Historia Da Metalografia_Brasil

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  BREVE HISTÓRI A DA MET ALOGRAFIA Cesar R. F. Azevedo; Beatriz A. Cam pos [email protected]  Laboratório de Caracterização Microestrutural Prof. Hubertus Colpaert, Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo Independente da defasagem entre a descoberta de materiais e o desenvolvimento teórico, a transmissão de conhecimentos práticos e o desenvolvimento de materiais e processos  persist iram no decorrer da histór ia da metalurgia. Abstract  A brief descripti on of the history of metall urgy describes some of the key advances in experimental techniques for quality control and properties optimisation, which ended up creating the background scenario for the discovery, development and application of the Metallography in modern times. Finally, a succin ct analysis of the introduction of this technique in Brazil highlights the pioneering roles of Prof. Paula Souza and Prof. Hubertus Colpaert. -------------- Há aproximadamente 7 mil anos, começou no Oriente Médio a nossa primeira revolução tecnológica, devido à combinação de organização social com o uso da tecnologia. A produção de ferramentas, armas e artefatos passou a ser realizada com o uso de diferentes materiais e processos (1) . É interessante notar que as primeiras tentativas de teorização sobre alguns destes fenômenos surgiram mil anos depois, com os filósofos gregos. Independente do grande descompasso entre a descoberta de novos materiais e técnicas e o desenvolvimento dos fundamentos teóricos, persistiu no decorrer d a história ta nto a transmissão de conhecimentos práticos, como o contínuo desenvolvimento de materiais e processos (2) . A metalurgia começou com a conformação mecânica de pedaços de cobre nativo, que foram

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 BREVE HISTÓRIA DA METALOGRAFIA

Cesar R. F. Azevedo; Beatriz A. Campos

[email protected] 

Laboratório de Caracterização Microestrutural Prof. Hubertus Colpaert,

Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais, Escola Politécnica da

Universidade de São Paulo

Independente da defasagem entre a descoberta de materiais e o desenvolvimento teórico, a

transmissão de conhecimentos práticos e o desenvolvimento de materiais e processos

persistiram no decorrer da história da metalurgia.

Abstract

A brief description of the history of metallurgy describes some of the key advances

in experimental techniques for quality control and properties optimisation, which

ended up creating the background scenario for the discovery, development and

application of the Metallography in modern times. Finally, a succinct analysis of the

introduction of this technique in Brazil highlights the pioneering roles of Prof. Paula

Souza and Prof. Hubertus Colpaert.

--------------

Há aproximadamente 7 mil anos, começou no Oriente Médio a nossa

primeira revolução tecnológica, devido à combinação de organização social

com o uso da tecnologia. A produção de ferramentas, armas e artefatos

passou a ser realizada com o uso de diferentes materiais e processos(1). É

interessante notar que as primeiras tentativas de teorização sobre algunsdestes fenômenos surgiram mil anos depois, com os filósofos gregos.

Independente do grande descompasso entre a descoberta de novos materiais

e técnicas e o desenvolvimento dos fundamentos teóricos, persistiu no

decorrer da história tanto a transmissão de conhecimentos práticos, como o

contínuo desenvolvimento de materiais e processos(2). A metalurgia começou

com a conformação mecânica de pedaços de cobre nativo, que foram

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transformados em objetos decorativos em 9000 a.C., no Oriente Médio. Em

1200 a.C. os chineses já fundiam vasos de bronze bastante elaborados. O

uso do ferro começou em 2800 a.C., na região de Anatólia, mas seu uso

dependeu da difusão de métodos de extração; conversão de ferro em aço; e

tratamento termo -mecânico, de modo a obter um material de resistênciamecânica inigualável(2).

