História, memória, sofrimento - aula 8

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História, memória e sofrimento Aula 8 Até agora, vimos no interior do segundo módulo do nosso curso como o desenvolvimento da história como ciência forneceu parâmetros importantes para a constituição da psicologia como saber. Vimos, por exemplo, como a noção de progresso fora decisiva para a própria determinação do horizonte de cura, da distinção entre normalidade e patologia tal como podemos encontrar na história da psicologia. Em larga medida, a doença mental fora pensada a partir de dinâmicas de regressão, de fixação e degenerescência, ou seja, ela faria o caminho inverso do progresso em direção à maturação. Há claramente uma noção de tempo em progresso na consolidação do horizonte de normalidade e cura na clínica do sofrimento psíquico. Procurei mostrar como este tempo, com toda sua carga normativa, continuava claramente presente em discussões e trabalhos fundamentais para o campo da psicologia do desenvolvimento, como os de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. Para deixar mais claro este ponto, vimos na aula passada como as questões internas à constituição de uma categoria clínica específica, a saber, o fetichismo. Vinda de uma discussão histórica vinculada à teoria do progresso e dos processos de modernização, a transformação do fetichismo em categoria clínica era muito mais do que um mero uso por analogia. Ele explicitava o movimento de constituição de categorias clínicas a partir do empréstimo conceitual maciço a outras áreas do saber. Ela mostrava ainda como o quadro clínico da perversão era estruturalmente dependente de uma noção de desenvolvimento aplicada à dinâmica dos estágios de desenvolvimento da libido. Não por outra razão, veremos a tendência a aproximar o perverso e a criança, tal como vemos, por exemplo, em Freud quando afirmar que a criança é um perverso polimórfico. Esta polimorfia própria à perversão seria índice da incapacidade da sexualidade encontrar sua forma adequada, esta capaz de submeter a multiplicidade dos prazeres

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Curso de Vladimir Safatle - USP2015

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Histria, memria e sofrimentoAula 8

At agora, vimos no interior do segundo mdulo do nosso curso como o desenvolvimento da histria como cincia forneceu parmetros importantes para a constituio da psicologia como saber. Vimos, por exemplo, como a noo de progresso fora decisiva para a prpria determinao do horizonte de cura, da distino entre normalidade e patologia tal como podemos encontrar na histria da psicologia. Em larga medida, a doena mental fora pensada a partir de dinmicas de regresso, de fixao e degenerescncia, ou seja, ela faria o caminho inverso do progresso em direo maturao. H claramente uma noo de tempo em progresso na consolidao do horizonte de normalidade e cura na clnica do sofrimento psquico. Procurei mostrar como este tempo, com toda sua carga normativa, continuava claramente presente em discusses e trabalhos fundamentais para o campo da psicologia do desenvolvimento, como os de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg.

Para deixar mais claro este ponto, vimos na aula passada como as questes internas constituio de uma categoria clnica especfica, a saber, o fetichismo. Vinda de uma discusso histrica vinculada teoria do progresso e dos processos de modernizao, a transformao do fetichismo em categoria clnica era muito mais do que um mero uso por analogia. Ele explicitava o movimento de constituio de categorias clnicas a partir do emprstimo conceitual macio a outras reas do saber. Ela mostrava ainda como o quadro clnico da perverso era estruturalmente dependente de uma noo de desenvolvimento aplicada dinmica dos estgios de desenvolvimento da libido. No por outra razo, veremos a tendncia a aproximar o perverso e a criana, tal como vemos, por exemplo, em Freud quando afirmar que a criana um perverso polimrfico. Esta polimorfia prpria perverso seria ndice da incapacidade da sexualidade encontrar sua forma adequada, esta capaz de submeter a multiplicidade dos prazeres especficos de rgos funo de reproduo com seu privilgio em relao ao prazer genital.

Na aula de hoje, gostaria de explorar uma outra via. Gostaria de voltar s teorias da histria a fim de fornecer uma imagem do tempo histrico distinta desta caracterizada pelo progresso linear em direo a reiterao de uma forma normativa geral. Para tanto, gostaria de apresentar a vocs alguns aspectos essenciais da teoria da histria de um dos filsofos mais influentes no campo dos debates sobre a natureza do processo histrico, a saber, Hegel. Feito isto, gostaria, na aula que vem, de apresentar para vocs uma experincia clnica cujo manejo da temporalidade em muito se assemelha ao que vocs podero encontrar nesta noo hegeliana de tempo histrico, a saber, a psicanlise de Jacques Lacan.

