. (2000) – Por amor e por força: rotina na Educação Infantil – Campinas/SP: UNICAMP, tese de doutorado.

BASTOS, Maria H. C., BENCOSTTA, Marcus L. A. & CUNHA, Maria Tereza Santos (s/d) – Uma cartografia da pesquisa em História da Educação na Região Sul: Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul (1980-2000) - impresso.

BATISTA, Maria Aparecida C. (1996) – O Primeiro ‘Kindergarten’ de São Paulo visão da família e educação dos Protestantes Americanos e a Metodologia Froebeliana – São Paulo/SP: USP, dissertação de mestrado

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CONRAD, Helga Margarete (2000) – O Desafio de ser pré-escola, as idéias de Friedrich e o início da educação infantil no Brasil – Curitiba/PR: PUC, dissertação de mestrado

FAGUNDES, Magali R. dos (1997) – A creche no trabalho... O trabalho na creche: um estudo do centro de convivência infantil da UNICAMP, trajetória e perspectiva – Campinas/SP: UNICAMP, dissertação de mestrado

FARIA FILHO, Luciano Mendes de & CATANI, Denice Barbara (2001) – Um lugar de produção e a produção de um lugar: História e Historiografia da Educação Brasileira nos anos 80 e 90 – a produção divulgada no G.T. História da Educação – divulgação eletrônica site www.anped.org.br

FARIA, Ana Lúcia Goulart de (1994) - Direito a Infância: Mario de Andrade e os Parques Infantis para as crianças de família operária na cidade de São Paulo (1935-1938) – São Paulo/SP: USP, tese de doutorado

FILHO LEITE, Aristeo G. (1997) – Educadora de Educadores: trajetória e idéias de Heloísa Marinho – Rio de Janeiro/RJ: PUC, dissertação de mestrado

GARCIA, Eliane O de (1998) – O Ministério da Educação e do Desporto e a Política Nacional para a Educação Infantil no Brasil: 1993-1996 – São Paulo/SP: USP, dissertação de mestrado.

GIACOMO, Ana Maria (1994) – Condicionantes Históricos Políticos e legais da Educação Pré-Escolar: um estudo sobre especificações e normas – Piracicaba/SP: UNIMEP, dissertação de mestrado.

GOMES, Marineide O. de (1996) – As Creches na trajetória de Governos Democráticos: a experiência de Diadema-SP (1983-1996) – São Paulo/SP: USP, dissertação de mestrado

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GOULART, Áurea Maria P. L. (1994) – O Projeto Pedagógico de Maria Montessori – São Paulo/SP: USP, dissertação de mestrado

GUIMARÃES, Horácio G. (1999) – Canto e Ocupação no Jardim de Infância anexo a Escola Normal de São Paulo nas Primeiras Décadas da República – São Paulo/SP: PUC, dissertação de mestrado

HERMANN, Jussara Neptune (1995) – Poder Local e Educação Infantil em Piracicaba, SP: 1977 a 1995 – Campinas/SP:UNICAMP, tese de doutorado

KISHIMOTO, Tizuko M.(1988) – A pré-escola em São Paulo (1877-1940) – São Paulo: Loyola.

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MELLO, Débora (1998) – As ações assistenciais na criação da creche na Porto Alegre da década de 30: entre a qualidade e a filantropia – Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dissertação de mestrado.

MENDES RODRIGUES, Raimunda L. (1997) – Educação Infantil: da necessidade histórica da pré-escola às lutas pela sua difusão atual – o caso de Belém do Pará – Campinas/SP: PUC, dissertação de mestrado

MONÇÃO, Ana Amélia Carneiro (1995) – A política de Educação Infantil no município de Piracicaba: o discurso pedagógico – 1989 a 1992 – Piracicaba/SP: UNIMEP, dissertação de mestrado

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OLIVEIRA, Solange L. de (1999) – Sistema Montessori de Educação no Brasil: memórias das pioneiras nos cursos de formação de professores – São Paulo/SP: PUC, dissertação de mestrado

PICANÇO, Mônica B. M. de (1997) – A creche na rede pública municipal (1978-1996) – Rio de Janeiro/RJ: UFF, dissertação de mestrado

PICELLI, Lucyelena A (2001) – Produção Científica sobre Educação Infantil nos Mestrados e Doutorados em Educação Física no Brasil – Uberlândia/MG: UFU, dissertação de mestrado

PINAZZA, Mônica Appezzato (1997) – A Pré-Escola Paulista à Luz das Idéias de Pestalozzi e Froebel: memória reconstituída a partir de periódicos oficiais – São Paulo/SP: USP, Tese de doutorado

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RAMOS, Maria Martha S. (2001) – História da Educação Infantil Pública Municipal de Campinas – 1940-1990 – Bragança Paulista/SP: USF, dissertação de mestrado.

ROCHA, Eloísa A. C. (1999) – A Pesquisa em Educação Infantil no Brasil: Trajetória Recente e Perspectivas de Consolidação de uma Pedagogia – Campinas/SP: UNICAMP, tese de doutorado.

SALOMÃO, Júlio César (1999) – Infância e Educação Infantil nos documentos e legislações nacionais e internacionais – Uberlândia/MG: UFU, dissertação de mestrado

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SILVA, Anamaria S. da (1997) – Políticas de atendimento à criança pequena em MS – 1983-1990 – Campinas/SP: UNICAMP, dissertação de mestrado

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em Pelotas – Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, dissertação de mestrado.

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VIEIRA, Lívia, M. F. (1986) – Creches no Brasil: de mal necessário a lugar de compensar carências; rumo à construção de um projeto educativo – Belo Horizonte/MG: UFMG, dissertação de mestrado.

VILARINHO, Lúcia R. G. (1987)- A educação pré-escolar no mundo e no Brasil: perspectivas histórica e crítico-pedagógica – Rio de Janeiro: UFRJ, tese de doutorado.

Alessandra Arce - Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos, e-mail [email protected].

Recebido em: 23/02/2007 Aceito em: 15/03/2007

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 133-158, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

A ZOOLOGIA FILOSÓFICA NO BRASIL: EXPLORANDO AS MODERNAS CORRENTES DO PENSAMENTO CIENTÍFICO NO COLLÉGIO DE

PEDRO II EM MEADOS DO SÉCULO XIX1 Karl M. Lorenz

Resumo As Ciências Naturais foram ensinadas na escola secundária pública brasileira a partir de 1837 com a fundação do Imperial Collégio de Pedro II no Rio de Janeiro. Em 1841 foi introduzida no currículo a Zoologia Filosófica, uma matéria teórica, complementar aos estudos tradicionais da Zoologia, que permaneceu até ser suprimida em 1855. A Zoologia Filosófica era uma matéria intrínseca ao Colégio de Pedro II, uma vez que não existia nos colégios brasileiros da época outra semelhante, nem mesmo nos liceus franceses. Embora não haja informações sobre os conteúdos de que tratava, tem-se o programa de exames de 1850, em que quarenta pontos são listados. Mediante uma análise dos pontos, foi possível identificar os conteúdos ensinados. A análise demonstra que, em contraste com os conceitos tradicionais da Zoologia Descritiva, a Zoologia Filosófica abordou conceitos, grandes teorias e especulações sobre a origem, as transformações e o crescimento dos animais, que circulavam na Europa, e particularmente na França, na primeira metade do século XIX. No estudo, constata-se que foi uma matéria excepcional por ser a única no Brasil a tratar da Zoologia teórica nos moldes da Naturalfilosofie, prevalecente na Alemanha e explorada na França por Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, Étienne Serres e outros cientistas de renome. Palavras-chave: Ensino de Ciências; História Natural; Ensino Secundário; História das Disciplinas; Collégio de Pedro II.

THE PHILOSOPHICAL ZOOLOGY IN BRAZIL: EXPLORING THE MODERN APPROACHES OF THE SCIENTIFIC THINKING IN THE “D. PEDRO” SCHOOL AT THE

BEGINNING OF THE XIX CENTURY Abstract The natural sciences were taught in the public secondary schools in Brazil beginning in 1837 with the founding of the Imperial College Pedro II in Rio de Janeiro. In 1841, the course, Philosophical Zoology, was introduced as a theoretical discipline that complimented the standard content taught in the more traditional course of Zoology and that

1 Este trabalho foi apresentado no VII Congresso Iberoamericano de Historia da la Educación Latinoamericana, em Quito, Ecuador, em setembro de 2005.

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remained in the curriculum until 1855. It was a course unique to the College Pedro II, since it was not offered in other Brazilian colleges of the period, or in French lyceums. While there is no information available about the contents taught in the course, there does exist the final examination of the course for the year 1850, in which forty questions are listed. Based on an analysis of these questions, it was possible to identify the contents taught in the course. The analysis shows that, in contrast to the traditional content of descriptive zoology, Philosophical Zoology dealt with concepts, grand theories and speculations about the origin, transformation and development of animals, all of which that were circulating in Europe, and particularly in France, in the first half of the XIX century. The study shows that Philosophical Zoology was exceptional because it was the only course offered in Brazil that dealt with theoretical zoology within the Naturalfilosofie tradition prevalent in Germany, and promoted in France by Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, Étienne Serres, and other renowned scientists. Keywords: Science Teaching; Natural History; Secondary Education; History of Disciplines; Colégio de Pedro II.

LA ZOOLOGÍA FILOSÓFICA EN BRASIL: EXPLORANDO LAS MODERNAS CORRIENTES DEL PENSAMIENTO

CIENTÍFICO EN EL COLLÉGIO DE PEDRO II A MEDIADOS DEL SIGLO XIX

Resumen Las Ciencias Naturales fueron enseñadas en la escuela secundaria pública brasileña a partir de 1837 con la fundación del Imperial Collégio de Pedro II en Rio de Janeiro. En 1841 fue introducida en el currículo la Zoología Filosófica, una materia teórica, complementar a los estudios tradicionales de la Zoología, que permaneció hasta ser suprimida en 1855. La Zoología Filosófica era una materia intrínseca al Colegio de Pedro II, una vez que no existía en los colegios brasileños de la época otra semejante, ni mismo en los liceos franceses. Aunque no haya informaciones sobre los contenidos de que trataba, hay el programa de exámenes de 1850, en que cuarenta puntos son listados. Tras un análisis de los puntos, fue posible identificar los contenidos enseñados. El análisis demuestra que, en contraste con los conceptos tradicionales de la Zoología Descriptiva, la Zoología Filosófica abordó conceptos, grandes teorías y especulaciones sobre el origen, las transformaciones y el crecimiento de los animales, que circulaban en Europa, y particularmente en Francia, en la primera mitad del siglo XIX. En el estudio, se constata que fue una materia excepcional por ser la única en Brasil a tratar de la Zoología teórica en los moldes de la Natura lfilosofie, prevaleciente en Alemania y explorada en Francia por Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, Étienne Serres y otros renombrados expertos científicos. Palabras-clave: Enseñanza de Ciencias; Historia Natural; Enseñanza Secundaria; Historia de las Disciplinas; Collégio de Pedro II.

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Introdução

Entre os anos de 1838 e 1900, constaram no currículo do Colégio de Pedro II sete disciplinas básicas de Ciências: Física, Química, Astronomia/Cosmografia, Zoologia, Botânica, Mineralogia e Geologia. Em momentos distintos, mas efêmeros, ensinavam-se também as disciplinas de Higiene, Biologia e Meteorologia. No currículo oitocentista, a seqüência dos estudos científicos normalmente começava com Zoologia e Botânica, era seguida por Física e Química e terminava com Mineralogia e Geologia. Os pares de disciplinas apareceram na mesma série ou em séries contíguas (Lorenz, 2003, p. 67).

Em 1841, apareceu no último ano do currículo a matéria Zoologia Filosófica, que figurou no currículo até 1855, quando foi suprimida. Como demonstraremos, a inclusão dessa matéria no currículo do Colégio de Pedro II representa um fenômeno singular na história do Ensino Secundário no Brasil, visto que não aparece nos colégios brasileiros da época outra disciplina semelhante – e tampouco nos programas secundários emitidos pelo Ministère de l’Instruction Publique da França.2 Por não terem existido programas de estudos para as matérias ofertadas no Colégio antes de 1856, não há informações sobre os conteúdos da Zoologia Filosófica. O que se tem é o programa de exames de 1850, que inclui os pontos a serem testados.

O objetivo deste trabalho é desvelar a natureza da disciplina mediante uma análise dos tópicos propostos no exame. Pretende-se, portanto, identificar e colocar em seu contexto 2 Nos atos legislativos da França, entre 1800 e 1860, indicados por Belhoste, não se registra nenhuma disciplina autônoma que vincula o estudo da Zoologia com a especulação filosófica ou teórica, conforme evidenciado na Zoologia Filosófica ministrada no Colégio de Pedro II. Ver Belhoste, B. Les Sciences dans l’enseignement secondaire français. Textes officiales. Tomo 1: 1789-1914. Paris: Institut National de Recherche Pédagogique, 1995, p. 135-139.

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histórico os tópicos discutidos em sala de aula, sempre levando em consideração que, por falta de fontes primárias referentes à matéria, a caracterização do seu ensino é, em parte, hipotética.

Zoologia

Para melhor entender a organização e o significado da Zoologia Filosófica, é importante, primeiro, descrever o estudo da Zoologia no Colégio de Pedro II. A partir de meados do século XIX, a disciplina estava bem estabelecida no currículo daquela instituição. Na época, definia-se a Zoologia como o estudo dos caracteres, usos e costumes dos animais. Dividiu-se a ciência em Zoologia Geral, que estuda a anatomia e a fisiologia comparada dos animais, e em Zoografia ou Zoologia Descritiva, que agrupa os animais de acordo com um sistema de classificação. Alguns autores também distinguiam a Paleontologia Zoológica, que se ocupa dos animais fósseis; a Teratologia, que trata das monstruosidades animais; e a Antropologia, que investiga a história natural da espécie humana..3 Todos os livros didáticos adotados no Colégio incluíam conceitos sobre a Zoologia Descritiva (Lorenz, 1986).

Os textos de Zoologia do Colégio focalizavam a discussão da anatomia e das funções fisiológicas dos animais, isto é, respiração, nutrição, digestão, circulação, sensações etc. O estudo da anatomia e da fisiologia facilitava comparações e discussões das semelhanças e diferenças das várias espécies e a organização dos animais em grupos, com base nos órgãos homológicos e analógicos que possuíam. Durante aquele século, os 3 As subdivisões da Zoologia aparecem no "Quadro Synoptico a Divisão das Sciencias Naturaes" em Maia, Emilio. Quadros synopticos do reino animal, onde se adopta o methodo natural de Cuvier com as precisas modificações conforme o estado atual da sciencia, organizados para facilitar o estudo da zoologia no internato e externato do Collegio de Pedro II. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1858.

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textos costumavam dedicar um grande número de páginas à classificação de animais em tipos e subtipos, de acordo com as linhas gerais do sistema taxonômico de Cuvier, o zoólogo e anatomista francês mais afamado da primeira metade do século.

Georges Cuvier (1769-1832) regeu a cadeira de Anatomia Comparada do Muséum d’Histoire Naturelle em Paris de 1802 a 1832 e a cadeira de Fisiologia Comparada da mesma instituição em 1837 e 1838. Ocupou vários cargos oficiais no Ministère de l’Instruction Publique e comissões que estabeleceram os programas e métodos de ensino de História Natural em todo o país. Até meados do século XIX, suas idéias sobre a classificação dos animais foram as que mais influenciaram a trajetória da pesquisa e do ensino de Zoologia na França e no exterior. Em seu trabalho Le règne animal (1817), Cuvier argumenta que os animais podem ser classificados em quatro grupos, cada qual representando um tipo anatômico, de acordo com seu sistema nervoso. Segundo ele, os grupos são: a) os Vertebrados, que têm cérebro e coluna vertebral; b) os Moluscos, que manifestam um sistema nervoso constituído de massas neurais separadas; c) os Articulados, que apresentam um sistema nervoso que consiste de dois cordões ventrais; e d) os Radiados, que englobam os animais com simetria radial, e não simetria bilateral, conforme observado nos animais dos outros três grupos. Cuvier subdividiu os quatro grupos em dezenove classes (Mason, 1962, p. 381).

No decorrer dos anos, vários zoólogos fizeram leves modificações do sistema de Cuvier. Um dos mais destacados a partir da década de 1840 foi o sistema de Henri Milne-Edwards (1800-1885), professor de Zoologia da Sorbonne e regente de duas cadeiras no Muséum d’histoire naturelle. Milne-Edwards criou um sistema taxonômico que mantinha os grupos de Cuvier, mas o subdividia em oito subdivisões e vinte e seis classes (Desplats, 1887, p. 507). Nos livros de Zoologia do Colégio predominou a classificação dos animais segundo os quatro grupos de Cuvier, acrescidas das modificações feitas por Milne-Edward.

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O professor que ensinava Zoologia no Colégio de Pedro II era Emilio Joaquim da Silva Maia (1808-1859), diretor da Secção de Zoologia e Anatomia Comparada do Museu Nacional de História Natural no Rio de Janeiro. Bacharel em Filosofia Natural pela Universidade de Coimbra e Doutor em Medicina pela Faculdade de Paris, foi membro de várias associações profissionais brasileiras e européias. De 1838 a 1859, Maia foi lente da cadeira de Ciências Naturais do Colégio. No final de seu mandato, Maia publicou o primeiro texto brasileiro de História Natural utilizado no Colégio, os Quadros synópticos do reino animal (1858). O livro mostra cinco quadros que sumarizam a organização das Ciências Naturais e os quatro grandes ramos do sistema de Cuvier, com suas classes, famílias etc., apresentados em ordem descendente. O texto foi adotado na instituição de 1858 até possivelmente 1876 (Vechia & Lorenz, 1998, p. 29).

Zoologia Filosófica

Além das quatro matérias tradicionais de História Natural, Maia também ensinava a Zoologia Filosófica. A disciplina, de uma hora-aula semanal, foi introduzida no sétimo ano do programa de 1841, permanecendo até 1855, quando foi suprimida pela reforma do Ministro Couto Ferraz. Em seus Quadros synopticos, Maia identificou seis subdivisões da Zoologia, entre elas a Zoologia Filosófica, que ele definiu como o estudo do desenvolvimento orgânico dos animais.4 Em contraste com a Zoologia Geral e a Descritiva, que se ocupavam da transmissão de grande quantidade de fatos sobre fisiologia, anatomia e taxonomia dos animais, a Zoologia Filosófica explorava as idéias, algumas controversas, sobre os campos de estudo ignorados nos textos tradicionais de Zoologia. Tratou, sob vários pontos de vista, do

4 A definição aparece no "Quadro Synoptico a Divisão das Sciencias Naturaes" em Maia, op. cit.

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desenvolvimento orgânico dos animais, como explorado pelos proponentes da Naturalfilosofie, prevalecente na Alemanha, e nos trabalhos menos ortodoxos de Jean Lamarck, Étienne Geoffroy Saint-Hilaire e Étienne Serres. Na primeira metade do século XIX, esse era um campo de estudo polêmico que, por ser considerado demasiado especulativo, não foi tratado nos textos tradicionais de Zoologia.

A denominação "Zoologia Filosófica" é derivada do "Philosophie Zoologique", termo que se refere ao estudo teórico da Zoologia. O título era coerente com um movimento que se manifestou no final do século XVIII e início do século XIX, que promoveu maior especulação no campo das ciências empíricas. O tratamento mais "filosófico" das ciências resultou em vários trabalhos, como Philosophie chimique (1792) de Fourcroy, Philosophie zoologique (1809) de Jean Baptiste Lamarck, Philosphie anatomique (1822) e Principes de philosophie zoologique (1830) de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire. Destas, a última obra merece um comentário especial.

Em março de 1830, uma série de debates entre Cuvier e Saint-Hilaire, os dois anatomistas mais afamados do continente europeu, cativou a comunidade científica francesa. Perante a Académie, Cuvier e Saint-Hilaire debateram suas doutrinas e, especialmente, a "Unidade de Composição" dos animais. Nessa questão, estava implícita a noção de que existe uma forma anatômica única na Natureza; uma idéia que Saint-Hilaire aceitou, mas que Cuvier rejeitou. Após o encontro, Saint-Hilaire publicou um relato dos argumentos do debate em seus Principes de philosophie zoologique (1830). O trabalho levantou muito interesse nos círculos científicos da Europa e logo gerou discussões sobre o significado do debate. Com o tempo, numerosas publicações dos discípulos de ambos caracterizavam o debate como um confronto entre duas metodologias. Cuvier, que representava um lado do debate, argumentou que a Zoologia era uma ciência baseada em observações sistemáticas do mundo animal. Segundo ele, a função do zoólogo é coletar e organizar os fatos, e não teorizar sobre eles.

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Saint-Hilaire, por sua vez, adotava a posição de que o zoólogo não devia restringir-se à observação e classificação dos animais, mas também devia especular sobre as diferenças entre os organismos, seu desenvolvimento anatômico e a maneira como eles aparecem na Terra (Appel, 1987, p. 170-174). Como será demonstrado, as doutrinas dos dois anatomistas refletiram nos tópicos discutidos na Zoologia Filosófica.

O exame de 1850

A primeira referência à Zoologia Filosófica é feita em 1841, quando a reforma educacional do Ministro do Império, Carlos Ribeiro de Andrade, inseriu-a no currículo do Colégio de Pedro II. Informações sobre o programa da matéria são inexistentes, pois somente a partir do estabelecimento do Ministério da Instrução Pública, em 1856, começaram a ser publicados os programas oficias do Colégio. Porém, há um documento oficial, o Programa de exame para o ano de 1850, que lista quarenta questões ou pontos a serem testados na matéria (Vechia & Lorenz, 1998, p. 1). Na época, os alunos prestavam exame final, no qual tinham que fazer uma exposição sobre um número determinado de pontos, selecionados de uma lista maior, elaborada pelo professor.

A relação dos pontos demonstra que os temas abordados são variados e sintéticos, alguns repetitivos – pois tratam do mesmo assunto – sobre conceitos já estabelecidos, como o sistema de classificação de Cuvier; e conceitos em ascensão, como os relacionados à Organogenia, à Embriogenia e à Teratologia. Os pontos do Exame sobre a Zoologia Filosófica são apresentados a seguir.

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Programa de exame

1. O que he Zoologia Philosophica?

2. Em toda a serie de animaes existentes ha verdadeira progressão?

3. Qual a marcha seguida pela natureza na organização animal?

4. O que he Organogenia?

5. O que he Embriogenia?

6. O que é Epigénese?

7. O que he Perigénese?

8. Sacos germinadores, e sua composição.

9. Existe escala animal?

10. Na collocação methodica dos animaes, a qual dos dous grandes ramos se deve dar a precedencia, aos Articulados ou aos Molluscos?

11. Qual a marcha seguida pela natureza no desenvolvimento dos orgãos animaes? – será elle centrifugo ou centripeto?

12. Quaes as leis que se observão no desenvolvimento de todos os animaes?

13. Representar-nos-ha o Homem a organologia de todos os ouros animaes?

14. Primeira folha do saco germinador?

15. Segunda folha do saco germinador?

16. Qual a lei da dualidade e da symmetria dos organismos?

17. Qual a lei do equilíbrio dos organismos?

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18. Quantos serão os typos da organização animal?

19. O grande ramo dos Radiados poderá constituir hum typo?

20. O meio em que o animal vive influirá na sua organização, usos e costumes?

21. Qual a lei da conjuncção ou união dos órgãos?

22. Que peso se deve dar á opinião dos antigos, quando chamavão ao homem microcsomo?

23. O que he disco prolifero?

24. Metamorphoses animaes?

25. Terceira folha do saco germinador?

26. Será exacta a existencia de quatro typos na organizacão animal?

27. Existirá hum só typo na organizacão animal?

28. Quaes os caracteres para podermos dizer com certeza o que seja hum animal?

29. Permanencia das especies zoologicas.

30. Como se poderão explicar as grandes lacunas que hoje existem entre ordens, e até entre classes de animaes?

31. Entre o homem e os outros animaes existem semelhanças reaes, ou está elle inteiramente separado?

32. Unidade na organização animal.

33. Na opinião dos que admittem mais de hum typo, quaes os caracteres de cada um delles?

34. Qual a opinião de Geoffroy-Saint-Hilaire sobre os typos animaes?

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35. Anamolias, e monstruosidades.

36. O conhecimento das monstruosidades servirá para a questão dos typos animaes?

37. Monstros simples, e monstros compostos.

38. Todo animal procederá de hum ovo?

39. A organogénia do coração dos animaes superiores reproduzirá successivamente a estructura permanente e fixa das classes inferiores?

40. A organogénia do apparelho de nutricão dos animaes superiores reproduzirá successivamente a estructura do das classes inferiores?

Embora o Programa de exame de 1850 seja um documento sucinto, ainda é possível deduzir dos pontos nele contidos os conteúdos do programa de estudos da Zoologia Filosófica. Assim, quando um ponto do exame é relacionado aos argumentos e às suposições apresentados neste trabalho, é identificado no texto pela letra "P" e o número do ponto. Por exemplo, se a narração refere-se ao ponto seis do exame, "O que é Epigénese?", aparece no texto "P-6".

Transmutação das espécies

Nossa análise começa com a observação do professor Maia, que em seus Quadros synopticos escreveu: "todos os animaes grandes ou pequenos, terrestres ou aquáticos, passão por metamorphoses, quer na vida ovariana, quer fora della" (Maia, 1858, p. xi). Constata-se, então, que a Metamorphose Animal, P-24, era o tema geral abordado na Zoologia Filosófica, e que foi dividida em dois eixos temáticos: a Transmutação das Espécies e a Transmutação do Organismo. Quanto à Transmutação das

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Espécies, foram estudados conteúdos relacionados aos conceitos de escala animal, da evolução e do plano anatômico universal.

Escala Animal e Evolução

O P-9 do Exame de 1850 indaga se existe uma "escala animal". Essa noção teve sua origem com Jean Baptiste Robinet (1735-1820), naturalista francês que, entre 1761 e 1768, publicou uma obra de cinco volumes, na qual argumentou que todas as espécies animais, no presente e no passado, formam uma escala linear baseada em sua estrutura. A escala, que é sem lacunas, ou duplicação de grades, vai da espécie mais simples à mais complexa, com o homem no ápice. A noção de escala animal foi incorporada na explicação da evolução do mundo animal, que propôs que as espécies, através do tempo, continuamente se transformam para alcançar níveis mais altos em seu desenvolvimento (P2 e P3). Uma variação dessa tese evolucionista foi apresentada pelo naturalista suíço Jean Charles Bonnet (1720-1793), que, em 1770, teorizou que, no passado, catástrofes naturais eliminaram algumas espécies e as substituíram por outras mais desenvolvidas.

O conceito de escala animal assumiu importância nas lições de Zoologia Filosófica por introduzir as discussões sobre as mudanças sofridas pelo reino animal através do tempo. Sabe-se, por exemplo, que a formulação e a articulação do conceito por Robinet influenciaram Jean Baptiste Lamarck (1744-1829), venerável naturalista francês, quando este desenvolveu sua teoria sobre a evolução das espécies no final do século XVIII. Em sua destacada obra Philosofie zoologique (1809), Lamarck teorizou que existe uma disposição interna em cada animal que, na tentativa de alcançar a perfeição, leva-o a adaptar-se a seu ambiente. Nesse ato de adaptação, o animal usa certos órgãos e desiste de usar outros. Por seus esforços, os órgãos utilizados se desenvolvem, e os não

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usados se atrofiam, com as devidas mudanças anatômicas aparecendo em gerações subseqüentes.

Lamarck formulou duas leis que governavam esse processo evolucionário: a Lei de Uso e Desuso dos órgãos e a Lei de Transmissão das Características Adquiridas dos órgãos às novas gerações (Lamarck, 1809). Devem ser estas algumas das leis sugeridas no P-12 do exame: "Quaes as leis que se observão no desenvolvimento de todos os animaes?". Anos mais tarde, o eminente zoólogo Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844) concordou com a tese de Lamarck de que existe uma relação dinâmica entre o desenvolvimento do animal e seu ambiente, mas com a ressalva de que as variações anatômicas das espécies são devidas ao efeito da Natureza sobre o desenvolvimento do embrião – e não do uso e desuso dos órgãos. Assim, ao tratar da transmutação das espécies, os alunos na matéria deveriam ter enfrentado a questão explicitada no P-20: "O meio em que o animal vive influirá na sua organização, usos e costumes?".

Cuvier, por sua vez, aceitou a teoria de Bonnet e rejeitou as idéias evolucionistas propostas por Lamarck e adaptadas por Saint-Hilaire. Com base em suas pesquisas sobre fósseis de animais extintos, Cuvier argumentou que a estrutura anatômica, que caracteriza os animais de cada um de seus quatro grupos principais, sempre existiu; que as espécies eram permanentes e imutáveis, e as mudanças sofridas por elas através do tempo se devem às catástrofes naturais (P-29). Estas reconfiguram o quadro animal no passado, resultando no desaparecimento de algumas espécies e no surgimento de outras.5

O P-30 levanta a pergunta "Como se poderão explicar as grandes lacunas que hoje existem entre ordens, e até entre classes de animaes?". Propõe-se que, em resposta, foram discutidos dois

5 Décadas mais tarde, Charles Darwin (1809-1882) apresentou em seu livro Origin of species (1859) sua Teoria da Seleção Natural. Darwin refutou a noção da imutabilidade das espécies como defendida por Cuvier e reafirmou a posição menos estática de Lamarck e Saint-Hilaire.

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pontos de vista, representados pelas idéias de Cuvier e de Lamarck. Para Cuvier, eram as catástrofes a causa da extinção de grandes grupos de animais no passado, resultando nas referidas "lacunas" no quadro histórico da Terra. Para Lamarck, todos os animais na escala animal existiram no passado e as "lacunas" no quadro histórico são devidas à falta de evidência – ou seja, os restos animais ainda não descobertos – da existência desses animais. Presupõe-se que, das duas teorias, a de Cuvier predominou nas discussões em sala de aula.

