Historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura · A religiosidade do morador de rúa e...

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Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e \ cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Editorial Memorándum: memoria e historia em psicología Número 20 Historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura A Memorándum número 20 apresenta um conjunto significativo de estudos históricos em psicología: A fonte autobiográfica como recurso para a apreensáo do processo de elaboragáo da experiencia na historia dos saberes psicológicos de M. Massimi propoe urna discussáo acerca deste tipo de fontes evidenciando sua relevancia nos estudos históricos em psicología. Helena Antipoff, seus pressupostos teórico-metodológicos e suas agóes na educagáo dos "excepcionais" no Brasil de H. C. Raíante e R. E. Lopes é o relato de pesquisa baseada em fontes documentáis e no estudo biográfico de Helena Antipoff. Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento de Belo Horizonte de E. H. Fazzi, B. J. Oliveira e S. D. Cirino reconstrói a historia do Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento de Belo Horizonte (1929-1946), abordando inclusive a contribuigáo de Helena Antipoff na organizagao do Laboratorio e na diregao de suas atividades. A narragáo da historia da psicología do desenvolvimento e da produgáo sobre a infancia nos livros didáticos de M. C. S. Gouvéa e P. N. Bahiense discute a constituigao histórica da psicología do desenvolvimento nos manuais de ensino da disciplina dirigidos ao ensino superior. Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observagóes (1894- 1930) de P. F. N. Muñoz, C. Facchinetti, A. A. T. Dias investiga a organizagao da estrutura e funcionamento cotidiano do Pavilhao de Observagóes Nacional de Alienados, entre 1894 e 1930, na perspectiva de compreender as relagoes entre os saberes e os poderes da época. A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas de M. C. Zurba aborda o estudo do processo histórico que levou as práticas psicológicas brasileiras a se instalarem ñas políticas públicas de saúde contemporáneas. As contribuigóes de Julio Pires Porto-Carrero a difusáo da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930 de J. L. F. Abráo apresenta as contribuigóes de Julio Pires Porto-Carrero na introdugáo das idéias relativas á psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930, tendo como foco a educagáo. Ainda numa perspectiva histórico-epistemológica situa-se urna contribuigao referente á fenomenología: Da historia da fenomenología a ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserí de C. R. A. Barreira aborda as interfaces entre fenomenología e psicología no percurso de E. Husserl e as reflexoes deste autor acerca da vida ética. Algumas contribuigóes referem-se aos campos de estudos da memoria social e da religiosidade popular. Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro- brasileiros de R. N. Dias e J. F. M. H. Bairrao busca apreender os saberes sobre o preto- velho no ámbito dos estudos acerca de psicología, cultura e religiosidade popular. Trajetórias coletivas de congadeiros de S. L. Ferreira, M. Mahfoud e M. V. Silva, é urna investigagáo realizada a partir de um conjunto de historias de vida narradas em entrevistas de sujeitos de origem africana moradores de Sao Joáo del-Rei (MG/Brasil). Sao propostas, por fim, aplicagoes de tres importantes abordagens psicológicas (a Abordagem Centrada na Pessoa, a Teoria das representagoes sociais, a Logoterapia) ñas áreas de clínica e psicología social. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20

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Editorial

Memorándum: memoria e historia em psicologíaNúmero 20

Historia e memoria em psicología: subjetividade ecultura

A Memorándum número 20 apresenta um conjunto significativo de estudos históricos empsicología:A fonte autobiográfica como recurso para a apreensáo do processo de elaboragáo daexperiencia na historia dos saberes psicológicos de M. Massimi propoe urna discussáoacerca deste tipo de fontes evidenciando sua relevancia nos estudos históricos empsicología.Helena Antipoff, seus pressupostos teórico-metodológicos e suas agóes na educagáo dos"excepcionais" no Brasil de H. C. Raíante e R. E. Lopes é o relato de pesquisa baseadaem fontes documentáis e no estudo biográfico de Helena Antipoff.Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento de Belo Horizontede E. H. Fazzi, B. J. Oliveira e S. D. Cirino reconstrói a historia do Laboratorio dePsicología da Escola de Aperfeigoamento de Belo Horizonte (1929-1946), abordandoinclusive a contribuigáo de Helena Antipoff na organizagao do Laboratorio e na diregao desuas atividades.A narragáo da historia da psicología do desenvolvimento e da produgáo sobre a infancianos livros didáticos de M. C. S. Gouvéa e P. N. Bahiense discute a constituigao históricada psicología do desenvolvimento nos manuais de ensino da disciplina dirigidos ao ensinosuperior.Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observagóes (1894-1930) de P. F. N. Muñoz, C. Facchinetti, A. A. T. Dias investiga a organizagao daestrutura e funcionamento cotidiano do Pavilhao de Observagóes Nacional de Alienados,entre 1894 e 1930, na perspectiva de compreender as relagoes entre os saberes e ospoderes da época.A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumasconseqüéncias epistemológicas de M. C. Zurba aborda o estudo do processo histórico quelevou as práticas psicológicas brasileiras a se instalarem ñas políticas públicas de saúdecontemporáneas.As contribuigóes de Julio Pires Porto-Carrero a difusáo da psicanálise de criangas noBrasil ñas décadas de 1920 e 1930 de J. L. F. Abráo apresenta as contribuigóes de JulioPires Porto-Carrero na introdugáo das idéias relativas á psicanálise de criangas no Brasilñas décadas de 1920 e 1930, tendo como foco a educagáo.Ainda numa perspectiva histórico-epistemológica situa-se urna contribuigao referente áfenomenología: Da historia da fenomenología a ética na psicología: tributo ao centenariode Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserí de C. R. A. Barreira abordaas interfaces entre fenomenología e psicología no percurso de E. Husserl e as reflexoesdeste autor acerca da vida ética.Algumas contribuigóes referem-se aos campos de estudos da memoria social e dareligiosidade popular.Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros de R. N. Dias e J. F. M. H. Bairrao busca apreender os saberes sobre o preto-velho no ámbito dos estudos acerca de psicología, cultura e religiosidade popular.Trajetórias coletivas de congadeiros de S. L. Ferreira, M. Mahfoud e M. V. Silva, é urnainvestigagáo realizada a partir de um conjunto de historias de vida narradas ementrevistas de sujeitos de origem africana moradores de Sao Joáo del-Rei (MG/Brasil).Sao propostas, por fim, aplicagoes de tres importantes abordagens psicológicas (aAbordagem Centrada na Pessoa, a Teoria das representagoes sociais, a Logoterapia) ñasáreas de clínica e psicología social.

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"Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo? de R. M. M.Brito e V. Moreira busca discutir o processo propiamente pessoal que se dá durante oprocesso psicoterapia) de base rogeriana.Social representations and valoría! oríentations: the immigrants case de E. Mangone e G.Marsico estuda aspectos do fenómeno da imigragao de jovens italianos á luz da teoriadas representagóes sociais.A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo de A. G. C.Guimaraes e J. O. Moreira a partir do relato de trechos da vida de um morador de rúamostra como a busca de sentido se faz presente na vida ñas rúas, na perspectiva dateoria de Viktor Frankl.Em suma, as pesquisas propostas nesta Edigao 20 da Memorándum evidenciam aimportancia das relagoes entre historia, memoria, psicología e cultura. A historiaproporciona urna melhor compreensao do processo de constituigao da psicología e dossaberes psicológicos no ámbito das culturas e da sociedade. A investigagao daselaboragóes da memoria coletiva evidenciam a sua importancia decisiva nos processos desubjetivagao dentre das diversas tradigóes culturáis. As perspectivas conceituais emetodológicas da psicología contemporánea contribuem ao entendimento de fenómenoscomplexos da sociedade e da cultura atuais.

Abril de 2011Miguel MahfoudMarina Massimi

Editores

Editorial

Memorándum: memory and history in psychologyIssue 20

History and memory in psychology: subjectivity andculture

The 20th issue of Memorándum shows a significant number of historical studies inpsychology:Autobiographical source as a resource for apprehending the process of elaboratingexperience in the history of psychological knowledge of M. Massimi proposes a discussionof this type of source indicating its importance in historical studies in psychology.Helena Antipoff, her theoretical-methodological assumptions and her actions in theeducation of "exceptional children" in Brazil of H. C. Rafante and R. E. Lim is a researchreport based on documentary sources and biographical study of Helena Antipoff.Notes about the Psychology Laboratory of the Improvement School of Belo Horizonte ofE. H. Fazzi, B. J. Oliveira, and S. D. Cirino reconstructs the history of the PsychologyLaboratory of the Postgraduate School of Belo Horizonte (1929-1946), also approachingthe contribution of Helen Antipoff in organizing the laboratory and management of itsactivities.The narration of the history of developmental psychology and of the production aboutchildhood in didactic books of M. C. S. Gouveia and P. N. Bahiense discusses theformation of the history of developmental psychology in teaching manuals of the subjectaddressed to higher education.Suspects under observation in the network of Psychiatry: The Pavilion of Observations(1894-1930) of P. F. N. Muñoz, C. Facchinetti, A. A. T. Days investigates the structureorganization and daily operation of the Pavilion of National Observations of AlienatedPeople, between 1894 and 1930, in order to understand the relationship betweenknowledge and power of the period.

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History of the introduction of psychological practices in the Brazilian public health systemand some epistemological consequences of M. C. Zurba approaches the study of thehistorical process that led the Brazilian psychological practices to settle in public policiesof contemporary health.The contributions of Julio Pires Porto-Carrero to the diffusion of the psychoanalysis ofchildren in Brazil in the 1920 and 1930 decades of J. L. F. Abram presents thecontributions of Julio Pires Porto-Carrero to the introduction of ideas on thepsychoanalysis of children in Brazil from 1920 to 1930, focusing on education.Even in a historical-epistemological perspective lies a contribution related to thephenomenology: From phenomenology's history to ethics in psychology: tribute to thecentenarian of Philosophy as a Rigorous Science (1911) from Edmund Husserl of C. R. A.Barrier addresses the interface between phenomenology and psychology in the path of E.Husserl and the reflections of the author concerning ethical life.Some contributions refer to the fields of social memory studies and of popular religiosity.Below and beyond the captivity of the concepts: perspectives of the preto velho in theAfro-Brazilian studies of R. N. Dias and J. F. M. H. Bairrao attempts to grasp theknowledge of preto velho concerning the studies on psychology, culture and popularreligiosity.Collective trajectories of the Congadeiros of S. L. Ferreira, M. Mahfoud and M. V. Silva isan investigation of a set of life histories narrated in interviews with subjects of Africanorigin living in Sao Joao del Rei (MG / Brazil).Finally, applications of three major psychological approaches are proposed (the PersonCentered Approach, the Theory of Social Representations, theLogotherapy) in the áreasof clinical and social psychology."Being what you are" in Carl Rogers's psychotherapy: a state or a process? of R. M. M.Brito and V. Moreira discusses the own personal process which happens during Rogerianpsychotherapy.Social representations and valoría! orientations: the immigrants case of E. Mangone, G.Marsico studies aspects of the immigration phenomenon of young Italians in the light ofthe theory of social representations.The religiosity of the homeless and the meaning of Ufe: Marcelo's case of A. G. C.Guimaraes and J. O. Moreira, from the report of life passages of a homeless man, showshow the search for meaning is present in the street life from the perspective of thetheory of Viktor Frankl.In short, the researches proposed in this 20th edition of Memorándum show theimportance of the relationship among history, memory, psychology and culture. Historyprovides a better understanding of the constitution of psychology and psychologicalknowledge in the field of culture and society. The investigation of the collective memoryelaborations highlights the key importance of the processes of subjectivity among thedifferent cultural traditions. The conceptual and methodological perspectives incontemporary psychology contribute to understanding the complex phenomena of societyand actual culture.

April 2011Miguel MahfoudMarina Massimi

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Equipe / Editorial BoardEditoresMiguel MahfoudUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Marina MassimiUniversidade de Sao PauloBrasil

Editores AssistentesRoberta Vasconcelos LeiteUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Yuri Elias GasparUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Consultores externos Ad Hoc da Memorándum 20Ad Hoc Consultants of Memorándum 20

Ana Maria Jacó-VilelaUniversidade do Estado do Rio de JaneiroBrasil

Carmen Lucia CardosoUniversidade de Sao PauloBrasil

Cristiana FacchinettiCasa de Oswaido Cruz/Fundagao Oswaido CruzBrasil

Cristina LhullierUniversidade de Caxias do SulBrasil

Elaine Pedreira RabinovichUniversidade Católica do SalvadorBrasil

Erika Lo u re neoUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Joao MadeiraUniversidade de Sao PauloBrasil

Jussara FalekUniversidade de Sao PauloBrasil

Marilia Ancona LópezPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

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Mario Ariel González PortaPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Marta Helena de FreitasUniversidade Católica de BrasiliaBrasil

José Francisco Miguel Henriques BairraoUniversidade de Sao PauloBrasil

Mitsuko Aparecida Makino AntunesPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Nádia Maria Dourado RochaFaculdade Ruy BarbosaBrasil

Paulo José Carvalho da SilvaPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Railda Fernandes AlvesUniversidade Estadual da ParaíbaBrasil

Regina Helena de Freitas CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Ronilda Iyakemi RibeiroUniversidade de Sao PauloBrasil

Roseli Esquerdo LopesUniversidade Federal de Sao CarlosBrasil

Sávio Passafaro PeresUniversidade de Sao PauloBrasil

Sergio CirinoUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Thiago Antonio Avellar de AquinoUniversidade Federal da ParaíbaBrasil

Conselho Editorial / Advisory Board

Adalgisa Arantes CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

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Alcir PécoraUniversidade de CampiñasBrasil

Angela Ales BelloPontificia Universitas LateranensisItalia

Aníbal FornariUniversidad Católica de Santa FéUniversidade Católica de La PlataArgentina

Anna UnaliUniversitá La SapienzaItalia

Antonella RomanoÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

Belmira BuenoUniversidade de Sao PauloBrasil

Caio BoschiPontificia Universidade Católica de Minas GeraisBrasil

Celso SáUniversidade do Estado do Rio de JaneiroBrasil

Danilo ZardinUniversitá Cattolica Sacro CuoreItalia

Ecléa BosiUniversidade de Sao PauloBrasil

Francesco BotturiUniversitá Cattolica Sacro CuoreItalia

Franco BuzziUniversitá Cattolica del Sacro CuoreItalia

Gilberto SafraUniversidade de Sao PauloPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Helio CarpinteroUniversidad ComplutenseEspaña

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Hugo KlappenbachUniversidad San LuisArgentina

Isaías PessottiUniversidade de Sao PauloBrasil

Janice Theodoro da SilvaUniversidade de Sao PauloBrasil

José Carlos Sebe Bom MeihyUniversidade de Sao PauloBrasil

Luís Carlos VillaltaUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Luiz Jean LauandUniversidade de Sao PauloBrasil

Maria ArmezzaniUniversitá degli Studi di PadovaItalia

Maria do Carmo GuedesPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Maria Efigénia Lage de ResendeUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Maria Fernanda Diniz Teixeira EnesUniversidade Nova de LisboaPortugal

Martine RuchatUniversité de GenéveSuiss

Michel Marie Le VenUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Monique AugrasUniversidade Católica do Rio de JaneiroBrasil

Olga Rodrigues de Moraes von SimsonUniversidade de CampiñasBrasil

Pedro MorandeUniversidad Católica de ChileChile

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Pierre-Antoine FabreÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

Regina Helena de Freitas CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Sadi MarhabaUniversitá degli Studi di PadovaItalia

William Barbosa GomesUniversidade Federal do Rio Grande do SulBrasil

Conselho Consultivo / Board of editorial consultants

Adone AgnolinUniversidade de Sao PauloBrasil

Ana Maria Jacó-VilelaUniversidade Estadual do Rio de JaneiroBrasil

André CavazottiUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Arno EngelmannUniversidade de Sao PauloBrasil

Bernadette MajoranaUniversitá degli Studi di BergamoItalia

César AdesUniversidade de Sao PauloBrasil

Davide BigalliUniversitá degli Studi di MilanoItalia

Deise ManceboUniversidade Estadual do Rio de JaneiroBrasil

Edoardo BressanUniversitá degli Studi di MilanoItalia

Eugenio dos SantosUniversidade do PortoPortugal

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Giovanna ZanlonghiUniversitá Cattolica del Sacro CuoreItalia

José Francisco Miguel Henriques BairraoUniversidade de Sao PauloBrasil

Marcos Vieira da SilvaUniversidade Federal de Sao Joao del ReiBrasil

Maria Luisa Sandoval SchmidtUniversidade de Sao PauloBrasil

Marisa Todeschan D. S. BaptistaUniversidade de Sao MarcosBrasil

Mitsuko Aparecida Makino AntunesPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Nádia RochaFaculdade Ruy BarbosaBrasil

Rachel Nunes da CunhaUniversidade de BrasiliaBrasil

Raúl Albino Pacheco FilhoPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Vanessa Almeida BarrosUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Equipe técnica / Technical Team

* Márcia Bitelli Cerántola

Apoio / Supported by

* LAPS - Laboratorio de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de Pós-Graduagao em Psicología, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG* Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas - FAFICH/UFMG* Núcleo de Epistemología e Historia das Ciencias Miguel Rolando Covian, Universidadede Sao Paulo - USP/Ribeirao Preto* Programa de Pós-Graduagao em Psicología da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras,USP/Ribeirao Preto* Biblioteca Prof. Antonio Luiz Paixao Fafich/ UFMG

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A revista eletrónica Memorándum é urna iniciativa do Grupo de Pesquisa"Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria", vinculado aoDepartamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas da

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e ao Departamento de Psicologia eEducagao da Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras Universidade de Sao Paulo -

USP/Ribeirao Preto.

The electronic scholarly journal Memorándum is an initiative of the Research Group"Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria",

linked to Departamento de Psicologia of Faculdade de Filosofia e CienciasHumanas of Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG and to Departamento de

Psicologia e Educagao of Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras of Universidade de SaoPaulo - USP/Ribeirao Preto.

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Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros.Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01

Trajetórias Coletivas de Congadeiros

Collective trajectories of the Congadeiros

Shirley de Lima-Ferreira

Miguel MahfoudUniversidade Federal de Minas Gerais

Brasil

Marcos Vieira SilvaUniversidade Federal de Sao Joao Del-Rei

Brasil

ResumoNeste artigo, apresentamos algumas consideragoes sobre as trajetórias coletivas,construidas a partir de um conjunto de historias de vida narradas em entrevistascoletivas, de congadeiros negros residentes em Sao Joao Del-Rei (MG/Brasil).Buscamos sua articulagao das lógicas da experiencia no co-engendramento públicoe privado, localizando os congados enquanto pequeños grupos de pertenga étnica,modos de objetivagao de identidades que se configuram nesta tensao. Indicamos aexistencia de contradigoes constitutivas, nao no campo dos juízos de valor ebinarismos, mas em urna dialética das percepgoes que vao construindo, no interiordeste grupo social, representagoes diferenciadas do que é o congado e de quemsao os congadeiros. Nestas identidades estao implicados valores da classe operaría,produzidos na vivencia comunitaria e legitimados no campo religioso em suasformas ecuménicas, históricas e contemporáneas. Indicamos a importancia dafamilia e da educagao para migragoes futuras nos espagos sociais delineando novoscontornos a estas trajetórias.

Palavras-chave: Trajetórias; Historias de Vida; Familia; Diáspora; IdentidadeÉtnica.

AbstractThis paper presents some accounts on collective life courses, built from a set of lifehistories told during collective interviews with black Congado members living in SaoJoao Del-Rei (MG/Brazil). We try to articúlate its logics of experience as a publicand prívate co-intertwining, locating Congados as small groups of ethnic belonging,and identity objectifying ways being arranged through this tensión. We point outfundamental contradictions, not within valué judgments and dualisms(pure/impure), but a perception dialectics that builds, in the middle of this socialgroup, differentiated representations of what Congado is and of who the Congadomembers are. These identities are entangled with working class valúes, producedby community life and legitimized at the religious field along with its ecumenical,historical and contemporary forms. We draw attention to the importance of familyand education to future migrations throughout social spaces by sketching newoutlines to these life courses.

Keywords: trajectories; life histories; family; diáspora; ethnic identity.

IntroducaoGrupos sociais concretos negociam sua existencia em momentos históricos eespagos sociais específicos, pois se organizam em torno de demandas,necessidades e projetos, nos quais seus membros sentem-se reconhecidos (1).Condicionamentos sociais e psíquicos, associados á trajetória particular de cada

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urna destas pessoas, determinarlo certo modo de funcionamento para estaprodugao singular, constituir-se enquanto grupo. Este empreendimento naoconfigura um projeto em si, pois as necessidades coletivas surgem ñas relagoescom outros grupos, entre maiorias e minorias nao demográficas, mas diferenciadasquanto á posse de recursos valorizados num determinado contexto histórico, queestabelecem as condigoes da tutela que se declara naturalmente legítima ao ocultara arqueología de sua sedimentagao. Experiencias de frustragao e gratificagao, dereprodugao das relagoes de dominagao e de conscientizagao destas relagoes, deapego aos projetos coletivos e de distanciamento dos ideáis enunciados, sao tragospertinentes as biografías individuáis ou constituem o resultado construido de umsistema de tragos pertinentes a um grupo de biografías que Bourdieu (1974)denominou trajetórias.Históricamente, os congadeiros sao criadores de um complexo sistema simbólico eexpressivo ligado á vivencia comunitaria, afirmando-se resistentes á dissipagao deseus valores, saberes e crengas, adotando formas portuguesas para expressarvalores africanos. Sao afrodescendentes e, portanto, um grupo específico devítimas de racismo e discriminagao, estatuto político ratificado na Declaragao deDurban - 2001. Mas, nos dias atuais, um movimento diferente daquele descrito porOrtiz (1991), em relagao ao suporte de determinado segmento da intelectualidadebranca ao processo de legitimagao das religioes afro-brasileiras, revela o aumentoda participagao de pessoas mestigas e brancas no Congado sob os efeitosexcludentes da pobreza no plano das identificagoes e busca de novos espagossociais de inclusao (Dias, 2001; Silva, 1999; Souza, 2001; 2002). Objetivamentepertencentes ao mesmo grupo estrutural como designado por Martín-Baró (1989),alinham-se na divisao social do trabalho, pois nao detém a propriedade dos meiosde produgao, e ocupam lugares semelhantes na distribuigao social doconhecimento, contando poucos anos de escolaridade.Estes lugares comunitarios "onde todos sao chamados pelo nome" (Guareschi,1996) resguardam certo grau de contigüidade entre o grupo familiar, o grupo detrabalho, e o grupo de lazer maniendo um menor intervalo psicossocial entre ostempos de trabalho e nao-trabalho (Bosi, 1977/2007). No Congado, culturareligiosa nao submetida aos avatares da produgao industrial, cada urna destaspessoas, em um determinado momento de sua vida, escolheu tornar-se um,dedicando tempo de seu lazer as atividades comunitarias, assumindo como seusnormas e valores coletivos, atribuindo a esta participagao um significado queemerge da produgao de sentidos em que interatuam discursos oriundos de diversoslugares (Spink, 2004).Apoiados em Geertz (1968/1994), nao almejamos a síntese perfeita entre a visaode mundo e o estilo de vida destas pessoas. Buscamos investigar o processocoletivo de articulagao de determinada atitude religiosa, objetivada em padroesmoráis, sociais e estéticos, e subjetivada enquanto realidade, modelando adisposigao da pessoa subjacente a si mesma e ao mundo em vive, a urnadeterminada configuragao conceitual e institucional. Nosso objetivo é demonstrarque esta participagao promove a integragao das dimensoes culturáis, sociais epsíquicas, favorecendo o processo de conversao dos arbitrarios signos culturáis emnecessidade ontológica e moral (Giumbelli, 2003). Neste sentido, a partir dacomparagao das trajetórias individuáis, buscamos aspectos de similaridade destespercursos que atualizam a perspectiva de construgao diacrónica das trajetórias dosdiferentes grupos sociais.

As festas do Congado: a entronizacáo de Reis NegrosO Congado designa a reuniao dos pequeños grupos de congadeiros denominadosTemos, Bandas ou Guardas, em cortejos, missas congas e triduos festivos para oascendimento de mastros aos santos de devogao, principalmente Nossa Senhora doRosario, Santa Efigénia e Sao Benedito e para a coroagao de reis e rainhas. Nestas

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cerimónias rituais de fé e devogao, dramatizam solenemente, percorrendo as rúasdas cidades, episodios vividos de batalhas, conquistas, e a ascensao ao poder.Temos de mogambiques, congos, catopés, caboclinhos, marujos, dentre outros,com seus diferentes batuques, dangas, cantos, vestimentas, amuletos e insignias,evoluem coordenados pelos Capitaes.Esta manifestagao da cultura popular afro-luso-brasileira preservada,principalmente, ñas Irmandades Religiosas Leigas de Negros desde século XVIII,serviu aos africanos e seus descendentes, como importante espago de resistenciacultural. Na diáspora, um trabalho representacional contra a insuportável ameagada perda dos marcos referenciais, foi ancorado no poder organizador dos reisnegros eleitos em organizagoes de trabalho, quilombos e levantes de escravos. Noprocesso histórico de coroagao dos reis de nagao á eleigao do rei Congo, estetornou-se intermediario ñas relagoes com o sagrado e verdadeiro líder comunitario:"remetendo á térra natal ao mesmo tempo em que esta era despida de suasparticularidades concretas, passando a ser sentida como um lugar mítico do qualvieram todos os africanos escravizados" (Souza, 2001, p. 252). O rei congoconstituí um novo elemento identitário, fundante e aglutinador (Dias, 2001).A difusao do cristianismo entre as linhagens governantes do reino do Congofavoreceu a associagao dos elementos cristaos ao mundo dos ancestrais e a umpassado anterior á escravizagao. Souza (2001) localiza este sincretismo naatividade de retransmissao do cristianismo por catequistas nativas queacrescentavam suas contribuigoes particulares. Esta capacidade de incorporarnovos movimentos as religioes tradicionais estabelece os rudimentos para que asfestas de eleigao de reis negros, no Brasil, sejam estruturadas pelo catolicismopopular portugués. A intensificagao desta estrutura estruturante (Bourdieu, 1974)ocorrerá dentro das confrarias religiosas que estabeleceram quadros de agaocoletiva que trespassavam as divisoes étnicas e sociais dos negros.Este sincretismo do sistema ritual Congado, demonstrava sua integragao ásociedade colonial, mediante o controle e a complacencia da Igreja que, todavía,reprimía outras manifestagoes marcadamente africanas (Dias, 2001; Souza, 2001).Neste sentido, acompanhando Geertz (1968/1994), consideramos que é necessáriodistinguir entre "urna atitude religiosa para com a experiencia e os tipos de aparatosocial que estiveram, através do tempo e do espago, associados comumente com adefesa de tal atitude" (p. 18). Assim, as Irmandades cumpriam urna fungaoambivalente, cuidando tanto da formagao religiosa dos seus membros quantoconstituindo a única via de organizagao da sociedade civil (Dias, 2001).Apaziguaram conflitos maniendo a ordem social estabelecida e também, medianteo trabalho subversivo daqueles excluidos do interior (Bourdieu, 1995), estaparticipagao:

Criou cañáis de protesto e de diálogo com órgaosda Coroa, estabeleceu frentes de causasmobilizadoras da comunidade negra e familiarizouos escravos e libertos com o funcionamento dasinstituigoes. Demonstrou as possibilidades abertaspara manipulagao das estruturas de poder. (...)táticas dos confrades que subvertiam edeslocavam seus modos de realizagao."Inteligencia em dédalos" a operar com a ocasiao,criando representagoes - a partir das práticasdeterminadas pela memoria (...) introduziuespago privilegiado de intercambio cultural queatravessava as relagoes de dominagaoconstituidas nos lugares tradicionais e situava osconfrades em posigao privilegiada de negociagao.Veiculou formas de discurso radical, conformou

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práticas de autonomía e autogestáo da vidareligiosa e desenvolveu rituais de inversáohierárquica, os quais repuseram em questao ostermos das relagoes sociais de dominagáo(Aguiar, 2001, p. 391-392).

Ao longo de século XVIII e XIX a Igreja, que provinha justificativas teológicas paraa perpetuagáo do sistema escravista apoiada ñas idéias de predestinagáo eorganicidade, contribuiu para a manutengáo do espago público fechado. Visandoafastar-se de seu passado colonial, proibiu aos padres, dentre outras medidas decombate á religiosidade popular, a coroagáo de Reis Congo ñas igrejas emarginalizou as irmandades ocasionando o deslocamento de urna importanteposigao estratégica para os congadeiros. Via irmandades, mesmo que de modomarginal, integravam-se ao dominio da cultura dominante em comparagáo aposigoes de outras práticas religiosas da comunidade negra. Sobretudo, com aaboligáo da escravatura (1888) e a proclamagáo da república (1889) a populagáonegra conforma o enorme contingente de operarios do capital em que também semisturam brancos pobres e ¡migrantes - o povo. Das senzalas, para os cortigos e asfavelas, as tradigoes do congado, enraizadas ñas condigoes sociais e materiais dacomunidade negra e incorporadas as suas práticas populares resistiráo (em suastransformagoes) nos espagos urbanos e intra-urbanos da sociedade brasileira. Fiéisá celebragáo comunitaria firmemente ancorada na memoria coletiva, oscongadeiros permaneceram tocando em frente ás portas fechadas das igrejas.No ámbito do Congado, o impacto das "lutas negras pela descolonizagáo dasmentes dos povos da diáspora negra" (Hall, 2006, p. 318) nao alcangará aaniquilagáo das formas de imperialismo que Ihe deram origem e subsistem em seusistema ritual. Em sentido último, aniquilá-las, seria aniquilar a própria tradigáo,erradicá-la como resquicio de um fosso histórico de cultura cooptada a eliminar:"sao essas hierarquias que reduzem tanta experiencia social á condigáo de residuo.As experiencias sao consideradas residuais porque sao contemporáneas de maneiraque a temporalidade dominante, o tempo linear, nao é capaz de reconhecer"(Santos, 2002, p. 17). Temos observado que a tensáo entre o projeto político daslutas negras e dos direitos civis produziu na historia novas formas de relagáo com aIgreja favorecendo a emergencia de novas liderangas que operam em dédalos nainstituigáo produzindo novas representagoes ao recolocar em questao os termosdas relagoes sociais de dominagáo.

Sejamos mais específicos. Na segunda metade de século XX, a ascensáo do PapaJoáo Paulo II e o crescimento do humanismo cristáo trouxeram novas exigencias aocatólico-pessoa-concreta-no-mundo. O retorno aos principios cristáo fundamentáis,no Concilio do Vaticano II (1962-1965), autorizou o trabalho com membros deoutras denominagoes. Na América Latina, propagou-se a Teología da Libertagáo quepolitiza a reflexáo teológica pela conscientizagáo e organizagáo daquelessubmetidos a qualquer forma de opressáo (Paiva, 2003). No Brasil, movimentos departicipagáo popular, enfraquecidos pelo Golpe de 64, re-emergem em 1968,quando a Igreja esboga novo movimento de abertura. Da complexidade deiniciativas e movimentos associados a esta orientagáo ecuménica e á ética dasolidariedade, destacamos a organizagáo das Comunidades Eclesiais de Base -CEBs e dos Agentes da Pastoral Negra - APN, que fomentaram a emergencia denovas liderangas carismáticas e populares (Paiva, 2003; Sanchis, 2001). Assim, nosdias atuais, congadeiros celebram novamente no interior de algumas paróquias (2)brasileiras. A modificagáo da valencia da cultura popular - patrimonio ¡material aser preservado em sua dinámica processual - é acompanhada do debatepropositivo sobre a igualdade racial (todos iguais perante Deus) e doreconhecimento das diferengas no campo dos direitos civis. A este respeito, vamosacompanhar a posigao do padre negro Dom Gilio Felicio (3) em entrevista á revistaMissóes (Patias, 2010):

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Dizem que no Brasil nao há racismo. Por queentáo há táo poucos padres e bispos negrosbrasileiros?(...) Em primeiro lugar, a Igreja precisa continuaressa caminhada bonita de libertagao doscondicionamentos que foram criados no tempo daescravidao e, portanto, dos mecanismos deexclusao dos valores africanos e afro-descendentes. Ao mesmo tempo, a Igreja, apartir do Documento de Aparecida, deve lutarpara conhecer, assumir, estimar e promover osvalores afro-descendentes. E, claro, colocar a suamissao crista a servigo dos negros e negras queestao necessitando de urna forga, de auto-estima,do dom de Deus presente na negritude,necessitando de políticas afirmativas, enfim, deserem atendidos ñas suas carencias, em seusgritos por socorro, mas ao mesmo tempo, nosentido de poderem participar e oferecer, comodizia o papa Joao Paulo I I , em Santo Domingo, osseus valores culturáis para enriquecer a Igreja e asociedade. (...)A Pastoral Afro encontra certa resistencia emalgumas dioceses. Quais seriam as maioresdificuldades?Varias dioceses ainda nao iniciaram essa pastoralexatamente em virtude desses condicionamentosda época da escravidao e da situagao que pesaainda na sociedade e na Igreja, do racismo, dadiscriminagao racial e assim por diante.Percebemos na sociedade brasileira boa vontadecom varios Centros e Entidades até em nivelministerial que estao trabalhando em favor dapopulagao negra. Mas há um longo caminho desuperagao desse condicionamento racista.Também, urna das dificuldades que encontramosna Igreja é a questao do diálogo ecuménico einter-religioso. Nesse diálogo, nos nao podemosfugir dos interlocutores que pertencem asreligioes de matrizes africanas. Quando seestabelecem os encaminhamentos, quando essesdiálogos comegam, há urna resistencia bastantegrande. Um sonho que a Igreja tem é ainculturagao da sua agao evangelizadora. Essecaminho também é bastante espinhoso, commuitas incompreensoes. Evidentemente que acaminhada que se faz nao é perfeita, mas há urnaresistencia mesmo naqueles passos que saodados e que estao absolutamente de acordó comos documentos e com o magisterio da Igreja (p.26).

Históricamente, os congadeiros realizam um trabalho representacional, ancorado namemoria coletiva do cativeiro, constituindo pequeños grupos que objetivam aconsciéncia e a pertenga étnica. Eis o fundamento de toda representagao social,familiarizar o nao familiar e localizá-lo, restabelecendo um sentido de continuidade

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entre o passado, o presente e o futuro (Moscovici, 2005). Se esta objetivagao daidentidade está para um processo de coisificagao em representagoes deterioradas edeteriorantes - preconceitos, estigmas, discriminagoes - produzidas e legitimadaspelas instituigoes dominantes que veiculam as identidades legitimadoras, paraaqueles que ocupam posigoes desfavorecidas e criam representagoes afirmativas -auto-estima, orgulho, reconhecimento - sua identidade está para a resistencia(Castells, 2006). Os falantes, que agem, constroem um mundo mais ou menosestável a partir da diversidade, nem inerte, nem mortal, mas em movimento, defato escolhem alguns de seus grupos de pertenga pelas contingencias materiais; aescola mais próxima, o local de trabalho, a religiao praticada pela familia. Porém,outros grupos sao escolhidos pelos dramas vividos, no sentido atribuido por Politzer(1928/1988). Portanto, a identidade, a consciéncia de si, é pensada como processo,"que gera e mantém a forga que liga urna pessoa ou grupo a urna atitude oucrenga. Tal processo caracteriza-se, o tempo todo, pela marca da historicidade,sendo continuamente objeto de reposigao" (Nascimento & Menandro, 2002, p.114). Assim, no curso da vida, o apego afetivo e o desapego, ressignificam opassado, orientam o presente e possibilitam a projegao de um futuro (Schimdt &Mahfoud, 1993).Anteriormente, afirmamos que alguns autores tém indicado a progressiva dispersaodas identidades étnicas em novos hibridismos culturáis enquanto gruposorganizados tém lutado ativamente pelo resgate e construgao de referenciais maissólidos para os afrodescendentes. Como se dá o processo de subjetivagao eobjetivagao da identidade étnica para estas pessoas em seu dia-a-dia?

Narrativas dos congadeiros: trabalho-religioso, trabalho-comunitárioAs Entrevistas Narrativas - EN (Jovchelovitch & Bauer, 2004), indicadas emprojetos que combinem historias de vida e contextos sócio-históricos, configuram-se em momento para que a pessoa, a partir de urna pergunta inicial formulada pelopesquisador, possa contar do curso de sua própria vida. Em lembrangas (eesquecimentos) de acontecimentos, de lugares, de fatos importantes, na escolhados elos que articulam esta tessitura, é possível entrever os sentidos atribuidos e omodo com a pessoa agiu, com e para além das sobredeterminagoes históricas,culturáis, políticas, económicas, etc. Sabemos que a memoria coletiva é campo dedisputas, em que diferentes grupos sociais se avaliam, se articulam e localizam assuas lembrangas em quadros sociais comuns (Halbwachs, 1950/2006).Após ampio estudo exploratorio, contatamos líderes comunitarios promotores dasfestas do Congado na cidade de Sao Joao Del-Rei, fundadores de associagoes decongadeiros e/ou membros de temos. Solicitamos aos entrevistados, idosos eadultos, homens e mulheres, nascidos nesta cidade e em seu entorno, migrantesda zona rural ou que toda a vida residiram em seus bairros periféricos, quecontassem como se tornaram congadeiros, e/ou descrevessem a sua participagaono Congado. Perguntas e respostas surgiram na atividade de conversagao. Foramrealizadas tres entrevistas, todas coletivas. Gravadas com o devido consentimentodos entrevistados em arquivos digitais, após a etapa de transcrigao cada entrevistafoi submetida ao tratamento de textualizagao com vistas á aplicagao do método deanálise proposto por Schütz (citado por Jovchelovitch & Bauer, 2004) que visa áidentificagao de trajetórias coletivas.Em primeiro lugar, foram compiladas as historias de vida dos seis congadeirosparticipantes da pesquisa. Visando constituir urna perspectiva temporal, emdetrimento de reconstituigao objetiva, trata-se do trabalho de organizagao dosacontecimentos valorizados pelos sujeitos das narrativas. Todos os nomes foramsubstituidos. Em seguida, a partir da comparagao das trajetórias individuáis, forambuscados aspectos de similaridade destas historias de vida. Tais semelhangas foramcontextualizadas e sao discutidas á luz dos apontamentos de alguns autoresrelevantes.

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Sabemos que, muitas vezes, as testemunhas oráis "sao dominadas por umprocesso de estereotipia e se dobram á memoria institucional" (Bosi, 2004, p. 17).Nao se trata de julgá-las, mas, nos dizeres de Pierre Bourdieu, compreender. Abrir-se para a percepgáo da crítica da própria ideología feita pelo sujeito da narrativa(Bosi, 2004). Sao estes tempos, estes momentos de ruptura, estes sonhos coletivosque possibilitam a emergencia da consciéncia histórica, ou seja, de tomar parte deurna agáo compartilhada como praxis transformadora (Lañe, 1984). Desta forma, e,acompanhando Pollak (1989), buscamos investigar o trabalho subversivo daquelas"memorias subterráneas, proibidas e clandestinas que jamáis puderam se exprimirpublicamente" (p. 5).

Trajetórias ColetivasEstes congadeiros vivenciaram urna infancia de pobreza e contam poucos anos deescolaridade. A educagáo formal nao foi tema em que se detivessem em suasnarrativas. Na infancia, Joaquim se lembrou dos constrangimentos vividos na escolasempre que interrogado sobre urna profissáo paterna desconhecida. Entretanto, aquestáo do reconhecimento e da legitimagáo de suas atividades comunitariasrecolocará o problema dos diplomas. Voltaremos a este ponto posteriormente.

Atitude religiosa e historia familiarAs origens da atitude religiosa remetem os depoentes á historia familiar. Na cidade,no bairro, a vivencia pública dos ritos e dogmas católicos. No interior da casa e dafamilia, a experiencia privada das religioes afrodescendentes mediadas pelossaberes dos velhos negros, benzedores, difícilmente encontrados nacontemporaneidade:

Fiz a minha primeira eucaristía, eu estudei ocatecismo, (...) entáo todo domingo a missa dassete e meia, a missa da changa, entáo eu fuicriada na religiáo católica (Eugenia).Pegava um guarda-chuva, e assim, pra ninguémme ver! Entáo, ia lá urna vez ou outra é que agente ia no terreiro. (...) Vocé fala, ah, temalguma coisa assim que eu tó precisando benzer,entáo quem acredita vai. Todo negro acredita(Maria).Entáo a gente, por nao saber ainda as magias,que nos era ainda muito prematuro, muitachanga, pra que nossos pais, tios, ensinasse pragente, mas a gente sabia que tinha é, as suasmandingas, mas como a gente nao sabia. Por queeles nunca fazia mandinga perto da gente.Sempre "ah, vou ali, nao sei o qué, pá, aesquerda e ia pra direita. E quando vocé tapensando que eles táo de cá, eles táo de lá! Equando vai ver... E a gente tinha urna maniaassim também, muito sorrateiro, que nao podiade ouvir a conversa dos mais velhos. Entáo asvezes vocé captava alguma coisa, através deconversa deles. Mas nao podia mencionar(Joaquim).

Zonas de MisterioOs congadeiros resguardam as explicagoes das tradigoes, das atribuigoes rituais efundamentos místicos e mágicos, sao as zonas de misterio. Esta relagáo com osagrado, único recurso para enfrentar as adversidades, era invocado em situagoes

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diversas como nos conta Jerónimo: "quebranto, benzé de corpo, quebranto devento virado, etc., dor, mordida de cobra, etc. E, inclusive, quase que eu possoafirmar que é real, eles benziam até chuva! Encostá chuva, plantagao, afastáanimáis nocivos".Os temos de Mogambique "sao tidos como os mais perigosos, envoltos em práticasmágicas e com poderes sobrenaturais, que podem até levar á morte de quem secoloque de maneira equivocada em seus caminhos" (Souza, 2002, p. 327). Omogambiqueiro Jerónimo, remanescente de urna geragao de "negos sabidos" (sic)que já partiu, diz estar "dando hora extra" sozinho e considera que "Nao dá praabrir muito nao". Mas nos conta que ñas Festas do Rosario, "na Festa de Congadomesmo, tem o desafio, o desabafo e tem os canto de ponto. Os canto de ponto...Mexe com entidades idas, aqueles preto véio que morreu sofrendo demais, mexecom espirito deles um negocio é... Mais ou menos assim, é complicado". SegundoSilva (1999), pontos de Umbanda ou Candomblé integram os ritos preparatoriosque antecedem as Festas do Rosario, mas nao sao entoados em cortejos públicos.Raramente, serao os conflitos intergrupos os disparadores operativos para amobilizagao dos recursos sagrados e protetores. Nestas "trocas de demanda" (sic),pedem licenga a Exu para atravessar á encruzilhada, acompanhados de pretosvelhos e caboclos (Silva, 1999).Deste modo, as práticas e os discursos dos congadeiros com relagao á Umbanda eao Candomblé sao reticentes, tabú. Na pesquisa de Fernandes (2003) saoconsideradas malditas. Um de seus entrevistados Ihe diz: "Os Arturos é de pai parafilho e nao perdeu a origem. Os outros misturam com sessao espirita. (...) Temgente que destrói o Congado e a cultura negra" (p. 76).Indicamos varios elementos e faz-se necessário destacá-los. Sabemos da fungaolegitimadora do sincretismo cristao constitutivo do Congado, frente aos interessespolíticos em jogo ñas disputas do mercado concorrencial religioso (Bourdieu, 1974).As estrategias de protegao destes conhecimentos contrastam com a aparentevisibilidade de seus rituais. Portanto, no contexto do Congado, público e privadonao podem ser lidos como fronteirigos, mesclam-se em diferentes níveis. Dessemodo, a perspectiva de destruigao/degenerescéncia, mencionada pelo entrevistadoestá relacionada á sessao espirita e, o espiritismo, conforme Ortiz (1991) é um doscomponentes históricos da umbanda. Mas na fala do congadeiro, nao temoselementos suficientes para determinar se a referencia ao espiritismo se faz emrelagao ao candomblé ou a umbanda, e mesmo a urna indiferenciagao. Por outrolado, também podemos perguntar se a acusagao de desvio - mistura/destruigao -está relacionada com os movimentos do mercado concorrencial religioso, pois,certamente, podemos tencioná-la com a posigao do padre: "o padre nao aceitava,que as pessoas tira proveito. (...) um dia nos comentamos lá em casa, que tem oSanto Católico, e tem o outro santo, o mesmo santo mas porém de outra banda.(...) vai é da mente da pessoa, onde misturou um mucado por causa disso que opadre nao gostava" (Jerónimo).E os gostos do padre, representante institucional que mantém/veicularepresentagóes do imaginario popular sao importantes, pois intercambiáveis: aspráticas místico-sagradas podem ser reservadas aos momentos privados e naoevocadas no contexto público, mas urna vez evocadas, será necessário mobilizarrecursos de familiaridade para localizá-las enquanto tais. Mas, as contranarrativassao fundamentáis. Joaquim adverte: "nao sou católico, sou cristao!". Ultrapassamosa dimensao primaria da formagao religiosa e dos hábitos herdados e já nosencaminhamos para as escolhas, melhor discutidas adiante. Neste ponto,precisamos visualizar mais alguns sentimentos associados ao contexto detransmissao do contexto ritual.

Transmissao do contexto ritual

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Embora em algumas comunidades tradicionais seja fundamental destacar acentralidade da figura paterna como nos Arturos (Contagem/MG), em que os filhosde Artur sao também seus netos, ñoras, genros, etc. (Fernandes, 2003), nestecontexto maes, irmas e irmaos, tios e tias, também guardam consigo e transmitemmuitos dos segredos místicos do Congado. Os conhecimentos instrumentáis edevocionais para a continuidade das tradigoes sao transmitidos em ritospreparatorios, apresentagoes públicas e situagoes espontáneas e em lugaresdiversos, a casa, a rúa, o canto de trabalho. Como quem brinca a revelia da mae,Teresa ia para a rúa bater paus com os congadeiros. Mas o menino Jerónimo filhode Capitáo de Congado, nascido em 1942, seguia com os adultos para a roga astres da manhá. Sua tarefa era tocar a caixa entregue pelo tio-avó, firmementeamarrada para que nao se arrastasse contra o chao. De vez em quando procuravaescapar. Certa feita, com a conivéncia da mae, usou batatas para forjar agravidade da caxumba.

Sentimentos associados a pertengaPortanto, neste processo de transmissáo, sentimentos diversos e contrad¡toriospodem ser identificados. Afirmar a existencia de contradigoes constitutivas nao nosposiciona no campo dos juízos de valor, nossas referencias nao sao binarismos(puro/impuro), mas urna dialética das percepgoes que váo construindo no interiordeste grupo social representagoes diferenciadas do que é o congado e de quem saoos congadeiros. Neste sentido, o orgulho (desejo de contribuir e participar dosprojetos familiares); a ansiedade (desvelar os misterios detidos pelos antigos paraalcangar um lugar junto a eles); o medo (dos misteriosos saberes mágico-religiososdestes congadeiros antigos, "feiticeiros" (sic); e a vergonha (do que os outrosdiziam - e dizem - de suas vestes e performances rituais):

O congado deles era Bate-Pau e da familia e tinhade bater pau! E eu entrava no meio (...) noescondido, porque na hora que tinha que falar oi,sua filha ta lá no meio dos congadeiro batendopau, ai mandava me chamar, chegando lá, ai, ai.(...). A mae, oh, enfiava o coro. (...). Mas eu naovou chorar que eu vou voltar. Acabava deapanhar ali, a mae esquecia, eu ia lá pro meio doscongadeiro batendo pau. Mais foi bom. Essascoisa da gente veio de muito tempo (...) e eu jáesqueci muita coisa (Teresa).Mas eu tinha um medo! Que eles falava, eu naosei qual é a ciencia, que vocé vinha, o Congado tatocando, vém Rei, Rainha, com a coroa na cabegae eles vém com um guarda-chuva pra gente naopanhar sol. Ai tinha um contó, que o povo contavaque aqueles guarda-chuva voava quando chegavana encruza e que a gente ia junto! (...) eu fui urnavez só e nao quis mais. E eu ficava olhando oCongado, quando ele passava na rúa, eu semprefui criada nessa rúa sabe? A casa do meu pai eralá na frente. E minha mae ia ajudar as maes dosdois, que as maes era irma. (...). Porque todomundo falava que era feiticeiro. (...) Todos osCongado era feitigaria. Entao quando eles passavabatendo de porta em porta, tocando ñas casas, euolhava da greta da porta (Maria).

Aqui, Maria fala de sua experiencia na infancia. Mas fagamos um paréntese paraantecipar sua inflexao sobre a vergonha, quando procura explicar, para si e para o

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pesquisador, os motivos da saída de changas e adolescentes do Grupo deInculturagáo que ela coordenará em sua vida adulta:

Muitos saíram por motivo de trabalho ou entáopor afinidade mesmo, e por vergonha de estarapresentando, de dangar, por causa de crítica queo outro colega fala: - Ah lá o macumbeiro! Ah lá aroupa dele! Eles caem fora, de vergonha, e perdeno mundo (Maria).

Diversidade religiosaMas, as familias destes congadeiros, considerando também o núcleo ampliado emrelagáo aos tios, primos, etc. podem ser caracterizadas pela pluralidade quanto ápertenga religiosa que nao é tomada como "medida de todas as coisas", nao ésuficiente para se apreciar o caráter de urna pessoa. A convivencia destescandomblecistas, espiritas e cristáos católicos e protestantes, é indicativa de algopróximo ao que Paiva (2003) afirmou sobre a diversidade religiosa, nao constituíameaga a própria identidade. Porém, perceberemos adiante que os conflitosfamiliares aparecem no desenvolvimento efetivo dos projetos (constituir um grupode Congado; fundar associagoes), na dinámica das rupturas e criagáo de novosprojetos:

Na minha familia nao sao todos. Entáo a minhafamilia, ontem nos rimos que na nossa familia nostemos evangélico, nos temos freirá, kardecista e(...) candomblecista, de maneiras que cada umrespeita a religiáo do outro. Entáo nos nao temosconfuto com religiáo. Porque o que faz a pessoanao é a religiáo. Porque em todas as religioes,existe bom, e existe mal. Entáo, essa questáo dapessoa nao seguir, entáo isso é do ser humano.Por que tem o ser, todos nos, o ser humano, nostemos, o nosso lado bom, o livre arbitrio, todosnos sabemos o que nos devemos seguir. Entáo,de maneiras que nao é a religiáo nao, ta no serhumano (Eugenia).

Transformagóes e permanenciasA constituigáo de um terno, banda ou grupo de Congado é um processo queenvolve a transmissáo de saberes que, vivenciados na infancia, sao re-elaboradospara as necessidades e exigencias do projeto atual. Jerónimo, atento observadordas transformagóes e permanencias do contexto ritual do Congado, indica outrasdemarcagoes que configuram nos dias atuais um complexo de difícil definigáo. Asdangas do Facáo e Bate-Paus, por exemplo, eram dangados de outro modo e osmogambiques produziam seus sons com guizos nos pés, punhos e pescogo, naousavam instrumentos: "é um terno mais pobre, ele nao tem uniforme (...). O carapode ir de terno, pode ir de chínelo, descaigo, de botina, pode... O Mogambique elenao tem uniforme e nao tem instrumento. Na lógica, hoje tem, hoje é diferente,mas a verdade é essa". Assim, estes processos deflagram urna serie de contatos eparcerias com consultores/orientadores especializados em diversos campos dosaber: letras e tons dos cantos, dangas, complexos performáticos, confecgáo deinstrumentos, ritmos, vestimentas e adornos.

Nos conversamos primeiro com o pessoal dafamilia (...). Que nos em si, nossa familia é muitogrande. Nos comegamos o Congado nosso comnossa própria familia mesmo. Ai em diante, nosfomo juntando o Congado e tal, foi aparecendo

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mais gente também, entrando no Congado, aiagora a gente ta com faixa de mais de trinta eseis pessoas! (...) Entrou mais gente de fora.Agora nao é só gente da familia, tem (...) colegada gente que gosta de participar (Teodoro).Veio foi o Antonio, depois o Joáo veio, Franciscoda roga e tudo... (...) Ai depois quem veio é pradar urna levantada foi o Antonio Santana. Aidepois veio a vó, e seu Pedro veio. Ai o Antonionao voltou mais nao. Mais depois seu Pedro saiu eai o Antonio voltou. Mas a gente já sabia algumascoisas cié Congado. (...) Primeiro o Joao, primeiro.(...). É ele entrou como capitao, mas nao, eletinha é, ele tinha experiencia como o Antoniotinha. O Antonio vinha pra poder ta ajudando(Teresa).

O trabalhoConforme indicamos anteriormente, "sao trabajadores que fazem o Congado"(Lima-Ferreira, 2008, p. 194) e criam valores de uso, investem tempo e recursospróprios para suas vestes, adornos, estandartes, instrumentos musicais.Fotografías, vídeos, atas, a transmissao da TV local, as lembrangas recebidas ñascidades visitadas, documentam e narram urna intensa trajetória. Estes índices damaterialidade de seus feitos permitem a recordagáo de membros falecidos, os filhospequeños e crescidos. Seguindo Bosi (1977/2007), trata-se da esséncia da cultura,"o poder de tornar presentes os seres que se ausentaram do nosso cotidiano",como nos afirmou Dona Maria "a gente vai, mas alguma coisa vai ficar" (p. 25).Na adolescencia e juventude, conquistas mediadas pelo trabalho ocupam lugarcentral ñas narrativas. Trabalhando na construgao civil, seu Jerónimo viajou pelopaís, encontrou muitos amores e seus filhos estao em cidades diferentes. Hoje,aposentado, vive com urna companheira. Maria, quando seguia para os encontrosdas CEBs apoiava-se na solidariedade daquelas que poderiam substituí-la em seutrabalho de lavadeira, para minimizar o descontrole do orgamento doméstico. Aosdez anos, Teresa migrou sozinha para a cidade: "Eu, a cara, a coragem e Deus.Vim trabalhar. Nunca gostei de roga. Falei ah, nunca gostei de roga, entao eu saicom dez anos, pra poder vim trabalhar, ai eu sempre, sempre trabalhei". Cansada edoente, após anos acumulando diversos empregos informáis e mal remunerados,aposentou a si mesma dedicando-se aos cuidados da casa, dos filhos e asatividades comunitarias. Seu esposo Teodoro também migrou em busca deemprego e moradia para a familia recém constituida: "comecei a trabalhar nafábrica dia sete de agosto de oitenta e seis. (...) Tó aqui até hoje. (...) Ela {Teresa)veio pra cá dia primeiro de novembro". Observamos que a sazonalidade dasmigragoes deste jovem casal nem sempre coincidiu - enquanto Teresa precisavaretornar para o amparo da familia na roga o marido vinha para a cidade. Hoje, ofilho adolescente deste casal, Januário, exerce a mesma fungao que o pai, auxiliarde servigos gerais, na mesma empresa.

Tanto o cansago de atividades rotineiras que disciplinam e constrangem o corpoquanto á emergencia de urna ética prática, nao subsumida aos valores de uso docapital, que (Lima, 2002). Na narrativa de Joaquim foi por ocasiao de suaaposentadoria que se iniciaram suas atividades comunitarias. Ingressou comoaprendiz na mesma empresa em que se aposento^ como gerente: "E por méritosdo meu trabalho, eu fui sendo promovido na firma. É, fui mecánico, de mecánico fuiá motorista, de motorista eu fui a gerente. Com as minhas, essas promogoes, eu fuime refazendo dentro da própria firma. Entáo eu conviví nessa firma durante vinte equatro anos". No momento de sua aposentadoria confrontou-se com urna

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importante questao sobre o sentido da existencia, incomodado que estava com umenigma proposto por um colega que "falou numa linguagem que eu nao entendí".Feliz por se aposentar, pois agora poderia "ficar quietinho", "viver a vida", estecolega ao saber de sua aposentadoria Ihe disse: "Que pena! Vocé vai morrer". Oalcance desta afirmagao exigiu um complexo trabalho de elaboragao que seuJoaquim faria a posteñoñ, atribuindo um sentido próprio a este dizer:

Todo aposentado que se aposentou e seacomodou, realmente antecipava a sua morte. Elefalou pra mim assim e eu senti, porque eu falei,eu vou morrer por qué? Porque eu estavaaposentando, realmente eu ia parar de trabalhar,conforme eu parei, e realmente quando eu pareide trabalhar, eu estava morrendo, porque durantedois anos, eu fiquei só assistindo televisao,comendo e bebendo. E ai estava o significado dapalavra que ele disse que eu ia morrer, erealmente eu estava morrendo, porque eu estavaengordando sem saber, porque eu nao faziaatividade nenhuma. Isso ai é que ele disse pramim que eu ia morrer. E na cidade tinha umpessoal, uns aposentados que tinha suas cadeirascativas no centro da cidade. Todo dia eles batiaum ponto naquele local, tomar conta da vida dosoutros. E todos aqueles que ali ficava morreram.Ou morreram de acordó com o tempo ouanteciparam eu nao sei por qué. E... Mas todosaqueles naquele local morreram (Joaquim).

Em 1992, Dona Amelia, engajada em diversas atividades católicas na comunidadedo bairro e representando liderangas locáis, dirigiu-se á residencia de seu Joaquim"urna, duas, tres vezes pra me convidar porque eu nao queria", para desenvolverum trabalho com a comunidade ao longo de um semestre. No processo deconvencimento argumentou pelos criterios mediante os quais ele havia sidoescolhido. Nesta classe operaría, conforme observamos, a denominagao religiosanao é medida do caráter das pessoas, sao os valores profundamente enraizadosque farao a distingáo. Sobretudo, a identidade nao é fenómeno em si, mas surgeñas relagóes:

Quando me descobriram e fizeram urna pesquisa,entre aspas, sem eu saber, da minha vida ebateram na minha porta e disseram: - Olha, nosprecisamos que o senhor trabalhe - e eu até porai eu nao sabia, quem era eu, porque eu nuncaparei pra pensar, e trabalhava assim, como sediz, de orelha. Ai me relataram as minhasqualidades: vocé é assim; é urna pessoa, écasado; nao é beberrao; nao freqüenta botequim;tem urna vida assim e assado. E eu falei: - Masquem deu ordem de voces fazerem pesquisa daminha vida? - Nao precisa de dar ordem porque agente na convivencia vai vendo as pessoas. Ai eufalei com a minha esposa: - Eu nao sabia que eutinha tanta qualidade assim. E realmente naosabia mesmo. Ai que eu deparei com a coisa(Joaquim).

E, "a coisa", o novo projeto de trabalho, nao assalariado, religioso e comunitario,implicou posteriormente o retorno as tradigóes familiares, afro-descendentes,

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religiosas, culturáis, políticas e sociais em detrimento de participagoes esporádicas.Deste modo, no instante em que na sociedade capitalista é afastado dos espagosprodutivos, mas também o uso de si pelos outros, tem inicio a novidade de umcampo de potencialidades. Ao abordarmos estas atividades coletivas vividas portrabalhadores como integradas á vida cotidiana e como significagáo para as suasconsciéncias (condigáo de hominizagáo e nao mera superagáo da condigáobiológica), estamos no campo da psicossociologia do lazer, dos modos nao passivosde lazer que, segundo Bosi (1977/2007), compreende: "grande parte dos tragosculturáis de urna sociedade incluindo atividades lúdicas, políticas e religiosas" (p.111) nao determinadas pelos valores de uso. Silvia Lañe (1984) nos diz da"unicidade do individuo como produto histórico e manifestagáo de urna totalidadesocial. Sao as necessidades que reúnem individuos em grupo para, cooperando,satisfazé-las" (p. 95). É neste sentido que se explica, para seu Joaquim, a razáopela qual um sentido para a existencia é buscado e construido por muitas pessoasñas experiencias religiosas.

Dimensoes público e privadaComo dito anteriormente, a formagáo religiosa destes congadeiros pode serconsiderada como processo em campo de tensao entre as religioes de matrizafricana, reservadas aos espagos discretos da vivencia comunitaria e familiar, e areligiáo crista católica, índice da pertenga no espago público. Indicamos tambémque ambas as dimensoes, público e privado, nao podem ser consideras fronteirigas,pois é necessario que mesmo as experiencias mais íntimas sejam representadas noespago público para que coloquem problemas entre os diferentes grupos sociais.Demonstramos que, históricamente, urna destas representagoes é o caráterpersistente e altamente periculoso dos ajuntamentos dos negros para seusbrinquedos (Campos, 1998) e as ¡numeras medidas de proibigáo e/ou liberdadevigiada para o controle. Vimos que urna atitude de devogáo é produzida emodificada neste decurso, pois a freqüéncia esporádica e envergonhada ao terreirode candomblé será orgulhosamente assumida, propagada e dirigida por Eugenia,Maria e Joaquim. Posigáo nao considerada totalizante já que Teodoro e Teresa,mais jovens, consideram que sao práticas mais importantes para os idosos. Dessaforma, nosso horizonte se dirige permanentemente á impossibilidade de resolugáodestas tensoes no campo religioso. O que podemos perseguir é o trabalho dearticulagao empreendido por estas pessoas para a articulagao das lógicas dasexperiencias no tránsito permanente entre o público e o privado localizando ospequeños grupos de pertenga étnica, como os grupos de congadeiros, como modosde objetivagáo, no espago público, de urna identidade específica que se configuranesta tensao. Nesta identidade também estáo implicados valores da classe operaríaproduzidos na vivencia comunitaria e legitimados no ámbito religioso pelas formashíbridas de agáo crista autorizadas contemporáneamente.

O retorno as tradigóes religiosasSe na adolescencia e juventude, conquistas mediadas pelo trabalho ocupam lugarcentral ñas narrativas, o retorno ás tradigóes religiosas afrodescendentes na vidaadulta é intermediado pela participagáo nos movimentos ecuménicos, as CEBs e asPastorais Negras. Nao obstante, sabemos que na instituigáo católica sofrerampreconceitos e discriminagoes como Maria. Com seus filhos, sem um marido e oestigma de "máe solteira", afastou-se por muitos anos e buscou outros espagoscoletivos nos quais inserir-se. Na militáncia no Partido dos Trabalhadores - PT,freqüentemente foi acompanhada dos filhos pequeños: "Punha urna bandeira namáo deles e váo bora! Váo pro PT". Maria perde o medo do Congado e retorna ássuas raízes a convite das companheiras engajadas:

Vocé recebe urna bagagem! A primeira bagagemque eu recebi no Inter-Eclesial, eu nao conseguía

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dormir de tanto choque que eu levei. De tantacoisa que eu aprendí eu fiquei assim, elétrica (...)Depois, que veio a idéia dos dois (Eugenia eJoaquim, seus primos), da familia fazer aAssociagao (de Congado), e eu já tinha ido lá, noRio Grande do Sul, (...) eu tava num grupo dequinhentas pessoas. Entao cada um saiu de lácom o compromisso de fazer alguma coisa na suatérra. Eu falei assim, eu vou ter que meaproximar do Congado. Entao o qué que a gentepodia fazer? (Maria).

Deste modo, os movimentos católicos negros constituem porta de acesso demarginalizados a complexos mecanismos institucionais, próximos ao que Aguiar(2001) descreveu a respeito das Irmandades. Estas pessoas se véem desafiadas aagir na própria comunidade em um diálogo coletivo e inter-religioso onde aprendeme ampliam conhecimentos políticos e culturáis. Sabemos que estes movimentos saoatravessados por posigoes dominantes, porém os congadeiros participantes destapesquisa dirigem nosso olhar para que aquilo que Ihes é transversal, a vivencia dasdiferengas no campo religioso e as batalhas que tém travado para a legitimagao dossentidos que consideram determinantes para aquilo que é afro nacontemporaneidade. Aludimos as identidades legitimadoras e as identidades deresistencia, e, finalmente, encontramos a terceira formulagao de Castells (2006), asintermediarias identidades de projeto: "quando os atores sociais, utilizando-se dequalquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem urna nova identidadecapaz de redefinir sua posigao na sociedade e, ao fazé-lo, de buscar atransformagao de toda a estrutura social" (p. 24).

A organizagao de movimentos comunitariosEntre os principáis ensinamentos e desafios compartilhados na CEBs, aqueles queencontraram maior ressonáncia nestes congadeiros sao a organizagao demovimentos comunitarios articulados ao resgate e invengao de tradigoesafrodescendentes. Os tres primos, Maria, Joaquim e Eugenia, fundam urnaAssociagao de Congado e um Grupo de raiz, de Inculturagao. O casal Teodoro eTeresa funda urna Associagao Comunitaria denominada Quilombo que viabiliza aconstituigao de um Terno de Congado. Fagamos um breve paréntese. Enfatizamos aimportancia da familia, em diversos sentidos, para o contexto ritual do Congado. Osgrupos específicos abordados por esta pesquisa sao fortemente articulados peloslagos de parentesco, intra e inter grupos e parecem disputar prestigio no espagosocial trocando acusagoes veladas ou diretas em seus depoimentos. Acusagoes econflitos entre grupos rivais também foram descritos por Nascimento e Menandro(2002), a respeito das bandas de congo de Barra do Jucu (ES), e Elias e Scotson(2000) demonstraram que boatos e fofocas sao instrumentos potentes ñas relagoesde poder das pequeñas comunidades. Por esta razao, consideramos justo informarao leitor sobre os lagos de consangüinidade, embora nao tenhamos elementossuficientes para debater esta questao em sua dimensao processual e histórica.Outros projetos, nao diretamente engendrados nos movimentos católicos negrosdevem ser destacados. Dona Eugenia foi tomada de modo radical (no sentido deraiz) pela questao da pertenga étnica em seu processo de tornar-se ialaorixá. Umdia... Quando contava quarenta e quatro anos, o pai de santo dirigiu-se até a suaresidencia e chamou as tres irmas. Ensinou-lhes a oragao dos búzios com apromessa de que retornaría no dia seguinte e aquela que primeiro aprendesse aoragao ficaria com os búzios. Dona Eugenia estava doente e acamada. Repetiudiversas vezes para si a oragao e no dia seguinte aguardou. O pai de santoperguntou a urna irma, ela nao soube. Perguntou a segunda irma, que também naosoube. Quis saber de Dona Eugenia. Ela fez a oragao e ele Ihe disse que agora os

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búzios eram seus. Desde entáo, milita em escolas primarias, secundarias esuperiores palestrando sobre as religioes de matriz africana. Administra sua casa desanto, a relagáo com os fiéis e anda muito preocupada com as responsabilidadespara a escolha de seus sucessores.

Missas Afro: busca de pareen asOs congadeiros estabelecidos como liderangas comunitarias buscam parceñas. Afigura do padre, que também carece do apoio destes líderes e de sua influenciajunto as comunidades, desempenhará fungao decisiva nestas relagoes. Seu apoioou rechago, ascensáo ou queda, chegada, saída ou deportagáo {sic), modificará oposicionamento destes grupos em suas relagoes com os demais. O padre quecelebra a primeira Missa Inculturada é expulso da cidade; a chegada de um padredeflagra o processo sócio-histórico de constituigáo do Quilombo; a saída de umpadre ocasiona a perda da sede do Grupo de Inculturagáo e mais, Dona Maria quetrabalhava como zeladora da igreja perde o emprego, a renda e um lugar naliturgia. Estes lugares subalternos, em fungao da negritude e condigáo socio-económica, revelam urna opressáo determinada pela ausencia de recursos própriosque poderiam promover seu empoderamento (Martín-Baró, 1989). Neste sentido, aprogressiva formalizagáo tem contribuido, tornando-os mais fortes para buscar seusinteresses e demandas. Estes estatutos jurídicos sao submetidos a intensasconsideragóes coletivas que tornam patentes o estranhamento com a burocracia,tantas "coisinhas" {sic). Todavía, prosseguem resistindo e contraem vínculos comgrupos ligados á Universidade, á cultura e partidos políticos.As Missas Afro sao urna zona de batalha fundamental no campo religioso de nossadiscussáo. Falamos sobre a transferencia do padre que celebrou a primeira missainculturada em Sao Joáo Del-Rei, mas outras já haviam sido celebradas ñas rúas.Espanto, escándalo, violencia, resistencia, afirmagáo e reconhecimento saoindissociáveis neste contexto sincrético entre o ideario católico-romano, cujo missalguia o desenho da celebragáo na ausencia de um missal afro (que parece estarsendo constituido neste processo), marcado por urna relagáo nao dicotomizadahomem-natureza, própria das religioes de matriz africana. A mobilizagáoempreendida para a organizagáo da missa inculturada pode ser compreendida, aomenos de modo parcial, através de algumas premissas assumidas coletivamente:a) cada povo tem o direito e pode celebrar a sua maneira; b) trata-se do resgate deum direito legítimo a urna celebragáo proibida e impedida; c) concomitantemente,trata-se da invengáo de urna celebragáo que nunca existiu em sua forma atual; d)esta forma de celebragáo corresponde a elementos constitutivos da cultura e,portanto, da personalidade do negro (enquanto fator indissociável da transmissáooral e do aprendizado imitativo), e) a alegría e a festividade sao qualidadeshistóricas e sociais dos negros; f) parte dos preconceitos sustenta-sesimultáneamente na ignorancia e na ausencia de um interesse legítimo deconhecimento - razáo cínica; g) fatores que evidenciam o desejo de manutengáo dostatus quo e a resistencia á mudanga gerando sobre-trabalho aos agentes para quea missa se concretize; h) este sobre-trabalho inclui possibilidades de revisáoconstante do ritual cuja estrutura prossegue em devir.Refletindo sobre urna das provocagoes ensejadas por Pierre Sanchis (2001) em seutrabalho sobre a vivencia da missa afro no Brasil, a saber, se os elementos afro dasmissas inculturadas sao apenas alusivos e emblemáticos ou se ritos afro saoefetivamente celebrados na liturgia, é possível observar, no ritual da missainculturada realizada na Paróquia de Matosinhos, que os componentesperformáticos das coreografías que se articulam aos cantos entoados sao dangaspróprias de terreiro (4) - elementos decididamente rituais do universo afro-brasileiro e nao meramente alusivos. Mas há diferengas na interpretagáo dosgrupos sobre sua promogáo. Um considera que a orientagáo do missal romanofacilita a tarefa, outro julga necessário intenso trabalho criativo de articulagáo do

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missal romano as práticas e aos costumes afro; aquilo que para os brancoscontritos é sacrilegio, para os negros festivos e alegres é modo de culto - aidentidade é diferenga e oposigáo. Sanchis (2001) já havia nos advertido sobre osdiferentes oiría res:

Quanto as religióes "afro" que a evocagáo da"negritude" conota, a maioria entende tornar suareferencia explícita, mesmo no culto católico; massem confusáo. Uns poucos váo mais longe,desejando, sem ter disso muito clareza, suapresenga efetivamente ritual em meio ácelebragáo litúrgica. Para outros, enfim, culto ecultura nao se podem confundir, e a negritudeque pode e deve entrar na Igreja de rostodescoberto é a da cultura, nunca a da religiáo (p.178-179).

Na cidade de Sao Joáo Del-Rei, a Missa Inculturada integra as celebragóes dabicentenária Festa do Divino Espirito Santo, realizada no mes de maio na citadaparóquia. A culmináncia do festejo no domingo de Pentecostés é dedicada aoReisado. Os congadeiros evoluem acompanhados das folias, da danga das fitas edas pastorinhas, folclore evangelizador característico do catolicismo popular ibérico,em que participam idosos, adultos e changas oriundos de dezenas de grupos dediversas cidades da regiáo. A participagao da comunidade de origem dos grupos ésignificativa. Sao os "sapos" (sic), como nomeou seu Jerónimo, ou o séquito, comodisseram Nascimento e Menandro (2002) que demonstraram a importancia social eemocional do amparo dado por familiares e pessoas que se agregam em momentosde festejo evidenciando o prestigio dos grupos no contexto social mais ampio.Dentre as comemoragoes locáis e encontros regionais dos congadeiros, em diversascidades do país iniciativas de jungáo de varios festejos em única festividade searticulam á discussáo da revitalizagáo do patrimonio cultural ¡material construido apartir da memoria e das experiencias coletivas fundamentáis na formagáo dasidentidades. Neste contexto ritual hierarquizado, véem-se confrontadas ao desafiode construgáo de um programa comum. Estas pessoas nao agem apenas em seunome, constituem-se representantes de idéias e projetos de grupos distintos, evivenciam as alegrías e os dissabores das experiencias de representagáo que temcaracterizado os atuais modelos de democracia participava no ámbito das políticaspúblicas (orgamentos participativos, conselhos gestores, etc.). No catolicismopopular, esta "novidade" pode ser articulada sob o que Paiva (2003) identificoucomo o atual imperativo ético para o católico, a solidahedade. Todos oscongadeiros entrevistados atuam na festa do divino. Jerónimo é o Capitáo deMastro, cuida de todos os Congados participantes. Com a ajuda dos meirinhos éalgado á "incrível" posigao de grande líder: "Por incrível que parega, eu viro chefe!Metido, eu penteio o cábelo, fago a barba! É...". Joaquim é vice-presidente daCodivino, posigao a partir da qual articula a participagao da Associagáo de Congadoe do Grupo de Inculturagáo e as intervengóes de Maria e Eugenia.

O Congado atualmente: mudangas quantitativas e qualitativas associadas asparticipagóes de negros e brancos no CongadoComo dissemos a respeito das missas inculturadas, o Reisado também colocaproblemas. Já afirmamos a centralidade dos reis ñas festas do Congado e, agora,podemos indicar mais urna modificagáo do seu contexto ritual. Históricamente, oRei e a Rainha eram mantenedores das festas, ao montante de sua contribuigáo,equivalía o entusiasmo das batidas dos tambores. Segundo Joaquim, esta práticafoi abandonada pelos sanjoanenses porque constrangimentos de ordem económicaconduziram diversas pessoas a recusarem os cargos reais. Por isto,contemporáneamente outros valores qualificam as pessoas e a responsabilidade de

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manutengao financeira do festejo tem sido redistribuida entre os pares.Acompanhemos as reflexóes de Teresa, responsável pela organizagao do Reisadona festa do divino. No plano ideal, sua tarefa é registrar todos os temos que devemindicar nome, procedencia, nomes de reis e rainhas, sair e retornar á igreja emcortejo e posicionar-se para a chamada. Entretanto, efetivamente está: "correndoatrás do Reisado (...). Porque o trajeto, a trajetória da gente nao é fácil nao. Vocéta com um Rei e urna Rainha aqui oh, espera ai que eu vou buscar um e volto já,quando vocé volta aquele já ta dando urna volta mais longe ainda. É urna coisacansativa, mas é urna coisa boa. (...) Eu gosto". Na Festa do Divino/2007divergencias de ordem "operacional", o tempo destinado a comportar todas asatividades, ocasionaram a supressao da chamada dos Reis e Rainhas na igreja noretorno do cortejo. Organizados, os congadeiros nao aceitaram esta ingerencia,indispuseram-se com a Comissao e exigiram o retorno da prática ritual, como ditopor Eugenia, se estes nao sao coroados "ficamos sem pai nem mae". Observemos odeslocamento das posigóes de Teresa, mediadora das relagóes dos temos xcomissao em seu duplo direcionamento:

Isso daí nao tem nem como explicar, porque issoé igual fumo de rolo. (...) E urna coisa beminteressante e bem complicado, a participagao.(...) Mais talvez esse ano acho que é meu últimolá na Comissao porque... (...) Porque tem genteque apóia a gente, e tem uns que além de naoapoiar, nao fazer nada, é só por defeito. (...) Euvou por na mao deles lá. Se eles procurar outro,se tiver outro, por mim eles pode por porque seeu nao tiver o Reisado pra fazer sozinha eu tenhoo congado pra participar. (...) A gente faz umplano, mais nao é só eu, que trabalho aquisozinha. Na parte do Reisado lá. Nao é só eu. (...)Aquele dia que vocé tava na reuniao (5) vocéouviu o Paulo veio com aquela, o Reinado tavareclamando que nao tinha feito a chamada. Mascomo? (...) nao tem como fazer chamada, porquea parte do Reisado nao tem. A maioria é tudogente idosa. Nao tem gente nova aqui nao tem, émuito difícil. Entao vocé olha no relógio ali, meiodia e meio. Nao tem como ta urna hora subindo lápra Gruta, é difícil.

Estamos discutindo mudangas quantitativas e qualitativas associadas asparticipagoes de negros e brancos no Congado. Conforme indicado por Souza(2002), mesmo nos dias atuais, apesar da ampliagao da participagao de pessoasbrancas, pobres, os cargos reais sao reservados aos negros. Observamos noReisado da Festa do Divino que também é eleita pequeña minoria de pessoasbrancas, inclusive changas. Agora, discutiremos mudangas qualitativas naparticipagao dos negros na festa do divino, a respeito da qual devemos manter emperspectiva a afirmagao de Jerónimo: "Falou ai em negó africano ai, mas a festa émais por brancos". Dois depoentes foram eleitos imperadores do divino. Nopassado, o imperador era mantenedor do festejo e sua principal qualidade o podereconómico, mesmo que a pessoa a assumir a personagem fosse consideradairresponsável para com a familia e cruel com os escravos (Campos, 1998).Distingao máxima da festa, o imperador ocupa posigao de autoridade e honra queIhe confere um lugar no ritual junto ao bispo. Teodoro, primeiro imperador negroeleito em toda a historia do bicentenário festejo nao imaginara tornar-se um: "nahora eu fiquei meio assustado: - Uai, um negro ser Imperador? (...) tenho muitahistoria pra contar pro povo, que eu fui o primeiro negro a ser Imperador (e por

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isso) fui muito discriminado demais. Mas gragas a Deus o Espirito Santo deu forga,entendeu? Pra eu vencer. Nao foi fácil nao, pra ser imperador? Ih, fui muitodiscriminado demais". Situagao extremamente conflituosa, o convite para ocupareste posto pos explícitamente em questao a identidade a partir da raga e asdiferengas de classe social. Sua esposa, filhos e amigos trabalharam ativamenteneste processo de apropriagao dos matizes de um determinado habitus que naocompartilhavam: os costumes da recepgao dos caixeiros que buscavam o imperadorpara o cortejo; para receber, sem dinheiro, os convidados com comidas e bebidas;para acomodar na casa pequeña o grande número de pessoas que compareceu;para conduzir o imperador nao dentro de um carro, mas em cortejo na rúa com opovo; para providenciar vestimentas adequadas... Teodoro passou a coroa para seuJerónimo, primeiro imperador negro coroado em "ritual africano" (sic), com luxo ebeleza. Nesta jungao, também retornam as raízes, pois como demonstra Souza(2002) o luxo, a riqueza, as insignias européias de poder foram utilizadas emcerimónias especiáis, valorizadas por reis e rainhas africanos. Diferente dostradicionais imperadores brancos que seguiam como "carneiro para o matadouro",o novo ritual foi desenhado por Eugenia que em seguida, na "descoroagao" (sic) deJoaquim, modelou outro ritual por encomenda do sucessor branco:

Invés duma coroagao do imperador, europeu, mastambém com urna certa parte da cerimónia afro.Que ele foi com urna roupa afro! Afro! Afro! Issofoi que esquentou mais o pessoal sabe? Porquenos entramos com o Maracatu. As meninas dogrupo, o Maracatu, entao as meninas levandotudo. Tinha que ter ali um pajem, pra ajudar, praele ser coroado, nao é? (Eugenia).Eu pensei, é o seguinte, ele (Joaquim) era fácil, adescoroagao pra ele, porque ele tava dentro donosso grupo. (...) ele como é branco, entao aparte dos instrumentos nao poderia ser os negrosnossos. (...) Eu arrumando urna corte européiapra entrar (...) entao desfez os nossos príncipesque era africano (...). Entao os nossos ficou com abandeira de Portugal e eles com a bandeira doBrasil. (...) uns rapazes da banda do Quartelforam e comegaram a tocar Aquarela do Brasil.(...) Foi muito bonito (Eugenia).

Para estes congadeiros, que já tocaram com seus temos em frente a portasfechadas das igrejas sanjoanenses, inclusive Nossa Senhora do Rosario dos Pretos,a entrada dos Congados na igreja ora é descrita como um momento fugaz, findo orito encerra-se a discussao, ora entende-se que a Festa do Divino é hoje urna Festade Congado. Ainda, nao estao certos se há aceitagao do Congado ou se sua entradaé coisa com a qual as pessoas tem se acostumado. Neste ínterim, expóe umexercício de subversao desde o interior descrevendo sua atividade como"revolugao"; "infiltragao"; "penetragao" dos negros na Igreja:

Nao tem nada mais lógico, bonito e certo do quefosse o Congado na festa do Divino. Por que trariaos negó pra festa do Divino, porque é urna festade branco, é... Falou ai em negó africano ai, masa festa é mais por brancos... Entao é o seguinte,pra infiltrar os negó na Festa do Divino,abrilhantar a Festa, embelezar a Festa e ter comomovimentar a festa o dia todo com coisasdiferentes. Porque passa um temo é urna coisa,passa outro é outra... Sempre tem coisas

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diferentes. É um meio de abrilhantar a festa comdevogao ao Divino Espirito Santo. Entao é ummeio de fazer a festa. Fazer a Festa (Jerónimo).Quando abriu as portas pra gente entrar dentroda igreja, os congadeiros entrar dentro da igreja,o pessoal: - Ah, mas vai bater tambor dentro daigreja? E aquela coisa toda, é feitigaria, émacumba, esses negocio, e a gente teve queequilibrar, né? Com tudo isto, apesar de oCongado ter as suas magias, nao é? E como todaa religiao tem, tem um pouco de sua magia,ninguém gosta de contar, mas tem um pouco, láno fundo tem. E entao a gente comegou, porabrirem as portas para os Congado, oscongadeiros comegaram a penetrar dentro daigreja, com a sua devogao, com seu santo, né?Cantando a Nossa Senhora do Rosario e assim foiequilibrando, mas nao que todas as igrejas fagaisso. É o mínimo (Joaquim).

Respeito as relagóes devocionaisComo seus pais, adultos e idosos se comportam em relagao á nova geragao familiarconvidando e insistindo para que as criangas e os jovens participem. Nao estaoplenamente decididos se devem impor ou basta aguardar até que a necessidade,conjungao da ordem da realidade e do espiritual, se aprésente. As vezes, impoem.Filhos e netos tem sido educados no contexto sincrético do catolicismo e dastradigoes afrodescendentes, mesmo que sob novas dinámicas, repetem-se ofascínio e a desconfianga, o medo e as estrategias criativas e sorrateiras queveiculam práticas e significados. Também se transmite, geragao a geragao, aocupagao com a continuidade, comportamento assimilado na familia cujoreconhecimento se dá apenas a posteñoñ: a preservagao da memoria coletiva; aparticipagao em projetos comunitarios, sociais e políticos que tem desenvolvido; ofortalecí mentó de seu lugar e sua identidade junto a outros grupos. Hoje, comoseus pais e tios, os jovens temem a acusagao de macumbaria. Até que anecessidade, conjungao das ordens espiritual e material, se imponha: "Na verdadeeles chegam, eles chegam né comadre? Eles chegam!".

Os diplomasNao foi sem intengao que deixamos para o final a questao dos diplomas, muito carapara nos que abordamos trajetórias:

Quanto as trajetórias intergeracionais, elas podemser classificadas em ascendentes diretas - do polodominado socialmente, ao campo dominante daprodugao cultural - ou ascendentes cruzadas, quevao do polo pequeño burgués ao polo dominanteda produgao. Se nao sao ascendentes, astrajetórias podem ser transversais dentro docampo do poder, levando os agentes, de posigóesde mando temporal ou de posigóes medianas nocampo do poder, a posigóes de mando no campoda produgao cultural, ainda que ai nao sejamdominantes da perspectiva do capital simbólicolegítimo no campo. Por fim, há deslocamentosnulos, nos quais a partida e a chegada se dao

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dentro do mesmo espago social (Montagner,2007, p. 256).

Como seus pais, os congadeiros que participaram desta pesquisa tém poucaescolaridade formal. Joaquim em sua casa está ladeado de certificados recebidosem homenagem a excelencia de suas atividades como líder comunitario. Masconstata que nao há placas públicas que reconhegam, por exemplo, suascontribuigoes á construgao da quadra do bairro, degradada e refeita. Maria nao temos diplomas, mas tem a prática e as teorías do conhecimento que formulou sobresuas experiencias coletivas. Urna de suas filhas é graduada em psicología em urnauniversidade federal. Mas, mesmo assim, está muito preocupada, por que asmeninas que viu crescer no Grupo de Inculturagao tiveram filhos, algumas já saoavós, e nao retornaram com seus filhos ao grupo? Por que alguns jovens estao sedragando? Por que algumas criangas já tém a cabega feita por preconceitos? Porque muitos negros ainda tém de trabalhar em atividades bragais? Como fortaleceros jovens para enfrentar a universidade? A luta contra a indignidade da mao-de-obra escrava e a conquista da liberdade efetiva é, em última instancia, o que DonaMaria almeja para as futuras geragoes. É bom que a universidade esteja nacomunidade, mas é urgente que a comunidade acesse a titulagao académica:

Entao hoje a gente tem o apoio da universidade.Um apoio que eu falo assim, que nao é apoiofinanceiro nem de doagao de nada. Mas deacompanhamento que isso tem um valor muitogrande. (...) tese, tem um livro da nossa historia.Agora vai sair o cd com o livro, com, o cd commúsicas, algumas letrinhas que eu fiz, do seuIlário também, o nosso tocador de violao, que nosacompanha a vida inteira e vai sair um livro dehistoria novamente, de algumas coisas do bairro,que aconteceram, com pessoas de mais idadeaqui do bairro. E, lá tem muita coisa, lá tem umarquivo, de fitas de festa, reuniao, de tudo o quea gente já fez. (...) além da gente ter acervoguardado, todo lugar que a gente vai, a genteavisa, tem sempre estagiário ali, gravando,filmando, escrevendo, sabe? Porque isso prágente, é um trogo que nao vai morrer. A gente vaimas alguma coisa vai ficar. (...) A gente ta com,acho que ta meio a meio, adultos e adolescentese jovens. Muitos estao trabalhando, muitosestudando, dependendo do horario de reuniao, dealguma participagao, nao pode estar indo. Muitossaíram por motivo de trabalho ou entao porafinidade mesmo, e por vergonha de estarapresentando (...). Porque nos nao somosgraduados, em curso nenhum. E hoje a genteincentiva os nossos meninos a estudar, pra seralguém na vida. Pra nao ser lá amanha ummenino que vai rachar lenha, menino vai cortarcana. Nao que esse seje um trabalho quedesvalorize o homem, e a mulher, mas quepossam que nao precisar ser mao-de-obraescrava. Que ele possa ser mais liberto econquistar mais espago né? Essa semana a genteaté falou disso né? A conquista do vóo! Passar por

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cima dos obstáculos. A gente tava falando sobreisso. E entao eu acho que é essa necessidade.

Consideracoes FináisOs congadeiros lutam contra o desenraizamento. O respeito as atitudes devocionaisestá fortemente ligado á relagáo com os antepassados, aqueles espoliados dastérras africanas e que persistem a olhar pelas necessidades concretas e espirituaisde seus descendentes, bem como aqueles que Ihes contaram estas historias e nesteato Ihes concederam um lugar no mundo. Em boa medida, a devogao a essesantepassados se transforma em núcleo da componente religiosa propriamenteafricana inerente a essas praticas.Procuramos demonstrar que a existencia das zonas de misterio reafirma asbricolagens que configuram as culturas negras diaspóricas e impossibilitam leiturastotalizantes de seus movimentos. Que a identidade étnica é um campo de disputasno espago público no qual nem matizes, nem elementos fragmentadores, asvivencias de racismo e discriminagao sao confrontadas ao protagonismo destaspessoas que praticam a democracia. Visamos descortinar possibilidades deconvergencia e divergencia dos significados individuáis e interesses coletivosatribuidos as identificagoes e á participagao nestes grupos - condigao deobjetivagao da pertenga étnica, onde se desenvolve a consciéncia de pertenga quedepende da identificagao e do comprometimento com objetivos, normas e valorescomo algo próprio e assim constroem um passado em comum sobre o qualprojetam um futuro. Acompanhando Dona Maria, também desejamos que aspolíticas de restituigao de cidadania, como as cotas para negros ñas universidades,possam favorecer o deslocamento deste grupo para outros espagos sociais e paraposigoes de dominancia no campo da produgao cultural, designando novosmovimentos para estas trajetórias.

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Notas(1) Os dados do presente artigo se referem á Dissertagao de Mestrado "Identidade,Participagao e Memoria ñas trajetórias coletivas de congadeiros sanjoanenses" deShirley de Lima Ferreira, realizada sob orientagao de Miguel Mahfoud, e co-

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Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros.Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01

orientada por Marcos Vieira Silva, apresentada ao Programa de Pós-Graduagao emPsicologia da Universidade Federal de Minas Gerais em 2008.(2) A realizagao de missas inculturadas e a passagem dos grupos de congado emtemplos católicos tém sido descritas em diversos estados brasileiros. Podemosmencionar Minas Gerais (Belo Horizonte, Uberlándia, Sao Joao Del-Rei) e Goiás(Pirenópolis).(3) Dom Gilio Felicio, primeiro negro a chegar ao episcopado na arquidiocese deSalvador, na Bahia, em 1998, onde criou a Pastoral Afro. Desde a década de 80acompanha e participa do Movimento Negro Católico junto aos Agentes PastoraisNegros. Em 1989 comegou a participar do Instituto MARIAMA, urna articulagaonacional de padres, bispos e diáconos negros, do qual foi presidente por doismandatos. Até 2007 foi o bispo coordenador da Pastoral Afro-Brasileira, na CNBB.(4) Agradego á observagao do prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do Nascimento(UFMG).(5) A pesquisadora também observou reunioes da Comissao Organizadora doDivino. Consideragoes sobre este bicentenário festejo integram a dissertagao demestrado que deu ensejo a este trabalho e serao discutidas em relatos futuros.

Nota sobre os autoresShirley de Lima Ferreira é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de SaoJoao del-Rei e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.Atualmente cursa o Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e EcologíaSocial no Programa de Pos Graduagao Eicos do Instituto de Psicologia daUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: [email protected].

Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor no Programa de Pós-Graduagao em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, em BeloHorizonte, Brasil, na linha de pesquisa "Cultura e Subjetividade". Contato:[email protected].

Marcos Vieira Silva é doutor em Psicologia Social, professor no Programa de Pós-Graduagao em Psicologia da Universidade Federal de Sao Joao del-Rei, Brasil, nalinha de pesquisa "Processos Psicossociais". Contato: [email protected].

Data de recebimento: 29/09/2010Data de aceite: 08/05/2011

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"Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: umestado ou um processo?

'Being what you are" in Carl Rogers's psychotherapy: a state or a process?

Rafaella Medeiros de Mattos BritoUniversidade Federal do Ceará - UFC

Brasil

Virginia MoreiraUniversidade de Fortaleza - UNIFOR

Brasil

ResumoNeste artigo discutimos a idéia que atravessa a expressao "ser o que se é",utilizada por Carl Rogers em seus textos para falar do processo que a pessoa vivedurante a psicoterapia. Iniciamos com um diálogo com o autor desta frase, ofilósofo existencialista Soren Kierkegaard, e em seguida realizamos urna brevedescrigao sobre o estado de incongruencia que é, para Rogers, a origem dosofrimento psíquico. Descrevemos o processo de psicoterapia que facilita amudanga do cliente para um estado de maior congruencia, mostrando que "ser oque se é" é um processo continuo e nao um estado fixo. Concluímos com aexposigao de algumas características desse processo, que inclui urna maiorabertura á experiencia, a vivencia existencial no aqui e agora e a confianga noorganismo como referencia para o comportamento.

Palavras-chave: ser o que se é; psicoterapia; processo; Carl Rogers.

AbstractThis article discusses trie idea that traverses trie expression "being what you are"used by Carl Rogers in his writings to address trie process that a person lives duringpsychotherapy. It begins with a dialogue with the author of this sentence, theexistentialist philosopher Soren Kierkegaard, and then it has a brief description ofthe state of incongruity that is, to Rogers, the origin of psychological distress. Itfollows to describe the process of psychotherapy that facilitates the clientes changeto a higher state of congruence, showing that "being what you are" is an ongoingprocess and not a fixed state. We conclude with an exposition of some features ofthis process, including greater openness to experience the here and now and thetrust in the organism as a reference for behavior.

