História Viva - Conceição do Mato Dentro

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A cultura e a memória de um povo e seu legado para o futuro.

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qA memor ia de um povo e seu legado pa ra o fu tu ro

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V i s t a a é r e a d e C o n c e i ç ã o d o M a t o D e n t r oC a c h o e i r a d o T a b u l e i r o , u m d o s m a i s b e l o s c e n á r i o s n a t u r a i s d o p l a n e t a , t e m 2 7 4 m e t r o s d e a l t u r a e é a t e r c e i r a m a i o r d o B r a s i l .

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fiCha CaTlográfiCa

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qinfluências.............................................................,.........05

etapas de trabalho...........................................................13

acervos pesquisados.........................................................................17

acervos fotográfico................................................................19

festa popular......................................................................31

hist[oria oral - entrevista programada...............................................................33

hist[oria oral - entrevistas realizadas .......................................................39

an[alise preliminar...........................................................41

resumo de entrevistas.........................................................................47

a equipe....................................................................53

projeto gráfico..........................................................................55

etapas futuras................................................................61

SUMário

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qC o n c e i ç á o f o i c r i a d a s o b o s i g n o d o

S a g r a d o q u a n d o o s p o r t u g u e s e s a p o r t a r am a q u iC o n c e i ç á o f o i c r i a d a s o b o s i g n o d o

S a g r a d o q u a n d o o s p o r t u g u e s e s a p o r t a r am a q u i

UM iNSTigaNTE olhar Para o NoSSo PaSSaDo

P r é d i o h i s t ó r i c o d e C o n c e i ç ã o d o M a t o D e n t r o ( S é c u l o X V i i i ) s e d i o u a a n t i g a C â m a r a M u n i c i p a l e a c a d e i a p ú b l i c a .

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qResgatar a história de um povo é preservar o que se tem de mais pre-

cioso: sua memória, seus costumes, suas raízes. Por essa prática, as gera-ções futuras contam com a herança de seus antepassados para seguir em frente com os pés firmes nas suas referências.

Conceição do Mato Dentro – História Viva – é uma obra que bus-ca garantir esse legado para a comunidade da região. E contribuir para o lançamento deste livro enche de orgulho a nós, empregados da Anglo American, envolvidos no Projeto Minas-Rio.

A Anglo American é um dos maiores grupos de mineração e recursos naturais do mundo. Produzimos platina, diamante, níquel, cobre, miné-rio de ferro, carvão térmico e carvão metalúrgico.

Depois de quase um século de atividades, entendemos que nosso su-cesso depende de uma gestão correta e ética. Somente comunidades es-táveis e prósperas podem participar dos frutos do desenvolvimento. Por isso, valores e princípios devem ser universais, assim como os direitos humanos, a arte e a felicidade de celebrar a vida.

E é neste sentido que sonhamos em conjunto e manifestamos nosso apoio a este rico trabalho de pesquisa histórica e cultural. A “História Viva” relatada neste livro é fruto de um sonho que estamos colocando em prática: cooperar para fortalecer a cultura, a memória e a história de Conceição do Mato Dentro, cidade tricentenária, que exemplifica o espírito da mineiridade. Nosso objetivo é mostrar ao povo de Conceição do Mato Dentro e do nosso país, o quão especial é a história de sua gente, contada nos relatos, lendas e fatos históricos que compõe um mosaico cultural de rara beleza.

Este livro é um belo exemplo da riqueza da gente de Conceição. E sua gente tem motivos de sobra para se orgulhar disso.

Dizem que o escolhido para fazer a apresentação de um livro, deve ser uma pessoa que tenha uma imensa satisfação com a leitura da obra. E esta é a nossa relação, nosso jeito de ser, fazer e viver. E por isso mesmo,

enxergamos o grande valor de um trabalho como este que resultou numa obra de grande beleza e de conteúdo especial. Tão especial quanto a his-tória da gente que ele retrata.

Desde o ano de 2008, quanto efetivamente chegamos ao município de Conceição do Mato Dentro e região, iniciamos uma relação de trans-parência e diálogo permanente com a população e constatamos a forte relação de seus moradores com a terra, o lar, a família, o trabalho, a natureza e a religiosidade desta terra. Estas características e valores re-gionais incentivaram outros aspectos positivos em nossas ações, aprimo-rando ainda mais nosso desempenho socioambiental, de forma a atender as expectativas que estão sempre em evolução.

Como a premissa do nosso trabalho é sempre o respeito às comuni-dades, fomos a campo e conhecemos de perto as manifestações culturais, festas religiosas, antigos ofícios e trabalhos, seus locais históricos, pessoas com seus “causos” e, principalmente, a vontade de uma população em registrar e preservar tudo isso.

Esta obra, capitaneada e organizada pela KLG Editora, com a coope-ração e orientação do Instituto Espinhaço e a colaboração do Instituto Brasilan, e lançada com o apoio cultural da Anglo American, coroa três anos de intensa relação com estas pessoas e lugares. E, principalmente, vem premiar o trabalho de toda a equipe que conseguiu produzir um ex-celente e útil acervo da sociedade conceicionense.

A qualidade editorial deste trabalho registrará sua marca no tempo, resguardando aspectos singulares da vida da comunidade para as futuras gerações do município. Aspectos mais profundos da história deste lugar, sua formação social, com seus causos, mitos e lendas, nos abrem as portas para uma compreensão mais íntima da alma desta gente, demonstrando que suas festas, sua hospitalidade, sua gastronomia e seus cenários de belezas naturais e arquitetônicas, mescladas à fé e religiosidade únicas deste povo, são traduzidos em valores e conquistas que respeitamos e que também defendemos.

É nosso papel e nosso compromisso desenvolver ações que possam fortalecer a cultura regional e aliar, com eficiência e responsabilidade, a atividade minerária com o desenvolvimento do turismo ecológico e re-ligioso, aspectos que são naturalmente identificados com o povo de Con-ceição. Temos consciência que a união de esforços, com ações conjuntas e organizadas, garantirá um futuro melhor para todos nós, que amamos Conceição. E estaremos juntos, por muito tempo, nesta tarefa de melho-rarmos ainda mais a vida da gente desta região.

Parabéns à Conceição do Mato Dentro, a todos os conceicionenses, à KLG Editora, ao Instituto Espinhaço, ao Instituto Brasilan e a todos os his-toriadores, arqueólogos, jornalistas, educadores, geólogos, agricultores, filósofos e principalmente a todos os cidadãos que amam, vivem e respi-ram Conceição do Mato Dentro por esta obra tão bela e tão importante.

Fraternalmente,

Newton Augusto Viguetti FilhoGerente Geral de Desenvolvimento Sustentável e Licenciamento

do Projeto Minas-Rio – Anglo American, Unidade de Negócio Minério de Ferro Brasil

hiSTória PrESErVaDa

A P R E S E N T A Ç Ã O

Castelo de Tomar, antigo convento do ramo português da Ordem dos Templários, transformada em Ordem de Cristo em 1357.

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N o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o n o

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qCoNCEiÇÃo Do MaTo DENTro: o DESafio DE oBSErVar, aPrENDEr E ParTiCiPar

A importância do Afeto ao Bras i l como meio de construção de uma c idadania g loba l Mário Soares

O Brasil é um país imenso, geograficamente conhecido e historica-mente admirado. Inúmeros pensadores o estudam com admiração e ou-tros tantos, seguem com paixão o evoluir da atualidade brasileira. É o fruto desse reconhecimento, respeito e entendimento, aliado a um esforço persistente de auxiliar a construir uma Cultura de Paz universal, que nos faz avançar preservando os diversos mundos de que somos herdeiros e que habitam em nós secretamente. O Brasil cresce, caminha em direção ao seu destino de potência mundial, com representatividade, não só na América Latina, mas em todos os Continentes. O Brasil é uma grande nação, cuja unidade e harmonia surpreendem o mundo global, pleno de divisões irredutíveis.

Vivemos num contexto planetário que deve ser de paz e não de guer-ra. Vivemos num mundo que deve recusar a cultura da violência e da exclusão. Não se trata de uma utopia, como não é uma utopia a defesa dos ecossistemas e ambientes naturais e a mudança da formatação do pensamento desenvolvimentista que orienta nossa civilização. Trata-se de uma necessidade imperativa, se queremos evitar maiores catástrofes ambientais e garantir a viabilidade do nosso futuro. Mas, sobretudo, ne-cessitamos entender que, para construir esse mundo melhor, precisamos de pessoas mais humanizadas, comprometidas com a construção de um novo modelo civilizatório, um pensar e agir diferente, onde os milhares de pessoas que habitam as cidades e os poucos que ainda vivem próxi-mos ao meio rural, possam estar plenamente conscientes de que a vida que todos temos e queremos é a construção particular de cada um que, inelutavelmente, se deposita no coletivo do mundo. Sob essa ótica, a ci-dadania e nós, cidadãos, assumimos um papel central na construção de um novo amanhã.

No século XXI, estamos assistindo a um fenômeno novo na história: uma cidadania global que simultaneamente é agente e exemplo de trans-

formação. Uma reflexão meticulosa do significado da palavra “cidada-nia global” revela-nos que ela remete à noção simultânea, tanto de pá-tria, quanto de planeta, indicando que ambos, pátria e planeta, devem ser igualmente considerados. No entanto, paradoxalmente, inúmeras ações têm sido empreendidas no sentido de salvar o planeta abolindo as pátrias, através da uniformização das culturas em prol de uma economia globalizante, numa confusa sobreposição entre limites e fronteiras.

Mas, ao observador atento, a construção de uma cidadania global, diretamente conectada com a natureza, ao contrário do propagado, esti-mula o surgimento um novo modelo de ufanismo pátrio, pois, sob a égide do “estímulo e respeito às diferenças”, as diversas expressões culturais de cada povo assumem sua posição no avançar e construir do mundo. Ufanismo é um sentimento de pertença e unidade, seja ela familiar, geo-gráfica ou política.

O entendimento de que a Pátria é a expressão ampliada da família, é onde o coletivo se expressa e se amolda em gestos, atos e alma, sementes basilares da cultura, que validam a importância do amor à Pátria. Por sua vez, se, ao falar em cultura pensássemos em cultivo, muitas violências seriam evitadas. Cultura diz respeito a cultivo. E há dois tipos de cultivo, o do corpo e o do espírito. É no entrelaçamento de ambos que as idéias de Pátria e de família se gestam e se fundamentam. Portanto, enaltecer, divulgar e amar as diversas pátrias do mundo são ações que igualmente se projetam nas famílias, como forma de respeito, de reconhecimento e de amor às diferenças. Assim, aprofundar, estimular e vivenciar a essência dessa questão é tema do maior relevo, mormente na atualidade brasilei-ra, onde a Pátria tem sido tão defraudada pela falta de valores e de ética.

O Brasil tem inúmeras expressões culturais. A beleza de cada uma delas, bem como a de cada bioma, reside exatamente na sua singulari-dade. E é essa riqueza particular que merece ser vivenciada através do sentimento pátrio, que é uma forma de conhecimento e de experiência, nada tendo, portanto, nem de vaidoso ou superficial, nem tampouco é a

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Castelo de Tomar, antigo convento do ramo português da Ordem dos Templários, transformada em Ordem de Cristo em 1357.

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qproposta de uma valorização excessiva de nosso país em relação aos ou-tros países do mundo. Todo país, toda cidade, toda família, merece ter o orgulho e o amor do seu povo, para que possa realizar o seu destino, que é a sua parcela na vida do planeta. É apenas isso que nos cabe. Conhecer de fato a alma da nossa gente, do nosso país e, de nossa família, para que possamos vivenciá-la. E, dessa forma, conseguiremos vivenciar nossa própria alma mais completamente.

A construção de uma cidadania global demanda um longo processo e se dará sobre a diversidade dos povos e das mentes, onde se presume que cada um contribua com o que lhe cabe e o que lhe pertence. Dentro da parcela que nos cabe, podemos afirmar que o contributo de Conceição do Mato Dentro é duplo, pois pode ser extraído tanto de sua geografia quan-to de sua cultura, ambas histórica e intimamente entrelaçadas. Mas, somos convictos que a concretização dessa parcela exige um árduo e per-

sistente processo de vontade e consciência própria, não sendo fruto nem do oportunismo nem da preguiça. E para tanto, todas as iniciativas que puderem gerar en-tendimento e conhecimento para engrandecer o futuro do planeta e da humanidade, são bem-vindas.

Nisso consiste o compromisso e a missão desse livro, feito carinhosamente para Conceição do Mato

Dentro e seu gentil povo, encravados como gema preciosa na misteriosa Serra do Espinhaço.

a Vocação Planetária de Conceição do Mato DentroAtentos aos sinais do futuro e atendendo ao imperativo da hora, nós,

do Instituto Espinhaço, desenvolvemos e propusemos a idéia do Projeto His-tória Viva, organizado e editado pela KLG Editora, sob a orientação do Instituto Mukharajj e com o apoio cultural da empresa Anglo American.

O Projeto História Viva, corporificado neste livro, é a continuidade de um sonho e de ações múltiplas, cultivados ao longo de quase duas

décadas, cuja semente foi plantada através de ações organizadas ainda nos primórdios da década de 1990, quando iniciamos a mobilização em prol das questões ambientais, turísticas, culturais e sociais em Conceição do Mato Dentro. A partir daí, desenvolveu-se um fio contínuo de ações que tem como marco fundamental, o ano de 2005, quando a UNESCO reconhece a Serra do Espinhaço como Reserva da Biosfera.

Esse reconhecimento foi uma conquista coletiva. Quando trabalha-mos, ainda no ano de 2003, no desenvolvimento da proposta de criação da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, sonhávamos poder trans-formar a vida de todas as pessoas das 53 cidades envolvidas neste projeto que nasceu em Conceição do Mato Dentro, epicentro deste processo tão abrangente. Trabalhamos intensamente durante dois anos, conquistan-do novos e importantes parceiros, como Danielle Mitterrand, presidente da Fundação France Libertès e Mário Soares, ex-presidente de Portugal, ambos, amigos pessoais do Embaixador José Aparecido de Oliveira, nosso mentor e apoiador incondicional neste processo.

Encaminhamos nosso projeto até o Governo de Minas Gerais, na pes-soa do Secretário de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Susten-tável, José Carlos Carvalho, que não somente aderiu à proposta, como também fez todos os esforços pessoais e governamentais para o encami-nhamento junto aos organismos internacionais. Finalmente, em junho de 2005, a Serra do Espinhaço foi reconhecida como uma Reserva da Biosfe-ra, pela UNESCO.

Hoje, passados seis anos, a chancela internacional de Reserva de Biosfera nos indica rumos e caminhos, ainda por construir. Dados os primeiros passos, segue-se o aprofundamento deles. Precisamos trabalhar para tornar Conceição do Mato Dentro uma referência em conservação ambiental, em cultura de paz, em ecoturismo, em agroecologia, em saú-de integral, em desenvolvimento sustentável. Evidentemente, que isso demanda uma utilização responsável dos nossos recursos naturais e mi-nerais, mas, sobretudo, um comprometimento individual e coletivo com

novos rumos e novos saberes, de alcance e finalidade planetários. Sem tais esforços, a almejada conquista internacional queda-se vazia e sem sentido, transformado a glória em tragédia.

Cabe ressaltar que, para nós, o título de Reserva da Biosfera não é um fim em si mesmo, mas, sim, um meio para realizarmos sempre algo mais e melhor para tudo e para todos da Serra do Espinhaço. Nesse sentido, é importante destacar que Conceição do Mato Dentro tem um projeto de sustentabilidade delineado há alguns anos, no momento de minha gestão enquanto Secretário de Meio Ambiente e Turismo de Conceição do Mato Dentro. Foi sobre essa raiz que o sonho da Reserva da Biosfera se efetivou.

A obtenção de um título planetário corporifica a visão de que a vida é um fenômeno universal, pois, é da vida e à vida que o título fala e ressalta, com toda a singularidade que ela expressa em cada canto da Terra, singularidade que deve dialogar com todas as diferenças. E ao pensar sobre a vida no planeta emerge a importância que as ações hu-manas desempenham na manutenção da mesma. E o foco na Terra, pela abrangência e responsabilidade que engloba, é o único caminho viável para auxiliar a construir um amanhã de paz, melhor e mais feliz para tudo e para todos.

Tendo isso em vista, acreditamos que o envolvimento e o reconhe-cimento da UNESCO em 2005, nos conferindo o cunho internacional de Reserva da Biosfera amplia a vocação planetária da nossa região, ao mesmo tempo em que lhe confere responsabilidades e direitos em igual medida, a ser assumidos por todos.

Deste modo, além da comunidade, também a política, ao tomar para si a iniciativa de contribuir para a viabilização dessa vocação planetá-ria, quando alicerçada numa visão multidimensional da vida e na ética planetária, tem muito a contribuir. Dentro dessa linha de pensamento, minha experiência de vários anos demonstrou a imperativa necessidade de promover uma sinergia entre os setores público, privado e da socie-

dade civil, porque algumas questões se mostram como verdades incon-testáveis, suplantando, inclusive os espaços de um povo e as épocas de um tempo, sendo, por isso, de alcance mundial, fundamentais, portanto, para uma cidadania mundial. Dentre elas, destaco que:

• O desenvolvimento socioeconômico-cultural e conservação da na-tureza são dois componentes complementares, interdependentes, seja aqui em Conceição do Mato Dentro ou em qualquer outro lugar do planeta;

• O estado de complementaridade e de interdependência entre de-senvolvimento socioeconômico-cultural e conservação da nature-za pressupõe um constante equacionamento dinâmico para as questões trabalhadas pelo homem no seu dia-a-dia;

• O conhecimento técnico-científico e o conhecimento tradicional devem ser trabalhados em sinergia, pois são complementares e necessários para a minimização ou resolução dos problemas que permanentemente criamos;

• A sustentabilidade de nossa região e todas as suas múltiplas expressões de diversidade cultural, social, econômica e am-biental, dependem tanto da resiliência dos ecossistemas como dos valores humanos, aspirações, necessidades e limitações de nossa comunidade;

• A resiliência dos ecossistemas, bem como os valores e as aspira-ções, as necessidades e as limitações humanas do presente, estão inexoravelmente ligadas ao passado, ao presente e ao futuro, tanto de um ponto de vista natural quanto ético;

• O foco das ações são locais, mas, comprometidos combuma visão planetária maior e mais profunda.

A relevância de todo este arcabouço “conceitual” é que o mesmo, ao ser transposto para o plano concreto das políticas públicas e privadas e abraçado pela comunidade, inibirá a ação de aventureiros que possam pensar em reeditar o velho modelo de exploração a todo custo, sem crité-rios, transparência e responsabilidade. Este tempo já passou.

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qMas, cabe aqui uma consideração. Se é utópico querer a substituição

do mercado financeiro internacional e da tecnologia, porque à eles se atribuem as mazelas do mundo, por sua vez, não é utópico querer enten-der que, em si mesmos, ambos, são somente ferramentas para viabilizar a vida humana. Portanto, as mazelas do mundo devem-se ao próprio ho-mem, que, do mesmo modo que as criam, as podem evitar ou minimizar, desde que o compromisso com uma interioridade ética seja seriamente considerado.

Nesta linha de pensamento, recai também sobre nós, cidadãos concei-cionenses, fazer todos os esforços para que Conceição do Mato Dentro te-nha um modelo de desenvolvimento responsável e sustentável, porque, é também parte do nosso dever de cidadãos e, sobretudo, constitui-se numa diretriz civilizatória e cultural, em sintonia com os novos propósitos glo-bais.

Sabemos que o conceito de desenvolvimento responsável e sustentável é algo que entremeia uma visão relativamente nova na discussão dou-trinária que fundamenta as práticas do nosso dia-a-dia e que deman-da um novo comportamento dos seres humanos face ao planeta e a si mesmos. Por isso, é preciso buscar elementos conceituais e práticos que nos mostrem um novo caminho a ser seguido, sem medo de inovar e de acolher o diferente. Esses elementos conceituais não são e não podem ser estanques. Muito ao contrário, devem ser dinâmicos e sinérgicos. A vida no planeta é uma teia onde uma dimensão abrange e entrelaça outra, como já demonstraram pensadores como Henri Bergson, Hans Jonas, Ca-therine Larrére, John Eccles, Fritjot Capra, Lynn Margulis, James Lovelock, Rupert Sheldrake, Arne Naess, Enrique Leff, Ignacy Sachs e tantos outros que repensaram o cosmo, a natureza, o ambiente, o homem, a cultura, a religião, a arte, a economia, a tecnologia e a ciência, como uma maneira de buscar, de perseguir, a idéia da sustentabilidade e da ética planetária.

Portanto, ao pensarmos a temática do desenvolvimento responsável e sustentável, como um caminho a ser trilhado na nova história que es-

tamos escrevendo na vida de nosso município, não me permito imaginá--lo, sem a aplicação de paradigmas que sejam inovadores, abrangentes, inclusivos e não violentos. E isto requer um intenso debate, exige a união e o comprometimento de todos para uma incessante troca de esforços e de responsabilidades entre os mais variados grupos sociais, de sorte que es-tes novos paradigmas possam ser traçados com base em alternativas que sejam ambiental, social, econômica e eticamente viáveis para o futuro da comunidade conceicionense, bem como da Serra do Espinhaço.

O fato de sermos uma Reserva da Biosfera só aprofunda esse compro-misso global das pessoas com a Terra e com a Natureza. Porque, dentro de uma visão profunda e verídica, se criamos a idéia de “reservas natu-rais” que devem ser preservadas, é porque reconhecemos a destruição que estamos promovendo no planeta e buscamos, desse modo, preservar parte desse patrimônio da destruição. Portanto, recai sobre as “reservas natu-rais” um “peso” a ser diluído entre seu entorno, a ser absorvido pelas co-munidades. E a administração desse “peso” requer a união da sabedoria com o entendimento, pontilhado de humildade. Preservar é necessário, mas, sobretudo, parar de destruir é um dever mundial.

Para parar de destruir, devemos nos reeducar e assumir uma nova atitude face à nós mesmos e ao mundo que habitamos. E, para tanto, uma nova atitude individual, que considere o coletivo, deve ser assumida e buscada por todos, de igual modo. Sua concretização altera a visão de mundo individualista e antropocêntrica que temos, pois, leva em conta que as necessidades dos grupos sociais possam ser atendidas a partir da gestão democrática da diversidade, nunca perdendo de vista o conjunto da sociedade, considerando suas demandas emergenciais, mas, focada numa perspectiva com horizonte de longo prazo.

A implementação de uma nova práxis, que parta do individual em di-reção ao coletivo, auxiliará na busca pelo tão almejado desenvolvimento responsável e sustentável, além de trazer a certeza de que temos de deixar de tratar esse assunto como linear ou único, uma vez que práticas como

estas - lineares, conduziram nossa região, no seu passado histórico, a um quadro de empobrecimento da biodiversidade, diminuição das produ-ções agrícolas, diminuição da oferta hídrica, desequilíbrio dos ecossiste-mas, êxodo rural, favelização da cidade, dentre outros.

A construção de um novo modelo de desenvolvimento pressupõe a emergência de uma nova cultura e, por conseguinte, de um novo ser hu-mano, mais humanizado. Pois, se o homem não se humanizar, como buscar um novo modelo de desenvolvimento rico em alternativas, capaz de enfrentar, com novas soluções, a crise social e ambiental em que nos encontramos? Este é o nosso dever, de cidadãos conceicionenses e de ci-dadãos planetários, o de servir a um propósito fraternal, construtivo e inclusivo, para ajudar a construir um novo amanhã.

Se à Serra do Espinhaço, como Reserva da Biosfera, cabe à responsa-bilidade de contribuir para o futuro do planeta, é porque também a nós, povo desta serra, cabe parte dessa realização mundial. Temos a clara certeza de que nós estamos construindo, a cada dia, com nossas ações, nosso destino comum e nosso futuro comum. Portanto, não podemos ser excludentes e negligentes a ponto de negarmos nossa cota-parte na res-ponsabilidade pela construção de novos modelos de desenvolvimento econômico para nossa região. Porque, além das empresas e do poder público, também as comunidades influem, especialmente, na condução do desenvolvimento de uma região e do planeta.

Nesse particular, a comunidade de Conceição do Mato Dentro tem fei-to esforços no sentido de impedir a reedição irresponsável do mito do “El-dorado”. Isto, porque ao contrário do que advogam alguns, não podemos dispor de nosso capital natural e de nossos patrimônios, sem um critério de responsabilidade e de compromisso para com nosso futuro. Nossa so-ciedade não precisa e não deseja um desenvolvimento a qualquer custo.

Devemos nos comprometer seriamente com a construção desse novo modelo de desenvolvimento porque somos uma Reserva da Biosfera, mas, sobretudo, porque somos seres vivos que habitam um único planeta e que

fazem parte de um mesmo ecossistema que deve ser preservado.

A instigante verdade de que pertencemos a uma mesma teia de vida e que, portanto, temos responsabilidade global, está alicerçada em algu-mas premissas (ecológica, ambiental, cultural, social, econômica, políti-ca, institucional, demográfica, espacial) que, por serem inovadoras, en-frentaram no passado recente e ainda enfrentam, as mesmas resistências quanto a pensar em conjunto e de forma sinérgica os problemas da nossa comunidade, nossa região ou do planeta. De uma forma ou outra, estas resistências estão internalizadas no pensamento e na cultura que ainda orientam o poder público, alguns grupos da sociedade civil e as ativida-des de setores da iniciativa privada.

Hoje, está claro para cada um de nós que os problemas ambientais existentes nos mais diversos e, às vezes, simultâneos pontos do planeta, que geram efeitos e conseqüências em outros lugares, mesmo nos pontos mais distantes, são causados pelo homem. Somente uma mudança em nosso pensamento e ações, poderá mudar este quadro que nos revela um futuro não muito promissor.

Nosso grande desafio, portanto, está alicerçado na necessidade cada vez maior dos seres humanos em buscar verificar e reconceituar nossos modelos de interação entre o homem e a natureza e repactuar também, e com celeridade, um novo “contrato social” entre nossa relação com a teia da vida que nos rodeia e à qual pertencemos. Urge uma nova atitude a ser estabelecida em bases de eqüidade, sinergia e união, pois “estamos todos juntos na mesma missão planetária”.

o Diálogo entre Ecologia e Sustentabilidade

Desde o Brasil Colônia, a história do Estado de Minas Gerais entrela-ça-se com a da atividade mineradora. Considerando-se que, no cenário atual do mundo, que não se sustenta, no modelo em que vivemos, sem a atividade de extração mineral e ainda, o momento que vive Conceição com a possibilidade de exploração das suas reservas de minério de ferro,

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qestamos diante de uma crise, que se traduz numa oportunidade de poder-mos escrever aqui um novo e profícuo capítulo da exploração mineral no nosso Estado e nosso país, exemplificando para o mundo, um modelo de sustentabilidade sócioeconômico-ambiental, que seja simultaneamente inclusivo e, na medida do possível, gerador de uma cultura de paz.

A atividade de extração mineral em “áreas comuns” exige, por si só, um arcabouço técnico complexo. Como pensar essa atividade, quando transposta para uma região que é Reserva da Biosfera? Evidentemente que os mecanismos conceituais e práticos devem ser revistos, modificados e ampliados. A questão que se nos impõe é: como e quem deve fazê-lo? Nossa experiência demonstra que todos, poder público, privado e comuni-dade, devem se envolver no processo, participar dele ativamente.

No nosso caso específico, desde o “marco zero” da “re-introdução” da proposta de desenvolvimento da atividade minerária em Conceição, ini-ciamos, ainda no ano de 2006, enquanto gestor e Secretário Municipal de Meio Ambiente e Turismo, uma série de estudos, análises conjunturais e uma busca por modelos em outras regiões do planeta, que nos indicas-sem as mais modernas formas para o uso sustentável dos nossos recursos minerais. Todo este conjunto de iniciativas e ações que se estenderam nos anos de 2006, 2007 e 2008, resultou na proposta de um arcabouço técnico-legal e institucional, contendo ferramentas para que a gestão pú-blica do nosso município pudesse fazer frente ao novo desafio histórico que se apresentava ao município: conciliar a atividade de mineração com turismo ecológico, cultural e religioso, além de outros aspectos para o desenvolvimento sustentável da nossa comunidade.

A proposta da extração mineral, desenvolvida nos primórdios da nos-sa comunidade, retorna, em nossa história moderna, revestida de um novo contexto no tempo, no espaço e na perspectiva antropológica do desenvolvimento humano idealizado para nossa gente. E por isso mesmo, neste cenário delicado, fizemos um grande esforço conjunto para delinear propostas e medidas, em sinergia com a sociedade local, com os muni-

cípios vizinhos (que são co-participes deste processo de extração mine-ral), com o governo do estado e com a própria empresa responsável pelo processo, para mitigar os efeitos nocivos da mineração e potencializar e maximizar seus vários efeitos positivos, em consonância com os mais modernos paradigmas em voga no mundo.

Todo este modelo para o desenvolvimento sustentável de Conceição do Mato Dentro foi desenvolvido ao longo daqueles anos e está disponível, cabendo ao executivo muni-cipal, em parceria com os setores da sociedade civil organizada, com o governo do estado e com a inicia-tiva privada, implantar e gerir todo este arcabouço, visando a melhoria da qualidade de vida para nossa comunidade, no presente, e para as futuras gerações, das quais, seremos, um dia, seus antepassados.

a Cultura como Espaço de hospitalidade Compartilhada

Entendemos que Conceição do Mato Dentro, como parte integrante da Reserva da Biosfera, vive um momento singular em sua história, ali-cerçada em um novo contexto mundial, para o qual devemos nos prepa-rar e com o qual devemos dialogar.

A inserção e o acolhimento desses novos tempos exigem de todos nós boa vontade, persistência e disciplina. A rapidez do mundo não deve nos privar da preservação e do cultivo de nossa própria identidade. Curiosa-mente, na contramão da rapidez da escala global nasce um movimento de retorno às origens. A cultura dos povos, sufocada pelo mercado finan-ceiro, adquire relevância ímpar na construção de uma cidadania e um futuro planetário. Resgatar, preservar e estimular as diferentes expres-sões culturais, são ações que estão na ordem do dia.

De mãos dadas com esse movimento mundial, propomos, através dos textos deste livro, uma nova leitura da história da nossa origem e da nos-sa cidadania como conceicionenses, mineiros e como brasileiros. Inten-

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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Castelo de Tomar, antigo convento do ramo português da Ordem dos Templários, transformada em Ordem de Cristo em 1357.

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qcionamos despertar um sentimento de alegria, de pertencimento, de pa-triotismo, que seja simultaneamente mineiro e brasileiro. Um sentimento que a mineiridade e a brasilidade traduzem num propósito existencial singular, com tudo que esta expressão possa demonstrar.

Analisar a história de Conceição sobre uma ótica mais ampla, ligada à contextos e eventos internacionais, fazendo uma ligação entre nós, nos-sos antepassados e o planeta, é a forma que temos de constatar a verdade da interconexão entre o todo e as partes, enunciado basilar da ecologia moderna. O conhecimento e a ligação com a história que formou nossa gente, nossa região e nosso país é fundamental para a construção de nos-sa cidadania e o fortalecimento de nossa identidade, mormente quando sabemos que temos de ajudar a cumprir a vocação internacional de nos-sa região. Pois, a reconexão com a natureza também se faz através da cultura.

Assentado sobre a borda oriental da Serra do Espinhaço, o município de Conceição do Mato Dentro, é guardado por montanhas com paisagens únicas e uma diversidade biológica de valor incalculável. Nossa evolução histórica, enquanto organismo urbano foi marcada pelo aprofundamen-to de nossas identidades e especialidades regionais. A pluralidade racial, a coragem, o senso de religiosidade e os desígnios ocultos dos desbrava-dores que se estabeleceram nestes vales e cumeadas do Espinhaço, con-tribuíram para a formação de uma consciência diferenciada, marcada destacadamente pela fé, perseverança e profundidade espiritual. Experi-mentamos aqui, a força e a magia da Serra do Espinhaço, em seus aspec-tos mais sutis e profundos.

Nosso patrimônio cultural, nossa arquitetura marcada pela simplici-dade e beleza do barroco registra, nas igrejas, casas e sobrados, a imagem da riqueza extraída das bateias, grupiaras e minas, abundantes nos tem-pos de outrora. As músicas, as danças, os festejos populares e religiosos, as crenças, os mitos, as lendas e os cultos da intensa religiosidade popu-lar, aliadas à rica culinária e à vida simples das centenárias fazendas e

das pequenas comunidades rurais, constituem o nosso mais valioso pa-trimônio e a herança maior que nos foi legada por nossos antepassados. E todos estes aspectos, toda esta riqueza, estão demonstrados com zelo, sabedoria e carinho, nesta obra que sonhamos juntos e que agora, apre-sentamos à comunidade.

Na certeza de que o sonho se soma ao gesto para servir ao coletivo de modo desinteressado, é com grande satisfação que idealizamos esta obra, que agora apresentamos neste livro que registra, de forma bela e singular, a história e a cultura do povo de Conceição do Mato Dentro.

Este livro é o resultado concreto da soma de esforços e diálogos de mi-neiros, brasileiros e estrangeiros unidos em prol da cultura de um povo, fazendo uma interface com a Pátria brasileira e o planeta. Ele surge como mais um prolongamento da ação organizada ainda na década de 1990, e que, certamente, prosseguirá em seu curso.

Para construirmos esta obra, perseguimos um compromisso firmado em outro tempo, em outro momento da nossa história pessoal e grupal, com aqueles que cooperam para a implantação do nosso destino enquan-to homens que habitam o Espinhaço. E também contamos com o apoio e a colaboração de muitas mentes e corações.

Dentre estes, e como justa homenagem ao querido amigo Embaixador José Aparecido de Oliveira, cujo apoio foi fundamental na conquista do título de Reserva da Biosfera para a Serra do Espinhaço, conceicionense ardoroso que desejava ver um livro escrito sobre Conceição que passeasse por nuances históricas inexploradas, convidamos o senhor Mário Soares, ex-presidente de Portugal, membro-honorário do Instituto Espinhaço, que carinhosamente atendeu ao nosso pedido, para registrar suas palavras em nosso livro.

Outro lusitano, que divide os mesmos sonhos e ideais de todos nós, o doutor Luiz Oosterbeek, arqueólogo, professor do Instituto Politécnico de Tomar, Portugal e Presidente do Instituto Terra e Memória, também se-

diado na cidade de Tomar, Portugal, também compartilha seus registros e sentimentos neste momento tão importante para nós, cidadãos concei-cionenses.

Não é demais incluir aqui um agradecimento à empresa Anglo Ame-rican, em especial a seu Gerente Geral de Meio Ambiente, Newton Viguet-ti Filho, pela sensibilidade em relação à importância da presente obra e pelo profissionalismo com que tem conduzido as ações de resgate da memória conceicionense. Foi essa sensibilidade que, acreditamos, conta-giou a direção da empresa para este apoio cultural.

Finalmente, e mais importante, nossos agradecimentos a todo o povo do Espinhaço que permanece sendo um conjunto de valores e virtudes, uma poderosa força não verbal incompreendida ou ainda pouco com-preendida, que ajuda a escrever subterraneamente a história das Gerais, servindo como referência para o mundo.

Luiz Cláudio Ferreira de OliveiraPresidente do Instituto Espinhaço

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Castelo de Tomar, antigo convento do ramo português da Ordem dos Templários, transformada em Ordem de Cristo em 1357.

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qConceição do Mato Dentro História Viva é um legado para as futu-

ras gerações enquanto registro histórico e amplitude de ideias reunidas numa obra cientifico-literária. A cada capítulo, o leitor poderá desven-dar a imensidade de significados que esta cidade construiu ao longo dos séculos de sua existência até chegar aos dias de hoje revitalizada e com novos desafios para o futuro.

A cidade fundada descoberta por Gabriel Ponce de Leon no início do século 18 já era habitada por povos antigos muito antes do que se imagi-na. As diversas inscrições rupestres desenhadas na pedra por povos que queriam perpetuar sua passagem por estas montanhas, o quase perdido laço histórico deixado por raros e esparsos esforços de oralidade da cul-tura indígena e a instigante história geológica da Serra do Espinhaço nos levam a viagens por em tempos remotos da história deste lugar.

Em seus córregos suas ruas e rios jorrava ouro abundante e o Eldora-do atraiu gente de todo o canto. Paulistas já estabelecidos e ávidos pelas riquezas, nobres portugueses que já haviam chegado nas caravelas, baia-nos que se embrenharam pelo sertão e um sem número de europeus de origem céltica, vindos principalmente do Norte de Portugal, aportaram nestas montanhas e construíram uma história de glória e ostentação, mas também de luta e sofrimento. e dor.

Muitos desbravadores foram embora e deixaram pra trás seus escra-vos. Os traços marcantes da cultura popular de Conceição do Mato Den-tro têm esta forte herança e foram cunhados pela mistura étnica e pelo sincretismo religioso. Aqui a mestiçagem deu origem a um povo gestado num verdadeiro caldeirão de raças e culturas. Gente com o verdadeiro espírito das Minas Gerais. Como diria Guimarães Rosa sobre o mineiro, que teve aqui nestas montanhas o seu nascedouro:

O mineiro é ... Acanhado, afável, amante da liberdade, idem da ordem, anti-romântico, Benevolente, bondoso, Comedido, canhestro, cumpridor, cordato, Desconfiado, disciplinado, discreto, Escrupuloso, econômico, engraçado, equilibrado, Fiel, fleumático, Grato, Hospitaleiro, harmonioso, honrado, Inteligente, irônico, Justo, Leal, lento, Morigerado, meditativo, modesto, moroso, Obstinado, oportunidade (dotado do senso de) Prudente, aciente,plástico, pachorrento, probo, precavido, pão-duro, perseverante, perspicaz, Quieto, Recatado, respeitoso, rotineiro, roceiro, Secretivo, simplório, sisudo, sensato, sem nenhuma perssa, sagaz, sonso, sóbrio, Trabalhador, tribal, taciturno, tímido, Utilitário, Vaidoso.

( Guimarães Rosa)

Conceição se fez assim e o objetivo deste trabalho é mostrar este lado multifacetado deste município desta cidade cheio de mistérios, que nas-

ceu sobre os pilares do Padroado e foi tida pelos Reis e seus súditos por visionários e viajantes como um pedaço do paraíso terrestre. Para estas paragens aportaram aventureiros atrás da riqueza e do sonho de encon-trar aqui o Jardim do Éden. Quem sabe do Santo Graal¿ A presença for-te da Igreja imponente forjou um povo católico e de uma fé ímpar, que incorporou e assimila outros saberes e místicas em sua fé, fortalecendo ainda mais sua ligação com a terra. que i e puniu os incautos ao longo da história, para que Conceição honrasse as suas origens.

A herança de toda esta história ainda está presente nas inúmeras manifestações da cultura popular, nas tradições dos negros, nos saberes indígenas, na grandiosa festa do Jubileu do Bom Jesus do Matosinhos, que atrai romeiros de todos os cantos para professar a sua fé. Na Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos carregada de simbolismo (e de sin-cretismo), de graça, de cores e de alegria. Neste caldeirão multicultural, o homem do mato dentro se formou.

A cidade O município pensante também formou grandes homens da história brasileira. Mentes brilhantes que aqui nasceram e, inspiradas na imensidão do Espinhaço e na pureza de suas águas que carregam a me-mória deste povo, de sabedoria ajudaram de alguma forma a construir o mundo como ele é. Líderes religiosos, políticos, empresários, intelectuais, médicos, figuras expoentes retratadas neste trabalho para servir de exem-ploàs gerações futuras.

Da cultura diversa nasceu também um jeito muito especial de acolher as pessoas. E uma culinária singular cozinha maravilhosa que herdou sa-bores indígenas e dos negros e legou ao Brasil quitutes iguarias sem igual, como o e o famoso e inconfundível pastel de angu. Pelas mãos das mães e cozinheiras de Conceição mulheres, surgiram pratos que hoje atraem os mais exigentes paladares para o aconchego das mesas e fogões a lenha fartas de Conceição do Mato Dentro.

Nestas paragens, por volta do ano de 1837, o viajante Johann Jakob

von Tschudi escreveu em seu relato “Viagens através da América do Sul”, que foi em Conceição do Mato Dentro onde conheceu a verdadeira face da expressão da tão propalada ‘hospitalidade mineira’.

“Nesta cidade, pela primeira vez, vali-me da hospi-talidade dos mineiros. Fui à casa do comerciante Felipe Antonio Gonçalves, entreguei-lhe minha carta de reco-mendação e fui acolhido amigavelmente. ..”

No imaginário popular, histórias fantásticas se misturam a cenários paradisíacos da natureza, fazendo a gente pensar: porque tanta riqueza neste escondido alto de montanhas que se revela ao mundo pela beleza de suas paisagens e pela peculiar cultura de seu povo?

Conceição é assim. Um lugar cheio de mistérios a serem desvendados. O leitor que se deliciar nestas páginas com certeza vai entender o signifi-cado desta terra.

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V i s t a a é r e a d e C o n c e i ç ã o d o M a t o D e n t r o

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qa MEMória gEológiCa Da SErra Do ESPiNhaÇo Como se formou este imenso patr imônio orográf ico ao longo dos tempos

Francisco Javier Rios (1)Francisco Robério de Abreu (2)

Luiz Guilherme Knauer (3)

a região já percorreu várias regiões do planeta Terra, foi fundo de mar e já abrigou uma geleira, segundo estudos de especialistas em geologia.

A região de Conceição do Mato Dentro está localiza-da ao sul da Serra do Espinhaço (Figura 1). Essa cadeia de montanhas, uma espécie de coluna ver-

tebral do Brasil Central, é mormente formada por camadas de rochas quartzíticas, com planaltos e depressões (Figura 2, foto A). Estende-se pelo menos desde o norte da Bahia até as proxi-midades de Belo Horizonte, em Minas Gerais.

A Serra do Espinhaço em Minas Gerais, notadamente em seu segmento meridional, tem sido objeto de estudos de cunho geológico pelo menos desde o início do século XIX. O acervo bi-bliográfico existente sobre a região, decorrente, em um primeiro momento, da descoberta dos depósitos diamantíferos no século XVIII, inclui mais de quatro centenas de trabalhos, especialmen-te a partir do estudo de Eschwege (1822) que definiu a Serra do Espinhaço. Sínteses parciais desses trabalhos podem ser encon-tradas, por exemplo, em Freyberg (1932), Pflug (1965), Renger (1979), Uhlein (1991), Almeida-Abreu (1989, 1993), Knauer & Grossi-Sad (1995) e Renger & Knauer (1995).

A procura e a extração do ouro e do diamante estão intima-mente ligadas ao povoamento colonizador português da Serra do Espinhaço Meridional, e à própria origem da vila que originou a cidade de Conceição. A chamada “Estrada Real”, que na verda-de se constituía de vários caminhos, foi aberta, inclusive, com

o intuito de escoar a produção mineral da região para o Rio de Janeiro e, posteriormente, para Portugal.

Como resultado dos diversos trabalhos de cunho geológico, hoje a região de Conceição do Mato Dentro se caracteriza pela presença de diferentes tipos de bens minerais, cuja extração e comercialização progressivamente vão sendo viabilizadas. Sendo assim, a indústria da mineração, especialmente a do ferro, surge como um atributo fundamental na economia dessa região do Espinhaço, e acena, em curto prazo, como um dos principais impulsores do seu crescimento.

a Terra e o tempo geológico

Antes de se detalharem os aspectos geológicos e evolutivos da Serra do Espinhaço em Minas Gerais, torna-se importante a com-preensão do significado da Terra do ponto de vista científico. Hoje, a enorme maioria dos pesquisadores define a Terra como um pla-neta rochoso, com mais de 4,5 bilhões de anos, e marcado por de-zenas de blocos de diferentes tamanhos. Esses blocos estão em cons-tante movimento relativo, e são denominados placas tectônicas. O Espinhaço está localizado na placa tectônica da América do Sul.

Estudos geológicos comprovam que esta região já abrigou um oceano no passado remoto

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qA Terra pode ser vista como um corpo em constante trans-

formação, não apenas em movimento, o que é confirmado pelas características de sua evolução. De forma muito simplificada, isso significa que terrenos, hoje em áreas continentais, podem ter-se originado em áreas marinhas ou oceânicas.

Sobre a história geológica do Espinhaço

Os terrenos que compõem a Serra do Espinhaço têm idades Pré--Cambrianas (ou seja, mais antigas que 560 milhões de anos), o que pode dificultar o relato preciso de sua história. Mas os dados geológicos existentes permitem que esta seja contada em linhas ge-rais. Tanto na região central da serra, como em sua borda leste, afloram rochas de idade Arqueana (mais antigas que os 2,5 bilhões de anos), denominadas gnaisses, granitos e migmatitos. Entre-tanto, na região entre Diamantina e Conceição do Mato Dentro predominam rochas mais “novas”, do Éon Proterozoico. Esse Éon começou há 2,5 bilhões de anos, quando na superfície do planeta apenas existiam rochas e organismos celulares primitivos do início da evolução biológica. A atmosfera da Terra possuía pouco oxigê-nio, e qualquer ser animal dos dias de hoje sobreviveria poucos segundos nesse ambiente primitivo. Quando o Proterozoico termi-nou, há 560 milhões de anos, o planeta já possuía maiores níveis de oxigênio e organismos mais evoluídos, os quais permitiram a explosão de vida que ocorreu no período seguinte, o Cambriano.

Entretanto, interessa-nos saber como, e quando, foram geradas as principais sequências rochosas que hoje formam a Serra do Espi-nhaço. Essa história iniciou-se entre 1,8 e 1,7 bilhão de anos (final do chamado Paleoproterozoico), quando a placa tectônica do futu-ro Espinhaço foi atingida por plumas de calor, que são imensas cor-rentes ascendentes de magma oriundas do interior do planeta. O aquecimento assim causado elevou uma parte dessa placa, e aca-

bou por fraturá-la (Chaves & Correia Neves, 2005), ocasionando o aparecimento de um rift. O termo rift se utiliza para denominar uma espécie de bacia (ou depressão) de formato linear, que é mais baixa que os terrenos adjacentes. Nesse rift ocorreram episódios de vulcanismo e de deposição de sedimentos. Num período inicial, os sedimentos (areias até argilas depositadas pelo vento, pelos rios e por lagos) tinham origem continental. Com a continuidade do processo, esse rift foi se alargando e tornando-se mais profundo, permitindo a entrada de águas marinhas. Em alguns setores esse mar era profundo e calmo, permitindo a deposição química de se-dimentos muito finos. Pequenas variações na química das águas, na região da futura Conceição, fizeram com que esses sedimentos se depositassem como finas camadas intercaladas, ora ricas em ferro, ora ricas em sílica.

Se esse modelo evolutivo é possível, não necessariamente é úni-co. Isso porque, regionalmente, já em tempos Neoproterozoicos (a partir de 1,0 bilhão de anos), boa parte de Minas Gerais foi atin-gida por uma nova corrente magmática ascendente, provinda das profundezas do planeta. O magma dessa pluma, ao resfriar, gerou rochas denominadas ígneas. Pouco tempo depois, foi registrado o avanço de glaciares que erodiram e recobriram, em parte, essas ro-chas. Sabemos da existência dos glaciares pelos sedimentos (areias, cascalhos, blocos) que essa massa de gelo deixa no seu caminho. Trata-se, provavelmente, das mais antigas glaciações do nosso pla-neta, que estão associadas a sucessivos eventos glaciais relaciona-dos a migrações tectônicas dos terrenos da Serra do Espinhaço por regiões circumpolares.

