História e imagem

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Ótimo para quem trabalha a amemória por meio da iconografia

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  • Histrica Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 61, maio 2014

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    H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DE SO PAULOHistrica Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 61, maio 2014

    PRXIMA EDIO

    O prximo nmero da revista Histrica Online ser dedicado s comunicaes produzidas para o evento So Paulo e suas guas: passado e presente, realizado em maro de 2014 no Arquivo Pblico do Estado de So Paulo. Na ocasio, os palestrantes abordaram questes como a situao passada e presente dos rios em So Paulo, seu papel na histria da cidade, e os atuais problemas relaciona-dos ao tema, da impermeabilizao do solo poluio das guas.

  • Histrica - A Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 56, nov. 2012

    H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DE SO PAULOHistrica Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 61, maio 2014

    Editorial

    VESTGIOS DA ESCRAVIDO

    Presente na maior parte de nossa histria, a escravido um dado fundamental na forma-o da sociedade brasileira. Da a necessidade de ampliar o estudo do fenmeno que atravessou quatro sculos e deixou marcas profundas na economia, cultura e poltica nacionais. Nos ltimos tempos, historiadores e estudiosos de Cincias Humanas em geral tm se dedicado com mais afinco a esta pesquisa. Isso implica preencher lacunas do conhecimento, ao mesmo tempo em que se puxam novos fios da meada, que podem levar a aspectos inditos do tema. Como conse-quncia deste processo, surge a possibilidade de pensar as marcas que a escravido deixou no Brasil.

    Neste nmero da Revista Histrica Online, expomos vrios caminhos tomados pelos pesqui-sadores interessados no tema. A sade dos escravos no perodo anterior Abolio; as irmanda-des onde eles se organizavam para garantir algum espao dentro da sociedade; as imagens dos negros de ganho captadas por Christiano Jnior, um dos pioneiros da fotografia no Brasil; e a experincia do trabalho escravo coexistindo com o trabalho livre dentro de uma indstria, a Real Fbrica de Ferro So Joo de Ipanema, esto entre os assuntos que os articulistas dessa edio levantam, demonstrando a variedade de caminhos de pesquisa que podem ser seguidos para en-tender melhor a escravido no Brasil. Um outro caminho, alis, o estudo da escravido em Cabo Verde, com muitos pontos de contato com a realidade brasileira.

    Alm dos artigos, essa edio da Histrica Online mostra o trabalho feito no Arquivo Pbli-co para restaurar, digitalizar e difundir um importante acervo da escravido: a coleo do jornal Redempo, um dos principais veculos do movimento abolicionista em So Paulo. Redempo foi publicado de 1887 a 1899, e a coleo que est sob guarda do Arquivo a mais completa que se conhece. Sua difuso pode tambm contribuir para ampliar e diversificar os estudos sobre escra-vido.

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    Na seo Imagens de uma poca o internauta pode entrar em contato com fotos e mapas que mostram locais importantes para a histria da escravido. Alm disso, est disponvel uma prvia do Redempo digitalizado. Boa leitura!

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    Sumrio

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    CABO VERDE, COMRCIO INTERNO, BEM-ESCRAVO E A COIBIO DA RIQUEZA ILCITA DE SEUS MORADORES ENTRE OS SCULOS XV E XIX

    IMAGENS DO TRABALHO ESCRAVO NAS FOTOGRAFIAS DE CHRIS-TIANO JNIOR

    A SADE DOS ESCRAVOS EM MINAS GERAIS APS A ABOLIO DA IMPORTAO DE AFRICANOS

    ALEMES, SUECOS, AFRICANOS E INDGENAS: MO DE OBRA NA FBRICA DE FERRO DE SO JOO DE IPANEMA

    ESPAO DA RELIGIOSIDADE ESCRAVA: IRMANDADES

    ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DE SO PAULO RESTAURA E DI-GITALIZA JORNAL ABOLICIONISTA - TEXTO DE GLAICE MEIRE MACHADO E JLIO COUTO FILHO

    TRATAMENTO DISPONIBILIZA JORNAL PARA CONSULTA

    SEM MEIAS-PALAVRAS

  • 6BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

    Histrica - A Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 56, nov. 2012 Histrica - A Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 56, nov. 2012 H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DE SO PAULOHistrica Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 61, maio 2014

    CABO VERDE, COMRCIO INTERNO, BEM-ESCRAVO E A COIBIO DA RIQUEZA ILCITA DE SEUS MORADORES ENTRE OS SCULOS XV E XIX

    Artur Monteiro BentoPs-doutor em Antropologia Social pela UFRJ, doutor e mestre em Memria Social pela UNIRIO. Autor de cinco livros. Docente auxiliar da UniPiaget, coordenador da rea Cientfica Psicologia e da Ps-Graduao em Psicologia Clnica e da Sade.

    Resumo: Este artigo parte de minha pesquisa de ps-doutorado em Antropologia Social de-senvolvida no Museu Nacional, na UFRJ tem como objetivo analisar a formao da sociedade colonial na capitania da Ribeira Grande de Santiago de Cabo Verde, com foco no comrcio interno das ilhas entre os sculos XV e XIX. Nesse sentido, destaco a atuao da Coroa para estreitar as relaes comerciais entre a Colnia e Metrpole, com vistas a garantir o seu sucesso e difuso, mas tambm para coibir o comrcio de mercadorias que no fossem originrias do Arquiplago, bem como o trfico de escravos entre os moradores. Estes deviam ser utilizados unicamente para servios e povoamento, garantindo, assim, a centralizao do comrcio transatlntico. O traba-lho demonstra que o arquiplago de Cabo Verde serviu como espao de circulao de bens e entreposto comercial; fez parte da rota triangular de escravos e ajudou a consolidar o Imprio Ultramarino Portugus, na medida em que garantiu a geocentralidade atlntica, com importncia geoeconmica para Portugal. Palavras-chave: Cabo Verde. Rota Triangular. Comrcio Interno.

    Abstract: This article, written in the Museu Nacional of UFRJ, as part of my research for postdoc-toral fellowship in Social Anthropology, intends to analyze the formation of colonial society in the capitaincy of Ribeira Grande de Santiago, Cape Verde, focus on the internal trade in the islands from the 15th to the 19th centuries. The article emphasizes the actions of the Crown to streng-then the trade between Colony and Metropole, aiming to ensure its success and dissemination, but also to block the slave traffic among the settlers. Slaves should be used solely for working and populating the islands, ensuring the centralization of the transatlantic trade. It also demonstrates that the archipelago of Cape Verde provided a space for the circulation of goods. The colony also played the role of a trading post and part of a triangular route of slaves, helping to consolidate the Portuguese Overseas Empire, ensuring the Atlantic geocentrality, and a geoeconomic importance for Portugal. Keywords: Cape Verde. Triangular Route. Internal Trade.

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    Iniciativas governamentais e inseres das populaes no seio da sociedade colonial cabo--verdiana

    Tendo descoberto no meio do Atlntico Norte, entre 1460 e 1462, as terras que denomi-nou Cabo Verde, Portugal precisou reconhec-las e povo-las. Cabia, alm da doao de terras a capites-mores, com incio em 1462, nomear governadores portugueses, sendo Duarte Lobo da Gama o primeiro a governar as ilhas, de 1588 a 1591.

    Com base nos textos historiogrficos analisados, pode-se dizer que em 1462 teve incio a ao colonizadora, com a diviso da ilha de Santiago em duas capitanias, com dois donatrios. Uma, a do Sul, tinha sede na Ribeira Grande, e foi doada ao capito Antnio de Noli; e outra, a do Norte, sediava-se na praia da Senhora da Luz, onde se ergueu a povoao de Alcatraz, doada ao capito Diogo Afonso. A capitania de Ribeira Grande de Santiago de Cabo Verde, governada pelo descobridor Antnio de Noli, de 1462 a 1496, foi ncleo da administrao colonial e sede do Bis-pado. Essa capitania considerada porto de apoio para rotas transatlnticas, comrcio triangular de escravos, laboratrio de plantas e animais, e formadora da identidade cabo-verdiana, na figura do mestio. Tambm conhecida como Cidade Velha, Ribeira Grande de Santiago foi includa entre as sete maravilhas de origem portuguesa no mundo, e designada pela Unesco como patrimnio mundial da humanidade, desde 2009.

    Em 1550 foi nomeado um capito-geral para Cabo Verde e Guin, responsvel pela gesto dos dois territrios. Em seu conjunto, os donatrios receberam uma doao da Coroa, pela qual se tornavam possuidores, mas no proprietrios da terra, de forma que no podiam vender a capi-tania, cabendo ao rei o direito de modific-la ou mesmo extingui-la. A posse dava aos donatrios extensos poderes tanto na esfera econmica (arrecadao de tributos) como na esfera adminis-trativa.

    Lembrando que os capites em questo possuam, enquanto soberanos, jurisdio apenas na capitania/ilha em que residiam, cabendo-lhes fundar vilas e povoaes, doar sesmarias, alistar colonos para fins militares e formar milcias sob seu comando. Considerando o conjunto do mer-cado portugus, as capitanias representavam uma tentativa transitria ainda tateante de coloni-zao, com o objetivo de integrar a colnia ao mercantilismo europeu, na medida em que o rei mantinha o monoplio das especiarias e uma variedade de produtos mais rentveis. Certamente, entre o sculo XV e o sculo XVIII, Cabo Verde estava assentado numa estrutura administrativa bastante precria em relao s suas necessidades, considerando-se a montagem de um trfico negreiro e uma elite local detentora de recursos para arcar com os empreendimentos da consoli-dao colonial.

    O sistema colonial, semelhante ao estabelecido nos arquiplagos norte-atlnticos, residiu na articulao de alguns fatores fundamentais. A administrao donatria, concedendo-se capita-

    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    nias e atribuindo-se direitos de explorao a alguns senhores, evoluiu nos finais do sculo XVI para a jurisdio Guin/Cabo Verde, desembocando na formao do governo-geral de Cabo Verde, no qual se enquadrou tambm a administrao do distrito dos rios de Guin, zona na frica que vai desde o rio Senegal at a Serra Leoa. No cenrio geoeconmico do Imprio Colonial Portugus, o governo-geral de Cabo Verde est inserido numa regio onde predomina uma geocentralidade atlntica, com importncia econmica e poltica para Portugal.