Keywords; being what you are; psychotherapy, process, Carl Rogers.

IntrodugáoO norte-americano Carl Rogers é o criador da Abordagem Centrada na Pessoa,teoria desenvolvida por este entre os anos 40 e 80 do século XX. Durante mais de40 anos, Rogers presenciou e escreveu sobre o crescimento humano. A ideiacentral de sua teoria se apóia no conceito de Tendencia Atualizante, que segundoRogers (1965/1977) é urna tendencia ¡nata de todo organismo ao crescimento,maturidade e atualizagao de suas potencialidades. Ele acreditava que, se fossemdadas as condigoes necessárias para o individuo se desenvolver, este caminharia nosentido da maturidade e socializagao. Segundo Rogers (1961/2009), o papel dopsicoterapeuta ou facilitador, dentro desta abordagem, seria o de fornecer ascondigoes necessárias e suficientes para o crescimento humano (aceitagao positivaincondicional, compreensao empática e autenticidade) e, confiando na capacidade

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de todo ser humano para descobrir os melhores caminhos para si, colocar-se naposigao de um companheiro nesta busca e nao de um guia que direciona o cliente.Rogers acreditava que o cliente é a maior autoridade sobre si mesmo e poderiadesenvolver suas potencialidades se Ihe fossem dadas as condigoes facilitadoras docrescimento.

Quanto mais o cliente percebe o terapeuta comourna pessoa verdadeira ou auténtica, capaz deempatia, tendo para com ele urna consideragaoincondicional, mais ele se afastará de um modode funcionamento estático, fixo, insensível eimpessoal, e se encaminhará no sentido de umfuncionamento marcado por urna experienciafluida, em mudanga e plenamente receptiva dossentimentos pessoais diferenciados. Aconseqüéncia desse movimento é urna alteragaona personalidade e no comportamento no sentidoda saúde e da maturidade psíquicas e de relagoesmais realistas para com o eu, os outros e omundo circundante (Rogers, 1961/2009, p.77).

A respeito do processo de tornar-se pessoa, vivido durante a psicoterapia, CarlRogers (1961/2009) fala de sua admiragao pela maneira como o filósofo SorenKierkegaard ilustrou o dilema do individuo há mais de um século:

Ele destaca que o desespero mais comum é estardesesperado por nao escolher, ou nao estardisposto a ser ele mesmo; porém, a forma maisprofunda de desespero é escolher "ser outrapessoa que nao ele mesmo". Por outro lado"desejar ser aquele eu que realmente se é,constituí na verdade o oposto do desespero" eesta escolha constituí a ^ mais profundaresponsabilidade do homem. Á medida que leioalguns de seus escritos, quase que sinto que eleesteve escutando algumas das afirmagoes feitaspor nossos clientes ao buscarem e explorarem arealidade do eu - freqüentemente urna buscadolorosa e inquietante (p. 124).

Rogers identifica-se com as idéias de Kierkegaard, pois para ele o filósofo pareceestar falando do processo que seus clientes vivem em terapia, ao buscarem urnaexistencia mais auténtica. Ser o que realmente se é seria o oposto do desespero ea maior responsabilidade do homem. Apesar de dolorosa e inquietante, aexploragao da realidade do eu é necessária, pois nao ser quem se é é o que geradesespero. Rogers, ao citar Kierkegaard, parece reconhecer a necessidade de serquem se é e o sofrimento vivido por quem nao vive desta maneira. Rogers(1961/2009), em outro capítulo do mesmo livro, volta a citar Kierkegaard (1941,citado por Rogers 1961/2009), expondo a descrigao que o filósofo faz do individuoem sua existencial real:

Um individuo que existe está num processoconstante de tornar-se (...) e traduz tudo o quepensa em termos de processo. Passa-se (com ele)o mesmo que com o escritor e o seu estilo; sóquem nunca deu nada por acabado, mas "agita asaguas da linguagem", recomegando sempre, temum estilo. E é por isso que a mais comum dasexpressoes assume nele a frescura de um novonascimento (p. 79).

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Julgo que esta é urna excelente descrigao dadiregao em que o cliente se move, para ser umprocesso de possibilidades nascentes, mais doque para ser ou para tornar-se qualquer objetivocristalizado (p. 195).

Rogers (1961/2009) utiliza-se de Kierkegaard para falar de urna existencia nuncadada por acabada, mas sempre em mudanga. Reconhece a necessidade de se estaraberto as possibilidades do devir, sendo sempre um processo e nao um objetivocristalizado. O filósofo utiliza as expressoes "nunca deu nada por acabado","recomegando sempre" e "frescura de um novo nascimento", que Rogerscorrelaciona com o processo de possibilidades nascentes que seus clientes vivemem terapia. O que parece ter chamado a atengao de Rogers em Kierkegaard é acompreensao deste filósofo de que o individuo é um ser em constante movimento,e que esta característica deve ser respeitada, sem que a existencia seja fechada emurna estrutura cristalizada e dada por acabada.Rogers (1961/2009), reconhecendo a importancia de o individuo viver segundo umprocesso fluido, defende seu ponto de vista sobre o que seria o objetivo de nossasvidas. De que estamos á procura? Rogers aposta que o que o ser humano procura,quando tem a liberdade de escolher, é justamente "ser o que realmente se é".A expressao "ser o que se é" é muitas vezes mal interpretada por dar a entenderque se trata de urna busca por algo já pronto e fixo que o cliente descobriria e seapropriaria para sempre. Esta interpretagao pode ser gerada pelo verbo "ser" queconjugado no presente denota a idéia de estado, de algo parausado. Outroquestionamento muito freqüente poderia ser formulado da seguinte maneira: "e seeu nao for o que eu sou, o que eu seria?". A expressao parece, entao, obvia nosentido de que nao podemos ser nada além de nos mesmos. Com base nestaquestao este artigo tem como objetivo explorar teóricamente a idéia que permeiaesta expressao, tao utilizada por Rogers, mas que dá lugar a controversias e malentendidos.

Incongruencia: ser o que nao se éPara Rogers "ser o que se é" é alcangado quando o individuo tem a liberdade deescolher. Muitas vezes esta liberdade nao é vivida, pois o individuo se encontrapreso á obrigagao de desempenhar determinado papel de determinada maneira.Esta imposigao deriva da necessidade do próprio individuo de ser aceito pelaspessoas que tem importancia em sua vida. Segundo Rogers e Kinget (1965/1977):

Em conseqüéncia disto, a consideragao positiva depessoas pelas quais o individuo experimenta urnaconsideragao particularmente positiva (pessoas-critério) pode se tornar urna forga diretriz ereguladora mais forte que o processo de avaliagao"organísmico". Isto é, o individuo pode chegar apreferir diregoes que emanam destas pessoas, asdiregoes que emanam de experiencias suscetíveisde satisfazer sua tendencia á atualizagao (p.198).

A necessidade de ser amado e aceito contribuí para a construgao de urna nogao deeu distante da experiencia organísmica do sujeito. A nogao do eu (Rogers & Kinget,1965/1977) forma-se em conseqüéncia da interagao do organismo com o meio, éurna organizagao da consciéncia de existir, a partir das relagoes do eu com o outroe que é permeada por um conjunto de valores que o individuo atribuí as percepgoesde si. É um padrao conceitual organizado, de percepgoes de características do eu,com valores ligados a este conceito. Em seus textos, Rogers dá a mesma definigaoda nogao de eu para self ou autoconceito. O self, para Rogers, está, portanto,relacionado com apreciagao externa.

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O individuo percebe sua experiencia de acordó com as condigoes as quais ele sesubmeteu para ser aceito pelas pessoas significativas em sua vida ("significantsocial other" traduzido para o portugués como "pessoas-critério"). A criangaaprende, por exemplo, que um "bom menino" nao chora e gosta de seu irmaozinho,mesmo que sua experiencia seja de profunda tristeza e raiva do bebé que tomouseu espago.

Quando certas "pessoas criterio" se mostramseletivas na consideragao que manifestam arespeito de diversos elementos de seucomportamento, o individuo se dá conta de que,sob certos aspectos é apreciado e que, soboutros, nao o é. Imperceptivelmente acaba poradotar a mesma atitude seletiva ou condicionalpara consigo mesmo. Conseqüentemente, avaliasua experiencia em fungao dos criterios de outraspessoas em vez de avahar baseando-se nasatisfagao (ou na falta de satisfagao) vivida,realmente experimentada (Rogers & Kinget,1965/1977, p. 177).

Para Rogers e Kinget (1965/1977), experiencia é tudo "que se passa no organismoem qualquer momento e que está potencialmente disponível á consciéncia." (p.161) Experimentar seria, entao, entrar em contato com os acontecimentos doorganismo, que seria o foco de toda experiencia. A definigao de experiencia deRogers (1965/1977) é psicológica e nao fisiológica. Tem um caráter global, pois oorganismo, de que fala Rogers, está para além do corpo fisiológico. Desta forma, otermo "experiencia", para Rogers, ultrapassa o que poderia ser capturadoempíricamente, afastando-se assim de abordagens positivistas.

Em abordagens baseadas em pressupostospositivistas, a conceituagao se limita aoexperimentalismo, considerando experienciasomente o que é passível de comprovagaoempírica, eliminando valores ou relacionamentospessoais, ou seja, considerando-a apenasenquanto representagao ou reagao (Gaspar &Mahfoud, 2006, p. 2).

As experiencias que nao estao de acordó com a nogao de eu surgem comoameagadoras e podem ser simbolizadas de maneira deformada na consciéncia,dando origem ao estado de incongruencia.

A incongruencia é definida como um estado(geralmente desassossegado) em que existe urnadiscrepancia entre o eu, tal como é percebido, e aexperiencia presente no organismo total (tudoque é potencialmente disponível á consciéncia,que está ocorrendo no organismo em um dadomomento) (Wood, 1983, p. 48).

Caso este estado de incongruencia seja percebido, ocorre um estado de tensao eansiedade. E é nesse momento que o cliente geralmente chega á terapia. Ele naoconsegue se reconhecer, comumente tem atitudes e reagoes que nao entende porque as teve, sente-se perdido e dividido. Todos esses sentimentos sao decorrentesdo estado de incongruencia. Neste estado:

há urna discrepancia fundamental entre osignificado experienciado da situagao, da formacomo é registrado por seu organismo e arepresentagao simbólica daquela experiencia naconsciéncia, de urna maneira que nao entre em

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confuto com a imagem que ele tem de si mesmo(Rogers, 1957/2008, p. 147).

O individuo forma uma imagem de si que esteja de acordó com o que esperamdele. Todas as experiencias que nao se adéquam a esse modelo de eu, saodistorcidas, e o sujeito acaba por ter uma experiencia e um comportamento quecaminham em diregoes opostas, causando-lhe sofrimento e inseguranga.

Psicoterapia: tornando-se o que se éQuando o individuo, durante o processo de terapia, experimenta um ambiente deaceitagao incondicional, seguranga e empatia, ele tende a se afastar do que ele naoé. Segundo Rogers (1961/2009), durante a terapia, o individuo se afasta de suasfachadas e de tudo o que ele deveria ser. Ele pode até nao saber para onde estáindo ou o que realmente é, mas sabe que nao é aquilo que seus pais e outraspessoas-critério desejam e esperam que ele seja. Quando pode vivenciar suasexperiencias sem ter que ser nada, o individuo comega a descobrir novas formas deser, rejeita formas artificiáis e definidas pelo exterior. Rogers (1961/2009) nos dáum exemplo de um paciente perto do fim do tratamento, que diz:

Senti afinal que tinha simplesmente de comegar afazer o que quería e nao o que eu pensava quedevia fazer, sem me preocupar com a opiniao dosoutros. Foi uma completa reviravolta de todaminha vida. Sempre sentirá que tinha de fazer ascoisas porque era o que esperavam de mim ou, oque era mais importante, para que os outrosgostassem de mim. Tudo isso acabou! Pensó apartir de agora que serei precisamente o que sou- rico ou pobre, bom ou mau, racional ouirracional, lógico ou ilógico, famoso oudesconhecido. Portanto, obrigado por ter meajudado a redescubrir o "Sé verdadeiro para timesmo", de Shakespeare (p.193).

Durante o processo de terapia, o paciente caminha, entao, para a autonomía,tornando-se responsável por si mesmo, num ganho de liberdade existencialacompanhado por uma crescente responsabilidade. Seu comportamento e escolhasvao sendo tomados com receio e precaugao, com a inseguranga de quem acaba deter o volante de um carro em suas maos e apesar de nao saber dirigir, muitomenos para onde ir, dirige com satisfagao por saber que mesmo que se perca ouchegue a algum lugar sombrío, chegará por conta própria.A experiencia de "ser o que se é" é, assim, mágica e, ao mesmo tempo,angustiante. Rogers (1959/1987) denomina de "momentos de movimento" naterapia, ocasioes onde o individuo teria nao um pensamento, mas uma experiencia,nova e sem barreiras ou inibigoes, naquele instante da relagao. Esta experiencia éaceita e vivenciada conscientemente e visceralmente. O individuo entra em contatocom uma nova face de si.Esta abertura á experiencia permite que as mensagens que nosso próprio corpo nosmanda, sejam cada vez mais ouvidas e levadas em conta. O individuo comega,entao, a querer ficar mais próximo desta fonte interna de sabedoria. Comega aouvir-se a partir de suas próprias reagoes fisiológicas. Esta maior abertura ao quese passa dentro dele é acompanhada de uma abertura sensivel ao mundo externo.Acreditamos ser este o motivo pelo qual ao aproximar-se mais de si, o individuonao se torna individualista e com comportamentos egoístas. É capaz de vertambém o mundo externo, as outras pessoas, a sociedade, e tudo isso é levado emconta em suas escolhas. Além disso, á medida em que é capaz de assumir suaprópria experiencia, aumenta sua capacidade de aceitagao da experiencia dosoutros, o que contribuí para a melhoria de suas relagoes. Descobre que pode sentir

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raiva e esta raiva nao ser destrutiva, pode sentir medo e nao ser parausado poreste medo, ou seja, pode sentir seu verdadeiro sentimento. Rogers nao nosencoraja a agredir quando estamos com raiva de alguém, desistir de algumaatividade por aceitar nosso medo ou fazer sempre o que queremos sem levar emconta os sentimentos das outras pessoas. Sua aposta é de que podendo vivenciarlivremente nossos sentimentos, estaremos mais aptos a agir, mesmo que esta agaonao acontega na mesma diregao do que sentimos. A principal congruencia é entre osentir e saber o que se senté. A expressao é urna escolha que deve ser feitalevando-se em conta o individuo, o outro e o meio.

Quanto mais ele for capaz de permitir que essessentimentos fluam e existam nele, melhor estesencontram o seu lugar adequado numa totalharmonía. Descobre que tem outros sentimentosque se juntam a estes e que se equilibram(Rogers, 1961/2009, p. 201).

Esta capacidade de vivenciar livremente os sentimentos é um processo que ocorredurante a terapia, que caminha da incongruencia para um maior estado decongruencia do sujeito. Rogers (1951/1975) descreve as mudangas que acontecemdurante a terapia bem-sucedida. Afirma que a terapia consiste em um processo deaprendizagem, no qual o cliente descobre novos aspectos sobre si mesmo. Percebemudangas no tipo de material apresentado pelo cliente e em sua percepgao eatitude em relagao ao self. O cliente passa a falar mais de si mesmo, no lugar defalar de síntomas, do ambiente externo e dos outros. Rogers relata que comumenteseus clientes sentiam que nao estavam sendo seu verdadeiro self e ficavamcontentes quando se tornavam verdadeiramente eles mesmos. Sentir que nao se éo verdadeiro self é característico do estado de incongruencia, quando a experienciaorganísmica nao está de acordó com a nogao de eu formada pelo sujeito. Asatisfagao de tornar-se quem se é é advinda da congruencia conquistada durante oprocesso terapéutico. A congruencia do sujeito permite que ele sinta, pense e secomporte de acordó com seu organismo, acabando, assim, com o estado deansiedade característico da incongruencia.Urna das mudangas mais importantes encontradas por Rogers no decorrer doprocesso terapéutico se refere á mudanga na configuragao básica da personalidade.Segundo Rogers (1951/1975) ocorre urna unificagao e integragao maiores dapersonalidade. Comega a emergir um self mais flexível, que se baseia naexperiencia global do cliente, percebida sem distorgao. O novo self emergente daterapia é mais congruente com a totalidade da experiencia. O comportamento doindividuo passa a ser menos defensivo e mais coerente com o self e a realidade.Como reflexo de um estado de maior congruencia do individuo, ocorre urna maiorfluidez e flexibilidade em sua forma de ser e agir, que nao estao mais baseados emantigás estruturas rígidas.

Procurando descrever a "fluidez" que caracterizaeste modo existencial de funcionamento sepoderia dizer que a imagem do eu emergiria -constantemente mutável - da experiencia(contrariamente ao modo habitual segundo o quala experiencia é desfigurada ou truncada a fim dea tornar compatível com a imagem do eu). Oindividuo em vez de se empenhar em controlarsuas experiencias, se tornaria parte inerente econsciente de um processo constante deexperiencia organísmica completa (Rogers &Kinget, 1965/1977, p. 263).

Emergindo sempre da experiencia, a imagem do eu estaría congruente com oorganismo, e o individuo seria o que ele realmente é, a cada novo momento.

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O constante processo de ser o que se éComo podemos perceber, a idéia de "ser o que realmente se é" nao significafechar-se em si mesmo. Ao contrario de acarretar egoísmo, é um processo queenvolve a responsabilidade do sujeito por ele mesmo e por suas agoes. É urnaliberdade responsável, pois estando livre para "ser", o sujeito deve tambémassumir a responsabilidade por seus próprios desejos e agoes, que nao se devemmais ao que suas "pessoas-critério" queriam ou esperavam dele. A idéia de homemenquanto projeto, sendo responsável por suas escolhas, tao explícita na propostarogeriana revela seu caráter existencial, na esteira do pensamento deexistencialistas como Jean Paul Sartre. "Ser o que se é" nao significa seresquecendo o mundo em que se vive, mas significa ser existencialmente,responsável, também, pelo mundo (Moreira, 2007, 2009).A expressao "ser o que se é", que a principio pode parecer ter um sentido de buscapor urna esséncia fixa, urna tentativa de descobrir urna identidade já pronta eacabada, algo que existe a priori e que só precisa ser desvendado, na verdaderefere-se exatamente ao contrario de tudo isso. Ser o que se é, é abertura, émergulhar num processo de constantes mudangas. É aceitagao da experienciavivida pelo organismo.

Os clientes parecem encaminhar-se maisabertamente para se tornarem um processo, urnafluidez, urna mudanga. Nao ficam perturbados aodescobrir que nao sao os mesmos em cada diaque passa, que nao tém sempre os mesmossentimentos em relagao a determinadaexperiencia ou pessoa, que nem sempre saoconseqüentes. Eles estao num fluxo e parecemcontentes por permanecerem nele. O esforgo paraestabelecer conclusoes e afirmagoes definitivasparece diminuir (Rogers, 1961/2009, p. 194).

Marcado pela abertura e fluidez, ser o que se é parece ser urna característica daPessoa em pleno funcionamento descrita Rogers (1961/2009). Seria característicodesse processo:- Urna abertura a experiencia: capacidade de vivenciar todo estímulo, pensamentoou sentimento sem barreiras nem deturpagoes, sendo a experiencia completamentedisponível á consciéncia. O individuo estaría apto a vivenciar o que se passaconsigo, estando consciente de seus sentimentos e os aceitando sem medo do queeles possam Ihe causar e sem julgá-los como perigosos a urna estrutura de self jáformada e rígida. Toda experiencia seria válida e faria parte do organismo como umtodo. Nenhuma experiencia seria rejeitada ou invalidada.-Urna vivencia existencial: capacidade de viver cada momento como sendo novo,sem utilizar os criterios do passado para avahar o presente. O que se é e o que sefaz nasce do momento e nao pode ser previsto, pois a configuragao dos estímulosde cada situagao é única. O "eu" e suas atitudes surgem da experiencia presente,em vez de serem deformados para estarem de acordó com urna estrutura jáformada. Nao há estruturagao preconcebida para a experiencia, pois cadaexperiencia é nova e jamáis se repetirá. A vivencia existencial é a plena aberturapara o aqui e agora.-Confianca no organismo: reconhecimento do organismo total como referenciaconfiável para o comportamento. O organismo é visto como fonte de sabedoria e apessoa passa a confiar no que senté e em suas reagoes sensoriais e viscerais. Apessoa é capaz de reconhecer todos os estímulos e responder a urna situagaolevando em conta todos eles.

Dizemos que há um funcionamento ótimo quandoa estrutura do eu é de um modo tal que permite a

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integragao simbólica da totalidade da experiencia.A nogao de funcionamento ótimo equivale, pois, ánogao de acordó perfeito entre o eu e aexperiencia, e á nogao de receptividade ou deabertura perfeita á experiencia (Rogers & Kinget,1965/1977, p. 173).

Podemos também dizer que ser o que se é, é ser congruente. Para Rogers(1961/2009), congruencia é urna correspondencia mais adequada entre aexperiencia e a consciéncia. É urna integragao entre a nogao de eu e a experienciaorganísmica. Ser o que se é é ser a própria experiencia de um dado momento,sendo esta experiencia também adequadamente representada na consciéncia, semdistorgoes para adaptá-la ao conceito existente de eu."Ser o que se é" é urna abertura ao novo. Nao há um "eu" finalizado, ele é sempretransformado e construido a partir das situagoes e circunstancias vividas. Comoafirma Rocha (2004) em seu artigo intitulado "Tornar-se quem se é - a vida comoexercício de estilo":

a fórmula "tornar-se quem se é" nao pode sercompreendida como o percurso que conduz áatualizagao de urna esséncia. Ela nao é da ordemde um imperativo ou de urna finalidade, mas éantes, a descrigao de um processo inteiramenteimánente: a vida é percurso no qual alguém setorna (vai se tornando, nao cessa de se tornar)quem é. E inversamente: um eu nao é, a rigor,outra coisa senao a configuragao sempre muíantee sempre provisoria que resulta da combinagao deforgas e efeiíos. O enconíro foríuiío com ascircunsíancia de urna vida vai íransformando,esculpindo um "eu". (...) Longe de conduzir aurna ideníidade, esse processo se abre para adiferenciagao: íornar-se quem se é, é sinónimo deíransformar-se (inveníar-se, diferir de si mesmo,reinveníar-se) (p. 294).

Ao longo do processo íerapéuíico, o individuo é cada vez mais capaz de significarsua experiencia livremeníe, sem barreiras nem deíurpagoes. Nao precisa mais seesconder de qualquer parte ou faceía do seu ser, pode ser iníeiro, e por issomesmo, iníenso. Esíe nao é um caminho fácil e nem sempre é prazeroso. Tambémnao é um objeíivo que urna vez alcangado, encerra-se. É um processo de exisíénciaconsíaníe e desafiador. Ser o que se é, é ser iodo em cada momento, como diria opoeta Fernando Pessoa (1933/1994):

Para ser grande,sé inteiro:Nada teu exagera ou exclui.Sé todo em cada coisa.Poe quanto ésNo mínimo que fazes.Assim em cada lagoa lúa toda brilha,porque alta vive (p. 148).

A expressao "ser o que se é" pode de inicio parecer sem sentido ou contraditória,pois nao podemos ser nada além do que somos. Porém, ao nos aproximar déla,percebemos o quanto é rica e desafiadora. Ñas palavras de Rogers:

Significa que urna pessoa é um processo fluido,nao urna entidade fixa e estática; um rio correntede mudangas, nao um bloco de material sólido;

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urna constelagao de potencialidadescontinuamente mutáveis, nao urna quantidadefixa de tragos (Rogers, 1961/2009, p.138).

ConclusaoTorna-se quem se é seria, entao, o processo de viver existencia I mente no aqui eagora, estando aberto á experiencia e as reagoes organísmicas. É um processo queenvolve abertura e criatividade. Ao contrario de se chegar a urna identidadecristalizada, torna-se o que se é, é abrir-se as possibilidades da existencia. Envolvea coragem de assumir nossas experiencias, sem deturpá-las por nao estarem deacordó com urna imagem já formada do que somos.O novo, em nos, assusta e desestabiliza. Em urna vida quase automática, ondeproduzimos em serie e nao paramos para pensar sobre o que sentimentos efazemos, torna-se difícil lidar com o que se apresenta diferentemente do que jáestávamos habituados. O conhecido é seguro e o novo gera estranhamento.Durante o processo da psicoterapia nos deparamos com novos sentimentos e novassignificagoes, que nos abrem para novas e diferentes formas de existir e atuar nomundo. "Ser o que se é" é aceitar e vivenciar a cada instante o novo, o fluido e omutável em nos. Desta forma, a frase que melhor expressaria a idéia de processocontinuo seria: ser o que se está sendo, pois esta transmite melhor a idéia deprocesso e fluidez que perpassa esta expressao. Trata-se de um modo defuncionamento onde tudo o que se passa no organismo é aceito e validado,propiciando, assim, um estado de congruencia. "Ser genuino significa fazer aquiloporque a situagao clama" (O'Hara, 1983, p. 120) ao contrario de agir baseando-seem situagoes e com porta me ntos anteriores. É aceitar cada momento como novo, eagir segundo a experiencia atual, sem se fixar em estruturas passadas. Éacompanhar o fluxo e a fluidez das experiencias de cada momento. A nogao de eudeve ser flexível para abarcar urna diversidade maior das experiencias de cadamomento, sem se fechar a urna estrutura já cristalizada. Se toda experienciaorganísmica fosse simbolizada corretamente, teríamos o ponto máximo decongruencia e funcionamento pleno. Logo, esta pessoa seria a cada momento o queela realmente é. Pois seria na consciéncia e na agao tudo o que é em suaexperiencia organísmica, sem negar ou deixar de lado qualquer sentimento. "Ser oque se é" é um processo que envolve sabedoria, coragem e responsabilidade,sendo o que se está sendo.

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Nota sobre as autorasRafaella Medeiros de Mattos Brito - Graduada em Psicología pela UniversidadeFederal do Ceará. Aluna do Curso de Formagao em Psicoterapia Humanista-Fenomenológica. Contato: [email protected]

Virginia Moreira - Psicóloga; Psicoterapeuta humanista-fenomenológica; Doutoraem Psicología Clínica pela Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo - PUC-SP(Sao Paulo, SP, Brasil); Pós-doutorada em Antropología Médica pela HarvardMedical School (CAPES/Fulbright); Docente Titular da Universidade de Fortaleza -Unifor (Fortaleza,CE, Brasil); Visiting Lecturer do Departamento de Medicina Socialde Harvard Medical School; Supervisora Clínica Especialista em Psicoterapiacredenciada pela Sociedad Chilena de Psicología Clínica (Santiago do Chile, Chile).

Data de recebimento: 12/08/2010Data de aceite: 17/05/2011

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Social representations and valorial orientations:the immigrants case

Emiliana MangoneGiuseppina MarsicoUniversity of Salerno

Department of Education ScienceItaly

AbstractThe principal idea of this paper can be divided in two macro axes: the first is thatthe behavior toward the other or others, above all, depends on the representaronthat people build as to him/them, on the interpretations of actions (pasts, presents,and futures), and on the landmark of socio-cultural context. When responsibilitiesare attributed to an individual or to a group for critical and /or of sufferance condi-tions, the situation produced is that it is attributed a false fault to a subject or to agroup that could be recognized as "enemy". The second is that images transmittedby the media do not produce only symbolism that contributes to the self construc-tion of the identity, but provide identification models too on which it is possible tofind interactions and social actions. In the specific case of the research we presentmodifications in the perceptions of young people who took part in the research, inregard to immigrants, they allow to look at a different direction that could assume apositive valence (making more familiar what was distant). But it is right to under-line that in other situations images produce contrary effects and rather libératefrom a stereotyped conditioning than push the subject to reinforce such position.

Keywords: social representations; enemy; valúes; images; immigrants.

1. Introduction: theoretical picture of referenceSocial sciences have underlined how the subject is constantly immersed into a sys-tem of relations that strongly contributes to define actions and features.In the plot of social life, social representations form, consolídate and circuíatethemselves. They are theories of the common sense, constructed in every day inte-ractions and shared by groups of subjects. So social representations do not arisefrom isolated individuáis, but they are socially generated; they refer to objects orsocial phenomena and they are shared by every member of a group. As the litera-ture has demonstrated (Jodelet, 1984; Moscovici, 1984; Duveen, 1988), in thestudy of social representations we need analyze the relationship among social ac-tors (singles and groups). In the flowing of daily experience, social actors try to ar-ticúlate the dialogue between individual and society in the real context of symboli-cal relationships among subjects, groups and institutions. It is evident here the ref-erence to the role played by the sense of stereotype, prejudice and believes (Mos-covici & Markova, 2006). The common trait among all these psychosocial pheno-mena consists in the fact they express a social representation that subjects andgroups construct in order to act and communicate. Representations as symbolicconstructions influenced by social positions of individuáis which produce them(Jodelet, 1984), perform the essential task to make conventional objects, people,events, giving them an exact shape, assigning them to a precise category and de-fining them in a model, distinguished and shared by a group of people. Moreover,they are prescribing because impose themselves on us.Representations are, in fact, cognitive elaborations of the reality shared by manypeople who orient individual sense making processes. Even though they are notproduced by single actor, nevertheless they are rethought, re - mentioned and re -

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presented at a micro genetic level. Representaron systems that are present in acertain culture are transmitted to us and they are the product of a whole sequenceof elaborations and changes which occur during the time (Laszlo, 2002).From a structural point of view, social representations are formed by two dimen-sions: iconic (image) and symbolic (meaning) and they are interdependent on eachother (Abric, 2001; Guimelli, 1994). Representation of an event, phenomenon orobject puts in relation an image to an idea and vice versa. At the basis of suchprocess there is the need to rebuild the common sense or the comprehension formof social happenings that creates the substratum of images and meanings withoutthose no community could opérate. In fact, the community doesn't work if thosesocial representations are not formed themselves, that are based on a group moreor less structured of theories, ideologies, visions of the world and that constitutethe symbolic and cultural ground which makes possible the interaction amongpeople. Representations make individuáis able to share an implicit whole of imagesand ideas, which are assumed as given (Moliner, 1996).In fact, one of the prerogatives of social representations is that they permit totransmute ideas in collective experiences and interactions in behaviors. Differentlyfrom the sciences that provide the set of instrument to acquire a scientific knowl-edge of the universe, the social representations have to do the "consensual" uni-verse. They reestablish the collective awareness giving it a form, explaining objectsand events so that making them accessible to everyone and making coincide withour immediate interests. It appears evident that as the aim of all representations isthat to make something of unusual or the unknown itself as familiar (Moscovici,1989, p. 45).The non familiar attracts and makes curious the community, put on the alert thesubjects and forces them to make explicit the implicit assumptions that are at thebasis of assent. The fear to lose usual landmarks, to lose the contact with that fur-nishes a continuity sense of mutual comprehension it is intolerable. When the di-versity imposes itself as something "not enough" as it should be, we instinctivelyrefuse it because it threaten the given order.The act to represent is a mean to transfer that disturbs us, that threatens our un-iverse, from outside to inside, from a far place to a cióse space. The transfer ismade separating concepts and perceptions usually connected and putting them in acontext where the unusual becomes usual, where the unknown could be included ina recognized category (Moscovici, 1961/in press). When theories, information andevents multiply themselves, they are to be reproduced at a closer and more access-ible level and transferred to the consensual universe, and they are to be definedand re- presented. To give a familiar aspect it is necessary to actívate two mindmechanisms: the first is the "anchorage" and it forces itself to anchorite unusualideas and reduces them to ordinary categories and images and put them in a famil-iar context. Therefore "anchorage" is a process that brings something extraneousand disturbing which regards us in our particular system of categories and con-fronts it with the model of a category we consider right. To anchorite means classi-fying and giving a ñame to something, "anchorage" is the representation estab-lishment in the social. Such mechanism performs three functions: 1) cognitive func-tion of innovations integration; 2) function of innovations interpretation; 3) functionof behaviors orientation and social relationships. This process making familiar theunknown reduces the fear and worry for that is not possible to explain. After all, thefamiliarity is a need intrinsic in daily living. To give a ñame to a person or a thinginvolves three effects: a) once a ñame has been assigned, person or thing can bedescribed and acquire certain peculiarities, certain trends; b) person or thing differfrom other persons and things on the basis of these peculiarities and trends; c)person or thing become the object of a convention among those adopt or sharethem (Haas, 2006).

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Aim of the second mechanism ("objectification") is, on the contrary, to carry outthese ideas, or rather to transform something abstract into something almost tang-ible. This mechanism, makes the unusual usual, disclosing it, making it accessible,concrete and consequently controllable. In this way we pass from idea abstractionto the image concreteness. When an idea enters into the knowledge of the dailylife, it aims to materialize itself. For example, in every process of divulgation ofscientific theories, it is carried out such transformation from the abstract to con-crete by turning to a figurative nucleus. Given that a theory enter into the commonsense, it happens a selective retention of some ideas which not contextualized inregards to original theoretical área, they are revised and reorganized on the basisof familiar knowledge. Actualizing through images, is a strategy justified by theneed to simplify the overcharge of notions at which we are exposed every day. Thisprocess involves three passages: 1) selection and de - contextualization; 2) con-struction of a figurative nucleus; 3) naturalization. The objectification permeates ofreality the idea of non familiarity, transforms it in the true essence of the reality(Farr & Moscovici, 1984).The materialization of an abstraction is one of the most mysterious features in thethought and in the language. In short, actualizing it means to reproduce a conceptinto an image. Once the society has realized such process, it finds out easier tospeak about everything is implied by paradigm. Then emerge formulas and clichéswhich synthesize and connect images before sepárate.As Moscovici (1961, 2000) showed, image of the concept ceases to be an indicationand becomes a repetition of the reality. Therefore, the notion or the entity fromthat is derived, it loses its immaterial nature and acquires an existence almostphysical and independent. That is perceived replaces what is conceived and imagesbecame real factors, rather thought factors. So the distance between representa-tion and represented is offset.It is epistemologically and ontologically correct to affirm that social representationsgive form to social explanations; this is the reason for why people try to know whatis real before asking them why anything happens in the way in which it happens.They must reduce ambiguity and make information unequivocal in order to make aconcept and an image corresponds and vice versa. The behavior towards otherpeople depends on: a) the idea that we have of them; b) the interpretation of theirpast and present actions: c) the expectation of their future actions; and d) from thesocio-cultural contexts (Berger & Luckmann, 1966). As social actions are closely in-terconnected with the processes of social perception, it is easy to understand whyscholars are interested in judgments that people give to one another. When indi-viduáis give a judgment (Heider, 1958; Hewstone, 1989), they try to explain or tointerpret the behavior of the judged subject, making the social context of referencemore predictable and understandable. In other words, social representations can beconsidered as a system of cognitive matrix with the task of coordinating words,ideas, images and perceptions that are shared in relation to a big number of peoplethat identify among them (Jodelet, 1984; Moscovici, 1984; Crespi, 2004). At thispoint, we can state that the behaviours (positive or negative orientation) to any-thing or anybody are guided by the perception we have of them: the social reality isnot built only by social meaning, but also by the producís of the subjective world ofindividuáis (Tateo, 2009). When an individual or a group blames another individualor group for his/her critical and/or suffering conditions, is created a situation inwhich we attribute a false blame to someone or a group defined as the "enemy"(Girard, 1987).The attribution of responsibility suggests solutions to social problems, while therules that determine the explanations can both contain and increase violenceand/or control of social order.The idea that goes with this study, is that orientations towards a subject or a groupconsidered as "enemy", is a category which represents one of the most powerful

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icons of the modernity (Giordano & Mizzella, 2006), and it is influenced by informa-tion and knowledge obtained from media and especially through images that themedia broadcasts. We do not rebuild the history of the "enemy", but we want toanalyze the different ways to give a judgment which allows us to créate the real orvirtual "enemy" as well. So, we ask ourselves questions about the different ways ofsymbolic meanings of perceptions of some categories and about the conditioningthat they produce inside the social processes of building the figure of the enemy "asto who does not belong, that is foreign, that is on the wrong side, that does notshare" (Giordano & Mizzella, 2006, p. 33). This last aspect is connected whit thechoice to use as "enemy" the category of the "immigrants" even if there are fewstudy on the representation of the "Other" (Colombo, 1999): the history of Europeis often characterised by the opinión of "foreign" (immigrant) as an "enemy" (Bi-notto, 2006). It is because the "foreign" is related to something "unfamiliar" (un-known) that, in the relationship, works such a border-figure as Simmel (1908) de-fined it: the foreign is "at same time cióse and distant".The classical concept of "image of the enemy" is typical of humanity, as only this isable to produce significant symbolic meanings in absence of a face to face relation-ship (Attili, Farabollini & Messeri, 1996). It is a highly complex process involveswhich different dimensions of reality (social and psychological), and for this reason,it is easily influenced by the processes of knowledge acquisition.Therefore, the object of this paper is to understand and, where possible, to explainthe meaning and the role that the social representation assumes in the dynamicsthat lead to the modification of orientations (positive or/and negatives) connectedto the construction of "enemy" and to explore how these could be different on thebasis of perception and knowledge acquisitions modalities.

2. Method: the research's objects and methodologyThe idea that social representations are on the basis of "cognitive prosthesis" whichmotívate people to social action, it pushes us to carry out this research that doesnot have the pretensión to be exhaustive with respect to how build orientations thatare on the base of individual and social group actions which refer on idea of "en-emy". It wants only to propose a reflection on the processes of attribution in a soci-ety in which the acquisition of knowledge is strongly influenced by mass communi-cation.Empirical attention has been directed to young students of the University of Salernoin the South of Italy, Campania región (1), this choice is justified because youngpeople represent the "vital strength" of society, with a course of life which still hasto be built and therefore direct able "trainable" in one way rather than in other way.In fact, their developmental phase would still allow the definition, through the so-cialization processes (2), of social identity (Perret-Clermont, Pontecorvo, Resnick,Zittoun & Burge, 2004) positively oriented towards other (foreign/immigrant). Thechoice of this sample is justified also by the considerations that this target of popu-lation is the most frequent user of communication' sources connected with new me-dia in which the images are predominant.By the light of these preliminary remarks, the aim of this research has been firstlylooked into the visión of the world and the future perspectives that young peoplebuild. This is necessary because it is important to interpret which are the structuresof the ways used to see the society through the eyes of young people. There is notdoubt that human knowledge interacts with social life, the ideas on what is rightand what is not right, are determined by the social context in which they develop.In this way a "reference scheme" of meanings can be created, standing what youngpeople accept and do not accept with what is commonly accepted. It is fundamentalto know not only which are the elements that constitute this "reference scheme",but most of all how it is built. The analysis of symbolic systems that orient proc-esses attribution of meaning and the social behaviour of the individual, it gives an

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adequate instrument of understanding dynamic interaction among society, peopleand knowledge.Secondly, we nave tried to look into how young people (according to the perceptionmodalities of the concept) modify their orientations for subjects considered by us as"enemies". In fact, at this point it appears evident, the relevance of representaronanalysis in the study of behaviours and attitudes that people assume accordingothers. When we talk of negative social actions in particular categories, we must tryto develop a theory of representation more than to theorize on the dynamic ofthem, as often we are in confronted with the shifting from one positive representa-tion to a negative representation.The phases of the research plan are the following: a theoretical widening, a criticalinterpretation of material acquired, the building of a structured questionnaire andfinally, data interpreting. From the methodological point of view we are not worriedabout quantitative/qualitative controversies, as we think that both the methods cancohabit: in fact, the real problem is not linked to the type of method adopted, butrather to their reciprocal procedural relations (Cipolla, 1998), therefore we think itis advantageous to use an integrated methodology for the research study.Among the different tools of research, the choice fell on to the questionnaire, be-cause when we want to find out about a social phenomena, be it individual or col-lective, we have, fundamentally only two systems to gather the information: obser-vation and interrogation (Corbetta, 2003). We chose to "interrógate", as we had thenecessity to collect the information through a standard tools both through questionsand answers, in a way to permit the study of eventual existent relations betweenvariables.The administered questionnaire was made up of four sections. The first section("Socio-personal data") is represented by a personal file aimed at obtaining socio-personal data (sex, age, school attended, etc.). The second section, ("visión of theworld and future perspectives") is made up of four questions in which one (max twochoices of answers) is related to the media communication from which the young-sters obtain information; the second and the third questions tend to verify thepresence and the perception of uncertain elements that can influence the youngpeople every day life. The youngsters have expressed their own degree of trust re-garding a series of people categories and about a series of future changes in whichthe youngsters have expressed their own degree of fear (we have used a Likertscale on four points). The use of the scale was necessary because, in our intents,there is the idea to verify the positive or negative intensity with which the youngpeople load their disposition, against or in favour of a particular category of sub-jects or compared to a series of changes that can involve the youngsters in the fu-ture. The last question of this section, that presents the same series of changes ofthe former question, asks the youngsters about the possibility of improvement ordeterioration (we have used a Likert scale on three points). The third and fourthsection ("Representations of the enemy") is based on the semantic differentialtechnique (Osgood, Suci & Tannenbaum, 1957). In its generality, this techniquemeasures the connotative meaning (3) of a concept starting from affective andemotion reactions of the subject that answer to a certain stimulus (a word, asound, a drawing, an image, etc.). The application of the semantic differential iseasy, it is based on the expression of the subject's judgement in relation to "con-cept-stimulus" on a series of defined scales by a pair of opposite adjectives andfrom a rating scale presented in graphic form (from 1 to 7, or from +3 to -3 in lesscases in which we want to indícate the positive or negative sign). Two are the typesof judgement that are linked between them: one indícate the direction or the qual-ity (at which point of the two sides of the scale does the association of opposite ad-jectives get nearer), the other the intensity or distance (how it approaches the ex-treme of the scale). The intermedíate point of evaluation "4" (o in rare cases "0")corresponds to the equidistance or to the neutrality of two polar adjectives com-

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pared to the "stimulus-concept". Each scale represents a meanings component (di-mensión of semantic space) that can be represented as a passer-by line the originfor of this space, the number of dimensions of this space is theoretically ended, butit is not known; from previous studies it appears that there are three reitérate di-mensions: evaluation, potency and activity.Before entering into details of the results it is necessary to explain the modality ofthe questionnaires administration: they are drawn up with help of an administrator,this modality was necessary because a part of the stimulus was visuals (stimulus-photo). To guarantee the minor distortion of answers the order of "stimulus-word"and "stimulus-photo" was diversified. The methodology that we adopted was,therefore to regroup a certain number of students in the classrooms, in the secondsemester of the academic year 2007/2008, giving them all the indication and in-formation both on the objects of research and the modality of filling out the ques-tionnaires. The sample, 0,62% of total students of the University of Salerno(40.534 units for the 2007/2008 academic year), was composed by 267 cases se-lected in at random and independently from type of course or faculties attended, forits constitution we only used stratification by sex.

3. Results and discussion: valorial orientations, the immigrants caseHaving constituted the methodological frame and having described the used tool,we only have to enter in the interpretations of the results obtained up to now (4).So as we have carried out the description of questionnaire, we analyze the resultsaccording to each single section of the tool.

3.1. Socio-demographic profile of the sampleThe data relative to the first section were able to define a socio-personal profile ofthe respondent subject. The sample, on the base of methodological procedures thatwere used in the creation of the research plan is divided in a proportional way tothe total students of the University of Salerno, and exactly is follows: 41,6% ismade up from males and 58,4% from females. For age, the sample, was distrib-uted, as 60,7% 18-22 year-old, 33% 23-27 year-old and 6,4% over 27 year-old.Only 2,2% is married (96,3% is unmarried).Relatively at the high school attended the highest percentage is for Liceo peda-gógico (23,6%), following Liceo scientifico (21,7%), Istituto Técnico Industríale eCommerciale (respectively 18,7% and 15,7%).Because the sample are students, there is a possibility that a large number of themdo not live in Campania, therefore some questions referred to their province or áreaof residence, and type of "family". From these questions a profile of a young stu-dent that resides for 53,4% in the province of Salerno, the 17,4% in the province ofNaples, 17,7% in the province of Avellino, instead the provinces of Casería andBenevento are less represented (respectively 5,2% and 3%).But it should mention that a 6% of students carne from other regions. Relatively tothe área of residence, 55,4% live in the periphery, 32,6% in the centre of the cityand 11,6% live in "rural" áreas. Among the typology of "family" emerges the "nu-cleus family" with 87,6% and a 9% that live with other students.Only 18% of students interviewed state that they work 28,3% of them have a sea-sonal contract and 23% a full time contract.This analytic presentation of the biographic profile of the sample provide to thereader/researcher all the informations useful to carry out eventually a comparisonwhit other similar study. It is worth to underline that in the following pages no oth-er reference to the biographic profile are discussed because, from the scattered da-ta, didn't emerge any difference statistical significant for gender, age, ad degree ofeducation.

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3.2. Vision of the world and future prospectiveThe data of second section of the questionnaire "Vision of the world and future pro-spective", revealed a quite negative students' outlook towards the future.These data agree with the latest research on cultural consumption of young people(Ammaturo, 2008). At a general level of analysis young people seem to prefer theTV (41,4%) and internet (35,9%) when acquiring information. Only 11,7% of thestudents, instead, prefer other media as book and printed materials (5). This resultis in line whit current researches (Bruschi, Iannaccone & Quaglia, 2010; Ligorio,Andriessen, Baker, Knoller & Tateo, 2009) that underline the process of trainingand, at least, of identity construction is strongly influenced by mass media com-munications that always take up more space in the lives of young people.In particular, it is all those forms of communication which are linked to the diffusionof images (Mangone, 2008) that influence a biography of single subjects.So, what visión of the world do young people have? Let's try to give an answer us-ing the data to help us, without leaving a short reflection on the sense of generaluncertainty that permeates the entire society and that often immobilizes action(Bauman, 1999). More often than ever young people find themselves having tocarry out their life project within a reality that is constantly changing. Thosechanges need to be interpreted in order to learn how to face the transitions in lim-ited controlled situations and to make a choice in conditions in which to predict thefuture is more difficult (Buzzi, 2007). In this general climate of uncertainty thatcharacterize the Italian context, young people of our sample don't seem to have anoptimistic visión of society and of their future yet.To the question "Here are a set of categoríes, could you please indícate your degreeof trust ofthem?" (Table 1), the young people preferred the modality of central an-swers (fairly and little) as if take a position regarding of these categories which isnot of complete "open-mindedness", but is neither of complete "narrow-mindedness".

Table 1: Distribution of degree of trust in young people's on categories (%)

CateqoryThe clothNo-profit organizationsUniversitiesPóliceYoung squattersPoliticiansImmiqrants

A lot5.2

*.g9.7

11.69.0

0.4

0.4

Fairly42.743.463.359.942.72.6

12.4

A little35.645.321.322.136.330.756.2

Not at all16.55.6

4.5

6.0

10.966.330.7

The answers to the category "politicians" are a particular case, the "politicians" is acategory towards which the young people are more diffident (66,3% of whom an-swered that they had chosen the option "Not at all"). Young people do not trust"politicians" and even less "immigrants" which seem to represent an emergency ofthe Third Millennium (56,2% of the answers to these questions scored "A little").The little trust in politicians, that clearly has emerged from the latest research thatstudied this specific área (Buzzi, Cavalli & de Lillo, 2007), means that young peopleare conscious that it is not possible to change the world because political interestsare stronger, therefore the young people prefer the "prívate" instead of the "pub-lic".From the sample emerges a young person that who is afraid of a series of situa-tions for which his/her power of control is mínimum and the degree of uncertaintyis high.

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73.466.3

56.9

32.6

20.6

36.0

17.6

24.033.3

30.7

44.6

49.4

28.8

38.6

97.496.6

87.6

77.2

70.0

64.8

56.2

Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the im-migrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01

Table 2: Distribution of young people's fears (%)

ítem A lot Fairly A lot + FairlyCost of living, employment, unemploymentPollution, environmental change and disastersTerrorism, fundamentalism, warFuture in generalPolitical change, crisis of democracy, problem ofdelegationDeath, health, ageingDemographic change, immigration, multiethnic society

If we try to write a list of young people's fear, adding the answers to modality "Alot" and "Fairly" (Table 2), we see that in first position there is "Cost of living, em-ployment, unemployment" (97,4%), second "Pollution, environmental change anddisasters" (96,6%), third "Terrorism, fundamentalism, war" (87,6%), fourth the"Future in general" (77,2%). Following in this list, we find "Political change, crisis ofdemocracy, problem of delegation" (70,0%), "Death, health, ageing" (64,8%) andfinally "Demographic change, immigration, multiethnic society" (56,2%).The problems that politicians have do not seem to worry young people and v/'ceversa. What is an "emergency" for politicians does not seem a "threat" for "youngpeople".Young people's pessimistic visión is evident from the answers of given to the ques-tion "For the same series of future changes, starting from his/her personal experi-ence, can you indícate if they will improve or deteriórate?" (Table 3).

Table 3: Dístribution of young people's future opinión on set of situations (%)

ítem Will ¡mprove Remaní w ¡ | | c | e t e r i o r a t er_ unchanqedCost of living, employment, unemploymentPollution, environmental change and disastersTerrorism, fundamentalism, warFuture ¡n generalPolitical change, crisis of democracy, problem ofdelegationDeath, health, ageingDemographic change, immigration, multiethnic society

At first and second place for the dimensión of "deterioraron" there are "Cost of liv-ing, employment, unemployment" (80,5%) and "Pollution, environmental changeand disasters" (76,0%), and at the second one there is "Future in general"(48,3%). The aspect that seems to worry young people less is the course of life, inother words the aspects of person's evolution like death, health or ageing. Foryoung people, in fact, these aspects "will improve" (31,8%) or"remain unchanged"(43,1%). These aspects "will deteriórate" only for 25,1% of the sample.The behavior of young people is not only a reaction to a society that always asksthem to be equal to a situation, in which the competitiveness is necessary and it isencouraged, and it appears as the only way to develop one's personality, howeverit is the result of their "fears" and their pessimistic visión of the future. If changeswill occur, they will not be an improvement, but a deterioration of the situations.

3.3. Social representations of enemyAs explained above, a technique that we have used for studying valorial orientationof interviewed young people is the semantic differential that allowed us to analysethe meaning that the young people attribute to some categories such as "enemies"(in the case of present research, categories has been chosen by us and they are:

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4 .1

6.7

8.6

21.3

7.9

31.8

19.9

15.0

16.9

43.8

30.3

55.1

43.1

34.1

80.5

76.0

46.1

48.3

36.0

25.1

43.8

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"terrorists", "immigrants" and "university professors") in relation to three principaldimensions (evaluation, power and activity) of semantic space. For each dimensiónwe individualized three pairs of adjectives that they obtained scores non deformingseores (6).For the study of the dynamics we used three indicated categories because wewanted to verify the differences in respect to categories cióse to the sample of stu-dents ("university professors") or not too cióse ("terrorists") (7). We used two formof stimulus: one a word that corresponds to the category and the other a visualstimulus (photo), because the starting hypothesis was that the orientation (positiveor negative) would be different on the basis of perception modality. The analysisthat we present is relative only to the category of "immigrants" because the mostinteresting data was gathered here. The results refer to three dimensions of seman-tic space and to the direction of judgement (at which two sides of scale the associa-tion of adjectives is closer) and to the distance (how the judgment is closer to theextreme of the scale). In Table 4 are indicated the percentage of answers to thesemantic differential scale of the total sample for both stimulus (word and photo).

1

3

4

5

6

7

Word

Photo

Word

Photo

Word

Photo

Word

Photo

Word

Photo

Word

Photo

Word

Photo

SafeDangerous

1.9

4.5

3.0

1.9

6.7

6.4

22.8

24.7

22.5

18.7

22.5

16.1

20.6

25.5

Table 4: Distribution of Semantic differential (%)

Comparison between stimulus word and photo

Goocl BeautifulBad Ugly

3.4

12.4

3.4

3.7

7.1

12.4

39.3

30.3

22.5

16.5

12.4

10.5

10.5

11.2

2.6

4.9

2.6

2.6

7.5

4.9

42.9

24.7

19.5

18.0

8.6

13.9

13.2

27.7

StrongWeak

10.9

6.0

7.9

4.5

16.1

6.7

28.8

13.5

17.2

10.1

10.5

17.6

6.4

39.0

BigLittle

9.4

7.9

6.7

5.6

19.1

7.1

39.7

21.3

13.5

12.7

- .1

13.9

4.1

28.5

"immigrants"

TaftSoft

12.7

14.2

13.1

9.4

23.2

12.7

33.0

22.1

6.7

12.0

1.1

7.1

2.2

17.2

ActivePassive

10.1

12.4

15.0

8.6

14.2

8.2

21.0

18.4

12.7

12.7

: : . 6

13.5

12.7

22.1

DifficultEasy

23.2

39.3

18.0

18.0

21.7

17.2

21.0

12.7

7.9

4.1

5.6

3.0

1.1

3.7

HotCold

2.6

10.1

4.9

6.7

6.7

5.6

32.2

21.3

14.2

9.0

16.5

12.7

20.6

32.6

In relation to the evaluation dimensión, it is possible to affirm that the judgementexpressed to immigrant of the total sample is negative both in the case of stimulus-word and in the case of stimulus-photo. This is because both the direction and dis-tance inside the social space of meanings, have a position that can be considerednegative: in fact, for all three couple of adjectives (safe-dangerous, good-bad andbeautiful-ugly) the major percentage concéntrate towards the right part of the scale(valué 4-7). Regarding the semantic space linked to the power dimensión, thesample did not express any clear position: the majority for the stimulus, directionand distance, are around the neutral valué (valué 4). The percentage of oppositeadjective pairs strong-weak and big-little are an exception (respectively 39% and28,5%) for the stimulus-photo which not, only strongly differences the answer totype of stimulus, but it also inverts the judgement.The individualized pairs of adjectives for the activity dimensión were given answersthat are related which the central valúes of the scale. These permit us to affirm thatin this case the judgement relative to the stimulus (both for direction and for dis-tance) do not express a clear negative orientation.As for the semantic differential we operated a further type of analysis for the stimu-lus-word and for the stimulus-photo, which takes into account the average and thenormal curve (Graph. 1). The valid cases are 233 for the stimulus-word and 237 for

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the stimulus-photo. From the elaboration of the data two relevant aspects emerge:on the one hand the reduction of an average for the stimulus-photo (from 4,07 ofstimulus-word to 3,44), on the other hand (cfr. the analysis of the curve) a shiftingof judgement both for direction and for distance. In other words, from a negativejudgement orientated for the stimulus-word (both for direction and for distance),we observe the passage to a judgement that we can define "softer" in the case ofstimulus-photo, in the last case the curve is included within central valúes of thescale and then the judgement is more prudent (neutral).

Graphic 1: Comparison average stimuli word and picture "immigrants"

1,00 2,00 3,00 4,00 5,00 6,00 7,00

6 0 -

5 0 -

4 0 -

3 0 -

2 0 -

1 0 -

Stimulus-word

Mean = 4,0749Std. Dev. = 0,66263

N = 233

Stimulus-photo

Mean = 3,4416Std. Dev. = 0,86424

N = 237

This means that the difference of stimulus defines a different answer for the se-mantic differential until changing the orientation of judgement. This permit us toaffirm that the knowledge of the world and in this specific case of "the other" as an"immigrant" depends on his/her visión, the first act of a "getting to know" processthat will to lead to reasoning, deciding and solving problems (Faccioli & Losacco,2003). The relation between who perceives and what should be perceived is notconstituted or defined from the outside. The subject is in part trained through whathe/she sees and the way in which he/she sees it, its images and meanings are al-ways relative and dependant on its positions and from its interpretative schemeswhich rely on it.There is a difference if we judge an abstract concept or an image of it, but, in gen-eral, we do not register a difference if we disaggregate data for gender or age. Inthis specific research, even though we knew that a different picture could producedifferent results, we can state that the orientation of judgement respects the "im-migrants" changes in a positive sense if the subjects see an images instead of anabstract stimulus. In other words we can infer that to be able to recognize or notrecognize a category or a single subject as "enemy" is a process influenced by im-ages.

4. ConclusionsThis paper presents a reflection about social representation through a socio-psychological perspective, because it is important to use the social representationphenomena as a descriptive instrument to understand the mechanisms and theprocesses of building the category of "enemy" through the modification of valorialorientations. In fact, when an individual or a group attributes a judgement of valué(positive or negative) to another individual or group, it builds a social shared repre-

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sentation that determines, in the case of negative orientation, a situation in whichwe attribute a responsibility to someone or a group identified as the "enemy". Fromthe results of the study, we know that to see a different "stimulus-photo" will haveproduced different results (no modification or a modification in orientation in nega-tive sense), it emerges that this process is strongly influenced by images. Thereforethe young people who use widely the images in "their languages" reveal to be thatpart of the population which is more easily influenced (Ligorio, Andriessen, Baker,Knoller & Tateo, 2009). The images can function as a "deforming mirror". In fact,images promote the terms of language that they créate; they highlight only somethemes, concepts or mental categories, forgetting others (Moliner, 1996). They donot easily reflect the valúes of society, but they modify its hierarchy, although theydo not créate new valúes.In other words, the images do not produce only symbolism that contribute to theself-building of identity, but they also give models of identification on which to basethe interactions and social actions on. In this research, we present the modifica-tions of young people's perceptions to immigrants. These modifications allow toswitch the view into a different direction that assumes a positive valué (to rendermore familiar what was not familiar), but it is fundamental to underline, that oftenthe images produce contrary effects and instead of releasing themselves from ste-reotyped conditioning, they forcé the reason to reinforce their negative position.In conclusión, to know that there aren't schema that efficiently explain the functionof images and their consequences on the social actions it doesn't mean that theseconsequences don't exist at all. The variation of the mean presented (Graphic 1)and analyzed confirms that the stimulus-picture induce a modification of the valorialorientations (in this case in a positive way) producing consequents actions (Wolf,1992). We are aware that we cannot generalized the results discussed in this pa-per, which is an explorative study on social representations of the immigrant andon how the images can affect the process of construction of those representations.Referring to the results, we suggest to put more attention on the models of behav-iour daily proposed by mass media through several images that many times are ob-ject of imitation.(Bandura, Ross & Ross, 1961).On the basis of the discussed data we can suppose that the images take part to theproduction of valúes, languages and way of acting. It need to transmit the imagesin a less conflictual and more equal terms especially whit respect to some catego-ries. So that because they often are stereotyped object or persons fixing, in somecase, the definition of a category of persons or a group (in this study the "immi-grants") as "enemy".

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Notes(1) Campania is a región located in the South of Italy. Its territories is formed by 5provinces (Napoli, Salerno, Casería, Avellino, Benevento).(2) The choice of students as research's participants is based on the considerationsof the very delicate and vulnerable transitional phase young people are goingthrough, in which they face the fundamental task of constructing their life activelyin society and of social positioning in a wider socio-cultural word. Taking into ac-count these dimensions, the university students seem a very critical and crucialtarget to investígate, because they are involved in a set of experiences (inside andoutside the University) connected with the formation of their system of knowledgeand believes(3) The connotative meanings is linked to the own abstract qualities of object or todesigned class, in other words it defines the system of emotions and beliefs linkedto a particular proposed "sign" and they depend from experience and then fromhistorical reference context of person: the "meaning", as external representation ofreality, it constitutes the mediation between the stimulus and the actions.(4) The data described in this paper represents a descriptive level of phenomena.The statistical treatment of data is in course of definitive elaboration that we con-sent to cross all different examined dimensions.(5) The percent indícate to refer at total number of answers because the question isa múltiple answers.(6) For an accurate analyse of technique applications of semantic differential, oftheoretical and metric problems to use it, you see Capozza (1977).(7) The enemy, real or imagined, reduces the semantic and territorial space(close/far) of people, from here the methodological plan to use the categories thatoccupies "spaces" of different relations.

Note on the authorEmiliana Mangone - graduated in Sociology in 1993 and in Sciences of educationalin 1997 at University of Salerno. In 2006 she became Research Fellow in Sociologyof cultural processes and communication at the Department of Educational Sciencesat the University of Salerno. Since 2002 she teached several disciplines of Sociologyat University of Salerno.She has extended her analysis to cultural and institutionalsystems and particularly to the cultural, health and social systems. She has focusedon the development dynamics of social representation, aiming to define the cir-cumstances which were at the basis of the human actions. E-mail: [email protected]

Giuseppina Marsico - researcher in Development and Education Psychology at theFaculty of Education Sciences at the University of Salerno (Italy), and teaches Ob-servation Techniques of Child Behavior. Her main research topic is "Parental educa-tional styles, school success/failure and psycho-social wellbeing in youth". She isPhD in Methodology of Educational Research, and graduated in Education Sciencesat the University of Salerno. She has been coordinator of the Bureau of CriminalMediation at the Juvenile Courthouse of Salerno. E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 17/06/2010Data de aceite: 10/04/2011

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A religiosidade do morador de rúa e o sentido devida: o caso Marcelo

The religiosity of the homeless and the meaning of life:Marcelo's case

Aluizio Geraldo de Carvalho GuimaraesJacqueline de Oliveira Moreira

Pontificia Universidade de Minas GeraisBrasil

ResumoO presente artigo versa sobre temas marcantes na sociedade atual: o morador derúa, a religiosidade e o sentido de vida. Buscou-se caracterizar o fenómeno socialda populagao de rúa na atualidade e construir urna possível definigao do mesmo. Apartir da contribuigao de diferentes autores, procurou-se também caracterizar areligiosidade e a influencia da mesma sobre a realidade social e psicológica daspessoas. A partir do relato de trechos da vida de um morador de rúa da cidade deBelo Horizonte a quem chamaremos de Marcelo, procurou-se mostrar como a buscade sentido se faz presente na vida ñas rúas. Como resultado do presente estudo,póde-se concluir que a religiosidade pode ser um auxilio importante na busca e naconstrugao de um sentido de vida, além de ser urna forma de sustentagaopsicológica para pessoas que vivem ñas rúas. Langou-se mao da teoria de ViktorFrankl como forma de a na I isa r esta temática.

Palavras-chave: morador de rúa; sentido; religiosidade; fenomenología.

AbstractThis article discusses salient issues in contemporary society: the homeless, thereligiosity and the meaning of life. Sought to characterize the social phenomenon ofthe homeless population at present and build a possible definition of it. From thecontribution of different authors also sought to characterize the religiosity and itsinfluence on the social and psychological reality of the people. From the report ofthe passages of the life of a homeless man from the city of Belo Horizonte whomwe will cali Marcelo, tried to show how the search for meaning is present in streetlife. As a result of this study, it was concluded that religiosity may be an importantaid in search and building a meaning of life, beyond being a form of psychologicalsupport for homeless people. Viktor Frankl's theory was used as a way to examinethis issue.

Keywords: homeless; meaning; religión; phenomenology.

I. Introducao1.1. Objetivo geralO presente artigo (1) versa sobre a religiosidade e suas influencias na subjetivagaode pessoas que vivem na condigao de moradores de rúa, na cidade de BeloHorizonte. Seu objetivo maior é investigar como a vivencia ou a experienciareligiosa pode influenciar nos processos de construgao de sentido de vida paraessas pessoas.

I . I I . O morador de rúa: possíveis definicoesAntes de avangarmos nesta proposta, torna-se necessário trazer esclarecimentossobre o que se entende por morador de rúa. Definir e analisar o que vem a ser omorador de rúa nao é tarefa simples. Araújo (2000) afirma que realizar estudos

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sobre pessoas que moram ñas rúas ou vivem das rúas é urna tarefa desafiadora eque em dois sentidos esse desafio se intensifica. O primeiro sentido colocado comodificultador é que a vida dessas pessoas nao é nada simples como pode aparentar ojargao "populagao de rúa", pois, para além desse jargao, escondem-sediversidades; relagóes complexas do ponto de vista interpessoal e do trabalho,diferentes perfis e diferentes redes de sociabilidade, diferentes trajetórias ehistorias de vida e, enfim, complexidades sociais e culturáis impossíveis de seremdecifradas por conceitos simples e homogeneizadores.O segundo sentido que para o autor dificulta o estudo de pessoas em situagao derúa se dá no plano metodológico, já que é difícil pesquisar esse público porque ele éflutuante, temporario e nómade. "Em suma, nao é fácil contar as pessoas, saberquem sao e como pensam, entender suas redes de sociabilidade e suas formas desobrevivencia" (Araújo, 2000, p. 89).Apesar desses diferentes atravessadores apontados que dificultam a definigao depopulagao de rúa e morador de rúa, encontramos em Vieira, Bezerra e Rosa (1994)um desenho que visa a urna definigao:

Pessoas que vivem em situagao de extremainstabilidade, na grande maioria de homens sos,sem lugar fixo de moradia, sem contatopermanente com a familia e sem trabalho regular;sao demandatários de servigos básicos de higienee abrigo; em que a falta de convivencia com ogrupo familiar e a precariedade de outrasreferencias de apoio efetivo e social fazem comque esses individuos se encontrem, de certamaneira, impedidos de estabelecer projetos devida e até de resgatar urna imagem positiva de simesmos (p. 155).

Podemos afirmar que o fenómeno social ao qual se denominou pelo termopopulagao de rúa, é urna questao de grande relevancia na sociedade atual.¡números fatores como a desigualdade social e o aumento da pobreza, odesemprego, o uso de drogas e fatores psicológicos, entre outros, tem feito comque ¡numeras pessoas deixem urna vida social estabilizada e passem a fazer dasrúas sua morada. Em especial nos grandes centros urbanos esta é urna realidadeque se acentúa e cresce cada vez mais.Neste estudo, de maneira específica, analisamos a vida de um morador de rúa quevive na cidade de Belo Horizonte. Torna-se relevante assim, tecer algumasconsideragóes sobre a situagao desse público nesta cidade.

I . I I I . A populagao de rúa em Belo HorizonteCom relagao á populagao de rúa, o caso de Belo Horizonte nao difere de outrascidades; há a presenga de pessoas ñas rúas e o último censo da populagao de rúarealizado na cidade aponta também para o crescimento desse público. Pessoas quemoram ñas rúas de Belo Horizonte apontam que há fatos positivos de se vivernesta cidade, pois, se comparado a outras capitais, como Brasilia e Sao Paulo, ocusto de vida de Belo Horizonte é mais baixo. Alguns ressaltam também ahospitalidade do povo belo-horizontino; há locáis e pessoas que fazem doagóes,servigos públicos que oferecem acolhimento e possibilidades da superagao dasituagao de rúa, entre outros.De urna forma geral, segundo o 2o Censo da Populagao de Rúa e análise qualitativada situagao dessa populagao em Belo Horizonte (Ministerio do desenvolvimentosocial e combate á fome, 2006), pode-se resumir o perfil da populagao de rúa emBelo Horizonte da seguinte maneira:No ano de 2005 havia 1.239 pessoas vivendo ñas rúas de Belo Horizonte. Dessenúmero encontrado, 991 pessoas eram homens adultos, isso representa 79,98% do

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total. Isso mostra que a populagao de rúa de Belo Horizonte é essencialmentemasculina. De todo o público entrevistado, 39,04% estavam vivendo ñas rúas hámais de cinco anos o que aponta para urna estagnagao social na condigao de rúa.41,2% sao pessoas que nasceram em cidades do interior de Minas Gerais emigraram para a capital. Essa quantia é maior que o número de nascidos na cidade,que é de 32,6%; isso reafirma a questao do éxodo rural ainda presente nos diasatuais onde pessoas deixam urna realidade construida e migram para urna cidademaior em busca de melhores condigoes sociais e outras oportunidades de vida. Issoé atestado quando perguntado o motivo da vinda para a cidade de Belo Horizonte e50,4% dos entrevistados disseram ter vindo á procura de trabalho. Os resultadosmostram também que a populagao de rúa é essencialmente jovem já que 55,60%estao na faixa de idade que varia de 18 a 45 anos. O maior percentual (12,43%)sao de pessoas que estao na faixa de 25 a 30 anos. 46,8% do total dosentrevistados estudaram da Ia a 4a serie completa. Esse baixo nivel deescolaridade contribuí decisivamente para a dificuldade de insergao no mercado detrabalho formal, como reflexo disso, 42,8% dos entrevistados vivem da cata dematerial reciclável. Dos entrevistados 43,65% afirmaram ter algum problema desaúde, sendo que 11,81% afirmaram ter problemas psíquicos/saúde mental. Já30,6% declararam que seu maior desejo é conseguir urna moradia e 24,1%almejam conseguir um emprego. Além disso, 14,9% dos entrevistados disseramque seu maior desejo é a (re)construgao de lagos familiares.

I I . Religiosidade, espiritualidade e o sentido de vidaE nessa situagao de extrema instabilidade da vida ñas rúas, como se perguntarsobre o tema do sentido da vida? Há sentido de vida ñas pessoas que se encontrammorando ñas rúas?Ao nascer, o ser humano é langado em sua existencia. Diferente de outros filhotes,o bebé humano traz consigo urna incapacidade de se cuidar que irá durar longotempo. Caso nao encontré ambiente afetivo, cuidados e alimentos adequados,fatalmente, o pequeño humano, devido á sua fragilidade, irá morrer. O grandedesafio da vida humana é justamente crescer e se desenvolver em suascapacidades e aptidoes sempre tendo a morte como possibilidade. Do bebé quenasce a tornar-seo adulto ou o idoso, há um longo caminho de dilemas, escolhas,perdas e ganhos. É a vida, a existencia.Frente a situagoes que remetem o ser humano a sua morte, nao propriamente amorte física, mas, de qualquer fungao que o impossibilite o vir-a-ser, o homemtende a imprimir um novo sentido á sua existencia. Heidegger (citado por Yalom,1984), nos fala de duas maneiras de existir no mundo: "o estado de descuido doser" e o "estado de cuidado do ser" (pp. 48-9). No estado de "descuido do ser", oser humano se encontra em um nivel inferior, o mundo das coisas. É um modo deexistir inauténtico onde a pessoa nao se dá conta de sua responsabilidade com suaprópria vida e com o mundo. O estado de "cuidado do ser" é marcado por urnacontinua consciéncia de ser. O ser pao se maravilha com a beleza das coisas, massim, com o fato de elas existirem. É denominado de modo ontológico. Nesse estadoa pessoa tem consciéncia de si mesma, capta suas responsabilidades e limites eenfrenta a liberdade absoluta.Ao longo da vida aparecerao características específicas que farao com que o serhumano vá se diferenciando de todas as outras especies. Características como arazao; a autoconsciéncia de sua existencia, a capacidade de pensar sobre sua vidae fazer escolhas. Nao impera sobre o homem o determinismo biológico como emoutras especies.Essas capacidades, além de diferenciarem o humano de outras especies, concedema cada homem e a cada mulher a consciéncia de serem únicos. Apesar de serimerso no mundo da cultura sendo por ele influenciado, há algo que fará de cadahumano único. É a partir dessa unicidade que cada ser é chamado entao a

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responder por sua vida e por sua existencia. Aqui surgem entao as questoes desentido.

A dor de ser faz parte da nossa natureza. Naoagüentamos apenas ser, temos de ser nosmesmos. Nao queremos repetir ninguém nem queninguém nos copie. Também nao nos basta queos outros aprovem nossa vida. É preciso que elafaga sentido para nos mesmos. Essa dor sentidaé, no entanto, apenas urna face da moeda; aoutra, em que mal reparamos, é a dor de urnabem aventuranga. Se podemos sentir a dor de noster perdido de nos mesmos, é porque temos opoder de nos encontrar novamente. O que nosangustia e nos deixa aturdidos nessa historia éque, para esse individuo exclusivo que somos epara o sentido pessoal de nossas vidas, nao hánenhuma referencia possível. Os modelosculturáis e as pessoas com quem convivemospodem nos inspirar, mas apenas isso. O resto éconosco (Critelli, 2002, 10 de outubro, p. 4).

Viver para o humano é ter consciéncia de que se existe, de que se deseja e que sepode morrer. Entre o emaranhado de possibilidades que a vida oferece, é precisoescolher e buscar se tornar o humano que se deseja. A existencia é algo que seconstituí e que se pode reler, reorganizar e escolher novamente. Há, entao, urnainquietagao com relagao á vida que invade o ser humano e pergunta pelo sentidodo existir. Mais do que existir deve haver um por que existir. Esse porqué existir éque poderá dar base e sustentagao para que se suporte a vida em suas incertezas.E a partir dessa característica do ser humano que se pode conceber o mesmo,entao, como um ser espiritual. O termo espiritual aqui nao se dirige a algo dasacralidade ou ligado á religiosidade. O espiritual é aquilo que dá ao homem essacapacidade de unicidade e de busca de sentido. Além do biológico, do psíquico e dosociológico, há no humano essa dimensao do espiritual. Em todo o ser humano,religioso ou nao, há a presenga de urna espiritualidade.

Homem e animáis sao constituidos por urnadimensao biológica, urna dimensao psicológica eurna dimensao social, contudo o homem se diferedeles porque faz parte de seu ser a dimensaonoética. Em nenhum momento o homem deixa asdemais dimensoes, mas a esséncia de suaexistencia está na dimensao espiritual. Assim, aexistencia propriamente humana é existenciaespiritual (Mahfoud & Coelho Júnior, 2001, p. 97).

Frankl (1948/2007) ressalta a dimensao espiritual no humano apontando para asua condigao de liberdade e responsabilidade que se contrapoe a condicionamentosda facticidade psicofísica de cada pessoa. A responsabilidade para o autormanifesta-se na capacidade de responder; é a liberdade de se posicionar nomomento em que a existencia coloca algo á sua frente. A liberdade é entao essapossibilidade de escolher, tornando-se, naquele momento e em determinadasituagao, algo único. Para Frankl, a dimensao espiritual se resume entao em serlivre e ser consciente da responsabilidade das escolhas.Para Frankl (1948/2007), essa dimensao espiritual é mais ampia que a dimensaopsicofísica, sendo, portanto, essencialmente humana. Ela representa essa busca desentido que caracteriza o humano. O sentido da existencia para o autor está fora doser humano, podendo ser encontrado em tres fontes: o trabalho, o amor e osofrimento.

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Frankl (1948/2007) afirma que a dimensao espiritual do ser humano éobrigatoriamente inconsciente e inteiramente pertencente ao eu. Há umaprofundeza inconsciente na qual sao tomadas as grandes decisoes existencialmenteauténticas. Assim, o autor afirma que, além de uma responsabilidade consciente,há uma responsabilidade inconsciente. Outra característica desse inconscienteespiritual é a sua autotranscendéncia, ou seja, a intencionalidade presente nohomem é algo que o langa para fora, para algo além de si mesmo. Assim, aessencia do humano para Frankl nao pode estar na racionalidade.A partir dessas consideragoes sobre o inconsciente espiritual, Frankl (1948/2007)afirma que há também no ser humano uma religiosidade inconsciente:

Ademáis, numa terceira etapa dedesenvolvimento, a análise existencial descobriu,dentro da espiritualidade inconsciente do serhumano, algo como uma religiosidadeinconsciente no sentido de um relacionamentoinconsciente com Deus, de uma relagao com otranscendente que, pelo visto, é imánente no serhumano, embora muitas vezes permanegalatente. (...) Essa fé inconsciente da pessoa, queaqui nos revela e está incluida no conceito de seuinconsciente transcendente, significaría entao quesempre houve em nos uma tendenciainconsciente em diregao a Deus, que sempretivemos uma ligagao intencional, emborainconsciente, com Deus (p. 58).

Entendendo a dimensao espiritual da existencia humana é que se pode entendercomo surgem as questoes religiosas e o que elas buscam responder. Na verdade, areligiosidade se liga as questoes de sentido buscando responder ao sentido maiorda existencia e extrapolando a realidade presente, mirando uma realidadetranscendente. Nao é algo que se liga á religiao, mas, essencialmente, á busca deuma resposta.Frankl (1948/2007) ressalta ainda que deve ser evitado acreditar que a relagaoinconsciente impulsione ou forcé um contato do homem com Deus. Afirma que essefoi o erro de Jung, ao dizer que a religiosidade se localizava no inconsciente e deque, portanto, nao era o eu quem decidía por crer em Deus. Ele era impulsionadoinconscientemente a isso. Para Frankl (1948/2007), vivera religiosidade passa peloámbito da decisao de cada ser humano.

A relagao com a transcendencia pode serapreendida pelo sujeito, no vivo da experiencia,como um diálogo no qual o transcendente éconsiderado como um "Tu". Ao homem que viveessa possibilidade, Frankl o chama de homoreligiosus. Contudo, esse relacionamento com oTu também pode estar oculto para nos,inconsciente ou reprimido, mas, todo homem estásujeito a ele enquanto possibilidade humana.(Mahfoud & Coelho Júnior, 2001, p. 99)

Com relagao á fonte das questoes religiosas, vé-se que diferentes autores podemtrazer contribuigoes. Cabe ressaltar que é fato notorio que essas diferentescontribuigoes caminham em uma mesma diregao.Para Massimi e Mahfoud (1999), o senso religioso é a exigencia de significado davida e de todas as coisas. As perguntas que surgem ao homem pelo sentido dascoisas e da própria vida pedem contato com algo que seja totalizante, fundante daexperiencia de si, experiencia de ser. Sao, portanto, ainda que nao confessadas,perguntas religiosas. A experiencia religiosa pode ser encarada entao como a

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experiencia^ de urna resposta transcendente a essa exigencia propriamentehumana. É necessário considerar a experiencia religiosa para conhecer aexperiencia propriamente humana, e vice-versa.No mesmo sentido Massimi e Mahfoud (1999) apontam a ligagao entre a dimensaodo sentido no humano e o senso religioso. O senso religioso, surgindo através deperguntas que questionam o sentido da vida e das coisas, se liga á dimensaoespiritual do humano.

O fator religioso representa a natureza de nossoeu enquanto se exprime em certas perguntas:qual é o significado último da existencia? Por queexistem a dor, a morte? Por que, no fundo, vale apena viver? Ou, a partir de outro ponto de vista:de que e para que é feita a realidade? O sensoreligioso situa-se dentro da realidade do nosso euao nivel destas perguntas: coincide com ocompromisso radical de nosso eu com a vida, quese mostra nestas perguntas (Giussani, 2009, p.73, grifo do autor).

Giussani (2009) identifica o senso religioso como algo que oferece o empenho paraque o humano se coloque existencialmente na vida.

A condigao para poder surpreender em nos aexistencia e a natureza de um fator sustentador edecisivo como o senso religioso é o empenho coma vida inteira, na qual tudo está compreendido:amor, estudo, política, dinheiro, até a alimentagaoe o repouso, sem esquecer nada - nem aamizade, nem a esperanga, nem o perdao, nem araiva, nem a paciencia. De fato, dentro de cadagesto está o passo em diregao ao próprio destino(p. 63).

Amatuzzi (2001) também afirma que há no ser humano urna religiosidade latente ouum senso religioso que é algo que está na base de nossas questoes de sentido. Se oser humano, usando sua capacidade de abstragao que é algo que o diferencia dosdemais seres vivos, for se questionando pelo sentido das coisas, da vida, acabará seperguntando pelo sentido último, mais radical, ou seja, um questionamento queultrapassa o limite do conhecido, do apreensível. O que dá fundamento a essequestionamento é o senso religioso

O campo religioso nao é inicialmente o campo dasindagagoes sobre os deuses, mas sim dasindagagoes sobre tudo o que acontece, tudo o queexiste e nos acontece. Trilhando esse caminho,desembocamos ñas questoes do sentido último etocamos na questao do transcendente, pois écomo se nos déssemos conta da totalidade doshorizontes, sem que isso aquietasse aquelasindagagoes (Amatuzzi, 1999, p. 127).

Esse senso religioso, na sua ansia de respostas, pode desembocar em urna formareligiosa. Caso isso acontega, essa forma religiosa será entendida como urnatomada de posigao frente ao senso religioso; urna tentativa de dar resposta asquestoes que ele traz.O que se pode notar é que as afirmagoes anteriores procuram ressaltar o aspectoda dimensao espiritual como característica essencial do humano. A religiosidadeaparece entao como um caminho dentro dessa dimensao maior que é a procura desentido. Nesse aspecto ela se faz presente ainda cedo no desenvolvimento de cadapessoa para além das orientagoes religiosas culturalmente estabelecidas.

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Mahfoud e Coelho Júnior (2001) salientam que a experiencia religiosa se insereentáo na busca para urna vida plena de sentido. O homem explora a forga da suadimensáo espiritual, permitindo-se ser conduzido por Tu, sendo advertido nadinámica própria da consciéncia.

I I I . MetodologíaConsiderando essa proposta de pensar a vida a partir da pergunta do sentido quepode se apresentar através da religiosidade é que perguntamos: O morador de rúaque vive no extremo da carencia se pergunta sobre o sentido de sua vida? Areligiáo se apresenta como forma de sentido? Será que podemos entender tambémessa religiosidade como urna fonte de energía psíquica vital para a continuidade dasobrevivencia dessas pessoas?Para responder a essas perguntas buscamos escutar um morador de rúa. Essaescuta se fundamentou na proposta fenomenológica. Segundo Feijoo (2000), aoadotar-se o método fenomenológico, visa-se alcangar o fenómeno em suatotalidade para compreender a sua esséncia, ou seja, apreender aquilo sem o qualo fenómeno passa a inexistir.

A Psicología Fenomenológica visa a descrever comrigor, e nao deduzir ou induzir, mostrar e naodemonstrar, explicitar as estruturas em que aexperiencia se verifica e nao expor a lógica daestrutura; por fim, deixar transparecer nadescrigáo da experiencia suas estruturas e naodeduzir o aparente por aquilo que nao se mostra(p. 33).

A Fenomenología é, por excelencia, um método filosófico que se transpoe para ométodo empírico. O método fenomenológico aplicado á pesquisa tem comocomponentes básicos as duas redugoes (fenomenológica e eidética) efreqüentemente culmina com a descoberta das esséncias relacionadas ao fenómenoestudado.Para Forghieri (1993), ñas pesquisas quantitativas, o rigor é buscado a partir docontrole das variáveis externas. Já na pesquisa fenomenológica o rigor é buscadoatravés do trabalho com o próprio pesquisador, com o seu olhar. Tal fato se fazpresente devido ao pressuposto da Psicología fenomenológica de que o fenómenose dá na interagáo do sujeito com o mundo. A percepgáo é um ato da consciénciaintencional e é através déla que o homem atribuí significados aos fenómenos. Póde-se afirmar entáo que nao há sujeito puro nem objeto puro, ainda que seja feitaurna separagáo entre sujeito e objeto concebida no mundo natural.Assim, a partir da orientagáo fenomenológica de pesquisa, buscamos apreender aesséncia da vivencia do sentido de vida dos moradores de rúa e como areligiosidade se apresenta no interior da dinámica psíquica dos mesmos. Para tanto,foram entrevistadas tres pessoas, porém, apresentamos neste trabalho apenasurna das entrevistas que ilustra, de maneira geral, os resultados a que chegamoscom a pesquisa.Sabemos que o morador de rúa é assistido por ¡números grupos religiosos que oraabordam esses moradores no local em que eles se encontram, ora os convidam acomparecer em um local específico: a igreja ou a sede do grupo religioso. Prestamdiferentes tipos de assisténcia, como um lanche, um banho, um corte de cábelo oubarba e a doagáo de remedios ou pegas de roupa. Além disso, o morador éconvidado a participar de um culto, urna oragáo ou um passe.Buscando urna imparcialidade na pesquisa, procuramos realizar a entrevista em umambiente isento de aspectos religiosos. Como campo de pesquisa escolhido para abusca das pessoas a serem entrevistadas bem como o local onde realizar asmesmas, foi escolhido o Centro de Referencia da Populagáo de Rúa. Esse é umservigo de reconhecida importancia dentro da política pública para o morador de

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rúa em Belo Horizonte. É um servigo público ligado a Secretaria Municipal Adjuntade Assisténcia Social da Prefeitura desta cidade.O método de coleta dos dados que se mostrou mais apropriado para a pesquisa foia do questionário semi-estruturado. Essa ferramenta serve como um orientador napesquisa a ser realizada por apresentar eixos principáis de questionamentos, maspermite ao pesquisador maior liberdade, podendo transitar ou se aprofundar emoutros eixos que se fagam presentes no decorrer do processo de entrevista.Como a pesquisa foi orientada dentro do método fenomenológico, objetivou-se,através das perguntas, fazer com que o entrevistado expressasse suas vivencias ebuscasse relatar seus sentimentos no momento desse vivido. Nao interessou oporqué, mas o como; o experimentado para a pessoa naquela situagao.

IV. ResultadosIV.I. Moradores de rúa e o sentido de vidaA partir das teorizagoes sobre os temas centráis tratados neste artigo, procuramosestabelecer contato com um morador de rúa buscando investigar, a partir dosrelatos de vida do mesmo, se havia a presenga de elementos da religiosidade e,mais que isso, da espiritualidade e da pergunta pelo sentido de vida.

Caso MarceloQuando foi entrevistado, Marcelo relatou que era a terceira vez que estava em BeloHorizonte. Ao todo já viveu ñas rúas da cidade por mais de dois anos.Um fato que chama a atengao é que Marcelo, no inicio da entrevista, disse ternascido em 1959, e teria, entao, 50 anos, porém, ao longo do relato, ele afirma ter52 anos. Isso se revela um fato recorrente entre pessoas que vivem ñas rúas; urnanogao flutuante do tempo, como é relatado por profissionais que trabalham comeste público. Nem sempre há a precisao do tempo em que se está ñas rúas, dotempo em que algo aconteceu, ou mesmo do tempo cotidiano. Pode-se creditar issoá falta de urna rotina fixa que delimite o dia-a-dia como, por exemplo, um trabalhoformal que distingue claramente dias úteis e fináis de semana. Há também certaconfusao trazida pelo uso de álcool ou outros entorpecentes.Ao iniciar, foi pedido a Marcelo que relate um pouco sobre a sua historia e o que otrouxe para as rúas. Assim, essa foi a questao inicial: levar o entrevistado a falarum pouco sobre sua historia, deixando que ele eleja os momentos significativos ebuscando também entender como ocorreu sua vinda para as rúas.Marcelo inicia a entrevista falando entao de um período feliz onde possuía trabalhofixo, moradia e urna esposa. A mesma estava grávida e o casal, segundo ele, muitofeliz. Mas, devido a complicagoes no parto, a esposa de Marcelo acabou falecendojuntamente com o bebé. Esse fato, segundo ele, foi um divisor de aguas em suavida, pois, a partir daí, sua vida foi-se modificando.

... isso eu tava trabalhando. Ai ligaram pra mimurgentemente que era pra vim pra casa. Quandoeu cheguei já tinha levado pro Hospital, chegoulá... faixa de urnas 18:00 Horas da tarde, 18:00horas... ai veio a noticia (entrevistado se engasgana fala)... dá a noticia que ela tinha falecido né,ela mais a changa junto, morreu os dois. Ai delá... tudo o que eu construí... o imperio foidestruindo tudin. Destruiu tudin. Eu nao ligavamais pro servigo... (faz gesto batendo urna maona outra como quem expressa, "nao to nem ai")pra mim tanto faz né... ai acabou. Ai cai noalcoolismo, e antes disso nao bebia nada. Cai noalcoolismo... era de dia, de noite, de manha cedo,na hora de que desse. Vendi os dois carros que eu

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tinha. Acabei com tudo. E eu tinha urna situagaomais ou menos que eu era controlado. Ai de lápra cá... ai vendi a casa, vendi tudo. Ai fui prarúa, comecei a andar...

Marcelo relembra quando trabalhava e a esposa estava grávida. Ao se referir aomomento em que recebeu a noticia da morte da esposa e do filho recém-nascido,ele se engasga deixando vir á tona a intensidade de seu sentimento. Em seguida,afirma que a partir disso tudo o que havia construido, seu imperio, destruiu tudin;ele passa a nao ligar mais pro servigo, podemos estender, passa a nao mais ligarpara sua vida. Outro fato que ele marca em sua fala é que entao ele cal noalcoolismo, e antes disso nao bebía nada. Frente á perda sofrida e ao envolví mentócom o álcool ele resolve vir para as rúas e comega a andar. Enfrentar essarealidade que a vida trouxe torna-se insuportável para Marcelo.

Depois que ela faleceu, sabe como é que é né?Vocé fica lembrando, a casa vazia... cade a jóiaque vocé tinha? Nao tem mais (...) o sentimentomeu que eu tenho, verdadeiro mesmo, é a percadéla né. Que ela nao era nem urna mulher, naoera nem mais urna esposa, já era mais como urnairma né? Dentro de casa... brincava pra lá e pracá... é isso ai, ela se foi e tudo se acabou. Ai de lápra cá só foi... chegava em casa a casa vazia, naovia mais ninguém, era só eu mesmo, ai eu fuicomegando a beber. Tomava urna hoje e amanhatambém.

Quando perguntado a Marcelo sobre o seu sentimento ao vivenciar essa experienciaele nao expressa um sentimento sobre a perda, mas diz que o seu sentimento é aperda. A morte da esposa traz um vazio: ele nao tem mais a jóia, algo de valor.Relata que a companheira era mais que esposa, expressando um sentimento degrande intensidade. Novamente afirma entao que frente á solidao comega a beber;tomava urna hoje e amanha também.É possível perceber que a fala de Marcelo aponta para urna falta de sentido emcontinuar vivendo após esta perda. Torna-se difícil viver daquela forma, naquelelocal. A sua agao é sair andando como a procurar outra realidade ou o sentido parasua vida que havia mudado tanto. Até mesmo o fato de comegar a beberdemasiadamente aponta para esse vazio existencial (Frankl, 1946/2008). A fala deMarcelo aponta que havia também a ausencia de outros lagos significativos ou algoque o movesse para urna mudanga positiva. O maior lago aparentemente foi aqueledesfeito com a morte da companheira.

Em materia, por exemplo... pai e mae eu naotenho... faleceu todos os dois. Só tenho umirmao, mas com esse irmao eu nao convivo muitobem nao. Quando na época que eu precisei delepra me ajudar sobre... da minha esposa, ele falouque ele nao tinha condigoes e a familia dele naotinha condigoes. Ai de lá pra cá eu desprezei, táentendendo? Desprezei meu cunhado, sogra... delá pra cá já vai fazer vinote e dois anos que eu naoprocuro nenhum deles. É eu e eu e Deus...

Reforgando esse sentimento de vazio e da ausencia de outros lagos, Marcelo logoem seguida afirma que já havia perdido os pais e que nao convive bem com oirmao. Lembra que quando precisou do irmao ele falou que ele nao tinha condigoese a familia dele nao tinha condigoes de ajudar. Surge entao o sentimento dedesprezo pelo irmao e outros familiares. Ao sentir-se desprezado, Marcelo tambémdespreza e rompe com o irmao, sem nunca voltar a procurá-lo. Fala entao de 22

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anos em que nao procura mais essas pessoas e que agora é somente Deus o seucompanheiro. Há entao um primeiro sentimento dirigido a Deus em sua fala,alguém que o acompanha, alguém com quem nao rompeu o lago, apesar de todo ovivido.

... ai passei por varias casas de recuperagao, pratentar melhorar... entrei numa que com um meseles queria me levantar de obreiro e eu quis irembora... é assim a minha vida, (faz urnaexpressao de decepgao)

Buscando deixar o vicio do alcoolismo, Marcelo relata que passou por diversascasas de recuperagao, mas sem sucesso no tratamento. Lembra que em urnadessas casas eles queriam até o levantar de obreiro, figura de lideranga dentro dedeterminadas igrejas e instituigoes ligadas as mesmas, mas prefere novamente irembora e ressalta: é assim a minha vida, deixando transparecer um sentimento dedecepgao. Novamente ele sai da casa de recuperagao e resolve andar, voltar á vidañas rúas.Ao ser questionado sobre como é para ele a vida no dia-a-dia, ressalta novamentea companhia de Deus. Para ele, Deus é quem sabe de sua vida, por isso ele aentrega a Deus todos os dias.

eu levo a vida como assim... eu entrego a minhavida todo dia quando eu acordó eu... e quando euvou dormir, na mao de Deus. Só Deus que agoraque sabe da minha vida.

Para Marcelo é somente Deus quem sabe o que será de sua vida; ele a entrega evive. A partir desse ponto descreve outros elementos de sua experiencia de viverñas rúas. A ausencia de um emprego formal é sentida como um grande empecilhopara outras oportunidades na vida.