A metalografia, se for encarada como o uso de aspectos visuais do

metal para o controle de suas propriedades, surge no Oriente por volta de

800 d.C.. Nesta época, metalurgistas usavam materiais compósitos (aço alto

carbono altamente segregado ou uma combinação de aço e ferro) para

produção do aço por forjamento, produzindo uma macroestrutura visível a

olho nu. Consta que esta macroestrutura (figura 1a), servia não apenas

para conferir uma qualidade estética aos produtos de aço Damasco, mas

também para controle de qualidade. Supõe-se que este mesmo raciocínio era

aplicado para o controle de qualidade de espadas japonesas, constituídas de

um núcleo de ferro, cercado por aço temperável com 0,6% C, que também

foram desenvolvidas a partir de 800 d.C. (figura 1b).

A partir do século XVI, surgem na Europa os primeiros livros que

abordam os aspectos práticos da metalurgia extrativa, incluindo ensaios de

controle de qualidade através da fratura de corpos-de-prova, uma prática

importante para o rápido desenvolvimento da metalografia no início do

século XX. A primeira descrição do uso da fractografia para aferir a qualidade

do processo foi feita por Biringuccio, em 1540(3). Em 1574, Ercker(4) 

descreveu um procedimento similar, mas usando ensaio de impacto em

corpos-de-prova entalhados para controle de qualidade dos lingotes de

cobre, bronze e prata. Em 1627, Savot(5) usou o aspecto granulométrico

mais refinado da fratura de corpos-de-prova como medida indireta da maior

resistência ao impacto dos sinos fundidos em liga Cu-Sn-Bi (precursor da Lei

de Hall-Petch, desenvolvida por volta de 1950).

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Outra peça chave para o desenvolvimento da metalografia foi

descoberta da microscopia óptica. Em 1665, Hook publicou (6) a primeira

imagem fractográfica obtida por microscopia de uma rocha sedimentar e

estratificada (figura 2), constituída de várias camadas concêntricas de

carbonato de cálcio. Sua descrição bastante precisa da topografia de fraturafoi associada à microestrutura desta rocha apenas no século XX(7),

reforçando a relação entre microestrutura e microfractografia. Mais um

estudo microscópico foi publicado em 1722 por De Réaumur(5,8), revelando

as superfícies de fratura em várias classes de ferro e aço; e relacionando-as

com a qualidade destes materiais ou com os estágios de conversão de ferro

em aço (figura 3).Trabalhos desenvolvidos no século XIX usaram a

fractografia para a melhoria das propriedades de produtos por otimização

microestrutural, embora o conceito de microestru tura ainda não fosse

entendido. Em 1862, Kirkaldy relacionou a alteração no aspecto da fratura de

ferro e aço forjados com tratamento térmico, enquanto, em 1868, Tschernoff 

discutiu o efeito do teor de carbono e do tratamento térmico do aço no

tamanho de grão da fratura(5).

O primeiro ensaio de investigação metalográfica em metal for realizado

pelo inglês Henry Sorby em 1863. Seu grande interesse por geologia o levou,

aos 23 anos de idade, ao pioneirismo no estudo da petrografia microscópica,

embora seus interesses também incluíssem arqueologia, biologia,

meteorologia e química. Sorby adaptou o microscópio óptico para trabalhar

com a luz refletida na pesquisa da microestrutura de meteorito de ferro (já

estudado em 1820 por Widmanstätten e Screibers, usando o ataque com

ácido nítrico na superfície polida) e tornou-se o primeiro pesquisador a

estudar como a microestrutura do aço (tratado como um meteorito artificial)

variava com a sua composição química, tratamento térmico e processo de

manufatura, sendo reconhecido como o pai da metalografia (f igura 4),

apesar de seu relativo desinteresse por metalurgia (9). Sorby foi motivo do

escárnio de alguns de seus colegas, mais notoriamente do geólogo suíço

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Saussure, que não considerava apropriado estudar uma montanha com o uso

de um microscópio. Até hoje este é um tipo de uma atitude conservadora em

relação ao uso de novas técnicas metalográficas. Sorby assim respondia às

críticas(9): "No one expected astronomers to confine their observations to

what they could see with the naked eye, so why should geologists be so

restricted?". A metalografia passou a ter destaque, em detrimento da

fractografia, no final do século XIX, principalmente com os trabalhos de

Martens (1878) na Alemanha (figura 5), Osmond e Le Chatelier (1885) na

França, Arnold e Stead (1894) no Reino Unido e Howe e Sauvert (1891) nos

EUA(10-11).