A temporalidade concreta A histria universal o progresso na conscincia da liberdade. Esta afirmao de Hegel em suas Lies sobre a filosofia da histria traz uma srie de pressupostos importantes. Primeiro, existiria algo como uma histria universal. Isto implica aceitar que a multiplicidade de experincias histricas deve ser reduzida a um s motor, a uma s orientao. Como dir Koselleck, trata-se da consequncia necessria da definio da histria como coletivo singular. Isto permitiu que: se atribusse histria aquela fora que reside no interior de cada acontecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo rene e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pde acreditar-se responsvel ou mesmo em cujo nome pde acreditar estar agindo. Parece algo parecido que Hegel tem em mente ao falar do Esprito do mundo como alma interior de todos os indivduos.

Segundo, tal orientao unitria da histria move-se de maneira progressiva. Por fim, neste movimento se l a tomada paulatina de conscincia da liberdade ou, se quisermos, da emancipao. Uma tomada de conscincia que no individual, mas social. Neste sentido, a histria deve ser a narrativa do progresso em direo conscincia da liberdade e de afastamento da condio de alienao. Mas devemos entender aqui o que significa, neste contexto, dois termos fundamentais, a saber, progresso e conscincia da liberdade.

Os Persas so o primeiro povo histrico, porque a Prsia o primeiro imprio que desapareceu (Persienist das erste Reich, das vergangenist) deixando atrs de si runas. Esta frase de Hegel diz muito a respeito daquilo que ele realmente entende por progresso. O progresso a conscincia de um tempo que no est mais submetido simples repetio, mas que est submetido ao desaparecimento. Progresso no diz respeito, inicialmente, a uma destinao, mas a uma certa forma de pensar a origem. Pois, sob o progresso, a origem o que, desde o incio, marcada pela impossibilidade de permanecer. Origem , na verdade, o nome que damos conscincia da impossibilidade de permanecer em uma estaticidade silenciosa. Por isto, que a verdadeira origem, esta que aparece na Prsia, caracterizada por um espao pleno de runas.

O ato de desaparecer assim compreendido como a conseqncia inicial da histria. Colocao importante por nos lembrar que as runas deixadas pelo movimento histrico so, na verdade, modos de manifestao do Esprito em sua potncia de irrealizao. Se os persas so o primeiro povo histrico porque eles se deixam animar pela inquietude e negatividade de um universal que arruna as determinaes particulares. Notemos como este desaparecimento no a afirmao sem falhas da necessidade de uma superao em direo a perfectibilidade. Na verdade, h uma pulsao contnua de desaparecimento no interior da histria. Esta pulsao contnua , de uma certa forma, o prprio telos da histria. Assim, ela realiza sua finalidade quando este movimento ganha perenidade, quando ele no mais vivenciado como perda irreparvel, mas quando a desapario, paradoxalmente, nos abre para uma nova forma de presena, liberada do paradigma da presena das coisas no espao. O que explica porque Hegel dir: Deve-se inicialmente descartar o preconceito segundo o qual a durao seria mais valiosa do que a desapario . S as coisas que tem a fora de desaparecer permitem que se manifeste um Esprito que s constri destruindo continuamente. Neste sentido, vale a compreenso de Grard Lebrun:

Se somos assegurados de que o progresso no repetitivo, mas explicitador, porque o Esprito no se produz produzindo formaes finitas mas, ao contrrio, recusando-as uma aps outra. No a potncia dos imprios, mas sua morte que d razo histria (...) do ponto de vista da histria do mundo, os estados so apenas momentos evanescentes.

Este carter inquieto do tempo nos leva, no entanto, a uma compreenso renovada do que pode significar presente. Em vrios momentos, Hegel fala de como o Esprito capaz de construir uma experincia temporal baseada no presente absoluto. Presente absoluto no tempo da pura presena, que implicaria absoro integral do instante sobre si mesmo. Presente absoluto a expresso da temporalidade concreta, expresso de como: o presente concreto resultado do passado e est prenhe de futuro. Podemos procurar compreender sua estrutura se partimos de uma importante afirmao de Hegel:

A vida do esprito presente um crculo de degraus que, por um lado, permanecem simultneos (nebeneinander) e apenas por outro lado aparecem como passados. Os momentos que o esprito parece ter atrs de si, ele tambm os tem em sua profundidade presente.

