Historia Universidade Europa e Portugal
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Universidade de Coimbra
Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XXI – CEIS20
Relatório final de pesquisa
Pós-Doutorado
Uma história da universidade brasileira:
tensões, contradições e perspectivas de sua identidade
institucional
Prof. Dr. Angelo Brigato Ésther
Orientação
Prof. Dr. Luis Reis Torgal
CEIS20/UC
Junho/2012
Esta é uma versão condensada do relatório completo para uso em sala de aula, contendo apenas os dois primeiros
capítulos e as respectivas referências. O relatório completo pode ser obtido diretamente com o autor. A partir
deste relatório de pesquisa, foi publicado o livro: TORGAL, Luís Reis, ÉSTHER, Angelo Brigato. “Que
universidade? Interrogações sobre os caminhos da universidade em Portugal e no Brasil”, pela Editora da UFJF
(EDUFJF), em 2014.
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INTRODUÇÃO
Tem sido recorrente a afirmação de que as universidades estão em crise. Talvez
reflexo das sucessivas crises econômicas que vêm sendo observadas nos últimos anos, o fato é
que as universidades têm sido colocadas em xeque diante dos supostos novos desafios que a
chamada “era do conhecimento”, no contexto da “globalização”, impõem aos países,
organizações, instituições e indivíduos. No Brasil, a instituição universitária – em particular as
públicas e, mais notadamente, as federais – têm sido alvo permanente de discussões
relativamente acaloradas, sobretudo a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002), quando se promove a chamada “Reforma do Estado”, dando continuidade ao
processo de abertura da economia brasileira iniciado pelo então Presidente Fernando Collor
de Mello. O fato é que, hoje, subjaz uma discussão profunda – mas ainda não seriamente
realizada, a nosso ver – sobre o que é a universidade, que papéis ela deve desempenhar e
como deve fazê-lo, tendo em vista as diversas crises apontadas por especialistas nas últimas
décadas1.
Se voltarmos no tempo e examinarmos a história da universidade desde seu
nascimento oficial, percebe-se que ela sempre foi uma questão confusa, complexa, paradoxal
e necessária. Assim, é comum afirmar que a universidade brasileira “está em crise”. No
entanto, cabe perguntar: Qual crise? Por quê? E mais: por que a universidade (em especial a
brasileira) parece estar sempre em crise? E, em geral, sempre que há uma crise, parece ser
necessária uma reforma. A título de ilustração, e considerando a criação oficial da
universidade em 1920, foram feitas três reformas entre os anos de 1930 e fins da década de
1960, sendo que o ensino sofrera diversas reformas anteriormente (1911, 1915, 1925).
Observe-se que a primeira reforma – 1931 – ocorre apenas 10 anos após a criação da primeira
universidade. A segunda ocorre em 1942, e em 1968 ocorre a terceira. Em outras palavras, a
universidade parece ter “nascido em crise”. Ou nascido “sem identidade”? Ela precisaria ser
“reinventada” dez anos após seu nascimento. Por quê?
Como bem aponta Torgal2, a crise é própria de uma sociedade em movimento, assim
como é própria do ser humano; representa, normalmente, um estado de passagem. Espera-se
que essa passagem seja para um estado “melhor”. Conforme o autor, em termos médicos,
significa, por assim dizer, passar de um estado de doença para um estado de saúde. No
1 Ribeiro (1969), Santos (1995, 2004), Ristoff (1999), dentre outros. 2 Torgal (2010).
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entanto, a palavra “crise” suscita diversos significados conforme o critério utilizado. Do ponto
de vista social, a concepção mais abstrata associa o termo ao “ponto crucial” de um processo,
que marca a transição de uma situação para outra. Dito de outra forma,
a crise inclui, portanto, e sempre, um risco ou ameaça, em relação a uma situação
conceptualizada de acordo com a informação, saber, e valores adaptados pelo
observador, o qual, em função desta última componente, pode valorar positiva ou
negativamente as alterações em processo, uma atitude de empenhamento que neste
ponto suspende a neutralidade científica3.
Conforme Cordeiro, “quase não seria exagerado afirmar que a crise não só faz a
história como a funda. Uma história sem crises quase não é uma história, seja ela governada
pela Providência ou abandonada a um mecanismo cego”4.
Tal situação ocorre porque a história é construída pelos atores sociais, detentores de
objetivos, ideais, ideias, e recursos variáveis, que lutam por suas posições e interesses. Assim,
as indagações acima se fazem necessárias na medida em que a universidade representa uma
das instituições mais peculiares e indispensáveis da sociedade. Se a crise é própria da história,
então é reconfortante admitirmos e aceitarmos que a universidade está sempre em crise.
Mas, ao mesmo tempo, não se trata de adotar uma posição conformista nem banalizar
a existência de crises, pois corre-se o risco de tratá-las superficialmente, deixando as questões
centrais sempre em aberto, em nome de um processo ininterrupto e inevitável. No fundo,
parece que certas crises persistem justamente porque não são devidamente colocadas em
discussão, adotando-se soluções paliativas ou temporárias, que não colocam em causa o cerne
da questão. De todo modo, parece-nos fundamental compreender suas manifestações
empíricas e concretas, ou seja, compreender as razões, as motivações, as concepções, os
interesses e pontos de vista dos diversos sujeitos envolvidos ao longo da história da instituição
e de suas crises.
No nosso modo de ver, a crise fundamental da universidade é relativa à sua identidade
institucional, o que leva a dilemas e contradições em sua atuação. Se a identidade diz respeito
à forma como alguém ou um grupo se define e como é definida por outros, e se a universidade
não possui uma representação inequívoca de sua existência, então sua gestão fica, no mínimo,
dificultada. Isso implica que seus gestores – em todos os níveis – acabam por tomar decisões
que não representam adequadamente os diversos interesses em jogo e as diferentes
concepções acerca do papel e da forma de atuação da universidade. Nesse sentido, as soluções
3 Moreira (2010, p. 17-18). 4 Cordeiro (2010, p. 41).
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podem representar apenas o resultado de jogos de poder, ao invés de representar o acordo
negociado dos diversos interesses, concepções e ações. Em outras palavras, não se nega a
dimensão das relações de poder envolvida. Ao contrário, é no contexto das relações de poder
que a identidade é construída. Assim, “construção” é uma palavra-chave, pois indica um
processo “negociado” em diversas esferas e instâncias. Ao que parece, a identidade da
universidade parece ser mais “imposta” do que “negociada”. Talvez aí resida a principal
dificuldade de se chegar a um entendimento sobre a tão desejada e polêmica “autonomia da
universidade”. Tal discussão será retomada oportunamente.
Evidentemente, a crise da instituição universitária não se dá de forma isolada nem
descontextualizada. Ao contrário, ela está no bojo e constitui um espaço muito maior em que
diversas crises coexistem, sejam elas do modelo econômico, do modelo de sociedade e assim
por diante. Se há uma crise institucional da universidade, é porque há, simultaneamente, uma
crise mais ampla e profunda das instituições enquanto elemento mediador entre o homem e a
sociedade e a decorrente criação de sentido ou significado para os indivíduos e sociedades. Se
antes, as instituições – incluindo a universidade – eram fonte de significado para os
indivíduos, atualmente tal prerrogativa parece não funcionar muito bem. Se cabia à
universidade, enquanto instituição, realizar esta tarefa, e se hoje ela não mais realiza, a própria
identidade institucional da universidade está em crise.
É nesse sentido e dentro dessa perspectiva que se justifica a discussão da universidade,
pois sua atuação é correlacionada à concepção que dela se tem e dos papéis que deve
desempenhar, sempre num contexto de relações de poder. Pressupõe-se que as representações
e identidades da universidade podem ser diversas, variadas e contraditórias, o que consiste
num desafio ainda maior, uma vez que a articulação dessa diversidade de identidades
atribuídas implica fortes relações de poder de modo a se decidir por um curso de ação. Em
outras palavras, está um jogo uma “política de identidade”, envolvendo um embate entre
diversos atores sociais, detentores de recursos e posições variadas e variáveis no tempo e no
espaço.
No que diz respeito à identidade das universidades, tomá-la como um única
constituiria uma falácia e um erro. Ao contrário, as universidades têm origens e concepções
diversas ao longo da história. Nesse sentido, e embora não utilizem o conceito de identidade
institucional, Drèze e Debelle entendem a instituição universitária segundo cinco pontos de
5
vista, que denominam “concepções da universidade”5: centro de educação, comunidade de
pesquisadores, núcleo de progresso, modelo intelectual e fator de produção. As três primeiras
concepções compõem o que os autores chamam de “a universidade do espírito”, e que dizem
respeito aos ideais mais tradicionais da universidade, sendo representadas pela universidade
inglesa, pela alemã e pela norte-americana, respectivamente. As duas últimas concepções são
agrupadas sob o rótulo “a universidade do poder”, concernentes à universidade francesa e à
soviética.
Embora façam algum sentido, as concepções de Drèze e Debelle têm um caráter mais
sociológico do que histórico, na medida em seus tipos retratam universidades específicas no
tempo e no espaço, desconsiderando os diversos estágios de desenvolvimento pelos quais
passaram as universidades ao longo de sua história, desde sua criação no século XII.
Poderíamos definir tais concepções como “identidades emblemáticas”, dadas sua importância
e capacidade de representação e de influência sobre o entendimento acerca das universidades.
De todo modo, é fato que as universidades não apresentam um desenvolvimento uniforme e
único, nem uma concepção (identidade) única. Ao contrário, embora haja semelhanças, elas
possuem configurações e concepções diferentes significativas. Da mesma forma, sofreram
mudanças significativas ao longo de seus séculos de existência6, sendo, inclusive, fechadas e
reabertas em momentos históricos diferentes com concepções diferentes7. Nesse sentido,
alguns autores apontam para questões relevantes, como, por exemplo, no caso inglês, a
universidade ser considerada uma criação da modernidade, a despeito de sua antiguidade8.
Torgal, por sua vez, mostra alguns paradigmas acerca da universidade, como a “universidade
política” – que deveria seguir a lógica totalitária, ou as concepções políticas do Estado – e
“universidade cultural”, baseada no texto de Ortega y Gasset, cuja ideia central era de que a
universidade deveria transmitir cultura9.
Embora negando-se uma concepção “essencialista”, a universidade pode ser entendida
como uma instituição, dado seu modo de funcionamento e dinâmica particulares, que
governam determinados comportamentos dos seus atores. Como tal, fornecem modelos
morais e cognitivos que permitem a interpretação e a ação dos indivíduos. Nesse sentido,
fornecem não apenas informações úteis para uma ação estratégica, como também afetam a
5 Drèze e Debelle (1983). 6 Rüegg (2007). 7 Torgal (2008b). 8 Magalhães (2006). 9 Torgal (2008a; 2008b).
6
identidade, a imagem de si e as preferências que guiam a ação10
. Entretanto, embora dotadas
de certa racionalidade instrumental, as instituições adotam determinadas práticas culturais,
comparadas aos mitos e às cerimônias, não necessariamente porque contribuem para aumentar
sua eficácia (racionalidade), mas porque visam obter legitimidade de suas estruturas formais
racionalizadas11
. Em outras palavras, “as organizações adotam formas e práticas institucionais
particulares porque elas têm um valor largamente reconhecido num ambiente cultural mais
amplo”12
. Desse modo, “a identidade e a imagem de si dos atores sociais são elas mesmas
vistas como sendo constituídas a partir das formas, imagens e signos institucionais fornecidos
pela vida social”13
.
De modo a obter a legitimidade desejada, as instituições acabam por adotar
mecanismos isomórficos, de modo a se tornarem mais semelhantes àquelas que lhes servem
de referência14
. É desse modo que as universidades podem se organizar de modo muito
semelhante entre si, inclusive defendendo uma missão “clássica” e quase inequívoca para o
campo: ensino, pesquisa e extensão. Talvez por isso haja uma sensação de que a instituição
possui uma identidade essencial ou imutável ao longo do tempo. Daí suas concepções
poderem ser entendidas como identidades institucionais, pois as instituições possuem a
propriedade de manter suas características por um longo período de tempo – o aspecto
“duradouro” da identidade15
. Mas, ao mesmo tempo, pode indicar a ausência da reflexão
crítica sobre si mesma, simplesmente conformando-se de acordo com o mainstream
ideológico de sua época.
Entretanto, a história da universidade está longe de ter sido construída de forma linear
e inequívoca como a reflexão acima pode sugerir. Também está longe de ter sido meramente
determinada por uma ordem social vigente e onipotente. Ao contrário, sua configuração é
fruto de relações de poder mais amplas, que envolvem esferas externas e internas à própria
instituição. Isso é válido também para o caso da universidade brasileira, cuja origem formal
remonta ao Século XX, quando é criada a primeira universidade brasileira.
Provavelmente em função das diversas concepções ou identidades possíveis, percebe-
se que a instituição atravessa crises – no mundo e no Brasil – que têm colocado sua atuação e
10 Hall, Taylor (2003). 11 Meyer, Rowan (1991). 12 Hall, Taylor (2003, P. 211). 13 Hall, Taylor (2003, P. 201). 14 DiMaggio, Powell(1991); Meyer, Rowan (1991). 15 Nos termos de Whetten (2006).
7
papel em xeque. No caso brasileiro em particular, a universidade enfrenta três crises
fundamentais16
: financeira, do elitismo e do modelo. A crise financeira diz respeito aos baixos
investimentos que o governo federal vem realizando na universidade. Segundo o autor, o
“país está hoje tão obcecado pela ideia de eficiência e corte de gastos públicos que se tornou
incapaz de atentar para o retorno social, educacional e mesmo financeiro que o investimento
em educação representa”17
. A crise do elitismo da educação superior diz respeito ao acesso à
universidade. O autor menciona a classificação Trow, que estabelece três sistemas
considerando a oportunidade de acesso à educação superior: o sistema de elite (15% da faixa
etária entre 18 a 24 anos têm acesso). o sistema de massas (até 40%) e o sistema universal
(acima de 40%). No Brasil, considerando a faixa etária entre 18 e 24, cerca de 10% da
população está matriculada na educação superior. Ou seja, o sistema é considerado altamente
elitista. A crise do modelo tem a ver com a definição que se faz da função do ensino superior.
A educação superior é uma atividade de múltiplas funções, que atende a três tipos de
necessidades importantes e legítimas:
a) A necessidade de garantir o avanço autônomo e desatrelado do conhecimento.
b) As necessidades do Estado, relativas a projetos de desenvolvimento de governos e
pela demanda de mão-de-obra altamente qualificada.
c) As necessidades do indivíduo, relativas ao seu desejo e direito de investir em si
próprio.