    Ao conceder terras a capites, o Rei transferia para a iniciativa privada a primazia da colo-nizao, esboando assim o sistema de arrendamento que vigorou do sculo XV ao sculo XVII, quando comeou a explorao por meio de companhias, provavelmente em 1664. Os setores arrendados foram divididos em grupos: primeiro, Arguim e suas demarcaes e as reas de tratos (comrcio) e resgates (captura ou compra de escravos) de Guin; segundo, a rea da Costa da Mina e, mais tarde, a dos tratos de Angola e So Tom. A fim de tornar atrativo o empreendimento, o Rei concedeu aos donatrios uma srie de privilgios. Como observa Corra, na Carta Rgia de 12 de junho de 1466,1 D. Alfonso outorgou aos capites poderes civis e criminais sobre mouros, negros livres, brancos, forros e cativos, e toda a gerao de cristos. Foi com essa carta que os donatrios e os moradores ganharam a liberdade de comercializar na zona denominada rios de Guin. Tal zona compreendia as reas geogrficas que ficavam entre o Senegal e a Serra Leoa, tais como rios do Ouro, Senegal, Gmbia, Casamansa, Cacheu, Grande, Nuno, Geba e o Cabo Branco. O que significava dizer, como expressa a carta, que daqui em diante para sempre hajam e tenham licena para cada vez que lhes aprouver poderem ir com navios a tratar e resgatar em todos os nossos tratos das partes da Guin, reservando disto o nosso trato de Arguim (transcrio da carta apud CARREIRA, 1972, p. 22).

    Exemplo que nos parece significativo da importncia da carta o resgate de africanos na regio da Guin. Navios com carregamentos de escravos provenientes da costa africana ali co-meavam em breve a fazer escala, sendo certo que mais tarde esse trfico se tornaria corrente e considervel atravs das ilhas de Cabo Verde (CORRA, 1954, p. 130), passando a capitania da Ri-beira Grande de Santiago sede da feitoria do trato da Guin. Ou seja, Santiago se transformou na feitoria portuguesa da Guin: local de centralizao das atividades administrativas de cobranas dos impostos sobre as mercadorias transacionadas entre o arquiplago e a costa africana e, so-bretudo, de controle do comrcio realizado na costa da Guin, devido impossibilidade da Coroa portuguesa de instalar feitorias na costa africana.2

    A maioria dos historiadores cabo-verdianos concorda que o trfico de escravos no foi le-

    1 D. Afonso V outorgou a carta de privilgios aos moradores de Santiago em 12/06/1466, consignando plenos poderes ao Capito e liberdade de comrcio de seus moradores, como base da poltica dos descobrimentos. Os primeiros moradores portugueses resistiam permanncia na colnia devido aos constrangimentos geogrficos e limitaes severas do ecossistema. E, por falta de novos interessados, a possesso portuguesa permanecia quase deserta dois anos depois do incio do povoamento, em 1462. Em meio a essas condies, observou-se que a ocupao s poderia se consolidar com recurso ao escravo africano, e desde que os colonos gozassem de ampla autonomia e de liberdade de movimento. A carta considerada pela maioria dos historiadores como sendo a primeira Carta Orgnica do Arquiplago. Cf. BRASIO, 1959, e DINIS, 1960. 2 Cf. TEIXEIRA, 2005, p. 29-79.

    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    galizado na carta, uma vez que o resgate de africanos do rio Senegal Serra Leoa visava a fixao de colonos nas ilhas, uma mais-valia para o trabalho agrcola e o exerccio da fora desses escra-vos ao lado de seus senhores, mediante a incluso deles na condio de subordinados, a partir da instrumentalizao de sua capacidade de defender a capitania. A Carta Rgia de 1472 limitou os privilgios dos moradores de Santiago no comrcio com a Guin, proibindo a comercializao de mercadorias que no fossem nativas, e instituindo a obrigatoriedade que os navios fossem de pertena dos moradores e por eles armados e capitaneados, ficando vedada a parceria com no moradores, nacionais ou estrangeiros (Histria Geral de Cabo Verde, Corpo Documental, vol I, p. 27-28), justificando as transgresses3 do trato de 1468 outorgado ao mercador Ferno Gomes, o que foi, na verdade, considerado por historiadores, a exemplo de Amaral (2001), como desacato Coroa. Como bem indica Carreira (1972, p. 32), com maiores ou menores atritos entre moradores e contratadores, os primeiros continuaram a tratar e a resgatar nos rios de Guin. O aumento do nmero de lanados, e a sua conhecida ao margem das leis, na compra de escravos e na per-muta de mercadorias por generos, em todo o setor da costa at Serra Leoa.

    MARK (2002) defende a ideia de que a limitao de privilgios reforou as transgresses e o crescimento do nmero de lanados (colonizadores portugueses que, fixados na frica, manti-nham os costumes do pas de origem) e tangomos (negociantes de escravos), forando a circula-o de produtos fora das reas controladas pela Metrpole. Esse episdio, certamente, acelerou o processo de povoamento, visto que se no tivesse havido uma persistente reao dos moradores contra a ao estranguladora do rei, dificilmente se povoaria o arquiplago com a rapidez verifi-cada. (CARREIRA, 1972, p. 32).

    Esses fatos emanam e, ao mesmo tempo, contribuem para criar uma estrutura de governo local. A lei est, aqui, inscrita: os capites detm o poder, direitos e regalias especiais, e esta lei lhes confere competncia para fazer distribuio da terra, reservando para si o domnio dela. Acresce ainda que essa jurisdio teve grande impacto na explorao da posio geogrfica do meio do Atlntico, comercializando produtos em rota triangular (frica, Cabo Verde, Europa-Amrica). Re-sultava da uma permanente drenagem de recursos para o exterior, que reduziu a capacidade de investimento e desenvolvimento econmico de Cabo Verde. Superpunham-se, assim, nas transa-es comerciais, a administrao colonial e o Estado portugus, com a funo da metrpole e do mercado europeu. Esse modo de exerccio do poder foi responsvel pela configurao das rela-es de vassalagem que se desenvolveram na colnia, apresentando traos de antigo regime, a exemplo do feudalismo. Estabeleceu-se uma economia agropecuria voltada para a manuteno das ilhas e, portanto, sujeita variao do mercado europeu.

    3 Em 1468, a Coroa arrendou o comrcio da Guin ao mercador Ferno Gomes, confirmado no reinado de D. Joo II (1481-1495) para explorar o litoral africano a sul da Serra Leoa. Os mercadores cabo-verdianos podiam comercializar nas zonas prximas da foz dos rios guineenses, onde se fixaram alguns deles. A costa ocidental da frica mostrava-se atrativa para o lucro dos mercadores e para a Coroa. Da Guin saam no s bens de comrcio, mas tambm escravizados, que eram considerados verdadeiras mercadorias. Com a promulgao da carta de limitao de privilgios dos moradores de Santiago, de 1472, os mercadores passaram a transgredir as ordens, dando incio a um comrcio ilegal.

    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    Em 1512, na Ribeira Grande de Santiago, j havia Cmara Municipal. Em especial, no con-texto do imprio portugus do sculo XVI, o poder civil encontra-se estruturado conforme se observa na Tabela 1.

    Tabela 1 Estrutura civil da capitania da Cmara da Ribeira Grande de SantiagoFonte: Padre italiano Capuchinho Bernardo Vaschetto (1987).

    N. Organizao Civil

    1 Governador e Provedor da Fazenda Real (com dois guardas pessoais brancos)

    1 Ouvidor letrado

    1 Meirinho de correio (com seis guardas pessoais)

    1 Escrivo da Correio e Chanceler

    1 Alcaide do mar

    1 Almoxarife

    1 Recebedor (com direito a um escravo como guarda pessoal)

    1 Guarda do Mar

    1Tesoureiro da cidade, Provedor das fazendas dos defuntos e ausentes e Mamposteiro (procurador) dos cativos

    1 Alcaide da cidade

    1 Escrivo dos rfos

    1 Juiz dos rgos

    4 Tabelies

    2 Juzes

    2 Vereadores (eleitos pelos moradores-estantes)

    1 Procurador do Concelho

    1 Escrivo da Cmara (contador e distribuidor de processos)

    Os problemas sociais no so grandes nessa colnia, visto que os escravos vivem em es-tado de trnsito. Quanto aos moradores portugueses e seus servos, eles vo se organizar em povoaes e vilas, ocupando as reas agrcolas orientadas por procedimentos costumeiros, sob o controle dos poderes constitudos, enfatizando a estrutura do poder militar (Tabela 2), o que explicaria a forte interveno do Estado na economia por meio de regulamentos, monoplios,

    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    isenes e incentivos.

    Tabela 2 Organizao militarFonte: Elaborao do autor atravs dos estudos de Vaschetto (1987).

    N. Poder Militar

    1 Sargento-Mor

    1 Condestvel da Fortaleza de S. Sebastio

    2 Bombardeiros da Fortaleza Real de So Felipe

    3 Bombardeiros para os baluartes da vigia da Ribeira Grande e de So Brs

    1 Armeiro serralheiro

    2 Facheiros

    1 Porteiro da Fortaleza

    1 Meirinho da Bandeira

    1 Escrivo geral

    A colnia herdou a estrutura administrativa portuguesa, o que se deu com certa intensida-de entre os sculos XVI e XVII, e aparece extremamente centralizadora atravs de um governo lo-cal que se impunha em nome do Reino. Mas a colnia tinha uma posio perifrica, dependendo das posies polticas e econmicas de homens pblicos e negociantes que atendiam os interes-ses de Portugal e de suas respectivas empresas. Lisboa instrua os funcionrios em suas reas de atuao, determinando as atribuies, obrigaes e jurisdio dos diversos cargos incumbidos de gerir a colnia. Os diplomas legais eram baixados a cada um dos funcionrios mais importantes e dos oficiais subalternos, traando minuciosamente as suas competncias. Eram em sua maioria personalizados, em consonncia com os critrios de lealdade e confiana, alm dos estritos meca-nismos de vigilncia e controle que marcavam as regras do poder do Estado absolutista.