Ao final, qual foi a posição do Professor Maia sobre a escala animal? Nos Quadros synopticos, Maia questionou a lógica da existência do conceito no seguinte trecho: "Cumpro todavia advertir que hoje não se admitte escala animal como Linnêo a entendia, pois se de hum lado alguns grupos de animaes são ligados huns aos outros como anneis de huma mesma cadêa, de outro esta cadêa ve-se interrompida, isto he, algumas vezes entre dois animaes que mais se assemelhão entre si, encontrão-se differenças notaveis, ou intervallos mui grandes, que não são nem serão nunca preenchidos. Reconhecida esta discontinuidade a serie continua entre os animaes desapparece; e pelo que nestes ultimos annos o chefe dos Naturalistas Francezes Isidore Geoffroy substituio a classificação unilinearia pela classificação por series parallelas composta cada huma de termos, cuja analogia reciproca seja facil demonstrar por factos; idêas estas que achando-se ainda em começo, longe estão de serem geralmente admittidas" (Maia, 1858, p. xii). Fica claro que a discussão em sala de aula deveria ter examinado o velho e o novo conceito de escala animal, mas a preferência de Maia parece voltada ao segundo.

Plano Anatômico Universal

A existência de uma escala animal depende do pressuposto de que há na Natureza um plano anatômico universal que as espécies tentam lograr no decorrer de seu desenvolvimento.

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Para os antigos, a forma culminante é aquela assumida pelo homem; é o Homem que demonstra o plano estrutural ideal que os seres orgânicos possuem em graus diferentes. A idéia do homem sendo um "microcosmo" do Universo, como referenciado no P-22, foi primeiramente desenvolvida pelos filósofos da antiguidade, e depois retomada pela Naturalphilosophie alemão na segunda metade do século XVIII. Na França, essa noção influenciou naturalistas importantes como Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, que no primeiro tomo do seu Philosophie anatomique (1818) energicamente defendeu a tese de que existe um plano anatômico universal para os animais.

Cuvier, por sua vez, negou a posição de Saint-Hilaire de que há um plano anatômico padrão, referindo-se ao seu sistema de classificação animal e à evidência que o sustentou. Apontou tanto para as semelhanças das espécies dentro de cada um dos quatro grupos principais quanto para as diferenças entre as espécies de um grupo e as dos outros grupos. Concluiu que, embora talvez houvesse um plano estrutural que tipificasse cada grupo principal, os fatos desmentiam a existência de um plano padrão para os quatro grupos em sua totalidade. Para ele, qualquer tentativa de vincular estruturalmente as espécies dos grupos e impor um padrão anatômico sobre elas é meramente um ato da imaginação.

Vários naturalistas discordaram do raciocínio de Cuvier. Além de Saint-Hilaire, que alegou que os planos estruturais dos quatro grupos seguem um plano anatômico universal, Henri Marie Ducrotay de Blainville (1777-1850), contemporâneo de Cuvier e grande naturalista e historiador de Ciências, defendeu, em 1822, a tese de que existe um vínculo entre as espécies dos quatro embranchements de Cuvier. Aderindo à noção de uma escala animal, organizou as vinte e seis classes de animais dos quatro grupos Cuverianos em ordem descendente, desde mamíferos até dendrolithares – a classe animal mais elementar e o ponto de ligação com as plantas (Blainville, 1822). Henri Milne-Edwards (1800-1885), outro ilustre naturalista e colega de Cuvier no Muséum d’Histoire Naturelle, também discordou da posição de

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Cuvier de que as espécies eram fixas e não podiam ser comparadas entre si. Ao contrário, em sua Introduction à la zoologie générale (1851) argüiu que é possível empiricamente confirmar que algumas espécies são mais complexas que outras, e, assim, mais perfeitas que outras – definindo "perfeição" como sendo o nível mais alto de complexidade anatômica e fisiológica. Segundo Milne-Edwards, o nível mais alto de complexidade e o plano ideal da Natureza são representados pelo Homem.

A indagação de P-18, "Quantos serão os tipos da organização animal?", demonstra que o conceito de um plano anatômico universal foi explorado na Zoologia Filosófica. Visto que o sistema de classificação animal de Cuvier predominou nas aulas de Zoologia no Colégio, amplo espaço foi dado à sua posição, conforme ilustrado nos P-10, P-19 e P-26. Ao lado disso, conforme o P-27, foi discutida a doutrina da existência de um único tipo de organização, com ênfase particular na posição de Geoffroy Saint-Hilaire (P-34). A possibilidade de terem sido estudadas as idéias de outros naturalistas sobre a organização animal, como as de Blainville e de Milne-Edwards, é sugerida no P-33, que pergunta: "Na opinião dos que admittem mais de hum typo, quais os caracteres de cada um delles?"

Transmutação do organismo

O segundo e mais enfatizado tema abordado na Zoologia Filosófica refere-se ao desenvolvimento embrionário do organismo, ou seja, Epigênese. O P-12 leva-nos a propor que, da mesma maneira que as leis que governam a transmutação das espécies foram delineadas, as leis que governam o desenvolvimento do embrião, e, especificamente, seus órgãos, foram discutidas. Esse conjunto de leis morfológicas constituíam, na época, a

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chamada "Philosophie Transcendental", ou "Philosophie Anatomique".6

Nas primeiras décadas do século XIX, duas idéias contrárias – uma antiga e outra moderna – explicavam o desenvolvimento embrionário dos animais. A Teoria de Preformação ditou que o corpo do organismo já é completamente desenvolvido na condição de ovo. O corpo embrionário, pré-formado, assim cresce, até assumir as dimensões normais do organismo. A Teoria de Epigênese, ao contrário, afirma que o ovo consiste de material homogêneo e amorfo que, durante seu crescimento como embrião, se diferencia em diversas estruturas anatômicas.

Alguns proponentes da Epigênese argüiram que o desenvolvimento embrionário do organismo estava sujeito às influências do ambiente. Saint-Hilaire, conforme explicado anteriormente, propôs a idéia de que variações nas condições físicas e químicas do ambiente podem afetar o desenvolvimento do embrião e, assim, alterar sua anatomia. Em um trabalho publicado em 1825, Saint-Hilaire até citou a teoria de Lamarck em apoio à sua explicação do efeito direito do ambiente sobre o corpo embrionário (Appel, 1987, p.132). Cuvier, em contrapartida, defendeu a idéia da preformação. Embora pouco motivado pela lógica do preformismo, que era questionável, ele defendeu a teoria porque considerou as doutrinas de Epigênese sem fundamentação e demasiado especulativas.

Nas décadas que precederam a reforma curricular de 1841 do Colégio de Pedro II, Cuvier, Saint-Hilaire e outros cientistas debateram as duas teorias, com a Epigênese, ganhando em credibilidade devido ao acúmulo de dados em seu apoio. O fato de o professor Maia ter enfrentado uma discussão da Teoria de Epigênese no programa da Zoologia Filosófica, dando bastante 6 O termo "philosophie transcendental" foi introduzido por Étienne Serres, e na época foi um sinônimo do termo "philosophie anatomique", popularizado por Étienne Geoffroy Saint-Hiliare. Ver Appel, 1987, p. 122.

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espaço às idéias sobre o desenvolvimento embrionário do organismo, leva-nos a concluir que favoreceu essa teoria e, particularmente, os princípios fundamentais dela derivados, que constituíram os campos de investigação da Embriogenia e da Organogenia.

Embriogenia

Um dos assuntos mais estudados na Zoologia Filosófica foi a formação do embrião, cujo estudo foi conhecido no tempo de Maia como Embriogênese ou Embriogenia, (P-5). Essa ciência foi iniciada na Alemanha, e introduzida e desenvolvida na França nas décadas de 1830 e 1840 por Étienne Reynaud Augustin Serres (1786-1868) e, em menor grau, por Étienne Geoffroy Saint Hilaire. Contemporâneo de Cuvier e discípulo e colaborador de Saint-Hilaire, Serres foi eleito à seção de Anatomia e Zoologia da Académie des Sciences em 1828, e nomeado professor de Anatomia Humana no Muséum d’Histoire Naturelle em 1839.

As investigações de Serres e Saint-Hilaire sobre a composição e o desenvolvimento do embrião da galinha refutaram a Teoria de Preformação, como defendido por Cuvier, e fixaram definitivamente a idéia de que todos os animais originaram-se de um ovo, o qual passa por fases distintas em seu desenvolvimento. O P-38 do Exame demonstra que os alunos do Colégio deveriam ter discutido a proposição de Maia: "Em nossos dias milhares de factos colhidos no estudo da embriogenia das ultimas classes animaes, tambem deixão fóra de toda a duvida, não só que he de maior exatidão a clássica expressão do grande Harvey – todo o ser orgânico provem d’hum ovo…" (Maia, 1858, p. xi). Referindo-se aos detalhes do desenvolvimento do ovo fertilizado, o P-23 cita a formação do pequeno disco prolífero na gema, do qual eventualmente se formaria o embrião. Outros pontos aludem à composição do saco germinador (P-8) e à descoberta do alemão Christian Heinrich Pander (1794-1865), em 1817, segundo a qual aparecem no saco

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germinador três folhas de tecidos, dos quais se desenvolveram os órgãos específicos do embrião (P-14, P-15 e P-25).

O P-12, ao levantar a questão sobre as "leis que se observão no desenvolvimento de todos os animaes", também deve referir-se às leis morfológicas que governavam o desenvolvimento embrionário dos animais. As obras que possivelmente fundamentaram essa discussão são Recherches d'anatomie transcendante et pathologique (1832) e Des lois de l'embryogénie (1839), de autoria de Serres. Nos textos, Serres escreve que o desenvolvimento do embrião segue leis fixas, uma das quais era a Lei do Desenvolvimento Excêntrico, referenciada no P-11. Conforme essa lei, todos os órgãos do embrião primitivo desenvolvem-se da circunferência para o centro (o "centrípeto"), e não do centro para a circunferência (o "centrífugo"), idéia até então comumente aceita (Serres, 1839, p. 292-293). Por exemplo, os nervos não provêm da corda espinal, mas, ao contrário, durante seu desenvolvimento se inseriram no eixo cerebrospinal. Outro importante princípio discutido é indicado no P-16. Este cita a Lei da Simetria, na qual se estipula que certos órgãos do embrião são constituídos de duas metades de tecido embrionário que, no processo de desenvolvimento, avançam uma para a outra até se unir para formar um órgão completo. Como declarou Serres, "La dualité est le principe des sciences embryogéniques" (Serres, 1839, p. 244).

Uma das contribuições mais importantes de Serres foi o desenvolvimento da Teoria de Recapitulação, primeiramente formulada pelo alemão Johann Meckel em 1811. Serres afirmou que suas investigações comprovam que a embriogênese do homem reproduz em forma transitória e numa maneira de curta duração a organização fixa e permanente dos seres que ocupam os vários graus da escala animal (Serres, 1832, p. 9). Isto quer dizer que no desenvolvimento dos órgãos do homem no útero são representadas, temporariamente, todas as formas anatômicas dos animais inferiores. Maia reconheceu as contribuições de Serres, Saint-Hillaire e outros com respeito a esse conceito ao declarar

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que eles "chegarão mesmo a affirmar que nas diversas phases da embriogenia humana observa-se todas as principaes formas da longa serie dos animaes existentes, isto he, que o homem antes de mostrar-se vertebrado, era annelado, mollusco e mesmo radiado" (Maia, 1858, p. xi). Numerosos pontos do exame (P-13, P-39 e P-40), examinaram essa proposição, com as investigações sobre o desenvolvimento embrionário dos animais e do homem sugerindo um vínculo entre eles (P-31).

Organogenia

Junto com a Embriogenia, foi discutida, na Zoologia Filosófica, a Organogenia, ou seja, o campo de estudo que focaliza o desenvolvimento dos órgãos animais, a começar do embrião (P-4). Antes de 1850, vários trabalhos foram publicados sobre essa ciência. Entre eles, constam os Principes d’anatomie organogénique (1842), de Étienne Serres, e l’Organogénie (1844), de Jacques Olivier de Mersseman (1805-1853). Mas foram as investigações de Saint-Hilaire que tipificaram esse empreendimento, especialmente suas idéias sobre os órgãos homólogos.

Saint-Hilaire promulgou a idéia de que existe "Unidade na organização animal", ou seja, todos os animais têm os mesmos órgãos (P-32). Como evidência, Saint-Hilaire apontou os vertebrados, cuja organização corporal ele tomou como padrão na Natureza. Ao explicar as diferenças dos órgãos dos animais, Saint-Hiliare propôs que existem órgãos homólogos em animais diferentes, ou seja, órgãos que têm a mesma origem e, portanto, a mesma estrutura básica, mas que não necessariamente exercem a mesma função. Esse fenômeno, por exemplo, é evidenciado na mão do homem e na pata dianteira de um quadrúpede. Saint-Hilaire inicialmente buscou os órgãos homólogos dos vertebrados que, uma vez identificados, revelariam um plano estrutural único para os animais de todos os grupos.

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A tese central de Saint-Hilaire foi o Princípio de Conexões, ou, conforme apresentado no P-21, a "lei de conjunção ou união dos órgãos". Esse princípio diz que existe uma conexão fixa entre determinados grupos de órgãos no animal; e, uma vez que se confirma a relação entre os órgãos, é possível estabelecer a identidade de um órgão desconhecido por se referir àqueles conhecidos. Como utilizado por Saint-Hiliare e Cuvier, tal princípio foi particularmente útil na reconstrução da anatomia de animais extintos com base numa análise dos restos parciais deles (Mason, 1962, p. 376-377). Aliado a isso, segundo Saint-Hilaire, é tendência das partes do órgão manter um estado de equilíbrio dinâmico, de tal forma que, se uma parte do órgão se desenvolve, outras partes correspondentes ficam subdesenvolvidas, garantindo, dessa forma, a estabilidade e o equilíbrio do órgão (Mason, 1962, p. 378). O P-17 do exame refere-se a esse conceito.

Monstruosidades

As "Leis da Anatomia Transcendental" foram enunciadas por Serres e logo promovidas por Geoffroy Saint-Hilaire. Um das áreas de investigação que particularmente fascinaram Saint-Hilaire foi a formação embrionária de "monstros", ou seja, animais que demonstram grandes anomalias em sua anatomia. Para Serres e Saint-Hilaire, um monstro é formado no útero quando o processo de desenvolvimento de um órgão de um animal superior é, de repente, parado, resultando na fixação permanente da forma transitória do órgão característico de um animal inferior. Um monstro também pode originar-se quando as duas metades de um órgão, em seu desenvolvimento embrionário, desistem em seu avanço de uma para a outra, deixando, assim, um espaço através do qual surge outro órgão.

Durante sua exploração dos animais malformados, Saint-Hilaire publicou o segundo volume do Philosphie anatomique (1822), no qual contribuiu com muitas informações e reflexões

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sobre a origem embrionária dos monstros unitários ou simples, como os ciclopes, e dos monstros duplos ou compostos, como gêmeos simples e siameses. Esse campo de estudo logo teve um grande impulso com a publicação subseqüente de Isidore Saint-Hilaire (1850-1861), filho de Geoffroy, o Traité de tératologie (1832-1836). Foi Isidore quem deu à ciência o nome de "Teratologia" quando publicou sua obra de três volumes. Visto que Maia repetidamente cita o nome de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire nos Quadros synopticos, conclui-se que ele tinha amplo conhecimento das idéias de Saint-Hilaire sobre a formação de monstros. No exame, o P-35 indica que foram abordadas na Zoologia Filosófica as anomalias anatômicas e sua relação com as monstruosidades, e o P-37 indica que foram discutidos os monstros simples e os compostos.

Também, conforme o P-36, foi discutida a questão "O conhecimento das monstruosidades servirá para a questão dos typos animaes?". A resposta, que é negativa, é baseada nos estudos do alemão Ernst Von Baer (1792-1876), professor de Fisiologia na Universidade em Konigsberg. Von Baer propôs que o desenvolvimento embrionário dos animais começa com ovos fertilizados, todos os quais são iguais em sua composição primitiva. Mas, com tempo, os ovos transformam-se em quatro tipos de embriões, os quais correspondem aos quatro tipos de estruturas anatômicas identificadas por Cuvier em seu sistema taxonômico (Mason, 1962, p. 371-372). As idéias de Baer, agora desacreditadas, foram aceitas por Cuvier e por ele citadas para rechaçar a explicação do aparecimento dos quatro grupos como resultado dos processos que criam monstros.

Comentário Final

A Zoologia Filosófica era uma disciplina que examinava as idéias novas sobre a transmutação dos animais, tanto dentro quanto fora do útero. Programada como um estudo complementar

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à Zoologia Descritiva, a matéria explorou as doutrinas de Epigênese, Embriogenia e Organogenia, tópicos estes que não apareceram no programa tradicional da matéria Zoologia. A disciplina destacou-se por tratar das modernas correntes do pensamento científico na primeira metade do século XIX.

A extensão e a diversidade dos tópicos discutidos na Zoologia Filosófica descartam a possibilidade de que uma única obra foi adotada em sala de aula. Provavelmente, Maia transmitiu os conceitos das lições oralmente, com ou sem o auxílio de uma apostila. Partindo-se da suposição de que obras francesas fundamentaram o estudo da Zoologia Filosófica, como fundamentaram as outras disciplinas científicas no Colégio de Pedro II durante todo o século XIX, presume-se que o professor Maia consultou, ou no mínimo conhecia, a Philosophie zoologique (1809) de Lamarck e Le régne animal (1817) de Cuvier; as Recherches d'anatomie transcendante et pathologique (1832), os Principes d’anatomie organogénique (1842) e Des lois de l'embryogénie (1839) de Serres; a Philosphie anatomique (1822) e os Principes de philosophie zoologique (1830) de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, e o Traité de tératologie (1832-1836) de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire. Presume-se, também, que consultou os trabalhos de Milne-Edwards e Blainville, e, direta ou indiretamente, por meio dos trabalhos franceses, teve acesso às idéias de Mersseman, Meckel e Von Baer. Conclui-se, entretanto, que os livros que mais serviram aos objetivos da Zoologia Filosófica saíram das mãos de Cuvier, Saint-Hilaire e Serres, devido à sua posição central nos debates franceses sobre as doutrinas e metodologias da Zoologia na primeira metade do século XIX.

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Karl M. Lorenz, Ed.D. Programa de Pos-Graduação em Educação, Department of Education, Sacred Heart University, 5151 Park Avenue, Fairfield, CT 06825, U.S.A. E-mail: [email protected]

Recebido em: 20/10/2006 Aceito em: 15/03/2007

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 159-183, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

A LIVRARIA GARNIER E A HISTÓRIA DOS LIVROS INFANTIS NO BRASIL – GÊNESE E

FORMAÇÃO DE UM CAMPO LITERÁRIO (1858 – 1920)

Andréa Borges Leão

Resumo O artigo analisa as coleções para crianças e jovens apresentadas nos catálogos de venda da livraria carioca de Baptiste-Louis Garnier para o ano de 1858, e de seus sucessores, para 1920. Como modelo da política de exportação da indústria editorial francesa e, com isso, de formação do patrimônio de obras necessário ao desenvolvimento de nosso comércio livreiro e autonomia literária, os Garnier apostaram na longevidade do gênero "clássicos infantis", reeditando-os e adaptando-os, o que demonstra uma intrincada rede de relações entre sua filial latino-americana e a matriz francesa, bem como os efeitos de um trabalho de formação do gosto literário das crianças e jovens brasileiros. Palavras-Chave: História editorial; literatura infantil; coleções infantis e juvenis; comércio livreiro

GARNIER BOOKSHOP AND THE HISTORY OF THE BOOKS FOR CHILDREN IN BRAZIL – GENESIS AND

DEVELOPMENT OF A LITERARY FIELD Abstract This paper analysis the collections of books for children and youths found in the catalogues of Baptiste-Louis Garnier bookshop in the year of 1858, and further collections, with new editors, until the year of 1920. Being a model of the French polices for the editorial market, and in an attempt of developing the Brazilian literary market, the Garnier bookshop invested in the classic books for children, re-editing and adapting them. Such behavior shows an intricate relationship between the Latin-American branch and its French main office as well as the way their polices influenced the literary taste of children and youths in Brazil. Keywords: editorial history; children literature; children and youths collections; bookshops

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LA LIBRERÍA GARNIER Y LA HISTORIA DE LOS LIBROS PARA NIÑOS EN BRASIL – GÉNESIS Y

FORMACIÓN DE UN CAMPO LITERARIO (1858 – 1920) Resumen El texto analiza las colecciones para niños y jóvenes presentadas en los catálogos de venta de la librería carioca de Baptiste-Louis Garnier para el año de 1858, y de sus sucesores, para 1920. Como modelo de la política de exportación de la industria editorial francesa y, con eso, de formación del patrimonio de obras necesario al desarrollo de nuestro comercio librero y autonomía literaria, los Garnier apostaron en la longevidad del género “clásicos infantiles”, reeditándolos y adaptándolos, lo que demuestra una intrincada red de relaciones entre su filial latino-americana y la matriz francesa, bien como los efectos de un trabajo de formación del gusto literario de los niños y jóvenes brasileños. Palabras-clave: Historia editorial; literatura infantil; colecciones infantiles y juveniles; comercio librero.

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Primeiras robinsonadas

A história cultural dos livros infantis descreve movimentos de continuidade e ruptura entre matrizes classificadas ora como populares, ora como eruditas, pedagógicas e literárias. Nas suas origens, muitos dos textos literários hoje clássicos podiam ser endereçados tanto às crianças como aos adultos, ficando a diferença marcada pelas práticas culturais, os modos de representação e apropriação, que, por sua vez, causam efeitos de longa duração. Há obras que permanecem no tempo, tonam-se por longos anos grandes sucessos de livraria, adquirindo novos sentidos na passagem de um público a outro. Nesse processo, as intervenções editoriais ousam ir muito longe. Fica a cargo delas o estabelecimento de códigos de recepção dos textos, porque são as edições que organizam as obras em classes de gêneros e temas, recomendando leituras para cada idade. A questão dos critérios de adaptação ao público infantil, o teor de moralidade e aborrecimento das narrativas, suas razões pedagógicas e tudo o mais que vem acompanhando a história da produção literária infantil ganha consistência maior quando se consideram as configurações culturais nas quais se produzem os textos. A partir daí, outras funções são atribuídas ao editor: o controle das publicações a fim de guiar os leitores nas maneiras de ler; a construção de uma ordem dos textos reunindo-os em coleções e bibliotecas; a organização de um patrimônio de obras que permita a invenção da história do gênero.

Sendo assim, o projeto da livraria francesa para a formação dos jovens leitores brasileiros, a partir de meados do século XIX, exprime a vocação exportadora do mercado do livro francês como um todo e, em conseqüência, o intenso movimento das trocas culturais iniciado pela circulação internacional dos textos. As operações de exportação do livro, aliadas a uma política de distribuição baseada na disseminação de pontos de venda pela

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América Latina, ensejaram a transferência de capital literário para os países de produção ainda incipiente. No caso específico do Brasil, o que poderia ser um projeto de colonização cultural, de pura e simples imposição de bens de consumo, permitiu o acúmulo de capital simbólico necessário à autonomização da literatura nacional, já em vias de constituição.

Na produção cultural infantil, o francês Baptiste-Louis Garnier, que migrara para a Corte do Rio de Janeiro, em 1844, foi personagem decisivo. Esse comerciante de origem normanda investiu no trabalho de difusão de obras clássicas européias, já de largo sucesso comercial em seus países de origem, apostando na durabilidade de diversos gêneros, vendendo, editando e reeditando por longos anos contos de fadas, literatura de viagens, fábulas, biografias de vidas exemplares, tratados de educação e coleções de obras cristãs. E não apenas para o leitor juvenil. Figueiredo Pimentel, Olavo Bilac, Coelho Neto e Júlia Lopes de Almeida, pioneiros na escrita, tradução e adaptação de textos de ficção para crianças, certamente demandavam em seus trabalhos o acesso às histórias do patrimônio literário universal constituído nos séculos precedentes, como os famosos contos de Perrault, as Aventuras de Robinson Crusoé, de Daniel De Foe, o célebre Télémaque, de Fénelon, ou romances fontes tal Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre, todas obras importadas e vendidas pelos livreiros franceses radicados no Rio de Janeiro. A crônica da história intelectual brasileira não se cansa de lembrar que a livraria Garnier foi palco de animadas reuniões e encontros literários e todos para lá acorriam em busca de novidades.

A instalação da livraria francesa no Brasil trouxe ainda a ampliação da oferta das obras e coleções dos grandes nomes da literatura adulta universal, como, por exemplo, a popularização de autores do romantismo francês, que de outro modo não seriam, ou seriam menos facilmente, conhecidos. A literatura mais admirada do mundo era produzida em Paris. A venda de livros importados também possibilitou, para a livraria Garnier, a acumulação

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primitiva do capital econômico para a impressão da literatura nacional.

Somente no final do século XIX é que são feitas as traduções para o português dos títulos mais importantes, a exemplo das edições populares da obra de Júlio Verne, testemunhas do bom negócio que o Garnier do Brasil fazia com a casa Hetzel, de Paris. Posteriormente, essas obras são adaptadas ao gosto dos jovens leitores brasileiros e passam a ser produzidas no Brasil e circular em várias edições até os anos de 1930. Ao mesmo tempo em que contratavam o trabalho de autores-tradutores, os próprios livreiros se lançavam na tarefa de adaptação dos textos, intervindo nas narrativas, alterando passagens, enfim, tomando precauções contra o que entendiam ser "o envelhecimento do estilo" de autores já caídos, nas portas do novo século XX, em domínio público. Essa foi a função desempenhada pelos Garnier, de Paris. Nas obras traduzidas pelo selo, destaca-se a coleção do Cônego Schmid, um autor alemão muito lido e publicado nas bibliotecas de formação moral e cristã das mais famosas casas editoras da província. O primeiro tradutor do Cônego no Brasil foi Nuno Álvares.

A justa compreensão da formação da literatura infantil brasileira, com os jogos textuais de instrução e diversão, ilusão e aconselhamento moral, deste modo, deve partir da historicidade das práticas comerciais e dos processos a partir dos quais esses textos ganham publicidade. As relações de interdependência entre os produtores - autores, livreiros-editores, críticos literários e leitores – ainda que tensas, estão na base do processo de construção dos significados e valores dados às obras, em cada conjuntura específica. Isto torna-se ainda mais interessante quando envolve as trocas internacionais. Inicio, então, pela trajetória comercial dos irmãos Garnier, de sua política para o livro infantil no Brasil e da publicação das Bibliotecas da Juventude nos catálogos de vendas de 1857-58 e 1920 da Livraria de Baptiste-Louis Garnier da Rua do Ouvidor. Chamo essas iniciativas de "primeiras robinsonadas", visto que todo colono

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empreendedor no domínio cultural tem um pouco do personagem Robinson Crusoé. Todo país estrangeiro é uma ilha deserta. O romance fonte de De Foe, uma narrativa de louvor ao mérito, ao trabalho e à astúcia individual face às dificuldades da natureza, traz as marcas de um estilo de vida e bem ilustra os lances dos heróis livreiros nos primeiros tempos da edição no Brasil. Não por acaso esses estrangeiros devotavam tanto gosto pelas histórias de viagens e vidas de viajantes. Resta uma questão sem resposta: quais as razões íntimas de uma partida? Mas, nem todas as viagens são feitas de naufrágios e a livraria francesa logrou fincar raízes no Brasil.

Em seguida, observo o sistema de organização e classificação interna dos catálogos, as relações das obras entre si e os esforços de sistematização dos textos em diversos gêneros editoriais. Estabeleço comentários sobre o regime da produção editorial tanto para o público francês quanto brasileiro, incluindo a análise da produção de textos de narrativas morais que elegem o Brasil como tema. Em um autêntico processo de troca cultural, enquanto a livraria francesa se instalava no Brasil, o Brasil era feito objeto da produção literária na França. As diferenças que suscitam esses país tropical, com seu labirinto de florestas, índios antropófagos e escravos negros, conquistam lugar privilegiado em novas operações escriturárias.

O bom negócio dos Garnier Fréres: exportação de livros eróticos e religiosos

De início, afasto a hipótese que encerra a história da livraria francesa no Brasil como mera ação colonialista. Não foi uma pura concessão ao consumo de produtos importados, marca do gosto de um público burguês sedento por novidades européias, que orientou a partida do irmão mais novo, Baptiste-Louis, para difundir o livro francês na América Latina. Para que esse normando viesse a se tornar, no Brasil, o "inventor da literatura

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nacional" (Mollier, 1999), o primeiro a remunerar os escritores1 e, com isso, ilustrasse a dinâmica difusora de modelos da edição francesa no séc. XIX, os outros irmãos Garnier necessitaram trilhar os primeiros passos de um longo e acidentado percurso comercial em Paris. O primeiro da família a chegar à capital foi Auguste-Désiré, em 18242, vindo de Lingreville, uma pequena cidade da Baixa Normandia. Com pouco tempo, seguem-no os outros três irmãos, François Hippolyte, Pierre-Auguste e Baptiste-Louis. Hippolyte, Auguste e Pierre conseguem a autorização, para cada um, do exercício da profissão de livreiro. Baptiste-Louis parte para o Rio de janeiro, em 1844, abrindo sua loja na Rua do Ouvidor.

