História Do Cerco de Lisboa - Dina Aparício

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    História do Cerco de Lisboa: - a arte de (re)ver

    Dina Aparício

    Resumo: Através da personagem Raimundo Silva, José Saramago guia-nos num processo derevisão das nossas mais profundas convicções como portugueses e como seres humanos, fazendo

    surgir em nós– e ganhar forma – uma atitude de questionação e consequente busca de respostassobre a história, o tempo, a existência e o ser. Raimundo, o acomodado revisor de texto que,num acesso de rebeldia refletida, escreve um “não” onde devia ler-se uma frase afirmativa,revoluciona a sua vida e a nossa mentalidade, mostrando-nos que nada é definitivo e que, emcada facto, há sempre tantas versões quantas as pessoas nele envolvidas.

    Palavras-chave: Saramago; cerco; Raimundo Silva; história; personagem

    O leitor procura, normalmente, o extraordinário nas primeiras páginas do livro cujaleitura principia. NaHistória do Cerco de Lisboa 1, o narrador surpreende-nos com o inesperado,ao iniciar o primeiro capítulo com as palavras: “Disse o revisor (p. 11).” Apercebemo-nos, evamos confirmá-lo ao longo do capítulo, que a personagem principal não é um herói romanescotradicional, caraterizado de forma completa e minuciosa nas primeiras páginas do romance.Como personagem modelada que é, vai-se revelando e evoluindo a cada momento da ação,

    progressivamente, consoante se confronta com novos desafios. O seu protagonismo, emboraainda vago, é-nos sugerido através da sua conversa com o autor que lhe entrega uma obra (umahistória do cerco de Lisboa) para revisão, em que são abordados procedimentos éticos exigidospela profissão de revisor. No diálogo entre revisor e autor, em que o narrador assume umaperspetiva testemunhal, recebemos as primeiras informações sobre este nosso herói, de quem, àprimeira vista, não sabemos o que esperar, mas que é, decididamente aquilo a que Saramagodesigna por “vidas desperdiçadas”, por ser uma “pessoa comum e corrente, aquela que passa e

    1 SARAMAGO, José (2008) – História do Cerco de Lisboa , 8ª edição, Lisboa, Editorial Caminho (A esta edição referem-se todas asposteriores citações, para que passam a remeter as páginas entre parênteses no texto.)

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    literatura, sim, e nada mais (p.16)”, preparando-nos para uma viagem no Tempo em que sãoabolidas as fronteiras entre passado e presente, real e imaginário, história e literatura.3

    A reforçar as nossas conjeturas iniciais, o narrador, depois de focalizar o espaço

    psicológico do revisor, em que começara a surgir a vida que a imaginação pode ler nasentrelinhas da história, alerta-nos para a sua capacidade de se desdobrar. Enquanto faz o seutrabalho de revisão da escrita, “heteronimiza-se” (p.22) e, à medida que lê, deixa-se envolver etransportar para dentro do que está a ler, transformando-se no outro (“[…] é capaz de seguir ocaminho sugerido por uma imagem, uma comparação, uma metáfora, não raro o simples somduma palavra repetida em voz baixa o leva, por associação, a organizar polifónicos edifíciosverbais que tornam o seu pequeno escritório num espaço multiplicado por si mesmo […].” – p.

    22). Constatamos, desta forma, a sua tendência para a efabulação e remetemo-la para avoluptuosidade que a sua alma encerra, algo que o narrador condena como “efabulaçõesocasionalmente irresponsáveis” (p. 23) que podem comprometer o bom desempenho de umrevisor escrupuloso, minucioso e responsável. É o mesmo narrador, na sua omnisciência, que,conhecendo já as fraquezas da personagem, nos diz que “o revisor é homem deste tempo” (p.24), sujeito, portanto, a cair em tentação - a questionar, a problematizar, aquilo que, nopassado, seria aceite como inquestionável. Os erros que chegam ao presente foram veiculados

    por uma ciência que se cria definitiva. Acumularam-se séculos de informação enganosa e orevisor, recordando a mãe e o seu “desassombrado ceticismo” (p.28), lembra-se das palavrasque ela lhe costumava dizer: “Quanto mais lês, menos aprendes.” (p. 28). Recorrendo a estamáxima popular, o narrador guia o leitor, preparando-o para os efeitos que o caráterquestionador do revisor vai ter no desenvolvimento da ação, ao mesmo que justifica o que sesegue – e que ele já tão bem conhece.

    Só então revela o nome da sua personagem– Raimundo -, acrescentando que “Era játempo de sabermos quem seja a pessoa de quem vimos falando indiscretamente, se é que nomee apelidos alguma vez vieram acrescentar proveito que se visse às costumadas referênciassinaléticas e outros desenhos, idade, altura, peso […]” (p. 31). Contudo, esta pouca importânciaque o narrador atribui ao nome da personagem é contrariada pela revelação do seu nomecompleto (Raimundo Benvindo Silva) que parece ter sido escolhido de forma bastante pensada.

    3 A “viagem no Tempo” a q ue nos referimos, remete- nos para a “metaficção historiográfica”, assim designada por LindaHutcheon (1991), surgida do questionamento caraterístico do pós- modernismo. A narrativa reflete a “autoconsciência teóricasobre a história e a ficção como criações humanas (1991: 21- 22)” e busca a sua “destotalização”, o que implica uma nova formade escrita: partindo do passado, surgem diversas perspetivas de focalização que nos fazem repensá-lo e reconhecê-lo como nãodefinitivo e permeável à subjetividade.