Segundo o autor, essas necessidades podem até ser conflitantes em alguns casos, mas
não são antagônicas. Entretanto, alteram escalas de prioridades e são facilmente ideologizadas
e tratadas como se fossem antagônicas. Diante dessas questões, fica evidenciada a
necessidade de equacionar as demandas, o que passa por uma discussão do modelo de
educação superior e de universidade, envolvendo a questão da alocação dos recursos. Em
outras palavras, o autor coloca que “cresce o sentimento de que a educação superior deve
estar disponível para todos o que seriamente a procuram”18
.
Da mesma forma, outros autores também entendem que a universidade (e de resto todo
o ensino superior) tem vivido “em crise” há muito tempo, o que vem ocasionando uma série
de críticas quanto à sua identidade, forma de atuação e gestão. Boaventura Santos, por
16 Ristoff (1999). 17 Ristoff (1999, P.203).O autor se refere ao contexto do final de década de 1990, quando do governo do
Presidente Fernando Henrique, que defendia a reforma do Estado, de acordo com os preceitos da chamada
“Nova Gestão Pública”, de inspiração inglesa. Como se verá ao longo deste texto, tal lógica permanece nos dias
de hoje, alcançando a universidade de forma clara e profunda. 18 Ristoff (2000, p.208).
8
exemplo, aponta as crises de hegemonia, de legitimidade e institucional da instituição
universitária19
. Calhoun discute a questão do bem público versus privado20
. Magalhães, por
sua vez, entende que a crise da instituição universitária está inserida no bojo de uma crise do
sistema de educação superior, e que estas crises são concomitantes à crise da modernidade21
.
Torgal também identifica tal crise, apontando que uma de suas decorrências é a inserção da
lógica gerencial, empreendedora – termo consagrado por Burton Clark – e empresarial no seio
da instituição universitária, o que, por sua vez, ocasiona grandes ambiguidades e contradições
em sua atuação22
, algo apontado neste sentido, anteriormente, por Cowen23
. No Brasil, as
críticas têm assumido um tom semelhante ao de investigadores estrangeiros, como Ribeiro,
Trindade, Chauí, Leher, Nussenzweig, Rodrigues, Sguissardi, dentre outros24
, cujos
argumentos serão abordados ao longo de todo este trabalho.
Se aqui assumimos que a universidade passa por uma crise de sua identidade
institucional, isto não implica dizer que o processo se limita exclusivamente a esta dimensão.
Ao contrário, passamos por “momento de mudança histórica [em que] as estruturas culturais
de sustentação educacional, forças econômicas e ideologias políticas estão mudando muito
rapidamente e construindo algo novo”25
. Em outras palavras, não se trata de um problema
exclusivo da universidade, mas de uma questão muito mais complexa que envolve os sistemas
educacionais e, por conseguinte, as universidades em todos os países, pelo menos de uma
forma geral, mas de modos e intensidades distintas. Portanto, aqui, trata-se de analisar a
universidade brasileira neste contexto mais amplo de transformações, em que as políticas de
identidade assumem uma importância vital, embora com contornos bem específicos. É o que
pretendemos mostrar neste trabalho.
Para tanto, este trabalho está organizado de tal modo que fiquem claras as
permanências e as mudanças nas concepções acerca da universidade ao longo de sua história,
desde sua criação no século XII. Evidentemente, não é possível aprofundar em todos os
aspectos concernentes à estrutura e dinâmica universitárias ao longo de cerca de mil anos.
Assim, pretende-se descrever e analisar aquilo que nos parece mais relevante para a
19 Santos (2003; 2004). 20 Calhoun (2006). 21 Magalhães (2006). 22 Torgal (2008a; 2008b). 23 Cowen (2002). 24 Ribeiro (1969), Trindade (1999), Chauí (1999), Leher (2004), Nussenzweig (2004), Rodrigues (2001),
Sguissardi (2005; 2006). 25 Cowen (2002, p.35).
9
compreensão das contradições e das tensões acerca da identidade institucional da
universidade. Talvez, desta forma, seja possível pensarmos em perspectivas mais realistas
para o futuro, mas que devem ser, necessariamente, discutidas no presente.
Ao longo dos séculos, a universidade assume contornos e significados distintos,
embora tenha sido capaz de manter alguns vivos por muito tempo, chegando aos dias atuais,
mas não sem combate, crítica, resistência e conflitos. Por outro lado, o presente parece
indicar, tal como sugerem diversos autores, que a universidade está em ruínas, ou, no mínimo,
rendida a uma situação contra a qual não pode (ou não quer?) lutar, e que lhe impõe um
paradigma de atuação completamente distinto daquele para o qual foi criada e mantida até
então.
O caso brasileiro, por sua vez, é peculiar diante da universidade europeia da qual é
herdeira, pois a universidade brasileira não nasceu nem cresceu na Idade Média. Aliás, o
Brasil, enquanto nação e país, jamais viveu a Idade Média, portanto, não tem uma espécie de
“memória coletiva”, ainda que inconsciente acerca daquela época. Ao contrário, a
universidade brasileira nasceu na contramão dos ideais dos republicanos, para quem esta
significava apenas uma instituição já fadada ao fracasso, simplesmente por representar uma
expressão concreta de um regime falido.
Diante do exposto, este trabalho começa com uma breve história da universidade,
considerada uma criação europeia de modo basicamente unânime. De todo modo, no primeiro
capítulo serão descritas suas principais características, de modo a deixar claro seu significado
genérico em seus diversos períodos, alcançando os dias de hoje. Não é possível aprofundar
em cada etapa histórica, da mesma forma que não se analisarão universidades específicas,
embora as universidades “fundadoras”, por assim dizer, sirvam de referência para outras e
sejam aqui minimamente abordadas e descritas.
O segundo capítulo descreve a história da Universidade de Coimbra, pois é o destino
principal dos brasileiros durante a fase colonial, principalmente nos séculos XVIII e XIX,
além de sua influência na própria organização jurídica do território. Por conta disto, e por
outros fatores, contribuiu, também, para a construção da nacionalidade brasileira,
influenciando, inclusive, os movimentos pela independência26
.
26 Gauer (1995). Segundo a autora, formaram-se 1777 pessoas em Coimbra durante do século XVIII, e apenas
817 durante o século seguinte, em função, especialmente, da transmigração da família real para o Brasil em
1808, com a consequente abertura de cursos superiores por D. João VI. Ainda, segundo a autora, em 1750 havia
uma população branca de 1.500.000 habitantes no país, e cerca de 2.000.000 em 1808, além de 300.000 mestiços
e 500.000 índios. Neste sentido, a posse de um curso superior era revestida de especial importância social.
10
O capítulo seguinte descreve e analisa as fases históricas do Brasil no que diz respeito
à educação superior em geral, e à universidade particular. Nesta edição, dentre estas fases,
destacam-se duas: a fase inicial, de sua criação artificial e tardia, e a fase atual, a partir da
emergência da chamada “Nova República”.
A primeira fase é fundamental, pois trata-se do período em que a universidade é
criada, após séculos de resistência por parte da coroa portuguesa, e a despeito das diversas
propostas e tentativas formais, incluindo os inconfidentes e a fase mais inicial da república.
Assim, procura-se deixar claros tanto os motivos da negação bem como da criação tardia.
Para tanto, enfatizou-se, sobretudo, o discurso oficial dos republicanos, desde a proclamação
até o início da década de 1930, quando Getúlio Vargas assume o poder. A fase atual é também
melhor explorada, na medida em que representa, obviamente, o presente e o passado mais
recente da história da universidade. As fases “intermediárias”, por assim dizer, são descritas
em seus aspectos essenciais, de modo a desenhar o “desenrolar” e as mutações (?) pelas quais
passa a universidade brasileira, em termos de sua identidade institucional. Se existe algo em
comum em todas as fases de sua existência, tratam-se dos conflitos existentes entre ideologias
e ideais distintos e contraditórios, o que se refletiu, indubitavelmente, nas formas e nas
expressões que a instituição universitária assumiu no país, como, por exemplo, nos casos
emblemáticos da Universidade do Rio de Janeiro (URJ), Universidade do Distrito Federal
(UDF), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade de São Paulo (USP).
O quarto capítulo aponta as principais questões envolventes da gestão universitária,
tendo em conta, principalmente, a polêmica questão da autonomia. A gestão universitária não
é tema menos complexo do que a identidade institucional. Ao contrário, a gestão é
multidimensional e multinível, se assim podemos chamar. É multidimensional na medida em
que envolve dimensões financeiras, estruturais, materiais e humanas. É multinível por não se
limitar apenas à instância organizacional. Embora dotadas de autonomia administrativa, o
governo federal, por meio de seus órgãos, em grande medida gerencia o funcionamento da
instituição universitária, em todas as suas dimensões, com maior ou menos interferência e
impacto, conforme o que se está em jogo. Além disto, embora não constitua objeto de análise
específica deste trabalho, há de se mencionar e considerar um tipo de interferência na gestão,
que é aquela que diz respeito às influências ideológico-partidárias no interior da universidade,
envolvendo gestores, representantes sindicais – professores e servidores técnico-
administrativos – e representantes discentes. Neste sentido, inclui-se a dimensão política.
11
Finalmente, são tecidas considerações finais ao tema, apontando-se tanto os limites do
estudo quanto algumas possibilidades de desdobramentos e aprofundamentos. Não se esgota o
tema em sua complexidade, mas procura-se oferecer uma contribuição aos estudos
organizacionais, numa perspectiva assumidamente interdisciplinar, em que disciplinas como
gestão, sociologia e história se interconectam para a compreensão acerca dos desafios que são
colocados à sociedade, às organizações, às universidades e aos indivíduos. Esperamos ter
alcançado tal empreendimento.
12
A CRIAÇÃO DA UNIVERSIDADE NA EUROPA
Segundo Anísio Teixeira, são quatro as instituições fundamentais que constroem e
condicionam a vida na sociedade: a Família, o Estado, a Igreja e a Escola. Embora a
universidade (escola) tenha se colocado em pé de igualdade com as demais instituições apenas
a partir da Idade Média, ela hoje é entendida como uma das grandes responsáveis pelo
florescer da civilização ocidental27
. Assim, a universidade não está à margem da história de
um país. Ao contrário, ela participa da história e é por esta atravessada, numa espécie de
relação dialética28
. Na visão de Anísio Teixeira, a universidade é, na sociedade moderna, uma
das instituições características e indispensáveis, sem a qual não chega a existir um povo, o
qual não teria uma existência autônoma, vivendo, tão-somente, como um reflexo dos
demais29
. Segundo o autor,
[...] a história de todos os países que floresceram é a história da sua cultura e a
história da sua cultura é, hoje, a história das suas universidades. Sempre a
humanidade viveu utilizando a experiência do passado, mas essa experiência atingiu, nos tempos modernos, tamanha complexidade intelectual que, sem a
experiência das universidades, grande parte dela se teria perdido e outra grande
parte nem chegaria a ser formulada30.
Anteriormente ao advento das universidades, o ensino medieval se dava, basicamente,
por meio da escola monástica e da episcopal. Ambas, religiosas e essencialmente técnicas,
visavam formar o monge e o padre, respectivamente31
. Assim, desde a queda do Império
Romano do Ocidente, o ensino era responsabilidade, basicamente, da Igreja. Desde o século
VI, a Igreja decidiu abrir escolas em suas paróquias e bispados, de modo a preparar os
indivíduos para o clero e outras atividades. À época, os mosteiros eram fundamentalmente
compostos por uma escola, uma biblioteca e um ateliê de cópia de manuscritos. Durante
séculos, e desde então, a escola no ocidente foi uma instituição monástica32
.
Contribuíram muito para o crescimento das escolas episcopais – e depois as
universidades – a luta da Igreja contra os inimigos da cristandade – as Cruzadas dos séculos
XI a XIII – e o decorrente desenvolvimento do comércio, período em que os mercadores
27 Teixeira (1988). O texto original é de 1935. 28 Fávero (1980). 29 Teixeira (1988). 30 Teixeira (1988, p. 34). 31 Janotti (1992). 32 Verger (2001).
13
alcançam grande influência e poder na sociedade, o que vai acarretar, por sua vez,
necessidades de conhecimentos técnicos para as práticas contábeis e de registro da época33
.
Os estudos eram dirigidos prioritariamente para as ciências sagradas ou estudos
teológicos, com o objetivo de habilitar o futuro eclesiástico a compreender e expor as
Escrituras Canônicas e outros escritos, ficando as ciências desleixadas e as questões
filosóficas centrais evitadas. Para completar o ensino teológico, havia as chamadas “artes
liberais”, herança da cultura antiga. As artes liberais eram sete, divididas em dois grupos: o
Trivium e o Quadrivium. O primeiro grupo, considerado como instrução elementar, envolvia a
gramática, a retórica e a dialética, enquanto o segundo era uma instrução avançada,
envolvendo a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. A escola monástica
preponderou sobre a episcopal até o século XI, mas no decorrer do século XII, devido ao
renascimento urbano e cultural, a escola episcopal se sobressai, por ser tipicamente urbana.
No entanto, logo ela é suplantada por uma nova escola: a universidade34
.
Em relação ao seu surgimento, pode-se perguntar se a universidade é um resultado da
sociedade em que existe ou se ela é um fator na formação dessa sociedade. Para alguns
autores, a universidade surge para manter a dominação da classe dirigente, para outros ela
aparece em função do florescimento do comércio e transportes fomentados pelas cruzadas, e,
ainda, contrariamente às perspectivas anteriores, a universidade surge pelo interesse erudito e
científico, pelo desejo de aprender e de saber, o amor sciendi35
. Atualmente, os historiadores
concordam que a universidade
“não desceu dos céus sobre a sociedade nem emanou pura e simplesmente dela
como uma função das forças sociais de produção. Existem uma interacção e uma
influência mútua entre a universidade e a sociedade na qual ela está integrada. Sem o
estímulo intelectual da procura racionalmente controlada do conhecimento não
existiria a universidade [...] A nova instituição social, a universidade, apenas poderia ter surgido nas circunstâncias econômicas, políticas e sociais particulares de certas
cidades européias no início da Idade Média”36 .