Pra mim fica difícil, trabalha em servigo, em obraassim, pra mim nao dá. Ai, tinha de ser umservigo assim, transportadora, ta entendendo,mas, em transportadora... só da transportadoraaqui é só mudanga, esses negocios, eu já encarei,encarei varias mudangas ai, mas... vocé trabalhapor trabalhar porque o dinheiro mesmo vocé naové nada dele.

O emprego formal é difícil para a maioria das pessoas que se encontram emsituagao de rúa e diferentes motivos contribuem para isso. O mercado que mais seabre para o morador de rúa é de pequeñas tarefas, os chamados "bicos". Marcelofala do trabalho em transportadora. Muitos recorrem a pessoas em situagao de rúapara o trabalho bragal de carga e descarga, situagoes pontuais que nao exigemregistro em carteira de trabalho e baixa remuneragao, o que dá a impressao denem se ver o dinheiro.No caso de Marcelo, de forma mais específica, mas nao somente em seu caso, háelementos pessoais que acabam por dificultar ainda mais o acesso ao trabalhoformal. Muitas vezes sao elementos trazidos pela própria vida ñas rúas, resultadosde urna vida descuidada, violentada.

Ai vou falar a realidade. Nao fago nada... eu pratrabalhar em obra eu nao posso, eu tenho urnaplatina aqui nessa perna aqui (me mostra aperna) que ela fica sempre mais inchada que essaaqui. E essa vista esquerda eu nao enxergo déla.Foi batida de caminhao, ai eu perdi essa visaodessa vista aqui. Só enxergo com essa aqui.

O corpo de Marcelo traz marcas da vida ñas rúas. Senté que hoje nao faz nada,mas está se referindo de forma direta ao trabalho. Ressalta que nao tem trabalho

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fixo porque hoje nao conseguiría exercer um trabalho pesado ao qual seu perfilmais se adaptaría, como em obras, por ter machucado a perna e ter perdido urnavisao, frutos de situagoes vividas ñas rúas.

Parei no tempo. Nao fago nada, num trabalho,num fago nada né? Parei de tudo, nao do um diade... nada, pra ninguém. Inútil eu nao sou, tenhocondigoes para trabalhar mas num... num tenhocomo eu entrar de frente sozinho, tinha que teralguém pra dar apoio, pra indicar, apoiar, o carachegar até num emprego, tá entendendo? Que...nóis somos muito maltratados porque se vocéchega numa firma vocé pode levar um currículodesse inteiro e a primeira coisa que eles procurasaber, "vocé mora aonde?" A... eu moro noalbergue. "Que que é albergue?" a...mora tantoshomens lá e tal... "Cé é albergado?" É.

Marcelo senté que está parado no tempo. Vive ñas rúas e nao faz nada; para, ficaestático. Afirma entao o sentimento de que nao é inútil, mas vive a dificuldade dodesemprego que nao consegue superar sozinho, precisa da ajuda de alguém. Osentimento de ser maltratado se faz presente quando afirma que ainda queaprésente um currículo para se candidatar a um emprego, a pergunta vocé moraaonde? Acaba por determinar a condigao de diferente, de um albergado.Essa é urna queixa muito recorrente entre os moradores de rúa, já que a ausenciade um enderego fixo pode impedir o acesso ao servigo regulamentar. Além disso, otermo albergado traz construgoes sociais negativas em relagao ao termo. Naseqüéncia, Marcelo relata a sua própria experiencia de discriminagao.

Eu mesmo já fui discrimado, eu cheguei numafirma, pra trabalhar numa firma, levei todos osdocumentos, o cara falou: "Ó, amanha vocé podevim trabalhar" (...) Quando eu cheguei lá, "A... éo seguinte, a vaga que tinha já foi preenchida, ocara nao me falou pra mim e já foi preenchida".Foi preenchida nada, foi porque eu falei quemorava no albergue. Por isso que a gente édiscriminado. (...) Se vocé entrar numa empresae falar que vocé é morador de rúa, mora noalbergue, vocé é discriminado, a firma nao aceitanao.

O fato de nao ter como comprovar moradia e a revelagao de se estar morando ñasrúas faz com que a sociedade, de forma geral, crie urna imagem negativa dapessoa. A oportunidade de trabalho poderia ser a chance de urna insergao social,mas ela pode acabar nao ocorrendo devido ao conceito social criado sobre apopulagao de rúa de que se trata de pessoas que já roubaram, que mataram, naosao dignos de confianga. Esse preconceito, aliado ao baixo nivel de escolaridade damaioria, leva tais pessoas ao trabalho informal e descontinuo. Essa experiencia denao poder acessar o servigo que Ihe garantiría urna melhor qualidade de vidamantém Marcelo na mesma situagao. Ele fala entao das dificuldades de se viver ñasrúas.

A ai... ai é difícil... hoje vocé tem R$ 1,00 aqui,come um lanche ali. Amanha vocé tem R$ 5,00vocé vai lá e come urna comida melhorzinha... odia que nao tem nada, aguarda até de vir a noitepra jantar, só isso. (risos com ar de certadecepgao) Espera vim a noite, só jantar e pronto.

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Marcelo vivencia a necessidade e a carencia na pele. Se tem pouco dinheiro faz umlanche; se consegue urna quantia maior, come urna comida também melhor.Porém, como nao há urna renda fixa e há dificuldade em se conseguir dinheiro,quando nao tem Marcelo aguarda a noite onde irá dormir no albergue e entao teráa janta. O sentimento de decepgao se faz presente na face de Marcelo, pois a únicaalternativa nessa condigao é esperar. Urna outra alternativa que se abre é pedir,como Marcelo descreve na seqüéncia.

Bater na porta da casa dos outros ou restaurantee ficar ali ó... se sobrar é seu. Igual cachorro, ficalá esperando o resto. Se sobrar é seu, se naosobrar ó... "nao sobrou nada". Entao aquele nada,vocé já tem que esperar aquilo lá mesmo procécomer. De dia ainda passa... a dificuldade maior éa noite, que a noite... a noite é urna vigia.

Para se comer quando nao tem dinheiro Marcelo pede entao em casas ou algunsrestaurantes que doam a comida que nao foi vendida naquele dia, que acontece,segundo ele, por volta das 15 horas. Assim, o sentimento que é despertado emMarcelo é de ser Igual cachorro que fica lá esperando o resto. Quando acontece denao receber nada, esse nada já era urna possibilidade esperada.Dando énfase á na vida ñas rúas, Marcelo fala que há muitas dificuldades, masressalta que a noite ñas rúas é ainda pior.

Quer dizer, é um risco que vocé passa; o dia, anoite... a noite que vocé passa na rúa, é um diaque vocé tem de Vitória porque vocé deitou elevantou no outro dia. É urna vitória que vocéconta na sua vida. Eu falo pros meninos ai...porque eu fiquei aqui agora, depois que eu tavana Tia Branca eu fiquei seis meses na rúa; fiqueiporque eu quis, nao fui suspenso do albergue.Mas cada um dia que vocé deita e que vocéamanhece, é urna vitória na sua vida, vocé naosabe o que que vai passar a noite com vocé. (...)Cé dorme, a morte perto de vocé e vocé nao vé.Ai só Deus mesmo que ta ali pra proteger vocé.Porque o homem é falho. O homem pra chegar,pra fazer urna covardia com vocé nao custa nada.

Dormir na rúa e acordar no outro dia é vivido como urna vitória diante de todos osriscos que se passa. Marcelo ressalta que ficou dormindo ñas rúas cerca de seismeses e deixa claro que foi por opgao, nao por ter tido problemas no albergue. Anoite na rúa expoe Marcelo á possibilidade mais concreta da morte, urna mortecovarde. Senté por tudo isso que o ser humano é falho e conta, assim, com aprotegao de Deus.A violencia para com o morador de rúa torna-se, muitas vezes, algo banal,¡números sao os fatos ocorridos que podem atestar essa realidade. Em Sao Paulo eno Rio de Janeiro aconteceram chacinas com moradores de rúa e meninos de rúa.Novamente em Sao Paulo urna onda de mortes no ano de 2004 assustou apopulagao de rúa daquela cidade. Em Brasilia ganhou repercussao o caso do indioGaldino, que foi morto queimado por jovens de classe media e alta. Como forma dedefesa, alegaram que achavam tratar-se de um mendigo. Além de serem vítimasde urna violencia vinda de fora, os moradores de rúa sofrem a violencia de pessoasdo mesmo grupo onde os mais jovens muitas vezes maltratam os mais velhos.Dentre os atos de violencia que já viveu ou presenciou ñas rúas, Marcelo fala de tervisto meninos de rúa colocar fogo entre os dedos de um morador de rúa adulto ede ter visto outro morador ser queimado. O risco sentido é de que se podeacontecer isso a qualquer um, inclusive a ele próprio.

Memorándum 20, abr/2011Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP

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Eu falo que eu já vi em Niterói; já vi em Caxias, ocamarada deitado assim, os moleque de rúa vim,tira o chínelo do cara assim; colocar fogo,algodao, joga álcool e coloca fogo no meio dosdedos do camarada. Colocar fogo num camaradadeitado dentro do carrinho (carrinho usado para acata de material reciclável), o cara era mais altoque eu e ele ficou desse tamaninho (faz sinal coma mao mostrando).

O maior medo causado é por pensar que se pode ser o próximo a sofrer talviolencia. Isso leva Marcelo a afirmar que cada noite passada na rúa é urna vitória.Muitas vezes o grupo que é considerado amigo e fonte de sociabilidade pode sertambém fonte de violencia. Marcelo utiliza um termo que chama a atengao, ao dizerque na rúa a pessoa passa por muitas atribulagóes. Perguntamos quais sao essasatribulagóes e ele procura dar um exemplo.

Ai, quando pensei que nada, ele meteu a facaaqui (levantou a camisa e mostrou urna cicatrizno abdomen), ai os outros gritaram, os quetavam na rúa junto com a gente, ai ele passou afaca aqui. Isso que eu recebi, na mesma vida queeu tava levando, ele também, ele pegou e queriame furar pra me tomar o dinheiro.

Marcelo relata que era amigo de um outro morador de rúa e que andavam semprejuntos, na mesma vida. Certa vez, conta que conseguiu urna doagao em dinheiro deum pastor e esse outro morador de rúa quis roubar-lhe o dinheiro desferindo-lheurna facada. Atribulagóes podem ser, como no exemplo citado, a marca da violenciadeixada pela vida ñas rúas.A experiencia de pedir mobiliza muitos sentimentos em Marcelo, pois senté queestá em um papel que nao gostaria de estar e recebendo ¡numeras imagensdaqueles que estao externos a sua realidade.

É difícil, mas fazé o que? Fica ai na porta de um eoutro pedindo, levando aquilo que todo mundobrasileiro aprendeu: "Vai trabalhar vagabundo".Ou senao eles te vem com um tanto de pedradaem cima de vocé. Ou senao "vai roubar pra vocécomer". Ai eu jamáis pensó em entrar numa vidadessa.

O termo vagabundo é usado justamente para designar aquele que nao trabalha evive na vadiagem. Marcelo vivencia esse fato, mas afirma que jamáis pensa em setornar um vagabundo ou um ladrao. Se todos os brasileiros aprenderam a falar, oupensar isso, Marcelo mostra que sua subjetivagao da situagao de rúa nao o levapara o papel do contraventor, de quem faz como todo mundo brasileiro.Frente a todo esse panorama desfavorável, o que é viver para Marcelo?

Eu vou falar aqui a verdade; do jeito que eu tóvivendo, nao tó vivendo... a vida, quem faz a vidaé vocé, eu nao reclamo nada da vida, eu naoreclamo... igual eu falei, se eu tó desse jeito. Eupodia passar a borracha naquilo lá da morte daminha mulher e, entregar na mao de Deus econtinuar a minha vida. Hoje eu tava um homemaposentado pelo porto, tinha minha casa, tinhatudo. Mas eu... eu fui um fracasso de mimmesmo. Eu fui fracasso, eu mesmo me fracassei,eu fracassei.

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Pode-se afirmar primeiramente que na afirmagao de Marcelo há umdescontentamente para com a vida atual, o sentimento é de que nao está vivendo.Se essa afirmagao soa como negativa por trazer um sentimento de tristeza edecepgao, ela revela tambem que há em Marcelo um desejo de uma vida diferente.Ao afirmar que nao está vivendo, ele aponta que acredita em uma forma diferentede viver; há um sentido colocado. Há tambem um sentimento de responsabilizagao,pois Marcelo senté que poderia ter feito uma escolha diferente, passado umaborracha no passado, ter entregado na mao de Deus sua vida e continuar vivendo.Deus revela-se assim para Marcelo como um ser acolhedor, aquele que entende eoferece um conforto. Marcelo reflete sobre uma vida diferente que poderia terconstruido e, frente ao sofrimento, subjetiva a si mesmo como um fracasso.Pego a Marcelo que fale sobre o momento mais difícil que viveu ñas rúas em todosesses anos e entao relata a vivencia da solidao como sendo esse momento.

Ó... momento mais difícil (silencio)... o momentomais difícil que eu passei na minha vida foi o diaque eu senti a solidao; o que é a solidao. Foi o diaque eu cai aqui dentro e fui levado pelo SAMU proPronto Socorro. Dia vinte e cinco de Dezembro eutava dentro do Joao XXIII, ai que eu lembrei viu!Tudo que eu tinha e joguei pra tras agora to aqui.Dia vinte de dezembro... dia vinte e cinco dedezembro e dia de ano novo sozinho aqui.Ninguém pra falar pra vocé: "Feliz ano novo... umfeliz natal". Isso foi a maior tristeza na minhavida.

Marcelo relata a vivencia de ter conhecido o que é a solidao. Num momento defragilidade da saúde ele se vé sozinho em um hospital público. A data do natal e doano novo o faz lembrar de sua vida, de tudo o que tinha e, em suas palavras, jogoupara tras e agora estava ali, sem que ninguém Ihe desejasse algo de bom nesseperíodo. Certas datas, como é o caso do Natal e da entrada de um ano novo,remetem a um contexto de planos, expectativas de mudangas e as pessoas saoincentivadas a estarem próximas de seus familiares. Nesse momento é que Marcelosenté com maior intensidade o que é a solidao.

Agora... assim... tristeza mesmo é quando agente vé assim né, os amigos que vocé tem maisconhecimento com eles é morto, outros é"faqueado", outros tá preso por causa de droga,esses bagulhos, essas merdas ai que nao levaninguém a frente, ai da tristeza na gente, tásabendo? Vé que tem uns amigos que bebeucachaga com a gente; dormia na rúa junto com agente, hoje tá numa grade ou senao ta morto, aite fere. Tem uns que nao ligam, mas tem outros,pra mim eu já fico triste.

Marcelo sente-se triste tambem quando outros amigos de rúa sao mortos ou presose se refere, específicamente, ao uso de droga como motivo dessas prisoes.Expressa tambem sua opiniao sobre drogas essas merdas ai que nao leva ninguéma frente. Faz referencias aos amigos com os quais conviveu ñas rúas, tomoucachaga junto e hoje estao presos ou foram mortos. Ressalta que ainda que algunsnao liguem, ele fica triste.Ao falar dessa tristeza e das dificuldades em se viver ñas rúas, Marcelo relata entaoque sem a forga de outros o morador de rúa passaria por dificuldades aindamaiores.

Se nao tiver ninguém pra dar uma forga pra ele,ele só vai ó... A maioria, todos nos que ai, dentro

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desse trem aqui, ninguém tá aqui porque quis, táaqui porque tá necessitado. Se essa casa fechaaqui, ou se fecha esses albergue tudin que euconhego, e essas casas de recuperagao, e essasdoagao, o morador de rúa, ele vai ter que dar ospulos dele, que tem casa que da apoio. As casasde recuperagao da apoio, tem as casas que dáalimentagao, tem as que da roupa final desemana. O dia que fecha esse ciclo todinho ai...

Para Marcelo ninguém está ñas rúas porque quer, mas devido á necessidade.Assim, se nao houver alguém que dé forgas e apoio ao morador de rúa, suasituagao será pior. Marcelo senté como apoio os programas sociais da prefeitura,casas de doagao e casas de recuperagao. Esses espagos que atendem ao moradorde rúa sao vistos como a formagao de um ciclo; caso ele se encerré, o morador derúa terá que buscar outras formas de se sustentar.Ao mesmo tempo em que Marcelo afirma que ninguém, está na rúa porque quer,inclusive ele, ele reconhece a vinda para as rúas como urna escolha sua.

Eu se sinto mal, mas eu vou falar a verdade, foieu mesmo que procurei, foi eu mesmo. (...) naoacuso ninguém; nao acuso ninguém. Eu acuso omeu eu, o meu eu... meu eu que tá nessenegocio, nao acuso ninguém. Sai... tudo que eufiz nao foi forgada de ninguém, fui eu mesmo queescolhi; "a eu vou sair pra arejar a cabega por ai".E daí foi até hoje... até hoje. Nao encontrei aindao que eu queria encontrar, mas eu sei que atéchegar lá eu ainda vou encontrar meu objetivoainda. Tá vendo? Nao acuso ninguém.

Marcelo se senté mal com o fato de viver ñas rúas e com todas as situagoes que Ihesao colocadas. No entanto, nao acusa outros pela vida que está levando mas a simesmo como responsável por ter saído para as rúas. Em seguida, faz urnaimportante revelagao, afirmando que nao encontrou ñas rúas o seu objetivo. Mashá urna certeza de que até chegar lá, no fim, ele ainda vai encontrar algo que oresponda por seus objetivos.

Eu acredito que um dia eu pelejo e vou passar porcima, eu nao vou ficar nessa pro resto da minhavida, ou senao eu vou pra eternidade. Aeternidade é na hora que o meu pai me chamauai. Mas aqui na térra eu vou fazer por onde, pranunca entrar ñas maus tentagoes. Cai dentro deurna cadeia eu nunca cai; nao fumo droganenhuma, nunca fumei um cigarro na minha vida,é isso. Mas eu acredito, até o final da minha vida,eu tenho certeza que eu vou ter urna mudanga,nao sei como mas eu vou ter urna mudanga.

Marcelo tem o sentimento de que irá superar, mudar sua vida. Ele vai lutar, pelejare passar por cima, pois nao vai ficar o resto da vida na situagao de rúa. Ou elemuda, ou vai para a eternidade. Buscando explicar o que entende por eternidade,Marcelo aponta que será a hora em que seu pal chamá-lo para um outro local, urnaoutra vida. Enquanto está vivendo aqui na térra, Marcelo procura fazer algo paranao cair ñas maus tentagoes (SIC), como nao fumar (droga), nao usar cigarro ouvir a ser preso. Há em Marcelo a certeza de sua mudanga, porém, ele ainda naosabe como fará para obté-la. Questiono sobre como seria essa mudanga e eleresponde.

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O meu sonho mesmo é ter urna casa, um cantopra mim mesmo, um emprego pra mim mesmo.Ai eu levanto, eu já vou deitar sabendo queamanha eu já sei pra onde que eu vou. Agoraviver numa vida dessa ai num dá né? Se levantade manha cedo ce vai pra onde? Banco da Praga;praga da estagao, praga da Rodoviária, fica emdoagao pra cima e pra baixo ai, pra chegar lá ecome um pratin de sopa? tomar um café?Arranjar urnas roupa véia? Nao... eu sou obrigadoa pegar porque trabalhar eu nao to trabalhando,nao vou dizer que eu nao sou melhor queninguém nao. A gente vai lá e pega a roupa queta dando, nao ta roubando; mas o meu sonho naoé isso nao, ficá pro resto dessa vida nisso nao. Eurna que eu já to chegando na casa, já chegueinos 52 anos. Até agora eu parei... (faz silencio),parei, parei.

A mudanga a que Marcelo se refere é realizar o sonho de ter urna casa e umemprego, mas isso serve para Ihe dar a condigao de sair da vida de rúa; sair esaber para onde se vai e nao ocupar o logradouro público. Reaparece entao aquestao das doagoes, mas surge o sentimento de que ele só freqüenta tais espagodevido á falta de um emprego. Mas Marcelo ressalta que seu sonho passa por outrolugar, nao é ficar pro resto dessa vida nisso nao. Marcelo reflete sobre sua vida esenté que chegou aos 52 anos. Seu sentimento é de parou no tempo. O silencio aofazer essa afirmagao mostra um rosto angustiado, o sentimento de urna vida quepassa, que completa 52 anos e está parada.Como no discurso de Marcelo novamente aparece a questao das instituigoes quedoam algo ao morador de rúa, percebemos que as mesmas tem urna importanciapara o mesmo. Pedimos a ele que fale um pouco sobre as mesmas.

Eu freqüento. Hoje mesmo; ontem eu fui naBernadete, hoje eu fui lá outra vez. É casaespirita, casa espirita e católico. Eu freqüento aigreja aqui em cima todo domingo (...) A... aquelade frente da passarela ali... Igreja católicamesmo. Nao tem a passarela aqui (aponta nosentido do Bairro Carlos Prates), é a primeiraigreja que tem ali. (...) Eu freqüento. Leio o livrode Alan Kardec... tó lendo o livro dele; já li o livrodele, de Alan Kardec, agora tó lendo o ChicoXavier.

Marcelo, ao falar das instituigoes, reafirma que é freqüente as mesmas, contudo,nao descreve mais a questao das doagoes, mas faz sua ligagao com as religióes.Assim, há, além da possibilidade de receber dogóes, a vivencia de urnareligiosidade. Marcelo freqüenta a igreja católica e dedica-se á leitura de livrosespiritas, formas de vivenciar sua religiosidade. Perguntamos sobre como se sentéem relagao a essa vivencia da religiosidade e Marcelo responde.

Nao... o importante pra mim eu tó ali livre, livre,ouvindo a palavra de Deus. Eu me sinto bem tavendo; que eu já fui obreiro de casa derecuperagao. Hora dessas eu tava dando cultopras outras pessoas que tava chegando. Ai eupeguei e desviei disso tudinho, mas eu gosto deir; eu me sinto bem, eu gosto de ler o livro deAlan Kardec, só que é um livro que vocé nao pode

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cair em fundamento dele demais senao ó (fazsinal rodando o dedo indicador em volta do ouvidocomo quem diz: "fica doido"). Ele conta entre ovivo e o mortal, é muita coisa?

Para Marcelo, o que importa é o fato de se sentir livre ao ouvir a palavra de Deus.O sentimento é de sentir-se bem; Deus possibilita a vivencia de urna liberdade.Marcelo relembra o tempo em que se dedicava de forma mais direta a urnareligiosidade sendo obreiro. Entra entao o sentimento de ter se desviado docaminho que seguia e que poderia té-lo levado em outra diregao, pois poderiaestar, naquele momento da entrevista, fazendo culto e recebendo outras pessoas.Reafirma que gosta de freqüentar e sente-se bem com a religiosidade. Marcelo,porém, faz urna advertencia a si mesmo, pois entrar em fundamentos doespiritismo pode deixá-lo confuso. O mundo dos vivos e dos moríais é algo que oconfunde. Porém, analisando o discurso de Marcelo, esta nao é a principal quesíaoda religiao, nao esíá o principal foco em acrediíar ou nao.

Eu nao acrediío mas... eu paro pra mediíar; praver né, o que vai dar no fuíuro. Eu espero nofuíuro, passado é museu (...) A véio... eu esperomuiía coisa melhor ainda aíé quando Deus mechamar viu. Melhores... basíaníe melhoras pramim.

Deus e a religiosidade para Marcelo esíao na esfera da liberdade e oferecem apossibilidade de pensar no fuíuro, um fuíuro difereníe e cheio de melhoras. Marceloprojeía no fuíuro porque passado é museu. Aíé que Deus o chame, que se enconírecom a moríe, Marcelo ainda espera muiías melhoras. Há aqui a possibilidade deurna íranscendéncia.

... ai foi passado, e agora nao, eu ío querendo éviver o fuíuro. Quero viver o fuíuro... quero vivero fuíuro. Tó esforgando, ío írabalhando, íopedindo a Deus iodo dia, íoda hora. Vemaíribulagao? Vem. Vem "lero lero" no seu ouvido?Vem. Eníao eu passo a régua naquilo e saio fora.

Novameníe Marcelo expressa o seníimenío de que o passado ficou e resía viver ofuíuro. Ele se esforga e esíá pedindo a Deus. Apesar das íribulagoes, ele passa porcima e segué em freníe. Deus é vivenciado eníao como urna foníe de forga para asuperagao.Marcelo vivencia a religiao íambém falando de Deus, mas, para falar de Deus,segundo ele, há que ser fiel.

Pra falar de Deus vocé íem que ser fiel a ele, fiela ele. Nao é só falar de Deus aqui e amanha vocévirar as cosías pra ele, vocé íem que ser fiel. Eusou um camarada normal, eu falo de Deus, assim,na hora certa e no momenío certo. Eníao quandoíem urna palesíra nessas igrejas ai que a geníevai, nessas casas de recuperagao onde que,doagao, eles dao oportunidade, eu falo, mas, íemde falar de coragao. Falar por falar nao vencebarreiras.

Para falar de Deus é necessário que seja fiel a ele. A fidelidade a Deus esíá em naovirar as cosías para ele. Assim, Marcelo fala de Deus na hora certa e no momeníocerío, mas essa fala íem de ser de coragao, pois falar por falar nao vence barreiras.Há em Marcelo urna preocupagao em saber se sua fala é de coragao, mas quempode julgar é apenas Deus. Mas ele fala com Deus íirando o seu momenío com oíranscendeníe.

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Olha... eu falo... Eu tiro o meu momento, é eu eele, é pra mim e ele. Ai ele lá que vai, vai mejulgar, se eu to falando a sinceridade com ele ouse eu to jogando de boca pra fora contra ele.

Assim, ao poucos, Marcelo vai desenhando em seu discurso a influencia positivaque a religiosidade exerce em suas vivencias. O momento tirado para falar comDeus mantém um canal que o liga a um ser que está presente e o ajuda em seusmomentos de necessidade. Deus é sentido como alguém que ajuda.

Já... me ajudou. Me ajudou muito porque... eufiquei nove meses numa cadeira de rodas; stressde cachaga e nao se alimentar, fiquei nove mesesna cadeira de rodas. Hoje ele me colocou do jeitoque eu to aqui; do jeito que eu andei isso tudo ai.Hoje eu me sinto tranquilo, ele me ajudou.

O uso intenso de bebida alcoolica causa em Marcelo serios problemas de saúde queacabam por prejudicá-lo. Há urna limitagao física, que, segundo ele, durou novemeses. Foi comunicado por médicos que havia a possibilidade dele permanecer semmovimento na pernas, mas Deus o levanta; ele me colocou do jeito que eu to aqui.Isso traz um sentimento de tranqüilidade e o reconhecimento de que foi ajudadoem seu momento de dificuldade. Marcelo ressalta, porém, que isso nao se deu demodo ¡solado; a sua participagao se deu pelo sentimento da fé.

Mas eu peguei com fé a ele, lutando, eu conseguílevantar, ele me levantou, mas através de mim ecom fé com ele, hoje ele me colocou em cima, aió. Se nao fosse ele se acha que eu... "á... eu já toé ruim mesmo; num barco dN 'agua, a agua jáentornou mesmo do balde, agora deixa e vó vivero resto da minha vida na cadeira de roda". Horadessa eu tava aqui falando com vocé numacadeira de rodas se eu deixasse, mas, ele diz:"Vai que eu te ajudarei; agora, se esforga. Sevocé nao se esforgar... vai depender de vocé; queeu vou te ajudar, se esforga".

Marcelo senté que Deus o levanta, mas através dele mesmo, de sua fé. Ele "pegoucom fé" e Deus o colocou em cima. Ao mesmo tempo Marcelo aponta que se fosseapenas por ele, nao teria superado o problema. Se nao fosse ele (Deus), Marcelosenté que poderia ter se conformado e ficado sem andar, hora dessa eu tava aquifalando com vocé numa cadeira de rodas se eu deixasse. Ao finalizar esse trecho,ele expressa o sentimento que tem com relagao a Deus como alguém que ajuda ohumano, mas exige do mesmo que faga um esforgo. A ajuda de Deus é certa,dependendo do esforgo ou nao do humano, vai depender de vocé.

Cai e me levantei. De lá pra cá, desde aquele diaque eu cai aqui, até hoje o álcool tá fora, naocoloco. Com fé em Deus, igual os outro fala ai.."Com fé em Deus nunca mais eu ponho essapeste desse trem na minha boca." Eu nao faloisso, enquanto que eu tiver forga, forga devontade e disposigao eu vou lutar contra ela.Agora eu nao vou falar com fé em Deus eu naovou... ai ele cai, ele bebe, ai o outro fala, uaifulano, se falou que... "A... Deus virou as costaspra mim", ele nao vira as costas pra ninguémnao, vocé que escolheu voltar pelo caminho quevocé tava, nao conseguiu seguir ele. Eu naocoloco ninguém, eu me coloco eu. Por que eu vou

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falar, a Deus virou as costas, Deus nao vira ascostas pra ninguém nao, nois que procura.

Marcelo traz entao em questao urna de suas dificuldades para exemplificar a ajudade Deus e o esforgo daquele que pede; que busca mudanga. Assim, ao analisar suaprópria vida, ele afirma que caiu e se levantou. Fala entao de urna situagao em quepassou mal novamente devido ao uso do álcool e que, após isso, está sem beber.Contextualiza entao a fala de outras pessoas que afirmam que com fé em Deusdeixarao de beber, ou de fazer outras coisas. Já Marcelo fala que o importante ésua forga de vontade e a disposigao de lutar, no caso, contra a dependencia. ParaMarcelo, o fato concreto é de que Deus nao vira as costas pra ninguém, é a própriapessoa que escolhe voltar por um caminho que difere do caminho de Deus, naoconseguiu seguir a ele. Finaliza esse trecho de sua fala reafirmando a questao daescolha inerente ao humano. O caminho de Deus para Marcelo é o de deixar abebida, mais que isso, o caminho de superar um situagao; de mudar urnarealidade.Quando pego a Marcelo que fale sobre o seu sentido de vida, ele traz aquilo quepara ele é de fundamental importancia e que pode tirá-lo da condigao de moradorde rúa: a conquista de urna casa.

Quer dizer, se eu tendo a minha casa ai sim euvou ter o meu horario de acordar, eu nao vouficar dependendo dos outros pra comer a horaque eles quer dar. Se eu nao quizer comer eu naovou comer porque eu nao quis fazer, agoraenquanto cé tiver dependendo da ajuda dosoutros, cé tem que ser capacho deles né? Fazer ahora deles.

Ter a própria casa aponta para a possibilidade de nao ser dependente de outros, tera sua hora para fazer suas coisas e a condigao de nao ser capacho de outra pessoa.Ter a vida própria para Marcelo é ter um emprego e o seu dinheiro, o que Ihe trariaurna vida digna. Viver na rúa para Marcelo é nao viver, é ser jogado pelos outros.

O meu projeto agora, que eu to vivendo agora,meu único projeto, eu quero conseguir umemprego, sabendo? Té urna vida digna, urna vidadigna que eu posso ter emprego, ter o meudinheiro e ter a minha vida. Porque na rúa agente nao véve; véve jogado pelos outros ai, namao de um, hoje ta aqui, amanha ta ali, tasentado no banco de urna praga; amanha vocé tásentado ne outro banco de outra praga, ai vocéchega lá pra cima (Se refere a ir dormir noalbergue) vocé vé aquele monte de gente falandosó "Iheira"... "Eu já fui cadeeiro, já matei, jároubei, fui traficante". Mas o que? Tá ali comendono mesmo prato.

Marcelo se refere ao assunto dos outros moradores de rúa como um discurso vazio,Iheira. Ressalta apenas falas que mostram o lado negativo que muitas vezesmarcam, rotulam, pessoas ñas rúas como ex-presidiário; alguém que matou ouroubou. Para Marcelo vale, entretanto, o fato de que ali nao há diferenga entre aspessoas; estao todas na mesma situagao de vida ñas rúas.

Agora vocé tando na sua casa é vocé e vocé, tavendo? Mas enquanto nao tem; tem que ficarouvindo asneira, até que um dia Deus olhe pravocé. "Nao... vocé merece, eu vou tirar vocédesse lamagal, vou te colocar numa outra vidamelhor, vou te dar um plano de vida melhor". O

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meu pjano de vida nesse momento, eu quero oque? É ter um emprego, urna vida digna; urnavida digna. Dono do meu nariz, nao do nariz dosoutros. Ser dono do meu nariz, se eu falar que eunao quero hoje eu nao quero.

Enquanto se está vivendo ñas rúas é inevitável ouvir "asneiras" de outras pessoasque estao na mesma condigao. Asneiras aqui se refere a esse conteúdo das falasmarcado por violencia e uso de drogas, o que nao agrada Marcelo. Novamentesurgem em sua fala elementos da religiosidade quando ele afirma que essa situagaopode mudar quando Deus olhar para sua situagao. O merecimento, talvez pelosofrimento já vivido, alimenta o sentimento de que Deus pode tirá-lo desselamagal. Deus favorece a busca de urna vida digna e de ser dono de si mesmo.Finalizando, pego a Marcelo que fale sobre o seu sentimento com relagao á morte, eentao ele faz algumas colocagoes que novamente apontam para sua ligagao com otranscendente.

Agora sobre respeito á morte, ai meu amigo, aificou encrencado. Só o pai e o filho e o espiritosanto que vai saber qual é o seu dia e qual é suahora, se chegar hoje, no momento em que eudescer essa escada ai, ele me levar, fazer o que?É ele que quis, nao foi eu. Ou eu sair daqui atéchegar la em cima, posso me deitar e nao possome levantar também. É a vida dele uai, ele quesabe, ele que faz o controle da nossa vida, naosao nóis aqui nao, em carnal aqui na térra nao.Quem faz o nosso dia-a-dia é ele. Vou tedescansar e vou te alertar pra vocé no outro dia.

Assim como entrega sua vida "na mao" de Deus, Marcelo diz que só o pai, o filho eo espirito santo vai saber qual é o dia e a hora da morte e, quando ela chegar,nada se pode fazer. A vida é de Deus e ele é quem sabe da vida do homem, ele quefaz o controle da nossa vida.

IV.I I . Refletindo sobre MarceloÉ possível pensar que há um sentido de vida nos moradores de rúa, ou essaspessoas, mergulhadas na esfera da necessidade, perderam o sentido de suasexistencias e vivem de maneira errante pelo mundo?A partir das análises dos relatos de Marcelo, é possível perceber que há urnapergunta pelo sentido que perpassa o discurso do mesmo e a religiosidade aparececomo possibilidade de poder ser urna resposta para tais questoes, nao a única.Talvez nao se identifica um sentido geral e fechado para a vida no discurso dessapessoa, mas há elementos de urna constante busca de sentido.Frankl (1948/2007) afirma que nao é o ser humano quem faz a pergunta pelosentido da vida, mas ao contrario, ele é interrogado pela vida e deve dar respostas,que serao sempre dadas através de atos. As perguntas vitáis só podem serrespondidas, segundo Frankl, pelas agoes. As respostas sao dadas pelaresponsabilidade assumida pela existencia em cada situagao. A existencia só podeser de cada um se for responsável. Para o Existencialismo e a Logoterapia, overdadeiro ser humano nao é aquele que é movido por instintos, mas é um ser quedecide, responsável. O humano comega onde deixa de ser impelido, determinado.Ele acaba quando deixa de ser responsável.Ao se analisar as vivencias relatadas por Marcelo, notam-se elementos que sereferem, de alguma forma, á questao do sentido. Por um lado, há a perda dosentido de vida que se manifesta em atitudes de descuido para com o próprio ser,por outro, há também momentos em que o entrevistado aponta para a busca do

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sentido de vida. Se o mesmo ainda nao foi encontrado, ele nao perdeu também anogao dessa busca.A situagao de vida ñas rúas é marcada pela exclusao social e pelo sofrimento físicoe psíquico. Pode-se afirmar que, frente a condigoes tao adversas de existencia,aquele que vive ñas rúas vive numa situagao-limite. Muitos elementos e vivenciasde seu dia-a-dia podem indicar a ausencia de sentido e a possibilidade da morte,tanto a física quanto a morte das possibilidades. Escorel (2000) chega a afirmarque, frente a tantas condigoes adversas, existem pessoas que sobrevivem deteimosas, cita como exemplo, os moradores de rúa. O que a autora chama deteimosia pode-se entender em Frankl (1948/2007), e exemplificado por Marcelo,como sentido de vida, um motivo para permanecer vivo. Mesmo com um cenárionegativo é possível encontrar um sentido para a vida. Conforme Frankl(1948/2007), há sentido em qualquer situagao, mesmo no suicidio.Marcelo dá um exemplo dessa busca que o morador de rúa faz pelo sentido, poralgo que possa orientar e dar sustentagao á vida ñas rúas. Nao encontrei ainda oque eu quería encontrar, mas eu sei que até chegar lá eu ainda vou encontrar meuobjetivo ainda. Nota-se entao que há urna procura por esse algo que preenche ovazio da existencia.Isso vai também ao encontró do que afirma Frankl (1948/2007) que o que importanao é dar sentido, mas encontrar um sentido. A vida equivale assim a um enigma aser decifrado. O sentido nao pode ser inventado, mas precisa ser descoberto.Descobrir o sentido é, assim, algo único e individual e faz parte da responsabilidadede cada ser humano para consigo próprio.Na fala do entrevistado, há a expressao marcante de um desejo de se conseguirtrabalho. Nao afirmamos que o trabalho constitui-se como um sentido, mas, podeestar como a representar um sentido maior. O trabalho e mesmo o desejo de fazercursos sao encarados como a possibilidade de saída da situagao de rúa. Estao aservigo da transcendencia, á medida que podem permitir a essas pessoas que estaovivendo ñas rúas urna mudanga. Há a possibilidade de se desprender da rúa, do¡mediato e almejar algo futuro. Neste sentido o desejo de um trabalho fixo pode serentendido como um desejo de se constituírem vínculos estaveis.Pode-se ver na fala de ambos essa expressao pelo desejo do trabalho. Marcelo dizque meu projeto agora, que eu to vivendo agora, meu único projeto, eu queroconseguir um emprego, sabendo? Té urna vida digna, urna vida digna que eu possoter emprego, ter o meu dinheiro e ter a minha vida.Segundo Frankl (1948/2007), o sentido nao se refere apenas a urna situagaodeterminada, mas também a urna pessoa determinada que está envolvida numasituagao determinada. Nao só se modifica, como é diferente de pessoa para pessoa.Estar vivendo ñas rúas é assim urna morte. É a morte das possibilidades e a perdado sentido de vida. Os caminhos que apontarem assim para a superagao dessasituagao de vida estao a servigo da busca pelo sentido, pelo sentido de sereencontrar enquanto ser humano, livre e responsável.Marcelo, ao falar sobre sua vida e sua vinda para as rúas, analisa entao suaexistencia como um todo. O fato de nao encontrar um sentido que oriente sua vidaé sentido entao como um fracasso de si mesmo.

Eu vou falar aqui a verdade; do jeito que eu tóvivendo, nao tó vivendo... a vida, quem faz a vidaé vocé, eu nao reclamo nada da vida, eu naoreclamo... igual eu falei, se eu tó desse jeito. Eupodia passar a borracha naquilo lá da morte daminha mulher e entregar na mao de Deus econtinuar a minha vida. Hoje eu tava um homemaposentado pelo porto, tinha minha casa, tinhatudo. Mas eu... eu fui um fracasso de mim

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mesmo. Eu fui fracasso, eu mesmo me fracassei,eu fracassei.

Ao mesmo tempo o entrevistado mantém a firme convicgao de que irá superar suasituagao e encontrar algo, urna mudanga. Esse ideal tem-no motivado a fazer agoesconcretas para que possa alcangar tais mudangas. Um exemplo dessas agoes é ofato de o mesmo diminuir o uso da bebida. Assim, o sentimento de algo a seralcangado e mudado aparece como a manifestagao de um sentido.

Eu acredito que um dia eu pelejo e vou passar porcima, eu nao vou ficar nessa pro resto da minhavida, ou senao eu vou pra eternidade.(...) Mas euacredito, até o final da minha vida, eu tenhocerteza que eu vou ter urna mudanga, nao seicomo mas eu vou ter urna mudanga. (...) O meusonho mesmo é ter urna casa, um canto pra mimmesmo, um emprego pra mim mesmo. Ai eulevanto, eu já vou deitar sabendo que amanha eujá sei pra onde que eu vou. Agora viver numavida dessa ai num dá né?

Esta fala de Marcelo mostra a saída de urna situagao e o desejo de se langar emalgo diferente. É um sinal da transcendencia que se faz presente, impulsionando-oao caminho de encontrar o sentido.

Na realidade, a existencia humana sempre já vaialém de si mesma, já está sempre indicando umsentido. Neste sentido o que importa á existenciahumana nao é prazer ou poder, nem auto-realizagao, mas antes o cumprimento de sentido.Na Logoterapia falamos de urna vontade desentido. O sentido é urna barreira além da qualnao podemos avangar, mas que simplesmenteprecisamos aceitar: esse sentido último temosque aceitar porque nao podemos perguntar alémdele; pois se tentarmos responder á perguntapelo sentido do ser, já se pressupoe o ser desentido" (Frankl, 1948/2007, p. 76)

Ou seja, para Frankl (1948/2007), há um sentido maior que nao é apreensível aohumano por meios humanos. Aqui deixa de aparecer o sentido apreensível, no qualnao há possibilidade de se acessar por meios racionáis; entra em cena a fé em algomaior. Segundo Frankl (1948/2007), o crer nao é apenas urna fé em Deus, masurna fé mais abrangente em um sentido. Fazer a pergunta pelo sentido da vidasignifica ser religioso.Frankl (1948/2007) afirma que a consciéncia é um órgao de sentido que orienta ohomem a buscar encontrar o mesmo em todas as situagoes. Contudo, Frankl(1948/2007) ressalta que a própria consciéncia pode se engañar.

A consciéncia também pode engañar a pessoa.Mais ainda: até o último instante, até o últimosuspiro a pessoa nao sabe se ela realmentecumpriu o sentido de sua vida ou se ela apenas seenganou. (...) o fato de que nem no nosso leitode morte saberemos se o órgao de sentido, nossaconsciéncia, em última análise nao foi vítima deurna ilusao de sentido também implica que urnapessoa nao sabe se nao é a consciéncia do outroque tinha razao. Isso nao quer dizer que naoexista verdade. Somente pode haver urna

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verdade; mas ninguém pode saber se é ele e naoo outro que a possui (pp. 85-6)

A partir de Frankl (1948/2007), pode-se afirmar que é sobre esse sentido real,apreensível e calcado na vida presente a que podemos ter acesso. O sentido ampio,aquele que diz de toda urna vida, nao se pode acessar ¡mediato, mas a partir daapreensao desse sentido colocado em cada situagao é que se abre terreno para oacesso a esse sentido maior. Nao se pode negar esse sentido ampio.

Ao iniciarmos nossa discussao sobre o sentido naacepgao da Logoterapia, já mencionamos que osentido se refere ao sentido concreto de urnasituagao com a qual urna pessoa igualmenteconcreta é confrontada. Além disso, existelógicamente um sentido último, mais ampio.Porém, quanto mais ampio for o sentido, menoscompreensível será. Trata-se do sentido do todo,do sentido da vida como um todo. E acredito naoser digno de um Psiquiatra, ou de qualquercientista, negar de antemao a simplespossibilidade de um tal sentido universal combase em pressupostos apriorísticos oudoutrinagoes ideológicas (Frankl, 1948/2007, p.104).

IV. I I I . Consideracoes fináisAo final deste trabalho, cabe ressaltar que o mesmo é urna tentativa de langar umolhar compreensivo sobre temáticas emergentes na sociedade. Dada acomplexidade dos mesmos, tornam-se necessários maiores aprofundamentos.Cabe ressaltar que o mesmo revela um olhar diferente sobre a figura do moradorde rúa. O senso comum e o preconceito que muitas vezes impera sobre esse grupopopulacional ao qual se denominou populagao de rúa, nega muitas vezes o queiguala o morador de rúa a qualquer outro cidadao, a humanidade. Por humanidadepodemos entender, em Frankl (1948/2007), a capacidade de dotar a existencia desentido. Ao ouvir um morador de rúa o que pudemos notar foi que o mesmo possuiurna historia de vida e, a condigao de morar ñas rúas, faz com que viva a perguntapelo sentido de urna maneira intensa.Vivendo em condigoes tao antagónicas, nota-se que o risco de morte iminente e aprecariedade dos recursos em que convive o morador de rúa, faz com que a buscade sentido se faga presente. Se o sentido ainda nao foi encontrado, há urnapergunta que nao cessa de ser feita. O sentido pode ser encarado como algo quefavorece a vida e a continuidade desta vida, ainda que tantas coisas ajam emmovimento contrario.Pode-se mostrar também que a religiosidade e, para além déla, a espiritualidade,aparecem como fonte de sentido e devem ser levadas em conta como umcomponente importante da subjetividade destas pessoas. Cabe aos profissionaisque trabalham com este público nao negar essas características, pois, podem asmesmas interferir de maneira positiva na saída das rúas e na superagao dessacondigao de vulnerabilidade.

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Nota(1) Artigo escrito a partir da dissertagao de mestrado "A religiosidade de moradoresde rúa da cidade Belo Horizonte: urna via de subjetivagao" defendida pelomestrando Aluizio G. de C. Guimaraes sob a supervisao da Profa. Dra. Jacquelinede Oliveira Moreira.

Nota sobre os autoresAluizio Geraldo de Carvalho Guimaraes - Psicólogo, pós-graduado em PsicologíaClínica Fenomenológica Existencial pela FEAD Minas, Mestre em Psicología pela PUCMinas, Coordenador do Centro de Referencia da Populagao de Rúa de BeloHorizonte. Contato: [email protected]

Jacqueline de Oliveira Moreira - Doutora em Psicología Clínica pela PUC/SP, Mestreem Filosofía pela UFMG, Professora do Programa de Pós-graduagao em Psicologíana PUC/MG (M/D), Psicóloga Clínica. Contato: [email protected]

Data de recebimento: 12/01/2011Data de aceite: 22/05/2011

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A fonte autobiográfica como recurso para aapreensao do processo de elaboracao da experiencia

na historia dos saberes psicológicos

Autobiographical source as a resource for apprehending the process ofelaborating experience in the history of psychological knowledge

Marina MassimiUniversidade de Sao Paulo

Brasil

ResumoO artigo discute a pertinencia da fonte autobiográfica como material documentáriopara a reconstituigáo histórica dos saberes psicológicos no ámbito da cultura, á luzdas propostas de alguns autores contemporáneos a respeito deste tema(Zambrano, Courcelle, Hadot, Gurevic). Nesta perspectiva, relata também algumasetapas importantes da historia deste género literario, tendo como ponto de partidaa contribuigáo de Agostinho de Hipona, sua influencia ao longo da Idade Media e ascontinuidades e as transformagoes do género na Idade Moderna (Montaigne,Cardano, Vico, Teresa de Ávila, Rousseau).

Palavras-chave: fonte autobiográfica; Agostinho de Hipona; Montaigne;Rousseau.

AbstractThe article discusses the pertinence of autobiographical source as a document forthe reconstruction of the history of psychological knowledge in the culture realm,under the light of the proposals of some contemporaneous writers who address thistheme (Zambrano, Courcelle, Hadot, Gurevic). From this perspective, the articlealso deepens some important stages of the history of the genre, taking as itsstarting point the contribution of Augustine of Hippo, his fortune during the MiddleAges, and the continuities and transformations of genre in the Modern Age(Montaigne, Cardano, Vico, Teresa de Avila, Rousseau).

Keywords: autobiographical source; Augustine of Hippo; Montaigne; Rousseau.

IntrodugáoA fonte autobiográfica pode ser investigada segundo diferentes perspectivas:dentre outros, buscaremos neste artigo destacar sua pertinencia enquanto materialdocumentário para a reconstituigao histórica dos saberes psicológicos no ámbito dacultura. Com efeito, a narrativa autobiográfica transmite, entre outros, também oconhecimento das dinámicas psicológicas vivenciadas ao longo da elaboragáo dopercurso pessoal, conhecimento este adquirido e relatado pelo próprio sujeito-autor. O género autobiográfico e especialmente a confissáo tiveram urna grandedifusáo na cultura ocidental: no percurso histórico da escrita e difusáo deste tipo defontes podem ser evidenciadas continuidades e transformagoes do género, queseráo apresentadas brevemente ao longo deste texto.

Urna definigáo de autobiografía: a vida de urna pessoa narrada por siprópriaDe acordó com Georg Misch (1878-1965), a autobiografía surge como um génerodefinido no século XVIII e refere-se a qualquer descrigáo (grafa) da vida (bios) deum individuo escrita por ele mesmo (auto) (Misch, 1907/1950).

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Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de yelaboragao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 11-30. Retirado em / / da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05

A fonte de natureza autobiográfica - sendo a autobiografía um género literariopresente ñas diversas sociedades em diversos períodos do tempo - constitui-senum importante recurso para a apreensao das diversas modalidades de elaboragaoda experiencia humana ao longo da historia cultural (Alberti, 1991; Biezma, Castillo& Picazo, 1994; Bruss, 1994; Campos, 1992; Candido, 1987; Rocha, 1992).Sabemos que o próprio entendimento do conceito de experiencia na culturaocidental deve ser acompanhado ao longo do processo histórico, tendo passado porprofundas transformagoes (Massimi & Mahfoud, 2007; Mahfoud & Massimi, 2008) eque se trata de urna nogao central em todo tipo de conhecimento psicológico. Aautobiografía é um conhecimento reflexivo elaborado em forma escrita que o autorfaz de sua própria experiencia. O estudo de fontes autobiográficas na perspectivada historia dos saberes psicológicos exige, portanto, a atengao aos significados daconceituagoes da experiencia implícitas na elaboragao dessas fontes.

A abordagem á fonte autobiográfica numa perspectiva históricafenomenológicaTendo o objetivo de definir urna adequada metodología de abordagem das fontesautobiográficas, cabe retomar o que foi proposto por Stein em Introdugáo a filosofía(1919-32/2001). Segundo esta autora, a fonte autobiográfica relataacontecimentos potencialmente submetidos a dois tipos de ordens: a ordem causal(ou seja, a apreensao das conexoes necessárias, como, por exemplo, as leisnaturais inerentes ao ambiente e ao corpo vivo da pessoa; ou as circunstanciasdeterminantes de natureza histórica); e ordens de outro tipo (por exemplo, aordem teleológica das motivagoes). No que diz respeito a este segundo tipo deconexoes, é preciso definir diferentes carnadas da experiencia individual que sepretende atingir e analisar: por exemplo, caso queiramos nos aproximar do núcleoda pessoa, a análise deve ser realizada até os niveis mais profundos (1).Stein (1919-32/2001) coloca que a análise deste tipo de fonte, realizada segundo aperspectiva histórica, compreende as etapas da determinagao e da interpretagao.Por determinagao, entende-se a verificagao do contexto (espacial e temporal) emcujo ámbito se encontra o testemunho. Esta verificagao permite apreender osentido do testemunho no universo contextual em que foi concebido: o contextosócio-cultural e histórico como também o contexto das vivencias e da historiaindividual.Neste segundo aspecto, a determinagao desemboca na interpretagao, a qualconsiste na apreensao da vida espiritual de quem dá o testemunho (diga-se, oescritor da autobiografía). Com efeito, alcangamos a interpretagao quando oconteúdo do testemunho é descoberto em sua determinagao individual.Segundo Stein (1919-32/2001), a determinagao em si nao precisa atingir esteestadio, podendo-se interromper a investigagao histórica num nivel anterior, semalcangar o pleno conteúdo de significado da fonte. Todavía, um conhecimentohistórico que nao alcance a interpretagao, é realizado parcialmente. Por outro lado,é possível também que a interpretagao do documento proceda de modoindependente de urna rigorosa determinagao histórica: isto poderá ocorrer no casoem que urna carta seja tomada apenas como expressao da personalidade de seuautor, ou do relacionamento deste com a pessoa do destinatario, ou da singularcondigao vital descrita por quem escreve, sem que seja estabelecida urna conexaode sentido de tipo espago-temporal, faltando a qual nao obtemos porém, oconhecimento histórico no sentido próprio do termo.Stein (1919-32/2001) observa que existe urna relagao importante entre osconteúdos de sentido individual e a insergao num contexto espago-temporalordenado: de fato, cada conexao que se desenvolve no tempo e espago é tambémconexao de sentido e, ao mesmo tempo, os conteúdos de sentido pertencem áconexao espago-temporal, nao podendo ser integralmente conhecidos se nao foreminseridos em tal contexto.

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Urna interpretagao histórica adequada, portanto, exige dois movimentos: adentrarna situagao espiritual individual que o testemunho expressa; e compreender seusignificado no contexto geral do acontecimento histórico específico. Mesmo que taisobjetivos possam ser realizados pela pesquisa histórica apenas parcialmente, elespermanecem sendo indispensável horizonte de conhecimento.Ainda numa perspectiva fenomenológica, Binswanger (1955/2007) define aautobiografía como relato da historia pessoal em que o autor ao realizar a narrativaescrita, elabora suas vivencias: a autobiografía acontece na medida em que diantedestas vivencias o autor assume um posicionamento. Tomando como sentidooriginario da autobiografía as Confíssóes de Agostinho de Hipona, Binswanger(1955/2007) coloca que um evento (também externo) se torna conteúdomotivacional quando diante dele o sujeito assume determinado posicionamentointerior. A elaboragao deste conteúdo motivacional inclui o reconhecimento e ainterpretagao conceitual do mesmo, como também o ato de por em evidencia suasconseqüéncias vitáis e espirituais. Em outras palavras, a elaboragao acontecequando qualquer conteúdo motivacional é tomado pelo sujeito como perguntadestinada á sua pessoa: qual decisao vocé se propoe a tomar? Nesteposicionamento se plasma a personalidade do sujeito. Cabe assinalar também ocaráter pessoal destes atos: as possibilidades de posicionamento de cada individuosao diferentes.

Diversidade das fontes de natureza autobiográfica e alguns marcos nahistoria do géneroUrna vez definida sucintamente a natureza da fonte autobiográfica, deve-seconsiderar a existencia de diversos tipos de fontes que podem ser tomadas comopróprias deste género: os diarios, ou seja, as anotagoes acerca de acontecimentosda vida cotidiana; as memorias, a saber, textos retrospectivos baseados noexercício da memoria pessoal do autor; a autobiografía propriamente dita que é areconstrugao retrospectiva feita pelo autor acerca do percurso de sua própria vida{bios-grafía) em sua totalidade; a confissao, exposigao de si pela escrita realizadadiante da presenga real ou imaginaria de um outro e destinada á leitura de umoutro (por exemplo a obra de Agostinho); as reflexoes e ensaios, que sao textosescritos por um autor centrado em si mesmo e tendo como destinatario a si mesmo(Montaigne, Rousseau); a correspondencia epistolar.Ao longo do tempo, registra-se a emergencia de um, ou outro tipo de textoautobiográfico, sendo a permanencia deste género urna constante da historia doOcidente.Ilustraremos agora sintéticamente alguns marcos significativos no percursohistórico de construgao e desenvolvimento do género autobiográfico, assim comosao assinalados por autores que se dedicaram ao estudo deste género, sem termosa pretensao de realizar urna reconstrugao histórica completa do mesmo.

1) A emergencia do género autobiográfico ñas Confíssóes de AgostinhoO historiador francés Pierre Courcelle (1974/2001) ao reconstruir do ponto de vistahistórico as motivagoes do interesse pelo conhecimento de si, no ámbito da culturaocidental, coloca o marco originario destas motivagoes na filosofía grega,especialmente na filosofía socrática. No inicio de sua obra, afirma que o preceitosocrático de conhecer-se a si mesmo gozou de urna continuidade ininterrupta destea antiguidade até a Idade Moderna e reconstrói o percurso, de Sócrates, Cicero, oneo-estoicismo, passando pelo neo-platonismo e por Agostinho de Hipona, atéBernardo de Clairvaux e a tradigao monástica cisterciense.Dentre os autores citados que compoem esta tradigao, Agostinho (354-430) é oponto de referencia. De fato, este autor inaugura, na obra Confíssóes (397-398),um método peculiar para o conhecimento de si mesmo, analisando em pormenoresa estrutura interna do ato cognitivo que possibilita ao homem a auto-reflexao

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(Biolo, 2000) e relatando os resultados obtidos numa narrativa elaborada emprimeira pessoa. Nao abordaremos aqui a questáo dos fundamentos filosóficos daproposta deste autor, nos reservando faze-lo em outras oportunidades.Pretendemos neste texto apenas assinalar a importancia do ato que colocou nahistoria ocidental um texto escrito, em que a busca pelo conhecimento de si mesmobaseado no dinamismo da memoria e na reflexáo filosófica torna-se o eixo motorda narrativa. Por este motivo, Agostinho realiza urna reviravolta conceitual emrelagáo aos gregos, substituindo a perspectiva cosmocéntrica pela antropocéntrica(Reale & Sini, 2006).Ñas Confíssoes, Agostinho (397-398/1987) revela a origem de sua investigagáo,quando ao narrar a experiencia de dor vivenciada pela morte de seu amigo maiscaro, escreve que nesta circunstancia "quaestio mihi factus sum": "tinha-metransformado em um grande problema" (p. 80). Tal vivencia, segundo Arendt(1987, 2000), coincide em Agostinho com a descoberta da vida da interioridade. Aautora nos remete também a outro texto significativo, o livro décimo do tratado DeTrinitate, (notadamente os capítulos terceiro e sétimo), onde Agostinho (400-416/1994) reflete sobre a dinámica do auto-conhecimento da alma e afirma ser"um surpreendente estudo, o da investigagáo de como a alma deve se buscar a simesma e se encontrar, aonde deve se dirigir em sua busca e até onde chegar parase encontrar" (p. 324).A confissao é um posicionamento do eu, onde ato de conhecimento de si e ato danarrativa de si coincidem. A novidade das Confíssoes é a de serem,contemporáneamente, tematizagáo da pessoa enquanto objeto, e ato deconhecimento de si mesmo pela pessoa enquanto sujeito. Em Agostinho,elaboragáo do conceito de pessoa e proposta do método para o seu conhecimentoconstituem-se num acontecimento histórico único e unitario. A narrativaautobiográfica torna-se assim expressáo da unidade entre a vivencia e a pessoa; edifere por isto profundamente da modalidade em que o ato da introspecgáo foiconcebido no nascer da Psicología científica no século XIX, como sendodesvinculado do conhecimento da pessoa apreendida em sua totalidade (Massimi,2010).¡números autores contemporáneos evidenciam a importancia deste ato fundador dogénero autobiográfico, analisando suas implicagoes do ponto de vista filosófico(Arendt, 1987; Gilson, 2007; Przywara, 1933/2007).Dentre eles, Zambrano (1946/2000) toma as Confíssoes de Agostinho, analisandonelas a dinámica psicológica e existencial que informa a narrativa autobiográfica.Em primeiro lugar, a autora destaca a exigencia de tornar-se visível, oferecer-se aoolhar do outro, a exposigáo de si ao olhar alheio, sendo, por si, agáo unificadora. "Aquem eu contó estas coisas?": pergunta-se Agostinho. Este movimento constitui-sejá como urna agáo de mudanga do eu. Em segundo lugar, a confissao sempreenvolve urna dinámica afetiva: na narrativa, o autor busca afirmar o que ama e seucoragáo amante, de modo que conhecer-se a si mesmo corresponde também oafirmar-se como sujeito e objeto de amor. Em terceiro lugar, a confissao brota daexigencia de restabelecer a justiga, tomada como relacionamento de confiangaentre os homens, num contexto dominado pela injustiga, pela confusáo entre ossemelhantes. De fato, no livro décimo primeiro das Confíssoes, Agostinho declaraque o ato de confessar-se responde ao objetivo de narrar-se aos seus semelhantes,ao género humano como um todo, mesmo que poucos leiam seus escritos. Aorevelar-se pela escrita autobiográfica, na totalidade de sua pessoa, ele quer exporao leitor seu verdadeiro ser. Esta exposigáo nao demanda ao interlocutor umconhecimento direto do narrador, mas urna confianga em suas palavras baseada nacerteza moral: o narrador dá conta de si ao outro e este poderá entender arazoabilidade de sua vida, acreditar nele, confiar nele e ama-lo. A confissao,portanto, mesmo quando realizada em solidáo, sempre tende a estabelecer urnarelagáo intersubjetiva.

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Finalmente, Zambrano (1946/2000) destaca características peculiares da confissaona perspectiva de Agostinho que a particularizam em relagao as outraspossibilidades de escrever urna autobiografía ou de realizar urna confissao. Naabordagem de Agostinho, "a confissao é falada", é "urna longa conversa que tem amesma duragao da conversa real" (p. 37); ainda para este autor, a elaboragao daconfissao responde á exigencia de sair da fragmentagao e de se aproximar daunidade, da "figura total faltante", realizando sua busca de algo que sustente eilumine a existencia e carregando em si, juntamente ao sentimento da carencia desua condigao presente, "a esperanga que aparega algo que ainda nao possuí" (p.46).Destas características depende, segundo Zambrano (1946/2000), a atualidade daautobiografía enquanto expressao da subjetividade: Agostinho é o autor que"desvela a confissao com urna plenitude e clareza que nunca mais se alcangaraodepois dele" (pp. 51-52, tradugao nossa), podendo, portanto, seu texto ser tomadocomo ponto de referencia para avahar os demais documentos autobiográficosproduzidos ao longo do tempo.

2) A confissao e as autobiografías nos primordios do OcidenteÉ importante inserir a confissao no ampio universo da narrativa autobiográfica.Com efeito, a confissao é urna modalidade de narrativa autobiográfica que naoesgota as possibilidades do género, podendo ela também assumir feigóes diferentesao longo do tempo e do espago, conforme as diferentes percepgóes de si mesmovivenciadas pelo homem ocidental em sua historia e em sua cultura particular.Courcelle (1974-75/2001) assinala urna interessante diferenga entre tipos deescrita autobiográfica, a saber, os de matriz agostiniana e os modernos: osprimeiros visam constituir-se em fontes para a construgao de urna antropología,para o estudo da condigao humana; ao passo que os segundos por diversas razóesrenunciam a este objetivo e, portanto, nao se preocupam em propor um métodorigoroso de conhecimento da subjetividade que inclusive possa ser aceito pelafilosofía e pela ciencia, propondo-se a ser quase um espelho para o autor e o leitorque proporciona urna reflexao sobre suas vivencias pessoais.Acerca da significagao do relato autobiográfico na filosofía clássica ocidental, Hadot(2005) sinaliza que se trata de urna expressao inerente á concepgao do saberfilosófico como arte de viver, estilo de vida, tradigao esta que se diferenciaprofundamente da visao da modernidade. Sao exemplares do tipo 'clássico' deescrita autobiográfica documentos como as Recordagoes do imperador romanoMarcos Aurelio; ou alguns diarios espirituais de tradigao monástica. Ao dissertaracerca destas fontes, Hadot (2005) distancia-se da interpretagao dada por Foucault(1985) de que elas seriam expressivas de um exercício de conhecimento voltado aobter a "soberanía do individuo sobre si mesmo" (Hadot, 2005, p. 72). Hadot(2005) discorda desta interpretagao como sendo demasiadamente centrada no simesmo, no cultivo e no gozo do eu e, portanto, moldada pela visao do homem dacontemporaneidade. Hadot (2005) concorda com Foucault que a prática da culturade si deriva do estoicismo e do epicurismo, mas assinala que cabe situar estascorrentes filosóficas em sua época e é neste sentido que seria improprio eanacrónico afirmar que elas visam urna construgao do sujeito. Pelo contrario,segundo Hadot (2005), a cultura de si é um exercício, onde "o conteúdo psíquico(...) tem como núcleo o sentido do pertencer a urna totalidade: a totalidade dacomunidade humana, ou a totalidade do cosmos" (p. 171, tradugao nossa). Osentido do pertencer é o fator que permite o auto-conhecimento. Neste ámbito, aescrita é recurso importante da cura de si: anotar pela escrita agóes e estados deánimo significa expor-se á possibilidade do olhar de um outro, sendo, portanto,urna busca de universalizagao. Entender a escrita de si como urna especie deconstrugao de si mesmo como Foucault preconiza, seria segundo Hadot (2005) urnaleitura anacrónica da tradigao antiga modelada no enfoque da subjetividade

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moderna e pós-moderna. A escritura nao constituí o eu, mas muda o nivel do eu,universalizando-o:

o individuo nao constrói sua identidade espiritualao escrever (...) mas (o ato de escrever) permiteque, ao se libertar da sua própria individualidade,quem escreve se eleve á universalidade. É,portanto, inexato falar da escritura de si (...) aescritura nao é o si. Como os demais exercíciosespirituais, ele muda o nivel do eu - eleva-o emdiregao áquela universalidade (p. 175).

Por isto, em varios destes casos, como os já referidos exemplos, o valor daescritura é terapéutico e universal. Hadot (2005) refere que, segundo Atanásio,biógrafo do monge Antao, este teria recomendado aos discípulos que anotassemtodas as agoes e os movimentos de seu ánimo, como visando desvela-los a outrem,de modo "que a escritura substitua o olhar do outro" (p. 175). Em suma, segundoHadot (2005):

O milagre deste exercício, praticado em solidáo, éque abre o aceso á universalidade da razao notempo e no espago. (...). Quem escreve sente-sede algum modo observado, nao está mais só, masé parte da comunidade humana silenciosamentepresente. Expressando pela escrita os própriosatos pessoais, o escritor é tomado pelaengrenagem da razao, da lógica, dauniversalidade. Desse modo, conteúdos quedantes poderiam ser confusos e subjetivos,adquirem objetividade (p. 175).

A relagao do eu com a totalidade como contexto adequado para o conhecimento desi mesmo obtido pela narrativa parece ser, em suma, a característica peculiar dogénero autobiográfico neste período histórico da civilizagao ocidental.

3) Autobiografías na Idade MediaGurevic (1996) assinala que autobiografías no estilo das confissoes, elaboradas porautores eclesiásticos, proliferam na Idade Media tardia atestando urna intensabusca pelo auto-conhecimento. Gurevic (1996) discute diversos fatores do contextosociocultural da época que podem ter contribuido ao aumento significativo daprodugao deste tipo de fontes. Dentre eles aponta o fato de que no inicio do séculoXIII a confissao adquiriu nova significagao pela decisao do IV Concilio de Latrao, de1215, de que todo fiel deveria confessar-se a um sacerdote, pelo menos urna vezao ano. Duby (1994) também insiste acerca do fato de que esta medida, aoestender ao conjunto dos cristaos urna prática até entao reservada aos monges,provocou urna reviravolta, introduzindo o hábito da introspecgao na vida daspessoas. Os efeitos desta reviravolta serao evidentes um século mais tarde, numanova concepgao da vida privada.Segundo Gurevic (1996), "a regra da confissao individual e secreta pressupunha aauto-análise do fiel" (p. 131, tradugao nossa) que devia analisar seu própriocomportamento a partir dos criterios da moral crista. Outro fator importante é oapelo cada vez mais exigente ao uso da razao individual para orientar agoes ecomportamentos e para organizar as relagoes sociais, diante da crise dasinstituigoes tradicionais do universo sociocultural medieval. A escrita comoelemento organizador do pensamento é um dos instrumentos que responde a estaexigencia de auto-ordenagao. As fontes assim produzidas nao podem, porém,serem tomadas como expressao direta da personalidade de seus autores. Comefeito, as autobiografías desta época propoem como criterio ordenador da vivencia,urna experiencia modelar, ou seja, o autor expressa suas experiencias

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assemelhando-as a alguma personagem de destaque da tradigao religiosa oupolítica. Ainda segundo Gurevic (1996), nao se trata de urna simples comparagao esim da identificagao do eu do autor com o modelo apresentado até dissolver-setotalmente nele. Exemplos desta posigao se encontram em: De vita sua, sivemonodiae do monge Guibert de Nogent (1053-1126); Libellus de suistentatiounibus, varia fortuna et scriptis do monge da Bavária Otloh de At. Emmeran(1010-1070), ambos citados e analisados por Gurevic (1996). Em ambos os casos,as narrativas autobiográficas nao apresentam as vivencias de seus autores em suasingularidade, e sim oferecem aos leitores modelos exemplares.Assim como Hadot, Gurevic (1996) propoe importantes orientagoes metodológicaspara lidar com estas fontes evitando anacronismos: afirma que é difundida atentativa de "compreender a personalidade do homem medieval aplicando a estamensuragoes modernas" (p. 136). O anacronismo da historiografía do século XIXaplicava aos medievais os criterios ideológicos da idade moderna (ceticismo,racionalismo, livre pensamento); o mesmo anacronismo, na atualidade, busca"descobrir na consciéncia e no inconsciente dos autores, os complexos sexuais" quevigoram hoje (p. 136). Gurevic (1996) comenta irónicamente que é impossívelfazer deitar um homem do século XII no sofá do psicanalista e rotula comoincipientes tais interpretagoes historiográficas. Segundo Gurevic (1996), os autoresdas autobiografías medievais mostram um senso agudo do passar do tempo eeternizam sua vida temporal nao apenas na escrita, como também se espelhandonum mundo maior ao qual pertencem, mundo que abarca dimensoes sobrenaturaisas quais garantem ao individuo a continuidade e a cura de seus males: é por istoque o relato de milagres e visoes é parte integrante destas narrativas, constituindo-se em componentes indissociáveis da experiencia pessoal. Por fim, Gurevic (1996)observa que as autobiografías medievais sao memorias, ou seja, composigoes numtodo ordenado de fragmentos de recordagao da vida interior e exterior. Assim, amemoria que articula o relato é sempre orientada para a confissao, é, na verdade,urna confissao.

Segundo Braunstein (1994), "mais do que qualquer outra fonte narrativa, aconfissao incita a colocagao em cena do individuo como protagonista de urnaaventura espiritual" (p. 534). Ainda afirma que "o poder organizador da visaoagostiniana inspirou, em situagoes pessoais diversas, um fascínio de método e osentimento de urna fraternidade espiritual" (p. 535) e cita Dante Alighieri (1265-1321) e Francesco Petrarca (1304-1374) como émulos desta perspectiva. Comefeito, os dois autores italianos em algumas suas obras mostram terem sidoprofundamente influenciados por Agostinho no que diz respeito á capacidade auto-reflexiva acerca de sua própria experiencia.A legitimagao do auto-conhecimento pela pratica religiosa da confissao e aimportancia da experiencia modelar como criterio ordenador da vivencia pessoalpodem, portanto, serem assinalados como aspectos que particularizam o géneroautobiográfico no período medieval.

4) As narrativas autobiográficas nos primordios da Idade ModernaGurevic (1996) assinala que já no século XII, a Historia calamitatum mearum(1132-1136/1973) de Pedro Abelardo (1079-1142) representa um marco demudanga, o inicio de urna nova modalidade de entendimento da narrativaautobiográfica que se evidenciará de modo claro na Idade Moderna. A posigaofilosófica de Abelardo explicitada também em seu tratado Opera theologica I (1121-22/1969), é centrada em sua própria experiencia e em suas observagoes ereflexoes pessoais. Deste modo, também a autobiografía é concebida por ele comoexpressao de suas tendencias, conflitos e impulsos interiores: a confissao deAbelardo nao é voltada a um interlocutor: "é um ato de confissao e de auto-justificagao, de auto-análise e de auto-afirmagao. O primeiro interlocutor deAbelardo é ele mesmo" (Gurevic, 1996, p. 153). Ao relatar as difíceis circunstancias

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históricas de sua existencia, Abelardo escreve propriamente urna apología, mais doque urna confissáo. Sabe-se que Abelardo, filósofo e teólogo francés, foi castradopor vinganga devido ao amor ilícito pela sua aluna Heloisa; tornou-se monge eenvolveu-se em conflitos teológicos com Bernardo de Clairvaux; e em decorrénciadisto seus textos foram condenados e proibidos pelo Concilio de Sens.Com Abelardo, somos, portanto, introduzidos noutra acepgáo da narrativaautobiográfica, que se afirma a partir do Renascimento e se difunde na IdadeModerna. Trata-se de urna consciéncia de si mesmo, já preconizada emdocumentos da Idade Media tardia, como, por exemplo, ñas cartas de Petrarca(Gurevic, 1996), e que abre o caminho para a Modernidade.Nos inicios da Idade Moderna, assiste-se também a urna expansao da prática danarrativa autobiográfica no ámbito da sociedade e nao somente no meioestritamente intelectual e religioso. Braunstein (1994) coloca que a partir do séculoXIV surge na cultura ocidental a preocupagao dos individuos quanto á descrigáo etransmissáo de suas vivencias pela escrita direcionada para um restrito grupo dedestinatarios. A preocupagao que inspira esta escrita nao é tanto a necessidade depreservar, na memoria, instantes privilegiados do passado nem "a exigencia intimade iluminar os movimentos da consciéncia" (p. 539), quanto "a reconstituigáo, naordem do tempo vivido, dos acontecimentos que merecem ser salvos doesquecimento em que os ímpetos pessoais e as escolhas sao camuflados pelaaparente objetividade da narrativa" (p. 539).Assim surgem diarios redigidos nao apenas por personagens famosos, mas tambémpor pessoas simples movidas pela preocupagao de anotar em pormenores no seudia-a-dia "aquilo que um bom administrador deve conservar no espirito para simesmo e para os seus, do registro de fatos memoráveis no mundo e ao alcance desi" (Braunstein, 1994, p. 533). Trata-se de confissoes, diarios e crónicas que seconstituem em "fontes de informagáo" elaboradas pelo individuo acerca de suaprópria vivencia, incluindo "seu corpo, suas percepgoes, seus sentimentos e suaconcepgáo das coisas" (p. 533). Os seis diarios de Monaldo Atanásio Atanagi,palhago da corte de Guidobaldo II da Rovere, no centro da Italia, redigidos entre1539 e 1557 e conservados na Biblioteca Vaticana em Roma, sao exemplificativosdesta posigáo: livros-caixa, livros de memorias corriqueiras e de informes de fatose pessoas, registro de fatos de crónica locáis (Bozzi, 2002).Por outro lado, alguns autores escrevem autobiografias inspirados pela preocupagaode inscrever suas experiencias pessoais numa perspectiva historia, de modo aconferir dignidade e valor á sua existencia pessoal. É, dentre outros, o caso deBenvenuto Cellini (1500-1571), escultor e ourives italiano. Cellini trabalhava aservigo da Corte Pontificia e, aos 58 anos de idade, ditou sua autobiografía a umaprendiz como forma de enfrentar seus detratores (Cellini, 1558/1997).A relagáo do eu consigo mesmo como ámbito da escrita autobiográfica e aexpansao desta prática no ámbito da sociedade ocidental parecem ser ascaracterísticas peculiares da historia do género nos inicios da Modernidade (2).

5) O Senhor de Montaigne retrai-se a si mesmoJá Os ensaios (1580) de Michel Eyquem, Seigneur de Montaigne (1533-1592)refletem urna posigáo peculiar.O objetivo da escrita é revelado pelo autor no Prólogo ao leitor: "quero que mevejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artificio: poisé a mim que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeigoes, minha forma natural deser háo de se ler ao vivo". (Montaigne, 1580/2010, p. 37)Partindo da concepgáo de que "cada homem traz a forma inteira da condigáohumana" (p. 347), propoe-se a apresentar esta condigáo tal como se mostra numavida em particular, sua própria vida: "os outros formam o homem, eu o relato";"nao ensino, relato" (p. 348). Referindo-se a si mesmo, Montaigne (1580/2010)confessa que "represento um em particular, bem malformado" (p. 346). Seu

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cuidado metodológico é que "os tragos da pintura nao se extraviem" da figura realobservada.O conhecimento de si que Montaigne (1580/2010) propoe inclui nao apenas osestados interiores como também as condigoes corporais (por exemplo: as doengas,o dinamismo dos humores, o envelhecimento, etc.).Segundo Montaigne (1580/2010), deve-se levar em conta que a pessoa enquantoobjeto da narrativa é caracterizada pela inconstancia e mutabilidade: "nao possoter certeza de meu objeto: ele segué confuso e cambaleante", "pego-o neste ponto,como ele é, no instante em que me interesso por ele" (p. 346). Por isto, declara:"Nao pinto o ser, pinto a passagem", pois "minha alma está sempre emaprendizagem e prova" (p. 347). A única condigáo necessária da escrita é afidelidade á vivencia, ou sinceridade, tal como se adquire no avangar das idades davida.Num trecho celebre, Montaigne (1580/2010) assinala a aparente falta de unidadedo eu, apreendida pela observagáo da incoeréncia de estados de ánimo e decomportamentos:

Nosso modo habitual é seguir as inclinagoes denosso desejo, para a esquerda, para a direita,para cima, para baixo, conforme nos leva o ventodas ocasioes: nao pensamos no que queremos anao ser no instante em que o queremos, emudamos como esse animal que toma a cor dolugar onde o colocamos. O que nos propusemoshá pouco, ora logo mudamos, e ora, de novo,voltamos atrás: tudo nao passe de oscilagáo einconstancia (p. 204).

Por isto, o ser levados pelas circunstancias externas e pelos humores internos, aflutuagáo entre as opinioes diversas, as variagoes e contradigoes parecemcaracterizar a pessoa de modo que alguns até chegaram a cogitar a existencia deduas almas, ou duas forgas, postulando que "urna diversidade táo brusca nao podeassociar-se a um sujeito simples" (p. 207).

Nao só o vento dos acontecimentos me agitaconforme sua inclinagáo, como, além disto, eumesmo me agito e me atormento pelainstabilidade de minha postura; e quem seobserva de perto raramente se vé duas vezes nomesmo estado. Dou á minha alma ora umaspecto, ora outro, segundo o lado por onde aexamino. Se falo de mim de diversos modos éporque me observo de diversos modos. Em mimencontram-se de um jeito ou de outro, todas ascontradigoes. (...) E quem se estuda bematentamente encontra em si, e até em seu própriojulgamento, essa volubilidade e essa discordancia(p. 207-208).

Estas observagoes levam Montaigne (1580/2010) á conclusáo de que "nossocomportamento sao apenas pegas costuradas" (p. 209); "somos todos feitos depegas separadas e num arranjo táo disforme e diverso que cada pega, a todoinstante, faz seu próprio jogo" (p. 210). Por isto, ao referir-se de modo crítico aoideal clássico da "ociosidade" e do retiro visando a tranqüilidade da alma,Montaigne (1580/2010) observa que, na verdade, urna vez que esta suspende aocupagáo em certo assunto, ou seja, urna relagáo ativa com a realidade, "se perde"e como "um cávalo fúgido", desregrado, vagando "para cá e para lá no vagocampos da imaginagáo" (p. 48).

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Por outro lado, Montaigne (1580/2010) reconhece a existencia de "um modelointerno que é a pedra de toque dos nossos atos" (p. 350), um lócus da consciénciaa partir do qual julga-se a si mesmo: "olhai um pouco o que a nossa experienciamostra a esse respeito: nao há ninguém que, ao se escutar a si mesmo, naodescubra em si urna forma sua, urna forma dominante" (p. 355). Este centrointerior proporciona-lhe a experiencia de que "mantenho-me sempre em meulugar"; "se nao estou 'em casa', estou sempre por perto" (p. 351). Montaigne(1580/2010) revela que ter-se afastado dos afazeres mundanos contribuiu parareconhecer em si mesmo este núcleo. Este núcleo Ihe permite "fazer a fundo o quefaz" e "caminhar por inteiro" (p. 356). Reconhecer este ponto corresponde a umtrabalho da razao: "eu que sacudo minha razao tao viva e atentamente" (p. 361).Este trabalho é auxiliado por alguns instrumentos: dentre eles, a leitura ("a leiturame serve em especial para despertar, por objetos diversos, minha reflexao, parafazer trabalhar meu julgamento", p. 366); as "amizades raras e requintadas" (p.368), a este propósito Montaigne (1580/2010) lembra a experiencia vivenciada emjuventude de "urna amizade única e perfeita" (p. 368) que Ihe ensinou o criteriopara discernir as pessoas com as quais puder compartilhar "o exercício da alma" (p.372); o amor de urna mulher "que se tenha desejado cientemente" (p. 374) e queseja bela no corpo e no espirito.Para Montaigne (1580/2010), este conhecimento de si mesmo baseado naexperiencia é mais valioso do que qualquer outro: "estudo a mim mesmo mais quea outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física" (p. 520). Ser bom "aluno,na experiencia que tenho de mim", é o modo de tornar-se sabio. Pois, por exemplo,"quem conserva na memoria o excesso de sua cólera passada, e até onde essafebre o arrastou, vé a feiúra dessa paixao melhor que em Aristóteles e nutre por elaum odio ainda mais justo" (pp. 521-522). A atengao dedicada ao estudo de simesmo permite também conhecer os outros: "por ter, desde minha infancia,treinado em mirar minha vida na do outro, adquirí urna estudiosa disposigao parafazer isto" (p. 525). O método para este conhecimento consiste na observagao de"comportamentos, humores, discursos" (p. 525).O fato de que o auto-conhecimento é urna essencial contribuigao ao conhecimentoda condigao humana, a atengao á natureza dinámica e complexa do objeto, acondigao da lealdade com a própria vivencia exigida ao narrador, a evidenciagáo deum centro interior e ordenador da experiencia pessoal: sao estas as característicasque se depreendem da contribuigao de Montaigne.

6) Gerolamo Cardano e a busca da imortalidade pela escrita autobiográficaA autobiografía De propria vita (1991), de Gerolamo Cardano (1501-1576),matemático, médico e filósofo italiano, escrita em 1560, relata a busca do autorpela reconstrugáo narrativa de sua existencia a partir da exigencia de procuraralgum tipo de imortalidade. Cardano destaca inclusive que esta busca motivou ascriticas, hostilidade e marginalizagáo pelos seus contemporáneos.A preocupagáo pela imortalidade evidencia-se ao longo de toda a produgáointelectual de Cardano, que escreveu mais de duzentas obras de medicina,matemática, física, religiáo, música, um tratado de ortografía, um tratado sobre osjogos de azar, sendo este considerado o primeiro texto de teoría da probabilidade.Possivelmente esta busca tenha sido acentuada pelas dramáticas circunstancias davida do autor por ele mesmo narradas na autobiografía: filho ilegítimo de umjurista famoso, Cardano relata sua infancia miserável e doentia; ingressou nauniversidade de Pávia e posteriormente foi para Pádua, onde se formou emMedicina; casado e com tres filhos transferiu-se para Milao onde lecionou grego,astronomía, matemática e lógica e exerceu a profissao de médico. Viu sua famacrescer até ser nomeado docente de Medicina na Universidade de Pávia; teve comoamigos Francis Bacon e Leonardo da Vinci. Todavía, ao mesmo tempo, passou porgraves sofrimentos, dentre as quais a maior relata ter sido a execugao capital de

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seu filho primogénito condenado por uxoricidio. Devido a este fato, teve quemudar-se de cidade e foi lecionar Medicina na Universidade de Bolonha, mas foipreso em 1570 pela Inquisigao, acusado de heresia. Ele mesmo se pos fim em 21de setembro de 1576 quando se suicidou. Na autobiografía, Cardano relata osacontecimentos principáis de sua existencia; retrata todos os tragos de sua pessoae de sua historia de vida: a estrutura corpórea e a condigao psicossomática, oshábitos alimentares, as atividades físicas realizadas, o desejo de que seu nome seperpetué na posteridade, o estilo de vida e de estudo, suas virtudes, hábitos, viciose erros, a perseveranga nos sofrimentos, as relagoes de amizade, as inimizades,calunias e difamagoes vivenciadas, os gostos e lazeres, seus pensamentos eobservagoes, as práticas religiosas, as moradias que habitou, a familia, asperegrinagoes e perigos encontrados, sua busca pela felicidade. Descreve seusmestres e discípulos; os casos clínicos de que cuidou enquanto médico e suaatividade como astrólogo. Interpreta seus próprios sonhos; escreve seu testamentoe lista os livros por ele mesmo produzidos. Expoe sua visao do mundo e, nocapítulo 46, intitulado "De me ¡psum" descreve seu caráter. Escreve um poema aser lido na ocasiao de seus funerais.Acerca de sua autobiografía, Calvino (1993) escreveu que nele "domina urnacontinua preocupagao por si mesmo, pela unicidade da própria pessoa e pelopróprio destino, segundo a observancia astrológica, razao pela qual o acumulo departicularidades dispares em que consiste o individuo encontra urna origem e urnarazao na configuragao do céu ao nascer." (p. 86). Calvino (1993) lembra que"delicado e doentio, Cardano exerce sobre a saúde urna tríplice atengao: demédico, de astrólogo, de hipocondríaco ou, como diríamos hoje, de psicossomático.E assim sua ficha clínica é assaz minuciosa" (p. 86).Em suma: para Cardano, a narrativa autobiográfica parece ser um meio pararesponderá busca por imortalizar sua própria memoria.

7) Giambatista Vico: autobiografía e busca da verdadeGiambattista Vico (1668-1744), filósofo, jurista e historiador italiano escreve suaautobiografía em terceira pessoa, respondendo a um pedido do conde Gian Árticode Porcia. Como ele mesmo escreve, trata-se de urna autobiografía filosófica.Filósofo critico com relagao ás influencias do cartesianismo na cultura e criador deum sistema filosófico próprio, censurado e marginalizado em vida pela sua oposigaoao pensamento dominante, Vico parece buscar na escrita de sua autobiografía oresgate de suas vivencias intelectuais e de sua produgao filosófica, bem como areafirmagao da originalidade de seu posicionamento teórico e pessoal.Com efeito, a autobiografía relata os posicionamentos anti-conformistas de Vicodesde sua infancia: por exemplo, a decisao, diante de urna injustiga vivenciada, desair do colegio jesuíta e de estudar de modo autodidata; e a decisao de voltar aoestudo guiado por um mestre para que sua busca da verdade fosse bemdirecionada. A busca da justiga e o amor pela beleza da palavra norteiam asescolhas de Vico (1745/2006) em seu processo de formagao: o gosto pelos estudosem direito que o levou a indagar a possibilidade da "busca de um direito universaleterno", (p. 15) e em retórica; a adesao ao platonismo como urna afirmagao contrao sensualismo e o empirismo da época, a afirmagao da existencia de verdadeseternas que nao sao criadas pelos homens, mas que se Ihe se apresentam para quetome posigao diante délas. O interesse de Vico pela mente humana se reflete já emsuas primeiras aulas universitarias quando como docente de retórica profere asligoes inauguráis, relatadas na autobiografía: especialmente o fascina oentendimento do dinamismo da mente humana, acerca da qual elabora urnaconcepgao bem diferente da cartesiana, ressaltando a importancia das potencias damemoria, da fantasía e do engenho. Por volta de 1708, Vico se posicionapublicamente contra a filosofía cartesiana, específicamente no que diz respeito áconcepgao da verdade: se para Descartes esta seria urna evidencia que a razao

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pode obter no ámbito das idéias claras e distintas, Vico pensa que apenas averossimilhanga pode ser alcangada pela mente humana. Partindo do principio deque a verdade e os fatos coincidem, Vico afirma que somente Deus pode conhecercompletamente o mundo pelo fato de cria-lo, produzi-lo a cada instante; ao passoque o homem apenas pode alcangar a verdade acerca de suas próprias produgoes,a saber a historia e a matemática. O eu, portanto, pode conhecer-se a si mesmopela historia: nela o homem descobre a verdade de seu fazer-se. Com base nestesprincipios, Vico comega a delinear as linhas daquilo que será seu sistema filosóficopróprio: a ciencia nova.Na autobiografía, Vico (1745/2006) relata ser movido pela exigencia de encontrar"algum argumento novo e grande no ánimo que em principio unisse todo oconhecimento humano e divino" (p. 39). Expressa repetidas vezes a exigencia desuperar o dualismo entre idéias e fatos, que implica também compor o hiato entre afilosofía (ciencia que se ocupa da verdade) e a filología (que se ocupa da certeza naanálise dos documentos históricos). Relata a redagáo e publicagáo em 1725, de suaobra principal, Principios da Ciencia Nova, onde finalmente pensa ter definido oprincipio unitario até entáo buscado. As últimas páginas da autobiografía sintetizamsuas intengoes e sua atuagáo: o interesse que o moveu enquanto docente, para'desengañar" os jovens, no sentido de ajudá-los a um uso crítico da razáo para naocair nos "engaños dos falsos doutores" (p. 92); as inimizades contraídas nesteempenho; a busca constante pelo uso da palavra eloqüente sempre unida ásabedoria: "sendo a eloqüéncia a sabedoria que fala, seu ensinamento devia servirpara orientar os engenhos dos jovens e torna-Ios universais" (p. 92). Declara seuempenho no magisterio, buscando, ao lecionar determinada disciplina, que o ensinofosse animado "como por um espirito por todas as demais ciencias com que essaestava relacionada", de modo a realizar aquele ideal universitario proposto porPlatáo em sua Academia.A atengáo ao temperamento acompanha sempre suas consideragoes: desde amelancolía da infancia á cólera da vida adulta ("no que ele mesmo admitíapublicamente ser defeituoso", p. 92). Reconhece que pelas circunstancias adversase pelas criticas recebidas, foi impulsionado para a elaboragáo de sua obra CienciaNova.Em suma, trata-se de urna narrativa moldada pela exigencia de esclarecer suasidéias filosóficas em sua génese, elaboragáo e transmissáo. A sua existenciamarcada desde jovem por urna ardente busca da verdade, levou á continua procurade mestres e leituras, á procura de um método de uso critico da razáo fundado emprincipios diferentes do cartesianismo. De certa forma, a escrita da autobiografíaassume a fungáo de revelar a verdade do sistema filosófico de Vico em seuprocesso de produgáo.