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    “Raimundo” é um nome de origem germânica, nobre, associado aos primórdios da nacionalidadeportuguesa (MACHADO, J. P., 1993: III, 1234);“Benvindo”, como nos explica o narrador,significa “bem vindo à vida” (p. 31), e “Silva”, apelido muito frequente em Portugal e na

    Galiza, logo, também referente aos alvores da nacionalidade (ibid , 1347). Um nomesignificativo, poderoso, uma fórmula mágica, que contrasta com a aparente discrição do revisore que preconiza a sua predestinação para atos maiores, ideia reforçada pela analepse em que onarrador nos conta as circunstâncias da escolha do seu segundo nome.4

    Raimundo Silva vive em Lisboa, perto do Castelo de S. Jorge, na Rua do Milagre de SantoAntónio5, numa casa pequena, antiga, que tem uma varanda para o rio, junto a uma antigapassagem da cerca moura. É um homem de hábitos arreigados, trabalha pela noite dentro, veste

    um coçado roupão de escocês, é friorento e adora torradas com manteiga– tão próximo daspessoas com quem nos cruzamos no quotidiano, com quem convivemos, em que nos revemos! Davaranda, contempla o exterior, “uma neblina fria tapa o horizonte” (p.32) e a sua imaginaçãoexacerba-se “perigosamente” (p.34), advérbio estrategicamente escolhido pelo narrador, queassiste à forma como a Lisboa moura, a sua atmosfera e habitantes começam a tomar conta daimaginação do revisor. A corrente de consciência da personagem, onde o narrador penetra e sedeixa fluir, completa-nos a caraterização de um homem de cinquenta anos, solitário, solteiro e

    sem família, em cuja casa só entra a mulher a dias, que, no mais secreto de si, revela aamargura proveniente da falta de afetos (“[…] quem é que me iria querer agora, ou a quem iriaeu querer, ainda que, como todo o mundo sabe, seja muito mais fácil querer do que ser querido[…].” – p. 34). A profundidade da sua solidão acentua-se quando a voz do narrador, fundida nopróprio sentir da personagem, confessa que “a única coisa que verdadeiramente sente próximade si é a prova que estiver a ler, enquanto dura, o erro que é preciso desemboscar, e também,quando calha, uma preocupação que não teria de ser sua […]” (p. 35). Por isso, se explica a sua

    dedicação ao trabalho, a ameaça da clareza de ideias pela imaginação que lhe turva os sentidose que o faz procurar as “babuchas”, em vez de “chinelas”. A pouco e pouco, conforme seenvolve no trabalho que tem em mãos, percebemos que cresce, na personagem, uma certaagitação, um desassossego. O narrador faz-nos prenunciar a iminência de uma mudança que setem vindo a anunciar. Depois de almoço– o costumado e frugal almoço -, antes de voltar aotrabalho, Raimundo vai à varanda e a névoa dissipava-se(“[…]foiver como estava o tempo,

    4 A escolha do nome “Benvindo” deveu -se à influência da madrinha, seguindo a tradição antiga em que os padrinhos escolhiamos nomes para os afilhados. Embora o nome não fosse muito do agrado dos pais, estes não se opuseram, pois a madrinha erarica e podia ser que, um dia, se lembrasse dele na herança.5 Não podemos deixar de considerar que o nome da rua adquire um significado intencional, pois Sto. António, além de padroeirode Lisboa, é conhecido como o “Santo casamenteiro”.

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    limpara um pouco, a outra margem dorio já começa a ser visível […]” – p. 38). Como podemosverificar, a personagem, inquieta, não consegue limitar-se ao espaço interior, ao espaço exíguoda casa, ao escritório. Precisa de ir à varanda que, segundo Maria Alzira Seixo (1999), simboliza

    a capacidade de visão do mundo, dos outros e de si mesmo. Contempla o rio, prolonga o olharpelo horizonte, com o que denuncia a vontade de sair de si, de quebrar os seus limites, deexperimentar uma nova liberdade. O espaço a que se confina inicialmente (a casa, onde sóentra a mulher a dias, e o escritório, onde não entra ninguém a não ser ele próprio) pode servisto como uma analogia da solidão que a personagem vive no início da narração. A pouco epouco, conforme vai crescendo interiormente, sentindo necessidade de se expandir e libertar,recorre ao espaço exterior, revelando a sua sede de ar puro, de um horizonte limpo, de umespaço aberto.

    O narrador movimenta-a no espaço consoante o seu estado emocional. Não deixa nada aoacaso, como se estivéssemos perante um filme em que o cenário é a extensão natural dapersonagem, a sua projeção. Em simultâneo, movimenta-se com ela. Ora se aproxima para aouvir e sentir, ora se afasta para a observar de longe, à semelhança dum ser invisível que estásempre presente, embora não se saiba exatamente onde, o que revela consciência do seu podercondutor da atuação das personagens. Temos, desta forma, um narrador testemunhal e

    omnisciente, “um demiurgo […] disfarçado de personalidade transitiva” (SEIXO, M. A.,1999:74)6.

    A existência de Raimundo, enquanto personagem, conquista um novo rumo, no momentoem que, saturado de estar a rever uma história mal contada, pobre no relato e comincongruências no conteúdo, decide, num ato de rebeldia e após uma acesa luta entre Dr. Jekille Mr. Hyde - o seu lado bom e o seu lado demoníaco, respetivamente -, escrever um “não”,tornando negativa a frase afirmativa que dizia que os cruzados auxiliariam os portugueses aconquistar Lisboa. Com este seu ato, condenável à luz da ética, “passou a ser verdade, aindaque diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou oseu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como.” (p.50) De imediato, a sua vidamuda como que por artes mágicas, “a partir de hoje viverá para o momento” (p. 51).

    Depois de, conscientemente, ter entregado ao Costa as provas revistas , Raimundoprepara-se para sair e o narrador conduz-nos até à casa de banho, à intimidade da personagem,

    6 Esta dualidade é acentuada pela polifonia do ritmo discursivo que omite o sistema de pontuação da norma linguística. Comose tudo na narrativa estivesse submetido a um conhecimento original e total, profético e quase divino. (SEIXO, M. A., (1999: 87).