Até a compra do prédio para a livraria parisiense no endereço mais chic da capital - as galerias do Palais-Royal -, em 1837, os três enfrentam muitas dificuldades. O acervo da casa, uma sociedade entre Auguste e Hippolyte, foi sendo formado pouco a pouco e com muito senso de oportunidade. Os dois irmãos adquirem os direitos de venda de outras casas editoras, bem como os fundos comerciais dos que abriam falência e liquidavam todo o estoque. Esses fundos compreendem o mobiliário, os livros e todas as propriedades literárias3, que são os direitos sobre obras,

1 Mesmo que através da compra definitiva da propriedade da obra de um escritor. Sobre o teor dos contratos literários da casa carioca, ver: Lajolo, Marisa e Zilberman, Regina. O preço da leitura. Leis e números por detrás das letras. São Paulo, Ática, 2001. 2 De acordo com o documento: Portraits de Libraires – la famille des Garnier. Extrait du Bulletin de L’Association. Assinado por H.C, libraire-expert au Tribunal de la Seine. Paris, impr. A. Fleury, 1913. 3 Compreendemos muito bem o que significa, no meado do século XIX, a compra dos fundos comerciais de uma livraria em falência quando examinamos os respectivos contratos. Exemplo de uma grande disputa entre livreiros em torno da propriedade da obra do Conde de Ségur, um escritor católico do século XIX, encontramos nos documentos de compra dos fundos comerciais de M. Cartot e M. Eymery, que decretam falência em 1830, pelos livreiros-impressores MM Fruger et Brunet, em 1831.

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às vezes, de grandes autores. Em 1841, os Garnier adquirem os fundos do editor Delloy, e em 1849, os de Salvat. Com esse, abrem a livraria espanhola Garnier Hermanos. Em seguida, vão enriquecendo seus catálogos com a edição literária própria, de manuais escolares e dicionários. Nesse período, mudam-se para a Rua de Saints-Péres, endereço conhecido dos leitores brasileiros, porque constava na folha de rosto dos livros vendidos na filial carioca. Essas estratégias se acompanhavam da busca de outras fontes de acumulação de capital, como o investimento em ações da bolsa de valores e a compra de imóveis situados nos mais valorizados boulevards.

Comprar ações da "caminho de ferro" possibilitava dinheiro vivo nas mãos, mas o melhor negócio dos Garnier foi a venda e exportação de livros e estampas pornográficas. O bom negócio do livro obsceno resultou tão importante e lucrativo quanto o acúmulo de capital social de relações representado pela freqüência dos escritores românticos em animadas reuniões na livraria do Palais-Royal. Mesmo que as estampas fossem impressas nas tipografias da periferia e vendidas nos esconderijos da loja, foi preciso enfrentar a vigilância policial, censura, multas e ameaças de prisão, em especial Pierre-Auguste, que acabou se especializando no ramo. Segundo Jean-Yves Mollier, dos três irmãos, Baptiste-Louis foi o escolhido para difundir o comércio ilícito na América Latina. A difusão internacional desses livros acompanhava-se dos melhores romances de Alexandre Dumas, Victor Hugo, George Sande, Balzac, assim como essa literatura de última novidade acompanhava-se dos livros de artes militares, religião, filosofia, direito, política, entre outros gêneros e outras línguas, como alemão, italiano, inglês, espanhol, grego e latim.

Outra grande aquisição dos irmãos Garnier foi a editora do abade Migne, famosa pela produção de livros de grande erudição em história e teologia. Isto porque para construir seu império mercantil e a rede de difusão internacional, os livreiros parisienses necessitaram, sobretudo, da exportação de livros religiosos, que formavam as coleções de leituras espirituais e se

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compunham de catecismos, manuais de práticas piedosas, Bíblias e livros de primeira comunhão, endereçadas ao consumo popular, mas também de uma literatura de alto nível, edificante e moral, com exercícios de estilo, destinada a um público mais cultivado e que sabia escrever. Havia uma atenção especial em oferecer livros piedosos às crianças e jovens francesas e brasileiras. As bibliotecas de livros infantis traziam leituras destinadas à interiorização de regras religiosas, à formação da alma e à educação para a devoção. Na França, a Igreja Católica reinava sobre a formação moral e espiritual da juventude. Havia autores que eram exclusivos das editoras católicas4, exemplo das coleções de Alfred Mame, de Tours, Ardant, de Limoges e Mégard, de Rouen. Assumindo o função de entreposto comercial dessas casas, Baptiste-Louis revelava autores e livros ainda inéditos para o público brasileiro, mesmo sendo nomes consagrados na Europa. Ao lado das narrativas de viagem, de Gulliver e de todas as variações das Aventuras de Robson Crusoé, bem como das obras contando as maravilhas inventadas pela indústria moderna, a pedagogia da edição católica infantil apontava principalmente para a preocupação em oferecer às crianças brasileiras uma literatura já celebrada e consagrada entre as crianças da Europa. Obras de autores clássicos da literatura infantil e juvenil, na maioria reedições das fórmulas literárias de sucesso no século XVIII, como Berquin, Bernardin de Saint-Pierre, as Mme de Genlis, Le Prince de Beaumont, Guizot e Delafaye-Bréhier, até Cervantes, passaram a ser vendidas na livraria de Baptiste-Louis Garnier.

Os textos de práticas devotas encontram todo o sentido nos interiores europeizados das famílias burguesas e com algum verniz aristocrático. Os livreiros parisienses sabiam que os novos

4 Sobre a edição católica na França e o monopólio da província nesse setor da produção no século XIX, consultar: Glénisson, Jean. Le livre pour la jeunesse. In: Histoire de L’édition Française – les temps des éditeurs, du romantisme à la Belle Époque. Sous la direction de Roger Chartier et Henri-Jean Martin. Fayard, / Cercle de la Librairie, 1990.

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leitores americanos portavam em si a herança da tradição ibérica e que de há muito eram familiarizados com as obras cristãs, mesmo que, adultos, lessem e admirassem as cenas das brochuras eróticas e baratas. Só assim estaria resguardado o objetivo maior da casa parisiense - "tocar a alma latina", que, para o bem de nossa história, significou efetivamente a criação das condições monetárias para a publicação de escritores como José de Alencar e Machado de Assis, Gonçalves Dias e Olavo Bilac. Só assim estaria igualmente resguardado o retorno à moralidade pública, que tanto convinha à casa matriz. Como diz Jean-Yves Mollier (Mollier, 1988), não são nada nobres as origens da acumulação primitiva do capital, ainda que se tratando do comércio de livros.

Da França para o Brasil: a loja do Rio de Janeiro e a administração de Paris

Em 24 de junho de 1844, Baptiste-Louis chegava no Rio de Janeiro, a bordo da galera Stanislas. De há muito o Brasil ocupava a imaginação dos franceses. Entre eles, havia grande disposição para aprender com as viagens e não menos para se entreter com a leitura de suas narrativas. Desde a crônica Jean de Lery5, passando pelos missionários jesuítas e pelos artistas, chegando aos contemporâneos Ferdinand Denis e Auguste de Saint-Hilaire e às mulheres de letras, como Julie Delafaye Bréhier, Victorine Monniot e Amélie Schoppe6, responsáveis pela entrada

5 O protestante francês Jean de Léry (1534-1613) empreendeu uma viagem ao Brasil em meados do séc. XVI, no projeto de implantar uma France Antartique. Essa experiência que lhe valeu a escrita de uma primeira narrativa de viagem sobre o Brasil, L’Histoire d’une Voyage faict en la terre du Brésil. 6 Das mulheres de letras que escreveram sobre o Brasil para leitores crianças e jovens, na França do século XIX, cito, respectivamente, as obras: Portugais D’Amerique. Souvenirs Historiques de la guerre du Brésil en 1635, de 1847; Le Journal de Marguerite – Souvenirs d’enfance à l’île Bourbon (la Réunion 1835-

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da colonização americana como tema do livro juvenil, descrevendo-o ou simplesmente supondo-o, os franceses iam escrevendo o Brasil. Naturalizando-o pelo discurso da ciência ou representando-o na ficção romântica, os intelectuais europeus produziam textos, punham um país no processo de produção de imagens, imprimindo-as e publicando-as. Em suas narrativas, crença e desejo, medo e curiosidade revestiam as figuras dos selvagens habitantes dos trópicos, praticantes da antropofagia (o horripilante canibalismo, que tanto ocupava o medo infantil), objetos da ciência natural, outrora alvos da catequese religiosa e, agora, dos dispositivos morais da nova pedagogia. A compreensão dos costumes americanos como fato moral ocupava o centro dos debates científicos. Toda a força desse debate é demonstrada no sistema de divisão e classificação do mundo em reinos - animal, vegetal e mineral - operado por esse discurso e representado na escolha das obras para a composição das coleções para a juventude. Do lado da religião, não importava tanto a observação da prática litúrgica e sacramental, mas a difusão de uma cristianização da civilidade7. Ademais, a França revolucionária horrorizava-se ante a escravidão negra. Os irmãos Garnier deviam ter um conhecimento prévio desse país, antes de fazer a escolha e correr todos os riscos do negócio do livro na capital do vasto Império do Brasil, quase todo de analfabetos.

Baptiste-Louis abriu sua loja no número 69 da Rua do Ouvidor, onde permaneceu até 1878. Trabalhando intensamente, buscou a autonomia relativa dos irmãos em 1857, passando a

1845), de 1862; Les Émigrants au Brésil, de 1847. Essa última autora foi uma alemã traduzida e imitada na França. 7 O termo "cristianização da civilidade", aqui, é utilizado no sentido da entrada das noções religiosas no ensino e aprendizado das regras de conduta moral. Mas ele também pode significar a rejeição da civilidade como polidez mundana em troca às homenagens rendidas a Deus. A esse respeito, consultar: Rouen, le livre et l’enfant, 1700-1900, la production rouennaise de manuels et de livres pour l’enfance et la jeunesse. Musée National de L’Éducation, 1993.

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assinar as publicações com as indicações de B. L. Garnier. Embora nos catálogos de venda para esse mesmo ano e para o precedente, ainda inteiramente em francês, note-se a dependência em relação à casa matriz quando lemos o seguinte aviso ao leitor: "(...) fazemos notar que nossas colagens, sendo confeccionadas em Paris pelos mais hábeis artesãos, e sob os olhos e a vigilância de nossos irmãos, oferecemos as melhores garantias pela solidez, como pela elegância e o bom gosto"8.

O livreiro fazia questão de assinalar que sua loja era a mesma de Paris. Para os brasileiros fascinados pela França, essa tomada de posição era mais que conveniente à legitimidade de que se necessitava revestir os produtos da casa. As técnicas de colagem do papel (reliure) não apenas definiam a qualidade da impressão, mas principalmente influenciavam a escolha do leitor e o gosto pela obra. Se Baptiste-Louis conquistou uma autonomia relativa em relação a seus irmãos, a recíproca foi verdadeira. Em 1878, os Garnier de Paris adquiriram os fundos comerciais da livraria portuguesa e espanhola Hamonière oferecendo aos franceses um sortimento de dicionários bilíngües, gramáticas e manuais de conversação, além de romances, livros escolares e literários para crianças, todos em português. Dentre essas obras à disposição na livraria de Paris, situada na agora denominada "Rua dos Santos Padres", destaca-se uma assaz interessante Coleção aos Pedaços que, juntando Berquin com João de Barros, Fénelon com Freire de Andrada, ilustra bem a vocação internacional de Hippolyte Garnier. Essas obras do fundo Hamonière podiam ser enviadas da França para o Brasil já devidamente traduzidas para o português. Note-se que, na folha de rosto desses livros, fora suprimido o endereço brasileiro, constando apenas Livraria de Garnier Irmãos9. 8 Tradução própria. Catalogue de la Librairie de B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1858. 9 Catálogo de venda com notícias de livros infantis anexas ao livro Paulo e Virgínia, de Bernardim de Saint-Pierre. Paris, Livraria de Garnier Irmãos, 1878.

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Ademais, o Rio de Janeiro era a sede de uma corte que sempre mantivera relações culturais bastante próximas com a França. Atestam-no os livreiros Aillaud e Guillard, que, em 1866, assinavam seus catálogos de livros portugueses vendidos em Paris como "livreiros de suas majestades o Imperador do Brasil e El Rei de Portugal"10.

No Rio de Janeiro, Baptiste-Louis foi durante muito tempo alvo de intrigas veiculadas nos jornais por imprimir suas publicações nas tipografias utilizadas por seus irmãos, onde mantinha revisores para as provas em português (Hallewell, 1985). Essa escolha teve motivação comercial. Com uma indústria gráfica incipiente, no Brasil, os livros tinham que ser impressos nas tipografias dos jornais. Apenas em 1873, Baptiste-Louis mandou vir da Europa material de composição e máquinas mais aperfeiçoadas. Contando com o trabalho de Charles Berry, pôde ter sua própria tipografia, a Typografia Franco-Americana. Segundo Hallewel, a livraria Garnier do Rio de Janeiro possuía um corpo de revisores técnicos altamente qualificado. Resta saber se os irmãos franceses, já tendo, a essa altura, acumulado uma grande fortuna imobiliária, enviavam alguma soma em dinheiro para auxiliar as atividades do mais moço, no Rio de Janeiro.

Até chegar ao livro brasileiro e conectar-se, de fato, à lógica comercial e industrial que regia o negócio de seus irmãos em Paris, foi necessário a Baptiste-Louis muito trabalho de tradução e adaptação, destacando-se o estabelecimento de relações com os intelectuais portugueses, como Manuel Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão e Teófilo Braga, formando vínculos entre o Brasil, a França e Portugal. No Rio, destacavam-se como tradutores, literatos e jornalistas importantes como Salvador de Mendonça, Fernando Reis, Jacinto Cardoso e Ramiz Galvão. Cada edição tinha um preço fixo, o Garnier não admitia abatimentos, o que

10 Catálogo de venda dos livros portugueses, latinos, franceses, da Casa da V. J. P. Aillaud, Guillard e Cia. 1866.

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talvez explique a compra de todos os direitos de publicação dos manuscritos dos escritores com os quais firmava contrato.

A saúde de Baptiste-Louis não sobreviveu à passagem do século. O Garnier falece no dia primeiro de outubro de 1893. Sua livraria tinha o mesmo funcionamento das academias literárias - palco de sociabilidade com poderes de reconhecimento, celebração e consagração de todo escritor aspirante à glória. A partir de 1900, passa a ser local para as reuniões dos mais festejados homens de letras, que na nova loja, cultuam a exibição como valor agregado à sensibilidade e ao gênio. Tudo agora marcado pelas cores e alegrias bellepoqueanas, fundando uma sociabilidade tão mais livre quanto superficial, longe do ranço aristocrático característico aos tempos do velho Baptiste-Louis. Hippolyte substitui o irmão mais novo no comando dos negócios, voltando a casa a ser filial da Garnier Fréres, de Paris. Hippolyte, que jamais veio ao Brasil, decide enviar um gerente francês para a administração da loja, prática seguida por seu sucessor e sobrinho Auguste-Pierre. Julian Lausac, o gerente, cujo trabalho com livros era devido a Jacinto Silva, falava mal o português, mas foi responsável pela inauguração do novo prédio da livraria, em 1900. Hippolyte falece em 1911 aos 85 anos de idade e Lansac se demora apenas dois anos no Brasil. Auguste-Pierre, o sucessor da matriz francesa, destaca-se por fundar importantes revistas literárias e por publicar numerosos poemas de inspiração católica. Ao Rio de Janeiro, envia Emile Izard.

Como momentos marcantes da política editorial de Hippolyte destacam-se o sucesso e tradução de Canaã, romance de Graça Aranha, em 1902, com sucessivas edições, a tradução para o francês e o espanhol das obras de Machado de Assis, do famoso livro Porque Eu Me Ufano de Meu País, do Conde de Afonso Celso. Hippolyte Garnier foi grande difusor da literatura hispano-americana por todo o mundo. Em 1900, a livraria espanhola Garnier Hermanos em Paris era considerada a melhor em obras nessa língua.

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A última fase da livraria Garnier no Brasil, que vai dos anos de 1920 até 1934, assinala a prática da reedição de clássicos da literatura, nacional e estrangeira, em coleções de um mesmo autor, estratégia para a ampliação das vendas face à perda de prestígio da cultura francesa. Essa decisão pode igualmente demonstrar as dificuldades financeiras da matriz, uma vez que tendo caído em domínio público não se necessita mais pagar os direitos de um autor. A livraria Garnier do Rio de Janeiro fecha suas portas em 1934, não resistindo à chegada do jovem livreiro José Olympio, vindo de São Paulo e que também se lança no negócio da importação e tradução de livros. Os fundos da casa francesa no Rio de Janeiro são vendidos a Ferdinand Briquiet.

Ordenar e classificar: as Bibliotecas Juvenis no catálogo de vendas da Livraria Garnier

A ordem interna a um catálogo de venda de livros deve ser interpretada não apenas como o resultado das decisões e escolhas do que vale a pena ser comercializado. Definir e organizar coleções é, antes de tudo, uma operação difusora e transmissora de sistemas de representação, classificação e divisão do mundo que visam a interferir diretamente nas disposições do público leitor11. Organizar livros em coleções é um modo de estabelecer hierarquias, aproximações e diferenças. Por isso, as estratégias dos livreiros não podem prescindir das expectativas, reais ou supostas, de seus leitores. As coleções supõem modos de apropriação que, por sua vez, são relativos às comunidades de interpretação. Essas comunidades distinguem-se, entre outras propriedades, por certas categorias de percepção do mundo social. Trata-se do estabelecimento de uma relação negociada entre o profissional do

11 A categoria "sistema de representação do mundo social" é de autoria do sociólogo Pierre Bourdieu. Dele, consultar: La distanction. Critique sociale du jugement. Les Éditions de Minuit, 1979.

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livro e o leitor, adulto e criança, que firma um pacto de credibilidade e confiança mútua intermediado pela compra e leitura do livro. Os irmãos Garnier sabiam o que oferecer ao seu público. Para as crianças e jovens brasileiros, apostaram na longevidade dos clássicos da literatura francesa e européia, grande parte reedições de obras do século XVIII e da primeira metade do século XIX, que compravam das mais prestigiadas casas do ramo, como a de Eugene Ardant, de Limoge e a de Alfred Mame, de Tours. Assim como dos parisienses Lehuby e Didier. Como esses editores não possuíam pontos de venda na América Latina, certamente faziam bom negócio com os irmãos Garnier. Afinal, as representações européias que distinguiam os povos americanos do sul não estavam reduzidas ao temor à prática do canibalismo, principalmente em um país como o Brasil, que enchia os olhos dos franceses com imagens de ouro, prata e diamantes.

Ordenar e classificar estão na base da formação das Bibliotecas infantis e juvenis. Principalmente devido à sua função maior de agir nas disposições, na formação do habitus, oferecendo a toda a família modelos de escrita, princípios para a educação doméstica e para a observação da piedade religiosa. Sendo assim, no catálogo de venda da livraria de Baptiste-Louis Garnier de n. 14, denominado "Livre Classique, D’instruction Publique, D’éducation et Livres Ilustrés Pour La Jeunesse12- En Français, Allemand, Anglais, Espagnol, Grec, Italien Et Latin"13, e anunciado para o ano de 1858, estavam representadas as principais correntes e doutrinas do pensamento francês do século XIX – a moral em ação, a ciência natural e a piedade religiosa. Inteiramente em francês, as obras foram organizadas pela ordem alfabética dos nomes de seus autores. Logo ao primeiro contato, fica claro um 12 É interessante notar que a indicação Pour la Jeunesse pode contemplar obras destinadas tanto às crianças quanto aos jovens, que são os adolescentes. 13 Tomamos para análise somente a lista de livros da tradição literária francesa e que partiram para o Brasil, visto que os livros nos outros idiomas eram basicamente escolares, manuais, dicionários, gramáticas, etc.

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sistema de representação construído em torno da legitimidade das obras, que, acima de tudo, ilustra lutas de classificação na escolha dos livreiros responsáveis. Na ordem desse catálogo havia duas grandes séries de representações. A primeira, formada por textos que professavam, ainda que literariamente, instruções morais, ou a interiorização das regras de um catolicismo que se pretendia racional; uma outra, de textos que divulgavam os prodígios e descobertas da ciência natural, e que partiam de autores e narrativas que professavam o cristianismo reformado. Na primeira série, podemos incluir a Revue Catholique de La Jeunesse, um compêndio sobre religião, educação, instrução e recreação. Essas obras católicas tinham o distintivo de serem aprovadas pelos comitês eclesiásticos de leitura, verdadeiros tribunais de censura e, por conseguinte, de controle da leitura, aos quais os editores precisavam submeter-se. Na segunda, pode-se incluir tanto o clássico de Mme. Guizot, Lettres de famille sur l’education, um romance epistolar de inspiração rousseauniana e que versa sobre as virtudes naturais da educação infantil, quanto o curioso título La Nature et ses Productions, ou Entretiens sur L’ histoire Naturelle, que igualmente mostra todas as influências do "homem natural". Ambos os modelos realçam as preocupações adultas em colocar a "moral em ação", na leitura das crianças e jovens. Essa estratégia de agrupamento de livros ilustra uma lógica de produção textual, mas também o modo como as idéias européias eram apropriadas no Brasil de meados do século XIX.

Malgrado todo a empresa classificatória dos Garnier, uma obra como o romance histórico Les Portugais d’Amérique - Souvenirs historique de la guerre du Brésil en 1635, em que a autora, Julie Delafaye-Bréhier, aproveitando-se da narrativa da ocupação holandesa em Olinda, tece uma trama sobre as relações coloniais brasileiras, pondo em linguagem sistemas de referências próprios aos personagens colonos portugueses, índios americanos e escravos negros, pode não encontrar lugar determinado nesse sistema de representação posto em jogo no catálogo. Sua

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complexidade deve-se à propagação para a juventude de princípios cristãos, tanto católicos como reformados.

Quando abrimos os catálogos de venda e passamos ao exame mais detalhado de seu corpus, logo percebemos alguns critérios que definem sua organização. O primeiro é repetir certas obras em outras coleções, talvez sinalizando prudência comercial - quais as garantias de que as crianças brasileiras iriam aderir, de pronto, aos livros franceses da Rua do Ouvidor? Acima de tudo, elas precisavam ser provindas de famílias de elite e saber ler ou entender a audição no idioma de Berquin. Como lembra Jean Hébrard (2005), a transformação dos clássicos de uma "literatura semi-educativa" em literatura infantil só foi possível pelo recurso de sua cobertura em belas capas ilustradas, tornando-os bastante caro e, assim, destinando-os ao consumo dos filhos das famílias burguesas. Os Garnier deviam se perguntar: qual é o lugar exato para as Aventuras de Robson Crusoé, o clássico de Daniel De Foe, para os contos católicos de Schmid (o cônego), para os contos de Perrault ou o romance de Swift, as famosas Viagens de Gulliver? Esses livros junto aos nomes de seus autores também figuravam no catálogo de n. 11 - "Romans Illustrés". Um outro critério traduz-se no esforço dos responsáveis em propor uma divisão temática para a apresentação dos títulos. Mesmo que essa divisão não venha assinalada, nota-se a iniciativa em categorizar gêneros textuais, já tentando separar o que é considerado didático do que é literário, e, assim, esses livreiros franceses dão inicio ao longo processo de acumulação do patrimônio necessário à formação de um campo literário produtor destinado ao público infantil e juvenil. Afinal, seria preciso inventar uma tradição. Ainda do ponto de vista de sua organização interna, o documento mostra todo o sortimento de que dispunham os Garnier em seus fundos comerciais e as inúmeras possibilidades de negócios com outras casas editoras especializadas em bibliotecas infantis.

Constando de aproximadamente duzentos títulos, entre livros instrutivos e recreativos, álbuns ilustrados para as crianças, as obras que compõem o catálogo de vendas de n. 14 destacam-se,

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sobretudo, pelo ecletismo e variedade. Essa última característica certamente revela toda o cuidado que os Garnier sabiam precisar manter em relação às práticas de consumo do novo público brasileiro, talvez pouco habituado à leitura.

Os livros dessa coleção podem ser divididos no seguinte agrupamento temático, com destaque para as obras mais representativas14:

1. Episódios históricos – Beautés de l’histoire de France, de Blanchard;

2. Clássicos da literatura, incluindo romances, contos, poesias e aventuras – Don Quixotte de la Manche, de Cervantes, L’ami des enfants et des adolescents, de Berquin, Aventures de Robinson Crusoé, de Foe, Contes de Fées, de Perrault;

3. Tratados literários de educação – Lettres des famille sur l’éducation, de Mme Guizot;

4. Narrativas de viagem, com enredos descritivos ou ficcionais – Voyages de Gulliver, de Swift, Voyages en Zigzag,de Topffer, Voyage illustré dans les cinq parties du monde, de Adolphe Joanne;

5. Literatura edificante, onde as lições de moral ganham o colorido da ficção – Paul et Virginie, de Bernardin de Saint Pierre;

6. Biblioteca de contos cristãos, mas que não se compõe de manuais de prática religiosa, catecismos, missais, livros de primeira comunhão – Bibliothèque de la jeunesse chétienne;

14 Esse agrupamento já vem suposto no próprio título do catálogo de n. 14. Vale notar que mesmo com uma referência à instrução pública, na coleção não encontramos manuais didáticos.

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7. Imitação dos clássicos, releituras e versões adaptados – Le Robinson Suisse, de Wyss, e Le Robinson des sables du désert, de Mirval;

8. Narrativas exemplares, biografias de personagens célebres ou anônimos – Enfances Célèbres, de Mme Louise Colet;

9. Fábulas – Fables, de La Fontaine;

10. Álbuns ilustrados ou livros para criancinhas – Livres des petits enfants.

Não havia uma preocupação em definir a infância e a juventude em classes de idades. Esses livros tanto eram destinados às crianças e jovens franceses quanto aos brasileiros, em uma clara estratégia de estabelecer entre essas duas comunidades um universo cultural comum. O objetivo revelado da oferta de livros franceses para jovens brasileiros poderia ser, além da já comentada intenção de "tocar a alma latina", a imposição de modelos de leitura que poderiam produzir muitos outros efeitos, como o enriquecimento da vida intelectual dos novos leitores, a formação de um gosto e de uma prática da escrita. Nas advertências e notícias bibliográficas assinaladas nesse catálogo sobressai a demanda dos livreiros à participação dos adultos intermediários, a exemplo do que ocorre com os títulos que versam sobre educação, muitas vezes dirigidos prioritariamente aos pais.

O catálogo de 1920: aposta na longevidade dos clássicos da literatura infantil e juvenil

A organização do catálogo para o ano de 1920 insiste na durabilidade da coleção de livros da tradição literária européia, o que demonstra que a empresa dos irmãos Garnier para o novo público brasileiro portava um projeto intelectual que, certamente,

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deu sua contribuição para a formação de uma cultura para a infância e a juventude.

Uma vez tendo conquistado a legitimidade para os clássicos que importavam e vendiam desde meados do século XIX até bem entrado o século XX e, em conseqüência, preservado um capital literário, os Garnier do Brasil passam a investir no trabalho de tradução. Não sabemos ao certo quando publicaram as primeiras versões para o português de tão charmoso repertório de livros. Mas, uma questão de ordem estilística se impõe à família: como enfrentar o "envelhecimento do estilo" de obras com um século ou mais de existência? De que modo perpetuar o gosto do leitor, tornando esses títulos perenes e, portanto, sempre atuais? De Paris, os Garnier respondem: intervindo no texto, adaptando-o ao gosto do momento, reescrevendo-o, se necessário. Quer dizer, quando os livreiros passam a reeditar o livro juvenil aproveitam para se iniciar em um trabalho de adaptação dos textos. Na nota de advertência ao livro de Mme de Genlis, Le Veillées du Chateau, de 1880, os Garnier franceses declaram terem feito desaparecer os "detalhes inúteis", as imperfeições do que entendem ser um "labirinto de conversação", recursos típicos de uma literatura de feição romântica. Suprimir, corrigir, adicionar passagens aos textos que recebem, são as novas funções dos irmãos livreiros-editores. Dizem ainda terem feito as mudanças com reserva, sem tocar na estrutura da obra.

Talvez essa tenha sido a mesma orientação seguida pelos gerentes responsáveis pela livraria-editora do Rio de Janeiro. No Catálogo Geral da Livraria Garnier para o ano de 1920, há cinco coleções literárias: 1. Álbuns Infantis com gravuras coloridas; 2. Álbuns e livros para prêmios; 3. Biblioteca Infantil; 4. Contos de Schmid; e, 5. Biblioteca da Juventude. São compostas basicamente dos mesmos títulos que já figuravam no acervo da casa do século precedente. As notícias que acompanhavam as obras continuavam trazendo indicações para uma aplicação moral das narrativas pontuadas pelas condutas exemplares de seus personagens. Inteiramente em português, neste catálogo,

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destacam-se algumas traduções dos clássicos franceses feitas por Pinheiro Chagas, Teófilo Braga e Ramiz Galvão. Os dois primeiros traduziram as Fábulas de La Fontaine, cabendo ao terceiro a tradução da Novena da Candelária, de autoria de Charles Nodier. Encontra-se, todavia, traduções levadas a cabo por autores franceses, como os Contos de Fadas, de Perrault e Mme D´Aulnoy, por um certo J. J. A. Burgain, revelando ainda as relações com a casa Matriz.

Dentre os autores publicados pela Garnier, o mais traduzido no Brasil foi o alemão Christophe Schmid. Nos anais de nossa literatura infantil, esse autor mereceu toda uma coleção de livros com seu nome. Desde o século XIX, tornara-se famoso e popular com suas pequenas histórias exemplares. Schmid foi padre-professor, eclesiástico e fundador de uma república católica e internacional das letrinhas. Seus personagens eram crianças virtuosas, em boa parte órfãs e filhas devotas que viviam aventuras inspiradas em passagens da Bíblia. Mas o Cônego Schmid, como ficou conhecido, foi, antes de tudo, homem de responsabilidades políticas. Nascido na Baviera alemã, em 15 de agosto de 1768, antes da revolução francesa, fora autêntico representante dos valores morais do antigo regime. Em 1801, inicia sua carreira literária, escrevendo aos jovens. Na França, suas obras passam a circular a partir de 1820, logrando lugar de honra na duração da produção editorial. São incluídas nas coleções de formação moral e nas bibliotecas cristãs por todo o século XIX.