(Pedrosa Soares et al., 2000; Almeida Abreu & Renger, 2002; Babinski & Kaufmann, 2003; Kukrov et al., 2005)

Comprovadamente, o Craton de São Francisco, e provavel-mente operto do Círculo Polar (D’ Agrela Filho, 2004). Alguns

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qautores afirmam que poderiam ter ocupado uma posição geográ-fica que corresponde ao Hemisfério Norte do planeta, em latitude próxima ao Círculo Polar Norte (45 graus latitude norte, Almeida Abreu et al., 2005). As glaciações Proterozoicas também podem estar relacionadas ao gigantesco evento de resfriamento global conhecido com “snowball earth” (Hoffmann, 1998), quando, pro-

vavelmente, toda a superfície do planeta foi coberta por gelo. Durante essa fase glacial foram acumulados depósitos de formações ferríferas no setor norte da Serra do Espinhaço (na região de Por-teirinha, por exemplo). Dessa forma, se é mais provável que as rochas ferríferas

de Conceição do Mato Dentro tenham se originado da evolução do Espinhaço durante as épocas Paleoproterozoico à Mesoprote-rozoica, ainda não se pode descartar uma idade mais nova... e uma origem glacial para elas.

Durante todo o período de deposição nas bacias, as cama-das mais antigas de sedimentos (ex.: areias) e rochas ígneas as-sociadas foram recobertas por novas rochas e sedimentos, num processo que se estendeu repetitivamente por milhões de anos. Assim, no final do processo de deposição, as camadas mais an-tigas estavam compactadas e localizadas na base do “pacote sedimentar”, a grandes profundidades e altas temperaturas.

No final da Era Neoproterozoica, o processo de compactação dos sedimentos, somado aos esforços compressivos horizontais das forças tectônicas do planeta, ergueram uma grande cadeia de montanhas (uma proto-Serra do Espinhaço) e causaram o “metamorfismo” (deformação e neoformação) de todas as uni-dades anteriormente depositadas.

Ou seja, o calor e a pressão fizeram com que areias se tor-

nassem progressivamente arenitos, e, finalmente, quartzitos (Figura 2, Foto B). Sedimentos mais finos (ex.: argilas) foram transformados em rochas denominadas filitos e xistos. E os pa-cotes com intercalação de camadas ricas em ferro e em sílica transformaram-se nas chamadas formações ferríferas banda-das, ou itabiritos. Estas últimas hoje correspondem às serras (Ferrugem, Sapo, Serpentina) situadas logo a leste da cidade de CDMD (Figura 2, fotos B e C). As importantes jazidas de minério de ferro da região estão hospedadas nessas serras de formações ferríferas.

Finalmente, a oeste dessas cadeias de montanhas foi origi-nada uma extensa bacia marinha de águas rasas e quentes. No fundo desse mar, conhecido como Bambuí, foram depositados sedimentos calcários. Posteriormente, esses calcários viraram rochas escuras e foram elevados pelas forças tectônicas do pla-neta. Hoje constituem as serras de tonalidades escuras (ex.: Morro da Pedreira, no Cipó) localizadas a oeste e sul do muni-cípio de CDMD. Nessas montanhas se desenvolveram cavernas (ex.: Lapinha, do Mirante etc.), originadas por dissolução quí-mica dos calcários devido à circulação de águas subterrâneas.

É interessante ressaltar que, em período similar ao da aber-tura do “rift” (final do Paleoproterozoico), foram geradas a oeste da região algumas rochas magmáticas muito diferentes, denominadas kimberlitos, que trouxeram os diamantes (for-mados em grandes profundidades) para as proximidades da superfície. A erosão desses kimberlitos e sua deposição por rios daquela época em cascalhos explicam o aparecimento dessas gemas nas rochas metaconglomeráticas da região de Diaman-tina e arredores.

(Dussin e Dussin, 1995; Almeida-Abreu, 1993)

o mito da ilha Brasil, de alcance universal, teve desdobramentos importan-tes na história brasileira. aliás, esta inexistiria

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qMigração do Espinhaço ao longo do planeta e da história

A integração de boa parte das diferentes “porções” que cons-tituíram a América do Sul e, portanto, o Brasil, ocorreu há “so-mente” entre 600 e 500 milhões de anos (lembre-se de que a ida-de da Terra é de 4,6 bilhões de anos!). Antes disso, a região hoje conhecida como Espinhaço formou parte de outros continentes, migrando por diferentes latitudes do planeta.

Inicialmente, o Espinhaço estava posicionado no paleocon-tinente Columbia. Esse paleocontinente se desagregou poste-riormente e, com ele, o bloco que continha o proto-Espinhaço. Um bilhão de anos atrás, o Espinhaço já aparecia associado a outro megacontinente denominado Rodínia (D´Agrela Filho et al., 2004; Fuck et al., 2008). Posteriormente, Rodínia sofreu um processo de desagregamento, separando-se em inúmeras porções. As massas continentais agregaram-se novamente há 500 milhões de anos constituindo o megacontinente Pannotia (Hasui, 2010), do qual o Espinhaço também se tornou parte. Finalmente, pela migração das placas tectônicas do nosso planeta, originou-se o megacontinente de Pangeia. O setor sul da Pangeia denominou--se Gondwana, que inicia sua desagregação a aproximadamente uma centena de milhões de anos, originando diferentes blocos, um dos quais é a América do Sul (Figura 3).

Portanto, ao longo da história terrestre, o Espinhaço e as outras porções que hoje constituem a Plataforma Sul-America-na, migraram por diferentes setores do planeta. Dentro dessa Plataforma, a parte correspondente ao Espinhaço permaneceu como relevo positivo (sobre o nível do mar) desde a separação do Gondwana (Figura 3).

ouro, ferro, diamantes e fosfatos

O Espinhaço meridional, no setor correspondente ao muni-

cípio de CDMD, apresenta diferentes tipos de minérios de valor comercial. Ouro e diamantes vêm sendo extraídos, em forma artesanal, desde os tempos da colônia portuguesa.

oUro – A descoberta de depósitos de ouro na borda leste da Serra do Espinhaço (Figura 1), pelos bandeirantes, no final do século XVII, foi responsável pelos primeiros assenta-mentos de colonos nessa então longínqua e inóspita região. Os primeiros povoados correspondem a sítios onde se localizavam as principais jazidas auríferas então exploradas (ex.: jazida de Ivituruí, no Serro, iniciada em 1702). A extração de ouro no Ribeirão Santo Antônio, em Conceição do Mato Dentro (Figura 1), iniciou-se pouco depois. Esses depósitos de ouro estavam as-sociados a aluviões, que são sedimentos acumulados ao longo de milhares de anos, nos leitos ativos e abandonados dos prin-cipais rios e córregos que drenam a borda da Serra do Espinha-ço. Os teores auríferos desses aluviões deveriam ser muito altos para justificar os custos de lavra deles em região tão isolada.

Entretanto, de onde provinha todo esse ouro acumu-lado nos aluviões? Muito provavelmente dos filões de quartzo ricos em ouro do Espinhaço, geralmente associados aos mine-rais rutilo, hematita e caulinita. Os filões mais ricos e mais pos-santes, que afloravam na superfície do terreno, também foram lavrados para a produção de ouro.

Assim, desde o tempo das descobertas pelos Bandeiran-tes, a produção de ouro na região tem sido feita de forma ar-tesanal por garimpeiros e faiscadores moradores da região. Na estação chuvosa, de novembro a fevereiro, a atividade de lavra era suspensa e o garimpeiro normalmente passava a se dedi-car ao plantio da lavoura de subsistência. Hoje, a produção de ouro na região encontra-se praticamente extinta depois do declínio contínuo das últimas décadas. Isso foi provocado pela

Borborema

Tocantins

Serra do Espinhaço

Mantiqueira

GONDWANA ORIENTAL

GONDWANA OCIDENTAL

Sistemas orogênicos

Continentes

Áreas submersas

Limite

Direção estrutural Figura 3: Serra do Espinhaço fez parte do setor sul da Pangéia, chamado Gondwama Ocidental

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qexaustão dos depósitos facilmente lavrados que ocorriam na superfície. A borda leste da Serra do Espinhaço ainda tem potencial para a descoberta de novos depósitos de ouro, mas o aproveitamento econômico destes só

poderá ser feito mediante técnicas social e am-bientalmente sustentáveis.

DiaMaNTES – Os primeiros diamantes do Es-pinhaço foram descobertos em 1714, durante a “febre do ouro”. Essas gemas são encontradas em aluviões e córregos em regiões onde aflora o de-nominado Conglomerado Sopa (Pflug, 1965). Se-

gundo Fleischer (1995), os teoresde diamantes nos aluviões do Espinhaço são muito baixos, se comparados com os de outras regiões diamantíferas do mundo (Zaire, Namíbia, Serra Leoa etc.). No momento, a extração de diamantes em metaconglomerados e aluviões do Espinhaço está chegan-do ao final, sendo que as reservas aluviais remanescentes apresentam teores que podem inviabilizar futuras operações de dragagem.

fErro – A extração e utilização de ferro nessa parte do Brasil come-çou há 200 anos. Prova disso é a primeira fundição de ferro do Brasil a utilizar alto-forno, estabelecida em 1814, em Morro do Pilar, bem perto de Conceição. Sobre o minério de ferro, pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas mostram que as reservas desse metal no Espinhaço meridional estão concentradas na vertente leste da serra, associadas principalmente às Formações Serra do Sapo e Itapanhoacanga (Knauer, 1991; Almeida Abreu & Renger, 2002; Knauer, 2007). Tratam-se de espessas camadas de minério ferrífero (hematita) e quartzo que podem atingir até 90 metros de espessura, com teores variáveis entre 30% e 65% de ferro. As reservas de ferro da Serra do Sapo são de aproximadamente 1,5 bilhão de toneladas, com teores médios de 38% de óxido de ferro. A mineração de ferro em CDMD (que será do tipo céu aberto) deve entrar em operação em 2012, e o minério concentrado será levado através de um mineroduto até o porto de Açu, no Rio de Janeiro.

fóSforo – O elemento fósforo, utilizado na fabricação de fertilizan-tes químicos, também está presente na Serra do Espinhaço. No distrito de Conceição estão localizados alguns dos minérios fosfáticos mais antigos do Brasil e do mundo, originados na época do rift que formou a Bacia do Espinhaço. Estudos detalhados realizados nos depósitos de fosfato da re-gião de Conceição (Boujo et al, 1994; Alcantara Mourão, 1995) revelaram que estes estão associados a rochas ricas no mineral apatita, apresentan-do teores de 12% de óxido de fosfato. O pequeno volume dos depósitos de fosfato da região inviabiliza seu aproveitamento comercial.

as águas primordiais

As águas subterrâneas estão presentes em praticamente todos os tipos de terrenos do nosso planeta. O Espinhaço não é uma exceção. Há pre-sença de águas subterrâneas, em boa quantidade e qualidade, nas serras que compõem essa região. Entretanto, dentro das montanhas, podemos encontrar outros tipos de águas. São aquelas que estão aprisionadas den-tro dos minerais que compõem as rochas de quartzito, ou das formações ferríferas etc.

É interessante estabelecer uma comparação entre as águas subterrâ-neas e aquelas contidas nos minerais das rochas. As primeiras são águas “novas” – salvo exceções, não ultrapassam algumas centenas de anos de idade – e estão em constante movimento no subsolo. Costumam circular por fraturas, ou acompanhando verdadeiros lençóis subterrâneos, que afloram nas nascentes e contribuem para a formação de rios (Figura 4A).

Já as águas contidas nos minerais permanecem aprisionadas na for-ma de “bolhas” e, geralmente, são muito mais antigas. Normalmente, pos-suem milhões, até bilhões de anos. No âmbito geológico, essas “bolhas” possuem um nome: inclusões fluidas (Figura 4B). Trata-se de milhões de microporções de fluidos dentro dos minerais que, geralmente, apresen-tam tamanho microscópico.

As inclusões fluidas frequentemente contêm os fluidos primordiais,

que originaram os minerais, e que ficaram aprisionados durante o cresci-mento destes, há milhões de anos. Representam algo assim como um DNA, pois guardam informações genéticas desses fluidos.

Estudos recentes de laboratório, desenvolvidos no CDTN/CNEN, mos-tram que as montanhas de quartzito da região do Tabuleiro apresentam quantidades enormes de inclusões com fluidos em todos os cristais estu-dados. E esses fluidos são de dois tipos: aquosos (com sais dissolvidos) e carbônicos (contendo uma fase muito rica em dióxido de carbono). Entre-tanto, os aquosos são os predominantes. Estudo semelhante foi desenvol-vido em rochas de minério de ferro da Serra do Sapo (Lima et al., 2009). Nesse caso, os fluidos encontrados são aquosos (Figura 4B) com vários tipos de sais e metais dissolvidos.

Sendo assim, podemos afirmar que as montanhas do Espinhaço apresentam, dentro dos cristais e desde tempos remotos, volumes imensos de água “ancestral” que guar-dam a memória composicional dos fluidos primordiais dessas rochas.

o destino de Conceição e sua relação com a mineração Conceição e sua relação com a mineração.

Resulta inegável que as atividades de extração mineral são imprescindíveis para o funcionamento e crescimento da sociedade, dentro dos parâmetros tecnológicos predo-minantes na atualidade. Um exemplo disto é a mineração de ferro. Esse metal constitui uma das bases primárias do desenvolvimento tecnológico, sendo utilizado na construção de prédios e moradias, fabricação de aço para indústrias, automóveis, etc. No momento não existe outro metal, ou material economicamente viável, que possa substituí-lo para esses fins. Sua extração é uma necessidade para o de-senvolvimento duma sociedade. Entretanto, a implantação

de qualquer tipo de mineração gera desequilíbrios na natureza da região afetada. Sendo assim, essas atividades devem ser muito bem planejadas para modificar minimamente as condições naturais originais, devendo tomar-se medidas preventivas estritas para evitar contaminações, ou de-sequilíbrios ecológicos. E, finalmente, planificar e implementar, ao logo da vida útil da mina, a recuperação das áreas atingidas.

Existem atividades de mineração que são mais poluentes do que ou-tras. A extração de ouro e prata, para dar um exemplo, utiliza elementos químicos (ex. cianeto, mercúrio) que devem ser muito bem controlados, durante a garimpagem, mineração e metalurgia, e após o fechamento da

Figura 4B: Os fluidos encontrados são aquosos com váris tipos de sais e metais dissolvidos

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qatividade mineira, com o intuito de evitar contaminações que possam afetar os moradores, as águas, solos e o contexto ecológi-co do lugar. No outro extremo, a mineração de ferro geralmente não gera riscos de contaminação química. Porém, origina cava de grandes dimensões e lagos de decantação de rejeitos de mine-ração, que devem ser controlados e recuperados para evitar da-nos ao meio ambiente. Além disso, sua implantação e operação geram importantes níveis de material particulado (poeira fina que afeta a qualidade do ar), e demanda um importante consu-mo de água subterrânea, de córregos ou rios. Esse consumo deve ser estritamente controlado e planificado, para não produzir o rebaixamento dos lençóis freáticos de água subterrânea, ou a di-minuição da vazão dos rios da região.

Consideramos que Conceição possui importantes recursos minerais e um enorme potencial eco-turístico concentrado principalmente nas montanhas de quartzitos do Espinhaço (Fi-gura 2, foto 1), ao oeste da sede do município. As principais cachoeiras (ex. Tabuleiro), trilhas ecológicas e provisão d’água estão localizadas nesse setor. Resulta obvio que a abertura de mineradoras nessa faixa seria fortemente prejudicial ao de-senvolvimento eco-turístico do município e comprometeria o abastecimento de água. Entretanto, os depósitos de ferro estão localizados à leste, no extremo oposto. Exceto a Serra da Fer-rugem, o minério de ferro localizado á norte e sul da cidade (ex. Serra do Sapo), se extraído e beneficiado acompanhando estritos controles ambientais, provavelmente não compromete-ria esse importante aspecto eco-turístico.

A região de Conceição apresenta uma história geológica ri-quíssima. Os dados obtidos pelos pesquisadores que estudaram a região mostram que CDMD já foi fundo de mar e palco de intrusões magmáticas provenientes das capas mais profundas

do planeta. Posteriormente, a região foi palco de glaciações e submetida a forças tectônicas que a elevaram até formar uma cordilheira. Ao mesmo tempo, o Espinhaço migrou por diferen-tes latitudes do nosso planeta, até anexar-se ao resto das partes que hoje constituem o Brasil.

O desafio atual é extrair as grandes reservas de ferro do mu-nicípio, em forma sustentável e ecologicamente correta. E, ao mes-mo tempo, desenvolver eco-turisticamente o riquíssimo acervo ge-ográfico / geológico da região (serras, cachoeiras, etc.), altamente representativo da evolução do Brasil através dos tempos.

Vento, sol e chuva moldaram formas rara beleza em lugares como a Colina da Paz

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f o r m a ç õ e s r o c h o s a s e s c o n d e m u m i n e s t i m á v e l p a t r i m ô n i o a r q u e o l ó g i c o

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qmosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

SíTioS arqUEológiCoS DE CoNCEiÇÃo Do MaTo DENTroAncestra l idade e presente

Fabiano Lopes de Paula

o termo patrimônio cultural é considerado como herança cultural e tem sofrido, ao longo dos tempos, mudanças em seu sentido e, sendo um valor, o que constituía patrimônio hoje pode não ter o mesmo significado amanhã, porque o processo de patrimonialização depende de política nacio-nal, moldada em lei, da visão de pessoas, de normas e da necessidade de reconhecimento de novos valores pela co-munidade.

Aapropriação de bens culturais e naturais envolve interesses de caráter público e privado e tal atitu-de se manifesta pela necessidade de dar a devida

importância aos sítios já existentes e reconhecer os novos por representarem valores indispensáveis ao legado patrimonial: histórico, artístico ou arqueológico, etnológico de uma região, de um povo e da humanidade.

Tudo isso diz respeito a elementos da natureza e do meio ambiente; ao produto intelectual e à acumulação de conheci-mento, do saber pelo homem ao longo da história e aos bens culturais enquanto produtos criados pelo homem, decorrentes da capacidade de sobrevivência ao meio ambiente.

Artefatos, construções, obras de arte, objetos artesanais ou industriais, retratos de um época, trazem contribuições para mudanças em uma sociedade. Alguns bens culturais têm vida útil, temporária; outros, vida mais longa.

A partir de meados do Século XVIII, surgiram as primeiras

tentativas de se definir o que é bem cultural, mediante leis de iniciativa da igreja e do Estado, com o intento de proteção às coisas de interesse artístico e histórico. Na segunda metade do Século XIX, deram início à unificação das normas dos critérios de restauro, mediante bases científicas, colocando-se em relevo fatos históricos ocorridos, principalmente na Inglaterra, França e Itália. No Brasil, a política de conservação teve como marco ainda na primeira metade do Século XX, embora dispositivos régios dispondo sobre controle e uso de alguns recursos natu-rais remontem ao período colonial.

Patrimônio Cultural envolve, portanto, o feito humano pre-so a um contexto, já que o homem atua no espaço geográfico que ocupa na busca de sobrevivência e bem-estar, e o resultado dessa interferência significa cultura em nível material ou sim-bólico, pois o que confere sentido a um lugar é o conjunto de sig-nificados que a cultura local impregnou nele e que leva o outro a sentir, a enxergar valor no local, por exemplo, aonde se vai. É, portanto, uma marca daquilo que uma sociedade foi ou é.

Seu processo de constituição se dá num continuum, não tem

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qfinal, por ser o resultado de uma história, de conhecimento em várias linguagens, da relação do homem com o espaço geográfi-co que se identifica como uma continuidade de si mesmo. Essa noção hoje abrange várias perspectivas: território, ambiente, museografia, didática, área social e cultural, etc. Antes, o ter-mo apenas levava em conta o momento cultural e o contexto social ou se referia a quase que exclusivamente ao artístico, como manifestação da capacidade de criação estética de uma cultura. As obras produzidas por classes populares nem sempre se enquadravam nesse conceito.

Tem por finalidade certificar identidades e afirmar valores e, ainda, celebrar sentimentos; se necessário, precisar a verda-deira história. Por esse motivo, acervo cultural não significa o passado, mas um corpus vivo, atual e verdadeiro. Sua história é, portanto, construída por uma geração. Ele se define, neces-sariamente, pela concretude de seus objetos, pela importância estética, documental, ilustrativa e até pelo reconhecimento sen-timental que a sabedoria comum lhe atribui. Sua valorização depende de um processo complexo que passa pela vontade po-lítica e, sobretudo, de um povo. Essa dupla relação é que con-tribui para o reavivamento de identidades diversas e se estende à apropriação de valores econômicos advindos da propagação do bem cultural, o que contribui para a sua manutenção e como uma demanda de valor mercadológico, uma vez que a memória, por si só, dificilmente se manteria; alia-se, logo, a ou-tros amparos para a sua manutenção.

Essa prática, juntamente com a propagação da cultura, constitui tacitamente um recurso mensurável e de resultados otimizados pelas próprias leis de mercado. Estabelece-se, então, uma estreita relação entre investimento e usufruto, o que con-tribui para o fomento ao incentivo das visitações aos bens cultu-

rais, já que essa iniciativa envolve interesses de grupos sociais, gera um reservatório de empregos, recursos para manutenção e preservação do patrimônio, maior movimentação do comércio local, necessidade de confecção de material para divulgação, de cursos de capacitação e de várias outras iniciativas para articular o conhecimento de espaços públicos culturais que se encontravam antes no vazio.

A iniciativa da preservação da herança cultural, não valo-rizada durante muito tempo, tem ocupado hoje lugar de des-taque como legado histórico-cultural, mediante restauração e conservação de monumentos históricos, a musealização de sítios arqueológicos históricos e pré-históricos, manifestações folclóricas do século passado e do presente, tudo constituindo num desafio e respeito ao desenvolvimento cultural. É a histó-ria do presente se fazendo acompanhar com a do passado, com suas facetas de hierarquias e suas crenças.

Essa contemporaneidade tem não só um olhar no passado mais distante, mas também naquilo que cerceia o homem, se-jam manifestações artísticas como os catopês e marujadas de Conceição do Mato Dentro, também de Montes Claros; as roma-rias ao Cemitério do Peixe, o Jubileu de Matozinhos, e as grutas pelo seu valor cultural e geológico/paisagístico.

Essa preocupação em representar e manter determinada herança cultural tem sido manifestada pela sua necessidade de identidade cultural, como de conciliar a uma prática também de consumo. Tais conjunções são responsáveis não só pela par-ticipação ativa dos que empreendem o movimento, mas tam-bém por aqueles que procuram esses locais para visitação.

A memória é o cerne do patrimônio da qual ele depende e constitui a sua materialização expressa. Nele essa memória se

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qconcentra, conserva-se e, ao mesmo tempo, irradia a cultura, que exprime um momento de sua história, popular ou erudita, enfim, bases de seu contexto cultural. A transmissão desse le-gado, que contribui para a sua conservação, tem seu valor por atender aos interesses das sociedades contemporâneas , o que significa clara manifestação de valores já arraigados e discerni-mento entre a necessidade de preservar significados culturais, e de fazê-los eclodir, ou seja, de consolidarem-se no espaço públi-co, no âmago da coletividade.

Como exemplo dessa herança, pode-se citar o monumento geológico que se constitui cada vez mais num componente a ser preservado; seja como paisagem cultural percebida, seja como um georrecurso, não renovável, que, pela sua importância cul-tural, estética, econômica, funcional, científica ou educativa, deve ser preservado para as próximas gerações. Para que tal conservação aconteça, é preciso conhecer as ameaças a que se encontra sujeito; delimitar as ações que assegurem sua prote-ção e manutenção; implementar medidas de (geo)conservação para que essas sejam integradas a ações efetivas, para que o patrimônio geológico seja valorizado e sirva, de forma susten-

tável, de usufruto às populações.

Atualmente, busca-se apoio no con-ceito de Geoparque como uma das al-ternativas suplementares e viáveis para a conservação. O termo foi conceituado por fontes européias, juntamente com a UNESCO, há mais ou menos dez anos. Ge-

oparque é uma região com limites bem definidos, envolvendo um número de sítios do patrimônio geológico-paleontológico de especial importância científica, raridade ou beleza, não ape-nas por razões geológicas, mas também em virtude de seu valor

arqueológico, ecológico, histórico ou cultural; é um território (paisagem) de proporção suficiente para gerar atividade eco-nômica, principalmente através do turismo . Para que se consi-dere um Geoparque, é necessário que ele reúna condições para relacionar as pessoas com o seu ambiente geológico-paleontolo-lógico e geomorfológico.

A necessidade da geoconservação se encontra respaldada no art. 4º, inciso VII, cap. II, da Lei nº 9.985, que criou o Sis-tema Nacional de Conservação ((SNUC) e estabelece normas e critérios para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação. Esse sistema dispõe, dentre outros, sobre a impor-tância da proteção das características relevantes da natureza: geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleon-tológica e cultural de modo que possa haver participação efeti-va das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação.

A Lei do SNUC, além de tratar da questão de conservação do patrimônio, é voltada para o socioambientalismo, por envol-ver a população local na criação, na implantação e na gestão das unidades de conservação, conforme o citado nos artigos 4º. e 5º. e seus incisos. O envolvimento da população demons-tra uma nova dimensão político-social, que opta por uma de-cisão horizontal e não vertical, numa visão não autoritária e excludente, por envolver o social na responsabilidade de que a economia seja desenvolvida, preservando, ao mesmo tempo, o meio ambiente.

Os geoparques tendem a contribuir para o desenvolvimento das comunidades locais, regionais, ao possibilitarem oportu-nidades de desenvolvimento sustentável à região e de geocon-servação do patrimônio, meio ambiente e paisagem natural. Minas Gerais, em específico, durante muito tempo, foi alvo de

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o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qcobiça dos exploradores que, em busca da riqueza, deixavam para trás áreas desérticas, completamente exauridas, sem ne-nhuma capacidade de produção. Hoje, o olhar para a explo-ração dos sítios naturais é outro, existem leis que regem essa atividade. Não se pode apenas explorar e transformar as áreas de trabalho bem como as regiões em locais vazios e deixar seus moradores com apenas lembranças de um passado que foi, apa-rentemente, próspero.

O território tomado no sentido de Paisagem Cultural, como validação do passado, deve ser protegido, bem cuidado e pre-servado. Esse legado mantém relação direta com a ética das intervenções, mediante a qual adquire sentido.

A Colina da Paz, em Conceição do Mato Dentro, região de grande valor histórico e beleza, fica localizada dentro do Par-que Municipal, o Salão de Pedras, e abriga um dos sítios arque-ológicos da cidade, o Sítio da Colina, que apresenta pinturas, com figuras de animais e cenas de caça, típicas da Tradição Planalto. É um lugar muito visitado por esse motivo e, inclusive, para a apreciação do por-do-sol e prática de atividades esporti-vas e de lazer. Esse local, por sua beleza, se assemelha ao jardim fantástico, imaginado por J. P. Brés, citado por Dominique Pou-lot, em “Uma História do Patrimônio no Ocidente”, da Editora Estação da Liberdade, 2009, no qual diversos terrenos, dispostos no meio de um lago, figurariam uma exemplificação dos quatro cantos do planeta.

Essa Colina, pela sua posição geográfica, pela visão que oferece vegetação e formações rochosas, inspiraria qualquer estudioso da cultura e da história a criar ali um jardim pano-râmico, ornado de suas características próprias. Essa reserva, pela preservação ainda de sua integridade, conserva o vazio composto apenas pelo cenário natural, sujeito a leituras e lei-

turas, inspiradas apenas pelo pelo imaginário do interlocutor, perpassado por pinturas rupestres e pela imaterialidade, no sentido de constituir uma obra aberta, deixada pelos antigos moradores. O cruzamento de interpretações é celebrado pela intangibilidade e territorialidade, ou seja, pelo cenário natu-ral falto de elementos sensíveis que possam servir de pista aos interessados.

Há ali o estabelecimento de uma dialogia com o sugerido, mediante conhecimentos prévios. Essa infinitude de possibili-dades aguça a imaginação e constitui um desafio a cada vez mais buscar-se o local na tentativa de captar, no discurso ins-crito, algo cujas bases não podem precisar. É nessa ausência de mediações que se estabelece um diálogo do presente com o passado, havendo somente interferência de pressupostos lin-guísticos do discurso do leitor. O que se mantém é somente uma relação interlocutiva com uma realidade distante. Tarefa que cabe cientificamente à Arqueologia. Diante de tal cenário, é ne-cessária, cada vez mais, a consciência da preservação, não de mantê-lo intocado, mas respeitando-o sem a tentativa de mo-dernizar o passado, pois cada traço cultural tem seu valor e importância se forem mantidas suas características próprias. Sítios arqueológicos decorrem de uma herança da humanidade e constituem um legado coletivo.

No decorrer do Século XX, há a tendência de se ler esse tipo de cenário na sua invisibilidade, destacando-se, como já foi dito, a importância do espaço e dos territórios culturais viven-ciados na sua abstração, como também na sua materialidade deixada pelos artefatos arqueológico, os quais constroem um contexto. Essa situação diferencia-se de um monumento ou de um edifício particular, feitos por encomenda, já que configuram situações pré-definidas pelo idealizador, não ficando, porém,

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qinviáveis leituras de sugestões neles deixadas, de manifestação de sentimentos. Tais construções são, portanto, passíveis, por suas particularidades, a interpretações diversas por esboçarem determinado estilo, ou uma época. Nessas obras fica, sem dúvi-da, a marca de uma ancestralidade deixada para um período póstero, com seus signos e símbolos.

Em Conceição do Mato Dentro, até o momento, diversas ocorrências arqueológicas já foram encontradas, mesmo ainda não sendo objeto de uma pesquisa aprofundada, pode se afir-mar a elevada potencialidade e, como exemplo, destacaram--se três unidades de ocorrências para ilustrar o presente artigo. Não se pretende aqui apresentar um inventário de todo o acer-vo do município, nem uma pesquisa exaustiva, pois essa ainda não foi realizada nos sítios mencionados:

Sítio arqueológico abrigo do anjo

Localização: Conjunto denominado Salão de Pedras.Coordenadas Geográficas UTM: 6635889 E / 78.933212NData da visita: 30 de outubro 2002Caracterização: Painel rochoso, contendo manifestações de arte rupestre, localizado em um dos abrigos existentes na área do Parque Natural Municipal do Salão de Pedras, criado em 1999, através da lei municipal nº 1.594.

O abrigo apresenta as dimensões de 3,30 x 2,60 m sendo que a superfície decorada fica situada a aproximadamente 1,50m em relação ao piso. As representações encontram-se dispersas pelo painel sem, contudo, ser perceptível uma composição for-malizada de conjunto. As figuras mais próximas do piso situ-am-se a 0,50m, enquanto as mais distantes a 2,0m em relação ao solo.

As figuras mostram-se executadas predominantemente na tonalidade vermelha, seguida da ocre, enquadrando-se à Tra-dição Planalto, já anteriormente identificada na região.

Na temática desta Tradição, registra-se um predomínio de figuras monocrômicas e zoomórficas, destacando-se como os principais motivos, os cervídeos e os peixes. Também seguindo os padrões estilísticos definidos para a Tradição Planalto, as figuras apresentam-se monocrômicas e com o corpo estriado preenchidos por traços lineares, tanto nos cervídeos como nos peixes. Estes últimos apresentam nadadeiras como detalhe na-turalista.

Além dessas representações, foram encontradas no Abrigo do Anjo figuras de felinos e uma ave pernalta. Há superposições de figuras, de tom avermelhado abaixo do amarelo-ocre, e este superposto ao vermelho. Em relação ao estado de conservação, as figuras estão resguardadas da possibilidade de intemperi-zação decorrente da incidência da luz solar e da exposição à chuva. Não foram percebidos elementos externos ao contexto, como pichações e depredações que comprometam a integridade visual e física das figuras rupestres apostas ao paredão.

O abrigo apresenta um solo ainda intacto, apesar de sua superfície reduzida, onde poderiam ser realizadas sondagens arqueológicas.

Na vistoria feita, nenhum vestígio de cultura material foi registrado no interior da área abrigada, mas, na parte externa, foram observadas lascas e um pequeno núcleo de quartzo hiali-no que foram mantidos em seus respectivos depósitos originais.

A vegetação local caracteriza-se como sendo a de campo rupestre sendo que, na área vizinha, apresenta-se como uma reserva de mata.

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qPropõe-se, como medida preventiva de modo a resguardar

o painel de intervenções antrópicas indevidas, a sinalização através de placas educativas.

SiTio Da ColiNa

Localização : Parque Salão de Pedras / Conjunto Colina da PazCoordenadas Geográficas UTM: 663156 E / 7893124 N Data da Visita: 30/10/ 2002Caracterização: Manifestações de arte rupestre em su-perfícies localizadas nos suportes rochosos do conjunto de abrigos denominado Colina da Paz.

O abrigo conforma-se em dois níveis a partir de dois blocos areníticos superpostos, formando um salão abrigado e uma su-perfície de 4,0 x 3,0 m. O painel de figuras rupestres localiza-se no patamar superior em face voltada para Leste.

A parte mais abrigada apresenta saídas, tanto para Norte como para Sul, onde se encontram concentradas as representações, con-

sistindo, portanto, no maior painel cujas dimensões são de 4,0 x 4,3 m.

A temática tem os seus elementos cen-trados nos atributos da Tradição Planalto, representados, sobretudo, por figurações de zoomorfos executados em um só tom.

Predominam figuras de peixes e veados. Nestes últimos, no-tam-se algumas variações no tratamento do contorno e do pre-enchimento do corpo. Alguns exemplares, por vezes, apresentam o corpo recurvado, característica de uma das subunidades da referida Tradição.

O abrigo, pela sua dimensão, apresenta conformação favo-rável à ocupação humana. Mostra-se amplo, claro e resguardado do vento, além de situar-se próximo a um pequeno curso de água.

Em relação ao estado de conservação, pode-se dizer que o painel exposto para Leste, no bloco superior, encontra-se sujeito a uma constante intemperização decorrente de incidência solar e de chuvas. As figuras apresentam-se bastante esmaecidas devi-do a essa exposição direta. O painel inferior, apesar de não es-tar sujeito aos riscos constantes dos fatores acima, mantém as figuras com colorações mais nítidas. Entretanto, nesse painel, percebem-se degradações causadas por umidade, provocadas pelos escorrimentos e pela proliferação de colônias de algas e fungos. Outro fator de risco é em decorrência de fogueiras even-tuais utilizadas pelos visitantes, cuja fumaça pode contribuir ainda mais para o desaparecimento das figuras.

No solo não se perceberam vestígios de depredações antró-picas de escavações e/ou outra descaracterização do pacote sedimentar. Na face Sul, registra-se a presença de um termitei-ro que divide a entrada do abrigo e que deverá ser removido, oportunamente, quando se fizerem necessários os procedimen-tos científicos de estudo do sítio.

No local deverão ser instaladas placas educativas para infor-mação e prevenção de danos involuntários ao acervo arqueológico.

SíTio Da PEDra PoliDa

Localização: Parque Salão de PedrasCoordenadas Geográficas UTM: 663282 E / 7893229NData da visita: 30/10/2002

Caracterização: Abrigo rochoso, de pequenas dimensões, cerca de 3,00m de extensão e pouca profundidade, onde foi

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qencontrado um fragmento de rocha básica com sinais de po-limento, possivelmente parte de uma lâmina de machado. No teto do abrigo existem evidências de manchas avermelhadas que, possivelmente, podem ser vestígios de figuras rupestres. No entanto, nas paredes verticais não há indícios da existência de pinturas.

Por causa de suas características e disponibilidades de ou-tros abrigos mais favoráveis à ocupação humana, a esse pode atribuir-se um caráter de eventualidade na ocupação.

Não foram observados indícios de intervenções e/ou degra-dações no nível subsuperficial, entretanto, registram-se “picha-ções” recentes nas paredes internas.

abrigo Dourado Localiza-se na entrada de acesso a Córregos. Trata-se de um

conjunto de dois abrigos, ambos em excelente estado de conser-vação no que se refere a seu acervo de arte parietal.

No primeiro abrigo, destaca-se um painel de um cervídeo bem delineado e muito bem conservado, estando, junto dele , a figura de um pequeno antropomorfo, confeccionado na mes-ma tonalidade o que pode pressupor uma intencionalidade na representção, quando figuras antropomórficas se associam a figuras zoomórficas, o que é também recorrente na Tradição Planalto. Nesse abrigo ainda foram encontradas figuras geomé-tricas semelhantes a rastros de aves (tridátilos).

Já no abrigo vizinho, no mesmo conjunto, o número de re-presentações é bem maior, o mesmo acontecendo com a temáti-ca diversificada. Um dos painéis do teto é destaque: uma gran-de representação antropomófica, de corpo chapado, executado na cor amarelo ocre.

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Outras figuras com tratamento semelhante foram encontra-das, como exemplo, um cervídeo e mais um outro antropomor-fo. No entanto, na parte posterior do mesmo teto, são encon-tradas figuras de porte reduzido, com temática e tratamento diferenciado das figuras anteriores, já descritas. São pequenas representações de pequenos antropomorfos de corpo linear, tri-dátilos, etc. Esse local, já sinalizado como sítio arqueológico, merece um programa de conservação.

Conjunto fênix Fica na região conhecida como Tijucal, nas coordenadas

0664113 N, 7883064 e UTM. Na verdade é um conjunto de abri-gos onde se encontram figuras rupestres.

O abrigo 1 se destaca pela conservação das figuras, que se enquadram na Tradição Planalto, com representações da avi-fauna local. Há desenhos reconhecidos de veados, anta, tatu, sempre representados com o corpo chapado e também de tra-tamento linear. Nos cervídeos é notória a necessidade de repre-sentação do animal com os membros fletidos, dando idéia de movimento, fato também comum na Tradição Planalto, sendo evidente ao longo da Serra do Espinhaço. Destaca-se do conjun-to um painel de representações antropomórficas sequenciadas e executadas em ocre. Como observação de uma cronologia, pode observar-se que as figuras antropomórficas estão superpostas aos zoomorfos.

No abrigo vizinho, que dista aproximadamente 40 m do abrigo 1, há um grande painel, cuja medida se aproxima de 15m de área decorada. Apresenta painéis de arte rupestre, onde se destaca a figura de uma ave, razão de o conjunto se chamar Fênix. Ele oferece condições para um assentamento prolongado, pois está protegido por uma marquise, que faz parte do abrigo

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qe, na parte anterior, por um grande bloco, que o protege ainda mais. Há uma sorte de elementos pictóricos, mas sempre com o predomínio de re-presentações zoomórficas, algumas de antropomorfos e geométricos.

Esse complexo ainda não está protegido legalmente, mas se encontra em fase de estudos visando à conservação.

Conjunto Pictórico do quartel • Distante da sede do município, próximo aos municípios de Gouveia e

Congonhas do Norte, encontram-se três sítios de arte rupestre nos recen-tes anos, que são descritos a seguir:

Sítio pré-histórico: * abrigo do luciano • Coordenadas UTM (Fuso 23K): 621.770E / 7.935.755N

Abrigo situado acerca de 20,0m a oeste, na margem esquerda do rio Paraúna, proximamente ao leito maior do canal fluvial, onde não se no-tam na base sinais de alagamento fluvial. A parte abrigada possui cerca de 4,0m de largura e 1,50m de profundidade. O piso próximo ao abrigo é irregular e constituído por matacões e blocos.

Trata-se de um abrigo sob rocha, que fica às margens do rio Paraúna, em área de propriedade de Luciano Santos, morador na localidade do Cemitério do Peixe. Segundo o proprietário, o registro era desconhecido pelos moradores locais e sua localização se deu na fase de vistoria. Situa--se na margem direita, distando poucos metros do rio Paraúna, tendo sido formado a partir do desprendimento de blocos quartzíticos.

Na parte mais abrigada, existem pinturas rupestres sendo que a maio-ria delas se encontra esmaecida pela incidência direta do sol. O painel é composto por figuras de zoomorfos monocrômicos, bem típicos da Tra-dição Planalto. O corpo possui preenchimento linear sendo que a maior figura tem cerca de 1,0 m de dimensão. Nota-se também outra figura geo-métrica linear, indicadora da mesma tradição.

Em relação ao aspecto conservação, pode-se falar que o abrigo está isen-to de interferências antrópicas degradantes. O aspecto das figuras, embora descolorido pelo tempo, mostra-se razoável, podendo ser percebidos seus contornos. O solo é rochoso, não apresentando característica arqueológica composta de sedimentos. A ocupação nesse local tinha o seu caráter sazo-nal.

Sítio Emboscada 1: 23k 621760 7935117 Sítio Rupestre, caracterizado por um painel, medindo cerca de 4 me-

tros de comprimento, localizado em um dos abrigos próximo ao sítio his-tórico do Quartel. É composto por elementos pictográficos executados em cor vermelha e ocre. A temática é diversificada, porém enquadra-se na Tradição Planalto, onde há um predomínio de figuras naturalísticas, de uma única cor, sendo raros os elementos policrômicos.

Dentro dessa temática, há um domínio visual e, muita das vezes, um quantitativo de figuras de cervídeos. Nessa região, esses animais se asso-ciam a aves, tatus, bastonetes, dentre outros. São representados com cor-po, com preenchimento linear, e, geralmente, com a cabeça e as patas cha-padas. Apresentam, como característica, a representação dos animais em movimento e com detalhes anatômicos bem distintos. Fica localizado na Face NE, com cerca de 270m do sítio histórico Quartel. Sítio situado na face extrema de uma pequena serra (Oeste da mesma).

Sítio Emboscada 2: 23k 621734 7935509 Sítio rupestre, Face NE, caracterizado por um abrigo sob rocha, me-

dindo cerca de 9m de extensão por 3 de largura. Distingue-se por vários conjuntos representativos de motivos diversos. Apresenta elementos pictó-ricos da chamada Tradição Planalto, com predomínio visual de figuras naturalistas, sendo os cervídeos o maior destaque. Essa Tradição cobre o planalto mineiro sendo detectada no sul de Minas, no alto São Francisco e nas áreas da Serra do Espinhaço, incluindo a Serra do Cipó e Cabral. Os painéis encontram-se em bom estado de conservação. Localiza-se cerca de

100 metros do sítio Emboscada 1 e 170 metros do sítio histórico Quartel.

Sitio arqueológico Painel rascunho: 23k 622718 7935195 Destaca-se por Planicie aluvionar, com vegetação de campos sujos

e de pastagem. Trata-se de Pequeno Painel de 2m² no vale de acesso aos sítios Emboscada1 e Emboscada 2. Nesse painel é possível inferir sobre as matrizes de coloração utilizadas nos desenhos rupestres, já que todas as cores presentes se encontram nos painéis rupestres próximos. Ressalta-se, como elemento diferenciador, a falta de motivos realistas explicitados nos painéis, como os painéis vizinhos onde há um predomínio de formas naturalistas. No caso do Painel Rascunho, as figuras predominantes são as lineares executadas em diferentes tons de vermelho, ocre e alaranjado. Encontra-se em bom estado de conservação.

Agradecimentos a Luiz Cláudio de Oliveira, Jorge dos Santos, Frede-ric Pouget, Paulo Lima e Hidrotermica Sistemas ambientais.

Bibliografia: Poulot, Dominique. História do Patrimonio no Ocidente

Vou completar e envio

Sérgio

Para identificação dos autores no texto sobre o Cemitério

Fabiano Lopes de Paula Historiador/arqueólogo e bacharel em Direi-to.

Pesquisador do IEPHA e ex Superintendente do IPHAN em Minas Ge-rais

Eliane de Magalhães Mattos.

Historiadora

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Castelo de Tomar, antigo convento do ramo português da Ordem dos Templários, transformada em Ordem de Cristo em 1357.

FOTO ABRIGO

LUCIANO

PRODUZIRFOTO EMBOSCADA PRODUZIR

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D e t a l h e d e e s c u l t u r a e m p e d r a d o c h a f a r i z e s c u l p i d o p e l o m e s t r e J o s é C a e t a n o e m 1 8 2 5 , q u e s u b s t i t u i u o p e l o u r i n h o d a c i d a d e

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qBotocudos em foto do início do século XX pertencente ao Acervo do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo

oS íNDioS BoToCUDoS E SUaS “flEChaS ErVaDaS”A presença humana muito antes da chegada dos bandeirantes

O Caboclo: índio selvagem retrado na obra de Jean-Baptiste Debret

Sérgio Lacerda

há pelos menos cinco mil anos povos viveram nestas ser-ras e deixaram uma herança ancestral

Os vestígios da presença humana em Conceição do Mato Dentro datam de milhares de anos (pelo menos 5 mil anos) e podem ser confirmados pelos inúmeros

sítios arqueológicos ainda bem conservados existentes na região.

No passado, historiadores como Geraldo Dutra de Morais chegaram a aventar a possibilidade de que estas inscrições ru-pestres pudessem ter alguma relação com povos que estiveram no continente sul-americano muito antes dos portugueses, em épocas passadas. Dutra chega a especular até mesmo sobre a presença de fenícios na região onde está Conceição, mas nada disto pode ser confirmado pela história. Até mesmo porque os es-tudos arqueológicos na região são esparsos e pouco conclusivos.

Dutra assinalou em sua obra a tese algumas de correntes de que civilizações muito antigas haviam visitado a região de Conceição em outras eras. E cita os estudos do padre Simão de Vasconcelos, que dizia que os primeiros habitantes do Brasil te-riam sido os fenícios-africanos:

“...outros disseram que estes povadores foram daquelas gentes dos hebreus as quais o sábio Salomão costumava enviar em suas naus do mar Vermelho à região chamada de Ofir, em busca de ouro, paus preciosos, símios e cousas semelhantes e têm para si que essa região de

Ofir é a da América”.

Ainda segundo Dutra, o arqueólogo Alfredo Brandão teria concluído em seus estudos que na verdade esta “escrita pré-his-tórica na verdade pertenceu a uma civilização muito antiga:

“a escrita não era nem fenícia, nem hebra-ica, nem orgâmica, mas continha em germem, em origem, todos os sistemas – era a antepassa-da, a geradora de todas as outras escritas e ain-da hoje todos os alfabetos conservam alguma cousa em comum”. Algumas dessas pinturas já eram de conhecimento dos colonos mineiros, que procuravam interpretar estas inscrições rupestres associando-as ao mito de São Tomé no povoamento original da América Portu-guesa. Neste sentido, os historiadores daquela época consideravam estes desenhos como sím-bolos cristãos interpretados a partir da mitolo-

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qgia bíblica.

Indícios de uma primeira evangelização promovida pelo apóstolo São Tomé eram de-bates correntes entre os letrados moradores do Brasil na primeira metade do século XVIII; tra-duzem também o envolvimento com exercícios de decifração de enigmas praticados entre cír-culos de eruditos, bem ao gosto da literatura e da arte barrocas”.