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    que “[…] foge de olhar-se a direito no espelho, hoje vive arrependido de ter decidido pintar ocabelo” (p. 56), revelando-se cansado de si e dos seus próprios artifícios. Na sequência destaconfissão, reflete sobre a sua capacidade de continuar a rever trabalhos de História (“[…] oxalá

    não me saia uma História de Portugal completa, que não faltariam nela outras tentações de Sime de Não, ou aquela, quiçá ainda mais sedutoramente especulativa, de um infinito Talvez quenão deixasse pedra sobre pedra nem facto sobre facto.” – p. 56), e constata, aliviado, que é“apenas um romance entre os romances” (p. 56), pois dada a sua natureza ficcional, deixasempre questões em aberto, propícias à divagação, à postura cética, que nos obriga,continuamente, a repensarmo-nos, a nós, assim como ao mundo em que vivemos. Através dapersonagem, recorrendo ao monólogo interior, o narrador apresenta-nos as suas reflexõesacerca do papel que a escrita do romance assume na vida do homem (“Só não acabou ainda deaveriguar se é o romance que impede o homem de esquecer-se, ou se é a impossibilidade doesquecimento que o leva a escrever romances” – p. 56), tornando-se ela a oportunidade de uma“aventura existencial e ontológica” (ALVES, M. T. A., 2002: 170). A quebrar o tom introspetivocom que se ocupa no tratamento da personagem, o narrador, de súbito, focaliza Raimundo doexterior e refere- se aos seus hábitos de homem solitário que “tem […] o hábito higiénico deconceder-se a si mesmo um dia de liberdade, quando termina uma revisão” - p.57) No entanto,desta vez, o programa será diferente. Chegará tarde a casa, pois começa a sentir-seatormentado pelas prováveis consequências que o seu ato ousado terá. Imagina a deceção queprovocará nos outros, no Costa, no autor, na editora. Hesita. Ainda pondera ir à tipografia,evitar que concluam o trabalho, para, de seguida, reconhecer, que “a ponderação é fingimento,aparência apenas, […] representa para si mesmo um debate cuja conclusão é de antemãoconhecida.” (p. 59) Então, durante o passeio que devia ter como finalidade desanuviar, a Lisboamoura parece espreitá-lo em cada recanto, num processo narrativo em que realidade eimaginação se entrelaçam, invadindo a perceção da personagem, sem, contudo, a agredir.Raimundo deixa-se embalar pela forma como passado e presente dialogam entre si e decidefazer o itinerário do traçado da cerca moura, o que possibilita a germinação da metamorfoseque, mais adiante, se vai verificar, quando o revisor se transforma em autor. Ali, “juntam-se ostrês fantasmas, o do que foi, o do que esteve para ser, o do que poderia ter sido, não falam,olham-se como se olham cegos, e calam” (p. 74), constatação que nos permite avaliar overdadeiro papel desta personagem como intermediária entre a voz do autor/narrador e oleitor/narratário, fazendo crescer em nós o desassossego que perpassa o revisor, ao mesmo

    tempo que desperta a relatividade da história, do tempo e da verdade (“[…] hoje não se pode

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    averiguar e impede que saibamos, desde já, se Raimundo Silva é um sitiado ou um sitiante,vencedor futuro ou perdedor sem remédio” – p. 75).

    Ao fim de treze dias– número aziago que leva a temer o pior7 -, Raimundo é chamado à

    editora. Não sabe muito bem como reagir, nem sabe o que sente. Socorre-se da literatura edaquilo que ela tem da vida, para construir uma postura adequada ao momento(“[…] o seu arde vítima resignada tempera-se com uma viril tristeza, é o que mais se encontra nos romancesde personagens, revendo aprende-se muita coisa” – p. 79). Enquanto espera pela hora, peganum “livro delgadinho de poemas” (p. 79), como se a poesia, a liberdade pura e transparente dapalavra, o pudesse ajudar a encontrar-se no meio do turbilhão de incertezas para onde odestino8 o arrastou.

    Para a audiência, esperam-no três pessoas: - o diretor literário, o diretor de Produção euma mulher, a quem tenta observar discretamente. Perante esta tríade, Raimundo assume aintencionalidade do ato e a mulher, que, no início da conversa, não tinha feito qualquerintervenção, começa a parecer-lhe um leão que “coça distraidamente a juba com uma unhapartida” (p. 84), intensificando-lhe o mal-estar, um sentimento de insegurança, devido àsegurança que lhe transmite. É esta mulher que lhe exige uma explicação plausível,desconcertando-o e deixando-o estranhamente inquieto quando se decide a olhá-la com maisatenção. Perdido na sua perturbação, conta-lhe a verdade, deixa cair a construção em que serefugiara, o que lhe dá um sentimento de desproteção e revolta. Ao regressar a casa, sente frioe veste várias camadas de roupa como se vestisse uma armadura, “não é só pelo frio que faz, épelo frio que sente”(p. 91) e o narrador insiste no esforço que a personagem faz para nãopensar (“[…] aprendeu a arte de fazer flutuar ideias vagas, como nuvens que se mantêmseparadas, e sabe mesmo soprar qualquer uma que se aproxime demasiado, o que é preciso éque não se encostem umas às outras criando um contínuo […]” – pp.91-92). Numa tentativa dese dissolver no éter, tira o som à televisão e deixa-se flutuar na confusão de cores e figurashumanas que desfilam, sem sentido, em frente aos seus olhos. Volta a ligar o som, quando lhesurge Leonard Cohen no ecrã, parecendo desafiá-lo, o que não é uma simples coincidência.Leonard Cohen, o cantor-poeta-monge-filósofo, canta a vida, o amor, a sabedoria, o encontrocom a nossa essência, uma personalidade que marcou uma geração– a de Raimundo– e continuaa divulgar uma mensagem de luz e harmonia (“[…] o gesto de Leonard Cohen foi como se

    7 Estratégia do narrador que, conhecendo o desfecho da ação, joga com a antecipação do narratário.8 Ao longo da obra, o destino é uma presença constante, que parece dispor as personagens e os acontecimentos como se nadafosse ao acaso. Outra estratégia do narrador que, assim, afirma o seu poder omnisciente, ao mesmo tempo que, aos olhos donarratário, se apaga, intercalando luz e sombra.