Por outro lado, o conhecimento atual ainda não permite conclusões nem explicações
definitivas sobre quais fatores ou quais combinações de fatores fizeram com que acadêmicos
principiantes e maduros se fundissem numa pessoa jurídica coletiva à qual fossem garantidos
direitos e privilégios por parte das autoridades públicas da época37
. De todo modo, parece ser
33 Le Goff (1995). 34 Janotti (1992). 35 Rüegg (1996). 36 Rüegg (1996, p. 10-11). 37 Rüegg (1996).
14
uma unamidade que a universidade é uma criação europeia da Idade Média, uma instituição
original que só pode ser compreendida em termos de sua história de surgimento e do seu
modo de funcionamento em termos concretos38
.
Em termos gerais, e embora a existência da universidade não fosse necessária para
alcançar seus objetivos, todos os atores sociais esperavam encontrar apoio do saber acadêmico
e científico para a luta por sua existência (Quadro 1). Assim, “os poderes político e
eclesiástico esperavam obter apoio e reforço para o domínio de que usufruíam, os estudantes e
os professores procuravam saber e vantagens sociais, os habitantes das cidades universitárias
pretendiam um bem-estar acrescido39
”.
Os papas tinham três interesses principais na existência da universidade. Em primeiro
lugar, pretendiam reforçar a posição de uma doutrina racionalmente inteligível, num ambiente
repleto de ordens religiosas e de homens de cultura, de modo a evitar que as heresias, já
crescentes, se espalhassem ainda mais. Em segundo lugar, desejam consolidar os poderes
centrais do pontificado face aos poderes terrenos e interesses feudais das diversas regiões. Em
terceiro lugar, a necessidade de recrutar pessoal para seus serviços. A esta altura, século XII, a
cúria já havia reconhecido a importância da educação erudita na formação de pessoal, de
modo a resolver problemas dogmáticos e legais da política eclesiástica. Diante destes
objetivos, os papas viam a universidade como uma instituição que, sob sua jurisdição e
proteção diretas, serviriam como meio de controle e organização dos estudos da época.
Assim, usavam as universidades, por exemplo, para enviar seus decretos para tratamento e
difusão nas aulas. Da mesma forma, o pagamento de prebendas e benefícios eclesiásticos aos
monges ou padres, os colocavam em dívida para com a Igreja.
Os reis e monarcas esperavam uma ajuda intelectual e individual no estabelecimento e
consolidação das instituições que enfrentavam oposição das aristocracias. As universidades
também serviam aos seus propósitos de manter seu domínio territorial, embora muitas das
vezes justificassem a fundação de uma universidade como alternativa para que os súditos não
precisassem estudar no estrangeiro, o que lhes era muito caro economicamente.
Embora houvesse um nível elevado de conflitos entre a cidade e os estudantes das
universidades, em função de seus privilégios e benefícios legais, as cidades passaram a
perceber vantagens em possuir uma universidade em seu território, na medida em que esta
formava pessoal capacitado a resolver problemas legais, administrativos e comerciais.
38 Verger (1996). 39 Rüegg (1996, p.13).
15
Os professores e estudantes, por sua vez, gozavam dos benefícios garantidos pela
Igreja, o que lhes conferia segurança e liberdade para seus estudos. A maioria dos alunos
esperava, também, oportunidades de nomeação para cargos públicos compensadores,
sobretudo se não fossem de classes economicamente mais privilegiadas. Os professores
adquiriram estatuto especial, embora não tivesse precedência sobre aqueles que não tivessem
grau acadêmico para exercício da profissão, fosse advogado, médico ou teólogo. Com o
tempo, os conhecimentos superiores se mostrariam importantes, levando os professores a se
distinguirem na sociedade, sobretudo ao final da Idade Média.
Quadro 1 – Expectativas dos atores sociais quanto à Universidade durante a Idade Média
Atores sociais Expectativas
Papas
Reforçar a posição de uma doutrina racionalmente inteligível, num ambiente repleto de
ordens religiosas e de homens de cultura.
Consolidar os poderes centrais do pontificado face aos poderes terrenos e interesses feudais
das diversas regiões.
Recrutar pessoal qualificado para seus serviços.
Monarcas
Ajuda intelectual e individual no estabelecimento e consolidação das instituições que
enfrentavam oposição das aristocracias.
Ajudar a manter seu domínio territorial, embora muitas das vezes justificassem a fundação
de uma universidade como alternativa para que os súditos não precisassem estudar no
estrangeiro, o que lhes era muito caro economicamente.
Professores Garantia de privilégios e benefícios, além de proporcionar status e reconhecimento social.
Alunos Oportunidades de nomeação para cargos públicos compensadores, sobretudo se não fossem
de classes economicamente mais privilegiadas.
Cidadãos Formar pessoal capacitado a resolver problemas legais, administrativos e comerciais, a
despeito dos níveis de conflito que existiam.
Baseado em Rüegg (1996).
Em seus períodos iniciais, as universidades aceitavam todos os que desejassem se
tornar membrum universitatis, em nada influenciando sua origem, status, distância, riqueza ou
pobreza, nem mesmo deficiências físicas, incluindo a cegueira. Mesmo com toda a obsessão
em torno dos estatutos, a pessoa poderia ingressar desde que possuísse os recursos
necessários. Assim, eram duas, basicamente, as razões para tal facilidade de acesso: a
característica fundamental da universidade, e o sistema geral de educação que existia na Idade
Média40
.
A universidade foi concebida, inicialmente, como uma associação de indivíduos,
corporações comunais, características da vida coletiva das associações, irmandades, colégios e
famílias. A história subsequente da universidade é “a história da progressiva
40 Schwinges (1996).
16
institucionalização, racionalização e, finalmente, ‘despersonalização’ dos universitas
studii”41
, que continuou até os tempos modernos, a despeito das crises e transformações por
que passaram as universidades em toda a Europa. As universidades eram constituídas por
comunidades de indivíduos, a associação de estudantes em torno do professor era a regra
geral, independentemente de se basear no modelo de Paris ou de Bolonha. Não havia um
edifício principal, algo que só vai acontecer a partir de meados do século XVI, cujo
“aparecimento constitui um enorme passo em frente no sentido do conceito da universidade
como instituição, em oposição ao conceito da universidade como uma associação de
indivíduos em torno de um professor”42
. O magister desempenhava um papel de garantir a
disciplina dos estudantes, em geral muito jovens, que ficavam sob sua proteção, controle e
poder. Ao ingressar, o estudante escolha seu magister de acordo com um conjunto de regras.
Era tarefa do professor universitário enquanto indivíduo, e não da universidade como um
todo, avaliar o estudante. O elo entre o estudante e o magister era, portanto, o único critério
segundo o qual alguém era admitido na universidade, e que continuou como o padrão
generalizado até fins da Idade Média, quando os estatutos tornaram-se mais rigorosos43
.
Quanto ao sistema educacional da Idade Média, não havia requisitos prévios quanto a
conhecimentos ou certos padrões de educação para ingresso na universidade. A rigor, não se
provou ainda se todos os que frequentavam a universidade sabiam ler e escrever. Não havia
uma sucessão de estágios nem dependência de formação em uma escola para frequentar outra.
As transferências eram comuns, incluindo da universidade para outras escolas. A frequência
às aulas não eram obrigatórias nem absolutamente necessárias. O ensino não foi profissão
acadêmica durante os séculos XIII a XV. A grande virtude das universidades em relação a
outras escolas era o fato de que ela habilitava o seu mestre ou doutor a ministrar aulas em
outras escolas e universidades de qualquer parte44
.
Em sua maior parte, as universidades estavam estruturadas em termos de concepções
pedagógicas e classificações de conhecimentos herdados dos reformadores carolíngios
(Alcuíno), dos Padres da Igreja (Santo Agostinho, São Jerônimo) e dos teóricos da
Antiguidade (Quintiliano, Boécio etc.), ao quais tinham como inspiração Aristóteles e Cícero.
41 Schwinges (1996, p. 172). 42 Schwinges (1996, p. 173) 43 Schwinges (1996). 44 Schwinges (1996).
17
É, portanto, uma herança tripla, que compreende uma classificação, uma hierarquia e um
método45
.
As disciplinas eram classificadas por uma autoridade (textos básicos e comentadores
reconhecidos), que funcionavam como base para outras disciplinas como a teologia, medicina,
direito e artes liberais. Por serem determinadas, ficavam excluídas disciplinas como história,
poesia, direito consuetudinário, dentre outras. Entre aquelas disciplinas havia uma hierarquia,
determinada por critérios positivos, tais como o caráter religioso de cada uma, de sua utilidade
social e sua dignidade intelectual, excluindo-se todas aquelas que parecessem “profanas”,
“lucrativas” (que proporcionasse rendimento a alguém) ou “mecânicas” (relacionada com a
matéria). Nesta hierarquia, primeiro vinha a Teologia, seguida do Direito e da Medicina e, por
fim, Artes46
. Os métodos de ensino tendiam a ser os mesmos em todas as universidades da
Idade Média, ou seja, basicamente escolástico. Consistia no uso corrente do latim como
língua de debate erudito, primando-se pelo exercício de duas práticas: a lição e a disputa. A
lição consistia na leitura dos textos básicos e seus comentários de cada disciplina,
proporcionando o domínio das “autoridades” ao estudante, para que este pudesse participar da
disputa, um debate oral conduzido segundo as regras do silogismo aristotélico, que servia para
estabelecer, defender ou refutar uma tese de todos os gêneros – filosóficos, judiciais,
teológicos etc47
.
Desde o início, o studium generale expressava seu caráter e imagem por meio dos seus
trajes, insígnias e festividades:
A complexa participação nos acontecimentos das universidades exigia a ordenação
simbólica das ideias em rituais e cerimónias. Congregações, tomadas de posse,
exames, aberturas do ano lectivo, procedimentos jurisdicionais, lições, serviços
religiosos e até mesmo as refeições e as festividades observavam sequências rituais
de palavras, gestos, objectos, música, luzes e mobiliários e formas de vestir precritas. As insígnias universitárias abrangiam um número bastante grande de
objectos simbólicos usados de muitas maneiras e em diferentes ocasiões pelos
membros dos órgãos académcos: ceptros e bastões, correntes, anéis, selos, cálices,
chaves, registos e livros de estatutos, togas e gorros. Os ceptros eram os sinais
visíveis do poder autônomo e, especialmente, jurisdicional dos reitores [...] Os
bedéis marchavam à frente dos reitores e dos professores transportando bastões de
comprimentos diferentes. Em Bolonha, os doutores acabados de nomear recebiam
anéis de ouro, juntamente com a sua licentia docente”48.
45 Verger (1996). 46 Verger (1996) afirma que não se deve tomar as Artes Liberais como meras faculdades preparatórias, a despeito
de só se receber o estatuto de Universidade aquela que tivesse uma faculdade de Teologia, Direito ou Medicina. 47 Verger (1996). 48 Gieysztor (1996, p. 138).
18
O traje acadêmico também surge nesta época, tendo origem no vestuário do clero
secular. A cappa clausa – uma capa com capuz e buraco para a cabeça – foi introduzida no
século XIII para uso clerical fora de casa, sendo adotado em Paris, Bolonha e Oxford,
adquirindo um corte próprio no século XIV, e as cores assumindo significados diferentes mais
adiante. No século XV era visível a influência da moda laica no vestuário
acadêmico,incluindo bonés, gorros e capelos. É desta moda que nasceu a toga de mangas em
forma de asa usada na Alemanha e Inglaterra. Por volta do final da Idade Média, cada
faculdade usava trajes de formato e de cores distintas49
.
Também na era medieval surge a prática do juramento. Embora houvesse diversas
possibilidades de não fazê-lo, o juramento tinha de ser feito para concretização da matrícula,
que podia ser recusada pelo reitor caso o estudante não o fizesse. A idade mínima para o
juramento era variável conforme a universidade, numa faixa entre 10 e 16, sendo a regra
canônica a idade de 14 anos, idade comum entre os estudantes. O juramento tinha quatro
características básicas: o recém-chegado jurava ao reitor até fosse lícito, moral, social e
legalmente; jurava cumprir e preservar os estatutos vigentes e futuros; jurava promover o
bem-estar da universidade independente de seu grau ou posto acadêmico; e jurava renunciar a
qualquer forma de vingança pessoal, respeitando a ordem pública do reitor50
.
Se as universidades, enquanto instituições, tinham estatutos muito diferentes em fins
da Idade Média, por outro lado, tinham em comum a busca de uma autonomia legal e da
manutenção de prestígio profissional e corporativo da sociedade da época51
.
Rüegg procura estabelecer, hipoteticamente, os valores que legitimaram, na Idade
Média, em termos religiosos, o amor sciendi e sua respectiva forma institucional: a
universidade52
:
1. A crença numa ordem do mundo criada por Deus, racional e acessível ao
entendimento e explicada pela razão, daí o papel da investigação científica e
acadêmica como uma tentativa de entender esta ordem racional da criação divina.
2. A antiga concepção do homem como um ser imperfeito e a ideia judaico-cristã de
uma criatura caída em pecado, de onde deriva a ideia da limitação cognitiva do
homem, o que serviu para a manutenção da cooperação colegial, baseada em
valores éticos tais como a modéstia, a reverência e a autocrítica.
49 Gieysztor (1996). 50 Schwinges (1996). 51 Gieysztor (1996). 52 Rüegg (1996).
19
3. O respeito pelo indivíduo como um reflexo do macrocosmo ou tendo sido criado à
imagem e semelhança de Deus, o que lançou as bases para a liberdade de
investigação e do ensino.
4. O absoluto imperativo da verdade científica, que já havia conduzido na escolástica
às normas básicas de ensino e investigação, tais como a negação de conhecimentos
provados, a sujeição das afirmativas às regras da evidência, bem como a abertura
às objeções a um argumento pessoal, e o caráter público da argumentação e debate.
5. O reconhecimento da sabedoria enquanto bem público, o que seria, em última
instância, uma dádiva de Deus, não evitou que o ensino e o estudo fossem
motivados pelo dinheiro. No entanto, seu valor econômico é maior no âmbito das
profissões cultas exercidas fora da universidade.
6. O conhecimento científico e acadêmico cresce de forma cumulativa, baseando-se
em conhecimentos anteriores, sendo assim o progresso do conhecimento um
processo contínuo de reformatio.
7. A igualdade e solidariedade entre os universitários permitiram às universidades se
tornarem centros institucionais da comunidade científica. Quanto maior o nível
dessa igualdade e quanto mais de perto se ligava à responsabilidade comum do
progresso do conhecimento, tanto melhor a universidade cumpria seu papel.
Quando isso não acontecia, as universidades tornaram-se estéreis e algumas
deixaram de existir, mesmo na era medieval.