    A construo do Direito aparece, assim, intimamente ligada aos interesses de grupos vincu-lados produo e ao comrcio triangular de Cabo Verde para Portugal, frica, Brasil, Amrica Espanhola, ndia Espanhola, Amrica do Norte e interilhas. Definiram-se, assim, os contornos de uma economia triangular (importao-exportao), com sede na Ribeira Grande de Santiago at o sculo XVIII. Nessa economia o mercado interno era escasso e a agricultura de subsistn-cia (milho, feijo e leguminosas) passou a garantir a sobrevivncia da populao com bastante dificuldade. Tal como noutros sistemas coloniais, os cativos formaram a maior riqueza das elites

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    locais, no que tange participao na composio da riqueza familiar, das empresas pblica e privada. Eram utilizados em transaes comerciais, criadagem, pastagem, tecelagem e cultivo da terra. Houve, assim, principalmente entre os sculos XV e XVIII, um nmero razovel de escravos em todas as ilhas habitadas, especialmente na ilha de Santiago, porta de entrada de cativos e rota do comrcio triangular. Porm, no foi possvel computar uma populao cativa da colonizao at 1869, ano do ltimo recenseamento de escravos, devido falta de registros em arquivos p-blicos e privados.

    Vale ressaltar que o regime do indigenato4 nas colnias portuguesas vigorou at 1961, im-pondo a criao de uma dualidade de estatutos pessoais, assentada na distino fundamental entre indgenas e cidados. Se o estatuto poltico era dual, todos eram portugueses, ou seja, faziam parte do corpo hierrquico da nao, embora o limite virtual dessa dualidade fosse a as-similao, progressiva e gradual. Mas ROSAS (1994) indica que o indigenato no se fez presente em todos os territrios coloniais: Cabo Verde, o Estado da ndia Portuguesa e Macau nunca foram submetidos a este regime, ao contrrio de Guin, Angola e Moambique. O indigenato foi intro-duzido em So Tom e Prncipe e em Timor aps a Segunda Guerra Mundial. A estrutura corpo-rativa proposta pelo regime para a populao peninsular era, tal como o indigenato, paternalista e baseada na interveno do Estado. Em ambos os casos, indgenas e povo so representados como grupos carentes de iniciativa e necessitados da proteo do Estado, que procura assegurar o imobilismo e evitar a transformao.

    De meados do sculo XV at meados do sculo XVIII, a capitania/provncia de Cabo Verde articulava diferentes circuitos comerciais. Os negociantes cabo-verdianos da cidade da Ribeira Grande de Santiago entretinham relaes comerciais com as ilhas habitadas, as vilas e povoaes prximas cidade. As relaes comerciais com o exterior das ilhas sobretudo com Guin Bissau, que se configurava como uma das reas abastecedoras de escravos , lanaram as bases econ-mico-comerciais no espao insular. Ribeira Grande tambm funcionava como um entreposto co-mercial interligando a frica e a Amrica aos portos da Europa, como, por exemplo, Lisboa. Essas relaes comerciais, sustentadas a partir das rotas transocenicas aos mercados consumidores da Amrica e frica Portuguesa, assumem maior complexidade, no se constituindo em Cabo Verde apenas uma colnia de explorao, e sim portadora de conexes estveis entre Portugal, administrao local, redes comerciais e os seus comerciantes. Diante dessa lgica, o estudo da capitania-provncia nos permite apreender o conjunto da vida econmica e do jogo capitalis-ta (BRAUDEL, 1996, p. 383). Sendo assim, pode-se inferir que as redes de relaes tecidas pelos negociantes cabo-verdianos foram estabelecidas em diferentes pontos e portos do arquiplago

    4 O regime do indigenato foi institudo pelo decreto orgnico de 1869, com aplicao a Guin, Angola e Moambique. No chegou a vigorar em Cabo Verde, na medida em que os cabo-verdianos tinham recebido da Ranha D. Maria II, o direito de cidadania. Foi Salazar que sistematizou um conjunto de normas que dividiam a populao das colnias portuguesas de frica entre cidados, isentos do trabalho forado, e indgenas, sujeitos ao trabalho forado, cujo recrutamento era garantido pelas autoridades tradicionais nas colnias. Esta poltica foi intensificada e consolidada, nomeadamente, com o Ato Colonial (1930) e a Constituio (1933). Cf. CORDEIRO, 2001; OLAUGHLIN, 2000, p. 7-42.

    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    habitado, no se limitando apenas a Ribeira Grande de Santiago, como veremos a seguir, quando se trata do comrcio interno de escravos.

    A praa comercial da Ribeira Grande de Santiago e as relaes com os negociantes das ilhas

    Ribeira Grande de Santiago, abrigando parcela significativa de europeus e africanos, tor-nou-se a maior riqueza em recursos humanos no quadro dos formuladores da instituio colo-nial. Ou seja, no dispondo de riquezas naturais de importncia significativa que atrassem gente para o espao insular, os moradores em presena fundiram suas raas, bem como suas crenas e prticas religiosas, dando origem a uma sociedade bastante miscigenada e afirmao de uma identidade prpria. Assim, a regio passou a ser objeto de notveis iniciativas governamentais que visavam a sua consolidao como territrio nacional, a garantia das fronteiras, a ocupao racional do espao fsico e a explorao dos importantes recursos naturais ali existentes (pesca, agricultura, comrcio).

    Cabo Verde, isolado no meio do Atlntico, montou-se sob a administrao colonial, j que nenhuma das ilhas era habitada, nem apresentava quaisquer indcios de presena humana. A descrio de Diogo Gomes confirma, em vrios aspectos, a de Cadamosto, sobre a inexistncia de vida humana, acrescentando a existncia de rvores com figos abundantes no tronco e ramos (ficus capensis) e de muito feno, que devia ser constitudo essencialmente por gramneas secas e amareladas, dada a poca adiantada da estao seca em que se descobriu a ilha, 1 de maio. (TEIXEIRA e BARBOSA, 1958, p. 30).

    Dados cronolgicos e historiogrficos semelhantes, ainda que por caminhos distintos, sus-tentam que em 1461, um ano aps a doao da capitania da Ribeira Grande de Santiago por Afonso V a seu irmo dom Fernando, a dita capitania recebeu os primeiros habitantes provenien-tes de Gnova e do Algarve, conduzidos por Antnio de Noli, Diniz Eanes e Aires Tinoco. Antnio de Noli faleceu nessa capitania, em 1496, sucedendo-lhe sua filha, dona Branca de Aguiar, casada com Jorge Correia de Sousa, da Casa dEl-Rei. Diogo Afonso no foi ele prprio colono, mas en-viou para a parte da ilha sob sua jurisdio (Alcatraz) alguns casais da Metrpole, sobretudo do Algarve. As fontes indicam que

    [...] quatro anos depois, reconheceu-se todavia que ningum l queria viver, persistindo apenas alguns genoveses dedicados colheita, pelo mato, de algodo introduzido da Guin e j subespontneo. No havia quaisquer indcios de agricultura propriamente dita. (TEIXEIRA e BARBOSA, 1958, p. 30).

    Numa linha um pouco mais categrica, a carta de privilgio de 12 de junho de 1466 intro-duziu mo de obra escrava proveniente na sua maior parte da Guin, mencionando-se entre eles,

    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    especialmente, Balantas, Papeis, Bijags e tambm Felupes e Jalofos para os efeitos da fixao de moradores no novo territrio. Aos escravos, algarvios e genoveses, juntaram-se posteriormente judeus, degredados, franceses, espanhis, aorianos e madeirenses.

    BARROS (1930) demonstra que no sculo XIX estabeleceu-se uma colnia israelita na ilha de Santo Anto, tendo alguns dos seus elementos passado a outras ilhas, o que comprova a pre-sena, em quase todas as ilhas, de mestios descendentes de judeus. A maioria dos historiadores acredita que a carta de privilgio autoriza os colonos a resgatar (capturar ou comprar) escravos da Guin, reservando Arguim (ilha situada na extremidade Norte da atual Repblica Islmica da Mauritnia) ao mercador Ferno Gomes (contrato de 1868), e isentando os colonos do dzimo de todas as mercadorias, excluindo armas, ferramentas, navios e aparelhos enviados do reino e ven-didos nas ilhas. Foram isentos tambm de pagar dzimo de todas as mercadorias provenientes da compra ou troca com as ilhas de Canria, Madeira, Porto Santo, Aores, Portugal, etc. A iseno do dzimo estava condicionada apresentao de certides emitidas por fiscais outorgados por Lisboa.

    Em 1899, Barcellos cita Frei Fernando da Soledade e Jorge Cardoso, os quais afirmam que Frei Rogrio e Frei Jaime, frades franciscanos, naturais da Catalunha e residentes no convento de S. Bernardo da Atouguia, em Lisboa, vieram para Cabo Verde com os colonos de 1462. Dentre os elementos iniciais que particularizam os problemas sociais da Colnia, o autor demonstra que os genoveses Antonio de Noli (capito) e seu irmo Bartolomeu de Noli iniciaram a colonizao com vida moral bastante fora das regras, pelo que, tendo sido chamado razo pelos frades, o capito reagiu de modo violento contra ambos, o que valeu a um deles, Frei Rogrio homem muito le-trado, escrivo e msico o preo da prpria vida.