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    agradecesse, agora podia cantar, e cantou, disse as coisas que diz quem viveu e se perguntaquanto e para quê, e, tendo feito as perguntas todas se acha sem resposta, uma só que fosse, éo contrário daquele que afirmou um dia que as respostas estão todas por aí e que nós não temos

    mais que aprender a fazer as perguntas” – p.93). Na verdade, Raimundo continua a surpreender-nos, porque verificamos nele uma abertura espiritual e uma necessidade de algo superior,traduzidas pela impressão que lhe causa o aspeto da saleta -“interior, tornou-se de repentenoite negra” (p. 93), ao confrontar-se com a sua realidade.

    Concentra-se, agora, na revisão do livro de poesia anteriormente mencionado. Docontacto próximo com a linguagem poética, a expressão mais profunda da alma, surgem ospensamentos do homem que há em si, do ser afetivamente carente que procura o seu sentido no

    outro. Recorda a mulher da editora, a conversa quase a despique, que o deixou com a sensaçãode existir entre eles “um rancor velho” (p. 95), que, narrativamente, nos sugere a ideia dacircularidade do tempo, da predestinação, dos encontros e reencontros, conceitos que as nossasmentes humanas, tão materializadas, muitas vezes pressentem e se esforçam por vislumbrar. Aquebrar a monotonia da sua existência, a atmosfera densa da sua vida rotineira, surge a imagemdaquela mulher nova, que desperta nele o homem adormecido… E dá-se a metamorfose, “sentiucalor apesar de não ter o aquecimento elétrico ligado, desatou o cinto do roupão, levantou-se

    da cadeira” (p.96), inesperadamente revigorado. A casa parece-lhe, de repente, pequena e,cinematograficamente, dirige-se à janela aberta donde contempla “as três vastidões, a dacidade, a do rio, a do céu” (p. 36), momento bastante significativo na evolução da personagem,se entendermos as “três vastidões” como um símbolo daunidade cósmica: - a cidade,representando a realidade material do homem; o rio, a passagem do tempo e da vida; o céu, otranscendente, o humanamente inexplicável. Daqui, desta epifania, Raimundo, parte para aaceitação da premência de conhecer o nome daquela mulher que, mesmo desconhecida, já se

    tornou o seu destino. De regresso ao escritório, procura no dicionário o nome que poderia ser odela e, sem saber, adormece “com o dedo sobre o nome de Maria” (p. 97), o que o narradorcomenta num tom sabido e quase matreiro: “[…] sem dúvida de mulher, mas a-dias, comosabemos, o que não exclui a hipótese duma coincidência, num mundo onde elas são tão fáceis.”(p.97)

    Descobre que se chama Maria Sara, quando a telefonista da editora lhe telefona aconvocá-lo para uma reunião com a sua nova superiora hierárquica. Serena e segura, Maria Sara

    marca uma conversa para o dia seguinte, contrastando a sua atitude com a crispação deRaimundo, reveladora de um machismo recalcado, ainda latente. Nessa noite, choveu e a água

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    acabou o processo de purificação iniciado pela epifania anterior. Em pânico, depois de um sonoagitado, decide pintar o cabelo, aquilo que “ele próprio considerava uma lastimável operação.”(p. 103) O resultado final não lhe agrada. Causa-lhe uma impressão desagradável, de uma

    artificialidade com que deixou de se identificar, ao comparar o tom do seu cabelo com o deMaria Sara (“[…] mas agora seria impossível comparar os tons de um e do outro, de natureza anatureza, porque o de Raimundo Silva apresenta-se com uma cor uniforme que lembrairresistivelmente uma peruca desbotada e roída de traças, esquecida e outra vez achada numsótão, de confusão com antigas imagens, móveis, adornos, pechisbeques, as máscaras de outrotempo” – p. 103). Ansioso, apressado, “a bufar, no pior estado de espírito desejável para umencontro em que iriam discutir-se responsabilidades novas” (p. 104), depara-se, uma vez mais,com a serenidade de Maria Sara e constata, envergonhado, que ela não pinta o cabelo.Sentindo-se enfeitiçado, vê a sua interlocutora, não como um leão, mas como uma “cobra-capelo, pronta a lançar o último e definitivo bote.” (p.105) Teme-a e receia este sersurpreendente e desconhecido que, para ele, é a mulher, mas logo percebe que não tem razãopara isso, pois ela “em tom de voz natural, sem nenhuma intonação particular, deliberadamenteneutra” (p. 105), mostra ser o seu oposto em matéria de autocontrolo e determinação, aoentregar-lhe o único livro revisto que não tem errata, o que o confunde e lhe despertadesconfiança. Maria Sara, depois de uma conversa que nos faz lembrar uma dança de sedução,propõe-lhe que (re)escreva, à sua maneira, a história do cerco de Lisboa, romanceando,efabulando, a partir do Não que ele, tão decidida e conscientemente, acrescentara na outra. Aideia pareceu-lhe absurda, apesar da doutora lhe dizer que “o Não que naquele dia escreveuterá sido o ato mais importante da sua vida” (p. 110) e, ao retirar-se, “compôs a gabardina quenão chegara a despir” (p.110), sugerindo esta sua atitude a postura tradicional e defensiva queresiste em abandonar. Fica-lhe, na mente, a blusa de seda “branco-manhã” da doutora que osseus dedos desejam tocar.