Nada disso jamais foi confirmado e a ciência parece ter to-mado outros rumos. O que se sabe em termos científicos é que duas correntes migratórias que vieram para a América do Sul podem ter visitado a região há mais de cinco Santa”, que teria povoado a região muito antes dos índios encontrados aqui pe-los portugueses.

A equipe da qual Proust fazia parte, dirigida por A. Laming--Emperaire, chegou a encontrar esqueletos de mais de 11 mil anos na região de Lagoa Santa. Segundo esta teoria, estes povos seriam parentes dos povos australianos, os aborígenes.

O mais interessante é que estas pesquisas dão conta de que estes homens tinham características mais próximas dos negros do que dos mongóis, que provavelmente originaram as princi-pais tribos indígenas encontradas pelos colonizadores. Seriam remanescentes de uma corrente migratória que como os índios também teria chegado à América pelo Estreito de Bhering, mas numa época ainda mais remota.

Mas na verdade, as inscrições de Conceição e outras encon-tradas em sítios de toda a região que vai até o vale do Sumi-douro e mesmo à região de Santana do Riacho (que nos tempos da colonização pertencia a Conceição), formam um intrincado

quebra-cabeças que ainda está por ser desvendado.

Santana do Riacho, por exemplo - chamada de Riacho Fun-do quando pertencia ao arraial de Nossa Senhora da Conceição da Vila do Príncipe -, teria abrigado, segundo estes estudos, o ritual de sepultamento mais antigo de que se tem notícia nas Américas, o cemitério mais antigo do continente, com idade en-tre 8.200 e mais de 10 mil anos.

Há muitos registros pré-históricos presentes em rochas da região de Conceição do Mato Dentro que são atribuídos aos povos que viveram na região e que formaram uma verdadeira nação antes da chegada dos bandeirantes. Povos que teriam chegado à esta região vindos do Rio Doce, provavelmente atra-vés do rio Santo Antonio.

Sobre estes índios também há pou-cos estudos mais assertivos e aprofun-dados. Apenas relatos baseados na história oral de antigos descendentes que dão conta da existência de uma grande nação indígena na região de Conceição. Estes índios foram apeli-dados de forma depreciativa pelos portugueses de ‘botocudos’. Isto, segundo o indigenista Guido Thomas Marliére, “porque or-navam os lábios e as orelhas com globos ou rodelas chamadas batoque (imató), enfeites esses feitos com madeira, pedra de cores, ossos ou seixos” .

Há alguns relatos de que quando os bandeirantes chegaram às terras onde se situa Conceição do Mato Dentro tiveram que enfrentar uma verdadeira batalha contra os índios na região próxima ao Campo Grande, hoje chamado de Salão de Pedras. Este combate histórico resultou na morte de vários explorado-

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Monumento dedicado aos índios na Praça São Joaquim

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qres e centenas de índios, foi determinante para a formação da cidade de Conceição. Os bandeirantes desceram o morro para se proteger e acharam as riquezas do córrego Cuiabá.

Geraldo Dutra de Morais, no livro História de Conceição do Mato Dentro, registra uma passagem de conflito entre os primei-ros bandeirantes paulistas que ocuparam a região e os índios:

“Num dia fúlgido tropical, quando no céu azul muito alto, um grande sol de ouro tostava a epiderme suarenta dos aventureiros, cansa-dos da longa caminhada, ouviu-se, de repente, o som bárbaro da tuba indígena, acompan-hado do tan-tan guerreiro. Eram os botocudos. Entrincheiraram-se os bandeirantes e inicia-se o combate com os bugres. Entram em ação as escopetas, pederneiras e bacamartes. Os índios atiram centenas de flechas hervadas e tentam incendiar o acampamento. A noite alongou-se, fria, hostil, com um vento sudoeste que zunia e então cessaram os gritos e o tropel dos invas-ores. Aproveitando a trégua oferecida pelos en-furecidos botocudos, o capitão Manuel Corrêa de Paiva dirige prudentemente a retirada do acampamento assediado, para um ponto mais estratégico onde fosse possível oferecer maior resistência aos índios. Protegidos pela escu-ridão da noite, afastam-se cautelosamente das margens do Santo Antonio, até que a manhã foi nascendo cinzenta, esbranquiçada, lívida no mato deserto. Na expectativa de nova investida indígena aguardam os aventureiros por horas

intermináveis a aproximação dos bugres. Ex-pedem-se patrulheiros e com grande júbilo dos componentes da caravana, chega a auspiciosa notícia de que os botocudos haviam-se deban-dado para outras plagas”

Fala-se também de um grande massacre de índios que teria ocorrido na região de Conceição do Mato Dentro, provavelmen-te patrocinado pelos ferozes conquistadores que vieram atrás do ouro e das pedras preciosas. Várias publicações indigenis-tas, citam este ‘massacre’, mas sem maiores detalhes. Não há registros históricos sobre esta batalha, mas contam os antigos que mercenários portugueses e espanhóis aportaram aqui e em toda a região recebendo quantias elevadas para exterminar e prender indíos das tribos que encontrassem pelo caminho.

Isto, fruto de uma Carta Régia datada de 13 de maio de 1808, que deu aos conquistadores o direito legítimo de extermi-nar índios em nome da expansão dos domínios da colônia por-tuguesa, a chamada de “guerra justa”. O decreto foi assinado pelo rei Dom João VI e teria como objetivo exterminar os índios Aimorés, considerados “nocivos à raça humana” , a exemplo do que já ocorrera em outras possessões portuguesas no nordeste.

O documento endereçado ao governador da Capitania das Minas Gerais em 1808 ordenava aos súditos que desde o mo-mento em que recebessem a Carta Régia:

“(...) deveis considerar como principiada contra estes índios antropófagos uma guerra ofensiva que continuareis sempre em todos os anos nas estações secas e que não terá fim

SUBSTITUIR IMAGEM DE INDIO LUIS CLAUDIO (ESCANNER)+ imagem dom joão sexto da internet (Sérgio)

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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Dom joão Sexto

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qsenão quando tiverdes a felicidade de nos sen-horear de suas habitações e de os capacitar e da superioridade das minhas armas de manei-ra tal que movidos do justo terros das mesmas, peçam a paz e sujeitando-se ao doce jugo das leis e prometendo viver em sociedade possam vir a ser vassalos úteis, como já o são as imen-sas variedades de índios que nestes meus vastos Estados do Brazil se acham aldeados (...)

(...) em terceiro logar, ordeno-vos que fa-çais distribuir em seis distritos, ou partes, todo o terreno infestado pelos índios Aimorés, nome-ando seis Comandantes destes terrenos a quem ficará encarregada pela maneira que lhes parecer mais profícua a guerra ofensiva que convém fazer aos índios Aimorés (...)

(...) em quarto lugar, ordeno-vos que a estes Comandantes se lhes confira anualmente um aumento de soldo proporcional ao bom serviço que fizeram, regulado este pelo princípio que terá mais meio soldo aquele Comandante que no decurso de um anno mostrar, não somente que no seu districto não houve invasão alguma dos índios Aimorés, nem de outros quaisquer índios bravos, de que resultasse morte de portu-gueses, ou destruição de suas plantações, mas que aprisionou e destruiu no mesmo número, do que qualquer outro Comandante (...)

Palácio do rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, Príncipe Dom João Vi

Certo é que, pelo visto, faiscadores, donos de minas e fa-zendeiros conviveram com os índios na região de Conceição do Mato Dentro durante várias décadas. Oty Garcia afirma que na tradição destes índios que viviam nas montanhas do Espinha-ço, era comum a antropofagia. “Sempre que os portugueses, por descuido ou imprudência, invadiam os seus domínios, inape-lavelmente eram abatidos e devorados, para que seus espíritos, sem os corpos, se incorporassem ao espírito do guerreiro vence-dor, que, acreditavam, duplicava suas forças.

A matança de índios, entretanto, era prática comum no Brasil colônia e havia até mesmo uma rotina de carnificina em várias regiões das Minas, inclusive na Vila do Príncipe e no arraial de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro, como escreveu Teófilo Otoni, em texto de 1858 que relata cenas da guerra contra os índios botocudos.

“Cães especialmente treinados na caça aos Bot-ocudos alimentados inclusive com carne de indíge-nas assassinados...

Bandeiras especialmente preparadas para “matar uma aldeia, assassinando-se indiscriminad-amente homens, mulheres, velhos, moços, reservan-do-se apenas as crianças para o tráfico e alguns homens para carregadores...

Índios recrutados como soldados estimulados a cometerem violência contra botocudos, dando pro-vas de renegar as suas origens...

Comércio de crianças, valendo uma espingar-da por cabeça...

O Rio Santo Antônio norteou a ocupação da região(foto capturada na estrada para Córregos)

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qCabeças de botocudos mortos em combate (dezesseis delas

foram vendidas a um francês que disse tê-las comprado para o museu de Paris...

Índios sob o regime de trabalho escravo, espoliados de suas terras, doentes e mal alimentados...

Contaminação proposital de comunidades inteiras através de agentes patogênicos letais para o indígena – sarampo, por exemplo”

O fato de os índios serem tratados desta forma pode estar relaciona-do ao modus vivendi deste povo indígena, principalmente porque muitos deles aceitavam ser escravizados pelos colonizadores. Viviam da caça, eram nômades e não tinham o hábito da agricultura. Andavam em pe-quenos grupos para sobreviver e atacavam reses em fazendas da região, o que teria causado a fúria dos portugueses e paulistas que por aqui aportaram. O fato de serem antropófagos e ferozes foi com certeza o mo-tivo principal para que a Coroa os considerasse nocivos aos interesses da colonização.

Mas alguns relatos interessantes mostra que muitos índios eram es-cravizados ou trabalhavam em fazendas em troca de alimento, como o de Teófilo Otoni, que em 1858 escreveu sobre como os índios eram ades-trados:

“não é raro ver-se uma fazenda contígua à mata ocupada pelos selvagens, grande porção de ferramentas que poderá crer ao viajante que aquela casa pertence a um proprietário de 20 ou 30 escravos. Entretanto, o fa-zendeiro não tem um só escravo e nem ele nem as pessoas de sua família trabalham, de foice ou machado. A ferra-menta destinada para os selvagens que na estação pró-pria voluntariamente vêm se entregar ao trabalho das

roças para assim matarem a fome.; Senhores de engenho e de canaviais nem bois têm para essa lavoura e no tem-po da cana cortada que seus maridos vêm moer no enge-nho. E tal é o poder da fome e o terror com que subjuga os selvagens a lembrança dasa passadas carnificinas, que os míseros se sujeitam ao chicote, à palmatória e até ao tronco, que são ainda hoje os instrumentos civilizadores que servem os moradores cristãos. E não só se sujeitam a esses castigos sem resistência, como não fogem senão das casas onde não lhes dão abundância de comida”.

Estes aimorés pertenciam ao tronco linguístico Macro-Jê e tinham como características físicas serem extremamente fortes e de corpo avan-tajado, altos, de cabelos pretos e lisos, olhos escuros e lábio inferior per-furado. Oty Garcia afirma que

“A língua dos Aimorés não parecia ter ligação com o tupi-guarani. Era sensivelmente aspirada e nem à dis-tância podia ser comparada em musicalidade com a lín-gua Tupi”. (...) Viviam pouco tempo no mesmo lugar e em ocas de construção primitiva. A dança (Tarungri) se fazia em círculo e o estribilho usado era: ere, hé (muito bom e bonito). Continua dizendo que “acreditando que perderia a pontaria se comesse da caça que matava, o Aimoré dava a outrem os animais por ele abatidos. Até hoje, não se sabe a origem desta superstição”. Alimenta-vam-se geralmente de caça, pesca, milho cozido e con-sumiam emgrande quantidade o mel silvestre, chamado por eles de Pangue. Davam grande importância ao fogo, na língua aimoré Tchomepek. Quando queriam exter-

Embrenhados nas matas, índios foram perseguidos e exterminados a mando do rei de Portugal Dom João VI

nar agradecimentos dançavam diante da pessoa. Na

guerra, procuravam atacar de emboscada e de preferên-

cia nas trevas da noite ou pela retaguarda. Suas flechas

farpadas, para agravar as feridas resultantes das mes-

mas. Razões de sobra tinham os brancos para temerem

as arremetidas dos guerreiros aimorés”.

No aspecto da religiosidade, eram extremamente supersticiosos:

“O morto (Keme) era envolto em embiras e enterrado

com suas armas e ferramentas, em covas cobertas de cinzas.

Também colocavam para seus mortos, na sepultura ou nos

ranchos, que sobre ela construíam, mantimentos, mel, frutas e

água. De tempos em tempos iam renovar essas provisões. O en-

terro era realizado com a maior rapide, logo depois da morte,

pois temiam que o demônio (Nantchone) dominasse o morto.

Junto da sepultura plantavam abóbora, mandioca e milho”.

Possuíam danças religiosas dedicadas ao sol (Tarú-Tepó), à

lua (Nuntnhiak) e às estrelas (Jet-Krete), que funcionavam

como entidades semidivinas e dotadas de grande influência

sobre os homens e animais. Nesse ponto os aimorés se assemel-

havam aos demais indígenas brasileiros”.

A presença, a cultura e o traço indígenas estão incorporados no modo de vida do povo desta região, apesar do extermínio maciço destes povos. A cultura da região absorveu muitos ensinamentos e costumes indígenas, especialmente os hábitos alimentares, como o consumo de várias ervas, do milho verde e do urucum.

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o s e r t ã o s e t o r n o u d e s t i n o p a r a m u l t i d õ e s d e a v e n t u r e i r o s e m b u s c a d o o u r o e d o s d i a m a n t e s

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qmosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

CaMiNhoS E DESCaMiNhoSExpedições sertanistas, caminhos e pequenas povoações

Márcio Santos

Nos primeiros anos do século XViii uma nova região colo-nial despontava no interior do vasto espaço conhecido como américa portuguesa.

P artindo das vilas paulistas nas décadas passadas, exploradores haviam percorrido o sertão ao norte de Taubaté e descoberto ouro no amplo espaço deli-

neado pelos vales dos Rios Doce, das Velhas e das Mortes, na área central do que hoje é o estado de Minas Gerais. Aqui e ali reme-xiam-se os ribeiros e lavavam-se as areias em bateias, em busca do chamado ouro de aluvião, que se apresentava generosamente em pequenas partículas nos cursos de água. Ou, na época das enchentes, quando se tornava impraticável alcançar o fundo dos rios, que podiam ser encontrados nas suas margens e nas imedia-ções – os tabuleiros. Essas partículas passaram a ser conhecidas como faíscas, porque brilhavam ao sol e, daí, por extensão, fais-queira o depósito de ouro e faisqueiro o minerador.

Ouro já era retirado em outras regiões da colônia, como em São Paulo, Curitiba e Parnaguá (no atual Paraná), segun-do informa o cronista João Antonio Andreoni, conhecido como Antonil (2007). Os novos depósitos encontrados, no entanto, apresentavam um rendimento tão alto que essas primeiras mi-nas foram abandonadas assim que se divulgou a riqueza das Minas Gerais dos Cataguás e do Rio das Velhas.

Subitamente, o sertão se tornou o destino de multidões de aventureiros, que para lá acorriam, a maioria sem preparo téc-

nico para a mineração, na expectativa do enriquecimento rá-pido. Era uma típica corrida do ouro, tal como ocorreria, pos-teriormente, em outras regiões do mundo. Em contínuas levas chegava gente, primeiramente pelo antigo Caminho Geral do Sertão, e esses eram, na sua grande maioria, paulistas vindos pelo sul; depois, pelo Caminho da Bahia, pelo qual passaram a chegar os forasteiros do norte e de além-mar; e, quando se con-solidou a terceira via de acesso às minas, pelo Caminho Novo, a partir do Rio de Janeiro. Assim descreveu Antonil (2007, p. 226-227) esse movimento migratório:

A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as cor-reram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister

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Planta geográfica do continente que corre da Bahia de Todos os Santos até a Capitania do Espírito Santo e da costa do mar até o Rio São Francisco. Sem autor, sem data.

Fonte: Arquivo Público Mineiro

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q2

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SabaráCaeté

Morro deGasparSoares

Conceição doMato Dentro

Córregos

Itapanhoacanga

Serro do Frio

não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar.

Essa pressão populacional logo levou às inevitáveis conse-quências do ajuntamento desordenado de pessoas no território que se abria: crises de abastecimento e de fome, epidemias e drástica alta dos preços. Todas as mercadorias se cotavam, li-teralmente, a peso de ouro, que era a única moeda existente na região das minas. Em 1703, registra Antonil (2007, p. 236-237), uma galinha podia custar três ou quatro oitavas de ouro em pó; um pastel pequeno, uma oitava; e um boi, cem oitavas, ou quase 360 gramas de ouro em pó! Como escreveu Darcy Ribei-ro (1995, p. 374), “toda uma copiosa documentação histórica mostra como se podia morrer de fome ou apenas sobreviver co-mendo raízes silvestres e os bichos mais imundos, com as mãos cheias de ouro”.

Os efeitos danosos do ajuntamento desordenado e as ex-pectativas de que espaços desconhecidos dos exploradores abrigassem novas riquezas eram razões fortes o suficiente para estimular novas entradas de prospecção mineral. Gente como o paulista Antonio Soares Ferreira, que em 1700 chefiou uma entrada que deixou Caeté e rumou para o norte, chegando à região de reservas auríferas a que se deu o nome de Serro do Frio (Carvalho Franco, 1953). Segundo os termos de um relato setecentista, Antonio Soares deu maior salto, mais comprida e laboriosa diligência à parte do Norte, que chegou ao Serro do Frio, nome que os portugueses traduziram em língua própria: sendo que na gentílica é Hyvituruhy, que quer dizer Serro do Frio, aludindo ao muito enregelado frio, que faz pelo cume da-quela Serra, com frigidíssimos ventos, pelo seu dilatado cume, por onde passa o caminho que hoje serve, e então servia aos gentios, e sertanistas que para se passar, não sendo ao meio-

-dia, morriam entanguidos, e quase um mês de viagem naquele tempo e descobriu o ouro com grande conta, para onde con-correu parte do povo desacomodado, provocando-o, e pondo-o cultivado, como está.

(Taunay, 1981, p. 47)

Na sequência dos descobertos, do Serro do Frio partiram, em 1702, duas outras entradas. Uma delas seguiu para nordes-te e encontrou as minas do Fanado, que se tornariam as Minas Novas. A segunda, chefiada pelos sertanistas paulistas Gaspar Soares, Manuel Correa de Paiva e Gabriel Ponce de Leon, rumou para o sul, fundando um primeiro pouso em Itapanhoacanga (pertencente a *Alvorada de Minas). A descoberta de ouro nesse último lugar levaria a nova leva de deslocamento de aventurei-ros, que deixaram o Serro do Frio em busca do arraial.

Continuando rumo ao sul, os exploradores chegaram a um córrego onde encontraram novos depósitos de ouro. Ali ergue-ram uma ermida sob o orago de Nossa Senhora da Aparecida dos Córregos (pertencente a *Conceição do Mato Dentro). Um segundo ribeirão, mais ao sul, também apresentou reservas valiosas, tendo sido denominado, por Gaspar Soares, Santo Antonio. Nas areias do Riacho Cuiabá, Gabriel Ponce de Leon extraiu, de uma só bateada, cerca de 20 oitavas de ouro. Nes-sa zona se formaria um novo arraial. Em dezembro de 1702, por iniciativa de Ponce de Leon, inicia-se a construção da sua capela primitiva, sob o orago de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro. No ano seguinte o paulista manda buscar em Itu a imagem da padroeira do templo. Gaspar Soares, por seu turno, forma outra bandeira e, seguindo o curso do Rio Santo Antonio, chega ao morro que passaria a se denominar Morro de Gaspar Soares (*Morro do Pilar), onde se estabelece. Segundo

Expansão da fronteira colonizadora entre Caeté e o Serro Frio. Os números indicam a sequência cronológica de criação das povoações pelas entradas de 1700 a 1702.

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FAMILIA FOTO AMARELA

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qMorais (1942, p. 17), Gaspar Soares “tornou-se o proprietário das mais ricas lavras do Morro e a sua fazenda de criação era a mais próspera de toda a redondeza. Graças ao seu esforço e capacidade de trabalho, o arraial do Morro do Pilar foi um dos mais afortunados da Comarca do Serro Frio”.

Expansão linear

O processo formador dessas povoações é um caso típico da forma de expansão da fronteira colonizadora que, em outra oportunidade, denominei expansão linear irregular (Santos, 2010). Diferentemente da expansão regular, em que a frente de povoamento parte do ponto inicial e vai instalando povoações que dele se afastam progressivamente, o que ocorre nesses casos é que ao ponto inicial (Caeté) se segue um segundo ponto, distante e não contíguo a esse primeiro (Serro do Frio), que passa a definir uma espécie de fronteira virtual do futuro território. À medida que o processo ocupador ocorre, as povoações vão sendo instala-das no sentido oposto ao da fronteira, em direção ao ponto ini-cial de onde partiu a frente de povoamento. Os espaços “vazios” entre o ponto inicial e o segundo ponto são assim preenchidos, conferindo conteúdo real à fronteira e garantindo a contiguida-de das unidades de ocupação.

A recuperação historiográfica desse processo ocupador nos permite também datar a abertura do caminho entre a região nucleada em Sabará e o Serro do Frio. Essa via foi aberta, certa-mente a partir de trilhas indígenas preexistentes, pelas entradas empreendidas pelos paulistas entre 1700 e 1702. Muito antes, portanto, de estabelecido o Distrito Diamantino, estava aberta uma rota de circulação entre os arraiais da região, sendo essa a primeira forma da estrada que, nas décadas seguintes, ligaria a zona central da capitania ao Tejuco. Ademais, pode-se deduzir

que a via foi aberta, ao contrário do que esperaríamos, do pon-to mais distante para o ponto inicial, no sentido da instalação das povoações, isto é, da Vila do Príncipe para Caeté e Sabará.

Exatamente um século mais tarde, um mineralogista viaja-ria por essa rota no mesmo sentido da sua abertura, partindo da Vila do Príncipe e chegando à zona sediada em Vila Rica. Os arraiais encontrados por José Vieira Couto (1905) em 1800 foram rigorosamente os mesmos dos primórdios da ocupação luso-brasileira desse espaço, mostrando que muito pouco havia mudado na sua paisagem humana. Deixando a Vila do Prínci-pe, o pesquisador passou por Tapanhoacanga, Córregos, Con-ceição e Morro, de onde seguiu para Itambé, já na Comarca do Sabará, continuando até atingir Vila Rica.

O sertanista paulista fundador de Conceição descendia de uma linhagem de hispano-americanos inicialmente radicados na Cidade Real de Guairá, na província do Paraguai (Leme, 1905, p. 227-229). O seu avô, também Gabriel Ponce de Leon, que Silva Leme descreve como um “ilustre cavalheiro”, isto é, um fidalgo, emigrou do Paraguai para São Paulo, juntamente com seus parentes, na década de 30 do século XVII. O genealo-gista supõe que, tendo os migrantes passado algum tempo na campanha da Vacaria (atual Rio Grande do Sul), possa ter sido essa transmigração motivada por algum crime de lesa-majesta-de. Em São Paulo, Ponce de Leon teve sete filhos, entre os quais o pai do sertanista que nos interessa. As referências de Silva Leme a Gabriel Ponce de Leon (neto) são sumárias. Casou-se em 1685 em Itu, o que se coaduna com o lugar paulista, citado em outras fontes, de onde mandou trazer a imagem da padroeira de Conceição. Teve oito filhos. As evidências documentais ates-tam que se fixou definitivamente em Conceição, onde faleceu no ano de 1736.

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Parte de Mapa da Capitania de Minas Geraes. M. R., [1772-1790]

Fonte: Biblioteca Mário de Andrade

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qCaminhos da exploração

A fixação de sertanistas na porção central do território que se tor-naria, a partir de 1720, a Capitania das Minas Gerais era parte de uma tendência histórica geral na interiorização da colonização lusitana da América. A partir de meados do século XVII os espaços centrais e setentrio-nais da América portuguesa passam a ser territorialmente ocupados por sertanistas paulistas, baianos e reinóis, que estabelecem núcleos avan-çados de povoamento luso-brasileiro nos sertões de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará, Piauí e Maranhão. A movimen-tação dos sertanistas por esses espaços interiores, que é muito mais antiga do que a segunda metade do Seiscentos, parece ter se voltado, a partir de então, também para a ocupação, fixação e valorização econômica desses sertões. Por razões distintas, antigos caçadores de índios, combatentes mercenários de tribos tapuias e aventureiros exploradores de riquezas minerais deixam, em alguns casos, o ritmo itinerante dessas atividades e assentam núcleos pioneiros de ocupação do interior, dando início à territorialização dos sertões. A partir de então, a mineração de ouro e dia-

mante e a pecuária bovina se colocarão como ativi-dades econômicas centrais no interior da América portuguesa e serão responsáveis pela formação de novas regiões coloniais de assentamento luso-brasi-leiro. Algumas das razões para essa nova tendência são óbvias: a descoberta das reservas minerais do que mais tarde seria a Capitania das Minas Gerais

provoca a súbita fixação de sertanistas e aventureiros no “sertão dos ca-taguás”. Outras razões são menos evidentes. É possível que o malogro na participação na guerra contra índios hostis no nordeste da colônia – a chamada “Guerra dos Bárbaros” – tenha decidido ex-mercenários paulis-tas como Matias Cardoso de Almeida e os seus comandados a voltarem os olhos para a perspectiva econômica mais lenta, porém, mais segura, que representava a criação de gado bovino no sertão do São Francisco.

As rotas abertas por exploradores paulistas entre o Serro e as zonas auríferas de Minas Novas, a nordeste, e de Conceição, ao sul, são típicos caminhos de exploração. A abertura de trilhas bandeirantes como essas era uma ação quase espontânea, adaptada ao objetivo da jornada, às suas condições e, principalmente, às características dos terrenos percorri-dos, a ponto de Sérgio Buarque de Holanda (1994, p. 33) supor a aparên-cia de uma exploração nova e de um novo trabalho de engenharia a cada viagem. Ainda que sejam trilhas primitivas, os caminhos de exploração ocupam posição pioneira entre os elementos estruturadores da ocupação luso-brasileira do interior. Por eles chegaram os primeiros elementos de formação do novo território.

Como eram essas expedições de exploração? A liderança cabia a um chefe supremo, detentor de amplos poderes sobre os subordinados, secun-dado por oficiais de tropa, todos eles em geral mamelucos , e, quando era o caso, pelos eventuais armadores que tivessem resolvido acompanhar a bandeira. O capelão era figura obrigatória.

Logo abaixo vinham a tropa mameluca e o expressivo contingente de escravos índios, ambos os grupos usados como batedores de cami-nhos, coletores de alimentos, guias e carregadores (Boxer, 1963, p. 46). E, acrescente-se, especialmente como combatentes, para o que se utilizavam de armas de fogo (espingardas, escopetas, garruchas, mosquetes), armas brancas (espadas, facas) e, quanto aos índios, arco e flecha. O número de integrantes variava de acordo com os propósitos da expedição, se de apresamento ou guerra contra índios e negros rebelados, quando se orga-nizavam verdadeiros exércitos; se de pesquisa mineral, quando podiam conter apenas algumas dezenas de homens. Em qualquer caso, escravos negros eram praticamente inexistentes.

A carga compunha-se de pólvora, balas, machados e outras ferramen-tas, cordas para amarrar os cativos e, às vezes, sementes, sal, mantimentos e ferramentas específicas para a mineração. Os mantimentos eram pou-cos, já que a maior parte da alimentação era conseguida no próprio mato,

através da caça, pesca, coleta de mel silvestre, palmito e frutos ou, quando sujeitavam tribos nativas pelo caminho, tomando posse das suas roças.

(Abreu, 1954, p. 178-179)

Em geral seguiam as antigas trilhas indígenas ou os cursos de rios, cru-zando-os de uma margem à outra quando necessário , utilizando-se, para isso, se era o caso, de canoas improvisadas. Quando podiam, evitavam as matas, onde habitavam os índios hostis e as feras. Obviamente, não viaja-vam a esmo; a orientação era feita, além de pelas trilhas indígenas e cursos de água, pelo sol, pelos picos, pelas gargantas que davam passagem através das serras e pelas indicações dadas por expedições anteriores.

Caminhavam dias, meses, anos, quase sempre descalços, em fila in-diana. Não viajavam o dia inteiro. Costumavam partir de madrugada e pousar no início da tarde, passando o resto do dia na caça, pesca e co-leta. A vestimenta, ao contrário da imagem romanceada do bandeirante produzida pela pintura, escultura, literatura e por certa corrente historio-gráfica, era sumária: chapelão de abas largas, camisa, ceroulas e gibões de couro acolchoados com algodão, para proteção contra as setas índias.

Não usavam botas de montaria, por uma razão simples: viajavam somente a pé, a não ser em casos raros, como o da última bandeira de Fernão Dias, quando este mandou abrir “estradas a eyxada assim pera andar a cavallo, pello não poder fazer a pé, em razão de sua muyta ida-de como pera que ficassem abertas para sempre como de presente estão” (Carvalho, 1959, p. 68). Não era incomum o transporte de pessoas em redes sustentadas por dois índios. O uso de liteiras suspensas entre duas cavalgaduras e de muares para as cargas popularizou-se bem depois de abertos os caminhos pelos bandeirantes, quando surgiu o tráfego comer-cial entre as vilas litorâneas e o interior do território.

Sofriam com os ataques de índios e de feras, com as doenças, especial-mente a malária (febres ou carneiradas) e com a escassez de alimentos.

A esses tormentos, as frentes pioneiras paulistas buscaram responder ela-borando o que Darcy Ribeiro (1995, p. 109) chamou “uma alta tecnologia de adaptação à floresta tropical”. Uma apreciação semelhante da capaci-dade de adaptação paulista, expressa obviamente em termos diferentes, é emitida num manuscrito anônimo da última década do século XVII. Para o autor do texto, os paulistas são homens capazes para penetrar todos os sertões, por onde andam continuamente sem mais sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e raízes de vários paus, e não lhes é molesto andarem pelos sertões anos e anos, pelo hábito que têm feito daquela vida.

(Abreu, 1954, p. 191)

O baixo grau de letramento na Capitania de São Paulo; a cultura da oralidade, que privilegiava a transmissão oral de informações entre os paulistas, em parte decorrente da matriz indígena da sua formação; e a intenção de ocultar de terceiros as rotas e demais elementos geográ-ficos resultantes das suas entradas explicam a escassez de registros escri-tos dessas expedições. A maior parte da documentação coligida sobre o chamado “bandeirismo paulista” consta de cartas e atos oficiais; muito poucos relatos pessoais remanesceram das entradas de exploração dos espaços interiores.

as cartas sertanistasDaí a importância das chamadas cartas sertanistas, descobertas e

catalogadas pioneiramente pelo historiador português Jaime Cortesão (1965/1971) na década de 50 do século passado. Trata-se de um conjun-to de fontes cartográficas, abrigadas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, provavelmente elaboradas por sertanistas independentes, com o presumível objetivo de registrar os caracteres naturais e humanos de re-motos espaços interiores da América do Sul, para que se tornasse possível, para si mesmos ou para outros exploradores, retornar a essas regiões e assegurar a continuidade da sua ocupação.

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qDispondo, em muitos casos, apenas do detalhado conhecimento in-

tuitivo que tinham dos espaços que percorreram, os autores dessas cartas confeccionavam o que podemos chamar esboços cartográficos. Enquanto cartógrafos oficiais como os padres matemáticos dispunham de gabinetes de trabalho, instrumentos de medição, materiais de desenho e fontes de informação sistematizadas, os improvisados cartógrafos sertanistas dese-nhavam os seus esboços em condições simples, partindo do que tinham à mão no momento.

Parece-me que, mais do que a rudeza ou simplicidade do traço, a prin-cipal característica distintiva dessa cartografia em relação à cartografia oficial seria a forte relação de intimidade dos autores com os espaços re-presentados. Enquanto mapas como os dos padres matemáticos guardam a impessoalidade e distância “científica” do seu objeto, nos esboços car-tográficos sertanistas abundam referências pessoais e leituras particula-res dos elementos retratados. Como identificou Cortesão (1965/1971, p. 201-202), há um núcleo utilitário nas cartas sertanistas, o que o levou a pensar em autores como comandantes de tropas, obrigados a grandes des-locamentos; sertanistas de múltiplas atividades; e mineradores nômades.

Não temos elementos documentais para afirmar que o autor de um desses esboços cartográficos, intitulado “Carta Topographica da Villa do Príncipe no Serro Frio, e do seu Distrito”, elaborado em ano inde-terminado, certamente posterior à criação da Vila do Príncipe (1714), tenha participado das entradas pioneiras ao Serro Frio, empreendi-das nos primeiros anos do Setecentos. Mas não resta dúvida de que o autor anônimo da peça conhecia muito bem a região. A carta inclui uma detalhada tábua de distâncias, na qual são citadas, além da Vila do Príncipe, as povoações de Gouveia, Congonhas, Tejuco, Remé-dios, Machado, Caeté Mirim, Lucas de Freitas, Tamarandiba, Tapera, Conceição (e Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro), Córregos, Três Barras, Cubas, Rio das Pedras, Tapanhoacanga, Morro do Itambé, Guanhães, Sabará, Gávea (?) e Santo Hipólito, bem como os caminhos

da Garça, do Sabará e do Mato Dentro. Foram registrados ainda aci-dentes naturais como os morros de Tocambira e do Itambé e os Rios Jequitinhonha, Preto, Araçuaí, de Santo Antônio, das Pedras, Paraú-na, do Peixe (Açu e Mirim), São Mateus (cabeceiras), Tamarandiba e das Caravelas (cabeceiras). Uma passagem no Rio “Jequitinhonha Mirim” (o autor identifica também o “Jequitinhonha Açu”) liga o Te-juco à propriedade de Lucas de Freitas. Há uma vaga menção, escrita a lápis, ao “descobrimento das esmeraldas”.

Além de citadas na tábua de distâncias, várias povoações são re-presentadas no mapa propriamente dito. É o caso de Nossa Senhora da Conceição, que aparece identificada com o ícone de uma igreja, no pé da folha, numa parte hoje infelizmente danificada do documento. Nas ime-diações está Córregos, identificada com uma casinha.

Esse esboço cartográfico, desenhado, como o próprio título indica, em escala topográfica, constitui uma leitura valiosa da distribuição de rios, caminhos e povoações na zona sediada pela Vila do Príncipe e nas regiões vizinhas.

Não resta dúvida de que, com a valorização econômica dos novos territórios, os caminhos ganham alguma complexidade em relação às tri-lhas bandeirantes de exploração, por sua vez uma decalcagem das vere-das de pé, posto indígena. As antigas rotas de exploração tornam-se cami-nhos de ocupação. A passagem de maior número de pessoas; o transporte de armas, munições, ferramentas e materiais de construção; o transporte de víveres, sementes e das primeiras reses; tudo isso exigiu a abertura de caminhos mais largos, que cortassem áreas com provimento mínimo de água e de alguma caça e que fossem topograficamente adequados a uma circulação mais volumosa e mais frequente. O cavalo, que Fernão Dias tratava como uma exceção, justificando a sua necessidade em razão da idade avançada com que estava, passa paulatinamente a ser incorpora-do por esses novos contingentes. Terá sido utilizado mais como animal de carga do que de montaria, como mostra a documentação, na qual o

cavalo aparece nos comboios de cargas ao longo dos caminhos e mesmo, ainda que certamente em escala muito mais reduzida do que na América espanhola, nos combates contra índios. Nesse último caso não sabemos se se tratava do transporte de armas, munição e víveres para a guerra ou se, como foi comum nas colônias espanholas, era o animal utilizado diretamente nos embates contra os índios. De toda forma, cavalos são reportados como parte integrante de exércitos armados contra índios e holandeses na América portuguesa.

o transporte dos alimentosQuando a exploração aurífera e diamantífera cresceu e a região cen-

tral da Capitania das Minas Gerais foi definitivamente ocupada, chega-ram os comboios de escravos negros, as tropas de muares e as boiadas. As tropas de muares eram a base do transporte de mercadorias no território colonial e possibilitaram, na região das minas, que uma enorme massa populacional ali se instalasse, fornecendo-lhe os produtos de que necessi-tava para a sua sobrevivência e o seu trabalho. As boiadas, especialmente do São Francisco, mas também das vilas paulistas, por onde passavam no seu caminho a partir do sul da colônia, forneceram a carne bovina que, juntamente com a carne dos suínos criados nos fundos dos quintais, constituía a base da alimentação da população dos núcleos mineradores.

A chegada do boi e do muar obrigou ao alargamento das antigas vias. Já não eram caminhos a serem percorridos por índios em fila in-diana, levando os fardos nos ombros, mas vias que tinham que com-portar tropas de dezenas de animais ou boiadas de numerosas cabeças. Pouco a pouco, ainda no século XVIII, os caminhos se tornaram estra-das. Vias antigas, possivelmente oriundas de milenares trilhas indíge-nas, estreitas, com poucos pontos de abastecimento e de manutenção precária se converteram progressivamente em estradas batidas, largas, servidas por inúmeros postos de apoio, que logo se tornaram prósperos núcleos urbanos. Gente como o explorador e depois sesmeiro Garcia Rodrigues, responsável pela abertura do chamado Caminho Novo, se

encarregava de mantê-las, sempre de olho no lucrativo negócio da ex-ploração dos registros.

Os caminhos de ocupação e abastecimento tornaram-se, assim, estra-das reais. A definição mais comum para uma estrada real é aquela que a associa aos caminhos que levavam do litoral às regiões mineradoras do centro-sul da América portuguesa, em especial, mas não só, às Minas Ge-rais. Por ter sido a Capitania onde se encontrou maior volume de ouro e diamante e onde, portanto, a economia mineradora ganhou maior vulto, Minas Gerais figurou como o destino privilegiado dessas rotas. Os primeiros núcleos mineradores da região formaram-se já antes da virada do sécu-lo XVII para o seguinte, resultantes da corrida do ouro, que transformou antigos territórios indígenas nas mais novas regiões coloniais da Améri-ca portuguesa. Esse processo concentrou-se inicialmente nos vales dos Rios Doce, das Velhas e das Mortes, gerando os núcleos mineradores de Vila Rica (*Ouro Preto), Nossa Senhora do Carmo (*Mariana), Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Vila Nova da Rainha (*Caeté) e São João del-Rei. Em pouco tempo ganhou outras regiões, como o alto Jequitinhonha, onde se formaram a Vila do Príncipe (*Serro) e o Arraial do Tejuco (*Diamantina), e o oeste, onde se formou a Vila do Infante de Nossa Senhora de Pitangui.

rotas por onde partiram os bandeirantes para chegar à região de Conceição

A descoberta das jazidas de ouro e de diamante nas Minas Gerais logo tornou indispensáveis os caminhos que levavam da costa ao interior. Entre 1707 e 1709 Antonil registra a existência de três vias para a nova zona mi-neradora: (1) o caminho a partir da vila de São Paulo; (2) o Caminho Novo do Rio de Janeiro; e (3) o caminho que partia da cidade da Bahia. A essas vias acrescentou o que chamou o Caminho Velho do Rio de Janeiro para as minas, na sua maior parte coincidente com a primeira rota.

O Caminho Velho era o antigo Caminho Geral do Sertão, via que li-gava São Paulo de Piratininga e as vilas do vale do Paraíba – Mogi (das

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qCruzes), Jacareí, Taubaté, Pindamonhagaba e Guaratinguetá –, através da Serra da Mantiqueira e do Rio Grande, à região do Rio das Velhas. Já era percorrido antes da descoberta das jazidas minerais, havendo mesmo a possibilidade de que tenha sido em parte a rota seguida pelo fundador da povoação de Santos, Brás Cubas, numa expedição ao sertão ocorrida em 1560-61.

As evidências históricas indicam que o Caminho Velho foi a rota seguida pela bandeira de Fernão Dias, de 1674-81, que percor-reu boa parte do atual território mineiro, fundando os primeiros arraiais da futura Capitania. Com a descoberta das primeiras re-servas de ouro de aluvião, tornou-se esse o caminho utilizado pelas levas de aventureiros que acorriam às Minas Gerais a partir das vilas paulistas e do Rio de Janeiro. Conectando as vilas paulistas e os portos do Rio de Janeiro e Parati à primeira zona minerado-

ra, o caminho logo se tornou uma via larga e movimentada, percorrida por aventureiros, tropas de muares, comboios de escravos e boiadas. Além dos bois, dos cavalos e dos mu-ares vindos do extremo sul da América portu-guesa, circulavam pelo Caminho Velho os produtos enviados diretamente das vilas paulistas – gado bovino, toucinho, aguar-

dente, açúcar, milho, trigo, marmelada, frutas, panos, calça-dos, drogas e remédios, algodão, enxadas, almocafres – e os artigos importados – sal, armas, azeite, vinagre, vinho e aguar-dente do Reino. A viagem do governador da Capitania do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Meneses, ao sertão dos cataguás e do Rio das Velhas, realizada em 1700, pelo Caminho Velho, constitui a primeira visita de uma autoridade colonial à recém- desco-berta região das minas. Em 1717 o governador da Capitania de São Paulo e Minas, Dom Pedro de Almeida, o conde de Assumar,

viajou por roteiro semelhante: do Rio de Janeiro a São Paulo e daí às minas. O diário dessa última viagem constitui uma das mais antigas fontes documentais sobre a primeira grande rota de acesso às Minas Gerais.

Ao contrário do Caminho Velho, aberto de forma mais ou menos espontânea a partir das incursões paulistas pela porção central do que viria a ser a Capitania das Minas Gerais, o Ca-minho Novo nasceu de um projeto idealizado por Artur de Sá e Meneses, com o objetivo de reduzir o tempo de viagem entre o litoral sul e as minas. Com efeito, as viagens para a região mineradora a partir do Rio de Janeiro obrigavam a um lon-go desvio: do porto fluminense seguia-se para Parati por via marítima e, daí, por terra até os entroncamentos paulistas do Caminho Velho (Taubaté e Guaratinguetá). Essa viagem podia levar, segundo documentos coevos, três meses.

Para a abertura de um caminho que abreviasse o percurso entre o litoral e as minas, foi contratado o sertanista Garcia Ro-drigues, filho de Fernão Dias e um dos participantes da bandei-ra de 1674-81. Quando de sua contratação, em 1698, Garcia Ro-drigues já se estabelecera como sesmeiro, proprietário de duas roças na região, uma às margens do Rio Paraibuna e outra na Borda do Campo (*Antônio Carlos).

Em 1700, após muitas dificuldades, o sertanista conseguiu concluir a picada para pedestres, passando, então, a aprimorá--la para que desse trânsito também para animais de carga, com o objetivo de explorar o promissor privilégio do uso exclusivo da via. Alguns anos mais tarde, entre 1722 e 1725, foi aberta uma variante do caminho de Garcia Rodrigues, encurtando ainda mais a nova via. Essa variante, conhecida como Cami-nho do Proença, tornar-se-ia, pelas suas vantagens, o segmento definitivo do Caminho Novo entre o Rio de Janeiro e o Rio Pa-

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Parte de Mapa da Capitania de Minas Gerais com a divisa de suas comarcas. Rocha, José Joaquim da, 1788. Fonte: Arquivo Histórico do Exército – Rio de Janeiro

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qraíba do Sul.

Em algumas décadas o Caminho Novo se tornaria a prin-cipal via de acesso do litoral sul às Minas Gerais. Há registros de que o tempo de viagem entre o Rio de Janeiro e Vila Rica tenha se reduzido a dez dias, evitando-se, ainda, pela nova via, a travessia marítima até Parati e os lamaçais da Serra do Mar.

Já nas primeiras décadas do século XVIII o Caminho Novo estará pontuado por roças, pousos, ranchos e povoados, todos eles formados como bases de apoio para os viajantes que utili-zavam a via. O relato de viagem do ouvidor-geral Caetano da Costa Matoso aponta diversos núcleos urbanos, que mais tarde se tornariam cidades, como Petrópolis, Paraíba do Sul, Juiz de Fora, Barbacena e Santos Dumont.

A consolidação do Caminho Novo contribuiu para uma sig-nificativa transformação no contexto econômico e político colo-nial. A cidade do Rio de Janeiro passou a centralizar a rota de povoamento, abastecimento e circulação mercantil da região mineradora, suplantando as vilas paulistas e a Bahia como centro distribuidor de pessoas e de mercadorias para as Minas Gerais. Portos importantes no escoamento da riqueza mineral e no abastecimento da Capitania, como Parati, Santos e a cidade da Bahia (*Salvador), foram superados pelo porto do Rio de Janeiro. Este passou a enviar aos núcleos mineradores escravos negros, açúcar, cachaça, gado, feijão, arroz, farinha e produtos importados da Europa, entre eles os artigos de luxo que, com o refinamento social da Capitania das Minas Gerais, passaram a ser crescentemente demandados pela população local.

Do ponto de vista geopolítico, o Caminho Novo significou que a supremacia paulista na região das minas estava definiti-vamente vencida. Os imigrantes europeus, em especial os por-

tugueses, passaram a ter um caminho direto para as minas, completamente independente dos entroncamentos paulistas do Caminho Velho. Reinóis passaram a afluir com maior intensi-dade para o interior mineiro, via a larga porta de entrada que se lhes abrira no Rio de Janeiro. E mais, ricos moradores da cidade passaram a ser aquinhoados com sesmarias ao longo da nova via, o que, aos olhos de gente como Garcia Rodrigues e os primeiros colonos paulistas, configurava abuso injustificável.

Há pouco tempo foi estabelecida documentalmente a ori-gem do longo caminho que levava, no século XVIII, do Recôn-cavo Baiano ao vale do Rio das Velhas (Santos, 2010). A sua abertura partiu de uma demanda dos mineradores que traba-lhavam nas novas jazidas, que pleitearam ao governador-geral que fosse estabelecida uma ligação direta com a Bahia, pois o caminho então existente, a partir de São Paulo e do Rio de Janeiro, não atendia à demanda de abastecimento da região mineradora.

Essa rota foi definida pelo paulista João de Góis, que lide-rou uma expedição, partida da Bahia, entre 1700 e 1701. Quan-do chegara ao seu termo, já na região das minas, o explorador fora entusiasticamente recebido pelos mineradores, que ime-diatamente se animaram a ir buscar nos currais do São Fran-cisco o gado de que necessitavam. Um genro e dois cunhados de Manuel da Borba Gato, que assistia nas minas, seguiram com João de Góis em parte da sua viagem de volta à Bahia. Uma vez chegados ao arraial de Matias Cardoso, lá se abasteceram do que precisavam e retornaram às minas. Para o explorador, essa era a prova cabal da importância do caminho que abrira: se as regiões sulinas pudessem abastecer de gado as minas, por que se resolveriam os mineradores a irem buscá-lo no São Francis-co, por um caminho que para eles ainda estava inculto?