    As regras gerais do sistema colonial funcionavam como nas demais colnias portuguesas: Cabo Verde reexportava os produtos provenientes de outras reas. No complexo mundo dos ne-gcios, Ribeira Grande entra na fase de decadncia econmica, advinda da gradual deteriorao das condies climticas e do maior controle, punio e erradicao do comrcio interno e exter-no de escravos. Foi ento que a colnia se apercebeu das mudanas que ocorriam no mundo que se modernizava. Aspecto parte diz respeito a no neutralidade de aes polticas, porque todas as ocorrncias indicam uma srie de interesses em jogo na colnia, decorrente da emergncia de uma elite crioula/ mestia denominada filhos da terra, que perfaz todo o seu ciclo em menos de um sculo. Esse ciclo, devidamente equipado e funcional, vir a reproduzir-se no espao insular e nos rios da Guin, atravs de relaes comerciais, exercendo postos administrativos nas colnias portuguesas de frica, evangelizando moradores e convertendo indgenas. Foi na capitania que surgiu a Cmara Municipal, seguida da Cmara dos Deputados em 1555. Era espao dominado por reinis, que progressivamente incorporou os filhos da terra. por isso que GODINHO (1975) formula que a estrutura social dos europeus foi transferida com segurana e necessria adaptao para os mestios (nobres, clrigos, artesos, etc.), estabelecendo no seu seio uma estratificao

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    social semelhante do Reino.

    Havia claramente a ideia de uma sociedade mestia no sculo XIX, na eminncia da queda do sistema colonial, medida que o trfico de africanos estava sendo vigiado e punido por orga-nismos internacionais. Basta recordar que a Lei inglesa Bill Aberdeen, de 1845, alm de proibir o trfico de escravos, outorgou poderes aos ingleses de abordarem e aprisionarem navios de pases que no acatassem os dispositivos da Lei. O regulamento de 25 de outubro de 1853 manda fazer o inventrio geral dos escravos e o decreto de 14 de dezembro de 1854 determina sua libertao. Essas duas medidas levaram ao inventrio nominal de escravos nas possesses portuguesas, sen-do o de Cabo Verde concludo em 1856. Em 28 de abril de 1858, fixou-se o prazo de vinte anos para a abolio da escravido nos territrios portugueses. Porm, somente em 1869 os escravos foram libertos, com a obrigao de servirem seus senhores at 29 de abril de 1878. Em 29 de abril de 1875, decretou-se a abolio definitiva da escravido para 1876, seguida da sua tutela por dois anos, durante os quais os libertos poderiam ser contratados por seus senhores, certamente para no provocar o colapso econmico, visto que os libertos tendiam a dar um novo rumo s suas vidas.

    Grosso modo, esse comrcio de escravos se prolonga at o ano de 1869, conforme indica a Tabela 3, que nos oferece uma viso geral do nmero de escravos recenseados, deixando inferir a existncia de um trfico interno legalizado e/ou clandestino.

    Tabela 3 Elaborao de Antnio Carreira, a partir dos dados de Francisco de Andrade (1582); Arquivo dos Servios Administrativos (1827), Boletim Oficial (1846 e 1868), Anais do Con-

    selho Ultramarino (1855).

    IlhasEscravos Recenseados

    1582 1827 1834 1844 1856 1868 1869

    Santo Anto - 207 180 235 169 42 68

    So Vicente - 14 5 - 32 - -

    So Nicolau - 171 125 163 158 52 70

    Boa Vista - 489 513 662 372 146 322

    Sal - 72 - - 137 68 73

    Barlavento - 953 823 1.060 868 308 533

    Maio - 240 363 376 406 128 139

    Santiago 11.700 2.505 1.714 2.744 2.422 973 2.068

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    Fogo 2.000 1.212 909 1.229 1.247 375 1.107

    Brava - 213 170 250 239 80 173

    Sotavento 13.700 4.170 3.156 4.599 4.314 1.756 3.487

    Total 13.700 5.123 3.979 5.659 5.182 2.064 4.020

    Total Geral 40.027

    A Tabela 3 mostra claramente o valor do escravo, embora este seja bastante insignificante no sculo XIX. Se nos detivermos na anlise da distribuio da populao total, esta indica 29.888 (Santo Anto), 8.780 (So Vicente), 11.958 (So Nicolau), 483 (Sal), 2.613 (Boavista), 2.048 (Maio), 64.811 (Santiago), 17.620 (Fogo), 9.223 (Brava), totalizando 147.424 habitantes em 1900, confor-me o censo apresentado por SARMENTO, MORAIS e MORGADO (1957).

    De certo modo, os 40.027 escravos recenseados pressupem escravos de quintal (servios domsticos) e trabalhos agrcolas, indicando que os filhos da terra abastados possuam a maioria dos escravos, tendo em conta a quase inexistncia de reinis no final do sculo XIX. preciso no deixar de reconhecer o consenso dos historiadores de que, principalmente, no segundo quartel do sculo XVII, a nova elite dos filhos da terra reduz o nmero dos seus escravos: alforria-os ou vende-os, pois dadas as limitaes severas do arquiplago, os cativos representavam gastos fa-miliares.

    Uma leitura cuidadosa da importncia da rota triangular demonstra com clareza como o recenseamento geral deturpa a realidade da escravido. Um funcionrio em 1549 diz que fora da cidade de Lisboa, nenhuma outra cidade do reino fora to rentvel, pois os navios do Brasil, do Peru, das Antilhas e da Ilha de So Tom fazem escala na Ribeira Grande. Um censo, realizado em 1582, indicou a existncia de pelo menos 13.700 escravos em Ribeira Grande. (REPBLICA DE CABO VERDE, 2008, p. 21).

    Parece que a falta de chuvas, associada s fomes cclicas e ao abandono econmico ao qual a colnia foi submetida, levou a um processo sistemtico de libertao da maior parte dos escra-vos, trabalhando como empregados livres ou revendendo-os para o exterior, se tivermos em con-ta a insignificncia de cativos registrados, com relao populao total (147.424). Obviamente, os fracos recursos, associados decadncia da Ribeira Grande e posse de terra por naturais, ace-leraram a queda da escravido. Por outro, o processo sistemtico de ocupao de cargos na ad-ministrao colonial por este grupo certamente acelerou a mestiagem e a consequente diluio de barreiras raciais. Nessa linha de pensamento, a sobrevivncia adquiriu importncia no quadro da permanncia dos grupos sociais, passando construo de valores prprios: hospitalidade, solidariedade (morabeza), interajuda (djunta mon) e criatividade no mbito cultural, artstico e

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    Poder-se-ia considerar uma escravido fracassada, ou, nesse caso, um sistema quase livre, se fizermos uma leitura atenta da distribuio de escravos nas ilhas, considerando que em 1869 havia 4.020 escravos para uma populao estimada em 67.357, em 1871 (SARMENTO, MORAIS e MORGADO, 1957). Em 1898, vinte anos aps a abolio da escravido, a Provncia de Cabo Ver-de (1898) passa a disciplinar os bens, pelo decreto de 22 de junho de 1898, informando que so sujeitos, em geral, contribuio de registro os atos que importam transmisso perptua ou tem-porria de propriedade imobiliria de qualquer valor, espcie e natureza, por ttulo gratuito ou oneroso. (Art. 1). Nessa categoria esto inscritos

    [...] os contratos de compra e venda, escambo ou troca, constituio de emphyteuse e censo consignativo; as transmisses de propriedade perptua ou temporria, por ttulo oneroso das concesses feitas pelo governo para a explorao de empresas industriais de qualquer natureza que sejam, tenham ou no principiado a explorao. (Art. 1, alneas 1 e 2).

    Este campo de anlise mostra-se bastante rico, pois nos permite localizar as estratgias de coibio da riqueza ilcita de seus moradores por descaso no pagamento de contribuies ao go-verno local. Torna-se oportuno lembrar que o governador passa a disciplinar os grupos e proteger os bens pblicos sob a jurisdio da Provncia Ultramarina, regido pelo cdigo administrativo de 1842, incumbindo o escrivo de fazenda do concelho de receber dos procos os dados das pes-soas falecidas no grmio da Igreja Catlica, at ao dia 8 de cada ms,

    [...] declarando os seus nomes, idades, estado, quem sucedeu nos bens, por que ttulo e qual o seu parentesco com os falecidos. Idntica relao ser enviada pelos regedores de parquia, quanto s pessoas que falecerem fora do grmio da Igreja Catlica. (PROVNCIA DE CABO VERDE, Captulo III, Seco III, Art. 35, 1898).

    Foi o caso, entre outros, da obrigao imposta aos administradores dos concelhos5 enviarem at ao dia 8 de cada ms aos respectivos escrives de fazenda, as cpias dos testamentos das pessoas falecidas no ms antecedente; da entrega ser passado recibo pelo escrivo de fazenda. (PROVNCIA DE CABO VERDE, Captulo III, Seco III, Art. 36, 1898). Tal como ocorria em outras partes do Imprio portugus, a fiscalizao da contribuio de registro pertence, em geral, a todas as autoridades, corporaes e reparties pblicas, e, em especial, a repartio de fazenda provincial. (PROVNCIA DE CABO VERDE, Captulo VII, Seco 1, Art. 80, 1898).

    5 No artigo 2 da Provncia Ultramarina, decreto de 24 de dezembro de 1892, Cabo Verde divide-se em nove Concelhos (Cmaras Municipais) governados por administradores, em companhia de 5 vereadores. No artigo 3, os Concelhos encontram-se divididos em Parquias, que se subdividem em Freguesias, conforme o santo padroeiro, agregadas aos procos locais, sendo que a Parquia dirigida pelo Proco contava com um Regedor, uma Junta e dois Vogais de eleies, dos quais um Tesoureiro.

    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    O governador-geral, subsidiado por dois conselhos, o Conselho do Governo6 e o Conselho da Provncia7, era o chefe da administrao local,

    [...] o mais alto agente e representante do Governo da Nao Portuguesa e goza das honras que competem aos Ministros do Governo da Repblica, tendo precedncia sobre todas as entidades civis e militares que sirvam ou se encontrem naquele territrio, excluindo o Presidente da Repblica, o Presidente do Concelho, o Presidente da Assembleia Nacional, o Presidente da Cmara Corporativa, os Ministros, Secretrios e Subsecretrios de Estado. (PROVNCIA DE CABO VERDE, 1963, Art. 7, 1).