    De novo, referência à chuva. Raimundo, homem antiquado e pouco dado a progressos,sonha, como um adolescente, que a doutora lhe vai dar boleia, que “é pessoa moderna edespachada” (p. 111). Distraído com os seus pensamentos, revolta-se consigo próprio, ao verMaria Sara sair acompanhada. Sente ciúmes e afasta-se, construindo, na sua cabeça, a conversaque ela e o acompanhante poderiam ter sobre ele. A imagem que temos de nós é aquela quepensamos provocar nos outros. Essa é a verdadeira fragilidade de Raimundo– e a nossa,

    também! Encharcado, em desespero, uma vítima do temporal. “A salvo só o livro, entre casacoe camisa”, uma curiosa intertextualidade com a biografia de Camões que salva, a nado,Os

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    Lusíadas . Raimundo protege a sua obra, revela o instinto de proteção do criador. Chegado acasa, constata a mudança operada em si (“[…] dera, no seu espírito, por uma curiosa impressãode estranheza, como se, experiência só imaginária, tivesse acabado de chegar de uma larga e

    demorada viagem por terras distantes e outras civilizações” – p. 113). A casa parece-lheapertada e estranha, mas, no quarto, contempla o seu livro e “penetra-o uma sensação deplenitude” (p.114). Volta à janela e, no ímpeto de ver a Lisboa moura, abre-a de par em par,“alguns borrifos salpicaram-lhe a cara, o livro não, porque o protegera” (p. 116), uma vez mais,como se quisesse assegurar a permanência dasua verdade que, finalmente, se decide contar.

    Disperso em divagações, o narrador, de forma quase humorística, perde a sua personagemde vista e volta a encontrá-la, heroicamente, “a despejar no lava-louças da cozinha a

    benemérita loção restauradora com que tinha vindo a mitigar os estragos do tempo” (p. 121),procurando apagar os vestígios da artificialidade que a limitava. Antes de se deitar, abriu ajanela para arejar o quarto, a cama, os lençóis, a sua própria essência e o que sonhou, nemmesmo o narrador sabe definir (“[…] fragmentos só, imagens insensatas aonde a luz não chega,indevassáveis até para os narradores, que as pessoas mal informadas acreditam terem todos osdireitos e disporem de todas as chaves, se assim fosse acabava-se uma das boas coisas que omundo ainda tem, a privacidade, o mistério das personagens” – p. 121)9.

    Raimundo torna-se, então, autor, ao perguntar-se “Que vou eu escrever, e depois esperaruma resposta, […] Por onde devo começar” (p.123) e torna-se porta-voz do autor/narradoratravés da sua corrente de consciência, em que as vozes se misturam e se referem, emuníssono, ao processo da criação literária, ao nascimento de uma ficção e, neste caso, aosproblemas subjacentes à imprecisão e subjetividade das fontes. O revisor assume-se como autorno momento em que concretiza a sua “heteronimização”, quando se transporta para a história ese coloca no lugar dooutro , enveredando pelo fingimento como processo de criação(“[…] porum salto acrobático, por um esforço de identificação com a mentalidade de gente com taisnomes, origens e atributos, sentir manifestar-se em si próprio uma cólera, uma indignação, umdesagrado […]” – p. 128).

    A metamorfose de Raimundo acelera-se. A personagem (re)vê-se à medida que (re)vê ahistória. A gabardina, que era a sua proteção, lembra-lhe a “pele dum animal morto” (p. 131) ecausa-lhe desconforto, fazendo-o, pela primeira vez ao longo da ação, repensar a sua própria

    9 Este comentário do narrador tem a dupla função de nos revelar a essência criativa da ficção e lembrar-nos que, por mais real apersonagem de Raimundo nos pareça, não é mais do que uma personagem.

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    indumentária, o que significa que se despiu do seu velhoeu . Quanto mais escreve, mais pensaem Maria Sara e a ela associa o “branco-manhã” da blusa, uma cor “que não existe na naturezaverdadeiramente” (p. 131), mas que, ao simbolizar a pureza e o recomeço, nos faz concluir que

    a existência não é composta apenas de materializações concretas, mas também das vivências eexperiências da sensibilidade humana. Ao observar os cabelos brancos de um reformado quefrequenta a leitaria, discorre sobre um antitético “branco-crepúsculo” e deseja ver os seuspróprios cabelos brancos, para“conhecer a sua verdadeira cara” (p. 132). De novo, percorre oespaço da Lisboa moura. Aproxima-se da ação e aproxima-se de si próprio, passando de homemcomum a estrela do seu próprio filme (“[…] o revisor experimenta uma forte sensação deridículo, tem consciência da sua postura cénica, melhor dizendo, cinematográfica, a gabardina émanto medieval, os cabelos soltos plumas, e o vento não é vento, mas sim corrente de arproduzida por uma máquina.” – p.135). A criatura torna-se criador, a personagem torna-seautor.

    A ação passa a assumir contornos diferentes. Centra-se exclusivamente em dois núcleos: -a (re)escrita da história do cerco de Lisboa e a história de amor entre Raimundo e Maria Sara oque nos obriga a uma nova perspetiva de análise da personagem. Raimundo tem dois desafiospara enfrentar e vencer. O primeiro, a sua ficcionalização da história. O segundo, o “cerco” à

    mulher que ama. O ato de escrever torna-o mais confiante e permite-lhe reagir de formapositiva à naturalidade com que Maria Sara, sendo mulher, toma a iniciativa de conduzir arelação de ambos, incentivando-o a revelar-se como homem, ajudando-o a melhorar a suaautoestima, a tornar-se mais autoconfiante, em suma, uma pessoa melhor, que floresce a cadadia que passa e se revela mais grandiosa nos gestos mais simples.