8) Teresa de Ávila: a narrativa de "o que eu vi por mim mesma"Teresa de Cepeda e Ahumada, mais conhecida pelo nome de Teresa de Ávila(1515-1582), religiosa carmelita e reformadora desta Ordem (fundadora dascarmelitas reformadas ou descaigas), figura de destaque da teología católica e dacultura espanhola, é autora de urna autobiografía escrita para responder ao pedidode seu diretor espiritual e que reconhecidamente representa um marco na fundagáoda subjetividade moderna: o Livro da vida (1575/2010). O texto reflete aexperiencia ¡novadora da própria Teresa que foi urna presenga incomoda no mundocatólico da Espanha marcado pelo tradicionalismo. Foi decisivo para ela o apoio dealguns importantes teólogos que Ihe solicitaram a redagáo da autobiografía, tendoem vista com este documento demonstrar a ortodoxia da experiencia religiosa deTeresa; foi autora também de outros escritos de teor autobiográfico (Caminho daperfeicao; Livro das Fundacoes; O Castelo interior).O Livro da Vida (1575/2010) relata a historia de sua autora até os 52 anos deidade: trata-se de "um discurso sobre a minha vida" moldado pelo empenho em

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evidenciar com "toda claridade e verdade" a própria personalidade através de suasvicissitudes. Neste sentido, seu objetivo é o contrario de urna apología, pois elaquer evidenciar ao leitor "que fui tao ruim (...), eu só tornava a ser pior, comoparece que me esforgava em resistir as dádivas..." (p. 35). Este objetivo assimcomo a escrita reveladora da subjetividade, é parte de um contexto intersubjetivoexplícito no texto: se trata da presenga de cinco amigos-leitores "os cinco que nomomento nos amamos em Cristo" (p. 151), que se juntaram "para tirar-nos um aosoutros dos engaños e dizer o que poderíamos emendar em nos e alegrar mais aDeus. Pois nao há quem conhega tao bem a si, como conhecem aqueles que nosvéem, se for com amor e cuidado de nos beneficiar" (p. 151). E ainda, Teresademanda ao leitor que leia sua autobiografía "com a experiencia, pois, por poucaque seja logo entenderao" (p. 117). Afirma também que a escrita da própriaexperiencia nao é ¡mediata, mas é conquistada através de um longo trabalho: "pormuitos anos eu lia muitas coisas e nao entendía nada délas. E por muito tempo,embora me desse Deus a experiencia, nao sabia dizer urna palavra para explicá-la.E nao me custou isso pouco trabalho" (p. 117).A narrativa de Teresa é ao mesmo tempo moderna, em alguns aspectos, eapresenta, por outros, as características das autobiografías medievais ácimaassinaladas (Hadot, 2005). Teresa conhece a si mesma, diante de outros e diantede um Outro. Sua subjetividade moderna, por ser marcada por fortes evidenciasemocionáis que a inscrevem plenamente em seu século, ao mesmo tempo se revelaplenamente enraizada na longa tradigao da espiritualidade ocidental. O contextointersubjetivo como bergo para o desenvolvimento da subjetividade é temarecorrente da autobiografía de Teresa (1575/2010), no bem e no mal: é a relagaocom os pais que inicialmente a molda na virtude, mas é também o relacionamentocom urna párente mais velha que Ihe oferece o contexto para "estragar-me" (p.43). Na escrita da autobiografía, Teresa (1575/2010) deriva de sua experienciaconselhos ou advertencias para os leitores; ao mesmo tempo, porém, em queassinala a necessidade de mestres para realizar este percurso, reivindica acapacidade de discernir entre os bons e maus mestres e a necessidade, sempre, doconhecimento próprio; e neste ponto coloca-se novamente sua modernidade (p.126).Teresa (1575/2010) caracteriza a si mesma diferenciando-se dos outros justamentepela rebeldía, por ser diferente: ao falar de sua infancia e ao retratar a si mesmacomo parte do grupo familiar escreve "todos pareciam aos pais em ser virtuosos, anao ser eu" (p. 38). Define também como raiz de sue sofrimento e rebeldía, aperda do dominio de sua liberdade: "como sofre urna alma por perder a liberdadeque devia ter de ser senhora e quantos tormentos padece" (p. 96).Pela escrita da autobiografía ela quer evidenciar que diante da insatisfagao consigomesma, a inquietagao pela própria incompletude cuja vivencia ela define comalgumas imagens como "mar tempestuoso" (p. 86), "guerra tao penosa" (p. 87), omovimento da vontade em busca do bem, a leva a transcender os limites de suaprópria personalidade. Desse modo, indica pela sua experiencia pessoal, que asubjetividade é transformada no relacionamento com a Alteridade.A narrativa de Teresa (1575/2010) a respeito do delinear-se deste movimento davontade é de grande interesse psicológico: o ponto de partida é a relagao sensívelcom a realidade ("para mim ajudava ver o campo, ou agua, flores", p. 95), e poristo também o recurso das imagens: "tinha tao pouca habilidade para representarcoisas com o entendimento que, se nao fosse o que via, nao me adiantava nada aimaginagao" (p. 95); "por causa disto eu era tao amiga das imagens" (p. 95); "eusó podia pensar em Cristo como homem" (p. 95). Em segundo lugar, é decisiva aleitura das Confissoes de Agostinho, em cuja experiencia ela se espelha: "quandocomecei a ler as Confissoes, parecía que me via ali" (p. 96). Disto "ganhou forgas aminha alma" (p. 96). Nasce assim o "apego", e o "sentimento da presenga" doOutro, de modo tal que "de maneira nenhuma eu podia duvidar de que estivesse

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dentro de mim ou eu mergulhada nEle" (p. 98). E observando-se a si mesma nestacondigáo, Teresa relata que "a alma parece estar fora de si", "a vontade ama", "amemoria me parece estar quase perdida", "o entendimento nao discorre, a meuparecer, mas nao se perde", alias "fica como espantando com o muito que entende"(p. 98). A articulagáo de todas as potencias da alma depende da vontade. Orealismo da Teresa leva-a a reconhecer ("examinei com cuidado", p. 112) que acomplexáo corporal incide profundamente neste processo e limita o movimento davontade: "a indisposigáo corporal (...) as mudangas do tempo e as reviravoltas doshumores muitas vezes fazem com que a alma, sem culpa sua, nao possa fazer oque quer (...) e quanto mais quer me forgas nestes períodos, pior é e mais dura omal"(p. 112)O criterio para discernir que a experiencia pessoal se realiza é colocado por Teresa(1575/2010) nos termos de urna vivencia "no mais intimo" de urna "grandesatisfagáo interior e exterior" (p. 132), avahada como "a diferenga", "pois pareceque enche o vazio que tínhamos feito na alma" (p. 132). Esta vivencia acontecequando "a vontade está unida em Deus" (p. 137). E nela as potencias encontramtambém sua atuagáo, "estando elas quase totalmente unidas" (p. 148). Teresa(1575/2010) descreve também outros estados da alma em sua uniáo com aAlteridade: por exemplo, a condigáo em que as potencias ficam como quesuspensas em suas operagoes e a alma apercebe-se no interior de si mesma:quando "a vontade está bem ocupada em amar" (p. 167) e como que "se desfaz"no próprio Amado. A "soberanía" conquistada pelo eu pessoal nesta condigáo, Ihepermite "ver tudo sem ser enredado", (p. 188), num estado de liberdade plena.O que impressiona em tudo isto é a continuidade da autoconsciéncia de Teresa quevivencia e descreve sua experiencia assumindo a plena autoría de sua narrativa:"isso eu o vi por mim mesma" (p. 185).

9) Jean Jacques Rousseau: escrita de si como busca de sinceridade ejusticaA autobiografía de Rousseau é um espelho onde o autor consigna sua imagem paraque os outros possam vé-lo, inaugurando assim o estilo da confissáo própria doRomantismo. Gusdorf (1951, 1990, 1991a, 1991b), em sua clássica tese sobre adescoberta de si mesmo, refere-se á posigáo de Rousseau e dos autores modernoscomo sendo urna atitude de imanéncia consistente na investigagáo curiosa eobjetiva pela singularidade de cada individuo.Rousseau (1755-76/2009) busca descrever o estado de sua alma, mais do quepropriamente narrar os acontecimentos de sua vida: "escrevo menos a historia dosacontecimentos de minha vida do que a historia de minha alma, á medida que sederam" (p. 94). Procura nao omitir nada nem preocupar-se pelo estilo e a forma danarrativa: "direi cada coisa como a sinto, como a vejo" (p. 103); "ao entregar-meao mesmo tempo á lembranga da impressáo recebida e ao sentimento presente,pintarei duplamente o estado da minha alma, isto é no momento em que o fatoocorreu e no momento em que o descrevi" (p. 103). O objetivo que se propoe é "deoferecer urna imagem fiel de si mesmo" para que os outros homens seus leitorestambém aprendam a fazer o mesmo exercício de auto-conhecimento. Baseia-se nopressuposto de que "ninguém pode escrever a vida do homem a nao ser elemesmo. Sua maneira interior de ser, sua verdadeira vida só ele a conhece" (p. 94).Desse modo, acontecimentos e também objetos sao relacionados aos estadossubjetivos: imaginagáo, sentidos, memoria sao assim implicados no ato danarrativa.Rousseau (1755-76/2009) propoe um método de conhecer-se a si mesmo, naomais baseado em espelhar a própria vivencia numa experiencia modelar, mas aocontrario, na recusa de qualquer parámetro ou imagem ideal imposta por agentesexternos. Declara guiar-se "pela experiencia e observagáo" (p. 96) e procurandoem todas as condigoes vivenciadas ("desde os mais baixos até os mais elevados")

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(p. 96), buscar o homem: "preocupado em afastar sua mascara, reconheci-o emtoda parte" (p. 96).Segundo ele, o único ponto de comparagao que alguém deve ter ao querer narrar asi mesmo deve ser a experiencia do outro, seu semelhante: "quero tentar fazercom que se possa ter pelo menos um ponto de comparagao, que cada um possaconhecer a si mesmo e a um outro, e este outro serei eu" (p. 112). A preocupagáodo texto, segundo Rousseau (1755-76/2009), nao deve ser de propor exemplos,segundo a tradigáo anterior, e sim, a sinceridade, a fidedignidade do relato. Trata-se, portanto, de "abrir escrupulosamente todas as pregas da alma" (p. 102),seguindo "exatamente os tragos que vejo marcados" (p. 103). O objeto danarrativa é a "historia da minha alma" (p. 96), urna confissáo ("sao rigorosamenteminhas confissoes", p. 105). Nesta

Nao me esforgarei para torná-los uniformes; tereisempre o que vier espontáneamente, modificá-lo-ei segundo meu humor, sem escrúpulo, direi cadacoisa como a sinto, como a vejo, sem procura,sem sofrimento, sem embaragar-me com amiscelánea. Ao entregar-me ao mesmo tempocom a lembranga da impressáo recebida e aosentimento presente, pintarei duplamente oestado de minha alma, isto é, no momento emque o fato aconteceu e no momento em que odescrevi; meu estilo desigual e natural, orarápido, ora difuso, ora sabio e ora louco, oragrave e ora alegre, fará ele próprio parte deminha historia (pp. 103-104).

O objetivo entáo nao é a artificiosa reconstrugáo de um retrato unitario acerca desua própria pessoa: "quando escrevo nao pensó nesse conjunto, pensó apenas emdizer o que sei, e é disso que resultam o conjunto e a semelhanga do todo com oseu original" (p. 77). A narrativa brota simplesmente do fato de que "pensó de boavontade em mim mesmo e falo como pensó" (73). Pois, "sei quanto é difícildefender-se das ilusoes do coragáo, e nao engañar a si mesmo sobre os motivosque nos fazem agir. Relato simplesmente o que acreditei sentir" (p. 65).Rousseau (1755-76/2009) ilustra também alguns cuidados que ele tomou: aresolugáo de nao fazer publicar este relato enquanto ele viver, esperar para que"com o passar do tempo, os fatos que ele contém tenham-se tornado indiferentes"(p. 104), depositar o manuscrito ñas máos de pessoas confiáveis. E eis que opróprio Rousseau (1755-76/2009) revela a finalidade de suas confissoes: "que cadaleitor me imite, que mergulhe em si mesmo como eu fiz, e que no fundo de suaconsciéncia diga a si mesmo: eu sou melhor do que foi esse homem" (p. 105).Por outro lado, mesmo na declarada ausencia de criterios modelares, parámetrosideáis e juízos ("sou observador, e nao moralista", declara, p. 74), justamentedevido a esta sua sincera busca do humano, o relato de Rousseau acaba pordesvelar e por em evidencia algumas experiencias humanas fundamentáis quenorteiam todo seu dinamismo existencial: o desejo de fazer o bem (p. 73); o amorá verdade, mesmo que custosa ("sinto que o amor á verdade se me tornou maiscaro porque ele me custa", p. 123); o zelo pela justiga ("pelo interesse da justiga eda verdade", p. 137); o amor pela liberdade; a paixáo pela beleza (por exemplo, amúsica) e, sobretudo, o desejo do amor e da amizade, raramente correspondidos(3). Para referir-se a este desejo Rousseau (1755-76/2009) usa acentoscomovidos:

Eu fora feito para ser o melhor amigo que játivesse existido, mas aquele que deveria retribuir-me está assim por vir. Ai de mim, estou na idadeem que o coragáo comega a retrair-se e nao se

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abre mais a novas amizades. Adeus, pois, docesentimento que tanto procurei, é tarde demaispara ser feliz (p. 80).

Desejo da amizade feita de "doce sentimento, terna com fianga" (p. 83) naocorrespondido, mas que sempre retorna, suscitando esperanga por novosencontros:

Esta casa possivelmente contém um homem feitopara ser meu amigo. Urna pessoa digna de minhahomenagem passeia talvez todos os dias nesseparque (p. 83).

A experiencia do amor é retratada líricamente em seu expressar-se na forma de umcomovido silencio diante da presenga da mulher amada: "nao fazíamos, o menormovimento; um silencio profundo reinava entre nos" (p. 117), "meu coragao estavaem paz diante déla; nao desejava mais nada" (p. 117); diante desta presenga"teria passado minha vida inteira, teria passado a eternidade sem nada maisdesejar" (p. 117).Numa carta ao Senhor de Malesherbes, escrita em 1762, Rousseau (1755-76/2009)relata a experiencia da "tristeza sedutora" de certos momentos vividos em que elepercebe que

mesmo que todos os meus sonhos se tivessemtornado realidade, eles nao me teriam bastado;eu teria imaginado, sonhado, desejado ainda.Encontrava em mim um vazio inexplicável quenada teria podido preencher, um certo ímpeto docoragao para um outro tipo de gozo do qual naotinha a menor idéia e do qual, contudo, sentia anecessidade. (...) Meu coragao, encerrado noslimites dos seres, sentia-se por demais aperlado,eu sufocava no universo, teria desejado langar-me no infinito (p. 41).

As últimas páginas dos escritos de Rousseau (1755-76/2009) revelam o fracasso doprojeto autobiográfico: como tal pelo menos é percebido pelo autor. Rousseau(1755-76/2009), ao reler suas anotagoes, revela ter sido tomado pelo "vivosentimento das minhas infelicidades", o qual Ihe "sufoca toda a atengao" que seriaexigida pela reflexao e a escrita: a impossibilidade de interlocugao e detranscendencia impossibilitam em última análise o auto-conhecimento. "Enquantoforgo meus olhos a seguir as linhas, meu coragao, oprimido, geme e suspira" (p.136). De modo que, "após freqüentes e vaos esforgos, renuncio a este trabalho doqual me sinto incapaz e, por nao poder fazer melhor, limito-me a transcrever estesinformes ensaios que nao tenho condigoes de corrigir" (p. 136). Sua vida, entao,Ihe parece "um longo devaneio dividido em capítulos pelos meus passeios de cadadia" (p. 165). O sentimento de angustia que declara acompanhar sua narrativa, orelatado abandono dos que crera amigos, a impossibilidade da felicidadecomprovada pela experiencia, o apelo sem esperanga a um depositariodesconhecido da revelagao de sua alma e de suas memorias, a percepgao de umabismo ¡menso entre ele e os outros: todos estes fatores o levam a desconfiardefinitivamente que os seres humanos saibam reconhece-lo e fazer-lhe justiga.Rousseau volta-se entao num apelo final ao Juízo divino: já sabe que o seu livroacabará quando se aproximar do fim da vida e nesta iminéncia, "enquanto a passolento a morte avanga (...) e me faz ver e sentir, sem pressa, a sua lentaaproximagao" (p. 178).Comenta Moretto (2009), acerca de Rousseau:

urna faceta de seu universo se opoe ao universode seus contemporáneos: diante da sociedade doséculo XVIII, que vive os prazeres do dia a dia e

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se acomoda ao intelectualizado pensamento dafelicidade possível, do melhor dos mundospossíveis, ergue-se a exigente figura de Rousseauque pede nao mais urna felicidade relativa, massim urna felicidade total, que exige o Absoluto (p.11).

Conclusao: autobiografía, género complexoÁ luz dos posicionamentos expressos pelos autores citados neste breve percursohistórico, consideramos que o uso das fontes autobiográficas no ámbito da historiados saberes psicológicos, deva atentar para as diferengas de concepgáo econstrugáo da narrativa decorrentes seja pela intengáo dos autores seja pelascaracterísticas inerentes ao contexto histórico de sua produgáo. Do ponto de vistametodológico, isto implica a necessidade de colher nestas fontes algumascaracterísticas comuns que as inscrevem num género próprio e ao mesmo tempotoma-las enquanto reflexos de modalidades diferentes de apreender e elaborar aexperiencia psicológica, que podem ser reconhecidas ao longo da historia da culturaocidental.Desse modo, o percurso aqui realizado evidencia a complexidade e a riqueza daautobiografía enquanto género literario específico e aponta sua riqueza enquantofonte multifacetada para a historia dos saberes psicológicos: documentosexpressivos de diversas modalidades de se posicionar diante da experiencia pessoale de empreender o processo do conhecimento; e ao mesmo tempo manifestagoesdas transformagoes vivenciadas pela cultura ocidental no que diz respeito ao estudoda subjetividade e perante o desafio do ser humano ser ao mesmo tempo sujeito eobjeto de saber.

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Notas(1) Por núcleo da pessoa Edith Stein (1932-3/2000) entende "o fundo da alma", um"ponto no espago da alma onde o eu encontra o seu lugar próprio, o lugar de suapaz que deve procurar até encontrá-lo e aonde sempre deve voltar quando oabandona, o ponto mais profundo da alma", onde ela pode recolher-se, tomardecisoes: o "eu pessoal" (p. 132). Giussani (2009) define este núcleo deexperiencia elementar: "qualquer afirmagao de urna pessoa, desde a mais banal ecotidiana á mais ponderada e plena de conseqüéncias, só pode ser feita tendo porbase esse núcleo de evidencias e exigencias origináis" (p. 25).(2) No decorrer da Modernidade, esta mudanga de mentalidade será explicitadapelo cogito e pela dúvida metódica de Descartes (Zambrano, 1943/1995). Aevidencia da consciéncia em Descartes é a revelagao da solidao interior do sujeito:no dinamismo de auto-conhecimento por ele proposto, a consciéncia elimina tudo oque nao for ela mesma.(3) Trata-se daquela "experiencia original" a que Giussani (2009) se refere comosendo a estrutura constitutiva da experiencia humana: "conjunto de evidencias eexigencias origináis" a que "podem ser dados muitos nomes, por meio de diversasexpressoes, como: exigencia de felicidade, exigencia de verdade, exigencia dejustiga, e outras" (p. 25).

Nota sobre a autoraMarina Massimi é Professora Titular e trabalha junto ao Departamento de Psicologíae Educagao na Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de SaoPaulo, Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Especialista na área de Historia das IdéiasPsicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Departamento de Psicología eEducagao. Avenida Bandeirantes, 3900, CEP 14040-901, Ribeirao Preto (SP) /Brasil. E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 07/04/2011Data de aceite: 10/05/2011

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Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teórico- 2\metodológicos e suas agoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum,20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01

Helena Antipoff, seus pressupostos teórico-metodológicos e suas acóes na educacáo dos

"excepcionais" no Brasil

Helena Antipoff, her theoretical-methodological assumptions and heractions in the education of "exceptional children" in Brazil

Heulalia Charalo RafanteRoseli Esquerdo Lopes

Universidade Federal de Sao CarlosBrasil

ResumoTrata-se de urna pesquisa histórica, baseada em fontes documentáis e no estudobiográfico de Helena Antipoff, em que se procurou elementos que trouxessem paraa historia da psicología e da educagao urna contribuigao sobre quem foi HelenaAntipoff e quais os pressupostos teórico-metodológicos da sua formagaoprofissional, pressupostos sobre os quais assentará suas proposigoes de agoestécnicas no campo. O texto traz os caminhos percorridos por ela desde seu país deorigem, a Rússia até receber o convite para trabalhar no Brasil. Além disso, o artigotraz elementos que esclarecem as motivagoes para a sua vinda para o Brasil, assuas atividades no ensino brasileiro na década de 1930 e os caminhos quedirecionaram suas agoes para a educagao dos "excepcionais". Apresenta tambémurna síntese das agoes de Helena Antipoff no Brasil na área da Educagao Especial. Apartir dessa trajetória, foi possível colocar em tela quem foi Helena Antipoff e quaisos principios educativos endossados por ela e, ainda, tragar um panorama de suasagoes voltadas para a Educagao dos "excepcionais" na realidade brasileira.

Palavras-chave: Helena Antipoff; Historia da Psicología; Historia da Educagao.

AbstractThis is a historical research based on documentary sources and on a biographicalstudy on Helena Antipoff, which sought elements that would bring contributions tothe history of psychology and education as to whom Helena Antipoff was and whichwere the theoretical and methodological assumptions upon which she based herproposals and technical actions in the field. The text provides the paths taken byher since she was in her home country, Russia, until she received the invitation towork in Brazil. In addition, the article sought to bring elements that clarify herreasons for coming to Brazil, her activities in the Brazilian education in the 1930s,and the paths that guided her actions towards the education of "exceptionalchildren". Finally, it presents a summary of Helena Antipoff's actions in Brazil in theárea of Special Education. From this trajectory, it was possible to delinéate whoHelena Antipoff was and what educational principies she endorsed, and also toprovide an overview of her actions towards the education of "exceptional children"in the Brazilian context.

Keywords: Helena Antipoff; history of psychology; history of education.

1. IntroducáoA Historia se mostrou como um caminho de pesquisa a partir do objeto de estudoque nos dedicamos a analisar (1). Trata-se da atuagao de Helena Antipoff no Brasil,que teve inicio em 1929, quando a educadora chegou em Minas Gerais paratrabalhar no sistema de ensino desse estado e se estendeu até o seu falecimento,

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em 1974. O interesse sobre esse tema se originou no ano de 1999, quando, nadisciplina de Didática, ministrada pelo Professor Doutor Luiz Carlos Villalta, no cursode historia, da Universidade Federal de Ouro Preto, fomos apresentadas á HelenaAntipoff, por meio de um texto da Professora Doutora Regina Helena FreitasCampos (1995) que, além de trazer a trajetória da educadora e seus principioscientíficos, destacou suas pesquisas junto aos alunos das escolas públicas de BeloHorizonte, na década de 1930, e as instituigoes criadas por ela para atender ascriangas consideradas "excepcionais". Fomos instigadas á pesquisa por essasprimeiras informagoes e, também, pela existencia de um rico acervo documentalpreservado na Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais,coordenado pela referida professora, e na Fundagao Helena Antipoff, localizada emIbirité (MG). Atraídas por essas possibilidades, fomos adentrando um territorio,cientes de que "a tarefa de enfrentar a Historia é arriscada; os problemas brotamde todos os lados e ganham as mais diferentes formas" (Warde, 1990, p. 03).Desde entao, temos nos dedicado a essa tarefa, buscando referencias em diversosautores, trocando informagoes com outros pesquisadores, munidas da vontade deresgatar e conhecer a atuagao de Helena Antipoff em nosso país.Marrou (1978) nos ensina que "a historia é o combate do espirito, urna aventura e,como todas as proezas humanas, só alcanga sucessos parciais, inteiramenterelativos, que nao sao proporcionáis á ambigao inicial" (p. 46). Trata-se de umuniverso complexo, no qual existe urna "rede fechada de relagoes, onde as causasprolongam seus efeitos, onde as conseqüéncias se cortam, se amarram, secombatem, onde o menor fato é o ponto de confluencia de urna serie convergentede reagoes em cadeia" (p. 46). Tentar apreender essa complexidade, exigedaqueles que se aventuram no campo da historia urna vontade intrínseca de sedebrugar exaustivamente sobre a pesquisa, a leitura e o conhecimento do mundo,urna vez que "todo problema de historia, por mais limitado que seja, postula, passoa passo, o conhecimento de toda a historia universal" (p. 46). Justamente poressas características, Marrou endossa o que disse o romancista inglés RobertGraves: "A historia é um esporte para a idade madura" (p. 64).Nao estávamos erradas ao nos encantar pelas possibilidades documentáis que avida de Helena Antipoff nos havia deixado, porém, fomos compreendendo que ahistoria nao se elabora simplesmente pela existencia dos documentos, mas porescolhas, delimitagoes e pela forma como se concebe um determinado tema, urnavez que os documentos nao falam por si:

A historia é a resposta a urna questao proposta aopassado misterioso, pela curiosidade, pelainquietagao (...) pela inteligencia, pelo espirito dohistoriador. O passado apresenta-se-lhe, antes detudo, como um vago fantasma, sem forma ouconsistencia; para que o tenhamos ñas maos épreciso apertá-lo bem numa rede de questoes deque nao possa escapar, obrigá-lo a confessar(Marrou, 1978, p. 49).

Marc Bloch (1949/2002), ao constatar a subordinagao do historiador ao passado, jáque está condenado a conhecé-lo exclusivamente por meio dos seus "vestigios",também impoe um questionamento ao passado, "pois os textos ou os documentosarqueológicos (...) nao falam senao quando sabemos interrogá-lo" (p. 79) sendoque, para ele, esse encaminhamento é "a primeira necessidade de qualquerpesquisa histórica bem conduzida" (p.78), urna vez que o passado bem interrogadonos permite "saber sobre ele muito mais do que ele julgara sensato nos dar aconhecer" (p.78).Diante desse desafio que o passado nos impoe e, na tentativa de dar urna diregao ánossa busca documental, levantamos as questoes de pesquisa que orientaram aelaboragao deste artigo: quem foi Helena Antipoff; quais foram os pressupostos

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teórico-metodológicos da sua formagao como psicóloga e educadora; quais asrazoes de sua vinda para o Brasil, em 1929; que motivagoes a levaram a se dedicará educagao dos "excepcionais" e como ela buscou viabilizar essa educagao noBrasil. Ao responder a essas questoes, o objetivo foi compreender quem foi HelenaAntipoff e a sua participagao no desenvolvimento da Educagao Especial em nossopaís.Para a realizagao de nossas pesquisas, os documentos preservados na FundagaoHelena Antipoff (2), em Ibirité, e no Centro de Documentagao e Pesquisa HelenaAntipoff [CDPHA] (3) - situado na Biblioteca Central da Universidade Federal deMinas Gerais, foram fundamentáis. Em nossa garimpagem pelos dois acervos,levantamos um material para cobrir as questoes da pesquisa. Trata-se de umvariado corpus documental, do qual fazem parte os Estatutos da SociedadePestalozzi de Minas Gerais; Boletim da Secretaria da Educagao e Saúde Pública deMinas Gerais, que, de 1929 a 1937, publicou textos monográficos de diferentesautores, tratando de temas relacionados á psicología experimental, á deficienciamental, visual e auditiva, e á organizagao das classes homogéneas; RevistaInfancia Excepcional - publicagao semestral da Sociedade Pestalozzi de MinasGerias. Completam esse aparado documental as Coletáneas de Obras Escritas deHelena Antipoff, organizadas pelo Centro de Documentagao e Pesquisa HelenaAntipoff [CDPHA] da Universidade Federal de Minas Gerais, em comemoragao aocentenario do nascimento da educadora, compondo cinco volumes, publicados em1992, agrupados sob as seguintes temáticas, que os nomeiam: PsicologíaExperimental, Fundamentos da Educagao, Educagao do Excepcional, EducagaoRural, Educagao do Bem-Dotado.Para o levantamento das fontes, no CDPAH dispomos do catálogo dos documentos,o que facilitou a selegao preliminar. No Centro de Documentagao da FundagaoHelena Antipoff, a colaboragao dos responsáveis foi imprescindível, urna vez que omesmo encontra-se em fase de organizagao e esse trabalho era interrompido paraa localizagao dos documentos de que necessitávamos. Para tornar mais ágil oregistro dos documentos, utilizamos urna camera fotográfica digital, o queviabilizou um período maior para a análise dos documentos, que nao foi feita inloco.Cada vez que retornávamos da pesquisa de campo, era o momento de organizar asfotos em arquivos digitais. Além das pastas devidamente categorizadas,elaboramos urna planilha com a descrigao de todos os documentos, com osprincipáis conteúdos de cada um, indicando a pasta onde estavam arquivados,acompanhados pela numeragao da seqüéncia de fotos correspondentes.Estabelecemos categorías que foram atribuidas as respectivas fontes descritas naplanilha e, no momento da escrita do texto, transformaram-se em instrumento debusca sobre os temas a serem tratados.

2. Helena Antipoff - urna "Mulher do Mundo"No primeiro momento da nossa investigagao, acompanhamos a trajetória de HelenaAntipoff numa tentativa de conhecer um pouco de sua pessoa e apresentar ao leitorum retrato dessa educadora que se considerava urna "mulher do mundo" (4) e quese destacou no cenário brasileiro, passando a maior parte de sua vida no Brasil.Acompanhar um percurso de vida pode fazer emergir tanto a vida individual quantoo contexto social em que viveu o individuo, e isto depende da maneira como apesquisa é desenvolvida (Queiroz, 1988). Partindo desse pressuposto, utilizamos,como fonte, no estudo da pessoa de Helena Antipoff, a sua biografía (D. Antipoff,1975), que apresenta sua vida particular, destacando o que ela fez e disse atravésdo tempo, em variadas circunstancias. Apesar de haver atingido a sociedade emque viveu a educadora, isto foi feito para explicar seus comportamentos e as fasesde sua existencia individual.

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A Helena Antipoff que apresentamos nos parágrafos seguintes é resultado de urnaconjugagao de imagens: por um lado, aquela imagem que ela tinha de si (5) e quefoi passada para o filho; por outro lado, a imagem que o filho conseguiu captar damae a partir de sua vivencia ao lado déla. Finalmente, deve ser considerado o filtrodo nosso olhar, que procurou trazer á tona momentos que nos surpreenderamquando enxergamos para além da educadora e que, de alguma forma, nosinfluenciaram na análise de sua agao.Assim, antes de nos remetermos á Helena Antipoff psicóloga e educadora, suaformagao e sua atuagao, antes de acompanhar seu percurso profissional com ointuito de problematizar seu trabalho com as criangas brasileiras, optamos porrecortar alguns momentos de sua vida no sentido de aproximar o nosso olhar eampliar a nossa visao a seu respeito. Acreditamos que, para fazer urna abordagemampia de sua agao, é necessário conhecé-la sob o leque de perspectivas querecobriu sua trajetória.Ainda, é importante frisar que partimos de um documento elaborado pelo filho daeducadora, impregnado de suas emogoes, cuja relagao filial, certamente,influenciou seu posicionamento crítico em relagao á trajetória da educadora,levando a urna "romantizagao" da mesma. Na análise desse documento, atentamospara essa característica do material e procuramos trazer elementos querespondessem as questoes de pesquisa aqui colocadas, complementando asinformagoes com dados levantados por outros pesquisadores (Campos, 2002,2010a, 2010b) e, também, por documentos que encontramos nos acervossupracitados.Helena Wladimirna Antipoff nasceu em Grodno na Rússia em 1892 e viveu até 1908em Sao Petersburgo. Sua mae, Sofia Constantinovna, estudou no "Instituto paraMogas da Nobreza", em Lodz, onde se formou em pedagogía, adquirindoconhecimentos em línguas estrangeiras, falava o francés e o alemao. Seu pai,Wladimir Vassilevitch Antipoff, era filho de rico industrial, mas seguiu outrocaminho, preferindo o curso na Academia do Estado-Maior, destacando-se nacarreira militar, chegando ao posto de coronel antes de completar os 40 anos (D.Antipoff, 1975, pp. 19-20).Entre as principáis características de Helena Antipoff, destacam-se: a sede pelosaber e seu espirito científico, que já se faziam presentes desde sua infancia eencontraram, no ambiente familiar e na escola, terrenos férteis para sedesenvolver. Na escola secundaria, Helena Antipoff "passa horas seguidas emlaboratorios bem montados, observando e anotando com a máxima objetividade osfatos. Acostuma-se a somente considerar como verdadeiro aquilo que é suscetívelde" (D. Antipoff, 1975, p. 22). Os presentes de aniversario eram livros, muitosencomendados no estrangeiro, e algumas horas por dia e os feriados, eramdedicados á leitura na casa dos Antipoff, "urna familia de élite que valorizava aeducagao e a cultura geral" (Campos, 2010b, p. 90).O espirito científico acompanhou a educadora em toda a sua vida, que, sendomarcada pela "necessidade de adaptagao em contextos diversos, sempre acuriosidade científica Ihe aparecía como a porta de entrada, a condigao depossibilidade de compreender o estranho e de se fazer conhecer" (Campos, 2002,p. 30).A vontade de se dedicar á ciencia era predominante e Helena Antipoff sediferenciava da maioria das mulheres de seu tempo. Podemos perceber esseencaminhamento em varios momentos de sua vivencia, inclusive desde o períododa juventude. Ao estudarmos os primeiros anos de Helena Antipoff em Paris, paraonde se mudara com a mae e a irma em 1909, quando tinha 17 anos, nosdeparamos com a seguinte passagem, referindo-se a ela e a duas amigas.

As tres, na flor da idade para levarem urna vidade mogas, atentas a possíveis galanteios,caracterizavam-se por urna mentalidade fora do

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comum. Consideravam que a cultura e o estudoaprofundado sao os elementos essenciais para asua vida de jovens, julgavam ter urna missáo naárea profissional também. Convivendo comrapazes e amigos, também universitarios, pareceque nao fazem do casamento a meta essencial davida (D. Antipoff, 1975, pp. 31-32).

A mudanga de Helena com sua mae e irmá para Paris havia sido motivada portensoes políticas na Rússia, decorrentes dos conflitos entre a autocracia do czarNicolau II e as demandas por democracia e por um regime parlamentar, por parteda sociedade, as quais provocavam inseguranga e medo com relagáo a ummovimento revolucionario. Além disso, a idéia da familia Antipoff como a de muitasfamilias russas abastadas era "procurar oportunidades de estudo para os filhos naEuropa ocidental" (Campos, 2010a, pp. 14-15).Foi nesse período que Helena Antipoff comegou a experimentar sua independencia,realizando urna viagem de ferias para a Inglaterra, contrariando a argumentagáo damae, que insistía em persuadi-la a nao viajar, já que "naquela época, realmenteera urna coisa ousada urna moga, jovem ainda, viajar sozinha e passar por cimados preconceitos sociais" (D. Antipoff, 1975, p. 33). Ela viajou em julho de 1911 eficou naquele país por quase tres meses, ministrando aulas de francés na residenciade urna familia inglesa.Essa postura independente se manifestou em outras situagoes. Em 1916, ela haviaconcluido seu curso no Instituto Jean-Jacques Rousseau e trabalhava comoassistente de Edouard Claparéde, médico e psicólogo suígo. O contato de Antipoffcom Claparéde, segundo Campos (2010a), foi crucial no desenvolvimento da visáoda educadora a respeito das relagoes entre inteligencia e educagáo.Nessa época, estava em curso a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), queenvolveu tanto os países industrializados da Europa, quanto o imperio russo, cujaindustria ainda se encontrava em fase de desenvolvimento. A Rússia vivia o regimeczarista, sob o governo autocrático de Nicolau I I . O povo era oprimido "pelacensura (...), a prisáo, o trabalho forgado na Sibéria e até mesmo pelasexcomunhoes por parte do clero" (D. Antipoff, 1975, pp. 22-23). As classes sociais,excetuando a aristocracia "ligada ainda ao czar" e "os militares credenciados nacorte" (D. Antipoff, 1975, p. 26), estavam descontentes, pois camponeses eoperarios viviam em condigoes de miseria, e a burguesía encontrava-se insatisfeitadiante da incapacidade de um regime arcaico que configurava um obstáculo aosseus progressos. O envolvimento da Rússia na conflagragao mundial agrava os seusproblemas internos, desorganizando a economía e intensificando os conflitos declasses: camponeses e proprietários; operarios e burgueses (Crouzet, 1958).A opressao, o descontentamente e os conflitos, em um momento de guerra,criaram um clima de instabilidade política, no qual se preparava movimentos deinsurreigao contra o governo: "Os escritos de Marx, as exortagoes de novos líderespopulares, entre os quais Trotsky e Lenine, produziam inquietagoes e semeavam opánico no seio da classe privilegiada" (D. Antipoff, 1975, p. 27).A Rússia passava por um momento crítico: os exércitos russos lutavam contra astropas alemas, enquanto o povo injustigado e faminto se revoltava contra ogoverno czarista. Helena Antipoff se impacientava com as leituras dos jomáis,buscando noticias da Rússia e pensando no pai á frente do exército russo. Aoreceber a informagáo de que o pai estava gravemente ferido e, diante de todas asdificuldades que um contexto bélico podia oferecer, empreendeu a viagem de voltaá Rússia:

Vai ao consulado, consulta companhias detransporte marítimo. Em todos os lugares éaconselhada a desistir daquela viagem sozinha,mormente tratando-se de um período táo confuso

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em todos os países que teria de atravessar. Naprópria Rússia estaría sem nenhuma garantía deseguranga, devido as insurreigoes internas (D.Antipoff, 1975, p. 46).

Mesmo considerando esses riscos, Helena Antipoff seguiu com seu objetivo deauxiliar o pai, viajando para a Rússia sem nenhuma pista de onde ele poderia estar.Ao chegar ao país, tomado pelos levantes revolucionarios contra o czarismo,comegou urna peregrinagao pelos hospitais, as vezes viajando dias de trem emcondigoes precarias. Encontra o pai em estado de inconsciencia.

A magreza daquele homem de cinqüenta anos,provocada por mais de dez dias sem alimentosólido, tornava-o irreconhecível. Helenarepentinamente lembra urna particularidade damao do pai - o polegar da mao esquerdaligeiramente atrofiado devido a um acídente nainfancia. Levanta o cobertor á procura do indicio.A mao também está enfaixada, mas o polegaraparece-lhe nítidamente com aquele corte dodedo (D. Antipoff, 1975, p. 62).

Mesmo em condigoes tao desfavoráveis, o Coronel Wladimir Antipoff conseguiu serecuperar. Antipoff permaneceu na Rússia até 1924. Nesse quadro, se operaramtransformagoes na Rússia: a monarquía havia sido derrubada e substituida nopoder por um governo provisorio, que representou um regime dualista: de um ladoo governo "legal", porém fraco, articulado aos interesses da burguesía liberal e deoutro, o Soviete (6), ao qual os bolcheviques (7) estavam ligados, pressionandoaquele governo que, comprometido com seus aliados franceses e ingleses, mantevea Rússia na guerra.Tal insistencia do governo "legal" de manter a Rússia no confuto contribuiu para ofortalecí mentó dos bolcheviques, cujo programa consistía: na paz; na libertagao dasnacionalidades alógenas (oprimidas pelo regime czarista); nacionalizagao dosbancos e das grandes empresas; da expropriagao das propriedades de térra; e docontrole da produgao, por parte dos proletarios. Os bolcheviques derrubaram ogoverno provisorio "legal", por meio de um levante que passou á historia comoRevolugao Russa, em outubro de 1917.O ano de 1917 marcou na Rússia a insurreigao popular e a revolugao que instalouos bolcheviques no poder. "Foi também data das grandes violencias e horrores porparte de urna plebe injustigada e faminta" (D. Antipoff, 1975, p. 69). Nesseperíodo, gostaríamos de destacar mais dois episodios que nos ajudaram a conhecermelhor a figura humana da educadora. Em 1918, Helena Antipoff e o jornalistaVítor Iretzky se uniram em "casamento informal" e, no ano seguinte, nasceu o filhodo casal. Era um período crítico na Rússia, caracterizado por um governoconturbado que se esforgava para conduzir a Rússia ao socialismo. Porém, atransformagao do velho imperio em um país socialista custou ao governo de Léninegrandes sacrificios: a luta contra opositores internos (os contra-revolucionarios); asintervengoes estrangeiras (principalmente logo após o governo bolchevique retirara Rússia da guerra, através de um tratado de paz, em separado, com a Alemanha);a elaboragao da Nova Política Económica (N.E.P.), urna tentativa de superar a criseinterna, que se agravara com a guerra civil; a fome, que "se espalha por todos oslados, nao há o que comer. Quem arranja um pouco de pao sabe que a quartaparte é constituida de serragem de madeira" (D. Antipoff, 1975, p. 70).No cenário das convulsoes que se seguiram á Revolugao de Outubro, nasceu o filhode Helena Antipoff que, apesar de ter nascido saudável, tornou-se um meninomuito magro, a ponto de ser levado a um laboratorio de anatomía, sendo expostocomo amostra de raquitismo, mas nem assim a mae conseguiu obter auxilio para

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alimentá-lo. A ajuda veio de uma camponesa que havia perdido um filho da mesmaidade e acabou alimentando a crianga por dois meses (D. Antipoff, 1975, p. 71).Em 1919, o jornalista Vítor Iretzky, marido de Antipoff foi preso e, como outrostantos "intelectuais", passou a ser considerado "inimigo do povo": sua punigao foi oexilio na Alemanha, tendo sido extraditado em 1922. Helena Antipoff permaneceuna Rússia até 1924 e, ao ir para a Alemanha encontrar-se com o marido, teve "deoptar por uma nova nacionalidade, visto que saindo da Rússia, perde o status decidada da URSS, conforme o diz o último carimbo aposto ao passaporte de HelenaAntipoff" (D. Antipoff, 1975, p. 85).Mas sua nova nacionalidade nao seria alema, uma vez que ela permaneceu poucotempo naquele país. Em Janeiro de 1925, deixou o marido na Alemanha edesembarcou com o filho em Genebra, onde permaneceu até sua partida para oBrasil, em 1929. Com a permanencia prevista para dois anos, acabou vivendo amaior parte de sua vida aqui. Quando Ihe perguntam se se sentia brasileira ourussa, respondeu:

Sou russa, mas antes de tudo sou mulher domundo - brasileira, francesa, argentina, tudo.Mas nasci na Rússia. Sinto muita saudade daRússia. Depois que sai, nunca mais voltei. Pensómuito nos campos da Rússia, ñas árvores e nosbosques. Dou meus passeios por lá, empensamento (H. Antipoff citado por D. Antipoff,1975, p. 175).

Um impasse se impós para Helena Antipoff ante sua decisao de passar dois anos noBrasil. Tratava-se do futuro do filho, Daniel Antipoff, que estava com dez anos deidade. A preocupagao colocou-se em termos educacionais, pois as informagoes deLeón Walther, psicólogo do Instituto Jean-Jacques Rousseau que viajou ao Brasilantes déla, a esse respeito, nao pareciam atender as suas expectativas:

Pelas informagoes obtidas de Walther, o ensinoem Minas Gerais está incipiente, ainda em faseexperimental. A maioria do magisterio éconstituida de mulheres, recém-formadas emescolas normáis. Há ausencia de professoressecundarios diplomados, a maioria autodidata (D.Antipoff, 1975, p. 98).

A solugao que se apresentou consistía em deixar a crianga na Europa para darcontinuidade á educagao já iniciada, "na condigao de interno provavelmente" (D.Antipoff, 1975, p. 98). Para concretizar essa possibilidade, Helena Antipoff procurouuma ex-aluna do Instituto Jean-Jacques Rousseau, que, terminando seu curso,pretendia abrir uma escola em regime de internato. Diante da proposta de "servirde segunda mae e dar ao menino a primeira matrícula na escola que iria organizar"(D. Antipoff, 1975, p. 98). Marguerite Soubeyran se entusiasmou e se mobilizoupara angariar fundos e viabilizar a instituigao sob "as características da escola nova,preconizada por Claparéde" (D. Antipoff, 1975, p. 99).Pagando adiantado a pensao do filho, que foi o primeiro aluno matriculado naescola internato de Maggi Soubeyran, Helena Antipoff deixou a Europa e seguiurumo ao Novo Mundo, em 1929. A estadía prevista para dois anos vai seestendendo e, com isso, mae e filho ficaram separados por quase dez anos. DanielAntipoff só se transferiu para o Brasil em 1938, devido á iminéncia da SegundaGuerra Mundial.Estamos diante de uma mulher cujo espirito científico se manifestou muito cedo,sendo desenvolvido desde a infancia. Integrando uma familia privilegiada, nao foipoupada dos percalgos da Primeira Guerra e da Revolugao Russa, fazendo dessesmomentos difíceis oportunidades para colocar em prática seus conhecimentos,como veremos mais adiante. A crenga na ciencia se fez tao forte em sua trajetória

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que, quando se transferiu para o Brasil, o filho ficou na Europa para ser educadonum internato que adotava a nova pedagogía, a pedagogía experimental.

3. Helena Antipoff - caminhos para a Psicología e para a EducacaoAo deixar a Rússia pela primeira vez em 1909, Helena Antipoff já havia concluido oensino secundario e o normal complementar. Ao chegar em Paris, buscou validar osseus diplomas para ingressar no ensino superior, nesse momento "ainda nao sabeexatamente qual o curso que irá seguir, embora em outras épocas houvessepensado no magisterio" (D. Antipoff, 1975, p. 31).Segundo Daniel Antipoff, inicialmente ela se direcionou para o curso de medicina,na Universidade de Sorbonne, mas considerou as aulas de anatomía e fisiologíadesinteressantes. Foi quando comegou a freqüentar as aulas de Pierre Janet eHenry Bérgson, no Collége de France e, a partir daí, a psicología passou a ser ofoco de seu interesse.

Ainda que urna ciencia nova, a psicología aempolga pela maneira como é discutida poraqueles mestres (...). A psicología Ihe pareceemocionante e o que Ihe agrada, sobretudo, énela enxergar urna capacidade de resolverteóricamente urna serie de situagoes (D. Antipoff,1975, p. 38).

O interesse pela psicología parece ter surgido durante sua passagem pelaInglaterra. No período de tres meses em que permaneceu naquele país, em 1911,antes de iniciar as aulas na Sorbonne, fez um estágio de algumas semanas na SaintHelen's School, na cidade de Blackheath. Tratava-se de um educandário parameninos que apresentavam problemas neurológicos, gerando dificuldades nosestudos e na convivencia familiar. Preocupada com essas changas, ela sequestionou se a medicina ou outra ciencia nao poderia ajudar no atendimentodispensado a elas.

Assim, o valor daquele estágio constituí paraHelena mais um motivo de indagagoes do que desatisfagao. Na escola de Blackheath apenas estáposto um problema, faltando solucioná-lo. (...)além do médico e do psiquiatra, deve haver outrotipo de técnico, atento aos problemas do doente.Urna metodología diferente deveria serintroduzida e talvez o famoso Alfred Binetpudesse emitir opinioes valiosas (D. Antipoff,1975, p. 37).

No inicio do século XX, Alfred Binet estudava a psicología infantil no Laboratorio dePsicología da Sorbonne e suas pesquisas focavam o desenvolvimento mental dascriangas em escolas primarias de Paris. Em 1904, Binet chou um Laboratorio dePedagogía Experimental numa escola parisiense, apoiado pela Sociéte Libre pourl'Étude de l'Enfant, para que ele e seus colaboradores tivessem o contato com osescolares e pudessem testar a escala de medida da inteligencia, em elaboragao.Resultou dessas pesquisas a primeira versao da Escala Métrica Binet Simón,apresentada em 1905. A padronizagao desses testes, por meio da aplicagao eanálise dos resultados, requería o envolvimento de muitos pesquisadores. HelenaAntipoff, ao retornar da Inglaterra, passou a freqüentar o curso de medicina daSorbonne e se aproximou da psicología, devido á sua participagao dos seminariosministrados pelos filósofos e psicólogos franceses Henri Bérgson e Pierre Janet e,também, colaborou na padronizagao dos testes, tendo iniciado as suas atividadesem 1911 (Campos, 2010b). Binet havia falecido naquele ano, Antipoff foi recebidapor Théodore Simón, que a aceitou como estagiária do laboratorio de PedagogíaExperimental.

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Foi no trabalho com a padronizagao dos testes Binet-Simon que Antipoff conheceuEdouard Claparéde, da Universidade de Genebra, que a convidou para fazer partedo Instituto Jean-Jacques Rousseau, que pretendía ser "ao mesmo tempo urnaescola das ciencias da educagao (aberta a todos que se dedicavam ao ensino) e umlaboratorio de pesquisas" (Claparéde, 1953, p. 97). Diante do convite, HelenaAntipoff deixou o curso de medicina e seguiu para o Instituí des Sciences del'Education, da Universidade de Genebra, onde obteve, entre 1912 e 1914, acertificagao dos seus estudos, conforme diploma emitido pelo Instituto (1914):

Instituto J. J. Rousseau. École des Sciences deL'Education.DIPLOME - Madame Hélene Antipoff de Russia aété inscrit a l'Institut J. J. Rousseau en qualitéd'éléve regulier pendant quatre semestres. Me. asuivi les cours et pris une part active aux travauxpratiques que comporte le plan d'etudes. Elleprouvé qu'elle a pleinement profité de cetenseignement. Geneve, 15 de juillet 1914.Assinado por Claparéde (s. p.). (8)

A Europa, nesse período, no campo educacional, estava passando por ummovimento de renovagao, impulsionado pelas mudangas políticas iniciadas noséculo XVIII com a Revolugao Francesa. Diante dos processos de ampliagao doacesso á escola, urna questao se colocava aos educadores: como trabalhar com asdiferengas individuáis e ainda contribuir para a reprodugao da divisao social dotrabalho? Segundo Campos (2002),

essas tensoes estavam presentes e seintensificavam nos sistemas de ensino de massa,construidos, na verdade, sob a pressao dedemandas contraditórias: a pressao daspopulagoes trabalhadoras e das carnadas mediaspela ampliagao do acesso as oportunidadeseducacionais e a pressao das élites dirigentes pelaformagao para o trabalho ñas modernassociedades industriáis (p. 16).

O Laboratorio Binet-Simon e o Instituto Jean-Jacques Rousseau estavam envolvidosnesse movimento de renovagao, respondendo a essas demandas educacionais.Binet propós, em 1908, a escala métrica de inteligencia, visando avahar ascapacidades cognitivas das changas e planejar programas de educagao adequadosa cada nivel, distribuindo as criangas em estabelecimentos ou classes especiáis.Claparéde, pensando no ensino atento as diferengas individuáis, desenvolveu aproposta da "Escola sob Medida".Em linhas gerais, é esse o contexto que orientou Helena Antipoff em sua formagaocomo educadora e psicóloga e, a partir das leituras de seus escritos, podemosinferir que seu pensamento e sua agao apresentavam tragos evidentes da influenciados educadores citados, principalmente Edouard Claparéde, amigo pessoal que elaadmirava como um educador diferente "dos educadores de sua época, geralmenteprepotentes e acostumados a cercear a liberdade dos discentes, impingindo-lhesseus métodos nem sempre adequados" (D. Antipoff, 1975, p. 42). Faz-senecessário indicar que os autores aqui destacados nao esgotam as suas fontesformativas, haja visto que Antipoff tem em sua formagao um rol de diferentesautores e, por sua postura científica, estava sempre estudando e incorporandonovos elementos. De acordó com Campos (2010b), os autores mais citados noscinco volumes da Coletánea das Obras Escritas de Helena Antipoff sao EdouardClaparéde, Alfred Binet, Théodore Simón, Alice Descoeudres, Johann HeinrichPestalozzi, Ovide Décroly, Jean Piaget, Alexander Lazursky, Ernst Meumann eWilliam Stern.

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3.1. Apontamentos sobre os pressupostos Teóricos e Metodológicos deHelena Antipoff e o seu Trabalho com Criancas na Rússia e na Suíca.Inserida num contexto de renovagao educacional, Helena Antipoff endossava aquelemovimento de renovagao, cujos principios encontravam eco nos seus escritos,como evidencia esse trecho publicado em 1927: "Toda pedagogía avangada sebaseia teóricamente no conhecimento da changa. Sem esses conhecimentos nao épossível a 'escola sob medida'. Supérfluo é defender tais assergoes, pois estas jásao comumente admitidas por todos que proclamam a nova educagao" (H. Antipoff,1927/1992b, p. 29).Diante desse fato, para avangarmos na pesquisa das idéias e propostaseducacionais de Helena Antipoff, foi crucial conhecer os principios da "Escola sobMedida" que segundo o próprio autor, nao é algo original, foi inspirada "nosexemplos de Dewey, Decroly e Montessori" (Claparede, 1953, p. 199) eapresentada em contraposigao aos "defeitos do regime tradicional" (p. 193).A educagao devia ter como centro dos programas e dos métodos escolares acrianga e considerar as aptidoes individuáis. Segundo Claparede, "urna aptidao éurna disposigao natural a comportar-se de certa maneira, a compreender ou sentirde preferencia certas coisas ou a executar certas atividades de trabalho"(Claparede, 1953, p. 167). Cada aptidao implicava, necessariamente, odesenvolvimento de certas habilidades (9) e elas variavam de um individuo paraoutro, sendo que cada um carregaria urna diversidade de aptidoes, cuja mediadeterminava a "inteligencia global" (p. 167). Claparede criticava a escola tradicionalpor ignorar essas diferengas individuáis e deixava claro que a educagao deveriaobedecer á natureza da crianga: "a observagao nos mostra que um individuo sóproduz na medida em que se apela para suas capacidades naturais, e que é perdade tempo querer por forga desenvolver nele capacidades nao possuídas" (p. 174).Nesse cenário, o papel da educagao transformava-se. Antes de se preocupar com acarga de conhecimentos memorizaveis que possuem os programas escolares, deviaempenhar-se em desenvolver as fungoes intelectuais e moráis de cada individuo.Caberia ao professor despertar essas fungoes para que o aluno pudesse, por simesmo, por meio do trabalho e da pesquisa pessoal, adquirir os conhecimentos.A chave para fazer despertar a crianga para as atividades propicias ao seudesenvolvimento moral e intelectual era, segundo Claparede, a necessidade, já que"toda necessidade tende a provocar as reagoes próprias a satisfazé-la" (Claparede,1953, p. 118). Os estímulos exteriores nao suscitarao reagoes se estas naoresponderem á necessidade do individuo. Assim, um novo cenário se apresentava áescola, que devia ser ativa no sentido de mobilizar as atividades das criangas e,nesse novo cenário o medo e o castigo nao tinham razao de existir, pois o quesurtiría efeito no processo educativo seria o interesse pela coisa que se tratava deassimilar.

Num relatório apresentado em 1922, ao Congresso de Higiene Mental de Paris,Claparede (1953) apontou medidas praticas para que as aptidoes de cada individuofossem respeitadas pela escola:

É necessário que a escola leve mais em conta asaptidoes individuáis e se aproxime do ideal daescola sob medida. Poder-se-ia chegar a esseponto, deixando nos programas, ao lado de umprograma mínimo, comum e obrigatório a todos,e tratando de disciplinas indispensáveis, certonúmero de ramos a escolher, podendo seraprofundado pelos interessados, á sua vontade,movidos por seu interesse e nao pela obrigagaode passar num exame sobre elas (p. 127).

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Outra medida sugerida por Claparéde, as "Classes Paralelas", consistía nasubdivisáo das classes em "classe forte, para os mais inteligentes, e urna classefraca para os que tém mais dificuldade em segui-la" (Claparéde, 1953, p. 179).Nessas classes para os mais fracos, o programa seria reduzido e o ritmo seria maislento, o número de alunos seria menor, o que possibilitaha cuidar melhor de cadaum e, por fim, os métodos seriam mais intuitivos. Entretanto, para Claparéde osistema educativo nao podia ser tomado como um modelo definitivo e fechado emseus encaminhamentos, já que "melhor seria nao cristalizar coisa alguma e ter urnaorganizagáo maleável, de modo que acolhesse qualquer nova melhoria, para sevaler de qualquer retoque que a tornasse mais próxima da perfeigáo" (p. 166).Esse processo dinámico impunha á "pedagogía prática o estudo em profundidadedos fatos psicológicos em correlagao com as melhorias desejadas, e principalmente,experiencias, ensaios" (Claparéde, 1953, p. 165). Assim, a pedagogía nao seconstituía em área autónoma e "só a ciencia, principalmente a psicología, poderáfornecer á arte da educagáo as técnicas que permitam, com alguma certeza, atingiras metas que ela se propoe" (p. 193). Essas técnicas referiam-se, sobretudo, aoconhecimento da changa, pois esta deveria ser o centro do sistema educativo, osseus interesses, o motor da educagáo, e esse conhecimento seria a ferramenta parao trabalho do educador. A pedagogía para Claparéde era experimental, quer dizer,devia-se conhecer a changa para melhor ajudá-la no seu desenvolvimento.Nesse sentido, Claparéde criou junto ao Instituto Jean-Jacques Rousseau, a Maisondes Petits, "um meio educativo onde se pudesse fazer a verificagáo prática dasmelhorias e reformas sugeridas por um conhecimento mais aprofundado dapsicología infantil" (Claparéde, 1953, p. 198). O termo escola nao foi empregado,pois o intuito era fazer da instituigáo a reprodugáo da vida da changa, associada adiversas atividades e "nao um paréntese artificial introduzido em sua própria vida"(p. 199).

A instituigáo recebia criangas desde a idade de tres anos que poderiam aipermanecer até a adolescencia, tendo como um dos primeiros alunos o filho deClaparéde. O filho de Helena Antipoff, Daniel Antipoff, também estudou na "Maisondes Petits", entre 1925 e 1927.De acordó com Claparéde, situada em meio a jardins e pomares, a instituigáo "naotem nada de construgáo escolar. As criangas entram e saem como querem,segundo as necessidades de ocupagáo" e "se deseja que as criangas queiram tudoo que fazem. Deseja-se que elas atuem e nao sejam atuadas" (Claparéde, 1953, p.199-200, grifo do autor). Helena Antipoff compós o quadro das primeirasprofessoras que atuaram junto á instituigáo, onde Claparéde realizou "as primeirasexperiencias de observagáo psicológica com criangas de países ocidentais" (D.Antipoff, 1975, p. 90). A educadora falou de seu trabalho na Maison des Petits numartigo publicado em 1927.

Atualmente, estudamos na "Maison des Petits" ocaráter das criangas, observando-as em suaconduta para com o trabalho manual. Dezoitocriangas, de 7-8 anos foram metódicamenteobservadas durante muitos meses. Pudemosrecolher um grande número de reagoescaracterísticas, gragas a algumas ocupagoes (H.Antipoff, 1927/1992b, p. 40).

Esse encaminhamento seguido por Helena Antipoff na instituigáo, nos remete aométodo utilizado para alcangar o conhecimento das criangas e que tipo deconhecimento estava em pauta. Tratava-se do Método de Experimentagáo Natural,apropriado para o estudo do caráter e da personalidade dos individuos, e o qual, deacordó com Campos (2010a), era urna alternativa ao uso dos testes padronizados,pois consistía em observar a changa em seu ambiente natural, procurando assimevitar a artificialidade do laboratorio. Os principios do Método de Experimentagáo

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Natural foram expostos, em 1911, no Congresso de Pedagogía Experimental, deSao Petersburgo, pelo psicólogo e psiquiatra russo Alexandre Lazursky; e daaplicagao de testes de inteligencia, baseados na Escala Métrica Binet - Simón, dosquais a educadora participou dos ensaios de padronizagao. Helena Antipoff referiu-se ao método Binet - Simón como "um golpe de genio no terreno da psicologíaaplicada" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 73), que "teve por finalidade fornecer umcriterio objetivo para a selegao de criangas retardadas, visando a sua distribuigaoem estabelecimentos ou classes especiáis" (H. Antipoff, 1928/1992c, p. 43).Esses autores partiram do pressuposto de que o espirito da crianga, assim comoseu corpo, crescia quantitativamente em fungao da idade e das experienciasadquiridas naturalmente em contato com o mundo. Sendo assim, eles apoiaram odesenvolvimento mental em exercícios para diferentes idades, traduzidos em urnaserie de testes, desde os primeiros meses até a idade adulta (H. Antipoff,1931/1992d).O resultado final, obtido pela crianga nos exercícios, era confrontado com a escalade pontos do bareme - "um resumo das medias dos pontos obtidos por umconjunto de criangas de idades diferentes sobre as quais a prova foi ensaiada" (H.Antipoff, 1928/1992c, p. 44). Era desse confronto que se determinava a dificuldadee se atribuía a idade mental. Segundo H. Antipoff (1931/1992d):

Gragas ao método de Binet e Simón, foi possívelmedir o desenvolvimento mental das criangas.Medir quer dizer comparar urna quantidade comoutra tomada como unidade. Medir odesenvolvimento mental de urna crianga querdizer compará-lo com o estabelecido previamentesobre urna quantidade de criangas e tomado comomedida (pp. 75-76).

Esses testes ficaram conhecidos como testes de inteligencia, porém Helena Antipofffaz urna ressalva quanto á utilizagao desse conceito, pois "a inteligencia reveladapor meio destes testes é menos urna inteligencia natural (como quis Binet), queurna inteligencia civilizada" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 77).Esse conceito de "inteligencia civilizada" foi elaborado por Helena Antipoff duranteseu trabalho com criangas abandonadas na Rússia entre 1920 e 1924 (10). Aoserem avahadas pelos testes, essas criangas apresentavam um atraso mental dedois a tres anos em relagao á idade cronológica. Esse resultado se explicava,segundo H. Antipoff (1931/1992d), pelo fato de que essas criangas viviammarginalizadas:

á margem da familia, da escola e da sociedadecom suas leis e suas regras, essas criangas seformavam á margem da vida civilizada. Nao sendodestituidas de inteligencia natural, nao possuíamprecisamente essa inteligencia que se tritura e sedisciplina ao contato do exemplo no seio doregime regrado, essa inteligencia civilizada, queprescrutamos por meio de nossos testes chamadosde inteligencia geral (pp. 78-79).

Em outras palavras, para Helena Antipoff, a inteligencia geral nao se processavaindependentemente da educagao, da instrugao e do meio em que a crianga seformava e, essa influencia do fator social no desenvolvimento mental das criangas"já foi nítidamente notada por Binet e Simón ñas aplicagoes de seus testes ascriangas de diferentes bairros de Paris" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 100).Segundo Helena Antipoff, esses testes, eficientes para se conhecer odesenvolvimento mental, a inteligencia, que ela chamou de civilizada, semostravam incompletos quando se tratava de estudar a personalidade das criangas,pois "fracionando a personalidade em fungoes ¡soladas, estudando-a em condigoes

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artificiáis, falseando nossa estrutura auténtica" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 30), ostestes nao apresentam a "preocupagao de abranger o comportamento no seuconjunto" (H. Antipoff, 1950/1992f, p. 161). Por serem realizados em condigoesartificiáis, resultavam condutas também artificiáis.Para o estudo da personalidade infantil, Helena Antipoff (1927/1992b) destacou ométodo proposto por Alexandre Lazursky que, observando as criangas de urnaescola, registrando todas as suas condutas descobriu que:

segundo o género de ocupagoes escolares, ocomportamento da crianga revelava determinadosaspectos de sua personalidade. Cada ocupagaodeterminada suscitava na crianga reagoes decategorías particulares (...): a memoria, aimaginagao, a observagao, as fungoes motrizes,as tendencias afetivas, a vontade (p. 31).

Partindo desse pressuposto, o psicólogo russo elaborou um quadro de ligoes, cujarealizagao deveria ser observada ñas criangas. Tratava-se de "exercícios escolares,daqueles que mais riqueza e seguranga demonstravam no estudo da personalidadeda crianga, chegando a fixar nove exercícios" (H. Antipoff, 1927/1992b, p. 32). Apartir desses exercícios, as observagoes eram dirigidas, possibilitando relacionar asreagoes as condigoes estabelecidas. Cada reagao era relacionada ao "equivalentepsicológico que se encontrava implícito na conduta exterior da crianga" (p. 32). Asrespostas e as reagoes das criangas eram distribuidas em níveis: inferior, medio,superior, constituindo um elemento de medida, permitindo a expressao gráfica dosresultados, gerando perfis psicológicos que evidenciavam "o essencial dapersonalidade da crianga" (p. 37).A repetigao da experiencia ao longo do tempo revelava o progresso, regresso ouestacionamento da crianga, com a vantagem de estudar a personalidade dessacrianga em seu meio, sem fracionar o seu comportamento em elementos ¡solados.Helena Antipoff destacou a síntese do método de Lazursky pelas palavras dopróprio autor: "Nos estudamos o individuo pela vida mesma, e a crianga pelosobjetos do ensino escolar" (Lazursky citado por H. Antipoff, 1927/1992b, p. 40).Foi a experiencia com as criangas russas que possibilitou a Helena Antipoff colocarem prática esses conhecimentos científicos. Ao retornar áquele país em 1916,permaneceu até 1924 e, nesse ínterim, a educadora trabalhou com as criangasórfas, vítimas da guerra e da revolugao:

ñas cidades grandes ocorre um fenómeno cadavez mais freqüente que consiste num afluxo decriangas e adolescentes sem pais e que embandos percorrem a cidade. Constituem umperigo para as populagoes, porque inicialmentebem intencionados e a procura de trabalho,acabam tornando-se delinqüentes (D. Antipoff,1975, p. 66).

Diante dessa situagao, Helena Antipoff foi convidada pelo centro médico-pedagógicode Sao Petersburgo para estudar as criangas abandonadas e, a partir de urnaclassificagao, "encaminhá-las, segundo seu caráter, para as 150 instituigoespedagógicas, médicas e jurídicas que possuímos" (H. Antipoff, 1927/1992b, p. 39).A tarefa nao era fácil, já que a origem e o perfil dessas criangas eram os maisvariados:

ao lado de criangas provenientes de um meioburgués, jogadas ñas rúas por azares da sorte,encontravam-se os meninos de rúa queconheciam apenas as asperezas da vida, caídosem vicios dos mais ignóbeis; casos de perversaomoral ao lado de criangas intactas em sua

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confianga a mais candida (H. Antipoff,1927/1992b, p. 39).

Esse quadro se complicava porque as criangas nao apresentavam nenhumadocumentagáo, nao informavam sobre seu passado ou dissimulavam asinformagoes e seu comportamento, percebendo que, de sua conduta, que estavasendo observada, dependía o seu futuro. Foi nesse cenário que o método propostopor Lazursky encontrou terreno fértil para ser aplicado com sucesso, conformerelato de Helena Antipoff (1927/1992b):

nos os havíamos observado durante o almogo.Todos, esfomeados, se comportavam durante arefeigáo, segundo seu próprio caráter. O instintomais forte do que eles revelava toda a condutamoral e social que nos interessava em primeiroplano. Pusemo-nos entáo a observar, atendendoao espirito da observagáo natural, asmanifestagoes das criangas durante as refeigoes.Introduzimos nessas observagoes elementos deexperimentagáo, variando muitas vezes asnormas das refeigoes (...). Sem tais refeigoes,jamáis poderíamos aprender tanto sobre o caráterdessas criangas (p. 39).

Na Rússia, é importante ressaltar, ainda, sua atuagáo no Laboratorio de PsicologíaExperimental de Sao Petersburgo, onde "empreendeu um exame de nivel mentaldas criangas entre 4 e 9 anos. Queria-se verificar se a época extraordinaria daguerra e do terror podia influir sobre o desenvolvimento mental" (H. Antipoff,1924/1992a, p. 09) e no Reformatorio de Menores, ficando encarregada daeducagáo de 150 adolescentes, com os quais a educadora realizou um trabalho deinvestigagao psicopedagógica:

realiza um trabalho completo de investigagaopsicopedagógica. Separa-os em grupos maishomogéneos, prevendo para uns, além daassisténcia pedagógica, um reforgo também notratamento medicamentoso e alimentar. Paraoutros, um regime de semivigiláncia e de menorexigencia intelectual, preconiza atividadespráticas, desenvolvida preferencialmente emáreas rurais e profissionais (D. Antipoff, 1975, p.76).

Em 1922, Helena Antipoff transferiu-se para Viatka, convidada para trabalhar naEstagáo Médico-Pedagógica, "especie de patronato para adolescentes difíceis" e, nafungáo de psicóloga, recebeu "carta branca para organizar o sistema de atividadeseducacionais e escolares propriamente ditas" (D. Antipoff, 1975, p. 81). Ainda emViatka, a educadora organizou um laboratorio de psicología onde, contando comalgumas ajudantes, "examinam as criangas, fazendo urna ampia descrigáopormenorizada quanto a características e aptidoes" (idem). As atividadesdesenvolvidas por Helena Antipoff na Rússia foram interrompidas em 1924 com suaida para a Alemanha, onde a educadora nao conseguiu retomar suas atividadesprofissionais ñas instituigoes escolares: "após algumas tentativas de trabalho emescolas alemas, Antipoff toma consciéncia de sua dificuldade em adaptar-se ámentalidade germánica (...). Acaba organizando por conta própria um jardim deinfancia, destinado aos filhos russos expatriados, residentes em Berlim" (p. 86).Sua permanencia naquele país foi de apenas um ano. Em Janeiro de 1926, voltou áGenebra para trabalhar ao lado de Claparéde como assistente no Laboratorio dePsicología da Universidade de Genebra, conforme oficio expedido pelo Conselheirodo Estado, responsável pelo Departamento de Instrugáo Pública:

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Á Madame Héléne AntipoffMadame, J'ai l'honneur de vous transmettre ci -incluse la copie de l'arrété par lequel le Conseild'Etat vous nomme aux fonctions d'assistante aulaboratoire de psychologie de l'université.Veuillez agréer, Madame, l'expression de maconsidération distinguée (Geneve, 7 janvier1926). (Le Conseiller D'état, 1926, s. p.). (11)

Em 1928, Antipoff foi indicada para substituir Claparéde e assumir a diregao doLaboratorio de Psicología, conforme oficio do Departamento de Instrugao Pública:

Madame, J'ai l'honneur de vous informer que, surle préavis de la Faculté des sciences et du Bureaudu Sénat, le departement vous charge, pourl'annee scolaire 1928-1929, du remplacementpartiel de M. le professeur Edouard Claparéde. IIest entendu que vous aurez la direction dulaboratoire.Votre traitement sera calculé conformément auxdispositions que M. Claparéde a prises avec vouset qu'il a communiquées au Departement.Veuillez agréer, Madame, l'expression de maconsidération destinguée (Geneve, 31 octobre,1928) (Le Conseiller D'état, 1928, s. p.). (12)

No Instituto Jean-Jacques Rousseau, que estava numa fase de grandedesenvolvimento, com varios cursos programados, assumiu o cargo de professorade Psicología da Crianga. A experimentagao natural foi utilizada para estudarcriangas entre 6 e 8 anos, observadas nao em atividades escolares propriamenteditas, mas durante a execugao de trabalhos manuais que, segundo Antipoff,"ofereceram preciosos meios para ampia revelagao da personalidade dos pequeñostrabalhadores, podendo ser estudados com bastante exatidao e objetividade osvariados aspectos da personalidade" (H. Antipoff, 1950/1992g, p. 168).Helena Antipoff destacou as seguintes modalidades de trabalho praticadas naMaison des Petits: tecelagem, marcenaría, modelagem, costura e bordados,desenho nos cadernos e pintura, etc. (H. Antipoff, 1950/1992g, p. 168). Ocomportamento das criangas diante da execugao do trabalho era observado e, apartir das reagoes individuáis, era tragado o perfil psicológico de cada urna (13).Assim, o trabalho era utilizado como um meio para se conhecer a personalidade dascriangas: "em todas as modalidades do trabalho bem-descritas e bem-conhecidasas reagoes individuáis de cada urna de um grupo de 20 criangas mais ou menos,nao foi difícil tragar para cada urna seu perfil psicológico" (p. 169).Os tres anos que Helena Antipoff permaneceu em Genebra também secaracterizaram por intensa atuagao profissional e produtividade científica. Nesseperíodo, conforme Campos (2010a), enfocava especialmente o desenvolvimento dainteligencia na crianga, a relagao entre processos psicológicos superiores emotricidade, além do julgamento moral. Foi quando sua fama ultrapassou os paísesde língua francesa, pois "em 1929, o mais respeitado livro de registro da Europa,The psychological register de Londres traz os dados biográficos da colaboradora deClaparéde, reconhecendo-lhe raros méritos" (D. Antipoff, 1975, p. 95).

4. Helena Antipoff - Caminhos da Europa para o BrasilÉ certo que a atuagao de Helena Antipoff, na fungao de assistente de Claparéde eprofessora de Psicología do Instituto Jean-Jacques Rousseau ultrapassou asfronteiras dos países de língua francesa. Além do nome da educadora ser citado norespeitado livro de registro da Europa, The psychological register, de Londres, em1927, o governo mineiro efetivou o convite para sua vinda ao Brasil nesse mesmo

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Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teórico- 45metodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum,20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01

ano. O currículo de Helena Antipoff chama a atengao por sua produtividadecientífica, porém, outros fatores devem ser analisados para esclarecer asmotivagoes que levaram o governo mineiro a efetivar o convite. Nesse sentido,interessa a Reforma Francisco Campos, em 1927, em Minas Gerais (14).A Reforma de Ensino em Minas Gerais compós o movimento que envolveu outrosestados brasileiros e que, apesar de nao integrar uma política nacional de educagao(15), buscou colocar em prática o ideario da Escola Nova no país. O governomineiro empreendeu a reforma do ensino, que atingiu o ensino primario e onormal, sob a argumentagao de adequar a escola para atender as novas demandassociais. O autor da reforma foi Francisco Campos que, em 1926, assumiu o cargode Secretario dos Negocios do Interior e da Justiga do Estado de Minas Gerais (16).A formagao dos recursos humanos para colocar em prática as propostas derenovagao do ensino se realizou com a ida de professores mineiros aos EstadosUnidos para se aperfeigoarem nos novos métodos (17). Além disso, FranciscoCampos convidou especialistas europeus para virem ao Brasil com o intuito de"testar a aplicagao destas idéias em nosso meio e de preparar elementos capazesde orientar e avaliar sua implantagao ñas escolas" (Peixoto, 1981, pp. 173-174).Foi para contemplar esse objetivo que o convite foi feito a Helena Antipoff, já em1927, pelo representante do governo mineiro, Alberto Alvares. Porém, nessemomento, a educadora nao aceitou a proposta, e justificou sua decisao aClaparéde: "estou bem aqui, satisfeita, e na verdade há apenas dois anos, desdeque vim para comegar o trabalho no laboratorio" (H. Antipoff citado por D. Antipoff,1975, p. 97). Ela indicou León Walther, também psicólogo do Instituto Jean-Jacques Rousseau, para assumir o trabalho no Brasil. Este aceita o convite e no anoseguinte já estava a servigo do governo mineiro.Também veio ao Brasil, no inicio de 1929, Théodore Simón, da Universidade deParis. Auxiliar de Binet na organizagao das primeiras escalas de medida deinteligencia, aqui ministrou curso de Psicología aplicada á aprendizagem e,trabalhando com as criangas mineiras, adaptou os testes de inteligencia as criangasbrasileiras (Peixoto, 1981).Contando com o apoio técnico dos europeus e dos professores brasileiros formadosno exterior, Francisco Campos colocou em atividade, em 1929, a Escola deAperfeigoamentó, criada para atender o seguinte objetivo:

preparar e aperfeigoar os candidatos aomagisterio, á assisténcia técnica do ensino e asdiretorias dos grupos escolares, constituindo-senum laboratorio de pesquisas e experimentagaona área de metodología do ensino e numimportante centro de irradiagao dos novosmétodos (Peixoto, 1981, p. 175).

Nesse momento, León Walther decide retornar á Europa, e quem veio substituí-lofoi Helena Antipoff, assinando um contrato de dois anos com o governo do estadode Minas Gerais, pelo qual "fica estipulado um contrato de trabalho comoprofessora de psicología, numa base de remuneragao a um ordenado, em moedaatual, de cerca de 20.000 cruzeiros" (D. Antipoff, 1975, p. 99).A partir da Reforma Francisco Campos podemos afirmar que as idéias endossadaspor Helena Antipoff, no campo educacional, chegaram ao Brasil e, específicamente,em Minas Gerais, antes déla. Foi justamente uma convergencia de principios quemotivou os dirigentes mineiros a convidá-la para atuar junto ao sistema de ensino.No Regulamento do Ensino Primario, Francisco Campos referiu-se diretamente aosresultados das pesquisas realizadas na Universidade de Columbia, nos EstadosUnidos, e no Instituto Jean-Jacques Rousseau, na Suíga, como solugoes definitivaspara a educagao: "o ensino primario tem sido objeto de uma larga e profundainvestigagao, de que alguns resultados teóricos e aquisigoes práticas podem serconsiderados definitivos" (Campos citado por Peixoto, 1981, p. 115).

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Avahando que os dispositivos para realizar a renovagao do ensino já seencontravam definidos nos documentos oficiáis, consubstanciados a partir dedecretos-leis, podemos inferir que, na perspectiva do governo mineiro, a atuagaoda educadora no cenário educacional se restringiría a endossar os fundamentos dareforma e auxiliar na implantagao da mesma. Os termos do contrato que oficializoua vinda de Helena Antipoff para o Brasil confirmam essa constatagao, pois aprimeira cláusula determinava que a educadora realizasse a aplicagao dos testesnos escolares da capital mineira e capacitasse os professores na técnica daPsicología:

1. Madame Antipoff est engagée en qualité deprofesseur de psychologie, et spécialement depsychology experiméntale et de psycology del'enfant, á l'Ecole Nórmale officielle et á l'Ecole dePerfectionement á Belo Horizonte; elle auraégalement pour tache de faire subir aux enfantsdes ecoles primaires des épreuvespsychologiques, ayant pour but l'étalonnage destests, ainsi que de mettre au courant de latechnique psychologique lé personnel enseignant(Contrato, 1929, p. 1). (18)

Os termos das renovagoes do contrato de trabalho da educadora com o estado deMinas Gerais, em 1935 (Contrato, 1935) e 1938 (Contrato, 1938), repetem, emportugués, a mesma determinagao.

5. As atividades de Helena Antipoff em Belo Horizonte na década de 1930:caminhos para a educacao especialO curso na Escola de Aperfeigoa mentó, com duragao de dois anos, funcionava emperíodo integral e as aulas de Antipoff conjugavam a parte teórica com asatividades práticas referentes a pesquisas realizadas ñas escolas públicas, cujoobjetivo era conhecer "a conduta da changa, seus modos diferentes de reagirdurante o trabalho escolar, ou mesmo durante o recreio" (H. Antipoff, 1928/1992c,p. 59). Era o Método de Experimentagao Natural, aplicado á realidade brasileira e,com o intuito de subsidiar a implantagao das classes homogéneas, previstas naReforma de Ensino (1927), os testes de inteligencia geral, inspirados na escalamétrica Binet-Simon, também foram aplicados. A organizagao dessas classes sedeu de forma semelhante as "classes paralelas" propostas por Claparéde e asatividades pedagógicas seguiram os principios da "Escola sob Medida".As atividades realizadas por Helena Antipoff na Escola de Aperfeigoa mentó e juntoaos grupos escolares de Belo Horizonte e seus resultados foram publicadas nosboletins da Inspetoria Geral de Instrugao e constituem fonte de pesquisa sobre asagoes da educadora em Minas Gerais na década de 1930 (H. Antipoff, 1930a,1930b, 1931, 1932a, 1932b; Antipoff & Cunha, 1930; Antipoff & Resende, 1934).Foi a partir dessas atividades, mais específicamente a homogeneizagao das classesescolares, que Antipoff direcionou suas agoes para organizagao de urna educagaoespecializada no sistema de ensino mineiro.A aplicagao dos testes em larga escala, de forma sistemática para ahomogeneizagao das classes, comegou em fevereiro de 1931. Para Antipoff,agrupar as changas em classes homogéneas significava obedecer ao principio daorganizagao racional do trabalho, posto em evidencia por Frederick Taylor, e que,para ela, significava introduzir elementos novos, utilizando, únicamente, os própriosrecursos da instituigao escolar, sem acrescentar despesas. Semelhantes as classesparalelas propostas por Claparéde, essas classes agrupavam as changas de acordócom as diferengas individuáis, para que fosse possível escolher os meios maiseficientes para educá-las, já que "nao é a homogeneidade dos alunos quedetermina o seu sucesso, mas é, eremos nos, o ensino correspondendo ao

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desenvolvimento das criangas" (Antipoff & Rezende, 1934, p. 07). Nesse contexto,eram consideradas as diferengas biológicas e psicológicas da changa, suapersonalidade, seus interesses e aptidoes, suas atividades e energías, suasfaculdades intelectuais e seus conhecimentos.O texto encaminhado por Helena Antipoff á IV Conferencia Nacional de Educagao,promovida pela Associagao Brasileira de Educagao (ABE), em dezembro de 1931(19), tratou da selegao das criangas em classes homogéneas. Ao falar dos criteriosda selegao e das vantagens que déla decorriam, a educadora apresentou o conceitode changa, considerada como um ser em estado de evolugao e que, portanto, amarcha evolutiva deveria orientar a selegao:

As criangas, nascidas mais ou menos na mesmaépoca, tendo todas partido de um mesmo ponto,crescendo e tendendo ao estado adulto, realizamessa trajetória em ritmos diferentes (...). É fatodigno de nota que, enquanto urnas, a maioria,atingem o fim, percorrendo as etapas sucessivas,outras em minoria, jamáis o atingem. Essasnunca se tornarao adultas no sentido bio-psicológico da palavra, seja porque tenhaminiciado a vida com urna reserva de forgasinsuficiente para perfazer o caminho total, sejapelo fato de sobreviverem a acidentes no meio docaminho. Destacam-se assim em urna dasextremidades da escala, criangas precoces, e emoutra, lentas e retardadas, deixando ver na partecentral um conjunto bastante denso de criangascujo desenvolvimento se faz no ritmo medio(Antipoff & Rezende, 1934, pp. 11-12).

Segundo a educadora, ao lado dessas diferengas na evolugao bio-psicológica existiaurna grande quantidade de caracteres que deveriam ser levados em conta paradistinguir "os robustos e os fracos, os bem dotados e os mediocres (...); asnaturezas completas e plenas de seiva e, ao lado, os seres incompletos e pobres devitalidade física e mental, as naturezas organizadas e harmoniosas, e asdesorganizadas e sem equilibrio" (Antipoff & Rezende, 1934, p. 12). Em síntese,existiriam as criangas normáis e as "excepcionais", superdotadas ou infradotadas,e, para cada um desses perfis, deveria ser pensado um programa e método deensino.A justificativa para a criagao das classes especiáis nos grupos escolares foi que esseprocedimento "descongestionaria" as classes dos elementos que "entravam amarcha escolar", permitindo aos considerados "normáis" o "progresso regular".Estando agrupados, esses "elementos irregulares do ponto de vista escolar e dodesenvolvimento mental, (a classe especial) assegura-lhe o máximo derendimento" (H. Antipoff, 1932/1992e, p. 161).No texto apresentado á ABE, em 1931, Antipoff salientou a grande variagao dostipos escolares e, para atender a todos, seria necessário, além das classes A, B, C eD, a criagao da classe E "a qual tomaría menos em consideragao o desenvolvimentomental e a inteligencia do que o conjunto do procedimento ou do caráter" (Antipoff& Rezende, 1934, p. 19). Seria urna classe de educagao individual no sentido maisestrito do termo e que agruparía um perfil específico, segundo a educadora:

As criangas particularmente difíceis de educar -os agitados, os neuróticos, os anti-sociais, ascriangas moralmente defeituosas - e cujapresenga na classe comum e muito cheia sóprejudicaha a seus múltiplos companheiros sem

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que elas mesmas possam dali retirar a necessáriamelhoria (Antipoff & Rezende, 1934, p. 19).

Nesse processo de separagáo dos alunos em diferentes tipos de classe, percebe-seurna subdivisáo da categoría "excepcional". De um lado, aquelas consideradas"excepcionais" devido ao desenvolvimento mental aquém ou além do padráoestabelecido para criangas da mesma idade; e, por outro, aquelas consideradas"excepcionais" a partir da análise de sua conduta ou seu caráter. Assim, temos, "osexcepcionais 'orgánicos', portadores de disturbios de origem hereditaria oubiológica, e os excepcionais 'sociais', isto é, aqueles cujas condigoes de vida familiarou social impediam urna adequada estimulagáo" (Campos, 2002, p. 22). Quanto aesse perfil de criangas da Classe E, H. Antipoff (1932a) afirmou que nao eramexcegoes ñas escolas mineiras:

As criangas indisciplinadas, desequilibradas, queapresentam perturbagoes de caráter, as anti-sociais e as criangas em perigo moral naoconstituem raras excegoes nos grupos escolaresde Belo Horizonte ou do interior. Vimos bomnúmero de fichas psicológicas dessas criangas,como tivemos pessoalmente trato com elas (p.18).

Entretanto, mesmo tendo mencionado as classes E para o encaminhamento dessetipo de changa, Antipoff salientou que nao aconselhava a nenhuma de suas alunas-professoras a sua organizagáo, pois prefería ver essas criangas junto aos alunosnormáis, correndo o risco de causar problemas a estes "do que selecioná-las emclasses especiáis, onde a sua conduta entre as máos de um professor inexpehentepode explodir como urna bomba de dinamite e perturbar a tranqüilidade do grupointeiro" (H. Antipoff, 1932c, p. 18).Para essas criangas em "perigo moral" seria preciso mais do que urna classeespecial, fazendo-se necessário um "foco educativo, em que as criangas possampassar todo o seu dia e, á falta de internato, nao voltar senáo á noite para junto dafamilia" (H. Antipoff, 1932c, p. 19). Helena Antipoff, continuando sua agáo nosistema de ensino mineiro, passou também a se dedicar á organizagáo de umservigo especializado para atender a essas criangas, urna vez que nao era doEstado que a educadora esperava solugáo para o problema:

Cumpre procurar outros meios menos radicáistalvez, e dependendo menos de um decretoobrigatório, mas que poderia impor-se áconsciéncia coletiva como urna necessidade apreencher e onde a cooperagáo social nao deixariade ser mais eficiente (H. Antipoff, 1932c, 21).

Seguindo esse espirito, foi fundada, em novembro 1932, por iniciativa de HelenaAntipoff, a Sociedade Pestalozzi, sendo a educadora sua primeira presidente.

5.1 Da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais para a Educacao dos"excepcionais" no BrasilDe acordó com o estatuto, a Sociedade Pestalozzi tinha por objetivo "protegerinfancia anormal e preservar a sociedade e a raga das influencias nocivas daanormalidade mental" (Sociedade Pestalozzi, 1933, p. 3). Era considerado"anormal" aquele que:

Devido a urna condigáo hereditaria, ou acidentesmórbidos ocorridos na infancia, nao pode, porfalta de inteligencia, ou disturbios de caráter,adaptar-se á vida social com os recursos comunsministrados só pela familia, ou pela escola pública

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primaria, suficientes para a maioria das criangasda mesma idade (p. 3).

A protegao consistía em fornecer a essas criangas "meios para o melhoramento deseu estado mental, moral e social, de sorte que, na idade adulta, pese ela o menospossível á sociedade" (Sociedade Pestalozzi, 1933, p. 3-4). A Sociedade Pestalozziauxiliou os alunos e os professores das classes especiáis dos grupos escolares,organizou o Consultorio Médico Pedagógico, que realizou pesquisas, divulgounogoes teóricas e práticas sobre a infancia "excepcional", e buscou criar instituigoespara atender as criangas consideradas "excepcionais". Em Minas Gerais, aSociedade criou o Pavilhao de Natal (1934), o Instituto Pestalozzi (1935) e a EscolaGranja, na cidade de Ibirité, ponto de partida para o Complexo Educacional daFazenda do Rosario (1940) (Rafante, 2006; Rafante & Lopes, 2009). A criagaodesse tipo de instituigao estava prevista no estatuto da Sociedade.Em 1944, Helena Antipoff foi convidada pelo governo brasileiro a atuar noDepartamento Nacional da Crianga (20), no Rio de Janeiro, onde ampliou seuuniverso relacional e criou a Sociedade Pestalozzi do Brasil (1945) e a SociedadePestalozzi do Estado do Rio de Janeiro (1948), localizada em Niterói. Atransferencia de Antipoff para o Rio de Janeiro nao prejudicou as atividades jáiniciadas em Minas Gerais. Pelo contrario, nesse período em que Helena Antipoff erafuncionaría do Departamento Nacional da Crianga, as atividades do InstitutoPestalozzi e da Fazenda do Rosario continuaram em pleno funcionamento,administradas pelos colaboradores dessas obras, que continuavam contando com oapoio técnico de Antipoff, por meio de visitas e atividades patrocinadas pelo órgaoao qual ela prestava servigo.Além da questao técnica, o Departamento Nacional da Crianga forneceu verbasnecessárias para a construgao do pavilhao central na Fazenda do Rosario, que teveinicio em 1944, onde se instalou, a partir de 1946, a residencia dos professores, ointernato das criangas desamparadas, o refeitório, a cozinha, a biblioteca e as salasde aula da escola primaria. Por ocasiao da inauguragao do novo predio, Antipoff foidesignada pelo Departamento para permanecer oito dias em Belo Horizonte erealizar os seguintes servigos: "representar o Departamento Nacional da Crianga,na inauguragao do novo pavilhao da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais e realizarjunto as autoridades competentes, estudos preliminares para a execugao doinquérito sobre a maturidade nos adolescentes" (Costa, 1946, p. 1).Mais verbas do Departamento foram destinadas á Fazenda do Rosario para aconstrugao do Centro de Puericultura, inaugurado em 23 de setembro de 1952, porocasiao da 6a Jornada de Pediatría e Puericultura e do II Seminario sobre InfanciaExcepcional, organizado pelas Sociedades Pestalozzi. O objetivo do centro eraatender a populagao rural, as escolas rurais, a infancia e a maternidade, orientandoas maes na criagao e educagao dos filhos; realizar pesquisas sobre a natividade e amortalidade infantil, doengas infantis e seu tratamento; promover concursos dealimentagao sadia, campanhas de merenda escolar. Os ensinamentos depuericultura eram passados por meio de palestras, de aulas práticas, reunioes commaes, noivos, sessoes de filmes educativos. As medidas práticas consistiam emvacinagao preventiva, exames médicos, pesagem periódica, fornecimento de leite ealguns medicamentos e tratamentos aos necessitados (Centro Rural dePuericultura, 1952, p. 184-185).A articulagao das instituigoes, principalmente as Sociedade Pestalozzi de MinasGerais, do Brasil e do Rio de Janeiro, permitiu a realizagao dos primeiros seminariossobre a infancia "excepcional" no Brasil, que ocorreram em 1951, 1952, 1953, 1955e se constituíram em importante meio de discussao sobre as questoes relacionadasá educagao dos "excepcionais" (Rafante & Lopes, 2011, maio). Lemos (1981)referiu-se aos seminarios como um "verdadeiro painel de Educagao Especial para acomunidade brasileira, aportando os aspectos fundamentáis para a educagao e oatendimento dos excepcionais" (p. 53). Em decorréncia desses seminarios, foram

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criadas em 1951, a Sociedade Pestalozzi de Sao Paulo e, em 1954, a SociedadePestalozzi de Goiás e, ao longo das décadas de 1950 e 1960, outras congéneresforam sendo criadas pelo país até que, em 1971, foi organizada a FederagaoNacional das Sociedades Pestalozzi [FENASP].Ao final da década de 1950 e comego dos anos de 1960, o governo federal iniciouas campanhas em favor da educagao dos deficientes. Essas campanhas faziamparte de um movimento maior, que se "consubstanciou ñas chamadas CampanhasNacionais que pretendiam dar encaminhamento as grandes questoes sociais como aalfabetizagao e as endemias" (Bueno, 2004, p. 121). Com relagao á educagao dos"excepcionais", as campanhas comegaram em 1957, com a Campanha da Educagaodo Surdo Brasileiro [CESB], sugerida pela diregao do Instituto Nacional de Educagaodo Surdo. Em 1958, foi instituida a Campanha Nacional de Educagao e Reabilitagaodos Deficitarios Visuais [CNERDV], por iniciativa de um professor do InstitutoBenjamín Constant, José Espinóla Veiga e, em 1960, foi instalada a CampanhaNacional de Educagao e Reabilitagao dos Deficientes Mentáis [CADEME], sob ainfluencia das Sociedades Pestalozzi e das Apaes (Lemos, 1981), sendo que HelenaAntipoff compós a primeira diregao da CADEME.Em setembro de 1970, Sarah Couto César, pertencente ao quadro de profissionaisda Sociedade Pestalozzi do Brasil, assumiu a diregao executiva da CADEME,sucedendo o coronel José Maes Borba, que estava no cargo desde 1967. HelenaAntipoff mantinha a sua colaboragao com o órgao. Segundo César (1992):

Desde o inicio de nosso trabalho á frente daCADEME, tivemos em D. Helena a nossa grandeinspiradora e colaboradora na elaboragáo dosprojetos e programas desenvolvidos. Eramfreqüentes as nossas visitas á Fazenda doRosario, onde éramos recebidas por D. Helena esua fiel colaboradora Yolanda Martins e Silva,onde recebíamos as ligoes da grande Mestra (p.47, grifos da autora).

Com o auxilio de Antipoff, em 1971, a CADEME promoveu, no entao estado daGuanabara, o primeiro seminario sobre a preparagao do pessoal especializado naesfera oficial. Salientamos que, desde a década de 1930, a Sociedade Pestalozzi jáempreendia essa formagao. Durante o seminario, Sarah Couto César informou quepode obter "um retrato fiel da época, referente as pessoas que estavam levando áfrente a educagao de deficientes mentáis e curiosamente a grande maioria dessesprofessores eram egressos dos cursos e estágios proporcionados por D. HelenaAntipoff" (César, 1992, p. 47). Na década de 1970, foi criado, no Brasil, o CentroNacional de Educagao Especial (CENESP) e, de acordó com Jannuzzi (2004),permanecía os conceitos elaborados por Helena Antipoff ñas diretrizes desse órgao.Segundo a autora, "ainda repercutía o conceito de deficiencia de Antipoff, expressoñas diretrizes do CENESP" (p. 131).