    Por outro lado, seria impossvel separar as atribuies administrativas das de justia e mili-tares que o cargo de governador abrangia, na medida em que, pelo Estatuto, ele era responsvel, entre outras coisas, por diversos assuntos de administrao da fazenda, tais como: arrecadar as rendas reais, visitar as ilhas, inquirir sobre as necessidades gerais, receber reclamaes e peties pela confeco de obras, alm de manter as igrejas e o clero. Mesmo dispondo de amplos pode-res, o governador precisava agir em conformidade com uma srie de outros rgos, tais como o Conselho Legislativo, o Conselho de Governo e o foro eclesistico.

    O Estado portugus foi uma pea importante na vida econmica e poltica da colnia, atu-ando como captador de recursos provenientes da produo interna, e tambm do comrcio trian-gular, que protegia e fomentava. O Estado retirava uma parte da renda lquida colonial atravs do fisco, por meio de tributos (dzimo), alm de estimular o cultivo e monoplio de determinados produtos da terra para fins de exportao. Essa poltica centralizadora no impedia o contraban-do realizado na colnia, a ponto de Portugal proibir o comrcio nacional e internacional de deter-minados produtos.

    Assim, em 1472, j aos 12 anos de idade, mantido por uma economia escravagista depen-dente, o nascente pas que despontava em Cabo Verde passa a sofrer sanes por parte da Coroa. No h dvida de que a Lei est inscrita na colnia, cuja distncia no inviabilizou a administrao local. As tabelas supracitadas 1 e 2 indicam uma estrutura administrativa que se apresenta por ofcios do escrivo, como tambm pela designao do Auditor Geral da Marinha encarregado de fazer junto comisso e ao Ministrio dos Negcios e da Justia a Marinha de Guerra Imperial. Torna-se notrio que as relaes entre colnia e metrpole se fizeram atravs de pacto e nego-

    6 O Conselho do Governo, presidido pelo Governador, formado pelo Bispo, o Secretrio-Geral, o Juiz de Direito de Sotavento, o Chefe do Servio de Sade, o Delegado do Ministrio Pblico em Sotavento, o Secretrio de Fazenda oficial mais graduado em servio na capital , o Diretor de Obras Pblicas, o Presidente da Cmara, e dois dos quarenta maiores contribuintes da cidade da Praia, propostos pela Cmara em lista trplice para serem escolhidos pelo governador. Tem por funo: decidir em ltima instncia todas as questes contenciosas e corporaes administrativas, e dar parecer sobre o que o governador consultar. Cf. REORGANIZAO ADMINISTRATIVA DA PROVINCIA DE CABO VERDE, 5 jan. 1983.7 O Conselho da Provncia compe-se do Secretrio-Geral (Presidente), um Vogal escolhido pelo Governador dentre os propostos em lista trplice pela Cmara da Praia, um Vogal escolhido tambm em lista trplice pela Cmara de S. Vicente, o Delegado da Cmara de Sotavento, e um empregado de Secretaria do Governo escolhido pelo Governador. Tem por funes: julgar em primeira instncia as questes contenciosas de administrao pblica da provncia que no competem a outros tribunais e dar consultas nos assuntos em que as leis especiais exigem os seus votos. Cf. REORGANIZAO ADMINISTRATIVA DA PROVINCIA DE CABO VERDE, 5 jan. 1983.

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    ciao, numa relao contratualista entre sditos e soberano, pautada por constante negociao no campo da Histria econmica, como tambm jurdica. De certo modo, as relaes colnia-me-trpole se concretizaram atravs do estabelecimento de um pacto que envolve a concesso rgia de honras e privilgios, no qual Cabo Verde assume a posio de sociedade beneficial, assentada no Imprio Ultramarino Portugus que alm de fundar a colnia com portugueses, dotou a ter-ra cabo-verdiana de uma estrutura sacro-poltico-econmica eficiente e eficaz, contribuindo at para a embriologia de uma conscincia nacional, que se deu pela via da formao de sacerdotes nativos e africanos.

    Referncias bibliogrficas

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    BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comrcio interno, bem-escravo e a coibio da riqueza Ilcita de seus moradores entre os sculos XV e XIX. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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    Histrica - A Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 56, nov. 2012 Histrica - A Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 56, nov. 2012 H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DE SO PAULOHistrica Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 61, maio 2014

    LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Jnior. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 21-30, maio 2014.

    IMAGENS DO TRABALHO ESCRAVO NAS FOTOGRAFIAS DE CHRISTIANO JNIOR

    Marcelo Eduardo LeiteDoutor em Multimeios pela Unicamp, mestre em Sociologia e bacharel em Cincias Sociais pela Unesp. Professor na Universidade Federal do Cariri. E-mail: [email protected].

    Resumo: O presente artigo analisa parte da obra do fotgrafo Christiano Jnior, portugus que viveu no Brasil na segunda metade do sculo XIX. As imagens que apresentamos retratam escra-vos que trabalhavam nas ruas do Rio de Janeiro na dcada de 1860. Nossa abordagem parte do pressuposto de que o fotgrafo um mediador que se posiciona entre a sociedade e a imagem produzida. Tais fotografias so, ainda, importante documento da escravido no sculo XIX.

    Palavras-chave: Fotografia. Escravos. Rio de Janeiro. Brasil Imperial.

    Abstract: This article analyzes the work of the Portuguese photographer Christiano Junior, who lived in Brazil in the second half of the nineteenth century. The images we present depict slaves who worked on the streets of Rio de Janeiro in the 1860s. Our approach assumes that the photog-rapher is a mediator who stands between society and the image he produces. These photographs are also important documents of slavery in the nineteenth century.

    Keywords: Photography. Slaves. Rio de Janeiro. Imperial Brazil.

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    LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Jnior. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 21-30, maio 2014.

    O Rio de Janeiro do fotgrafo Christiano Jnior

    Na dcada de 1860, na cidade do Rio de Janeiro, o fotgrafo de origem portuguesa Chris-tiano Jnior realizou uma srie de imagens de escravos que trabalhavam nas ruas da cidade. Suas fotografias eternizaram uma das caractersticas mais fortes da sociedade brasileira do sculo XIX: a escravido. As imagens em questo so do tipo carte de visite, os retratos mais populares do sculo XIX.

    As cartes de visite so imagens bastante especficas no cenrio do perodo. Seu criador, o francs Andr Disdri, foi o primeiro a apreender as exigncias do um perodo no qual era urgente atender novas demandas geradas num ambiente repleto de novos valores sociais sobretudo aqueles ligados aos segmentos urbanos que buscavam afirmao social. Com essa nova mdia isso foi possvel, pois at ento a fotografia no era acessvel a muitos segmentos da populao. Disdri, ciente das melhorias necessrias em seu ateli fotogrfico para obter sucesso comercial, o dinamiza. Primeiramente rompendo com a falta de opes, pois at ento no havia formatos pequenos de retratos; depois, com a diviso do trabalho no espao do estdio. Ele percebe que o ofcio no daria resultados, a menos que conseguisse ampliar a sua clientela e aumentar as encomendas de retratos. A lgica do seu invento relativamente simples, pois usa as chapas de coldio mido1 ento em voga, porm, introduzindo na cmara um sistema de lentes mltiplas. Assim, elas podem fazer vrias cpias de retratos ao mesmo tempo. Esses retratos, por sua vez, medem aproximadamente 5 x 9 centmetros. A inveno difundida no ano de 1854 e se espalha mundialmente na dcada seguinte.

    Com ela, o cliente sai do ateli com uma srie de imagens idnticas, as quais explicitam sua projeo pessoal. O retratado pode ainda adquirir de 12 at 36 cpias iguais, podendo, inclusive, voltar depois ao ateli para pedir novas cpias. Com esta srie de imagens nas mos, o indivduo propagandeia sua imagem idealizada, fazendo dela um carto de visita. dada como lembrana e, muitas vezes, trocada entre as pessoas. Com sua grande difuso, aparecem alguns coleciona-dores que as pem em lbuns, arquivando-as. Surgem, tambm, aquelas que so vendidas em livrarias, tais como as que retratavam personagens populares: reis e rainhas, figuras ilustres, alm dos tipos exticos, tais como ndios e escravos. nesta ltima categoria que esto os retratos feitos por Christiano Jnior, os quais eram direcionados aos visitantes estrangeiros e colecionado-res desse tipo de carte de visite. No tocante difuso das cartes de visite no Brasil, fundamental lembrarmos que ela tem suas singularidades, pois inicialmente seu uso est atrelado vida das elites, atingindo aos poucos outros segmentos. Essa diversidade vai sendo alcanada quando se pluralizam novos anseios e novos padres de representaes na sociedade.

    1 Desenvolvido na dcada de 1850, o coldio mido constitui-se numa placa de vidro emulsionada, sendo o primeiro negativo fotogrfico difundido comercialmente. (SOUGEZ, 1996, p. 107).

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    LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Jnior. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 21-30, maio 2014.

    Assim, a moda oriunda da Europa vai se difundindo aqui. Alguns retratados agregam valores estticos com auxlio dos fotgrafos, como nos casos em que vestimentas so emprestadas. Ou seja, a lgica de trabalho, alm de no restringir o papel do fotgrafo como mediador, permite sua fundamental presena na gerao do produto final. Enfim, o espao dos atelis nos quais as ima-gens so feitas, a chamada sala de poses, permite essa construo idealizada da individualidade.

    Escravos de ganho: da rua para a sala de poses

    Natural de Aores, Portugal, Jos Christiano de Freitas Henriques Jnior nasceu em 1832, vindo para o Brasil em 1855, acompanhado de sua esposa e dois filhos (KOSSOY, 2002). No ano de 1860, ele trabalha em Macei, Alagoas. Em 1863 se transfere para o Rio de Janeiro, inicialmente instalado no Hotel Brisson, na Rua da Ajuda, 57-B; pouco depois no Photographia do Comrcio, Rua So Pedro, 69, em sociedade com Fernando Antonio de Miranda. Em 1865 vai para a Rua da Quitanda, 53. Um ano depois encontra-se associado a Bernardo Jos Pacheco, com quem divide o ateli Christiano Jr. & Pacheco.