O presente como um crculo de degraus que aparecem, ao mesmo tempo, como simultneos e como passados. Momentos que esto, ao mesmo tempo, atrs e presentes. Como vemos, trata-se de uma experincia temporal contraditria para a perspectiva do entendimento, mas que pode ser compreendida se lembrarmos como o conceito, enquanto expresso da eternidade, uma forma de movimento que faz todos os processos desconexos se transfigurarem em momentos de uma unidade que no existia at ento, ou seja, que criada a posteriori mas (e este o ponto fundamental) s pode ser criada porque coloca radicalmente em cheque a forma da unidade e da ligao tal como at ento vigorou.

Nesta sua fora de colocar em simultaneidade o que at ento era radicalmente disjunto, de criar a contemporaneidade do no-contemporneo, o conceito pode instaurar o tempo de um presente absoluto no qual no h mais nada a esperar. Mas no haver nada mais a esperar no significa que, a partir de agora, acontecimentos sero desprovidos de histria ou a histria ser desprovida de acontecimentos. No h nada mais a esperar porque os impossveis podem agora se tornar possveis, j que relaes contraditrias foram reconstrudas no interior de um mesmo processo em curso. Neste sentido, podemos lembrar do que est pressuposto na prpria construo hegeliana do conceito de histria universal, desta histria que o progresso na conscincia da liberdade. Aceitar que exista algo como uma histria universal, parece implicar que a multiplicidade de experincias histricas e temporais devam se submeter a uma medida nica de tempo, como um corpo social unificado na multiplicidade de seus espaos nacionais pelas mos de plano que a verso secularizada da Providncia. No entanto, a figura do crculo de degraus, ao mesmo tempo, simultneos e passados no permite pensar unificaes temporais redutveis a um plano geral unvoco a partir do qual todos os devires se extrairiam. Melhor pensar no advento de um tempo definido como a relao entre tempos que so incomensurveis sem serem indiferentes entre si, o que no sem relao com o fato dos espaos nacionais animados pelo esprito do mundo no poderem, por sua vez, ser submetidos a um plano comum de paz eterna sem darem lugar a decises soberanas marcadas pela contingncia. Os espaos nacionais que compem a histria universal entram em relao sem garantia alguma de paz e estabilidade.

Da mesma forma, tempos incomensurveis mas no indiferentes interpenetram-se em um processo contnuo de mutao. Algo muito diferente da universalidade produzida pelo primado do tempo homogneo, mensurvel e abstrato da produo capitalista global, to bem descrita por Marx. Neste sentido, falar em histria universal implica simplesmente defender que temporalidades incomensurveis no so indiferentes. Tal interpenetrao de temporalidades incomensurveis significa abertura constante quilo que no se submete forma previamente estabilizada do tempo, o que faz da totalidade representada pela histria universal, do presente absoluto que ela instaura, uma processualidade em contnua reordenao, por acontecimentos contingentes, da forma das sries de elementos anteriormente postos em relao. Da sua plasticidade cambiante.

Neste sentido, podemos dizer que as relaes entre os momentos obedecem a um processo de transfigurao da contingncia em necessidade, que no implica negao simples da contingncia. Em Hegel, a contingncia no vista como fruto de um defeito de nosso conhecimento, mas integrada como momento de um processo de constituio da necessidade a partir de uma historicidade retroativa. Hegel determina a contingncia como uma necessidade exterior, j que acontecimento que aparece como causado por outra coisa que si mesmo, no se integrando na imanncia de uma necessidade interior que pe suas prprias circunstncias. No entanto, esta exterioridade no um erro a respeito do qual devemos abstratamente negar, mas um momento necessrio resultante do fato da imanncia no estar imediatamente posta, dela ser construda retroativamente a partir da liberalidade da razo em procurar integrar retroativamente o que se produziu a partir de acontecimentos contingentes.

Tal liberalidade exige, no limite, pensar a totalidade posta pela histria universal como um sistema aberto ao desequilbrio peridico, pois a integrao contnua de novos acontecimentos inicialmente experimentados como contingentes e indeterminados reconfigura o sentido dos demais anteriormente dispostos. Se quisermos, podemos afirmar que um belo exemplo deste movimento a maneira com que Hegel lembra que o Esprito pode desfazer o acontecido (ungeschehen machen kann) reabsorvendo o fato em uma nova significao. s em uma totalidade pensada como processualidade em plasticidade formal contnua que o acontecido pode ser desfeito e que as feridas do Esprito podem ser curadas sem deixar cicatrizes. Neste ponto, difcil no concordar mais uma vez com Lebrun, para quem: Se a Histria progride para olhar para trs; se progresso de uma linha de sentido por retrospeco (...) a Necessidade-Providncia hegeliana to pouco autoritria que mais parece aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus desgnios. Glorificar o existente