Apontamentos FináisSobre Helena Antipoff, em síntese, urna mulher á frente do seu tempo, imbuida deum dinamismo e urna coragem incomuns, com um interesse profundo pela ciencia,que se manifestou muito cedo e que, voltando-se para a psicología e para aeducagao, atravessou fronteiras e dedicou a sua vida a esses campos, fazendo umelo entre eles, urna vez que, para a educadora, a pedagogía nao se fazia sem apsicología.Vivenciando o cenário de renovagao educacional, que também chegou ao Brasil, foiconvidada para atuar junto á reforma do ensino do estado de Minas Gerais. Talreforma explicitou a penetragao dos principios da Escola Nova e a oficializagao dapsicología e da biología na proposta oficial de mudanga educacional, sob a égide danecessidade de se atender aos imperativos da ciencia, racionalizando as agoes no

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sistema de ensino, com a homogeneizagao das classes e o atendimento aos alunosde acordó com suas aptidoes naturais. Nesse momento, principalmente osprincipios da "Escola Sob Medida", de Claparéde, o método de "ExperimentagaoNatural", de Lazursky, e os testes de inteligencia, elaborados por Binet e Simón,fundamentaram sua prática.Foi a partir dessa atuagao junto ao sistema de ensino mineiro, que Antipoffdirecionou suas agoes para o atendimento e educagao das criangas e jovensconsiderados "excepcionais" de Minas Gerais, onde buscou organizar o atendimentoespecializado a partir da Sociedade Pestalozzi. A partir daí, suas agoes seexpandiram para a capital do país, na época o Rio de Janeiro, e Antipoff continuoua mobilizagao para a organizagao de urna educagao especializada. Nesse sentido,organizou seminarios para o debate da questao, participou de comissoes oficiáisrelacionadas ao tema, ofereceu, a partir das Sociedades Pestalozzi, além doatendimento especializado, a formagao de profissionais para atuar nessa área. Noperíodo anterior á organizagao oficial da Educagao Especial no Brasil, que comegoucom as Campanhas Educativas no final da década de 1950 e inicio dos anos de1960, foi a iniciativa privada que esteve á frente dessa educagao e Helena Antipoff,junto as Sociedade Pestalozzi e seus colaboradores, se destacou nodesenvolvimento desse campo no país.

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Notas(1) Este texto é parte da pesquisa de doutorado em andamento, "Helena Antipoff, aSociedade Pestalozzi e a Educagao Especial no Brasil", desenvolvida junto aoPrograma de Pós-Graduagao em Educagao da Universidade Federal de Sao Carlos,contando com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico - CNPq. Parte deste texto foi apresentado na disciplina Historia daPsicología e dos Saberes Psicológicos e a Cultura, ministrada pela Profa. Dra.Marina Massimi, no primeiro semestre de 2010, no Programa de Pós-Graduagao emPsicología, da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de RibeiraoPreto/Universidade de Sao Paulo.(2) Nossos agradecimentos á Olinda Terezinha da Silva Caetano e PatriciaSaragony, que nos auxiliaram na pesquisa.(3) Agradecemos á coordenadora Regina Helena Freitas Campos e as pesquisadorasLilian Nassif e Rita Vieira, que viabilizaram nosso acesso ao acervo.(4) "Quando Ihe perguntaram se ela se sentia brasileira ou russa, responde queantes de tudo era urna mulher do mundo" (D. Antipoff, 1975, p. 175).(5) Devemos considerar o fato de que ela era "muito reservada sobre seu passadoe sua intimidade, costuma desviar o assunto, quando alguém a interpela arespeito". Ao ser indagada pela neta acerca de quando iria escrever sobre sua vidaresponde: "Escrever, para qué? Com que intengao me pede isso? Pela simplescuriosidade de encontrar alguma situagao insólita? Interessa-lhe saber de possíveisaventuras minhas? Deseja conhecer-me para tirar experiencia para vocé mesma?

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Deveha eu selecionar o material que possa servir de estímulo moral? Ao contrario,revelar algo nada moral, mas que possa ser superado e como? Realmente a tarefaé dura e provavelmente precisaría dedicar mais tempo e esforgo" (D. Antipoff,1975, pp. 174-175).(6) "Conselho de operarios e soldados que se multiplicavam no imperio russo, atémesmo ñas pequeñas aldeias" (Crouzet, 1958, p. 226).(7) "Os bolcheviques, liderados por Lénin, constituíram urna facgao do PartidoOperario Social Demócrata Russo e defendiam a idéia da implantagao dosocialismo, por meio de urna revolugao armada" (Crouzet, 1958, p. 227).(8) "Instituto J. J. Rousseau. Escola de Ciencia da Educagao. Senhora HelenaAntipoff da Rússia esteve matriculada no Instituto Jean-Jacques Rousseau comoaluna regular por quatro semestres. Ela acompanhou os cursos e participouativamente das atividades práticas que compoem o currículo. Ela demonstrou queaproveitou plenamente desse ensino (Genebra, 15 de julho, 1914)". (InstitutoJean-Jacques Rousseau, 1914, s. p.).(9) "A aptidao para o desenho implica certa habilidade motriz, estimativas detamanhos, memoria visual, senso estético etc.; a aptidao literaria exige memoriaverbal, imaginagao, juízo crítico etc." (Claparéde, 1953, p. 167).(10) "A grande guerra, as epidemias, a fome, a revolugao (...) formou um grupoconsiderável de individuos, menores, sem familia, sem domicilio, sem ocupagaodeterminada (...). A proporgao dessas changas abandonadas foi tal que o governorusso teve de organizar postos para albergar esses bandos de nómades" (H.Antipoff, 1931/1992d, p. 77).(11) "Senhora, tenho a honra de transmitir-lhe - incluindo urna copia do oficio peloqual o Conselho de Estado decide nomeá-la assistente do laboratorio de psicologíada universidade. Aceite, senhora, a expressao da minha mais elevadaconsideragao". (Genebra, 07 de Janeiro, 1926)". (Le Conseiller D'état, 1926, s. p.).(12) "Senhora, tenho a honra de informar que em notificagao da Faculdade deCiencias o departamento a encarrega, para o ano letivo de 1928-1929, dasubstituigao parcial do professor Edouard Claparéde. Entende-se que vocé vaiassumir a diregao do laboratorio. Seu pagamento será feito de acordó com ascondigoes que o Sr. Claparéde acertou com vocé e comunicou ao Departamento.Aceite, senhora, a expressao da minha mais elevada consideragao. (Genebra, 31 deoutubro, 1928)". (Le Conseiller D'état, 1928, s. p.).(13) De acordó com o que nos apresenta Helena Antipoff, destacamos algunscaracteres que eram observados na conduta da changa diante do trabalho:"interesse pelo trabalho, preocupagao com a exatidao e com a ordem,perseveranga, esforgo voluntario, resistencia á fadiga, independencia, sociabilidade,honestidade, entre outros" (H. Antipoff, 1950/1992g, p. 169).(14) Além da Reforma do Ensino em Minas Gerais, em 1927, Francisco Campos foiautor da Reforma de Ensino em ámbito nacional, em 1931. Salientamos que, nestecapítulo, quando denominamos Reforma Francisco Campos, referimo-nos á reformamineira, de 1927.(15) A ausencia de urna política nacional de educagao é um problema que nao podeser solucionado no período da Primeira República, sob o argumento de quequalquer esforgo nesse sentido feria os principios federativos previstos naconstitiiigáo (Nagle, 1974, p. 283).(16) "Órgáo responsável pela educagao na época, já que nao existia um organismoespecífico para cuidar das questoes educacionais" (Peixoto, 1981, p. 08).(17) Os professores mineiros participaram de cursos, seminarios, conferencias eatividades de observagáo no Teacher's College, da Universidade Columbia (Peixoto,1981).(18) "Senhora Antipoff está contratada como professora de psicología e,especialmente, de psicología experimental e de psicología da crianga, na EscolaNormal Oficial e na Escola de Aperfeigoamentó de Belo Horizonte. Ela também será

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responsável pela tarefa de submeter as criangas das escolas primarias aos testespsicológicos, com o objetivo de padronizar os testes, assim como apresentar osconhecimentos da técnica psicológica aos professores" (Contrato, 1929, p. 1).(19) Esse texto apresentado na IV Conferencia Nacional de Educagao, foi publicadopela Inspetoria Geral da Instrugao em seu Boletim n°. 14, em 1934, sob o títuloOrtopedia Mental ñas Classes Especiáis (Antipoff & Rezende, 1934). Foi por meiodessa publicagao que tivemos acesso á contribuigao de Antipoff á referidaconferencia.(20) "Supremo órgao de coordenagao de todas as atividades nacionais de protegaoá maternidade, á infancia e á adolescencia" (Decreto n. 2.024 citado por Netto,1941, p. 29).

Notas sobre as autorasHeulalia Charalo Rafante - Historiadora pela Universidade Federal de Ouro Preto(UFOP), Mestre em Educagao pela Universidade Federal de Sao Carlos (UFSCar),Doutoranda em Educagao pela UFSCar. Integrante do Grupo de Pesquisa TerapiaOcupacional e Educagao no Campo Socia\ - CNPq e do Núcleo UFSCar do HISTEDBR- Historia, Sociedade e Educagao no Brasil. Bolsista CNPq. Participa do Grupo deEstudos em Psicología e em Ciencias Humanas: historia e memoria, doDepartamento de Psicología e Educagao da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letrasde Ribeirao Preto/USP. Contato: [email protected]

Roseli Esquerdo Lopes - Terapeuta Ocupacional pela Universidade de Sao Paulo(USP), Especialista em Saúde Pública pela USP, Mestre em Educagao pela UFSCar eDoutora em Educagao pela Universidade Estadual de Campiñas (UNICAMP).Professora Associada do Departamento de Terapia Ocupacional e dos Programas dePós-Graduagao em Educagao e em Terapia Ocupacional da UFSCar. Integrante doNúcleo UFSCar do HISTEDBR - Historia, Sociedade e Educagao no Brasil.Coordenadora do Grupo de Pesquisa Terapia Ocupacional e Educagao no CampoSocial - CNPq. Contato: [email protected]

Data de recebimento: 18/10/2010Data de aceite: 10/03/2011

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Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola deAperfeicoamento de Belo Horizonte

Notes about the Psychology Laboratory of the Improvement School of BeloHorizonte

Ernani Henrique FazziBernardo Jefferson de Oliveira

Sergio Dias CirinoUniversidade Federal de Minas Gerais

Brasil

ResumoApresentamos algumas consideragoes históricas sobre o Laboratorio de Psicologíada Escola de Aperfeigoa mentó de Belo Horizonte (1929-1946), instituigao criadadurante o governo de Antonio Carlos de Andrada, como parte de um projeto dereforma do ensino mineiro. Além de seu papel na complementagao das aulasexpositivas, no laboratorio da escola foram realizados diversos estudos sobre apopulagao do Estado. Entre os personagens desta trama, destaca-se HelenaAntipoff, que foi a responsável pela organizagao do Laboratorio e pela diregao desuas atividades. Para complementá-las, ela criou algumas instituigoes destinadas aamparar aquelas changas que eram prejudicadas pelos processos de classificagao eagrupamento entao empregados. Essas outras instituigoes receberam laboratoriospróprios que engendraram urna cadeia funcionalmente articulada. Inspirados nomodelo de análise genealógica de Michel Foucault, buscamos evidenciar urnaparcela da rede de "saberes/poderes" que perpassou o Laboratorio e modelou afeigao de suas produgoes.

Palavras-chave: laboratorio de psicología; Escola de Aperfeigoa mentó; HelenaAntipoff.

AbstractWe present some historical considerations about the Psychology Laboratory of theImprovement School of Belo Horizonte (1929-1946), which was created duringAntonio Carlos de Andrada's government, as part of an education reform project inMinas Gerais. Beyond its role in expositive classes, several studies on the Statepopulation were accomplished within it. Among this plot's characters HelenaAntipoff stands out. She was responsible for the Laboratory organization anddirection of its activities. In order to complement such activities, she created someinstitutions designated to support those children who were harmed by classificationand grouping processes applied then. Such institutions received their ownlaboratories which created a well articulated chain. Inspired by Michel Foucaultgenealogic analysis model, we seek to show part of the "knowledge/power" netwhich spanned the Laboratory and modeled its production features.

Keywords: psychology laboratory; Improvement School; Helena Antipoff.

No ano de 1929, iniciou-se, na cidade de Belo Horizonte, um curso de qualificagaopara professores primarios. Ministrado na Escola de Aperfeigoa mentó, esse cursodispunha de um Laboratorio de Psicología Experimental construido de acordó comos modelos vigentes na época e, nesse Laboratorio, foram realizadas investigagoessobre varios temas, como: inteligencia, ideáis e interesses das criangas, a relagaoentre o meio social e a aprendizagem, vocabulario, orientagao e selegaoprofissional, homogeneizagao de classes escolares, tipos de personalidade,

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• Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicologia daEscola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em 59

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memoria, motricidade, fadiga, julgamento moral, além da adaptagao e criagao denumerosos testes para medidas psicológicas e verificagao do rendimento escolar.Esse Laboratorio foi desativado em 1946 e pouco se sabe das razoes envolvidas emtal ocaso. Em 1953, um incendio destruiu os arquivos da extinta Escola deAperfeigoamentó, apagando grande parte dessa memoria.Fazzi (2005) procurou reconstruir a historia desse Laboratorio no contexto científicoe social da época, resgatando a fungao que ele exercia a partir de alguns elementosque "sobreviveram" ao incendio: publicagoes do Laboratorio, manuscritos, fotos,artigos de jomáis, biografías, entrevistas, livros, teses, boletins etc. Oferecemosaqui um relato conciso dessa versao histórica, objetivando apresentar aquele que éconsiderado um dos primeiros laboratorios de psicologia do Brasil.Nosso relato foi inspirado no modelo de análise genealógica de Michel Foucault, queconsiste numa investigagao sobre como os jogos de poder participam da produgaode saberes. Sobre a palavra "poder" cabe um pequeño esclarecimento, pois se autilizarmos sem explicitar seu sentido técnico, corremos o risco de induzir a variosmal-entendidos a respeito de sua identidade, forma e unidade (Foucault,1976/2001). Na genealogía, esse termo recebe urna conotagao distinta daquelaoferecida pela linguagem coloquial. O poder nao é considerado apenas coercitivo edeletério, mas edificador. As agoes que rotulamos como éticas sao, nessaperspectiva, produzidas pelo poder, que também deixa de ser considerado urnapropriedade exclusiva de poucos, e, em especial, do Estado, mostrando-se dispersoñas mais diversas práticas da vida social.

A criagao da Escola de AperfeicoamentoEm 1929, quando o Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeigoa mentócomegou a funcionar, Minas Gerais estava em pleno Governo de Antonio CarlosRibeiro de Andrada, num momento que pode ser considerado o ápice daimplantagao de urna reforma do ensino que ganhava maiores proporgoes desde1927. Antonio Carlos foi eleito para a Presidencia do Estado, sem concurrente, nodia 7 de setembro de 1926, permanecendo no cargo até 1930, quando, entao,concorreria á Presidencia da República. Para conduzir um projeto de reforma doensino, ele nomeou Francisco Luís da Silva Campos, que ocupou, até 1930, aSecretaria do Interior, pasta responsável pelas questoes educacionais, e que, maistarde, como ministro do governo de Getúlio Vargas, tornou-se um dos principáisarticuladores de urna profunda reformulagao do sistema educacional no país.Naquele momento, as iniciativas tomadas conjugavam a renovagao do ensinoprimario com a reorientagao na formagao de professores, elaboragao de manuais erevistas, realizagao de congressos e conferencias, oferta de cursos, envió deprofessores brasileiros para o exterior e contratagao de professores estrangeiros. Arenovagao do ensino primario dependía, dentre outras coisas, da preparagao dosprofessores, ou seja, da qualidade dos cursos normáis que formavam taisprofessores que seriam diretamente responsaveis pela educagao das changas.Para alavancar o processo de aperfeigoa mentó de professores, foi criada urnaescola de nome bastante sugestivo: Escola de Aperfeigoamento. A Escola, quedifícilmente poderia ser montada num curto espago de tempo, só comegou afuncionar em 1929 - penúltimo ano da administragao de Antonio Carlos - no predioda Escola Maternal, que havia sido criada em 1925, e que se situava á AvenidaParaopeba, hoje Avenida Augusto de Lima, na regiao central de Belo Horizonte.Posteriormente, a Escola de Aperfeigoamento foi transferida para outro predio namesma avenida: o atual Minascentro.

Conforme noticiou a imprensa da época, a inauguragao da Escola deAperfeigoamento "vem fechar a serie de altos emprehendimentos da actualadministragao, relativos ao ensino" (Escola de Aperfeigoamento, 1929, p. 11). Epara que esse fechamento se desse com éxito, foi preciso equipar a Escola com oque houvesse de mais moderno ñas tendencias educacionais, tais como um

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• Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicoiogia daEscola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em 60

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Laboratorio de Psicoiogia Experimental. Naquele período, a interagao da psicoiogiacom a pedagogía foi aquecida pela propagagao das idéias escolanovistas, quepretendiam reformular o antigo sistema de ensino, estigmatizado pela posigaoautoritaria dos professores e por métodos que enfatizavam a repetigao (decorarsentengas, por exemplo) em detrimento da compreensao. Vale observar que oscampos da psicoiogia e da pedagogía ganhavam mutuamente forga e legitimidadecom tal interagao. Enquanto a psicoiogia, sobretudo a nova psicoiogia experimental,dava cientificidade as medidas educacionais, sua utilidade no terreno educacionalajudava sua consolidagao como ciencia e sua institucionalizagao. Fundamentospsicológicos e sociológicos estavam na base das idéias e propostas do movimentoescolanovista que inspirava as reformas educacionais de Francisco Campos.Ainda que a reforma concernente á fundagao da Escola de Aperfeigoamentó naodeterminasse o conteúdo das materias a serem lecionadas, ela assinalava apsicoiogia experimental como a única disciplina de "psicoiogia" do curso. Nessecontexto, o adjetivo "experimental" revela urna perspectiva que toma comonecessários os modelos laboratoriais para a formagao das normalistas, "pois é oúnico caminho ou, pelo menos, o caminho mais eficaz e o que garante o progresso:o método experimental" (H. Antipoff, 1935/1992a, p. 262). Nesta perspectiva, parao progresso, nao bastava teorizar sobre a experimentagao. Era preciso vivenciá-lanaquele que é seu ambiente prototípico - o laboratorio -, porque

essa vontade de verdade, como os outrossistemas de exclusao, apóia-se sobre um suporteinstitucional: é, ao mesmo tempo, reforgada ereconduzida por todo um compacto conjunto depráticas como a pedagogía, é claro, como osistema dos livros, da edigao, das bibliotecas,como as sociedades de sabios outrora, oslaboratorios hoje (Foucault, 1971/1996, p. 17).

Assim, o Decreto n. 8.987, de 22 de fevereiro de 1929, que aprova o regulamentoda Escola de Aperfeigoa mentó, estabelece em seu artigo 5o que:

A Escola de Aperfeigoa mentó terá: um director,um professor de pedología e psychologiaexperimental, dois de desenho e modelagem, doisde methodologia, um de educagao physica.O director da Escola será professor de legislagaoescolar de Minas e nogoes de direito constitucional(Decreto n. 8.987, 1929, p. 1).

Na verdade, havia urna cadeira, composta por duas materias, denominada"pedología e psychologia experimental". A pedología seria ministrada no primeiroperíodo do curso, enquanto a psicoiogia experimental seria ministrada no segundo.Para assumir essa cadeira e a diregao dos trabalhos do Laboratorio, o governoconvidou a psicóloga russa Helena Wladimirna Antipoff (1892-1974), que acaboupor se tornar urna referencia fundamental na historia da psicoiogia no Brasil.Helena Antipoff havia estudado no Laboratorio Binet-Simon e no Instituto JeanJacques Rousseau, e tinha contato estreito com Édouard Claparéde, o que davapeso a suas idéias e iniciativas (1).

A configuracao inicial do Laboratorio de PsicoiogiaEntre as raras fontes que trazem detalhes sobre o Laboratorio de Psicoiogia daEscola de Aperfeigoamento, destaca-se urna que foi publicada, em tres partescomplementares, no jornal Minas Geraes dos dias 11, 12 e 14 de dezembro de1929. Trata-se de urna reportagem (Exposigao de trabalhos, 1929a, 1929b, 1929c),cujo autor nao foi especificado, e que relata sua visita a urna mostra de trabalhosda Escola de Aperfeigoamento. Ele descreveu minuciosamente o que encontrou,fornecendo aos leitores urna imagem do que a Escola possuía e do que produziam

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os cursos lá ministrados. No caso da psicología, havia um departamento divididoem tres instancias: a) o Laboratorio, identificado com um conjunto de aparelhosorganizados numa sala, b) outra sala, que nao recebeu nenhum nome específico, eque continha material referente a testes, e c) o Museu da Changa, que seria urnaespecie de banco de dados levantados pelas alunas/pesquisadoras edisponibilizados para outros pesquisadores.De acordó com o relato jornalístico, o Laboratorio de Psicología estava disposto daseguinte forma:

Na primeira sala, vamos encontrar os apparelhos,muitos delles delicados e de grande precisao, queconstituem o laboratorio de psychologia e sedistribuem em tres secgoes: psychophysica,psychodynamica e psychochronometria.Observamos, na primeira secgao: urna serie depegas para avaliagao da sensibilidadediscriminativa dos pesos; o tonómetro deHornbostel, para medir a acuidade auditivamusical; o compasso de Sperman, os cartoes deBinet, que nos permittem a medida dasensibilidade táctil; o pressiometro, que noselucida sobre a sensibilidade Kinesthesica; osdiscos rotativos e as las de Holmgren para averificagao do daltonismo; o Kinematometro deHeumann, registrador da precisao dosmovimentos, etc. Na segunda secgao: odynamometro de Collin, que mede a forgamuscular; o ergographo a mao, destinado aregistrar a fadiga e o trabalho muscular.Finalmente, na terceira: o chronoscopiod'Arsonval, que nos inteira sobre o tempo dereacgao; o Kimographo de Ludvig, de funcgaoregistradora, e o tachistocopio, para pesquisasrelativas á attengao (Exposigao de trabalhos,1929c).

Os testes, traduzidos e adaptados á realidade brasileira, ficavam numa sala á parte.Dentre eles, o autor destacou os de "Goodenough", "Dearborn", "Alice Descceudres"e "Binet-Simon", além daquilo que chamou de "documentagao nossa"; urnaprovável alusao a alguns resultados colhidos, assim como a questionários erecursos do género elaborados pelas proprias alunas da Escola de Aperfeigoamento.Portanto, o departamento de psicología incluía o Laboratorio, o Museu da Changa ea tal sala de testes, cujos propósitos eram complementares. O Museu da Changa,fundado por Helena Antipoff em outubro de 1929, seria um "centro de pesquisarelativo á crianga, um centro pedagógico" (H. Antipoff, 1930/1982, p. 63),contendo um banco de dados referente as principáis pesquisas disponíveis sobre acrianga brasileira e servindo, em especial, as "futuras" ex-alunas da Escola deAperfeigoamento, para que elas pudessem receber, ali, as diregoes necessáriaspara a continuidade de seus trabalhos. Isto pode, em nosso ver, ser consideradocomo urna estrategia de manutengao do vínculo estabelecido ao longo da formagao.O Museu ficaria incumbido de armazenar informagoes acerca da crianga brasileira,que embasariam os trabalhos do Laboratorio. Por outro lado, os resultados de taistrabalhos realizados no Laboratorio seriam coligidos no Museu.No decorrer dos anos, os termos referentes a essas tres subdivisoes dodepartamento de psicología nao foram empregados de forma rígida. Encontramosem algumas fontes, por exemplo, a palavra "laboratorio" representando todo o

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"departamento" ou ligada a práticas que, inicialmente, pareciam ser deresponsabilidade daquela sala destinada á aplicagao de testes psicológicos.Retomando a exposigao de trabalhos da Escola de Aperfeigoamento, cabe citar umfato pitoresco: ao falar sobre a documentagao contida na sala de testes, queinformava sobre a realidade brasileira, o jornalista ressaltou com entusiasmo osresultados de um inquérito dirigido as criangas da cidade. O que ele nao poderiaprever é que esta investigagao, publicada em forma de artigo no ano seguinte (H.Antipoff, 1930/1992b), desagradaría profundamente alguns representantes daIgreja Católica. Os "ideáis e interesses das criangas de Belo Horizonte" trouxeram ainformagao de que as criangas avahadas tinham pouco gosto por questoesreligiosas. Esse foi o estopim de urna querela que marcou a historia do Laboratorioe de sua diretora. O padre Alvaro de Albuquerque Negromonte, vigário da Igreja daBoa Viagem, tomou conhecimento do fato, e com sua "penna, sempre promptapara a defesa dos sacratissimos interesses da Igreja e da Patria" (Pe A.Negromonte, 1930), dirigiu violentos ataques á pessoa de Helena Antipoff, muitomais que á pesquisa por ela conduzida. Ele ficou indignado com as afirmagoespresentes nos "ideáis", considerando-as típicas de urna pessoa com ideologíacomunista e que combatía a religiao católica professada no Brasil (Ullmann, 1991).Assim, associou os resultados da publicagao á origem russa de Helena Antipoff,dando forgas a urna reivindicagao da Igreja de que "querer-se o Brasil sem oCatholicismo é querer-se um Brasil que nao é brasileiro" (Negromonte, 1930, p. 1).

O incentivo aos testes psicológicosO Decreto n. 9.653, de 30 de agosto de 1930, publicado nos últimos dias domandato de Antonio Carlos, destoa de sua postura liberal e dos investimentos quesua administragao fez para a montagem do Laboratorio. O que ele traz de diferenteem relagao ao decreto anterior, de 1929, é a explicitagao de um sistema decontrole sobre as práticas educacionais e, em especial, sobre a pesquisa na Escolade aperfeigoamento (Decreto n. 9.653, 1930). Podemos apontar o sentido dessenovo decreto em poucas palavras: qualquer proposta de investigagao deveria,primeiramente, ser aprovada em reuniao de professores e pelo diretor. Foi oacréscimo deste mecanismo legal de controle que fez a diferenga, pois osprofessores perderam urna parcela da liberdade necessária para "experimentar" eprecisaram agir de acordó com demandas educacionais bem definidas, pelo que eraaprovado em primeira instancia por seus superiores. Esse processo de restrigao dapesquisa na Escola de Aperfeigoamento tomou folego no ano seguinte, reforgando asuspeita de que o decreto estava em sintonía com um rearranjo de forgas, do qualas negociagoes para fortalecí mentó da candidatura de Antonio Carlos á Presidenciada República era um dos componentes.O Laboratorio de Psicología voltou-se para a aplicagao de testes ñas criangas darede escolar mineira, a fim de agrupá-las em níveis aproximados de condigoesfísicas e mentáis ñas chamadas classes homogéneas. Quanto aqueles diversos"instrumentos de latao" importados pelo governo mineiro, eles, em raríssimasvezes, sao mencionados ñas fontes que consultamos. Em compensagao, semprepresentes estiveram os testes, geralmente conjugados por lápis e papel. Essademanda para usar testes e separar criangas em classes homogéneas é anterior ácriagao da Escola de Aperfeigoamento. Campos (1989) informa que o regulamentodo ensino primario, elaborado por Francisco Campos em 1927, prescrevia oestabelecimento de classes especiáis para as criangas consideradas "retardadas".Contudo, esse procedimento somente comegou a ser concretizado a partir doprimeiro experimento de homogeneizagao de classes, que Theodore Simón realizouem dois grupos escolares no ano de 1929. Se a demanda por homogeneizagao declasses estava presente na reforma do ensino que Francisco Campos formuloudurante o governo de Antonio Carlos, nao é de se estranhar que ela venhareaparecer mais tarde nos empreendimentos educacionais do Governo Vargas, do

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qual Campos se tornou pega fundamental. Nesse sentido, Antipoff devia prepararoutras professoras para a correta utilizagao dos testes. Um contrato assinado no dia23 de novembro de 1932 serve de exemplo. Sua primeira cláusula salienta que

M— Antipoff é contratada na qualidade deprofessora de psicologia e, especialmente, depsicologia experimental e de psicologia da changa,na Escola de Aperfeigoamentó de Belo Horizonte,e se obriga especialmente a submeter os alunosdas escolas primarias a provas psicológicas, tendopor escopo a graduagao dos testes, assim comopor o pessoal docente ao corrente da técnicapsicológica (Termo de contrato, 1932)

Assim, o Laboratorio de Psicologia Experimental foi montado, com grandeinvestimento do governo do Estado, que comprou todos os aparelhos necessários;funcionou cerca de um ano e meio sob um regulamento que dava aos professoresmaior liberdade de agao e foi posteriormente submetido a mecanismos de controlee destinado á aplicagao de testes psicológicos. Estes eram os recursos maismodernos disponíveis para conhecer as características mentáis das criangas(Lourengo, 2001a). O que se fazia na Escola de Aperfeigoa mentó estava emsintonia com os avangos no campo da psicologia científica no cenário internacional,os quais Francisco Campos acompanhava. Na época, discutia-se a possibilidade deconhecer os temperamentos humanos sem a necessidade do aparelhamento doslaboratorios de psicologia (Cesar, 1929). Quando o Laboratorio da Escola deAperfeigoa mentó foi montado, a psicologia, enquanto ciencia recente, trilhava umdistanciamento de outras áreas do conhecimento com as quais estiveraintimamente entrelagada, como a filosofía, e fortalecía sua autonomía seapropriando de modelos de investigagao mais objetivos, inspirando-se em cienciasmais consolidadas como a fisiología. Essa fase de transigao, de elaboragao de novosrecursos como os testes psicológicos, também marcou o contexto de criagao doLaboratorio, quando sua identidade e sua fungao estavam sendo definidas.Enquanto o departamento de psicologia colaborava com o projeto dehomogeneizagao de classes escolares e utilizava essa prestagao de servigos comourna forma de colher dados de pesquisa através dos testes aplicados, foramdiagnosticados alguns problemas que possivelmente nao poderiam ser enfrentadosno interior da Escola de Aperfeigoamento.

Vínculos e a propagacao dos laboratoriosA tentativa de melhorar a qualidade do ensino através da homogeneizagao dasclasses escolares logo comegou a produzir efeitos colaterais, urna vez que osprofessores dispunham de poucos recursos para lidar com aqueles que semostravam distantes da media de inteligencia. Ao mesmo tempo em que percebiatais disparidades, pois participava da avaliagao das criangas, Helena Antipoff sentia-se limitada para agir a partir da Escola de Aperfeigoamento. Para oferecer maiorauxilio aos necessitados, seria imprescindível que ela buscasse espagos quetrouxessem maior autonomía; espagos que permitissem a descoberta de novasformas de amparar aqueles que eram rotulados de "retardados". Foi assim que,inicialmente,

A própria Helena Antipoff percebeu que a escolapública e a Escola de Aperfeigoamento poucovinham conseguindo fazer pela infanciaexcepcional e em 1932 criou a SociedadePestalozzi de Belo Horizonte. Esta foi urnaalternativa para angariar a assisténcia necessáriaá complementagao do treinamento dasprofessoras no ensino do excepcional, do

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diagnóstico psicológico e do atendimento clínicooferecidos no Laboratorio de Psicologia da Escolade Aperfeigoamento Pedagógico (Lourengo,2001b, p. 51-52).

A Sociedade Pestalozzi foi fundada no Laboratorio de Psicologia da Escoja deAperfeigoa mentó (Lima, 1983). Na ocasiao, Helena Antipoff convidou o padre AlvaroNegromonte, que assumiu a vice-presidéncia da Sociedade, transformando, assim,em aliado, aquele que muito a atacou. Se a Sociedade Pestalozzi, "cuja finalidade é,entre outras, amparar a changa abandonada ou desviada dos caminhos próprios dainfancia" (H. Antipoff, 1934/1992c, p. 119), surgiu de urna necessidade prática,seus desdobramentos conduziram a complementos do ponto de vista experimental,ou seja, Helena Antipoff pode conduzir, naquele espago, algumas investigagoes quepossivelmente - em fungao do decreto de 30 de agosto de 1930 - foramrestringidas na Escola de Aperfeigoamento.A partir do Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeigoamento nasceram outroslaboratorios e outras escolas que auxiliaram no treinamento de professores. Todasessas criagoes foram marcadas por confrontos, impasses e conciliagoes. Porexemplo, com a mobilizagao de importantes personalidades mineiras, Antipoffconseguiu que fosse construido um pequeño pavilhao localizado á Rúa Ouro Preto624, que foi inaugurado em 28 de outubro de 1934, onde foi instalada urna EscolaAtiva - o Instituto Pestalozzi - para educagao de criangas excepcionais edesamparadas. Agregado á escola, funcionava um laboratorio de análises clínicas,um consultorio médico pedagógico e algumas oficinas de trabalho (Guimaraes,1988). As ex-alunas da Escola de Aperfeigoamento foram as principáiscolaboradoras daqueles empreendimentos. Além do prestigio de que gozavam emfungao da obtengao do diploma da referida Escola, elas conquistaram, juntamentecom Antipoff, um maior destaque na sociedade política e intelectual. O Laboratorioda Escola de Aperfeigoamento forneceu a mao-de-obra especializada para queinstituigoes semelhantes pudessem funcionar. Posteriormente, disseminaram-se,por outros Estados, novos centros regionais da Pestalozzi coordenados por ex-alunas da Escola de Aperfeigoamento.A rede laboratorial envolvía outras práticas e atividades que merecem serconsideradas. Helena Antipoff criava ratos albinos - em caixotes - nos fundos desua casa, em Belo Horizonte, e, também, construía modestos aparelhos (Veloso,1972). As pesquisas que utilizavam os ratos como sujeitos iam além dos períodosletivos, já que ñas ferias ela realizava experiencias sobre aprendizagem no queparecía ser um laboratorio próprio, um tanto quanto rústico. Em algumas daspesquisas, registrava e cronometrava o comportamento daqueles animáis emlabirintos.O Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeigoamento conduziu Antipoff aoplanejamento de outras obras (Guimaraes, 1991). Dele surgiu a SociedadePestalozzi, cujos desdobramentos transformaram os empreendimentos de Antipoffnuma complexa rede, que se ampliou com a fundagao da Fazenda do Rosario, porela considerada sua mais importante obra (Magalhaes, 1983). Localizada nomunicipio de Ibirité, um dos principáis objetivos dessa fazenda-escola era o deeducar criangas excepcionais e/ou abandonadas, através de métodos da EscolaAtiva. Cabe ressaltar que o padre Negromonte também esteve ao lado de Antipoffno momento em que foi identificado o terreno onde seria plantado o novoempreendimento (Lima, 1983). Com o auxilio de pessoas influentes na sociedade,ela "fez da Fazenda o seu laboratorio" (Tibo, 1992, p. 44).Nao somente a Fazenda do Rosario como um todo se transformou num laboratorio,mas também recebeu um laboratorio próprio, chamado de laboratorio "ÉdouardClaparéde". Há indicios de que foi o segundo laboratorio por ela criado no Brasil (D.Antipoff, 1985). Nao foram encontradas fontes que comprovassem tal fato, poispoderia ser o da Sociedade Pestalozzi, aquele nos fundos de sua casa, etc. Certo é

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que a rede laboratorial foi tomando maiores proporgoes. E esse crescimento trouxeum efeito evanescente sobre o nome do Laboratorio de Psicología da Escola deAperfeigoamento. Em outras palavras, os trabalhos realizados na Escola deAperfeigoa mentó cederam seu lugar de destaque para os novos laboratoriosidentificados por seu caráter assistencial. O Laboratorio Édouard Claparéde era detal forma identificado com a pessoa de sua criadora que era chamado de "OLaboratorio de Dona Helena" - cf. Alkmim (1980) e Carneiro (1980). Outras agoes,premios e condecoragoes contribuíram para reforgar na historiografía oprotagonismo de Antipoff (Campos e Lourengo, 2001).

Urna memoria consumida pelas chamasPor volta de seu décimo sétimo aniversario, o Laboratorio de Psicología foi extintojuntamente com a Escola de Aperfeigoamento, o que surpreendeu todo o corpodocente, que sequer imaginava tal destino como urna possibilidade. A diretora sótomou conhecimento do fato quando este já estava consumado, publicado emjornal (Prates, 1989). A Escola de Aperfeigoamento foi incorporada ao Instituto deEducagao de Minas Gerais, na qualidade de Curso de Administragao Escolar. Entreas justificativas para esta mudanga estava a necessidade de evitar a superposigaode cursos e recursos para os mesmos objetivos, de criar unidades de agaoeducativa para que os esforgos fossem mais rentaveis (Pimentel, 1946).No decreto que versa sobre essas mudangas, há, inclusive, a especificagao de umlaboratorio de psicología para o Instituto de Educagao (Decreto-leí n. 1.666, 1946),como também a prescrigao da remuneragao dos assistentes desse novo laboratorio.Porém, é preciso esclarecer que nao ocorreu simplesmente urna transposigao doLaboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento para outro local. Em vezdisso, ele foi substituido por outro laboratorio, já que

Um material ¡menso advindo do antigo laboratoriode Psicología foi empilhado em sucessivas salasdo Instituto de Educagao de Minas Gerais.Ninguém mais quis tirar conclusoes de preciosomaterial de pesquisa, obtido mediante milharesde aplicagoes de testes em changas, adolescentese adultos. O que sobrou da antiga Escola criadapelo Presidente Antonio Carlos passou a serentregue ao mofo, aos ratos ou á poeira, até o diade um pavoroso incendio que destruiu as salas doInstituto de Educagao, consumindo os restos deurna obra de envergadura que tinha dado a MinasGerais, durante duas décadas, a lideranga daeducagao primaria no país (D. Antipoff, 1996, p.134).

O Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento nao foi extinto somenteenquanto instituigao. Sua desaparigao também se deu no nivel da memoria.Vivenciamos isto em todos os momentos em que procurávamos por fontes quepermitissem escrever esta historia. Ao organizarmos aquelas que encontramos,sentimo-nos como que diante da figura de um quebra-cabega montado com urnapequeña parcela das pegas. Como urna especie de consolo, descubrimos que apesardo incendio, a problemática a respeito da preservagao da memoria parece nao serrestrita ao Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento, pois mudangaspolíticas e administrativas, a falta de recursos financeiros e estímulo á pesquisamarcaram a historia dos primeiros laboratorios de psicología no Brasil. Algunsdesapareceram sem deixar vestigios. Outros ficaram desatualizados e nao foramconservados, com perda gradativa do material remanescente (Pfromm Netto,2004).

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• Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología daEscola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em 66

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Consideragóes fináisA aplicagao de testes para selegao de changas em classes homogéneas foi urna dasprincipáis demandas ao departamento de psicología da Escola de Aperfeigoamento.Quanto ao Laboratorio que ajudava a compor esse departamento, sua participagaono processo de "testagem" psicológica era constantemente reafirmada. Em geral,quando se dizia o nome "laboratorio", nao havia urna especificagao sobre o que oconstituía, tal como a encontrada no relato daquela exposigao de trabalhos de1929, em que o Laboratorio foi identificado com um conjunto de aparelhosdestinados a mensuragoes de processos motores e sensoriais. Ao que tudo indica, adivisao nao se manteve, pois observamos, ao longo da historia, os nomes doLaboratorio e do Museu da Crianga aparecendo como representantes de todo odepartamento de psicología.Acreditamos que houve urna modificagao na concepgao de laboratorio vigente naEscola de Aperfeigoamento: num primeiro momento, anterior ao Decreto de 1930,o Laboratorio de Psicología era um conjunto de "instrumentos de latao". Talvez sejapor esta razao que Helena Antipoff tenha concedido a autoría daquele polémicoestudo, sobre os ideáis e interesses, ao Museu da Crianga, urna vez que nesteestudo foi utilizado um questionário e nao aparelhos que tinham maior ligagao comanálises de física e fisiología. Com a publicagao do decreto de 1930, que valorizoutrabalhos diretamente ligados á prática educacional, os testes psicológicos sedestacaram como os mais adequados para esses propósitos, já que avaliavamprocessos mentáis mais complexos, se comparados aos "instrumentos de latao".Pensando no Laboratorio em sua primeira versao, podemos perceber que variosdaqueles instrumentos continuaram sendo usados como recursos didáticos. Mesmoo ensino dos processos mentáis e comportamentais básicos, que requería o uso dos"instrumentos de latao" para demonstragao, tinha urna relagao com os testes, jáque eles diagnosticavam e selecionavam com base em tais processos. Desse modo,as alunas aprendiam sobre a constituigao biológica, psicológica e social dossujeitos, a fim de adquirirem maior clareza sobre o processo de aplicagao dostestes. Para avahar a personalidade era preciso conhecer seu processo deforma gao.O Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento cumpria urna fungao depesquisa, baseando-se principalmente na metodología experimental relativa aostestes psicológicos para avahar o sujeito em suas múltipas dimensoes. Ele cumpriaurna fungao de ensino, servindo como ambiente catalisador da integragao entreteoria e prática, ou seja, como um local onde as professoras-alunas vivenciavamsituagoes elucidativas do desenvolvimento psicológico e da prática educacional. Etambém cumpria urna fungao instrumental na viabilizagao da teoria educacional deselegao de criangas em classes homogéneas. Além dessas, nao podemos esqueceras diversas fungoes políticas que desempenhava, tanto na afirmagao do campo dapsicología como ciencia, e, dentro desse campo, da perspectiva escolanovista quereforgava a importancia dos fundamentos psicológicos para a educagao; comocávalo de batalha entre representantes da igreja católica em busca da retomada deespago perdido no cenário educacional brasileiro; como também na projegao deurna identidade progressista do governo do estado de Minas Gerais, que sepromoveu como moderno e liberal ao dar suporte ao projeto.Tentamos oferecer algumas contribuigoes para aqueles que se interessam pelahistoria da psicología, mas estamos certos de que nosso esforgo deixou pendencias.Esperamos que o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento sejarepensado á luz de outras perspectivas, que, certamente, produzirao novosresultados. Talvez a presente investigagao possa fazer parte de urna futuraapreciagao crítica, como fizemos com trabalhos passados.

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• Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología daEscola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em 67

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• Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología daEscola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em 68

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Exposigao de trabalhos da Escola de Aperfeigoamento. (1929a, 11 de dezembro).Minas Geraes, 9-10.

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• Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología daEscola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em 69

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Nota(1) Outras informagoes sobre a relagao de Antipoff com a psicología no Brasilpodem ser encontradas em Campos, Lourengo e Antonini (2002); e sobre ocontexto de criagao da Escola de Aperfeigoamentó em Peixoto (1983) e Prates(1989).

Nota sobre os autores:Ernani Henrique Fazzi é graduado em Psicología e Mestre em Educagao pela UFMG.Trabalha na Prefeitura de Belo Horizonte e em consultorio particular. Contato:[email protected].

Bernardo Jefferson de Oliveira é doutor em Filosofía pela UFMG. É professorassociado da Faculdade de Educagao da UFMG e bolsista de produtividade do CNPq.Contato: [email protected].

Sergio Dias Cirino é doutor em Psicología pela USP. É professor associado naFaculdade de Educagao da UFMG e bolsista de produtividade do CNPq.Contato: [email protected].

Data de recebimento: 12/02/2010Data de aceite: 17/03/2011

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Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología dodesenvolvimento e da producao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum,20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01

A narracáo da historia da psicología dodesenvolvimento e da producao sobre a infancia nos

livros didáticos

The narration of the history of developmental psychology and of theproduction about childhood in didactic books

Maria Cristina S. de GouveaPriscilla Nogueira Bahiense

Universidade Federal de Minas GeraisBrasil

ResumoNo presente trabalho procuramos analisar a apresentacao da constituigao históricada psicología do desenvolvimento nos manuais de ensino da disciplina dirigidos aoensino superior. Tendo em vista a afirmagao histórica de urna escola centrada nacrianga/aluno, os cursos de formagao inicial e continuada conferiram destaque aoestudo dos processos de desenvolvimento, da infancia a idade adulta, tido comofundamental para a qualificagao do educador e psicólogo escolar. Faz-seimportante, portanto, compreender que saberes foram e sao transmitidos nointerior desta disciplina, com que estrategias e recursos didáticos. Ao realizarmosas análises, verificamos nos compendios que a narrativa histórica mostra-se linear,centrada no registro dos principáis autores e seus feitos. Nao é estabelecida relagaoentre o processo de constituigao da disciplina e os processos históricos maisampios, nem é construida urna análise das condigoes de produgao dos saberes, astensoes na afirmagao do campo. Por outro, o relato evolutivo faz-se desvinculadode urna problematizagao histórica. Com isso, apresenta-se ao leitor, urna visao a -histórica da disciplina, que nao permite relacionar o conhecimento produzido a seupercurso de construgao e consolidagao.

Palavras-chave: historia; psicología do desenvolvimento; livros didáticos.

AbstractIn this paper we analyze the presentation of the historical constitution of thepsychology of the development of teaching manuais of the subject aimed at highereducation. Given the historical claim of a child/student-centered school, the coursesof initial and continuing training gave prominence to the study of developmentprocesses, from childhood to adulthood, seen as crucial for the qualification of theeducator and school psychologist. It is therefore important to understand thatknowledge was and is transmitted within that discipline, and the strategies andteaching resources. By conducting the analysis, we found that in textbooks thehistorical narrative was linear, centered on the record of the main authors and theirachievements. A relationship between the process of constituting the discipline andthe broader historical processes is not established, ñor is it built an analysis of theconditions of knowledge production, the tensions in the affirmation of the field. Onthe other hand, the evolutionary account is disconnected from a historicalproblematic. Thus, it presented to the reader an ahistorical view of the discipline,which does not allow relating the knowledge produced to the path of constructionand consolidation.

Keywords: history; developmental psychology; didactic books.

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Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do 71desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum,20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01

Nos espagos de formagao dos profissionais da escola básica, um dos sabereshistóricamente priorizados tem sido o estudo dos processos de desenvolvimentohumano e, mais destacadamente, das mudangas afetivo-cognitivas operadas noindividuo, da infancia á idade adulta (1). Tal centralidade construiu-sehistóricamente, principalmente sob influencia das modernas teorías pedagógicasque, ao longo do século XX propugnaram urna escola centrada na crianga - aluno.Neste sentido, a psicología configurou-se como campo de conhecimentohegemónico na apreensao do sujeito infantil, em sua relagao com o conhecimento,ciencia entendida como capaz de conferir cientificidade as práticas pedagógicas.Os cursos de formagao inicial e continuada de professores conferiram destaque aeste campo científico, expresso na forte presenga na grade curricular da disciplinapsicología do desenvolvimento, tida como fundamental para a qualificagao doeducador. Afirmou-se históricamente a representagao do aluno como sinónimo decrianga, sendo sua identidade remetida a um pertencimento etário: a infancia,tornando opacas outras categorías informadoras de sua identidade social, tais comoclasse, género e raga/etnia. Tal sinonimia entre os termos crianga e aluno conferiucentralidade ao estudo do desenvolvimento humano, especialmente dos processosiniciáis de formagao do individuo como se tal estudo fornecesse elementossuficientes para compreensao da identidade do aluno. Como afirma Narodowski(1994), se crianga e aluno referem-se usualmente ao mesmo sujeito empírico,correspondem a objetos epistémicos diferenciados, tornados históricamenteequivalentes na produgao educacional.Urna serie de trabalhos vem se debrugando sobre esta temática, tanto no campo dapsicología, quanto no da educagao, contemplando a construgao da centralidade dapsicología e, mais exatamente da psicología do desenvolvimento nos currículos emateriais didáticos dos cursos de formagao docente (2). Com isso verifica-se que oestudo dos processos de aprendizagem no contexto escolar foi reduzido a análisedos estágios do desenvolvimento humano da infancia á idade adulta,descontextualizados do seu contexto sociohistórico.Tal crítica, tornada freqüente a partir das últimas décadas do século XX (videLarocca, 1999) fez emergir urna produgao diferenciada no campo da educagao,indicando urna renovagao dos olhares sobre o aluno. Se predominava um"psicologismo" (Larocca, 1999) no estudo da relagao que o individuo estabelececom o conhecimento, esta apreensao tem sido ressignificada a partir da emergenciade campos como sociología, antropología e historia da infancia, levando a urnaprodugao interdisciplinar sobre o tema e quebrando a hegemonía histórica dadisciplina psicología (3). Tais campos investigativos tomam a crianga como sujeitosociohistórico cultural e apontam como o desenvolvimento do individuo constituíum processo ativo de apropriagao da cultura (vide, entre outros, Corsaro, 2011).Por outro, verifica-se a presenga de estudos no campo da historia da psicología queapresentam um olhar crítico sobre a emergencia da psicología do desenvolvimento.Assim é que Plotkin (2004), no seu estudo sobre o olhar evolutivo no campo dapsicología, aponta que tal perspectiva emergente no século XIX é renovada ao finaldos séculos XX e XXI sob a forma de investigagoes em etologia e sociobiologia.Shuttleworth (2010) contempla a emergencia de estudos sobre o desenvolvimentoindicando que a curiosidade sobre a infancia fazia-se presente nao apenas naprodugao científica, mas também literaria e na vida cotidiana, com a intensaprodugao de diarios sobre o desenvolvimento da crianga por pais, maes eeducadores. Para a autora, a cientificizagao e conseqüente profissionalizagao docampo significou também a masculinizagao do mesmo, já que os homens eramconsiderados como capazes de produzir urna ciencia dotada de rigor e objetividade.Gouvea e Gerken (2010) apontam como esta fundou-se no diálogo com teorías queafirmavam a relagao entre o desenvolvimento do individuo e da especie,estabelecendo urna identidade entre o pensamento infantil e o de outros

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Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do nrdesenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, ¿

20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01

povos/ragas ditos primitivos. Neste sentido, sob um viés etnocéntrico, operaramurna racializagao do estudo do desenvolvimento humano.Tendo em vista as questoes hoje postas para a psicología do desenvolvimento,indicando a necessária interdisciplinahdade no estudo dos processos dedesenvolvimento e de construgao do conhecimento, cabe apreender: como taisprocessos vém sendo estudados nos cursos de formagao de professores epsicólogos? Como os materiais didáticos abordam o estudo do desenvolvimentohumano? Como contemplam a trajetória histórica de formagao e consolidagao docampo da psicología do desenvolvimento? Em que medida incorporam urna leituracritica sobre o tema?Com base nestas questoes, buscamos desenvolver urna pesquisa sobre os saberesveiculados nos manuais didáticos de ensino de psicología do desenvolvimento. Maisespecíficamente analisar como a historia da disciplina é apresentada noscompendios, verificando se é desenvolvida urna problematizagao da mesma. Paratal, foi feita urna análise historiográfica de treze manuais didáticos, avaliando-se:como é apresentada a historia da psicología? Que relagoes sao estabelecidas com ocontexto histórico de produgao deste conhecimento? Qual a perspectivahistoriográfica de escrita da historia da psicología do desenvolvimento?Iremos apresentar a pesquisa situando inicialmente os referenciais teórico-metodológicos da mesma, contemplando posteriormente dois temas no estudo doslivros didáticos: a apresentagao do percurso de constituigao da psicología dodesenvolvimento e os referenciais do estudo do desenvolvimento humano. Por fim,iremos discutir as relagoes e implicagoes para o ensino da psicología

A nova historia e as contribuicoes para a psicologíaAo buscarmos analisar como foi escrita a historia da psicología do desenvolvimentoe da produgao de saberes sobre a infancia, recorreu-se á análise historiográfica,tomando os manuais como fontes, tentando apreender qual a perspectiva deconstrugao da narrativa deste percurso.Nesta diregao, foi estabelecido um diálogo com a chamada Nova Historia (4), quenos forneceu ferramentas teórico-metodológicas de análise desta questao. Acientificizagao da historia, ao longo do século XIX, deu-se a partir de urnaperspectiva positivista, em que a historia era apreendida como a narragao dosfatos, tomados como sucessao de acontecimentos, cujos atores eram os "grandeshomens", historia esta desvinculada de qualquer problematizagao.Foi a partir das primeiras décadas do século XX, com a emergencia da chamadaNova Historia, que construiu-se outra perspectiva historiográfica, a qual toma comoobjeto nao os grandes acontecimentos, mas as lentas transformagoes ñasestruturas que os sustentam. Por outro, os atores históricos nao se reduzem maisaos grandes homens, mas aos diferentes grupos sociais em cena, no seu fazerhistórico. Por fim, o estudo de um tema histórico faz-se a luz de urnaproblematizagao, da compreensao de seu significado no período analisado.Todas estas reflexoes fizeram emergir urna nova escrita da historia,problematizando-se as escritas anteriores. Porém, até que ponto esta revolugao naescrita da historia foi incorporada pelos autores dos manuais didáticos depsicología? Com que perspectiva a emergencia da psicología do desenvolvimento ea produgao sobre a infancia é narrada nos manuais? Até que ponto dialogaram ouincorporaram urna problematizagao da historia, ou se mostraram marcados por umviés positivista?No campo da historia da infancia, se desde a pesquisa desenvolvida por Aries(1978) - "Historia Social da Changa e da Familia", publicada inicialmente em 1962- deu-se inicio a urna fecunda tradigao de investigagoes que tomam a changa comoobjeto histórico, em diferentes períodos, contextos e espagos de insergao, em quemedida as contribuigoes de tais investigagoes sao incorporadas nos manuaisescolares de psicología do desenvolvimento?

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Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do 70desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum,20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01

É no interior desta temática e a partir dos referenciais teórico-metodológicos dahistoria da educagao, no diálogo com as teorías da historia, que busca-se aquicontemplar duas questoes particulares: a transmissao de conhecimento sobre ahistoria da disciplina "Psicología do desenvolvimento" e o lugar dos estudos sobre ainfancia nesta disciplina. Faz-se importante compreender que saberes foram e saotransmitidos no interior desta disciplina, com que estrategias e recursos didáticos.

Caracterizacao da fonte: os manuais escolares de psicología dodesenvolvimentoOs materiais didáticos e, especialmente, os compendios vém sendo intensamenteestudados nos últimos anos, contemplando nao apenas seu conteúdo textual, masseu processo de produgao, circulagao e apropriagao, a materialidade do impresso,suas características tipográficas, a luz da chamada historia cultural (vide Chartier,2003).Dentre os chamados livros didáticos, Alain Choppin (2004), um dos principáisautores de referencia do campo, destaca a pouca presenga de estudos sobre oschamados manuais escolares de materias científicas, especialmente os que circulamno ensino superior. Ao tomarmos tais materiais como objeto de investigagao,privilegiamos urna análise mais internalista, voltada para estudo dos conteúdostransmitidos na obra, contemplando o que Chopin (2004) define como:

questoes de natureza epistemológica e didáticapropriamente dita: qual(s) discurso os manuaissustentam sobre determinada disciplina e sobreseu ensino? Qual(s) concepgao(s) de historia,qual(s) teoria(s) científica(s) ou qual(s)doutrina(s) lingüística(s) representam ouprivilegiam? Qual o papel que atribuem ádisciplina? Que escolhas sao efetuadas entre osconhecimentos? Quais sao os conhecimentosfundamentáis? Como eles sao expostos,organizados? (p. 180).

Por outro, consideramos que os saberes, informagoes, autores referidos nos textos,ao circularem nos espagos de formagao docente, expressam urna busca deuniformizagao do conhecimento sobre o campo que, ao mesmo tempo em querevelam, silenciam. No dizer de Chopin (2004):

se o livro didático é um espelho, pode sertambém urna tela... a análise de livros didáticosde ciencias mostra que estes também apresentamurna visao consensual e normalizada do estado daciencia de sua época; toda controversia édeliberadamente eliminada da literatura escolar(p. 187).

Assim é que buscamos analisar que historia é contada nestes manuais, que autorese abordagens sao privilegiadas em detrimento de outras perspectivas analíticas.Considera-se que a constituigao de um campo científico envolve nao apenas aprodugao de um corpo de saberes articulado em torno de um objeto deconhecimento, de estrategias metodológicas de investigagao, mas também recursose espagos de transmissao deste conhecimento, científicamente legitimadas. Assim éque a consolidagao de urna área de conhecimento se articula com a produgaohistórica de estrategias de reprodugao dos saberes no interior do campo, maisespecíficamente com a conformagao de espagos e materiais didáticos de ensino.De acordó com Oliveira (2003):

Dentro da historiografía das ciencias, vem sedifundindo cada vez mais a perspectiva de naoconsiderar o desenvolvimento das ciencias tao

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somente a partir das seqüéncias e teorizagoes,experimentos e argumentagoes, mas de buscarenriquecer a compreensao do fenómeno científicoa partir das práticas científicas dos mecanismossociais de negociagao e legitimagao que envolvema produgao, a aceitagao e a difusao dessaspráticas (p. 103).

No caso da Psicología do Desenvolvimento, esta articula-se como campo científicodotado de identidade epistémica ao final do século XIX e inicio do século XX. Asemelhanga de outras disciplinas científicas constituiu sua legitimidade nao apenasatravés da produgao do conhecimento, mas de estrategias como criagao desociedades e periódicos científicos, organizagao de departamentos e disciplinas nointerior das instituigoes académicas e elaboragao de materiais didáticos detransmissao do corpo de saberes constituido no interior do campo.Saber o que foi priorizado na formulagao da constituigao histórica da disciplina nospossibilita entender os eixos epistémicos que fundamentaram a construgao de umolhar singular, nao apenas sobre o desenvolvimento humano, mas também sobre ainfancia, apreendida como momento estruturante da evolugao do individuo. Poroutro, permite-nos apreender a partir de qual perspectiva historiográfica talprocesso é narrado.Tendo estas questoes em mente, buscamos analisar treze manuais de psicología dodesenvolvimento acessíveis ñas Bibliotecas da Faculdade de Educagao e daFaculdade de Filosofía e Ciencias Humanas da UFMG. Ao realizarmos as análises,buscávamos tragos da visao presente em tais materiais sobre o surgimento daciencia, seus principáis autores e perspectivas teóricas de análise. Com base nestecriterio foram selecionados apenas seis (5), para urna análise mais detalhada, porconterem urna apresentagao da historia da constituigao do campo no século XIX(ainda que superficial), que se fez ausente nos demais.Chama atengao, portanto, que parte significativa das obras analisadas apresentamao aluno a disciplina sem contemplar sua historicidade, tomando os conhecimentosproduzidos pelo campo como desvinculados do contexto histórico de suaconstituigao.Os manuais investigados caracterizam-se por serem, em sua maioria, tradugoes deobras de origem norte-americana, publicadas entre as décadas de 70 e 90 doséculo XX. Gatti (1995), no estudo das obras utilizadas nos cursos de psicología,também comenta que na sua grande maioria constituem tradugao mal feita deorigináis antigos, sem revisao de conteúdos, levando a apreensao de urnapsicología abstraía, modeladora, sem pontos de coníaío com a realidade escolar.Alguns poucos sao de auíores brasileiros, observando-se significaíiva uniformizagaoda esíruíura das obras, apreensível nao apenas pela apreseníagao de capííulos comíííulos semelhaníes, geralmeníe objeíivos e siníéíicos, mas no próprio projeíoíipográfico, com ausencia de recursos visuais, uso empobrecido de cores e derecursos de diagramagao.Mesmo as obras brasileiras íém um coníeúdo semelhaníe as esírangeiras,observando-se urna exclusividade na referencia a auíores e ceñiros deinvesíigagao, quer noríe-americanos, quer europeus, desconsiderando-se qualquerprodugao de ouíros países e regioes. Correia e Peres (2001) assinalam que:

o processo de circulagao dessas obras enírecomunidades e países, de imporíagao enormalizagao desde os íííulos aíé o léxicouíilizado, em que íem lugar íransferéncias deseníidos e de conoíagoes que vao gerandodesconíinuidades e discrepancias nao reduííveis asimples adapíagoes, mas que apelam a urna

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utilizagao mais ampia do conceito de tradugao (p.198).

Assim é que nos projetos de formagao de profissionais produz-se um olhar sobre ocampo em que este é referido a apenas alguns autores e espagos de investigagao,com urna determinada perspectiva analítica, conduzindo a urna normatizagao naapropriagao do conhecimento sobre a área.

Perspectiva epistémica e historiográficaNo estudo do conteúdo das obras, verifica-se urna homogeneidade textual, em queé apresentado um rápido percurso histórico factual do surgimento da disciplina esua evolugao, fundado numa perspectiva historiográfica positivista. As informagoeshistóricas sao apresentadas na introdugao ou no primeiro capítulo, através dadescrigao dos fatos que culminaram no surgimento da ciencia da psicología dodesenvolvimento, de forma breve, apenas situando os autores e suas contribuigoes.Após urna sintética apresentagao, via de regra as obras abandonam qualquerreferencia histórica, passando a contemplar apenas a caracterizagao das distintasteorías e autores. Assim é que a historia da disciplina é pouco trabalhada nostextos. Estes priorizam a transmissao dos conhecimentos mais recentes, ou dossaberes produzidos pelos autores canónicos, desarticulados de urna perspectivahistórica, numa narrativa linear.O percurso histórico de produgao do conhecimento sobre os processos dedesenvolvimento humano é apresentado como a construgao gradativa de saberesque foram se somando e acumulando, dotados de cada vez maior cientificidade e,portanto, poder de verdade.Em "Crescimento e mudanga - introdugao á psicología do desenvolvimento", HarryMcGurk (1976) apresenta os antecedentes históricos que contribuíram para apsicología do desenvolvimento. Neste livro o autor cita desde Platao (427-347 a.C ) , que argumentava que as diferengas entre os humanos eram de base biológica,passando por filósofos do século XVII e XVIII, como Locke e Rousseau, até chegara Darwin, importante autor do século XIX. Este, "com a publicagao de Origin ofSpecies (1859) e Descent of Man (1877), contribuiu bastante para acelerar ointeresse no curso natural do desenvolvimento infantil" (McGurk, 1976, p. 19).Verifica-se que é feita urna recuperagao de autores situados em momentoshistóricos muito diferenciados, apresentando um continuum evolutivo na produgaodo conhecimento sobre o desenvolvimento humano e a crianga, desvinculado daanálise das condigoes históricas de formulagao de tais saberes, em períodos taodistintos.A referencia á influencia de Darwin reproduz-se nos diferentes manuais sem, noentanto, ser problematizada. Atribui-se a Darwin a emergencia de urna perspectivaevolucionista no campo da psicología, quando o biólogo sempre refutou estender aoutros campos para além da biología sua teoría. Mais que isto, Darwin nao usou oconceito de evolugao em seus estudos, mas o de adaptagao. Para ele, se umorganismo como urna bacteria e adaptado ao meio ele e tao evoluído quanto umorganismo de especies ditas mais complexas (Darwin, 1887/2004).Na verdade, mais que Darwin, o ideario evolucionista de Spencer é que informa oinvestimento no estudo dos processos de desenvolvimento humano (Plotkin, 2004;Gouvea & Gerken, 2010). Para Spencer, todo o universo seria marcado por urnatrajetória evolutiva, em que progresso e evolugao seriam os principios gerais detodas formas de vida e sociedade. Nos mais distintos campos científicos ao longo doséculo XIX, sob influencia de Spencer, urna abordagem evolutiva se fez presente,como na antropología, historia e, principalmente, na biología. No caso dapsicología, considerava-se que, no estudo das chamadas faculdades mentáis, estasdeveriam ser apreendidas sob um olhar evolutivo. Tais faculdades caminhariam deurna imperfeigao na infancia até chegar a complexidade do pensamento adulto.Afirmou-se ai urna perspectiva etapista denominando-se a psicología do

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desenvolvimento como psicología evolutiva, que atravessaha também o século XX.Consolidou-se urna visao adultocéntrica que desconsiderava a originalidade ecomplexidade dos processos mentáis da changa, menorizando as formas deconhecimento da changa.Tal narrativa fez-se presente nos manuais, na apresentagao histórica daemergencia da disciplina, sem um diálogo com os estudos da historia da psicologíado desenvolvimento, como os publicados por Robert Cairns (1998) e DominiqueOttavi (2004), que analisam a relagao da emergencia desta ciencia com o contextohistórico, bem como contemplam as questoes de ordem epistemológica presentes áépoca.Carmen Enderle (1993) em "Psicología do Desenvolvimento: o processo evolutivoda changa" considera que "o estudo do desenvolvimento humano inclui a pesquisados processos intrapsicológicos e mentáis que levam a mudangas decomportamento através do tempo" (p. 17). Porém nao aborda o surgimento dadisciplina numa perspectiva historiográfica. Há em seu livro um capítulo sobre o"Histórico e evolugao" da ciencia, no qual nao está presente urna descrigao maisdetalhada de seu surgimento apesar de considerar que:

Um breve histórico da evolugao da psicología dodesenvolvimento talvez seja de utilidade, pelorealce á questao metodológica, ponto nevrálgico,até hoje, da pesquisa em psicología. Por outrolado, inicia o leitor na apreensao das linhas depensamento em que se embasa a psicologíaevolutiva (Enderle, 1993, p. 19).

Ao afirmar a importancia do conhecimento histórico da evolugao da disciplina, aautora revela, na verdade, o contrario, o que se observa ao compreender que talconhecimento deve ser apresentado, talvez, de forma breve e informativa.Observa-se urna perspectiva historiográfica fundada na tradigao da chamadahistoria das idéias. Esta compreende a historia e especialmente a historia da cienciacomo resultantes da evolugao cumulativa do pensamento dos autores. Como chamaatengao Peter Burke (2003b): "a sabedoria nao é cumulativa. No caso doconhecimento houve e ainda há tanto retrocesso quanto progresso a nivelindividual" (p. 20).A perspectiva da chamada historia das idéias é firmemente criticada por LucienFebvre (1952/1996), urna das principáis referencias da chamada Nova Historia. Emsuas palavras:

esta historia é exatamente o contrario daquiloque um método de historiadores exige. E que,perante estas chagoes de conceitos saídos deinteligencias desencarnadas depois vivem de suaprópria vida fora do tempo e do espago, formamestranhas cadeias, de elos ao mesmo tempoirreais e fechados (p. 50).

Observa-se ñas obras analisadas a alianga entre urna concepgao positivista dehistoria, calcada no registro dos fatos, acontecimentos e autores, a urnaperspectiva fundada na historia das idéias, de relato da produgao do conhecimentocomo resultante do trabalho intelectual de "inteligencias desencarnadas".Ao citar as fases do desenvolvimento humano, a autora ácima referida consegueexplorar melhor a historia da disciplina, apresentando ao leitor urna breve síntesedas idéias que culminaram no surgimento da mesma. As fases sao divididas ñasseguintes: Fase do método deschtivo, que contou com a contribuigao da "Teoria damaturagao" de Gesell, fase do método correlaciona!, no qual Freud e Piaget foramde grande importancia e por último a fase do método experimental, onde Pavlov eWatson, através do movimento behaviorista incrementaram os estudos realizados.

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Porém, nao é estabelecida relagáo entre os diferentes métodos e autores, o que serevela também ñas outras obras. A apresentagáo da historia da disciplina como aconstrugao gradativa de métodos referidos a momentos históricos distintos naoestabelece um diálogo entre tais métodos e suas diferenciagoes, que nao sesucedem no tempo, numa perspectiva cumulativa de conhecimento, sendoignoradas as tensoes e diferengas entre os distintos métodos apresentados. Naverdade, tais teorías e autores divergem em suas concepgoes, constituem tradigoesdiferenciadas que se contrapoem, disputam um lugar hegemónico na produgao daárea, mesmo no presente.Na análise da fundamentagáo epistemológica das teorías da psicología dodesenvolvimento, Hiram Fitzgerald, Ellen Strommen e John Mckinney (1983) em"Psicología do desenvolvimento" abordam alguns conceitos advindos de biólogosdos séculos XVII e XVIII. Porém, nao há por parte dos autores qualquerproblematizagao a respeito de tais conceitos. Estes apresentam a teoriaevolucionista, os métodos quantitativos e de mensuragáo, o behaviorismo, apsicología cognitivista, a psicología dinámica e a psicología clínica como as origenshistóricas da psicología do desenvolvimento. As origens sao apresentadas emtópicos que contemplam as influencias desta nova ciencia no seu processo deelaboragáo. Nao é estabelecida qualquer relagáo entre o surgimento da psicologíado desenvolvimento e os processos históricos da época.O mesmo ocorre na obra "Desenvolvimento Humano" de Justin Pikunas (1979), queaborda o surgimento desta nova ciencia, destacando os principáis autores e aimportancia de seus estudos. Porém, nao se faz sequer referencia ao contexto eperíodo histórico no qual a psicología do desenvolvimento teve sua génese.Encontramos registros referentes a um fato histórico relevante apenas em DinahMartins de Souza Campos (1997), quando a autora após apresentar um brevehistórico da psicología do desenvolvimento, informa ao leitor que:

Porvolta de 1940, a psicología conseguiu alcangaras características que vém sendo verificadasatualmente, tendo a Segunda Guerra Mundialrepercutido sobre seu desenvolvimento, como aconsagragáo dos testes de selegao, os problemasdo moral dos combatentes, do equilibrio depersonalidades e das relagoes sociais nos grupos.(P- 18)

Nesta breve referencia ao contexto histórico, embora a autora cite as demandassociais postas em cena na afirmagáo de um modelo da ciencia, nao asproblematiza. Porque a Segunda Guerra produziu tal leitura dos processos dedesenvolvimento humano? Foi apenas este acontecimento, sem dúvidasignificativo, que levou a consagragáo dos testes, ou urna estrutura social fundadana selegao dos mais capazes e na adaptagao do individuo á sociedade?Diante do estudo das fontes, concluímos que nao é estabelecida relagáo entre aconstituigáo da disciplina e os processos históricos mais ampios, além de nao serconstruida urna análise das condigoes de produgao dos saberes e nao seremapresentadas as tensoes na afirmagáo do campo. Por outro, o relato evolutivo faz-se desvinculado de urna problematizagao histórica. Com isso, apresenta-se aoleitor, urna visáo a-histórica da disciplina, que nao permite relacionar oconhecimento produzido á seu percurso de construgao e consolidagáo. Ao mesmotempo induz-se a urna representagáo evolutiva linear da historia da ciencia, quedesconsidera as tensoes no interior do campo, bem como o caráter nao cumulativodo conhecimento.

A crianca nos manuais de psicología do desenvolvimentoEnquanto a historia da disciplina nao é trabalhada de maneira expressiva nosmanuais, a changa se encontra como ponto de partida para o surgimento da área.

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A busca pela compreensao do desenvolvimento humano se inicia na observagao dodesenvolvimento infantil, gerada a partir da nova conceituagao de crianga agregadaá educagao.Segundo Enderle (1993), últimamente surgiram varios questionamentos quanto aoconceito de infancia, este sendo abordado sob urna perspectiva histórica. Estapermitiría compreender a infancia como determinada pelas transformagoesorganizacionais da sociedade. Com isso:

torna-se obsoleto admitir um conceito único euniversal, que considera todas as criangas iguais,isto é, essencialmente inocentes, incompletas eimperfeitas, portanto necessitadas da"moralizagao" dos adultos (Enderle, 1993, p. 19).

Para a autora as criangas possuem, portanto, suas singularidades, fruto de suainsergao sócio-histórica e seu desenvolvimento nao deveria ser entendido comodefinido por um padrao a-histórico e universal. Seria a partir deste recorte que apsicología do desenvolvimento deveria desenvolver suas investigagoes.Se esta reflexao, fundada no diálogo com as produgoes mais recentes da historia eda sociología da infancia, se fazem presentes na introdugao desta obra, nao saoincorporadas ao longo do texto, que prioriza a apresentagao de autores e pesquisasfundadas num modelo universalista de análise dos processos de desenvolvimentohumano.Nos manuais (6) encontramos as fases de desenvolvimento das criangas bemdefinidas pelos autores que as detalham como, por exemplo, Pikunas (1979), queem seu livro contempla-as considerando os fatores psicológicos e suas implicagoessociais. A perspectiva etapista informa as diferentes obras que, na organizagao doscapítulos, nao apresentam distintamente os diversos aspectos do desenvolvimento,como cognigao, linguagem, psicomotricidade, afeto, emogao, etc., mas ossucessivos estágios definidos pelos autores. Reproduz-se assim urna visaouniversalista e etapista, hoje fortemente criticada, ou anteriormente contemplada apartir de um olhar diferenciado em autores como Vygotsky e Wallon.Embora Vygotsky seja trabalhado em algumas das obras, nao é construida urnainterpretagao que análise o impacto de sua produgao na construgao de urnaperspectiva epistemológica diferenciada na análise da crianga. Nao é estabelecidodiálogo contrastante entre as teorías etapistas universalistas do desenvolvimento ea visao cultural de Vygotsky e da tradigao sócio-histórica. Já Wallon, apesar de suasignificativa produgao, faz-se quase ausente nos manuais analisados, talvez pelapouca penetragao de seus estudos no universo académico norte-americano, ou peloseu olhar também nao universalizante. Sao também ignorados autores que sedebrugaram sobre os processos de desenvolvimento e renovaram o olhar sobre otema, como os estudos da antropóloga Margareth Mead (1930) sobre aadolescencia em Samoa, demonstrando a nao universalidade dos processos dedesenvolvimento humano.A existencia de estudos sobre o desenvolvimento humano em outras disciplinas éapresentada por outro manual, largamente utilizado nos cursos de formagao"Desenvolvimento e personalidade da crianga", de Mussen, Conger e Kagan (1977).Estes afirmam que a psicología do desenvolvimento se ancorou nos métodos,conteúdos e conhecimentos da filosofía, fisiología, biología, astronomía,matemática, medicina, ciencias sociais - especialmente da política e economía - eteología, mas foi principalmente a partir de elementos presentes na filosofía, físicae fisiología, que tornou-se urna disciplina formal distinta. Esta utilizagao deconceitos de diversas áreas resultou em urna nova literatura sobre odesenvolvimento humano, visto que:

Os primeiros autores foram básicamente filósofos,religiosos, médicos, educadores, humanistas ereformistas mas, já naquela época, abordaram

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problemas que ainda sao críticos para o psicólogodo Desenvolvimento (Mussen, Conger & Kagan,1977, p. 5).

Observa-se, por fim, a escolha de urna escrita mais informativa que analítica, numtexto em que a interpretagao das obras apresentadas, suas diferenciagoes teórico-conceituais se fazem quase ausentes, informando urna apropriagao a-crítica dadisciplina.

Consideracoes fináisTendo em vista a fungao social dos manuais escolares de ensino da disciplina, cabe-nos interrogar sobre a recepgao pretendida pelo autor e sua efetiva apropriagao dotexto pelo leitor.A historia da ciencia e das disciplinas científicas cada vez mais amplia seu campoinvestigativo, incorporando novos objetos de análise. Assim é que se aquicontemplamos urna análise textual internalista de alguns compendios que circulamem espagos de formagao de profissionais da educagao e psicología, tal análise deveser acrescida pelo estudo de outros aspectos.Destacadamente, no que refere-se á investigagao acerca dos manuais de ensino dadisciplina, cabe-nos interrogar acerca de sua apropriagao pelo leitor e do papelmediador do professor na relagao com o texto.Ou seja, se aqui contemplamos as representagoes sobre a emergencia histórica dadisciplina e dos estudos sobre a crianga, cabe apreender como se deu suatransmissao e apropriagao no interior dos espagos de formagao. Como taismateriais foram e tem sido utilizados na prática docente? A partir de queperspectiva? Como os alunos se apropriaram e apropriam de tal conhecimento ecom ele dialogam em suas práticas?Neste sentido, como nos alerta Roger Chartier (2003), o trabalho de leitura de urnaobra envolve urna apropriagao pelo leitor em que este constrói significados sobre otexto, num processo ativo, definido pelo seu lugar social, ultrapassando oshorizontes postos pelo autor e pela materialidade da obra. Neste caso, o aluno/leitor atribuí sentido para a disciplina psicología do desenvolvimento certamentenao a partir de urna recepgao a-crítica da obra, mas insere-a num quadro dereferencia mais ampio, no interior do qual ela adquire sentido.Tal questao nao foi aqui contemplada, mas sinaliza um fértil objeto de investigagao.O estudo dos manuais de ensino da disciplina indicou a produgao de urna visaonormatizada do campo. Tal visao mostrou-se calcada, por um lado, numaperspectiva historiográfica positivista evolucionista, centrada na descrigao daprodugao de sistemas explicativos sobre os processos de desenvolvimento humano.Estes, por outro, foram apresentados segundo urna perspectiva fundada numahistoria das idéias entendidas como fruto da elaboragao intelectual dos diferentesautores, desvinculadas das condigoes históricas de produgao.Porém, fica urna questao: que interpretagao o aluno/leitor constrói sobre taistextos, considerando sua prática social, seus espagos de insergao e a mediagao doprofessor?Por outro, na produgao de um olhar sobre a crianga, na prática do aluno/leitor, atéque ponto esta perspectiva universalista e etapista de análise de seu processo dedesenvolvimento marca sua agao profissional?

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Notas(1) Investigagao desenvolvida no interior da pesquisa: "A conformagao da idade eda idade escolar nos discursos científicos e ñas práticas pedagógicas (1880 -1910)" com financiamento do CNPq (Edital Universal/2006, bolsa de produtividadeem pesquisa 2006/2009 e bolsa de iniciagao científica) e Fundagao de Amparo áPesquisa de Minas Gerais/FAPEMIG (Programa Pesquisador Mineiro PPM/2007).(2) Entre outras trabalhos vide Warde (1997), Patto (1991) e Larocca (1999).(3) Entre outras obras, recentemente publicadas no Brasil, vide Corsaro (2011),Gouvea e Sarmentó (2009) e Cohn (2005)(4) Para urna melhor apreensao da chamada Nova Historia, vide Le Goff (2001) eBurke (2003a).(5) Os manuais analisados foram: "Crescimento e mudanga: introdugao a psicologíado desenvolvimento" de Harry McGurk (1976), "Desenvolvimento e Personalidadeda Crianga" de Mussen, Conger e Kagan (1977), "Desenvolvimento Humano" deJustin Pikunas (1979), "Psicología do Desenvolvimento" de Dinah M. S. Campos(1977), "Psicología do Desenvolvimento" de Hiram Fitzgerald, Ellen Strommen e J.

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Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do or>desenvolvimento e da producao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum,20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01

Mckinney (1983) e "Psicología do Desenvolvimento: processo evolutivo da crianga"de Carmen Enderle (1993).(6) Os manuais aos quais nos referimos, sao apenas os seis que foram analisadospor conterem urna apresentagao da constituigao histórica da disciplina. Os demaismanuais apesar de contemplarem o desenvolvimento da crianga nao foramutilizados neste trabalho.

Nota sobre as autorasMaría Cristina S. de Gouvea é professora Associada da Faculdade de Educagao daUFMG e do Programa de Pós-Graduagao em Educagao da UFMG. Pesquisadora I-Ddo CNPq. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Historia da Educagaoda UFMG (GEPHE/ UFMG). E-mail: [email protected]

Príscilla Nogueira Bahiense é graduada em Pedagogía pela Faculdade de Educagaoda UFMG. Mestranda em Educagao do Programa de Pós-Graduagao da UFMG.Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Historia da Educagao da UFMG(GEPHE/ UFMG). E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 25/05/2009Data de aceite: 04/05/2011

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83Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes

da psiquiatría: o Pavilhao de Observagoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104.Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01

Suspeitos em observacáo ñas redes da psiquiatría: oPavilhao de Observagoes (1894-1930)

Suspects under observation in the network of Psychiatry: The Pavilion ofObservations (1894-1930)

Pedro Felipe Neves de MuñozCristiana Facchinetti

Allister Andrew Teixeira DiasCasa de Oswaldo Cruz/Fundagao Oswaldo Cruz

Brasil

ResumoEste artigo é parte de um projeto de pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz/FundagaoOswaldo Cruz e de duas dissertagoes de mestrado, apresentadas ao Programa dePós-Graduagao em Historia das Ciencias e da Saúde da mesma instituigao. Oobjetivo deste estudo foi investigar os mecanismos de poder inscritos no Pavilhaode Observagoes e seus modos de manifestagao ñas práticas cotidianas, entre 1894e 1930, bem como as relagoes desta instituigao com a polícia, o Hospicio Nacionalde Alienados e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Para tanto, utilizamosum acervo diversificado de fontes (documentos clínicos da instituigao, artigos elivros médicos, relatónos, decretos, entre outros), a partir do qual foi possívelperceber que a instituigao estudada nao era apenas um simples espago do exercícioda prática psiquiátrica no Rio de Janeiro, estando inserida em urna complexa redede poder-saber, no ámbito psiquiátrico, durante a Primeira República do Brasil.

Palavras-chave: historia da psiquiatría, hospitais psiquiátricos, assisténcia aalienados, polícia, Rio de Janeiro.

Abstract:This article is part of a research project of Casa de Oswaldo Cruz/FundagaoOswaldo Cruz and of two master dissertations which were presented in the Pos-Graduation Program in History of Science and Health of the same institution. Theaim of this study was to investígate how the Pavilion of Observations structure wasorganized and its everyday functioning, between 1894 and 1930, analyzing itsrelationships with the pólice, the National Asylum of Aliened and Rio de Janeiro'sFaculty of Medicine. In order to achieve that, we used a diversified collection ofsources (clinical documents of the institution, medical articles and books, reports,among others), through which it was possible to realize that the studied institutionwas not only a simple place of psychiatric practice in Rio de Janeiro. The Pavilion ofObservations was inserted in a complex network of power-knowledge, in thepsychiatric field, during Brazilian's First Republic.

Keyword: history of psychiatry, psychiatric hospitais, aliened assistance, pólice,Rio de Janeiro.

1. IntroducaoNo presente artigo buscaremos compreender as singularidades do Pavilhao deObservagoes (PO), instituigao situada no Hospital Nacional de Alienados (HNA)entre 1894 e 1938 (1), na qual funcionava a Clínica Psiquiátrica da Faculdade deMedicina do Rio de Janeiro (FMRJ). Fruto de investigagoes e reflexoes que témnesta instituigao um ponto chave de contato, este artigo reúne partes em comumde duas dissertagoes de mestrado (Muñoz, 2010; Dias, 2010) (2) e urna pesquisade maiorfólego ainda em andamento (3).

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Tencionamos, com este texto, esclarecer a insergao desta instituigao na rede dapsiquiatría da cidade, no que tange ao controle e administragao da loucura,procurando reconstruir os principáis aspectos de suas interagoes com outrasinstituigoes chaves na questao: a Polícia, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiroe o Hospicio Nacional de Alienados. Por último, procuramos descrever e analisardimensoes institucionais importantes para a compreensao de suas formas deoperagao ñas primeiras décadas do século XX.Para tanto, investigamos um corpus documental ampio: relatórios de instituigoesque se relacionavam com o Pavilhao, como o "Servigo Policial do Rio de Janeiro" e o"Servigo Médico Legal da Polícia do Rio de Janeiro"; relatórios das duas instituigoesdas quais o Pavilhao fazia parte, como veremos, a "Assisténcia a Alienados"(Relatórios da Assisténcia a Alienados, 1894-1930) e "Faculdade de Medicina do Riode Janeiro" (Relatórios da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1894-1930).Estes relatórios eram escritos anualmente pelos respectivos diretores e chefes paraserem apresentados ao Ministro da Justiga e Negocios Interiores. Neles percebemosdados que revelam aspectos interessantes sobre a conexao do pavilhao com outrosespagos médicos da cidade, bem como dimensoes importantes do seu cotidiano. Foitambém bastante útil a consulta feita ao periódico da polícia do Rio de Janeiro doperíodo, o Boletim Policial, do qual extraímos informagoes a respeito da relagao dapolícia com a loucura na cidade. Complementarmente, analisamos algunscompendios e textos médicos do período, de médicos como Afránio Peixoto eHenrique Roxo, buscando elucidar práticas clínicas e discursos de atores vinculadosa estes espagos. Investigamos, ainda, dados relevantes na legislagao da épocasobre a assisténcia a alienados e a polícia do Rio de Janeiro, demarcando mudangasorganizacionais e estruturais destes espagos.Por último, examinamos os Livros de observagóes clínicas (1894-1930) e Livros deregistros de entrada de pacientes (1894-1934) de um ponto de vista maisqualitativo que quantitativo visando demonstrar as mudangas conceituais e naprática psiquiátrica do Pavilhao. Um dos fios condutores desta narrativa queabrange parcela da historia da psiquiatría do Rio de Janeiro do inicio do século seráo olhar de Lima de Barreto, um dos principáis cronistas e escritores do Rio deJaneiro da Primeira República e ex-paciente do PO.Para articularmos essas fontes na reconstrugao da rede psiquiátrica em que o POestava inscrito, dialogaremos com as propostas de Michel Foucault. Assim comoindicou Foucault (1977-8/2008), partimos do pressuposto que é possível encontraras estruturas internas do hospital psiquiátrico através do estudo de sua "estrutura,densidade institucional", identificando "cada urna das pegas que o constituem",revelando que tipo de poder-saber médico se organiza em seu interior. Mas,podemos - esse foi o nosso objetivo - estabelecer urna análise do seu exterior,para mostrar "de que maneira o hospicio só pode ser compreendido a partir de algoexterior e geral, que é a ordem psiquiátrica, na própria medida em que essa ordemse articula com um projeto absolutamente global", abarcador da sociedade comoum todo, isto é, de urna "higiene pública" (pp. 157-159).Dessa forma, seguindo Foucault, acreditamos que "a instituigao psiquiátrica - comoo Pavilhao de Observagóes - concretiza, intensifica, adensa urna ordem psiquiátricaque tem essencialmente por raiz a definigao de um regime nao contratual para osindividuos desvalorizados". Essa ordem psiquiátrica coordena um "conjunto detécnicas" e urna "tecnología de poder" (idem).Cabe ainda urna pequeña nota metodológica. Seguindo a leitura de Pogrebinschi(2004) sobre o conceito de poder, é importante lembrar que se trata de umconceito que aparece de forma fragmentada na obra de Foucault e que, além disso,nunca foi o objetivo do autor estabelecer urna teoria geral do Poder (Foucault,1977-8/2008). Em segundo lugar, nao devemos seguir urna interpretagao deconcomitancia entre poder, poder disciplinar e biopoder. Segundo Pogrebinschi(2004), haveria, no entanto, um núcleo teórico conceitual que perpassa esses dois

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últimos conceitos: a permanencia neles de um poder-saber. Além disso, devemosdestacar que, como um problema metodológico, o poder aparece na genealogíafocaultiana sob cinco principios: em primeiro lugar, sob o principio de localidade,isto é, o poder em suas instituigoes locáis e formas locáis, sem um centro de poder,ou ainda, nao como urna totalidade. Trata-se de olhar para além do jurídico. Emsegundo lugar, a partir do principio da exterioridade, entendemos que é relevanteestudar o poder na sua externalidade; nos pontos de contato com o objeto e com ocampo de aplicagao (como ñas zonas de bordas). Em terceiro lugar, o poder deveser entendido por sua transitoridade, como algo que se constituí numa "rede" e queatravessa a todos sem que ninguém o detenha, portanto, algo que nos circula, quenos perpassa seja na posigao de exercício do mesmo ou de submissao a ele. Emquarto lugar, sob o principio de ascensao, demarcando que o poder nao é algo queprovém de cima para baixo, mas pelo contrario, das esferas mais fragmentadas ouainda dos "mecanismos moleculares, infinitesimais" até chegar aos mais globais.Finalmente, a nao ideologizagao do poder, compreendendo que na sua base estaoos saberes e nao as ideologías. (4)Nesse sentido, guiados por esses principios metodológicos, iniciaremos nossainterpretagao acerca do Pavilhao de Observagoes.

2. Pavilhao de Observagoes e suas relacoes com a Polícia do Rio de JaneiroA polícia, nao sei como e por que, adquiriu amania das generalizagoes, e as mais infantis.Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nomearrevesado, assim os russos, polacos, románicossao para ela forgosamente cáftens; todo ocidadao de cor há de ser por forga um malandro;e todos os loucos hao de ser por forga furiosos esó transportáveis em carros blindados (LimaBarreto, 1920/1988, p. 176).

E foi no carro-forte da polícia, urna "carriola pesadona que nem urna ñau antiga","almanjarra de ferro e grades", na qual foi preso numa "especie de solitaria poucomais larga que a largura de um homem", sem ter onde segurar e que "bate com ocorpo em todos os sentidos, de encontró as paredes de ferro" correndo o risco de"partir as costelas" (Lima Barreto, 1920/1988, p. 50), que o homem Lima Barretochegou ao Hospicio Nacional de Alienados, pela primeira vez, em 1914. Assim comoele, muitos outros "loucos" passaram pelas maos da polícia e de seus carros-fortes,no inicio do século XX. Era nessa "masmorra ambulante, neste "carro feroz" ondeera "tudo ferro" e "se vem sentado, imóvel (...) aos trancos e barrancos de seurespeitável peso e do calgamento das vias públicas" (Lima Barreto, 1981, p.137)(5), que a polícia fazia, muitas vezes, o transporte dos "loucos" recolhidos na rúapara o Hospicio e outros estabelecimentos da Assisténcia a Alienados do DistritoFederal. Contudo, devemos lembrar que a partir de novembro de 1907, quempassou a fazer o transporte dos alienados foi um setor dentro da polícia, a"Assisténcia Policial", em "carros especiáis" (Instrugoes para o Servigo daAssisténcia Policial, 1907, p. 3).A Polícia do Rio de Janeiro, ñas primeiras décadas do século XX, colocavafirmemente em prática o principio da "suspeigao generalizada" (Chalhoub, 2001),como com muita acuidade percebeu Lima Barreto na citagao que abre essa parte. Ecomo apontou o literato, o PO era urna instituigao dependente da polícia, já que eraesta que encaminha os pacientes para aquela (Lima Barreto, 1920/1988).A polícia, no inicio do século XX, estava plenamente vinculada á questao da loucurana cidade (Paula, 2006; Engel, 2001) (6). Com o papel de "garantidora da ordempública", esta instituigao ligava-se á "assisténcia pública", por meio da remogao eencaminhamento de doentes alienados ou doentes de urna forma geral. SegundoBretas (1997), a atuagao "assistencial" era "urna das principáis tarefas

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desempenhadas pela policía" (p.99), embora isso tenha decaído muito no períodoestudado por nos. Além disso, esse papel exercido pela policía na "assisténciapública", no que tange a loucura, já era muito questionado no inicio do século XXpelos própríos Chefes de Polícia. O Chefe de Policía era a mais alta autoridadepolicial, estando "sob suprema inspegao do Presidente da República esuperintendencia do Ministro da Justiga". Seu cargo era de nomeagao direta dopresidente, sempre dependendo de certas "ligagoes políticas" (Bretas, 1997, p. 50 e116).Para compreender melhor o papel da polícia no trato da loucura, recorremos aoBoletim Policial. Mas, antes disso é relevante apresentar a fonte ao leitor. Consta,no artigo 174, do regulamento anexo ao Decreto n. 6.440, de 30/03/1907, oseguinte a respeito deste periódico: "terá cabida ñas páginas do Boletim todas asindagagoes científicas ou investigagoes técnicas que sirvam para elevar o nivel dacultural profissional de todos os funcionarios da administragao" (Decreto n. 6.440,1907, Art. 174). Segundo Bretas (1997), o Boletim era publicado pelo Gabinete deIdentificagao da Polícia. Nele, nos números de 1907 até 1920, verificamos apresenga forte da questao da identificagao, estatística criminal, reflexoes sobre ascausas do crime, investigagao e medidas técnicas para combaté-lo, além deinformes administrativos e legáis de urna forma geral.Nesse sentido, investigamos a segao "Noticias Policiais" (1907-1920) do BoletimPolicial e percebemos que, por um trimestre, o número de individuos enviados pelapolícia ao Pavilhao de Observagoes no Hospicio Nacional de Alienados variava de180 a 300 individuos. Por mes, o número variava de 65 a 108 individuos. Namaioria das vezes, a polícia era chamada para conduzir os "loucos" para aRepartigao Central, onde eles eram submetidos a exames no Servigo Médico-Legal.Eram casos de "agao ¡mediata", que rápidamente saiam das maos da polícia(Bretas, 1997, p. 128) e eram encaminhados para a Assisténcia a Alienados, isto é,em diregao ao PO e HNA.Ao lidar com os "loucos" ñas rúas, as autoridades policías superiores tentavamprescrever para os policiais, em atividade ñas rúas, urna conduta branda. Muitasidéias práticas de policiamento sao sugeridas ñas páginas do Boletim Policial. Noterceiro número do periódico, de julho de 1907, por exemplo, propunham-sediretrizes para o "cuidado com os loucos":

Os loucos mesmo furiosos irritam-se mais quandosao maltratados: assim, convém ser moderadocom eles, usando de calma e prudencia econduzindo-os com jeito e humanidade (BoletimPolicial, 1907a, p. 21).