Parte de Mapa da Comarca do Serro Frio. Rocha, José Joaquim da, 1778. Fonte: Arquivo Histórico do Exército – Rio de Janeiro

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qA extensa via nascia na cidade da Bahia (*Salvador), seguia

o curso do Rio Paraguaçu até Tranqueira (região da Vila de Rio de Contas), para daí atingir as margens do São Francisco. En-tre Malhada e Barra do Rio das Velhas, o Caminho da Bahia acompanhava o São Francisco para seguir, depois, pelo vale do Rio das Velhas até Sabará. Uma longa variante foi aberta, em ano indeterminado, seguramente antes de 1709, pelo sertanista baiano João Gonçalves do Prado. Essa segunda via do Caminho da Bahia apartava-se da primeira em Tranqueira, passando pe-las nascentes dos rios Pardo, Gorutuba e Verde Grande, de onde seguia para o campo da Garça (*Morro da Garça), para aí se reencontrar com a estrada do São Francisco.

O Caminho da Bahia cumpriu duas funções históricas fundamentais: prover de carne bovina, gerada nos currais do médio São Francisco e dos seus afluentes, a zona mineradora, nas suas primeiras e decisivas décadas de existência; e ligar a região das minas à maior cidade da América portuguesa e um de seus portos mais movimentados, por onde chegavam os es-cravos africanos e os produtos europeus. O caminho foi, assim, via de escoamento da produção pecuária e via de circulação mercantil.

o caminho do contrabando

O Caminho da Bahia era ainda o descaminho do ouro. A expressão, que tem hoje um sentido algo alegórico, tinha no século XVIII um significado bem preciso. Pelos descaminhos se evitava o pagamento dos quintos, direitos de entrada, direitos de passagem e de todos os outros tributos que pesavam sobre a população envolvida com o conjunto de atividades geradas pela mineração. Eram os caminhos do contrabando. A esse res-peito, o historiador inglês Charles Boxer (1963, p. 67) não hesi-

ta em afirmar que “a quantidade de ouro que deixava Minas Gerais através de São Paulo e Rio de Janeiro, fosse legal ou ile-galmente, grande como evidentemente era, ainda permanecia muito menor do que o fluxo que chegava à Bahia através da estrada do São Francisco”. Os dados documentais mostram que Boxer estava certo. Pelo menos até 1727 o fluxo mercantil no Caminho da Bahia foi muito mais alto do que em qualquer dos outros dois caminhos, chegando mesmo, em alguns períodos, a ser maior do que a soma de ambos (Santos, 2009, p. 153-154).

De nada adiantaram as sucessivas proibições e restrições emanadas da Coroa, preocupada com o desvio de mão de obra negra dos canaviais e engenhos nordestinos para as lavras de ouro, com a evasão fiscal e com o contrabando de ouro. As or-dens régias, como a que determinou o fechamento do Caminho da Bahia, de 1701, e a que proibiu a circulação pela via de quaisquer mercadorias que não o gado, de 1702, logo se revela-ram inaplicáveis e foram revogadas.

Foi somente quando a cidade do Rio de Janeiro se firmou efetivamente como o grande entreposto das Minas Gerais e o seu principal porto de acesso, que o Caminho da Bahia perdeu em significação econômica, seguindo-se a gradual redução da sua importância como via de circulação mercantil.

A essas três grandes vias se somaram rotas regionais, das quais a mais importante, nas Minas Gerais, terá sido o caminho entre Vila Rica, a Vila do Príncipe e o Arraial do Tejuco, sede do Distrito Diamantino. Por essa rota se fazia a ligação mercantil entre a sede da capitania, a zona aurífera nucleada na Vila do Príncipe e a região que, a partir da terceira década do sécu-lo XVIII, passou a fornecer as pedras preciosas mais cobiçadas da época. A via regional foi responsável pelo abastecimento da zona aurífera e diamantífera da comarca do Serro Frio, o esco-

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mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qamento da sua produção mineral e a imigração para a região. O caminho deixava Vila Rica em direção à Vila do Ribeirão do Carmo, de onde seguia para o norte, passando por núcleos urbanos como Catas Altas, Santa Bárbara e Conceição. Uma variante entre Santa Bárbara e Cocais levava a Sabará, via a Vila Nova da Rainha (Caeté). Outra variante, desta feita entre Santa Bárbara e Itambé (do Mato Dentro), levava a Itabira (do Mato Dentro).

Essa via regional mantinha intensa relação de dependên-cia com o Caminho Novo, por meio do qual se atingia o porto do Rio de Janeiro, fazendo-se, assim, o escoamento da rique-za extraída no Serro do Frio e na Demarca-ção Diamantina. É por isso que uma carta oficial, escrita em 1758 no Tejuco, refere-se à “estrada geral” que leva os viandantes

para o Rio de Janeiro, isto é, ao caminho entre o famoso arraial diamantífero e o Rio de Janeiro. Numa das cartas geográficas de um conjunto cartográfico intitulado Guia de Caminhantes, elaborado em 1816, essa mesma via é representada como uma das estradas reais que cortavam o território brasileiro, estabe-lecendo a ligação entre Vila Rica, a Cidade de Mariana, a Vila do Príncipe e o Tejuco.

Por terem constituído, durante longo tempo, as únicas vias autorizadas de acesso às reservas minerais da Capitania, esses caminhos adquiriram caráter oficial. A circulação de pessoas, gado, ouro, diamante e mercadorias era obrigatoriamente feita por eles, constituindo crime de lesa-majestade a abertura de no-vos caminhos. O interesse fiscal, base da política metropolitana para a região mineradora, prevalecia sobre qualquer outro – cumpria, antes de tudo, ter as rotas de comunicação com as mi-

nas devidamente controladas, para que nelas se pudesse extrair uma massa cada vez maior de tributos para o tesouro régio. O nome estrada real, que já era corrente em Portugal, passou a aludir, assim, àquelas vias que, pela sua antiguidade, impor-tância e natureza oficial, eram propriedade da Coroa metropo-litana. Durante todo o século XVIII, e também em parte do XIX, quando a era mineradora já declinara, tornando os caminhos livres e empobrecidos, as estradas reais foram os troncos viá-rios principais nas quatro Capitanias do centro-sul da América portuguesa – Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

Ao longo dos caminhos reais espalharam-se os registros, pos-tos fiscais de controle, nos quais se cobravam os tributos devi-dos à Coroa. Eram de diversos tipos: registros do ouro, que fisca-lizavam o transporte do metal e cobravam o quinto; registros de entradas, que cobravam pelo tráfego de pessoas, mercadorias e animais; registros da Demarcação Diamantina, responsáveis pelo policiamento do contrabando e pela cobrança dos direitos de entrada nessa zona; e contagens, que tributavam o trânsito de animais. Os prédios dos registros eram instalados em locais estratégicos dos caminhos: passagens entre serras, desfiladeiros, margens de cursos de água. No seu interior se colocava o pesso-al empregado – um administrador, um contador, um fiel e dois ou quatro soldados. Um portão com cadeado fechava a estra-da. Diferentemente dos registros, de função fiscal, as guardas e as patrulhas, também instaladas nas margens dos caminhos, destinavam-se especificamente ao policiamento das regiões mi-neradoras.

Os núcleos urbanos formados às margens da estrada entre Sabará e a Vila do Príncipe se caracterizaram sempre pela bai-xa densidade populacional, ao contrário das poderosas vilas do ouro. É possível que nessa tendência tenham influído as res-

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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Cococococococococococ

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qtrições metropolitanas à imigração para a região e à sua expansão eco-nômica, medidas tomadas como forma de reprimir a produção diaman-tífera e aumentar o preço das pedras na Europa. Durante o século XVIII, a ocupação humana no distrito foi desencorajada e mesmo restringida, o que levou a número relativamente baixo de habitantes, se comparado aos demais núcleos urbanos da Capitania. O autor anônimo que escre-veu, por volta de 1750, o manuscrito “História da Vila do Príncipe e do modo de lavar os diamantes e de extrair o cascalho” caracteriza os núcleos urbanos do caminho, salientando sempre o baixo povoamento da comarca do Serro Frio:

E em toda a comarca [do Serro Frio], que é muita parte grande e despovoada, tem algumas lavras, em que se acham alguns arraiais, prin-cipalmente na freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro, em distância de três dias de viagem antes de chegar à vila [do Prínci-pe], mas por diverso caminho para a parte de leste do caminho que vai direto à vila. Tem mais o arraial da Senhora do Pilar, de pouca gente, o arraial dos Córregos, também pequeno, a Tapera e Itapanhoacanga, também pequenos, e todos da dita freguesia da Conceição. Tem mais, indo do Sabará para o Tijuco, e daí para a vila, o arraial da Paraúna, o da Gouveia, o do Milho Verde, o de São Gonçalo, todos pequenos e com suas capelas, em que administram os sacramentos, sendo o primeiro pertencente à dita freguesia de Mato [Dentro] e os outros à freguesia da Vila [do Príncipe].

Na figura 1 foi representado o processo cronológico de criação das povoações entre Caeté e o Serro Frio. A imagem, por outro lado, nos re-mete a um segundo aspecto histórico da territorialização dos sertões: o estreito vínculo entre as pequenas povoações e o caminho. Nas povoa-ções estão as vendas, onde se pratica o comércio a miúdo; os pousos e ranchos, onde se abrigam os viandantes; e as pequenas oficinas, onde se fazem e se consertam artefatos de couro, ferro, pedra e madeira. Es-sas estão entre as mais antigas atividades encontradas nas povoações

pioneiras. As nucleações maiores recebem também rudimentos de algu-mas funções administrativas, sediando julgados, abrigando registros e tornando-se, nas palavras de Damasceno Fonseca (2001, p. 20), “lócus de vida social e religiosa” e “postos avançados para novos descobrimentos e conquistas”. Uma relação dinâmica se estabelece com os caminhos, que passam a ter nas povoações bases de apoio logístico, de suprimento de víveres e de referência de orientação durante as longas jornadas. As vias terrestres, por seu turno, alimentam a expansão das povoações, que as-sim passam a se instalar prioritariamente nas suas margens. Pelos cami-nhos chegam os imigrantes, os viajantes, os forasteiros, as mercadorias, os escravos, as novas informações. Desse modo, se por um lado as povoa-ções concentram indispensáveis funções mercantis, administrativas e de serviços, por outro a sua condição de existência reside nas vias terrestres que cortam os sertões.

Assentadas no início do século XVIII, as povoações que se sucediam ao longo do caminho en-

tre Sabará e o Serro do Frio não se ex-pandiram no ritmo das nucleações

urbanas das zonas mineradoras centrais da capitania. Da mes-

ma forma, o caminho que as conectava não parece ter sido intensamente frequentado ao longo do Setecentos. Na segunda década do século seguinte, Saint-Hilaire (2000, p. 130) nos dá um testemu-nho pouco auspicioso da con-

dição da via:

Para ir de Itambé a

Vila do Príncipe, segui a estrada real que vai de Vila Rica a Tijuco; mas apesar do nome pomposo que tem, esta estrada, muito menos frequenta-da que a do Rio de Janeiro a Vila Rica, não é, em certos lugares, mais que uma picada tão estreita, que às vezes se tem dificuldade de seguir-lhe o traçado.

Com a perspicácia de sempre, o naturalista francês desnuda, assim, a precariedade de um caminho que, tendo servido, décadas antes, como via de contato entre o Distrito Diamantino, o Serro do Frio, a Vila Real do Sa-bará e Vila Rica, entrara o século XIX como nada mais do que uma picada estreita. Essa condição não impediu que as povoações que margeavam a estrada perdurassem ao longo dos tempos, mantendo-se, até o presente, como marcos da memória do processo de territorialização desses sertões.

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O naturalista Francês Saint Hilaire relatou na segunda metade do século XIX que a Estrada Real na região mais parecia uma picada estreita impedindo que as populações perdurassem ao logo dos tempos, dificultando o processo de ocupação do sertão.

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as origens da fé e da devoção ao sagrado que moldaram a cultura de um povo

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qD; Afonso henriques, fundador do reino lusitano no século XII, teria sido escolhido por Nossa Senhora para rever o imp´ério de Deus na terra,

o PaDroaDoRel ig ião, Igre ja e Estado na formação de Conceição do Mato Dentro

Célio Macedo

a descoberta do ouro em fins do século XVii atraiu para o território das Minas e, claro, para Conceição do Mato Dentro, uma população composta por gente de todo canto do império.

Hordas de aventureiros passaram a enxamear as regiões mineradoras, formando seus primeiros núcleos mineradores e levando, segundo a visão

de um ministro do Império, “uma vida licencioza e nada cristã”. Para impedir que o novo território descambasse em uma terra sem leis, a Coroa portuguesa procurou agir rapidamente no in-tento de regulamentar e normalizar administrativamente os nú-cleos populacionais que se formavam. Nesse sentido, criaram-se as primeiras vilas, estabeleceram-se tributos e implantaram-se forças judiciais e policiais. Mas na imensidão do território, al-guns arraiais instalavam-se desordenadamente por regiões de di-fícil acesso, onde a vida corria longe dos olhos daqueles primeiros administradores e da lei.

É nesse ponto que entra a religião. Se o povo não anda com as leis, pelo menos carregam a fé na proteção de Deus, de um santo, de Cristo ou Nossa Senhora. Tanto é assim, que logo que se funda um incipiente núcleo minerador como Conceição do Mato Dentro, não se deixa de erguer uma ermida, uma capela, que prontamente se transforma na igreja paroquial do lugar. As leis da Igreja chegam primeiro ali onde as leis do Estado quase não são percebidas ou não são respeitadas. Mas para o período ao qual nos reportamos aqui isso não tinha muita

importância, pois não se distinguia claramente o que era com-petência do poder secular, do Estado, do que era espiritual, da Igreja. É uma relação, portanto, regida pela instituição do Pa-droado, isto é, em Portugal, todos os assuntos relacionados à religião eram resolvidos exclusivamente pelo rei.

A instituição do Padroado entre os portugueses pode ser da-tada de uma época bem antiga e tem muito a ver com a própria formação de Portugal. A dinastia real portuguesa constituiu--se numa verdadeira criação divina, sendo o monarca ungido por Deus para conduzir o povo na luta contra os inimigos da fé cristã. Uma lenda diz que o próprio D. Afonso Henriques, o fundador do reino lusitano no século XII, teria sido escolhido por Nossa Senhora, em razão de uma marca que trazia desde o nascimento, para exercer uma grandiosa missão religiosa; e nessa trajetória, não menos que Cristo havia aparecido direta-mente a ele, na batalha de Ourique (1139), para conduzi-lo ao trono de Portugal.

O reino de Portugal, portanto, tornava-se o novo império de

Conceição do Mato Dentro foi criada numa época em que o poder secular do Estado se confundia com o poder espiritual da igreja - o Padroado.

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qDeus na Terra e os monarcas que sucederam ao trono a D. Afon-so Henriques tinham a missão político-religiosa de expandir a fé e o reino de Cristo por todo o mundo. A partir do momento em que o reino lusitano passa a ser identificado com o reino de Cristo, a consequência lógica disso é que essa expansão espi-ritual ficasse condicionada à própria expansão territorial. Os interesses religiosos, políticos e econômicos que moveram Por-tugal até as conquistas de novas terras interligavam-se, assim, na realidade político-espiritual da própria Cristandade.

O recrudescimento do Padroado em Portugal ocorre nota-damente no momento em que surge no País a Ordem de Cristo. Essa espécie de associação religiosa laica, formada por nobres com finalidades militares, teve sua aprovação em 14 de mar-

ço de 1319, pelo papa João XXII. O seu patrimônio foi constituído a partir dos bens herdados da poderosa Ordem dos Templários, recém-extinta pela Bula Vox in Excelso instituída pelo papa Clemente V, no ano de 1312, inclusive o antigo con-vento do ramo português dessa confraria,

localizado na cidade de Tomar, que o rei D. Pedro I transferiu em 1357 para a Ordem de Cristo. Por se tratar de uma Ordem detentora de grandes cabedais, e sendo a Coroa portuguesa po-bre, não possuindo os recursos necessários para as expedições marítimas pretendidas, fez-se um acordo pelo qual esses empre-endimentos marítimos seriam custeados pela Ordem de Cristo, ficando o rei como grão-mestre da corporação.

A partir daí muitos seriam os privilégios concedidos e con-firmados à Ordem de Cristo por sucessivos documentos pontifi-ciais: em 1456, o papa Calisto III concede à Ordem a jurisdição espiritual das conquistas portuguesas, direito a ser exercido pelo

seu superior (vigário ou grão-mestre), residente na sede oficial da Ordem, em Tomar. Anos depois, em 1522, o papa Adriano VI confere ao rei D. João III a dignidade de grão-mestre da Ordem de Cristo, investidura que se transfere em seguida a todos os reis por-tugueses, seus sucessores. Finalmente, em 1551, o papa Júlio III anexa e incorpora para sempre o Grão-Mestrado das três ordens de cavalaria portuguesas – de Cristo, São Tiago da Espada e São Bento – à Coroa portuguesa. A partir de então o rei é oficialmente reconhecido como grão-mestre da Ordem de Cristo.

A união dos direitos políticos da realeza aos títulos de grão--mestre das ordens de cavalaria confere aos monarcas portu-gueses o direito de exercerem simultaneamente o governo políti-co e o religioso. Investido de um “poder divino”, sua autoridade não pode ser contestada e seus direitos sobre os súditos são absolutos e inquestionáveis em todos os domínios de Portugal, inclusive, e especialmente, no Brasil.

Mediante a instituição do Padroado os monarcas portu-gueses foram autorizados pela Santa Sé: 1) a erigir ou permitir a construção de todas as catedrais, igrejas, mosteiros, conven-tos e eremitérios dentro de seus domínios imperiais; 2) a apre-sentar à Cúria Romana uma lista dos candidatos escolhidos para ocupar o governo dos arcebispados, dos bispados das pa-róquias coloniais e para as dignidades e funções eclesiásticas menores; 3) a administrar jurisdições e receitas eclesiásticas e a respeitar as bulas e breves papais que não fossem primeiro aprovados pela chancelaria real. Esses privilégios significavam, na prática, que todo sacerdote, da mais alta à mais baixa ca-tegoria, só poderia exercer o cargo com a aprovação da Coroa e que dependia desta para seu apoio financeiro (as côngruas). Tornava-se, dessa forma, um funcionário assalariado da Co-roa.

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Castelo de Tomar, antigo convento do ramo português da Ordem dos Templários, transformada em Ordem de Cristo em 1357.

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qUm dos direitos mais importantes conferidos aos monarcas

lusitanos pelo Padroado foi o de cobrança dos dízimos eclesi-ásticos, ou seja, a taxa de contribuição dos fiéis para a Igreja, vigente desde as mais remotas épocas. Uma fonte de renda ri-quíssima para Igreja, cujo sistema de arrecadação foi criado lá na Idade Média, visando ao sustento do culto e dos sacerdotes. Assim, cada cristão deveria contribuir com a décima parte dos lucros usufruídos com o trabalho da terra e de outras ativida-des para as despesas da Igreja.

Durante a época do descobrimento do Brasil, a coleta dos dízimos passa a ser feita pelo próprio rei, que, como grão-mes-tre da Ordem de Cristo, devia zelar também pelo bem espiritual das colônias portuguesas. Mas nem sempre esses dízimos eram utilizados no âmbito religioso, sendo, frequentemente, desvia-dos para outros interesses tão pouco espirituais...

Muitas foram as consequências surgidas em virtude desses desvios, sendo talvez a mais grave aquela percebida no campo da sustentação do clero e, decorrente disso, no tipo de condu-ta adotada por este nas freguesias sob sua jurisdição. Alguns exemplos colhidos em Conceição dão-nos bem essa dimensão:

Em 16 de janeiro de 1752, o rei Dom José, recentemente em-possado, autorizou a ereção em “nova vigária colada” à Igre-ja de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro, ligada ao também recém-criado bispado de Mariana (1745), com uma côngrua anual de duzentos mil réis, que deveriam ser pagas da “Fazenda Real”, que “vencerá o pároco quando for provido do dia em que tomar posse em diante...”

O primeiro pároco colado da matriz de Conceição, portan-to, foi o padre João Alves da Costa, presbítero do Hábito de São Pedro, que tomou posse em 5 de setembro de 1752, permanecen-

do no cargo até 1754. A sua côngrua estipulada pelo rei, como se viu, foi de 200.000 réis anuais, que em termos mensais repre-sentariam cerca de 16.660 réis – é bom lembrar que um escravo jovem e em boas condições, o objeto de consumo da sociedade escravocrata, não saía por menos de 200.000 réis (aproximada-mente 167 oitavas de ouro).

Na prática, o que se via era que as côngruas ficavam muito aquém das necessidades reais dos párocos em se vestir e se ali-mentar, o que explica o fato de muitos deles procurarem suprir sua minguada renda com atividades complementares, como a lavoura, a criação de gado, e a própria mineração – o comércio lhes era vedado. Atividades que não deixavam de exigir certo investimento, como compra de equipamentos e, principalmente, de escravos. Documentação existente sobre Conceição registra párocos da matriz como senhores de escravos: o padre Manoel Gonçalves da Silva possuía 20 escravos; o padre Miguel de Car-valho Almeida Matos, 14 escravos; e o padre coadjutor Januário de Oliveira Faria, 9 escravos. Percebe-se aqui um número ligei-ramente elevado de escravos, bem acima da média mineira que é de 4 a 7 escravos por proprietário, o que nos permite deduzir a participação desses religiosos na empresa mineradora, ao lado de suas costumeiras e “oficiais” atividades espirituais.

Outro problema eram as irregularidades e atrasos percebi-dos nos pagamentos das côngruas, às vezes de anos, o que ge-rava constantes reclamações por parte do clero, que tinha que estar sempre se dirigindo ao rei, suplicando o seu recebimento. O padre João Alves da Costa mesmo, em duas oportunidades, dirigiu-se ao rei D. José reclamando o pagamento de suas côn-gruas atrasadas.

Conceição foi criada inicialmente, por volta de 1709, como uma paróquia eclesiástica, assistida por um pároco encomen-

O artista do século XVIII Carlos Julião retratou na Vila do Serro Frio a relação entre negros e Igreja Católica em sua obra Jovens Negras Indo à Igreja – Acervo do Itaú Cultural)

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qdado que, nesse caso, não recebia a côngrua, pagamento cabí-vel somente ao ocupante de uma paróquia erigida por criação régia (colada). Os padres encomendados sobreviviam graças às chamadas conhecenças, que era uma espécie de contribuição ou dízimo pessoal que os fiéis pagavam à época da desobriga (o preceito da confissão e comunhão na época da Quaresma); além disso, podiam cobrar os chamados pé de altar ou direito de estola, isto é, cobranças feitas pelos sacramentos ministra-dos. Todas essas cobranças dos “serviços eclesiais”, por vezes exageradas, repercutiam diretamente sobre os fregueses que, muitas vezes, sentindo-se lesados e humilhados, iam reclamar com as autoridades civis.

Em 1744, por exemplo, os moradores do Morro de Mato Dentro e Santo Antônio do Rio Abaixo dirigem-se ao monarca reclamando do “avaro” vigário encomendado de Conceição – na época, Miguel de Carvalho Almeida Matos –, que lhes co-brava preços exorbitantes para ministrar os sacramentos, de 2 oitavas de ouro (3.000 réis), e pela desobriga, de doze vinténs (562 réis) por pessoa, quando o normal seria a metade disso; além disso, não concedia licença para outro padre ou coadju-tor prestar os referidos serviços.

Outras situações mais graves podiam também acontecer, como o caso que se relata a seguir, ocorrido ainda nos primei-ros anos do arraial. Antes de se tornar uma paróquia colativa, Conceição foi elevada à condição de “paróquia eclesiástica”, isto é, criada por um bispo sem o beneplácito régio, restando, pois, todo o ônus de construção da igreja por conta dos fiéis, inclusive os gastos com o vigário. Tendo em mente a realização dessa “heroica ação”, o reverendo Antônio da Silva Prado, em visita pastoral realizada no arraial, no ano de 1722, determi-nava que “cada um dos moradores desta freguesia contribuísse

para a obra da matriz (que consta ser arrematada por oitocen-tas oitavas de ouro), dando três quartos e quatro vinténs cada pessoa de Sacramento, sendo branco e, sendo escravo contri-buirá seu Senhor com a dita quantia”. Essa mobilização dos fiéis, “gentilmente” solicitada pelo visitador, possibilitou que se arrecadassem muitas esmolas para a fatura da capela-mor da igreja matriz de Conceição. No entanto, o primeiro pároco da freguesia, o padre Manoel de Abreu, cresceu o olho no dinheiro acumulado e resolveu furtar parte dos fundos. As autoridades eclesiásticas tentaram de várias maneiras reaver o fruto do des-falque, inclusive ameaçando sequestrar os bens do padre que se encontravam naquela freguesia, mas, ao que parece, o religio-so, depois de enfrentar o processo de excomunhão, abandonou o hábito e fugiu para a Bahia.

Em 1752, como se colocou, a igreja de Conceição torna-se uma paróquia colativa, passando, então, a ser contemplada pelas benesses do Padroado. E o povo percebeu isso muito bem, pois, em 1754, solicitava ao rei D. José, nos primeiros anos de seu reinado, uma ajuda para terminar o corpo da igreja, lem-brando ao monarca que “a obra da capela-mor [cujas despesas foram arcadas pelos moradores] pertencia à Vossa Majestade, como senhor governador e perpétuo administrador da Ordem de Cristo”. Mas foi somente em 1772, depois de muitas diligên-cias, que D. José autorizou o auxílio de 4.300 cruzados. E mes-mo assim, liberados em módicas prestações e por longo prazo, determinando com isso que as obras se arrastassem até o ano de 1802, quando o templo teve finalmente sua bênção inaugu-ral.

Outro reflexo do Padroado no Brasil colonial pode ser ve-rificado no plano da divisão político-administrativa, notada-mente na confusão causada entre aquilo que pertencia à esfera

São Miguel pegando as almas: padroeiro da Irmandade que funcionou no interior da Igreja Matriz na primeira metade do século XVIII (imagem do Século XVIII – Igreja da Tapera – Santo Antonio do Norte – Conceição do Mato Dentro).

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qcivil e aquilo que era do âmbito eclesiástico. O monarca por-tuguês, como grão-mestre e administrador perpétuo da Ordem de Cristo, passou a gerir, como se comentou antes, os negócios eclesiásticos, mesclados aos negócios coloniais, porém, tendo sempre a percepção do que essa “confusão” podia representar uma forma bem eficiente de controle de seus súditos; e, por-que não, também do funcionalismo régio, onde não deixava de se incluir, obviamente, o clero colonial, que não passava de uma espécie de funcionários do rei. E Minas Gerais, a galinha dos ovos de ouro de Portugal, foi uma região que recebeu uma atenção muito especial por parte das autoridades no que tange a esse controle, tanto da população que ali veio se estabelecer, como dos funcionários administrativos e ainda daqueles pa-dres “adoradores do bezerro de ouro”.

Dessa forma, ao lado das comarcas, com seus termos e vilas, no campo da divisão político-administrativa, aparelham-se, no eclesiástico, as paróquias com suas freguesias. É interessante fazer notar que num país profundamente cristão, em que o co-tidiano aparece eivado pela religião, a divisão de circunscrição eclesiástica parece ter servido mais ao propósito de controle real do que a de cariz civil. Aliás, vem corroborar essa linha de pensamento o fato de aquela divisão ser talvez de maior anti-guidade, já sendo percebida mesmo antes de Portugal se tornar uma nação. O significado de paróquia remonta, pelo menos, ao século VI, quando o território português encontrava-se sob domínio dos suevos, e se confunde ao de freguesia – freguês, em português, que procede da locução latina filius ecclesiae, considerados aqueles que tomaram parte ativa na construção de uma igreja ou contribuíram para sua dotação patrimonial, adquirindo com isso um direito especial sobre ela.

as confrarias na vida de Conceição

Conceição do Mato Dentro, como se sabe, permaneceu du-rante todo o século XVIII e parte da primeira metade do século XIX sujeita, administrativamente, como arraial que era, à Vila do Príncipe, sede da imensa co marca do Serro do Frio. Somen-te a partir de 23 de março de 1840 é que tomou foros de vila, quando pôde ter finalmente seu próprio Paço Municipal (Casa de Câmara e Cadeia) – ou seja, eleger os seus vereadores lo-cais. Era paróquia desde 1709, de uma freguesia compreendida inicialmente pelas seguintes capelas filiais: Nossa Senhora da Aparecida dos Córregos, Santo Antônio da Tapera, Santana das Congonhas, Nossa Senhora do Pilar do Morro de Gaspar Soares e Santo Antônio do Rio Abaixo; posteriormente, foram incorpo-radas as capelas de Santo Antônio do Itambé (1720) e – depois de se tornar paróquia colativa (estabelecida por provimento real), em 16 de janeiro de 1752 – de São Francisco de Paraúna, Santana do Riacho Fundo, São Domingos do Rio do Peixe, Nos-sa Senhora do Porto de Guanhães, São Miguel e Almas, Nossa Senhora das Dores, São Sebastião do Rio Preto e São José do Brejaúba do Córrego Alto.

Outra confirmação explícita da influência do Padroado pode ser percebida também na vida associativa dos colonos mineiros; isso quer dizer no surgimento e proliferação das asso-ciações religiosas que se estabeleceram no território das Minas Gerais. Como a Coroa portuguesa proibiu a entrada das Ordens Monásticas Primeiras (de frades) e Segundas (de freiras) na zona mineradora, as confrarias religiosas orga-nizadas e administradas por indivíduos leigos se alastraram de forma avassalado-ra por todas as vilas, arraiais e lugarejos da nova Capitania.

Em torno das igrejas de Conceição do Mato Dentro surgiam associações religiosas que tiveram importante papel na formação social, as confrarias, que receberam atenção muito especial por parte das autoridades eclesiásticas. (foto painel da paróquea de Córregos - autor desconhecido).

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qEssas agremiações tiveram um papel preponderante na vida dos indi-

víduos que para cá se deslocaram. Em primeiro lugar, elas representaram um espaço de exercício espiritual. As pessoas se associavam em torno da devoção de um santo, com o intuito de promover o seu culto, realizando a sua festa anual, promovendo novenas e procissões, além, é claro, de in-centivarem entre os associados a prática da caridade cristã e a observân-cia de todos aqueles deveres espirituais impostos pela religião católica.

No Brasil colonial, no entanto, essa finalidade expressamente espiri-tual foi extrapolada em muito por essas associações: em um mundo onde os indivíduos, como súditos, só tinham praticamente deveres a cumprir e nunca direitos a pleitear, as confrarias assumiram também um necessá-rio papel assistencialista. Aqui, funcionariam como “agências” funerárias e bancárias – as agremiações mais ricas emprestavam dinheiro a juros –, asilos e hospitais – como as Misericórdias, atualmente conhecidas por Santas Casas.

Além disso, essas associações religiosas ressoavam a própria estra-tificação social da sociedade mineradora e, nesse aspecto, atuaram historicamente na formação social de Minas Gerais, contribuindo para preservação das relações de dominação e submissão. Existiam, portan-to, as agremiações em que se agrupavam as pessoas de cor negra, sem, no entanto, vedarem a entrada de brancos de qualquer condição social, como as irmandades de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e Santa Ifigênia; as irmandades de mestiços e pardos, como as das Mercês e as Arquiconfrarias franciscanas; e, por fim, aquelas exclusivamente de pessoas brancas, como as irmandades do Senhor dos Passos, do Santíssi-mo Sacramento e as Ordens Terceiras de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo, que exigiam de seus confrades uma estável condição financeira e até a pureza de sangue.

Justamente por causa desse duplo caráter associativo e assistencia-lista, as confrarias receberam uma atenção muito especial por parte das autoridades eclesiásticas e, notadamente, a régia. Nesse aspecto, para o

funcionamento de uma irmandade não bastava somente a aprovação do ordinário eclesiástico local – no caso, o bispo –, como também a do próprio monarca. Inclusive, para agilizar essa exigência última, foi até criado, em 1532, um Tribunal régio especial, a Mesa de Consciência e Or-dens, que tinha, entre outras funções, a de fiscalizar os assuntos ligados a estabelecimentos piedosos de caridade, capelas, hospitais, ordens religio-sas, universidades, resgate de cativos, paróquias etc.*

Também em âmbito local essas confrarias se viram bem vigiadas, pois tinham que manter seus livros contábeis e os de registros diversos impecavelmente em dia, para que fossem submetidos periodicamente às vistas das ouvidorias das comarcas. Depreende-se disso, portanto, que as irmandades mineiras viveram sob um forte regime de controle político e fiscalista exercido pela Coroa, que enxergava nelas um importante alia-do, notadamente para cumprir aquele papel assistencialista que o Estado nunca se preocupou em exercer.

Como ocorreu nas vilas e arraiais das Minas Gerais, as primeiras ir-mandades a se estabelecerem no arraial de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro foram as do Santíssimo Sacramento, das Almas, de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora da Conceição.

A irmandade do Santíssimo Sacramento teve uma importância mui-to grande na vida religiosa dos fiéis do arraial. A sua difusão, como se sabe, prende-se ao destaque dado pelo Concílio de Trento à Eucaristia como mistério central da Igreja Católica. Dessa forma, além de participar ativamente da construção e manutenção do altar-mor da igreja matriz, cabia a essa confraria o embelezamento deste, o provimento da cera, que tinha de ser da melhor qualidade, a iluminação contínua do sacrário, o toque das campainhas e sinos nos momentos mais solenes da celebração eucarística e de outros atos de veneração do Sacramento; também per-tencia a ela a função de promover as cerimônias da Semana Santa e a procissão do Corpo de Deus (Corpus Christi) e todas as outras em que o Santíssimo saísse em custódia, ocasião em que os irmãos, trajados com a opa vermelha da agremiação, carregavam o pálio e mais insígnias – com

exceção da procissão do Corpo de Deus, na qual o pálio deveria ser leva-do pelos Cavaleiros das Ordens Militares, quando os houvesse (capítulo 17 de seu Compromisso).

Apesar de a irmandade asseverar no capítulo 8 de seu Compromisso que todo indivíduo de “qualquer qualidade e condição que seja tendo de bons costumes” podia figurar como irmão, era ela muito exigente quanto à condição econômica e racial de seus confrades; nesse aspecto, aliás, as elevadas taxas cobradas para ingresso, de mil e duzentos réis, e de anu-ais, de seiscentos réis, já impunham certa intimidação quanto ao acesso de qualquer indivíduo nessa agremiação.

Não se sabe ao certo quando a irmandade teve seu Compromisso aprovado; provavelmente, isso se deu no início de ereção da igreja ma-triz, já que os irmãos do Santíssimo tinham a função de prover com os fundos necessários para sua construção. Na visita eclesiástica ocorrida à freguesia de Conceição, no ano de 1725, o visitador faz referência à “nova irmandade do Santíssimo” , sugerindo, então, ser dessa época a sua instalação. Algumas décadas mais tarde, estando “sem statutos, por se haverem perdido os que com licença, confirmação e authoridade de prelado Diocezano” (capítulo 1 do Compromisso), a confraria resolveu confirmar em Portugal um novo Compromisso. Este foi aprovado pela rai-nha D. Maria I em 12 de janeiro de 1786, não sem antes ser a agremiação repreendida por ter funcionado muitos anos sem a devida confirmação régia, mas tão-somente por aquela passada pelo bispo diocesano – à épo-ca, do Bispado do Rio de Janeiro –, o que per si não era suficiente para o seu funcionamento, já que todas as irmandades se encontravam sob a jurisdição da Ordem de Cristo, cujo grão-mestre e administrador perpé-tuo são o próprio monarca.

A irmandade de São Miguel e Almas – ou simplesmente das Almas – marca também uma presença bem antiga na vida dos paroquianos de Conceição. O seu Compromisso foi aprovado em 16 de setembro de 1738 pelo bispo do Rio de Janeiro, Dom Frei Antônio de Guadalupe. Mas

somente em 1767 resolveu buscar a devida aprovação régia, o que veio a ocorrer em 23 de janeiro de 1768, não sem antes ter levado também uma “dura” do rei D. José por causa do longo tempo decorrido para a solicita-ção da licença. A irmandade das Almas de Conceição veio certamente se alojar no altar lateral direito da matriz – como comumente ocorreu com suas congêneres nas igrejas paroquiais mineiras –, e que hoje se encontra dedicado ao Sagrado Coração de Jesus.

A presença da morte no centro da vida comunitária dos vivos, através dos sepultamentos no interior e adro da igreja matriz, contribuiu para um contato permanente entre as duas comunidades, dos vivos e dos mor-tos. Transformar esse contato em um meio de Salvação era o objetivo do culto das almas do purgatório, de tradição muito antiga e forte em Por-tugal. A obrigação estrita da irmandade das Almas em acompanhar os defuntos à sua derradeira morada constitui-se em uma forma de solida-riedade, exigida, aliás, pela contribuição que em vida os irmãos davam à agremiação.

Cabia ainda à irmandade a promoção da festa de seu patrono, o arcanjo São Miguel, realizada no dia 29 de setembro; além do mais, seus confrades tinham por obrigação auxiliar todo irmão que caísse na pobre-za, ficasse enfermo ou estivesse preso em alguma cadeia pública (capítulo 22 de seu Compromisso).

A irmandade das Almas era democrática quanto à admissão de seus agregados, já que não impunha nenhuma condição no que se refere à situação social, econômica e racial do irmão, bastando apenas que este, na eminência da morte, tivesse interesse em ter um sepultamento digno e cristão.

A irmandade de Nossa Senhora do Rosário (que será tratada em capítulo à parte) é também uma das mais antigas de Conceição. O seu Compromisso foi estabelecido por volta de 1723, segundo nos informa o historiador Geraldo Dutra de Moraes, tendo sido seu funcionamento

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qinicial, pelo que tudo indica, no interior da igreja matriz, e somente mais tarde, devido a atritos raciais locais, seus irmãos resolveram construir uma capela própria.

Outra confraria a se instalar no altar lateral esquerdo da igreja ma-triz de Conceição foi a Ordem Terceira de São Francisco de Assis, o que veio a ocorrer por volta de 1757. Um aspecto curioso dessa Ordem que se constituiu em Conceição, segundo informações fornecidas por Geraldo Dutra, é que ela reuniu os homens “pardos” da freguesia, fato que con-trariou o ocorrido com as ordens franciscanas eretas em Vila Rica (atual Ouro Preto), Sabará, Mariana e São João del-Rei, que eram severamente segregadoras, vedando a entrada de pessoas que não possuíssem puro sangue, isto é, que fossem contaminadas até algumas gerações anteriores por sangue de mulatos, mouros e judeus. Fato, aliás, que gerou constantes conflitos entre essas poderosas Ordens e aquelas outras surgidas em loca-lidades periféricas, compostas exclusivamente por mulatos, intituladas de Arquiconfrarias de São Francisco.

Embora fosse de mulatos, a corporação franciscana de Conceição pa-rece não ter recebido nenhuma repressão por parte de suas congêneres mais abastadas, inclusive mantendo em seus livros internos e contábeis a denominação de Ordem Terceira e não de Arquiconfraria.

No âmbito espiritual, uma das funções das Ordens Terceiras francis-canas era a de promover a chamada procissão de Cinzas, que ocorria na Quarta-Feira de Cinzas. Em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, não há registro da realização dessa procissão, mas somente o ritual de imposição das cinzas, geralmente colocadas em cruz na testa do fiel pelo pároco, simbolizando a brevidade da vida e a necessidade de se fa-zer penitência. Com o advento dos terceiros, em meados do Setecentos, o ritual se transformou em suntuosa procissão, de onde saíam em andores os santos da Ordem, além de figuras alegóricas e testamentárias.

Conceição também presenciou essa procissão por mais de dois sécu-los, sempre promovida pela Ordem franciscana alojada em sua igreja ma-

triz. Geraldo Dutra, que presenciou uma dessas procissões já no início do século XX, procura nos transmitir em seu livro uma ideia do que foi essa solenidade:

Cerca de 46 figuras e 47 andores participavam da so-lene procissão, ainda sob os moldes coloniais. As figuras, ostentando riquíssimas fantasias, seguiam o longo itine-rário da procissão, na seguinte ordem, de conformidade com as passagens bíblicas:

Anjo Açucena, Adão, Eva, Caim, Abel, Abraão, meni-no Isaac, Noé, Cam, Judith, Rei Tirano, Sansão, Jafé, Rei Davi, Despresos do Mundo (5), Profetas (4), Moisés, José do Egito, Fradinhos (10), Anjos do Açoites (10) e Golias.

Descreve, logo depois, a ordem dos santos e santas que seguiam em procissão:

“São Joaquim, Santo Antônio, Santo Elias, Sant´Ana, Santa Cecília, São Geraldo, São Roque, São Francisco de Assiz, Santa Luzia, São Gonçalo, São Pedro, Nossa Senho-ra das Dôres, Santa Isabel, São Vicente Pregador, Amôr Divino, Os Cardiais, Santa Rita, Santa Tereza, Santa Rosa, São José, São Luis, São Braz, N. Senhora da Conceição, Santa Efigênia, São João Batista, São Luis-Rei de França, São Tomaz de Aquino, Santa Clara, Os Bem Casados, São Francisco dos Espinhos, São Boaventura, Convento, São Vicente de Paula, São João Evangelista, Maria Madale-na, São Miguel, São Crispim, São Francisco Penitente, São Manuel, N. Senhora do Rosário, São Bento, N. Senhora dos Anjos, São Luiz de Buaré, São José de Cupertino, Santa Margarida, São Francisco das Chagas e São Sebastião.

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

“Trata-se, pois, de uma constelação de imagens de santos e santas, a maioria em roca* – muitos já nem mais existentes –, retirados das igrejas de Conceição so-mente para a ocasião, e que na procissão eram alojados em andores enfeitados com flores, tecidos dourados e pa-pel laminado, carregados pelos confrades.

Geraldo Dutra narra também o ambiente que se formava em torno da procissão:

Era de ver a pompa do séquito de fidalgos, democra-ticâmente nivelados com o povo a subir a rua Direita, a ladeira zigue-zagueante que leva até a Igreja Matriz da milagrosa Virgem da Conceição do Mato Dentro. E o interior do Templo tinha nesse dia o deslumbramen-to dos contos das Mil e Uma Noites, com cintilações das roupagens dos nobres, salientadas pela profusão de luzes bruxoleantes das luminárias, toda uma “mis-em-scene” de apoteose cristã.

Corroborando o testemunho – exagerado – de Dutra há em um livro contábil da Ordem, conservado até os dias atuais, das despesas com as procissões ocorridas entre os anos de 1829 e 1850, que constam de pa-gamentos destinados ao contrato da música para o evento e confecção das vestes para algumas figuras “vivas” que saíam no cortejo; além da quantia paga para retirar a provisão anual necessária para a realização da procissão, perante a Diocese competente.

Falando ainda dos franciscanos, é importante ressaltar aqui que, fora do arraial de Conceição, existiu também uma Arquiconfraria de São

Francisco de Assis, ereta em 1815 na capela de São Francisco de Assis, situada no distrito de Costa Sena (antiga São Francisco da Paraúna).

A capela de São Francisco é bem antiga, tendo sido a provisão para sua edificação concedida pelo bispo Dom Frei Antônio de Guadalupe no ano de 1731. A partir de 1738 já havia registros de batizados, casamen-tos e enterros sendo ali realizados. Mas o surgimento da Arquiconfraria é mais recente: somente em 1814 os confrades elaboram os seus estatutos para a “regra de governo” da agremiação. E para fazer tudo dentro da forma da lei, enviam-na à autoridade régia para aprovação, pois têm o conhecimento de que somente à sua Majestade Real à época, para uma pequena comunidade que, pela altura de 1815, já via praticamente esgo-tados os veios de ouro que fizeram, há quase um século antes, a prosperi-dade do lugar.

Outra irmandade de presença antiga no arraial de Conceição é a de Nossa Senhora da Conceição. Não sabemos a data exata em que esta veio a se instalar dentro da igreja matriz, mas, com toda certeza, isso se deu no início da construção da capela primitiva, tendo essa confraria, inclusive, concorrido com os fundos necessários para as obras, juntamente com a irmandade do Santíssimo. É possível que o próprio Gabriel Ponce de Leon, o descobridor de ouro nessas paragens, tenha sido um de seus organizadores, pois sabemos que ele contribuiu para a cons-trução da primitiva igreja, além de ter mandado vir de Itu, em 1703, a imagem de Nossa Senhora da Conceição.

Além de participar da construção e conservação da igreja, a irman-dade da Conceição teve um importante papel na difusão do culto em tor-no da Imaculada Conceição da Virgem Maria, que em Portugal, assumiu um caráter de cunho nacionalista, a partir de 1646, quando o rei D. João IV proclamou Nossa Senhora da Conceição padroeira de todo o Império luso. Trata-se, no entanto, de uma devoção bastante cara à Igreja Cató-

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qlica, que até hoje, dada a complexidade teológica que envolve a questão, gera muitas confusões na cabeça de grande maioria dos católicos. A partir do Concílio de Trento (1563), porém, o culto teve que ser incentivado, mesmo com as dúvidas que o envolviam, no intento de se fazer frente aos ataques feitos pelos protestantes à Concepção Imaculada de Nossa Senhora.

Já a Confraria do Bom Jesus de Matosinhos, que veio insta-lar-se em Conceição por volta de 1759, será contemplada mais adiante em capítulo à parte.

Para finalizar, veremos como o Padroado influenciou de maneira marcante o cotidiano dos colonos. Aos olhos da so-ciedade atual, cada vez mais condicionada pelos aspectos ma-teriais da vida, torna-se muito difícil dimensionar o que foi o papel da religião na vida dos habitantes da colônia. Só para se dar uma ideia do que isso representou, pode-se verificar que hoje, um indivíduo pode perfeitamente nascer, casar, trabalhar e morrer sem nunca precisar de ter a bênção da Igreja. Mas outrora isso era praticamente impossível e, diga-se, até invi-ável. O Padroado permitia ao rei e a seu Estado maior, via religião, intrometer e normatizar toda a vida dos indivíduos: estes, ao nascerem, tinham que batizar e registrar na paróquia da freguesia em que viviam; o casamento se fazia somente com a aquiescência do pároco; no trabalho, seguiam os preceitos impostos pela religião, de respeitar os domingos, os dias e as horas santas; a educação era toda ela ministrada na moral e fé católica; e, por fim, no momento da morte a igreja estava presente nos últimos sacramentos e no enterro – e mesmo na abertura do testamento exigia-se a presença de um padre!

Dessa forma, dentro do sistema social implantado na co-lônia, o indivíduo não dava um passo sem fazer uma oração ou um sinal da cruz, e não levantava os olhos sem enxergar

primeiramente o edifício da igreja paroquial, sempre locali-zado em um plano de destaque – e que nas vilas, terá como contraponto, o prédio da Casa de Câmara e Cadeia, símbo-lo máximo do poder e justiça régia local. Mas também, e por outro lado, não conseguia nada na vida quem não seguisse a cartilha imposta pela religião católica. Ademais, se assim não procedesse, além das penas impostas pela Igreja – penitências, excomunhão, anátema e degredo –, o indivíduo se marginali-zava aos olhos do poder secular e econômico. Igreja e Estado também caminhavam juntos no caso de uma pessoa desviar extremamente do caminho da fé cristã: o eclesiástico, que não poderia manchar as mãos de sangue, conduzia a investigação e condenação através do Tribunal do Santo Ofício, ficando a cargo do braço secular da justiça régia aplicar a pena capital.