Mas voltemos a esta fora do Esprito de desfazer o acontecido pois ela pode nos fornecer mais orientaes sobre o que est em jogo no conceito de presente absoluto. Muitas vezes pareceu, com tal fora, estarmos diante da defesa de uma teoria do fato consumado que transfigura as violncias do passado em necessidades no caminho de realizao da universalidade normativa de um Esprito que conta a histria a partir da perspectiva de quem est a: deificar aquilo que . A confiana no Esprito seria a senha para um certo quietismo em relao ao presente. Melhor seria definir o esprito do mundo: objeto digno de definio, como catstrofe permanente, ou seja, conscincia desperta do que foi necessrio perder, e do que ainda necessrio, no interior do processo histrico de racionalizao social. Pois pode parecer que uma filosofia a procura de explicar como os homens histricos [geschichtlichen Menschen], ou ainda, os indivduos da histria mundial [welthistorischen Individuen] sero aqueles cujos fins particulares no so postos apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins transfigurao, permitindo que eles contenham a vontade do esprito do mundo [Wille des weltgeistes] s poderia nos levar a alguma forma de justificao do curso do mundo, como temia Adorno em sua Dialtica negativa, repetindo uma crtica j feita por Nietzsche em sua Segunda considerao intempestiva e por Marx quando acusa Hegel de glorificar o existente. Pois sendo a vontade do Esprito do mundo aquilo que se manifesta atravs do querer dos homens histricos, ento como escapar da impresso de que, retroativamente, a filosofia hegeliana da histria constri a universalidade a partir daquelas particularidades que conseguiram vencer as batalhas da histria? Como dir Nietzsche: quem aprendeu inicialmente a se curvar e a inclinar a cabea diante do poder da histria acaba, por ltimo, dizendo sim a todo poder.

Escapa-se desta impresso, entretanto, explorando melhor duas caractersticas fundamentais da ao histrica em Hegel, a saber, sua natureza inconsciente e sua fora de recuperar o que parecia perdido, de reativar oportunidades perdidas que pareciam petrificadas, isto atravs da reabertura do que est em jogo no presente. Sobre este segundo ponto, lembremos como, quando o Esprito sobe cena e narra a histria, sua prosa radicalmente distinta da prosa dos indivduos que testemunham fatos. Primeiro porque o Esprito no testemunha; ele totaliza processos revendo o que se passou s costas da conscincia. Ele a coruja de Minerva que rememora, que s alcana voo depois do ocorrido. Uma totalizao que no mera recontagem, redescrio, mas construo performativa do que, at ento, no existia. Pois um relato no apenas uma relato. Ele uma deciso a respeito do que ter visibilidade e ser percebido daqui para a frente, por isto as acusaes que vem na filosofia hegeliana uma forma de passadismo erram completamente de alvo.

A este respeito, lembremos de, por exemplo, Vittorio Hsle, para quem o passadismo de Hegel mostraria como: filosofia recordao, olhar retrospectivo ao passado, no prolepse e projeto do que h de vir, do que h de se tornar realidade, E, na medida em que o que deve ser no est ainda realizado, no pode interessar filosofia; ela apenas deve compreender o que e o que foi. A pergunta kantiana Que devo fazer? no tem, assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma resposta a ela poderia no melhor dos casos rezar assim: Reconhea o racional na realidade. Nada mais distante da perspectiva que gostaria de defender, pois tal posio pressupe que recordar equivale a redescobrir fatos que foram arquivados na memria social. Se verdade que, para Hegel, filosofia recordao, vale lembrar que todo ato de rememorao uma reinscrio do que ocorreu a partir das presses do presente. Rememorar ainda agir, e no simplesmente chegar depois que a realidade j perdeu a sua fora. Antes, mostrar como o passado est em perptua reconfigurao, redefinindo continuamente as possibilidades do presente e futuro. Neste sentido, ignorar a fora de deciso da descrio do passado operar com a fico da histria como um quadro estvel do que realmente ocorreu, wie es eigentlich gewesen, como dizia Ranke. No entanto, seremos mais fieis a Hegel se afirmarmos que o passado o que est perpetuamente ocorrendo, pois ele no composto de uma sucesso de instantes que so desconexos entre si. Ele composto por momentos em retroao.O trabalho de luto do conceito e seus fantasmas