Evidentemente, são valores básicos e gerais, o que não impedia diferenças
significativas entre as universidades nem uma série de conflitos internos. No entanto, eles dão
uma demonstração do que consistiam os fundamentos da universidade na Idade Média. Nesse
aspecto, o caso da universidade portuguesa será demonstrado adiante.
Trindade entende a universidade em quatro fases. Para ele, tal como visto acima, o
primeiro período é aquele que vai do século XII até o Renascimento e corresponde ao
período de invenção da universidade tradicional, a partir das experiências precursoras de Paris
e Bolonha, e que se implanta em todo o território europeu sob a proteção da Igreja romana53
.
Em sua fase áurea, a universidade se organiza a partir de um modelo corporativo e em torno
de uma catedral, abarcando certos domínios do saber, como a Teologia, o Direito Romano e o
Canônico e as Artes. A corporação de professores e estudantes é a base da universidade54
. Daí
o corporativismo, a autonomia e a liberdade acadêmica serem consideradas a essência da
53 Trindade (2000). 54 Na Idade Média, o termo que mais tecnicamente corresponde à universidade não era universitas, mas studium
generale. No fim do século XII e início do século XIII, o termo universitas é utilizado para designar corporações
de professores e estudantes, mas continuou a ser aplicada a outras corporações. Daí o fato de o termo ser usado
sempre de forma relativa: universidade de estudantes, universidade de mestres, universidade de comerciantes etc.
Foi somente no decorrer do século XV que a distinção entre universitas e studium generale desapareceu e os
termos passaram a ser praticamente sinônimos (JANOTTI, 1992).
20
universidade medieval55
. Neste período, a instituição se constitui espontaneamente por bula
papal ou imperial. Em função de conflitos entre a universidade e os poderes locais da Igreja
ou do governo, vários papas e imperadores começaram a atribuir privilégios àquela
instituição, de modo a preservar sua autonomia. É neste período que surgem as universidades
de Toulouse (França), Oxford e Cambridge (Inglaterra), Siena, Nápoles e Pavia (Itália),
Salamanca, Valência e Valladolid (Espanha) – a primeira a ter uma legislação elaborada por
um Estado – e Coimbra (Portugal)56
. A concepção da universidade medieval possui três
elementos básicos: voltada para uma formação teológico-jurídica que responde às
necessidades de uma sociedade cuja cosmovisão é católica; organização corporativa que
detém seu significado medieval original; e preservação da autonomia diante do poder político
e da Igreja57
.
O segundo período inicia-se no século XV, quando a universidade renascentista sente
o impacto das transformações comerciais do capitalismo e do humanismo literário e artístico,
além dos efeitos da Reforma e da Contra-Reforma (século XVI)58
, sobretudo devido à
influência do poder real que é fortalecido nesta época, bem como o processo ultramarino de
Portugal e Espanha59
.
A Renascença tem seu epicentro na Itália. O desenvolvimento de suas principais
universidades (Roma, Nápoles, Florença) e da Academia Neoplatônica é fundamental para o
fim da hegemonia teológica e para o advento do humanismo antropocêntrico. O humanismo
atinge a Europa de forma heterogênea. A universidade de Louvain (Bélgica), situada entre a
civilização francesa e a alemã, realiza a transição para o humanismo sem romper a tradição
medieval, tornando-se um importante centro do renascimento literário da Europa, influindo
especialmente nas universidades inglesas. Na Alemanha, com o desaparecimento do
feudalismo, as universidades passam para o controle dos príncipes, e a vinculação ao Estado
55 Não estamos adotando uma perspectiva essencialista da identidade da instituição universitária, tratando-se
apenas de retratar a visão do autor nesse momento. Essa questão será retomada o longo do trabalho,
particularmente no capítulo sobre a universidade brasileira. 56 Janotti (1992) destaca as principais universidades que surgiram de forma espontâena (ex-consuetudine):
Bolonha, Paris, Oxford e Montpelier (século XII). Surgiram ainda (século XIII) de forma espontânea as
universidades de Vicenza, Arezzo, Pádua, Vercelli, Siena (Itália), Orléans e Angers (França), Cambridge
(Inglaterra) e Valladolid (Espanha). O autor destaca aquelas que foram criadas por meio de bula papal, imperial
ou real (ex-privilegio), que são “o resultado dos desejos pessoais submetidos às exigências da política” (p. 109): Nápoles (fundação imperial em 1224), da Cúria Romana e Piacenza (fundação papal, em 1244 e 1248), de
Toulouse (fundação papal em 1229), das universidades espanholas (fundações reais) de Palência (1212-1214),
Salamanca (antes 1230) e Sevilha (1254), e da universidade de Lisboa-Coimbra (fundação real em 1290). 57 Trindade (2000). 58 Trindade (2000). 59 Serrão (1983).
21
se estabelece no século XVI como um dos padrões da universidade européia. A Reforma e a
Contra-Reforma introduzem um corte religioso radical entre as universidades. A Reforma tem
desdobramentos calvinistas e anglicanos, rompendo com a hegemonia tradicional da Igreja,
que reage por meio da Contra-Reforma. Assim, Lutero funda as primeiras universidades
desde 1544, enquanto a ordem jesuíta amplia o campo da Contra-Reforma na Alemanha,
França, Itália, especialmente com a universidade Gregoriana, em Roma (1533)60
.
Neste período, as universidades entram em crise. Com exceção das grandes
metrópoles, como Paris e Bolonha, a tendência no fim do século XV foi a da valorização das
universidades “nacionais”, por meio das quais os reis ampliaram seu poder, como no caso de
Oxford, Cambridge, Salamanca e Lisboa (Coimbra)61
.
O humanismo abre uma nova perspectiva para o ensino universitário, mas as
universidades não se deixaram influenciar tão rapidamente. Neste sentido, os debates mais
intensos se deram em França, Inglaterra e Alemanha, enquanto na península ibérica a
“tradição religiosa era vigilante contra todas as formas de ortodoxia”62
. Assim, o
protestantismo não deixou de se apoiar nas universidades. Ao mesmo tempo, a Contra-
Reforma se sustenta nas universidades portuguesa e espanhola, que ainda procuram manter a
tradição medieval, a despeito das mudanças que vinham se processando na Igreja63
.
O terceiro período abrange os séculos XVII e XVIII, que são marcados sobretudo por
descobertas científicas em vários campos do saber, pelo Iluminismo e pela Revolução
Industrial inglesa. Neste período, a universidade começa a institucionalizar a ciência,
marcando a transição para os modelos que irão se desenvolver no século XIX. Na transição
entre aqueles séculos, são fundadas as primeiras cátedras científicas e surgem os primeiros
observatórios, jardins botânicos, museus e laboratórios científicos, em função do
desenvolvimento e descobertas no campo da Física, Astronomia, Matemática (século XVII),
Química e Ciências Naturais (século XVIII). Também se intensifica a profissionalização das
ciências, com a criação das academias científicas, o que vai permitir sua inserção nas
universidades a partir da pesquisa. Até o século XVII o cientista não possui um papel
especializado na sociedade, época em que começa a acontecer uma profunda mudança no
sistema de valores e normas da universidade, reconhecendo-se – ainda que de forma
conflituosa – a legitimidade de uma atividade relacionada com as ciências em geral. A
60 Trindade (2000). 61 Serrão (1983). 62 Serrão (1983, p.71). 63 Serrão (1983).
22
inserção das ciências na instituição universitária altera de forma irreversível sua estrutura, até
então limitada às ciências ensinadas nas faculdades de medicina e artes sob a denominação de
filosofia natural64
.
É durante este período, sobretudo o século XVIII, que se intensifica a migração de
brasileiros para Coimbra, principalmente. Tal movimento continua ainda durante o século
XIX65
. Como se verá adiante, o século XVIII também foi muito importante para o
desenvolvimento de Portugal, sobretudo com a reforma da Universidade de Coimbra em
1772, pelo Marquês de Pombal.
Se antes a Filologia, a Política e o Direito reinavam enquanto campo de estudos, a
Geografia, a Etnografia e a Anatomia passam a constituir um importante campo de reflexão.
Ou seja, se o século XVII foi marcado pelas descobertas da Física, da Astronomia e da
Matemática, no Iluminismo o avanço se dá no campo da Química e das Ciências Naturais.
Com o conceito de “natural”, surgem novas ferramentas mentais para se encarar de forma
diferente os conceitos de homem e de mundo. Assim, o que melhor definiria as universidades
neste período foi a abertura aos métodos do racionalismo e da ciência experimental.
Evidentemente, todo este avanço, e apesar das resistências – inclusive nas universidades – irá
mudar substancialmente a universidade. No final das contas, a finalidade da universidade viria
se constituir no “progresso do conhecimento e na valorização mental do homem”.66
Finalmente, no quarto período, é instituída a universidade moderna, começando no
século XIX e estendendo-se aos dias de hoje, período em que se introduz uma nova relação
entre Estado e universidade. Esta não segue um modelo único e a sua história, a partir do
século XVII, confunde-se com as vicissitudes das relações entre a universidade, a ciência e o
Estado. Há uma tendência para a estatização e abolição do monopólio corporativo dos
professores. Inicia-se o que chama de “papel social das universidades”, com o
desenvolvimento de três novas profissões: engenheiro, economista e diplomata. Após a
Revolução Francesa, a universidade napoleônica rompe com a tradição medieval e
renascentista, e organiza-se subordinada ao Estado, que nomeia os professores e é assessorado
por um Conselho, com o objetivo de garantir que a doutrina acadêmica esteja imune às febres
da moda, expandindo-se pelos Países Baixos e Itália. Em função das guerras napoleônicas e
64 Trindade (2000). 65 Gauer (1995) sugere esse movimento em sua tese, na qual discute a formação da nacionalidade brasileira a
partir do século XIX, tendo em vista a influência da Universidade de Coimbra sobre os estudantes brasileiros
nesse processo. 66 Serrão (1983).
23
revolucionárias, a Alemanha realiza uma profunda mudança em suas instituições, inclusive as
universitárias. É sob o impulso do Estado que a concepção de universidade, fundada sobre o
princípio das pesquisas e no trabalho científico, amadurece. O marco pode ser considerado a
nomeação de Humboldt, em 1809, para assumir o Departamento de Cultos e Instrução Pública
do Ministério do Interior. A Universidade de Berlim torna-se o centro da luta pela hegemonia
intelectual e moral na Alemanha, sendo seu primeiro reitor o filósofo Fichte. A característica
central desta universidade é a integração das faculdades – ao contrário das faculdades isoladas
napoleônicas –, em que o sincretismo religioso predominou sobre o confessionalismo
protestante ou católico67
.
Anísio Teixeira compartilha da noção de que
[...] a universidade de Berlim representa realmente os primórdios da nossa
universidade contemporânea [...] É na Alemanha, com efeito, que se opera a grande
renovação da universidade, voltando a ser o centro da busca da verdade, de
investigação e pesquisa; não o comentário sobre a verdade existente, não o
comentário sobre o conhecimento existente, não a exegese, a interpretação e a
consolidação desse conhecimento, mas a criação de um conhecimento novo68.
O Quadro 2, a seguir, resume as principais características gerais das universidades ao
longo de sua história.
É digno de nota que nos primeiros anos do século XIX a família real portuguesa
transmigra para o Brasil, levando consigo a sede política do reino. Apesar disto, não é criada
nenhuma universidade no país, dado o modelo adotado de ensino superior implementado
ainda na época de Pombal. Observe-se, portanto, que a universidade brasileira é criada apenas
na “última fase”, ou seja, na era moderna. Embora houvesse um sistema de ensino no Brasil
desde o século XVI, com os jesuítas, somente na década de 1920 o país irá criar sua primeira
universidade, oficialmente, como se verá adiante.
67 Trindade (2000). 68 Teixeira (1988, p. 85).
24
Quadro 2 – Desenvolvimento da instituição universitária, segundo Trindade (2000)
Fase
Características
Século XII ao
Renascimento
Corresponde ao período de invenção da universidade tradicional.
A corporação de professores e estudantes é a base da universidade, em que o termo
studium significava o estabelecimento do ensino superior. Daí o corporativismo, a
autonomia e a liberdade acadêmica serem a essência da universidade medieval.
Em função de conflitos entre a universidade e os poderes locais da Igreja ou governo,
vários papas e imperadores começaram a atribuir privilégios àquela instituição de modo a
preservar sua autonomia. É neste período que surgem as universidades de Toulouse
(França), Oxford e Cambridge (Inglaterra), Siena, Nápoles e Pavia (Itália), Salamanca,
Valencia, Valladolid (Espanha) e Coimbra (Portugal).
Século XV ao
XVI
O desenvolvimento das principais universidades italianas (Roma, Nápoles, Florença) e da
Academia Neoplatônica é fundamental para o fim da hegemonia teológica e para o
advento do humanismo antropocêntrico.
O humanismo (Renascimento) atinge a Europa de forma heterogênea.
A Reforma e a Contra-Reforma introduzem um corte religioso radical entre as
universidades. A Reforma tem desdobramentos calvinistas e anglicanos, rompendo com a
hegemonia tradicional da Igreja, que reage através da Contra-Reforma.
Séculos XVII e
XVIII
Institucionalização da ciência marcando a transição para os modelos que irão se desenvolver no século XIX. Na transição entre aqueles séculos, são fundadas as primeiras
cátedras científicas e surgem os primeiros observatórios, jardins botânicos museus e
laboratórios científicos, em função do desenvolvimento e descobertas no campo da
Física, Astronomia, Matemática (século XVII), Química e Ciências Naturais (século
XVIII).
Também se intensifica a profissionalização das ciências, com a criação das academias
científicas, o que vai permitir sua inserção nas universidades a partir da pesquisa.
Impactos profundos: o Iluminismo e a Revolução Industrial inglesa.
Início no século
XIX aos dias de
hoje
Período em que se introduz uma nova relação entre Estado e universidade.
A universidade não segue um modelo único e a sua história, a partir do século XVII,
confunde-se com as vicissitudes das relações entre a universidade, a ciência e o Estado.
Há uma tendência para sua estatização e a abolição do monopólio corporativo dos professores.
Inicia-se o que se chama de “papel social das universidades”, com o desenvolvimento de
três novas profissões: engenheiro,economista e diplomata.
Após a Revolução Francesa, a universidade napoleônica rompe com a tradição medieval
e renascentista, e organiza-se subordinada ao Estado.