No Brasil em 1888 extingue-se a escravidão e em 1889 ocorre a

transição do império para a república. Em 1894, o país apresentava 15,5

milhões de habitantes, dos quais cerca de 80% eram analfabetos, e a cidade

de S. Paulo tinha 125.000 habitantes e apresentava um “parque industrial” 

incipiente e inexpressivo(12). Antônio Francisco de Paula Souza, neto do

Barão de Piracicaba, nascido em 1843 em Itú, exerceu um papel estratégico

para industrialização do estado de São Paulo. Aos 15 anos partiu para a

Alemanha, retornando para o Brasil aos 24, com o diploma de engenheiro

pela Universidade de Karlsruhe. Tornou-se encarregado da construção da

Estrada de Ferro Ituano, foi republicano, deputado estadual, presidente da

assembléia legislativa de São Paulo, ministro de Relações Exteriores e

ministro da Agricultura. Em certo ponto de sua vida, dedicou-se à formação

da Escola Politécnica, que foi inaugurada em 1894(12). Paula Souza tinha

plena convicção da necessidade do ensino científico para a industrialização

do Brasil. Para garantir o ensino prático de disciplinas tecnológicas, fundou-

se junto à escola o Gabinete de Resistência dos Materiais (1899), projetado

pelo professor suíço Ludwig von Tetmayer.

Em 1906, pensando na expansão do Gabinete, Paula Souza enviou o

engenheiro Hippolyto Pujol, com 26 anos, com a missão de visitar vários

laboratórios europeus e elaborar um plano de expansão. Nesta época, a

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metalografia microscópica já estava se consolidando na Europa e EUA, e

Paula Souza, atento às tendências, programou para o jovem Pujol uma visita

ao laboratório de metalografia do Prof. Martens, no Gross Lichterfeld de

Berlim; um curso de metalografia com o Prof. Le Chatellier, na Universidade

de Sorbonne; e um estágio com Prof. Leon Guillet, no laboratório demetalografia da Usina de Dion Bouton(13). De volta ao Brasil, em 1907, Pujol

trouxe material didático e um microscópio Zeiss do tipo Martens, permitindo

a instalação de um laboratório de metalografia microscópica no Gabinete de

Resistência de Materiais da Escola Politécnica. Em 1910 chegou ao Gabinete

um banco metalográfico do tipo Le Chatellier, até hoje em exibição no antigo

Laboratório de Metalografia e Análise de Falhas do IPT. Em 1910, o ensino

prático de metalografia fazia parte da cadeira de “Curso experimental de

Resistência dos Materiaes” da Escola Politécnica e em 1912, a Revista

Politécnica publicou os primeiros artigos de metalografia no país(14). Estes

artigos do Pujol, s ão didáticos em termos da preparação de amostras, do uso

dos microscópios Martens e Le Chatelier, do uso dos ataques químicos, e de

definições microestruturais típicas de aços, embora termos como “ferrite

amorpha”, “sorbite”, “hardenite”, “troostite” e “osmondite” possam parecer

sem sentido hoje em dia. As várias micrografias mostradas nestes artigos

foram cedidas pelo Prof. Guillet(15), seu tutor na França. Dos trabalhos de

metalografia produzidos pelo Gabinete entre as décadas de 10 e 20 e que

puderam ser recuperados, há uma indicação de que seu objetivo era o

controle de qualidade de componentes metálicos usados na construção civil.