Como professor de teologia, desde cedo, Christophe Schmid combateu a favor do catolicismo, fazendo face às idéias do cristianismo reformado. Talvez por esse motivo tenha permanecido nos catálogos da família Garnier do Brasil. Sua coleção mantinha estreito relacionamento com o repertório de títulos religiosos. De tão populares e aceitos, os Contos do Cônego se pretendiam substitutos realistas dos Contos de Charles Perrault, tidos, pelos defensores de um catolicismo racional, como demasiado fantasiosos.

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Como narrador, Schmid assumia a voz de um pai de família. Suas coleções destinavam-se às bibliotecas domésticas, suportes da educação de formação religiosa, e eram indicados para a leitura tanto dos adultos como das crianças.

Em 1865, Baptiste-Louis Garnier oferece uma segunda edição brasileira da tradução dos Contos do Cônego, em um livro síntese com suas melhores histórias morais, conselhos e lições destinados às futuras gerações. Em 1920, encontramos no catálogo Garnier não mais um livro-compilação, sim toda uma coleção dos principais contos: Ovos de Páscoa; Henrique D´Eichenfels; Rosa de Tannenburgo; Capella da Floresta; O Cestinho de Flores; A Cruz de madeira; O Carneirinho; A Rola; Genoveva de Brabant. Por trás da aparente dispersão dos títulos há princípios bem definidos, que visam a unificar a coleção: o tamanho e formato dos volumes, bem como a moralidade cristão das histórias.

Assim como na história literária francesa, a critica textual brasileira continua insistindo no caráter disciplinar dessas obras que compõem a primeira fase da produção destinada às crianças e jovens. Restam, porém, algumas questões: por que esses livros foram, por longos anos, tão reeditados? Por que foram importados, traduzidos e adaptados? Enfim, quais as razões de seu reiterado sucesso?

Talvez a resposta possa ser encontrada, como sugere Françoise Huguet (1997), na história cultural da infância e da literatura. Daí, a importância de se ir além da crítica textual e partir do estudo das configurações culturais nas quais se produzem e transmitem os livros, sobretudo para compreender a lógica das importações e traduções. Essa lógica expressa na organização interna das Bibliotecas - coleções de livros - dos primeiros catálogos de venda da livraria Garnier foi decisiva para a formação e autonomia da literatura infantil e juvenil brasileira. Nosso nacionalismo literário não esteve alheio ao movimento das trocas culturais, como a circulação internacional, as importações, traduções e adaptações de textos clássicos.

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Andréa Borges Leão é doutora em Sociologia, professora do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará. Este artigo resulta da pesquisa de seu estágio pós-doutoral em História Cultural na École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris. E-mail: [email protected]

Recebido em: 20/11/2006 Aceito em: 15/03/2007

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RELAÇÕES ENTRE O TEXTO HISTÓRICO E A PROSA FICCIONAL NA PASSAGEM DOS

SÉCULOS XVII-XVIII João Paulo Martins

Resumo O romance moderno emerge na passagem do século XVII para o XVIII, tornando-se nesse último um gênero literário que cai no gosto dos leitores. Esse texto pretende analisar as relações entre a prosa ficcional, o romance e seu aspecto realista, e a narrativa histórica feitas nesse período; bem como a manifestação dessas relações no romance pedagógico As Aventuras de Telêmaco de Fénelon, um dos romances mais lidos durante todo o século XVIII. Pretende-se também analisar a idéia de história presente neste romance e o seu diálogo com as concepções de história no Antigo Regime. Palavras-chave: Romance; Escrita histórica; Idéia de história.

HISTORY AND ROMANCE: THE CONCEPT OF “HISTORY” IN “AS AVENTURAS DE TELÊMACO” AND THYE RELATIONSHIPS BETWEEN THE HISTORICAL TEXT AND THE FICTIONAL PROSE BETWEEN THE

XVII AND THE XVIII CENTURIES Abstract The novel rises in the passage of 17th to 18th century, becoming a literary genre that captivates readers from 18th century on. This article intends to analyse the relationships beteween fictional prose, novel and its realistic side, and historic narrative written at that time. It is as well intended to analyse the manifestation of these relationships in the pedagogical novel As Aventuras de Telêmaco by Fénelon, which is one of the novels most read throughout the 18th century. At last, the following paper plans to enquiry the idea of history existing in this novel and its dialogue with the conceptions of history at the Ancien Régime. Keywords: Novel; Historical writing; Idea of history

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HISTORIA Y NOVELA: LA IDEA DE HISTORIA EN LAS AVENTURAS DE TELÉMACO Y LAS RELACIONES ENTRE EL TEXTO HISTÓRICO Y LA PROSA DE

FICCIÓN EN EL PASAJE DE LOS SIGLOS XVII-XVIII Resumen La novela moderna emerge en el pasaje del siglo XVII para el XVIII, tornándose en ese último un género literario que cae en el gusto de los lectores. Ese texto pretende analizar las relaciones entre la prosa de ficción, la novela y su aspecto realista, y la narrativa histórica hechas en ese período; bien como la manifestación de esas relaciones en la novela pedagógica Las Aventuras de Telémaco de Fénelon, una de las novelas más leídas durante todo el siglo XVIII. Se pretende también analizar la idea de historia presente en esta novela y su diálogo con las concepciones de historia en el Antiguo Régimen. Palabras-clave: Novela; Escritura histórica; Idea de historia.

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Dos romances mais lidos durante todo o século XVIII, está, sem dúvida, As Aventuras de Telêmaco, de Fénelon. Este romance francês alcançou em seu país de origem, pelo resto da Europa e mesmo na América, grandes números de edições e traduções. O fenômeno editorial das Aventuras de Telêmaco iniciou-se em 1699 quando saiu do prelo o Suite du quatrième livre de l'Odyssée d'Homère ou les Aventures de Télémaque (Continuação do quarto livro da Odisséia de Homero ou as Aventuras de Telêmaco). Essa primeira impressão, ainda incompleta, veio anônima ao lume, entretanto, rapidamente reconheceu-se ser Fénelon o seu autor. Devido às críticas implícitas ao governo de Luís XIV que podiam ser vistas na obra, foi revogado o seu privilégio editorial e tentou-se retirar de venda os volumes restantes. Contudo, algumas semanas mais tarde, já com o texto completo, o Telêmaco passou a ser impresso clandestinamente na França e em alguns impressores estrangeiros. Em 1717, quando Fénelon já estava morto, seu sobrinho, o marquês de Fénelon, organizou a obra em 24 livros, a mesma quantidade da Ilíada e da Odisséia e foi esta organização que atravessou mais de cem anos de um enorme sucesso.

No mundo luso-brasileiro, a presença do romance de Fénelon foi marcante. A primeira tradução para a língua portuguesa é de 1765 feita pelo bacharel José Manuel Ribeiro Pereira, a seguir vieram outras traduções1. Em 1770 saiu a tradução do capitão Manuel de Sousa, suprindo o esgotamento da edição anterior e defendendo que realizara uma versão mais fiel ao texto original, pois o anterior havia feito "mais uma nova composição do que uma versão fiel"2. A polêmica dos tradutores continuou e, além de reedições das versões anteriores, o Telêmaco

1CRISTOVÃO, Fernando Alves. Presença de Fénelon no Espaço Literário Luso-Brasileiro: subsídios para um estudo. Paris: Fondation Calouste Bulbenkian, 1983. 2 "Prólogo do tradutor" apud. Ibidem, p. p.137.

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conheceu em 1785 uma edição anônima, da Tipografia Rolandiana, em que o editor defende que o texto do capitão Manuel de Sousa, pretendendo ser fiel, acaba por utilizar-se demasiadamente de termos antiquados e a deixar-se "arrastar por uma louca vaidade e capricho de ostentar muito boa lição portuguesa". Essa nova edição aproveita-se do texto anterior, entretanto, utiliza-se de novos caracteres tipográficos e faz emendas no texto de maneira a torná-lo mais acessível ao leitor3.

Finalizando a enorme importância e influência do romance de Fénelon, vale ressaltar o surgimento de vários outros romances diretamente influenciados pelo Telêmaco, textos que imitavam o modelo ficcional de Fénelon, mantendo algumas de suas máximas, mas criando novas soluções, dependendo de seus objetivos e do seu ambiente de concepção. Exemplo desses "romances de imitação" é Il Platone in Italia, de Vicente Cuoco, que teve por objetivo dar a conhecer a filosofia pitagórica e a Itália. O principal representante, no universo luso-brasileiro, são as Aventuras de Diófanes, da escritora luso-brasileira Teresa Margarida da Silva Horta; seu texto foi inicialmente chamado Máximas de Virtude e Formosura, mas a narrativa teve seu título definitivo como Aventuras de Diófanes, Imitando o Sapientíssimo Fénelon na sua Viagem de Telémaco4, em que não deixa dúvidas acerca de sua matriz literária. Teresa Margarida segue o modelo francês em vários aspectos, como a dinâmica dos personagens e a ambientação espaço-temporal da narrativa, entretanto propõe reflexões originais, mais diretamente ligadas ao contexto português, e uma inovadora visão acerca dos direitos e papéis da mulher dentro da sociedade.

3 CRISTOVÃO, Fernando Alves, op. cit., p.136-139. 4 Aventuras de Diófanes, Imitando o Sapientíssimo Fénelon na sua Viagem de Telêmaco, por Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira, Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1777.

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A presença das Aventuras de Telêmaco na América portuguesa também foi impressionante. Fénelon conseguiu ser o autor de Belas Letras mais lido, ou pelos menos cujo livro fora mais requisitado, durante várias décadas no Brasil colonial. Analisando as obras de Belas Letras que tinham por destino o Rio de Janeiro, mediante os pedidos dos cariocas à Real Mesa Censória, Márcia Abreu encontrou, entre 1769 e 1807, 38 pedidos para o romance francês entre versões originais, traduções e adaptações; já no período de 1808 a 1826, o Telêmaco recebeu 65 solicitações. Em ambos os períodos, foi disparadamente a obra mais solicitada. Vale lembrar que esses pedidos com destino ao Rio de Janeiro foram, em vários casos, realizados por livreiros que, em apenas uma solicitação, faziam remeter para o Brasil vários exemplares da obra e, por vezes, a comerciavam com outros pontos do país5. Les Aventures de Télémaque foi o romance de maior presença na circulação legal de livros entre, de um lado, Portugal e, de outro, Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão, entre 1769 e 1800, e Brasil, entre 1769 e 1821. Les Aventures de Telemaque, ainda, em versões em francês, português e espanhol, achava-se em ao menos 10 das 53 remessas de livros, realizadas por livreiros e donos de bibliotecas, sob o crivo da censura, saindo de vários portos do Brasil para Portugal, entre 1769 e 18216.

As Aventuras de Telêmaco foi a obra pela qual Fénelon ficou particularmente conhecido. A narrativa se passa contando os caminhos e descaminhos percorridos por Telêmaco em busca de seu pai, Ulisses, que, mesmo após a vitória dos gregos contra Tróia, não retorna à Ítaca, cidade grega da qual é o rei. Estando

5 ABREU, Márcia Os Caminhos dos Livros. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2003. 6 VILLALTA, Luiz Carlos. Os Romances e os Livros de Belas Letras na Circulação livreira entre Portugal e as Capitanias Setentrionais da América Portuguesa (1769-1821): alguns aspectos quantitativos. I Colóquio Internacional de História do Livro e da Leitura do Ceará [Comunicação], realizado de 29 a 30 de maio de 2004, p. 15.

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Penélope, mulher de Ulisses, pressionada constantemente por vários outros nobres de Ítaca a receber um novo esposo, para dar assim um novo rei à cidade, seu filho parte em busca do pai pelos mares gregos como forma de garantir a honra da rainha e restabelecer a ordem e o bom governo na cidade. Telêmaco segue, então, juntamente com o seu tutor, Mentor (na verdade a deusa Minerva travestida em um velho), na busca de seu pai. Após passar Pilos, onde se encontrou com Nestor, e pela Lacedemônia, onde fora recebido por Menelau, dois reis que juntamente com Ulisses haviam lutado no cerco de Tróia e dos quais não obteve nenhuma informação concreta sobre o paradeiro de seu pai, Telêmaco decide partir para a Sicília, para onde havia suspeitas de que seu pai tivesse sido enviado pelos ventos. A partir de então, Telêmaco passa por várias regiões e situações por vezes hostis e, em outros momentos, favoráveis à sua presença.

O enredo do romance é estruturado de maneira a aproveitar-se das viagens de Telêmaco para se ensinarem noções de geografia das localidades pelas quais se passava, sobre os recursos naturais existentes e a forma pela qual eram utilizados (ou de melhor se fazer uso deles); traz também uma descrição de costumes diferentes, das formas de governo e das práticas religiosas de cada lugar pelo qual se passava ou do qual se falava em algum diálogo. Dessa forma, Fénelon aproveitava-se da narrativa para dar a seu pupilo noções da cultura clássica, geografia, história e, principalmente, oferecer ao futuro soberano de França uma formação moral e política de acordo com os princípios nos quais acreditava o arcebispo de Cambrai. A negação de praticamente todos esses princípios constituía-se pelo governo praticado por Luís XIV.

A estruturação do romance na forma de uma narrativa de viagens coincide com um tipo de literatura que se tornou muito popular e lida na Europa na segunda metade do século XVII, a literatura de viagens.

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Gênero literário de fronteiras indecisas, cômodo porque nele tudo se podia versar; dissertações eruditas, catálogos de museus ou histórias de amor, a Viagem triunfava. Podia ser uma relação pesadona, toda repleta de ciência; ou um estudo psicológico; um romance puro; ou então tudo ao mesmo tempo. Uns criticavam-na, outros elogiavam-na; mas elogios e críticas, tudo mostrava o lugar importante que tinha alcançado e como já se não podia dispensar7.

Dessa forma, utilizando-se do formato de literatura de viagens, produziram-se várias obras que pretendiam narrar uma viagem real a lugares exóticos para o padrão da Europa Ocidental no momento, como o norte europeu, os reinos orientais ou as comunidades indígenas nas Américas. Tais livros se tornaram obras que supriam a necessidade de informação demandada pelo público europeu acerca dos diferentes costumes, religiões, modelos políticos e sobre a geografia e natureza do local descrito. Entretanto, mesmo nestes textos supostamente "reais" ou que pelo menos assim se apresentavam, percebe-se que o artifício muitas vezes utilizado era o de promover analogias entre as localidades descritas e o panorama europeu contemporâneo e se exercer dessa forma uma crítica às ortodoxias políticas e religiosas que pretendiam ser únicas na Europa:

É perfeitamente exacto afirmar que todas as idéias vitais, a de liberdade, a de justiça, foram repostas em discussão pelo exemplo do longínquo. Primeiro, porque em vez de reduzir facilmente as diferenças a um arquétipo universal, se verificou a existência do particular, do irredutível, do individual. Depois, porque às opiniões aceites se podiam opor os fatos da experiência, postos sem custo ao alcance dos pensadores. Às provas de que se tinha necessidade quando se queria contradizer tal ou tal dogma, tal ou tal crença cristã, e que era preciso procurar incomodamente

7 HAZARD, Paul. Crise da Consciência Européia. Trad. Óscar de Freitas Lopes. Lisboa: Edições Cosmos, 1971,p.18.

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nas reservas da antiguidade, vieram juntar-se provas novas, frescas e brilhantes: ei-las trazidas pelos viajantes, ao alcance da mão.8

Assim, dentro de uma obra desse tipo nunca se poderia pretender que a descrição feita pelo autor fosse ingênua. Os exemplos políticos dos lugares longínquos visavam deliberadamente realizar uma crítica principalmente às monarquias européias, em especial à sua vertente absolutista; da mesma forma, os costumes religiosos de orientais ou outros povos eram confrontados com o dogmatismo católico, mostrando-se ser uma religião mais pura, sem ritualismo e, principalmente, sem padres ou representantes que pudessem ser perniciosos à mais pura piedade9.

O gênero popularizou-se de tal forma que abundaram obras que afirmavam ser, por exemplo, fruto de um diário de viagens de algum navegante a qualquer lugar imaginário. Assim, a ficção procurava manter um laço com a realidade, dando ao leitor ao menos a dúvida se os excêntricos costumes eram reais ou não. Observa-se, portanto, uma quase indiferenciação entre as narrativas oriundas de viagens reais e aquelas totalmente imaginárias quanto à situação de, aos olhos dos leitores, estarem narrando fatos e costumes reais ou não. As primeiras recebiam da mão de seu autor um toque ficcional, seja para realizar a crítica que dissemos, seja para provocar um maior interesse no leitor ao relatar anedotas da terra distante que, às vezes, eram claramente irreais.

A literatura de viagens constituiu-se, então, num gênero vago, oscilando entre a pura ficção e aqueles que pretendiam fazer um fiel relato de diferentes culturas que habitam o planeta. O que é inegável foi a disseminação, através desses livros, de princípios como a relativização dos conceitos europeus. Sendo reais ou não, 8 Ibidem, p. 20. 9 Ibidem, loc. cit.

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os reis longínquos demonstravam ter uma sabedoria muito maior que os europeus, os diferentes conhecimentos em várias áreas mostravam-se ser mais eficientes, ou seja, os dogmas, em todas as suas formas, enfraqueciam-se e a estática consciência européia recebera um choque por meio do confronto com diferentes culturas.

No romance que é nosso objeto nesse estudo não existe, claro, essa pretensão de que a história narrada seja verídica, sua prosa é ambientada no mundo grego da Antiguidade, e com as referências mitológicas comuns à literatura antiga. Entretanto, a crítica que empreende aos costumes, à política e à religião é da mesma espécie que o modelo das literaturas de viagens proporcionavam, bem como a modernidade de suas idéias é também consoante com muitas daquelas professadas pela "intelectualidade" do período. Como se verá mais à frente, Fénelon faz uso da ficção não só para instruir o seu pupilo, mas também para, nessa instrução, realizar de uma forma alegórica, uma crítica daqueles costumes que considerava perniciosos e apresentar as suas soluções. Essa é uma das características que permite classificar As Aventuras de Telêmaco no número daquelas obras que inauguram o romance moderno, a saber, uma linguagem referencial ligando as idéias professadas e a realidade vivida. Ao contrário da prosa ficcional anterior ao romance moderno (novel), identificada como romanesco, em que os elementos mágicos ou imaginários seguiam um esquema já estabelecido e tinham por objetivo principal o entretenimento do leitor, não se fazendo necessária a menor ligação entre lugares, situações, acontecimentos ou idéias e o contexto histórico, o romance moderno, em casos como o de As Aventuras de Telêmaco, faz uso desses artifícios imaginários ou fantásticos, incorporando-os numa literatura que carrega idéias modernas dialogando com o contexto histórico e, ao mesmo tempo, afeitas ao gosto dos leitores que apreciavam tais elementos

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na literatura10. Não se pode esquecer também das escolhas feitas pelo autor, pois Fénelon, como é sabido, foi um grande conhecedor e apreciador da Antigüidade, não sendo casual a sua escolha por essa época na ambientação de sua obra.

A moral constantemente explicitada no texto pelas falas dos personagens ou mesmo colocada em ação pelo enredo da narrativa era um dos aspectos que Fénelon pretendia que fossem apreendidos da leitura de sua obra. As idéias veiculadas no romance tinham implicações políticas e religiosas também. Fénelon acreditava na pedagogia como meio de formar novos cidadãos e novos governantes, promovendo assim uma reforma total da sociedade em que vivia; e, especificando seus métodos, a literatura seria um excelente instrumento pedagógico. Na verdade, a preocupação com a educação no período não era específica de Fénelon. A crise provocada nas mentes européias devido ao conflito que se acentuava entre diferentes concepções, tradicionais e modernas, como o choque das posturas religiosa e laica, a tentativa dos monarcas de reafirmarem os deveres dos súditos enquanto estes reivindicavam novos direitos, os valores do sobrenatural a fincar o pé contra o avanço daqueles do quotidiano, do homem mundano por excelência11. Dentro dessas tendências opostas, existiam, é claro, meandros em que os homens podiam se posicionar, e a educação tornava-se prioridade no objetivo de manter os valores e quadros tradicionais ou tentar substituí-los.

Pretende-se, então, mediante a análise das idéias contidas em As Aventuras de Telêmaco12 verificar o diálogo de

10 VASCONCELOS, Sandra G. T. A formação do romance inglês: ensaios teóricos, Tese de Livre-Docência apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2000, p.80. 11 HAZARD, Paul, op. cit. 12 Usei para este estudo a tradução portuguesa de 1785. Todas as citações serão referentes a essa edição: Aventuras de Telêmaco, Filho de Ulisses, por Francisco de Salignac da Motha Fénelon, Arcebispo, e Duque de Cambraia, &c. Traduzidas do Francez em Portuguez com hum discurso sobre a Poesia Épica, e

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Fénelon com essas conflituosas idéias que vicejavam no período, particularmente suas idéias sobre a história.

A classificação bibliográfica entre finais do século XVII e XVIII dividia as obras em cinco categorias maiores: teologia e religião, direito e jurisprudência, história, ciências e artes, e belas-letras13. Dentro dessa classificação, ideal como todas, havia aquelas obras que oscilavam entre uma categoria e outra. A literatura de viagens se situaria na categoria maior "história", entretanto os romances caberiam às "belas-letras". As Aventuras de Telêmaco se situa, nesse esquema, no âmbito das belas-letras, mas a colocação das "viagens" no campo da história merece um comentário. A história reunia tudo aquilo que se relacionava com o saber nas sociedades humanas em que "reina sobre o conjunto, com a sua divisão canônica, história sagrada-história profana, a preponderância cultural da Antiguidade, o modelo de narrativa moral à Tito Lívio"14, e possuía como subgêneros a cronologia, a diplomática e "o inventário do espaço – aquilo que não é ainda a geografia, mas as ‘viagens’"15. Assim, as "viagens" serviam como fonte de informação daquele espaço que não era europeu, freqüentemente identificado como "selvagem" e que servia como uma comprovação contemporânea da "infância do homem". Essas idéias se desenvolveram melhor no século XVIII, existindo uma corrente de pensamento que, explicando a história dos homens (europeus) de um ponto de vista evolucionista, relegaria estes "selvagens" não-europeus a um estatuto inferior; por não terem evoluído, principalmente a sua razão, não teriam uma história, permaneciam no patamar primeiro do estágio humano. Excellencia do Poema de Telêmaco, e Notas Geograficas, e Mythologicas para intelligencia do mesmo Poema. Lisboa, NA TYPOGRAFIA ROLLANDIANA. 1785. Com licença da Real Meza Censoria. 13 FURET, François. A "Livraria"do Reino de França no século XVIII. In: A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1986, p.137-173 14 FURET, François. O nascimento da história. In: op. cit. p.115. 15 Ibidem, p.115.

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A literatura que se pode chamar propriamente de história dita passava então por um momento de extrema desconfiança quanto ao conhecimento por ela produzido. Os escritores de obras de história, desde finais do século XVII, eram constantemente identificados como bajuladores e mentirosos, pois seus livros visavam antes de tudo a agradar ao soberano para o qual trabalhavam, enaltecendo os feitos do monarca, principalmente os feitos guerreiros e, no mais, não passariam de crônicas relatando algumas anedotas da corte16. A crítica textual, o método de análise de fontes ou a erudição que traria à história um estatuto melhor no campo do conhecimento já se desenvolvia desde meados do século XVII, entretanto os seus avanços e descobertas não foram nesse momento incorporados pelos historiógrafos, que estavam muito mais preocupados com o aspecto textual de suas obras que com uma "certeza" ou comprovação empírica daquele conhecimento que produziam. Essas novidades advindas das técnicas da erudição, com efeito, estavam, sobretudo em contradição com aquilo que representa a história para a tradição clássica e que não passa de um anexo das belas-letras: uma bela narrativa no modelo de Tito Lívio ou de Tácito17. O texto histórico era encarado e concebido, então, sobretudo como uma obra de arte: mais vale empregar o tempo na composição e arranjo dos factos da história que procurá-los; mais vale também pensar na beleza, na força, na nitidez e na brevidade do estilo, do que parecer infalível em tudo o que se escreve18.

Assim, a matéria da história constituía-se principalmente de narrativas de guerras e exaltação de discursos

16FURET, François, op. cit., p.109-135; GUSDORF, Georges. La Connaisssance Historique. In: L’avènement des sciences humaines au siècle des lumières. Paris: Payot, 1973, p.371-428; e HAZARD, Paul. op. cit, p.33-49. 17 FURET, François, op. cit., p.115. 18 VARILLAS. Histoire de François I, 1684, apud HAZARD, Paul. op. cit, p.35.

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proferidos por aqueles grandes homens que se queriam agradar com o texto. A narrativa histórica constituía-se de um drama, uma encenação em que desfilavam heróis, vilões, conjurações etc. Desta forma, percebe-se quão tênue era, na época, a linha que dividiria o texto histórico de uma literatura beletrística.

Encontrar-se-á novamente essa aproximação se pensarmos em quais seriam os objetivos desses textos quanto aos seus leitores, quanto à formação que se esperava conseguir mediante a sua leitura. Os historiógrafos tinham clara percepção a esse respeito, pois entendiam que "a história é uma escola de moral, um tribunal soberano, um teatro para os bons príncipes, um cadafalso para os maus. Ensina a conhecer os caracteres, porque é ‘uma anatomia das acções humanas’"19.

Como já víamos dizendo, o método pedagógico da obra de Fénelon valia-se também do uso de exemplos e situações vividos pelos personagens de seu romance, uma forma de se colocar em ação a moral ou os preceitos que pretendia que fossem apreendidos. Para esse objetivo, o romance parecia, na opinião de vários autores, mais efetivo que a história, pois permitiria que fossem abordadas várias situações da vida do personagem, tanto as virtuosas como as viciosas, enquanto a história narraria apenas os fatos maiores e gerais ou seria freqüentemente o louvor de um herói (rei). Por esta maneira escolhida para se desenvolver a educação do leitor, pode-se começar a definir uma concepção de história subjacente ao romance do arcebispo de Cambrai. O tutor de Telêmaco, Mentor (que na verdade era a deusa da sabedoria, Minerva, protetora da cidade de Ítaca e do sábio Ulisses) se aproveita dos vários exemplos de vidas individuais e dos governos de cada uma das cidades pelas quais os dois passam à procura de Ulisses ou mesmo por alguma fatalidade, para deles tirar ensinamentos úteis à formação do jovem como um futuro governante ou mesmo para a sua vida como homem. Assim, a

19 HAZARD, Paul. op. cit., p. 35. (Itálico meu).

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experiência humana é posteriormente sintetizada em palavras servindo como preceitos úteis à vida. Essa forma de se utilizar a experiência humana no tempo, a história, não difere da fórmula tradicional à época: da história mestra da vida, como foi descrito anteriormente. Existe também uma outra forma, no romance, de se unir conhecimento e a experiência humana. Desde o início de suas aventuras Telêmaco já tem conhecimento de vários preceitos defendidos por Mentor para se realizar um bom governo e que esses seriam regras que deveria seguir quando subisse ao trono de Ítaca. Dentre estes, de um lado, o combate ao fausto, ao luxo, à ociosidade e, de outro, a valorização da vida rural e da agricultura, o estabelecimento de relações pacíficas com os Estados vizinhos e, ainda, outros, que serão melhor analisados à frente. Tais preceitos são testados durante toda a narrativa em que invariavelmente se prova o sucesso dos governos quando eram seguidos, e o fracasso dos soberanos e de seus Estados, quando eram contrariados. O sábio Mentor reformou a cidade de Salento orientando o seu rei Idomeneo, que a vinha governando de maneira inadequada. Nessa reforma, utilizou-se daquelas normas que defendia e obteve grande sucesso; ao final, Mentor declarou que o bem que realizara tinha sido menos pelo sentimento a Idomeneo e à sua cidade que para mostrar a Telêmaco que o governo por ele idealizado sempre alcançaria sucesso.

Com o intuito de pulverizar com a idéia de otimismo defendida por alguns pensadores em sua época, Voltaire utiliza um artifício semelhante em seu romance Cândido. Nessa narrativa, Cândido aprendera, com seu amigo e filósofo Panglos, o pensamento otimista que defendia que este era o melhor dos mundos possíveis. Cândido confiou plenamente nessa doutrina enquanto viveu no castelo da Vestfália e, a partir do momento que foi expulso dessa morada, seus infortúnios com o mundo e com os homens concorreram para provar-lhe, por meio de sua experiência própria, que tal doutrina era falha. Nesta obra, então, Voltaire vê a experiência humana como o meio de se comprovar ou não uma idéia previamente aceite ou concebida, ou seja, a afirmação de uma

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verdade não pode subsistir apenas no plano ideal. Ela deve ser "testada" para ter sua comprovação ou não. No caso das idéias políticas ou filosóficas, o laboratório de testes é a história. Em Cândido, a colocação da filosofia otimista sob comprovação teve uma resposta negativa. Percebe-se, então, que, nesse sentido, a construção de um conhecimento acerca da vida e dos homens em Telêmaco obedece ao mesmo esquema que seria seguido depois por Voltaire, entretanto, a colocação das idéias de Mentor sob o crivo histórico obteve uma resposta positiva tanto nos governos já constituídos (passado), como na reforma de Salento, contemporânea à narrativa (presente).

Porém, a capacidade de ação do homem na história possui o seu contraponto, ou o seu limite. O arcebispo de Cambrai não possuía uma perspectiva laicizada da história, com o homem totalmente responsável pelo curso da vida, apesar da liberdade de ação a ele conferida, como se pôde perceber. Fénelon era amigo de um dos principais pensadores franceses do Antigo Regime, Jacques Bossuet, fora inclusive seu protegido até a querela teológica em que os dois se envolveram em 1697. Além de importante obra política, Bossuet escreveu também, no campo da história, o Discurso sobre a História Universal (1681), no qual exibe o seu pensamento sobre a história. Nesta obra, a história "universal" resume-se ao Mediterrâneo, pois é aí que se passa a trajetória judeu-cristã. Para ele, a trajetória humana não passa da realização das profecias bíblicas, os homens não se explicam por si só, porém se tornam compreensíveis em função da predestinação divina, tudo concorre de forma que a profecia judeu-cristã se realize20.