    Estima-se que o Rio de Janeiro contasse com 20 estdios na dcada de 1860, sendo que o ateli de Christiano veio a ser mais um na disputa pela clientela (KOSSOY, 2002). Mas o que dife-renciou seu trabalho foram exatamente os retratos da populao cativa da cidade. Realizadas no suporte carte de visite, tais imagens foram produzidas em dois padres: retratos de corpo inteiro e bustos.

    Foi em 1866 que o Almanak Laemmert anunciou a venda de uma Variada coleo de costu-mes e tipos de pretos, coisa muito prpria para quem se retira para a Europa. Sua srie foi vendida no seu prprio estabelecimento e tambm na Casa Leuzinger (LAGO; LAGO, 2005, p. 122). Tais imagens espelham as ruas do Rio de Janeiro. Importante considerar que as fotografias so produ-zidas quando a cidade tem um nmero muito grande de escravos trabalhando em suas ruas: 55 mil, prximo de 1/3 do total da populao (GORENDER, 1988, p. 93).

    Do ponto de vista comercial, a modalidade fotogrfica dos tipos exticos mais um dos produtos da poca, e feito por outros profissionais em nosso pas, sendo muito difundida. Dentre outros profissionais que desenvolveram trabalhos desse tipo destacamos Alberto Henschel, em Pernambuco, Joo Goston e Rodolpho Lindemann, na Bahia, e Felipe Augusto Fidanza, no Par. Mas nenhum o fez com a dimenso do trabalho em questo, pois at o momento j foram reco-nhecidas mais de 100 imagens diferentes, com uma ateno muito clara aos ofcios praticados pe-los escravos (LAGO, LAGO, 2005, p. 122.). Dentre o material deixado por Christiano, os retratos de

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    corpo inteiro so aqueles que mais nos chamam a ateno. neles que vemos os negros execu-tando os mais diferentes ofcios, tpicos dos escravos de ganho: vendedores de frutas, barbeiros, amoladores de facas, carregadores, entre outros. Essas imagens, negociadas no comrcio local, servem como uma espcie de souvenir dos trpicos, servindo ao imaginrio que acompanha os viajantes que por aqui passam na maior parte, estrangeiros.

    Tais fotografias foram feitas com a inteno clara de atender a um mercado especfico. Po-rm isso no compromete a importncia do trabalho de Christiano Jnior, pois salta aos olhos a forma como ele transps essas pessoas para seus retratos. As imagens mostram por parte dele um engajamento especial, seja por sua grande quantidade de tipos ou pela diversidade de ofcios mostrados. Desta forma, vemos uma similaridade entre o processo de construo da imagem aqui observado e uma definio de Boris Kossoy (1999), de que no ato fotogrfico o fotgrafo torna-se uma espcie de filtro cultural. Defende o autor que essa a maneira pela qual aquele que faz a imagem observa, compreende e representa o meio. Nesse sentido, seus saberes sobre a realidade se juntam, aliando-se tcnica e desembocando no produto final. O trabalho de Chris-tiano Jr. no apenas se destaca como um produto fotogrfico, mas tambm d relevo a aspectos peculiares da populao da capital imperial. Esses homens e mulheres, na sociedade escravo-crata, desempenhavam uma infinidade de funes, numa sociedade cuja conotao do trabalho braal pejorativa.

    Na segunda metade do sculo XIX, a principal demanda de retratos que circulava no Rio de Janeiro estava ligada a formas de representao que exaltavam a posio social, fazendo uso de vestimentas e artifcios cnicos para melhor executar essa misso. Se de um lado vemos a idealiza-o do indivduo dentro de um ambiente no qual a aparncia ganha fora, aqui nos parece que o objetivo transpor para o estdio cenas observadas na rotina da cidade. Alm disso, importante lembrar que alguns espaos tinham sua caracterstica prpria, como, por exemplo, a Rua do Ouvi-dor. Ali ficavam os principais estabelecimentos de clientela de elite, sobretudo ricos proprietrios rurais ou pessoas ligadas ao Segundo Imprio. Nesse espao estavam algumas livrarias, cafs e lojas de produtos importados. nessa regio que trabalhava o fotgrafo mais prximo a Pedro II, Insley Pacheco, cuja clientela era a mais elitizada da capital (LEITE, 2007, p. 196).

    Para melhor compreenso espacial na cidade, relevante considerar que Christiano Jnior estava instalado a quatro quadras de distncia da rea mais nobre, porm em espao prximo ao porto e ao mercado, numa rea ocupada por um nmero maior de escravos de ganho desenvol-vendo seus ofcios. Nessa poca o Rio de Janeiro era a cidade mais escravista das Amricas, com metade da populao formada por cativos, sendo que a grande maioria vivia na cidade, com con-centrao na Freguesia da Candelria, exatamente onde estava localizado o estdio de Christiano Jnior (FARIAS, GOMES, SOARES; ARAJO, 2006, p. 10).

    Vejamos alguns exemplos dessa produo. Na Figura 1 vemos um casal. O homem, aparen-tando ser um carregador, apresenta uma desgastada sobrecasaca e cala esfarrapada. Ocupando

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    o espao das ruas, os escravos assumiram a funo de vendedores ambulantes, dos mais varia-dos produtos. Alguns senhores treinavam novos escravos na arte de vender, em vez de servirem simplesmente de carregadores, ampliando as possibilidades de explorao. Alguns vendedores tambm levavam cestas sobre a cabea; outros, tabuleiros de madeira ou caixas; escravos de am-bos os sexos vendiam de tudo, [...] panelas e bules, utenslios de cozinha, cestas e esteiras, velas, poes de amor, estatuetas de santos, ervas e flores, pssaros e outros animais [...] (GRAHAM, 1988, p. 146). Isso atendia o interesse de seus proprietrios, que garantiam, assim, uma remunera-o diria com seus escravos.

    Observando as imagens, nos parece que os retratados demonstram certo desconforto. Isso provavelmente se deve complexidade da produo, que os obriga a equilibrar produtos sobre a cabea tarefa complexa devido ao longo tempo de imobilidade necessrio para fazer fotogra-fias.

    Na Figura 2 o homem veste um surrado palet e detm numa de suas mos um chapu, o que, de certa maneira, faz uma pardia dos padres de vestimenta do perodo. No seu brao direito ele tem dependurada uma sacola, sinal de que talvez seja um prestador de servios, como mensageiro ou entregador. Notvel sua roupa, com calas bem postas e palet de veludo; por-tando, ainda, um relgio, chapu e at um charuto.Mas um detalhe intransponvel: ele tem que andar descalo.Como todos os demais, ele no cala sapatos, sinal indisfarvel de sua condio de cativo (ALENCASTRO, 1997, p. 19). Sobre os carregadores, Debret relata sua funo significa-tiva. Diz ele: [...] negros carregadores, que passeiam com o cesto no brao [...] que se d o nome de negro de ganho; espalhados em grande nmero pela cidade [...], fazem todo tipo de trabalho, tendo se tornado indispensveis para a sociedade (ALENCASTRO, 1997, p. 19). Na sua descrio, estes podiam ser notados, em algumas ocasies, carregando pequeninas cargas, pois era visto

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    como [...] desprezvel quem se mostra no Brasil com um pacote na mo, por menor que seja. (ALENCASTRO, op.cit., p.159). A grande maioria dos escravos que vivia e trabalhava nas cidades atuava em alguma modalidade do tipo, indo desde carregadores de gua e dejetos humanos, at o transporte de mercadorias (KARASCH, 2000, p. 267).

    Observemos agora as Figuras 3 e 4. Na Figura 3 vemos um barbeiro, personagem importan-te na cena urbana e que j havia sido reproduzido nas aquarelas de Jean-Baptiste Debret. Posan-do como a totalidade dos modelos, ele est descalo, simbolizando inequivocamente, aos olhos do estrangeiro, sua condio de escravo. Ele veste cala, camisa e palet; em suas mos vemos suas ferramentas de trabalho: uma tesoura e um pente. Essa imagem demarca tambm uma dis-tino dele diante do contexto do trabalho escravo, pois remete a uma especificidade da funo, se comparada a outras modalidades.

    Na Figura 4 vemos uma vendedora de alimentos; ela veste uma espcie de turbante na ca-bea, seu vestido de tecido quadriculado. Em uma das mos, ela detm um dos produtos que vende; e em mais um dos exemplos de encenao, o jovem ao seu lado simula estar recebendo o produto. muito provvel que a cena transponha para o estdio um acontecimento corriqueiro da praa mercado de legumes, no qual as vendedoras se reuniam no perodo da manh (DEBRET, 1975, p. 232). relevante reconhecermos que essas imagens so fragmentos da cidade recompos-tos no ateli e, possivelmente, ao faz-lo, compreender com propriedade o universo em questo e como encen-lo, numa parceria com o fotgrafo na qual os conhecimentos se fundem.

    Na Figura 5 vemos um homem que carrega sob o brao esquerdo uma cesta. E o faz numa pose que passa a ideia de estar caminhando. Ele tem um chapu em sua cabea e o vemos de perfil. A imagem transmite a ideia de movimento. Em seu palet, abarrotado, notamos algumas

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    manchas. Sua expresso sria, direcionando seu olhar para uma das laterais do ateli. Com rela-o a sua funo, sabemos que esses homens circulavam pela cidade e, em outros casos, ficavam em pontos estratgicos aguardando algum servio como carregador. J na Figura 6 vemos um arteso trabalhando com palha. Seu olhar srio e direto para o fotgrafo. Sua vestimenta, uma cala preta e blusa branca. Em sua cabea vemos um gorro. O retratado simula estar no processo de produo de algum objeto. Importante ressaltarmos que as tcnicas de trabalho usadas nesse ofcio com palha so de origem africana, sendo uma atividade que, de certa forma, parece menos alienante que as demais (CUNHA, 1988, p. 25).