A atuagao da polícia, no cotidiano da cidade, era significativa como aparatoimportante no combate a "desordem" e aos "maus costumes". E a loucura era vistacomo urna grande "desordem". Segundo Rosa Maria Araújo (1993), o crescimentodo Rio de Janeiro exigiu urna atuagao mais intensiva da polícia, seja sob a filosofíada prevengao da desordem, seja na repressao ao crime. Araújo nos mostra que aagao da polícia era "rotineira nos conflitos individuáis e ñas grandes festas ouconcentragoes, embora também interviesse ñas agitagoes populares quedemandavam o controle da ordem". Já as queixas feitas pela populagao contra anegligencia policial eram justificadas pelas autoridades "em nome do contingenteinsuficiente de policiais vis-a-vis o rápido crescimento da populagao" e pelasarbitrariedades recurrentes nos procedimentos dos policiais (pp. 304-305).Sobre esse tema, Lima Barreto deixou-nos mais um de seus comentarios comoobservador de seu tempo (Resende, 1993; Sevcenko, 1983/2003) ao contar suahistoria pessoal de enredamento com a psiquiatría, em seu Diario do Hospicio. LimaBarreto (1920/1988) registrou que "quando me vem semelhante reflexao, eu naoposso deixar de censurar a simplicidade dos meus parentes, que me atiraram aqui,e a ilegalidade da polícia que os ajudou" (p. 54). No caso de Lima Barreto, podemos

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perceber que a instituigao policial representou - e representava, de um modo geral- um elo fundamental entre a familia e a intervengao médica propriamente dita. Deum lado, podemos perceber queja havia urna demanda de parte da populagao pelotratamento médico-psiquiátrico (7) - seja pelo entendimento de que este saberseria urna arte de curar, seja apenas pela busca de um lugar para se internar omembro da familia que fugiu do controle. Por outro lado, recorria-se á instituigaopolicial para que esta efetuasse a internagao e, assim, o trajeto do lar familiar aohospicio. Este requerimento parece estar relacionado á busca pela internagao noscasos em que a familia nao podia dar conta dos custos da estadía de seu familiar nainstituigao asilar, fazendo com que a internagao seguisse o procedimento dosindividuos gratuitos, custeados pelo Distrito Federal.A instituigao policial era responsável pela maior parte dos requerimentos deinternagao no PO, o que representa bem o papel exercido pelos policiais nasociedade carioca da Primeira República junto as familias. Apesar de pacienteshomens, provenientes dos distritos policiais, representarem um número maior emcomparagao as mulheres (Facchinetti, Ribeiro & Muñoz, 2008), concordamos comFabíola Rohden (2001) quando a autora afirma que "para as mulheres a internagaoparece ser mais fácil e rápidamente decidida, a partir do rompimento dos códigospróprios da familia" (p. 132). Entendemos que a iniciativa tomada pelos familiarespara a internagao das mulheres estava diretamente ligada á agao do poderpatriarcal e á submissao feminina. (8)No que tange á loucura, a intervengao policial deveria ser mediada pela avaliagaodos médicos peritos da policía. Em 1856, o Decreto n. 1740 criou "junto aSecretaria de Policía da Corte um segao de assessoria médica", com dois médicosefetivos (Peixoto, 1914, p. 540) (9). Tal decreto também estabelecia que osexames médico-legáis só poderiam ser feitos com requisigao de autoridadecompetente (Decreto n. 1740, 1856). Nele já se especifica quesitos que os médicosdevem responder (Paula, 2006). Em junho de 1890, o número de médicos legistasda policía aumentou para seis. Entretanto, foi em abril de 1900, através do Decreton. 3640, que se reorganizou o servigo policial da cidade, tendo o nome da segaomodificado para "Gabinete Médico-Legal" (Bretas, 1997). A partir de entao, passoua incumbir aos médicos legistas da policía a fungao de examinar "individuossuspeitos de alienagao mental, apreendidos na via pública ou detidos ñas prisoes,antes de serem recolhidos ao HNA" (Peixoto, 1914, p. 541).Em meados da década de 1910, Afránio Peixoto - professor de medicina legal daFaculdade de Medicina do Rio de Janeiro e diretor do Servigo Médico-Legal daPolicía - afirmou que varias críticas eram dirigidas ao Servigo Médico-Legal dapolicía, momento em que ele próprio, enfim, conseguiu a aprovagao do Decreto n.4.864, de 15/06/1903 (Peixoto, 1914). Segundo o Chefe de Policía na época, A.Cardoso de Castro, o regulamento do Servigo Médico-Legal foi feito por AfránioPeixoto com base ñas mais "adiantadas ligoes de ciencia moderna" (Relatório doServigo Médico-Legal, 1904-1905, p. 152). Com o Decreto n. 6.440, de30/03/1907, criou-se o Servigo Médico-Legal da Policía, organizado e dirigido pelopróprio Peixoto. Segundo Bretas (1997), este Servigo era um "órgáo autónomo naSecretaria de Policía", que os poderes públicos, a imprensa e a intelectualidadeinteressada em questoes científicas, atribuíam muita importancia. Mesmoautónomo, o Servigo, contudo, estava "diretamente ligado ao chefe de policía"(Paula, 2006, p. 102). Nesse sentido, o governo republicano e boa parte daintelectualidade da capital davam énfase na reforma e modernizagáo da instituigaopolicial (Bretas, 1997, p. 43-44).Com o decreto de 1907, o número de peritos médicos foi aumentado para doze,permitindo urna maior especializagáo dos mesmos. Esse número já era consideradoinsuficiente, em 1910, pelo Chefe de Policía (Relatório do Servigo Policial, 1910-1911, p. 72) por conta da demanda de exames diarios.

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Os médicos do Servigo Médico-Legal da Polícia da Capital faziam na RepartigaoCentral da Polícia (Bretas, 1997), como já estabelecido desde 1900, os examesprevios em individuos suspeitos de alienagao recolhidos ñas rúas. Peixoto (1907)esclareceu que os moldes do exame médico-legal de alienados, na polícia do Rio deJaneiro, foram baseados no regulamento portugués.Aqueles individuos, cujo resultado do exame de alienagao era positivo na polícia,eram encaminhados para mais um exame no Pavilhao de Observagoes. Seconfirmada a alienagao, nesta instituigao, o individuo era transferido e internadodefinitivamente no Hospicio Nacional, em alguma de suas segoes, conforme o caso.Mas, devemos ressaltar que esses individuos enviados pela polícia, enquantopacientes cuja internagao era custeada pelo Distrito Federal, eram internados,sobretudo, ñas "segoes de indigentes" - "Segao Pinel", para os homens, e "SegaoMorel", para as mulheres. Um informe constante no periódico da polícia, o BoletimPolicial, de dezembro de 1907, indicava que o Servigo Médico-Legal

compoe-se atualmente de urna parte exercida ñasdelegacias (corpos de delito, exame de sanidade evalidez) (...) e de outra parte, na RepartigaoCentral, á Rúa do Lavradio, onde vao ter osloucos indigentes do Distrito Federal que, depoisdo exame, sao enviados ao HNA (Boletim Policial,1907b, p.10).

Este Servigo era um importante lócus da prática em medicina legal da cidade. Já oensino de Medicina Legal se dava exclusivamente na FMRJ, e nao no Servigo Policialcomo queria Peixoto (1914, p. 546). Para o catedrático de Medicina-Legal da FMRJ,Agostinho de Souza Lima (1904), no seu "Tratado de Medicina-Legal", a medicina-legal contribuí para a "manutengao da harmonía social", ajudando na "garantía dosdireitos e deveres comuns dos cidadaos" (p.6).Peixoto (1914) nos mostra que a prática da Medicina Legal realizada no ServigoMédico-Legal, no discurso dos seus defensores (Lima, 1904; Peixoto, 1914),aplicada á questao da alienagao mental, era crucial para o cumprimento do artigo27° e 29° do Código Penal Brasileiro de 1890 (Decreto n. 847, 1890) e 91° doCódigo Civil (Lei n. 3.071, 1916).No que tange o código penal, vemos que o parágrafo 3o do artigo 27 tira apossibilidade de se considerar criminosos e imputáveis os individuos que sofrem de"imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil" e os que se acham "em estado decompleta privagao de sentidos e de inteligencia" no ato do crime. Tais individuos,caso cometam crime, devem ir para a guarda da familia ou a um hospicio (Decreton. 847, 1890, Art. 29). Já o artigo do código civil citado (Lei n. 3.071, 1916) colocaos "alienados ou loucos" como "absolutamente incapazes". A autoridade do perito,neste assunto, deveria ser inquestionável, na medida em que somente ele poderiadar um diagnóstico que orientasse a medida sócio-jurídica.O Decreto n. 6.440, de 30/03/1907, passou a reger o exame médico-legal dosalienados no Servigo Policial do Distrito Federal. O seu artigo 90° estabelecia todosos aspectos que deveriam estar contidos no exame na polícia: autoridade que pediuo exame, questoes judiciais, historia do caso (dados de identificagao do individuo),anamnese (antecedentes familiares, vida pregressa), exame direto e somatório. Noexame direto o médico deveria atentar para varios aspectos. Tais aspectos, na suamultiplicidade, denotavam a influencia de varias perspectivas dos pensamentosmédico, psiquiátrico e antropológico ocidental do período.Primeiramente, deveria se atentar para aspectos gerais: atitude, apresentagao,fisionomía, expressao, mímica falada e atuada. Em seguida, a aspectos somáticos:altura, corpulencia, vicios de conformagao, forma da cabega, deformagoes,assimetrias na face e no corpo, temores, cicatrizes, prognatismo, olhos, língua,boca, nariz, sensibilidade, motilidade, reflexo, fala, escrita, tatuagens, problemasem qualquer órgao, etc. Por fim, vinha o exame mental, o qual deveria se

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caracterizar por interrogatorio e observagoes atentas a todos os atos e palavras dosuspeito de alienagao: nogao de tempo e espago, "confusao de espirito","alheiamento do mundo exterior", humor, excitagao, depressao, angustia,associagao de idéias, delirios e alucinagoes (seus conteúdos), mudangas depersonalidade, atengao, inteligencia, "volubilidade", "incoordenagao de idéias","correspondencia entre idéias atuais e educagao recebida", memoria, nutrigao,sonó, auto-intoxicagoes, etc. O somatório sintetizaría aquilo que denuncia adoenga, um juízo sobre a presenga ou nao de alienagao, "prejulgamento, sepossível, do estado no momento do crime" e, por último, urna "dedugaodiagnóstica", firmando a "forma nosológica" da qual padecería o individuo (Decreton. 6.440, 1907).Segundo Bretas (1997), ñas estatísticas oficiáis da polícia (constantes no AnuarioEstatístico da Polícia da Capital Federal de 1913), a media era de "mais de trespessoas recolhidas ñas rúas da cidade diariamente para exame de sanidademental" (p. 101), sendo sempre mais de 85% desses individuos consideradosalienados. Na investigagao que fizemos dos Relatónos do Servigo Policial (1901-1922), constantes nos relatórios anuais enviados pelo Ministro da Justiga eNegocios Interiores ao Presidente da República, percebemos um significativoaumento no número de exames de alienagao mental feitos na polícia. Se em 1901foram feitos 640 exames, em 1903 já eram 831 e, em 1906, 891. Observando asdemais décadas vemos que o número de exames continuou crescendo, passando a1351 em 1914 e, chegando, em 1922, a 1600 exames. Corroborando esses dados,vemos que no Relatório da Assisténcia a Alienados (1912-1913), Juliano Moreira,diretor desta instituigao (1903-1930) relatou que o Chefe de Polícia pediadesesperadamente o fim do envió de "novos doentes" das diversas delegacias paraa central de polícia, pois "nao dispunha de local onde alojar" tantos "insanos" (p.64).Para Peixoto (1914, 1916) a questao da loucura nao deveria estar ligadaúnicamente ao problema da "protegao da ordem pública" e, por conseguinte, osloucos nao deveriam ir para a polícia, mas sim diretamente para espagosúnicamente médicos, ou seja, hospicios ou ambulatorios. O que deveriafundamentar este problema da loucura seria o aspecto do "tratamento, do remedio"(Peixoto, 1914, p. 130). A loucura deveria ser entendida como doenga, e naosomente como ameaga a ordem pública. Porém, por todo período estudado a políciae o seu Servigo Médico-Legal se vinculavam intimamente a questao da loucura,como porta de entrada das instituigoes psiquiátricas.Quais seriam as condigoes em que eram realizados tais exames? Podemos suporque eles eram extremamente rápidos e sucintos se seguirmos a interpretagaocrítica á polícia efetuada por Henrique Roxo (1925) - médico-diretor do Pavilhao deObservagoes, na maior parte do período estudado. Segundo ele, as guias policiais -documento que obrigatoriamente deveria acompanhar o individuo enviado pelapolícia ao hospicio - serviam para identificar os pacientes e dar as primeirasinformagoes sobre suas molestias, mas, eram, na prática, bastante "omissas" (p.59), dado o pequeño número de informagoes preenchidas pelos legistas da polícia.O diretor do PO nos narra ainda que havia ocasioes que o paciente chegava sem oacompanhamento de parentes ou conhecidos, escoltado por um soldado da polícia,portando "urna guia que nada esclarece" (p. 59) (10):

Isto nao é indispensável para a internagao dequalquer alienado, mas freqüentemente destedocumento falha. O comissário de polícia recebe odoente que estava praticando desatinos, de nadamais indaga (Roxo, 1925, p. 59).

Urna Comissao de Inquérito constituida pelo Ministro da Justiga, em 1902, paraavahar as condigoes da Assisténcia a Alienados constatou a falta destas guias, asquais, quando existiam, eram parcas em informagoes (Relatório da Comissao de

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Inquérito de 1902, 1903). A pesquisa que fizemos nos Livros de observagóesclínicas do PO corrobora esta afirmativa; nem sempre encontramos referencias aestas guias ñas observagóes. (11)Em 1923, Roxo e Moreira (Relatório da Assisténcia a Alienados, 1924) jáapresentavam suas críticas aos procedimentos realizados pela polícia. Tais críticaspodem ser encontradas no relatório enviado ao Ministro da Justiga e NegociosInteriores daquele ano, quando esses psiquiatras reivindicavam e reiteravam anecessidade e a importancia de se ampliar a Clínica Psiquiátrica. Para reforgar seuargumento, eles diziam ao Ministro:

com a Reforma do Instituto Médico-Legal,havendo sido suspensa a triagem que ele fazia,mandando-nos um apenas 50% do enviados pelasdelegacias, estas nos remetem quantos suspeitosse Ihes apresentam (Relatório da Assisténcia aAlienados, 1924, p. 69).

Como se pode perceber, nao se trata de urna crítica pontual decorrente da reformado Instituto Médico-Legal. Eram constantes as reclamagoes dos médicos pelo envióde qualquer tipo de individuos que chegavam as delegacias delirando, segundo osmédicos, por qualquer febre (12) ou outro tipo de molestia intercorrente (Relatórioda Assisténcia a Alienados, 1919).Esta é urna questao importante para pensarmos a relagao entre a polícia e amedicina mental. Nao seria difícil encontrarmos argumentagoes de que o poderpolicial é descrito como grande aliado do poder psiquiátrico. Como nos mostrouLima Barreto (1920/1988), as internagoes realizadas no PO tinham grandedependencia da agao policial. Mas falar apenas em alianga seria desconsiderar oschoques e os desacordos entre esses dois campos de saber. Torna-se, entao,importante lembrarmos que havia interesses por parte dos policiais de dar destinoá grande quantidade de presos e transferir encargos na assisténcia pública (Bretas,1997). E foi a partir dessa exigencia de trabalho, que a polícia acabou realizandoextensos encaminhamentos ao hospicio, desagradando os médicos, seja peloscriterios de avaliagao dos individuos (ou ausencia deles), seja pelos problemas nopreenchimento da guia policial - reclamagao de Roxo (1925) - ou mesmo na coletae composigao da documentagao determinada por lei para que fosse feita ainternagao, tendo em vista que isso concorria fortemente para a superlotagao do POe do HNA.

3. O Pavilhao de Observagóes: entre o Hospicio Nacional e a Faculdade deMedicinaNo ámbito das instituigoes estritamente médico-psiquiátricas, passemos a mapear arelagao entre a FMRJ, o HNA e o PO, enquanto tres instituigoes que protagonizaramurna complexa articulagao, desde a criagao e inauguragao do Pavilhao deObservagóes. Podemos afirmar de antemao que o PO nao era urna segao qualquerdo hospicio nem, tampouco, que servia apenas como urna unidade de ensino daFMRJ. Ele ocupava um espago do entre dois: entre o HNA e a FMRJ.Com o passar do tempo, foram necessárias solugoes de compromisso entre aspartes para viabilizar o funcionamento desse circuito psiquiátrico em que essas tresinstituigoes estavam inseridas, o que nao quer dizer que as disputas e os impassesligados ao PO estivessem resolvidos durante o período estudado. Para entender aconfiguragao entre essas instituigoes faremos, primeiramente, um breve históricode cada urna délas.Como nos mostram Ferreira, Fonseca e Edler (2001), ao longo do século XIX, aFMRJ passou por algumas reformas que modificaram sua estrutura efuncionamento. Este movimento foi central para a "criagao da Cadeira de ClínicaPsiquiátrica e Molestias Mentáis", na década de 1880, com o projeto de associá-la aurna instituigao asilar: o Hospicio de Pedro II (Jacó-Vilela, Santo & Pereira, 2005, p.

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13). Buscava-se, assim, suprimir a necessidade, no campo da medicina mental, dese articular em urna mesma instituigao atividades de ensino teórico e prático,pesquisa e prática clínica. Com a chegada da República, a FMRJ sofreu novasreformas. Segundo Fernando Magalhaes (1932) (13), buscava-se restaurar ereforgar a autonomía didática, bem como ampliar o número de cadeiras existentes.Outro ponto importante diz respeito á liberdade de freqüéncia. Também possívelidentificar a constituigao de um modelo de ensino na FMRJ, a partir do qual oestudo das especialidades foi reservado ao sexto ano do curso - a exemplo dacadeira de clínica psiquiátrica. (14)O psiquiatra Carlos Penafiel informava, em texto de 1913, que o ensino depsiquiatría era facultativo e muito pouco freqüentado (Penafiel, 1913). Vemos que oreduzido número de alunos permaneceu constante até a década de 1920. A partirdos Relatónos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1894-1930), publicadosnos Relatónos do Ministerio da Justiga e Negocios Interiores, é possível constaressa baixa freqüéncia, talvez justificada pela liberdade de freqüéncia. Tal principioacadémico vigorou até Janeiro de 1925, momento em que foi aprovada a ReformaRocha Vaz. Em relagao a todas as outras disciplinas do sexto ano, a freqüéncia dealguns alunos na clínica psiquiátrica era bastante inferior. Vejamos o exemplo dorelatorio do Ministro da Justiga Esmeraldino Olympio de Torres Bandeira, referenteao ano de 1909 (Relatorio da Faculdade de Medicina, 1910, p. Sl-44):

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Figura 1 - Exames do Sexto Ano da FMRJ, em 1909 (Imagem Adaptada)

Passemos, agora, ao Hospicio Nacional de Alienados (HNA). Nascida durante operíodo do Segundo Reinado, esta instituigao foi inaugurada em 1852, sob o nomede Hospicio de Pedro II (HPII). Sua construgao foi resultado de um movimentoliderado por algumas vozes médicas que, mesmo sem haver urna especialidade namedicina voltada para o mental, já se voltavam para a essa área. Esse interesseremonta a década de 1830, quando já era possível encontrar as primeiras tesessobre a medicina mental (Engel, 2001; Teixeira, 2000).Até a década de 1870, os médicos que atuavam no hospicio tinham formagaogeneralista. Com isso, o HPII permaneceu até a década de 1880 com um lugar

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distante do meio académico (Engel, 2001). Com a chegada da República, em 1890,os médicos do HPII - queja vinham desde a década de 1870 buscando afirmar suaespecialidade - introduziram um conjunto de reformas para medicalizar e laicizar ainstituigao. Buscavam, assim, legitimarem-se como a única autoridade (15) capazde falar sobre a loucura (Engel, 2001). Este saber reivindicava, entao, torna-se oresponsável legítimo por decidir sobre o "seqüestro" e a tutelizagao de individuosconsiderados desviantes patológicos em relagao á norma estabelecida (Cunha,1990).No bojo das reformas republicanas, o Hospicio de Pedro II foi desanexado doHospital da Santa Casa da Misericordia - antes responsável por sua administragao -passando a se chamar Hospicio Nacional de Alienados (HNA), em 1890 (Decreto n.142, 1890). Neste ano foi criada também a Assisténcia Médico-Legal aos Alienados(Decreto n. 206A, 1890), que agregou nao só o HNA, mas também o Pavilhao deObservagóes e as colonias agrícolas de Sao Bento e Conde Mesquita, na Ilha doGovernador, bem como as "futuras instituigoes asilares criadas pelo Governo nacapital federal" (Decreto n. 508, 1890, s. p.).Parte integrante da Assisténcia aos Alienados desde a sua criagao, o Pavilhao deObservagoes (PO) surgiu em 1892 - com o art. 26 do Decreto n. 896, de29/06/1892 - sendo sua inauguragao realizada em 1894. Esta instituigao foi criadapara atender o movimento de especializagao de fungoes e modernizagao dasdivisoes e estruturas do hospicio. Essa demanda pode ser identificada antes mesmoda criagao do Pavilhao de Observagao, visto que havia no Hospicio de Pedro II urna"Segao de Observagao Preliminar", criada em 1886 (Engel, 2001).O surgimento do Pavilhao, no inicio da década de 1890, pode ser inscrito, entreoutras coisas, ñas mudangas que se operavam na Faculdade de Medicina do Rio deJaneiro, como falamos anteriormente. O ensino médico tinha que agregar oprincipio da especializagao, privilegiando os novos objetos médicos desenvolvidosao longo do século XIX - como o mental; ao mesmo tempo, precisava de espagospara o exercício prático dessa especialidade. Este é um momento no qual seestabelece um "novo consenso" acerca da importancia de se "reunir em urnainstituigao as atividades de ensino e pesquisa" (Ferreira e outros, 2001 p. 74).Nesse sentido, o significado do Pavilhao pode ser compreendido: ele foi amaterializagao do principio do ensino prático no ámbito de urna clínica nova eparticular, a psiquiatría. Seria, aos moldes dos pavilhoes de admissoes franceses,como porta de entrada de um grande hospicio, o melhor lugar possível para oexercício prático de urna nova especialidade.O PO foi, portanto, um lugar de ensino e triagem de paciente. Assim, percebe-seque o PO teve grande importancia para o desenvolvimento da medicina mentalcomo especialidade, visto que ele foi criado para responder aos anseios por maiorcientificidade a este saber. A criagao do PO produziu urna aproximagao fundamentalentre o ensino e prática médica, além de ocupar um lugar importante naAssisténcia aos Alienados do Distrito Federal.O Decreto n. 2.467 (1897) estabelecia a exclusividade do PO para as aulas daclínica psiquiátrica e molestias nervosas (artigo 41), sob diregao do catedrático depsiquiatría. Colocava também a subordinagao "provisoria" do servigo económico dainstituigao a "cargo do diretor do HNA" (artigo 41) (16). O PO esteve, assim, desdeo inicio, ligado diretamente á FMRJ. O Dr. Teixeira Brandao, que era o lente destacadeira na época da inauguragao do PO, foi o primeiro a dirigi-lo. Henrique Roxo,seu discípulo, assumiu o Pavilhao de Observagoes entre 1904 e 1907 e, novamente,entre 1911 e 1921, quando Teixeira Brandao foi eleito deputado federal (Engel,2001). Em 1921, após a morte de Teixeira Brandao, Roxo passou a ocupar,efetivamente, a diregao do PO (Magalhaes, 1932).Nao podemos esquecer a atuagao de Teixeira Brandao para a constituigao econsolidagao desse espago. Como lente de Clínica Psiquiátrica da FMRJ e Diretor daAssisténcia a Alienados, em principios da década de 1890, nada mais simples do

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que tentar articular as duas instituigoes: a reflexao teórica da FMRJ com a práticaasilar do HNA. Foi Brandao quem concebeu a criagao da "segao de observagaopreliminar dos doentes" - a que já nos referimos - quando, em 1886, tornou-seDiretor do ainda Hospicio de Pedro I I . Esta segao se justificaría pela grande leva dedoentes e casos interessantes que poderiam servir ao ensino de psiquiatría naFaculdade (Engel, 2001).Sendo produto das demandas de tres instituigoes, O PO ocupou um lugar complexo,cujas articulagoes chegaram a produzir momentos de tensao. Ligado a urnademanda do HNA, o PO foi construido dentro do complexo do hospicio. Assim, se deum lado, o PO tinha grande autonomía e estava ligado administrativamente á FMRJ,por outro lado, possuía urna dependencia económica em relagao ao HNA, sendourna importante instituigao de triagem de pacientes enviados ao hospicio,constituindo-se como urna especie de "porta de entrada" dele. Essa configuragao foiurna solugao dada no período em que o professor Teixeira Brandao acumulava ostres cargos, isto é, diretor do HNA e da Assisténcia a Alienados, bem como lente depsiquiatría da FMRJ, portanto, diretor do PO. Contudo, a partir de 1899, Brandaodeixou de acumular os referidos cargos.Como conseqüéncia disso, vemos que alguns conflitos comegaram a se configurarentre o PO e o HNA, identificaveis no Relatorio da Comissao de Inquerito de 1902(1903) que inspecionou o HNA. Esta comissao foi responsável por investigar ascondigóes de funcionamento do HNA, após a ocorréncia de urna serie de denunciassobre a precariedade dos servigos naquela instituigao, bem como a promiscuidadeentre criangas e adultos (Venancio, 2005). O relatorio Comissao de 1902 revelounao somente os problemas estruturais e a precariedade do hospicio, mas tambémquerelas administrativas entre o médico diretor do hospicio, Antonio Dias deBarros, e o médico diretor do PO, Teixeira Brandao, o que refletia a débildelimitagao e distingao das fungóes de cada um deles (17). Por conseguinte, vemosque esse lugar "do entre dois" ocupado pelo PO, isto é, administrado pela FMRJ edependente económicamente do HNA, produziu divergencias que só foramamenizadas através da intervengao do Ministro da Justiga e Negocio Interiores JoséJoaquim Seabra, com a nomeagao de Juliano Moreira para o cargo de diregao doHNA, em 1903, tendo em vista a conseqüente exoneragao de Dias de Barros.Sobre a nomeagao de Moreira, podemos fazer algumas observagóes. Em primeirolugar, vemos que este também foi outro momento de grandes rupturas no campoda medicina mental do Rio de Janeiro, deflagradas pela agenda de Moreira narecepgao da psiquiatría alema, especialmente, a kraepeliana (Peixoto, 1933). Tendopor base esse instrumental, Moreira iniciou um conjunto de reformas no HNA,trabalhou pela fundagao da Sociedade Brasileira de Psiquiatría, Neurología eMedicina Legal, além da criagao de periódicos especializados (Facchinetti, 2005;Leme Lopes, 1964). As fontes da época revelam que a habilidade política deMoreira foi igualmente importante para apaziguar o confuto entre as instituigoes:HNA e PO. Essa habilidade foi descrita por Roxo (1933), quando este diz queMoreira "procurava acentuar o incontestável merecimento deste [Teixeira Brandao]e ladeava as questoes que o procurassem molestar" (p. 1-2). Em 1911, Julianopassou a acumular as fungoes de diretor do Hospicio e diretor-geral da Assisténciaa Alienados (Relatónos da Assisténcia, 1912).

Mas, se os problemas do HNA se tornaram públicos após o trabalho da comissao de1902, no PO o cenário foi distinto. Quando o HNA foi visitado pela Comissao deInquerito sobre a Assisténcia a Alienados, o PO foi considerado pelos seus relatorescomo um dos melhores espagos do Hospicio, sendo caracterizado pela "ordem epelo asseio" (Relatorio da Comissao de Inquerito de 1902, 1903, p.12).Acompanhando os Relatónos da Assisténcia relativos as décadas de 1910 e 1920identificamos, na voz de Juliano Moreira - Diretor do HNA (1903-1930) e daAssisténcia (1911-1930) - o refrao da superlotagao do PO. Juliano Moreira(Relatorio da Assisténcia, 1923) afirmava em 1923, acerca do PO:

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Construido que foi há cerca de tres décadas,necessita de ser ampliado, pois nao comporta ocrescente número de pacientes que nos saodiariamente enviados pelo Gabinete Médico-Legal.Para atender as necessidades do ensino há porvezes vantagem em reter alguns doentes, alémdo prazo de quinze dias. Atualmente nao é issopossível, porque as novas remessas de pacientesobrigam a enviar os outros para o hospital (p.96). (18)

Juliano Moreira encerra pedindo ao Ministro da Justiga e Negocios Interiores a"modernizagao do Pavilhao", que chamou de um "ato de verdadeira benemerencia"(Relatório da Assisténcia, 1923, p. 96). Ao que tudo indica, porém, nada ou muitopouco foi feito nesse sentido.

4. O Pavilhao de Observacoes no Hospicio Nacional: estrutura,funcionamento e exame clínicoAo chegar ao Pavilhao de Observagoes do HNA, Vicente Mascarenhas, personagemdo romance inacabado de Lima Barreto (1920/1988), O Cemitério dos Vivos, édespido "á vista de todos", recebe urna roupa da "casa", urna breve refeigao e éencaminhado para o "quarto forte", que compartilhou com quatro individuos (p.123). Na manha seguinte, a primeira tarefa foi o trabalho de limpeza do "quarto-forte", "calgado com uns chínelos encardidos que haviam sido de outros, com urnascaigas pelos tornozelos, em mangas de camisas". Em seguida, passa novamentepela vergonha do nu coletivo no banho. (19)No depoimento de Lima Barreto (1920/1988), este Pavilhao de Observagoes eraurna

dependencia do hospicio a que vao ter os doentesenviados pela polícia, os tidos e havidos pormiseráveis e indigentes, antes de seremdefinitivamente internados (p. 121).Com urna organizagao sui generis, [este pavilhao]depende do hospicio, da polícia e da Faculdade deMedicina, cujo lente de Psiquiatría é seu diretor,sem nenhuma dependencia ou subordinagao aohospicio (p. 176).

O caráter do PO nao passaria despercebido da ótica arguta de Barreto, como umespago que conjuga tres instituigoes - a Polícia, a Faculdade de Medicina do Rio deJaneiro e o HNA -, mas que, ao mesmo tempo, possuía certa autonomía.Analisaremos, agora, a estrutura e funcionamento do PO, sua massa documental eas suas contradigoes internas.Segundo o Art. 26 do Decreto n. 896, de 29/06/1892: "No Hospicio Nacional (...)haverá um pavilhao destinado aos doentes em observagao, pelo qual transitaraotodos os doentes gratuitos que tenham de ser admitidos" (Decreto n. 896, 1892,Art. 26). Segundo o art. 28, do mesmo decreto, as admissoes dos indigentesseriam realizadas mediante a "ordem do Ministro do Interior ou de requisigao doChefe de Polícia da Capital Federal" (idem, Art. 28). Com o Decreto n. 1159, de07/10/1893 (Art. 2), o PO, que, contudo, ainda nao existia, tornava-se oficialmenteparte da Assisténcia a Alienados do Distrito Federal.O PO realizava seus atendimentos apenas aos pacientes gratuitos, cuja requisigaoera feita pelas autoridades públicas, em especial, pela polícia, como vimos. A partirde 1911, a documentagao necessária para a internagao passou a ser especificadanos artigos 90 a 94, do Decreto n. 8.834, de 11/07/1911. Segundo esses doisartigos, as requisigoes para a entrada de pacientes continuavam sendo realizadasatravés de atestados médicos, guia policial padronizada, laudo do exame médico

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legal feito pelos peritos da polícia, conforme o caso (Decreto n. 8.834, 1911).Segundo o decreto, a matrícula dos doentes no HNA deveria ser realizada após otérmino da observagoes clínicas do PO. Findo o prazo de até quinze dias deobservagao, o enfermo deveria ser transferido para o HNA, salvo casos especiáis,quando o prazo poderia ser prorrogado (Decreto n. 8.834 , 1911).Se analisarmos a prática cotidiana da psiquiatría, através das fichas de observagaodo PO, considerando também o Decreto n. 8.834 (1911), veremos que havia trestipos de situagoes em que os pacientes ficavam no PO em um prazo que destoavados "até 15 dias" de observagao. Urna primeira diz respeito ao uso de habeascorpus (20), raramente encontrado ñas fichas de observagao. Urna segundapossibilidade diz respeito as reinternagoes em que os pacientes eram transferidosno dia seguinte e, na maior parte dos casos, com o mesmo diagnóstico dainternagao anterior. A terceira possibilidade estava prevista na legislagao daAssisténcia a Alienados. Eram casos em que o prazo podia ser prorrogado "a juízodos alienistas" (idem, Art. 91). O parágrafo 5o do Decreto n. 5.148, de 10/01/1927,pode nos auxiliar a entender esse procedimento. Segundo este parágrafo seriamcasos em que o prazo podia ser prorrogado a partir do "interesse do ensino"(Decreto n. 5.148, 1927, § 5o). A análise de diversas fichas de observagao nosindicou que esta situagao nao era muito recorrente. Contudo, o que nos geroumaior impacto foi encontrar um caso (do paciente D. N.) em que ficou quase vinteanos internado no PO. O paciente D. N. deu entrada no PO em 24/11/1908, sendotransferido somente no dia 04/05/1927 (Ficha de Observagao de D. N., 1908, p.64). Para outros registros de entrada e saída de pacientes no PO, ver FundagaoOswaldo Cruz [Fiocruz] (2008).Como vimos anteriormente, o Pavilhao foi inaugurado em maio de 1894, na partecentral do complexo do Hospicio Nacional de Alienados. Porém, os primeirospacientes deram entrada somente na segunda quinzena de maio (Livros de registrode entrada de pacientes, 1894-1914), quando a instituigao passou a funcionar, comum anfiteatro para aulas, um local de residencia para estudantes e duas segoespara os pacientes, construidas paralelamente ao predio central da administragao,denominadas de Magnan para mulheres e Meynert para Homens. (21)Ao longo dos anos, o Pavilhao de Observagao ganhou novas dependencias. Em1898, foi autorizada a instalagao de um Gabinete Eletroterápico, em funcionamentojá em 1902 (Relatorio da Assisténcia, 1902). No mesmo ano funcionavam nainstituigao um Gabinete Histoquímico, um "quarto-forte", um banheiro para"banhos quentes" e urna enfermaría. No ano de 1904 possuía urna sala parahidroterapia, salas de aula, dois patios e anexos destinados á prática da ginástica eda balneoterapia (Relatorio da Assisténcia, 1905). Em 1908 foi cumprida adeterminagao do art. 3o do Decreto n. 5.125 de 1904, com a criagao de umambulatorio para consultas externas (Relatorio da Assisténcia, 1908). Essasconsultas seriam realizadas, na presenga dos alunos, pelo docente da clínicapsiquiátrica nos dias designados pelo programa da Faculdade de Medicina (Relatorioda Assisténcia, 1908). Em 1911, foi criado o Instituto de Neuropatologia,englobando o pavilhao de admissao, o de doengas nervosas e o de psicologíaexperimental (Decreto n. 8.834, 1911, Art. 45). Em 1927, o Instituto deNeuropatologia foi transformado em Instituto de Psicopatologia, composto peloInstituto "Teixeira Brandao" (onde eram ministradas as aulas clínicas da FMRJ) epelos Pavilhoes de Admissao (Pavilhoes Meynert para homens e Magnan paramulheres).Mapeando a documentagao do PO, vemos que os primeiros livros de observagaosao pequeños e leves e nao possuem fotos. Abrangem o período de 28 dedezembro de 1896 a 27 de setembro de 1908. Quanto á estrutura dos livretos, até1903, colocavam-se apenas alguns dados pessoais, o diagnóstico dos pacientes e,em seguida, realizava-se urna breve descrigao dos pacientes. A partir dos Decretosn. 1.132, de 22/12/1903 (§ 2°, do art. Io) e n. 5.125, de 01/02/1904 (art. 167) foi

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sistematizada a obrigatoriedade de registro da observagáo médica realizada juntoaos doentes. No caso do PO, o cumprimento destas determinagoes produziu aampliagao dos registros dos Livros de observagao. A partir de 1903, a estrutura dasobservagoes passou a conter: dados pessoais, data de entrada, diagnóstico,inspegao geral, co memora ti vos pessoais e de molestia, comemorativos de familia,análises dos aparelhos digestivo, respiratorio, circulatorio, análise de urina, dosreflexos, tratamento e data de transferencia. Depois de 1908, os livros deobservagao se tornam maiores, passam a ter campos próprios, fotos, data daprimeira e da última internagao - conforme o caso-, bem como dadosantropométricos, peso do paciente, forma do cránio, marcha da molestia etratamento e data de saída. Esse modelo de registro das observagoes permaneceuaté Janeiro de 1919, quando os livros de observagao passaram a conter maisdados, tais como filiagao; religiao; instrugao; procedencia e prognóstico. Porém,em maio de 1919, ocorreram novas alteragoes sendo extraídas as novidades deJaneiro de 1919, bem como os campos de dados antropométricos e forma docránio. No cabegalho dos livros passou-se a imprimir "Instituto de Neuropatologia".Em 1927, encontramos apenas urna mudanga, no cabegalho dos livros, ondeconstava: Assisténcia a Psicópatas e, logo abaixo, Instituto de Psicopatologia. Oscampos desses documentos eram modificados em acordó com as mudangas nalegislagao, na Assisténcia do Distrito Federal e ñas classificagoes psiquiátricas.Podemos ter urna importante descrigao de como se davam os exames mentáis noPO - realizados pela equipe da instituigao, isto é, o diretor, seu assistente, médicosinternos e com a presenga de aluno(s) da faculdade de medicina - recorrendo aosescritos daquele foi seu diretor por mais tempo: Henrique Roxo. Segundo Roxo(1925), dever-se-ia perguntar, num exame indireto, o porqué de ter vindo osuspeito de alienagao ao hospicio e quem o mandou, o que fazia da vida, etc. Osparentes, casos acompanhassem o suspeito, deveriam ser inquiridos sobre ohistórico de doengas mentáis na familia, da presenga de sífilis ou alcoolismo nosprogenitores, de como foi a infancia e a puberdade do suposto doente e o que elevinha fazendo. A presenga de parentes no PO junto com os doentes era rara,segundo Roxo (1925). Porém, através da leitura de muitas fontes clínicas,percebemos que, muitas vezes, os interrogatorios nao eram feitos somente com ospacientes (Dias, 2010; Fiocruz, 2008).

A investigagao do doente deveria comegar por um exame psicológico, decompreensao, por parte do médico ou interno, do pensamento do doente. Emseguida, um exame direto deveria ser realizado em duas partes, inspegao einterrogatorio. A inspegao atentaría para a apresentagao, o olhar, as roupas,desalinho, agitagao motora, face, mímica e fala. No interrogatorio, a observagaorecairia no conteúdo da narrativa do doente, na memoria, presenga de delirios,alucinagoes, problemas de percepgao, afetividade e vontade, com perguntas sobretudo que pudesse elucidar um diagnóstico, principalmente sobre o que ocorreuantes do internamento (Roxo, 1925). Numa fase seguinte de investigagao, viriamos "exames morfológicos": observagao do cránio sob varios ángulos; percussáocraniana; observagao das orelhas, olhos, narizes, dentes, tórax e membros;deformagoes raquíticas, presenga de mamas em homens e ausencia em mulheres;pouco pelos nos homens; ausencia ou jungáo de membros ou polidactilia;anomalías nos órgáos genitais; presenga de manchas (indicativas de sífilis) ecicatrizes. Tudo isso complementado por um exame médico detalhado para ver ofuncionamento dos órgáos principáis da economía orgánica e da sensibilidade,motilidade e reflexos. No sentido de tentar dar precisáo e objetividade á psiquiatría,Roxo (1925) sugería a análise da duragáo dos atos psíquicos dos alienados, a partirdo "chonoscópio de Hipp". Os atos psíquicos dariam informagoes importantes sobreo "pensamento e vontade". Encerrando a investigagao, encaminha-se o doente paraexames laboratoriais: urina, sangue, líquido céfalo-raquiano e reagáo deWassermann (para identificara sífilis).

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Vemos, entao, que as orientagoes de Henrique Roxo, mesmo com a diferengatemporal de dezoito anos, nao diferiam muito com relagoes as orientagoes dadasaos médicos da policía, por meio do Decreto n. 6.440, de 30/03/1907.Segundo Foucault (1973-4/2006), o interrogatorio médico é urna maneira desubstituir discretamente as informagoes tiradas do doente pela aparéncia de umjogo de significagoes que proporcione ao médico urna ascendencia sobre o doente.O interrogatorio visaría, igualmente, a produgao de um dossié permanente sobre osujeito que seria importante para a sua própria vigia. Além disso, o interrogatorioseria o duplo registro de medicagao e diregao. Por fim, ele seria também o lugar dogrande jogo da clínica, isto é, a apresentagao do doente no interior de urnaencenagao em que o interrogatorio do doente serviría para a instrugao dosestudantes e em que o médico atuava no duplo registro daquele que examinava edaquele que ensinava - assim como ocorria no Pavilhao de Observagoes.Em suma, vemos que a internagao e o exame clínico estao ligados ao projetobiopolítico da medicina mental. No que tange específicamente ao exame clínico,seguindo Michel Foucault, poderíamos afirmar que ele teria algumas fungoescaracterísticas. O exame psiquiátrico tem "um valor de demonstragao" dos desvíos(22) do individuo, bem como do seu caráter pessoal e de suas condutas desde ainfancia (Foucault, 1974-5/2001). Junto com a identificagao da hereditariedade,poder-se-ia, através de urna linha continua, apontar a anormalidade do sujeito e ograu de periculosidade que ele ofereceria á sociedade. Seguindo este raciocinio,podemos afirmar que o exame clínico teria também urna funcao preventiva, isto é,poderia servir para impedir agoes futuras delituosas. Além disso, o exame clínicoseria o lugar de produgao da "verdade do sujeito", isto é, em termos foucaultianos,urna verdade enquanto "posicionamento", ou ainda, um desvelamento (Foucault,1973-4/2006, p. 302-207). Por fim, podemos afirmar que o exame psiquiátricofazia parte de urna técnica de normalizagao (Foucault, 1974-5/2001). (23)

5. Consideragóes FináisTendo em vista tudo que foi dito ácima, compreende-se a insergao do Pavilhao deObservagoes (PO) na rede psiquiátrica da cidade do Rio de Janeiro, desde o interiorao exterior do PO, observando as transformagoes e reconstrugoes intra einterinstitucionais: sua articulagao com a Polícia, de quem recebia grande parte desua populagao de pacientes; com a Faculdade de Medicina, da qual fazia partecomo espago de ensino de clínica psiquiátrica; e com o Hospicio Nacional, do qualera porta de entrada para urna parcela significativa dos doentes. Este circuito dosaber-poder psiquiátrico se expressava um projeto comum - embora diversamenteapropriado pelos diferentes atores em questao - de legitimagao profissional daespecialidade psiquiátrica, em meio ao qual o PO tinha o papel fundamental deensino e triagem de pacientes. Além disso, percebemos que o PO se inscrevia emum jogo de legitimagao interinstitucional, entendendo que ele fazia parte de urnarede histórico-política de acordos - portanto, mutável -, na qual os saberes-poderes se apóiam mutuamente, levando em consideragao seus lugares,dispositivos e os mecanismos particulares que possuem nesta rede.Dessa forma, foi possível perceber, na dinámica do exercício do poder nesta rede, aexistencia de urna serie de disputas entre as instituigoes descritas, personificadasñas agoes e enunciagoes dos seus atores principáis. Tal rede - nao obstante suaaparéncia homogénea - era atravessada por dissensos, disputas e controversiaspresentes nos indicios apresentados pela serie de discursos aqui arrolados eanalisados. Vale ressaltar o quanto isto é latente nos muitos casos clínicosregistrados nos "Livros de observagoes" da instituigao - onde é possível constatarcasos de discordancia em relagao á marcagao diagnóstica realizada em outrasinstituigoes -, mas que nao foram aprofundados aqui por já terem sido objeto denossas reflexoes em outras oportunidades.

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Notas(1) 1938 é a data da fundagáo do Instituto de Psiquiatría da Universidade do Brasil(IPUB), instituigáo que substituiu o Instituto de Psicopatologia, no qual o Pavilhaode Observagoes fazia parte. Neste trabalho, nao alcangamos estender nossa análisepara o contexto da década de 1930. Para maiores informagoes sobre o IPUB e adécada de 1930, ver Venancio (2003).(2) Antes de compor as referidas dissertagoes, o tema do presente trabalho jáhavia sido embrionariamente pensado em 2008, quando foi objeto de urnacomunicagao oral apresentada no congresso da ANPUH-RJ (Dias & Muñoz, 2008).(3) Esta pesquisa, da qual faz parte Cristiana Facchinetti, intitula-se Biopolítica,Psiquiatría e Patrimonio ¡material: a Invengáo do Brasileiro Moderno (1900-1930).(4) É necessário lembrar que a dinámica do poder implica necessariamente umcontrapoder, ou ainda, resistencias ao poder e processos de subjetivagao. Assimcomo Yonissa Wadi (2006), acreditamos que, no ámbito da historia da psiquiatría,essa leitura pode ser realizada a partir do estudo de casos clínicos. Sobre isso ver,Wadi (2009); Muñoz (2010); Dias (2010). Para urna análise do pensamentofoucaultiano, ver Huertas (2006). Para outra leitura acerca da instituigaopsiquiátrica, sob outra orientagáo metodológica, entendendo-a também por suavocagáo terapéutica, ver Gauchet e Swain (1994).(5) Contó de Lima Barreto (1981), Como o homem chegou (na coletánea NovaCalifornia), escrito pelo literato logo que saiu da sua primeira internagáo no HNA,em 1914 (Engel, 2003).(6) Para informagoes da relagáo da polícia com a questáo da alienagáo, no RioGrande do Sul, ver Wadi (2002); no Espirito Santo, Jabert (2005) e no México,Rivera-Garza (2001).(7) Isto é, nao era o único recurso. Muitas vezes, os individuos buscavam umtratamento espiritual para seus males. Sobre isso ver Dias e Muñoz (2010).(8) Por outro lado, essa submissáo nao pode ser generalizada a ponto de encobriras resistencias ao poder patriarcal. A partir da década de 1920, principalmente, osmovimentos para emancipagáo da mulher comegaram a ganhar forga (Rodhen,2001).(9) Recorremos, aqui, ao histórico que Afránio Peixoto faz da medicina legal noBrasil em seu livro intitulado "Elementos de Medicina Legal" (Peixoto, 1914), e numtexto seu publicado no periódico da polícia, o Boletim Policial, na sua edigáoinaugural, intitulado "Servigos Médico-Legáis" (Peixoto, 1907).(10) A exigencia da guia policial foi instituida após o Decreto n. 1.132 de22/12/1903.(11) Para um modelo dessas guias, ver os "Anexos" da dissertagáo de mestrado dePaula (2006).(12) O encaminhamento de individuos febris ao hospicio gerou grandes debates noperíodo da gripe espanhola. Sobre isso ver Dias (2010).(13) Médico Diretor da FMRJ, em 1930 (Magalháes, 1932).(14) Dentre as reformas, destacamos que, em 1911, a Reforma Rivadávia Correaaprovou a Lei Orgánica do Ensino Superior, quando o sistema de docencia alemáofoi trazido para o Brasil. (Magalháes, 1932). A Lei Orgánica teve seu tempo devigencia restrito ao Governo Hermes da Fonseca, sendo substituida no governoseguinte. Com a Reforma Maximiliano, a autonomía dos docentes fortalecia-se coma diminuigáo do poder de intervengáo do Conselho de Ensino. Já a liberdade defreqüéncia permaneceu garantida (Magalháes, 1932).(15) Sobre este ponto, Machado, Loureiro, Luz e Muricy (1978) e Engel (2001) nosmostram que havia urna grande insatisfagáo por parte dos médicos sobre apresenga das irmás de caridade (advindas da Franga) que representavam pessoasestranhas á medicina próximas aos doentes e, que por isso, atrapalhariam oexercício científico da medicina. A principal voz crítica, nesse período, foi a deTeixeira Brandáo.

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(16) Vale ressaltar que até 1911 há sempre a referencia ao estabelecimento futurode instrugoes especiáis e autónomas para reger o servigo administrativo eeconómico do PO, tirando-o da subordinagao financeira do HNA.(17) Sobre essa querela, ver o Relatório da Comissáo, anexo B do Relatório doMinistro da Justiga e Negocios Interiores de 1903 (Relatório da Comissao Inquérito,1903).(18) Esta mesma idéia é repetida nos relatónos seguintes da década de 1920. Verporexemplo: Relatório da Assisténcia (1924); Relatório da Assisténcia (1928).(19) Ver a descrigao destes rituais de "despersonificagao" em "instituigoes totais"feitas por Goffman (1974) e Ignatieff (1987).(20) Para maiores detalhes, ver dissertagao de mestrado sobre o caso Elza (Muñoz,2010).(21) As informagoes a seguir sao retiradas das partes relativas á Assisténcia aAlienados dos relatórios ministeriais, enviados pelo Ministro da Justiga aoPresidente da República, da década de 1890 até a década de 1920. Por urnaquestao prática os relatórios serao citados doravante da seguinte maneira:Relatório da Assisténcia, ano. Ver a referencia completa dos relatórios no itemReferencias.(22) Foucault (1974-5/2001) refere-se específicamente aos delitos. Contudo,acreditamos que o "valor de demonstragao" teria sido um valor comum tanto aoexame médico-legal quanto ao exame clínico.(23) Sobre isso, Foucault (1974-5/2001) estabelece a hipótese de que essastécnicas de normalizagao, e os poderes de normalizagao que sao ligados a elas, naosao apenas efeito do encontró, da composigao, da conexao entre o saber médico eo poder judiciário, mas que, na verdade, através de toda a sociedade moderna,haveria certo tipo de poder - nem médico, nem judiciário, mas outro - queconseguiu colonizar e repelir tanto o saber médico como o saber judiciário: o poderde normalizagao - que se apoiaria na instituigao médica e judiciária, mas, em simesmo também, teria autonomía e regras próprias.

Nota sobre os autoresPedro Felipe Neves de Muñoz - historiador graduado pela UERJ e mestre emHistoria das Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ). Atualmente, édoutorando em Historia das Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ),pesquisador free lancer no projeto de produgao de verbetes do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (CPDOC/FGV) e faz graduagao em Psicología (IP/UFRJ), na qualingressou em 2006. Contato: [email protected].

Cristiana Facchinetti - psicóloga graduada pela UFRJ, mestre e doutora em TeoriaPsicanalítica (PPGTP/UFRJ), com pós-doutorado em Historia das Ciencias e daSaúde (COC/FIOCRUZ). Atualmente, é pesquisadora e professora da Casa deOswaldo Cruz/Fiocruz, além de fazer parte do corpo editorial da Revista Historia,Ciencias, Saúde - Manguinhos e participar do GT de Historia da Psicología daANPEPP. Contato: [email protected].

Allister Andrew Teixeira Días - historiador graduado pela UFF e mestre em Historiadas Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ). Atualmente, é doutorando emHistoria das Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ) e professor-tutor emHistoriografia Contemporánea da graduagao á distancia em Historia da UNIRIO.Contato: [email protected].

Data de recebimento: 25/10/2010Data de aceite: 24/05/2011

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A historia do ingresso das práticas psicológicas nasaúde pública brasileira e algumas conseqüéncias

epistemológicas

History of the introduction of psychological practices in the Brazilian publichealth system and some epistemological consequences

Magda do Canto ZurbaUniversidade Federal de Santa Catarina

Brasil

ResumoNeste trabalho revisamos o processo histórico que levou as práticas psicológicasbrasileiras a se instalarem ñas políticas públicas de saúde contemporáneas,analisando, neste contexto, a epistemología da ciencia psicológica e suastransformagoes recentes. Revisitamos alguns aspectos históricos que marcaram aformagáo do pensamento psicológico pré-científico, bem como sua consolidagáocomo ciencia moderna. O pressuposto epistemológico da Psicología, em suaconcepgáo moderna de ciencia, era associado ao pensamento liberal. Assim, algunsepisodios históricos levaram os fazeres psicológicos a estarem muito maisorquestrados pelo mercado regulador - consultorios clínicos privados, consultoriasempresariais, etc. - do que pelas políticas públicas. Assinalamos o desenvolvimentoda reforma psiquiátrica no Brasil como um elemento determinante que impulsionoua entrada do fazer psicológico no ámbito das políticas públicas de saúde no Brasil,fato que tem afetado significativamente os modelos contemporáneos de prática.

Palavras-chave: historia da psicología; psicología da saúde; prática psicológica.

AbstractIn this paper we review the historical process that led the psychological practice inBrazil to settle in contemporary public health policies, examining in this context, theepistemology of psychological science and its recent changes. We revisited somehistorical aspects that marked the formation of pre-scientific psychological thinking,and its consolidation as a modern science. The epistemological assumption ofPsychology, in its modern science, was associated with liberal thinking. Thus, somehistorical episodes have led the psychological practice to be much moreorchestrated by the regulating market - prívate offices, business Consulting, etc. -than by public policy. We note the development of the psychiatric reform in Brazilas a key factor that drove the introduction of psychological care within the publichealth policies in Brazil, which has significantly affected the contemporary modelsof practice.

Keywords: history of psychology, health psychology, psychological practice.

1.Considerares iniciáisComo área organizada de conhecimento científico, a Psicología foi se configurandohá apenas pouco mais de cem anos, no apagar das luzes do século XIX. Esse é umperíodo muito curto em termos de historia das ciencias. Porém, mais curto ainda éo período em que essa "nova ciencia" passou a ingressar no terreno da saúdepública, sobretudo no Brasil.Somente com o advento da ciencia moderna os problemas psicológicos passaram aser entendidos sob modelos inteligíveis á comunidade científica. A Psicologíacientífica é filha da Modernidade, contudo, a passagem histórica que pressupoe a

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consolidagao da Psicología como ciencia moderna consistiu em um processobastante turbulento (Mueller, 1978; Ferreira, 2006), cujos desdobramentosimplicaram em subdivisoes teóricas por vezes antagónicas e áreas de aplicagoesdiversificadas (Figueiredo, 2000).Neste contexto, diante da dificuldade disciplinar em retomar o processo históricousufruindo de certa unidade epistemológica, muitos fazeres psicológicos foram seconsolidando em diferentes lugares do mundo apoiados por certos regionalismos,financiamentos específicos e, sobretudo, influenciados por posigoes políticasdistintas. Cecilia Coimbra (1999) aponta, por exemplo, como no Brasil a Psicologíase mostrou aliada á ditadura e ao regime militar durante os anos 60 e 70,influenciando as práticas psicológicas que se consolidaram no país durante asegunda metade do século XX. Neste sentido, é observável que, por volta de 1965,boa parte do mundo democrático já contava com psicoterapia de grupos emcomunidades e centros comunitarios, principalmente nos Estados Unidos e Europa(Evans, 2007), mas nos brasileiros - e boa parte da América Latina - poucosabíamos como proceder a este respeito (Ciornai, 1997). Passamos os anossubseqüentes á instalagao dos regimes militares latinoamericanos restritos aatendimentos individuáis, proibidos pelo Estado de realizar agrupamentoscomunitarios. Além disso, vivenciamos o tardio ingresso de nossa práticapsicológica ñas políticas públicas de saúde, bem como o frágil emprego dapsicoterapia grupal no cotidiano do trabalho psicológico por muitos anos.Hoje, em contraste, temos visto o ampio ingresso da psicología em equipesmultiprofissionais de saúde da familia, hospitais e também em ambulatoriospúblicos de psicoterapia, nos quais se presume a coordenagao de grupos eestrategias de promogao/prevengao em saúde - algo que em momentos anterioresda nossa historia era improvável de ser pensado. Entender essa passagemhistórica nos auxilia a re-pensar o retrato que montamos do psicólogo de hoje noámbito da saúde, bem como no contexto das políticas públicas de modo geral. Aentrada do fazer psicológico nestes modelos de trabalho forgou o enfoqueinterdisciplinar na compreensao do fenómeno psicológico, fato que tem afetadosobremaneira nosso paradigma disciplinar, cujas bases se apoiavam em um modelocartesiano e linear de ciencia.

Assim, este artigo tem o objetivo de problematizar e repensar sobre o processohistórico que levou as práticas psicológicas brasileiras a se instalarem ñas políticaspúblicas de saúde contemporáneas, analisando, neste contexto, aspectos daepistemología da ciencia psicológica e suas transformagoes recentes.

2. A nocao de "Psicología" na AntiguidadeAntes do advento da Psicología como "ciencia" propriamente dita e muito antes dabusca da aplicagao deste conhecimento científico ñas atividades cotidianas dohomem, podemos encontrar as preocupagoes com os problemas de ordempsicológica da humanidade desde longa data. Ainda que tenhamos umdistanciamento temporal demasiado longo entre a Antiguidade e nossos dias, bastanos aproximarmos um pouco dos escritos de Aristóteles (384-322 a.C/2006) paraencontrarmos ressonáncia significativa entre o modo como desenvolvemos a práticapsicológica na Modernidade e o modo como aquele filósofo presumía as condigoesontológicas do homem. Isto porque foi no Renascimento, justamente com a quedada Idade Media, que se consolidou a ciencia moderna, contudo, retomando atentativa de pensamento nao-dogmático de Aristóteles. Este, por sua vez, evitava odogmatismo em sua época porque buscava fugir da metafísica platónica; já ospensadores modernos porque buscavam fugir do pensamento dogmático cristao. Detoda forma, a retomada ao pensamento aristotélico influenciou a formagao dopensamento psicológico dos séculos XVIII e XIX, afetando a consolidagao da cienciapsicológica nos anos subseqüentes, até os dias de hoje.

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Em sua teoria, Aristóteles (384-322 a.C/2006) propós um modelo de universo,modelo este que correspondía a desdobramentos em varias áreas disciplinares,recaindo tanto sobre a Psicologia como sobre a Física. Em sua concepgao, existiríaharmonía e um equilibrio estável no universo. Desta forma, ele explicava tanto anatureza da "alma", quanto os motivos dos corpos físicos caírem - explicagaoprimaria, contudo, muito antes de conhecermos a lei da gravidade. Enfim,Aristóteles propunha um arranjo cósmico e harmonioso do universo.Da mesma forma, em sua psicologia ele negava a ideia de alma encarcerada numcorpo, tal como os platónicos propunham. Aristóteles assegurava certa harmoníañas fungoes vitáis, afirmando que nao existia anterioridade da alma em relagao aocorpo, mas que um existiría para o outro e vice-versa: desta forma, a alma naopoderia existir sem um corpo que ela animasse, nem um corpo teria principio vitalsem alma, havendo assim urna perfeita unidade funcional. Ou seja, o ser humanonao seria constituido por urna alma e um corpo. A condigao aristotélica para oprincipio vital de um ser humano seria da funcionalidade entre alma e corpo, aalma estaría para o corpo assim como a visao estaría para o olho, conformepodemos acompanhar em seus escritos na obra De Anima:

Assim como a agao de cortar e a agao de ver,também a vigilia é atualidade. A alma, por suavez, é como a potencia do instrumento e como avisao; e o corpo é o ser em potencia. Mas, assimcomo a pupila e a visao constituem o olho,também neste caso, o corpo e alma constituem oanimal (Aristóteles, 384-322 a. C/2006, p. 73).

É importante lembrar que Aristóteles escrevia antes da Era Crista, portanto,possivelmente Ihe fosse mais provável do que aos pensadores da Idade Mediapensar que a alma nao fosse anterior ao corpo e que, além disso, sequer pudesseexistir sem corpo. Para Aristóteles a alma somente existiría enquanto estivesseanimando um corpo: nem antes, nem depois. A precisa fungao entre corpo e almaseria aquilo que Aristóteles estabelecera como objeto da Psicologia: a consciéncia.Contudo, o sistema filosófico de Aristóteles nao resolvía o problema metafísicoposto em Platao. Por outro lado, apesar de Aristóteles ainda assegurar a Deus umlugar de criador do universo, descrevia este universo como passível de serestudado. Neste sentido, suas reflexoes sobre percepgao, memoria, sensagoes,passaram a ser entendidas no ámbito da consciéncia. Aristóteles (384-322a.C/2006) refutava e desprezava a ideia de explicar as fungoes psicológicas comoinerentes á alma, tal como seus antecessores metafísicos. Desprezava também asexplicagoes dos atomistas, materialistas tais como Leucipo - que vivera por volta de500 a.C, bem como de seu discípulo Demócrito de Abdera, que vivera entre 430 a360 a.C. (Rocha, 2007). Aristóteles entendía que o principio vital nao poderia serexplicado pelos elementos meramente físicos, principalmente os fenómenoshumanos mais complexos, como por exemplo: o pensamento, a liberdade deescolha, etc.Temos ai o rascunho do que viria a ser a Psicologia moderna, pois após os anos daIdade Media, a ciencia passou a retomar - em determinadas proporgoes - algumasdas consideragoes dos filósofos da Antiguidade. Neste sentido, a historia nospermite compreender como foi que, a partir dos modelos científicos estabelecidosna modernidade, passamos a explicar a fungao dos síntomas em um sistemasomático e psicossomático, construindo caminhos que vao desde a psicologia dasaúde de modo geral, até as especificidades da epistemología presentes ñaspráticas em saúde mental de hoje. Contudo, essa passagem nao foi feita por urnatransposigao simples de modelo. O caminho entre a Antiguidade e a Modernidadelevou mais de mil anos, e gerou impactos profundos em tudo que entendemoscomo prática psicológica nos dias de hoje.3. A "Antiguidade Moderna"

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Durante a Idade Media, o modelo de compreensao do adoecimento foi fortementemarcado pela visao do transcendente, sob a perspectiva do paradigmaantropológico paulino-agostiniano apoiado na ambivalencia do "eu-moral", tal comoapontam Oliveira, Pires, Macedo e Siqueira (2006). Neste sentido, a ambivalenciado "eu-moral" implicaría em urna doenga estrutural do ser humano, gerando muitosconflitos, cujos desdobramentos levariam o homem a incessante busca desuperagao. Os autores apontam que este paradigma influenciou fortemente apsicología moderna a respeito de suas formulagoes sobre saúde e adoecimento.Sabemos que o Renascimento foi o período preciso de transigao entre o modelo de

vida da Idade Media e o inicio da Idade Moderna, contudo, é tarefa difícilcompreender os desdobramentos decorrentes dessa transigao. Um dos resultadosdesse período foi a ruptura no modo de viver humano, marcadamente a queda domodelo agrícola baseado no modelo de escravidao e de nobreza, para o ingresso nomodo de vida capitalista onde "tempo é dinheiro".A enfase histórica na queda do sistema feudal se apóia em um olhar agudo sobre aEuropa, de forma que a narrativa da "historia universal" é, neste sentido,eurocéntrica. Isso acontece nao apenas em boa parte dos livros de historia daPsicología, mas no próprio corte temporal entre os períodos históricosestabelecidos, de modo geral, pelos historiadores. Na literatura hegemónica, todasas rupturas no tempo histórico sao assinaladas por eventos acontecidos na Europa,inclusive o inicio da ciencia moderna, cuja data novamente nos remete á queda daIdade Media e o inicio da Idade Moderna, demarcada entre - outras coisas - pelopaño de fundo da revolugao Francesa.Contudo, a influencia da metafísica no pensamento humano - durante o período demil anos medievais - nao foi vivido somente na Europa. Nesse período, seprocurarmos os principáis vultos da filosofía árabe - conforme nos apontam asfecundas colaboragoes históricas de Giordani (1976) - encontraremos, por exemplo,Al-Kindi (que viveu entre 796-866); Alfarabi (sabe-se que morreu em 950), Avicena(que viveu entre 980-1037), entre outros. O que há em comum entre os autoresmedievais árabes e os europeus mais conhecidos no período da Idade Media? SaoPaulo, Santo Agostinho e Sao Tomás de Aquino, assim como Al-Kindi, Avicena eAlfarabi, apoiavam-se em explicagoes metafísicas sobre os processos psicológicosdiversos. Se dermos um giro pelo mundo medieval em diferentes locáis do mundo,identificaremos esse criterio metafísico em praticamente todas as culturas: ñascomunidades asiáticas, ñas tribos africanas, na experiencia do indiolatinoamericano, bem como no misticismo da filosofía hebraica.A questao que colocamos, neste inicio de reflexao, é entender como a humanidadeconseguiu alcangar explicagoes aos problemas psicológicos para além da metafísica,por meio do pensamento científico. Ora, certamente que as duas formas depensamento coexistem até os dias de hoje, e nao é raro que algumas comunidadesprefiram tratar seus problemas psicológicos junto a curandeiros e benzedeiras,como bem tem apontado Alfredo Moffat (1991) em sua obra ñas últimas décadas.Outros autores identificam, inclusive, o entendimento subjacente de aspectosmetafísicos ñas explicagoes corriqueiras do senso comum sobre o processo saúde-doenga (Oliveira, Pires, Macedo & Siqueira, 2006), apontando o elevado índice demateriais de auto-ajuda junto ao público leigo como forma de apontar essesmodelos contemporáneos.

3.1. Determinismo, reducionismo, empirismo e mecanicismo: as quatroraízes da Ciencia moderna na formacao da Psicología.O advento da Psicología como campo científico de conhecimento foi um marcoimportante para a humanidade, estabelecendo urna nova ordem de explicagoes emanejo para velhos problemas da vida cotidiana. Embora os síntomas em saúdemental continuem a ser tratados, ¡numeras vezes, sob o criterio da ordem espirituale manejados através de rituais místicos, ao menos hoje podem ser sistematizados,

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pesquisados e divulgados no campo da ciencia. Portanto, o polémico fato de que aPsicología tenha entrado para o campo da ciencia adquire significado em si, poispotencialmente passou a subsidiar as pessoas na superagao de suas práticasdogmáticas e muitas vezes ideológicas, práticas estas aprendidas e repetidas nosenso comum, estas que fortalecem modelos de dominagao cultural e económica ámedida que popularmente associam problemas psicológicos a questoes de culpa,falha no desenvolvimento moral, castigo divino, etc. Por outro lado, é verdade queo advento da Psicología como ciencia pode deslocar o foco da opressao para outrorumo, desta vez a opressao do estigma científico, opressao de um tipo de saberque se propoe sobre os demais. O saber científico pode ser entendido comosuperior ao senso comum quanto ao rigor metodológico na produgao de afirmagoesditas "verdadeiras", contudo, este tipo de saber tem se mostrado quase taoautoritario quanto aquele.De toda forma, com a queda do pensamento dogmático, que enfraqueceu ao finalda Idade Media, vamos encontrar o terreno fértil no qual se instalou a cienciamoderna. Todas as áreas disciplinares, e nao apenas a Psicología, encontraramfólego novo no cenário que se constituía durante o Renascimento. Neste contexto,talvez tao dogmática quanto as religioes, a ciencia moderna nascia apoiada nodeterminismo, no reducionismo, no empirismo e no mecanicismo.O modelo de ciencia psicológica que se propunha em sua génese era, da mesmaforma, positivista e materialista, ainda linear e cartesiana, baseada na físicanewtoniana. A natureza da relagao mente-corpo, colocada por Descartes no ámbitodo empirismo, passou a ser minuciosamente estudada e até quantificada porFechner (1860/1978), tal como retrata sua obra, traduzida do alemao para o ingléscomo Elements of psychophysics. Assim como Aristóteles, Fechner entendía que ouniverso era regido por Deus, de modo que no funcionamento das leis ditas"naturais" haveria um movimento em diregao á perfeigao. Neste sentido, osaspectos físicos e psíquicos dos fenómenos seriam parte de urna mesma realidade,e nao características antagónicas. Sobre isso, o autor inclusive se arriscou aalgumas especulagoes filosóficas (Fechner, 1891/1988).De toda forma, o modelo causa-efeito continuava sendo o único sob o qual seapoiavam as explicagoes psicológicas da época a respeito das sensagoes,percepgoes, memoria e, inclusive, aprendizagem. Nos anos subseqüentes, otambém alemao Wundt aprofundou o método empírico de Fechner, o que culminoucom sua publicagao intitulada na versao em inglés como Lectures on the minds ofmen and animal (Wundt, 1863 citado por Schultz & Schultz, 2009). Naqueletrabalho, Wundt aprofundou empíricamente os estudos sobre o problema da relagaomente-corpo, e desta relagao com o meio, cunhando o termo "psicología fisiológica"em sua obra Principies of physiological psychology (Wundt,1873-1874 citado porSchultz & Schultz, 2009). Assim, como sabemos, Wundt consagrou-se organizandoa primeira psicología reconhecidamente científica: a "psicología experimental".

4. A Psicología: urna ciencia modernaNascia assim a "Psicología", que em 1881 já contava com um manual de Psicologíafisiológica, um laboratorio de Psicología experimental na Universidade de Leipzig(Alemanha) e urna revista académica especializada na mesma universidade.Contudo, nascia urna "ciencia de laboratorio", que desta forma se propunha aestudar a experiencia consciente do homem através de experimentos dentro de umlaboratorio.É importante ressaltar que nao estava surgindo ainda urna ciencia "aplicada". Valelembrar que o próprio Wundt, fundador do primeiro laboratorio de psicologíaexperimental no mundo, superou seu modelo experimental nos últimos vinte anosde sua vida. Ele concluiu que as experiencias mais complexas da consciencia, taiscomo memoria e aprendizagem, por exemplo, nao poderiam ser estudadas segundoum modelo experimental. Wundt desenvolveu assim a "psicología cultural",

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publicada em dez volumes ao longo dos primeiros vinte anos do século XX, e finalda vida do autor (Wundt, 1900-1920 citado por Schultz & Schultz, 2009). Apesardo conteudo de suas últimas publicagoes apontarem para urna verdadeira mudangade rumo paradigmático para a ciencia psicológica, seus seguidores nao foram muitoreceptivos, pois assumir a psicología cultural consistía, em última análise, emabandonar o método da psicología experimental, que na década de 20 já seencontrava amplamente difundido pelo mundo, contando com varias réplicas dolaboratorio de Leipzig e ¡numeras publicagoes. Conforme apontam Schultz e Schultz(2009):

A psicología cultural tratou de varias etapas dodesenvolvimento mental humano manifestadopela linguagem, ñas artes, nos mitos, noscostumes sociais, na lei e na moral. O impactodessa publicagao na psicología foi maissignificativo do que o conteudo em si, já queserviu para dividir a nova ciencia em duas partesprincipáis: a experimental e a social (p. 83).

O problema a respeito da aprendizagem e desenvolvimento cognitivo impulsionouWundt a revisar seu modelo de trabalho. Embora ele próprio nao estivesseconvencido de que a psicología poderia se tornar urna ciencia aplicada, ainda assim,alterou drásticamente seu modelo de pesquisa e, sobretudo, ensaiava urna revisaode paradigma científico - sem, contudo, identificá-la. Em nosso entendimento, emseus últimos vinte anos de pesquisa - através da psicología cultural - Wundtafastou-se, paulatinamente, do modelo positivista. Assim como a Física - que apartir do eletromagnetismo (Einstein & Infeld, 1960/2008) revisou durante o séculoXX seus modelos explicativos de universo baseados no pensamento cartesiano e namecánica de Newton, a Psicología wundtiana tangenciou a revisao de seu modelomecanicista de homem, que até entáo se apoiava no paradigma linear eassociacionista de precursores como Descartes, John Locke e James Mili.

5. O paradigma científico moderno e a queda de braco da Psicología com aspolíticas públicasÉ polémica a passagem histórica que leva a Psicología de dentro dos laboratorios aomodelo funcional no cotidiano das pessoas, inclusive á prestagáo de servigos.Autores norte-americanos costumam enfatizar a presenga do británico Titchennernos EUA e seu trabalho estruturalista sobre a mente como um degrau necessáriopara que surgisse urna reagáo funcionalista no mundo. Historiadores europeuscostumam negligenciar Titchenner e ignorar também o tumulto que ele causou paraa historia da ciencia psicológica devido as tradugoes mal feitas que efetuou dasobras de Wundt. De toda forma, historiadores europeus e americanos saoconsensuáis em localizar que foram as demandas sobre aprendizagem, memoria,imaginagáo e criatividade que levaram a Psicología a se manifestar junto ao sensocomum durante o século XX, aplicando seu conhecimento a problemas comuns docotidiano.O fato é que a Psicología, em seu processo de consolidagáo no campo da cienciadita "moderna", necessitou passar dos laboratorios experimentáis para problemasaplicados na vida cotidiana. Contudo, a ordem paradigmática nao superou de modoconsistente o modelo de ciencia linear que se instalara durante o Renascimento.Como afirma D'Ambrosio (2001), sem referir-se á Psicología, mas considerando arespeito da epistemología científica de modo geral:

A ciencia moderna é identificada como o sistemade explicagoes de fatos e fenómenos que resultamdo paradigma newtoniano. A modernidade serefere as repercussoes desse sistema na filosofía,ñas artes e na política. O questionamento do

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paradigma newtoniano e suas repercussoes emtodos os campos de conhecimento caracterizam após-modernidade (p.103).

O paradigma da Psicología, herdado no espirito da modernidade, ainda coexistehoje, com tímidas tentativas científicas de superagao para um modelo menoslinear: por vezes se aproximando da teoria crítica, por vezes da dialética ou domodelo ecossistémico. Contudo, esse ainda é um caminho em processo. Valelembrar que, nem o sucesso do darwinismo social de Spencer (1820-1903) nosEstados Unidos, nem a busca por estruturas físicas da consciéncia de William James(1842-1910), nem a "escola de Chicago" deram conta de urna mudangaparadigmática da Psicología durante os anos subseqüentes do século XX.Nesse tumultuado contexto epistemológico assistimos á Psicología ingressar nocampo da prestagao de servigos, á medida que os movimentos funcionalistas -tanto europeu como americano - atentavam para a demanda prática dosconhecimentos da Psicología. O funcionalismo americano, já mencionados atravésde precursores como Spencer e James, gerou influencias económicas diretas noplano de trabalho do psicólogo a partir da escola de Chicago, fortalecendo aquiloque se denominou como "psicología aplicada", culminando nos testes de QI, ñasavaliagoes de desempenho motor e oral, bem como em certos movimentos depsicología organizacional e da industria, além de parte da psicología clínica. Nofuncionalismo europeu vamos encontrar os protagonismos de Édouard Claparéde(1873-1940) e Jean Piaget (1896-1980), que constituíram a conhecida "escola deGenebra". Segundo Campos e Nepomuceno (2007), a énfase da escola de Genebraera colocada no processo de construgao das estruturas psicológicas, priorizandoassim a interagao sujeito e ambiente, o que significava colocar ao lado tanto asexplicagoes inatistas dos biologicistas quanto as explicagoes ambientalistas dosassociacionistas. Vigotski, que na década de 20 já desenvolvía pesquisas sólidasapoiadas no materialismo-histórico dialético - no contexto da extinta Uniao dasRepúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), assinalava a crise epistemológica que aPsicología vivía naqueles tempos:

se a psicología é na verdade e em sentido precisourna ciencia natural (e, de acordó com os autoreseuropeus, empregamos essa palavra para indicarmais claramente o caráter materialista dessegénero de conhecimento: como a psicología daEuropa Ocidental desconhece ou quasedesconhece os problemas da psicología social, osconhecimentos psicológicos coincidem para elacom as ciencias naturais). Mas inclusive esseproblema continua tendo um caráter especial emuito profundo: o de mostrar que é possível apsicología como ciencia materialista e que essefato nao faz parte do problema do significado dacrise como um todo (Vigotski, 1927/2004, p.340).

5.1. Influencias do funcionalismo no Brasil e aspectos do colonialismointelectual na PsicologíaNo Brasil, as repercussoes funcionalistas estiveram desde muito cedo presentes.Podemos dizer, propriamente, que a ciencia psicológica brasileira se confunde comaquilo que alguns países denominavam como "psicología aplicada". Praticamentenao conhecemos, de antemao, outra psicología que nao fosse aplicada. Nao fomos,pelo menos de inicio, um país de grandes teóricos da nova ciencia, mas, sobretudo,importadores de técnicas, textos e teorías - excelente platéia de palestrantesestrangeiros. Como diria Carvalho (2001) em seu estudo sobre o pensamentocolonialista ñas ciencias humanas do Brasil: "a metáfora das metamorfoses do olhar

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etnográfico, o que permite detectar momentos importantes da recepgao ereprodugao, em países periféricos como o Brasil, desse saber plasmado nos paísescentráis nos dias de colonialismo" (p.107).Certamente que seria interessante se enveredássemos pela reflexao acerca doimpacto do colonialismo intelectual no desenvolvimento da Psicologia brasileira,porém, nao colocaremos sobre essa questao um foco mais profundo, tamanha acomplexidade de tal materia. Tal como nos lembra Massimi (2007):

De fato, na busca de transformar o Brasil emnagao ocidental moderna, o passado colonial éencarado negativamente e o futuro é concebidocomo adequagao a modelos que, num enfoquepositivista do processo histórico, aparecem comomais evoluídos. Neste sentido, também a criagaodos primeiros laboratorios no inicio do século XXparece acompanhar esse movimento voltado acriar no Brasil urna ciencia do homem segundométodos e objetivos sugeridos pelo cenáriocultural e social internacional (p.167).

Consideramos que as implicagoes do pensamento colonialista sobre a Psicologiabrasileira influenciou de tal maneira a consolidagao da profissao que, ainda commuita dificuldade, apenas recentemente alguns grupos específicos de intelectuaisbrasileiros tém conseguido articular demandas psicológicas nacionais a problemasde estudos teóricos mais ampios, junto a um campo de ideias e conhecimento quevem se consolidando em torno de questoes da psicologia brasileira elatinoamericana (Brosek & Massimi, 1998; Gewehr, 2010; Guedes, 2007; Massimi& Guedes, 2004). Em suma, no processo histórico de formagao do pensamento emPsicologia brasileira e latinoamericana, alguns estudiosos puderam compreender osignificado de um novo tipo de discurso na virada do século XX para o século XXI.Neste sentido, as nogoes de pós-modernidade, globalizagao e pluralismo sesobrepoem á nogao de soberanía que reúne as diferengas. Assim, retomandoreflexoes de Foucault (1976/1999) do final dos anos 70:

Doravante, nesse novo tipo de discurso e deprática histórica, a soberanía já nao vai unir oconjunto em urna unidade que será precisamentea unidade da cidade, da nagao, do Estado. Asoberanía tem urna fungao particular: ela naoune; ela subjuga. E o postulado de que a historiados grandes contém a fortiori a historia dospequeños, o postulado de que a historia dosfortes traz consigo a historia dos fracos, vai sersubstituido por um principio de heterogeneidade:a historia de uns nao é a historia dos outros (pp.80-81).

Considerando tais aspectos do processo histórico apontados por Foucault(1976/1999), assinalamos que foi no contexto de urna produgao intelectualcolonizada que encontramos, no Brasil, os primeiros focos de organizagao da áreaem torno das questoes de aprendizagem, neste sentido, pautadas sobreespeculagoes teóricas que palpitavam do exterior. Segundo Massimi (2007) asinfluencias teóricas mais presentes em solo brasileiro foram, de inicio, aquelas doespiritualismo francés de Maine de Biran (1766-1824) - que em última análisequestionavam as teorías naturalísticas e o mecanicismo, fundando urna ciencia do"eu" que se apoiava no empirismo. Com essa énfase espiritualista, pelo menosdesde 1850, vamos encontrar disciplinas avulsas de psicologia sendo lecionadas emcursos de Filosofía.

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O foco dedicado aos problemas de aprendizagem e desenvolvimento infantil logoapareceram, de modo que em 1870, segundo Massimi (2007), um curso normal deSao Paulo incluiu em sua grade curricular a disciplina "Psicología aplicada aodesenvolvimento da crianga" (p.166). Assim, seguindo o script da psicología quejase consolidara em outras partes do mundo, surgiram alguns laboratorios depsicología experimental no Brasil já no inicio do século XX, bem como práticaspsicopedagógicas que buscavam definir zonas de desenvolvimento "normal" e"anormal". Os trabalhos desenvolvidos por Helena Antipoff, por exemplo, tornaram-na reconhecida como típicamente funcionalista - tal como lembram Campos eNepomuceno (2007, p.257). As autoras consideram, ainda, que as pesquisas delaboratorio desenvolvidas por Antipoff ñas primeiras décadas do século XX - cujoobjetivo primeiro era compreender o desenvolvimento mental das criangas emidade escolar - na verdade subsidiaram a introdugao dos testes de medida deinteligencia ñas escolas primarias desde aquela época.Nessa conjuntura inicial, é importante ressaltar a importancia da vinda depalestrantes do exterior, que respaldavam a importagao de teorías e técnicas queconfluíam na diregao de urna psicología essencialmente aplicada, que atendesse asdemandas ditas da "sociedade". Além disso, a falta de um lugar profissional dopsicólogo no Brasil, já conquistado lá fora, infligía os interessados em psicología noBrasil a buscarem recursos externos. De toda forma, urna marca importante desseperíodo, foi o ingresso de "verdades psicológicas" na cultura brasileira, como se ofato de serem ditas por um palestrante estrangeiro, de preferencia em sotaquefrancés, legitimasse um conceito como mais verdadeiro do que se tivesse sidopronunciado a partir de um estudo nacional. Como bem apontaram Castro, Portugal& Jacó-Vilela (2010) em recente artigo sobre a historia da Psicología no Brasil:

Na perspectiva de urna Historia da Psicología noBrasil, o que em certas ocasioes se verifica é quetais deslocamentos improprios tendem aacontecer com mais freqüéncia em abordagensque buscam urna convergencia entre o contextoeuropeu e o brasileiro. Assim sendo, essa crítica,que aponta tal tendencia como superficial eforgada, é especialmente válida frente algumasapropriagoes da historiografía francesa na análiseda realidade brasileira (pp. 95-96).

Essa, contudo, nao foi urna peculiaridade da ciencia psicológica no Brasil. Comosabemos, em diversas áreas do conhecimento esse fenómeno colonialista ocorreu.Até hoje, no Brasil, avaliadores de diferentes universidades brasileiras expressivas,utilizam criterios de pontuagao de currículos que escalonam de maneira inferior osartigos publicados em periódicos nacionais em relagao aqueles publicados emperiódicos estrangeiros. Ou seja, ao entender a chegada do funcionalismo no Brasilestamos compreendendo, também, urna lógica de aplicagao e mérito científico nocontexto nacional, que recaiu nao apenas na Psicología, mas fundou todo o caldocultural no qual se instalaram ideologías, universidades e centros de pesquisas.

6. Psicología: urna profissao liberal ou área de políticas públicas?A ideia básica do funcionalismo, de que o único conhecimento válido é aquele quepode ser aplicado, é bom lembrar, tomou fólego no cenário internacional por contado pragmatismo norte-americano, cujas raízes remontam o uso do conhecimentono fortalecimento dos servigos capitalistas. Isto porque, no inicio do século XX,quase tudo que se entendia como prestagao de servigo, era produto de mercado, enao política pública.Entao, quando hoje procuramos entender como a psicología alcangou as políticaspúblicas de saúde no Brasil, é indispensável compreender o papel funcionalista queo fazer psicológico ocupou durante as primeiras décadas do século XX. Daí que

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podemos entender a fragilidade com a qual penetramos esse mundo de prestagáode servigos: quase nada maestrados pelo Estado, mas regulados pelo mercadoliberal - algo que afeta sobremaneira, inclusive, a técnica e o manejo dedeterminados acompanhamentos psicológicos.A Psicología dita aplicada, heranga do funcionalismo, é descrita por alguns autoresnorte-americanos como fruto de financiamentos capitalistas que, contudo, naoafetariam os resultados fináis do conhecimento produzido. Na verdade, sob nossoponto de vista, esse é um pressuposto equivocado, onde os autores pressupoemneutralidade científica, tal como exemplificamos a seguir - em trecho da obra deSchultz & Schultz (2009), reconhecidos autores norte-americanos contemporáneos:

pesquisa experimental sólida pode ser financiadapor urna entidade corporativa de grande porte,sem ditar ou prejudicar os resultados. Um efeitomais duradouro foi saber que psicólogos podiamter carreiras bem-sucedidas e financeiramenterecompensadoras em psicología aplicada, semdesafiar sua integridade profissional (p.190).

Nesta obra, os autores partem de casos particulares para justificar esse argumento.Por exemplo, mencionam o clássico caso da empresa Coca-cola, que em 1909contratou um psicólogo experimentalista para provar que a cafeína presente nabebida fabricada nao produziria alteragoes comportamentais significativas, nemdanos á saúde humana. Através de pesquisas experimentáis, em laboratorio, opsicólogo provou aquilo a que foi pago para provar, a Coca-cola livrou-se da fasecrítica de um processo judicial grave, e os entusiastas da psicología aplicadaaplaudiram as possibilidades de mercado que se abriam para a nova ciencia.Contudo, para além dos casos particulares, mas considerando o desenvolvimentocientífico da Psicología de maneira geral, podemos dizer que ao mesmo tempo emque foi útil obter aplicagao de conhecimento ás questoes cotidianas da sociedade, aorigem dos financiamentos envolvidos influenciou de maneira determinante quaisaplicagoes poderiam ser desenhadas. Esse processo - regulado pelo livre mercado- atendeu a demandas específicas e nada casuais no desenvolvimento histórico daPsicología durante todo o século XX.Desta forma, nao é de se surpreender que a Psicología tenha se prestado, durantelongo período, a atender apenas a aplicagoes e perguntas de pesquisas oriundas dopensamento liberal, que pouco ou nada questionavam sobre o sistema e modelosde vida capitalistas, mas que, antes o contrario: questionavam a sanidade dosujeito que nao se adequasse a esse sistema. Esse foi o papel ocupado peloconceito de "normalidade" ou "sanidade mental" que se instalou junto ao quedenominamos como funcionalismo liberal ao longo do século XX em diferentespaíses do mundo. Como nos lembra Foucault, a contrapartida do conceito denormalidade foi o conceito de "anormalidade", recurrentemente associada ao crime,de modo que a patologizagáo deste ocorreu a partir de urna nova economía dopoder (Foucault, 1972-5/2001).

7. O confronto entre o mercado liberal e as políticas públicasHistóricamente, as dificuldades do Brasil em se apoiar sobre suas própriasreferencias a respeito da normatizagáo de políticas públicas foi urna questáo queapareceu desde cedo, e agora está entrelagada á homogeneizagáo cultural, cujainternacionalizagáo do capitalismo vem promovendo nos últimos anos. O fenómenopode ser entendido á luz de urna nova "lógica cultural", cujas implicagoes infligiramdiretamente sobre a vida cotidiana.Jameson (1997) apontou esta nova lógica cultural do mundo como formadora deum novo género discursivo, que refletiu urna modificagáo sistémica no capitalismoexistente. Neste sentido, a internacionalizagáo do capitalismo, bem como suadifusáo quase completa sobre o planeta, difere da suposta "globalizagáo do capital".

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Nao foi, de fato, o capital que foi globalizado - o que diluiría bastante a nogao defronteiras entre as nagoes e entre as pessoas - mas o modelo capitalista que foipropagado com nunca houvera sido antes na historia da humanidade. Assim, nao éde se estranhar que boa porcentagem da populagao latino-americana use caigas"jeans", beba "coca-cola" ou coma sanduíche "McDonald's". Mas isto nao significaque estejamos vivendo em urna aldeia global pacífica, em um pluralismo quecontemple as diferentes culturas e sem a existencia de fronteiras.Durante muitos anos, a maior parte dos movimentos sociais da América Latinadefendía que o direito á igualdade fosse, antes de tudo, urna missao do Estado. Aolongo da década de 70 pudemos perceber, em toda América Latina, o regimecentralizador do Estado apoiado, visivelmente, sobre o poder autocrático degoverno. De modo geral, mesmo nos regimes democráticos, o próprio Estado foi, eainda tém sido, ator ativo dos movimentos sociais na América Latina.Conforme Alain Touraine (1989), o protagonismo do Estado nos movimentos sociaisacontece na América Latina porque ainda constituímos um tipo de sociedadedependente. Neste sentido, nossa dependencia garantiu, durante muitos anos, queo Estado fosse o principal agente do desenvolvimento económico - inclusive daorganizagao das reivindicagoes sociais. Dessa forma, salientando o papelcentralizador no desenvolvimento nacional dos países latino-americanos, Touraine(1989) salienta que o Estado: "intervém na sociedade civil, e até taoprofundamente que, ñas sociedades dependentes, nao há separagao clara entreEstado e a sociedade civil, ainda que esta nao seja inteiramente absorvida poraquele como em outros regimes" (p. 183).O próprio sindicalismo, que em outras nagoes pode consistir em oposigao aoEstado, em defesa da sociedade civil, foi em boa parte controlado pelo Estado naAmérica Latina. Touraine salienta exemplos como o México, ou a Argentina dePerón, demonstrando como o Estado controlou o sistema sindical nestes países. NoBrasil houve, inclusive, a criagao de sindicatos pelo próprio Estado, no decorrer dogoverno de Getúlio Vargas.Durante a consolidagao do modelo neoliberal no Brasil, percebemos - ao longo detoda a década de 80 e 90 - um largo enfraquecimento das organizagoes dasociedade civil. Profundamente marcados pela dependencia do Estado, nossosmovimentos sociais encontraram-se desprovidos de organizagao suficiente paraconfrontá-lo. Ocorre que, durante esse período, percebemos um deslocamento dopoder controlador, que antes esteve ñas maos do Estado, para as maos do"mercado regulador". Ou seja, se antes o Estado mobilizava as empresas e todo ogrupo de operarios na América Latina, em seguida foram as empresas quepassaram a mobilizar e controlar as atividades do Estado. Tal fato parece terconfundido e, muitas vezes, imobilizado boa parte dos movimentos e organizagoesda sociedade civil.De acordó com Chomsky e Dieterich (1999), desde as últimas décadas do séculoXX sao as grandes corporagoes que de fato "governam" o mundo, que definem osrumos de capitais, as decisoes de guerra, os acordos internacionais, e mesmo aseleigoes em determinados países ditos "democráticos". Segundo o autor, o maiorvilao dos interesses comuns da sociedade civil nao é mais o Estado, mas as grandescorporagoes.Compartilhamos com Chomsky, em sua entrevista a Dieterich (idem), sua visaocrítica sobre o papel do Estado. Contudo, é importante assinalar que severosataques ideológicos as instituigoes estatais nos últimos anos tém, muitas vezes,cunho de interesse privado, escamoteados pela defesa da liberdade individual.Neste sentido, embora determinados aspectos da autoridade de Estado constituamagoes ilegítimas, é necessário considerar que algumas instituigoes do Estado sao,ainda muitas vezes, as únicas capazes de incluir a participagao pública emdetrimento da hiper-valorizagao do lucro, principalmente na sociedade latino-americana. Um exemplo disso sao as políticas públicas de saúde, concretizadas

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através do SUS (Sistema Único de Saúde), que vem se consolidando no Brasildesde a promulgagao da Constituigao de 1988. Através dessas políticas, osindicadores de saúde da populagao melhoraram significativamente (Campos,Minayo, Akerman, Drumond Jr & Carvalho, 2006), e o confronto entre a saúdecomo produto de mercado versus um direito do cidadao passou a ter maiorvisibilidade.Por outro lado, é o próprio Estado quem fornece os caminhos de mercado para osinteresses privados. As corporagoes privadas necessitam do Estado, mas estetambém zela pelas corporagoes. Urna vez que o giro de mercado hoje se baseia naespeculagao financeira (capital financeiro) - e nao mais na produgao (capitalindustrial) - o simples deslocamento de aplicagóes financeiras pode alterar ocambio, elevar taxas de juros e causar danos significativos na economía de umpaís, e mesmo "quebrar" urna tradigao política de governabilidade. Neste sentido, oEstado governa a favor das corporagoes, antes de tudo, como urna forma dereceber apoio recíproco no jogo das especulagóes financeiras. Como salientouChomsky, em urna reflexao sobre o desenvolvimento do neoliberalismo na AméricaLatina:

Grandes corporagoes estao ocupando mais e maissetores da economía, de modo similar ao queocorreu no inicio da industrializagao moderna noséculo XVIII, na Inglaterra. Existe um mercado,mas este é um mercado conduzido pelo estado, eo estado protetor é um elemento em crucial doqual dependem as corporagoes. Obviamente,também existem diferengas. Existe, por exemplo,urna grande expansao de capital financeiro, e aporgao do bolo que pertence ao capital financeiroé muito maior que antes. O capital financeiro temse tornado dominante relagao ao capitalindustrial, e isto tem efeitos significativos(Chomsky & Dieterich, 1999, p. 89).