    A caminho de um encontro com Maria Sara, Raimundo comove-se com o cão esfomeadoque ronda as Escadinhas de S. Crispim. Num gesto de generosidade, volta a casa, arriscando-se achegar atrasado, traz comida para o animal e perturba-se com o “espetáculo miserável […] queo destino [lhe] oferece” (p. 162). Leva consigo as provas definitivas do livro de poesia– maisuma vez, a poesia a aproximá-lo da vivência plena– e, no elevador, é assaltado por “sugestõeseróticas” (p. 165), reveladoras da necessidade dooutro . O (re)encontro com Maria Sara enche-ode luz, de brilho, de movimento, como se regressasse a si próprio. Diz-nos o narrador que, “porimpossível que pareça Raimundo Silva conhece tudo desta seda, o brilho, o mover brando dotecido, as flutuantes pregas, como areia dançando[…]” (p. 169).A sensibilidade de Raimundo

    manifesta-se quando, num gesto espontâneo, toca a rosa branca que está em cima da secretáriada doutora. Ele ruboriza-se e deseja fugir. Ela ruboriza-se, tocada na sua “escondida

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    intimidade, daquelas da alma, não do corpo” (p. 171), mas retoma a sua tranquilidade eoferece-lhe boleia. Inicia-se aqui um relacionamento que, para ambos, embora ainda não otenham verbalizado, é inevitável.

    Raimundo escreve no quarto, ao lado da janela, resultado da sua decisão de separar acriação – algo íntimo e pessoal– da revisão de textos alheios, de que se ocupa no escritório. A(re)escrita tem de ser feita “às claras, com a luz natural caindo sobre as suas mãos, sobre asfolhas de papel, sobre as palavras que forem nascendo e ficando” (p. 181), identificando-se comum profundo processo de (re)conhecimento. Raimundo, como escritor, pretende reconhecer ovalor do povo anónimo na construção da história10, pelo que dá protagonismo a Mogueime, umdos soldados de D. Afonso Henriques e um dos verdadeiros atores da História. A sua urgência

    pela proximidade física de Maria Sara fá-lo interromper a escrita para ir comprar uma rosabranca para pôr na sua mesa de trabalho, como se, assim, a tivesse junto de si. Maisacompanhado, volta à sua tarefa e tanto se embrenha que se esquece do cabelo, conseguindofingir que não vê as raízes brancas que crescem, mas o pânico volta-lhe ao saber que tem de ir àeditora. Contudo, Maria Sara não está– adoeceu - e ele sente-se aliviado, sinal de que ainda nãose libertou dos seus medos, que ainda não conquistou o seu verdadeiroeu. Com algumacoragem, pede o número de telefone da doutora à telefonista, mas não lhe consegue ligar, por

    medo, por pudor, por receio da rejeição. Debate-se com os seus dois cercos e sente-se cercado,em conflito interior. Sente-se poderoso, porque cria a ficção, (re)cria a história, mas, por outrolado, está fragilizado, incapaz de lidar com os seus sentimentos (“[…] foi homem, dizemos, paraelaborar as táticas mais convenientes à ingente tarefa de cercar e conquistar Lisboa, mas agorapouco lhe falta para que se arrependa do momento de audácia louca em que cedeu à vontadedo outro, e vai ao ponto de procurar nos bolsos o papel onde tomou nota do número, não parautilizá-lo, mas com a esperança de o ter perdido” – p. 223). Percebemos que está

    irremediavelmente apaixonado, pois os sintomas do amor já se lhe manifestam fisicamente:“[…] começou a sentir o seupróprio corpo, o que nele estava a acontecer, primeiro ummovimento de sismo lento, quase impercetível, depois a palpitação brusca, repetida, urgente”(p. 225). A sua vida começa, então a projetar-se na história que está a escrever. Cria Ouroanapara Mogueime, transpondo para as páginas que escreve os ecos dos momentos e dos anseiosque vive. O nascimento do amor na história que (re)conta é um reflexo do amor que nasce nasua vida, como se, ao ser criador, tivesse o poder de o direcionar, de o encaminhar, de lhe dar

    um desfecho feliz. Maria Sara telefona-lhe e ele interroga-se sobre a razão. Coloca a hipótese10 Uma caraterística do romance pós-moderno, muito visível na obra de José Saramago.

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    de ela lhe querer declarar o seu amor, ideia que põe de parte e o faz sentir ridículo. Comocomenta o narrador, o revisor “encontra-se numa interessante situação, a de quem, jogandoxadrez consigo mesmo e conhecendo de antemão o resultado final da partida, se empenha em

    jogar como se o não soubesse” (p. 233). Consciente do poder de decidir na obra, decidetambém na vida e telefona a Maria Sara. Estabelecem um diálogo socrático, orientado por ela,em que o confronta consigo próprio, fazendo-lhe perguntas. Vencidos os obstáculos que residiamno seu interior, nos seus preconceitos, declara-se, atingindo um novo– e mais alto – patamar dedesenvolvimento pessoal. Passo a passo, Raimundo afasta-se abismalmente daquilo que foi, parair ao encontro daquilo que é, da sua unidade que não se integra no nosso conceito de tempo(“Não juremos sobre o futuro, esperemo-lo para ver se ele nos reconhece […].” – p.239)

    O narrador, perante esta união de destinos, reconhece ambos como “personagensprincipais”, interligadas, o sentido de uma inseparável do sentido da outra. A mudança emRaimundo torna-se sólida, confirmada pelo narrador: “[…] é um homem novo que sai doescritório e se dirige ao quarto, e que olhando-se num espelho não se reconhece, porém, tãoconsciente de ser isto que aqui está, que ao reparar na linha branca da raiz dos cabelos se limitaa encolher os ombros, com uma indiferença que é real” (p. 241). É estehomem que vai comprarquatro rosas brancas. Duas para ele e duas que manda entregar a Maria Sara. O homem que

    deixou de se esconder e que, através das rosas, metaforiza uma união pura e verdadeira. Aamada agradece-lhe o gesto com as palavras que selam o desejo de eternidade: “Ninguémdeveria poder dar menos do que deu alguma vez, não se dão rosas hoje para dar um desertoamanhã” (p. 245).