Podemos compreender melhor esta fora performativa da rememorao se explorarmos a maneira com que a narrativa da histria em Hegel se assemelha, em certos pontos importantes, elaborao de um trabalho de luto, fato difcil de negligenciar em algum que descreve a sequncia de experincias da conscincia em direo ao saber absoluto como um caminho do desespero. Neste sentido, talvez no haja momento mais claro do que esta passagem cannica de A razo na histria:Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante j sentiu tal melancolia. Quem esteve diante das runas de Cartago, Palmira, Perspolis, Roma sem entregar-se a observaes sobre a transitoriedade dos imprios e dos homens, sem cobrir-se de tristeza por um vida passada, forte e rica?.

De novo, as runas; cuja descoberta aparece agora inicialmente como signo de melancolia. Uma melancolia que parece expressar fixao em uma passado arruinado que aparentemente poderia ter sido outro, deveria ter permanecido em seu esplendor. Fixao que desqualifica o existente por ele pretensamente no estar altura das promessas que as ruinas das grandes conquistas um dia enunciaram. O que poderia esta melancolia produzir alm do circuito da perda e da reparao, alm da crena de que a transitoriedade nos revela o sofrimento de nossa vulnerabilidade extrema diante da contingncia e do gosto amargo do presente? Ainda mais se lembrarmos que: a histria universal no o lugar de felicidade. Posio melanclica na qual a rejeio do existente (o que poderia ter sido o presente se Cartago, Palmira, Roma no tivessem tal destino?) pode facilmente se transmutar em acomodao conformista com o que .

Mas para nos livrar da fixao melanclica no passado, abrindo uma processualidade retroativa, que o conceito trabalhar. Da porque, no mesmo trecho, Hegel, no deixar de dizer: Mas a esta categoria da mudana liga-se igualmente a um outro lado, que da morte emerge nova vida. importante lembrar, no entanto, como tal trabalho de luto no opera por mera substituio do objeto perdido atravs do deslocamento da libido. Dar a tal deslocamento o estatuto de uma substituio equivaleria a colocar os objetos em um regime de intercambialidade estrutural, regime no interior do qual a falta produzida pelo objeto perdido poderia ser suplementada em sua integralidade pela construo de um objeto substituto a ocupar seu lugar. Um mundo de balco de trocas sem prazo de vencimento. Se, como diz Freud, o homem no abandona antigas posies da libido mesmo quando um substituto lhe acena porque no se trata simplesmente de substituio. O tempo do luto no o tempo da reversibilidade absoluta. O desamparo que a perda do objeto produz no simplesmente revertida. Por isto, vincular o luto a uma operao de esquecimento seria elevar a lobotomia a ideal de vida.

Nem substituio, nem esquecimento, o luto no significa deixar de amar objetos perdidos. A respeito do luto, Freud fala de um tempo de latncia no qual: uma a uma, as lembranas e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto so focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido. Tal desligamento no um esquecimento, mas uma operao de compromisso a respeito da qual Freud no diz muito, da mesma forma como no diz muito a propsito de um processo estruturalmente semelhante ao luto, a saber, a sublimao. Talvez seja o caso de afirmar que tal operao de compromisso prpria ao trabalho de luto indissocivel da abertura a um forma de existncia entre a presena e a ausncia, entre a permanncia e a durao. Uma existncia espectral que, longe de ser um flerte com o irreal, existncia objetiva do que habita em um espao que fora as determinaes presentes atravs de ressonncias temporais. Pois a existncia do Esprito descritvel apenas em uma linguagem de espectros que animam os vivos, que do realidade uma espessura espectral pois vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado desapario, vida do que ainda pulsa tomando o esprito de outros objetos em uma metamorfose contnua. Metamorfose que Hegel no temeu em encontrar sua primeira elaborao imperfeita na representao oriental da transmigrao das almas (Seelenwanderung). Nada melhor que o Esprito hegeliano mostra, mesmo que Derrida no queira aceitar, como:

Se h algo como a espectralidade, h razo para duvidar desta ordem asseguradora de presentes e sobretudo desta fronteira entre o presente, a realidade atual ou o presente do presente a tudo o que podemos lhe opor: a ausncia, a no-presena, a inefetividade, a inatualidade, a virtualidade ou mesmo o simulacro em geral, etc. H de se duvidar inicialmente da contemporaneidade a si do presente. Antes de saber se podemos diferenciar o espectro do passado e este do futuro, do presente passado e do presente futuro, faz-se necessrio talvez perguntar se o efeito de espectralidade no consistiria em desmontar tal oposio, mesmo tal dialtica, entre o presente efetivo e seu outro.