As autoridades da Igreja e da administração secular com-partilhavam uma ideia bem afinada sobre a sociedade minera-dora, notadamente nas suas primeiras décadas de formação, que para alguns não passava de um

(...) compete coferila, como Grão Mestre da Ordem de N. S. Jesus Christo e como tal, Prelado Ordinário com jurisdição espiritual e temporal em todas Igrejas, e Confrarias da América Por-tugueza e Ilhas por antiga Doação aos Senhores Reis D. Duarte, e D. Affonso 5 e confirmada pelo Santo Padre Calixto 3.

O Compromisso da Arquiconfraria de São Francisco de Pa-raúna foi então aprovado no Rio de Janeiro – onde se encon-trava instalada a Corte portuguesa desde 1808 – pelo príncipe

Conceição do Mato Dentro recebeu a partir de 1727 várias visitas pastorais, que tinham o objetivo de fiscalizar a vida dos fieis com ares de inquisição.

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qregente D. João VI, em 9 de março de 1814. Em seus 17 artigos, o Estatuto não estabelece nenhuma condição para a aceitação de seus irmãos; esta-belece apenas que ao entrar, estes deverão pagar a quantia de 1.800 réis e uma “libra de cera”. Quantia bem módica pedaço terrenal do inferno. Para o conde de Assumar, governador da Capitania de Minas e São Pau-lo (1717-1722), por exemplo, nas Minas tudo estava envolvido pelo ar de rebelião e revolta: a terra, o clima, os rios, asnuvens, enfim, toda “a natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como no inferno”. Poucos anos depois, Dom Frei Antônio de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, que por aqui esteve na função de visitador por três oportu-nidades, carregava esse quadro com tintas mais “demoníacas”, alertando para o “inveterado costume destas Minas de Pecar”.

(Devassa de 1727)

Decorreu disso o duplo e expansivo controle que se aplicou no terri-tório aurífero: a Coroa com a implantação de um rígido esquema de con-trole fiscalista e militar, com a criação de casas de fundições, quartéis,

companhias de militares e ordenanças, câmaras e cadeias públicas; a Igreja vigiando a população através dos párocos e das visitas diocesanas que os bispos ou seus representantes legais faziam pe-riodicamente às freguesias.

As visitas pastorais, que em Minas Gerais co-meçaram a ocorrer a partir de 1703, eram instru-

mentos quase eficientes que a Igreja dispunha para tentar exercer um tipo de controle sobre a sociedade. E não nos enganemos ao pensar que se objetivava apenas alcançar o lado espiritual e moral da questão. Tinha a ver também com os aspectos social e econômico e foi onde se misturavam os interesses da Igreja e da Coroa. Pecados da carne e de pensamento, crimes comuns, revoltas e motins, sonegações dos dízimos reais e eclesiás-

ticos, apesar da natureza distinta de cada um, tudo era imputado dentro de uma só ótica moralista, aquela praticada com o exclusivo intuito de se chegar a uma sociedade “normalizada”, livre de comportamentos hetero-doxos e desviantes. A ordem era eliminar toda a “heresia que o demônio tinha semeado”, no dizer do bispo Dom Frei João da Cruz (Visitação de 1745), que pudesse emperrar a dinâmica da exclusividade colonial, ou seja, produzir em grande escala o ouro. Afinal de contas foi para isso que se descobriu e colonizou as minas dos cataguases!

As visitas pastorais não serviram apenas, como se disse, para se vistoriarem as paróquias, com o intuito de instruírem seus párocos e fregueses na doutrina cristã, verificar as condições físicas e ornamentais das capelas e igrejas e a si-tuação dos cemitérios; essas visitas tinham também em mente avaliar o com-portamento de seus fregueses, e nesse ponto, funcionaram como uma espécie de “órgão farejador”, por assim dizer, do Tribunal da Inquisição, buscando por trás da aparente normalidade social indícios de comportamentos desviantes e heterodoxos. Diga-se que a natureza da religiosidade praticada na colônia, mesclando elementos do catolicismo europeu, com aqueles outros de traços judeus e africanos, propiciou sempre um clima de desconfiança por parte das altas camadas da hierarquia eclesiástica – as quais estava subordinado o Tri-bunal –, que tinham uma ideia de religião bem diferente daquela expressa e praticada pela camada popular. Nesse aspecto, essas visitas permitiram que bispos descobrissem “um povo rural que frequentemente não conhecia os ele-mentos de base do Cristianismo”.

A chegada de um bispo ou de seu preposto a um pequeno arraial pu-nha a comunidade em suspense e alvoroço: criava-se um clima de delação e de inquisição. Vizinhos, parentes e amigos tornavam-se denunciantes em potencial. Assim que se chegava aos ouvidos da autoridade eclesiásti-ca – ou mesmo civil – um caso de conduta considerada desviante, abria--se logo uma devassa: testemunhas eram ouvidas, longos interrogatórios eram realizados, até se chegar a um rol de provas contundentes contra o suspeito. E isso era apenas o começo, pois, dependendo da gravidade da

acusação ou de reincidências no “pecado”, o suspeito era enviado para Lisboa, a enfrentar as garras afiadas do Santo Ofício, cujo desfecho final, não poucas vezes, seria a morte ou o degredo.

A lógica disso hoje é fácil de compreender: para a Igreja existiam aqueles que estavam do lado de Cristo, do bem, e aqueles que estavam do lado do diabo, do mal. Afastar de Cristo, isto é, do seio da Igreja, era “cair” nos braços do demônio, compactuando com sua ótica depravada e desviante de vida. Por isso, a vigia por parte dos homens do clero era constante, e os meios empregados os mais diversificados possíveis. Nessas pastorais percebemos que os visitadores tentavam atacar o mal pela raiz, isto é, procuravam em primeiro lugar alertar e aconselhar os seus fre-gueses sobre o perigo que determinados tipos de comportamento podiam trazer, facilitando, assim, a atuação do diabo. Antes de punir, portanto, era necessário instruir!

Na freguesia de Conceição do Mato Dentro, fazendo parte destas Mi-nas onde se tinha o “inveterado costume de Pecar”, iremos perceber inú-meros exemplos desses “comportamentos desviantes e heterodoxos”, insu-flados pelo demônio; isso, entendido aqui, obviamente, dentro da ótica de pensamento dos homens de poder daquela época.

Desde a mais remota visitação a Conceição de que se tem notícia, em 1722, e nas outras subsequentes, é patente a preocupação dos visitadores – bispos ou seus delegados – com o comportamento social da comunida-de e com o cotidiano das pessoas. Em tudo se enxergava uma brecha para a entrada do diabo: nas festas, nas folgas do trabalho, na sensualidade das danças e relações amorosas, nos jogos e até mesmo na confecção de um simples chazinho de ervas domésticas.

De todas essas visitações podemos estabelecer três grupos relevantes de considerações (ou condenações) que os homens da Igreja teceram a respeito da freguesia de Conceição.

No primeiro grupo encontram-se as considerações feitas a respeito

do funcionamento das lojas e vendas nos domingos, dias santos, du-rante a missa das almas, da oração mental e da missa conventual, por ser causa de transgressão de muitos preceitos; para isso foi esta-belecida uma pena de duas oitavas para quem incorresse nesse abuso.

(Visitações de 1725, 1745 e 1759)

No segundo grupo se inserem as recomendações referentes aos Senho-res de escravos (mas nem sempre essa preocupação com os escravos esta-va acompanhada de um sentimento caridoso e piedoso; tinha a ver mais, talvez, com a tentativa de preservar um bem valioso na sociedade da época: o escravo). Assim, em primeiro lugar, computava-se como “escân-dalo pecaminoso” o ato de colocar os escravos para trabalharem nos do-mingos e dias santos (Visitação de 1745); outro abuso praticado pelos se-nhores consistia em não dar tudo aquilo que fosse necessário “de vestido e sustento” para a vida de seus escravos, ou mesmo “um dia da semana, que não seja domingo, para nele os ditos escravos o ganharem” (Visitação de 1745). Outra recomendação era para que os Senhores batizassem seus escravos até três meses após a sua aquisição, porque um tempo maior poderia trazer “notório prejuízo das suas almas pelos evidentes perigos em que andam” (Visitação de 1725). Ou, ainda, que “nenhuma pessoa de qualquer qualidade ou condição que seja enterre em lugar não sagrado a seus escravos” (Visitação de 1722). Condenava-se também aquele Se-nhor que permitia que seus escravos e escravas andassem amancebados, e a recomendação era para fazê-los contrair o matrimônio ou apartá-los dessa situação.

(Visitação de 1727)

Algumas reprovações, no que diz respeito aos escravos e negros, pro-curavam realçar o papel e status social de cada indivíduo dentro daque-la sociedade: “recomenda que os escravos não assistam à missa e aos ofícios divinos do arco-cruzeiro para dentro da capela-mor” ou “que as Pretas e Escravos não se sentem nem assistam dentro das grades, exceto

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qem dia de tanto concurso, que não caibam em outra parte da igreja” (Visitação de 1748). É bom lembrar, nesse aspecto, que no Brasil Colonial e em boa parte do século XIX, o espaço da igreja encontrava-se dividido em quatro recintos diferentes, cada qual reservado a um tipo de público: a capela-mor, re-servada aos organizadores do culto – as irmandades do San-tíssimo Sacramento, por exemplo; a parte central da nave, re-servado às mulheres livres e brancas, que ficavam “agachadas ou ajoelhadas”; as laterais da nave, separadas do centro pela balaustrada, eram reservadas aos homens livres ou “bons” da comunidade, que assistiam ao culto de pé; já o espaço em torno da porta, o átrio, era reservado às pessoas de cor, escravas ou livres, que ficavam de pé, “espiando os santos”.

Já o último grupo traz recomendações referentes às diversões e festas celebradas pelos fregueses. No caso das festas conside-radas profanas, os visitadores advertiam os moradores e, mais especificamente, as confrarias, que evitassem gastos supérfluos com aquelas comemorações “que mais ofendem que agradam a Deus”, tentando proibir a realização de “comédias, óperas, bai-les, máscaras e touros”. Também se condenavam os “jogos de bola” praticados pelos moradores do arraial, notadamente nos domingos e dias santos (Visitação de 1745). Por fim, havia uma recomendação muito especial contra as negras que admitiam em suas casas “as danças diabólicas chamadas batuques” .

(Visitação de 1764)

Mas na prática, o que se viu foi que as pessoas não se ini-biram com todas essas recomendações e advertências e, por ignorância, comodismo ou mesmo por conveniência, acaba-ram praticando esses comportamentos desviantes; abraçaram a causa do “diabo”, mesmo acendendo uma vela para Deus.

E isso é revelado pelo número elevado de devassas tiradas na freguesia de Conceição.

Não vale a pena aqui individualizar os casos de devassas – que não são poucas – tiradas na freguesia de Conceição. São devassas abertas referentes às mais diversas transgressões: in-júrias, prostituição, bebedeira, curandeirismo, desrespeito aos preceitos da religião e, as que mais preocuparam as autorida-des da época, as relações ilícitas extraconjugais e inter-raciais.

O concubinato foi uma prática muito usual naquele perí-odo, principalmente no que concerne ao relacionamento entre homens brancos com suas escravas. A escassez de mulheres brancas livres e o número elevado de homens e aventureiros estrangeiros solteiros e mesmo casados, mas cujas mulheres encontravam-se nas terras de origem, foi um fator preponde-rante para se incorrer nesse tipo de “pecado”. A Igreja sempre preocupou em coibir tais relacionamentos, sem muito sucesso, diga-se, recomendando aos párocos que não admitisse na deso-briga da quaresma forasteiros casados que não apresentassem uma licença de suas mulheres consentindo viverem sozinhos na colônia (Visitação de 1727). E no caso dos escravos, como se co-locou antes, solicitava aos seus Senhores que não os deixassem viver em amancebamento, tendo que para isso conduzi-los ao matrimônio ou afastá-los desse estado.

Um discurso que se coaduna com a política de coloniza-ção do Estado era promover a constituição de famílias oficiais, cujos relacionamentos afetivos, por serem regulamentados pela Igreja, inspiravam uma maior estabilidade social e econômica, e porque não dizer, também moral. Assim, o sistema se perpe-tuava, a Igreja mantinha o rebanho longe da “heresia semeada pelo demônio” e o rei agradecia!

Outro tipo de desvio que também preocupava a Igreja na

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qépoca está relacionado aos casos de feitiçaria, curandeirismo, adivinhações, benzeduras e uso de amuletos e talismãs consi-derados mágicos. Na freguesia de Conceição foram abertas al-gumas devassas relativas a esses casos. Para ilustrar, vamos fechar o capítulo, reproduzindo a devassa relativa a uma histó-ria bastante curiosa, mas que reflete bem a dicotomia existente, à época, entre a cultura oficial eclesiástica e a crendice popular:

Em 1752, Salvador de Carvalho Serra, mulato, oficial de se-leiro, morador no distrito de Itapanhoacanga, dirige-se até o arraial de Conceição para batizar o filho de seu irmão, Antônio de Carvalho Serra, oficial de sapateiro. Até aí, tudo bem. Mas sua desgraça começa quando, estando já na casa do irmão, recebe uma encomenda destinada a este e a guarda no bolso. A tal encomenda, na verdade, era um embrulho de papel conten-do uma “partícula” (hóstia) consagrada, e havia sido entregue a mando do pintor negro Antônio Correia de Aguiar, que era escravo de outro pintor, o alferes José Correia de Aguiar (diga--se que no período colonial era bastante usual o proprietário ensinar o seu ofício a um de seus escravos com a finalidade de tirar lucro com seu trabalho em alguma obra).

Uma denúncia, no entanto, levou o pároco da matriz – que pela época já deveria ser o vigário colado João Alves da Costa – e o sacristão até a casa do irmão de Salvador, procedendo ali uma busca minuciosa em toda a casa e em seus pertences, na procura das hóstias. Passados alguns dias depois desse ocor-rido, os dois irmãos foram presos, juntamente com o pintor Antônio Correia de Aguiar. Feitas as diligências normais da de-vassa, os três foram encaminhados para o Rio de Janeiro, onde permaneceram presos por longos três anos. Dali, os acusados foram remetidos para Lisboa, onde aportaram no ano de 1757. Na verdade, o processo refere-se somente ao réu Salvador de Carvalho Serra, mas presume que os outros dois tenham feito

a mesma rota.

A culpa imputada a Salvador – e também aos outros – era que este havia atentado contra os preceitos da Igreja Católica, especificamente contra o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, ao trazer uma hóstia consagrada, usá-la para outros fins que não aquele instituído por Cristo, para remissão dos pecados e salvação das Almas.

É importante salientar aqui que um costume muito comum no Brasil Colonial de tradição muito antiga, notadamente en-tre a população de zonas rurais, e que mesclava práticas euro-peias, africanas e mesmo indígenas, consistia no emprego de objetos ligados ao ritual da Igreja – como pedra d’ara, san-guinho (pequeno lenço usado para limpar o cálice) e hóstias – para finalidades mágicas e esotéricas. Acreditava-se que esses objetos encerravam forças e poderes sobrenaturais, e ao serem portados no pescoço ou trazidos no bolso em pequenos saqui-nhos – as chamadas bolsas de mandingas – fechavam o corpo do portador contra todas as forças do mal.

Por conta disso, então, Salvador Serra foi condenado pelo Tri-bunal do Santo Ofício: em 20 de setembro de 1761, foi ao auto de fé, ocorrido no claustro do Convento de São Domingos, em Lisboa, onde escutou a sentença e abjurou a sua leve suspeita na fé cristã. A pena foi o degredo, por dois anos, em Castro Marim, no Algarve.

Sabemos também, através de outro documento, que o pin-tor negro Antônio Correia de Aguiar, com 36 anos, natural da cidade de Angola, recebeu a mesma pena: dois anos de degredo em Costa Marim, “por dar duas partículas, que se diziam ser sagradas”. Não sabemos o destino do irmão de Salvador, An-tônio de Carvalho Serra, mas é provável que a ele tenha sido imputado o mesmo tipo de pena.

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a á g u a e s u a r e p r e s e n t a t i v i d a d e e s p i r i t u a l , p r e s e n t e s e m t o d a a h i s t ó r i a d e C o n c e i ç ã o .

( f o t o : d e t a l h e d a c a c h o e i r a d e t r ê s b a r r a s )

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qDetalhe da pintura lateral da sacristia da Igreja Matriz de N.Sra. da Conceição – Século XVII – autoria anônima)

Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Conceição, representa o sagrado feminino. (imagem original da Igreja Matriz, de origem portuguesa e autor desconhecido, doada pelo fundador Gabriel Ponce de Leon

a PaDroEiraO arquét ipo da Grande Mãe

Maria Lúcia de Almeida Ferreira

Conceição do Mato Dentro tem como Padroeira Nossa Sen-hora da Conceição, que o é igualmente do Brasil e de Por-tugal. o vasto e profundo simbolismo associado a essa in-vocação da Virgem tem raízes nos primórdios da história da humanidade, e é pouco conhecido não apenas entre os conceicionenses, mas também entre os demais brasileiros.

Os símbolos, no entanto, constituem o meio mais apropriado à transmissão das verdades superiores, pois eles nos remetem aos arquétipos ou imagens

primordiais, padrões de energia ocultos nos recônditos da nossa

memória ancestral, presente no que Jung chamou de inconsciente

coletivo. Por essa razão abordaremos aqui, de maneira sucinta,

o simbolismo dos principais atributos da Virgem da Conceição,

esperando, com isso, contribuir para uma compreensão maior do

significado espiritual da Padroeira.

Dentre esses arquétipos ou imagens primordiais, ressalta o da Grande Mãe, ou Princípio Feminino da Divindade, relacio-nado à força misteriosa geradora de vida presente no Universo e em cada um de nós. É a figura central do antigo mito matriar-cal da criação do mundo – um mito segundo o qual todos os elementos surgiram do útero de uma Grande Mãe Universal. As diversas deusas, honradas desde os primórdios da humanida-de, são facetas ou emanações desse Sagrado Feminino, símbolo da Sabedoria e da harmonização e integração dos opostos.

Na mitologia do antigo Egito, por exemplo, destacam-se como mães divinas Nut, Hathor e Ísis. Na Mesopotâmia, exis-tem indicações da veneração a uma grande deusa – Inanna, posteriormente identificada com Ishtar e também com Astarté, a divindade semítica das águas fertilizantes. Na Grécia antiga destacam-se Geia, Hera e Deméter como manifestações do Sa-grado Feminino, em seu aspecto de Grande Mãe. Em Roma, Ci-bele, a deusa frígia da fertilidade, simbolizada por uma pedra negra, tornou-se a Magna Mater do Império.

a repressão ao Sagrado feminino

Com o advento do patriarcado e, posteriormente, das re-ligiões monoteístas, como o judaísmo, o cristianismo e o isla-mismo, constituídas em torno de um único deus masculino, estabeleceu-se um processo de violenta repressão às antigas tra-dições religiosas, caracterizadas pelo culto da natureza, onde reinava a Grande Deusa Mãe. Esse processo, a princípio lento e gradual, intensificou-se no decorrer dos séculos e culminou com

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qa ascensão do cristianismo à condição de religião oficial do Império Romano. Populações inteiras foram forçadas a aban-donar as crenças que abraçavam havia centenas de gerações para se converter à fé cristã, e o culto do Sagrado Feminino, havendo se tornado proscrito, sobreviveria apenas mediante práticas camufladas.

o ressurgimento do Sagrado feminino

Entretanto, à medida que o cristianismo se expandia pe-las regiões exteriores à Judeia, deixava de depender exclusiva-mente do paradigma judaico, passando a sofrer influências e assimilar elementos de culturas assentadas em mitologias an-cestrais nas quais as deusas mães desempenhavam um papel primordial. Nesse cenário, ressurge o culto do Sagrado Femini-no nas sociedades cristianizadas, com a devoção cada vez mais fervorosa a Maria, que recebe os epítetos das antigas manifesta-ções desse poderoso arquétipo e incorpora os símbolos cósmicos e telúricos a ele associados: é a Mãe de Deus, ou Mãe Divina, tal como Ísis, Hathor, Hera e Cibele; é Virgem, como Héstia, Artêmis ou Atena; e é Rainha, como Ísis e Hera.

Em 431, o Concílio de Éfeso proclamou como dogma a ma-ternidade divina de Maria, que, assim, recebeu oficialmente o título de Theotókos (Mãe de Deus), com a aprovação da tese segundo a qual ela é a mãe não apenas da natureza humana de Cristo, mas também da sua natureza divina. A virgindade perpétua de Maria, declarada em concílios e sínodos, foi defini-da como dogma pelo papa Paulo IV na bula Cum quorundam hominum, promulgada em 1555.

Séculos mais tarde, em 1º de novembro de 1950, o papa Pio XII, pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, pro-clamou o dogma da Assunção, segundo o qual a Virgem fora

elevada, em corpo e alma, à glória celeste, o que nos recorda o mito grego de Sêmele, a mãe originariamente mortal de Dioní-sio. Cumpre observar, a esse repeito, que, pela sua assunção ao Céu, Maria se aproximou de tal forma da Santíssima Trindade que passou a integrá-la sob o aspecto de um quarto elemento – o feminino em Deus. O interessante é que, séculos antes de ser definido o dogma, ela já era representada, na arte cristã, junto à Santíssima Trindade, em cenas que mostram a sua coroação como Rainha do Céu e da Terra.

Tais representações eram o prenúncio daquilo que futura-mente os doutores da Igreja haveriam de reconhecer, mas que Maria já havia há muito conquistado entre os corações dos fi-éis. A Grande Mãe, a Sofia dos alquimistas, a Divina Instrutora, que ensinara à humanidade o cultivo da terra e do espírito, soubera pacientemente abrir o seu caminho, e ressurgia, triun-fante, sob a forma de uma hierofania cristã – a Virgem Maria, invocada em todo o mundo por uma infinidade de títulos, o que nos remete ao culto de Ísis, “a deusa dos dez mil nomes”.

Nossa Senhora da ConceiçãoO dogma da Imaculada Conceição, diferentemente dos de-

mais dogmas marianos, não encontra paralelo nas mitologias das sociedades arcaicas, pelo fato de estar ligado a um conceito específico da cultura judaico-cristã: o do pecado original. Na verdade, desde o século VIII, já se celebrava no Oriente a festa da Concepção da Virgem, que tinha também o nome de festa da Concepção de Ana. Mas foi a partir do século XII, na Ingla-terra, que ela passou a ter o sentido que lhe damos hoje, isto é, o da isenção de Maria do pecado original desde a concepção. Da Inglaterra esse costume se difundiu por toda a Europa, mas encontrou fortes adversários entre os doutores da Igreja, que contestavam a sua legitimidade.

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qCom o transcurso do tempo, a polêmica em torno da doutri-

na da Imaculada Conceição tornou-se cada vez mais acirrada, provocando a tenaz oposição de grandes teólogos, que a repu-diavam por achá-la incompatível com a universalidade do pe-cado original e da redenção por Cristo. Os seus mais ardorosos defensores e propagadores eram, sem dúvida, os franciscanos, talvez porque, em conformidade com o ideal do seu fundador, sempre estiveram mais próximos do povo e do seu senso de fé.

Na passagem do século XIII para o XIV, a teologia francis-cana a respeito da Imaculada Conceição alcançou substanciais avanços, em especial com a tese da “redenção preventiva” de

John Duns Scotus: o fato de ter sido a Virgem antecipadamente preservada do pecado original, ao invés de subtraí-la da redenção universal efetuada por seu Filho, constituiria, ao contrário, “o caso mais perfeito e eficaz de ação salvífica do único Mediador Jesus Cristo”. Essa

tese teria o mérito de ser retomada no século XIX pelo papa Pio IX, quando da solene definição do dogma da Imaculada Conceição de Maria pela bula Ineffabilis Deus, no dia 8 de de-zembro de 1854, perante a multidão que lotava a basílica de São Pedro.

A despeito dos debates travados entre os doutores da Igreja, o que prevaleceu efetivamente, no longo processo que levou à definição do dogma, foi o senso dos fiéis, ou seja, a intuição do povo acerca de uma verdade de fé. Nesse caso, ele se manifes-tava não apenas no costume de se celebrar a festa da Virgem da Conceição, mas também no chamado “voto de sangue” – o juramento solene de assumir a defesa da Imaculada, até com o derramamento do próprio sangue –, feito por universidades,

ordens religiosas e até monarquias, como as de Portugal e Es-panha. Acrescente-se ainda a abundante iconografia produzida em torno do tema, a profusão de altares e capelas consagrados a Nossa Senhora da Conceição e as aparições marianas alusi-vas a esse privilégio da Virgem.

É pertinente ressaltar que o arquétipo vinculado a Nos-sa Senhora da Conceição está relacionado com as profecias so-bre a vinda do Paracleto – o Divino Espírito Santo –, de acordo com a doutrina concebida pelo abade cisterciense Joaquim de Fiore no século XII, segundo a qual se sucederiam três estágios na história da humanidade, cada um sob a égide de uma pes-soa da Trindade: o do Pai, vivido sob a lei; o do Filho, sob a graça; e, finalmente, o do Espírito Santo – um estágio de plena compreensão, liberdade, contemplação e caridade.

Os principais responsáveis pela difusão dessa doutri-na foram os franciscanos, que tiveram influência relevante em Portugal, onde o culto do Espírito Santo se expressa de modo particular na Festa do Divino – a celebração do advento de um tempo de paz e de confraternização universal no qual o mundo será regido pelo Espírito Santo, que trará a “nova terra” e o “novo céu” de que nos fala o Apocalipse.

(Ap 21:1)

Significativamente, diz uma passagem do referido texto bí-blico: “E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida de Sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça” (Ap 12:1). Esses são atributos da Imaculada Conceição como manifestação do Sagrado Femini-no, arquétipo que representa a integração das polaridades, a unidade na diversidade, a compaixão e a capacidade de ver o

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Detalhe da base da imagem de N.Sra. da Conceição, onde se vê a serpente com a maça. A serpente, de caráter lunar e telúrico, é associada à fecundidade, à regeneração cíclica e às cerimônias de iniciação, além de simbolizar a sabedoria e o conhecimento oculto.

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qDivino na Natureza e em todos os seres.

Realmente, observa-se, no mundo inteiro, o desenvolvimen-to gradual de um processo de descoberta e valorização dos as-pectos relacionados ao ressurgimento desse arquétipo em nossa época. De uma sociedade patriarcal, baseada no predomínio do masculino e da racionalidade, estamos passando para uma sociedade na qual se impõem, cada vez mais, o feminino e a in-tuição, e na qual a competição, a força e individualismo cedem lugar à cooperação, à compreensão e à solidariedade.

Também é digno de nota o fato de que, atualmente, reli-giosos católicos já estejam aceitando uma visão de Deus como Mãe. No dizer do teólogo Leonardo Boff, “quiçá é chegado hoje o tempo em que a outra face de Deus, feminina, materna, tenha encontrado condições históricas de se revelar”. Para ele, essa revelação se faria por meio da Virgem, principalmente por sua estreita ligação com o Espírito Santo, que, significativamente, “é feminino em hebraico (ruah) e está sempre associado ao mis-tério da Vida, da Graça, da Geração, como no caso de Maria, que, sob a potência do Espírito, concebeu Jesus Cristo”.

Padroeira do Brasil e de PortugalA devoção a Nossa Senhora da Conceição, que faz parte

das mais antigas tradições brasileiras, constitui um legado recebido de Portugal, não apenas em termos de piedade po-pular, mas também em caráter oficial. Com efeito, em 1646, o rei D. João IV, pela Provisão Régia de 25 de março do referido ano, proclamou oficialmente a Virgem da Conceição – represen-tada pela imagem cultuada na capela ducal da Casa de Bra-gança, em Vila Viçosa –, Padroeira do Reino de Portugal e de seus domínios ultramarinos, dentre os quais se incluía o Brasil. Entretanto, muito antes da ascensão de D. João IV ao trono por-

tuguês, o território brasileiro já vivia sob a proteção de Maria Imaculada, cujo culto aqui se disseminara em grande escala, graças, especialmente, à ação dos missionários franciscanos.

No dia 7 de setembro de 1822, o Brasil teve proclamada a sua independência, e é assaz significativo que o nosso primeiro imperador, D. Pedro I, tenha sido aclamado no Campo de San-tana, precisamente o local onde, todos os anos, era coroado o “imperador” na Festa do Divino. Ressalte-se, ainda, que a sua aclamação ocorreu em 12 de outubro, ou seja, no mesmo dia e mês em que, um século antes, fora encontrada no rio Paraíba do Sul uma pequenina imagem de Nossa Senhora da Conceição, declarada oficialmente, em 1930, a Padroeira do Brasil, com o carinhoso epíteto de “Aparecida”.

a devoção à Padroeira em ConceiçãoA religião católica chegou ao território das Gerais em fins do

século XVII, com os primeiros aventureiros que palmilharam os seus sertões, seguindo o curso dos rios, em busca de ouro, prata e pedras preciosas. Com efeito, os bandeirantes, homens rudes, mas de incontestável espírito religioso, ao se lançarem a suas empreitadas, faziam-no sempre sob o patrocínio do santo de sua devoção, consti-tuindo-se, assim, em “verdadeiros arautos da fé”.

Nas palavras do historiador Célio Macedo Alves, Minas foi criada sob o signo da devoção a Nossa Senhora da Conceição – um dos chamados santos “bandeirantes”, trazidos pelos ex-ploradores paulistas e reinóis ao território das Gerais. Ali o seu culto teve, e tem até hoje, grande relevância, como demonstram as muitas capelas e igrejas a ela consagradas e o significativo número de imagens suas em altares de outros templos.

A expansão das associações leigas – irmandades, confra-rias ou ordens terceiras –, decorrente da proibição do estabe-

O manto da imagem de Nossa Senhora da Conceição tem um simbolismo associado ao vento, sinônimo do ‘sopro de Deus” Significa também dignidade e proteção, além de representar a retirada para dentro de si mesmo.

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qlecimento de ordens regulares em terras mineiras, constituiu fator decisivo para o estabelecimento de uma religiosidade pró-pria das Gerais, de base eminentemente popular. No tocante ao estabelecimento de tais associações em Conceição, conta-nos o historiador Geraldo Dutra de Morais, embora não nos forneça a data, que a primeira irmandade a ser criada no arraial foi a da Imaculada Conceição do Mato Dentro.

Até o final do século XVIII, quando teve início o declínio da produção aurífera, as igrejas constituíam o centro da vida social e cultural das vilas e arraiais mineiros. Na obra História de Conceição do Mato Dentro, relata-nos o citado historiador a saga dos conceicionenses para concretizar o sonho de ter a sua igreja matriz, “construída com muito sacrifício, muito suor e muitas lágrimas”. As obras, que teriam sido iniciadas entre os anos de 1714 – 1715, levaram praticamente um século para se-rem concluídas, pois a bênção inaugural do templo só ocorreria no dia 6 de novembro de 1802.

O autor descreve pormenorizadamente a igreja, “uma joia da arte barroca, pela harmonia de sua arquitetura e pela de-monstração artística da época”, requintada adaptação da “feição peculiar da estrutura jesuítica ao barroco português”. Destaca, sobretudo, a beleza do altar-mor e do trono da Pa-droeira, “sobreposto ao tabernáculo em seis vãos, em forma de pirâmide, com baixos relevos representando conchas marinhas e incrustações com desenhos clássicos”.

Observa ainda o “cunho de grandiosidade e fé cristã” que, desde os mais remotos tempos, tiveram as festividades religiosas celebradas na igreja matriz. Era ali que os con-ceicionenses, no dia 8 de dezembro, homenageavam a sua Padroeira, com novena e missa seguidas de leilões, barracas e apresentação de banda de música. Outra grande celebração em louvor à Imaculada Conceição, realizada em maio, era a

do Mês de Maria. Descreve-a Joaquim Ribeiro Costa, na obra Conceição do Mato Dentro: fonte da saudade, como uma “festa encantadora do ponto de vista social, não só pelo seu elevado conteúdo de piedade e ternura para com a Virgem Santíssima, senão também pelo interesse e entusiasmo com que dela parti-cipam as famílias, no carinhoso preparo de meninas em grande número para as tocantes cerimônias da coroação”.

Depoimentos de pessoas que residem ou já residiram na cida-de revelam que as festividades em homenagem à Padroeira eram organizadas por antigas Filhas de Maria, oriundas do tradicional Colégio São Joaquim, outrora administrado pelas irmãs clarissas franciscanas. Frei Júlio Cezar Borges do Amaral, que durante quatro anos estudou no internato do Ginásio São Francisco, em Conceição, e foi vigário da Paróquia no período de 1982 a 1987, destaca o admirável papel desempenhado por essas piedosas se-nhoras, no seu incansável afã de perpetuar as tradições locais:Na época em que exerci o ministério sacerdotal em Conceição, havia o costume de se celebrar a festa da Padroeira com novena e bar-raquinhas no adro da igreja matriz, porém o afluxo de fiéis já era menor. Eu observava mais um grupo de senhoras com devoção específica a Nossa Senhora da Conceição. Antigamente, as moças das famílias principais, quando entravam na adolescência, iam ser Filhas de Maria, e havia ainda a influência do famoso Colégio São Joaquim. Aquelas senhoras todas passaram pelo Colégio das Irmãs, grandes incentivadoras dessa devoção.

Mas o mês de maio, dedicado a Nossa Senhora, era festeja-do o mês todo, com um entusiasmo muito grande e a coroação da imagem da Padroeira. Terezinha Utsch, exímia pianista, que agora está em Belo Horizonte, incentivava muito as coroações. Enchia o altar de Nossa Senhora com mais de 60 anjos. Aí os pais – as mães, nem se fala – iam ver as filhinhas lá em cima,

Altar-mor de Nossa Senhora da Conceição, em cujo trono fica exposta a imagem da santa. Igreja da Matriz – Conceição do Mato Dentro-MG

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qtiravam fotografias. Então, havia essa devoção a Nossa Senhora no mês de maio.

Acho que o fato do Jubileu do Bom Jesus de Matozinhos ser uma festa, vamos dizer, ‘de arromba’, faz com que diminua o enfoque na Padroeira. Também há a festa de Nossa Senhora do Rosário, uma festa popular, com doce, bebida, todo um lado folclórico, e a de São Sebastião, que, em Minas, ofusca pratica-mente quase todo padroeiro. Em Conceição, a sua novena, feita na igreja do Rosário, entusiasma o pároco, e há ainda o lado folclórico das barracas e dos famosos leilões...

D. Conceição Guerra Corrêa, oitenta e um anos, professora aposentada, recebeu esse nome porque, no dia 8 de dezembro, a procissão de Nossa Senhora da Conceição estava passando em frente à porta da sua casa bem na hora do seu nascimento. Filha de Maria de 1948 a 1951, ela assim se refere às celebrações em homenagem à Virgem Imaculada:

A devoção à Padroeira se expressava com missas, terços, novenas, procissões, coroações, toque da banda de música e a presença de muitos devotos da Imaculada Conceição. A festa de Nossa Senhora da Conceição continua, com procissão e missa na igreja do Rosário, por estar o prédio da matriz fechado, sem condições de funcionamento. Hoje, ela é bem mais simples, mas feita com muita devoção a Nossa Senhora. As festividades do Mês de Maria eram muito animadas, consistindo de missa, reza da novena, terços, Ofício de Nossa Senhora, cantado pelos fiéis, e coroação de Nossa Senhora pelas crianças vestidas de anjo e preparadas pela Filha de Maria Terezinha Utsch Carneiro, que hoje se encontra morando em Belo Horizonte.

Padre Marcello Romano, nascido em Conceição do Mato Dentro e vigário da Paróquia no período de 2001 a 2008, des-

creve, em tom saudoso e emocionado, as celebrações em louvor à Padroeira, ressaltando a necessidade de se resgatarem os an-tigos valores e tradições da cidade:

Lembro-me das festas em honra de Nossa Senhora da Concei-ção, padroeira de Conceição do Mato Dentro, minha terra natal. A novena em preparação à festa acontecia no final do mês de novembro (dia 30) e início do mês de dezembro (dias 1º a 8). Havia missa bonita, na qual o padre pregava normalmente sobre algum tema mariano, como as expres-sões dirigidas a Nossa Senhora no Ofício ou La-dainha. A gente achava bonito, misterioso, e engraçado também. Tudo ao mesmo tempo. Depois da missa se rezava a novena e tudo era finalizado com a coroação de Nossa Senhora. Que bele-za! Tantos anjos espalhados pelo trono encimado pela imagem de Nossa Senhora da Conceição! Anjos com asas e sem asas, meninas e, às vezes, meninos também. Cada um com sua veste colorida, de cetim reluzente: azul, branco, rosa. Era a antecipação do Céu. A liturgia terrestre era figura da liturgia celeste. Era tudo tão bonito que eu pensava que o Céu é que imitava a Terra! As mães ficavam todas orgulhosas. Suas crianças eram anjos, pelo menos naqueles dias. E Terezinha, com seu acordeão superafinado, puxando os primeiros tons. De vez em quando, uma criança desatava a cho-rar. A mãe, meio sem jeito, precisava tirá-la do altar. Depois de tudo, havia barraquinhas, leilões, bingos, etc. Era uma animação geral.

No dia da festa, 8 de dezembro, havia missa solene às dez horas da manhã e, à noite, procissão e missa de encerramento das festividades em honra de Maria. O perfume das flores que enfeitavam o andor e os altares se espalhava pela igreja afora. Cheiro quase doce das rosas...

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

A perfeição das formas e dos detalhes do altar lateral no interior da Matriz impressiona, mostrando o sacrário rodeado por anjos.

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qCom o passar do tempo, essas coisas foram se acabando.

Por que motivo? Quem sabe? Penso que as chuvas de dezembro prejudicavam um pouco. Quase sempre caía uma chuva tor-rencial em dezembro. A gente passava dias sem sair de casa. Depois, aconteciam as festas do Natal, do Rosário e de São Se-bastião, com forte apelo popular. Dependia muito também do padre que estivesse à frente da Paróquia. Às vezes, só se rezava um tríduo, e bastava! O certo é que a festa quase se acabou. Pelo menos, perdeu muito em expressão.

Quando cheguei a Conceição, em 2001, pensei logo em res-gatar a festa. Não era possível a Festa da Padroeira e Rainha do povo conceicionense ser uma festa menor. Comemoraríamos, em 2002, 250 anos da Paróquia, 300 anos de Conceição. Era uma bênção! Não havia ocasião melhor que essa! Mas os as-pectos políticos da comemoração dos 300 anos, de certa for-ma, ofuscaram o brilho que se pretendia com os 250 anos da Paróquia e o resgate da Festa da Padroeira. Deu a impressão de uma comemoração paralela. Realizamos missas bonitas, novena bem preparada e com muita participação dos fiéis. Te-rezinha ensaiou as crianças para a coroação. Mas ela já de-monstrava sinais de certo cansaço. Não havia pessoas que pu-dessem ajudá-la. As mães não incentivavam os filhos e filhas. As próprias crianças pareciam não ver ‘graça’ naquilo. Os tempos mudaram! A piedade parecia não estar mais tão presente na vida das pessoas e das famílias. Foi pena! Aí surgiu a questão da matriz, que teve de ser fechada em 2004 – 2005, devido ao péssimo estado de conservação.

Essas observações que faço se estendem também ao mês de maio. As pessoas mais velhas e conhecedoras dos costumes e tradições vão nos deixando, pessoas novas vão surgindo... e se estabelece um certo choque cultural. O que é valor pra uns,

pode não ser pra outros. Conceição tem deixado de lutar pelos seus valores. É preciso desenvolver uma cultura de ‘resistência pacífica’, que dialogue e interaja com outras formas de ser, pen-sar e fazer. Mas sem abrir mão da própria identidade, sem a qual não nos reconhecemos mais.

o simbolismo iconográfico da imagem

A representação da Virgem na imagem da Padroeira, trazi-da de Itu por ordem de Gabriel Ponce de Leon e entronizada, em 1703, na pequena capela construída por ocasião da fun-dação do arraial, segue a iconografia genérica da Imaculada: uma bela jovem, de semblante sereno, cabelos longos e mãos postas, vestindo uma túnica branca, véu dourado e manto esvoaçante, azul por fora e vermelho por dentro, de pé sobre um globo encimado por espirais de nuvens e cabeças aladas, ao redor do qual se enrosca Analisando a imagem de madeira dourada e policromada, com aproximadamente 90 centímetros de altura, por meio de fotografias coloridas, tiradas de vários ângulos, a professora Helena Pavão, museóloga especialista em iconografia religiosa e coordenadora do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra, da Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro, assim se expressou:

Essa imagem é simplesmente maravilhosa. Linda, linda, linda. Apresenta características de imagem portuguesa muito evoluída e muito moderna para a época. Por exemplo, esse cru-zamento de cabelo e de véu é muito evoluído. Pela posição do véu, passando pela nuca, e a cabeleira, bastante trabalhada, por cima dele, a imagem parece ter sido feita por um português, pois não havia aqui no Brasil escola para se fazer uma imagem desse jeito. Além disso, o manto apresenta uma espécie de pala nas costas, de onde sai um franzido. Nas túnicas brasileiras,

Tarja do altar-mor com o monograma de Nossa Senhora, significando a Ave-Maria.

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qa frente é muito trabalhada, mas a parte de trás geralmente é lisa. Esse babado na barra da saia da Virgem também não se fazia no Brasil. São esses pequeninos detalhes que se devem ir comparando. Observe-se ainda o joelho esquerdo flexionado, dando a ideia de que o pé está apoiado em alguma coisa, mas sem dar para ver o sapatinho, porque na arte portuguesa não aparece o sapato, só o contorno.

As feições da imagem e a dobrinha no queixo também são características de um trabalho português. E estas volutas, mos-trando que a Virgem está apoiada em nuvens, se feitas por bra-sileiros, seriam muitíssimo mais simples. Finalmente, a base escalonada e chanfrada é bastante trabalhada, e aqui não se faziam bases assim. Ela também fornece indicações quanto à possível procedência da imagem. Se não existe um documento nesse sentido, há que se analisar o tipo de madeira. Como é de cedro, pode-se dizer que é trabalho português, mas feito no Brasil, pois, se fosse em Portugal, seria de carvalho, castanho, etc., nunca de cedro. A não ser que o cedro tivesse ido para lá, porque as madeiras iam como lastro nos navios e voltavam de-pois, como esculturas. Mas, de todo jeito, a mão que trabalhou essa imagem é portuguesa.

Pode-se identificar um santo, ou divindade, por meio dos atributos, reais ou simbólicos, com os quais é retratado em pin-turas ou esculturas ao longo do tempo. A iconografia de Nossa Senhora da Conceição é constituída de símbolos muito arcai-cos, associados a antigas representações do Sagrado Feminino e incorporados, com novas roupagens, ao imaginário simbólico do cristianismo. Aqui apresentaremos apenas uma síntese do simbolismo contido nos atributos da imagem da Padroeira de Conceição do Mato Dentro.

Nessa representação, a Imaculada usa uma túnica branca,

véu dourado e manto esvoaçante, azul por fora e vermelho por dentro. O manto é sinal de dignidade e de proteção, além de expressar “a retirada para dentro de si mesmo e para junto de Deus” e “a consequente separação do mundo e de suas tenta-ções”. Também é símbolo de sabedoria, associado à Sofia dos gnósticos e dos alquimistas – a personificação da sabedoria di-vina feminina. O véu, por sua vez, simboliza o conhecimento, oculto ou revelado, e a separação entre o sagrado e o profano.

O branco, relacionado à pureza e à virgindade, é “a cor da revelação, da graça, da transfiguração que deslumbra e desper-ta o entendimento, ao mesmo tempo em que o ultrapassa”. Ele e o azul, “cores marianas, exprimem o desapego aos valores deste mundo e o arremesso da alma liberada em direção a Deus”. O vermelho, símbolo do princípio da vida, do amor e da força, “é a cor da Ciência, do Conhecimento esotérico, interdito aos não-iniciados, que os sábios dissimulam sob o seu manto”. Por isso, nas lâminas do Tarô, o Eremita, a Papisa e a Imperatriz, que, em graus diversos, representam a ciência secreta, usam vestes vermelhas sob uma capa ou manto azul. Finalmente, a cor dourada representa o ouro, “a luz mineral”, de caráter ígneo, solar, real e divino.

A professora Helena Pavão observou o trabalho, “mui-to bem- feito”, de movimentação do véu e do manto na imagem da Padroeira:

“Esse movimento, nas imagens, é chamado de vento místi-co, pois só um vento de Deus faria esse milagre de movimentar os dois lados do véu.” O vento, efetivamente, é sinônimo do so-pro de Deus, “do influxo espiritual de origem divina”. No Livro do Gênesis, o “Espírito de Deus” que “pairava sobre a face das

Coroamento do sacrário do altar-mor de Nossa Senhora da Conceição – Século XVIII

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qáguas” (Gn 1:2) é denominado “vento”, “sopro” – em hebraico, ruah, palavra feminina usada para designar o Espírito Santo. Segundo outro texto bíblico, um “vento impetuoso”, no Dia de Pentecostes, trouxe aos Apóstolos o Divino Espírito Santo, sob a forma de línguas de fogo (At 2: 2-4). Todo esse simbolismo remete-nos à estreita ligação, já enfatizada, entre Maria e a ter-ceira pessoa da Santíssima Trindade.

Quando entronizada no altar-mor da igreja matriz, a ima-gem da Virgem fica envolta por belo resplendor raiado em for-ma de amêndoa, com um metro e noventa de altura, ornado por espirais de nuvens onde sobressaem cabeças aladas, repre-sentando querubins, e dois pequenos anjos, um de cada lado. Essa auréola elíptica traduz iconograficamente a expressão “vestida de sol”, referente à mulher de que trata o cap. 12 do Apocalipse, pois os seus raios representam uma “irradiação de origem solar” que “indica o sagrado, a santidade, o divino”. No início dos tempos, o Sol – fonte da luz, do calor e da vida – era atributo do Sagrado Feminino, como evidencia o disco solar no toucado de diversas deusas mães da Antiguidade, como Ísis e Hathor. Observe-se, ainda, que certas aparições marianas, den-tre as quais se destaca a de Fátima, têm se caracterizado pela ocorrência de fenômenos solares.

A Imaculada Conceição está de pé sobre um globo encimado por espirais de nuvens de onde surgem querubins. As nuvens pertencem ao plano celeste e têm um caráter hierofânico, na medida em que anunciam a manifestação do sagrado, confor-me exemplos contidos em textos bíblicos e nas mitologias de diferentes povos, que nos falam de deuses aparecendo em meio a nuvens. Os querubins são espíritos puros e incorpóreos, repre-sentados, nas pinturas e esculturas, por cabeças aladas. Assim como guardavam a Arca da Aliança no Templo de Salomão, (Ex

25: 18-22) eles guardam a Virgem, pois ela “é a ‘arca’ que abri-ga o Altíssimo, o Santo dos Santos”, símbolo da nova aliança entre Deus e os homens.