    Maria Sara conhece, por fim, a casa de Raimundo. Ao abrir-lhe as portas do espaço físicoque habita, abre-lhe as portas da sua vida e, caraterizando-se diretamente, conta-lhe aspetos(triviais) da sua vida que ela já conhecia por outrem. Comenta com ela, como que a justificar-se, que deixou de pintar o cabelo e ela confessa-lhe que começou a pintar o dela, por causadele. Ele para ser como é, ela para continuar a ser assim. Os efeitos da felicidade manifestam-se no semblante de Raimundo que “parecia muito mais novo feliz” (p. 268). Quando fazem amorna cama em que, depois da visita de Maria Sara, Raimundo não conseguiu dormir, desmorona-seo muro invisível que cercava o seu verdadeiroeu , “para além dele ficava a cidade do corpo,ruas e praças, sombras, claridades, um cantar que vem não se sabe donde, as infinitas janelas, aperegrinação interminável” (pp.293-294). Coma presença de Maria Sara, “subitamente tudo

    ganhara um ar de irrealidade” (p. 298). O espaço físico, embora sendo o mesmo, adquire umadimensão psicológica, emocional, quase fantástica e as personagens movem-se, lá dentro, com a

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    mesma leveza que sentem dentro de si. A nossa perceção do espaço equivale à perceção quetemos de nós próprios, como se pode verificar no contraste entre a imagem que Raimundo temde si (“Este tipo magro e sisudo, com os seus cabelos mal pintados, vivendo fechado em casa,

    triste como um cão sem dono[…]” – p. 299) e a forma como Maria Sara o vê e sempre o viu (“Umhomem que me agradou logo que o vi, um homem que fizera deliberadamente um erro ondeestava obrigado a emendá-los, um homem que percebera que a distinção entre não e sim é oresultado duma operação mental que só tem em vista a sobrevivência […]” – p. 299).

    O amor é o fim do cerco, a forma de vencer as barreiras que colocamos a nós próprios, aforma de nos sublimarmos e retomarmos a nossa unidade primordial. A vida humana é umaguerra constante e, num mundo em que as máscaras se sobrepõem umas às outras para

    ocultarem a essência, há que saber dizer Não (“[…] abençoados os que dizem não, porque delesdeveria ser o reino da terra” – p. 330). Como afirmou José Saramago, “entendo o tempo comouma grande tela, uma tela imensa, onde os acontecimentos se projetam todos, desde osprimeiros até aos de agora mesmo” (REIS, 1998: 80).

    Raimundo Silva, personagem pós-moderna, surgida da normalidade do quotidiano em quetodos nos revemos, viaja pelo tempo e pela história, buscando o sentido da sua própriaexistência e da sua mutalibidade, permitindo-nos uma leitura dialógica com o existencialismo deJean-Paul Sartre (NETO)11. Sujeito fragmentado, imprevisível, compartimentado em recantossecretos, inacessíveis e inexplicáveis, em transformação contínua, projeta o homemcontemporâneo que se confronta com a multiplicidade de identidades que coexistem em si. Abusca pessoal implica a (re)visão do percurso coletivo do corpo social em que oeu se integra. Asua redenção pelo amor transmite-nos a crença no homem e no futuro (SEIXO, M. A., 1999: 47) eexprime a necessidade de uma “pedagógica peregrinação nas incertezas do conhecimento”(ibidem , 51). Esta personagem afasta-se drasticamente dos modelos românticos tradicionais,marcados pela excecionalidade, assim como das personagens naturalistas, criadas em ambientelaboratorial, cujos comportamentos eram explicados à luz da ciência positivista. Assume umpapel de responsabilidade ao veicular a mensagem do autor/narrador, que nos alerta para aimportância da ficção na construção de uma sociedade mais humana, apelando à tolerância12 e

    11 Consideramos que José Saramago adota o engagement sartriano que defende o compromisso no escritor no desvendar dohomem e do mundo. Ao mesmo tempo, Sartre, na obra O Ser e o Nada , levanta questões como a busca de sentido da existênciae a liberdade de escolha como condição essencial para a concretização do processo de autoconhecimento. Raimundo Silva é aincarnação, enquanto personagem, dessa busca.12 Ao longo da obra, sentimos simpatia pelos mouros e, independentemente de sermos portugueses e reconhecermos aimportância do cerco de Lisboa na consolidação da nacionalidade, deparamo-nos a desejar que consigam resistir e superar osportugueses.

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    a uma maior espiritualização da sociedade, em detrimento do materialismo cego e desmedido,que nos faz prever a cegueira coletiva da humanidade.Como refere Maria Theresa Alves, “aarte que não é inerte suscita caminhadas” (2002: 166) e a maior caminhada é aquela que se

    pode fazer no nosso interior, impulsionada pelo desejo de ver a luz e diluir os espaços sombriosque nos impedem de aceder a uma vivência liberta e consciente.

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    Bibliografia Ativa

    SARAMAGO, José (2008)– História do Cerco de Lisboa , 8ª edição, Lisboa, Editorial Caminho.