A Universidade de Berlim torna-se o centro da luta pela hegemonia intelectual e moral na
Alemanha. A característica central desta universidade é a integração das faculdades – ao
contrário das faculdades isoladas napoleônicas –, em que o sincretismo religioso
predominou sobre o confessionalismo protestante ou católico.
Baseado em Trindade (2000).
Fonte: Ésther (2007, p. 114)
25
A UNIVERSIDADE DE COIMBRA
O nascimento da universidade em Portugal: os primeiros séculos
Até próximo ao fim do século XIII, para uma universidade ser reconhecida como tal,
era necessária a autorização do Papa. Se assim não fosse, a universidade criada pelos reis seria
considerada um studium generale respectu regni, ou seja, o grau atribuído aos alunos não
ultrapassaria as fronteiras do reino em que tivesse sido criada. Em outras palavras, os
escolares não possuiriam a ubique docendi, ou seja, licença para lecionar em qualquer
instituição sem ter de prestar novo exame. Portanto, não interessava a Portugal criar uma
universidade que não tivesse autorização papal. Além do aspecto “acadêmico” envolvido,
ressalta-se a necessidade de resolver outra questão fundamental: o financiamento. Como o
pagamento dos lentes deveria sair da renda de certos mosteiros e igrejas, e por se tratar,
portanto, de bens eclesiásticos, era necessária a sanção de Roma. Assim, os mestres e
escolares só poderiam auferir das prebendas e benefícios que receberiam se servissem nas
respectivas igrejas, a menos que tivessem uma concessão papal especial (atribuída apenas aos
studia generale - universidades) para recebê-los enquanto estudassem. Por fim, a última
vantagem de se pertencer a uma universidade era a regalia do foro clerical, que isentava seus
membros da alçada dos juízes leigos, ficando estes sujeitos apenas ao juiz eclesiástico69
.
Em Portugal, em função da demora da resposta papal à súplica do rei D. Diniz, este
anuncia a criação da universidade, por meio do diploma emitido em 1 de março de 1290. Em
9 de agosto daquele ano, o Papa Nicolau IV expede a bula de confirmação da universidade
fundada por D. Diniz em Lisboa70
.
Ao que parece, o Estudo Geral já havia começado a funcionar de fato antes de 1290,
talvez até antes de 128871
, pois havia centros religiosos que se dedicavam à ciência e à
cultura. Além disto, havia em toda a Europa um conjunto de escolas laicas, como as de Roma,
Bolonha e outras, onde se ensinavam as artes liberais (Trivium e Quadrivium) e elementos de
arte notarial e do direito privado, além do ensino de medicina em Salerno, na Sicília, por
69 Brandão e Almeida (1937). 70 Brandão e Almeida (1937) insistem na afirmação de que a Universidade de Lisboa (depois Coimbra) foi
fundada por D. Diniz, e não pelo Papa, a despeito de uma universidade somente ser reconhecida como tal graças
a bula papal. É por isso que os autores afirmam se tratar de uma bula de confirmação, uma vez que os estudos
gerais começaram sem a anuência formal de Roma. 71 Rodrigues (1991). Sobre o ambiente favorável à criação da universidade europeia, ver capítulo 1 deste
material, e Ridder-Symoens (1996) para uma análise mais detalhada desse contexto.
26
exemplo, desde os fins do século X, compondo um ambiente favorável à criação de uma
universidade. No entanto, a Igreja dominava amplamente a oferta do ensino naquela época72
.
A universidade permanece em Lisboa até 1308, quando é transferida para Coimbra,
por causa dos sucessivos conflitos existentes entre os escolares e os cidadãos de Lisboa.
Provavelmente para evitar a associação da imagem de desprestígio da universidade de Lisboa,
Assim, D. Diniz cria, régia e formalmente, nova universidade, por meio da Magna Charta de
15 de fevereiro de 1309. Na prática, as atividades realizadas em Lisboa são transferidas para
Coimbra, bem como, provavelmente, os mesmos privilégios e modo de funcionamento73.
Embora não se saiba claramente porquê, a universidade é novamente transferida para
Lisboa, talvez por causa dos mesmos tipos de problemas que ocorreram lá no tempo de D.
Diniz. Por meio da carta de 16 de agosto de 1338, D. Afonso IV transfere a universidade para
Lisboa, cuja autorização papal ocorre meses depois74
.
Durante parte deste período, o infante D. Henrique é o grande protetor da
universidade75
, na qual investe dinheiro e bens para sua consolidação. Por sua determinação,
sempre no dia da Anunciação de Nossa Senhora, 25 de março, sua memória deveria ser
evocada, o que provavelmente originou a chamada “Oração De Sapientia”, realizada até os
dias atuais76
.
Durante 160 anos a universidade permanece em Lisboa, até que, em 1537, D. João III
a transfere, em definitivo, para Coimbra. D. João III assume o trono em 1521, após a morte de
D. Manuel. Àquela época – por volta de 1522 –, Portugal vivia tempos difíceis de fome e
peste, o que deixou a universidade em segundo plano durante alguns anos. No entanto, em
1527, o monarca lança as bases de uma reforma do ensino no país, defendendo-a durante
cerca de 30 anos77
.
Para os fins deste estudo, interessa mais profundamente o contexto a partir do
descobrimento do Brasil, de modo a se desenhar e compreender aquele momento histórico em
diante. A análise contempla a influência portuguesa até por volta da independência do Brasil,
quando este passa, pelo menos em tese, a assumir e a decidir seu destino por si só.
72 Rodrigues (1991). 73 Brandão e Almeida (1937). 74 Brandão e Almeida (1937). 75 O Protetor da universidade tinha autoridade máxima na universidade, nomeando professores, dando estatutos,
dentre outras atividades (RODRIGUES, 1991), como zelar pelos estatutos, pelos privilégios, pela liberdade,
pelos usos e costumes adotados, pela conservação e aumento de suas receitas e patrimônio (BRAGA, 1898). 76 Rodrigues (1991). 77 Brandão e Almeida (1937).
27
A Universidade de Coimbra nos Séculos XVI e XVII: a ação dos jesuítas
Conforme mostrado anteriormente, a Igreja sempre exerceu papel decisivo na vida em
sociedade, incluindo sua influência no ensino de conhecimentos, valores e crenças.
No entanto, seus dogmas são colocados fortemente sob crítica, especialmente com
Lutero, em 1517, quando este afixa à porta da catedral de Vitenbergue suas noventa e cinco
proposições contrárias à venda de indulgências por parte da Igreja. Aliás, tal venda constitui o
detonador de todo o processo de contestação dos dogmas que o catolicismo estabelecera.
Apesar de excomungado, Lutero abre um espaço para seguidores como Calvino e Henrique
VIII, o qual proclama a Igreja Anglicana da qual se nomeia chefe supremo78
.
Com tal nível de contestação e de perda de poder e prestígio – espiritual e material –, o
Vaticano se vê obrigado a reagir. É convocado o Concílio de Trento, que ocorre entre 1545 e
1563, para se encontrar uma solução para a situação. Durante esse período, acabam por
encontrar em Inácio de Loiola o nome oportuno para tentar reverter a situação. Loiola,
nascido em 1491, fora um fidalgo e cavaleiro espanhol, que se feriu gravemente em combate,
o que o manteve imobilizado durante muito tempo, o que lhe permitiu a leitura de obras
religiosas, levando-o a adotar uma nova postura diante da vida. Embora questionado e
suspeito pela Inquisição, nada lhe foi imputado de negativo ou perigoso79
. Ao contrário, com
o tempo, e após ter sido forçado a concluir seus estudos formalmente, acaba por fundar a
Companhia de Jesus, reconhecida formalmente em 1540, pelo Papa Paulo III. Tal movimento
constitui o que os historiadores chamam de Contra-Reforma, em oposição à Reforma proposta
por Lutero.
Em 1540, chega a Portugal dois membros da Companhia de Jesus, que teriam,
inicialmente, a incumbência de se tornarem missionários na Índia, sob ordens de D. João III,
que acatara sugestão de Diogo de Gouveia, diretor do Colégio de Santa Barbara, em Paris. No
entanto, com a chegada dos dois jesuítas enviados por Loiola, D. João III muda os planos e,
após negociações, apenas um deles, Francisco Xavier, segue para a Índia, e o outro, Simão
Rodrigues, permanece em Coimbra, sob a promessa de que lhe seria dado um colégio, junto
da universidade, para acolhimento e preparação espiritual daqueles que ingressassem na
ordem jesuíta, o que acaba por ocorrer em 1553, porém, em Lisboa – o Colégio de Santo
Antão, junto ao respectivo mosteiro. Também fora criado, em 1553, o Colégio do Espírito
78 Carvalho (1986). 79 Carvalho (1986).
28
Santo, em Évora. Curiosamente, o ensino público jesuíta começa em Lisboa e em Évora, e
não em Coimbra, onde o ensino ainda era privado80
.
Com o tempo, e apesar dos problemas e críticas, os jesuítas vêem seu prestígio crescer
em toda a Europa, inclusive junto à Coroa portuguesa. Conforme afirma Carvalho,
a intromissão dos jesuítas na corte e a preponderância que nela alcançaram, junto do
rei, da rainha e dos infantes, foi verdadeiramente assombrosa e revela um tacto, uma
perseverança, um poder de insinuação tão raros que deixaram ficar na história a
figura do jesuíta como um tipo psicológico inconfundível. Simão Rodrigues foi
confessor e mestre do príncipe herdeiro, D. João; Luis Gonçalves da Câmara foi
confessor de D. João III e também do príncipe quando Simão Rodrigues se ausentou
de Portugal; Miguel de Torres foi confessor da rainha D. Catarina; Gonçalo da
Silveira, também jesuíta, instruía as damas da rainha em práticas espirituais; outro
jesuíta, Gonçalo Vaz de Melo, explicava-lhes a doutrina cristã, muitas vezes com a
presença da rainha e grande número de moradores do paço. [...] depois da morte do rei, em 1557, a viúva regente, D. Catarina, insistiu na escolha de um padre jesuíta
para a educação do neto, D. Sebastião, que sucedia o avô no trono por falecimento
prematuro do pai, o príncipe D. João. A escolha, já desejada e sugerida por D. João
III, recaiu no referido Luís Gonçalves da Câmara que tomou conta do pupilo, então
com seis anos de idade, em 1560. O plano de educação do pequeno rei alargou-se
aos jovens fidalgos pajens de D. Sebastião, pois não convinha que houvesse
desacertos entre as educações de todos eles.81
Em 1557, morre D. João III e assume D. Catarina (que governa enquanto D. Sebastião
é apenas uma criança), época em que cresce o apoio aos jesuítas e o conflito com a
universidade. É nesse momento que aos jesuítas é colocada sob jurisdição a recém-criada
Universidade de Évora82
. Suas aulas começam em 1 de outubro de 1559 – no mesmo ano em
que são publicados os novos Estatutos da Universidade de Coimbra –, sendo organizada nos
mesmos moldes da de Coimbra, sendo autorizadas todas as ciências exceto Medicina, Direito
Civil e a parte contenciosa do Direito Canônico. Foram abertas quatro faculdades:
Humanidades, Artes ou Filosofia, Teologia, e Casos de Consciência (Teologia Moral). Seu
objetivo era, basicamente, a formação de teólogos. Do ponto de vista da autoridade, apenas os
jesuítas poderiam intervir na universidade, nem mesmo o rei o poderia fazer83
.
A luta dentre a Universidade de Coimbra e a Companhia de Jesus, decorrente do
crescente poder desta última, acirrou-se por diversas vezes. Para garantir sua posição e
prestígio, a Universidade resistiu a todas as intervenções alheias, incluindo o descumprimento
a ordens régias, na defesa de seus bens. Um dos motivos era o Colégio das Artes, que fazia
parte da universidade, mas apenas verbalmente pela palavra do rei. No reinado de D.
Sebastião, finalmente o colégio passa para o controle dos jesuítas. É graças a esse poder
80 Carvalho (1986). 81 Carvalho (1986, p.302). 82 Brandão e Almeida (1937). 83 Carvalho (1986).
29
conquistado que os jesuítas acabaram por ampliar o ensino por todo o país, bem como por
participar ativamente das viagens ultramarinas, implantando sua filosofia, especialmente no
caso brasileiro84
.
A Universidade de Coimbra permanece mais ou menos imune à agitação da época das
contestações religiosas e à ação mais direta dos jesuítas em seu interior. No entanto, com o
Concílio de Trento, foi universalizado um texto solene de profissão de fé, com os quais os
professores teriam de se comprometer por meio de juramento. Em Coimbra, foi realizada a
primeira cerimônia de juramento em 16 de janeiro de 1565, na capela da Universidade, com a
presença de todos os lentes que juraram obediência às decisões do Concílio. Ainda nas
palavras de Carvalho,
assim ficava completado o cerco defensor das heresias e supostamente garantida a
perenidade do pensamento católico sem mácula. Toda a ascensão por via escolar era
obrigatória a ajustar-se ao mesmo molde: no ensino preparatório, pela mão da
Companhia de Jesus; no ensino universitário, pelas decisões do Concílio de Trento.
Neste panorama geral não havia distinção entre jesuítas e mestres universitários de
Coimbra. Todos militavam na mesma hoste. As dissidências que tantas vezes os
tinham posto em luta foram sempre de natureza pragmática ou económica mas
nunca ideológica. Agora, unidos para o mesmo fim, era o da defesa activa da Igreja
Católica por via do ensino, alicerçados na tradição e coesos nos intuitos, toda a vida
pedagógica nacional ia decorrer tranquila durante quase dois séculos85.
Assim a situação permanece, basicamente, durante todo o século XVII e parte do
XVIII. No entanto, o século XVII presencia o surgimento de um conjunto de pensadores cujas
ideias revolucionárias ou, no mínimo, críticas começa a descortinar uma mudança profunda
que somente será totalmente processada, por assim dizer, no século seguinte.
Em Portugal, o domínio espanhol, iniciado em 1580 e terminado em 1640, marca um
regime de terror sobretudo em função das punições impostas pelo Santo Ofício. Nessa época,
entretanto, a vida escolar dos jesuítas não é afetada, apesar de alguns pequenos conflitos com
a coroa. Nesse contexto, vários professores foram acusados pela Inquisição e condenados à
morte. Foi um momento conturbado e difícil para Portugal, que há pouco tempo havia
conquistado a nova colônia e agora a perdia para a Espanha. No entanto, na Europa, cresce o
movimento intelectual dissonante em relação aos valores e conhecimentos da época. É o
século em que surgem pensadores como Francis Bacon, Descartes, Galileu, Pascal, Newton,
Leibniz, Kepler, Espinosa, Hobbes, La Fontaine e muitos outros. Também é neste século que
são criadas as Academias – como a Royal Society of London (1657), a dei Lincei, em Roma
84 Carvalho (1986). 85 Carvalho (1986, p.330).
30
(1600), a Academia de Ciências de Paris (1666), dentre outras – e as publicações científicas
periódicas86
. No entanto,
enquanto na Península Ibérica se impedia a expressão da opinião individual sentando no banco dos réus todos aqueles que, mesmo minimamente, se desviassem
das regras impostas pela religião, os outros lá fora, embora também sujeitos à
vigilância e censuras, reuniam-se publicamente para exporem o resultado das suas
meditações e experiências87.