Derrida no percebeu como atravs deste efeito de espectralidade que , em Hegel, desaparece a desapario, assim que o Esprito se afirma como processo de converso absoluta da violncia das perdas e separaes em ampliao do presente. Pois esse espao de metamorfoses produzido pelo luto uma figura privilegiada da linguagem de temporalidades mltiplas que se interpenetram. Por isto, podemos dizer que o trabalho de luto no construo de processos de substituio prprias a uma lgica compensatria. Ele produo de uma temporalidade que pode se dispor em um presente absoluto. No se trata assim de justificar a realidade mas, de certa forma, desrealiz-la mostrando como os espectros do passado ainda esto vivos e prontos a habitarem outros corpos, a abrirem outras potencialidades. Como se fosse o caso de dar realidade metfora de Freud para falar da estrutura do sujeito moderno: uma cidade na qual todos os estgios de seu desenvolvimento esto atualizados no mesmo lugar, criando um espao irrepresentvel:

Escolheremos como exemplo a histria da Cidade Eterna. Os historiadores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoao sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federao das povoaes das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de Srvio e, mais tarde ainda, aps todas as transformaes ocorridas durante os perodos da repblica e dos primeiros csares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as suas muralhas. (...) Permitam-nos agora, num vo da imaginao, supor que Roma no uma habitao humana, mas uma entidade psquica, com um passado semelhantemente longo e abundante isto , uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente ltima. (...) Se quisermos representar a seqncia histrica em termos espaciais, s conseguiremos faz-lo pela justaposio no espao: o mesmo espao no pode ter dois contedos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela conta com apenas uma justicativa. Mostra quo longe estamos de dominar as caractersticas da vida mental atravs de sua representao em termos pictricos.

KOSELLECK, idem, p. 52

HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenber die Philosophie der Geschichte, p. 215

LEBRUN, Grard; Lenvers de la dialectique, Paris: Gallimard, 2007, p. 33

HEGEL,G.W.F.; Enzyklopdie, op. cit., par. 259

HEGEL, G.W.F. Vorlesungen ber die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. `104

HEGEL, Vorlesungen ber die Philosophie der Weltgeschichte Band 1: Die Vernunft in der Geschichte, op. cit., p. 29

HEGEL, Fenomenologia do Esprito II, Petrpolis: Vozes, 1991, p. 139 .

As feridas do esprito so curadas sem deixar cicatrizes. O fato no o imperecvel, mas reabsorvido pelo esprito dentro de si; o que desvanece imediatamente o lado da singularidade (Einzelnheit) que, seja como inteno, seja como negatividade e limite prprio ao existente, est presente no fato (idem, p. 140 traduo modificada)

LEBRUN, O avesso da dialtica, So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 34-6.

ADORNO, Theodor; Dialtica negativa, op. cit., p. 252

Idem, p. 266

Chamou-se, com escrnio, esta histria compreendida hegelianamente o caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez atravs da histria. Todavia este Deus se tornou transparente e compreensvel para si mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus dialeticamente possveis de seu vir a ser at a sua auto-revelao: de modo que, para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do processo do mundo se confundiriam com a sua prpria existncia berlinense (NIETZSCHE, Friedrich; Segunda considerao intempestiva, Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2003, p. 72)

MARX, Karl; O Capital- volume I, So Paulo: Boitempo, p. 91

Idem, p. 73

HSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade, Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468.

Desenvolvi este ponto em SAFATLE, Vladimir; Grande Hotel Abismo, So Paulo: Martins Fontes, 2012

Sobre este tema ver, por exemplo, COMAY, Rebecca; Mourning sickness, op. cit.; ARANTES, Paulo; Hegel: a ordem do tempo, op. cit., e LEBRUN, Grard; Lenvers de la dialectique, op. cit..

HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen ber die Philosophie der Weltgeschichte Band 1: Die Vernunft in der Geschchte, op. cit., p. 35

FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, So Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49

Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a experincia liminar em GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememorao: ensaios sobre Walter Benjamin, So Paulo: Editora 34, 2014

HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen ber die Philosophie der Weltgeschichte, op. cit., p. 35

DERRIDA, Jacques; idem, p. 72