A posição de Fénelon é menos dogmática, porém, não exclui a ação divina na história. Em As Aventuras de Telêmaco, Deus apareceria, no início criando e iluminando a todos os homens com a razão, como se pode ver a seguir: 20LOPES, Marcos A. Voltaire Historiador: uma introdução ao pensamento histórico na época do iluminismo. Campinas: Papirus, 2001; e GUSDORF, Georges. op. cit.

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Conversou depois disso com Mentor a cerca da Primeira Potencia, que creou o Ceo, e a terra; daquella luz infinita que se communica a todos sem dividir-se; daquella verdade soberana, e universal, que illustra a todos os espíritos, qual Sol que allumia a todos os corpos. (...) verdadeiramente homens só saõ sobre a terra aquelles que consultaõ, que amaõ, e que seguem esta eterna razão.21

Deus aparece, então, como uma Primeira Potência criadora que, além da vida, deu aos homens a luz da razão para que estes possam sempre agir com correção. É importante ressaltar-se que o principal valor defendido na obra é a sabedoria, vista mesmo pela deusa Minerva que orienta o protagonista na trama, e a relação estabelecida é que sabedoria corresponde ao uso da razão, e este seria o caminho ideal para todo homem. Entretanto, esse não é o caminho seguido por todos, pois sempre existiria aquele

(...) que nunca vio esta luz pura, he cégo, como os cégos de nascimento, passa a vida em profundas trevas (...). Assim saõ aquelles homens, a que arrastra o deleite dos sentidos, e encantos da fantasia (...).22

Assim, percebe-se que há uma autonomia humana na escolha entre a prática do bem ou do mal, e não uma pré-determinação. Essa autonomia deve ser aceita mesmo como condição pedagógica, de acordo com o proposto pelo romance, pois não haveria sentido em se pretender ensinar ou reformar os costumes humanos caso se acreditasse que a conduta positiva ou negativa estivesse já divinamente escolhida para cada um. O seguimento da reta conduta pelo homem faz com que ele seja livre

21 Aventuras de Telêmaco, p.108. 22 Ibidem, p.108.

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em qualquer situação, o homem verdadeiramente livre, he aquelle, que desabafado de sustos, e desejos, só se sujeita aos Deuses, e à razão23.

O homem teria a vida boa e livre então mediante as suas escolhas e condutas e, assim agindo corretamente, teria os "deuses" a seu favor. A garantia de sucesso dos homens que agem com acerto é dada por Deus. Da mesma forma, aquele que tem uma conduta viciosa, almejando os prazeres sensuais, o deleite e incorrendo em crimes, terá suas punições ainda em vida. O Deus onipresente faria com que tais criminosos se cruzassem utilizando-se deles próprios para castigá-los e fazer justiça. Nesse sentido, apesar daquela primeira liberdade humana de ação, a determinação última da ordem e dos destinos humanos permanece ligada a Deus. Essa idéia transparece no romance, mediante aqueles personagens bons, "favorecidos dos céus", aos quais os deuses não permitem que sejam acometidos por desgraças. O principal, claro, é Telêmaco, diretamente guardado por Minerva. Os mesmos maus reis, enquanto subsistem, só são admitidos pelos deuses pelo castigo que estes pretendem dar aos homens.

A tendência do pensamento acerca do curso dos homens e dos desígnios que estes teriam em suas vidas, desde fins do século XVII e durante o século XVIII, foi de cada vez mais afastar da história as determinações metafísicas. A história se anuncia e se realiza nos confrontos e relações humanos24. Entretanto, esse processo não se deu como em uma linha contínua de esclarecimento. Fénelon está imerso nesse processo que só pode ser compreendido analisando-se as discussões provocadas por tal tema, os avanços e recuos, as várias perspectivas que foram abordadas no tempo na tentativa de se entender a posição e a relação do homem no mundo e com o metafísico.

Fénelon não aceitou a posição de Malebranche que tentara unir o pensamento cristão ao cartesiano. A solução

23 Ibidem, p.123. 24 GUSDORF, Georges. op. cit; e CASSIRER, Ernst.. op. cit.

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encontrada por Malebranche foi de identificar a ação de Deus no mundo apenas por medidas gerais, racionais, naturais e eternas. Dessa forma, Deus teria feito a sua grande obra no momento da Criação e dando à natureza uma dinâmica racional de ação. Deus não seria a Suprema Sabedoria se interviesse em sua obra, cuja perfeição é a ordem, em todo o momento; seria sábio, então, deixar a natureza agir conforme a ordem divinamente estabelecida, e permitir que os homens tomassem consciência da verdade e do pecado sem a Sua interferência. A única causa ocasional estabelecida por Deus foi Jesus Cristo. Percebe-se, aqui, o esforço de Malebranche em se entender o curso dos homens de uma forma mais natural e racional, sem, no entanto, excluir Deus25. Entretanto, para Fénelon, essa solução não dá a Deus toda a dimensão de sua importância na história. Para o nosso autor, Malebranche teria submetido a fé à filosofia, pois, segundo esta doutrina, por amor à sua Sabedoria, Deus deixaria ocorrer a livre condenação de todos os homens, já que não agiria "ocasionalmente" ou "particularmente"26.

Essa posição de Fénelon pode ser comprovada em seu romance. Para garantir uma justa ordem entre os homens na terra, para não permitir que os bons tenham um destino infeliz por obra dos maus, Deus – ou no caso os deuses, devido à ambientação mitológica dada à narrativa –, agem diretamente na realidade material. O episódio da vitória de Telêmaco contra o ímpio rei Adrasto mostra bem isso, pois as artimanhas traiçoeiras deste derrotariam o filho de Ulisses caso Júpiter não agisse em seu favor. Entretanto, Fénelon não faz disso uma banalidade, como se os deuses corriqueiramente agissem na realidade humana segundo seus caprichos, tais ocasiões aparecem como situações especiais; num plano geral, os homens são livres e responsáveis por seus atos, e os episódios narrados são bastante naturais. A ação divina

25 HAZARD, Paul. op. cit. p.109-115. 26 Ibidem, loc. cit.

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na realidade material aparece mais como uma forma de demonstrar a potência de Deus; o "maravilhoso" existente na obra mostra a ação divina realizando grandes acontecimentos. Pretende-se, assim, unir o verossímil ao maravilhoso e, com isso, ensinar que mesmo os homens mais valentes de nada valem sem os Deuses. O homem não pode nada sem a sabedoria divina.

A relação, portanto, entre Deus e a história humana aparece como um plano divino pelo melhor, de forma que a liberdade humana, concedida por Deus, permite os vícios dos homens e suas ações ímpias e injustas. A ordem justa é, no entanto, salvaguardada por Deus. Fénelon quer dar, então, a Deus um papel na história maior que o pretendido por Malebranche, sem chegar no total pré-estabelecimento de Bossuet. Deus é, em Fénelon, mais que a Primeira Potência, ou Primeira Sabedoria, que depois de sua grande obra afasta-se totalmente da história: Ele é onipresente e pode agir entre os homens, mas o destino destes, individual e coletivamente, depende de si próprios, ou seja, os caminhos e sucessos de cada um e da humanidade não estão predeterminados, como em Bossuet, pela Revelação bíblica.

O homem é responsável por seu sucesso presente e pela construção de uma sociedade melhor no futuro. Com efeito, no romance há uma visão negativa da sociedade e de seu momento histórico: Estamos por tal modo estragados, que mal podemos crer que simplicidade taõ natural possa ser verdadeira27. É claro que esta, assim como outras afirmações de repugnância aos costumes contemporâneos, feita na ficção, refere-se ao tempo reconstituído pela narrativa. Entretanto, acredito que se pode fazer uma correlação dos tempos entre a sociedade ficcional narrada e aquela em que Fénelon produziu sua obra. Como foi dito anteriormente, o artifício alegórico no romance permite que se use uma situação ficcional, mesmo "maravilhosa" ou "fantástica", para se fazer referências e críticas ao seu tempo. É importante que fique

27 Aventuras de Telêmaco, p.181.

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definida esta idéia para que possamos desenvolver um próximo aspecto acerca da idéia de história em As Aventuras de Telêmaco, a saber: o curso do tempo histórico.

A começar pelo tempo presente, viu-se que a perspectiva é de uma corrupção ou "estrago" dos costumes. Se o momento atual está "estragado", a idéia subjacente é que houve um momento, no passado, em que os costumes eram sadios. Vendo essa situação pelos olhos da mitologia greco-romana, a ficção de Fénelon localiza tal passado na Idade de Ouro. Na mitologia, a Idade de Ouro remete a um passado em que reinava Saturno. Este fora um tempo de paz e felicidade completas, havia justiça e todos os homens viviam em comum, em perfeita harmonia, e a terra, mesmo sem ser amanhada produzia todo o necessário para os homens. No romance, há a descrição da cidade da Bética, a mais harmoniosa, e com a sociedade mais virtuosa existente:

quando começámos a commerciar com estes Póvos (os béticos), vimos que faziaõ do ouro, e prata o mesmo uso, que do ferro, por exemplo, para as relhas dos arados; porque como naõ mercadejavaõ com Naçaõ alguma, era-lhes escusado ter moeda. Quasi todos saõ lavradores, ou Pastores, e há poucos Artífices, pois só querem aquellas Artes, que servem para as verdadeiras precisões;e até a maior parte dos homens neste Paiz, posto que dados a Agricultura, ou guarda de rebanhos, não deixaõ de praticar as Artes, de que necessita o seu gênero de vida simples e frugal28.

A Bética foi uma província romana situada na Andaluzia; dentre outras coisas, sua localização permitiu "com que neste Paiz se tem conservado todas as delicias da idade de ouro"29.

O passado mítico e idealizado dos antigos é retomado no romance, colocando-se, porém, nessa época de ouro, aqueles

28 Ibidem, p.174-5. 29 Ibidem, p.174. (Itálico meu)

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atributos que para Fénelon seriam constitutivos de um passado melhor, mas que fora perdido. O principal fato que faz com que todos os costumes da Bética tivessem conservado a sua pureza do passado e não fossem estragados no curso da história foi o seu desapego às artes supérfluas, cultivando apenas as úteis à produção dos bens necessários à vida:

Os homens, além da agricultura das terras, e guarda dos rebanhos, não se daõ a outro officio mais que o de Carpinteiro, e Ferreiro, e até pouco uso fazem do ferro, senaõ he para os instrumentos da lavoura. Saõ-lhe inúteis todas as Artes, que dizem respeito à Arquitectura, pois nunca edificam casas, e dizem que he desmesurado apego à terra fazer nella morada, que dure muito mais que nós, e que sóbra abrigar-se cada qual nas inclemencias do ar. Abominaõ todas as Artes taõ prezadas dos Gregos, e Egypcios, e mais Nações policiadas, como invenções da vaidade, e affeminaçaõ30.

As artes de "gregos e egípcios", soberbos edifícios, móveis de ouro, e prata, (...) sedas bordadas, jóias, aromas exquisitos, guizados delicados, e instrumentos, cuja harmonia encanta31, são cultivadas por povos que perderam a harmonia com a natureza, efeminaram-se e já não podem conviver solidariamente uns com os outros.

Esses Póvos saõ bem desgraçados, por ter empregado tanta fadiga, e industria em damnar-se a si proprios. Esse superfluo enerva, desacorda, e atormenta aos mesmos, que o desfructaõ. Serve de accender, naquelles que o naõ tem, desejos de adquirllo com injustiça, e violencia. Merece por ventura o nome de bem, o superfluo, que só serve de estragar os homens? Por ventura os homens desses paízes saõ mais sadios, e robustos que nós (os béticos), mais unidos entre si? Passaõ a vida com mais

30 Ibidem, p.175. 31 Ibidem, p.175.

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liberdade, socego, e alegria? Naõ, antes pelo contrario, haõ de ser ciosos huns dos outros, e huma vil, e negra inveja lhes há de consumir as entranhas: a ambiçaõ, e o temor, e a avareza sempre os inquieta, e saõ incapazes dos prazeres puros, e simples, como escravos que saõ de tantas precisões fantásticas, de que põem em dependência a sua dita, e ventura32.

A Bética aparece, no romance, como um "país" que conservara as características do passado, evitando aquilo que provocara a corrupção dos costumes em outras partes. Assim, a referência à Bética torna-se uma menção a um passado bastante longínquo, e a idealização desse passado responde às demandas do presente de Fénelon. Se podemos ler os bons governos descritos no romance como um contraponto aos defeitos dos governos de sua época, especialmente o governo francês, a Bética é o contraponto, remetendo a um espaço-tempo no qual se verificava que os costumes nem sempre foram como se apresentavam à época de Fénelon. A leitura feita desse passado é especificamente datada, a questão que se quer levantar com esse repúdio às artes, roupas de sedas bordadas, arquitetura suntuosa e móveis de ouro é cara ao Antigo Regime, à distinção entre o ser e o parecer. Para Fénelon, as artes são a causa de tal distinção. O desenvolvimento delas fez com que os homens se preocupassem em ter e exibir roupas, guisados e outros supérfluos que constituiriam o parecer. Esta aparência, como se viu, é extremamente negativa, pois torna os homens invejosos, temerosos e ciosos uns dos outros. É importante perceber que a leitura feita do passado responde a uma questão contemporânea a Fénelon e que o uso desse passado serve para mostrar uma época melhor em que os costumes "atuais" ainda não existiam.

As causas que fizeram com que a Bética "parasse no tempo" são de duas ordens. A primeira é geográfica, sua posição tornava difícil que os outros povos (corrompidos) chegassem a este 32 Ibidem, p.175-6.

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país e que os seus homens constantemente saíssem para conhecer estas gentes. Apesar desse intercâmbio não ser freqüente, os béticos sabiam como se portavam os outros povos, assim, a principal razão para que conservassem tão saudáveis costumes era a sua sabedoria. Esta sociedade constituía-se de homens em que não se via outra distinçaõ, mais do que aquela, que nasce da experiencia dos Anciãos sisudos, ou da extraordinaria sisudeza de alguns mancebos, que hombreaõ com os velhos consummados na virtude33. Os seus costumes e governo seriam bons porque seguiam a sabedoria, mas não eram sábios pela graça divina, e sim pelo empenho e estudo próprios: "desta maneira, he que se explicaõ estes homens sábios, que aprendêraõ a sello, estudando".34

Ora, apesar de constituírem uma sociedade que pertencia ao passado da humanidade, os béticos não eram assim porque seriam rústicos ou porque não conheciam os "avanços" das civilidades de outras praças. Pelo contrário, eles os conheciam e os utilizavam quando úteis e não para se produzir luxos desnecessários. Isso fez com que conservem no presente as benesses passadas e tenham uma comunidade sã, ou seja, a boa vida, o bom governo e os bons costumes são frutos de deliberações humanas. Voltando à discussão feita acima, Fénelon faz questão de ressaltar a grandeza divina e o poder que conserva sobre Sua obra, mas a responsabilidade pela construção da história é fundamentalmente humana. É por isso que os béticos têm, no tempo presente, o que havia de bom no passado; foram os homens que não permitiram que se corrompesse; da mesma forma foram os homens que, nas outras localidades, não souberam usar a sua sabedoria e se "estragaram".

A Bética é contemporânea à narrativa, sendo também a imagem de um passado idealizado; e esse passado torna-se utopia quando colocado na perspectiva dos homens fora desse espaço. O

33 Ibidem, p.177. 34 Ibidem, p.176.

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horizonte utópico conforma-se, pois, se aqueles homens, por ação e responsabilidade suas, mantiveram aquela harmonia perfeita, é possível construí-la também fora daí, sendo esta obra também de responsabilidade daqueles mesmos homens que se corromperam. Há ainda, no romance, como Fénelon imagina a sociedade e a política recuperadas, o que não significa uma proposta de volta ou de reconstrução do passado, mas assenta-se numa confiança na capacidade humana de aprendizado de construção de sua história, mas este é assunto para um próximo trabalho.

Referências

Fonte

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João Paulo Martins - Mestrando em História e Culturas Políticas no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais.

Recebido em: 10/12/2006 Aceito em: 15/03/2007

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RESENHA

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 215-221, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

PENSADORES SOCIAIS E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Hercules P. Santos

Resenha de: FARIA FILHO, Luciano Mendes de. (org) Pensadores sociais e História da Educação. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

"Os clássicos mudam muito de opinião para agradar os que os interpretam".

Millôr Fernandes

Investigações históricas a respeito da educação no Brasil são conhecidas desde a segunda metade do século XIX, empreendidas por profissionais diversos: educadores e historiadores, mas também clérigos, engenheiros, médicos e advogados. Os primeiros programas de pós-graduação em educação no Brasil aparecem no final de década de 196011. Nos anos 80 são constituídos, o Grupo de Trabalho História da Educação, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, a ANPED; o Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil, o HISTEDBR. A instituição desses grupos ajudou no crescimento da produção de pesquisas no campo da História da Educação brasileira. Uma produção que faz interlocução com diversas áreas acadêmicas como a sociologia, política, antropologia, lingüística, literatura, geografia e arquivística; historiograficamente, a maior influência vem da nova história cultural francesa. Isso me dá indícios para pensar que, a obra aqui a ser analisada surgiu da necessidade apontada em texto escrito por Luciano Mendes e Diana Gonçalves Vidal: "... urge realizarem-se pesquisas que enfoquem, especificamente, as formas como os pesquisadores têm dialogado com as várias recentes 1 PUC do Rio de Janeiro em 1965 e PUC de São Paulo, em 1969.

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perspectivas historiográficas, tais como a marxista, a história cultural, a história das mentalidades e a foucaultiana"2.

Pensadores Sociais e História da Educação, livro organizado por Luciano Mendes de Faria Filho3, é uma obra de indiscutível contribuição para a pesquisa em história da educação. A maneira pela qual, historiadores da educação brasileira têm se apropriado de alguns dos pensadores mais consagrados pelas ciências humanas, é o norte da elaboração dessa obra. O foco de discussão dos colaboradores (as) – pesquisadores (as) de várias universidades brasileiras – nos 15 artigos que compõem este livro, firma-se nas abordagens teórico-metodológicas. Acreditando não haver uma renovação dos autores de referência, devido à freqüência com que tais pensadores freqüentam as bibliografias dos trabalhos realizados no campo da educação, nas últimas décadas, Luciano Mendes afirma que novas maneiras de utilização destes clássicos vêm surgindo: "... assim como têm sido feitas novas perguntas, a velhos objetos, antigos autores / interlocutores têm sido lidos de forma a ajudarem a entender a educação e, desse modo, a constituição da própria sociedade brasileira". (Faria Filho, 2005:7)

A renovação dessas apropriações só pode contribuir positivamente para enriquecer os procedimentos teórico-metodológicos, ampliar a escala de fontes para a pesquisa e proporcionar uma maior diversidade de objetos a serem questionados. Segundo o organizador, esses procedimentos acabam gerando novas dimensões para a pesquisa.

Para a construção dessa obra, foram delimitados critérios simples. Baseado em seus conhecimentos a respeito do trabalho desenvolvido pelos pesquisadores selecionados, Luciano Mendes

2 VIDAL, Diana G; FARIA FILHO, Luciano M. As Lentes da História: estudos de história e historiografia da educação no Brasil. Campinas: Autores Assossiados, 2005. 3 Doutor em educação pela Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Coordenador do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG.

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solicitou a eles que escrevessem um texto sobre as contribuições de um pensador, ou em suas próprias palavras "o seu clássico", em relação à pesquisa em história da educação. Segundo Faria Filho, o convite foi dirigido, pois ele tinha uma idéia prévia de qual autor seria mais indicado para falar sobre um determinado clássico. Um outro critério utilizado foi o de incluir nessa obra apenas textos sobre autores já falecidos: Karl Marx, Freud, Émile Durkheim, Gramsci, Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin, Vygotsky, Norbert Elias, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Hannah Arendt, Florestan Fernandes, Edward P. Thompson, Michel de Certeau e Foucault. Por motivos não explicitados, ficaram de fora três pensadores que haviam sido cotados para compor a obra, são eles Max Weber, Philippe Arié e Pierre Bourdieu. Um pequeno detalhe que me chamou a atenção, é que a única mulher presente nesse elenco de pensadores sociais, não está presente na capa da obra.

Escolhi dentre os 15 artigos, quatro para falar um pouco dos objetivos que seus autores pretendem contemplar: Marx, Freud, E. P. Thompson e Sérgio Buarque de Holanda.

Há décadas se discute sobre a relação entre marxismo e educação. Elomar Tambara, pesquisador da Faculdade de Educação da UFPel (Pelotas, RS), fala das contribuições de Karl Marx para a pesquisa em educação no século XXI. Para ele, os conceitos marxianos são inesgotáveis, no sentido de proporcionarem novas categorias de análise para as ciências sociais. Grande parte dos modelos teórico-sociais, surgidos após Marx, se apóia de alguma maneira em seus métodos, princípios e categorias, mesmo que objetivando revê-los, superálos ou questioná-los, na tentativa de oferecerem novos modelos explicativos.

Apesar da constatação de que no final do século XX, há uma queda sensível no emprego dos referenciais teórico-metodológicos vinculados ao pensamento marxiano, não seria o caso de se dizer que alguns grupos ainda não defendam a utilização das contribuições de Karl Marx para uma investigação de

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qualidade dentro do campo. Tambara observa que em muitos congressos, encontros, seminários e até em periódicos; está ocorrendo certa marginalização de trabalhos apoiados nas idéias marxistas. Em contrapartida, há também o surgimento do paradigma marxiano em diversos outros ambientes de pesquisa. Em seu trabalho, Tambara apresenta algumas contribuições teóricometodológicas capazes de dar aporte a muitas pesquisas em História da Educação.

Demonstrando a alteridade de contribuições que esses pensadores podem imprimir à pesquisa em educação, Maria Madalena Silva de Assunção, doutora em educação (professora do UNI-BH e da UNINCOR), fala das possíveis aproximações de Freud e a História da Educação. Ela afirma haver, nas últimas três décadas, mudanças metodológicas na pesquisa histórico-educativa, um abandono da "história da pedagogia" e o surgimento da "história da educação". Um rompimento com o "modelo unitário e continuísta de antes", aparecendo em seu lugar, um modelo de pesquisa mais problematizador, com novas maneiras de observar a história dos eventos pedagógico-educativos, a educação como um conjunto de práticas sociais. Uma revolução historiográfica capaz de proporcionar uma maneira mais flexível de se pensar o complexo processo educativo.

O alcance dessa revolução, proporcionando novas idéias, devido ao flerte com novas áreas do conhecimento, nesse caso a teoria psicanalítica, leva Freud a contribuir para a educação e suas práticas educativas: "Houve [...] uma busca na obra de Freud sobre a educação, ou a busca de uma ‘metodologia freudiana’ sobre a educação". (Assunção, 2005:29)

O objeto de Sigmund Freud nunca foi a educação, propriamente dita, a autora pontua que a teoria freudiana deve ser observada a partir de outra perspectiva, mais ampla, a das relações entre o indivíduo e o que Freud chamava de "civilização".

Luciano Mendes de Faria Filho em seu artigo, fala de suas apropriações a respeito de Edward Palmer Thompson. Segundo ele, Thompson é um autor que freqüenta as bibliografias

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dos historiadores da educação brasileira de maneira ainda muito modesta. Segundo Faria Filho, mesmo no decorrer da década de 1980, época em que Thompson detinha grande prestígio junto aos historiadores no Brasil, José Willington Germano4, um dos poucos autores a discutir as idéias de Thompson, defendia a não utilidade de se trabalhar a obra do historiador inglês historiograficamente, pois "... não fazia sentido recorrer a um marxista tão heterodoxo para aprender como fazer história. Para isso, bastava ler, e ler corretamente, o próprio Marx". (Faria Filho, 2005:239-40)

Na década de 90, em detrimento da "engajada e criativa História Social Inglesa", houve grande aproximação entre a pesquisa em História da Educação brasileira e a historiografia francesa, o que de certa maneira, foi proporcionado pelo crescimento da pesquisa em História da Educação, a organização de grupos de pesquisa, criação de instituições científicas e de meios de divulgação do campo; além da conseqüente profissionalização dos pesquisadores. O interesse pela obra de Thompson, no campo da pesquisa em educação, é recente. Podemos salientar os trabalhos de Maria Célia Marcondes Moraes (UFSC), Marcus Aurélio Taborda (UFPR), além dos próprios trabalhos de Luciano Mendes de Faria Filho. Contribuições que chamam para a importância de Thompson dentro do atual debate historiográfico na produção histórica educacional brasileira. A proposta do texto de Luciano Mendes centra-se em apresentar suas leituras da obra do referido clássico, chamando atenção para as dimensões de suas próprias pesquisas, enriquecidas pelas idéias desse pensador.

Pensadores sociais brasileiros também fazem parte deste seleto elenco, como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda. A respeito desse último, quem escreve é Thais Nivia de Lima e Fonseca, Doutora em História e 4 Para maiores informações a respeito da crítica de Germano a respeito de Thompson, consultar: GERMANO, José Willington. Thompson e o método em Marx. Educação & Sociedade, 32, p. 7-22, abr. 1989

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professora da Faculdade de Educação da UFMG. Nas últimas décadas, Sérgio Buarque vem sendo analisado dentro da historiografia nacional, por historiadores brasileiros e também estrangeiros. Alguns o consideram precursor de uma abordagem historiográfica apoiada na Escola dos Annales e na História Cultural, um historiador das mentalidades, tratando de forma inovadora suas fontes de pesquisa, dando atenção diferenciada aos sujeitos "anônimos" da história, evidenciando as relações destas fontes com o recorte espacial e a sua cultura. Apesar do respeito conquistado por este autor, Holanda ficou muito tempo esquecido das bibliografias nas pesquisas históricas no Brasil. Foi redescoberto no final da década de 70, período em que houve uma incorporação da então chamada "história das mentalidades" pela historiografia brasileira. A obra de Sérgio Buarque de Holanda, inspirou muitos dos historiadores que resolveram se aventurar pelos estudos culturais, pelos temas cotidianos, e a dar voz aos sujeitos "comuns" da história. Raízes do Brasil, Visão do Paraíso e Caminhos e Fronteiras são obras que serviram de base para o entendimento de muitas comunidades no território da América portuguesa, pano de fundo no entendimento desses grupos e suas relações com as condições naturais diversas encontradas pelos mesmos.

Thais Nivia reflete sobre os motivos que levam a uma ausência desse pensador em campos da investigação histórica nos quais ele poderia estar presente, além de discutir as possibilidades de suas idéias apoiarem a pesquisa em História da Educação.

Concluindo, trata-se de uma obra que aponta para uma profusão de novas abordagens e interpretações, demonstrando a densidade, existente hoje, na reflexão historiográfica brasileira. Um convite para que o leitor releia o seu clássico através de novas perspectivas.

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Referências

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VIDAL, Diana G; FARIA FILHO, Luciano M. As Lentes da História: estudos de história e historiografia da educação no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2005.

Hercules P. Santos - Bacharel em História. Integrante do GEPHE – FAE/UFMG

Recebido em: 11/02/2007 Aceito em: 15/03/2007

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DOCUMENTO

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 225-246, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

APRESENTAÇÃO: A LIGA DO ENSINO NO BRASIL E A REVISTA LIGA DO ENSINO (1883-

1884)1 Maria Helena Camara Bastos

Essa iniciativa liderada por Rui Barbosa é exemplar para analisar a historicidade dos discursos e ações sobre escola laica e liberdade do ensino no Brasil. A intenção não é realizar uma análise da produção pedagógica-educacional de Rui, visto que vários pesquisadores já o fizeram, mas de situar alguns eventos que marcaram sua atuação em promover a causa da instrução pública e de procurar implementar alguns itens do projeto. Miguel Reale (1984, p.13), assinala que o seu pensamento "congregava teorias diversas, unidas, no entanto, pela aceitação comum de algumas idéias básicas"; exemplificando, quanto a pedagogia, destaca "o predomínio da escola leiga e um aprendizado inspirado pelos valores das ciências empíricas".

É de conhecimento a posição de Rui Barbosa quanto à questão religiosa, na introdução da tradução que faz de O Papa e o Concílio, de Janus e no Discurso da Maçonaria (1876), centrados numa acerbada crítica ao papado e à infalibilidade pontifícia, defendendo a separação entre Igreja e o Estado. Essa postura será gradativamente modificada. Em 1903, o discurso Oração aos Moços - " marca um momento significativo na sua evolução religiosa". Para Rui, o Estado deve ser leigo, para não ser intolerante, e deve garantir as condições à liberdade de crença sem advogar ou

1 Este estudo integra o projeto de pesquisa "Educação Brasileira e Cultura Escolar: análise de discursos e práticas educativas (séculos XIX e XX)", e, especialmente, a pesquisa "Ensino laico e liberdade do ensino no Brasil: discursos e ações (1854-1889)" (CNPq/PUCRS). O artigo é uma versão ampliada do capítulo intitulado "Menezes Vieira e Rui Barbosa: parceiros no projeto de modernização da Educação Brasileira" (1999). Colaboração da bolsista de Iniciação científica Tatiane de Freitas Ermel (PIBIC- CNPq/PUCRS)

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privilegiar nenhuma delas: "o Estado é apenas a organização legal das garantias de paz comum e o mútuo respeito entre as várias crenças, convicções e tendências que disputam, pela propaganda persuasiva, o domínio do mundo. A verdade científica, a verdade moral, a verdade religiosa estão fora de sua competência. É na região superior do espírito, é na esfera livre das consciências que elas se debatem, caem ou triunfam...".