Assim, pelo menos em Portugal, justifica-se a vigilância quanto ao ensino de ideias
revolucionárias, tais como a Descartes, por exemplo. Embora fossem estudiosos e tivessem
acesso aos livros, mantinham-nos privados e discutidos entre si, mas jamais divulgados nos
colégios, embora, com o tempo, fosse ficando cada vez mais difícil evitar alguma
disseminação mesmo entre os jesuítas, ainda que com muita censura e adaptações88
. Assim, a
despeito dos avanços da época, já iniciados pelo Renascimento do século XVI, a Universidade
de Coimbra ainda permanece presa aos dogmas religiosos até quase o final do século XVIII,
quando Sebastião José de Carvalho e Mello, o então Marquês de Pombal, promove a reforma
da Universidade de Coimbra, após expulsar os jesuítas dos domínios lusitanos.
No entanto, é preciso que a Ilustração dê sequência ao movimento intelectual dos
séculos XVI e XVII, para que Pombal possa cumprir seu intento.
A Universidade de Coimbra no Século XVIII
Antes da Reforma de Pombal
O século XVIII é um dos mais ativos e intensos no que diz respeito às transformações
por que passa a Europa, com profundos impactos sobre a visão de mundo e,
consequentemente, sobre a educação daí decorrente. De certo modo, consiste na continuidade
da renovação do pensamento dos séculos anteriores, e culmina com a Revolução Francesa ao
final do século89
. A universalidade do livre-exame ou a liberdade de pensamento é uma das
características mais marcantes do século, na medida em que todos os campos são
86 Carvalho (1986). 87 Carvalho (1986). 88 Carvalho (1986). 89 Conforme afirma Teophilo Braga, “n’este periodo systematico da decomposição do regime catholico-feudal o
século XVIII não apresenta aquella poderosa evocação do passado greco-recomano que fizeram os Humanistas
no seculo XVI, nem elabora as vastas syntheses philosophicas e creações scientificas do seculo XVII, mas é-lhes
superior como excepcional, pelas consequencias do seu audacioso negativismo.” (BRAGA, 1898, p. 2-3).
31
questionados: religião, política, a filosofia, o homem e a sociedade, a natureza moral e
material. As antigas ciências são demolidas e novas passam a ser arquitetadas90
.
A esse movimento dá-se o nome de Iluminismo ou Ilustração. As ciências passam a
assumir um caráter experimental, notavelmente a física e a química. De um maneira geral, o
princípio básico é que somente pela razão e pela experimentação se chega ao conhecimento.
Dado o volume de conhecimento decorrente do exercício do livre pensar e dos experimentos,
começam a surgir as especialidades científicas, certamente influenciadas pelo pensamento de
Descartes e Newton.
De modo geral, a herança crítica dos movimentos humanistas dos séculos anteriores,
da Reforma Protestante e da profusão da imprensa influenciou todo o pensamento do século
XVIII. Emergem e se fortalecem doutrinas contrárias à herança católica, como o deísmo
(razão como o meio para se chegar a Deus) e o ateísmo (negação da existência de Deus),
colocando em xeque os dogmas tradicionais religiosos, bem como o poder monárquico. Na
prática, defendem que a sociedade deve ser governada pelo Estado e pelas leis. São diversos
os pensadores que influenciaram e marcaram o pensamento da época, como John Locke (ao
fim do século XVII), pai do empirismo inglês – junto com David Hume –, Rosseau, Voltaire,
Diderot, D’Alembert, Montesquieu, Adam Smith e Kant, dentre outros.
Para Teophilo Braga91
, o pensador que mais representaria esse período seria
Montesquieu, com seu célebre “Espírito das Leis”, obra na qual propõe a separação dos três
poderes em Legislativo, Executivo e Judiciario.
O Iluminismo também é marcado pelos enciclopedistas, que editaram as primeiras
enciclopédias de que se tem notícia, como forma de sistematizar e aglutinar o conhecimento
crescente e sistematizado até então, dentro do espírito crítico do pensamento da época. Foram
publicadas na França por Diderot e D’Alembert, com contribuições de Voltaire, Rousseau e
Montesquieu.
Para Teophilo Braga, Diderot exerceu especial influência na questão educacional,
tendo colaborado nas reformas da imperatriz da Rússia, partindo do pressuposto de que o
homem se aperfeiçoaria por meio da instrução, defendendo, assim, que toda a qualquer pessoa
soubesse ler, escrever e contar. Para tanto, estabelece a instrução primária obrigatória e
gratuita, cabendo ao Estado – e não mais à Igreja – a responsabilidade de garanti-la. Tendendo
a deixar as letras e as humanidades em segundo plano, quer tornar as novas ciências o
90 Braga (1898). 91 Braga (1898).
32
conteúdo quase exclusivo do ensino. No nível da universidade russa, Diderot estabeleceu
cursos especiais correspondentes ao tipo politécnico, bem como solicitava o ensino da
economia política92
.
No entanto, há que se destacar que os iluministas eram unânimes em suas ideias
basicamente no que diz respeito ao aperfeiçoamento contínuo do indivíduo e do meio social,o
que exigiria a adaptação das instituições às exigências da época, ou seja, a racionalização do
Estado e autonomia dos saberes frente às crenças e preconceitos93
. Em outras palavras, a
educação despida de dogmas religiosos, sem o controle e monopólio da Igreja.
Há certa tolerância da Igreja para com os livres pensadores, embora suas idéias sejam
rechaçadas e seus livros proibidos, tal como a “Enciclopédia”, por exemplo. De certo modo
impotentes em impedir o avanço das novas idéias, buscam defender publicamente o ideal
eclesiástico, regulando as atividades dos pensadores e a difusão de suas idéias, tidas como
revolucionárias. Em Portugal, os jesuítas eram próximos da realeza e da nobreza, o que lhes
garantia alguma influência política nesse sentido. No entanto, essa influência termina quando
são expulsos de Portugal e das colônias em 175994
.
É no século XVIII que surgem as indústrias, frutos da Revolução Industrial que se
processa nesse período. A eletricidade é descoberta, são testadas aplicações da máquina a
vapor, surgem os economistas com suas ideias e conceitos relativos ao financiamento da
economia como um todo – a corrente dos fisiocratas é influente nesse momento, culminando,
posteriormente, com o legado de Adam Smith – e, de modo geral, a ideia subjacente é que a
ação do homem pode transformar o mundo em prol de seu bem-estar, não mais amparado por
crenças e dogmas metafísicos.
Nesse sentido, o Iluminismo tinha como pressuposto a vida social baseada na razão, e
o trabalho passa a ser encarado sob uma nova perspectiva, ou seja, o progresso da sociedade
passava, também, pelo progresso material. No entanto, os iluministas divergiam entre si
quanto a educação da população mais pobre. Locke e Voltaire, por exemplo, tinham restrições
à escolarização dos pobres, os quais deveriam alcançar seu conforto por meio do trabalho95
.
Como se pode perceber, a relação é íntima entre instituições políticas, econômicas e
pedagógicas. Para se difundir e concretizar um novo modo de pensamento, fundado na
derrubada do antigo regime – que, no caso da educação, era de cunho eclesiástico – os
92 Braga (1898). 93 Veiga (2007). 94 Braga (1898). 95 Veiga (2007).
33
pensadores necessitavam que a educação também mudasse. Ou seja, a educação – ou a
instrução – seria o caminho para legitimar os novos conceitos e visões de mundo. É uma
perspectiva mais materialista da sociedade, fortemente combatida pela Igreja. No entanto, foi
“necessária” uma revolução – a Revolução Francesa – para que houvesse uma mudança
significativa ampla, ainda que com consequências desastrosas num futuro não muito distante.
O Iluminismo em Portugal é marcado pela atuação de Sebastião José de Carvalho e
Mello – futuro Conde de Oeiras e, depois, Marquês de Pombal96
– que promove uma série de
reformas no âmbito político, econômico e social, incluindo a educação. A reforma
educacional pode ser considerada parte de um projeto mais amplo, portanto. Sebastião José de
Carvalho, que havia trabalhado em Londres, desejava implantar os avanços que observara na
Inglaterra, decorrentes das teses iluministas, dos economistas e da revolução industrial.
Segundo alguns autores, Sebastião José de Carvalho e Mello representava, em seu
país, a perspectiva dos “déspotas esclarecidos”, ou seja, defensores de certos princípios do
Iluminismo, como o progresso, porém defensores de uma ordem monárquica, responsável
pela condução dos rumos do país.
Antes da reforma promovida por Pombal, em 1772, a educação em Portugal e
colônias, incluindo o Brasil, era controlada pela Igreja, fundamentalmente pelos jesuítas. A
Universidade de Coimbra, tal como outras da Europa, encontrava-se decadente sob diversos
aspectos, mesmo com toda a efervescência do movimento humanista/racionalista.
Nesse contexto, é fundamental que se tenha em vista que o desenvolvimento científico
do século XVIII e de suas premissas iluministas ocorreu fora das universidades e sem elas,
mesmo porque muitas haviam sido criadas apenas como faculdade de teologia – e apesar de
terem anexadas faculdades científicas. As universidades não deixaram de manter suas
tradições, contrárias às novidades científicas e filosóficas que ocorriam fora delas, nos salões
e academias literárias e científicas97
. Teophilo Braga assim descreve aquele momento,
referindo-se às universidades inglesas, mas estendendo sua afirmação para as francesas,
espanholas, italianas e mesmo alemãs:
A energia do caracter individual, a participação do cidadão na vida publica, a grande
actividade fabril e commercial, temperavam os espiritos para as superiores iniciativas scientificas e philosophicas; e emquanto os sábios e pensadores inglezes
96 Sebastião José de Carvalho (1699-1782) recebe o título de Conde de Oeiras do Rei D. José, em 1759, como
compensação pela intervenção no caso do atentado ao rei, descrito mais adiante. O título de Marquês de Pombal
foi outorgado a Sebastião José de Carvalho – então Conde de Oeiras – em 1769, aos 71 anos de idade. 97 Braga (1898).
34
do seculo XVII e XVIII renovavam e impulsionavam as sciencias physicas e as
syntheses philosophicas, deixavam as Universidades vegetarem no seu automatismo
tradicional, por isso mesmo que ellas eram impotentes para embaraçarem esta
revolução da intelligencia98.
Destaca-se uma citação de Teophilo Braga acerca das universidades italianas, em
especial, à época:
[...] cada qual procura graduar-se conforme se acha capaz; e tudo depende do exame
dos Professores, e dos honorarios que recebem do graduando. Esta he a razão porque
os estudos d’estas universidades estão hoje na maior decadência: porque os
Professores ordinariamente approvam todos, sabendo muito bem que perderão os honorários; porque estão certos que se não se graduarem este candidato, que
procurará outra Universidade, que lhe dará o diploma pelo dinheiro e não pela
sciencia (grifos do autor)99.
A autonomia universitária da época implicava, dentre outras coisas, o foro privilegiado
dos estudantes e professores, o que facilitava e proporcionava uma vida dissoluta e o gosto
pela impunidade, na medida em que o poder local, de maneira geral, não tinha nenhuma
jurisdição sobre os atos cometidos pelos professores e estudantes. Além disto, era comum os
monarcas se declararem “Protetores” da universidade, o que garantia tanto o referido foro
privilegiado, quanto as práticas dos “annos de mercê” ou “perdões de acto”, relativas aos
privilégios dos escolares. A tradição era o valor mais importante da universidade, e não a
ciência, em que predominava o gozo dos privilégios e das riquezas que tinham sido doadas à
universidade100
.
Dentre os costumes dos estudantes da universidade àquela época, ressalta-se o trote, a
feição e as matrículas incertas. O trote era chamado de “investidas aos novatos” ou “canellão
à porta férrea”, realizado pelos mais antigos, cujas práticas conduziam até ao assassinato101
.
Na prática, a atitude dos estudantes era de grande valentia, o que fazia com que a maioria
andasse “armada até os dentes” pelas ruas. Naquela época não era comum se chamar a
presença dos alunos em aula, o que lhes garantia grande movimentação e impunidade. Em
98 Braga (1898, p. 111). 99 Braga (1898, p. 145), citando Antonio Nunes Ribeiro Sanches. Método para aprender e estudar a Medicina
(1763, p. 160). Segundo Teophilo Braga, o Doutor Ribeiro Sanches frequentou a Universidade de Coimbra entre
1716 e 1719, conhecendo “a vida íntima da corporação academica”, o que confere fidelidade e confiabilidade de
suas declarações. 100 Braga (1898). 101 Teophilo Braga descreve em detalhes o episódio do Rancho da Carqueja, que se refere a uma sociedade de estudantes de Coimbra, que aterrorizou a cidade nos anos de 1719 e 1720. Seus costumes eram depravados e
dissolutos, sendo violentos em suas investidas, incluindo tentativas de sedução que podiam envolver a violência
em relação às mulheres. Certa vez, tentaram sequestrar a sobrinha do reitor da época, o que desencadeou uma
série de tentativas de detê-los, até o momento em que finalmente foram presos. Em 20 de junho de 1722 foi
degolado em praça pública o chefe da quadrilha, cuja cabeça foi espetada num poste na praça de São
Bartolomeu, em julho daquele ano. Quase todos os dezessete cúmplices morreram na cadeia (BRAGA, 1898).
35
parte, a ausência nas aulas se dava por conta do medo das investidas. A feição, por sua vez,
implicava o comportamento esperado dos novatos, que envolvia ferir, insultar e até matar, o
que levou a formação do citado Rancho da Carqueja. Após o dito episódio, passaram-se às
“boas feições”, que incluíam comportamento de brincadeiras e atitudes infantis, ou promover
rifas. A modalidade da “feição geral” consistia em gastar dinheiro rapidamente com os
amigos, sobretudo aqueles que tinham muito dinheiro, incluindo os brasileiros que lá viviam.