    Devemos ressaltar que tais imagens podem ser entendidas de formas diferenciadas. Algu-mas vezes vemos a opinio de que o tratamento dado aos escravos de mero objeto; em outras, reconhecido o fato do fotgrafo apenas estar fazendo um produto fotogrfico da poca, sem car-ga ideolgica por parte dele. Na viso da antroploga Manuela Carneiro da Cunha (1988, p. 24), se o homem livre tem a sua imagem construda dentro dos padres normais, o escravo, por sua vez, teve sua imagem representada como sendo pitoresco e genrico. Se isso verdade, Sandra Kout-soukos (2006, p. 128) vai mais alm e aponta que [...] os modelos posaram para Christiano sempre com dignidade, a eles parece que sempre foi dado certo grau de controle da prpria imagem [...]. Assim, essas fotografias so uma amostra de um souvenir da poca e, tambm, importantes docu-mentos histricos. Podemos considerar, ainda, que essas imagens permitem ao retratado, mesmo na sua condio de escravo, um posicionamento dentro do seu prprio grupo, pois as referidas cartes de visite eram expostas nas vitrines dos estabelecimentos. Devemos lembrar tambm que a explorao da vertente imagtica do pitoresco no comeou com a fotografia, sendo iniciada antes, como a produo de desenhos, aquarelas e litogravuras.

    Pouco tempo aps fazer essa srie, por recomendao mdica, Christiano Jnior abandona

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    o Rio de Janeiro. Indo em direo ao Sul, fica pouco tempo em Santa Catarina, depois no Uruguai. Porm, fixa-se em Buenos Aires, na qual, no ano de 1867, monta importante estabelecimento Rua Florida, 159. Na Argentina faz um nmero grande de retratos (ALEXANDER, PRIAMO; BRA-GONI, 2002, p. 23) e, em 1875, torna-se fotgrafo oficial da Sociedade Rural Argentina, realizando sua primeira mostra pela entidade, da qual se desliga em 1878. Depois ele realiza alguns projetos importantes, como a coleo Album de Vistas y Costumbres de La Argentina, contendo retratos de tipos populares, vistas de reas rurais e de edificaes. No ano de 1878, seu estdio vendido para Witcomb & Mackern. Aps disso, ele procura dar continuidade ao lbum de Vistas e Costumes da Repblica Argentina, fazendo uma peregrinao pelas mais variadas regies do pas entre 1879 e 1883.

    A complexidade do projeto o obriga a abandon-lo antes da concluso, j que as dificulda-des financeiras atrapalham seus planos. Christiano Jnior faleceu na cidade de Assuno, Para-guai, no ano de 1902. Na ocasio, sua morte foi noticiada na revista argentina Caras y Caretas. As imagens produzidas por ele no Brasil testemunham a peculiaridade de seu modo de ver e da sua astcia em transpor as ruas para seu estdio. Sem dvida, configuram-se numa referncia para a reflexo sobre a histria social do nosso pas.

    Referncias bibliogrfias

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    Figuras

    Figura 1: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 51.

    Figura 2: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 54.

    Figura 3: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 66.

    Figura 4: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 19.

    Figura 5: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 37.

    Figura 6: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 35.

    LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Jnior. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 21-30, maio2014.

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    Histrica - A Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 56, nov. 2012 Histrica - A Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 56, nov. 2012 H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DE SO PAULOHistrica Revista Eletrnica do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, n 61, maio 2014

    A SADE DOS ESCRAVOS EM MINAS GERAIS APS A ABOLIO DA IMPORTAO DE AFRICANOS

    Alisson EugnioProfessor de Histria do Brasil na Universidade Federal de Alfenas. Doutor em Histria pela USP (2008). Autor de Arautos do progresso: iderio mdico sobre sade pblica no Brasil na poca do Imprio. Atualmente prepara o livro Lgrima de Sangue: relatos sobre as condies de sade dos escravos no Brasil entre a poca de Palmares e a Abolio. E-mail: [email protected].

    Resumo: Neste texto pretende-se ensaiar algumas consideraes sobre a sade dos escravos no Brasil aps a abolio da importao de africanos. Isso ser feito a partir do confronto de dados obtidos em alguns documentos demogrficos de Minas Gerais e em estudos clssicos e recentes dedicados escravido. Dessa maneira, espera-se contribuir para a elucidao de um tema ainda pouco conhecido na historiografia brasileira.

    Palavras-chave: Escravido. Sade. Historiografia.

    Abstract: In this text we intend to advance some considerations about the health of slaves in Brazil, after the abolition of the importation of Africans. This will be done by comparing the data obtained in some demographic slave documents from Minas Gerais with classic and recent stud-ies devoted to slavery. In this way, we hope to contribute to the elucidation of a subject still little known in Brazilian historiography.

    Keywords: Slavery. Health. Historiography.

    EUGNIO, Alisson. A sade dos escravos em Minas Gerais aps a abolio da importao de africanos. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 30-43, maio 2014.

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    Nas maiores naes escravistas da Amrica, o interesse dos historiadores pela histria da sade dos escravos comeou, pelo menos, desde os estudos de Phillips (1918), nos EUA, e des-de os trabalhos de Freitas (1935), no Brasil. Entre os norte-americanos a historiografia especiali-zada nesse tema vasta. Entre ns, somente na ltima dcada verifica-se aumento expressivo de trabalhos sobre o mesmo assunto.1 Embora recentemente impulsionada e ainda em processo de consolidao, a produo historiogrfica no Brasil sobre esse tema permite esboar alguns entendimentos. O primeiro deles a respeito dos marcos cronolgicos relativos formao de um contexto favorvel s melhorias nas condies da vida em cativeiro. Antes do encerramento definitivo da importao de africanos no Imprio (1850) e, sobretudo, em grandes propriedades monocultoras, conectadas com o mercado internacional, os estudos, de um modo geral, apontam que houve na maior parte das vezes pouca ateno para com a sade no cativeiro (o que no quer dizer negligncia ou descaso; s vezes isso ocorria, mas no devia ser a regra geral, pois a aquisio de cativos gerava gasto nada desprezvel) quando a procura por produtos destinados exportao estava alta. Assim, notadamente nas regies e empreendimentos onde a oferta de africanos pelo trfico era alta e a demanda pelos produtos estava aquecida, houve maior explo-rao da escravaria (com a dilatao das jornadas de trabalho) para aumentar a produtividade, porque a renda do seu trabalho excedente, descontado o custo com a reposio da mo de obra devido s perdas com seu desgaste precoce, ainda era considerada mais lucrativa pelos senhores de escravos.2

    Em propriedades onde tal lgica prevalecia havia grande dependncia do trfico de escra-vos. Consequentemente, nelas tendia a haver maior desequilbrio entre os gneros masculino e feminino e impacto mrbido provocado por doenas, que muitas vezes passavam dos africanos recm-integrados ao plantel e vice-versa, o que desfavorecia a reproduo natural da populao escrava.3

    Aps 1850 h indcios de que essa situao tendeu a mudar. Um deles a descoberta de pro-priedades rurais (em grandes fazendas produtoras de caf) e empreendimentos urbanos (como a mina de Morro Velho), que concentravam grande escravaria, e cujos proprietrios investiram em enfermarias, farmcias, manuais de medicina prtica, contratao de mdicos e na reproduo natural da mo de obra servil. Em relao a esse ltimo investimento, tome-se o caso de Minas Ge-rais. Segundo os historiadores demgrafos, a populao escrava teve condies favorveis para

    1 Sobre a historiografia norte-americana, podem ser consultados, entre outros, SCHWARTZ (2006). Em relao ao Brasil, h apenas textos que apresentam o assunto, como PRTO (2006) e BARBOSA e GOMES (2008).2 A racionalidade econmica senhorial foi investigada por GORENDER (1978, p. 216) e aplicada anlise da sade dos escravos por SOMARRIBA (1984, p. 7-8). Alm desses historiadores citados, os seguintes tambm concordam que o fim do trfico criou condies favorveis para as melhorias no cativeiro: TEIXEIRA (2002), FALCI (2003 e 2004), MARIOSA (2006), BARBOSA (2010) e BRIZOLA (2010), entre outros.3 O impacto mrbido provocado pelos africanos recm-chegados a um plantel analisado por CURTIN (1969). De acordo com KLEIN e LUNA (LUNA, 2009), quanto maior a proporo de africanos, menor a possibilidade de reproduo natural da escravaria local, porque o trfico ofertava muito mais homens do que mulheres, gerando um desequilbrio entre sexos que reduzia os ndices de nascimento, p. 200-201.

    EUGNIO, Alisson. A sade dos escravos em Minas Gerais aps a abolio da importao de africanos. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 30-43, maio 2014.

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    crescimento demogrfico, pois havia maior proporo de mulheres em relao aos homens, o que potencializou as taxas de fertilidade no cativeiro, aumentando o percentual da participao das crianas no quadro populacional, conforme explicam Hebert Klein e Francisco Luna (LUNA, 2009, p. 172, 179), entre outros autores (BEGARD, 1999; LIBBY, 1992; e SLENES, 1986).

    Para se ter uma ideia disso, vejamos alguns nmeros do fenmeno. Em estudo recente, Ma-rio Rodarte mostrou que a populao escrava mineira experimentou crescimento de 0,8% ao ano entre 1832 e 1872, saltando de 276.098 para 378.126 indivduos, com destaque para as regies frteis de povoamento tardio (isto , as reas conquistadas aps a crise da minerao, como o Sul e a Mata, onde havia maior equilbrio entre os sexos), sendo a faixa etria compreendida entre 20 e 49 a mais dilatada (RODARTE, 2012, p. 94, 102, 104 e 107).