No Parecer de Reforma do Ensino Primário, Rui Barbosa defende o ponto-de-vista de que uma das condições para o desenvolvimento do sistema educacional seria a secularização do ensino, dedicando, especialmente, o capítulo V, à explanação de suas idéias sobre Escola Leiga: "proteger uma igreja à custa de contribuintes que a repelem, é um atentado à propriedade; fundar incapacidades políticas sobre distinções de fé religiosa, é a imposição de um estigma à probidade das almas sinceras e a decretação de honras públicas a uma hipocrisia convencional; obrigar à escola, e fazer a suprema violência contra a humanidade e o direito; é suprimir a família, substituindo a autoridade do pai pela supremacia do padre, e asfixiar à nascença a liberdade moral, abolindo a individualidade e a consciência, feridas de morte, na criança, pela compreensão uniforme de um símbolo religioso entronizado na escola. Logo, se fizerdes obrigatória a instrução elementar, não podeis, sem a mais abominável tirania, compreender na parte obrigatória do seu programa a lição de dogma". Nesta perspectiva, a escola comum não imporá dogmas, religiosos ou irreligiosos, materialistas ou espiritualistas, deistas ou ateus, racionalistas ou confessionais - "em vez da moral da cartilha, portanto, a moral ativa e intuitiva". Quanto aos professores, Rui defende que "secularizando o programa obrigatório da escola, porque não havíamos de secularizar a cadeira do mestre?,(...) a nomeação de indivíduos votados à propaganda ou ao serviço de um culto especial privaria sensivelmente a escola desse caráter de neutralidade entre todas as opiniões religiosas, que convém criar, e preservar cuidadosamente" (1947, p. 269 a 349).

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A Reforma de Leôncio de Carvalho, no artigo 4°, estabelece: "os alunos acatólicos não são obrigados a freqüentar a aula de instrução religiosa, que por isso deverá efetuar-se em dias determinados da semana e sempre antes ou depois das horas destinadas ao ensino de outras disciplinas". Rui Barbosa discorda desta tentativa de conciliar aspectos antagônicos, pois o Decreto propõe a coexistência de vários credos e encarrega o professor primário de ministrar as aulas de religião católica.

A idéia de fundação de uma sociedade para a defesa do ensino leigo pode ter decorrido da leitura que Rui Barbosa fez da obra de Jean Moussac - La Ligue de l’enseignement. Histoire, doctrines, oeuvres, résultat et projets, que compunha sua biblioteca, na qual fez inúmeras observações nas margens.

A Liga tem sua origem na Bélgica (1854), tendo vínculos estreitos com as associações maçônicas, pela defesa da descristianização da escola pela crescente influência Jesuítica. Assim, os objetivos da liga são contrários as leis existentes, que dão à instrução religiosa o primeiro lugar na escola. Em 1866, Jean Macé funda a Ligue d’enseignement, na França, com objetivo de ensino exclusivamente laico na escolas públicas e ensino primário gratuito e obrigatório. Estas sociedades fundam escolas-modelos, bibliotecas populares, círculos operários, realizam conferências e cursos gratuitos, organizam em cada vila ou comuna um grupo similar de organização e objetivos, mas de ação independente. Moussac (1880, p.132) afirma que "a liga não se ocupará nem de política, nem de religião, o objetivo da educação é fazer os homens, e não máquinas de ler, escrever e contar; é formar a alma humana inteira: inteligência e vontade. Dois princípios inflexíveis e imutáveis: a verdade para dirigir o espírito e lhe dar a regra de julgar e o senso de apreciação; o bem para governar a consciência e imprimir uma direção de direito e de certeza. - La Ligue veut chasser Dieu de l’école, a fin de le chasser de l’humanité - estas palavras resumem o projeto da Liga".

Rui Barbosa, inconformado com o flagrante enterro da sua Reforma, continuou a promover a causa da instrução pública e

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de procurar a implementação de alguns itens do projeto. Para Viana (1977, p.118), "por este tempo, talvez para compensar a saída de Rodolfo Dantas do ministério, e que tivera como consequência não poderem efetuar a adoção daquelas idéias novas avançadas, em matéria de instrução, os dois amigos se associaram a outros devotos da educação, e fundaram a Liga do Ensino. E, a fim de divulgarem métodos pedagógicos modernos, que ambicionavam ver disseminados no país, logo publicaram a Revista da Liga do Ensino".

A fundação da Liga do Ensino no Brasil ocorreu em 22 de outubro de 1883, na primeira reunião realizada nas dependências do Liceu de Artes e Ofícios, onde, como presidente, Rui Barbosa expõe as razões que levaram esta iniciativa: "é notória a desorientação dos espíritos entre nós nos assuntos que tocam aos problemas do ensino, e de que dependem os mais vitais interesses do país. Quer nas tentativas do Estado, acanhadíssimas até hoje, quer em geral, salvo honrosas exceções nas da iniciativa particular, uma falta lamentável de direção científica tem tolhido o nosso desenvolvimento. Pareceu, pois, de urgente necessidade instituir um centro, modesto, mas essencialmente ativo, de movimento e de força, contra os preconceitos da rotina e a inveteração dos abusos que nos obstruem o caminho. Tal é o fim da Liga do Ensino no Brasil, cujo o tipo é o de associações de nome semelhante, que florescem na Bélgica e nas outras nações mais adiantadas da Europa" (GAZETA DE NOTÍCIAS. Liga do Ensino. Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1883).

O objetivo da associação era "o estudo dos diversos ramos do ensino público, para promover a adoção dos métodos científicos e o melhoramento das condições do professorado". Isso se daria através de "discussões das questões que se relacionam com o desenvolvimento da instrução, em sessões ordinárias e pela imprensa; de conferências, para as quais serão convidados os professores primários públicos e particulares, sobre os melhoramentos da escola elementar e os pontos mais interessantes da moderna pedagogia; de estudos das condições e necessidades

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dos estabelecimentos de ensino, públicos e particulares; da fundação de uma escola modelo, onde a instrução seja praticada com todos os aperfeiçoamentos, e onde se possam apreciar as vantagens do ensino leigo" (O BRAZIL. Liga do Ensino no Brazil. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1883).

A escola modelo deveria ser absolutamente leiga, embasada em idéias científicas da pedagogia contemporânea, "estabelecimento cujo caráter de escrupulosa neutralidade entre as crenças religiosas, seja ao mesmo tempo uma homenagem aos direitos da consciência de todos e uma definição viva do papel da escola, que não se confunde nem com o da família, nem com o da Igreja" (GAZETA DE NOTÍCIAS. A Liga do Ensino no Brazil. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1883).

O Editorial da Gazeta da Tarde, sobre a Liga do Ensino, assim refere-se a questão do ensino leigo: "como a questão do ensino se acha intimamente ligada com a questão religiosa, e, como para nós o primeiro passo consiste em separá-las, dando ao ensino leigo nas escolas e o religioso no templo, S. Ex. (Rui Barbosa) tem para nós, mais o merecimento de se ter sempre mostrado convicto desta verdade" (GAZETA DA TARDE. Editorial. Uma Escola Leiga. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1883)

A Diretoria da Liga do Ensino era composta: presidente - Rui Barbosa, vice-presidente - Hilário Gouveia, primeiro secretário - Balduíno Coelho, segundo secretário - J.P. da Silva Maia, tesoureiro - Joaquim A. Fernandes Pinheiro; e com 50 sócios fundadores - "homens de boa vontade, pacíficos revolucionários, que tomam aos ombros os encargos que os governos reputam pesados demais, serão provavelmente a fonte de grandes bens para o país" (GAZETA DE NOTÍCIAS. Cousas Políticas. Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1883). Os sócios-fundadores foram: Rodolfo Dantas, Menezes Vieira2, Dr. Souza Bandeira F., Dr.

2 Sobre Menezes Vieira, ver BASTOS (2002).

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Sancho de Barros Pimentel, Dr. Ferreira de Araújo, Ferreira Jacobina, Capistrano de Abreu, Dr. Silva Araújo, Dr. Moncorvo, Dr. Franklin Távora, Faro, Dr. Carlos de Carvalho, Borges Carneiro, Dr. Silvio Romero, Alberto Brandão, Lameira de Andrade, Dr. Aquino, Louis Couty, Comendador Ramalho Ortigão, Zeferino Candido, Dr. Ubaldino do Amaral, Fausto Barreto, Silva Maia, Amaro Cavalcanti, Dr. Coelho Rodrigues, Teophilo Leão, Dr. A. Spinola, Dr. Tobias Leite, Joaquim Teixeira de Macedo, Dr. Lima e Castro, A. Pereira leitão, Dr. Aarão Reis, Comendador Fernandes Pinheiro, Machado de Assis, Dr. João Paulo de Carvalho, Bittencourt da Silva, Carlos Jansen, Dr. Americo Barbosa, Dr. Jacy Monteiro, Ullysses Cabral, Dr. Ennes de Souza, Dr. Lyra da Silva, Dr. Theodoreto Souto, Alambary Luz, Dr. Antioco Faure e B. Caldeira (GAZETA DE NOTÍCIAS. A Liga do Ensino no Brazil. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1883).

O jornal Diário do Brasil, de 1 de novembro de 1883, publica uma interessante matéria sobre a Liga do Ensino, recomendando a vigilância nas casas de educação particular " na propagação de doutrinas religiosas, que mais tarde podem causar a ruína do Estado. Um padre apostata, de novo recebido ao seio católico, dirige acintosamente, na rua do Lavradio, um albergue postuloso que deve ser vigiado". É relatado que o Colégio Pequeno Seminário, em terras da Mitra de Rio Comprido, abriu as portas ao público, "abaixando as pensões, desde que soube da oposição que sofria publicamente. O cônego que os dirige em Niterói, aconselha que um padre deve disfarçar, para honra e vida da Igreja, desde as vestes até o modo de usar as barbas". O artigo conclui dizendo que "o Dr. Rui Barbosa é conhecedor de todas essas manhas. Deve combatê-las, com cautela, pois eles são perigosos e sabem lutar" (DIÁRIO DO BRASIL. Comunicado. Casas de Educação. Instrução Primária. Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1883)

Antonio Herculano de Souza Bandeira F°, no relatório ao Ministro Antunes Maciel, assim se refere à iniciativa de Rui

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Barbosa: "iniciou-se, durante o ano passado, uma associação com caráter científico que pretende estudar os problemas pedagógicos, os meios de melhorar os métodos de ensino, em seus diversos graus e, especialmente, quanto ao ensino primário, criar uma escola modelo para servir de norma aos professores que quiserem visitá-la e demonstrar as vantagens da escola leiga. Refiro-me à Liga do Ensino do Brasil. Possa essa associação realizar os intuitos de seu programa, e serão assinalados os seus serviços" (apud HAIDAR, 1972. p. 196-97).

Os estatutos da Liga do Ensino (artigo 5º) determinavam estender suas ações às províncias, para dar "informações sobre as coisas da instrução e dilegenciarem nas localidades respectivas os mesmos cometimentos a que nos abalançamos". Com esse intuito, foram nomeados delegados provinciais no Ceará, Dr. Joaquim Catunda; em Pernambuco, Dr. José Hygino Duarte; na Bahia, Antonio Pacífico Pereira; em Minas Gerais, Henrique Gorceux; em São Paulo, Rangel Pestana; no Rio Grande do Sul, Apolinário Porto Alegre3. Esse delegados, considerados "homens de notáveis talentos", teriam a tarefa de preparar relatórios sobre o estágio da educação em suas respectivas províncias e fornecer à Liga o máximo possível de dados estatísticos, de vez que o Governo praticamente não dispunha de fontes e as poucas existentes não eram dignas de confiança – "Não é lícito duvidar de que a resolução a que aludimos seja fecunda em preciosas contribuições e interessantes resultados para os nossos fins. Os que entre nós se votam ao estudo das condições da pública Instrução e das questões que se lhe prendem lutam com invencíveis dificuldades para conhecer o estado das coisas nas diferentes províncias. Neste particular manda a justiça que reconheçamos que só possuímos o que se encontra

3 Sobre Apolinário Porto Alegre, ver MOREIRA (1989). Não localizamos nenhuma referência sobre sua participação como correspondente na Sociedade Liga do Ensino. No entanto, comungava dos ideais de liberdade; de plena autonomia de conceitos, de crenças e de ideais; de independência religiosa.

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nas publicações oficiais, embora lacunosas e destituídas de continuidade, além de outras imperfeições provenientes da incompetência daqueles a quem de ordinário cabe a execução de tais trabalhos. Mas é quase certo que quase tudo nos falta: as estatísticas de ensino raro figuram nos documentos oficiais; as que existem incompletas e deficientes, não infundindo confiança; o próprio conhecimento das instituições é difícil; e quanto aos programas e aos métodos é absoluta a ausência de dados e informações. Se, graças aos trabalhos de nossos colaboradores nas províncias, alcançarmos, de par com a satisfação dos nossos intentos gerais, olviar a todos esses inconvenientes, nós daremos pressa a divulgar tão proveitosos subsídios e teremos assim cumprido um dos nossos mais veementes anhelos, o de substituir a incerteza e ao indefinido, de que se resentem os negócios relativos à Instrução em todo o Império, o conhecimento assim das necessidades, como dos progressos que se verificarem mediante exame circunspecto e competente" (Chronica. Revista Liga do Ensino, n.3, mar.1884, p.80 e 81).

A Liga do Ensino organizou um encontro, em abril de 1884, de dois dias, no Rio de Janeiro, no qual compareceram quase duas centenas de professores de escolas primárias e secundárias. Sobre este evento, Lourenço Filho afirma que "o movimento de idéias pela melhoria técnica do ensino havia crescido desde os últimos anos e, para isso, decisivamente haviam concorrido os cursos de conferências pedagógicas promovidas pela Liga do Ensino" (1950, p.XXVII). Os debates centralizaram-se nas vantagens da técnica de ensino direto pestalozziano e na importância de fundarem-se mais escolas vocacionais.

Um dos objetivos da Liga do Ensino foi, desde a sua criação, a publicação de uma Revista, consagrada exclusivamente à discussão das questões de ensino, em seus vários ramos e ordens (GAZETA DE NOTÍCIAS. Liga do Ensino. Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1883). O primeiro número da Revista Liga do Ensino é de 31 de janeiro de 1884. Na folha de rosto consta que é uma publicação mensal, cujo redator principal é Rui Barbosa,

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presidente da Liga do Ensino no Brasil. Editada pela Livraria Contemporânea de Faro e Lino, tem sistema de assinatura, com custo de 5$000 por ano para a Corte e de 6$000 para as Províncias. O ciclo de vida da revista foi efêmero, somente quatro números: o número 2 apareceu em 29 de fevereiro; o de número 3, em 31 de março e o último, de número quatro, a 30 de abril de 1884, mas distribuído em junho/julho de 1884. O número de páginas situa-se em torno de 30 páginas por número, numeradas sequencialmente, perfazendo um total de 120 páginas.

Quanto a periodicidade é difícil afirmar que a mesma assim ocorreu. Analisando a correspondência de Rodolfo de Sousa Dantas com Rui BarBosa, é possível constatar que desde o final de janeiro o primeiro número encontrava-se pronto com os artigos remetidos impressos, a espera da introdução de Rui Barbosa – "Poderá, porém, sair nos primeiros dias de fevereiro, se mandares sem demora o teu artigo, feito o que regularizar-se-á depois a publicação" (DANTAS, 1973, p.104). No entanto, parece que Rui não atendeu ao pedido do amigo, pois em carta de 13 de março de 1884, "renovo o pedido de mandares sem demora o artigo para a Revista da Liga. Só estão à espera do resto do teu trabalho, e enquanto não enviares tudo estará parado. E já estamos em março! E o número a sair é o de fevereiro" (DANTAS, 1973, p106). Nessa carta, Rodolfo comenta a reunião realizada pela Sociedade em nove de março. Esses fatos permitem aludir que os três números sairam juntos, o que explica uma só capa, no exemplar examinado4.

O tamanho periódico é de 21cm (largura) por 27 cm (comprimento), com os textos divididos em duas colunas. Na contra-capa consta os "Fins da Liga do Ensino no Brasil":

4 Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro há o número 1(jan.1884) e o número 3 (mar. 1884). As folhas ainda conservavam-se ligadas, o que evidencia a não consulta ao mesmo, que passou a integrar o acervo recentemente (1-464,01,02). Em 1998, somente foi localizado o número 1, na Fundação Casa de Rui Barbosa. A Biblioteca Nacional não tinha nenhum exemplar do periódico.

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A Liga do Ensino propõe-se a estudar os diversos ramos da instrução pública e promover a adaptação de idéias scientíficas, no tocante à organização, aos programas e os métodos de ensino. Serão instituídos desde logo: 1º Conferências públicas sobre pontos mais inrteressantes da moderna pedagogia para as quais se convidarão especialmente os professores públicos e particulares; 2º Uma revista consagrada exclusivamente à discussão das questões de instrução pública. Comissões de estudo acerca do sistema dos estabelecimentos de instrução e suas necessidades. Quando os recursos da sociedade o permitirem, crear-se-á uma escola modelo, onde a Instrução Primária seja praticada com todos os aperfeiçoamentos e se possam pareciar as vantagens do ensino leigo.

O número 1 apresenta uma Introdução de Rui Barbosa (anexo) e os artigos "As leis do ensino", pelo Dr. Souza Bandeira Filho (p.6-19); "Ensino de moral e de religião, pelo Conselheiro Rodolpho Epiphanio de Souza Dantas (p.19-30). O número 2 (fevereiro de 1884, p.31 a p.56), conforme noticiado, teve artigo de Balduíno Coelho sobre a "Conferências pedagógicas de 1883"; "Jardins de Infância nos Estados Unidos", de Menezes Vieira (p. 48); Chronica e o "Necrológico do segundo secretário da Liga do Ensino - José Pedro da Silva Maia" (p. 56). O número 3 (março de 1884, p.57-84), apresenta os artigos "O Ensino Secundário do sexo feminino", pelo Conselheiro Rodolpho de Souza Dantas (p.57 a p. 71); "O Ensino Superior no Brasil", do Dr. Luiz Couty (p.71 a p. 79); Chronica (p.79 a p. 84). Em seu artigo, Couty defende que "a missão da Liga do Ensino é de propaganda e quase de fiscalização. Pela nossa parte, no desempenho do modesto papel que nos cabe no seio desta associação, procurando dizer o que se nos afigura ser a verdade" (1884, p.79).

A Introdução, que abre o primeiro número da Revista Liga do Ensino, não está assinada, mas há indícios de que a mesma foi escrita por Rui Barbosa, especialmente nas cartas de Rodolfo Dantas que insiste para que envie o texto para publicação.

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Em carta de janeiro de 1884, Rodolfo Dantas escreve a Rui, dizendo que "o artigo inaugural não deve ser senão teu, trazendo o cunho de teu espírito e de teu pensamento. (...) Uno-me, pois, ao Bandeira e ao Balduíno para pedir-te que mandes sem demora a introdução ou o artigo de apresentação da Revista, e conto que não faltarás. Se me permites, convém que traces nas linhas que escreveres com a clareza e a moderação de que sabes usar, os fins e os intuitos da Liga do Ensino, que muita gente ainda não compreendeu e ignora. (...) expliques o que quer a Liga, entre cujos fins figura, sem ser o único aliás, a fundação de uma Escola-modelo, a qual mostrarás que se destinará à demonstração e realização dos melhores métodos de ensino, pelo que sim não pode deixar de ser leiga, etc." (DANTAS, 1973, p. 105). A dúvida reside no fato de um telegrama enviado em 28 de janeiro de 1884, por Balduíno Coelho para Rui Barbosa em que diz: "Se até amanhã não puder mandar introdução revista diga se feito o trabalho por Bandeira poderemos publicar sem assinatura. Previno capa consta V. como redator principal" (DANTAS, 1973, p.105). Parece que Rui não atendeu nenhum dos pedidos, pois cartas de fevereiro e de março de 1884 ainda fazem menção ao solicitado.

Na Introdução é realizado um extenso balanço da situação da educação no Brasil, para apresentar os propósitos da Liga do Ensino:

Não é por calculado pessimismo que escrevermos estas linhas desagradáveis para o nosso amor próprio. Elas não representam uma confissão de desalento, mas um grito de rebate. Podemos trabalhar com proveito e encaminhar os nossos esforços para melhores resultados. Antes de tudo, urge convencermo-nos de que a questão do ensino tem um lado científico, e que é este o que de preferência merece a atenção dos Homens de boa vontade. Estudamo-lo, portanto, no intuito de aperfeiçoar as nossas escolas e salvá-las dos estragos do empirismo. Tais são os intuitos da Liga do Ensino no Brasil. Esta associação, composta de pessoas que se interessam pela

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prosperidade da Instrução, e que com ela se ocupam em diversas especialidades, propõe-se auxiliar e promover o progresso pedagógico, perscrutando as nossas necessidades e procurando indicar os meios de satisfazê-las. Ela não pretende difundir escolas, porém aperfeiçoar os métodos; mostrar os abusos e pugnar pela extinção deles; propagar os princípios científicos em matéria de ensino e debelar as influências deletérias, que contribuem para desnaturá-lo ou corrompê-lo. Em quase todas as nações existem sociedades idênticas; em algumas funcionam com o mesmo nome, e iniciaram seus trabalhos na obscuridade para combaterem com mais segurança inimigos poderosos. Pareceu aos fundadores da Liga do Ensino no Brasil que, em nossa pátria, aquela empresa devia vir à luz da publicidade e que a sociedade devia viver às claras. (n. 1, jan. 1884, p.4)

Além de apresentar a sociedade, há uma veemente defesa da secularização da escola:

Sendo um dos principais intuitos da Liga do Ensino no Brasil criar uma "escola modelo", a fim de proporcionar à visita dos mestres uma instituição onde se pratique o ensino primário com todos os melhoramentos, corria-lhe desde logo o dever de inserir em sua constituição o princípio de que tal escola seria inteiramente leiga. Este pensamento, que tem sido errônea e malevolamente interpretado como se fora um sistema de reação contra toda idéia religiosa, ou uma profissão de fé ateísta, não podia aliás deixar de ser princípio cardeal para uma associação, que pretende apoiar-se exclusivamente na ciência a fim de organizar um plano regular de Instrução Primária. A declaração ostensiva dessa idéia figurou na constituição da Liga do Ensino como uma necessidade, desde que os preconceitos teológicos são uma das causas porque a educação científica tem sido em toda parte prejudicada. Para que a Liga do ensino pudesse conseguir seus fins, cumpria que entre seus membros o "ensino leigo" fosse proclamado essencial à seriedade dos estudos. A escola imune de toda influência de seita é condição de normalidade do ensino em geral, um corolário do seu caráter científico; mas não lhe basta aquele qualificativo

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para que o ensino seja completo. A secundarização da escola mão é mais do que uma das aplicações do programa da nascente associação, muito mais extenso e compreensivo, de pugnar por um plano científico que abranja a organização do ensino em diversos graus. Possam estas palavras acentuar, no ânimo de todos, qual o objetivo da Liga do Ensino e destruir prevenções e erros, que, se por um lado são promovidos por um partido constituído para perverter o espírito das novas gerações, educando-as no ódio ao progresso científico, e ao espírito secular. Por outro lado, indicam que o estado mental do nosso país precisa de fortes abalos para libertar-se do influxo de elementos desorganizadores, como o fanatismo e a meia ciência. (n. 1, jan. 1884, p.6)

A partir do segundo número da revista está presente a seção Crônica, que noticia as atividades e resoluções adotadas nas reuniões da sociedade. O revista de número três (março de 1884), por exemplo, noticia as decisões tomadas na reunião realizada em 9 de março de 1884, a primeira do ano, sob a presidência de Rui Barbosa. Foi informado a substituição do segundo secretário da Liga do Ensino pelo professor de Pedagogia da Escola Normal da Côrte, Dr. Joaquim Pelino da Costa Guedes; a vaga de segundo secretário foi preenchida pelo Sr. Joaquim Borges Carneiro.

Entre as atividades da Liga, figurava o estudo dos meios para melhorar as condições de ensino. Para tal, foram nomeadas comissões integradas pelos sócios e formulados os quesitos considerados os mais urgentes e necessários à avaliação:

1. Quais as condições presentes nas escolas primárias do Município da Côrte, em relação à higiene escolar: Dr. Hilário Gouvea, Jão Paulo, Luis Couty, Moncorvo de Figueiredo, Silva Araújo; 2. Quais os processos pedagógicos da escola primária do Município da Côrte, circunstâncias e causas do domínio da rotina na escola elementar. Que aplicações e desenvolvimentos têm tido entre nós os métodos modernos de cultura na escola. Cuidados acerca do uso

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do método intuitivo e das lições de coisas: Sr. Souza Bandeira Filho, Dr. Menezes Vieira, Silveira Caldeira; 3. Estado e vícios atuais do ensino de leitura nas escolas primárias do Município da Côrte: Dr. Zefferino Candido, Dr. Ferreira Jacobino, Hilário Ribeiro; 4. Condição atual do ensino de Desenho na escola primária. Em que proporção se distribui. Inconvenientes de sua falata na educação comum, verificada pelo exame das circunstâncias entre nós. Será o chamado desenho que entre nós se ensina em alguma escola aquele que as idéias do nosso tempo assinam uma importâsncia fundamental na escola elementar?: Comendador Bettancourt da Silva, Ferreira Jacobina, Rui Barbosa; 5. Ensino do catecismo nas escolas primárias do Município da Côrte; descrições deles; livros por onde se faz, suas relações e resultados para com a formação do caráter, a primeira orientação da inteligência e a psicologia do cérebro na idade decisiva do seu desenvolvimento: Dr. Ferreira de Araújo, Luiz Couty, Rui Barbosa; 6. Estado do Ensino Normal no Município da Côrte: características e causas de sua imprestabilidade: Dr. Sancho Pimentel, Souza Bandeira Filho, Pelino Guedes; 7. Do Ensino secundário feminino do Município da Côrte. Status quo. Desiderata. Apropriação das idéias contemporâneas de nossa sociedade: Rodolfo Dantas, Fausto barreto, Carlos Jansen (n.3, mar.1884, p.79).

As questões levantadas pela Sociedade Liga do Ensino estão afinadas com as teses que orientaram o Congresso de Instrução Pública, convocado para ser realizado no Rio de Janeiro, em 18835. Para a sociedade, "reconhecidos os males que desnaturam e atrofiam a Instrução, poder-se-á por uma propaganda sincera e esclarecida, fundada na verdade, conseguir que se conserve o que efetivamente há de recomendável em nossas instituições; que se lhes supram as lacunas e se lhes extirpem os

5 Sobre, ver Bastos (2005)

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vícios; finalmente que sejam dotadas com os melhoramentos que as tornem profícuas" (n.3, mar.1884, p.80).

O artigo "As leis do ensino", escrito pelo Dr. Souza Bandeira Filho (n.1, jan. 1884, p.6-19), realiza uma resenha do livro do Dr. F. A. Berra, "Apuentes para un curso de Pedagogia"(1883), que apresenta elementos para a constituição científica da pedagogia e demosntra que lhe cabe lugar incontestável na classificação das ciências. O livro divide-se em duas partes: Teoria do ensino – instrução e educação; Prática do ensino – leis pedagógicas do ensino educativo, leuis pedagógicas do ensino instrutivo, governo escolar. No número de março de 1884, é dada notícia da carta enviada pelo Dr. Berra saudando a Liga do Ensino no Brasil, comparando-a com a "Sociedade dos Amigos da Educação Popular", do Ururguai, criada por Varela e da qual é o atual presidente. Envia suas obras e incentiva o intercâmbio com sociedades congêneres do uruguai, Argentina e Chile.

A Sociedade Liga do Ensino busca também apoiar e participar dos eventos ligados à instrução pública do Município da Côrte. Assim, por exemplo, participa da elaboração do Regulamento de 28 de fevereiro de 1884 do Inspetor Geral para os exercícios práticos de Pedagogia da escola Normal. Também noticia os serviços prestados para a reforma do regulamento das Conferências Pedagógicas dos Professores Primário, cujas novas instruções são aprovadas em 11 de março de 1884. Sobre os novos regulamentos, o periódico comenta "a providência da publicação, portanto, produzirá a vantagem de aconselhar o silêncio aos chamados professores que não podem arrostar a crítica, e assim se evitará que o magistério, onde sem dúvida se encontram cidadãos inteligentes, continue a desmoralizar-se com as revelações de um atraso vergonhoso e de um raquitismo incurável, como as que se presenciaram na ocasião do aludido e constam daquele impresso (Conferência Pedagógica de 1883). Em relação a tais "professores" nada valem as conferências, as quais, no justíssimo conceito de Siciliani, longe de formarem professores não fazem mais do que promover nos que são dignos desse nome a

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atividade prática e teórica, e incutir-lhes na consciência a dignidades, a alteza e o valor do mestre na sociedade civil; em uma palavra, avivam o pensamento, despertam a mente, acendem e excitam o entendimento, mas, não suprem e menos o criam" (n.3, mar.1884, p.80).

É interessante assinalar os eventos que decorreram o pronunciamento da sociedade. Em 18, 19 e 20 de dezembro de 1883, realizou-se a sétima conferência para os professores primários e, depois das novas instruções, repetiram-se nos dias 21, 22 e 23 de abril de 1884 (oitava conferência), sendo então ministro o Conselheiro Francisco Antunes Maciel6. As sessões tiveram lugar no período da noite, em um dos salões do Externato Imperial Colégio de Pedro II, nas quais compareceram Sua Majestade o Imperador, o Visconde de Bom Retiro, o Ministro do Império, além de membros do Conselho Diretor.