Os mais pobres mal tinham dinheiro para sobreviver. Finalmente, a frequência dos alunos e o
tempo dedicado as aulas eram exíguos. Na prática, os alunos mal ficavam, no total, dois
meses na universidade. Havia uma matrícula em outubro, outra em dezembro, e uma última
em maio. Nesses intervalos os estudantes voltavam para suas casas102
. As datas de matrícula
eram uma espécie de confirmação de que o aluno estudava na universidade. Somente mais
tarde, com a reforma de Pombal, esse estado de coisas começou a mudar, efetivamente.
A relação entre os estudantes e os lentes também era um tanto espúria. Segundo Braga,
entre eles havia uma relação de dependência e desleixo. Os alunos votavam em professores
nos concursos em troca de respostas prévias dos exames a que seriam submetidos. As
compras de votos eram escancaradas, autenticadas mesmo nos registros oficiais, obtidas até
por meio de lutas, “aos tiros e espadagadas dos lentes uns nos outros”, ocorriam denúncias à
Inquisição e todo tipo de corrupção103
.
Naquela época, os professores não estavam em situação mais digna do que os alunos.
Como afirma Teophilo Braga, os professores ministravam uma hora de aula por dia. Mesmo
tendo seus salários aumentados numerosas vezes, mantinham a mesma atitude. E, “não se
contentando de estarem na inercia pela ausencia dos estudantes, e de lerem perpetuamente o
mesmo dictado, era o tempo da lição diminutissimo”104
. Além disso, a universidade e todo o
seu pessoal docente valorizavam as insígnias e ornamentos, sobretudo em festas religiosas,
prevalecendo a pompa doutoral sobre a ciência105
.
102 Braga (1898). 103 Braga (1898). Nos termos de D. Francisco de Lemos (em Relação Geral do Estado da Universidade de
Coimbra), citado por Teophilo Braga, é a “Universidade mais uma eschola de facção e de intrigas e
formalidades do que de letras e virtudes” (BRAGA, 1898, p.193 (grifos do autor)). D. Francisco foi um dos
maiores aliados de Pombal para a realização da reforma da universidade que iria ocorrer em 1772. 104 Braga (1898, p. 200) 105 Braga (1898).
36
Uma das principais causas que atuaram na decadência da Universidade de Coimbra foi
a efervescência religiosa chamada de “Jacobêa”106
. Tratava-se de uma seita relativa aos
Cônegos Regrantes de Santo Agostinho que atingiu seu nível maior de fanatismo por volta de
1741, quando D. Miguel da Annunciação teve a posse da sede episcopal e criou a seita dos
“sigillistas”. Na essência, era a aplicação das doutrinas da “Graça” em oposição a das “Obras”
e, como tal representava uma reação contra os jesuítas. Quando D. João V, em 1742, adoece,
assume como ministro o Frei Gaspar da Encarnação, que passa a proteger os seguidos da
Jacobêa, em detrimento da influência jesuíta. Tal influência atingiu a Universidade de
Coimbra, sobretudo quando o Prior Geral dos cônegos regrantes, D. Miguel da Annunciação,
por ordem de Frei Gaspar, foi nomeado reitor e reformador da universidade, e que não perdia
oportunidades de difundir os ideais da Jacobêa ou do Sigillismo107
.
Em 1757, diante da recusa de D. Francisco em continuar como reitor e reformador, é
convocado D. Gaspar de Saldanha e Albuquerque, seu irmão, para assumir o posto. Embora
dirimidas, ou atenuadas, há algum tempo as disputas entre os jesuítas e a seita Jacobêa, os
jesuítas buscaram apoio do papa, o que mostra a tensão ainda existente. Nesse contexto, e sob
o reitorado de D. Gaspar, começa a reforma do ensino pelo Marques de Pombal, que consegue
expulsar os jesuítas privando-os de todo o ensino, por meio do alvará de 28 de junho de
1759108
.
A Reforma de Pombal
No século XVIII, a expulsão inicial dos jesuítas dos países “que mais
incondicionalmente mantinham o regime católico-feudal” pode ser considerada tão importante
ou capital quanto o foi a criação da Companhia de Jesus como reação ao Protestantismo no
século XVI, sendo o estabelecimento de uma instrução pública com o caráter secular e
nacional uma das consequências mais significativas. Tal iniciativa fundamental partiu de
Portugal, onde os jesuítas tinham dominado a política e o ensino por cerca de dois séculos.
Tratava-se de uma posição pessoal de Pombal quanto aos jesuítas. A ordem havia entrado no
106 A Jacobêa era a prática mística de exercícios religiosos tendentes a provocar visões, das quais a “Escada de
Jacob” era o símbolo, cujo nome é emprestado à seita. A forma de confissão singularizava a seita, na medida em que o penitente era obrigado a delatar seu pecado e denunciar seu cúmplice, sob pena de não ser absolvido de seu
pecado, o que favorecia a propagação as intrigas e o ódio entre as famílias (BRAGA, 1898). 107 Dentre outras ações, relata-se um processo de provimento de concurso cancelado para que outro lente pudesse
assumir no lugar de um forte opositor da seita. Mais tarde, em 1769, o próprio D. Francisco da Annunciação é
preso por conta das suas doutrinas sigillistas (BRAGA, 1898). 108 Braga (1898).
37
país simultaneamente à decadência da monarquia no país. O ministro Sebastião José de
Carvalho e Mello dedicou boa parte do seu tempo no cargo elaborando um estudo para
derrubar os jesuítas de sua influência sobre a coroa109
. Após tramar uma série de situações,
conseguiu, finalmente, sua expulsão em 1759110
.
Outros autores compartilham da concepção de que Pombal tinha uma verdadeira
obsessão pelos jesuítas111
. De todo modo, embora Teophilo Braga se recuse a colocar dessa
maneira, para Gauer, a atitude de Pombal tanto denunciou o atraso em que se encontrava
Portugal quanto criou um corpo social responsável por isso. A ideia era implantar a
organização de uma sociedade civil, em detrimento da eclesiástica, em que o direito divino
dava lugar ao direito natural, tendo em vista a emergência de uma burguesia poderosa, dada a
ascensão da indústria e das reformas agrárias112
.
Assim, com a eliminação dos jesuítas, Pombal logo tratou de reestruturar o ensino,
antes sob sua responsabilidade. Uma das primeiras iniciativas foi a criação da Diretoria Geral
dos Estudos e um novo ensino médio, no qual preponderava o caráter científico moderno, no
Colégio dos Nobres. Com o fim do controle jesuítico sobre o ensino, a ideia é realizar uma
109 Braga (1898). Em seu livro, o autor descreve em pormenores o empreendimento levado a cabo por Pombal, incluindo uma armação de atentado ao rei para incriminar os jesuítas e seus demais inimigos. Dentre os estudos
acerca dos jesuítas, ver “Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasao dos
denominados jesuítas e dos estragos feitos nas sicencias e nos professores, e directores que a regiam pelas
maquinaçoes, e publicaçoes dos novos estatutos por elles fabricados”, de 1771, realizado pela Junta de
Providência Literária, sob a supervisão do Marquês de Pombal, e que serviu de base para a reforma por ele
empreendida no ano seguinte. Em relação ao Compêndio Histórico, Teophilo Braga ressalta que os redatores
assumiram a “jesuitofobia” de Pombal, culpando os jesuítas por toda a decadência do ensino. Segundo o autor,
em outras universidades europeias, nas quais nunca tiveram influência alguma, a decadência pedagógica era
basicamente a mesma (BRAGA, 1898). Apenas para se ter uma ideia do desprezo pelos jesuítas naquele
momento, destacamos uma passagem do Prelúdio I do Compêndio Histórico, quando os autores afirmam que “já
não há por felicidade nossa neste presente tempo quem possa duvidar com apparencia de razão, de que todos os
estragos, que no fysico desta Monarquia se viram no meio della amontoados pelo longo periodo dos ultimos dous Seculos, foram horrorosos effeitos das façanhosas atrocidades dos denominados jesuitas” (ver
COMPÊNDIO HISTÓRICO..., 1771, p. 1). 110 Braga (1898) aponta o século XVIII como uma época marcada tanto pelo espírito crítico especulativo quanto
uma impetuosidade reformada na ação ministerial. Em outras palavras, o poder real monárquico é cindido em
um novo poder ministerial, que governa de forma absoluta em nome do rei e que goza do prestígio sagrado da
soberania. Daí a postura e as ações de Pombal refletirem um corrente da época: a reforma pela arbitrariedade. 111 Por exemplo, D’Azevedo (1922) coloca que para Pombal, “elles [os jesuítas] continuavam a ser a sua
preoccupação máxima, e, cada vez que um inesperado estorvo á sua politica, uma critica aos seus actos, lhe
provocava a irritabilidade, os jesuítas eram, como vimos, os responsaveis, o perpetuo inimigo que muito
importava combater” (p.283), e que “(...) era uma permanente obsessão, exteriorizada a cada passo em actos e
palavras, e que á legislação pombalina impoz o seu cunho, em algumas das suas mais notáveis resoluções” (p. 284). Sem dúvida, o próprio Marques de Pombal é tão controverso quanto suas medidas e ações. De maneira
mais contundente, Camillo Castelo Branco traça um perfil extremamente negativo de Pombal, considerando-o
uma espécie de déspota que zela pela liberdade, sentindo-se livre para glorificar o seu despotismo. O próprio
autor insinua que seu ódio por Pombal é tão grande quanto o de Pombal pelos jesuítas (Ver Camillo Castelo
Branco. Perfil do Marquez de Pombal. Porto: Lopes e Cia, 1900). 112 Gauer (1995).
38
reforma baseada na secularização da instrução nacional – sob forte influência do Doutor
Ribeiro Sanches113
–, que seria dirigida por um delegado do rei, o Diretor dos Estudos,
responsável por manter a uniformidade da doutrina – a partir da proibição de certos livros e
adoção de outros – e das diretrizes a serem implantadas, além de inspecionar e selecionar o
corpo docente por meio de concurso114
.
Pombal, como defensor da monarquia, instala, em 1761, o Colégio dos Nobres, de
modo a educar a “nobreza e a fidalguia” (nos moldes dos colégios militares da França,
Dinamarca, Suécia e Prússia) cujos conhecimentos envolveriam línguas estrangeiras,
aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, geografia, história profana, sagrada e militar,
risco, fortificação, arquitetura militar, naval e civil, hidrografia e náutica, dança, esgrima,
manejo de espingarda, equitação, natação, filosofia moral, direito das gentes, direito civil,
político e prático, economia política do Estado, agricultura geral, navegação e comércio115
.
Somente em 1772 é que Pombal irá promover, efetivamente, a reforma da
Universidade de Coimbra, baseado no referido Compêndio Histórico preparado pela Junta de
Providência Literária, criada em 1770, e supervisionada por ele próprio e o Cardeal de Cunha.
A partir deste documento, foram publicados os novos Estatutos da Universidade de Coimbra.
Por meio de carta régia de 28 de agosto daquele ano, Pombal é nomeado para visitar a
universidade e implantar, investido com plenos poderes delegados, a reforma. Todas as
faculdades foram, de alguma forma, e com alguma resistência, reformadas: teologia, direito
canônico (jurisprudência canônica), direito civil e medicina116
.
No curso de Direito, privilegiou-se o direito natural, estruturado na razão humana, que
é onde os homens são iguais. Assim, criou-se uma nova concepção antropológica, libertando
o homem do teocentrismo aristotélico-escolástico. Foi introduzido o conteúdo de direito
pátrio e história do direito português. Mais adiante, em fins do século XVIII e início do XIX,
acrescentou-se a corrente do individualismo crítico, que foi a expressão do liberalismo
político e econômico difundidos por toda a Europa a partir da Revolução Francesa. Na
medicina, buscou-se um transmitir um saber científico baseado na observação da natureza e
na experiência através da sistematização. Foram criados o Teatro Anatômico, o Jardim
113 Médico e intelectual português de caráter iluminista, cujas ideias influenciaram a elaboração da reforma da
universidade por Pombal. 114 Braga (1898). 115 Braga (1898). Ainda segundo o autor, somente em 1765 são organizadas as disciplinas científicas que, mais
tarde, constituirão a base das faculdades de matemática e filosofia moral da Universidade de Coimbra. 116 Braga (1898).
39
Botânico, os Gabinetes de Física Experimental e História Natural, o Observatório
Astronômico, o Hospital, a Imprensa da Universidade. O estudo do corpo dessacralizado é um
aspecto fundamental da reforma nesse campo117
.
Pombal promove duas inovações importantes e emblemáticas: a criação da Faculdade
de Matemática e da Faculdade de Filosofia. A primeira recebeu o estatuto de Faculdade
Maior, e foi tratada pelos reformadores como a base do conhecimento das ciências naturais.
Era um curso independente e vista como subsídio para as demais ciências. O objetivo da
criação do curso de matemática era a formação de professores e profissionais para atuarem na
Marinha como engenheiros, ou ocuparem cargos de arquiteto e medidores118
. A Faculdade de
Filosofia substituiu a de Artes. A natureza é concebida como um espaço em que o homem
poderia atuar visando o progresso, sendo a observação sistemática um aspecto fundamental119
.
Neste ponto, portanto, é importante assinalar que a proposta de laicização do Estado
assume seus contornos no ensino, inclusive no nível superior, e não apenas em Portugal. É
nesse momento – século XVIII, em termos gerais – que as universidades católicas começam a
perceber o poder do Estado. Segundo Torgal120
,
Se até às reformas iluministas se verificava, sobretudo, uma produção e uma
reprodução de saber integradas numa ordem feudal-eclesiástica da sociedade, com o
Iluminismo, na sua perspectiva “despótica”, surgiu um tendência para a laicização régia e burguesa do conhecimento, concedendo-se maior significado a determinadas
matérias que se encontravam na linha do Progresso que o Estado e a burguesia
pretendiam estimular. É neste sentido que surge a tendência para a subalternização
do direito eclesiástico, a valorização de medicina e a concessão de uma maior
importância às ciências exactas e naturais, consideradas como elementos
fundamentais ao serviço do desenvolvimento, da indústria, da mineração, da
agrimensura, etc.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a reforma de Pombal, de alguma forma, representa
o ápice de um amplo movimento que vinha tolhendo a autonomia da universidade desde os
séculos XIV e XV, à medida que se observa a crescente intervenção dos monarcas na
administração das universidades. Tal perda de autonomia não implicou perda de liberdade de
pensamento, mas perda de liberdade política. Seria com a Contra-Reforma que as
universidades teriam perdido sua autonomia intelectual121
. Pombal teria fornecido um projeto
117 Gauer (1995). 118 Gauer (1995). 119 Gauer (1995). 120 Torgal (2008b, p.25-26). 121 Gauer (1995), referindo-se ao argumento de Guilherme Braga da Cruz (CRUZ, Guilherme Braga da. In
Ensaios Universitários. Origens e Evolução da Universidade. Lisboa, Logos, 1964, p.34-45).