    Bibliografia Passiva

    CÉU E SILVA, João (2009)– Uma longa viagem com José Saramago , 1ª ed., Porto, Porto Editora.

    HUTCHEON, Linda (1991)– Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção , [trad. Ricardo

    Cruz], Rio de Janeiro, Imago.

    MACHADO, José Pedro (1993)– Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa , 2ª ed., Lisboa, Horizonte/Confluência, vols. I e II.

    REIS, Carlos (1998)– Diálogos com José Saramago , Lisboa, Editorial Caminho.

    REIS, Carlos (2006)– Figuras da Ficção , [coord.], Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa.

    REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. (1994)– Dicionário de Narratologia , 4ª edição, Coimbra,Almedina.

    SEIXO, Maria Alzira (1999)– Lugares da Ficção em José Saramago , Lisboa, Imprensa Nacional -Casa da Moeda.

    Recursos Online:

    ALVES, Maria Theresa Abelha (2002)– “Moderno e Pós-Moderno em diálogo na literaturaportuguesa”, in Légua & Meia: Revista de literatura e diversidade cultural, Feira de Santana,UEFS, nº1, pp. 162-173, disponível em:http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://leguaemeia.uefs.br/1/1_162_moderno.pdf

    CARREIRA, Shirley de Sousa Gomes– “A (des)construção da identidade nos romances de JoséSaramago”, disponível em:http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:sTHAOxbHZwYJ:alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/shirley02.rtf+A+(des)constru%C3%A7%C3%A3o+da+identidade&cd=2&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=pt&source=www.google.pt CINTRA, Agnes Teresa Colturato– “Auto-intertextualidade em romances de José Saramago:notas sobre a relação entre narrador e personagem”, disponível em:http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/008/AGNES_CINTRA.pdf

    FERREIRA, Marina Couto– “Para Além do Cerco: Uma (re)leitura da História por José Saramago”,disponível em: http://www.mel.ileel.ufu.br/pet/amargem/amargem1/estudos/MARGEM1-E40.pdf

    KUNTZ, Maria Cristina Vianna– “A metaficção historiográfica emHistória do Cerco de Lisboa ”,

    disponível em: http://www.letras.ufmg.br/cesp/textos/(2002)07-A%20metaficcao.pdf MATIAS, Filipe dos Santos e ROANI, Gerson Luís– “História do Cerco de Lisboa : As fontes

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    medievais de José Saramago e a transfiguração literária da história”,disponível em:

    http://intranet.ufsj.edu.br/rep_sysweb/File/vertentes/Vertentes_32/felipe_e_gerson.pdf

    MELLO, Cláudio José de Almeida– “A ideologiapós-moderna em romances históricoscontemporâneos, pela perspecttiva do materialismo histórico dialético”, disponível em:http://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/comunica%E7%F5es/GT2/gt2m4c5df

    NETO, Pedro Fernandes de Oliveira– “Para além do escrito, a literatura como arte «engagée» -Diálogos possíveis entre José Saramago e Jean-Paul Sartre”, disponível em:http://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT22/para%20anais%20da%20semana%20de%20humanidades.pdf

    RIBEIRO, Rejane de Almeida– “Aspectos dos romances históricos tradicional e pós-moderno”, disponível em: http://www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao1/74-81__rejane_de_almeida_ribeiro%5B1%5D.pdf

    ROANI, Gerson Luís– “Alguém teria que vir contar a história nova”, disponível em:http://www.dla.ufv.br/glauks/01/cap03.pdf

    VENTURA, Susana Ramos– “História do Cerco de Lisboa e As Duas Sombras do Rio –doisprotagonistas em busca de uma história”, disponível em:http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/view/7193/5204

    http://intranet.ufsj.edu.br/rep_sysweb/File/vertentes/Vertentes_32/felipe_e_gerson.pdfhttp://intranet.ufsj.edu.br/rep_sysweb/File/vertentes/Vertentes_32/felipe_e_gerson.pdfhttp://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/comunica%E7%F5es/GT2/gt2m4c5.pdfhttp://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/comunica%E7%F5es/GT2/gt2m4c5.pdfhttp://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/comunica%E7%F5es/GT2/gt2m4c5.pdfhttp://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT22/para%20anais%20da%20semana%20de%20humanidades.pdfhttp://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT22/para%20anais%20da%20semana%20de%20humanidades.pdfhttp://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT22/para%20anais%20da%20semana%20de%20humanidades.pdfhttp://www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao1/74-81__rejane_de_almeida_ribeiro%5B1%5D.pdfhttp://www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao1/74-81__rejane_de_almeida_ribeiro%5B1%5D.pdfhttp://www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao1/74-81__rejane_de_almeida_ribeiro%5B1%5D.pdfhttp://www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao1/74-81__rejane_de_almeida_ribeiro%5B1%5D.pdfhttp://www.dla.ufv.br/glauks/01/cap03.pdfhttp://www.dla.ufv.br/glauks/01/cap03.pdfhttp://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/view/7193/5204http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/view/7193/5204http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/view/7193/5204http://www.dla.ufv.br/glauks/01/cap03.pdfhttp://www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao1/74-81__rejane_de_almeida_ribeiro%5B1%5D.pdfhttp://www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao1/74-81__rejane_de_almeida_ribeiro%5B1%5D.pdfhttp://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT22/para%20anais%20da%20semana%20de%20humanidades.pdfhttp://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT22/para%20anais%20da%20semana%20de%20humanidades.pdfhttp://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/comunica%E7%F5es/GT2/gt2m4c5.pdfhttp://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/comunica%E7%F5es/GT2/gt2m4c5.pdfhttp://intranet.ufsj.edu.br/rep_sysweb/File/vertentes/Vertentes_32/felipe_e_gerson.pdf