O globo representa o mundo da manifestação, o reino te-lúrico, associado ao plano físico. Sendo também “símbolo da criação, do poder – imagem da soberania universal” –, e es-tando sob os pés da Virgem, simboliza o seu domínio sobre todo o mundo criado. Aliás, a forma como estão dispostos esses três atributos – globo, nuvens e querubins –, associada à coroa, ex-pressa a majestade de Maria e a sua glorificação como Rainha do Céu e da Terra.

A coroa, “em razão de sua origem solar, simboliza o poder régio ou, melhor ainda, o poder divino”. Entre os atributos da mulher do Apocalipse, uma das principais fontes da iconogra-fia simbólica da Imaculada, figura uma coroa de 12 estrelas, mas a imagem da Padroeira tem sobre a cabeça um resplendor raiado, que não é o original, como afirma a professora Helena Pavão:

O português faria um resplendor com 12 estrelas, que é o símbolo da Imaculada Conceição. Nossa Senhora não usa res-plendor, a não ser nas imagens dolorosas, como a de Nossa Senhora das Dores, que podem usar um resplendor com sete estrelas – as sete dores de Nossa Senhora. Mas a Imaculada Conceição, não. Ela usa coroa e um resplendor com 12 estrelas, um encaixando sobre o outro.

Na verdade, como se pode verificar por fotografias do livro História de Conceição do Mato Dentro, de Geraldo Dutra de Morais, a imagem da Padroeira usava, originalmente, uma co-roa – hoje guardada no Arquivo da Paróquia.

Embora a lua não figure como atributo na imagem da

Imagem de Nossa Senhora da Conceição, no adro da Matriz

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qdas Hespérides – frutos da imortalidade, presente de Geia a Hera por ocasião do seu casamento com Zeus.

o significado espiritual da PadroeiraSegundo Mircea Eliade, quando o homem toma posse de um

território inexplorado – equivalente, portanto, ao Caos que ante-cedeu a criação do Universo –, ele o “transforma” em Cosmos, ou seja, no mundo estruturado e organizado, mediante a realização de rituais que repetem simbolicamente o ato primordial da cos-mogonia. Tais rituais, como erigir um altar ou capela em honra a uma divindade tutelar, ou padroeiro, consagram o território, que se torna, então, um espaço sagrado e passa a ter um nome, ligado àquela divindade ou padroeiro, que, assim, se faz presente e passa a exercer a função de mediador entre o Céu e a Terra.

A energia de um determinado local está, assim, vinculada aos valores e símbolos associados à divindade protetora à qual foi consagrada. Portanto, viver em uma cidade que tem como pa-droeira Nossa Senhora da Conceição constitui um privilégio e, ao mesmo tempo, uma responsabilidade – a de expressar e colocar em prática os valores e virtudes ligados a essa manifestação do Sagrado Feminino, cujo rico simbolismo foi habilmente transpos-to para a madeira pelo artífice anônimo que entalhou a imagem da Padroeira, inegavelmente uma das mais belas e refinadas pe-ças da imaginária religiosa do período setecentista no Brasil.

A contemplação dessa obra de arte, zelosamente guardada no Arquivo da Paróquia, conduz à reflexão sobre o profundo significado espiritual da Padroeira, que representou, desde a fundação do primitivo arraial, o vínculo entre Conceição do Mato Dentro e o sagrado. Os depoimentos aqui registrados nos permitem vislumbrar a magia e o esplendor das celebrações em sua homenagem, e evidenciam a necessidade de não se deixar

Detalhe do altar-mor de nossa Senhora da Conceição, mostrando talha em madeira esculpida com anjo e uma ave – Século XVIII.

Padroeira, ao contrário do que ocorre na maioria das repre-sentações de Imaculada Conceição, a disposição dos queru-bins aos seus pés evoca, ainda que vagamente, a forma de um crescente lunar. Além disso, motivos como espirais e con-chas – símbolos lunares – estão presentes na decoração do seu trono. As grandes deusas mães, no início dos tempos, par-ticipavam “tanto do caráter sagrado da Lua como do Sol”, mas, posteriormente, com o domínio do patriarcado, tiveram usurpados os seus atributos solares, que foram assimilados pelas divindades masculinas. Por isso, do ponto de vista da simbologia cristã, Nossa Senhora é comparada à Lua, e Cristo ao Sol: “Como a lua guarda em seu seio os raios do sol, Maria guarda em seu ventre a luz divina, que é Cristo”.

Ao redor do globo sob os pés da imagem, enrosca-se uma serpente com feições demoníacas que abocanha uma maçã. De acordo com o simbolismo cristão, esse conjunto de atributos, inspirado no cap. 3 do Gênesis, representa a tentação e queda do homem e a vitória sobre o pecado original, do qual a Virgem foi preservada desde a sua concepção. Entretanto, nas mitolo-gias de diferentes culturas, a serpente e a maçã são símbolos ambíguos, com significados múltiplos. A serpente, de caráter lu-nar e telúrico, é associada à fecundidade, à regeneração cíclica e às cerimônias de iniciação, além de simbolizar a sabedoria e o conhecimento oculto. Essa é uma das razões pelas quais pra-ticamente todas as grandes deusas da Antiguidade tinham a serpente como um dos seus atributos.

A maçã, considerada pela tradição judaico-cristã como o fruto proibido oferecido pela serpente a Eva, era símbolo de ciência, magia e revelação nas tradições celtas, e a misteriosa ilha de Avalon tinha o nome de “Pomar das Macieiras”. Na mi-tologia grega, um dragão vigiava as maçãs de ouro do Jardim

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qmorrer as tradições que fazem parte da memória da cidade – um valioso patrimônio cultural imaterial que poderá se perder nas brumas do esquecimento.

Espera-se que a igreja matriz, expressão material e espacial da vinculação de Conceição do Mato Dentro com o sagrado, seja em breve restaurada, e a preciosa imagem da Padroeira retorne ao seu altar-mor, lugar que lhe pertence de direito. Espe-ra-se, enfim, que a Virgem Imaculada volte a ser, como outrora, o alvo da devoção e do carinho dos conceicionenses, e sejam resgatadas a beleza e magnificência das tradicionais festivida-des religiosas em seu louvor, para que um dia se possa dizer, como padre Marcello Romano: “Era tudo tão bonito que eu pen-sava que o Céu é que imitava a Terra!”.

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C a c h o e i r a r a b o d e C a v a l o , d i s t r i t o d e i t a c o l o m i

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qmosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

NoSSa SENhora Do roSário DoS PrEToSOs Mister ios do Rosár io

Cercada de lendas, a Igreja do Rosário é símbolo vivo da presença negra e do sincretismo religioso

Monique Augras

Nossa Senhora do rosário tornou-se no Brasil colonial a santa dos negros, assimilando toda uma tradição re-ligiosa vinda da áfrica com os escravos, criando um rico mosaico de sincretismo religioso.

“Diz uma lenda histórica que, certa épo-ca, Nossa Senhora do Rosário apareceu sob as águas do mar. Imediatamente os caboclos, já devotos da Santa Virgem através da catequese dos jesuítas, rezaram, cantaram, tocaram seus instrumentos, para que a Santa Virgem viesse até eles. Mas Ela não veio. Em seguida, os marujos, também devotos, foram até a praia, e empreen-deram sua tentativa de trazer a Virgem do Rosá-rio até eles. Após rezarem, dançarem, cantarem, tocarem seus instrumentos, não conseguiram trazê-la. Por fim, vieram os negros ou catopês, até a praia, e após louvarem a Virgem do Rosá-rio, Ela veio até eles. Por isto é que se diz que a Virgem Nossa Senhora é a protetora dos negros.”

[Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Serro, Capítulo I, artigo 1º, in Gomes & Pereira, 1988:102]

Transformar sujeição em eleição: essa piedosa versão da “fábula das três raças” faz dos negros escravos uns privilegiados. Nessa lenda, os caboclos, que são

os índios, os donos da terra, já conhecem Nossa Senhora, evan-

gelizados que foram pelos jesuítas. Exibem as danças e os can-tos que aprenderam com eles, mas de nada adianta. Em segui-da, os marujos, isto é, os portugueses, que são os donos do mar, também demonstram os seus conhecimentos, pois foram nasci-dos e criados no bojo do catolicismo, mas sem resultado. Basta, no entanto, que os negros cheguem para exaltar e abençoar o nome da Virgem, e ela sai do mar para encontrá-los.

Eles não são donos de nada, nem da terra, nem do mar. A lenda não diz de onde vêm, apenas surgem na praia, limiar de terra e mar, margem incerta, mal delimitada e sempre refeita. Não pertencem a lugar algum, desenraizados que foram pela violência do tráfico negreiro. Somente agora passam a existir, desde que sejam identificados como “catopés”, isto é, partici-pantes de um grupo que anima as festas do Rosário . A sua exis-tência está atrelada ao mundo do Rosário, em uma tautologia perfeitamente circular. Ao escolhê-los, a Virgem lhes deu nome e consistência.

E se quisermos levar essa análise até as últimas consequên-cias, só podemos concluir que a escravidão é uma bênção, já que

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qleva os negros à mais invejável das situações, a de filhos diletos da Virgem do Rosário.

Essa inversão, prenha de ambiguidades, foi lindamente exemplificada por Cecília Meireles em seu “Romance VIII ou Do Chico Rei”:“Canta e dança agora, meu povo/ livres somos to-dos!/ Louvada a Virgem do Rosário/ vestida de luz.Tigre está rugindo/ nas praias do mar.../ Hoje os brancos também, meu povo/ são tristes cativos!/ Virgem do Rosário, deixai-nos/ des-cansar em paz”

[Meireles, 1983:39]

A constituição do imaginário colonial apoia-se no discurso da religião hegemônica que, em um só movimento, aniquila e transfigura: todo um arcabouço de valores e representações é destruído ou reinventado. Os deuses de origem são despreza-dos, as crenças viram crendices e os ritos, práticas supersticio-sas. Para substituí-los, não basta a clássica catequese. É preciso incutir novos modelos de identificação. São Benedito, Santa Ifi-gênia, Santo Elesbão, Santo Antônio de Categeró, personagens históricos alguns, outros, claramente inventados, são recriados por meio de lendas cuja mensagem afirma a imprescindibilida-de da conversão ao novo sistema de crença.

Os deuses ancestrais, no entanto, resistem. Detalhes das no-vas fábulas oferecem suporte para engenhosas reinterpretações. Ao longo de séculos de trocas e convivência, danças africanas se organizam em procissão, e os antepassados se juntam aos santos para celebrar os mistérios. Mas esse processo, de fingi-mentos e adesões, de avanços e recuos, não se desenrolou de maneira linear, e a compreensão de sua elaboração passa pela análise do quadro histórico no qual se constituiu a criação das irmandades do Rosário no Brasil. E ocorre que esse estudo não

apenas esclarece certos aspectos da história, mas também nos dá a perceber, nas entrelinhas, a gênese de muitas questões con-temporâneas..

Nossa Senhora do rosário, a Vitoriosa

O dia estipulado pela Igreja para celebrar Nossa Senhora do Rosário, o sete de outubro, é a data de uma batalha, a de Lepanto. Foi em sete de outubro de 1571 que as forças navais da Cristandade, coligadas, der-rotaram a frota turca. O papa Pio V, que foi canonizado vinte anos depois, atribuiu a vitória à intercessão de Nossa Senho-ra, sensibilizada pelas preces dos devotos do rosário. Diz a lenda que “mouros” aprisio-nados contaram ter visto, em meio aos navios, uma “majes-tosa Senhora”, cuja aparição bastou para desnortear a fro-ta do sultão Selim II. O sete de outubro foi proclamado dia da festa de Nossa Senhora da Vitó-ria, prontamente identificada como sendo Nossa Senhora do Rosário . E o Senado da Repúbli-ca de Veneza, atora principal da coligação, mandou retratar a batalha de Lepanto em sua sala de reunião, com a inscrição: “Nem as tropas, nem as armas, nem os comandantes, mas a Virgem Maria do Rosário é quem nos deu a vitória”.

Pintura da Igreja do Rosário (Século XVIII), de autoria anônima, representa Nossa Senhora entregando o rosário a São Domingos de Gusmão.

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trocar por altar copm flores do rosario

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qVisivelmente, essa devoção é tributária da ideologia da cru-

zada. Nos dias de hoje, grupos folclóricos de Sergipe que ence-nam as danças da Chegança – “Chegança de Mouros” – deixam isso bem claro, quando entoam versos que suplicam:

“A virgem do Rosário/ Seja nosso guia/ Não seremos presos/ Pela Turquia”

[in Dantas, 1976:20].

Ainda que tenhamos tendência a situar o tempo das cru-zadas na Idade Média, cabe lembrar que os tempos modernos, cujo início se convencionou situar em 1453, ano da tomada de Constantinopla pelos turcos, permaneceram dominados pelo sonho de novas cruzadas, durante muito tempo. Cruzadas internas, contra as heresias – antes de ser eleito papa, o do-minicano Pio V havia sido comissário geral do Santo Ofício e “inquisidor geral para toda a cristandade” [Luz, 1960, II: 07], e o pontificado de Gregório XIII começaria, em 1572, sob o signo do massacre dos protestantes franceses na noite de São Barto-lomeu, devidamente celebrado por grande afresco no Vaticano – mas também, no exterior, tentativas diversas de derrotar o império muçulmano.

A década que se inicia com a vitória de Lepanto se vai en-cerrar com a desastrosa expedição de Dom Sebastião , que se perderá nas areias de Alcácer Quebir [1578] para mais tarde se encantar na praia maranhense dos Lençóis... Dizem que, no Brasil, o padre Anchieta teve a visão dessa derrota, assim como já “presenciara”, pelos olhos da alma, a vitória de Lepanto.

O empreendimento de colonização das Américas encontrara sua justificativa teológica no empenho em converter os nativos – “gente

sem rei, nem fé, nem lei”, como se costumava dizer – e assim expan-dir o reino de Cristo na terra. E vários religiosos julgaram tratar-se de um novo tipo de cruzada . Ou, melhor dizendo: a ideologia da cru-zada era, na época, o modelo de referência para se lidar com povos não cristãos . No Brasil, o modo como a obra da catequese realizada pelos jesuítas se utilizou da encenação de folguedos populares ibéri-cos põe em evidência a temática das lutas entre mouros e cristãos.

Lembramos que o “juramento de Montmartre” [1534], pro-nunciado em Paris por Inácio de Loyola e seus companheiros, incluía, além dos votos de pobreza e castidade, a promessa de, dentro de três anos, ir a Jerusalém para converter os “Infiéis” [Luz, 1960, I: 366]. Mas o prazo expirou antes que eles pudes-sem embarcar para a Terra Santa e, logo que o papa Paulo III aprovou a constituição da Ordem, vários dos seus membros se dirigiram para territórios exóticos. No Brasil, a primeira mis-são chegou em 1549 e logo se empenhou em estabelecer moda-lidades de integração entre elementos da cultura nativa e mo-delos cristãos. Anchieta, que fez parte da segunda leva, chegou a escrever pequenas peças de teatro – ao que parece, em língua tupi – nas quais encenava temas da doutrina católica e casos de conversão.

A partir da chegada dos primeiros navios negreiros, o mes-mo esquema passou a ser aplicado, mas, com a ampliação do tráfico, os catequistas tiveram de lidar com grupos cada vez mais diferenciados, o que exigiu a elaboração de novas estra-tégias. Surgiu a necessidade de enquadrar os africanos em es-truturas estáveis, bem definidas, que permitissem, ao mesmo tempo, o controle e o incentivo de novas modalidades de inte-gração religiosa. A organização dos escravos em irmandades impunha-se.

Os tambores da tradição inconfundível dos povos da África, que ajudaram a moldar a cultura de Conceição do Mato Dentro.

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q“As ordens religiosas, sobretudo a dos jesuítas, haviam es-

tabelecido um sistema de evangelização dos índios baseado em dois critérios: a aceitação de certos valores nativos, aqueles que não inquietavam a Igreja, que podiam, por conseguinte, ser por ela preservados, com a condição de serem reinterpretados em termos cristãos (...) e, por outro lado, a luta resoluta e tenaz, pela astúcia ou pela força, contra os valores mais radicalmente opostos aos valores ocidentais. Ainda que de maneira menos sistematizada, é essa política que vai ser aplicada no seio das confrarias de negros.”

[Bastide, 1971:78].

De tal modo que “as irmandades de Nossa Senhora do Ro-sário, que se tornariam as mais representativas para os negros, onde iriam realizar a devoção aos seus santos prediletos, foram instituídas pelos jesuítas em 1586, com o fim de promover a piedade e a instrução religiosa”.

[Braga, 1987]

as irmandades do rosário

“Não sei por que os pretos gostam da Nossa Senhora do Rosário”

[João do Rio, 1995: 92]

Em Portugal, já havia confrarias criadas sob a égide de Nossa Senhora do Rosário. Os dominicanos haviam sido os principais divulgadores da devoção à Senhora da Vitória, com a recitação do terço, o rosário propriamente dito, cuja introdu-ção fora atribuída a São Domingos de Gusmão, fundador da

ordem .

Inúmeros são os quadros representando Nossa Senhora, com o Menino no braço esquerdo, estendendo a mão direita com o terço, em direção a São Domingos, ajoelhado a seus pés. Não por acaso, o teto da igreja do Rosário de Conceição do Mato Dentro, recentemente restaurado, dá, dessa cena, um exemplo encantador. Mas, na verdade, é muito duvidoso que o santo tenha sido responsável pela divulgação dessa devoção. Jacopo de Varazze, autor da Legenda Áurea [Voragine, 1967], compêndio de tudo o que se dizia dos santos em meados do século XIII [c.

1264], ele mesmo dominicano destacado , não fala nem no rosá-rio, nem daquela aparição da Virgem a São Domingos, em par-te alguma das vinte páginas que dedica à vida do fundador de sua ordem. Parece razoável supor que essa piedosa lenda tenha sido elaborada bem mais tarde, e recebido um reforço por parte de Santo Ofício no Brasil, compartilha dessa hipótese: “Desde o papa Pio V, foi descrita a origem da devoção em uma aparição da Virgem a São Domingos. Enquanto dirigia a Inquisição contra os heréticos albigenses, em começo do século XIII, a Virgem lhe apareceu, deu-lhe o rosário e lhe disse que homens e mulheres cristãos invocariam a ajuda Dela com as contas do rosário” [Vainfas & Souza, 2000: 46]. Ninguém era mais indicado do que um papa dominicano, ex-inquisidor geral, para legitimar a devoção ao rosário em termos de combate contra as heresias. A lenda se cristalizou tão bem que, em fins do século XIX, os autores de um vastíssimo tratado de hagiografia [Guérin et al.

1888, 17 volumes!] asseguravam que, pela virtude do rosário, São Domingos teria convertido nada menos que cem mil heréticos...

A tradição da Festa do Rosário é uma das mais vivas em Conceição do Mato Dentro

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qAté hoje, porém, ninguém sabe dizer ao certo quando foi

que os cristãos começaram a acompanhar suas orações com o manuseio de um fio de contas. Vários autores supõem que o costume, bem comum no Oriente, de desfiar constantemente uma fileira de contas, teria sido levado para o Ocidente pelos Cruzados, pois o aparecimento de “contas de orações” somen-te é atestado a partir dos séculos XII e XIII. Essa possibilidade não deixa de abrir perspectivas um tanto paradoxais: as contas dos mouros, trazidas pelos cavaleiros de volta das cruzadas, se transformam em “armas de guerra” contra os turcos, derrota-dos em Lepanto...

No que diz respeito às orações propriamente ditas, é atribu-ída a Santo Anselmo, arcebispo de Canterbury, no século XI, a criação do “saltério de Nossa Senhora”, adaptação dos salmos de David, composto por 150 versos, começando cada um com a palavra Ave [Vail, 1998]. Da divisão desse saltério em três partes vem o nome de “terço”. No século seguinte, Santo Thomas Becket teria contribuído para a popularização dessas orações, que se disseminaram por toda a cristandade. Supõe-se que o nome de “rosário” esteja relacionado à tradicional associação de rosas e roseiral com as virtudes de Nossa Senhora. Mas a verdade é que, até hoje, só temos conjecturas a respeito da criação do rosário como método de oração e louvor à Virgem.

Em compensação, são fartas as informações sobre a utili-zação da devoção ao rosário como instrumento de conversão , nas terras colonizadas pelos portugueses. De início, esse encar-go permaneceu em mãos dominicanas. Os irmãos do convento de Lisboa descrevem a sua atuação “na maior parte deste Reino e dos senhorios dele: são Índia, Guiné, Brasil, com licenças e ordem para fabricarem confrarias, e como têm fabricado” [car-

tas incluídas no Livro de S. Domingos, cit. por Scarano, 1978:47]. Mas,

diz Julita Scarano, “os filhos de São Domingos perderam a sua primazia com a disseminação das irmandades em terras de além-mar (...) Os agostinhos criaram inúmeras irmandades do Rosário, bem como os jesuítas. Franciscanos e frades das outras ordens que demandaram as conquistas levaram, entre diversas piedades, a do Rosário.”

[id.ibid.]

E, no Brasil, cuja colonização é exatamente contemporânea da Contrarreforma, são finalmente os jesuítas que divulgam a devoção e organizam as irmandades de Nossa Senhora do Ro-sário.

Como vimos acima, cabia aos catequistas utilizarem “gan-chos” da cultura de origem dos escravos para neles assentarem os valores e as representações da religião católica. Júlio Braga [1987: 21] pondera que “a Igreja não parece ter pressionado os membros das irmandades, no sentido de fazê-los seguir ri-gidamente seus mandamentos, pois sua preocupação maior era fazer crescer, cada vez mais, a comunidade católica, numa conversão mais exterior, mais social que espiritual”. Multipli-car o número dos cristãos, assegurar a inserção dos escravos na sociedade colonial, isso implicava uma ampla campanha de reinterpretação das estruturas tradicionais africanas, pelo menos na superfície. E, por esse motivo, as irmandades foram organizadas em torno da valorização de reis e rainhas, com a encenação de suas festas e embaixadas.

Em sua História de Conceição do Mato Dentro, Geraldo Du-tra de Morais [1942: 58] transcreve dizeres do livro de “Compro-misso” da irmandade do Rosário, onde se lê que “a confraria será composta de doze homens machos e doze mulheres fêmeas e toda pessoa preta, de ambos os sexos, forra ou cativa, de qual-

Os negros do Candonblé mantém viva a sua cultura, que se manifesta com toda vivacidade durante os festejos do Rosário.

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qquer nação que seja, que quiser ser irmão desta pia ordem, de-verá contribuir com uma oitava de ouro e fazer o assentamento com o escrivão”. Ainda estipula que “haverá um Rei, uma Rai-nha, Príncipes e toda a corte, todos pretos de Guiné, Angola ou Moçambique, os quais serão eleitos todos os anos e serão obrigados a assistir com o seu estado às festividades de Nossa Senhora e mais santos, acompanhando no último dia a procis-são atrás do pálio e assim o rei com a rainha darão cada um de esmola quinze oitavas e os demais da referida corte e irmãos darão cinco oitavas de ouro”.

Como se vê, os encargos, por mais honrosos que fossem, im-plicavam despesas e deveres... Parte do financiamento provinha da coleta realizada durante a missa solene que encerrava os festejos [id. ibid.: 76]. No que diz respeito aos membros da irman-dade, é interessante a indicação de que podiam ser “de qual-quer nação que seja” – ainda que fique clara a origem banta dos irmãos, de Guiné, Angola ou Moçambique –, pois a maioria dos documentos de que dispomos mostra que a fundação das irmandades foi geralmente guiada pela preocupação de sepa-rar cada “nação” das demais . A repartição das nações por ir-mandade obedecia talvez menos aos ditames dos religiosos, e mais às decisões dos governantes. É bem conhecida a carta de Conde dos Arcos, vice-rei do Brasil de 1806 a 1808, que insiste na necessidade de promover as festas ou “batuques” para man-ter separadas as “nações”, de modo a reavivar as dissensões que as opunha na África, “pois se uma vez as diferentes Nações se esquecerem totalmente da raiva com que a natureza os desuniu (...) grandíssimo perigo desde então assombrará e desolará o Brasil.”

[in Nina Rodrigues, 1977: 156].

É claro que, para uso geral, esse empenho usava o disfar-

ce de intenções benevolentes. Em face dos protestos do Santo Ofício que julgava serem “pouco inocentes” as diversões dos ne-gros no Brasil, se comparadas com os costumes em Portugal, um predecessor do Conde dos Arcos defendia a sua realização: “Os negros dos engenhos e dessa vila não devem ser privados de semelhante função, porque para eles é o maior gosto que podem ter em todos os dias de sua escravidão” [cit. por Freyre, 1968:95]. Tal benevolência ecoava os conselhos do jesuíta An-tonil, endereçados aos senhores de engenho: “Não lhes estranha os senhores a criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde depois de terem feito, pela manhã, suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela dos escravos.”

[cit. por Braga, 1987: 15]

Mas o Santo Ofício tinha razão. Os “batuques” nada tinham de inocentes. Não apenas pela sensualidade dos requebros nas danças de origem africana, mas porque o quadro alocado pela Igreja para a organização das irmandades em suas diversas “nações” permitiu a sobrevivência de costumes e valores que, talvez, não pudessem ocorrer fora do espaço da festa. No caso das irmandades do Rosário, geralmente criadas para os nati-vos de Congo e Angola, favoreceu a manutenção de inúmeros aspectos das culturas bantas, que permaneceram sob forma mais ou menos velada.

Sem dúvida, nas formas folclóricas que as festas das irman-dades do Rosário produziram – Chegança, Taieiras, Congadas –, o elemento cristão e a obrigatoriedade da conversão são evi-dentes:

Os festejos da Marujada, durante as comemorações de Nossa Senhora do Rosário.

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q“Batismo, nós, Mouros, pedimos/ ao Sinhô Mestre-

Patrão/ que nos mande chamar um padre/ para fazê de nós cristão (...)

- Eu te batizo, Mouros,/ Mouros, infiéis pagãos/ E ao de-pois de batizados/ de Mouros serás cristãos” [in Brandão, 1976ª: 15-6].

A louvação de Nossa Senhora jamais pode faltar:“Pretinhos do Congo, para onde vão?/ Vamos ao

Rosário festejar Maria” [in Morais, 1942: 76].Os reis de Congo chamam os súditos para festejar:“Dizei-me, dizei-me/ Hoje nesse dia/ Vamos ao

Rosário/ Vamos ver Maria/ Quibamba virou/ mandou me chamar.” (crédito???????)

Mas à medida que a dança prossegue, vem-se desen-hando o protesto, sutil, com o desejo nada velado de vol-tar à terra natal:

“Meus pretinhos do Congo/ Donde vem nessa hora/ D’embarcá Aruanda e / Vamos pr’Angola

Dança, dança, meus pretinhos/ Depressa, sem mais tardá/ Quanto mais depressa andá/ Mais depressa acabará” [in Benjamin, 1977: 10-14].

Em Conceição de Mato Dentro, os festejos do Congado se revestiam de brilhos ímpares, e acompanhavam, ao que parece, o período natalino: “O procurador da irmandade do Rosário, acompanhado de grande cortejo de marujos, patrões, calafetes, pilotos etc., vão buscar o Rei Congo e a Rainha Ginga, príncipes e toda a corte de Loanda. Ao som de pipiruís, berimbaus, caxambus, marchetes, entoam as cantigas melancólicas da inesquecível Moçambique:

“Ó Rainha mãe senhora/ mãe da noite/ para o degredo, que já é che-gada a hora/ Vamos todos para o Céu, dizendo viva, viva/ À Senhora do

Rosário.” (crédito???????)

Negros levando estandartes com franjas douradas abrem o préstito (...) Marcha à frente um negro de máscara preta, como mordomo, de sa-bre em punho; depois, os príncipes e princesas, cujas caudas dos mantos são amparados por pajens de ambos os sexos; o Rei e a Rainha do ano antecedente, ainda com o cetro e a coroa; e, finalmente, o real par recém- escolhido, enfeitado com aljôfares, moedas, espelhos, penas, colares, pul-seiras, bugigangas, brincos de pedras reluzentes e toda espécie de ‘joias’ reais (...) A maravilhosa procissão é recebida à porta da igreja do Rosário pelo pároco. Celebra-se, então, o ritual. O Rei deposto entrega a coroa ao seu sucessor e os monarcas são levados, em triunfo, ao trono armado ao lado da Epístola. Inicia-se a missa cantada” [no fim da tarde, depois da bênção do Santíssimo Sacramento, o séquito real se dirige à praça principal, onde recebe a visita dos embaixadores estrangeiros] “O Rei, a princípio, repele a visita do estrangeiro, mas acaba recebendo-o com estas palavras: – ‘Que lhe estavam abertas as portas e o coração do rei’. Sua Majestade convida o enviado, com muitas mesuras, a tomar assento a seu lado, e, ao som de música ruidosa, faz distribuições de comendas e bas-tões espanhóis. Depois, num bater compassado de pés nus, num chocalhar mais forte de ganzás, fazem uma oração à Senhora do Rosário e deste modo cessa a parte litúrgica. Começam as danças...” [Morais, 1942: 76]. E a festa se repetia durante vários dias seguidos, concluindo-se, no dia de Reis, na encenação dos combates entre cristãos e mouros: “Cavaleiros trajando veludo vermelho e azul, bordado a ouro,” armados de lanças e espadas se enfrentavam. Vencidos os mouros, havia a “reconciliação fes-tiva dos dois bandos. E a igreja do Rosário alumia-se toda, com candeias de óleo, vermelhas, fumarentas... Os banquetes continuam, enquanto os sinos da igreja repicam alegremente” [id. ibid.].

Mas não era só de danças e festas que se nutria a participação às ati-vidades das irmandades. O enquadramento religioso e social dos escravos incluía forçosamente todos os lados da vida. “Os Compromissos acentuam

o aspecto espiritual, mostrando o quanto as práticas religiosas envolviam toda a vida humana, participando de cada acontecimento, desde o nasci-mento até a morte (...) Dos vinte e um itens que compõem o Compromisso do Rosário do Serro, oito tratam do tema da morte, mais de um terço do total, mostrando nessa insistência a gravidade que se atribuía ao assunto. Essa parece ser a preocupação maior das associações do Rosário dos Pretos do Distrito, a principal razão do seu desenvolvimento” [Scarano, 1978: 53]. Missas seriam rezadas em sufrágio da alma do irmão falecido. E, sobretudo, a per-tença a uma irmandade seria a garantia de se receber uma sepultura decen-te. Os senhores, embora obrigados, por lei, a cuidarem do enterro dos seus escravos, frequentemente contornavam o encargo e, ainda no início do sé-culo XIX, a um viajante inglês intrigado pela presença de corpos jogados no meio da rua, no Rio de Janeiro, foi explicado que “quando um escravo estava sem chances de recuperação, era liber-tado pelo senhor, o qual procurava evadir-se das despesas do funeral” [Algranti, 1983: 114]. Maria Odila Dias, autora de um estudo pioneiro sobre a vida de escravas e libertas no São Paulo oitocentista, fala em “uma quase obsessão com funerais, traço peculiar dos testamentos de ex-escravos; ao que parece, viam no testamento uma oportunidade de su-plicar a caridade de um enterro condigno” [Dias, 1984:119]. Dessa preocupa-ção, os membros das irmandades se livravam. E como precisavam!

Se a vida nas cidades era difícil, o que dizer das minas? Vivaldo Coa-racy [1965] afirma que, lá, a duração média da vida de um escravo era de sete anos apenas. No Distrito de Conceição do Mato Dentro, Morais [1942:

73] adverte que “o proprietário de lavras estipulava, entre os faiscado-res negros, tarefas absurdas que abrangiam o período de quatorze horas ininterruptas de trabalho, com quarenta minutos apenas de descanso, para o almoço”. Nos “Livros de Compromissos e nas cerimônias das ir-mandades”, escreve Scarano [1978:59], “é imensa a cifra correspondente ao decesso entre adultos (...) No livro de Óbitos da Vila do Príncipe vemos em

1772 que, para cada ‘inocente’ filho de escravo morto, há dez adultos”. Nesse ponto, somente a pertença à Irmandade garantia o sepultamento, com todo o respeito devido a um cristão. Ao que parece, cada irmandade dispunha de um patrimônio razoável, para pagar missas e sepulturas . O acompanhamento do defunto, por parte dos seus irmãos, até a última morada, também havia de contribuir, pela terrível frequência dos óbitos, para reforçar os laços entre os escravos. As irmandades atuavam como sociedades de auxílio mútuo, em todos os níveis.

O sepultamento se dava nas igrejas . Acontece que, de início, as ir-mandades não dispunham de templo próprio, e os respectivos defuntos eram enterrados, em geral, na igreja matriz do lugarejo. Como escravos,

negros, poderiam desfrutar da proximidade de brancos livres? A igualdade post mortem não era um fato bem estabelecido... Impunha-se a fundação de locais mais apropriados. E, muitas vezes, foi essa a razão, além do desejo de homenagear condignamente a padroeira, que levou as irmandades do Rosário a edificar as suas pró-prias igrejas.

as igrejas de Nossa Senhora do rosário dos Pretos

Em todo o Brasil, a criação das irmandades geralmente antecedeu a fundação das respectivas igrejas, que sempre encontrou sérias dificulda-des. Sobre esse aspecto, os autores convergem: em Salvador, “embora a irmandade exista desde 1685, só em 1704 obteve licença para construir a sua igreja [no Pelourinho], que levou muito tempo para ser construída” [Valladares, 1991:276]; “a Igreja dos Quinze Mistérios, dos homens pretos, [foi] criada em 1811. Com essa capela sucedeu o mesmo que com mui-tas outras das igrejas do Rosário: não chegou a ser concluída” [Brandão

& Silva, 1958:170]; no Rio de Janeiro, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, que teria sido criada “antes de 1639”, em 1700 recebeu doação de um terreno onde iniciou a edificação e, pouco depois

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qde 1725, “todo o corpo da igreja” estava concluído [Macedo, 1966: 400]; em Ouro Preto, a primeira capela do Rosário fora erguida em 1709 para ser, mais tarde, substituída pela igreja atual, cujo “risco” é de 1785 [Bandeira, s.d.: 142], e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz do Padre Faria teria sido iniciada em 1762 .

Scarano [1978:31] esclarece que, nas Minas Gerais, “os pretos procura-ram construir a sua própria capela e, para isso, necessitavam de recursos, o que só acontece, de modo geral, na segunda metade do Setecentos, pois apenas nessa época dispunham eles de meios para tanto. Nesse aspecto, não diferem da maioria das irmandades mineiras, cujos templos datam dos últimos trinta ou quarenta anos do século XVIII”. Mas, “logo que fosse possível, os irmãos do Rosário tratavam de construir ermidas, para com isso saírem da dependência dos brancos”. É preciso reconhecer que, além do problema já evocado acima, referente à questão dos enterramentos, havia muitas áreas de atrito.

Temos o exemplo de contendas extensas e variadas, no Rio de Janeiro, graças às informações recolhidas por Joaquim Manuel de Macedo, em seu delicioso Passeio pela cidade do Rio de Janeiro, de 1863.

De início, a irmandade encontrara guarida na igreja de São Sebastião do Castelo, mas logo se aborreceu, “por serem obrigados os pretinhos a prestar certas propinas ao cabido, a ter por seu capelão um dos capitula-res, e a pagar as covas ocupadas pelos cadáveres de seus confrades, de que tudo ficaram isentos pelo alvará de 19 de janeiro de 1700” [Macedo, 1966:

400]. A irmandade conseguiu o apoio do próprio governador, Luiz Vahia, para construir a sua igreja. Mas, por infelicidade, logo que a igreja do Ro-sário foi concluída, a de São Sebastião começou a desmoronar, e – justa lei do retorno – a corporação capitular foi pedir abrigo: “A porta lhe foi aberta de má vontade e só por obediência, e monsenhor Pizarro se admira que os pretinhos não se mostrassem satisfeitos pela honra que recebiam, hospedando o cabido!” [Macedo, 1966: 400]. Os irmãos tiveram de esperar

que a Sé ficasse pronta para poderem se desembaraçar da presença do ca-bido , o que deu ensejo a inúmeros desentendimentos, quanto mais que as obras da construção da Sé levaram setenta e um anos... E ainda tiveram de hospedar diversas instituições oficiais em seguida, a cada vez que estas necessitavam de algum local, conforme o relato de Macedo.

Em Conceição do Mato Dentro, a fundação da igreja do Rosário dar--se-ia em um cenário bem mais sombrio. De início, a irmandade se abri-gara na igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora da Conceição. No ano de 1727, como refere Morais [1942:73], “por ocasião da visita pastoral de D. Guadalupe, os negros forros e mamelucos pisaram, talvez propositada-mente, nas elegantes alcatifas das matronas conceicionenses. Houve um distúrbio tremendo: tiros de mosquetes e bacamartes, duelos de lapianas, lutas corporais, chicotadas etc. O ilustre visitante proibiu, por escrito, a entrada de negros ‘por dentro da cerca da igreja, principalmente nas oca-siões de missas e festejos, para que não houvesse desarmonia e tumultos na Casa de Deus’. Era acabar com tudo aquilo que fazia a glória e o en-canto das festas do Rosário...

Mas a coisa ficou ainda mais complicada. “Houve uma morte, e por infelicidade dos escravos, a vítima era o filho do ricaço capitão Francisco Moreira Carneiro ... O julgamento foi sumaríssimo e os responsáveis, em número de oito, estrearam o patíbulo construído às pressas, no outeiro próximo à matriz. Desde então o local ficou denominado ‘Morro da For-ca’ ou ‘Morro das Oito Cabeças’” [id. ibid.]. E tudo isso, por alguns metros de tapetes pisados...

Sem igreja, os irmãos se cotizaram para erguer uma ermida, iniciada em 18 de março de 1728, e devidamente abençoada pelo vigário da Vara dois anos depois, no Dia de Reis, com o nome de igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro da Vila do Príncipe do Serro do Frio. A grandeza do nome parece ecoar a riqueza e o brilho dos festejos do Rosário da cidade...

Com o passar do tempo, a construção foi ampliada e enriquecida por vários “trabalhos de talha, douramento e pinturas dos altares, custeados pela própria irmandade, em fins de 1745” [id. ibid.]. O corpo da igreja já teria sido construído graças à doação feita em testamento por Gabriel Ponce de Leon, que muito fizera pela vila. A construção também contou com o auxílio direto de Jacinta de Barros, Dona Jacinta, cuja fama na região se ombreia à da tão conhecida Chica da Silva, casada que foi com o português capitão Manuel Correia Paiva . Para as pinturas do teto, que representam a entrega do rosário por Nossa Senhora a São Domingos, “sabe-se que a irmandade pagou, em 1774, a importância de quarenta e oito oitavas de ouro pelos trabalhos do artista, exclusive o material despendido” [id. ibid.]. O ouro das Gerais, extraído pelo sofrimento dos escravos, retornava como preito de glória e louvor...

os mistérios do rosário

Até agora, a nossa descrição da implantação e do funcionamento das irmandades do Rosário pautou-se pelo enfoque no enquadramento da população não cristã pela Igreja, que atendia à dupla exigência da con-versão, apoiada na persistência da ideologia da cruzada, e do controle. Vale dizer: ressaltamos as dimensões sociopolíticas dessa implantação. Mas o culto do rosário não se limita à vontade, tão claramente ilustra-da pela atuação de São Pio V, de fornecer combustível para assegurar a vitória sobre os “Infiéis”. Foi também, e continua sendo, o suporte de um empreendimento místico, de meditação sobre o entrelaçamento da vida de Maria e de Jesus, que resume os momentos mais valorizados pela fé católica.

De início, eram quinze mistérios, agrupados em três categorias:

• Mistérios da alegria: Anunciação, Visitação, Natividade de N. S., apresentação de Jesus no templo, e Seu reconhe-cimento pelos Doutores da Lei;

• Mistérios da dor: agonia de Jesus no jardim de Getsêma-ni, flagelação, coroação de espinhos, carregamento da Cruz, e morte;

• A Mistérios da glória: Ressurreição, Ascensão de N. S., descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes, Assunção de N. Sra., e coroação de Maria no Céu.

Louis Marie Grignion de Montfort [1673-1716], sacerdote francês fun-dador da Companhia de Maria, canonizado em 1947 pelo papa Pio XII, escreveu, no fim da vida, um livro sobre “o segredo admirável do Santo Rosário”, em que propunha o simbolismo da roseira para interpretar o significado desses mistérios. Verdes seriam os mistérios da alegria, repre-sentados pelas folhas da roseira. Os espinhos, é claro, corresponderiam aos mistérios da dor, ao passo que os mistérios gloriosos seriam procla-mados pelo esplendor das flores.

Recentemente, em 16 de outubro de 2002, aniversário de sua eleva-ção ao Sumo Pontificado , o papa João Paulo II decretou o Ano do Rosá-rio (de outubro de 2002 a outubro de 2003), e aumentou para vinte o nú-mero dos mistérios. Entre os mistérios da alegria e da dor, inseriu o que chamou de mistérios da luz, alusivos ao batismo de Jesus no Rio Jordão, à revelação nas bodas de Caná, a proclamação do Reino na entrada em Jerusalém, à Transfiguração e à instituição da Eucaristia.

Falta-nos um novo Grignion de Montfort para aplicar a esses misté-rios o simbolismo da roseira. Já que todos dizem respeito à revelação da existência de Cristo para o mundo, não poderiam também ser considera-dos como correspondentes à raiz da flor, fincada no solo para finalmente iluminar a terra?

Em sua Carta Apostólica Rosárium Virginis Mariae , o papa estipulou o dia da semana em que o orante se deveria focalizar nos respectivos mistérios: segunda e quinta seriam dedicadas à meditação sobre os mis-

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qtérios da alegria; a quarta, aos mistérios da luz; terça e sexta, aos da dor; sábado e domingo, à glória.

Desse modo, a prática do rosário se insere na vida cotidiana. Ao canoni-zar Louis Grignion de Montfort, Pio XII sublinhara que essa prece “age na in-terioridade da pessoa de modo maravilhoso” . É um guia para a alma, muito longe dos propósitos guerreiros que, durante tanto tempo, pesaram sobre o rosário. E João Paulo II, com muita sabedoria, iniciou a sua Carta Apostólica proclamando ser o “Rosário da Virgem Maria” a “prece pela paz”.

No Brasil, malgrado o peso do enquadramento e do controle, a cria-ção das irmandades do Rosário desembocou em aspectos bem positivos, constitutivos que foram da própria cultura brasileira. Vainfas e Souza [2000: 50-2] sublinham que, “além de tudo o mais que fizeram em várias capitanias – mormente em Minas – [as irmandades] foram responsáveis por aquilo que pontuava a existência do catolicismo: a festa”. As festas religiosas, de antigas tradições medievais e até pagãs, encontraram novo alento no período pós-tridentino: “Organizadas predominantemente pela Igreja, essas festas comemoravam motivos religiosos e políticos e, portan-to, oficiais, mas não deixavam de apresentar aspectos lúdicos e muito de um lazer profano, com manifestações coletivas da cultura popular” [id. ibid.]. No caso das irmandades do Rosário, “as festas de coroação dos reis negros ocupavam um lugar especial nessas comemorações (...) nas representações, na interação entre as autoridades negras e as autorida-des coloniais, as festas tornavam-se um momento em que os negros con-seguiam fazer circular a forma como viam a cultura que lhes tentavam impor” [ibid.: 59]. E, como bem mostraram os estudiosos do carnaval, as procissões forneceram o modelo que, mais tarde, formatou o desfile das escolas de samba [Da Matta, 1979]. Hoje, a suntuosidade barroca acena em meio aos brilhos de suas alegorias, e até mesmo, na “purpurina” de que se reveste o discurso do samba-enredo.

[Valença, 1983; Augras, 1998b]

No Rio de Janeiro, era da igreja do Rosário de que saía o cortejo dos Reis de Congo. “Já naquele tempo [os pretos] gostavam e saíam pelas ruas vestidos de reis, de bichos, de pajens, de guardas, tocando instrumentos africanos, e paravam em frente à casa do vice-rei, a dançar e cantar (...) E esses folguedos ainda subsistem com simulacros de batalha, e quase transformados, nas cidades do interior” [Rio, 1995:92]. Desses cortejos nas-ceram os “cordões” e, juntando-se aos ranchos e ternos de reis nordestinos que celebravam a Epifania, foram, aos poucos, no primeiro terço do sécu-lo XX, se transformando em escolas de samba.

Se, por esse viés, as celebrações em torno da Virgem do Rosário e as procissões da Contrarreforma acabaram por desaguar em transgressoras festas pagãs, um elemento religioso, no entanto, subsistiu, inaugurando outra modalidade de transgressão.

Talvez seja mais apropriado falar aqui em drible, em jogo, em subter-fúgio, pois, entre nós, a manutenção e reinvenção das religiões africanas deram-se, em sua maioria, sob as feições de uma aparente conversão, com evitação do enfrentamento. Aqui, não há lugar para se retomar a longa histó-ria do abrasileiramento das religiões de matriz africana, mas não podemos deixar de lembrar que a constituição das irmandades negras – até mesmo graças à segregação entre nações que produziu – não pouco contribuiu para a sobrevivência das religiões tradicionais. No caso do Rosário, é bem interes-sante verificar que até mesmo sacerdotes católicos mostravam o caminho. Dirigindo-se às escravas, o padre Vieira sugeria a reinterpretação católica dos enfeites fetichistas: “Assim quere que tragais sua marca a Senhora do Rosá-rio (...). As voltas de contas que trazeis nos pulsos e ao pescoço (falo com as pretas) sejam todas das contas do rosário” [in Ribeiro, 1982:44]. Com tão ilustre incentivador, o caminho do famoso “sincretismo” se abria, promissor. Transformar “guia” em rosário, ou dar aos orixás nomes de santos católicos: o sagrado ancestral se afirmava, sob novas roupagens.

E, nas Minas, o povo do Rosário bem sabe que, por trás das cantigas ensinadas pelo catequista, se insinuam palavras antigas, desconhecidas,

que dão voz aos ancestrais:

“Às vezes a gente canta algumas palavra antiga. A gente nem sabe o que elas diz, é como se outro, antigo, cantasse na gente, através da gente”

[M.B.L., in Gomes e Pereira, 1988: 109, grifo meu]

Não é mais o Rosário que concede abrigo e realeza aos desterrados da África. Pelo contrário, é a ancestrali-dade que, doravante, justifica a permanência do Rosário:

“Esse renado é dos antigos, do tronco véio. Veio de desde a África, por causa dos escravos. A Festa do Rosaro tem que continuá. Quando nós canta, é por causa de um compromisso sagrado. Quando puxa a cantiga dos anti-go, parece que eles tão ali. Eles tão ali, junto com a gente.

E isso muda tudo” [A.M.d.S., ibid.: 157]

Nessa perspectiva, as festas do Rosário constituem como que uma ganga, onde ainda vive o ouro do passado africano. Quanto mais, que, para o trabalho da mineração, havia escravos e nações dos quais se acre-ditava que possuíam “o mágico dom de encontrar ouro”

[Scarano, 1978: 107]

Em seu livro sobre Ferreiros e alquimistas, Mircea Eliade descreve a persistência das crenças que atribuem aos metais preciosos a virtude de nascerem, crescerem e se desenvolverem no seio da terra, e que insis-

Os saberes mágicos estão presentes na infinidade de manifestações do Rosário, como no Boi da Manta, presente em várias tradições folclóricas.