    Isso no poderia ser apenas fruto de importao de africanos, pois muitos indicadores re-velam dados que deixam bem clara a relevncia do crescimento natural, fruto da ampliao das taxas de fecundidade das escravas, de acordo com os clculos de Robert Slenes (1986, p. 56, 66-71). Nos documentos relativos ao balano demogrfico de 78 localidades da Provncia de Minas Gerais, enviados ao seu governo no ano de 1856, foram registrados 3.411 nascimentos e 2.509 bitos de escravos, perfazendo um saldo positivo de 902 indivduos.4 J entre 1871 e 1876, em 193 localidades da mesma Provncia, a demografia da populao escrava apresentou um resul-tado geral bem mais expressivo: 24.717 nascimentos e 4.956 mortes, totalizando saldo positivo de 19.886 pessoas.5 Entre 1871 e 1883, os quadros demonstrativos do movimento da populao escrava de diversos municpios mineiros apontam para a mesma tendncia: maior nmero de nascimentos do que de bitos.6

    Um dos municpios que mais contriburam para tanto foi Mariana. Conforme pesquisa de Heloisa Maria Teixeira, entre 1850 e 1879 o percentual de crianas (0 a 14 anos) na populao es-crava local saltou de 29,3% (uma taxa j consideravelmente alta) para 33,5%. Isso ocorreu graas formao de famlia no cativeiro (segundo ela, havia plantis constitudos em grande parte por famlias escravas. Estas chegavam, s vezes, a at quatro geraes) e ao maior equilbrio entre os sexos na idade reprodutiva. Esses dois fatores aumentaram as taxas de fertilidade das escravas, tornado-as prximas do bem sucedido padro norte-americano (TEIXEIRA, 2002, p. 197, 199).7

    Diante desses dados pode-se afirmar com alguma segurana que a conjuntura aberta em 1850 quando a importao de africanos foi definitivamente encerrada foi um momento de-cisivo para que condies favorveis ao crescimento natural da populao escrava (entre elas, a melhora da sade) pudessem ocorrer, como de fato estava ocorrendo em muitas localidades,

    4 Arquivo Pblico Mineiro. Registro de nascimentos e bitos, SP 609, 1856.5 Arquivo Pblico Mineiro. Relatrio apresentado pelo presidente da Provncia, Joo Capistrano Bandeira de Mello, Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais em 17 de agosto de 1878. Ouro Preto, 1877, p. 99-104.6 Arquivo Pblico Mineiro. Quadros demonstrativos do movimento da populao escrava, 1871-1883, SG 153.7 A comparao entre as taxas de fertilidade de Mariana e Sul dos Estados Unidos encontra-se na p. 200. Nas pginas 194 e 195 h o caso da famlia da escrava Gertrudes, do tenente Antnio Jos Lopes Carneiro, que constitua 36,7% do seu plantel formado por 60 escravos.

    EUGNIO, Alisson. A sade dos escravos em Minas Gerais aps a abolio da importao de africanos. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 30-43, maio 2014.

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    principalmente em Minas Gerais.

    Alm disso, aqueles mesmos dados indicam uma nova postura de muitos proprietrios que lidavam com escravos, pelo menos a partir de 1850. Isto concorreu para a rearticulao do escra-vismo que, a partir de ento, para continuar a existir, teria que investir na reproduo natural e/ou intensificar o trfico interno (TEIXEIRA, 2002, p. 179). No caso de muitas localidades de Minas Gerais e de algumas fazendas conhecidas no Vale do Paraba Fluminense, ao que parece, a opo predominante foi a primeira, conforme testemunhos coevos e estudos recentes.8 Mas, somente com a concluso de mais estudos, confrontando dados demogrficos das parquias e testemu-nhos obtidos em dirios de fazendas ou inventrios de seus proprietrios, que ser possvel atingir consenso sobre essa questo.

    Todavia, j no se pode dizer que nada aconteceu aps 1831, quando o trfico de africa-nos para o Brasil tornou-se ilegal, e principalmente depois de 1850, quando ele foi encerrado definitivamente. Afinal, a intensificao da produo de textos, de intelectuais de campos de co-nhecimento diferentes, defendendo a necessidade de as condies de sade no cativeiro serem melhoradas, e mostrando como isso poderia ser feito, a partir da dcada de 1830, bem como a reduo dos ndices de mortalidade e aumento das taxas de nascimento dos cativos observados em registros populacionais, revelam uma nova tendncia dentro do escravismo brasileiro. Trata--se do empenho de um conjunto de proprietrios (que ainda no possvel dimensionar) para sustentar a escravido por meio da reduo da mortalidade dos indivduos a ela submetidos e da sua reproduo natural.

    O caso da mina de Morro Velho e o de algumas fazendas j conhecidas no vale do Rio Paraba fluminense so os melhores exemplos disso. Alm disso, em muitas localidades os proprietrios procuraram internar seus escravos em hospitais ou mesmo em clnicas particulares, numa clara demonstrao de preocupao com a perda deles. Isso ocorreu em Porto Alegre (BRIZOLA, 2010, p. 37) e em diversas cidades mineiras. Em uma delas, Campanha, dos 88 internados, em 1858, na Santa Casa de Misericrdia, 21 eram escravos, dos quais sobreviveram 78, sendo 17 escravos.9 J em Barbacena, como a tabela abaixo revela, no hospital de caridade local estavam internadas 33 pessoas, das quais 8 eram escravos, com 5 mortes, sendo 2 de escravos.10

    8 Refiro-me ao testemunho do mdico Reinhold Teuscher e aos estudos de BARBOSA (2010) e MARIOSA (2006).9 Arquivo Pblico Mineiro, SP 779, 1858, p. 26210 Arquivo Pblico Mineiro, SP 779, 1858, p. 104

    EUGNIO, Alisson. A sade dos escravos em Minas Gerais aps a abolio da importao de africanos. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 30-43, maio 2014.

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    Tabela 1 Mapa dos escravos doentes tratados no hospital de caridade de Barbacena

    Fonte: Arquivo Pblico Mineiro, SP 779, 1858, p.104.

    Nome Naturalidade Idade Entrada Sada EnfermidadeJoaquim So Jos 40 26/03 03/05 ferida no p sobreviveu

    Agostinho Barbacena 40 17/05 14/06engorjitamento

    do fgadosobreviveu

    Elias Oliveira 30 30/06 - sfilis -

    Celestino Barbacena 44 10/08 13/09tubrculos nos

    escrotossobreviveu

    Ricardo Barbacena 30 19/09 20/10 reumatismo faleceu

    FelicidadeConceio da

    Boa Vista20 20/09 - diabetes -

    Matheus Ibitipoca 26 27/10 14/11 reumatismo faleceu

    PedroSantana de

    Garanhu35 06/11 09/12 necrose tbia sobreviveu

    Outro entendimento o de que os problemas de sade mais comuns da populao escra-va j adaptada ao cativeiro eram os seguintes (no necessariamente nesta ordem): as feridas e contuses, as doenas pulmonares, as doenas gastrointestinais, as doenas venreas, as vermi-noses, diversas dermatoses e as mais variadas febres (na poca muitas doenas infecciosas eram consideradas febres, como o tifo e o ttano). Desse grupo destacam-se como as mais mortferas: bronquite, pneumonia, diarreia, disenteria, hidropsias e ttano (esta ltima atacava em grande nmero as crianas recm-nascidas, devido ao pouco cuidado com a assepsia durante e depois do corte do cordo umbilical; era chamada de mal dos sete dias).

    Diante desse quadro (cujas doenas so na maioria dos casos as mesmas, variando apenas a sua incidncia devido s peculiaridades regionais ligadas alimentao, clima e tratamento), pode-se mesmo afirmar que h um padro nosolgico da populao escrava nas grandes reas escravistas das Amricas. Ou seja, h problemas de sade que so recorrentes nos cativeiros des-te vasto continente; problemas tpicos de populaes com baixo nvel de qualidade de vida, e empregadas em trabalhos penosos. o que revelam estudos de diversos autores e testemunhos mdicos da poca.11

    O terceiro e ltimo entendimento sobre a relevncia das ideias para a rearticulao do es-

    11 Algumas referncias documentais: os tratados mdicos de FERREIRA (2002); DAZILLE (1801); IMBERT (1839); e SIGAUD (2009). Algumas referncias bibliogrficas: BARBOSA (2010), BRIZOLA (2010), COSTA (in LUNA 2009, p. 239-259), MARIOSA (2006), FALCI (2003 e 2004) KARASH (2000), KIPLE (1984), LIBBY (1979).

    EUGNIO, Alisson. A sade dos escravos em Minas Gerais aps a abolio da importao de africanos. Histrica, So Paulo, ano 10, n. 61, p. 30-43, maio 2014.

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    cravismo, isto , para o prolongamento da escravido via reproduo natural. Sabe-se que, desde a transformao dessa forma de organizao da produo, em fato social aps a guerra contra Palmares, diversos intelectuais apresentaram proposies para reformar a relao entre senhores e escravos com o objetivo de diminuir as tenses sociais (MARQUESE, 2004; VAINFAS, 1986). Uma das propostas para atingir essa meta e que se repetiu at a Abolio foi a de que os propriet-rios cuidassem melhor da sua escravaria. Essas ideias inicialmente foram sustentadas no ideal da caridade crist e posteriormente, na segunda metade do sculo XVIII, no ideal da solidariedade humanitria iluminista. Nesse momento, vrios autores comearam a propor mudanas estru-turais em relao ao escravismo, atacando o trfico de escravos e defendendo medidas para a promoo da reproduo natural.

    Ainda no possvel dizer se o iderio reformista impactou os coraes e as mentes se-nhoriais, sobretudo antes da Era das Luzes, quando no havia um momento histrico favorvel transformao do comportamento dos proprietrios. No entanto, no se pode ignorar o fato de que, a partir do final do sculo XVIII, quando o iderio ilustrado j estava consolidado, tenha sido formada uma conjuntura favorvel para a crtica escravido e sua fonte abastecedora, o trfico internacional de africanos. Tal crtica era baseada no direito natural (segundo o qual a liberdade humana inata), e, ao municiar os m