Segundo Souza Bandeira Filho (1884, p.28), a freqüência de professores foi limitada, estando presentes 31 no dia de maior presença. Justifica que os professores "parecem não ter compreendido ainda com clareza o caráter e o fim das conferências. Nas anteriores abriu-se larga discussão sobre todos os assuntos referentes ao ensino, deixando-se de parte as teses propostas. Uma das sessões chegou mesmo a ser suspensa por tumultuosa. Os atos das autoridades eram sujeitos à crítica e a julgamento, como se tratasse de um tribunal encarregado de tomar contas à administração. Por outro lado, havia queixas de que não se tinha ligado aos trabalhos das anteriores conferências o valor que eles mereciam; nem eram publicados, nem se tomavam providências no sentido indicado pelos professores". Quando ao exposto, concorda que "a primeira queixa é justa, e para satisfazê-la trato de reunir e classificar os discursos e observações da última conferência, a fim de serem publicados7. A segunda não tem 6 Sobre, ver: BASTOS (2005) 7 Conferências Pedagógicas dos Professores Primários. Rio de Janeiro, 1884. Trabalhos da oitava conferência pedagógicas dos professores primários do

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fundamento; não é próprio das conferências pedagógicas de professores tomar decisões obrigatórias para a autoridade superior. Elas constituem um exercício destinado a aumentar as idéias e estabelecer a animação e a vida do professorado"8.

A fraca freqüência dos professores nessa conferência deve-se a um boicote que os professores primários fizeram, como forma de repúdio às declarações do Sr. Balduíno Coelho na conferência anterior (dezembro de 1883), relativas ao fato de a classe do magistério ter abandonado o majestoso projeto de instrução popular. Rui Barbosa, no editorial da revista Liga do Ensino (n.4, 30 de abril de 1884), critica veementemente o boicote: "A Liga do Ensino não tem e nem pretende, competência nenhuma, para intervir nas relações disciplinares entre o magistério elementar e os seus chefes legais, não conhece pessoalmente os mestres, não lhes sabe os antecedentes, não lhes compulsa a fé de ofício, nem os autos do processo, não ouve a acusação nem a defesa, não tem meios pois de qualificar inocência ou culpabilidade do acusado, sua conformidade ou rebeldia às leis do respeito ao que o Magistério escolar, como sacerdócio, mais do que outra qualquer classe está rigorosamente obrigado para com seus legítimos superiores. (...) Ficou caracterizado por nós com desassombrada energia de idoneidade profissional que, neste país, e designadamente no Município Neutro assinala os mestres, esterilizando a escola (...) procurou-se provar que o Magistério Município da Corte. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884. 84 p.; Conferências Pedagógicas dos professores Primários. Rio de Janeiro, 1886. Trabalhos da nona conferência pedagógica dos professores primários do Município da Corte e parecer emitido acerca pelo delegado J.G. d’Alambary Luz. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1886. 217 p. 8 Souza Bandeira, no parecer à 20ª questão do Congresso de Instrução (1883/84) – Escolas normais: sua organização, plano de estudos, métodos e programas -, alerta para o fato de que as conferências pedagógicas deveriam servir para auxiliar o diretor com as suas luzes, mas nunca poderá suscitar um embaraço à sua administração. Se assim não se fizer, haverá constantes motivos para luta.

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Primário contentara-se em mandar um professor hastear um pendão de conciliação; mas que no ânimo de alguns dignos professores que se haviam preparado para a conferência, ao receio de incorrerem nas iras dos desgostosos, sobrelevaram as altas inspirações do dever e da dignidade, frustrando-se a traça da abstinência".

O professor Augusto Candido Xavier Cony, na apreciação dos trabalhos da oitava conferência pedagógica (abril de 1884), faz referência ao fato dos professores estarem ressentidos pelo que havia sido publicado na revista Liga do Ensino. Considera que as palavras do professor Manoel José Pereira Frazão, na sétima conferência9 - quando critica o modo como vinham se realizando as conferências pedagógicas e conclama a necessidade de organizar um plano de conferências, pois o modo como elas têm se efetuado entre nós a nenhum resultado conduz -, serviram de arma perigosa para com elas ferir o magistério primário. Opondo-se as palavras de Frazão e de Rui Barbosa, Cony destaca que "desde que nos compenetramos de que em nossas escolas se ensina a "ignorância orgânica" é por isso que empreendemos a regeneração do ensino, cumpre empregar todos os meios que nos aproximam do nosso escopo, acelerando a transição que os fatos impuseram". Afirma que as conferências foram um dos dispositivos adotados para acelerar essa transição. Não considera as conferências como espaço para a ostentação de conhecimentos de homens eruditos, mas destinadas aos homens práticos do ensino, para dizerem em linguagem singela e despida de atavios de eloqüência, o que fazem e o que pensam sobre as diversas questões sujeitas à sua apreciação".

9 Frazão apontou a necessidade "de um programa minucioso quando os atuais professores não tem sido preparados para tal ensino (lições de coisas), não podendo em geral suprir essa falta, pois rigorosamente falando nem professores são, porque não têm escolas". Suas palavras foram apoiadas pelos professores Luiz dos Reis e Adelina Lopes Vieira. A revista Ensino Primário, publicação mensal consagrada aos interesses do ensino e redigida por professores primários do Rio de Janeiro, também publica noticia sobre esse evento.

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Essa fala remete às críticas dirigidas às conferências - serem muito teóricas, terem um caráter de cerimônia e solenidade, quando deveriam ser conversas amigáveis e profícuas. O professor Gustavo José Alberto denuncia a não concessão aos professores de uma hora semanal para freqüentarem o Museu Escolar Nacional e sua biblioteca10, que para ele seria muito mais útil e instrutivo.

As razões para o fim da Liga do Ensino e para a paralisação da publicação da Revista da Liga do Ensino não são claras. Uma carta de Rodolfo Dantas, de 26 de abril de 1884, traz indícios de problemas: "quanto ao que me dizes de te exonerares da presidência da Liga do Ensino, uma só coisa pondero - é que nem só não concordo, como terminantemente exijo não consintas que pensem em fazer-me teu sucessor naquele cargo(...). Pelo contrário, se saíres, deves afiançar que continuarás como eu a auxiliar a sociedade, mas sem que nenhum de nós caiba a responsabilidade da direção, senão da colaboração que porventura o tempo nos permita prestar ao orgão da sociedade. (...) A propósito da Liga, e isto para nós dois unicamente, enquanto teu nome está como responsável principal e ostensivo da Revista, convém que lances a vista sobre tudo quanto se publicar, para evitar a continuação das pendências desagradáveis como a que agora vejo suscitada a propósito da suspensão de um tolheirão de um professor. Para nós dois sós, suponho que o melhor é não se falar mais, ou na crônica ou onde for, em conferências pedagógicas e na suspensão do tal professor, etc. Vê isto com tato para obviar qualquer aparência de participação tua ou nossa nesse incidente" (DANTAS, 1973, p. 107-108).

Questões como essa, parecem ter colaborado para que a Liga do Ensino deixasse de funcionar como organização antes da

10 Os Estatutos da Associação Mantenedora do Museu Escolar, de 5 de outubro de 1883, destaca entre suas funções a organização de exposições permanentes, a manutenção de uma biblioteca e a realização de conferências públicas destinadas aos professores e demais interessados. Sobre o Museu Escolar Nacional, ver BASTOS, 2002.

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primavera de 1884. Outro motivo parece ter sido o fato de Rui não ter se reelegido para a Câmara dos Deputados, em dezembro de 1884, o que o levou a decidir interromper, bruscamente, a maior parte de suas atividades não diretamente relacionadas com a prática da advocacia.

A questão do ensino leigo cruza com a da liberdade de ensino, ponto nevrálgico para vários integrantes desse grupo, que defendiam a exclusividade da iniciativa privada, sem fiscalização do Estado.

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Maria Helena Camara Bastos - Doutora em Educação - História e Filosofia da Educação; Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação/ PUCRS. Pesquisadora do CNPq.

Recebido em: 10/10/2006 Aceito em: 15/03/2007

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 247-273, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.1, janeiro de 1884, p.1-30)

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Fins da Liga do Ensino no Brasil: A Liga do Ensino propõe-se a estudar os diversos ramos

da instrução pública e promover a adaptação de idéias scientíficas, no tocante à organização, aos programas e os métodos de ensino. Serão instituídos desde logo:

1º Conferências públicas sobre pontos mais inrteressantes da moderna pedagogia para as quais se convidarão especialmente os professores públicos e particulares;

2º Uma revista consagrada exclusivamente à discussão das questões de instrução pública.

3º Comissões de estudo acerca do sistema dos estabelecimentos de instrução e suas necessidades.

4º Quando os recursos da sociedade o permitirem, criar-se-á uma escola modelo, onde a Instrução Primária seja praticada com todos os aperfeiçoamentos e se possam pareciar as vantagens do ensino leigo".

INTRODUÇÃO

Dos problemas que agitam as sociedades modernas nenhum é mais importante e ao mesmo tempo mais difícil do que a instrução. Podiam as sociedades antigas basear-se em outros princípios, e com eles conseguir pleno desenvolvimento nos tempos que correm, porém, a única força capaz de engrandecer um povo é a ciência. Sob o ponto de vista moral ou material, político ou social, é sempre ao país cuja massa da população dispõe de maior soma de conhecimento que cabe a primazia no progresso econômico, a influência decisiva no terreno das idéias. As estatísticas o provam de modo incontrastável, e nenhuma das nações cultas se tem poupado a sacrifícios, quando se der impulso ao ensino.

Esta verdade, dominante em toda parte, não podia deixar cedo ou tarde de atrair o cuidado dos poderes públicos no Brasil, e, por menos que se haja feito, não é lícito escurecer que já se vai

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compreendendo o valor daquela mesma questão. Quando outras razões de ordem superior não estiverem reclamando a organização e o levantamento dos estudos, uma que é poderosíssima se imporia: - a vergonha do estigma, a que já temos feito jus, de um povo de analfabetos. A atenção está despertada, não há negar. O governo geral tem animado o aumento das escolas e a desenvolvimento da Instrução em todos os graus; os poderes provinciais empregam esforços para colocar a escola ao alcance de todas as classes; a iniciativa popular manifesta-se cheia de entusiasmo. Todos os dias, fala-se da escola como de uma impreterível; o homem ignaro orgulha-se de dar ao filho a educação que não recebeu. A questão já passou da teoria à prática. Ninguém se satisfaz com teses gerais, o grande empenho é a abertura de novas escolas, a freqüência de maior número de alunos.

A propaganda é ativa; mas a sua direção terá sido a mais conveniente? Os fatos encarregam-se de provar o contrário. Os autores da propaganda não calculam sempre os esforços; nem todos obedecem a uma tendência refletida; em suma, a grande maioria não tem orientação cientifica. Encarado friamente no Brasil o movimento em favor da Instrução Pública, nota-se que as idéias se contradizem e os fatos prejudicam os interesses pelos quais se propugna. As regras pedagógicas de aplicação mais rigorosa são constantemente sacrificadas às aparências ou às especulações, com detrimento das verdadeiras necessidades do ensino. Multiplicam-se as escolas, mas não se verifica seriamente se os mestres são capazes de desempenhar a sua função, e o meu mestre é a ruína de uma geração inteira. Não se inquire as doutrinas ensinadas correspondem à instrução de que carecem os alunos. Não se trata de educar as aptidões humanas de modo congruente. Quase sempre as resultados tornam-se negativos; a escola muitas vezes é um foco de perdição. Com suas condições anti-higiênicas, provoca ou desenvolve moléstias, que danificam os órgãos do corpo; com suas aberrações e extravagâncias metodológicas, perverte as faculdades da mente, ou inocula idéias

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perigosas, as quais, recebidas na infância, nunca mais deixarão de perturbar a marcha regular dos conhecimentos do individuo.

O problema do ensino precisa entrar em fase científica. Passou o tempo das declamações ruidosas sobre a cultura intelectual; e, em uma idade analítica como a nossa, é simplesmente absurdo erguer instituições literárias em desacordo com seus fins. Já não é cedo para encarar o ensino com gravidade que exige o progresso científico, e estudá-lo com os processos rigorosos da crítica ilustrada. Tem-se estragado muita energia e perdido muito tempo com a má direção de tão generoso movimento. Não basta alguma boa vontade e limitados conhecimentos para se poder tratar de um assunto sociológico de tão alta monta, questão de vida ou de morte para as sociedades modernas. É forçoso confessar que no Brasil, arredadas as exceções e alheias, a propaganda não tem passado da superficialidade; diariamente somos surpreendidos com os mais absurdos conceitos.

O resultado dessa anomalia é uma atualidade de que não nos orgulha de povo civilizado. O balanço do ensino no Brasil apresenta enorme déficit. Uma vista geral basta para indicar o que possuímos, sem nos podermos chamar de vencedores de tudo como os soldados de Alexandre, com eles podemos repetir: omnis inopes sumus.

O ensino primário está entregue ao empirismo. As poucas escolas normais existentes no país são combinações monstruosas de erros pedagógicos; limitam-se a liceus desorganizados. Os professores fazem-se por si próprios, sem escola, e vão desempenhar a sua tarefa sem inspeção, nem auxílio. Os métodos de ensino são os mesmos de há um século, ensina-se a leitura pelo obsoleto processo alfabético, e quando a criança chega a entender as palavras, não se cuida de desvendar-lhe o sentido das frases. Ensina-se a gramática, condenando a inteligência em proveito da memória, sem que a criança se interesse pelo emprego da língua que fala. As poucas disciplinas que constituem o programa de Instrução Primária, além daquelas, o cálculo e a

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geografia perdem nas mãos dos preceptores os seus naturais atrativos. As lições de coisas são desconhecidas na maior parte das escolas, e os interessantes processos e aparelhos do método intuitivo são menosprezados. A educação física é de todo descurada; nem ao menos se praticam os rudimentais exercícios calistênicos. A música e o desenho estão excluídos. A lei do ensino integral é cotidianamente escarnecido como invenção teórica, por uns empíricos ignorantes. Temos, é certo, muitas escolas, porém o ensino é todo irregular; sacrificou-se a qualidade à quantidade. São raríssimas as exceções e mesmo estas não passam de tímidas tentativas devidas à iniciativa particular.

O ensino secundário é o mais triste documento do nosso atraso intelectual. Favorece-se o capricho ambicioso dos pais, que sonham para os filhos não o saber organizado, mas um ridículo diploma de doutor. O ensino está deturpado pela especulação vergonhosa dos empreiteiros de exames; os educadores conscienciosos desanimam no meio do geral mercantilismo, porque os discípulos os abandonam, trocando por fútil preparo o estudo fecundo, mas laborioso. O Imperial Colégio de Pedro II muda de organização como as romanas da decadência mudavam de maridos, e cada reforma vem confirmar a incompetência de seus autores. Apesar disso, o programa compreensivo daquele estabelecimento é motivo para que a sua freqüência diminua todos os anos. Os exames gerais preparatórios, limitados a poucas disciplinas escolhidas sem propriedade, não constituem um sistema de educação; falta-lhes harmonia e unidade. Os adolescentes entram para os cursos superiores sem idéia da ciência e de seus processos; os ridículos conhecimentos literários que adquirem sem ordem nem seriação, mais concorrem para torná-los superficiais e pedantes do que para iniciá-los em estudos mais complicados. Pode-se dizer que em tal matéria havemos sem cessar retrogradado.

O ensino superior tem sido ultimamente objeto de intermináveis discussões e de avultadíssimas despesas. Entretanto sacrificou-se tudo ao acidente e às exterioridades. A pretexto da

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liberdade de ensino, matou-se o estímulo para os estudos sérios, e inutilizaram-se os estudos práticos nas escolas experimentais; deu-se ao estudante o direito de abreviar o seu curso por meio de exames sem intervalo razoável. O exame é hoje a preocupação única, em qualquer de nossas faculdades. Os professores são nomeados mediante concurso sem gravidade; faltam-nos as capacidades profissionais: elas fogem do ensino como lugar malsinado. As faculdades vivem isoladas, desanimadas, sujeitas aos caprichos de interpretações imprudentes e contraditórias. Os métodos de ensino deixam enormemente que desejar. No julgamento das habilitações dos alunos ocorrem singularidades notáveis.

O ensino profissional está todo por organizar. O pouco que existe no país para as classes inferiores é devido a esforços particulares. Nem sequer os trabalhos manuais são adotados nas escolas públicas primárias, para benefício dos alunos que as freqüentam, julga-se ter feito tudo admitindo os trabalhos de agulha para o sexo feminino.

Não é por calculado pessimismo que escrevermos estas linhas desagradáveis para o nosso amor próprio. Elas não representam uma confissão de desalento, mas um grito de rebate. Podemos trabalhar com proveito e encaminhar os nossos esforços para melhores resultados. Antes de tudo, urge convencermo-nos de que a questão do ensino tem um lado científico, e que é este o que de preferência merece a atenção dos Homens de boa vontade. Estudamo-lo, portanto, no intuito de aperfeiçoar as nossas escolas e salvá-las dos estragos do empirismo.

Tais são os intuitos da Liga do Ensino no Brasil. Esta associação, composta de pessoas que se interessam pela prosperidade da Instrução, e que com ela se ocupam em diversas especialidades, propõe-se auxiliar e promover o progresso pedagógico, perscrutando as nossas necessidades e procurando indicar os meios de satisfazê-las. Ela não pretende difundir escolas, porém aperfeiçoar os métodos; mostrar os abusos e pugnar pela extinção deles; propagar os princípios científicos em matéria

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de ensino e debelar as influências deletérias, que contribuem para desnaturá-lo ou corrompê-lo. Em quase todas as nações existem sociedades idênticas; em algumas funcionam com o mesmo nome, e iniciaram seus trabalhos na obscuridade para combaterem com mais segurança inimigos poderosos. Pareceu aos fundadores da Liga do Ensino no Brasil que, em nossa pátria, aquela empresa devia vir à luz da publicidade e que a sociedade devia viver às claras.

Uma circunstância deplorável impõe-se à meditação dos que estudam desapaixonadamente a Educação Brasileira. Por um lado, a tendência dos nossos patrícios para entregar a educação dos seus filhos ao elemento clerical, que abusa da instrução religiosa, convertendo-a em arma de fanatismo; por outro lado, a educação frívola subministrada por uns voltarianos sem preparo científico, que fazem guerra a todo ideário religioso, incutindo no espírito das crianças noções inexatas sobre os deveres morais. De ambas as partes uma concepção falsa de religião. Aqueles que querem que o ensino seja dominado por uma crença religiosa; estes pretendem que o ensino seja dado no intuito de opugnar toda crença religiosa. A pedagogia científica repele ambos os conceitos. Subsiste a Religião como uma necessidade individual, necessidade que se sente, mas não se impõe, que varia conforme a idade, e sofre a influência do adiantamento da cultura. A tendência religiosa requer educação compatível com as aptidões que excita. Na primeira idade é inconcebível que o indivíduo compreenda os profundos mistérios da religião. A educação consentânea a essa idade exclui toda idéia de ensino dogmático, ao passo que exige a prática constante dos deveres morais, a fim de levantar o espírito e acostumá-lo a reconhecer uma lei para os atos humanos. Quando o indivíduo chega a sentir a necessidade de ser instruído sobre aqueles mistérios, é no lar doméstico que a família cumpre iniciar o ensino dogmático, o qual só os ministros das religiões positivas podem depois desenvolver adequadamente.

A escola é um lugar neutro, onde as crianças de todas as condições se encontram sem nenhuma distinção para receberem o

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ensino elementar. Toda separação de classes entre elas, proveniente de motivos estranhos à escola seria condenável. Uma religião positiva não se impõe às crianças; estas a recebem dos pais e a conservam até que, na idade da razão, possam sobre ela meditar. O ensino religioso na escola, e sobretudo na escola popular, tem o triste resultado de excluir alunos, ou de fazer seleção entre eles, obrigando-os a reparar em tal seleção sem poderem apreender a razão dela. Por outro lado impor o ensino religioso ao professorado equivale a interdizer o magistério primário aos que não adotam a religião do Estado ou a autorizar a deturpação do ensino, na hipótese de ser a escola dirigida por indivíduo que se ache naquele caso. Finalmente, devendo a Instrução Primária ser dada de modo intuitivo e concreto, não há lugar na escola para um assunto todo abstrato, sobrenatural, inacessível à capacidade infantil. De sorte que o ensino dogmático religioso, excluído dos primeiros programas por um motivo pedagógico, também não pode entrar em programas ulteriores pela necessidade de afastar as causas de indevida exclusão ou separação entre os alunos, e de não privar de um direito natural o cidadão, ou impor-lhe uma degradação moral, viciando o ensino que se quer dar e oferecendo aos alunos um exemplo de improbidade.

Sendo um dos principais intuitos da Liga do Ensino no Brasil criar uma "escola modelo", a fim de proporcionar à visita dos mestres uma instituição onde se pratique o ensino primário com todos os melhoramentos, corria-lhe desde logo o dever de inserir em sua constituição o princípio de que tal escola seria inteiramente leiga. Este pensamento, que tem sido errônea e malevolamente interpretado como se fora um sistema de reação contra toda idéia religiosa, ou uma profissão de fé ateísta, não podia aliás deixar de ser princípio cardeal para uma associação, que pretende apoiar-se exclusivamente na ciência a fim de organizar um plano regular de Instrução Primária. A declaração ostensiva dessa idéia figurou na constituição da Liga do Ensino como uma necessidade, desde que os preconceitos teológicos são uma das causas porque a educação científica tem sido em toda parte

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prejudicada. Para que a Liga do ensino pudesse conseguir seus fins, cumpria que entre seus membros o "ensino leigo" fosse proclamado essencial à seriedade dos estudos.

A escola imune de toda influência de seita é condição de normalidade do ensino em geral, um corolário do seu caráter científico; mas não lhe basta aquele qualificativo para que o ensino seja completo. A secundarização da escola mão é mais do que uma das aplicações do programa da nascente associação, muito mais extenso e compreensivo, de pugnar por um plano científico que abranja a organização do ensino em diversos graus. Possam estas palavras acentuar, no ânimo de todos, qual o objetivo da Liga do Ensino e destruir prevenções e erros, que, se por um lado são promovidos por um partido constituído para perverter o espírito das novas gerações, educando-as no ódio ao progresso científico, e ao espírito secular. Por outro lado, indicam que o estado mental do nosso país precisa de fortes abalos para libertar-se do influxo de elementos desorganizadores, como o fanatismo e a meia ciência.

AS LEIS DO ENSINO Apuntes para un curso de pedagogia

por el Dr. F. A. Berra. (Montevidéo, 1883)

O nome do Dr. F. A. Berra era pouco conhecido entre nós, mesmo no circulo dos que se entregavam a estudos especiais de instrução pública. A recente exposição pedagógica pô-lo em relevo, e de modo tão honroso que não é licito a quem se ocupa de pedagogia, por ofício ou inclinação, desconhecer as idéias do ilustre médico, que, dedicando o seu saber a serviço da causa do ensino, elevou o novel da ciência e indicou-lhe uma orientação precisa.

A falta de solidariedade política e literária entre os povos da América latina tem trazido o deplorável resultado de

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estragarem-se as forças pelo isolamento, limitando-se a âmbitos muito estreitos as glórias de seus escritores notáveis. sem sair do assunto que nos ocupa, diremos com segurança que muitos brasileiros, interessados nos problemas pedagógicos, ignoram que desde alguns anos estas matérias têm sido aprofundadas com vantagem por escritores uruguaios e argentinos. Entretanto, pondo de parte o Dr. Berra, cujas idéias examinaremos neste artigo, são livros populares nos estados platinos: La educacion del pueblo (Montevidéo, 1874), do Sr. José Pedro Varela, onde se advogam com calor e erudição os melhores métodos de ensino e os mais aperfeiçoados sistemas de organização escolar; o Manual del preceptor argentino (Buenos-Ayres, 1875), do Sr. Vicente Aguilera Garcia; os Informes sobre la educacion en los Estados Unidos, do Dr. Manoel R. Garcia; La Madre y la escuela (Montevidéo, 1880), do Sr. Jayme Roldos y Pons; as Lecciones de pedagogia (Buenos-Ayres, 1878), obras diversas vezes reimpressa, do Sr. Van Gelderen. Cumpre ainda lembrar os nomes dos Srs. Carlos Pena, Jacob Varela, Nicanor Larrain, Raoul Legout, J. M. Torres, P. Groussac, E. de Santa Olalla, Carlos Ramirez, Onésimo Leguizamón, que tão notáveis trabalhos apresentaram no congresso pedagógico de Buenos-Ayres.

Que movimento produzido por semelhantes trabalhadores tem sido de favorável efeito, provam-no as vitórias alcançadas no ensino primário e os recursos de que se há lançado mão para ilustrar os preceptores. Só em Montevidéo, foram publicadas traduções espanholas dos seguintes livros: Manual de lecciones sobre objectos, de N. A. Calkins (1878); Manual de metodos para uso de los maestros, de Kiddle, Harrison e Calkins (1880); La ciencia de la educacion intelectual, moral y fisica, de Herbert Spencer. Os dois últimos volumes pertencem à interessante coleção intitulada La enciclopedia de educacion, instituida pelo Sr. José P. Varela, e dirigida depois do seu falecimento pelo Sr. Emilio Romero.

O Dr. Berra tem diversas obras revelado aproveitados estudos políticos e médicos, geográficos e históricos. A pedagogia

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foi o último assunto a que se dedicou com afinco; e nela criou um nome que se imporá aos futuros investigadores. O projeto de organização dos estudos secundários do Atheneu do Uruguai, o projeto de regulamento geral para as escolas da mesma república, e os seus livros: Como se deve instruir; Doctrina de los métodos, considerados en sus aplicaciones generales; Informe acerca del congresso pedagogico internacional de Buenos-Ayres, 1882 e diversas outras monografias são trabalhos de merecimento. Sobre-sai, como obra de real valor científico, a que tem o titulo transcrito no começo deste artigo. Mereceu o primeiro grande prêmio (medalha de ouro) na exposição internacional de Santiago; igual distinção na exposição continental de Buenos Aires; o diploma de 1ª classe na exposição pedagógica do Rio de Janeiro. A respeito dela Bernard Perez manifestou o mais lisonjeiro juízo na Revue Philosophique de novembro de 1883.

Neste livro verdadeiramente sugestivo o Dr. Berra procurou reunir os elementos para a constituição científica da pedagogia, e demonstrar que lhe cabe lugar incontestável na classificação das ciências. Parece simples o intuito, sobretudo hoje que ouvimos constantemente falar em pedagogia como ciência completa e de soluções definitivas. Tal facilidade aliás tem concorrido para desacreditá-la, a ponto de ser exato a respeito de toda parte o que da Itália dizia Pietro Siciliani – que a palavra pedagogia ali soa como si fora pedantismo. Basta refletir nas tendências dos pedagogistas dos países onde mais florescente é o assunto para reconhecer a inconsistência das tentativas. A pedagogia alemã tem-se conservado num terreno nebuloso e estéril, eriçado de teorias psicológicas contraditórias. O criticismo científico ainda não destruiu a influência da psicologia de Pestalozzi, superficial e defeituosa, eivada de acentuado caráter religioso e ascético, que lhe prejudica o valor científico. A pedagogia inglesa e a americana pecam pelo excesso contrário; reduzem-se a processos empíricos, uns magníficos, inaceitáveis outros, todos porém marcados com o mesmo cunho de relatividade. Os livros ingleses são ricos de expedientes ou

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observações isoladas; é notável a ausência de uma teoria pedagógica. A tal defeito não escaparam Bain e Spencer. Na França, na Suíça e na Bélgica, os escritores seguem duas torrentes de opiniões; uns filiam-se à propaganda católica ou protestante, outros propendem para um naturalismo por vezes exagerado. Em qualquer das escolas a serenidade dos princípios científicos é perturbada pelo espírito exclusivista do sectário. Os pedagogistas italianos também não fundaram a ciência; nos livros de muitos deles porém e sobretudo nos de Siciliani e De Dominicis vai se notando salutar tendência para a introdução das leis de ensino.

As observações que acabamos de aduzir denunciam um fato comum aos escritores de pedagogia. O ensino tem sido tratado de um lado por indivíduos que passaram a vida a ensinar disciplinas particulares ou por educadores que chegaram com o tempo a reunir certa experiência muito respeitável; de outro por filósofos que aplicam às questões do ensino, das quais acidentalmente se ocupam, teorias formuladas de golpe, e que saem perfeitas de seus gabinetes de trabalho à semelhança de Minerva surgindo do cérebro de Júpiter. Uns e outros sentem-se embaraçados para imprimir orientação científica aos estudos pedagógicos. Aos primeiros falta o preparo filosófico indispensável para alcançarem a intuição verdadeira, da teoria, da lei, do ideal; os segundos sacrificam a prática, que lhes é desconhecida, e não levam em conta os obstáculos que as circunstâncias individuais dos educandos oferecem aos esforços do educador. Daí as soluções parciais. Onde dominam os filósofos, como na Alemanha, a pedagogia é uma ciência pretensiosa; onde dominam os práticos, como na Inglaterra, a pedagogia é uma arte empírica.

Ninguém melhor do que o Dr. Berra podia abalançar-se a tamanha empresa. Seus conhecimentos enciclopédicos, seu sólido preparo filosófico, seu critério de publicista, suas observações medicas, e finalmente seu gosto pelas cousas escolares, tudo converge nele para formar o tipo de pedagogista. Senhor dos fatos, sabe agrupá-los e generalizá-los, induzir as leis do ensino e demonstrar-lhes a legitimidade pelo exame da respectiva aplicação

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a cada ramo especial. A forma da exposição é inteiramente nova. Em vez de seguir o método sintético, comum aos livros da pedagogia, cujos autores começam por axiomas e teoremas, aos quais subordinam, como deduções, tudo o que se segue, o Sr. Berra preferiu o método analítico. O livro divide-se em duas partes, formando um compacto volume. Na primeira parte, intitulada Teoria do Ensino, chega, por meio do estudo do organismo, a determinar as necessidades humanas, e, pelo conhecimento destas, as condições pessoais indispensáveis para satisfazê-las. Não é outro o fim do ensino, objeto da pedagogia. Da comparação das aptidões do sujeito com o fim do estudo originam-se os princípios fundamentais do ensino, o qual para o Dr. Berra se divide em duas partes, a instrução e a educação, esta tendo por objeto o governo das aptidões pessoais, e aquela subministrando os conhecimentos. Na segunda parte do livro, intitulada Prática do Ensino, desce-se gradualmente dos princípios até as leis aplicação, pela consideração especificada de cada estado pessoa e de cada matéria de estudo. Divide-se em três livros, dois consagrados à demonstração das leis pedagógicas no que concerne ao ensino educativo e ao instrutivo, e o terceiro que trata do governo escolar.