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qtem na necessidade de saberes mágicos muito delicados para encontrá-los, e tratá-los com o devido respeito. “Não é com fa-cilidade que se descobre uma mina ou um novo filão: é tarefa dos deuses e dos seres divinos revelarem os sítios onde eles se escondem ou ensinarem aos homens a maneira de explorar o seu conteúdo”

[Eliade, 1979: 45].

O mágico dom de encontrar ouro provocou o desterro, a exploração e a dizimação de milhares – quiçá, milhões – de africanos. E a Senhora do Rosário saiu do mar para acolhê-los.

Transformada em Yemanjá, por um processo inverso ao de Vieira, permanece uma figura materna, protetora, generosa. A mestiçagem do imaginário permite que o sagrado circule e se expresse em ambas as direções.

Mas o poder de o Rosário “embelezar a vida” não se esgota nas cantigas dos grupos folclóricos, nem no surgimento sub-rep-tício dos antepassados. Hoje ainda, mostra-se capaz de criar mitos, mesclando sofrimento, terror, resistência e libertação. Não é por acaso que isso aconteceu, na igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro, quando o terrível incêndio que a consumiu, em 1967, acabou dando origem à criação de uma nova “santa do povo”, a Escra-va Anastácia, cuja devoção, iniciada no Rio em meio aos anos 1970, ganhou todo o Brasil. Agora, neste século XXI, inúmeros sites diariamente reinventam as suas lendas na internet [Au-gras, 2009]. Foi eleita símbolo de nobreza e rebeldia:

“Mulher-Escrava, Deusa-Mulher-Princesa/ Dai-nos tua força, para lutarmos e nunca ser-mos escravos// Porque somos tão rebeldes como tu/ assim seja, Amém”.

[in Alvito, 2000: 32]

Quão estranhos são os caminhos do Rosário, e quão imensa essa capacidade brasileira de, tudo misturando, criar o novo. Um novo rosto, negro, mestiço, humilhado e triunfante...

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U m m a r d e m o n t a n h a s q u e s e d e s e n h a p o r t o d o s o s c a n t o s

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qmosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

BoM JESUS DE MaToziNhoSO santo lendár io e a or igem da devoção em Portugal

Célio Macedo

a milagrosa imagem que hoje se venera como Senhor Bom Je-sus de Matosinhos, no Santuário localizado em Matosinhos, vizinho à cidade do Porto, originalmente não ficava ali.

Encontrava-se entronizada no antigo mosteiro de São Salvador de Bouças, cuja existência pode ser assinalada a partir de meados do século X. Desde

essa época, poderes sobrenaturais já eram atribuídos à ima-gem, que se tornou, então, objeto de ardente devoção popular.

Com a ruína do mosteiro, ocorrida por volta do século XVI, foi então construído, à custa do Padroado real, um novo tem-plo, para onde foi então trasladada definitivamente a milagro-sa imagem do Senhor crucificado. A sua invocação passou de Bom Jesus de Bouças, como era inicialmente cultuada, para Bom Jesus de Bouças de Matosinhos e, posteriormente, para Bom Jesus de Matosinhos. Foi sob essa invocação que a devoção se transportara para o Brasil, levada por colonos oriundos da região setentrional de Portugal.

A despeito da antiguidade do mosteiro de Bouças, a imagem idolatrada como Senhor de Matosinhos é uma escultura datada do século XII ou, no mais tardar, do século XIII, em estilo români-co, cuja influência em Portugal será percebida até o Quatrocen-tos. É uma escultura muito especial também no aspecto iconográ-fico, pois é considerada a mais antiga representação de um Cristo crucificado confeccionado em território luso.

Imagens não recebem a fama de milagrosas indevidamen-te. Geralmente, em torno de sua existência física, fruto de um

laborioso trabalho artístico, que apresenta marcos temporal e local mais ou menos precisos, tecem-se histórias espetaculares e fantásticas, de época e lugares inexatos, mas que o imaginá-rio social trata logo de cultivar e reproduzir por gerações a fio. São essas lendas criadas que reforçam nas imagens o seu poder taumaturgo, repercutindo nas comunidades próximas e mes-mo nas mais distantes, e atraindo periodicamente multidões de devotos, que a elas se acorrem por agradecimento às graças alcançadas pelos mais variados motivos.

Qualidade que não escapou à imagem do Senhor Bom Jesus de Matosinhos portuguesa. Embora sua fatura artística tenha se dado concretamente no século XII ou XIII, como asseguram os especialistas, a lenda que se criou em torno dela, explicando o seu milagroso surgimento – e a causa de seu poder de cura –, promove um recuo espetacular de tempo, indo lançar suas raízes nos primeiros anos da Era Cristã. Nesse aspecto, deu-se até o preciosismo de fixar com exatidão a data de tal ocorrido: terça-feira, 3 de maio (dia da Santa Cruz), do ano 124. Nesse dia, uma bela imagem do Senhor crucificado, mas sem o braço

Cidade é tomada por romeiros com suas barracas montadas em volta do santuário do Bom Jesus do Matosinhos.

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qesquerdo, veio ter na praia de Matosinhos, no local denomina-do Espinheiro, onde foi recolhida pela população e entronizada em uma capelinha local. Diga-se que no provável exato local do encontro da imagem foi construído, séculos mais tarde, um monumento dedicado ao Senhor do Padrão ou Senhor da Areia.

Durante muitos anos a imagem foi venerada sem o bra-ço, pois todos os outros confeccionados para substituí-lo não se fixavam; o povo, como se esperava, sempre inferia disso o manifesto de um novo milagre. Certo dia, porém, uma pobre mulher andando pela praia, na coleta de pedaços de madeira trazidos pelo mar que servissem de lenha, encontrou uma peça que lhe pareceu boa para queimar. De retorno a casa, colocou a madeira no fogo, mas esta saltou fora tantas vezes quantas ali foi lançada. A mulher tinha uma filha surdo--muda, mas que vendo a teimosia daquele toco em não queimar, e ao fixar atentamente o olhar sobre ele, disse: Ó, minha mãe, não queima isto, pois é o braço do Nosso Senhor! A mãe, ainda assombrada pelo ocorrido, tomou aquele braço e foi contar ao povo o milagre operado; e todos foram certificar se era verdadeiramente o bra-ço do Cristo crucificado. Para surpresa de todos, verificou-se que o braço ficou tão ajustado que não se percebia qual deles havia estado perdido!

Para tornar mais espetacular a lenda, reforçando ainda mais o caráter santificado da imagem, espalhou-se a notícia de que seu artífice não teria sido outro senão Nicodemos, o bom fa-riseu converso que testemunhou a crucificação de Jesus Cristo, tendo inclusive ajudado José de Arimateia a desprender o cor-po da Cruz e a depositá-lo no sepulcro. Perseguido pelos seus, depois de abjurar a lei mosaica, Nicodemos retirou-se para a

instância de seu tio Gamaliel, onde passaria o seu tempo es-culpindo imagens do Senhor Agonizante. Certa vez, perseguido por judeus e romanos, lançou ao mar da Palestina algumas dessas esculturas. Uma delas, depois de atravessar todo o Me-diterrâneo sob o impulso das correntes marítimas, alcançou o Oceano Atlântico, indo ter na costa de Portugal, na praia de Matosinhos. Outras teriam aportado na Síria, Itália e Espanha, onde são adoradas sob outras invocações.

Trata-se de uma bela história, mas inverossímil sob vários ângulos, notadamente, porque imagens de Cristo crucificado, como se sabe, só surgiram na arte cristã em épocas bem mais avançadas, mais especificamente a partir do século VI. Em Por-tugal, somente a partir do século XII ou XIII é que elas começa-

rão a se difundir, sendo talvez a do Senhor Ago-nizante na Cruz que se venera no Santuário de Matosinhos, como se colocou antes, a de maior antiguidade.

Desde o seu “misterioso” surgimento no mosteiro de Bouças, e sendo foco de todas essas fantásticas histórias, à imagem não se poderia

deixar de imputar a fama de milagrosa. Propriedade esta que foi colocada à prova em momentos de particular aflição, quan-do saía em cortejo da igreja em fervorosas demonstrações de fé. Como aconteceu, por exemplo, em 1526, na ocorrência de “apavorantes” calamidades naturais que vinham acometendo a cidade do Porto; ou em 1596 e 1644, por ocasião de grandes cheias, ou ainda em 1696, devido à infestação de uma mortífe-ra peste que lotava os hospitais e mergulhava a cidade do Porto num imenso cenário de pavor. Depois disso, só muito raramen-te a imagem tem saído do interior do Santuário. As últimas vezes foram em 1944, durante a Segunda Grande Guerra, para

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Altar-mor da Igreja do Bom Jesus do Matosinhos.

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qimplorar pela Paz no Mundo, e 1967, para comemorar o cin-quentenário das aparições de Nossa Senhora de Fátima.

Outro portentoso milagre atribuído à imagem ocorreu à época da escolha do local para construção de novo templo para entronizá-la. Em face das divergências de preferência manifes-tadas, resolveu-se prender a imagem sagrada no dorso de um burro, que, depois de solto, foi ter espontaneamente no local eleito, no qual afinal se iniciou a construção da primitiva igre-ja. O Santuário atual foi remodelado e acrescido no segundo quartel do século XVIII, tendo sido concluído em 1733. Nesse ano, para comemorar a conclusão do edifício, foi realizado um Trídio, que teve início em um domingo, 4 de maio, e acabou na terça-feira seguinte. Em seu primeiro dia, foi realizada uma suntuosa procissão, que conduziu a imagem do Senhor crucifi-cado pelas ruas do povoado, alcançando até a praia do Espi-nheiro, local no qual, segundo a lenda, apareceu pela primeira vez; daí, depois de lançadas três bênçãos, uma sobre o mar, outra na direção da cidade do Porto e outra na de Matosinhos, a imagem recolheu-se, enfim, à sua morada.

a devoção Se em Portugal o Bom Jesus de Matosinhos tem a origem

de sua devoção ligada, ainda que lendariamente, ao mar, em Minas Gerais e em Conceição do Mato Dentro a fixação dessa invocação terá a ver com as montanhas, com os montes.

A região de Minas Gerais que atraiu os primeiros explora-dores das “pedras preciosas” – e em particular, Conceição – é toda ela montanhosa, e foi um mito também relacionado a uma montanha reluzente em prata e ouro, o Sabarabussu, que trouxe aqui toda essa gente. Assim pensava um cronista portu-guês, quando aqui esteve por volta de 1736, e fazendo referên-

cia ao Serro do Frio, afirmou: “Nelle se acham infinitas Minas, e particularmente na Conceiçam aonde há hú monte de desme-dida grandeza, no qual se acha ouro...”. Esse ambiente monta-nhoso e a expectativa de um fácil enriquecimento atraíram boa parte dos colonos portugueses, notadamente aqueles oriundos da região nortenha do país, igualmente servida por sequência de montes e escarpas cortadas por caudalosos rios, correndo por entre férteis vales. É interessante ressaltar aqui que se tem notícia de que em meados do século XVIII residiam ou estavam de passagem por Conceição inúmeros portugueses oriundos das regiões do Porto, Braga, Guimarães e Miranda, todas localiza-das no norte de Portugal, próximas a Matosinhos.

Trouxeram também os portugueses dessas regiões setentrio-nais a sua mentalidade de homem montanhês, rústico e campo-nês, além, é claro, a sua vivência religiosa eivada por correntes de espiritualidade com suas reminiscências pagãs, especialmente aquelas relacionadas aos cultos dirigidos à Mãe-Terra e às en-tidades naturais. Em épocas remotas, diga-se, o Entre-Douro e o Minho eram terras ainda contaminadas por cultos pagãos de origem céltica, mesmo em tempo já de expansão do Cristianismo. Paganismo este, aliás, duramente combatido por São Martinho de Dume, bispo de Braga, no século VI, com suas pastorais dire-cionadas contra as práticas supersticiosas espalhadas nos meios rurais de sua vasta diocese. Em épocas mais recentes na História, no entanto, devoções especiais e únicas nasceram e se difundi-ram a partir do norte português, como os casos do Senhor Bom Jesus e de Nossa Senhora das Dores – surgida em Braga –, e pron-tamente atingiram o Brasil e Minas Gerais.

o simbolismo da montanhaA relação do Senhor Bom Jesus com a montanha, o mon-

te, talvez seja muito mais acentuada do que aquela ligada ao

A devoção manifestada pelos cavaleiros, tradição da festa do Jubileu do Bom Jesus do Matosinhos.

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qmar ou, de uma forma mais genérica, à água. A montanha tem um simbolismo muito difundido em todas as civilizações, des-de épocas imemoráveis. Esse simbolismo se manifesta de duas maneiras: uma, que diz respeito à altura, e a outra, ao centro; enquanto alta, vertical, elevada e próxima ao céu, a montanha participa do simbolismo da transcendência; enquanto centro das hierofanias atmosféricas e de numerosas teofanias, repre-senta o simbolismo da manifestação, da revelação. É conside-rada, por isso mesmo, o ponto de ligação entre o céu e a terra, a morada dos deuses e a última escala da ascensão humana.

Na tradição bíblica, compartilhada tanto por judeus quan-to cristãos, são numerosos os montes que se revestem de valor sagrado-místico: O Monte Sião que representa a grande monta-nha cósmica das origens (criação do mundo), cujo eixo é o polo do universo (Sl 87). O Monte Sinai, onde Deus entregou a Moisés as Tábuas da Lei, e por isso, considerado lugar da Revelação por excelência (Ex 19, 20). O Monte Garizim, onde Jacó levanta um altar (Gn 33, 20) e Abraão encontra-se com Melquisedec, estabelecendo aí a Eucaristia (Gn 14, 18-20). É a montanha das bênçãos (Gn 27), centro da terra, colina eterna, Casa de Deus. O Monte Carmelo, onde o profeta Elias experimenta a presença de Deus (I Rs 18, 42). Monte em que a espiritualidade carmeli-ta soube assumir como a imagem inspiradora da ascensão da alma até Deus (como em São João da Cruz na sua obra Subida ao Monte Carmelo).

E já relacionado ao ciclo da vida de Cristo temos:

As montanhas que serviram de cenário para as tentações do demônio (Mt, 4, 8) e para o sermão das bem-aventuranças, conhecido como Sermão da Montanha (Mt, 5, 1). O Monte Tabor que, segundo a tradição, Cristo escolheu para manifestar-se no esplendor de sua glória, no episódio da Transfiguração (Mt 17,

1-13; Mc 9, 2-13; Lc 9, 28-36). O Monte das Oliveiras, onde ocorreu a Ascensão de Cristo ao céu (Lc 24, 50; At 1, 1-11). E por fim, aquele que é o grande monte sagrado para os cristãos: o Monte Calvá-rio, da Caveira ou Gólgota, local onde Cristo foi crucificado e morreu, derramando o seu sangue para redenção dos pecados do mundo (Mt 27, 33; Jo 19,17; Mc 15, 22; Lc 23, 33). Monte que sim-boliza, portanto, a Eucaristia/Sacrifício. Em tradições antigas, o Monte Calvário é o símbolo do cume da terra, o lugar em que Adão, o primeiro pecador, foi criado e enterrado (daí o costu-me de se representar ao pé do crucifixo uma caveira entre dois fêmures cruzados simbolizando os ossos de Adão).

Durante muitos séculos, a partir da expansão do Cristia-nismo por todo o mundo, o Monte Calvário transformou-se no local preferido dos peregrinos, que viajavam aos milhares à Terra Santa para visitar in loco o lugar onde o Redentor havia morrido. Era uma jornada muito arriscada e longa, que podia durar de meses a anos. No Oriente, os fiéis cristãos contavam com a proteção e auxílio das Ordens Militares que ali se instala-ram, notadamente dos Hospitalários e Templários. A partir do século X, no entanto, essa piedosa jornada tornou-se cada vez mais perigosa, tendo em vista as dificuldades cada vez maiores dos cavaleiros de Cristo em manter o Reino Cristão do Oriente, sendo que importantes centros daquele reino, como Acra, Si-don, Jafa, Ascalão e até mesmo Jerusalém, encontravam-se sob o poder dos muçulmanos ou ameaçados por estes.

Os empecilhos à romaria aos lugares santos propiciaram o surgimento no Ocidente das denominadas “peregrinações de substituição”. Isto é, locais onde se procurava reproduzir, às vezes guardando as distâncias reais, os últimos passos de Cristo a caminho de sua morte na cruz. Trata-se, portanto, da famosa Via Crucis ou Via Sacra; o fiel, ao percorrê-la, é estimulado a

Na secular Festa do Jubileu do Matosinhos, o improvisado fogão dos romeiros.

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qsentir e a meditar sobre o drama da Paixão e Morte de Jesus. Para maior realismo e simbolismo dessa imitação não poderia deixar de faltar o “Sacro Monte”, uma elevação ou colina, em cuja encosta se erguem capelas (Passos) contendo quadros ou estações indicando cada uma das passagens referentes aos pas-sos de Cristo até o cume, onde é representada a cena principal e comovedora da crucificação.

A imitação mais antiga desses Passos do Calvário de que se tem notícia é a do Mosteiro de Santo Estêvão, em Bolonha, cuja menção mais recuada no tempo é do século IX. Depois,

muitos outros foram sendo construídos, na Alemanha, na França, na Itália e em Portugal, onde se ergue, nos arredores de Braga, o Santuário de Bom Jesus do Monte, que inspirou diretamente o San-tuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo.

É importante ressaltar essa questão do “Sacro Monte” e da Via Sacra porque, na religião popular, a devoção ao Bom Jesus encontra-se centrada no mistério da Paixão e Morte de Cristo. A sua espiritualidade, portanto, tem um duplo eixo: a paixão e a compaixão. Cristo não é apenas um sofredor da sua paixão, mas, por meio dela, propicia sua compaixão pelo povo sofredor. Isso gera dois sentimentos com-plementares: aceitação do sofrimento pessoal, unido à paixão de Cristo, e solidariedade para com os outros, mediante o com-padecimento de seus sofrimentos. Não se trata, como se percebe, de uma devoção qualquer, mas uma especial que faz o povo suportar os sofrimentos e agruras do dia a dia, trazendo em si uma admirável capacidade de resistência e até de libertação.

Bom Jesus é, pois, a devoção do Cristo sofredor centrado

na mística de sua paixão e morte na cruz. Nesse sentido, evoca quatro ciclos da paixão do Senhor: a flagelação e a coroação de espinhos, representadas pelas imagens do Senhor Bom Jesus da Cana Verde, da Pedra Fria e da Coluna; o caminho do Calvá-rio e as sucessivas quedas, lembradas na figura do Senhor dos Passos; a agonia e morte na cruz, expressadas pelas imagens do Bom Jesus de Matosinhos, Bom Jesus do Monte, Senhor da Agonia e Senhor do Bonfim; o descendimento da cruz e sepul-tamento, simbolizados na figura do Senhor Morto, comum em nossas procissões da Semana Santa.

a devoção em outras cidades de MinasSintoma direto do apreço pela devoção do Bom Jesus em

Minas Gerais são as inúmeras localidades surgidas carregando esse topônimo; umas, mantendo-o até hoje; outras, o reduzindo ou o substituindo por outro que expressa ideias mais condizen-tes com o mundo moderno. Só a título de exemplo, podemos arrolar, entre muitos outros, os seguintes: Bom Jesus da Ca-choeira, Bom Jesus do Lambari (atual Jesuânia), Bom Jesus da Cana Verde (atual Tabuleiro), Bom Jesus da Pedra do Indaiá (atual Pedra do Indaiá), Bom Jesus do Amparo, Bom Jesus do Bom Jardim (atual Bom Jardim de Minas), Bom Jesus do Galho, Bom Jesus da Penha, Bom Jesus do Campo Místico (atual Campo Místico), Bom Jesus do Campo Belo (atual Campo Belo), Bom Jesus do Pirapetinga (atual Manhumirim), Senhor Bom Jesus do Furquim (atual Furquim), Senhor Bom Jesus de Matosinhos (atual Matosinhos).

A devoção de Bom Jesus propiciou também a edificação de igrejas, capelas e ermidas que, ao longo da história, transfor-maram-se em importantes centros de romaria. Dessas constru-ções, verificamos que aquelas devotadas ao Senhor Bom Jesus do Matosinhos figuram em muito maior número, demonstran-

A imagem do senhor dos passos carregada durante procissão na festa do Jubileu do Bom Jesus do Matozinhos.

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qdo a força que essa invocação tomou em todo o território das Minas Gerais.

o Jubileu: lenda e históriaNa origem do culto de Bom Jesus de Matosinhos em Concei-

ção, bem como a construção da capela destinada a abrigar a imagem do dito Senhor crucificado e a consequente instituição da Confraria de Matosinhos, todos esses fatos estão centrados em três episódios, nos quais se mesclam lenda e história, mas que ao serem analisados de forma mais contundente, infere-se que um não exclui o outro, mas se complementam.

1º Episódio – Semelhante ao que ocorreu em Portugal, a origem do culto em Conceição parte também de uma lenda: o negro Antônio Angola, escravo do capitão Manuel de São Tiago Franco, andava à procura de lenha nos arredores do arraial, quando encontrou uma perfeita imagem do Senhor crucificado. Ao saber do ocorrido, o capitão São Tiago, provavelmente um devoto do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, mandou construir no alto do morro um singelo orago, onde foi entronizado o Senhor Bom Jesus achado, conduzido até ali em piedosa pro-cissão. O pároco Manoel de Amorim Coelho, que acompanhou o cortejo, benzeu a imagem e proferiu um sermão explicando ao povo o milagre de seu achamento e solicitou aos habitantes do lugar que contribuíssem com esmolas para a construção de uma modesta ermida.

Algum tempo depois, um longo período de seca assolou a região, dizimando as criações e ressecando as plantações, dei-xando os moradores em grande estado de penúria. Foram fei-tos muitos pedidos e promessas a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do lugar, acompanhadas de rezas e inúmeras procis-sões, mas nada de chuva! Até que um dia alguém sugeriu que

se fizesse uma procissão conduzindo a imagem do Bom Jesus do alto do morro até o povoado. Era a ocasião propícia para se averiguar a eficácia de seu poder miraculoso, e operar o pro-dígio tão aguardado pelos moradores. E assim transcorreu: no momento em que o cortejo passava pela Rua Direita, aproxi-mando-se da igreja matriz, o céu se fechou abruptamente, car-regado de nuvens escuras, trovões e raios riscaram a paisagem montanhosa e uma chuva torrencial desceu sobre a região, du-rante dias seguidos. E outro milagre se operou, para surpresa e contentamento de todos: as enxurradas que desciam das encos-tas dos morros escavaram a terra, arrastando para as ruas do povoado uma quantidade de ouro jamais vista até então!

2º Episódio – A notícia do poder milagroso alastrou-se rapidamente pela região e cada vez mais um número maior de devotos subia até o local onde se encontrava entronizado o Bom Jesus, para fazer as suas preces e pagar suas promes-sas. Em 1743, passando por Conceição em visita pastoral, o 5º bispo do Rio de Janeiro, dom Frei João da Cruz, percebendo toda essa badalação em torno da imagem, recomendou ao vi-gário da freguesia, naquela época o padre Miguel de Carvalho Almeida Matos, “que construísse por conta de esmolas ou pelos cofres da fábrica da matriz uma ermida decente para tão mi-lagrosa imagem”. Assim, teve início ou andamento – devemos lembrar que o pároco anterior também solicitara dinheiro para as obras – da obra da primitiva ermida dedicada ao Senhor de Matosinhos de Conceição. Em 1750, sob ordem do 1º bispo de Mariana, dom frei Manoel da Cruz, ocorreu a bênção inaugural da ermida, “na forma do ritual romano”.

3º Episódio – Transcorridos alguns anos, por volta da déca-da de 1770, um português enriquecido nas lavras de ouro, por

Santuário recebe a cada ano, há mais de duzentos anos, uma legião de romeiros de várias partes do Brasil.

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qnome José Correia Porto, acometido de uma doença do siste-ma nervoso, conhecida como zamparina, apegou-se ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos para curá-lo. Como cumprimento da promessa pela cura alcançada resolveu ajudar na edificação de uma nova igreja para o Bom Jesus, tendo prometido ainda mandar vir de Portugal uma nova imagem.

Algumas considerações devem ser tecidas em torno desses três episódios, com o intento de demonstrar como a lenda e a história se fundem para edificar a bela saga do Senhor Bom Jesus de Matosinhos em Conceição. Em primeiro lugar, sabemos que o capitão Manuel de São Tiago Franco foi um próspero minerador, que nas décadas de 1730 e 1740 encontrava-se estabelecido no arraial de Conceição. Fato comprovado por alguns documentos, como registros de casamentos, entre os anos de 1743 e 1748, nos quais percebemos a sua presença como testemunha nas celebra-ções. No Livro de Matrículas de Escravos e Ofícios, para o ano de 1749, seu nome aparece arrolado, constando como morador de Conceição e declarando um número expressivo de escravos, 29 no total. Interessante notar é que essa relação indica o nome e idade dos escravos; assim, verificamos que o capitão São Tiago possuía um escravo por nome Antônio Angola – quer dizer, de nação Angola –, com 31 anos. Também possuía outros escravos de nações Mina e Cobu, alguns, inclusive, com nomes repetidos, como dois João Angola, dois Mateus Mina, dois Manuel Mina etc. Mas Antônio Angola, só um.

Como o achamento da imagem do Bom Jesus ocorreu na épo-ca em que o pároco era o padre Manoel de Amorim Coelho, o que nos remete praticamente a toda a década de 1730, o escravo Antônio Angola encontrava-se com seus 14 ou 15 anos de idade – fase em que os escravos eram muitos valorizados, sendo que já se encontravam aptos para o trabalho, notadamente para tarefas

corriqueiras como era o apanhar lenha na mata, labor que o pos-sibilitou encontrar a “perfeita” imagem do Bom Jesus.

Há dois discursos da história que são construídos a partir da lenda do Matosinhos de Portugal: primeiro, o seu achamen-to por pessoas humildes e sofredoras, em Conceição, no caso, o escravo; lá em Portugal, um grupo de pescadores. Isso remete também à presença do elemento fogo, ou melhor, daquilo que dá combustão ao fogo, no caso, a lenha, nas duas narrativas: assim como a pobre camponesa portuguesa encontrou o braço faltoso do Crucificado à procura de lenha, também o escravo angolano teve nessa labuta o seu miraculoso achado.

O outro discurso refere-se, obviamente, à questão do poder da imagem em intervir beneficamente no clima: em Portugal, como vimos, a imagem do Senhor Bom Jesus de Matosinhos era retirada da igreja todas as vezes em que se precisou aplacar epidemias de doenças mortíferas e suprimir flagelos climáticos (estiagens prolongadas e inundações provocadas pelas chuvas). No Brasil, como sabemos, até hoje o povo das regiões áridas faz procissões, promessas e novenas dirigidas a algum santo, especialmente a São José, para que este traga a tão necessária chuva. Portanto, não se trata de nenhum fato desprovido de razões históricas que o povo de Conceição, em uma época de prolongada seca, tenha se apegado ao Bom Jesus para fazer ope-rar esse milagre “climatológico” na região.

A segunda consideração refere-se ao episódio da construção da capela de Bom Jesus de Matosinhos. O capitão Manuel de São Tiago Franco mandou erguer o primeiro orago para abrigar o santo, em uma elevação próxima ao arraial, provavelmente em terras que eram suas ou o fez em comum acordo com os habi-tantes da localidade. O pároco Manoel de Amorim Coelho foi o primeiro a solicitar dos moradores as esmolas para a cons-

Primitiva imagem do Bom Jesus, que segundo a lenda teria sido encontrada pelo escravo Antonio Angola – primeira metade do Século XVIII (escultura em madeira policromada). Autoria desconhecida.

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qtrução de uma ermida mais condigna à importância do Bom Jesus. Mais tarde, em 1743, o bispo do Rio de Janeiro, dom frei João da Cruz, de passagem pelo arraial em sua visita pastoral, verificando a falta de decência da ermida que estavam erguen-do, determinou a sua ampliação ou mesmo conclusão a partir de esmolas ou com os recursos advindos da fábrica da matriz. É bom lembrar que a edificação de uma capela particular ou de devoção pública devia ser feita mediante a provisão passa-da pela autoridade diocesana. E, ao que parece, foi esse o ato consumado pelo bispo, ao autorizar o culto e exigir uma cape-la mais decente para abrigar “tão milagrosa imagem”. Citação que demonstra que dom frei João da Cruz, portanto, já estava a par da fama miraculosa da imagem, mesmo levando-se em conta o fato de a Igreja tratar com muita cautela, notadamente a partir do Concílio Tridentino, questões relativas a milagres operados por imagens.

Foi somente em 1760, no entanto, que o 1º bispo de Ma-riana, dom frei Manoel da Cruz, passou a provisão necessária para a construção do novo templo, alegando que a antiga “Ca-pella nam era mui decente e digna do Senhor Todo-Poderoso e o povo forasteyros que dam grandes esmollas sam obrigados a ficar fora da dita Capella quando se celebram as missas por nam haver logar nella como he costume” (...)

Mais tarde, portanto, principiaram a dar início às obras do novo templo, aproveitando a que já existia antes.

Por último, há o episódio da intervenção de um devoto bene-mérito na construção de uma igreja maior e da doação de uma nova imagem do Senhor Bom Jesus. A história do tenente José Correia Porto não está respaldada por documentos de época. Foi divulgada no jornal Conceição do Serro, no início do século XX (1904), que tinha por redator o poeta e escritor Alphonsus de Gui-

marães, a partir de uma informação passada por uma senhora de 73 anos de idade, que, por sua vez, a havia recebido de sua avó, cujo nascimento pode ser projetado para o final do século XVIII, época em que a memória dos fatos transcorridos e relacio-nados a esse episódio estava ainda bem fresca.

O caso de José Correia é semelhante ao que ocorreu com o português Feliciano Mendes que, curado de uma pertinaz doen-ça que o acometia e alcançando cura graças à promessa feita ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos, de quem era fervoroso devoto, resolveu erguer uma ermida dedicada ao mesmo Senhor, que ao longo do tempo se transformou no imponente Santuário do Senhor de Matosinhos de Congonhas, com os seus profetas e ima-gens da Paixão esculpidas por Antônio Francisco Lisboa, o Alei-jadinho. José Correia Porto, também acometido de uma grave doença – a zamparina, como se disse –, procurou a cura apegan-do-se ao Bom Jesus, e como cumprimento do voto feito propôs ajudar na construção de uma nova igreja e tra-zer da Euro-pa uma nova imagem do Cristo crucifi-cado.

Na verda-de, devemos entender isso

O santuário construído na década de 1930 ganhou formas arquitetônicas modernas em substituição à antiga capela (detalhe).

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qcomo sendo a terceira etapa da construção do templo dedicado ao Bom Jesus de Matosinhos em Conceição, que seria aquele que teve as obras iniciadas por volta de 1760, alastrando-se até o fi-nal do século XVIII e em parte do século XIX, e que posteriormen-te, na década de 30 do século XX, foi desmontado para dar lugar ao Santuário atual.

Tendo morrido antes do início da construção da nova igreja, os seus piedosos desejos devem ter sido cumpridos, via testamento, por seus familiares ou testamenteiros, como era comum ocorrer nesses casos de doação para obras pias. Seja como for, a nova igreja come-çou a ser erguida a partir da década de 1770 e uma nova imagem foi adquirida na cidade do Porto, em 1773, pelo pároco Luiz Alves Gon-dim – com os recursos deixados, certamente, pelo fervoroso devoto.

os segredos contidos nas imagens É interessante aqui fazer uma observação sobre as duas

imagens do Bom Jesus existentes atualmente no Santuário. Há uma imagem menor do Cristo crucificado que fica entronizada em uma pequena capela situada no interior do Seminário, de visitação restrita. Tudo leva a crer ser a primitiva imagem, que a lenda diz ter sido achada pelo escravo Antônio Angola. Estilis-ticamente, trata-se de uma imagem com características escultó-ricas da primeira metade do século XVIII, de fatura popular, de composição hierática, com a anatomia tratada com certa du-reza, e o panejamento do perizônio do Cristo anguloso e pouco movimentado, elementos bem típicos das esculturas realizadas nesse período. Já o outro crucificado, em tamanho natural, tem o tratamento anatômico bem mais apurado, o perizônio apre-senta dobras movimentadas, típicas do rococó, estilo vigente em Portugal a partir de meados do século XVIII – em Minas Gerais ocorreria algum tempo depois. É bastante provável a informação de que a imagem teria sido trazida da cidade do

Porto, que se destacaria no século XVIII como importante centro produtor e exportador de imagens religiosas.

Do que foi exposto, podemos concluir o seguinte: uma ima-gem do Senhor crucificado, esculpida por artífice português ou nativo, foi “achada” por um escravo de um próspero minerador, certamente devoto do Bom Jesus de Matosinhos. Um esforço foi feito pela população, que acreditava nos poderes miraculosos da imagem, para erguer uma ermida para o seu Bom Jesus, isso com a aquiescência do clero. Mais tarde, outro devoto, tendo alcança-do a cura de uma doença graças aos pedidos feitos ao Bom Jesus, resolve ajudar na construção de uma igreja maior, para subs-tituir a antiga ermida, que não comportava mais os romeiros, que para ali confluíam em número cada vez maior. Uma nova imagem foi trazida de Portugal, para ser entronizada no trono principal da nova igreja, substituindo, assim, a antiga, objeto da primeira veneração dos fiéis.

Obviamente, no cerne desse roteiro não podemos deixar de mencionar o papel da Confraria de Bom Jesus de Matosinhos de Conceição, cuja importância encontra-se justamente na organi-zação do culto, tanto no seu aspecto material (construção e ma-nutenção da igreja) quanto imaterial (realização do Jubileu).

a ConfrariaAo que parece, a organização da Confraria do Bom Jesus de

Matosinhos do arraial de Conceição foi providenciada em 1759, por iniciativa do pároco José Pacheco Ferreira de Vasconcelos, em reunião organizada na igreja matriz. Aliás, em 1760, no epi-sódio da construção da nova igreja os irmãos do Bom Jesus já se apresentavam para dar início às obras do novo edifício. O livro interno mais antigo da Confraria ainda existente – de registro de irmãos e eleições de juízes – tem seu “termo de abertura” datado

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Sala dos Milagres, onde os devotos depositam símbolos de fé e clamor ao Bom Jesus.

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qde 1773, embora só tenha lançamentos feitos a partir do ano de 1790 (22 de maio). E somente em 24 de junho do mesmo ano foi eleita a primeira mesa administrativa. Em 1803, a Confraria já contabilizava cerca de 4.000 irmãos inscritos (Capítulo 6 do Compromisso). Fato é que esses irmãos não se circunscreviam so-mente à freguesia de Conceição, mas eram requisitados em locais distantes como Sabará, Caeté, Raposos, Camargos, Rio Pomba e Comarca do Rio das Mortes, exigindo-se, por conta disso, que fos-sem eleitos procuradores para “andarem vagabundos” a fim de cobrarem os anuais em todos os lugares onde houvesse irmãos.

Os estatutos da Confraria foram aprovados pela autorida-de ordinária em 1803, que foi confirmada pelo Príncipe Regente Dom João, no Rio de Janeiro, em 5 de fevereiro de 1814. Dos seus quatorzes capítulos, destacamos o 13º, que dispõe sobre a realização da festa do Bom Jesus:

Terá esta Sancta Confraria rigoroza obrigação de conser-var anualmente o Santíssimo Sacramento exposto nos três dias chamados vulgarmente – dias de carnaval – e da mes-ma forma desde quatorze de junho athé vinte e quatro do sobredito mês, dia em que se há de festejar ao Senhor Bom Je-sus de Mattozinhos Padroeiro desta Confraria, com Missa Sole-ne, Sermões e Procissões, e isto se observará tão inviolavelmente como huma das condições essenciais, impostas a esta Confraria pelo Santíssimo Padre Pio Sexto na concessão de seos Breves...

Com efeito, o papa Pio VI expediu seis Breves, datados respectivamente de 6, 7, 8 (2), 23 e 26 de março de 1787, con-cedendo indulgências plenárias a todos os fieis de um e outro sexo, que em qualquer dos dias – 3 de Maio e 23 de Junho – desde as primeiras vésperas até o pôr do sol dos ditos dois dias, verdadeiramente arrependidos, confessados e tendo comunga-do, visitarem a Igreja ou capela publica do Senhor Bom Jesus

de Matozinhos da dita Confraria de Conceição do Mato Dentro, rogando a Deus pela concórdia dos Príncipes Cristãos, extirpa-ção das heresias e exaltação da Santa Madre Igreja.

Mas somente em 14 de junho de 1790, decorridos três anos dessa concessão papal, o padre Bento Alves Gondim fez publicar um “sumário das Indulgências” concedidas aos confrades do Senhor Bom Jesus de Matosinhos da freguesia de Nossa Senhora da Concei-ção. Tal ato pode ser considerado, por conseguinte, o marco inicial do Jubileu que se celebra até os dias atuais em Conceição, entre os dias 14 a 24 de junho, com missas solenes, sermões e suntuosa procis-são abrilhantada por bandas de música e espetáculos pirotécnicos.

O prestígio do Jubileu no século XIX pode ser dimensionado a partir da leitura de um dos livros de despesas da Confraria ainda conservado, no qual se percebe o zelo com que os irmãos mesá-rios organizavam a celebração, contratando a música, os fogos e até o sineiro para os dias do evento. Lembrando aqui que eram dois Jubileus por ano: um, maior, que ainda sobrevive, comemo-rado entre os dias 14 e 24 de junho; e o chamado “Jubileuzinho”, celebrado nos dias de carnaval. No que tange ao contrato da mú-sica, que é um elemento essencial das celebrações, destaca-se o nome do músico Juvêncio Policarpo Moreira, que durante muitos anos, no século XIX, foi responsável por compor a música para a missa, a procissão e o Te Deum, notadamente para o dia 24 de junho, no qual se comemora o Senhor Bom Jesus de Matosinhos.

Pelo capricho e zelo em que o Jubileu era organizado no século XIX, pelo gasto que era despendido com as celebrações, percebe-se que tudo transcorria em um clima da mais profun-da religiosidade. Fato, aliás, atestado pelo poeta Alphonsus de Guimarães, que ainda pôde vislumbrar esse clima oitocentista da festa, quando residiu em Conceição entre os anos de 1895 e 1906, exercendo os cargos de promotor de justiça e de juiz subs-

Cidade é tomada por romeiros com suas barracas montadas em volta do santuário do Bom Jesus do Matosinhos.

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qtituto, e para o qual o Jubileu parecia transcorrer num espírito de piedade propício ao culto, sem ser ainda contaminado por motivações extrarreligiosas, como o comércio e os jogos, como se via no Jubileu realizado em Congonhas do Campo.

No século XX a história se repetiu: como ocorrido no sécu-lo XVIII, quando o bispo Dom Frei Manoel da Cruz autorizou a ampliação do templo para acomodar o número cada vez maior de “forasteiros”, na década de 1930, o pároco frei Vicente de Li-códia, também percebendo a incapacidade da antiga igreja colo-nial – já em estado de ruínas – em receber os romeiros, resolveu erguer um templo maior e mais adequado às novas necessidades do culto. Nesse sentido, em 8 de novembro de 1931 foi lançada a pedra fundamental do novo edifício, cujo projeto ficou a cargo do arquiteto carioca Mário de Moreira e a construção encarregada ao construtor Vito Vitarelli, já conhecido na cidade, onde havia construído o grupo escolar “Daniel de Carvalho”.

O novo Santuário ficou definitivamente concluído em 1934, sendo que a 12 de maio do mesmo ano uma imponente procissão conduziu triunfalmente a imagem do Senhor Bom Jesus da igreja matriz – onde se alojou temporariamente enquanto se aprontava seu novo trono – para sua morada A presença de um novo templo, com maior capacidade de acomodação de fiéis e mais condizente à grandeza do culto, inaugurou uma nova época para o Jubileu de Conceição, para onde aflui um número cada vez maior de romei-ros, agora favorecido pela abertura de estradas de rodagem e pela popularização dos meios de transporte, como o carro, o caminhão e o ônibus, mas sem desprezar a velha e tradicional montaria. A partir de então, uma cena comum em Conceição na época do gran-de Jubileu, como nos atestam várias fotografias de época, é a pre-sença de centenas de barracas coloridas, ocupando a paisagem da encosta do Santuário, formando uma verdadeira minicidade. Um

recenseamento feito pelos organizadores do Jubileu de 1978 exem-plifica bem essa multidiversidade dos romeiros: estavam presentes naquela ocasião 5.528 pessoas, alojadas em 959 barracas, oriun-das de 78 localidades diferentes, entre Minas Gerais, Bahia, Goiás e São Paulo. Só de Minas Gerais tinham 952 barracas, destacando-se Belo Horizonte, com 137 barracas e 548 pessoas; Peçanha, com 125 barracas e 774 pessoas; Congonhas do Norte, com 66 barracas e 425 pessoas; e Sabará, com 51 barracas e 286 pessoas.

(Fonte: Jornal A Voz de Conceição, Ano I, nº 21, agosto de 1978)

Mas o Jubileu desses novos tempos não se manteve somente den-tro daquele clima piedoso vivenciado e descrito pelo poeta Alphon-sus Guimarães durante sua estada em Conceição; a partir de então começou a emergir o lado mais mundano da festa, com o comércio de todo tipo de mercadoria, desde comida e bebida até as quinqui-lharias ditas “sacras”, além dos jogos e das diversões mundanas, é claro. Situação que pôs em alerta as autoridades religiosas e mesmo as pessoas de índole mais religiosa, a ponto de se elaborar uma espé-cie de cartilha destinada ao “verdadeiro” devoto, esclarecendo a ele a maneira correta de se beneficiar do Jubileu considerado “santo”; assim, lucra com o Jubileu aquele que preparar perfeitamente seu corpo e sua alma, meditando, fazendo a confissão e se comungando. E não lucra quem aproveita a ocasião para explorar os romeiros, se entregar aos jogos, às diversões ilícitas, ao comércio “escorchante” e aos vícios hediondos.

(Fonte: Santuário do Bom Jesus, Ano IX, junho de 1954)

Entretanto, recriminando ou não o comércio que se formou em torno do Jubileu, o certo é que a cidade de Conceição se trans-forma e se modifica durante os dias em que é tomada pelos ro-

Arautos da fé, os romeiros entregam seus pedidos ao Bom Jesus na certeza de serem atendidos em seus clamores.

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meiros. Mas o povo não se incomoda, principalmente aqueles que têm sua fé, que veem no Jubileu um tempo de comungar, orar, prestar sua gratidão ao Bom Jesus. Os concecionenses sabem mui-to bem o que é dirigir o olhar para o alto do seu “Sacro Monte” e ali renovar a cada dia suas esperanças no Senhor Bom Jesus. E que por saberem e sentirem isso, recebem com alegria os romei-ros que vêm de longe – como certamente os antigos recebiam os “forasteiros” – e que com sua presença mantém viva a tradição religiosa da cidade, iniciada, ainda que lendariamente, por um negro angolano há quase trezentos anos.

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a beleza do céu, o contorno da rocha, o raio, as nuvens. Tudo remete à magia incontida da natureza neste lugar chamado Conceição do Mato Dentro

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qMisticismo é uma forte marca dos devotos que visitam o lugar.

o PoVoaDo “faNTaSMa” E a DEVoÇÃo a SÃo MigUEl E alMaSA trad ição do d is tr i to de Cemitér io do Peixe, um lugar enigmát ico

Capela do povodado do Cemitério do Peixe sedia um dos últimos jubileus consagra-dos a São Miguel e Almas de que se tem notícia no Brasil.

Fabiano Lopes de Paula e Eliane Magalhaes Matos

o Cemitério do Peixe destaca-se pela sua tradição cultural e significação, por carregar uma forte relação com pesso-as e experiências do passado de uma comunidade.

“Ó tu que vens a este cemitério, medita um pouco nesta campa fria: eu fui na vida o que tu és agora, eu sou agora o que serás um dia.”

(Mensagem inscrita na placa do cruzeiro do cemitério)

Além da paisagem construída, o local tem seu significado, ainda, na cultura imaterial, onde a religiosidade se manifesta. Constitui patrimônio

histórico, ligado, portanto, a pessoas e tradições de uma loca-lidade. Pertence ao município de Conceição do Mato Dentro, uma das regiões exploradas no período do ciclo do ouro e pe-dras preciosas. Situa-se próximo ao distrito de Capitão Felizar-do, aos municípios de Gouveia, Congonhas do Norte e Serro; está plantado em uma colina pouco acentuada e fica cercado pelos maciços do Espinhaço e o Rio Paraúna, que banha a re-gião, manancial muito explorado à época do auge do garimpo, período marcado pela “rota do contrabando”.

Cemitério do Peixe é um lugarejo próximo uns 30 ou 40 km de Diamantina. É constituído de uma igreja e um cemitério que dá nome ao lugar. O lugarejo se resume, basicamente, num aglomerado de umas cem casas pequenas, de chão batido, pin-tadas de branco que se revestem de vida e movimento e onde

se abrigam seus proprietários e outros religiosos no período da tradicional festa. No restante do ano, o local fica desabitado, à exceção de uma única família: Lotinha e seu filho, Zezinho.

A capela de São Miguel Arcanjo, defronte ao cemitério, com-pleta esse quadro, mantendo o misticismo do local.

Várias fontes históricas explicam sua existência. Uma delas é que pertencia ao distrito de Costa Sena, de nome, inicialmen-te, povoação de São Francisco de Paraúna, depois Paraúna. Ele-vado à condição de paróquia no século XVIII, no ano de 1872 . A referência a sua condição de povoado é permeada por várias informações de pesquisadores como Pelicano Frade, Victor da Silveira e Waldemar Barbosa. O primeiro se refere ao Cemitério do Peixe, pertencente a Conceição do Mato Dentro, contendo 12 casas, no ano de 1917; o segundo faz menção ao lugarejo, no ano de 1925, integrante do distrito de Paraúna; e o terceiro se refere a um povoado, de nome Cemitério, criado em 1870, que teria desaparecido. Esse mesmo autor afirma não possuir dados para garantir que esse povoado seja o Cemitério do Peixe.

A região onde se localiza o Cemitério do Peixe, por suas

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qriquezas de ouro e diamante, passou a ser conhecida como a “rota do contrabando”. Essa área, a partir dos séculos XVIII e XIX, teve seu solo revirado, o leito do rio Paraúna desviado e sucessivas explorações de ouro. Essa riqueza trouxe levas de in-trépidos aventureiros que contribuíram para fazer a história. Hoje, apenas ruínas, sinais esparsos dessa exploração e histó-rias dessa região. Esse dinamismo de idas e vindas trouxe, tam-bém, interesses diversos, principalmente, por parte daqueles que tinham intenção de desviar o rumo das riquezas, buscando rotas alternativas e ocasionando fugas para o sertão mineiro. De tudo ficaram suas marcas.