Espera-se que, em breve, a totalidade do acervo metalográfico do Gabinete

seja encontrado, de modo a permitir uma análise ma is profunda dos

primeiros trabalhos de metalografia realizados no Brasil. A partir da década

de 30, graças ao trabalho sistemático de Hubertus Colpaert, a técnica de

metalografia se consolida no Brasil como uma importante ferramenta de

ensino e de desenvolvimento industrial, principalmente em casos de análise

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de falha, controle de qualidade, engenharia reversa e otimização

microestrutural através de tratamentos termo-mecânicos. 

Referências  1- A search for structure, selected essays on science, art, and history. Cyril Stanley

Smith. The MIT Press (1982).

2- Metallurgy as a human experience. Cyril Stanley Smith. Metallurgical

Transactions, vol. 6A, april, (1975) 603-623.

3- The Pirotechnia. Vannoccio Biringuccio (1540). Traduzido por Cyril Stanley Smith

e Martha Teach Gnudi. Dover Publications (1990)

4- Treatise on Ores and Assaying. Lazarus Ercker (1580). Traduzido por Anneliese

Grunhaldt e Cyril Stanley Smith. The University of Chicago Press (1951)

5- ASM Handbook, Vol. 12: Fractography. ASM International (1989). Micrographia:

Some physiological descriptions of minute bodies made by magnifying glasses

with observations and inquiries thereupon. Robert Hook. (1665). The Project

Gutenberg, http://www.gutenberg.org/etext/15491 (2007).Fractography:

Observing, measuring and interpreting fracture surface topography . Derek Hull.

Cambridge University Press (1999).Sources for the history of the science of 

steel, 1533-1786. Cyril Stanley Smith. The MIT Press (1968).

9- The Sorby centennial symposium on the history of metallurgy. Cyril Stanley

Smith. Gordon and Breach. AIME Metallurgical Society Conferences (1965).

10- Adolf Martens and his contributions to materials engineering. P.D. Portella.

Palestra. Universidade de Cambridge (2002).

http://www.msm.cam.ac.uk/phase-trans/2002/Martens.pdf  

11- Metallography, an introduction to the study of the structure of metals, chiefly

by the aid of the microscope. Arthur H. Hiorns. Macmillan and Co, London

(1902).12- Antonio Francisco de Paula Souza (1843-1917): o mais antigo estudante

brasileiro em Karlsruhe. Angelo Fernando Padilha e Rodrigo Bastos Padilha.

http://www.aaa.uni-karlsruhe.de/download/PaulaSouza_0riginaltext.doc

13- Relatório de Viagem apresentado ao Prof. Antônio Francisco de Paula Souza.

Hyppolito Gustavo Pujol. Escola Politécnica, , São Paulo. (1907).

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14- Noções elementares de metallographia microscopica e analyse thermica.

Hyppolito Gustavo Pujol. Revista Politécnica, n.38 (77-90); n.39/40 (123-155) e

n.42 (287-295). 1912

15- Precis De Metallographie Microscopique Et De Macrographie . Leon Guillet.

Editions Dunod et E. Pinat , Paris. 1924. 

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a

b

Figura 1. Detalhes de lâminas de espadas de aço. a) Espada persa do século XVIII

mostrando microestrutura dendrítica após trabalho mecânico do aço Damasco; b)

Espada japonesa do século XVII mostrando três regiões distintas (2).

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Figura 2. Fractografia de rocha calcárea sedimentar e estratificada após fratura

(6,7).

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Figura 3. Mudança na topografia da superfície de fratura causada pela cementação e

conversão do ferro (núcleo) em aço (superfície) (5).

Figura 4. Primeira metalografia produzida por Sorby em 1863. Aumento de 9x.

Atacado com ácido nítrico diluído (2).

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Figura 5. Microestrutura de aço “Spiegeleisen”obtida por Martens em 1878 (11)