Eis o arcabouço do livro. Um exame mais circunstanciado habilitará o leitor a melhor apreciá-lo.

A teoria do ensino não é senão a reunião das leis que o regem. Estas baseam-se nas necessidades humanas, e em natureza dos objetos a que se dirigem à educação e à instrução. Para chegar a determiná-las o Dr. Berra principia estudando o conceito do ser humano. É um largo bosquejo de antropologia, onde o autor com segura erudição passa em revista as aptidões humanas. Em primeiro lugar vem o estudo anatômico das partes do corpo e a indicação das condições normais para o seu desenvolvimento. A preferência dada ao estudo somatológico justifica-se pela necessidade de começar por aquilo que o homem chama antes de tudo a atenção, o homem exterior. Em seguida, passa-se ao estudo do homem interior, e a análise psicológica é a primeira. É um dos

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primores do livro esse capítulo, ao qual o Dr. Berra se refere, com grande felicidade de expressão, chamando-o fenomenografia da mente. A imprestável teoria das faculdades da alma é substituída por uma análise conscienciosa dos fenômenos mentais sob ponto de vista subjetivo ou da introspecção. Banidos os erros sistemáticos, o autor coloca-se no verdadeiro terreno científico, chegando a distinguir sob ponto de vista pedagógico cinco aptidões psíquicas, cujas leis cumpre apreciar: a perceptividade, a sensitividade, a memória, a vontade e a fantasia. Cada uma dessas aptidões é objeto de reflexivo estudo, e afinal vem o exame psicofísico das condições cerebrais indispensáveis ao desenvolvimento mental. Segue-se o estudo fisiológico, que se inicia pela consideração minuciosa dos orgãos dos sentidos, e termina por um capitulo notável a respeito do fenômeno da vida. Do mesmo modo que o autor não se deixou, na análise psíquica, seduzir pelas ilusões da escola espiritualista, ainda aqui é agradável ver o psicólogo afastar as pretensões exageradas do materialismo, tornando salientes as enormes lacunas que a ciência não pôde ainda preencher. Quem chega a esta parte do livro não pode deixar de convencer-se da sinceridade com que o Dr. Berra escreveu (p. 6I6) a seguinte declaração: "Exponho a ciência do modo porque a concebo, sem preocupar-me com o que os outros pensam, e sobretudo sem ocorrer-me jamais a idéia de misturar minhas convicções com as dos outros, pois isto não se harmoniza com a minha consciência".

Terminados estes estudos, completa o autor a análise do conceito do ser humano pela apreciação das relações recíprocas entre o físico e o moral. São dignos de menção os capítulos que tratam dos temperamentos, da tendência imitativa, do habito, das condições de alimentação, dos exercícios corpóreos; entre todos, porém, sobre-sai pela originalidade dos juízos e dos fatos o interessante estudo de psicologia infantil, intitulado desenvolvimento físico e mental. O autor aí descreve o resultado de suas observações a respeito das primeiras manifestações da atividade mental de sua filha Aura, corrigindo e completando as

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conhecidas comunicações de Darwin e de Taine. É uma contribuição preciosa para a ciência psicológica.

Conhecidas as aptidões humanas, consiste o trabalho do pedagogo em dirigi-las convenientemente, de modo que por meio delas o homem possa atingir o pleno desenvolvimento da vida. O fim do ensino, pois, é proporcionar às pessoas as condições necessárias para o cumprimento do dever, quer este se refira à individualidade, quer aos outros membros da espécie humana, quer ao resto do natureza. É aqui que o Dr. Berra insiste na necessidade de distinguir como idéias capitais a instrução e a educação, ou para empregar na sua linguagem, o ensino instrutivo e o educativo. Ele destrói com vantagem o erro de Th. Braun que confunde os dois conceitos, deixando-se levar por uma interpretação etimológica do verbo educare, e em larga dissertação aponta os inconvenientes resultantes de semelhante confusão. A opinião do Dr. Berra tende a ser a da maioria dos pedagogistas, com quanto Bain e Spencer, em seus livros que se intitulam tratados de educação, se ocupem de preferência com a parte instrutiva. Já anteriormente o Sr. Ch. Robin, sob ponto de vista da filosofia positiva, fizera igual reparo à obra de Spencer1. Para o Dr. Berra a distinção é a que acima foi indicada. "Como só se pode conhecer por meio das aptidões perceptivas, a instrução apenas se refere aos sentidos, à consciência e à inteligência; porém a educação se relaciona com todas as aptidões do corpo e da mente, porque todas são suscetíveis de conservação, desenvolvimento e hábito". Poder-se-ia dizer com acerto, para ilustrar a idéia, que a instrução é o capital com que se aperfeiçoa e se fortifica o trabalho da educação.

Entremos na parte mais atraente do livro: a indicação das leis, que decorrem da comparação do fim do ensino com as necessidades humanas e correspondentes aptidões. O autor, com todo o fundamento, chama leis as condições a que o ensino se deve 1 Ch. Robin, L’instruction et l’education; artigos publicados na Revue de philosophie positive (1876)

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subordinar para que obtenha o seu principal intuito. Ora, essas condições são determinadas por duas relações: Iª relação de conformidade ou de conveniência do ensino com o fim moral dos indivíduos; 2ª relação do ensino com a natureza do aluno. Daí dois princípios cardeais em pedagogia, a correlação do ensino com o seu fim ou principio de correlação final, e a correlação entre o ensino e o sujeito que aprende ou principio de correlação subjetiva. O Dr. Berra chama-os leis fundamentais; leis, porque as indicadas relações são necessárias, inelutáveis, constantes, universais; fundamentais, porque não derivam de outras, e pelo contrário, delas dependem todas as condições de eficácia.

Vejamos agora as conseqüências teóricas que surgem desses princípios, e primeiramente da correlação final, servindo-nos o mais possível das próprias expressões do Dr. Berra. Se o ensino consiste em educar e instruir, o primeiro problema que assalta o espírito é o saber o em que se há de educar ou instruir, isto é, qual a extensão do ensino. Resolvido este, cumpre averiguar quanto se há de educar ou instruir para que o ensino seja completo, isto é, qual a sua compreensão. A terceira questão pode ser assim formulada: a extensão e a compreensão do ensino devem ser as mesmas para todos os indivíduos da humanidade? Finalmente é indispensável determinar em que relação devem estar as matérias do ensino entre si e as pessoas que tem de aprender. O Dr. Berra entra em largo comentário sobre cada uma dessas questões, considerando-as sempre sob os pontos de vista da educação e da instrução; para facilitar, porém, o trabalho do leitor, indicaremos desde logo os resultados que ele chegou. São quatro leis, que correspondem a outras tantas necessidades ou condições do ensino. A lei da integridade resolve o primeiro problema; a da suficiência, o segundo; o da universalidade, o terceiro; e a unidade, o quarto.

Exige a lei da integridade que a educação se estenda a todos os direitos e deveres do homem nos três estados em que ele se pode achar, o de individualidade, o de cooperação livre, o de cooperação social; e que a instrução abranja todos os

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conhecimentos indispensáveis para o homem satisfazer suas necessidades individuais e sociais e evitar o perigo da ignorância. O Dr. Berra procede ao exame das matérias que devem formar um programa integral. Na impossibilidade de reproduzir suas observações, limitar-nos-emos a apontar os seis grupos em que as classificou: 1º conhecimentos relativos à pessoa: anatomia, fisiologia, psicologia e lógica; 2º conhecimentos de caráter ético: moral e direito; 3º conhecimentos concernentes à conservação e desenvolvimento da pessoa: higiene, medicina, ginástica e canto; 4º conhecimento das diversas formas do trabalho industrial; 5º conhecimentos indispensáveis para que o trabalho satisfaça o seu objeto: química, física, história natural, cosmografia, geografia, história, geometria, desenho, aritmética, álgebra, e economia; 6º conhecimentos que servem para a comunicação entre as pessoas, isto é, linguagem, escrita e leitura.

A lei da suficiência exige que a educação não fique aquém dos limites determinados pela moral e que a instrução não contenha coisa que seja inútil à generalidade das pessoas, ainda que excepcionalmente se possa reputar necessária a algumas, isto é, nada mais, nada menos do que o indispensável para atender aos fins do ensino primário.

A lei da unidade refere-se à verdade das doutrinas e à conveniência das práticas. O ensino deve ser harmônico; as suas partes não devem contradizer-se, nem destruir se mutuamente.

A lei da universalidade requer que o ensino favoreça em todas as classes de pessoas, sem distinção de sexo, condição ou país, as aptidões que podem exercer em virtude de sua natureza, e que devem ter em razão dos deveres universais a que estão submetidas. Na demonstração desta lei o Dr. Berra emite algumas proposições que aparecem de exagerado alcance. Ele quer que o ensino seja o mesmo para o homem e para a mulher, o branco e o negro, o bárbaro e o civilizado, o homem do campo e da cidade. Quanto à educação e instrução idênticas para o homem e a mulher, é uma questão aberta. O Dr. Berra não admite nenhuma diferença específica entre os dois sexos, e combate com todas as

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forças a opinião contrária; entretanto ela tem respeitáveis defensores entre os filósofos e psicologistas que pretendem acompanhar o espírito moderno. No que respeita às outras classes indicadas, certas proposições absolutas obscurecem o pensamento do autor. Felizmente à página 488 dos Apuentes, tratando de matéria diferente, consagra ele a seguinte restrição, que melhor dá a entender o conceito da lei: "a universalidade significa que o ensino a de aplicar-se a todos os indivíduos, porém não há de aplicar-se a todos na mesma quantidade e nas mesmas condições".

Do principio de correlação subjetiva o Dr. Berra deriva treze leis, que, com as quatro acima mencionadas, formam as dezessete leis do ensino. Por amor da brevidade, apresentaremos as leis juntamente com as explicações, seguindo a ordem dos Apuentes de página 266 a 326, e a respectiva nomenclatura. Como no caso procedente, o Dr. Berra divide em duas partes o exame de cada lei, mostrando a sua aplicação ao ensino instrutivo e ao educativo. Feita esta reflexão preliminar, podemos dispensar a dupla demonstração, sendo o principal interesse do leitor apreender a idéia capital.

A lei da exercitação das aptidões próprias exige que o aluno se interesse pelo ensino, que procure, com o uso assíduo de suas faculdades, não só aumentar-lhes o poder, como ir adiante do preceptor, descobrindo por si, por seu esforço, novos conhecimentos e aptidões. Acresce que, sem o exercício constante, sucede com as aptidões o que se dá com qualquer orgão paralisado; o tempo o estraga e consome.

A lei da conformidade requer que, para a obtenção de conhecimentos e nas práticas educativas, se empregue ou se exercite sempre, em relação a cada objeto, a aptidão individual que rigorosamente corresponde ao mesmo objeto, e não outra.

A lei da adaptação. Não basta que se aplique a cada objeto do ensino a aptidão individual correspondente; é ainda mister que, em cada aplicação, se adotem os processos mais acomodados à natureza do objeto e da aptidão. A propósito desta lei o Dr. Berra examina cuidadosamente todos os métodos de que

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se pode usar para obter conhecimentos e os enumera pelo seguinte modo, indicando sempre as classes de noções a que se aplicam: intuitivo, comparativo, abstrativo, de generalização, analítico, sintético, analítico-sintético, e dedutivo-indutivo. Esta subdivisão parece excessiva, e poder-se-ia sem inconveniente suprimir alguns dos membros.

A lei da repetição do exercício. Não basta adquirir idéias, é mister conservá-las, e a repetição do exercício é o meio seguro de avivá-las. Por outro lado nem sempre se pode obter o conhecimento claro e perfeito, com um primeiro exercício; muitas vezes só depois de sucessivos esforços sobre o mesmo objeto é que se consegue esclarecê-lo e determiná-lo.

A lei da continuidade dos exercícios com repouso corrige o abuso que se poderia fazer da anterior. Os exercícios devem ser contínuos para que as aptidões não se inutilizem, e perca-se a vantagem alcançada; mas por outro lado o uso imoderado do corpo ou da mente esgota a respectiva energia. É preciso dar tempo ao organismo para se retemperar depois do exercício prolongado.

A lei da ordenação lógica, que não é mais do que uma lei da mente, exige que, na educação ou na aquisição de conhecimentos, se observe rigorosamente a ordem lógica, sem saltos nem transtornos, quer se proceda do todo para as partes, ou vice-versa, quer se induzam leis dos fatos particulares ou se deduzam regras práticas das leis gerais.

A lei da coordenação. Um exame atento das conexões existentes entre as matérias do ensino e suas relações com as aptidões individuais correspondentes mostra que o estudo se torna muito mais fácil, sempre que se congregam aquelas matérias que, por apresentarem relações de dependência, determinam influências recíprocas, mútuas facilidades, ao tempo do estudo. A constância deste fenômeno constitui uma lei.

A lei da progressão exige que o ensino acompanhe paralelamente o desenvolvimento natural das aptidões perceptivas e das forças físicas, de modo que, em cada idade do indivíduo, não se adiante a sua capacidade de receber conhecimentos, nem se

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exagere o exercício compatível com seus orgãos. Na demonstração dessa lei quanto ao ensino instrutivo, expos o Dr. Berra idéias muito sensatas e aproveitáveis, chegando a generalizações e respeito da idade, as quais, apesar de não se lhes poder atribuir o valor definitivo que o autor parece querer dar lhes, todavia merecem ser divulgadas. Entende ele que até os 8 ou 9 anos o indivíduo não é verdadeiramente apto senão para adquirir noções intuitivas, perceber as relações imediatas dessas idéias e analisar os objetos a que correspondem; dos 9 até os 10 ou 11, aquelas aptidões se fortalecem, a elas se agregam a de perceber as relações gerais, a de reunir em série vários juízos, a de sistematizar, a de empregar alternativamente a análise e a síntese no conhecimento dos objetos que requerem tal alternação, e a de fazer simples deduções; dos 10 ou 11 até os 13 ou 14 aumenta a energia das preditas faculdades e a inteligência adianta seus raciocínios até as noções abstratas e gerais; depois dos 13 ou 14 as aptidões continuam a adquirir maior vigor, a pessoa conhece as reações mais remotas das idéias e é capaz das mais complicadas induções.

A lei da atenção refere-se à concentração mental durante os exercícios, condição indispensável para qualquer progresso do ensino.

A lei dos motivos consagra a necessidade de recorrer a forças reguladoras e impulsivas para moderar ou avivar a atividade. O motivo é elemento necessário do labor humano, e por conseguinte dos exercícios em que consistem a educação e a instrução; o que importa dizer que não se poderá ensinar si não se exercitarem e dirigirem as aptidões, promovendo motivos apropriados.

A lei dos objetos impõe aos mestres a obrigação de apresentar ao aluno os próprios objetos que hão de ser matéria das lições, ou a sua representação.

A lei das formas regula o procedimento que deve observar o mestre quando educa, indicando-lhe a forma mais conveniente para que os seus esforços sejam coroados de feliz êxito, e o modo

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por que deve variá-la de acordo com a natureza do objeto ou a índole dos alunos.

Não seria completa a nossa exposição si não puséssemos em relevo as repetidas referências feitas pelo Dr. Berra ao livro do Sr. José Varela, La educacion del pueblo, de que já tivemos ocasião de falar. É uma homenagem póstuma prestada pelo autor ao ilustre cidadão que primeiro se ocupou seriamente em sua pátria das questões escolares. O Dr. Berra chama-o o Horacio Mann uruguaio, e em nota à pagina 220 dos Apuentes compara a sua obra com aquela, procurando filiar as próprias idéias a um movimento iniciado pelo Sr. Varela. É fácil perceber que nesta afirmação a modéstia exagerou o preito de homenagem. O livro do Sr. Varela é uma exposição brilhante e apaixonada dos progressos da instrução nos povos cultos da Europa e da América do Norte; falta-lhe, porém, certo cunho científico, que constitui aliás o mérito da obra que examinamos. O Sr. Varela foi o iniciador da Sociedad de amigos de la Educacion popular de Montevidéo, hoje presidida pelo Sr. Berra.

A segunda parte dos Apuentes, tão extensa como a primeira, trata da prática de ensino. Aí o autor reproduz sob outra forma a doutrina já conhecida. Examinando sucessivamente cada grupo do programa, esforça-se por mostrar como devem ser observadas as leis do ensino, e este longo arrazoado é repetido em dois capítulos, um destinado especialmente à instrução e outro à educação. Tão laborioso, mas fecundo comentário tem por alvo provar a necessidade de distinguir o trabalho instrutivo e o educativo do mestre. O último capítulo, intitulado governo escolar, forma uma síntese do conteúdo da obra. O autor resume o seu sistema fazendo a resenha das leis do ensino, sob o ponto de vista das obrigações do aluno, das funções do mestre, e finalmente de outras providências que podem e devem ser tomadas para a boa direção da escola.

Não é nossa intenção criticar o livro do Dr. Berra; foi nosso exclusivo propósito tornar conhecidas do público brasileiro as idéias do ilustre escritor, e chamar para elas a atenção das

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pessoas que se ocupam de pedagogia. Seja-nos contudo permitido, não obstante o pleno acordo em que nos achamos quanto ao exame dos fatos e às observações, manifestar algumas restrições. Nossas dúvidas versam sobre o valor das leis derivadas do princípio de correlação subjetiva. Parece-nos que neste ponto o Dr. Berra não foi tão feliz como na parte concernente ao princípio de correlação final. Aqui as suas generalizações são rigorosas e exatas; ali o trabalho de generalização é incompleto. O autor ficou por vezes a meio caminho, e elevou à altura de leis fatos particulares redutíveis a princípios de ordem superior; outras vezes a generalização foi mais rápida do que o permitiam os processos lógicos.

Uma lei geral domina o ensino em todas as suas manifestações, sob ponto de vista da correlação subjetiva; é o que se poderia chamar a lei do esforço individual. Se o aluno não está disposto a auxiliar o trabalho do mestre, se não começa por prestar atenção aos seus preceitos, se não procura ir adiante dele apreendendo pelas explicações dadas o que deve seguir-se, se não exercita os orgãos de modo a fortalecê-los, se não repete consigo os exercícios já feitos para melhor conservar os conhecimentos adquiridos, todo o ensino é inútil. Sem o trabalho do aluno, o melhor mestre perde o seu tempo. Esta lei escapou à fina observação do Dr. Berra, que a dividiu em três, sob os títulos de lei da exercitação das aptidões próprias, lei da repetição do exercício, lei da atenção. Não há aí três leis diferentes; são aplicações, várias é verdade, mas em todo caso aplicações de uma só e mesma lei: a do esforço individual do aluno. Desde que se trata de um trabalho de generalização era a esta lei, e não aquelas três aplicações, que cumpria atender. Depois ficaria livre ao autor entrar no exame circunstanciado da lei geral, e dela deduzir os corolários.

Incorrem em igual censura as leis denominadas de ordenação lógica, de coordenação, de progressão. Todas são dominadas por um princípio superior, a lei da evolução. Com efeito, qual a função daquelas leis? A primeira manda observar a ordem lógica na obtenção dos conhecimentos e na educação das

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aptidões, isto é, respeitar as ligações naturais, seguir do simples para o composto, do incomplexo para o complexo, do fácil para o difícil, do conhecido para o desconhecido, emfim do homogêneo para o heterogêneo, como diria Spencer. Não é outro o processo evolutivo. A segunda não faz mais do que recomendar os mesmos preceitos, quanto ao estudo simultâneo de diversas disciplinas. O que a primeira exige na passagem de uns a outros conhecimentos, exige-o a segunda na passagem de umas a outras disciplinas. A terceira nada traz ainda de novo. A evolução é considerada no próprio sujeito em favor de quem são estabelecidas das duas leis anteriores; o Dr. Berra o confessa, denominando-as leis da mente. Todas as aptidões humanas estão subordinadas àquela lei fatal, e por isso é indispensável, na aquisição de conhecimentos ou na educação, acompanhar o desenvolvimento da idade, porque o tempo é o fator principal da evolução. Não se trata pois de três leis distintas, senão de aplicações separadas de uma só e mesma lei. Ainda desta vez deu-se aos corolários categoria que lhes não cabe.

Submetidas a idêntico processo de generalização, verifica-se que as leis da conformidade e da adaptação não são irredutíveis. A lei do esforço individual rege os deveres do aluno, a lei da evolução prescreve a marcha racional do ensino; uma terceira, que chamamos da congruência ou da proporção, fixa a função do mestre, exigindo que, na prática do ensino, se aproveitem do melhor modo as aptidões dos alunos, e isto se obtem não somente exercitando as aptidões individuais adequadas ao objeto do ensino, mas ainda empregando os processos acomodados à natureza do objeto e à índole do aluno. Senão se observam estas condições, o ensino é incongruente, não mantém a devida proporção entre o sujeito e o objeto. É portanto evidente que os princípios invocados pelo Dr. Berra, sob os títulos de conformidade e adaptação referem-se em substância à mesma idéia. Esta por conseguinte é a lei.

Um quarto princípio parece-nos deduzir-se do de correlação subjetiva e abranger duas leis denominadas pelo Dr. Berra de continuidade dos exercícios e de alteração dos exercícios

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com o repouso. É tão íntima a conexão entre estas idéias, que o autor não pode deixar de ponderar que a segunda lei corrigiria o abuso possível da primeira. Com efeito, ambas prescrevem as condições em que os exercícios devem ser executados para não fatigar os orgãos, conservando-os aliás em movimento constante até que o objeto do ensino seja bem elucidado. Se os exercícios de certa natureza são interrompidos durante longo intervalo, a aptidão correspondente não se ativa, e quando volta o exercício, quase que se tem de fazer trabalho novo. O contrário sucede se os exercícios são tão repetidos que não se deixa tempo para o repouso; os orgãos fatigam se, e não são capazes dos resultados que, em condições normais, é lícito deles esperar. Esta lei que assim regula a sucessão dos exercícios, a fim de atender ao aproveitamento das aptidões, pode ser denominada lei do equilíbrio dos exercícios. Prescreve que eles variem tão freqüentemente quanto seja necessário para que produzam o efeito educativo ou instrutivo, sem prejuízo para o orgão individual, proveniente de uma contensão demasiada.

A lei das formas contempla na mesma categoria das demais, não oferece a generalidade que se lhe atribuiu. Está subordinada a outra lei que o Dr. Berra chamou da adaptação. Se esta impõe ao preceptor a obrigação de empregar no ensino os processos mais adequados à natureza do objeto e da aptidão, é claro que a forma do ensino deve ser por ela prescrita. O problema da forma é, pois, questão secundaria, que se reduz à lei da adaptação, a qual por sua vez refere-se a outra lei superior.

Da mesma crítica é suscetível a lei dos objetos. Esta requer um método particular para determinada ordem dos assuntos. Ora, se há uma lei geral, que domina todos os métodos e lhes fornece preceitos particulares (a lei da adaptação, conforma o Dr. Berra, ou da congruência, conforme as nossas idéias) para que erigir em lei fundamental o princípio que regula um método particular? Ela é sem dúvida a aplicação muito legítima de outra lei; por isso mesmo, porém, cumpre dar-lhe o verdadeiro lugar. O equívoco do Dr. Berra foi tanto mais prejudicial, quanto o induziu

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à conclusões dissonantes de suas idéias tão lúcidas a respeito do conceito lógico da lei. Na página 318 dos Apuntes, falando sobre a obrigação dos mestres de apresentar sempre ao aluno o próprio objeto que serve de assunto à lição, acrescenta: "Como isto nem sempre é possível, já por ser demasiadamente volumosos o objeto, por ser caro ou perigoso, já por não existir no país ou no lugar onde está a escola, então a necessidade obriga a infringir a lei, porém o dever prescreve infringi-las o menos possível, e suprir o objeto que falta por outro que se assemelhe, isto é, por imitações corpóreas cuidadosamente feitas". Parece-nos que esta linguagem não caracteriza bem uma lei natural, e pode concorrer para dar ao preceptor idéia falsa. Ter-se-ia tudo evitado si, em vez de assinar-lhe papel tão proeminente, o Dr. Berra fizesse descer a dita lei à categoria das aplicações. A lei dos objetos, seja dito de passagem, é tanto mais secundária quanto é muito contestável se os seus efeitos se estendem ao ensino instrutivo e ao educativo, ou somente ao primeiro. As repetidas demonstrações do autor quanto à aplicação de tal lei ao ensino educativo não passaram de reproduções de que ficara assentado para o outro ensino.

Resta-nos tratar das leis dos motivos, à qual contestamos o mesmo que as anteriores. A exposição do Dr. Berra presta-se neste ponto a duas críticas. Em primeiro lugar, a lei dos motivos e inconciliável com as idéias exibidas à pagina 83 dos Apuntes. Aí o Dr. Berra revelou se partidário do livre arbítrio, e tentou refutar a argumentação determinista. Em nota acrescentou que não se ocupava com o argumento deduzido da presciência de Deus por estimá-lo o mais fraco. Está fora do nosso plano invadir os domínios da metafísica; limitar-nos-emos a acentuar a contradição das idéias. O Dr. Berra nega a influência decisiva dos motivos em nossas determinações; satisfaz-se com a ilusão da consciência, e afirma, referindo-se ao homem: "Porque é livre, prefere entre os motivos; e não preferiria, se fosse a fatalidade a sua forma" (p. 84). Quem professa tais idéias, não tem o direito de elevar depois os motivos à categoria de lei. Ou os motivos formam lei, que a vontade se subordina, e então o livre arbítrio é uma fantasia; ou a

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vontade é que dá preferência aos motivos, e então estes perdem todo o caráter obrigatório ou coercitivo, não podem constituir uma lei. Não há meio termo. Spencer manifesta o mesmo juízo: "As mudanças psíquicas estão sujeitas a uma lei ou não estão. Se não se conformam com uma lei, o meu livro, como todos os que tratam do mesmo assumto, são meros contrasensos. No caso oposto, não existe o livre arbítrio2".

É palpável a contradição. Admitido, porém, que o Dr. Berra corrigiu o seu primeiro juízo, e adotou o determinismo científico para explicar os atos humanos, subsiste outra objeção. Não é lícito considerar lei geral do ensino um princípio moral, que, tendo incontestável influência no ensino educativo, nenhuma aplicação constante encontra na instrução. O próprio Dr. Berra achou-se embaraçado; mas nas suas minuciosas demonstrações das leis do ensino por meio da aplicação aos diversos ramos da educação e da instrução, excluiu sistematicamente a lei dos motivos, de sorte que devemos contentar-nos com os poucos esclarecimentos da XII divisão do 6º capitulo da primeira parte dos Apuntes. Estas mesmas são insuficientes. Definem-se os motivos, estabelecem-se as suas diversas espécies, e afinal em pouco mais de uma página mostra-se a influência deles na instrução, alegando-se que há indivíduos que estudam por prazer, outros que sentem aversão ao estudo, e, entre os extremos, numerosos termos médios. Cumpre ao mestre fortificar os motivos que encaminham para a instrução, sobretudo os intelectuais-naturais por serem mais moralizadores. Os próprios termos dessa explicação excluem a legitimidade da lei. O ensino instrutivo subministra conhecimentos, diz o Dr. Berra; mas a lei dos motivos não faz senão auxiliar a educação das faculdades, preparando e provocando o trabalho. E’ incontestável a influência da educação no ensino instrutivo, e daí o fato de manifestarem neste os seus efeitos as leis peculiares daquela; mas para chegar a

2 H. Spencer. Principles of psichology

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tal resultado não há necessidade de fazer generalizações exageradas. Se os motivos racionais são indispensáveis para alimentar o trabalho do aluno, a lei do esforço individual exige a educação deles; se, sem o auxílio dos motivos, o mestre não pode contar com o resultado do seu esforço, a lei da congruência o obriga a fortificá-los. O que não se pode pretender é confundir a educação com a instrução, depois de haver estabelecido entre elas distinção radical.

Em suma, sem contestar a veracidade e justeza das observações do Dr. Berra a respeito das leis do ensino, por ele derivadas do principio de correlação subjetiva, parece-nos que elas não têm todas igual valor. Separadas as três últimas, que se referem às anteriores, ou se aplicam exclusivamente a um dos ramos do ensino, as outras dez podem-se reduzir, salvas as denominações que nada tem de definitivo, a quatro leis: a do esforço individual, a da evolução, a da congrüência e a do equilíbrio dos exercícios. Se são as únicas, não podemos afirmá-lo; o nosso pensamento não foi fixar as leis do ensino, mas simplesmente manifestar nossa consideração por um ensaio de generalização, que nos afigura o sistema mais adequado para organizar a ciência pedagógica.

Dr. Souza Bandeira Filho

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 275-276, jan/abr 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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A extensão máxima para artigos e ensaios (sem contar o resumo) é de 45.000 caracteres (contando espaços) e para a resenha é de 17.000 caracteres (contando espaços). Os resumos em português, inglês e espanhol devem ter no máximo, cada um deles, 790 caracteres (contando espaços).

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O trabalho deverá conter: a) título do trabalho em português, inglês e espanhol; b) nome do(s) autor(es); c) resumo em português, inglês e espanhol, bem como palavras-chave nas três línguas; d) os artigos devem ser apresentados dentro das normas vigentes da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Quando for o caso, as ilustrações e tabelas devem ser apresentadas no interior do texto, na posição que o autor julgar mais conveniente. Devem ser numeradas, tituladas e apresentarem as fontes que lhes correspondem. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF). Ao final do artigo o(s) autor(es) deve(m) fornecer, também, dados relativos à instituição e área em que atua(m), bem como indicar endereço(s) e e-mail(s) para correspondência com os leitores.

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