Neste sentido, é impossível pensar em saúde pública sem levar em consideragao ojogo político e económico que sustentam determinadas estrategias degovernabilidade. Na prática, a entrada da Psicología no SUS, por exemplo, faz partede um grande cenário nacional no qual se constituiu a reforma psiquiátrica a partirdos movimentos sociais, sendo que, na conjuntura destes, é importante mencionaro protagonismo do movimento anti-manicomial no país durante os anos 90.

8. A chegada das práticas psicológicas ñas políticas públicas de saúde noBrasilO ingresso da Psicología ñas políticas públicas foi um processo lento, que ainda hojese constrói em um terreno de muitas controversias e lógicas dispares. A próprianogao do que vem a ser público ou privado no Brasil sofreu ¡numeras contradigóesque superam as meras definigóes entre organizagóes da sociedade civil e o papelideal do Estado. Jovichelovitch (2000) buscou compreender a relagao entre a esferapública - enquanto um fenómeno histórico - e a formagao de representagóessociais. Neste sentido, a autora entende que a emergencia da "esfera pública" estárelacionada tanto com as transformagóes que ocorreram entre o público e oprivado, como com o nascimento do individualismo. Neste sentido, nem o público,nem o privado, podem ser entendidos como "naturais", visto que sao produtos detransformagóes sociais.Entre outras coisas, a Psicología - de modo geral - tardou seu ingresso ñas políticaspúblicas justamente porque seu pressuposto epistemológico, na origem, eraassociado ao pensamento liberal, baseado na crenga do livre arbitrio do homem adespeito das suas condigóes materiais de existencia. A nogao de individualismo,

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fortemente presente no pensamento liberal, foi companheira inseparável dapsicología aplicada norte-americana. Além disso - em nosso caso específico - o teordos avangos científicos da psicología aplicada em servigos privados de atendimentopsicológico, no modelo de consultorio, era favorável ao momento degovernabilidade nos duros anos das ditaduras militares latinoamericanas. Spink(2003) aponta varios estudos sobre a organizagao do campo psicológico no Brasil,indicando que pelo menos até o final da década de 80, podemos entender aemergencia da psicología enquanto "técnica de disciplinarizagao" no contextobrasileiro (p.150).Urna vez que a Psicología transitou esse terreno pantanoso desde suas aplicagoesiniciáis no Brasil durante os anos 50, era de se esperar que as práticas psicológicastivessem muita resistencia para ingressar as políticas públicas. Somente com oadvento da Constituigao de 1988, que previa o SUS, bem como após a promulgagaodo ECA (Estatuto da Changa e do Adolescente) em 1990 (Lei n. 8.069, 1990), opsicólogo brasileiro encontrou caminhos de práticas psicológicas associadas áimplementagao de políticas públicas de saúde e de desenvolvimento social. Antesdisso, boa parte das insergoes sócio-comunitárias estavam relacionadas aatividades voluntarias ¡soladas ou a projetos universitarios, ambos nao-remunerados.Certamente que o despontar da reforma psiquiátrica no Brasil foi um elementodeterminante nesse novo cenário nacional que se organizava. Assim, as políticaspúblicas de implantagao do SUS que surgiram durante os anos 90 emergiramprecisamente no conluio das reflexoes advindas durante o processo da reformapsiquiátrica, fortalecendo no país, de modo geral, a concepgao de que os servigossubstitutivos as internagoes psiquiátricas necessitavam do olhar processual de umprofissional de saúde mental. Esse protagonismo foi traduzido na figura dopsicólogo, capaz tanto de coordenar grupos, como de apoiar redes sociais ouintervir junto a pacientes em psicoterapia.O ingresso do psicólogo brasileiro no contexto hospitalar (tanto hospitaispsiquiátricos como gerais) colaborou para o processo de consolidagao doprofissional como parte das equipes de saúde (Angerami-Camon, 2006).Subentende-se, dessa imagem, o ingresso em um contexto institucional, querompia com a primazia do paciente como propriedade do psicólogo, perspectivandoum papel de co-responsabilidade no contexto das equipes interdisciplinares. Abeleza da inovagao paradigmática nao deixou de traduzir-se, contudo, como umchoque. Aprofundavam-se as discussoes teóricas sobre as possibilidades deaplicagoes clínicas em diferentes contextos, desde o papel da transferenciapsicanalítica ao desempenho geral do psicólogo no ámbito dos acordos éticos desigilo e co-responsabilidade pelo paciente junto com a equipe hospitalar. Umuniverso novo que se abria e ao mesmo tempo forgava um relevante debate internodisciplinar, algo que iniciou de modo mais consistente ao final dos anos 80 eadquiriu um caráter contundente ao longo dos anos 90 e durante toda a últimadécada - justamente quando as leis regulamentadoras estabeleciam cargos depsicólogos em diferentes contextos da saúde, a partir dos aprimoramentos naimplantagao do SUS e das políticas de saúde mental.Novas questoes apareciam. Onde ficava o papel simbólico da remuneragao nainteragao clínica? O psicólogo, enquanto clínico, poderia ser um assalariadocontratado pelo Estado para atender em políticas públicas? Entao, afinal, de que"Psicología" estamos falando? Ora, se nao estávamos mais propondo modelospautados pelo mercado regulador, mas pelo Estado regulador, que novaspossibilidades de práticas poderiam se abrir?

9. A forca das políticas nacionais de saúde sobre as práticas psicológicascontemporáneas

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As práticas psicológicas contemporáneas foram profundamente afetadas peloingresso do fazer psicológico ñas políticas públicas de modo geral, especialmente nocontexto da saúde. O deslocamento de eixo disciplinar - inicialmente focado ñasdemandas capitalistas justificadas pelo funcionalismo - passou a sofrer nos últimosanos uma inversao lógica importante. Uma vez que as políticas públicas passaram acontratar um número expressivo de psicólogos no Brasil, a prática profissional queantes era majoritariamente formada por uma legiao de profissionais liberáis, passaa ser expressivamente composta por profissionais contratados em cargos públicos:postos de saúde, CAP's (Centros de Atengao Psicossocial) e ambienteshospitalares. Neste sentido, as demandas abordadas pelo psicólogos passaram aincluir novos atores que buscam cuidados em saúde mental: o enfermo semfamilia, a pessoa de baixo poder aquisitivo, os problemas relacionáis decorrentes dedéficits cognitivos severos, entre outros.O fato histórico de que o advento da psicología científica havia ocorrido a partir damodernidade permitiu que a prática psicológica se estabelecesse sob uma zona deconforto - no ámbito dos profissionais liberáis. Contudo, atualmente, o marco dopensamento cartesiano, desde onde apoiávamos nosso método clínico (Foucault,1976/1999), mostra-se irreversivelmente abalado.Podemos dizer que a lógica dos problemas sociais, amplamente perspectivada ñaspolíticas públicas de saúde, exige um ordenamento mais complexo - e quase nadalinear - sobre a realidade, impulsionando as práticas psicológicas a vazarem pelasfrestas do pensamento liberal, dualista e unicausal no qual se consolidou a própriamodernidade. Assim, nos últimos anos, com o ingresso da Psicología ñas políticaspúblicas de saúde, encaramos a inexorável condigáo de revisar nosso paradigmaepistemológico, sob o risco de ofuscar nosso ingresso na historia do pensamentocientífico através de uma curta trajetória. Afinal, a ciencia dita moderna continuasendo pragmática, de modo que o conhecimento psicológico no contexto da saúdeprecisou, antes de tudo, demonstrar que era aplicável e útil as populagoesidentificadas nos estudos epidemiológicos.Ainda hoje nao podemos falar em "unidade" epistemológica na Psicología, mascertamente que a insergao ñas políticas de saúde nos conduziu, pelo menos, aoconvivio com a ideia de "integragao" epistemológica entre os diferentes saberespsicológicos. Assim, ao passo que históricamente as grandes teorías psicológicaseram vistas como tentativas de discursos universais sobre o homem, hoje asdiferentes influencias teóricas co-habitam as mesmas instituigoes de saúde,escrevem nos prontuarios dos mesmos pacientes, e necessitam de maneirainexorável encontrar alguma janela de diálogo. Essa condigáo de interlocugao entreas diferentes teorías psicológicas tem se mostrado um fenómeno relevante naformagao epistemológica da área, de modo que as teorías cada vez menos sepretendem universais na explicagao de fenómenos psicológicos, mas, sobretudo,contribuigoes complementares para a compreensao de realidades complexas.Nao se pode negligenciar o fato de que as políticas públicas, ao criarem vagas deemprego para o psicólogo, atuaram também como mercado regulador, sob ainsignia do mercado de trabalho. Ou seja, a quebra com o modelo hegemónico doprofissional liberal de psicología nao consistiu, na verdade, em nenhuma revolugaode classe. Contudo, certamente nos ancorou para uma maior aproximagao asdemandas históricamente reprimidas pelas populagoes marginalizadas nosprocessos sócio-económicos, de modo que a populagao obteve - de maneira geral -maior acesso á atengao integral em saúde mental e cuidados psicológicos.Outro aspecto desse momento histórico, é que a entrada nos cargos públicos desaúde impactou a formagao profissional na medida em que a grande maioria dasvagas nao foram - nem tem sido - ofertadas para especialistas nesta ou naquelateoria, mas sim para a figura de um presumido psicólogo "generalista", semqualquer predicativo que o qualifique. Assim, se por um lado as políticas públicasproduziram resultados significativos no caminho de uma integragao epistemológica

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na área teórica, é também verdade que nao tém valorizado as diferentesespecificidades de atuagao do psicólogo em seus campos (psicólogo social, clínico,educacional, etc.). Em nosso levantamento de dados, por exemplo, naoidentificamos nenhum concurso público no Brasil que tenha incluido em seu Editalpara psicólogo em hospitais, qualquer pré-requisito de especialidade em psicologíaclínica ou hospitalar. Este levantamento foi parte de urna pesquisa concluida querealizamos a partir do Departamento de Psicología da UFSC, intitulada Psicología eSUS: um estudo sobre os fazeres psicológicos ñas políticas públicas de saúde(Zurba, 2009). A gravidade desse procedimento reside no fato de que, em muitoscasos, o profissional selecionado - cujo processo de selegao foi apoiadobásicamente em provas escritas - pode-se mostrar inapto no processo deatendimento a pacientes.Porém, a despeito de qualquer dificuldade na consolidagao do papel profissional dopsicólogo junto as políticas públicas de saúde, vale ressaltar que este é ummomento histórico muito peculiar e recente, apontando muitos indicios de que setrata de um momento de transigao.Um dos grandes impulsos que a saúde pública vem oferecendo á Psicología nosúltimos anos é a necessidade constante de interlocugao interna e tambéminterdisciplinar, forgando-nos a urna quebra paradigmática importante. A quebrareside no ponto de partida: toda atengao psicológica em saúde depende de umolhar sociológico sobre a constituigao de sujeito e produgao de síntomas, o que temnos levado a superagao de modelos lineares e pretensamente universais naexplicagao dos fenómenos psicológicos.

10. Considerares fináisA Historia nunca é "a verdadeira", mesmo quando nao é "falsa". Ela nao se presta aeste tipo de classificagao, pois ela nao é um fato, nem urna seqüéncia deles. Elasomente pode ser construida a partir de narrativas sobre um conjunto de fatos -nao lineares - que assumem significados a posterior'!. Portanto, a historia é umprocesso que se transforma em narrativa. Neste sentido, o processo histórico édinámico e coerente, possibilita incontáveis oportunidades e desfechos, segundo ainexorável liberdade do homem em produzir-se a si mesmo. Podemos, assim,entender a "lógica histórica" (Thompson, 1981). A "historia" também é um espagode subjetivagao que suscita determinantes em nossos mundos e escolhas. É noprocesso histórico que podemos identificar as possibilidades e limitagoes queinfluenciaram modelos de produgao de conhecimento durante o desenvolvimento dahumanidade.Neste sentido, por exemplo, nao foi apenas o sorriso enigmático da "Monalisa" deLeonardo da Vinci que provocou grande impacto no mundo das artes, tal comopoderia pensar um observador precipitado. Mas no processo histórico vamosperceber que a balbúrdia em torno de "Monalisa" ocorreu por conta dos duros anosde "trevas" culturáis que o antecederam, de modo que a obra assumiu sentido deruptura. Mas somente entendemos a ruptura transversal quando observamos oprocesso longitudinal da historia: após centenas de anos alguém se atrevía aretratar um ser humano. A obra "Monalisa" era urna heresia: apenas urna mulher,sem sugestpes divinas, sem auréolas, sem relagao com Jesús Cristo, nao era NossaSenhora. É impossível compreender a obra de Da Vinci sem observar osdeterminantes históricos que o constituíram: essa obra e seus impactos naopoderiam ter aparecido anos antes, nem anos depois. Ela está localizada,circunscrita e temporalizada justamente onde a historia Ihe permitiu queaprouvesse, no Renascimento. Nem antes, nem depois. Nada é casual no processohistórico.Na historia das práticas psicológicas, observamos que ¡números determinantessuscitaram modelos, enterraram outros, e fortaleceram paradigmas que hojeentendemos como "verdadeiros" na Psicología contemporánea. Assim, quando nos

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indagamos sobre quais modelos de Psicología podemos realizar no Brasil de hoje,precisamos nos remeter ao processo histórico que nos constituiu. E é dessa formaque nosso olhar necessita repousar sobre a historia de nossa "latinoamericanisse",sobre a nossa marginalidade global, bem como sobre nossa criatividade cultural.Existem varias historias da Psicología, nao urna única. Refletimos neste trabalho umpouco da historia da Psicología desde o ponto de vista de nossa "brasilidade", como intuito de que nos apropriemos de práticas psicológicas tao nossas quanto oacarajé, o caldo de cana ou o doce de leite. Assim, com propósitos claros, o quefizemos aqui foi urna narrativa.

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Nota sobre a autoraMagda do Canto Zurba - Professora adjunta do Departamento de Psicología daUniversidade Federal de Santa Catarina. Leciona e pesquisa Historia da Psicología eEpistemología, líder do grupo de pesquisa "Psicología e Saúde Coletiva" (CNPq).Possui Graduagao em Psicología pela Universidade Federal de Santa Catarina(1994), Mestrado em Psicología do Desenvolvimento pela Universidade Federal doRio Grande do Sul (1997) e Doutorado em Educagao pela Universidade Federal deSanta Catarina (2003). Atua amplamente no campo da psicología da saúde a partirde atividades de ensino, pesquisa e extensao universitaria. Atualmente coordena oPET-Saúde (Programa de Ensino pelo Trabalho na Saúde - Ministerio da Saúde)junto ao Curso de Psicología da UFSC. Contato: [email protected]

Data de recebimento: 16/11/2010Data de aceite: 24/05/2011

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As contribuicóes de Julio Pires Porto-carrero ádifusao da psicanálise de criancas no Brasil ñas

décadas de 1920 e 1930

The contributions of Julio Pires Porto-Carrero to the diffusion of thepsychoanalysis of children in Brazil in the 1920 and 1930 decades

Jorge Luís Ferreira AbraoUniversidade Estadual Paulista

Brasil

ResumoAs idéias relativas á psicanálise de changas comegaram a ser difundidas no Brasilna década de 1920, por profissionais ligados a medicina e a educagao. Assim, esteartigo tem por objetivo apresentar as contribuigoes de Julio Pires Porto-Carrero naintrodugao das idéias relativas á psicanálise de changas no Brasil ñas décadas de1920 e 1930, tendo como foco a educagao. Mediante pesquisa bibliográfica foramidentificados todos os trabalhos do autor que empregavam idéias psicanalíticas paradiscutir temas relativos á educagao. As conclusoes indicam que, em consonanciacom as novas propostas educacionais surgidas no país na década de 1920, o autordedicou-se a difundir conceitos psicanalíticos entre educadores, partindo dopressuposto de que urna melhor compreensao da crianga com base na psicanálisepoderia favorecer seu desenvolvimento e o processo de aprendizagem. Estainiciativa, além de conferir legitimidade social á psicanálise, permitiu o surgimentode urna prática mais abrangente na psicanálise de changas.

Palavras-chave: Julio Pires Porto-Carrero, psicanálise, educagao, Brasil.

AbstractThe ideas related to the psychoanalysis of children began to be disseminated inBrazil in the 1920's, by professionals connected to medicine and education.Therefore, the present article aims showing the contributions of Julius Pires Porto-Carrero in the introduction of ideas referred to psychoanalysis of children in Brazilfrom 1920 to 1930, focusing on education. Through bibliographic research all of theauthor's work that used psychoanalytic ideas to discuss themes related toeducation were identified. The conclusions indícate that, in agreement with neweducational proposals emerged in the country in the 1920s, the author devotedhimself to spread psychoanalytic concepts among educators, assuming that a betterunderstanding of the child based on psychoanalysis could support itsdevelopment and also the learning process. Besides conferring social legitimacy topsychoanalysis, this initiative has enabled the arising of a more comprehensivepractice in child psychoanalysis.

Keywords: Julio Pires Porto-Carrero, psychoanalysis, education, Brazil

IntrodugaoAinda que o marco inaugural da psicanálise possa ser situado em 1900, com apublicagao do livro A ¡nterpretagáo dos Sonhos por Sigmund Freud (1900/1987), osprimeiros registros relativos a introdugao das idéias freudianas no pais apontempara o ano de 1899, ocasiao em que o psiquiatra Juliano Moreira (1873-1933), fezas primeiras referencias as idéias de Freud em sua cátedra de psiquiatría daFaculdade de Medicina da Bahia (Perestrello, 1992), foi somente a partir da décadade 1920 que a psicanálise passou a ser difundida de forma mais efetiva no país,

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ganhando expressao em diferentes dimensoes da vida cultural e científica emdesenvolvimento nos grandes centros urbanos, notadamente Sao Paulo e Rio deJaneiro.O período compreendido entre o final do século XIX e as primeiras décadas doséculo XX, marca o epicentro de urna serie de transformagoes entre os quaisfiguram: o inicio do processo de industrializagao e urbanizagao do país, o quegradualmente levou a urna relativizagao da influencia das oligarquías agrarias; naesfera cultura, a Semana de Arte Moderna de 1922, representou urna ruptura coma arte oficial vigente até entao (Haudenschild, 2004); no plano educacional, a"Escola Nova" introduzida por educadores como Anízio Teixeira (1900-1971) surgiaem oposigao ao ensino tradicional (Abrao, 2006), no plano político destacasse omovimento político-militar conhecido como Coluna Prestes surgido em oposigao aRepública Velha que se estendeu de 1925 a 1927 e, por fim, a psiquiatría, quecomegava a ganhar contornos mais nítidos enquanto especialidade independente daneurología dirigia-se para o campo da prevengao em saúde mental (Costa, 1976).É neste contesto que a psicanálise surgirá como idéia ¡novadora aproximando-se devarias áreas do conhecimento científico, de tal forma que ñas primeiras décadas doséculo XX, a psicanálise nao foi vista somente como um recurso técnico voltado aotratamento da doenga mental, mais do que isto, os autores brasileiros dedicados aotema entendiam a psicanálise como um arcabougo teórico passivel de ser aplicado adiferentes áreas do conhecimento como a educagao, a literatura e a psiquiatría.Seguindo a trilha aberta por Perestrello (1992) e Mokrejs (1993), podemosidentificar como precursores (1) do movimento psicanalítico no Estado do Rio deJaneiro os nomes de: Arthur Ramos (1903-1949), Antonio Austregésio (1876-1961), Medeiros e Albuquerque (1867-1934), Henrique de Brito Belfort Roxo(1877-1969), Mauricio de Medeiros (1885-1966), Carneiro Ayrosa, Deodato deMoraes, Gastao Pereira da Silva (1897-1987), Neves-Manta (1903-?) e Julio PiresPorto-Carrero (1887-1957). Estes autores durante as primeiras décadas do séculoXX, ou mais específicamente durante os anos de 1920 e 1930, destacaram em seustextos o valor da teoría psicanalítica para a compreensao do ser humano e dosfenómenos sociais, bem como seu efeito terapéutico para o tratamento da doengamental. Cada um destes teóricos, a seu modo, colocou em relevo um ou outroaspecto da psicanálise, que considerava mais relevantes no exercício de suaatividade profissional. Dentre eles destacamos o nome de Julio Pires Porto-Carrerotanto por sua regularidade na divulgagao da psicanálise, neste período, quanto pelarecorréncia de um tema em sua obra, qual seja: a aproximagao entre educagao epsicanálise, delimitando os contornos que resultarao no surgimento da psicanálisede criangas no Brasil, anos mais tarde.

Consideracóes metodológicasO presente artigo surge com o objetivo de apresentar as contribuigoes de Julio PiresPorto-Carrero na introdugao das idéias relativas á psicanálise de criangas no Brasilñas décadas de 1920 e 1930, tendo como foco a educagao. Esta delimitagaojustifica-se urna vez que em levantamentos anteriores (Abrao, 2001) verificou-se arelevancia da obra de Porto-Carreiro no que se refere á difusao da psicanálise e,particularmente, da psicanálise de criangas, no período em questao. Sua projegao ecredibilidade no meio científico da época e a assiduidade com que publicou sobre otema, fizeram com que este autor tivesse grande influencia nao só na difusao dapsicanálise de criangas no Brasil, mas também na formagao de profissionais daeducagao com influencia psicanalítica.Desta forma, empreendemos urna investigagao (2) de caráter histórico sobre ostrabalhos publicados por Julio Pires Porto-Carrero em livros, jomáis e revistascientíficas compreendidos entre as décadas de 1920 a 1930, com o intuido deidentificar as publicagoes que versassem sobre psicanálise, tema sobre o qual oautor dedicou-se com considerável regularidade. Posteriormente, fizemos urna

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selegao dos textos destacando aqueles que fizessem referencia direta á psicanálisede criangas ou que veiculassem informagoes relativas á aplicagao da psicanálise naesfera educacional. Considerando que, em um primeiro momento, a difusao dapsicanálise de criangas no Brasil foi marcada pela introdugao da psicanálise naeducagao, com a finalidade de tornar a educagao infantil menos repressora,condigao que, em tese, garantiría o desenvolvimento de individuos saudáveis (3).Urna vez realizado este procedimento chegamos a um conjunto de trabalhospublicados por Julio Pires Porto-Carrero que se constituiu no objeto de análise desteestudo, quais sejam: A psychanalyse na Liga Brasileira de Hygiene Mental (1929b);O carácter do escolar segundo a psychanalyse (1929g), Instrucgao e educagaosexuais (1929e); Leitura para criangas: ensaio sob o ponto de vista psychanalytic(1929f); A arte de perverter: applicagao psychanalytica a formagáo moral dachanga (1929a); Educagao sexual (1929d); O que esperamos dos nossos filhos(1930) e A Psicología profunda ou psicanálisee (1932).As conclusoes advindas da análise deste material estao organizadas neste artigo,de tal forma que inicialmente apresentaremos um esbogo biográfico de Julio PiresPorto-Carrero, destacando sua trajetória profissional, seu encontró com apsicanálise e sua insergao no meio científico da época. Posteriormente, nosdedicaremos a urna análise pormenorizada sobre as idéias psicanalíticas propaladaspor este autor, no que concerne a psicanálise de criangas e a articulagao destasidéias com a educagao de entao.

Um breve esbogo biográficoEntre os precursores (4) da psicanálise no Brasil, o nome de Julio Pires Porto-Carrero ganha particular destaque em virtude de sua influencia e credibilidadeenquanto médico e professor universitario.Natural do Estado de Pernambuco, onde iniciou seus estudos Porto-Carreiro

formou-se pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Tornou-se, em1929, Professor Catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Direito daUniversidade do Rio de Janeiro, tendo obtido também, provavelmente na mesmaépoca, o título de Membro Honorario da Academia Nacional de Medicina (Campos,2001).Porto-Carrero foi, como ele mesmo se denominava, "um fanático da psychanalyse,que estudo há bons dez anos" (Porto-Carrero, 1929h, p. 22), tendo se dedicado aaprender alemao para ler Freud no original. A relevancia conferida a este autorrepousa na condigao privilegiada que ocupou na psicanálise do Rio de Janeiro,condigao esta oriunda de urna divulgagao assídua e mesmo apaixonada das idéiasfreudianas entre seus conterráneos e pela iniciativa bastante precoce na aplicagaoterapéutica do método psicanalítico. Estas iniciativas de Porto Carrero foram bemacolhidas tanto no meio psiquiátrico quanto no educacional, fazendo com que suasidéias relativas á psicanálise ganhassem importancia e influenciassem outrosprofissionais.Entre os trabalhos de cunho psicanalítico que publicou ao longo de sua vida,podemos destacar: Ensaios de Psychanalyse (1929d), no qual se encontramcompendiados urna serie de conferencias apresentadas ao longo dos anos de 1926a 1929, A Psicología Profunda ou Psychanalyse (1932), Sexo e Cultura (1933a) ePsychanalyse de Urna Civilizagao (1933b), além de varios artigos publicados emrevistas científicas.Analisando as contribuigoes de Porto-Carrero no que concerne á difusao dapsicanálise no Brasil na década de 1920, a pesquisadora da Faculdade de Educagaoda USP, Elisabete Mokrejs (1993), enfatiza a preocupagao didática presente na obradeste autor.destacando suas contribuigoes nos seguintes termos:

Movido por urna preocupagao eminentementedidática, seus escritos apresentam minudénciasque, por vezes, se tornam recurrentes. Persiste,

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ao longo dos textos, urna preocupagao no sentidode esclarecer o leitor sobre as últimasreformulagoes de Freud no tocante a sua obra.(...) Observa-se em Porto-Carrero um difusopensamento científico. Ao mesmo tempo queassinala a importancia dos fatores psíquicos nateoria de Freud, é capaz de sugerir que afelicidade do homem está abstrita as leis domecanismo do relacionamento heterossexual.Ácima do ajustamento do individuo situa-se ointeresse pela preservagao da especie, o queestaría assegurado mediante orientagao sexual.Neste sentido, convergiam seus interesses pelostemas da "eugenia" e pelas idéias totalitarias que,embora nao claramente especificadas, primavampela agao da élite e do Estado na condugao dosinteresses dos individuos (pp. 156-157)

Cabe atribuir a Porto-Carrero a iniciativa pioneira na aplicagao terapéutica do"método de Freud", como ele se referia muitas vezes á psicanálise, quando estainiciativa era ainda bastante rara no país, devido as dificuldades de se conduzir umtratamento psicanalítico sem a adequada formagao. Através de alguns indiciosextraídos da própria obra do autor, podemos situar a origem de sua prática como"analista selvestre" (5), segundo sua própria opiniao. Ao final do artigo O carácterdo escolar segundo a Psychanalyse, apresentado em 1927, durante a I ConferenciaNacional de Educagao, encontramos urna passagem bastante significativa que nospossibilita precisar a cronología dos acontecimentos. Escreve o autor: "Nove anosde estudo da psychanalyse e quatro de prática do methodo de Freud, autorizam-nos a alguns juízos próprios" (Porto-Carrero, 1929g, p. 58). A aritmética nosautoriza a pensar, portanto, que em 1918, Porto-Carrero já se dedicava ao estudoda psicanálise e que possivelmente, no final de 1923, fazia suas incursoes na clínicapsicanalítica.As iniciativas de aplicagao terapéutica da psicanálise ganharam maior expressaoquando em 1926, foi criado, junto a Liga Brasileira de Higiene Mental, um servigode psicanálise, cuja coordenagao foi conferida a Porto-Carrero. Por esta ocasiao, aoque indicam as notas do autor, a aplicagao terapéutica do método psicanalítico erarealizada com alguma freqüéncia, pois o autor afirma: "Tem assim ocorrido aoconsultorio especial da Liga varios doentes em busca de tratamento pelo methodode Freud e outros sao para elle encaminhados, dos consultorios gerais" (Porto-Carrero, 1929b, p. 27).Tomando por base a cronología apresentada ácima, podemos afirmar que Porto-Carrero antecedeu Durval Marcondes (1899-1981) (6), pioneiro da psicanálise emsao Paulo, na aplicagao terapéutica da psicanálise, contudo nao nos é possívelatribuir com seguranga ao primeiro a precedencia nacional na aplicagao clínica dométodo de Freud. Em artigo publicado em 1995, Perestrello é levada a reformularsua conclusao inicial de que Porto-Carrero foi primeiro a aplicar o métodopsicanalítico no país. Comenta a autora: "Ao obter, e por fim ler, a tese deGenserico Pinto comprovei que Juliano atendeu um paciente e Genserico quatro,isto em 1924, quer dizer anteriormente (ou concomitantemente) a Porto-Carrero"(Perestrello, 1995, p. 668).Apesar das iniciativas ¡novadoras que empreendeu tanto na divulgagao dapsicanálise, quanto na aplicagao terapéutica do método psicanalítico, ascontribuigoes de Porto-Carreiro á psiquiatría foram gradualmente ganhando forteconotagao eugénica, cujo reflexo mais evidente foi sua atuagao na Liga Brasileira deHigiene Mental na década de 1930. Desta forma, podemos concluir que apesar denao ter realizado formagao psicanalítica praticou a psicanálise no tratamento de

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pacientes neuróticos a principal aproximagao entre psicanálise e psiquiatríaproposta pelo autor figurava no campo da profilaxia.Porto-Carrero viveu no Rio de Janeiro até a data de seu falecimento ocorrido em1937.

A difusao das idéias psicanalíticas entre educadoresPara urna melhor compreensao das aproximagoes entre psicanálise e educagaopropostas por Porto-Carreiro (7), destacaremos de sua obra, além de algunsartigos, dois livros que apresentam fecundo material para a discussao que nospropomos a conduzir, sao eles: Ensaios de Psychanalyse (1929d), e A PsicologíaProfunda ou Psicanálise (1932).O volume Ensaios de Psychanalyse é constituido por 18 conferencias que ocorreramao longo dos anos de 1926 a 1929, das quais sete sao dedicadas ao tema dacrianga .Os artigos nao estao compendiados em ordem cronológica, o que sugereurna organizagao pautada, provavelmente, em criterio didático.O primeiro artigo, Psychanalyse: A Sua Historia e o Seu Conceito, constitui-se naaula inaugural ministrada no curso de Psicanálise Aplicada á Educagao, ocorrida emvinte de abril de 1928. O autor inicia a conferencia comparando o conceito de amor,presente no Phedro e no Banquete de Platao, com o conceito de libido apresentadopor Freud. Em seguida, atém-se a descrever a trajetória profissional de Freud e aexpor os principáis aspectos da teoria psicanalítica por ele desenvolvida. Destacatambém a contribuigao de alguns seguidores do Mestre de Viena, citandonominalmente Wilhelm Stekel, Otto Rank, Carl Gustav Jung, Alfred Adler, KarlAbraham e notadamente Hermine Hug-Hellmuth e Anna Freud que, nesta ocasiao,iniciava seu trabalho como psicanalista de criangas. Por fim, destaca os principáiseventos que marcaram a historia da psicanálise no Brasil até aquela época. Aoanalisarmos este material, fica flagrante a intengao de Porto-Carrero em introduziros professores na doutrina freudiana através da exposigao sistemática de seusfundamentos. Comenta ele: "A psychanalyse pode ser desconhecida de todos osprofissionais; mas ignorarem-na o médico e o mestre - é verdadeiro peccado"(Porto-Carrero, 1929h, p. 23). Porém, diferentemente do médico a quem éconferida a fungao de tratar, ao mestre cabe a incumbencia de moldar a mente dacrianga que se encontra em formagao, de modo a garantir-lhe um desenvolvimentoemocional saudável. Para tal torna-se necessário que o modelo educacional emvigor contemple as novas descobertas sobre o psiquismo infantil. É com estaintengao que o autor invoca a adogao dos conhecimentos psicanalíticos naeducagao, salientando:

Veréis como a psychanalyse vos abrirá os olhos,para comprehenderdes as excellencias e osdefeitos de vossa pedagogía. Veréis o quanto émau educar recalcando e o quanto é óptima asublimagao, quando nao é possível a destruigao, acondemnagao dos complexos (p. 23).

Nao podemos deixar de lembrar que a linha de raciocinio desenvolvida pelo autorinsere-se no campo da higiene mental, tao em voga ñas primeiras décadas desteséculo. Isto fica mais evidente em um trabalho (8) apresentado alguns anos antes,do qual extraímos a seguinte citagao: "Urna pergunta pode cair dos labios do leitor:tem cabimento a psychanalyse, methodo therapéutico, numa campanha de hygienemental?" Mais adiante encontramos a resposta:

Se attentarmos ainda em que a liga pode influir,pela psychanalyse, na educagao das escolasprimarias, na dos patronatos de menores, na dospequeños contraventores entregues hoje a umtribunal especial, veremos que já será bem larga

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Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálisede criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134.Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02

a espinera de acgao em que poderemos agir(Porto-Carrero, 1929b, pp. 27-28).

Desta forma, a psicanálise aplicada a educagao assume urna fungao mais ampia ,nao se limita somente a amainar os conflitos mais prementes que interferem naeducagao do aluno, muito além disso, procura salvaguardar a crianga de possíveisdesvíos de conduta.O artigo seguinte, intitulado O Carácter do Escolar Segundo a Psychanalyse, foiproferido no Primeiro Congresso Nacional de Educagao, ocorrido em Curitiba, noano de 1927, e publicado pela primeira vez no ano seguinte, na Revista Brasileirade Psychanalyse. Vemos esbogar-se neste trabalho urna possibilidade de utilizagaoda psicanálise na esfera da educagao, embora circunscrita ainda ao campo teórico,auxiliando o professor a compreender diversas manifestagoes afetivas de seusalunos.Porto-Carrero (1929g) discrimina seis tipos de caráter mais freqüentes entre osalunos, os quais procura explicar a partir da psicanálise. O primeiro grupoapresentado é o das criangas quietas. Os tímidos sao aqueles que devido aosentimento de culpa decorrente de seus desejos sexuais buscam ser punidos.Assim, a crianga tímida torna-se desastrada com a intengao inconsciente de serpunida, o que Ihe alivia a angustia. Os impassíveis que nao se comovem com nada,agindo como se estivessem alheios ao mundo, manifestam-se de tal forma emfungao do deslocamento da libido do objeto edípico para o eu. Os sonsos, quecomem a sardinha com a mao do gato, tomando o adagio emprestado de Porto-Carrero, apresentam um nítido sentimento de ambivalencia, dedicam-se aosafazeres escolares o suficiente para nao serem punidos, porém nao hesitam emvaler-se de meios nao lícitos para atingirem este fim.Na categoría das criangas travessas, encontramos tres classificagoes. Asnaturalmente travessas, que devido as constantes frustragoes de seus impulsossexuais, sejam eles oráis ou genitais, tendem a desviar sua libido dos alvos sexuaiscanalizando-a para outros objetos ou transformando-a em movimento. Osperversos, sao criangas que obtém satisfagao libidinal por meio da agressao, o queFreud definiu como sadismo, "Este sadismo está singularmente ligado a phase delocalizagao anal da sexualidade" (Porto-Carrero, 1929g, p. 51). Os agitados,caracterizam-se pela ambivalencia dos afetos, oscilando entre alegría e cólera,"buscam no mundo exterior a satisfagao da libido e nelles prepondera o complexode Édipo" (p. 52).Na categoría das criangas rebeldes, o autor apresenta a seguinte distingao: osimpulsivos, os emburrados, os reclamantes e os teimosos. Os impulsivos tém porcaracterística a descarga súbita de seus afetos; os emburrados retraem-se frenteas contrariedades do mundo, deixando de reagir a seus estímulos; os reclamantes,ao contrario, mais confiantes de si, apresentam urna exacerbagao do erotismo anal;os teimosos sao aqueles que nao conseguem conter seu impulso interiorexecutando assim a agao proibida. Além dessas classificagoes, aponta a existenciadas criangas distraídas, das mentirosas e das medrosas.Mais que um exercício diletante, de valor meramente especulativo, a classificagaoproposta por Porto-Carrero tem urna fungao mais audaciosa, a de introduzir omestre no pensamento freudiano, aproximando-o da teoria da sexualidade infantil.Isto confere á psicanálise urna utilidade prática no ambiente escolar, urna vez que ateoria da sexualidade possibilita compreender as manifestagoes afetivas dos alunos,e atentar para o fato de que diferentes tipos de caráter decorrentes de formasdiversas de organizagao da libido - oral, anal, genital - merecem urna atengaoeducacional também diferenciada por parte do mestre.A educagao escolar guiada pelos principios psicanalíticos nao será o único foco deatengao de Porto-Carrero. Pois, sendo a educagao da crianga pequeña conduzida nafamilia, esta será de grande interesse, urna vez que "é na infancia pré-escolar queo individuo adquire o molde de seu carácter. Cada hora, nessas edades, forja urna

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pega fundamental do homem futuro" (Porto-Carrero, 1929a, p.142). Em 1926, otema aparece esbogado em urna conferencia irradiada pela Radio Clube do Rio deJaneiro, intitulada: Educagao e Psyvhanalyse, para nos anos subseqüentes, ganharcontornos mais claros nos trabalhos: Instrucgáo e Educagao Sexuais (1929e),Educagao Sexual (1929c) e A Arte de Perverter: applicagao pysychanalytica aformagao moral da crianga (1929a) (9). Neste conjunto de trabalhos, Porto-Carrerodestaca a necessidade de que a crianga receba na familia esclarecímentos comrelagao a temas ligados a sexualidade, de forma a tornar a educagao sexual menosrepressora.Apesar do grande valor atribuido á educagao no lar, Porto-Carrero (1929a)demonstra urna posigáo bastante pessimista com relagao ao sucesso desta tarefa.Enfatiza que

Nenhum lar é superior a escola bem organizada. Eno entanto, a parte mais difícil da educagao é aque se cumpre antes da escola; e os educadoresda época pré-escolar pouco compreendem ounada sabem da arte de cultivar a pequeninaplanta humana (p. 142).

No curso das tres conferencias citadas ácima observamos urna exposigáo recorrentedas idéias relativas á sexualidade infantil, enfatizando as diferentes fases dodesenvolvimento da libido e apontando os riscos que urna educagao mal conduzidana primeira infancia pode provocar na formagao do caráter. Entende-se poreducagao mal conduzida aquela que se sitúa perigosamente em margens extremas,rigorosamente repressiva ou ao contrario, proporcionando prazer excessivo. Notocante a este segundo caso, afirma Porto-Carrero: "Pelos estudos das changasviciosas e dos doentes neuróticos se tem notado que, toda vez que se cultiva oprazer localizado em determinada zona, elle se fixa, tendendo a persistir pela vidaem fóra" (Porto-Carrero, 1929e, p. 71).Decorre daí sugestoes, como por exemplo, a de nao permitir as criangas o uso dechupetas, para evitar urna fixagáo da libido na zona erógena oral, sendo a atitudecorreta, a ser empregada pelos pais, a de criar condigoes para a sublimagáo dalibido.Segundo Porto-Carrero, a educagao da crianga deve contemplar duas categorias:educagao sexual e instrugao sexual. A educagao sexual compreende urna serie deatitudes educacionais que visem proporcionar á crianga um desenvolvimento psíco-sexual saudável, nao reprimindo excessivamente os impulsos libidinais, táo poucoproporcionando prazer demasiado. Por instrugao sexual, entende-se oesclarecí mentó da curiosidade sexual da crianga, que deve ser proporcionada namedida de seu interesse e estar fundada invahavelmente em principiosverdadeiros, devendo ocorrer inicialmente em casa pelos pais e posteriormente naescola pelo mestre. É neste sentido que encontramos, em 1932, a seguinteadvertencia aos pais: "só os loucos e os cegos de espíritos preferem que os filhosrecebam tal ensinamento dos colegas e fámulos, com tecnología pornográfica e naorara experimentagáo por atos pervertidos." (Porto-Carrero, 1932, p. 223). Comrelagao a atitude frente a educagao sexual de seus alunos, argumenta Porto-Carrero (1929c) ser o caminho indireto o mais aconselhável:

O ensino em pequeños grupos resolvería, talvez,o problema. Mas, ha melhor: nao fazer ensinosexual como aula autónoma; seguindo as regrasditadas para a mais tenra infancia: nao chamar aatengáo para o assumpto. Ainda aqui tendes ocriterio da oportunidade. A propósito de variosoutros assumptos, podéis abordar o problemasexual (pp. 126-127).

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Fechando a serie de trabalhos sobre educagao, presente nos Ensaios dePsychnalyse, encontramos a conferencia: Leitura para Criangas: ensaio sob o pontode vista psychanalytico, que se constituiu na contribuigao de Porto-Carrero aoSegundo Congresso Nacional de Educagao, realizado em Belo Horizonte, em 1928.Demonstra neste trabalho, a partir das associagoes de paciente adultos, ainfluencia maléfica que as leituras infantis podem exercer sobre o psiquismo dacrianga. Concluí sintetizando alguns principios que definem a boa leitura: isengaode conceitos homveis, de sentimentalismo, de misticismo e de alusoes simbólicasao complexo de Édipo e de castragao.Entre os diversos temas que foram objeto de análise de Porto-Carrero ao longo desua obra, a educagao continuará sendo recorrente. No livro A Psicología Profundaou Psicanálise, obra destinada á difusao de conceitos freudianos, dos treze capítulosque compoem o volume, os dois últimos despendem maior atengao ao tema dacrianga: Nos Dominios da Pedagogía e Educagao Sexual.Os dois capítulos condensam temas que já foram objeto de análise do autor emtrabalhos anteriores, como o desenvolvimento psicossexual da crianga, o caráter doescolar e orientagao sexual para criangas. Entretanto, encontraremos algunsacréscimos de significativo valor para nosso estudo. Reconhece as diferengas entrea psicanálise de adultos e de criangas, urna vez que

kpedanálise (psicanálise de criangas) exige, maisdo que a psicanálise do adulto, o estudo do meioe a possível modificagao deste; a colaboragao dospais ou seus substitutos, é indispensável, dequalquer maneira. (Porto-Carrero, 1932, p. 212,grifo do autor)

Como decorréncia destas diferengas, o autor aponta a necessidade de utilizagao dealguns recursos indiretos para a compreensao do psiquismo da crianga: osdesenhos livres, bem como a análise do conteúdo expresso em composigoesescolares e os erros nelas cometidos constituem-se em rico material para a análisedo inconsciente.Salienta ainda, no referido texto, de forma inédita na literatura psicanalíticabrasileira, a existencia do fenómeno transferencial na relagao da díade professor ealuno, considerando que a transferencia é urna condigao necessária para urnaeducagao satisfatória, visto que

Nao há educagao eficiente, se o professor naoconsegue que o aluno opere sobre o seu mestreurna transferencia total ou parcial da libido e seesta transferencia nao se passa, também, domestre para o discípulo (Porto-Carrero, 1932, p.214).

O mérito de Porto-Carrero reside nao só em teorizar sobre psicanálise e educagao,mas também em tomar para si a responsabilidade de divulgar este conhecimentono Brasil, o que pode ser confirmado pela natureza de seus trabalhos, que na suagrande maioria sao constituidos por conferencias apresentadas em diferentescontextos, ora a um público especializado em congressos científicos, ora a urnaplatéia leiga através de programas de radio.

Considerares fináisA título de conclusao, devemos considerar os alcances e limitagóes dascontribuigóes de Julio Pires Porto-Carrero á difusao da psicanálise de criangas noBrasil.Inicialmente cabe considerar que este autor, assim como grande parte de seuscontemporáneos das décadas de 1920 e 1930, tomaram a psicanálise como umconstructo teórico aplicável a diferentes áreas do conhecimento, como a educagao,o direito, a psiquiatría, com o intuito de alargar a compreensao relativa ao

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psiquismo humano. Desta forma, apesar do pioneirismo na aplicagao clínica dapsicanálise no Brasil, o elemento mais representativo da obra de Porto-Carreropode ser localizado ñas aproximagoes que propós entre a disciplina freudiana eoutras áreas do conhecimento, em particular a educagao. Encontramos nestainiciativa urna agao de maior abrangéncia social, que teve o mérito de divulgar apsicanálise e sensibilizar outros profissionais para as contribuigoes que as idéiasfreudianas poderiam trazer á educagao.Ao promover a divulgagao da psicanálise entre educadores por intermedio depublicagoes, cursos e palestras, Porto-Carrero tinha por finalidade divulgar a teoriapsicanalítica, apresentado os principáis conceitos desta teoria aos educadores, paraque estes, de posse destas informagoes, pudessem langar um novo olhar sobre acrianga e seu processo de aprendizagem. Ao contextúa I iza rmos as iniciativas desteautor identificamos que as tentativas de aproximagao entre psicanálise e educagaoestavam inseridas em um contexto mais ampio, qual seja: a transigao entre oensino tradicional e a Escola Nova (10). Em consonancia com o idearioescolanovista, a psicanálise foi entendida por este autor como um modelo teóricocapaz de alargar o entendimento das regras que regem o desenvolvimento infantil,permitindo a adogao de propostas pedagógicas mais adequadas para o atendimentode suas necessidades, o que, ao menos em tese, favorecería o processo deaprendizagem e conduziria a um desenvolvimento saudável.É importante salientar que a insergao da psicanálise no campo educacional propostapor Porto-Carrero, embora bem intencionada e tendo como linha de horizonte aimplantagao de urna proposta educacional orientada pela psicanálise, na realidadenao ultrapassou o campo retórico. Suas agoes ficaram circunscritas á divulgagao dateoria psicanalítica entre educadores, com a finalidade de tornar os conceitos destadisciplina mais familiares , proporcionando um entendimento ampio das idéias deFreud. Ainda nao estava claro, ñas publicagoes deste autor, como deveria ser aprática pedagógica sustentada em principios psicanalíticos. Um redirecionamentodas tentativas de aproximagao entre a educagao e psicanálise no Brasil seráobservado anos mais tarde por iniciativa de autores como Arthur Ramos (1939)que, partindo das primeiras reflexoes sobre o tema introduzidas no país, implantouurna prática de assisténcia a criangas com problemas escolares fortementesustentada na teoria psicanalítica, cujo modus operandi se concretizava porintermedio da avaliagao psicológica da crianga e da orientagao de pais e educadores(Abrao, 2008).Assim, apesar de guardar alguma proximidade com as idéias de higiene mental,que encontravam forte expressao em seu tempo, e de ter a sua insergao comoprecursor do movimento psicanalítico no Brasil restrita á divulgagao da abordagempsicanalítica, o grande valor das contribuigoes de Porto-Carreiro reside no fato deque este autor teve importante expressao no meio científico, ñas primeiras décadasdo século XX, contribuindo nao só para divulgar a teoria psicanalítica, mas tambémpara conferir a estas idéias legitimidade social, abrindo caminho paradesenvolvimentos subseqüentes.

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Escuta.

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Notas(1) Empregaremos a expressao precursor no sentido definido por MarialziraPerestrello (1995). Para ela os precursores foram aqueles profissionais que, mesmosem formagao psicanalítica, se interessaram pela psicanálise e promoveram adifusao destas ideias no país. Os pioneiros, por sua vez, foram aqueles que, apósrealizarem formagao psicanalítica, em sua grande maioria do exterior, passaram aaplicara psicanálise no Brasil.(2) Pesquisa realizada com apoio da FAPESP.(3) O surgimento de urna prática psicoterápica com criangas foi implementada noBrasil somente a partir da década de 1940 (Abrao, 2001).(4) A título de delimitagao histórica empregaremos a periodizagao proposta porMarialzira Perestrello (1995), ao definir as etapas que marcam o desenvolvimentohistórico da psicanálise no Brasil. Segundo esta autora pode-se diferenciar tresmomentos: o dos precursores, o dos pioneiros e o momento atual. Os precursoressao definidos como aqueles profissionais devotados á psicanalítica que, embora naopossuíssem urna formagao sistematizada na área, dedicavam-se a divulgar apsicanálise e, por vezes, a praticá-la como autodidatas; os pioneiros, constituem-seno primeiro grupo de psicanalistas propriamente ditos que, após terem concluidosua formagao, em muitos casos no exterior, dirigiram grande parte de sua atividadeprofissional para o ensino da psicanálise e para formagao de novos psicanalistas, eo momento atual, caracteriza-se pelo aumento do número de psicanalistas ematividade.(5) A expressao analista silvestre foi introduzida por Freud, em 1910, no artigo"Psicanálise Silvestre", para designar aqueles profissionais que exercem apsicanálise sem a adequada formagao, valendo-se apenas de um dominio teórico damesma.(6) Durval Bellegarde Marcondes, desde o inicio de sua vida académica naFaculdade de Medicina de Sao Paulo, onde se formou em 1924, interessou-se pelapsicanálise. Seguindo os passos do mestre e incentivador Franco da Rocha, dequem herdou o gosto e a dedicagao pela psicanálise, iniciou o atendimento depacientes empregando a técnica de Freud nos últimos anos da década de 1920(Sagawa, 2002).(7) É importante salientar que na primeira fase do desenvolvimento da psicanálisede criangas no Brasil, entre as décadas de 1920 e 1930, o surgimento destaespecialidade esteve diretamente vinculado a educagáo. Neste período ainda naoexistia no país urna prática clínica com criangas, de tal forma que a principal via dedifusao da psicanálise de criangas no Brasil ocorreu por intermedio da educagáo,mediante a orientagao de pais e professores.(8) Trata-se do artigo A Psychanalyse na Liga Brasileira de Hygiene Mental(1929b).

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(9) O ano da primeira apresentagao do artigo A Arte de Perverter: applicagaopsychanalytica a formagáo moral da crianga é ignorado, adotaremos assim, a datade sua primeira publicagao nos Ensaios de Psychanalyse.(10) Surgida em oposigao ao ensino tradicional a Escola Nova foi introduzida nopaís, a partir da década de 1920, por educadores como Anísio Teixeira. Esta novafilosofía educacional vía a crianga como um ser diferenciado do adulto, dotado desingularidade e com características de desenvolvimento próprias, de tal forma quea compreensao das singularidades que caracterizam o desenvolvimento infantilpossibilitaria a organizagao de propostas pedagógicas mais adequadas as suassingularidades.

Nota sobre o autorJorge Luís Ferreira Abrao - Psicólogo, doutor em Psicología Escolar e doDesenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicología da Universidade de SaoPaulo. Professor Assistente Doutor do Departamento de Psicología Clínica da UNESPde Assis e do Programa de Pós-Graduagao em Psicología e Sociedade da mesmaUniversidade. Supervisor do Centro de Pesquisa Aplicada Dra. Betti Katzenstein.Contato: [email protected]

Data de recebimento: 03/12/2010Data de aceite: 22/03/2011

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Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenologia á ética na psicología: tributo ao io¿-centenário de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl.Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01

Da historia da fenomenologia á ética na psicología:tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia

Rigorosa (1911) de Edmund Husserl

From phenomenology's history to ethics in psychology: tribute to thecentenarian of Philosophy as a Rigorous Science (1911) from Edmund

Husserl

Cristiano Roque Antunes BarreiraUniversidade de Sao Paulo

Brasil

ResumoA intimidade entre a historia da fenomenologia e a da psicología se constata por umpercurso que apresenta brevemente alguns textos selecionados para extrair aconcepgáo de vida ética que atravessa de modo continuo o trabalho de Husserl.Retomando o artigo centenario 'Filosofía como Ciencia Rigorosa' vé-se acompreensao histórica da fenomenologia resumindo concisamente a éticahusserliana. Husserl entende haver urna enteléquia humana que pode seridentificada como um pré-sentimento que, no limite, visa á realizagáo do serhumano. O modo de realizagao, assim como é a consciéncia humana, é algo emaberto, mas nem por isto menos urna tensao e nem por isto nao sujeito a algumasleis que estarao intimamente apegadas á natureza temporal da própria consciéncia.A apercepgao do conjunto integral da própria vida pessoal, seguida de reflexao é ométodo ético geral. No conjunto da obra husserliana, a ética se confunde com opróprio fazer fenomenológico.

Palavras-chave: fenomenologia; psicología; ética.

AbstractThe intimacy between the history of phenomenology and psychology's history isshown by a way that briefly presents some selected texts to extract the ethical lifeconception on Husserl works. By the centenarian article 'Philosophy as a RigorousScience' the historie comprehension of phenomenology is visible as synthesizing dehusserlian ethics. Husserl understands that there is a human entelechy which canbe identified as a pre-feeling that, at the limit, is directed to the realization ofhuman being. The way of realization, as well is the human consciousness, issomething opened, but still a tensión e subject of laws attached to the temporalnature of consciousness flow. The apperception of integrality of personal life,followed by the reflexivity is the general ethical methods. In the husserlian work,ethics is mixed with the phenomenological action.

Keywords: phenomenology; psychology; ethics.

IntroducaoUrna fenomenologia da vida ética conforme desenvolvida pelo fundador destacorrente de pensamento, Edmund Husserl (1859-1938), reconduz os movimentosde reflexao as dimensoes vivenciais que a definem em fungao da experiencia dosujeito, isto é, guardando um fio condutor essencial em meio á variedade deexperiencias. Esta caracterizagao, além de dizer respeito á problemática filosóficaque nunca deixou de gerar produtivas polémicas em torno da fenomenologiahusserliana, indica que a experiencia da vida ética tem também implicagoes para ocampo da psicología contemporánea que devem comparecer no norteamento de

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suas reflexóes, métodos e intervengóes. O objeto deste trabalho é justamente aesséncia da vida ética pessoal na fenomenología de Husserl, evocando-se o que secompreende como sua implicagao fundamental para a psicología. Os procedimentosque pautam este artigo buscam situar históricamente a fenomenología husserlianatal e qual a mesma se entendeu, o que significa compreender aspectos daspolémicas com as quais dialogou e a proposta por ela realizada como alternativafilosófica definitiva. A historia da fenomenología está intimamente relacionada áhistoria da psicología e, como se verá, foi justamente em meio as tendenciascientíficas que influenciavam a psicología da época que Husserl posicionou afenomenología como modo adequado de investigar a psique. Após urnacaracterizagao rápida da fenomenología, este trabalho apresenta brevemente ostextos e a justificativa de sua selegao para extrair a prática ética que atravessa demodo continuo o trabalho de Husserl, dedica-se mais detidamente ao texto tidocomo o "manifestó" da fenomenología, cujo centenario se completa agora (2010-2011) e que permite o entendimento histórico do surgimento da fenomenologíapara, em seguida, resumir concisamente a vida ética na abordagem husserlianaindicando o que se compreende aqui como sendo sua implicagao fundamental paraa psicología contemporánea. Posicionamentos de diferentes autores sobre o temaético em Husserl sao referenciados a fim de articular as consideragóes realizadas.

A fenomenologíaNo sentido de evitar um daqueles que está entre os mais comuns mal-entendidosem torno da fenomenología desde seus primordios, é preciso superar o preconceitoque a associa muito rápidamente á filosofía platónica tratando por idénticas ascategorías de esséncia de urna e outra. A busca da esséncia na fenomenología é abusca de redugao ao sentido, á característica última e definidora de um fenómenotal e qual o mesmo se mostra á consciéncia. De fundamental importancia nestaredugao é toda a atividade de subtragao exercida de modo reflexivo e que visailuminar o fenómeno desobstruindo os estratos que o torna confuso e obscuro emmeio as vivencias. A subtragao fenomenológica é o método segundo o qual se podesuperar as concepgóes dualistas que ao longo da historia do debate filosóficotendiam a privilegiar o sujeito ou o objeto, delineando grosso modo idealismos ematerialismos. Tal superagao (Bodei, 2000) nao está meramente no método, masna concepgao de consciéncia definida pela categoría de intencionalidade tornando aconsciéncia sempre consciéncia de, impossibilitando urna análise do sujeito alheiaao objeto e urna análise do objeto alheia ao sujeito. Assim, a análise da consciénciaé análise intencional. Análise de urna intengao que pode se manifestar de maneirasmais ou menos ativas, como seriam nessa ordem decrescente os casos dos atos devontade, dos atos psíquicos e dos atos perceptivos desde seus principios corporaisde maior passividade (Husserl, 1938/2006). O interesse de Husserl, como seevidencia, se volta a urna gnosiología que, frente ao que já havia sido feito nafilosofía, e conseqüentemente na cultura, ele mesmo julgava deste modo: "parece-me que eu, o pretenso reacionário, sou mais radical e mais revolucionario queaqueles que hoje se manifestam tao radicáis em suas palavras" (Husserl,1935/1996, p. 83).

PercursosPerreau (2008) distingue dois períodos ñas reflexóes de Husserl sobre a ética. Oprimeiro, indo até 1914 (Husserl, 1908-1914/2009), procura "formalizar a ética apartir de urna analogía estabelecida com a lógica" (Perreau, 2008, p. 123) e osegundo, no pós-guerra, se orienta "em diregao á consideragao da vida práticasubjetiva e, nela, da realizagao de si enquanto pessoa" (p. 124, nossa tradugao). Oautor destaca que o modo como aborda esta periodizagao se distingue daquele deum clássico artigo de Ulrich Melle (1991) em que se sublinha a unidade de fundodas reflexóes de Husserl sobre a ética. O presente artigo privilegia a dimensao

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pessoal daquelas reflexoes pontuando a idéia de vida ética, sem se dedicar asanálises mais fundamentáis que evidenciam o conjunto da temática ética emHusserl, sejam as da lógica, sejam as análises baseadas na atuagao das síntesespassivas na constituigao da pessoa, cuja importancia nao é menor. Na mesma linhade Perreau, Ferrarelo (2008) reconhece que, entre as diferengas dos dois períodos,da parte de Husserl, "a insatisfagao face á primeira formulagao de sua ciencia éticae a introdugao do método genético conduzem Husserl a nutrir novas exigenciaspara sua ética. Em 1924, ele quer urna ética mais próxima das escolhas pessoaisdos homens, capaz de orientar as agoes individuáis dos sujeitos" (p. 63-64, nossatradugao). Portanto, longe de exaurir a extensa reflexao husserliana sobre a éticapresente ao longo de sua obra, busca-se para o presente propósito delineá-la deacordó com aspectos já implicitamente presentes em A filosofía como cienciarigorosa (1911), em seus artigos redigidos entre 1922-1925 para a revista Kaizo ena conferencia pronunciada em Viena no ano de 1935, A crise da humanidadeeuropéia e a filosofía. O recorte dos textos contempla escritos de tres diferentesdécadas e segué a pista de que há urna mesma intengao prática ética implícita nomanifestó que completa seu centenario, explícita nos artigos da década de 1920 e,finalmente, disseminada na conferencia de 1935. Embora outros textos da décadade 1930 pudessem fazer o papel exemplar no delineamento ora pretendido, optou-se por seguir a pista de Laurent Joumier (1922-25/2005) que compara aconferencia de Viena a urna re-escritura dos artigos para a Kaizo e sinaliza que seHusserl deixou de falar de ética foi simplesmente porque esta se tornou onipresenteem seus escritos sendo "o problema filosófico maior ao qual todos os outrosparecem subordinados" (p. 17).Na conferencia Husserl articula o reconhecimento do telos espiritual europeu comotensao ao infinito a um tornar-se "meta prática da vontade" (Husserl, 1935/1996,p. 72). A tensao ao infinito, gestada como e desenvolvida pela filosofía, tem paraHusserl seu modelo original na idealidade matemática, sendo propriamente urnaidéia infinita. Já as metas práticas de vontade se desdobram como esforgos deaplicagoes de "infinitudes intencionáis" (Husserl, 1935/1996, p. 74) na ciencia etambém na política, ou seja, de idéias que, para além da finitude existencial dequem as aplica, orientam-se ao infinito. Se, aqui, á própria definigao de vida éticapessoal foi antecipada a articulagao entre a tomada de consciéncia do telos e a suaparticipagao na meta de vontade, é porque se quer sustentar que a tarefa dapsicología é tributaria das origens e desenvolvimentos da filosofía e nao pode,portanto, limitar-se a ser arte ou oficio, já que leva em seu seio a mesma tensaoideal, a cientificidade. Mas antes da expressao deste telos, contudo - e ofundamentando - está urna tensao previa, um pré-sentimento tratado por Husserlcomo enteléquia que, no limite, visa á realizagao do ser humano. Deve-se,certamente, do mesmo modo que é a consciéncia humana, tratar o modo derealizagao como algo em aberto, mas nem por isto menos urna tensao e nem porisso nao sujeito a leis que estarao intimamente apegadas á natureza temporal daprópria consciéncia. Acredita-se que, em sua atividade prática, é frente a estacaracterística que a psicología contemporánea protagoniza um papel fundamentalpara a realizagao do ser humano, o que nao pode ser outra coisa senao sinónimode realizagao ética. A vida ética em Husserl, assim, em acordó com a reflexao deMonseu (2008), "nao repousa únicamente sobre a fundagao da ética numa teoriado valor e sobre a análise dos atos avaliativos da consciéncia (problematizando avalidade dos correlatos objetivos desses atos), mas engaja urna concepgao deidentidade pessoal onde a realizagao de si e da vida em comum é o seu telos" (p.69, nossa tradugao). Nesse sentido, embora se possa explicitar a dimensaotranscendental da ética propriamente dita, ou seja, demonstrar a análise em niveltranscendental que, realizada por Husserl, leva a urna leitura do imperativo ético(Trincia, 2007), é na dimensao do sujeito empírico, portanto, naquela dimensaoprópria á atitude reflexiva pessoal que se realiza a esséncia da vida ética.

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A fenomenología: historia de sua emergenciaConsiderado como o manifestó da fenomenologia, e publicado pela primeira vez em1910/1911 na revista Logos, A filosofía como ciencia rigorosa sistematiza o projetofenomenológico como a exigencia que emerge de uma polarizagao filosóficaestabelecida no século XIX. A própria organizagao do texto em tres partescompostas por uma abertura e mais duas abordagens críticas - uma dirigida áfilosofía naturalista e outra dirigida ao historicismo - expressa nítidamente apresenga destas posigoes hegemónicas no século que precedía aquela redagao.Edmund Husserl (1859-1938), matemático de formagao, inspirado e atraído poruma nova psicología desenvolvida no ocaso do século XIX, concebeu comooperagao psíquica a fundagao da matemática ñas relagoes entre unidadesnuméricas no primeiro de seus livros, A filosofía da Aritmética, publicado em 1891.Estava ali, no veio das concepgoes psicologistas e historicistas daquele género, umdos posicionamentos contra os quais se ergueria sua fenomenologia no despertardo novo século. Até entao, psicologismos e historicismos de variadas sortes sedefrontavam com a ciencia naturalista e sua concepgao filosófica de base. Apotencia técnica e o progresso científico, oriundos de procedimentos apoiados nanaturalizagao dos fatos, davam o beneficio á última e inspiravam elevadasesperangas num desenvolvimento civilizacional prometeico. Para Husserl (1910-l l /2005a), contudo, e contra todas as acusagoes á fenomenologia de ser umafilosofía apolítica, a filosofía naturalista presente no modelo científico naturalconduz a uma ciencia "que se cumpre de uma forma que é fundamentalmenteerrada (...) e um crescente perigo para a nossa cultura" (p. 11). O que veio asignificar este perigo está narrado pela historia do mais cruel de todos os séculos,quando a materializagao da ciencia efetivou algumas de suas próprias concepgoescom nomes e significados tao diversos - e de efeitos beligerantes tao equiparáveis- como comunismo, liberalismo e nazismo. A evasao do sentido nasupervalorizagao da técnica era, portanto, de alguma forma já prevista pelasreflexoes husserlianas que permaneceriam problematizando as implicagoes éticasde modo explícito ou implícito pelo menos em dois momentos, cujos escritos saoconseguintes á primeira guerra e á ascensao nazista ao poder alemao.Era insuficiente para Husserl a confutagao das previsíveis conseqüéncias de se porem prática concepgoes científicas equivocadas. Mais do que tal crítica negativa,impunha-se a "necessidade de uma crítica positiva dos principios e métodos"(Husserl, 1910-ll/2005a, p. 11). Essa crítica positiva emerge como fenomenologia.No mesmo sentido - e reforgando o fio de Minerva da fenomenologia - Ales Bellodá á epoché o sentido de: "método a ser seguido para uma investigagao filosóficaque queira ter presente com equilibrio o criticar e o construir, entendido, esteúltimo, como o dar as razóes daquilo que se está examinando, colhé-lo na suaestrutura essencial" (Ales Bello, 2006, p. 12). A positividade fenomenológica -distinta e distante do positivismo - desvela-se por um procedimento subtrativo quesuspende juízos previos a fim de acessar os modos conscienciais atuantes naconstituigao dos fenómenos e suas esséncias. Nestes modos intencionáis,diferentemente de um psicologismo, compreende-se mutuamente o objetocorrelato que se encontra na esséncia da consciéncia que se define sempre comoconsciéncia de.

O naturalismo, de sua parte, torna naturais todos os fenómenos, inclusive ospsíquicos, que serao entendidos como estando em fungao de relagoes físicas. Anatureza fora definida como "unidade do ser espago-temporal regulado por leisnaturais exatas" (Husserl, 1910-ll/2005a, p. 13). Sao as relagoes entre tempo eespago que tudo determina e precisam ser descobertas pela ciencia. Osprocedimentos para fazé-lo sao os experimentáis, onde por experimento verifica-seum complexo de "ordenagao metódica, conexao das experiencias e obediencia aregras lógicamente determinadas" (p. 23). Há em meio a isto um jogo recíproco de

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experimentar e pensar. Para o naturalista este é um jogo factual derivadosimplesmente de leis físicas (naturais) onde mesmo o pensamento poderá serentendido através das regras científicas a serem descobertas pela psicofísica. Esteentendimento de uma determinagao psicofísica presente no naturalismo exemplificao que Husserl (1910-ll/2005a) chama de ingenuidade naturalista, onde "a cienciada natureza assume a natureza como dada" (p. 23) e "tende a colher tudo comonatureza" (p. 13). Portanto, a "análise pura e direta da consciéncia" (p. 30) estáexcluida de experimentos que a tomam apenas indiretamente em suas relagoescom a natureza (objetivo-temporal). Nao sendo objeto de análise,conseqüentemente, o conhecimento que está atuante no fazer científico nao édevidamente problematizado e se perde de vista a esséncia intencional que oestimula. Assim, o pesquisador tem uma posigao existencial que diz respeito á suaatuagao, mas esta é dispensada de maiores consideragoes como se aexistencialidade nao tivesse qualquer implicagao com os procedimentos adotados.A fenomenología é uma teoría do conhecimento, uma gnosiología que, entao, deveter em consideragao o fluxo de consciéncia que nao apenas acompanha o fazercientífico, mas o precede no conhecimento pré-científico. Este último é tambémnaturalizador, pois ao nao ser problematizado, ao nao por em questao suascondigoes de possibilidade e nao se perguntar pela esséncia do que veicula, colocaem prática uma atitude natural. A atitude natural nao é menos atuante no fazercientífico naturalista, pois é evidente a ausencia de questionamento das condigoesde possibilidade últimas do conhecimento, isto é, da própria consciéncia. Trazer átona estas condigoes de possibilidade significa ir além da crítica negativa e realizara crítica positiva que Husserl clama como a mais necessária para esclarecerprincipios e métodos de uma filosofía como ciencia rigorosa. Propoe-se que seassuma uma atitude fenomenología onde haja pré-disposigao ao abandono de pré-posigoes, consideragoes teóricas, científicas ou nao, para que se reinicie o conhecerdo principio, em constatagoes dos atos conscienciais que estejam em questao:percepgao, recordagao, representagao, fantasía, expectativa, crenga, juízo,identificagao, distingao etc.

Pode-se, por outro lado, ver na posigao historicista uma especie de atengaoexclusiva, ou predominante, a elaborados produtos da consciéncia derivados dasatividades espirituais que a análise revela ser o conhecer, o valorar e o querer. É,portanto, uma filosofía independente de relagoes de caráter naturalista (físico), masestando em fungao das relagoes entre altas produgoes espirituais que definem umacultura, uma sabedoria, uma visao de mundo e da vida. A historia, assim, édeterminante enquanto descubridora do espirito coletivo que pertence a umacomunidade e a uma época. Contudo, ao se bastar ai, na assungao de legitimidadeteórica relativa á época e a seu próprio complexo de valores e modos de avahar,julgar e querer, esta filosofía dá á historia a suposta chave interpretativagnosiológica a que, fundamentalmente, nao tem direito. Por mais elevadas quesejam tais produgoes espirituais, Husserl (1910-ll/2005a) Ihes atribuirá o caráterde "habitus como sedimento dos atos passados no correr da vida, nos quais serealizou uma tomada de posigao no ámbito da experiencia natural" (p. 83). Oretorno da atitude natural sinaliza a inconsistencia teórica da filosofía historicista. Oque Ihe falta é o caráter científico que busque mais do que o sentido histórico;busque o sentido permanente que fica sombreado por concepgoes e teorías, habitusnaturalizados que escamoteiam a visao de esséncia por um encanto da atitudenatural. A fenomenología, a fim de exercer sua crítica positiva, recorre, entao, áorigem do conhecimento no desvelar da "intuigao ¡mediata" (p. 54). A descrigaofenomenológica, pois, enunciará conceitos de esséncia que fagam justamente oresgate da visao de esséncia. Uma psicología apropriada, ou pelo menos a fundagaodesta psicología, portanto, visará o fenómeno psíquico numa apreensao direta -como nao poderia ser diferente, já que o mesmo nao é natureza (física) e, emborase articule existencialmente, nao é equivalente ao espago mensurável, ao tempo

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(cronológico), á causalidade e á substancialidade, mas é propriamente fenómeno.Nesta psicología o fenómeno psíquico é urna vivencia intuida na reflexao que,colhida e compreendida, poderá se identificar em sínteses (apercepgao psicológica)com novas experiencias vivenciais de registro psíquico. No relacionamentointersubjetivo esta síntese encontrará e reconhecerá novas experienciascorrespondentes que constituem urna especie de visao indireta do psíquico pelo atocaracterístico e ¡mediato da empatia. Se a empatia é ¡mediata, conforme asanálises das Meditagoes Cartesianas (Husserl, 1929/2001a), as formas co-estabelecidas pela intersubjetividade podem ser menos ou mais mediadas,assumindo múltiplas configuragoes entre as quais se inclui a objetividade. Ocompartilhamento intersubjetivo que configura a objetividade científica dá mostrasde que na própria objetividade há um compartilhar obscuro de carnadasintencionáis que podem ser trazidas á luz pela escavagao fenomenológica. Destemanifestó da fenomenologia, pode-se depreender que o resgate do sentido,daquela intengao submersa na reificagao do mundo e do homem, é tarefa dofenomenólogo, mas também, poder-se-ia dizer, do psicólogo contemporáneoinspirado pela evidenciagao ética da fenomenologia. O rigor experimental da cienciaempírica no estudo específico da natureza transborda aquilo que deveriam ser suasfronteiras e, seguindo-se inevitavelmente a seus absurdos teóricos, "o naturalistaensina, prega, moraliza e reforma" (Husserl, 1910-ll/2005a, p. 16) baseado emabsurdos teóricos, axiológicos e éticos. Husserl julga que a filosofía sempre almejouser urna ciencia rigorosa e, para tanto, buscou idéias de validade eterna. Limitar-sea aplacar a indigencia de seu tempo era para Husserl (1910-ll/2005a) sacrificar aeternidade e deixar ao futuro apenas indigencia sobre indigencia. O conhecimentocientífico supratemporal - construido como "resultado de um trabalho coletivo degeragóes de estudiosos" (p. 101) - "nao é limitado por algumas relagóes com oespirito de urna época" (p. 90). A vocagao de racionalidade do ser humano naopoderia ser suplantada por intengóes obscuras. Daí a perspectiva ético-religiosa quea filosofía sempre buscou e que a radicalidade metodológica da fenomenologiapropóe trazer á tona.

A vida ética na fenomenologiaEmbora este artigo nao tenha a intengao de dirimir os ¡números preconceitos queorbitam no campo da fenomenologia, o próprio estilo da abordagemfenomenológica é por si mesma subtrativo e, como tal, tem de eliminar pré-concepgóes. Como este campo é teóricamente tao ampio como o próprioconhecimento, torna-se válido citar alguns dos preconceitos mais comuns, sem,contudo, analisá-los, mas remeté-los a fontes bibliográficas que o fazem.Inicialmente cabe desfazer o preconceito relativo ao suposto individualismomonádico de um sujeito equivalente ao cartesiano ñas análises de Husserl. Apenassugerindo a posigao de valor contrario - e sem maiores delongas - tome-se aafirmagao de Husserl (1935/1996): "Vida pessoal é um viver em comunidade comoeu e nos, dentro de um horizonte comunitario" (p. 65). As análisesfenomenológicas podem sim suspender a vida pessoal, mas apenas temporaria eestratégicamente a fim de reduzir a compreensao de um determinado fenómeno afim de evidenciá-lo. Contudo a vida pessoal é também um fenómeno e nao deixa deexistir enquanto suspendido. Para compreender a esséncia intersubjetiva daconsciéncia intencional da fenomenologia reenviamos a Ales Bello (2006), Stein(1917/1998) e ao próprio Husserl (1929/2001a, 1905-1935/2001b, 1905-1935/2001c). Dada tal assergao e sem mais delongas, facilita-se a compreensao deque a vida ética husserliana é de natureza comunitaria e, como tal, da ordem doentrelagamento de vivencias corpórea, anímica (psíquica) e, ácima de tudo,espiritual (veja-se Ales Bello, 2006), enquanto é no registro dos atos de tipoespiritual que se dao a reflexao e a decisao, portanto, processo e produto éticos.Daí Husserl (1935/1996) vincular a crise européia - com toda a ordem de

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conseqüéncias práticas que será qualificada como "enfermidade" (p. 68) na décadade 1930 e, anteriormente, prenunciada como crescente perigo - ao modo depensar que predominava (e predomina) sem fazer um uso genuino daracionalidade. Portanto tem-se a inseparabilidade entre subjetividade,intersubjetividade, comunidade, atividade espiritual (que se manifesta como modode pensar, materializando-se nos objetos culturáis) e ética, já que a compreensaode cada um destes fenómenos se abrirá á consideragao essencialmente articuladacom os demais. A ética - e também todas as categorías anteriores - nao é umagregado á comunidade e ao pensamento, ela toma parte em sua constituigáo eestá calcada num telos humano. Este telos propriamente humano nao é um projetopronto, mas é urna tensao aberta e com sua própria esséncia, caracterizada porurna fenomenóloga contemporánea como Tymieniecka, pela fungáo criativa (AlesBello, 1997). O que significa atribuir á ética um aspecto constitutivo dopensamento? O que significa isto quando se admite que ética e pensamento saofenómenos diferentes? Ao ter em consideragao somente o pensamento enquantológica formal, pode-se fácilmente notar a presenga de um valor no encadeamentológico acertado, valor que nao se reconheceria apenas e exclusivamente pelalógica, mas que se liga atrativa e essencialmente a esta tensao. No caso europeu,esta tensao assumiu seu mais alto constructo na perspectiva ético-religiosa vigentena intengao filosófica. Entendendo que a nogao de valor que permite a emergenciada lógica é urna manifestagao desta tensao, é preciso explorá-la em suasedimentagao. Do contrario, assumindo-se como ¡solada e exclusiva em seu ato, arazao se torna racionalismo e a ciencia pautada neste racionalismo perde o caráterde racionalidade restringindo-se a actuar como técnica - ao mesmo tempo em que"tecnifica" o homem ao formá-lo. É nesta perda, ocorrida sobretudo a partir doRenascimento e da figura científica inaugurada por Galileu, que, pode-se dizerinspirado em Husserl, a ciencia comega a perder contato com sua alma. Aoobjetivar toda a realidade o cientista natural deixa de considerar suaexistencialidade atuando no fazer científico. A racionalidade filosófica auténtica, aocontrario, sempre busca os próprios fundamentos de seu atuar. Estes fundamentossao intencionáis e permaneceriam presentes no sentido original da filosofía que,para Husserl (1935/1996), "corretamente traduzida (...) é um outro nome paraciencia universal, a ciencia da totalidade do mundo" (p. 73). É, pois, nestepanorama que a psicologia deve ser compreendida como tendo um papel inadiavelpara a revitalizagao ética do mundo ocidental. Originalmente este papel é dafilosofía e continua sendo enquanto sao as dimensoes filosóficas da psicologia quenorteiam seu sentido. Contudo, enquanto áreas de conhecimento e atuagaoprofissionais, mais do que a filosofía , a psicologia contemporánea - em seu sentidohistórico profissional vago - se propoe a ser urna ciencia e prática interventiva eatua como tal em múltiplos campos sociais. Resgatar os fundamentos da atuagaoracional é trazé-la da alienagáo racionalista á auto-consciéncia indagadora daracionalidade. Trata-se propriamente de um resgate que, mesmo sendo produtivo,nao é invengáo de algo inédito, mas um re-contatar ¡novador de aspectos dacondigáo humana que sao de ordem psíquica e se tém mantido soterrados abaixodas fantásticas produgoes espirituais realizadas na modernidade. A psicologia, comosugere seu próprio nome, deve propor-se a resgatar a alma perdida no labirintoracionalista somando esforgos junto á filosofía. Enquanto um determinado modo depensar, diagnosticado como sendo enfermo, desligou sua consciéncia reducionistada alma, as análises husserlianas reconhecem que a verdadeira racionalidadefilosófica nunca teria deixado de buscar o sentido iluminado de seu fazer, o que naopode ser dissociado de seu querer, seu desejo, seu afeto, seu sentido comunitariode amizade. A humanidade ocidental germinada nesta racionalidade filosófica tendeá totalidade e, embora nunca tenha atingido e nunca vá atingir urna maturidadeplena, é nesta tensao que se constituí e amadurece.

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Creio que nos sentimos (e apesar de todaobscuridade, este sentimento provavelmente temsua razao) que á nossa humanidade européia está¡nata urna enteléquia que domina todas asmudangas de formas européias e Ihe confere osentido de urna evolugao em diregao a um poloeterno (Husserl, 1935/1996, p. 71-72).

O sentimento aqui, obscuro, mas com sua provável razao de ser, domina as formasteóricas e práticas de ser no mundo europeu. Trata-se de um registro psíquico, estemais obscuro - por ser mais profundo e mais desafeto á fixagao - que os registroscorpóreo e espiritual. Husserl (1935/1996) considera que a enteléquia age comoum pré-sentimento vivo e serve como guia intencional que "em todas as ordens dedescoberta [é] o detector afetivo" (p. 72).Os artigos da revista Kaizo sao vivamente significativos, para o presente propósito,por tratarem explícitamente a problemática da vida ética enquanto problemáticapessoal. A apercepgao da própria vida, seguida de reflexao é, de certa forma, ométodo ético geral que pode, contudo, ser aperfeigoado pelo simples esforgo detomar consciéncia de si. Joumier (1922-25/2005) dirá que "por esséncia, o homempersegue fins, conhece a decepgao, desenvolve urna reflexao crítica geral destinadaa prevenir seus fracassos e visa á realizagao da meta, conscientemente ouobscuramente, a dar a sua vida inteira urna forma nova trazendo-lhe a maiorsatisfagao possível" (p. 16). Deste transcorrer podem ser extraídas ascaracterísticas que configuram a ética: "consciéncia de si, liberdade, faculdade depensamento geral, esforgo em diregao as metas" (idem). Entretanto, mesmoconsiderando-se com Husserl que seja da "esséncia da vida do homem (...) que elase desenrole continuamente sob a forma de esforgo" (Husserl, 1922-25/2005b, p.45), esforgo positivo em diregao a um objetivo de valor positivo, varios podem seros obstáculos pessoais (e nao apenas factuais) que no "combate para urna vida depleno valor" (Husserl, 1922-25/2005b, p. 45) impegam sua realizagao. Estecombate é da esséncia da vida do sujeito. Valores diversos disputam o lugar devalor constitutivo da realizagao desta vida do sujeito. A pro-tensao que configura avida futura de alguém, todavía, pode ser apreendida por um olhar de conjunto quese va I ha de atos consciéncia is diversos como a imaginagao, o desejo e, sobretudo,a avaliagao, sinalizando "que valores de um género particular, que ele pode a cadainstante escolher como alvo de sua agao, tém para ele o caráter de valoresdesejados incondicionalmente em que, sem a realizagao continua destes, ele naopoderia encontrar nenhum contentamente" (Husserl, 1922-25/2005b, p. 47). Oreconhecimento desses valores desejados incondicionalmente é o reconhecimentedaquilo que faz urna "vocagao" ou "missao" {Beruf), um chamado que se encontrano fundo da personalidade (Monseu, 2008).

Desejo, imaginagao e avaliagao: atos que, nesta ordem, apoiados e impulsionadospela corporeidade, passam do registro exclusivamente psíquico ao intermediario eao registro exclusivamente espiritual; isto é, o latente se torna patente, o implícitose torna explícito, mas o explícito se torna abstragao, exigindo a recondugaofenomenológica a seu valor de origem, as suas vivencias constitutivas, á intuigaoque dá luz ao vazio do sentido abstraído. No pensamento fenomenológico o resgateda dimensao psíquica seria, entao, algo próprio á reflexao filosófica auténtica, istoé, aquela nao parcial e fragmentada da filosofía oriunda da ciencia naturalista. Poroutro lado o psicologismo, nascido na filosofía como simples visao de mundo, seriaum super dimensionamento do psiquismo e de sua variagao que nao leva emconsideragao a apreensao do invariante eidético pela atividade espiritual avaliativa.A ciencia, feita do modo como é hoje hegemónica, teria, portante, o papel defornecer informagoes, mas nao prescrigoes, ou seja, nao um norte ético. Tal nortepode se dar num esforgo conjunto das ciencias humanas, especialmente dapsicología quando se considera a conclusao de Ales Bello em seu artigo sobre a

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ética ñas ciencias humanas: "está ai a necessidade do escavo pessoal na própriadimensao psíquica e espiritual para encontrar os criterios de orientagao em relagaoaos outros; a dimensao ética, de fato, é urna dimensao contemporáneamentesubjetiva e intersubjetiva" (Ales Bello, 2006, p. 13). Um desequilibrio extremodesta dupla dimensionalidade, segué o raciocinio de Ales Bello, por um ladopolariza-se como arbitrariedade, por outro como totalitarismo. Ñas análises deHusserl, a "realizagao de si enquanto pessoa", a "ética da responsabilidadeindividual", está intimamente articulada á constituigao comunitaria da pessoa,abrindo-se, portanto, a urna "ética social", conforme mostra Perreau (2008).Retomando a avaliagao de Joumier (1922-25/2005) e estendendo-a nao apenaspara frente dos anos 1920, mas também para tras, a ética é onipresente na obrade Husserl. De fato, se num momento como o da Filosofía como ciencia rigorosa osmodos de pensar eram associados a um perigo crescente para a cultura, nummomento posterior, como aquele da conferencia de Viena, nao se trata mais deurna situagao arriscada, mas já de um perigo consumado enquanto, maisradicalmente, o próprio modo de pensar é reconhecido como sendo a enfermidade.A ética na fenomenología, pode-se concluir pelo conjunto da obra husserliana,confunde-se com o próprio fazer fenomenológico, como busca continua e metódicaque retoma o sentido de conjunto da vida pessoal evitando os desequilibriosnaturalistas e psicologistas que, ilustrativamente, se desdobram respectivamenteem abordagens técnico dogmáticas sobre o psiquismo e em abordagens ñas quaisse sobrepoe a arbitrariedade do funcionamento psíquico as tomadas de decisaoconscientes e aos posicionamentos pessoais livres.A obra de Husserl propoe urna gnosiología que se desenvolve como propedéutica asciencias. Por um lado, seguindo o raciocinio propedéutico, pode-se trabalhar nosentido de fornecer fundagoes fenomenológicas a prior! para a psicología e suasaplicagoes, ou seja, sua explicitagao científica e as explicitagoes normativasapropriadas ao seu exercício prático, tarefas exigentes que parecem ainda naoterem se cumprido. Por outro lado, pode-se, ao invés de urna aposta e urna esperapela apropriagao de tais fundagoes por parte da comunidade de psicólogos, tornarpresente a prática fenomenológica na psicología atual, como área de conhecimentoe intervengao, a fim de estimulá-la interiormente por um norteamento éticotransformador. Essa possibilidade vai de encontró a urna compreensao experiencialda fenomenología que a poe em prática, antes de mais, como reflexao pessoal-comunitária explicitadora dos sentidos que se mostram determinantes na buscapela vida ética.

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Nota sobre o autorCristiano Roque Antunes Barreira - psicólogo, professor doutor da Escola de Artes,Ciencias e Humanidades da Universidade de Sao Paulo entre 2005 e 2009, éatualmente docente da Escola de Educagao Física e Esporte de Ribeirao Preto(USP). Contato: [email protected]

Data de recebimento: 28/03/2011Data de aceite: 29/04/2011

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Aquém e além do cativeiro dos conceitos:perspectivas do preto-velho nos estudos afro-

brasileiros

Below and beyond the captivity of the concepts: perspectives of the pretovelho in the Afro-Brazilian studies

Rafael de Nuzzi DiasJosé Francisco Miguel Henriques Bairrao

Universidade de Sao PauloBrasil

ResumoHistóricamente estudiosos tém se empenhado em investigar os mecanismos e asrazoes pelas quais personagens retirados da experiencia histórica e da memoriacoletiva firmaram-se no imaginario religioso brasileiro. Nesse ínterim, o preto-velhoemerge como entidade espiritual proeminente, recorrente presenga ñas obras deautores interessados em apreender a cultura afro-brasileira a partir de suasmanifestagoes consubstanciadas no quadro da religiosidade popular, sobretudo daumbanda. Assim, tendo em vista compreender os movimentos que marcaram odesenvolvimento dos saberes sobre o preto-velho, apresenta-se urna revisao ediscussao crítica das diversas perspectivas a partir das quais ele tem sido pensadoe caracterizado. De forma geral, evidencia-se que o estudo sobre o preto-velhooscilou de urna produgao fundamentalmente enquadrante e contextualizadora,tomando-o como contingente á lógica sistémica da religiosidade umbandista, paraurna produgao focalizada e extensiva, voltada para o seu entendimento comofenómeno dinámico passível de múltiplos desdobramentos.Palavras-chave: preto-velho; religiosidade afro-brasileira; cultura afro-brasileira;

memoria coletiva; imaginario.

AbstractHistorically specialists have made efforts to investígate the processes and thereasons through which personages caught from the historical experience and thesocial memory were Consolidated in the Brazilian religious imaginary. In this way,the preto velho emerges as a prominent spiritual entity, recurrent presence in theauthors' works interested in apprehending the Afro-Brazilian culture from theirmanifestations in the frame of the popular religiosity, especially umbanda. Thus, inorder to understand the movements that marked the development of theknowledge about the preto velho, this article presents a critical revisión anddiscussion of the several perspectives from which he has been thought andcharacterized. In a general way, the literature evidences that the study of the pretovelho oscillated from a production that fundamentally enframes and contextúa I izes,taking him as contingent to the systemic logic of umbanda's religiosity, to a focusedand extensive production, directed to its understanding as a dynamic phenomenoncapable of múltiple possibilities.

Keywords: Afro-Brazilian culture; preto velho; social memory; collectiveimaginary.

IntroducaoNao obstante recorrente ñas produgoes científicas de muitos autores que em algummomento versaram sobre a questao da cultura e da religiosidade afro-brasileira (1)- e quase unanimidade entre os que se propuseram a investigar específicamente a

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umbanda, seu quadro de referencia mais notorio - o campo dos estudos acerca dopreto-velho, categoría espiritual profundamente arraigada no seio da religiosidadeafro-brasileira e personagem amplamente difundido e reconhecido na culturapopular, carece de urna revisáo sistemática capaz de fornecer um panorama críticodo grande volume de informagoes, teorizagoes e conhecimentos acumulados aolongo de décadas de investigagoes.Nesse sentido, o presente artigo propoe-se a atenuar essa lacuna, investigando osdiversos sentidos produzidos acerca do preto-velho pelos autores que, em suamaioria radicados nos dominios da sociología e da antropología, direta efocalizadamente ou indireta e contingencialmente se dedicaram á produgáo desaberes sobre este personagem táo marcante da cultura afro-brasileira.Mais específicamente, serao expostos e discutidos os modos, as perspectivas e osenquadres em o preto-velho tem sido caracterizado, com destaque para asdefinigoes de seus horizontes simbólicos de referencia, os lugares a ele atribuidosno contexto sistémico da religiosidade umbandista e seu panteao espiritual, e suassupostas "fungoes" sociais, culturáis e psicológicas. Além disso, serao enfatizadasdivergencias, contradigoes e polémicas existentes entre as concepgoes dediferentes autores, no intuito de trazer á tona clivagens e lacunas a seremesclarecidas no estudo do preto-velho.Cabe ressaltar que o artigo está organizado em torno de temas específicosparticularmente salientes que atravessam a literatura: a memoria coletiva daescravidao; polémicas acerca da presenga, sentido e destaque do preto-velho noámbito da religiosidade umbandista; e os múltiplos desdobramentos evidenciadosna última década por trabalhos que se dedicaram a investigagoes focalizadas sobreo preto-velho. Estes tres eixos nao apenas se inter-relacionam como seinterpenetram, pelo que nao se refletem numa segmentagáo rígida da apresentagáodos resultados e sua discussáo.

Revivéncias simbólicas e imaginarias da escravidaoA categoría espiritual preto-velho (2) é indiscutivelmente figura-chave na umbanda,sendo urna das mais antigás, mais encontradas nos terreiros e mais citadas emtoda a literatura (Negráo, 1996; Concone, 2001). No que diz respeito á suaantiguidade, é amplamente difundida entre umbandistas e pesquisadores a ideia deque os pretos-velhos foram, juntamente com os caboclos, os grandes precursoresespirituais da umbanda, tendo sido estas as primeiras entidades do panteao aincorporarem e reivindicarem a fundagáo de urna nova religiáo por meio da criagáodos primeiros centros de umbanda, dos quais se tornaram os líderes espirituais epatronos (Negráo, 1996). A esse respeito, é exemplar a trajetória do grupo lideradopor Zélio de Moraes, tida por alguns como o mito fundador da umbanda (3).Conforme comenta Diana Brown (1985),

muitos integrantes deste grupo de fundadoreseram, como Zélio, kardecistas insatisfeitos, queempreenderam visitas a diversos centros de"macumba" localizados ñas favelas dos arredoresdo Rio e de Niterói. Eles passaram a preferir osespíritos e divindades africanos e indígenaspresentes na "macumba", considerando-os maiscompetentes do que os altamente evoluídosespíritos kardecistas na cura e no trata mentó deurna gama muito ampia de doengas e outrosproblemas (p . l l ) .[Dessa forma,] dois dos principáis elementosretirados das tradigoes afro-brasileirasconstituíram os espíritos centráis da Umbanda, oscaboclos e os pretos velhos (p. 12).

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Na mesma diregao, Negrao (1996), incluindo a categoría dos exus no interior dos"mitos primordiais" da umbanda, afirma que

nao obstante as idiossincrasias de cada terreiro eas influencias religiosas que os atingemdiferencialmente, há na Umbanda um universosimbólico comum claramente delineado eassociado á criatividade do imaginario popularbrasileiro. As tendas ou terreiros constituem-seno locus por excelencia da produgao e reprodugaodo sagrado; neles foram gerados os mitosprimordiais da Umbanda consubstanciados ñasfiguras dos Caboclos, Pretos Velhos e Exus,secundados por ¡números outros de elaboragaomais recente. Uns e outros, arquetipos dacondigao do brasileiro subalterno ou de outrascondigoes sociais vistas sob sua ótica,transmutados em deuses mediante processos deinversao simbólica (p. 145).