40
coerente e uma definição clara de sua estrutura e objetivos122
, na medida em que buscou um
direcionamento para a ciência e a tecnologia, de acordo com o que isso significava em sua
época, embora tenha, para isso, atrelado a universidade ao Estado, implicando uma completa
intervenção em sua atuação, com o apoio do reitor D. Francisco de Lemos Faria e de alguns
intelectuais dispostos a promover a mudança considerada necessária.
Nesse sentido, apenas um ódio pessoal contra os jesuítas provavelmente não seria
suficiente para alcançar tal intento, embora pudesse ser um motivador, sem dúvida. Assim,
parece-nos mais plausível ter havido uma estratégia política eficaz para a implantação de uma
nova filosofia de sociedade, por assim dizer.
Portanto, do ponto de vista discursivo – e de resto, político-ideológico – era mais fácil
atribuir aos jesuítas a responsabilidade pela conservação de uma autonomia universitária que
eles mesmos construíram e da qual exigiam dos reis serem seus protetores, do que imputar as
causas da decadência da instituição a um Estado centralizador e burocrático, o que absolveria
e reduziria a Companhia de Jesus a meras vítimas impotentes do Estado123
.
Tal estratégia consistiu, basicamente, de criar as condições para que a reforma pudesse
vir a ser implantada. Tudo começa com a nomeação de D. Francisco de Lemos Faria, aos seus
35 anos, em 14 de maio de 1770. Em 23 de dezembro do mesmo ano é criada a Junta de
Providência Literária, da qual D. Francisco fará parte, conforme se afirmou antes, de modo a
realizar os trabalhos preparatórios da reforma. A Junta tinha o objetivo de encontrar os as
causas da ruína da universidade, ponderar sobre os “remédios” e apontar os métodos a serem
implantados. Era presidida pelo bispo de Beja e presidente da Mesa Real Censória, o
franciscano Frei Manuel do Cenáculo, e integrada por outros seis membros (todos doutores,
sendo um deles irmão do reitor), um deputado da Mesa Censória e o reitor (D. Francisco de
Lemos Faria)124
. Desta forma, dava-se cobertura a uma ação que, “para ser aceita, não deveria
aparecer como obra de um só homem, ao mesmo tempo em que se garantiam apoios numa
pluralidade de instâncias poderosas, pelo comprometimento, na elaboração das críticas e das
reformas, de personalidade que, ou eram seus membros, ou eram suficientemente prestigiadas
para se lhes imporem”125
.
122 Torgal (2000). 123 Cruzeiro (1988). A autora não nega que o Estado tenha seu papel no processo de decadência, mas se recusa a
atribuir a ele a criação de tal situação. 124 Cruzeiro (1988). 125 Cruzeiro (1988, p.178)
41
Ao mesmo tempo em que a Junta preparou o Compêndio Histórico, foram elaborados
os Estatutos, o que permite a possibilidade de implantação do novo regime na universidade no
ano seguinte (o que acaba por não ocorrer, levando mais um ano até sua conclusão, em 1772).
Além disto, a reforma previa a renovação do quadro docente, o que evitaria indesejáveis
resistências e, ao mesmo tempo, garantisse as competências desejadas. Juntamente com a
carta régia de “roboração” dos Estatutos, seguiram-se outros documentos que viabilizariam a
reforma, incluindo demissões e novas contratações. O reitor foi nomeado por mais três anos
como reitor reformador, além de proceder à reforma do sistema de administração financeira,
tal como já havia sido feito em outras instituições públicas do país, como o Erário Real, à
Casa de Bragança e outras126
.
Por fim, como componente fundamental, há que se destacar o aspecto e o caráter
“espetacular” da reforma pombalina. Desde a cara régia lhe outorgando plenos poderes para
implantar a reforma, sua chegada em Coimbra com beija-mão como se fosse o próprio rei,
passando pelas vestimentas e rituais, o saco de veludo em que estavam os Estatutos, até o
cortejo que levou o Marquês até o Paço das Escolas127
.
Dito de forma mais clara,
Na época, de uma forma particularmente viva, a encenação do poder tende a anular a
distância que a metáfora supõe entre o objeto material e o seu símbolo. A lei,
emanada de um poder que se pretende de origem divina, querer-se-ia como
expressão de uma vontade que, como a de Deus, ao ser enunciada, é já realidade.
Daí a ousadia de criar para a eternidade, estatuindo o futuro, da fórmula “para sempre” e de abolir o passado “como se nunca tivesse existido”. Daí o frenesi
pleonástico do “Quero, me praz, He Minha Vontade”, entre outras, muitas, formas
de redundância, como se pela expressão se exconjurasse a ameaça das crenças
vacilantes. A espetacularidade da acção enquadra e sublinha aqui o que já está
contido na autoridade da palavra que “legalmente” se anuncia128.
Assim, como bem sublinha a autora, trata-se de
um caso exemplar de exercício do poder que, como todo o poder, se propõe como
intérprete indiscutível do “Bem Comum” e que, como poder do déspota esclarecido, se assume como potência da razão vontade de civilizar e, supremo dom, capacidade
de criar, não apenas pelas obras materiais, mas de tirar do nada, de gerar realidade
pela palavra autorizada e, como realidade natural, para sempre. Por isso ele se
atribui um poder de vida e de morte, poder real sobre corpos e bens, incluindo os
simbólicos. [...] isto, esta força de expressão, expressão da força capaz de fazer de
uma ficção arbitrária um dado do real, que, no limite, é comum a toda a ordem
jurídica, ocorre com especial insistência nas fórmulas do direito iluminista. O que já
vinha detrás, desde os primeiros passos da formação do Estado absoluto – a
afirmação do direito de “dizer o direito”, isto é, de formular a lei e de a impor, como
126 Cruzeiro (1988). 127 Cruzeiro (1988). 128 Cruzeiro (1988, p.182).
42
prerrogativa do imperante – reveste-se agora de um novo vigor, a que o “zelo” real
de “iluminar a nação”, profusamente expresso a propósito de todas as iniciativas
reformadoras, confere a aura épica de um modero Genesis.
Portanto, como se pode perceber, a ação de Pombal foi devidamente planejada, com o
devido apoio político, de modo a implementar aquilo que ele e seus apoiadores acreditavam
ser o caminho adotado por Portugal, numa época marcada por transições ideológicas,
econômicas e científicas.
A reforma realizada por Pombal é caracterizada, acima de tudo, por seu sentido
estatista, ou seja, a estruturação de um ensino “oficial”, contrário ao ensino livre da Igreja
católica, em especial jesuítica. De todo modo, o fato é que a reforma alterou a universidade
para sempre, embora com alguma distância em relação àquilo que fora pretendido
originariamente. Na prática, havia muita reação ao ideal pombalino. Com a queda de Pombal
e a morte de D. José I, houve a tendência da Igreja controlar novamente o ensino, tanto por
razões ideológicas quanto práticas. De todo modo, a universidade ganhou mais autonomia e
relevância institucional no quadro geral do ensino. Assim, o ensino continua a pautar-se no
modelo pombalino, embora reações conservadoras e o desgaste natural das instituições
proporcionadas pela instabilidade da vida nacional tenham gerado algum retrocesso. Avança-
se no sentido de algumas experiências pedagógicas e escolas especiais – no espírito do
Iluminismo – ao mesmo tempo em que se afrouxa a concepção “oficial” de ensino com a
clericização e a liberação das atividades educacionais129
.
Tal situação era compatível com o clima da época, “em que se cruzavam o espírito
burguês ainda não desperto para a revolução e o espírito tradicionalista”, e “com a sociedade
europeia pós-Revolução francesa, onde uma burguesia em busca de estabilidade se deixava
instilar por concepções conservadoras e propendia para uma visão técnica da cultura e do
ensino”130
. Mas, apesar dos esforços do século XIX, alguma coisa vai mudar, de fato, a partir
da república, no século XX, quando o ideal pombalino é efetivamente posto em causa.
A Universidade de Coimbra no Século XIX
O século XIX é marcado, inicialmente, com a transmigração da família real para o
Brasil, em 1808, em função da pressão de Napoleão para ter o apoio de Portugal contra a
Inglaterra. O país é invadido três vezes pelo exército francês entre 1808 e 1810, quando a
129 Torgal e Vargues (1984). 130 Torgal e Vargues (1984, p.28).
43
Universidade foi saqueada pelo inimigo – que foram expulsos, definitivamente, em 1811.
Obviamente, as aulas foram seriamente prejudicadas. O clima em Portugal não era dos
melhores, dada a ausência do rei, o que acaba por levar à Revolução de 1820, a chamada
Revolução Liberal.
Sob a orientação ideológica de Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Silva Carvalho,
eclode a revolução, cuja meta era a criação de um parlamento de onde saísse uma
Constituição de direitos e deveres dos cidadãos, e com respeito pela monarquia e pela
religião. Em janeiro de 1821, nomeadas por sufrágio universal, foram nomeadas as Cortes
Constituintes, das quais, cerca de um ano e meio depois, com data de 23 de setembro de 1822,
saiu a Constituição Política da Monarquia Portuguesa, em nome da “Santíssima e Indivisível
Trindade”. Nesta, a instrução pública ocupa o último lugar e abrange quatro artigos. Para a
instrução, foi criada uma Comissão de Instrução Pública. É neste período, ainda, que é extinto
o Tribunal do Santo Ofício e abolida a censura131
.
No entanto, em função das alterações na vida portuguesa desde a revolução de 1820,
somadas à independência do Brasil em 1822, D, Miguel, filho de D. João VI, proclama o
estado de rebelião, havendo repercussões sobre a instrução pública, inclusive com o retorno
da censura e fechamento de escolas. Após uma série de situações políticas, D. Miguel é
proclamado rei e Portugal vive em regime absoluto até 1834. Em 1832, os jesuítas passam a
ter existência legal novamente no país, que assumem, inclusive, o Colégio das Artes de
Coimbra132
.
Neste contexto, observa-se uma forte crítica ao ensino em Portugal, dada a inércia por
parte do Estado português e da estrutura política vigente. Parte das críticas inspirava-se nas
ideias francesas a respeito da educação, embora tais ideias fossem um tanto difusas e certos
conceitos tenham perdido força, como é o caso do valor iluminista da instrução como índice
de civilização e liberdade. Tal conceito poderia implicar tanto uma consciência revolucionária
quanto representar uma forma estereotipada de uso corrente. As discussões recolocavam a
questão debatida à época da Revolução Francesa: controle do ensino pelo Estado ou liberdade
de ensino?133
.
De todo modo, as discussões parlamentares não chegaram a tomar atitudes
revolucionárias no que concerne à instrução pública. Enquanto em França a ideia era derrubar
131 Carvalho (1985). 132 Carvalho (1985). 133 Torgal e Vargues (1984).
44
o sistema escolar do “antigo regime”, o mesmo não sucede em Portugal. No bojo da
discussão, e influenciadas pela Revolução Francesa – sobretudo da fase da Convenção –
surgiram algumas propostas mais ousadas, sendo a de Santos do Vale a de cunho mais radical,
ao se desvincular por completo das orientações pombalinas, diferentemente das demais
propostas que apenas a modificariam sem, no entanto, questionar seus pressupostos – tal
como as propostas de Serpa Machado e de Soares Franco. Seu objetivo é tanto a
desclericização do ensino oficial quanto a independência do ensino eclesiástico. Seu desejo é
oficializar o ensino, assentando-se numa concepção liberalista que deve basear todo o sistema
da vida nacional. Neste sentido, deixaria de existir a “universidade proprietária” vigente,
tornando-a instituição pública. A despeito de ser sido criada uma comissão para discutir a
proposta, com a inclusão do próprio autor, ela jamais atuou134
.
Da mesma forma, e apesar de ter sido levada ao nível parlamentar, a proposta radical
de Rebelo de Carvalho, jornalista de Coimbra, de extinguir as universidades e criar as Escolas
Centrais em seu lugar, jamais foi levada e cabo. O mesmo ocorre com o projeto menos radical
de Luis Mousinho de Albuquerque, para quem a “universidade proprietária” era um
“monstro”, e o professor entendido como um funcionário público. Apesar das críticas por ele
formuladas e de alguma adesão a suas ideias, o status quo não se altera135
.
Em conclusão, Torgal e Vargues admitem que a inércia foi a característica principal
das Cortes e das Comissões de Instrução – órgãos responsáveis pela instrução pública em
Portugal – do primeiro liberalismo português, posto que não havia um ambiente político
propício para uma mudança radical transformada136
.
Para Carvalho, o liberalismo português, desde que chegou ao poder, mostrou-se hostil
ao fortalecimento da universidade, inclusive propondo seu fechamento – proposta de Borges
Carneiro –, por considerá-la inútil. A reforma de 1836, que privilegiava os ensinos primário e
secundário em relação ao superior, e levada a cabo pelo deputado Passos Manuel (Manuel da
Silva Passos), previa a criação de escolas superiores em Coimbra, Lisboa e Porto. Assim, em
1837, cria a Escola Politécnica de Lisboa e a Academia Politécnica do Porto, o que
representava uma espécie de ataque ao monopólio da Universidade de Coimbra quanto ao
ensino superior137
.
134 Torgal e Vargues (1984). 135 Torgal e Vargues (1984). 136 Torgal e Vargues (1984). 137 Carvalho (1985).
45
A despeito de uma pequena reforma da Universidade de Coimbra em 1901, somente
com o advento da república – a despeito de sua prioridade pelo ensino primário138
– é que o
país irá experimentar uma nova alteração talvez tão profunda quanto aquela empreendida por
Pombal, inclusive durante o Estado Novo de Salazar139
.
No entanto, foge ao escopo deste trabalho abordar tal fase, dado nosso objetivo de
estabelecer alguma conexão entre a Universidade de Coimbra e a universidade brasileira,
criada dentro de um clima de rejeição e de resistência ao “modelo” português, ainda inspirado
no “antigo regime”, tão combatido pela nascente república brasileira, em 1889.
138 Torgal (2010). 139 Torgal (2012).
46
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INTRODUÇÃO
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