Embora seja bastante complexa e polémica a questao acerca das origens dareligiao umbandista e dos processos que levaram á conformagao de seu panteao deespíritos, duas coisas sao certas no que tange aos pretos-velhos: 1) dividem comcaboclos e exus o status de entidades mais antigás, conhecidas e difundidas nointerior do imaginario social brasileiro, podendo sua origem, embora incerta, serremontada para os primordios da incipiente nagao brasileira, antes mesmo dosurgimento dos primeiros terreiros de umbanda organizados e socialmentereconhecidos como tais, urna vez que é certo que tais entidades já incorporavam eeram cultuadas em contextos mágico-religiosos desde as primeiras manifestagoesdaquilo que Roger Bastide (1971) denominou "macumba urbana" e "macumbarural", muito provavelmente com raízes encravadas ñas senzalas dos tempos daescravidao; 2) configuram urna categoría espiritual que surge a partir de umprocesso sistemático de sacralizagao da figura do escravo negro (Souza, 2006),sendo esta dimensao de elaboragao da experiencia coletiva da escravidao o vérticefundamental e irredutível a partir do qual todas as associagoes e conformagoes queconstituem a complexidade intrínseca aos pretos-velhos se organizam, nao apenasespecíficamente no interior da religiosidade umbandista, mas em todo o vastocampo da religiosidade popular brasileira.A esse respeito, cabe destacar que o culto e a presenga dos pretos-velhos nao saode forma alguma exclusividade ou especificidade inerente á umbanda, o que já foilargamente demonstrado por ¡números autores que relataram, ainda que namaioria dos casos apenas de passagem, a presenga de pretos-velhos nos maisvariados cultos espiritualistas e afro-brasileiros, tais como o candomblé ketu(Souza, 2006), o candomblé de caboclo (Prandi, Vallado & Souza, 2001), o catimbó(Bastide, 2001), o catimbó-jurema do Recife (Brandao & Rios, 2001), a umbandanordestina (Assungao, 2001), o espiritismo kardecista (Souza, 2006; Santos,1998); o Tambor de Mina do Maranhao (Ferretti, 2001), o culto daimista dabarquinha (Souza, 2006), e até mesmo cultos recentes ao estilo Nova Era como aarca da montanha azul (Souza, 2006).Embora alguns autores refiram tal difusao como parte de um suposto processocontemporáneo de "umbandizagao" do campo religioso popular brasileiro (Souza,2006), inserido no contexto abrangente de urna vivencia do sagrado marcada porconstantes intercambios e porosidades (Sanchis, 2001), o fato latente e inescapávelé que os pretos-velhos, enquanto representagao da figura do escravo negro talcomo fixada na memoria coletiva e corolária de urna modelagem complexa nosmoldes das intrincadas redes do imaginario, sao entidades que nao devem serconcebidas a partir de aproximagoes homogeneizantes, sob o risco de perder-se

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urna de suas características mais marcantes, sua dinamicidade e adaptabilidade anovos contextos e situagoes.Os pretos-velhos tal como incorporados (em duplo sentido) pelos umbandistasparecem ser produto de um processo abrangente de sacralizagao e mitificagao depersonagens e fatos históricos, calcado na necessidade de reatualizagao eexpressao de memorias profundamente arraigadas no ámago das comunidadesafro-brasileiras desde os primeiros tempos de suas afirmagoes culturáis eidentitárias. Memorias que guardam os momentos mais significativos e coerentesdas vidas humanas; vozes que ecoam na historia e em vividas experienciaspessoais onde singular e coletivo emergem e se encontram (Casal, 1997), e aexperiencia de cada um pode mover-se através das lembrangas e vidas dos outros,ganhando alcance comunitario e expressando situagoes comuns ao grupo (Bairrao&Leme, 2003).Por outro lado, constituem a mais notoria expressao de um modo de apreensao einteragao com o sagrado típicamente africano (banto) que persistiu á diáspora eestabeleceu-se com forga em solo brasileiro, o culto aos ancestrais, onde "ascapacidades e poderes invulgares derivam do contato com a térra dos mortos" e aexperiencia teofánica "manifesta as claras a co-autoria humana, na forma decolaboragao entre viventes e ancestrais" (Bairrao & Leme, 2003, p, 8).Assim, partindo-se da premissa de que o agente coletivo (sujeito sociocultural) queconfigura o "olhar para a realidade" (cosmovisao) propriamente umbandista é apopulagao negra banto-descendente (4), e levando-se em conta o fato de que paratal populagao a memoria coletiva mais marcante históricamente e fundanteidentitariamente é a da experiencia social da escravidao - seus ancestrais porexcelencia sendo homens e mulheres arrastados da África para como escravosfazerem funcionar a máquina produtiva baseada no modelo económico do grandelatifundio de exportagao - nao fica difícil compreender a importancia e acentralidade adquiridas pelos pretos-velhos no seio da religiosidade umbandista.Entretanto, da mesma forma que a presenga e o culto aos pretos-velhos jamáisesteve exclusivamente circunscrito ao contexto umbandista, embora ai tenha sedestacado, processos de sacralizagao e culto de negros escravizados nem mesmoficaram restritos no Brasil apenas á figura dos pretos-velhos, como bemdemonstram Souza (2001; 2007) e Augras (2009) em suas minuciosasinvestigagóes acerca da "invengao" imaginaria e do culto á Escrava Anastácia, queganhou visibilidade no Rio de Janeiro no inicio dos anos 1970 e expandiu-se de talforma que em meados dos anos 1980 desencadeou até mesmo um ampio"movimento pró-canonizagao de Anastácia" (Augras, 2009, p. 101).Embora o culto a Anastácia tenha em varios momentos, e sobretudo em contextoumbandista, previsivelmente se sobreposto ao culto aos pretos-velhos - vide amarcante presenga de pretas-velhas de nome Anastácia relatadas na literatura(Hale, 1997) - ele surgiu e se desenvolveu de maneira notadamente diferente(Souza, 2001; 2007; Augras, 2009), podendo ser considerado um outro exemploda importancia do escravo negro como imagem atuante na memoria coletiva degrande parte da populagao brasileira.

De fato, seja no caso da Escrava Anastácia, seja no dos pretos-velhos, seja emcontexto umbandista, seja em quaisquer outros contextos, a assertiva é correta,fundamental e inescapável: trata-se, em última análise, de rememoragao coletivada experiencia histórica da escravidao, consubstanciada na forma de "espiritasescravos" (ancestrais) de origem africana e afro-brasileira, e de suas respectivashistorias de vida, trajetórias e legados existenciais; homens e mulheres negros que,antes de morrerem e retornarem sacralizados para intervirem no mundo de seusdescendentes vivos (o nosso mundo), efetivamente trabalharam, suaram,sofreram, sangraram, rezaram, lutaram, curaram, aprenderam, se revoltaram,enfeitigaram, sonharam, viveram.Conforme afirma Trindade (2000):

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Ñas narrativas sobre os pretos-velhos estaosituados os quadros sociais de referencia em quese constrói a memoria coletiva do negro. Asestruturas dessas narrativas sao homologas asencontradas na construgáo da memoria, ambasoperam segundo o processo de bricolagem, derecombinagoes de elementos extraídos da historiavivida. A organizagáo de seus elementos disparesnao se constituí como justaposigoes combinatoriassem um projeto anteriormente definido. Mas,conforme já visto, há nessa construgáoorganizatória o sentido da representagáo ereflexao de urna situagáo escravocrata. Fundadana transmissáo oral e ritual dos mitos, se instauraa reflexao sobre a historia vivida (p. 160).

E completa, articulando o sentido pragmático dessa "reflexao sobre a historiavivida" ñas experiencias concretas dos adeptos do culto aos pretos-velhos:

As narrativas míticas configuradas na memoriasocial da escravidao formam esquemassignificativos para a compreensáo e interpretagáodas necessidades, interesse e expectativas dosnegros na atualidade. Nesse sentido, o míticoadquire a intengáo da historia conduzindo areflexao sobre um tempo reconstruido ñaslembrangas que encontra seu significado ñasexperiencias cotidianas do presente. "Aescravidao ainda existe", dizem os depoentes e aliberdade, por meio da luta ou obtida com oauxilio da intervengáo divina, é um continuoprincipio de esperanga, que se renova naevocagáo do passado (Trindade, 2000, p. 162).

Inversamente, pode-se dizer que a memoria coletiva do negro (na dupla acepgáoda expressáo) constrói-se ininterruptamente, articulando-se em sempre renovadasmontagens no interior e desde quadros sociais de referencia que estáo situados ñassuas narrativas, sendo o preto-velho - no contexto específico do sagrado - e suasconcretas manifestagoes junto ás comunidades contemporáneas que de suas"historias" fazem "uso", urna via privilegiada de acesso aos significados profundosdo "ser-negro" tal como históricamente constituidos (e constituindo-se) no ámagoda sociedade brasileira.

Os pretos-velhos na umbandaNa umbanda os pretos-velhos ocupam urna posigáo de destaque, o que pode serevidenciado a partir de urna consulta aos estudos já realizados sobre o tema, ondese constatará que sao, juntamente com os exus e os caboclos, as entidades maislargamente comentadas, discutidas e referenciadas. Entretanto, no que tange áposigáo hierárquica e á frequéncia de incorporagáo dos pretos-velhos cabemalgumas ressalvas, em alguma medida sempre necessárias quando se afirmacategóricamente algo como genéricamente válido em relagáo á umbanda.Negráo (1996) embora reconhega, a partir de seu trabalho de campo e do vastolevantamento documental que fez sobre a umbanda paulista, o preto-velho comourna das mais tradicionais categorías espirituais, e como o segundo "guia" maisfrequente nos terreiros (logo atrás do caboclo), afirma que após um período depredominancia e destaque nos primordios da umbanda (décadas de 1930 e 1940)os pretos-velhos comegaram sistemáticamente a perder terreno:

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Predominantes ñas denominagoes [de terreiros]das décadas de 30 e 40, os Pretos Velhosperderam terreno na década de 50 para osCaboclos e, embora atualmente disputem com osBaianos o segundo lugar, estáo longe de teremdesaparecido, conforme supoe recente estudo (p.203).

Negrao (1996) faz referencia ao fato de que ao inaugurar um novo terreiro osumbandistas com frequéncia o batizam com o nome do espirito principal (o chefe-de-cabega) de seu pai-de-santo, líder espiritual da recém-aberta casa religiosa. Oautor utilizou-se de um ampio levantamento dos nomes de terreiros registradosoficialmente ao longo das décadas como parámetro para suas reflexoes acerca daimportancia dada pelos umbandistas a cada urna das categorías espirituais quecompoem seu panteao.O "recente estudo" referido por Negrao (1996) é o de Brumana e Martínez (1991),que traz as mais destoantes afirmagoes sobre os pretos-velhos encontradas emtoda a literatura. Em meio as suas reflexoes e análises do conjunto do panteaoumbandista, e após terem proposto um esquema classificatório das categorías queo compoem - A. Sardónico-marginal: exu, pomba-gira; B. Sério-legal: caboclo,ogum, boiadeiro; e C. Jocoso-familiar: baiano, marujo, changa (pp. 282-285) - osautores afirmam que

entre o panteao tal como se apresenta de forma"ideal" e o sistema a ele subjacente, de acordócom nossa análise, existe um desajuste. Urnafigura, a do preto velho, nao correspondetotalmente a nenhum dos vértices de nossotriangulo; seu lugar se desloca de formaindeterminada entre o polo "serio" e o "jocoso".Essa defasagem nao compromete nossosresultados; pelo contrario, talvez seja justamenteo que os confirma. Preto velho é o Orixá que maisraramente baixa na térra; em alguns terreiros eleo faz apenas urna vez por ano, no dia de suafesta. Por tras das explicagoes que alguns agentesdáo para esse fato (o desgaste físico que suaincorporagáo acarreta para o "cávalo", como se aspiruetas das changas ou o retorcí mentó do Exunao fossem táo ou mais trabalhosos) descobre-seurna razáo mais convincente para tal anomalía: opreto velho é um "desviante" do sistema, suapresenga na térra nao serve para expressar o queo culto elabora simbólicamente (p. 290).

A esse respeito, Negrao (1996) nao poupa críticas aos autores:Apesar dos muitos méritos do trabalho, talvez amais penetrante análise etnológica já feita sobre aUmbanda... suas análises relativas ao tradicionalPreto Velho deixam a desejar.... Veremos que osPretos Velhos representam sempre a serenidade ea paz, ao mesmo tempo em que sao espíritosfamiliares, tratados frequentemente por vó, vó,pal, mae, porém nada jocosos. Para seremincorporados ao esquema, o mesmo teria de sermodificado, pois o implodiria em sua lógicaternaria. Talvez seja este o seu caráter"desviante". A ausencia do Preto Velho nos

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esquemas interpretativos dos autores, naoobstante presente nos terreiros, evidencia urnafalha metodológica do trabalho: seu suporteempírico insuficiente. Esta falha nao seria taogritante, nao reivindicassem eles auniversalizagao de suas conclusoes, queacreditam válidas para toda a Umbanda (p. 34).

Além de contundente exemplo da ampia diversidade existente no interior daumbanda, e consequentemente um alerta aos pesquisadores em favor demanterem-se rigorosos e despretensiosos no que tange á universalidade de suasanálises e conclusoes, as afirmagoes de Brumana e Martínez (1991) obrigam aconsiderar, em desacordó com o que afirmam os demais autores da literaturacientífica, que também em relagao aos pretos-velhos os umbandistas (ou ao menosparte deles) parecem ter suas "ressalvas".Ou talvez nao, já que parece ter escapado a Brumana e Martínez (1991) o fato deque na umbanda nem sempre "frequéncia" significa prestigio e influencia, urna vezque nao é incomum acontecer de as entidades tidas como as mais importantes oupoderosas serem também as mais veladas e discretas, apresentando-se apenas emocasioes especiáis ou potencialmente problemáticas, como demonstram Trindade(1985) e Augras (2009) em seus trabalhos acerca das enigmáticas figuras dos exuse do Zé Pelintra.Alias, parece interessante ponderar que pelo avesso Brumana e Martínez (1991)nao deixaram de dar aos pretos-velhos um lugar de grande destaque. Afinal, ser oúnico "desviante" significa indubitavelmente conter algo em si de naturezaexclusiva e deveras especial. Tudo indica que Brumana e Martínez (1991) meio queinadvertidamente e á sua revelia tenham captado a importancia e o destaque dospretos-velhos exatamente em sua explicitada dimensao de propalada "ausencia".No que tange enfim á afirmagao de serem os pretos-velhos urna das entidades maislargamente comentadas e referidas na literatura académica parece nao haverquaisquer ressalvas a serem feitas. De fato, ao contrario do que acontece commuitas categorías espirituais, sobretudo aquelas tidas como de aparecimento maisrecente, que sao muitas vezes ignoradas ou simplesmente desconhecidas poralguns autores, nao há provavelmente nenhum estudo já realizado sobre aumbanda - nao importando a esse respeito sua amplitude, generalidade, recortetemático ou alcance - que nao tenha dedicado ao menos alguns parágrafos paradescrever e analisar os pretos-velhos, ou mesmo algum aspecto contingente a seuculto e sua presenga em meio ao panteao umbandista.Nao obstante as diferengas e peculiaridades de cada pesquisador na maneira deconceber o preto-velho e sua posigao no contexto mais ampio do panteao e daprópria umbanda, de modo geral em relagao as suas características salientes,significagoes e representagoes míticas existe significativo consenso: sao espíritos develhos cansados de aparéncia frágil que costumam incorporar nos terreiroscurvados e trópegos, inequívocamente negros escravizados exaustos após anos decastigos e trabalho servil.Os pretos-velhos sao tidos ainda como espíritos calmos, meigos, humildes epaternais que acolhem e apaziguam os ánimos de seus "filhos" (médiuns econsulentes), tantas vezes abalados pelas conturbagoes e reiteradas dificuldadesque pululam em meio á existencia cotidiana, de maneira solícita, pacífica,encorajadora e dedicada. Símbolos de bondade, moralidade (crista), apego aopróximo e aceitagao incondicional do trabalho e das mazelas do mundo, que elespróprios sentiram na pele serenamente ao longo de urna vida sofrida de escravidao,carregam com entusiasmo e inabalável fé e esperanga a marca da cristandade e asabedoria penosamente adquirida do respeito, da submissao, da reclusao, datolerancia, da caridade, do amor e da resiliéncia. Conforme comenta Silva (1994):

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O preto velho, quando incorporado nos médiuns,apresenta-se como o espirito de um negroescravo muito idoso que, por isso, anda todocurvado, com muita dificuldade, o que o fazpermanecer a maior parte do tempo sentado numbanquinho fumando pacientemente seu cachimbo.Esse estereotipo representa a idealizagao doescravo brasileiro que, mesmo tendo sidosubmetido aos maus tratos da escravidao, foicapaz de voltar á Terra para ajudar a todos,inclusive aos brancos, dando exemplo dehumildade e resignagao ao destino que Ihe foiimposto em vida (pp. 121-123).

Além disso, sao reconhecidos como eximios conhecedores dos poderes benéficos ecurativos da natureza, consubstanciados nos efeitos obtidos por meio da utilizagaode ervas e plantas as mais diversas, que em seu conjunto constituem os recursosdaquilo que se costuma chamar de "medicina popular". Porém, sao tidos como osgrandes especialistas em cura na umbanda nao apenas pelos seus conhecimentosde "farmacología natural e popular", mas ácima de tudo pelos seus grandespoderes de manipulagao mágica expressos tanto em termos do recurso a rezas ebenzegoes ("passes"), como da utilizagao das mais diversas receitas eprocedimentos de feitigaria ("mandingas").Cabe destacar que esse potencial curativo de forma alguma é restrito na umbandaao trabalho dos pretos-velhos. Na verdade, todas as entidades do panteao, urnasde maneira mais explícita e alardeada e outras menos, realizam curas quandosolicitadas, existindo ainda tipos de cura que sao tomados como especialidade deurna determinada categoría espiritual. Entretanto, a prerrogativa da cura nuncadeixa de ser associada enfáticamente aos pretos-velhos, sendo esta urna dasprincipáis qualidades a eles atribuidas ñas apreciagoes dos pesquisadores.

Outros pretos-velhos: nuances ambiguas e intersecoes na trama simbólicaumbandistaComo a magia pode ter diversos usos e aplicagoes, é justamente pela via daatribuigao de ampios conhecimentos e poderes mágicos que os pretos-velhos setornam portadores da fama de serem habéis feiticeiros (ou "mandingueiros"), pontode partida no qual se funda e a partir do qual se irradia pleno de ambiguidade outrouniverso simbólico também consubstanciado no interior da categoría espiritualpreto-velho.Atinada com a concepgao antropológica de magia como recurso simbólico demanipulagao da natureza fundamentalmente alheio, quando nao completamenteavesso, a disposigoes moráis (ao menos tal como articuladas a partir de urna lógicaocidental), tal ambiguidade está no cerne da distingao histórica entre magia branca(executada para o "bem") e magia negra (executada para fins "maléficos"), que nofundo apenas classifica o direcionamento e o objetivo da instrumentagao do podermágico em termos da moralidade (de alguém).Portanto, se a magia dos pretos-velhos certamente cura, se presta a caridade, aosocorro das pessoas que os procuram nos terreiros de umbanda queixando-se dasmais diversas desordens (Montero, 1985), nao é apenas isso que ela faz ou podepotencialmente fazer. Nesse ponto, para avangar nos desdobramentos acerca dopreto-velho e chegar ao sentido pleno de sua ambiguidade é preciso reencontrar-semais urna vez com a historia brasileira tal como se apresenta na memoria coletivaconsubstanciada pelo imaginario popular, ou em outros termos, com a dimensaofundamental dos pretos-velhos enquanto espíritos de negros escravizados.Nao é necessário um mergulho muito profundo na historia do Brasil para seconstatar que nem todos os negros trazidos da África para trabalharem como

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escravos correspondem ao modelo hegemónico de caracterizagao dos pretos-velhos. Longe de terem sido indefesos e homogéneamente obedientes e submissosem relagao ao trabalho servil e á condigao desagregadora da escravidao, muitosnegros se rebelaram, fugiram de seus senhores e lutaram firmemente por liberdadee autonomía, seja através da guerra (concreta) pelas armas, seja através da guerra(simbólica) pela feitigaria.No que diz respeito á guerra pelas armas, articularam fugas, revoltas e ataques quecom intensidade variável constituíram urna ameaga as liderangas políticas e aosproprietários de escravos em varios momentos e lugares ao longo de todo o períodoescravocrata brasileiro. Formaram comunidades organizadas, recriando hierarquiassociais e modelos culturáis oriundos de sua referencia africana (Lopes, 2006). Taiscomunidades, conhecidas como quilombos, existiram em grande númeroespalhadas por todo o país (Moura, 1981).No que tange á guerra "simbólica", muito mais velada e sorrateira, utilizaramsecretamente (longe das vistas do senhor e de sua familia, frequentemente asvítimas potenciáis) conhecimentos ancestrais trazidos de suas térras nataisafricanas em rituais de feitigaria realizados seja ñas senzalas das grandes fazendasde monoculturas agrícolas de exportagao (mundo rural), seja em meio as confrariase irmandades de negros radicadas ñas cidades (mundo urbano). Taisprocedimentos rituais visavam quase sempre impingir aos "brancos opressores"maleficios e mazelas dos mais variados tipos (inclusive, em casos radicáis, a mortee a perda de entes queridos), motivados por sentimentos de revolta e vinganga quebrotavam no seio das comunidades escravas, ou ao menos em alguns de seusmembros (Bastide, 1971).Nesse sentido, seria lícito conjeturar que memorias coletivas de rebeldía einsurgéncia associadas á escravidao - representadas épicamente em narrativasheroicas acerca dos quilombos e de seus líderes, amplamente apropriadas edifundidas como modelos idealizados no interior da retórica ideológica de algumasvertentes do movimento negro - fagam parte do imaginario popular e religiosoafro-brasileiro tanto quanto as memorias de escravos pacientes e submissos, apartir de processo similar de sacralizagao de vivencias históricas.Ortiz (1991) em "A morte branca do feiticeiro negro" afirma que se houve um dia orebelde quilombola ele teria se perdido no imaginario religioso. Urna vez que aumbanda desde seu surgimento tem vivido sob a pressao de urna corrente deintelectuais que buscam sua legitimagao social através da unificagao e doutrinagaode seus ritos e mitos, Ortiz argumenta que essa corrente, representadasobremaneira pelas federagoes umbandistas, teria sido responsável ao longo dasdécadas pelo suposto "eclipsamento" dessa parte da memoria coletiva relativa áescravidao.Na verdade Ortiz (1991) parece ter se precipitado, pois apesar de menos evidentesnos terreiros onde sao cultuados e de serem consideravelmente menos referidos noconjunto da literatura científica - e de maneira bem menos pormenorizada,certamente nao por acaso, mas por razoes similares áquelas que dificultaram oacesso de urna pesquisadora experiente como Monique Augras (2009) ao universodo Zé Pelintra - tais memorias coletivas consubstanciam-se na umbanda na formade espíritos que se auto referem como quilombolas, fugitivos e feiticeiros, mas quenegros escravizados que sao apresentam-se e sao reconhecidos como pretos-velhos.Entretanto, é impossível desconsiderar que tal faceta rebelde dos pretos-velhosseja nao apenas menos evidente, mas possivelmente, e simplesmente, tambémmenos presente no universo umbandista. Cabe assim um questionamento acercadas causas que poderiam ter levado a isso, já que nao há razoes para se supor quedeterminada faceta da memoria coletiva da escravidao tenha a principio seenraizado no imaginario mais fortemente do que outra.

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Urna resposta a essa questao pode estar no argumento de Ortiz (1991), cujoequívoco teria sido únicamente superestimar os potenciáis poderes"embranquecedores" da doutrinagao dos intelectuais umbandistas. Outra forma deabordar a questao é pela suposigao de que com o tempo tais pretos-velhosrevoltosos tenham em muitos lugares se (con)fundido com os exus, perdendo suaespecificidade numa especie de "amalgama simbólica" que condensou num únicopersonagem toda a referencia aos aspectos, por assim dizer, "agressivos" e"ressentidos" que compunham a memoria coletiva da populagao afro-brasileira. Talsuposigao parece verossímil tendo em vista que muitos pesquisadores cometeramem seus estudos fusoes (e confusoes) semelhantes.Seja como for, dentre as referencias existentes a essa outra faceta do preto-velho,geralmente vagas e pontuais, destaca-se o estudo de Lapassade e Luz (1972). Osautores categóricamente relatam a existencia de entidades que configurariam urnaespecie de subtipo "insurgente" de preto-velho, as quais denominam "pretos velhosquimbandeiros":

Exu nao é o mestre único e absoluto do terreirode Quimbanda, mas é ele que encontramos maisfrequentemente, é o mais conhecido e popularcom suas mulheres Pomba-Gira e Maria Padilha.Existe ainda na Quimbanda entao, os "caboclosquimbandeiros" e também os "pretos velhosquimbandeiros". Se os Exus representam osheróis da revolta Palmarina esses indios e essesescravos foram aqueles que lutavam lado a ladopelo Quilombo, os primeiros ñas matas, ossegundos na senzala, incentivando e apoiando ainsurreigao (pp. XVI-XVII).

Lapassade e Luz (1972) nao esclarecem se o uso dessa terminología adjetivada éintrínseco ou nao aos dados obtidos por eles em campo, ou seja, se os própriosumbandistas interlocutores da pesquisa utilizavam-se de tal "subclassificagao". Ébastante provável que nao, tendo sido essa nomenclatura criada pelos autores paramarcar o lugar que estas entidades "quimbandeiras" ocupariam dentro do supostoconfuto entre umbanda - segundo os autores desmembramento religiosoconformado á moral e aos bons costumes dominantes - e quimbanda ou macumba- face mágica e contestadora que contaría a historia da luta de libertagao presentena memoria coletiva das carnadas populares - cujas entidades (exus, pombagiras,"pretos velhos quimbandeiros" e "caboclos quimbandeiros") e práticas rituaisseriam "símbolos de urna proposigao libertaria", de urna especie de contraculturade libertagao constantemente vítima de tentativas de repressao por parte dasociedade dominante.Apesar de polémico em suas conclusoes, e descuidado e reducionista em sua linhaargumentativa, o estudo tem o mérito de entrar a fundo numa outra faceta dareligiosidade popular e mostrar que o fenómeno da possessao umbandistaconsubstanciado no vastíssimo imaginario social brasileiro pode ser mais complexoe variado do que se supunha.Diana Brown (1994) é outra autora a confirmar de forma inequívoca a existencia detais espíritos, associando-os diretamente as figuras históricas dos escravos negrosfugitivos, revoltosos e feiticeiros, e aos exus:

Exús have another form of identity, however,through which they often exercise their black arts.Exú may be "crossed" (5) with a Preto Velho. Hemay thus regain an African identity, which goesfar in suggesting the degree to which, as a simpleExú, he has lost it. An Exú crossed with a PretoVelho, one of the most potent figures in

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Quimbanda, represents a figure familiar inBrazilian history and literature: the evil or amoralslave, the feiticeiro (África n sorcerer). Ashistorical figures, sorcerers were active inopposing individual masters and in fomentingslave revolts. They were greatly feared byslaveowners and represented symbols ofresistance to the slave regime (p. 75).

Outro autor que merece destaque, dada sua enorme relevancia no quadro dosestudos afro-brasileiros (6), em relagao á referencia que faz acerca da existencia deespíritos "quilombolas" é Bastide (1971), que discorrendo sobre questoes deconflitos raciais no Brasil e em outros países escravagistas vai afirmar que "asociedade branca também criou, para se defender e se justificar da escravidao, doistipos de negros: o 'negro bom' (Pai Joao) (7) e o 'negro mau'" (p. 437). SegundoBastide, inspirando-se nesses modelos

o espiritismo, com efeito, distingue duas especiesde espíritos africanos: os negros maus, que sódescem para fazer o mal, trazer a doenga, adesgraga e a discordia aqui embaixo e que omédium deve expulsar depois de um pequeñodiscurso de moral para os fazer voltarem amelhores sentimentos; e, em segundo lugar, osnegros bons, que só descem ante a perspectiva depoderem fazer um pouco de bem á humanidadesofredora. Ora, que é o negro mau senao aimagem do negro quilombola, do negro criminoso,enquanto o bom negro, personificado em Pai Joao,representa o escravo conformado, submisso - ou,como se diz nos Estados Unidos, o negro que, emvez de reivindicar, conhece seu lugar, como umanimal doméstico. Pai Joao é o velho africano, decábelos que já embranqueceram, que contahistorias do "tempo em que os animáis falavam",que canta para os filhos do senhor branco antigáscangoes dolentes, que leva surras mas retribuí omal com o bem, devotado, sempre pronto aosmaiores sacrificios (p. 437).

E concluí, salientando um aspecto que, se por um lado nao pode deixar de serconsiderado como também tendo desempenhado seu papel na conformagao daumbanda e de seu panteao, por outro, tomado no sentido enfático e determinantedado por Bastide (1971), comprometido que está com urna apreciagao sociológicado fenómeno, nao deixa de suscitar ressalvas:

É na medida em que o negro se amoldava a essaimagem preestabelecida, que ele podia assegurar-se do afeto condescendente do seu senhor; o mitoserviu a um tempo para tornar a escravidao maissuave e o africano mais submisso. Hoje é curiosoverificar que o homem de cor, em vez de serevoltar contra esse estereotipo, o aceita por suaprópria conta.... Pois bem: malgrado isso, opreconceito de cor nao deixou de se introduzir noespiritismo brasileiro (p. 438).

Como se vé, Bastide (1971) concebe o preto-velho umbandista em última instanciacomo produto da opressao racial históricamente sofrida pelos negros, ou melhordizendo, dos efeitos culturáis oriundos desse processo (a aculturagao),

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coerentemente com sua visao abrangente da umbanda como "cultura africanadegenerada", desvio individualizante e degradagao mágica no interior do conjuntodos cultos afro-brasileiros.Embora reconhega a experiencia histórica dos negros como referencia para aconstrugao de seus guias espirituais, Bastide (1971) vislumbra tal recurso por umprisma de negatividade, como mero mecanismo de manipulagao ideológica donegro (tomado como espectador passivo) cujo resultado nao poderia ser outro quenao o seu "enquadramento" em um modelo palatável ao seu papel de subalternofrente as classes brancas dominantes, á custa da sistemática perda de suaidentidade africana.Contudo, é importante notar que em momento algum Bastide (1971) faz quaisquerreferencias a pretos-velhos ao falar de "espíritos africanos", "bons" ou "maus".Entretanto, mesmo sem ter-se utilizado da nomenclatura propriamente religiosa,para qualquer pessoa familiarizada com a umbanda e seu panteao é absolutamenteinescapável a conclusao de que ao falar de "espíritos africanos bons" Bastide estáse referindo aos afamados pretos-velhos.Por outro lado, a conclusao de que ao falar em "espíritos africanos maus",inspirados ñas imagens de "negros quilombolas", Bastide (1971) está se referindoáquilo que Lapassade e Luz (1972) chamaram de "pretos velhos quimbandeiros",ou mesmo simplesmente a urna faceta "de esquerda" contida em alguns pretos-velhos, por assim dizer, "desviantes", nao é nem um pouco obvia. De fato, parecemuito mais provável que Bastide ao evocar esses espíritos negros de "moralduvidosa" está na verdade referindo-se a outra categoría espiritual muito conhecidado panteao umbandista, a saber, os "senhores da esquerda", os exus.Na realidade, tal ambiguidade latente no texto de Bastide (1971) de forma algumadeve ser tomada apenas no sentido de urna falta de precisao e minucia do autor (8)(o que certamente também é), mas pelo simples fato de manifestar-se já denota,como também atesta Brown (1994), que entre pretos-velhos e exus parece existiralgum tipo de aproximagao associativa fundamental, ligagao estrutural de base quepermite que em certos contextos possam ser confundidos e tomados como parte oumanifestagao de um mesmo fenómeno, nao obstante em outros possam sertomados como manifestagoes inteiramente diferentes no conjunto da cosmologíareligiosa.E de fato tal elo associativo entre exus e pretos-velhos nao passou despercebido aoutros autores que se prestaram a investigar a espiritualidade umbandista peloprisma da configuragao específica de seu panteao, sendo, certamente nao poracaso, enfatizada sobretudo por aqueles que tentaram compreendé-la a partir dadinámica concreta das relagoes raciais (Bastide, 1971; Montero, 1985) ou sócio-históricas (Brown, 1994) existentes no seio da sociedade brasileira; ou que aoempreenderem análises focáis acerca do personagem exu (Trindade, 1985; Ortiz,1991) perceberam a importancia dos atributos "negro" e "africano" comocomponentes importantes de sua cara eteriza gao (9).Dessa forma, sendo os exus negros margináis e demonizados e os pretos-velhosnegros (por excelencia) velhos, submissos e domesticados, parece ser exatamenteem torno do significante identificatório "negro" que se constrói a ponte simbólicaque une esses dois universos tao próximos e ao mesmo tempo tao distintos.Ainda a respeito da importancia do elemento "negro" na constituigao de entidadesque compoem o campo do sagrado umbandista, nao vai faltar quem inclua outrascategorías nesse "circuito simbólico", como Concone (2001), que caracteriza osrelativamente recentes espíritos baianos como "negros jovens, mestigos emigrantes" (p. 292), e mesmo os tradicionais caboclos como "indios negros"(Concone, 1987, p. 27), ambos supostamente produtos do cruzamento entre ragasque marcou e ainda marca a modelagem do povo brasileiro.Para concluir a questao acerca da existencia de elementos moralmente ambiguosou "de esquerda" contidos no interior da categoría espiritual preto-velho, cabe

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constatar que outras referencias constam na literatura somando-se as já citadas.Em seu conjunto, pode-se distinguir entre as que inequívoca e diretamente sereferem aos pretos-velhos (Brown, 1994; Lapassade & Luz, 1972; Birman, 1985;Santos, 1998; Nunes-Pereira, 2006 (10); Souza, 2006 (11)), seja no quadro deurna especie de "subcategoria", seja como pretos-velhos particularizados comcaracterísticas "desviantes" do modelo "tradicional" ("cruzados" ou com estilo ecaracterísticas mais próximas dos exus), seja ainda como tragos de ambiguidadeidentificados em pretos-velhos que a urna primeira vista parecem conformar-se aoestereotipo comumente aceito; e, por outro lado, as referencias indiretas que naverdade resvalam no universo dos exus (Bastide, 1971; Montero, 1985; Hale,1997), estabelecendo entre estes e os pretos-velhos explícitas confusoes sugestivasde implícitas pontes simbólicas que permitem pensá-los de forma mais integrada,inseridos no contexto de um "complexo" mais ampio.Vale destacar, a título de ressalva, que tais referencias nao podem ser tomadas emseu conjunto como manifestagoes de um mesmo fenómeno, mas apenas comoindicios variados da existencia de ambiguidades em meio ao universo simbólico dospretos-velhos umbandistas.Afinal, é evidente que quando um pesquisador estabelece associagoes ou fazaproximagoes, implícitas ou explícitas, entre pretos-velhos e exus, isso nao podesignificar a mesma coisa que um pai-de-santo referir urna nova entidadeincorporada em seu terreiro como sendo um "preto-velho quimbandeiro"(Lapassade & Luz, 1972) ou um "preto-velho de tronqueira" (Souza, 2006).Em outras palavras, a existencia de pretos-velhos com características notadamentepróximas as dos exus, ou mesmo as dos baianos, nao tem o mesmo peso eimplicagao que a referencia explícita destas entidades como sendo "cruzadas", ouainda como compondo um tipo de subcategoria espiritual com característicaspróprias discerníveis pelos médiuns que os incorporam e pelos religiosos com osquais interagem.Portanto, nao obstante o significativo número de referencias existentes naliteratura, em grande medida meramente descritivas e desinteressadas - poucosautores levaram a cabo, e apenas incidentalmente, reais esforgos em analisá-las eteorizá-las - a verdade é que escasso conhecimento sistemático já foi produzidoacerca desses "outros pretos-velhos".Expressao de parte importante da memoria coletiva e histórica afro-brasileira, ospretos-velhos parecem guardar sentidos dispersos e ainda inexplorados emheterogeneidades consubstanciadas em construgoes imaginarias que remetem adiferentes dimensoes da escravidao (resignagao e revolta), da umbanda ("direita" e"esquerda") e da própria condigao (existencial e moral) humana.Numa religiao dinámica e criativa como a umbanda, constantemente aberta a novasmodalidades de manifestagao do sagrado, onde mesmo no interior de urnadeterminada categoría espiritual como as caboclas (Bairrao, 2003) ou os exus(Bairrao, 2002) podem-se prospectar diferentes composigoes simbólicascircunscritas em torno de subdivisoes e subtipos frequentemente reconhecidos elegitimados pelos próprios religiosos, sem dúvida vale a pena dedicar esforgos nainvestigagao de heterogeneidades e filigranas sutis acerca das particularidades navivencia do sagrado de específicos médiuns e terreiros. No que tange aos pretos-velhos a literatura parece corroborar amplamente que tal recomendagao é naoapenas válida, mas indispensável e urgente para o aprofundamento dos saberes aseu respeito.

Preto-Velho X Caboclo: paradigmas antagónicos e complementaresMuitos estudiosos da umbanda ao tentarem descrever e analisar as diferentescategorías espirituais que compoem seu panteao deram-se conta da utilidade deurna abordagem comparativa no empreendimento da tarefa. Essa forma deproceder certamente se justifica na medida em que essas categorías parecem

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compor em seu conjunto um sistema lógico, tomando sentido apenas através detramas dinámicas de relagoes (similitude, oposigáo, aproximagáo, distanciamento,combinagáo) estabelecidas urnas com as outras.Em relagáo aos pretos-velhos, nao obstante as referencias que os colocam emassociagáo e proximidade com exus, baianos e até changas (12) (Birman, 1985;Negráo, 1996), foi a categoría dos caboclos a escolhida pela maioria dospesquisadores como modelo comparativo privilegiado para se definirem ascaracterísticas fundamentáis que circunscrevem "quem sao" e "para que servem",sendo a recíproca igualmente verdadeira.Longe de ter sido meramente arbitraria, tal escolha funda-se no fato de muitospesquisadores terem visto, cada qual a seu modo, caboclos e pretos-velhos comoparadigmas que definiriam no conjunto do sistema cosmológico os eixos antitéticos(polos antagónicos) e complementares fundamentáis daquilo que a umbandaelaboraría sócio-culturalmente.Diana Brown (1994) dedicou um capítulo inteiro de seu clássico estudo sobre aumbanda á reflexáo dos pretos-velhos e dos caboclos em suas implicagoes efungoes no interior da cosmología religiosa. A autora define os pretos-velhos, emcontraste com os caboclos, da seguinte forma:

These "Oíd Blacks" are the spirits of Áfricansenslaved in Brazil, generally slaves from Bahia. Allare elderly, and they are named and addressedfamiliarly and affectionately in kin terms: Vovó(Grandmother) or Vovó (Grandfather), Tía (Aunt),and Tío (Únele), Mae (Mother), and less often, Pai(Father). They are characterized as humble,patient, long-suffering, and good. Umbandaleaders repeatedly stressed to me their humildade(humility), bondade (fhendship), and caridade(charity) and tended to characterize then assubservient. In contrast to the Caboclos, they areconsidered to be naturally endowed with humilityand extremely anxious to help humans in any waythey can. It is said that they love to exercise theirmany talents in curing and resolving familyproblems (pp. 67-68).

Em outro trecho Brown (1994) estabelece a oposigáo entre pretos-velhos ecaboclos de maneira ainda mais enfática; entretanto, salienta que longe derepresentar urna potencial fonte de confuto, tal antagonismo se funda em urnarelagáo de complementaridade:

The Pretos Velhos are polar opposites of theCaboclos: elderly, humble, patient, subservient,where the Caboclos are young and vital, arrogantand vain.... If Preto Velho symbolize thetranscendence of various forms of suffering -slavery, oppression, and illness - Caboclos mayrepresent the other face of non-European Brazil:the independence of those who never experiencedslavery, age, illness, oppression, or the yoke offoreign colonization. These two figures thuspresent complementary images: a utopian imageof youth, vigor, health, independence, pride; andthe reality of oppression, suffering, age, andinfirmity. Múltiples symbols, they lend themselvesto interpretation as emblems of literaryromanticism, nationalism, independence, heroic

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forefathers, and the transcendence of suffering(pp. 69-72).

Note-se que embora aprésente ambas as categorías como símbolos complexoscentráis na articulagao de supostos temas umbandistas fundamentáis - tais como aelaboragao de urna identidade nacional, do sofrimento e da heranga histórica eancestral brasileira - Brown (1994) nao deixa de defini-las reciprocamente,tomando-as como composigóes diametral mente inversas e, concomitantemente,complementares.Outra autora a ressaltar pretos-velhos e caboclos como elementos centráis eantagónicos do panteao umbandista é Concone (1987), que os define comorepresentagóes de dois modelos possíveis de agao disponíveis as carnadaspopulares, instrumentos de expressao e elaboragao de conflitos e tensóes sociais apartir do jogo de ambiguidades estabelecido em torno dos ideáis de "sofrimento-redengao" e "luta-liberdade":

As figuras realmente importantes na Umbandasao os Chefes espirituais e os Guias, Caboclos, osPretos Velhos, as changas e numa outra dimensaoos Exus. Com frequéncia a Umbanda é definidacomo a Religiao dos Caboclos e Pretos Velhos. Doponto de vista social esta é realmente a dimensaoque consideramos mais importante na análise daUmbanda. Quase poderíamos definir como urnaopgao popular entre dois possíveis modelos deagao: o Caboclo, que é o indio (embora como jávimos seja também negro), é altaneiro, viril,valente, lutador.... O Preto Velho é consideradoum "espirito de muita luz", porque muito sofrido.É humilde, compreensivo, está sempre pronto aajudar.... se apresenta curvado, fala urnaalgaravia (quase sempre necessita de tradutor)que se considera como sendo "angolano" ou"africano" de modo geral. Chama todos de "meufio"; sua danga é calma. Fuma cachimbo e usabastao para se apoiar (pp. 141-142)

Em trabalho mais recente com o sugestivo título "Caboclos e Pretos-Velhos daUmbanda", Concone (2001) retoma o tema de maneira mais pormenorizada,concebendo de partida pretos-velhos e caboclos como figuras-chave da cosmologíaumbandista e da identidade nacional:

Parece inegável que as figuras-chave (tipos depersonagens) sao os caboclos e pretos-velhos, deum lado, e os exus e pombagiras, de outro.Gostaríamos de sugerir, como hipótese, que osdemais tipos (ou pelo menos muitos deles) serelacionam aos principáis como desdobramentosdesses (pp. 282-283).

Na tentativa de dar conta da dialética sutil interna ao campo umbandista emrelagao áquilo que ele supostamente elabora socialmente, Concone (2001)estabelece um ampio quadro comparativo dos atributos e características dessasduas categorías de entidades, dentre os quais se destacam os seguintes pares deoposigóes: (preto-velho/caboclo); velhice/juventude; fragilidade/forga;bondade/justiga; autoridade familiar/chefia; calma/agitagao-movimento;escravidao/liberdade; trabalho/nao trabalho; símbolo rural/símbolo da mata(natureza); humildade/arrogáncia; "chstianismo"/"paganismo"; posturacurvada/postura ereta; movimentos lentos/movimentos rápidos; movimentoscontidos, para dentro/movimentos abertos, para fora; uso de bengala/figuragao de

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arco e flecha; fumam cachimbo/fumam charuto; silenciosos/barulhentos; fisionomíacalma/fisionomia tensa (pp. 286-289).Concone (2001) concluí discorrendo acerca da importancia dos pretos-velhos ecaboclos enquanto "símbolos da brasilidade" capazes de elaborar sentidos sociais esimbolizar movimentos sociológicamente significativos no ámbito da sociedadecontemporánea, emergindo como matrizes fundamentáis que recolocam a questáodas origens e raízes da identidade nacional.Birman (1985) é outra autora a salientar o papel decisivo desempenhado porpretos-velhos e caboclos, juntamente com criangas e exus, naquilo que a umbandasupostamente apresenta e elabora diacríticamente. Partindo da apreciagáo dascaracterísticas, formas de manifestagáo e fungoes religiosas dessas quatro classesde espíritos, Birman (1985) propoe um esquema de classificagáo e organizagáo dopanteáo umbandista embasado em tres eixos, cada qual correspondendo a umdistinto dominio da experiencia humana e a urna específica entidade, com seusrespectivos atributos:

O conjunto assim formado se ordena, pois, pelainteragáo de tres dominios básicos: a natureza, omundo civilizado representado pelo espagofamiliar e doméstico e o muño marginal situadono espago da rúa e áreas periféricas. E os tresdominios sao organizados de acordó com algumasoposigoes; retomemos o quadro inicial: [1]Natureza (caboclos): selvagens, orgulhosos,independentes do homem branco; [2] Mundocivilizado (pretos-velhos/changas): domesticados,humildes (escravos), irreverentes (criangas),dependentes do homem branco; [3] Mundomarginal (exus): avessos á ordem,desobedientes, margináis (p. 44).

Assim, no quadro de seu esquema classificatório, Birman (1985) apresenta ospretos-velhos da seguinte forma:

Em oposigáo aos seres da natureza, os caboclos,temos os pretos-velhos, associados, juntamentecom as criangas do astral, ao dominio dacivilizagáo. Os pretos-velhos se apresentam nocorpo dos médiuns como figuras de velhos,curvados pelo peso da idade, falando errado,pitando um cachimbo, bebendo vinho numa cuia,numa imagem que pretende retratar fielmente oex-escravo africano das senzalas brasileiras doséculo passado. A elaboragáo deste tipo fazsobressair com vigor a condigáo de pretos eescravos. Por vezes, ouvimos nos terreirosreferencias aos pretos-velhos como grandesfeiticeiros (...). A essa feigáo intimidanteassociada á magia negra se contrapoem asqualidades que mais se destacam nesse tipo: ospretos-velhos sao vistos como bondosos,humildes, generosos e paternais (...). Opredominio dessas qualidades afetivas naconstrugáo dos pretos-velhos como personagensda umbanda se dá pelo fato de serem elespensados como elementos subordinados(escravos) numa área em que a nossa sociedadeos coloca como predominantes das relagoes

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afetivas e de parentesco - a área doméstica.Assim, apesar de grandes feiticeiros, os pretos-velhos sao aqueles que foram vencidos pelo afetoe sentimentos paternais, estabelecendo com seussenhores urna relagáo de lealdade, como humildesservidores da casa-grande (pp. 40-41).

Concebido a partir de um modelo esquemático comparativo, o preto-velho édestacado por Birman (1985), em contraste com o exu e com o caboclo, comorepresentagáo da dimensáo "doméstica" da vida humana - em sentido ampio, naoapenas em termos dos vínculos familiares de cuidado e afeto, mas também daquiloque fundamenta e torna possível o processo civilizatório, ou seja, a solidahedadeentre os homens e o imperativo da ordem social. Por outro lado, permanecematrelados a urna condigáo de subalternidade e subserviéncia enquanto ex-escravosde origem africana dotados de qualidades afetivas capazes de obliterar suas feigoesintimidantes associadas ao poder da feitigaha.Embora demasiadamente comprometida com urna concepgao da umbandaenquanto culto de inversáo social, Birman (1985) oferece, por meio de seu sistemaclassificatório e das análises que faz do preto-velho, subsidios para se pensar deforma mais integrada e orgánica algumas nuances importantes acerca dessacategoría espiritual que se nao passaram despercebidas a outros autores, foramabordadas de forma superficial ou pouco sistemática.No que tange ainda ao preto-velho enquanto representagáo do mundo civilizado,Lima (1997), partindo de um enfoque teórico-metodológico bastante particular nocampo dos estudos afro-brasileiros (denominado de "Metapsicanálise"), propoe umesquema "funcional-psicológico" de classificagáo e organizagáo do panteáoumbandista (13), em que define os pretos-velhos como entidades inequívocamenteligadas a fungóes "disciplinadoras".Como portadores e guardióes dos imperativos da ordem e da disciplina, os pretos-velhos atuariam junto aos seus devotos através de aconselhamentos, orientagóese, quando necessário, repreensóes e censuras, exercendo urna autoridade"paternal" moralmente atinada, sem, no entanto, jamáis incorrerem em urnapostura repressiva, autoritaria ou arrogante:

A agáo disciplinadora dos pretos-velhos e dasvovós se exerce de modo muito mais sutil,principalmente num sentido mais ampio dadisciplina, orientando e aconselhando seusconsulentes. É de se ressaltar que a característicado tratamento que essas entidades dáo áspessoas é urna grande delicadeza, meiguice,tolerancia e simpatía. Há urna tónica efetivapaternalista que envolve o consulente num climade familiaridade, deixando-o totalmentedescontraído para que possa abrir o coragáo eexpor com sinceridade os problemas que oafligem (Lima, 1997, p. 138).

Finalmente, Ortiz (1991) empenhou-se em analisar o panteáo umbandista e asentidades que o compoem partindo de urna abordagem conjuntural atinente aosaspectos mais gerais da sua concepgao acerca da umbanda enquanto fenómenosocial. Na mesma diregáo de outros pesquisadores, Ortiz define pretos-velhos,caboclos, exus e changas como as categorías fundamentáis do "complexo"espiritual da umbanda:

Em principio existem quatro géneros de espíritosque compoem o panteáo umbandista; podemosagrupá-los em duas categorías: a) espíritos deluz: caboclos, pretos-velhos e changas - eles

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formam o que certos umbandistas chamam de"triángulo da Umbanda"; b) espíritos das trevas -os exus. Esta divisao corresponde á concepgaocrista que estabelece urna dicotomía entre o beme o mal; enquanto os espíritos de luz trabalhamúnicamente para o bem, os exus, em suaambivalencia, podem realizar tanto o bem quantoo mal, mas representam sobretudo a dimensaodas trevas (p. 71).

Embora aprésente em seu esquema classificatório pretos-velhos e caboclos comopartes de um mesmo eixo "de luz" (correspondente á "direita" umbandista) emoposigao aos "trevosos" exus, Ortiz (1991) estabelece ainda urna divisaofundamental entre ambos, diretamente relacionada e representativa dos processosque segundo o autor definem a dinámica intrínseca á umbanda desde sua formagaoe ao longo de todo seu desenvolvimento no ámbito da sociedade brasileira; asaber, como explícita o título de seu trabalho, a morte branca (aculturagaobrasileira) do feiticeiro negro (raiz africana):

Com a parte brasileira dominando assim a parteafricana, pode-se observar urna oposigao nítidaentre o comportamento valoroso dos caboclos e ahumildade dos pretos-velhos. O mimetismo dotranse traduz fielmente esta superioridade docaboclo em relagao ao preto-velho. Enquanto osespíritos fortes e arrogantes dos indígenas semanifestam sempre de pé, o involucro materialque envolve o transe dos pretos-velhos os obrigaa se curvarem em diregao ao solo, como se fosseai seu verdadeiro lugar.... Foi a historia brasileira,isto é, a historia escrita pelos historiadores queestabeleceu a idéia de superioridade do indiosobre o negro, pois atribuiu-se somente aosindígenas a aptidao de se revoltarem contra aescravidao dos brancos. Desse modo, enquanto oindio é visto como aquele que se revolta contra aforma de trabalho escravo, ao negro se associa oestereotipo da aceitagao passiva do sistemaescravocrata.... Ao mau trato que o senhor deengenho Ihe inflige ele deve responder pelacompreensao e pelo amor: gragas a esta maliciados fracos ele se vé recompensado pelo SenhorDeus (pp. 73-74).

Como se vé, Ortiz (1991) concebe os pretos-velhos em urna posigao deinferioridade em relagao aos caboclos, tal hierarquizagao sendo tomada como parteda sistemática desvalorizagao dos elementos propriamente negros e africanos dareligiao em detrimento de valores mais compatíveis com a moral dos gruposdominantes e com seus ideáis de brasilidade, no quadro abrangente dos esforgosempreendidos pelos umbandistas em busca de afirmagao e legitimagao junto ásociedade abrangente.Entretanto, tal concepgao parece ser justificável apenas se circunscrita á umbandatal como pensada pelo movimento federativo e pelos intelectuais de classe mediainteressados em seu "embranquecimento". E de fato, as análises de Ortiz (1991)parecem em muitos momentos focarem-se demasiadamente na literaturaumbandista produzida por tais intelectuais, tomando tal dimensao letrada edoutrinária da religiao como representativa de seu todo, o que, como demonstrouNegrao (1996), configura um grande equívoco.

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Assim, apesar do mérito de ter se dado conta da importancia do preto-velhoenquanto categoría de celebragao e elaboragao da negritude, do sofrimento(recompensador) e da velhice - sugerindo um esquema baseado no ciclo vital emque concebe ainda os caboclos como representantes da fase adulta e as changasespirituais como representantes da infancia - as análises de Ortiz (1991) deixam adesejar, ao menos no que tange aos muitos terreiros que pouca ou nenhumainfluencia recebem das produgoes literarias e do movimento federativo umbandista.Pelas mesmas razoes Ortiz (1991) também comete o já referido engaño de afirmarprecipitadamente que

na Umbanda nao há lugar para os negrosquilombolas que se insurgiram contra o regimeescravocrata; como a memoria coletivaumbandista coincide com os valores dominantesda sociedade brasileira, ela somente conserva oselementos que estao em harmonía com estamesma sociedade (p. 74).

A esse respeito, cabe ainda a ressalva de que Ortiz (1991) investigou a umbandaenquanto fenómeno intrínsecamente urbano, supostamente surgido no ámbito dosprocessos de industrializagao e modernizagao das grandes metrópoles brasileiras doSudeste. Entretanto, tem-se sugerido nos últimos anos que a conformagao depersonagens quilombolas e feiticeiros no interior da linha dos pretos-velhos pareceter ocorrido principalmente em meio a ambientes rurais (Souza, 2006).Em suma, parece evidente, por um lado, que a apreciagao do preto-velho pela viade urna abordagem comparativa, sobretudo no que tange ao contraste com oscaboclos, possibilitou a produgao de novos saberes acerca de sua posigao nocontexto do panteao umbandista, e de seu sentido e fungao no ámbito da religiaocomo um todo. Mas, por outro lado, é também inegável que tais contribuigoesdeixam a desejar no que se refere á consolidagao de um conhecimento aprofundadoe refinado sobre o preto-velho enquanto fenómeno em si mesmo.Isso se deve, ao menos em parte, as pretensoes que nortearam os estudos que sevaleram dessa abordagem, em geral mais preocupados em investigar lógicassubjacentes ao fenómeno umbandista como um todo do que em desdobrar e refletircom minucia as particularidades inerentes aos seus referidos "componentes".Entretanto, outra razao parece sobressair-se frente a urna reflexao acerca doslimites de um procedimento exclusivamente comparativo, ou seja, oenquadramento do fenómeno em esquemas classificatórios extrínsecos á suaespecificidade e dinamicidade próprias.Em outros termos, ao inserir o preto-velho em taxonomías supostamente capazesde apreender urna ordem subjacente á fundamentalmente impersistente possessaoumbandista, tais estudos parecem ter também podado-o em suas potencialidadessubjetivamente interpeláveis e o achatado em sua vivacidade pragmáticamentemanifesta em múltiplas e sempre renováveis conformagoes.Tal situagao só comegou a ser superada a partir da segunda metade da década de1990, momento em que os saberes sobre o preto-velho deram um salto qualitativocom as primeiras iniciativas empreendidas por pesquisadores no sentido de estudá-lo em si mesmo, tomando-o como tema central e foco de suas investigagoes.

Focalizacóes contemporáneas: múltiplos sentidos, múltiplos "usos"Além do grande volume de referencias "panorámicas" acerca do preto-velhocontidas na literatura, feitas como que de passagem em trabalhos cujas temáticasgiravam em torno de urna compreensao orgánica do fenómeno umbandista, nosúltimos anos foram realizados estudos que se empenharam numa abordagem demaior alcance acerca dessa categoría de espíritos, tomando sua investigagaopormenorizada como objetivo central.

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Lindsay Hale (1997), em seu artigo intitulado "Preto velho: resistance, redemption,and engendered representations of slavery in a Brazilian possession-trancereligión", investigou os pretos-velhos partindo de seu trabalho de campo junto aquatro terreiros de umbanda bastante heterogéneos - de periferia a classe media;de "raiz africana" a "énfase no kardecismo" - localizados na cidade do Rio deJaneiro.A autora argumenta que os pretos-velhos funcionariam como símbolos privilegiadoscapazes de estabelecer a mediagao entre os adeptos do culto umbandista e temas-chave contidos na memoria coletiva e na ideología religiosa brasileira, especies deveículos portadores e transmissores de mensagens por meio das quais osumbandistas interpretariam e elaborariam temas sociais fundamentáis ecotidianamente presentes em suas vidas, dentre os quais se destacariam:(opressao de) raga; racismo; (opressao de) género; sexualidade; poder ehierarquia (14); ambiguidade moral; identidade nacional; dominagao; exploragao;violencia; resistencia; rebeldía; sofrimento; redengao (transcendencia espiritual); emoralidade crista (Hale, 1997, p. 393).Ciente da complexidade do fenómeno - tanto em termos da multiplicidade deformas e atitudes que podem ser assumidas pelos pretos-velhos, quanto da enormevariedade de interpretagoes e recortes a partir dos quais eles podem ser analisados- Hale (1997) sintetiza o escopo de seu trabalho da seguinte forma:

My interpretative strategy casts the pretos velhosas sign-vehicles through which Umbandistasspeak to and embody Brazilian dramas of raceand power. I focus on stories about andrepresentations of pretos velhos in terms of threerecurrent, interrelated themes. These include theinscription of power on the tortured body of thepreto velho; the sexualization and gendering ofunequal power; and what I will cali the quasi-Hegelian dialectic of master and slave and theslave's struggle for a full humanity, which in theemic perspective takes the form of a dialecticbetween rebellion and an explicitly Christian ethosof spiritual transcendence (p. 395).

Como se observa, Hale (1997) enfatiza o preto-velho enquanto resgate da figurahistórica do negro escravizado, devotando especial atengao as suas narrativas efiguragóes diretamente relacionadas com representagóes de eventos e vivenciassupostamente características do período escravocrata brasileiro. Nesse ínterim,segundo a autora predominariam no preto-velho temáticas de desigualdade (depoder) e opressao (fundamentalmente de raga e género), bem como de expressaoe elaboragao de possíveis solugóes face ao drama "desumanizante" da servidao.Nao obstante em suas análises ter cometido algumas imprecisóes - como aconfusao entre pretos-velhos e exus, em que os segundos sao tomadosindiscriminadamente como um "tipo obscuro" ("the dark one") de preto-velho - erealizado algumas interpretagoes precipitadas e pouco rigorosas, sobretudo no quetange as supostas expressóes e elaboragóes de temas ligados á opressao de géneroe á sexualidade por parte dos pretos-velhos e, principalmente, das pretas-velhas, otrabalho de Hale (1997) possui o mérito de ter levantado urna serie de novossignificados e nuances do preto-velho umbandista, constituindo-se em contribuigaorelevante para urna compreensao mais abrangente do mesmo.Outra autora a oferecer importantes aportes é Eufrázia Santos (1998) em suadissertagao intitulada "Preto Velho: as varias faces de um personagem". Santosconcebe o preto-velho como um personagem-símbolo construido a partir de umconjunto sempre mutável de representagóes sociais que por meio de arranjos erearranjos produzidos desde o que a autora denomina como seu "arquetipo" mais

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tradicional dáo continuamente origem a novas e diversas modalidades, sempre emconformidade com os interesses e os valores próprios dos grupos religiosos emmeio aos quais se registra a sua presenga. Nesse sentido, argumenta em favor daexistencia de ¡numeras versoes diferentes do preto-velho, discerníveis enquantotais a partir do quadro de referencia de sua particularidade étnica e racial.Complexo, multifacetado, dinámico e polivalente, o preto-velho sob o olhar deSantos (1998) revela-se um personagem hábil em refletir e elaborar urna serie decontradigoes, valores e instituigoes de suma importancia no seio da sociedadebrasileira, tais como: nacionalismo, relagoes raciais, (memoria da) escravidáo,brasilidade, trabalho, familia, obediencia, hierarquia, e humildade.Santos (1998) destaca que a sua presenga de forma alguma está restrita aosnotorios contextos umbandista e kardecista, extrapolando para outros dominios(profanos) da cultura brasileira, tais como o folclore e a literatura, instanciasprodutoras de clichés e caricaturas sobre o negro que, inclusive, ao migrarem parao campo do sagrado teriam servido de inspiragáo para a construgáo de suasversoes religiosas.

A presenga do preto velho extrapola o dominioreligioso, a referencia ao mesmo pode serencontrada nos diversos registros culturáis:música, folclore, literatura, poesia. É umpersonagem que goza de um certoreconhecimento público, fora do circuito religioso,fato que pode ser fácilmente percebido ñasrúas.... Enfim, a densidade do preto velhoenquanto personagem religioso, bem como oregistro de sua presenga em espagos naoreligiosos teve como exigencia o reconhecimentode suas ligagoes com a cultura brasileira (p. 4).

Cabe ressaltar que os pretos-velhos sao ainda enfatizados por Santos (1998)enquanto símbolos nacionais, referencias de brasilidade, na medida em que saoconstruidos em contexto religioso como antepassados negros e escravizados(portanto afro-brasileiros) que representariam a preservagáo do culto aosancestrais (mortos) enquanto instituigáo religiosa de origem africana (banto) emtérras brasileiras. Nesse sentido, Santos (1998) se contrapoe aos pesquisadoresque conceberam a construgáo do personagem preto-velho como símbolo nacionalapenas enquanto parte do

processo de purificagáo (na interpretagáo deBastide), embranquecimento (na interpretagáo deOrtiz) ou de aculturagáo (na interpretagáo deBrown) dos elementos da cultura africanaexistentes no interior do sistema umbandista.... aparticularidade étnica do preto-velho enquantopersonagem religioso é a de ser um personagembrasileiro, urna representagáo religiosa original dafigura negra, oposta á figura dos orixás docandomblé (pp. 60-61).

Em síntese, segundo a autoraO reconhecimento público das diferentesmodalidades ou versoes de preto velhoexistentes, respalda a sua construgáo comosímbolo nacional. Gostaria de evidenciar emparticular, sua condigáo como ancestral, urnaancestralidade definida pela hereditariedadesocial, física e cultural do negro brasileiro. Semqualquer pretensáo de concluir, estou inclinada a

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admitir que a importancia sociológica e religiosado preto velho nao é informada pela cor dopersonagem, mas pelo conjunto de temasculturáis e religiosos que ele veicula (p. 134).

Sergio Nunes-Pereira (2006) também oferece contribuigoes ao campo dasinvestigagoes acerca dos pretos-velhos em sua dissertagáo intitulada "É meu avó,ora! Um estudo sobre pretos-velhos no imaginario social brasileiro". Apoiado nospressupostos da psicología da cultura, tal como pensada por Augras (1995), e nométodo fenomenológico, e subsidiado em suas análises por aportes extraídos dapsicanálise winnicottiana, o autor poe em evidencia alguns aspectos das relagoesestabelecidas entre umbandistas e pretos-velhos, enfatizando a sua organizagáoem torno da assungao de papéis e dinámicas afetivas de natureza típicamentefamiliar (tais como avós, avós, pais, máes, tios e tias).Segundo Nunes-Pereira (2006), tais papéis familiares, conformativos dos vínculos evivencias psíquicas e emocionáis frequentemente estabelecidas com os pretos-velhos no contexto religioso, estáo intimamente relacionados as posigoesassumidas por tais personagens no interior do imaginario social brasileiro, posigoesestas articuladas sócio-historicamente, ou seja, por meio de processos que apenaspodem ser compreendidos no bojo de urna ampia leitura das dinámicas sociais eculturáis que históricamente envolveram o negro na construgao da identidadenacional.Nesse sentido, urna vez que a referencia histórica atinente ao preto-velho é a donegro que ao chegar da África se torna ¡mediatamente escravo e ancestral afro-brasileiro, tais entidades passam a ser tomadas no imaginario socialcontemporáneo nesses termos, como antepassados a serem interpeladosfamiliarmente. Os pretos-velhos representariam, portanto, a ancestralidade coletivanegra intrínseca á formagáo multirracial do povo brasileiro (Nunes-Pereira, 2006).Nunes-Pereira (2006) vai apresentar ainda outros sentidos característicos a partirdos quais os pretos-velhos podem ser pensados e associados: unidade-integragáo(figuras de amor, bondade, compreensáo e perdáo); maternagem (cuidadores e"provedores suficientemente bons"); carisma; caridade; moralidade crista;sofrimento; angustia frente á morte (associagáo ao culto das almas e aoscemitérios); mestigagem (assungao de diversas formas a partir de combinagoes ecruzamentos com outras linhas do panteáo); simplicidade; escravidáo (referenciaisidentificatórios para a elaboragáo da opressáo social); circularidade (campo deatuagáo ampio e diversificado); e suporte social.Assim, nao obstante algumas colocagoes apressadas, sobretudo no que tange aodiálogo com a literatura antropológica, e análises um pouco sucintas, o estudo deNunes-Pereira (2006) configura-se como um valioso aporte, oferecendocontribuigoes origináis e constituindo-se em notável exemplo de como urnaaproximagáo cautelosa e bem fundamentada entre psicología e cultura pode serproficua para o estudo de fenómenos sociais como a possessáo umbandista.Mónica Dias de Souza (2006) em sua tese intitulada "Pretos-velhos: oráculos,crenga e magia entre os cariocas" oferece informagoes e análises adicionáis a partirda ampia investigagáo que realizou acerca das múltiplas manifestagoes dos pretos-velhos em meio aos mais diversos contextos, tanto coletivos - no interior de cultosreligiosos de caráter espiritualista como a umbanda, o kardecismo, o candombléketu, a barquinha e a arca da montanha azul - quanto particulares - na forma deatendimentos individualizados oferecidos por médiuns independentes (consultoriosespirituais) e de vivencias espirituais "desinstitucionalizadas" centradas em relagoesíntimas, cotidianas e idiossincráticas estabelecidas com as entidades em ámbitodoméstico (pessoal ou familiar).Partindo do questionamento sobre os significados e motivos que estariam por trasda construgao de um personagem religioso pela sacralizagáo da figura histórica doescravo negro, Souza (2006) demonstra as ¡numeras formas pelas quais os pretos-

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velhos, enquanto espíritos de escravos que autorizam a evocagáo de narrativas devalor histórico, funcionam como símbolos (metonimias) capazes de sustentarmúltiplos entendimentos e propiciar ¡numeras possibilidades de elaboragáo da"escravidáo" e do "cativeiro" existentes ñas vivencias cotidianas e concretas deseus devotos contemporáneos.Apesar das variadas formas que assumem e da sua suscetibilidade a modelagensnovas e criativas obtidas continuamente em meio aos novos contextos onde seinserem, Souza (2006) empenhou-se em reconhecer e analisar alguns padroesinvariáveis subjacentes aos pretos-velhos. Nesse sentido, a autora identificou aexistencia de dois polos - ideológico e sensível - em torno dos quais seorganizariam modos distintos, embora de forma alguma antagónicos, de apreender(representar) e se relacionar com (vivenciar) tais entidades.

Em relagáo aos pretos-velhos, a agáo individualinstituí outros usos para as entidades.... Nestecircuito de crengas, a idéia predominante de queos pretos-velhos representavam a escravidáo foifortalecida no ámbito religioso institucional,deixando, porém, de indicar exclusivamente olugar de "escravo", propriedade do polo ideológicodo símbolo, para sobressair os aspectosvinculados ao polo sensível, das emogoes quedele sao extraídas, como por exemplo, a buscapelo apaziguamento das relagoes. Aqui, nestecircuito religioso, a partir do universo derepresentagoes, foi observada a agáo dos sujeitossobre o uso que fazem de suas crengas (p. 49).

Souza (2006) argumenta ainda que as representagoes e atribuigoes dirigidas aospretos-velhos pelos seus devotos tendem a variar em fungáo da dimensáoespecífica em que sua apreensáo é feita, seja ela coletiva, pessoal ou íntima.Assim, quando tomados em contextos institucionais e coletivos, enquantopersonagens genéricamente referidos a urna determinada categoría espiritual, suasreferencias africanas e escravas tendem a ser ressaltadas, bem como suasqualidades de cura e poderes de feitigaria; por outro lado, quando tomados emcontextos mais particularizados, tais referencias perdem forga e tendem a sersistemáticamente ressaltadas as suas representagoes mais familiares e paternais,assim como suas qualidades de protegáo, acolhimento, aconselhamento ecompanheirismo no enfrentamento das mazelas do cotidiano.

Na coletivizagáo os pretos-velhos sao "escravos";na pessoalizagáo se tornam "Vovó Catarina" ou"Pai Benedito"; mas, na vida íntima dos devotos,eles sao "meu pai" e "minha vovó". Suaspotencialidades também sao ressignificadas nofórum privado. Um preto-velho pode serconsiderado "curador", como manifestagáo de suasuposta heranga "africana", mas, no recato do lar,ele dissolve brigas, arranja empregos, toma contade criangas ou resolve problemas de impotenciasexual (p. 174).

Além disso, sao de tal forma abrangentes e diversificadas as descrigoesetnográficas e análises empreendidas por Souza (2006) que, num esforgo desíntese, pode ser elencado um vasto repertorio de temas por ela apresentados apartir dos quais os pretos-velhos podem ser pensados e concebidos: escravidáo;moralidade crista; ancestralidade; africanidade; poder mágico (feitigaria);ambiguidade; liminaridade; circularidade; mestigagem (mistura de ragas; "afro-brasilidade"); identidade nacional (brasilidade); consanguinidade (familia e

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parentesco); evolugáo kármica; iluminagáo (espíritos "de luz"); sabedoria;experiencia (velhice); mediagáo; ignorancia (náo-letramento); redengáo;sofrimento; negritude; inversao (simbólica) e manutengáo da ordem (estrutura)social; humildade; pobreza; caridade; escuta; bondade; cuidado e protegáo;autoridade cordial; harmonía social; paciencia; tradigao; calma; cordialidade; eorientagáo. Na verdade, tais temas configuram verdadeiramente urna especie derede simbólica e semántica, já que estáo totalmente imbricados por meio de¡numeras possíveis articulagoes e desdobramentos lógicos.A autora salienta, entretanto, que dentre todas as potenciáis caracterizagoes dopreto-velho duas se destacam como classificagoes globalizadoras genéricamenteproeminentes: 1) escravo - relacionada á sua posigáo de liminaridade e á suasuposta fungáo simbólica de inversao social (culto á periferia) por meio de urnafiguragao ambigua em que se oferece ao excluido poder (mágico) ao mesmo tempoem que se reafirma a sua condigáo, especie de lente da exclusáo que autoriza aosseus adeptos "olhar" e "se olhar" em processos de espelhamento que possibilitam aemergencia de sentimentos de consolagáo, independencia e renovada esperanga; e2) ancestral - relacionada á sua condigáo de negro "domesticado", bondoso,protetor, guardiáo da tradigao, da familia (lagos de parentesco e consanguinidade)e dos valores da moralidade crista. A esse respeito Souza (2006) acrescenta:

As representagoes que devotos e liderangas fazemdos pretos-velhos é de que sao "ancestrais".Geralmente nao discriminam se "ancestral dopovo negro" ou "ancestral do povo brasileiro",simplesmente "ancestral" (p. 236).

Em suma, o trabalho de Souza (2006), sem precedentes em termos da amplitude,da abrangéncia e do volume de informagoes e análises que oferece, ressalta opreto-velho ácima de tudo como urna entidade espiritual complexa e dinámica -plena de possibilidades de conformagáo e representagáo, e em constante rearranjoe transformagáo - nao apenas presente em diversos contextos religiosos edomésticos, mas profundamente arraigada e com lugar de destaque no vasto eporoso (Sanchis, 2001) campo do sagrado brasileiro.Finalmente, em texto mais recente intitulado "Escrava Anastácia e pretos-velhos: arebeliáo silenciosa da memoria popular", Souza (2007) apresenta as figuras dospretos-velhos e da Escrava Anastácia como produtos complexos do processocriativo de reflexáo e elaboragáo de memorias da escravidáo no seio dinámico da"cultura popular".Tais memorias, coletivamente construidas a partir da somatória de fragmentos dahistoria ouvidos e repetidos através das geragoes, consubstanciariam esforgosidentitários estabelecidos na trilha de processos de identificagáo - nao restritos ádimensáo étnica, já que embora sejam modelos de negritude tais personagensabrangem sentidos de luta e superagáo que implicam o íntimo das subjetividadeshumanas - que perfazem os caminhos do passado na busca de referenciassignificativas capazes de mediar e nortear formas de se reorganizar o presente eenfrentar os desafios e exigencias do cotidiano (Souza, 2007).No que tange específicamente á figura do preto-velho, Souza (2007) pontua que secalca sobre um modelo de agáo fundamentalmente conciliatorio, em que saoenfatizados atributos como a obediencia, a sabedoria, a humildade e, sobretudo, apaciencia. Entretanto, salienta que para além de mera expressáo de resignagáopassiva e moralidade indulgente - interpretagoes tributarias de urna apreciagáosimplificadora do fenómeno - tais dispositivos caracterizam efetivas estrategias deluta e sobrevivencia dos "fracos" frente a contextos desiguais e opressores,recursos habéis de enfrentamento da realidade com vistas á consecugáo de metasde crescimento e superagáo.

Representados como escravos que trataram detragar acordos com os senhores, no plano

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espiritual revelam-se seres capazes de circularentre esferas superiores e inferiores, com otránsito livre que sua flexibilidade Ihes confere.Entre negociagao e confuto, o imaginario popularelegeu os pretos-velhos como representantes dapaz negociada. Tecer acordos ou circular pelasesferas superiores nao Ihes dotou de um caráter"pelego", mas de sabedoria para alcangar osobjetivos fináis (Souza, 2007, p. 27).

Conforme pode ser atestado a partir do esforgo de apresentagao aqui empreendido,no breve intervalo de urna década os saberes e dizeres acerca do preto-velhoavangaram ¡mensamente. Ao perscrutar o preto-velho foca I iza da mente toda urnanova geragao de pesquisadores rápidamente confrontou-se com a suacomplexidade, desdobrando-o em múltiplos sentidos e usos - alguns previsíveis eincontestes, outros notadamente surpreendentes e polémicos - que em muitotranscendem as apreciagoes descritivas e "achatadas" realizadas por seuspredecessores, o que certamente nao implica que tenham, mesmo tomados emconjunto, se aproximado de esgotarem o assunto.De maneira geral, a impressao que se tem ao vasculhar essas obras é a de certo"caos controlado", sendo bastante evidentes as dificuldades encontradas pelos seusautores em efetuar sínteses frente ao diversificado material empírico á suadisposigao. Em outros termos, após a apreensao de um ampio repertorio de temase significados da maior relevancia psicológica e social passíveis de seremtransmitidos e elaborados simbólicamente pela via do culto ao preto-velho, fica-secom a sensagao de se estar perdido em meio a urna vertiginosa somatória depossibilidades, permanecendo ocultas e inacessíveis as presumíveis estruturas debase que permitiriam sua ordenagao em sínteses coerentes.Que fique bem claro: com isso nao se quer afirmar que os referidos estudos sejamdesorganizados ou confusos, que mais nao fosse pelo fato inquestionável de teremsobrios e sólidos edificios argumentativos, tendo ainda atingido com maestría osobjetivos a que se propuseram. O que se quer enfatizar é que dada a complexidadedo fenómeno, corolária de suas múltiplas possibilidades conformativas, e naoobstante os significativos avangos recentemente alcangados, o campo dos saberesacerca do preto-velho parece ainda carecer de um efetivo desnudamento de suasestruturas organizatórias subjacentes, ou seja, dos eixos simbólicos que, em últimainstancia, determinam e ordenam o conjunto de suas configuragoes possíveis eimpossíveis, de suas potencialidades e limites.

A preta-velha: sutilezas de género em um personagem complexoEmbora praticamente todos os autores que já apresentaram informagoes e análisesacerca do preto-velho tenham confirmado a existencia de variagao de género noquadro de suas manifestagoes, ou seja, reconhecido sua versao feminina, poucosse preocuparam em perscrutar as implicagoes dessa discriminagao, quase semprese limitando a apresentar apressadas e descritivas alusoes as especificidadescaracterísticas da preta-velha, supostamente pouco significativas e meramentecorrelativas de seu desdobramento em espirito feminino.Assim, de modo geral as idiossincrasias e nuances das pretas-velhas sao tomadasna literatura científica como presumíveis e lógicas consequéncias da variagao degénero no circuito simbólico do preto-velho, cujo resultado foi a simplesemergencia de outra versao do mesmo personagem, especie de recomposigaosutilmente acrescida de novos tons, e nao o aparecimento de outra entidade ousubtipo fundamentalmente diferente a partir de material semelhante extraído dosmeandros da memoria coletiva (15).Como excegoes merecem destaque apenas os estudos de Montero (1985) e Hale(1997), únicas autoras a nao apenas destacarem a existencia de singularidades

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próprias inerentes as pretas-velhas, mas a afirmarem que tais entidadesconsubstanciariam a expressao e elaboragao de efetivas temáticas de género (taiscomo feminilidade, maternidade e, apenas no caso de Hale, sexualidade), ausentes(Montero, 1985) ou menos salientes (16) (Hale, 1997) na figura dos pretos-velhos.Ao discutir a questao da dualidade masculino/feminino tal como elaborada pelacosmología umbandista, Montero (1985) afirma que

se tomarmos em seu conjunto as figurasfemininas retratadas no universo simbólicoreligioso veremos delinear-se, em fungao de cadacategoría de espirito, quatro estereotipos bemdiferenciados: o estereotipo da jovem virgemrepresentado pelas caboclas; o estereotipo damae representado por Iemanjá; o estereotipo damae preta representado pelas pretas-velhas; oestereotipo da prostituta representado pelaspombas-giras (p. 204).

Dessa forma, segundo Montero (1985) as pretas-velhas seriam o meio através doqual a umbanda elaboraría urna faceta específica da feminilidade, que a própriaautora define como

o ideal de mae compreensiva e submissa, dotadade um total desprendimento que a torna capaz dequalquer sacrificio necessário ao bem-estar desua prole. Enquanto tal, essas entidadesrepresentam a própria afirmagao do papel socialda mulher, que encontra no casamento esobretudo na maternidade o lugar a que ela estásecularmente destinada (p. 210).

Hale (1997), por outro lado, partindo de urna aproximagao mais direta e naocontrastiva com as demais categorías femininas do panteao, encontra ñastemáticas da sexualidade e da opressao sexual - cuja expressao máxima é a alusaoao estupro - referencias importantes das construgoes narrativas das pretas-velhas,articuladas no contorno de suas experiencias enquanto cativas sujeitas ao jugo daescravidao.

What of resistance, redemption, suffering, theslave experience, as explored through thecharacters of Umbanda 's oíd slave women? Whatare the moral parameters explored and expressedthrough female biographies and embodiments ofAfro-Brazilian slavery? I found this question moredifficult to investígate than the struggles of malepretos velhos. Female spirits tended to speak ofcaptivity in vague terms.... But I believe that thereis more to the reticence of the women spirits, andit has to do with the gendering of domination.Where Hegel would have the bloody battle ofmaster and slave as the archetypal scene, that isclearly a male avenue. For women, the salientfield of resistance and submission was sexual; therape, not the beating, the primordial insult (pp.403-404).

Em outro trecho, Hale (1997) esclarece o pleno sentido da diferenga que estabeleceentre pretos-velhos e pretas-velhas á luz de suas reflexoes a partir da "dialética dosenhor e do escravo" de Hegel:

According to Hegel, the slave falls because he willnot risk his life in a fight to the death with his

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master. This is clearly a male-centered metaphorand theory of power. It is a man who submits anda man who vanquishes another through physicalforcé or by threatening to use it. But when mendomínate women in slavery, the idiom of power isthatof sexual possession (p. 405).

Assim, Hale (1997) e Montero (1985) parecem divergir em ao menos um pontofundamental, pois enquanto a primeira concebe as pretas-velhas como potenciáisveículos de expressao e elaboragao de questoes ligadas á sexualidade feminina, oumais específicamente á violencia sexual e á opressao de género, a segunda, noquadro de seu esquema das figuras femininas da umbanda, vai concebé-las comoentidades totalmente dessexualizadas:

o fato dessa mae ser representada por urnamulher de idade já avangada retira do elementofeminino seus atributos sexuais e recupera aomesmo tempo o "lado bom" da mulher: suafertilidade (Montero, 1985, p. 210).

Cabe destacar que embora ambas estejam de acordó com relagao aos esforgosempreendidos pelos umbandistas no sentido de representarem as pretas-velhascomo figuras incapazes de sexualidade, Montero (1985) aceita com naturalidade aeficacia desse "esvaziamento", convicta de que no quadro mais ampio do panteaoumbandista o lugar para a expressao e elaboragao da sexualidade feminina estágarantido pelo culto as pombas-giras. Hale (1997), por outro lado, vai conceberesse propalado "vacuo sexual" como mero disfarce da presenga de urnafeminilidade potencialmente ameagadora, mecanismo ativo e moralmentejustificado de ocultamento de urna realidade mais profunda, a saber, as pretas-velhas como "símbolos-mártires" denunciantes da opressao da mulher (negra) e domachismo históricamente arraigados no ámago da sociedade brasileira.Apesar das contribuigoes que oferecem, tanto as afirmagoes de Montero (1985)quanto as de Hale (1997) - notadamente polémicas e audaciosas - carecem deconfirmagao e esclarecimentos que apenas podem ser obtidos pela via desistemáticas e refinadas análises capazes de desvendar os reais sentidos e usos dapreta-velha, bem como circunscrever seu efetivo grau de demarcagao em relagaoao seu proeminente correlativo masculino.

Considerares fináisPersonagens complexos e amplamente respeitados enquanto negros, escravos efeiticeiros sacralizados que povoam o imaginario pessoal e coletivo de ¡númerossetores da sociedade brasileira, está claro que os pretos-velhos já foram muitofalados, pensados e teorizados por pesquisadores vinculados as mais variadasáreas do conhecimento e tradigoes intelectuais no interior das ciencias humanas esociais (17).A literatura em seu conjunto evidencia a grande variedade de perspectivas eenfoques empreendidos ao longo das décadas na tarefa de se conhecer o preto-velho, cada um dos autores que se ocupou do assunto tendo se utilizado de chavesanalíticas e recortes metodológicos próprios, muitas vezes ao prego desimplificagoes que nao fazem jus a toda a sua complexidade.De forma geral, pode-se dizer que o campo dos saberes sobre o preto-velho pareceter oscilado de urna produgao fundamentalmente genérica, enquadrante econtextualizadora - com o preto-velho tomado como estereotipo ou "engrenagem"cujo sentido é apreendido como contingente a urna lógica global que Ihe é anterior,a da religiosidade umbandista - para urna produgao focalizada, extensiva eacumulativa - menos preocupada com o seu aprisionamento numa interpretagaogeral da umbanda como sistema e mais voltada para o seu entendimento comofenómeno dinámico e independente, passível de múltiplos desdobramentos e capaz

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de integrar diversos tipos de composigoes em fungao das variadas situagoes emque se manifesta.Entretanto, tudo indica que existem importantes facetas do preto-velho aindainvisíveis em meio ao vasto acumulo de informagoes postas a descoberto naliteratura. É perfeitamente possível, alias, dada a proliferagao de aspectosassinalados nos anos mais recentes, que possam inclusive ter escapado insuspeitosníveis simbólicos mais profundos e estruturantes que aqueles de seus múltiplos, eaparentemente inesgotáveis, sentidos e usos já conhecidos, que por sua vez jácaracterizam refinamentos analíticos muito além de seus largamente reconhecidosestereotipos e categorizagoes.Por outro lado, é também plausível supor que alguns dos mais recónditos segredosacerca do preto-velho permanegam indefinidamente escondidos, dado serem estasentidades um retrato aparentemente fiel da condigáo humana experiente,complexa, inconstante e sempre oscilante entre polos de tensáo que no limitemarcam os extremos da ampia gama de experiencias e atitudes potencialmenteacessíveis ao ser vívente (Bairrao, 2004).Certo é que ainda há muito a ser esclarecido e um longo caminho a ser percorridona trilha de urna compreensáo mais precisa e completa dessa fascinante categoríade espíritos, nao devendo de forma alguma surpreenderem-se aqueles que, aopercorré-lo, se percebam perpassados por nuances de si mesmos afiguradas erefletidas em narrativas plenas de historia, memoria e humanidade.

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Notas(1) Apoio: CAPES e FAPESP.(2) Cabe destacar que na literatura científica podem ser encontradas diferentesformas de se estabelecer a grafia do termo, sendo as mais comumente encontradas- e praticamente na mesma proporgao - "preto-velho" e "preto velho". Tendo emvista a falta de consenso entre os autores, a forma de grafia que será utilizada aolongo deste artigo - preto-velho (com hífen) - foi fruto de urna escolha, parecendoa mais adequada para evitar imprecisoes e eventuais ambiguidades; afinal, emboraseja inegável a sua condigao de "preto" e "velho", o preto-velho enquanto entidade

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espiritual no contexto religioso afro-brasileiro é algo distinto de um preto velho, quepode ser urna referencia a qualquer pessoa idosa de pele negra.(3) Ao menos no Rio de Janeiro, já que mais recentemente ¡números pesquisadorestém demonstrado que é muito pouco provável que a umbanda tenha surgido desdeum único núcleo irradiador, mas sim que tenha congregado sob um mesmo nome equadros de referencia cosmológica urna miríade de manifestagoes religiosas deorigem afro-brasileira surgidas a partir de processos mais ou menos semelhantesde elaboragáo do sagrado a partir de matéria-prima retirada dos meandros doimaginario popular e da memoria coletiva das populagoes negras e pobres(Trindade, 2000). Tais manifestagoes tiveram sua emergencia provavelmentefacilitada pelo período de mudangas bruscas e de anomia social que se seguiu aofim da escravidao e á proclamagao da República (Trindade, 2000).(4) Ao contrario do que afirmam autores como Brown (1994) e Ortiz (1991) queconsideram tal "olhar" como proveniente da classe media urbana ansiosa porlegitimidade e imersa num mundo moderno e industrializado. Creio que taisdivergencias, nao obstantes precisem ser claramente marcadas, nao se devem aincorregoes ñas percepgoes dos pesquisadores, mas sim as enormes diversidadesno interior da própria religiosidade umbandista, em relagao, por exemplo, as suasmanifestagoes em meio a classes medias ou baixas, em grandes metrópolesurbanas ou em pequeñas cidades do interior, em meio a individuos letrados ou nao.(5) Termo utilizado pelos umbandistas para referirem-se a entidades que estao naintersegao entre a "esquerda" e a "direita" - os dois dominios diametral menteopostos que configuram os parámetros daquilo que se poderia chamar de"moralidade umbandista" (Negráo, 1996) - pertencendo e atuando em ambos osdominios ao mesmo tempo; ou ainda para referirem-se a um espirito particularpertencente a duas categorías espirituais simultáneamente, mesclandocaracterísticas de ambas numa especie de bricolagem individualizada.(6) Embora tenha dedicado relativamente pouco espago em sua vasta obra para aapreciagáo da heranga religiosa banta em geral, e da umbanda em particular.(7) Referencia ao "mito do Pai Joáo", personagem do folclore negro querepresentaría o modelo do escravo submisso, dócil, virtuoso ("de alma branca") econformado com sua condigáo, tido muitas vezes como símbolo da heranga e dastradigoes africanas e exata antítese do feiticeiro vingativo e do quilombolarevoltado. Ramos (1954) e Santos (1998) argumentam que a construgáo de talpersonagem deu-se decisivamente influenciada pela "opressáo branca", ou seja,pelas relagoes desiguais de poder racial históricamente arraigadas na sociedadebrasileira, num processo semelhante ao ocorrido nos Estados Unidos por meio doafamado romance "Únele Tom's Cabin" (A cabana do Pai Tomás) de HarrietBeecher Stowe (originalmente publicado em 1852).(8) Situagáo semelhante também ocorre no estudo da antropóloga americanaLindsay Hale (1997), porém neste caso com implicagoes muito mais serias para oconjunto do trabalho, corolárias de urna imprecisáo grosseria. Isso na medida emque Hale toma os pretos-velhos como tema central de sua investigagáo, e semquaisquer preocupagoes em definir, ainda que vagamente, o quadro abrangente dopanteáo umbandista, refere indiscriminadamente como pretos-velhos espíritosclaramente pertencentes á categoría espiritual exu, como a própria autora deixaevidente ñas referencias que faz á obra de Ortiz (1991).(9) Trindade (1985) concebe os exus da umbanda como reinterpretagoes do orixáafricano Exu no quadro da "configuragáo simbólica de negro e demoníaco" (p. 128),expressáo de urna posigáo de liminaridade enquanto "herói africano trickster eambiguo" (p. 133). Já Ortiz (1991) afirma que "ele é o que resta de negro, de afro-brasileiro, de tradicional na moderna sociedade brasileira" (p. 134).(10) Nunes-Pereira (2006) descreve dois pretos-velhos, Pai Cipriano e Pai JoáoBaiano, que além de utilizarem-se de aparatos pouco convencionais - tais comochapéu de palha, bengala e caneca com detalhe em forma de caveira, cachaga, e

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pimenta - comportam-se ritualmente de maneira parecida com o quehabitualmente se esperaría de exus e baianos (alias, o próprio nome de um delesexplícitamente sugere um possível "cruzamento"): resmungam, fazem gozagoes,falam palavroes, dirigem ofensas e ameagas, pedem pagamento pelos "trabalhos",e fazem "traquinagens" e "brincadeiras"; o autor ainda transcreve pontos-cantados(músicas rituais) entoados a tais entidades que falam de "vinganga", "buscar osinimigos, mortos ou vivos", "calunga" (cemitério) e "cachaga" (pp. 70-74).(11) Em seu trabalho de campo no célebre terreiro fundado por Zélio de Moráis, aTenda Nossa Senhora da Piedade, Souza (2006) constatou a inexistencia de cultoaos exus sob a justificativa de que um preto-velho chamado Pai Antonio, um"mirongueiro" que pratica a magia "lidando com as forgas malignas, tendo sobreelas poder de coergao", cumpre a fungao que Ihes seria destinada (p. 71).(12) Segundo Negrao (1996), a afinidade dos pretos-velhos com as "criangasespirituais" se estenderia também as criangas "de carne e osso" e as mulheresgrávidas, que seriam presengas frequentes em suas giras; tal afinidade seria aindamais marcante no que tange á sua versao feminina, as pretas-velhas.(13) Lima (1997) divide as entidades do panteao com base em tres "fungoespsicológicas" distintas: 1) entidades disciplinadoras: caboclos, pretos-velhos evovós (provavelmente referencia as pretas-velhas); 2) entidades desrepressoras:eres (criangas), alguns caboclos, boiadeiros, marinheiros, ciganas, ¡aras e sereias("entidades femininas ligadas aos cultos da agua"); 3) entidades catárticas: exus epombas-giras ("linhas" da quimbanda). Note-se que os caboclos sao as únicasentidades que podem ser classificadas em duas categorías distintas, de modo queos pretos-velhos sao os únicos espíritos tomados invariavelmente como"disciplinadores" (pp. 137-141).(14) Em relagao a questoes de poder e hierarquia cabe destacar ainda o estudo deMaggie (2001) que, partindo de urna abordagem da atuagao ritual dos pretos-velhos através dos conceitos de "liminaridade" e "inversao social", analisa alguns"usos" que deles podem ser feitos para a afirmagao de autoridades e a resolugao deconflitos ligados a disputas por posigoes de poder e prestigio no interior decomunidades religiosas umbandistas.(15) Como no caso do exu e da pomba-gira, entidades reconhecidamente distintase ao mesmo tempo tomadas como antagonismos de género articulados em tornode um mesmo referencial simbólico: o dominio da marginalidade.(16) Hale (1997) discute em seu trabalho a narrativa histórica de um preto-velho(Pai Gerónimo) onde também identifica elementos relacionados á temática dasexualidade.(17) A esse respeito cabe ressaltar que nem mesmo faltaram estudiosos de áreascomo a lingüística (Alkmim & López, 2009) e a semiótica (Santana Júnior, 2001)interessados no fenómeno.

Nota sobre os autoresRafael de Nuzzi Dias: Graduado e Mestre em Psicología pela Faculdade de Filosofía,Ciencias e Letras de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo. Contato:[email protected].

José Francisco Miguel Henriques Bairrao: Graduado em Psicología e Filosofía pelaUniversidade de Sao Paulo e Doutor em Filosofía pela Universidade Estadual deCampiñas, é atualmente docente do Departamento de Psicología da Faculdade deFilosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo, ondecoordena o Laboratorio de Etnopsicologia. Contato: [email protected].

Data de recebimento: 03/09/2010Data de aceite: 17/05/2011

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