Da vigilância exercida pela metrópole, foi implantado um destacamento militar, cuja função era impedir o descaminho de riquezas. A região é denominada por esse motivo Quartel. O local exato dessa construção foi identificado durante o Diag-nóstico Arquelógico da PCH Quartel 1, quando foram registra-dos os alicerces dessa edificação. O local foi indicado pelos pro-prietários do terreno, Luciano Santos e Dilza Dayrell.

Decorre daí uma das versões que explica a origem do Cemitério do Peixe. Para que essas riquezas tivessem apenas a administração de Portugal, foram estabelecidos vários regula-mentos. Segundo Caio Prado Júnior, a área em que se tinha fixado a exploração de diamantes circundava o arraial do Tejuco, hoje cidade de Diamantina. Seus contornos tinham sido rigorosamente demarcados desde a criação da Intendência dos diamantes, órgão similar das Intendências do ouro, em 1734. (...) Não havia juízes ou tribunais, nenhuma outra autoridade

superior ou paralela; e seus poderes iam até o confisco de todos os bens e decretação da pena de morte civil sem forma de processo ou recur-so algum. Tudo isto unicamente para melhor fiscalizar a extração e impedir o descaminho das pedras 2 .

auguste Saint-hilare nos fala como Diamantina ficou conhecida:

O Distrito Diamantino ficou como que iso-lado do resto do Universo; situado em um país governado por um poder absoluto, esse distri-to foi submetido a um despotismo ainda mais absoluto; os laços sociais foram rompidos ou pelo menos enfraquecidos; tudo foi sacrificado ao desejo de assegurar à coroa a propriedade exclusiva dos diamantes 3.

Na tradição oral, encontram-se mais versões sobre essa lo-calidade, a maioria, ainda, sem evi-dências de comprovação. A mais pro-vável remonta ao século XIX, quando da instalação de Antônio Francisco Pinto, um poderoso fazendeiro, co-merciante, criador de gado bovino e, ainda, possuidor de alguns garimpos na região. e proprietário dessas terras. Mais conhecido como Canequinha, nascido em 05/06/1860, doou um terreno para construção da Capela e te-ria levado ao Bispo um pedido para que o Cemitério do Peixe tivesse assistência de sacerdotes católicos; por essa razão, ficou conhecido como fundador das Missões no Cemitério do Peixe.

a região onde se localiza o Cemitério do Peixe, por suas riquezas de ouro e diamante, passou a ser conhecida como a “rota do contrabando

O cemitério continua ali, intacto, à espera dos fiéis que vem rezar para as almas de muitos que ali tombaram.

1- mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecer2 - rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética

3- mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal,

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qAlém disso, mandou construir pequenas casas para abrigar os padres e fiéis que vinham de Curvelo, Diamantina, Gouveia e outras cidades. Preocupou-se em construir muros em volta do cemitério, além de pastos para alojar os cavalos. Copiosos re-latos falam do pasto conhecido como Pasto das Almas. Com o tempo, os fiéis edificaram outras casas no local. Canequinha faleceu em 08/07/1941. Foi enterrado no Cemitério do Peixe, no primeiro túmulo à esquerda da entrada, onde se gravou a se-guinte inscrição: o “Fundador”.

Uma das versões da origem do Cemitério do Peixe vem do século XVIII, quando Diamantina ainda era o arraial do Teju-co. Com a descoberta de diamantes nessa região, Portugal to-mou medidas de proteção para que essas pedras fossem explo-radas somente por sua administração. Medida adotada para controlar a produção, manter os preços, facilitar a cobrança dos direitos da Coroa e impedir o contrabando. O Distrito Dia-mantino foi demarcado, mapeado e vigiado por vários postos de destacamentos militares. Em 1731 4, por uma carta régia, decretou-se o monopólio sobre a extração de diamantes, de-clarando o local como Propriedade Real. A coroa portuguesa resolveu explorá-los por conta própria e, nesse sentido, muitos regulamentos foram elaborados.

Aqueles que eram pegos em contrabando, segundo essa ver-são, eram mortos e enterrados no Cemitério do Peixe. Ainda vincula-se a essa história que os soldados do quartel se alimen-tavam de peixes do rio Paraúna. Por faltar alimento para esses soldados, buscaram, então, os peixes desse rio para sua subsistên-cia. Em certa ocasião, os peixes estragaram-se e alguns soldados morreram intoxicados e foram enterrados no Cemitério do Peixe.

Ainda nesse imaginário popular, outra versão é a do escra-vo chamado “Peixe”. A mando de seu senhor, carregava uma

grande quantidade de Diamantes até determinado local; porém esse escravo desapareceu por vários dias e o seu dono, que tinha por ele muita estima e confiança, conjecturou a possibilidade de o terem matado. Mandou fazer uma busca e encontraram--no morto onde seu proprietário erigiu, em sua homenagem, o Cemitério do Peixe. A partir daí, muitos dos que morriam na região eram ali enterrados. Acreditou-se que as almas do local seriam santificadas e desse fato surgiram os pedidos, promessas e agradecimentos a essas almas benditas. Esse fato motivou ro-marias e cerimônias de devoção ao cemitério. Segundo dizem, essas práticas são realizadas por mais de 200 anos por romeiros crentes nas almas e no Arcanjo São Miguel.

O jornal Estrela Polar, em uma de suas matérias já se referia ao Cemitério do Peixe como “Quartel do Peixe”:

quartel do Peixe

Nesse Antigo território do “tempo do Rei”, aonde se acha o Cemitério do Peixe, realizou--se a tradicional romaria que termina a 15 de Agosto. Foi dirigida pelo Vigário de Córregos P. Antonio Alves e doutrinada pelos missionários de Diamantina Pes. Gaspar e Dasio Moura.

A hospedagem continuou a cargo de D. Hermínia Araujo Dumont e suas gentis Filhas. O jovem Pedro Soares Dumont do policiamento com seus militares de Conceição do Mato Den-tro. A quantidade de romeiros foi tanta neste ano que pessoas intrometidas, abelhudas pen-

Os rituais a São Miguel Arcanjo são carregados de mistério e merecem ser estudados

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qsaram em espalhar a desordem, mas o desta-camento de Conceição do Mato Dentro, o Sr. Pedro Soares Dumont, o Escrivão de Fechados e outras pessoas de critério impediram o alastra-mento do mal. De carro “Jeep” os padres foram ao Camilinho aonde fizeram as despedidas.

(Pio Nascimento, 1949)

“ Cemitério do PeixeSituado as margens do Rio Paraúna aonde o

nosso Barão Moreira fora feliz em duas minera-ções, o Cemitério reúne todos os anos, como logar de romaria, umas três a quatro mil pessoas.

Começou com uma missa a 15 de Agosto des-de longo tempo. Celebrou-a o PE. Bento Madu-reira, PE Ernesto Lages, PP. Redentoristas etc...

A missa foi transformada em missão anual de cinco dias, isto é, de 11 a 15 de agosto, pre-gada desta vez pelos Padres Gaspar Cordeiro e Davino Morais, sob a direção do Revmo Vigário de Córregos P. Antônio Alves. A freqüência foi tão grande como nos anos passados e o policia-mento garantido pelas esplendidas autoridades de Conceição do Mato Dentro.

As confissões atingiram a 1500 e as comunhões a 3.000.

Administra este território curioso o Sr. Le-vindo Pinto de Oliveira; o Sr. Antonio Dumont, auxilia-o; e o venerando fazendeiro Sr. Jusce-lino Pio Fernandes proprietário da Fazenda do Tigre, presta-lhe bom apoio moral.

A senhora Levindo Pinto de Oliveira se encarregou da hospedagem dos sacerdotes; a Professora Exaltina, de Congonhas do Norte, da cantoria; o Diretor da Banda de Musica de Costa Sena, da capela. Terminadas as prega-ções as estradas estavam repletas de gente que em todas direções se dirigia para suas casa...

Pio Nascimento.” 5

Estrela Polar – Diamantina, 9 de setembro de 1945.Arquivo da Arquid iocese de Diamant ina.

As pessoas, anualmente, ali se encontravam, enterra-vam os seus, batizavam seus filhos e se casavam, o que contribuía para dar vida ao local, com festejos e celebra-ções:

No começo do século a igreja católica to-mou conhecimento dessa devoção e resolveu, através do Vaticano, reconhecer a santidade do local determinando a realização de um Jubileu, que é uma celebração católica impor-tante, denominando-o “Jubileu de São Miguel e Almas” misturando-se à magia do culto as al-mas, num sincretismo religioso ditados pela fé popular que não se guiou em dogmas, seguindo as necessidades e trazendo a esperança diante das dificuldades da vida cotidiana 6.

1- mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecer2 - rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética

3- mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal,

1- mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecer2 - rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética

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qo livro de Provisões do Bispado de Diamantina data de 1916 o registro de autorização das Missões no Cemitério do Peixe: Cemitér io do Peixe - Padre Francisco do Paraunna

98 Letras. Aos 29 de fevereiro de mil nove-centos e dezeseis por lettras s. Excia. Remv.ma. foram circuncritos os fieis a concorrerem com suas esmolas e auxílios afim de se ocorrerem as despezas com a pequena Missão que ali darão os Rmrs. Padres a 15 de Agosto, e encarregado de receber estas esmolas o Sr. Antonio Francisco Pinto. Para constar, faço o presente registro que subscrevo.

(PE. Gabriel Amador, Secretário do Bispado)

No período setecentista, os paroquianos, em decorrência do pensamento da época, conviviam com o dualismo entre a maté-ria e o espírito, o bem e o mal. Esse momento levou muitos a se preocupar com a salvação de suas almas, com a reafirmação dos ideais da humildade e com o desapego aos bens materiais, por-que o tempo tudo consome e conduz irrevogavelmente à morte. Daí o olhar de muitos se voltar para o crescimento do espírito tendo em troca a salvação da alma e a conseqüente vida eterna

.

Esse tendência, mais tarde, influenciou, para o recru-descimento da fé e das peregrinações ao Cemitério do Pei-xe, com a celebração das missões a fim de ser dada aos romeiros assistência espiritual:

Como ha tempos noticiamos, realisaram as missões naquelle logar os revmos S.rs padres redemptoristas do Curvello, tendo ellas produsido

abundantes e consoladores fructos. Confessaram--se 1.240 pessoas e foram distribuídas 1.960 comu-nhões e celebrados 2 casamentos de amasiados.

Tudo, felizmente, correu bem, devendo es-tar satisfeito o encarregado da capella dali, Sr. Antonio Francisco Pinto, aquém felicitamos.(Jornal Estrela Polar, Diamantina, nº. 4216, outu-

bro de 1916.).

O jornal Estrela Polar, em 1945, de acordo com o arquivo da Arquidiocese de Diamantina, documenta:

Cemitério do PeixeSituado as margens do Rio Paraúna aonde

o nosso Barão Moreira fora feliz em duas mine-rações, o Cemitério reúne todos os anos, como lo-gar de romaria, umas três a quatro mil pessoas.

Começou com uma missa a 15 de Agosto des-de longo tempo. Celebrou-a o PE. Bento Madurei-ra, PE Ernesto Lages, PP. Redentoristas etc...

A missa foi transformada em missão anual de cinco dias, isto é, de 11 a 15 de agosto, pre-gada desta vez pelos Padres Gaspar Cordeiro e Davino Morais, sob a direção do Revmo Vigário de Córregos P. Antônio Alves. A freqüência foi tão grande como nos anos passados e o policia-mento garantido pelas esplendidas autoridades de Conceição do Mato Dentro.

As confissões atingiram a 1500 e as comu-nhões a 3.000.

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mosiaco do peixe

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qAdministra este território curioso o Sr. Levindo Pinto

de Oliveira; o Sr. Antonio Dumont, auxilia-o; e o vene-rando fazendeiro Sr. Juscelino Pio Fernandes proprie-tário da Fazenda do Tigre, presta-lhe bom apoio moral.

A senhora Levindo Pinto de Oliveira se encarregou da hospedagem dos sacerdotes; a Professora Exaltina, de Congonhas do Norte, da cantoria; o Diretor da Banda de Musica de Costa Sena, da capela. Terminadas as prega-ções as estradas estavam repletas de gente que em todas direções se dirigia para suas casa...

( Pio Nascimento, 1945)

Ainda, no Estrela Polar do ano de 1947, tem-se a relação dos padres que participaram das missões na localidade, durante os anos de 1916 a 1947:

A partir de 1916 aí trabalharam os seguintes sacerdotes:

Redentoristas: 1916 Bernardo e Clemente, 1917 Pe-dro e Celestino; 1918, Bernardo e Alberto; 1919, Alberto e Emílio; 1920, Emílio e Lucas; 1921, Bernardo e Caeta-no; 1922, Pedro e Cornélio; 1923, Caetano e Carlos; 1924, Manuel e Lucas; 1925, Bernardo e Pio; 1926, Bernardo e Caetano; 1927, Tiago e Teodoro; 1930 Tiago e André; 1931, Frederico e Andre; 1932, Andre e Frederico; 1933, Tiago, Frederico e Andre; 1934, Tiago e Godofredo; 1935, Tiago e Godofredo; 1936, Antonio e Ari; 1947, Bonifácio e Boaventura, ( 1938, Dom Serafim e P. Francisco Xa-vier): 1939, Boaventura e Gaspar Hanappel; 1940, Vitor e J. Miqueloto; 1942, J. Bonifácio e J. Gonçalves; 1943, D.

Serafim, P. João Valter e Pe. Herculano Pimenta; 1944, D. Serafim, P. João Valter e P. Paulo Cesário; 1945, PP Gas-par Cordeiro do Couto(Lazarista), Davino Morais ( do Habito de São Pedro) e Antônio Alves(do mesmo habito); 1946, Padres Davino e Rubens Silveira ( ambos do mesmo habito) e Antonio Gonçalves (H.S.P); 1947 Padre Gaspar e Genésio Augusto Rabelo (lazaristas) com o Sr. P. Paulo Cesário (H.S.P).

Vilela, vig. De Datas, estando na Fazenda do Vassalo, o Sr.Dumont (vulgo Canequinha) levou-os ao Cemitério do peixe e alcançou a licença de preceder a tradicional missa de 15 de Agosto de um (jubileu de 4 dias). Pio Nascimento.

(Jornal Estrela Polar, 05 de outubro, 1947, p. 3)

Na figura 1, um dos textos contidos numa das placas do cemitério:

Aliada à poesia do texto, a preocupação expressa no período barroco com a transitoriedade das coisas materiais .

A atual capela, erguida fora do cemitério, sofreu modifica-ções. Sua arquitetura é simples e, num pequeno altar, um ora-tório de madeira, do século XIX, com a imagem de São Miguel. Compõem, ainda, esse acervo a Cruz do Martírio de Cristo e três tábuas no forro da igreja onde se encontra representado o Arcanjo São Miguel; dois sinos, o menor de 1887; do lado de fora, a Casa Paroquial e as casas dos fiéis.

os lugares de fé

As Romarias são conceituadas como peregrinações religiosas, uma festa popular celebrada no dia do santo padroeiro, que reúne um grande número de pessoas, em um local e em determinada época. Em Minas Ge-rais, as Romarias são consideradas uma das manifestações mais difundi-das da religiosidade popular, herança clara da colonização portuguesa.

O trilhar dos caminhos da fé, prática devocional comum a quase todos os povos e religiões, foi introduzido no Ocidente Cristão, durante a Idade Média, com as peregrinações à Terra Santa. Muito difundidas em Portu-gal, as Romarias aportaram no Brasil e, adaptadas à colônia, tiveram uma singularidade especial, pois a religiosidade no Brasil se caracterizou pelo sincretismo religioso devido à mistura de componentes de diversas culturas, o que contribuiu para transcender o catolicismo doutrinal.

Os primeiros núcleos formados, a partir do século XVIII, traziam essa diversidade cultural, formando, assim, os iniciais núcleos urbanos. Com a formação desses núcleos, estabeleceram-se as funções religiosas, resul-tando na construção de igrejas e suas festividades. Assim, as Romarias passaram a fazer parte do cotidiano mineiro, como uma das práticas reli-giosas mais importantes. Entre os exemplos, na região aurífera, próxima, encontram-se as tradicionais festas que aglutinavam grandes devotos: de Nossa Senhora do Rosário, no Serro, e a de Nosso Senhor de Bom Jesus do Matozinhos, em Conceição do Mato Dentro. As funções religiosas das romarias, assim como outras manifestações festivas, além do componente religioso, possuem outras dimensões e exercem um delicado papel social, que envolve várias atividades no prazeroso mundo da devoção. Os ele-mentos cerimoniais e o aparato cênico são utilizados para impressionar o público; a teatralidade dos rituais com músicas, cantos, enfeites, fogos e oportunidade de ver pessoas diferentes do convívio cotidiano fazem parte do aspecto festivo, que traz entretenimento e prazer. São momentos únicos para as pessoas. A pobreza, as dificuldades e o trabalho árduo se dissol-vem nessas comemorações. Essa festa é, para muitos, a única época do

ano em que se divertem. Relações de amizades e vínculos familiares são construídos e fortalecidos nesses momentos, local em que muitos inicia-ram seu namoro e depois se casaram.

O Cemitério do Peixe, peculiarmente, só é freqüentado durante o pe-ríodo da Romaria. Todos os anos, romeiros de inúmeros lugarejos pró-ximos comparecem a essa comemoração religiosa, que se transformou numa tradição, passando de geração a geração. Para os romeiros, não existe data mais importante. No passado, as missões eram acompanha-das por vários padres que vinham de Curvelo ou Diamantina e, também, Gouveia. Romeiros mais antigos dizem que essa festa atraía centenas de pessoas, era uma ocasião em que aproveitavam para encontrar velhos conhecidos e realizar negócios. Tropas chegavam de todos os lugares vizi-nhos, trazendo gado e conduzindo cargas que continham vários gêneros de alimentos.

a romaria de São Miguel e almas

Essas migrações são compostas, em sua grande maioria, por cren-tes de vida simples, da região e proximidades, muitos descendentes de escravos, lavradores e aquelas habituadas ao garimpo, prática, ainda, exercida na localidade. Significa esse período um momento de evasão, à estabilidade emocional das pessoas que, em grupos de orações ou indi-vidualmente, extravasam suas expectativas, dores, angústias em rituais religiosos e uma oportunidade de recreação e prazer pelas festividades e convívio social.

A Romaria de São Miguel e Almas ocorre todos os anos no mês de agosto, a data de referência é o dia 15. Os preparativos começam com um mês de antecedência. É quando são reformadas as casas. Elas são caiadas de branco, com janelas e portas azuis, cores tradicionais do Ce-mitério do Peixe. As casas, em sua maioria, foram construídas de adobe ou pau-a-pique e cobertas por telhas fabricadas na região. Antes da come-moração (festa), a igreja e o cemitério são pintados de branco. Durante

1- mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecer2 - rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética

3- mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal,

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qos dias da Romaria, realizam-se as missões. Acompanhados por um sa-cerdote, há missas, batizados, catequese, confissões, casamentos, funerais e procissões. O rito mais importante é o dia do mastro de São Miguel, que atrai muitos espectadores. Enormes fogueiras são acesas, os mordomos do mastro são os responsáveis pelo ritual e, a cada ano, a comunidade escolhe um casal responsável pela festa. Realizam uma pequena procis-são acompanhada pela Folia de Reis, que segue cantando uma ladainha até a porta da igreja, onde a bandeira de São Miguel recebe a bênção do sacerdote e segue a pequena procissão até o mastro local em que erguem o sagrado estandarte. No último dia das festividades, os fiéis recebem uma bênção coletiva, realiza-se um show pirotécnico e um badalar de sinos; esse, lamentavelmente, substituído por gravação eletrônica, perdendo-se a tradicional linguagem dos sinos e a perpetuação dos mestres sineiros.

Minas Gerais diferenciou-se de outras regiões do Brasil em sua for-mação religiosa. Para melhor fiscalizar a saída do ouro e controlar as populações das localidades, a coroa portuguesa proibiu a entrada de ordens religiosas na região, como medida para prevenir a fragmentação do poder e apropriação das riquezas. Por força dessas medidas, a própria sociedade organizou seus cultos, rituais religiosos e suas festividades, amparada pelas irmandades, confrarias e ordens terceiras. A proibição da entrada das ordens religiosas na região das minas não significou me-nos controle religioso por parte das autoridades eclesiásticas; os bispos e párocos tinham a função de intervir nos cultos religiosos, o que levou a uma disputa. As autoridades eclesiásticas tentavam recriar as funções religiosas da maneira que melhor lhes conviesse. Nesse cenário surge a importância das Irmandades, ordem laicas, que receberam o encargo de promover o assistencialismo social, bem como se tornaram uma impor-tante fonte de renda, por intermédio dos dízimos pagos pelos fiéis. Para os confrades, pertencer a uma Irmandade era condição indispensável, além da assistência em vida, eram atendidos após a morte, com um se-pultamento digno e muitos sufrágios.

No período colonial, a cultura barroca proporcionou à sociedade o gosto pela iconolatria, pelo espetáculo e o belo. Ao mesmo tempo em que convivia com o fausto, com os prazeres da vida mundana, era subjacente o temor às coisas divinas dentro de uma dualidade polarizada pela própria igreja católica. O medo do inferno levou a sociedade a preocupar-se com a salvação de suas almas, impregnando à morte um significado mais impor-tante que a vida e o momento presente. Segundo os dogmas do catolicismo, podia-se gastar pouco com o gozo dos prazeres materiais, mas não com a salvação da alma. Tornar a morte um espetáculo fúnebre era função das Irmandades. No período setecentista, tanto os ricos como os pobres partici-pavam das Irmandades Religiosas. O que diferenciava uma cerimônia da outra era o luxo, a aparência e as associações corporativas.

Uma das orações da Irmandade de São Miguel e Almas:

“Eis que envio um anjo diantede ti, para que te guarde pelo caminho e te conduza aolugar que tenho preparadopara ti. Respeita a suapresença e observa a sua voz e não lhe sejas rebelde porque não perdoará, a tua transgressão, pois nele está o meu nome.”

(Ex.23,20)

Várias são as passagens alusivas à atuação dos Arcanjo São Miguel no Velho Testamento: “Mi-Kâ’. El” em hebraico, “ Quis ut Deus” em latim que significa: “ Quem é como Deus”.

A devoção ao Arcanjo São Miguel e Almas foi intensa na Idade Média,

muito em parte pelo cumprimento de uma exigência da Igreja baseada no Concílio Tridentino, realizado de 1545 a 1563, convocado pelo Papa Paulo III, no momento em que a Igreja Católica se dividiu devido à Re-forma Protestante, na Europa do século XVI. A Igreja reage à divisão e à apreciação da Reforma Protestante. Por esse motivo o Concílio de Trento é conhecido como o Concílio da Contrarreforma. Entre tantas especifica-ções, o Concílio não fez menção a São Miguel, mas incentivou a doutrina do Purgatório, recomendando os sufrágios (orações pelos mortos) 9, pois as almas ali detidas deveriam ser ajudadas.

Uma das primeiras notícias do culto a São Miguel é que ele teria aparecido para um monge por meio de sonhos, pedindo para que esse construísse uma igreja sobre o rochedo de Mont-tomb, localizado na Nor-mandia, ao norte da França. Nessa época esse local era habitado por ere-mitas. O monge acreditou no sonho somente em sua terceira ocorrência, quando resolveu obedecer ao pedido de São Miguel. Com a construção da igreja, o lugar passou a ser um ponto de peregrinação. A partir de então, o rochedo ficou conhecido como Mont Saint-Michel e, desde a Idade Mé-dia, atrai peregrinos.

A devoção ao Arcanjo São Miguel e Almas foi recorrente no Brasil--Colônia. Na Minas setecentistas, essa veneração foi muito expressiva. Ocupou o terceiro lugar na classificação das Irmandades mineiras. Em primeiro, a de Nossa Senhora do Rosário, protetora dos cativos e, em segundo, a Irmandade do Santíssimo Sacramento. A Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de Ouro Preto é uma das mais antigas de Minas Gerais, noticiam sua existência desde 1714 . Essa oferecia aos seus fiéis defuntos um espetáculo de grande beleza e mais elaborado do que o da Irmandade do Rosário dos Pretos da mesma paróquia. A realização da cerimônia fúnebre tinha mais importância religiosa que o batismo e o casamento. A morte teve um sentido tão relevante na sociedade minei-ra que existia um ritual específico para ela, segundo consta no Livro de Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia do Pilar

do Ouro Preto. Esse ritual, denominado “Procissão dos Ossos”, contava com a distinta participação da comunidade.

Dante Alighieri, em “A Divina Comédia”, menciona o poder das ora-ções aos mortos por aqueles que ainda vivem, para aliviar-lhes o tempo no Purgatório. Consideravam as preces dos mortais de grande valia. Por outro lado, segundo Dante, por estarem as almas avançadas na rota espi-ritual e por serem dotadas de grandeza, bondade e misericórdia, faziam prodígios aos seus devotos.

As missas exerceram uma verdadeira ascendência sobre os devotos que lhes atribuíam poder de purificação. Os fiéis mandavam celebrá-las abundantemente em intenção aos confrades falecidos, herança colonial ainda guardada nos dias de hoje, com intuito de resgatá-los do Purga-tório. Rituais como procissões, realizadas em torno das igrejas, acompa-nhadas por cânticos e preces pela absolvição dos fiéis sepultados, eram realizadas em alguns lugares, geralmente aos domingos ou mais comu-mente nas segundas. Esses rituais eram conhecidos como “Razolas” ou “Razouras”. Em Conceição do Mato Dentro, a Irmandade de São Miguel e Almas, uma das mais antigas, dispôs:

Todos os domingos dirá Missa o R. Capelão da Irman-dade às Oito horas, a que assistirão os irmãos com capaz e tochas, e o R. Pároco com a capa de asperges fará a procissão costumada dos Defuntos, ao redor da Igreja, e todos os Irmãos que se acharem Presentes, irão acompa-nhando com capaz e velas nas mãos...11 .

A Irmandade de São Miguel e Almas cultuava as almas com toda de-voção.

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qA Igreja Matriz de Conceição do Mato Dentro mandava que

os fiéis esmolassem para conseguirem fundos e celebrar missas aos defuntos:

Também haverá nesta Irmandade um, ou aqueles R.R. Capelão que forem necessários para dizerem as Missas das Esmolas que se ti-rarem para as almas nos dias de segunda-feira como também os doze Irmãos da Meza q. serão obrigados atirar esmolas por toda a freguesia nos domingos e dias santos, cada uns aos me-ses daquele ano, no fim dele uns e outros darão conta em Meza para se entregarem ao tesou-reiro para se mandarem dizer em Missas pelas almas 12.

As almas descem para a terra ou sobem para o céu? A tra-dição antiga do catolicismo no Ocidente recriou sua relação com os mortos com o Purgatório, através de um confinamento, em primeiro plano, após a morte, tido como uma atitude mise-ricordiosa do Pai. Ali as almas permaneciam de passagem por um “estágio de reclusão”, em que elas, por um período de tem-po, expiavam seus pecados cometidos na terra. Dali, os eleitos do Pai ganhavam o paraíso e aos outros restava o inferno onde deveriam pagar, eternamente, duras penas.

Na atualidade, essa idéia de Purgatório evoluiu no ima-ginário dos cristãos. Embora suas crenças com relação aos mortos não tenha mudado, e tenha se perpetuado por Dante Alighieri em a “Divina Comédia”, cristalizou-se em Conceição do Mato Dentro, no Cemitério do Peixe. Esse ermo recanto dos

mortos, apartado do mundo moderno, metaforicamente, é o próprio Purgatório, onde as almas purgam, junto ao silêncio, aos miasmas da natureza e da falange de anjos que ali se en-contra aguardando o Juízo Final, fortalecidos pelo espectro do Arcanjo São Miguel, campeador das almas e que, com sua ba-lança, intermedia a passagem das almas para o além.

Nada mais significativo do que refletir, no Cemitério do Pei-xe, a finitude da vida em sua transitoriedade, que ali jaz em comunhão com sua verdadeira e derradeira natureza: pó. Esse local aproxima o homem de sua realidade, em que espirituali-dade e interioridade, tão necessárias, afloram em momentos de celebração e festas.

Assim onde jazem os mortos se impõe à racionalidade, à matéria, ao afã pelo dia-a-dia, a preocupação com a transito-riedade da vida. Céu ou inferno? A perdição ou a salvação da alma? No Purgatório se faz uma arbitragem para a passagem. Por que não acreditar nele? Seria como desprezar uma oportu-nidade única de se chegar bem de uma longa viagem.

E por que se apegar a S. Miguel? Intercessor da vida e de-fensor do homem e dos males que o aco-metem. Com sua espada e balança da justiça pesa os méritos e a evolução de cada um, mas, como mediador, é miseri-cordioso e abre caminhos para o homem chegar ao divino. Daí a importância da simbologia do cemitério, como prova-ção, aliada à figura de São Miguel. Esse campo santo oferece oportunidades de peregrinações, orações, sacrifícios, jejuns, mortificações, cantos, para pagamento de promessas e outros segredos próprios do emaranhado da mente de cada um.

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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q A representação da morte, implantada durante o século

XVIII, foi pouco alterada no decorrer do século XIX. A salvação das Almas foi a grande preocupação nesse período, chegou a ser de-terminante até nos testamentos, nos quais os confrades deixavam inscrito o número de missas a serem realizadas após suas mortes. Para isso, destinavam grandes somas em dinheiro ou doações de objetos valiosos, comumente doavam bens materiais para que fos-sem celebradas muitas missas em intenção de suas almas.

Alguns rituais, realizados no Cemitério do Peixe, durante as celebrações da festa de São Miguel e Almas, podem ser relaciona-dos com essas antigas manifestações, que provavelmente se mo-dificaram ao longo do tempo. A devoção a São Miguel e às Almas está também relacionada à Irmandade de São Miguel e Almas, na sede do município de Conceição do Mato Dentro. Essa Irman-dade, formada por seus confrades, distinta por suas convenções e suas peculiaridades, hierarquias e estatutos, secularizou-se, no Cemitério do Peixe, em uma festa popular; o povo se apropriou de alguns de seus aspectos, distanciou-se cada vez mais dos mol-des doutrinários, exibindo verdadeiras recriações desse culto. Ao imporem seus próprios desígnios, os devotos misturam crenças pagãs de origem africana aos rituais católicos.

Preservar o patrimônio histórico é dever de todo cida-dão, pois ele é um testemunho da história brasileira, de tra-dições, ritos, costumes de determinada organização social, sujeito a estudos, independentes do estilo de vida atual, da tecnologia e de outros valores. Ignorar essa história signi-fica deixar apagar a origem da devoção pelas almas e ao Arcanjo São Miguel. Não importa a então doutrina católi-ca e seus ensinamentos, diferentes religiões, seitas, dentre outras; do que se necessita é conhecer os feitos do passado, resguardá-los e ligá-los aos do presente de modo que aqueles

não desapareçam, mas que sejam revificados e dados a eles a sua importância.

Os romeiros construíram uma organização espacial pró-pria, possuem suas leis e sua rede de significados. Mesmo assim, tudo isso corre o risco de se perder, em virtude de um rápido processo de modernização. Novas necessidades surgem, novos valores se agregam aos antigos, modificam-nos irremediavel-mente. É possível, no entanto, atenuar esse processo acometido por mudanças externas, como, por exemplo, conscientizando as pessoas, afetas ou não à comunidade, a respeitar a cul-tura local. Intervenções recentes, diferentes dos propósitos dos antigos romeiros, estão sendo adotadas, como o cercamento de espaços, antes coletivos; a substituição do antigo mastro de madeira por um metálico, de cor preta, alterando substantiva-mente as cores tradicionais utilizadas nas festividades.

É importante ressaltar que essa festa, em sua totalidade, é mantida pela população, sendo realizada com a contribuição dos fiéis. A sobrevivência dessas manifestações culturais é ame-açada, também, pelo crescimento gradativo das dificuldades materiais para a sua visibilidade e realização.

Esse peculiar centro de romeiros, com a devoção a São Mi-guel e Almas, com seus personagens, seus mistérios, suas len-das, seus milagres, suas benzedeiras e sua Folia de São Miguel Arcanjo, merece um estudo mais aprofundado. Advirta-se, ainda, a urgência de uma ação de preservação da memória cultural, antes que intervenções drásticas rompam definitiva-mente o lastro entre o passado e o presente e contribuam para o desaparecer da riqueza de eventos históricos da identidade brasileira, que, um dia, se vivenciou na intimidade das Minas Gerais, numa comunidade chamada Cemitério do Peixe.

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qUma comunidade se formou em torno do trabalho e da devoção religiosa, gerando as bases para o surgimento da sociedade concecionense.

aS origENS Do arrailEvolução através dos tempos: o ouro, o ferro, o entreposto

Uma sociedade se formou em Conceição do Mato Dentro com forte presença dos negros, que durante muito tempo foram maioria no arraial.

Célio Macedo

Como ocorreu com maioria dos arraiais surgidos no limiar do século XViii nas Minas do ouro, Conceição também nas-ceu devido à impetuosidade e perseverança de homens que, enfrentando as mais incríveis adversidades, provocadas por obstáculos naturais, fenômenos climáticos, animais ferozes e índios bravios, foram em busca das tão decanta-das pedras preciosas.

Trata-se, na verdade, de um empreendimento que vinha se desencadeando desde meados do século XVII, quando levas de portugueses e paulistas, agrupados nas denomi-

nadas “bandeiras”, embrenhavam-se cada vez mais pelas inóspitas serranias na esperança de grandes descobertas minerais.

Assim se deu a descoberta das primeiras minas na região dos “frigidíssimos ventos” ou do Serro do Frio, o Ivituruí, na linguagem indígena, pelos bandeirantes Antônio Soares Fer-reira e Manoel Rodrigues Arzão. Como desdobramento dessas sensacionais descobertas naquelas serranias, um outro bando, chefiado por Gabriel Ponce de Leon e seus companheiros Gaspar Soares e Manuel Correia de Paiva, resolvem continuar a expedi-ção, direcionando-a no sentido sul, e aí vão descobrindo novas e espetaculares minas, primeiro em Itapanhoacanga e depois Córregos (o mais antigo povoamento estabelecido no atual distrito de Conceição). Por fim, alcançam o leito do minguado Córrego Cuiabá, de onde conseguem retirar, de uma só bate-ada, 20 oitavas de excelente ouro. Era então o Eldorado; ali resolvem estabelecer, elevando-se o primitivo arraial. Gaspar Soares, no entanto, continua a jornada, descendo o Rio San-

to Antônio abaixo, onde veio a descobrir ricas lavras de ouro junto ao Morro do Pilar. No local ergueu uma capela dedicada a Nossa Senhora do Pilar. Posteriormente, o morro receberá o nome do descobridor, Morro do Gaspar Soares, que, mais tarde, se tornará o atual município de Morro do Pilar.

Como se verificou na formação dos primeiros núcleos coloniais mineiros, a notícia de tão prósperos achados atraiu pessoas de to-das as regiões do Império, que fizeram surgir de forma desordenada as primeiras construções, inicialmente bem incipientes, em pau a pique e cobertas de sapé. Ponce de Leon ou Manoel Correia de Paiva, os descobridores de ouro naquelas paragens, certamente recebem da coroa a autoridade para organizar o povoado que surgia e tam-bém para distribuir as primeiras datas minerais. Mas seria de Ponce de Leon a iniciativa de construção da primitiva ermida da comuni-dade, em terras de sua propriedade, que será dedicada a Nossa Sen-hora da Conceição, e cuja primeira imagem manda buscar em Itu. Isso, no ano de 1703. A edificação da primitiva igreja, ainda que de material incipiente – e que mais tarde receberá fórum de igreja pa-roquial – é um marco importante no estabelecimento do emergente

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qarraial: torna-se ponto de referência primordial na vida da comu-nidade, não só no aspecto religioso e de sociabilidade, mas também urbano, já que os primeiros arruamentos partem do ou chegam até o largo em que se encontra edificado o templo. Aí, em princípio, vai se polarizando o grosso da população do arraial.

Vintém, Matriz e BandeirinhasA atividade de exploração do ouro nessa paragem, entretan-

to, estabeleceu outros pontos de fixação populacional, que se nos primeiros tempos de formação do arraial se encontravam interli-gados somente por caminhos, hoje completam a ambientação da cidade como um todo. Foi o que ocorreu com o Bairro do Vintém, situado na parte alta ao sul da cidade, habitado por explorado-res de ouro no córrego de mesmo nome, cujo marco é a capela de Santana, construída por volta de 1744, em terreno também do-ado por Ponce de Leon. Já na baixada situada no extremo norte da cidade, surgiu o bairro do Bandeirinha, cujo núcleo inicial se deu em função da exploração do ouro no Córrego da Conceição.

Esses três pontos, Matriz (o centro), Santana (ao sul) e Bandeiri-nha (ao norte), formam a espinha dorsal de povoamento do primiti-vo arraial, demarcando, assim, o desenho longitudinal da malha ur-bana, como esta deveria ser nas quatro primeiras décadas do século XVIII. O surgimento da capela do Rosário, por volta de 1728, no flan-co direito, e a igreja do Bom Jesus de Matosinhos, na segunda metade do século XVIII, no flanco esquerdo, possibilitou que o povoamento se deslocasse pelos morros, conferindo a conformação atual da cidade.

Pedro rates de hanekimUm vis ionár io entre os pr imeiros exploradores

Mas que tipos de pessoas vieram se estabelecer em Conceição nos primórdios de sua formação? Se aceitarmos por convincentes os registros feitos pelas autoridades, notaremos que se trata das

mais “desclassificadas” possíveis. Aos olhos daqueles homens de gabinete, esses pioneiros exploradores eram “gente toda adven-tícia, tumultuária e mal estabelecida, e sem amor às terras em que não nasceram” e que ainda levavam uma “vida licenziosa e nada cristã”. E o perigo que enxergavam nessa situação era de que se transformassem as terras das minas num “valhacouto de criminosos, vagabundos e malfeitores”, colocando em risco o pro-jeto monopolista da Coroa. Por mais exagerados que sejam essas afirmações, não podemos esquecer, no entanto, que o ouro atraiu para essas zonas pessoas que, em sua maioria, nada sabiam de mineração, acostumadas que estavam no exercício de outras ati-vidades relacionadas à agricultura, pastoreio, comércio e ofícios mecânicos. Mas havia também aqueles, não se pode deixar de mencionar, que nenhuma ativi-dade exerciam antes – ou seja, viviam de vadiagem. E muitas dessas pessoas não vinham so-zinhas, traziam consigo seus servos e escravos, cujo número suplantaria em muito o de ho-mens livres. Gente que vinha, portanto, com o interesse exclu-sivo de enriquecimento fácil e de retorno ao seu local de origem, fosse o Brasil ou a Metrópole, o mais rapidamente possível. Aqui, muitas riquezas foram feitas, e perdidas, naqueles dias de ouro.

Como exemplo desse tipo de vadio, que perambulava pela re-gião mineradora em seus primórdios, podemos narrar o caso de Pedro de Rates Hanequim, filho de uma portuguesa com um holan-

A Igreja de Santana, no Bairro do Vintém, situado na parte alta, ao sul da cidade foi construída em 1744 em terreno doado pelo fundador Ponce de Leon.

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qdês, que permaneceu em Minas por longo tempo, inclusive tendo passado pelo Serro do Frio, no qual não deve ter deixado de lhe impressionar a paisagem natural e riqueza mineral de Conceição.

Hanequim havia aportado em Pernambuco em 1702, e ali escuta as notícias sobre os auspiciosos achamentos de ouro no interior do Brasil. Decidido a conhecer o Eldorado e, quem sabe, melhorar sua condição de vida, parte para as minas, descendo o Rio São Francisco até o Rio das Velhas. Lá estando, não toma residência fixa, prefere viver uns tempos na Vila de Sabará, no

Serro do Frio, em Vila Rica, Mariana e outras mais, tendo por ocupação a mineração e o “cortar e descobrir matas athé então não descobertas e em vadiar Rios incognitos”. Nos in-tervalos consumia compulsivamen-te a Bíblia. Durante toda sua esta-

da em Minas, era sempre visto portando uma caixa na qual guardava misteriosos objetos, que se mostraram depois serem manuscritos de livros que planejava escrever, procurando in-terpretar a Bíblia enquanto profecias relacionadas ao que via e presenciava no Brasil, especificamente na região das Minas.

Em 1722, no entanto, achando que já havia conquistado o suficiente para levar uma vida boa, resolve retornar a Portugal. E aí começam os seus problemas: pouco tempo após o regresso, fica noivo de uma menina de 14 anos – ele, já com quase 50 – a quem veio a engravidar. É preso. Depois de solto, resolve casar-se, mas logo abandona definitivamente a mulher e a filha pequena. A partir daí, vive um roteiro de prisões e solturas, por crimes diversos.

Em 1741, Pedro Hanequim é novamente preso, mas por mo-tivos de maior gravidade: é acusado pelo rei D. João V – em pes-

soa – de participar de uma conspiração que tinha por finalidade aclamar o infante D. Manuel, irmão do rei, como imperador do Brasil. Durante o processo inquisitorial, que dura uns três anos, Hanequim sustenta estranhas e heréticas ideias que mesclam teo-logia com o mito do V Império, que deveria surgir no Brasil, mais especificamente nos “jardins do Paraíso Terrestre”, que fica na América, abaixo da linha equinocial e perpendicular ao lugar em que “Deos tem o seu trono no ceo”. A prova disso é que no Brasil se acha tudo o que diz as escrituras, inclusive o fruto da “árvore da vida” que é uma banana comprida, e o fruto da ci-ência, que é uma banana curta; além disso, Adão é chamado de vermelho, como os índios do Brasil. Ao contrário do que pensava o padre Antônio Vieira, que ambicionava um V Império de gló-rias para a Metrópole, Hanequim o preconizava no Brasil, com suas riquezas, sua natureza exuberante e divina, o local onde verdadeiramente se encontrava o Paraíso Terrestre.

Por causa de suas ideias excêntricas, misturando profetis-mo, cosmologia e sedição, Pedro de Rates Hanequim é condu-zido em auto de fé pelas ruas de Lisboa e estrangulado por gar-rote. Era o ano de 1744. Tudo, presenciado pela família Real.

Hanequim, na verdade, foi um caso especial à parte dentro de um universo de colonos que vieram se estabelecer em Minas Gerais, almejando uma rápida melhora de vida, mas que acaba-ram contribuindo para o esta-belecimento de um ambiente tumultuoso no território, principalmente nos primeiros séculos de intensa mineração.

a criação das vilas e a mão forte da Coroa sobre o ouro

Foi devido aos proble-

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qmas que o povoamento desordenado e descontrolado criava e dos perigos que poderiam resultar disso, que a Coroa resolveu intervir, ordenando e normalizando administrativamente a re-gião mineradora. Um dos primeiros atos nesse sentido foi a au-torização concedida ao governador das Minas do Ouro e de São Paulo, Antônio de Albuquerque, para criar as primeiras vilas, que passaram a funcionar também como sede das Comarcas: Vila do Ribeirão do Carmo (Mariana), Vila Rica (Ouro Preto) e Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, em 1711; Vila de São João del-Rei, em 1713; Vila Nova da Rainha (Caeté) e a Vila do Príncipe (Serro), em 1714.

Para garantir a sua parte na extração do ouro, a Coroa portu guesa procurou taxar os mineradores desde as primeiras bateadas, por volta de 1700. Assim, surgiu o quinto do ouro, uma taxa de um quinto que incidia sobre todo o ouro extraí-do. A sua forma de cobrança alternou-se durante todo o século XVIII, variando entre a capitação – tributação referente a cada escravo, forro, oficial mecânico, lojas e vendas – e a fundição nas Casas de Fundição – onde o ouro era fundido em barras, das quais se desconta o quinto. Desnecessário dizer que tais procedimentos tributários nem sempre eram bem agradáveis aos olhos da população que, em determinadas ocasiões, traduzi-ram em motins e revoltas as suas insatisfações, cujos exemplos clássicos que temos em Minas são a revolta de Felipe dos Santos (1720) e a Inconfidência Mineira (1792).

Como desdobramento desse processo de ordenação e nor-malização da zona mineradora não podemos deixar de men-cionar a criação e fixação de companhias militares e ordenan-ças em vilas e arraiais mineiros. O distrito de Conceição vai receber, em 30 de abril de 1717, um Terço de Auxiliares, tendo por comando o sargento-mor Alexandre Gomes Teixeira. Algum tempo depois, em 1720, por iniciativa do capitão-mor Manuel

Correia de Paiva – no exercício da função de guarda-mor – foi criado um Regimento de Homens Pardos com sede no próprio distrito. Em 18 de março de 1723, sob a diligência do sargento--mor José Botelho da Fonseca, instalou-se em Conceição um Cor-po de Cavalaria de Homens Brancos.

Dentro desse cenário foi se formando, então, o arraial de Conceição do Mato Dentro, como uma sociedade mineradora típica, com sua população bem diferenciada, composta por um número excessivo de negros escravos que forneciam, é claro, a mão de obra imprescindível para o funcionamento do sistema colonial; por um grupo de homens brancos “bons” que, de certa forma, expressavam no lugar a vontade das autoridades, no qual podemos inserir Ponce de Leon e o capitão Manuel de Pai-va; por pequenos e médios mineradores, comerciantes e pelos oficiais mecânicos, como sapateiros, ferreiros, carpinteiros, pin-tores etc. Nesse ponto, é interessante ressaltar, que o surgimento de uma cidade colonial demanda a construção de casas, lojas, igrejas, prédios públicos, pontes e chafarizes, empreendimentos para os quais são exigidos exí-mios profissionais. E em Minas Gerais, o ouro inflacionou o mer-cado construtivo a ponto de se pagarem aqui os jornais mais al-tos de toda a América Portugue-sa, o que, obviamente, atraiu ar-tistas e artífices de vários pontos do Império. E o resultado disso pode ser ainda admirado nas ci-dades surgidas no ciclo do ouro, como Conceição, nas fachadas dos casarões históricos e na mag-

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qnífica decoração interior das igrejas barrocas.

os primeiros habitantes

É muito difícil, no entanto, identificar nas fontes as primeiras famí-lias que se estabeleceram em Conceição, já que muitos documentos que possibilitariam tal empreitada, como os testamentos, não mais existem. Outro fator que vem corroborar essa dificuldade é o fato de que muitos entre esses primeiros habitantes, especificamente os homens, ou deslocaram para as Minas sem suas famílias ou não vieram a contrair matrimônio aqui, preferindo viver em concubinato com uma de suas escravas, o que impedia, obviamente, a declaração de tal situação. Por outro lado, alguns documentos pesquisa-dos – registros de casamentos, matrícula de escravos, alguns testamentos e outros – permite-nos levantar alguns nomes de indivíduos que têm seus nomes arrolados com certa frequência social, o que indica certo prestígio no arraial. São eles:

O próprio Gabriel Ponce de Leon, que aparece mencionado em vá-rios documentos, doando terrenos para construção da igreja matriz, cuja padroeira, Nossa Senhora da Conceição, manda vir de Itu, da capela de Santana; para a capela do Rosário deixa, via testamento, 60 oitavas de ouro. Seu falecimento, registrado no livro de óbitos da matriz, ocor-reu em 29 de setembro de 1736, sendo seu corpo sepultado no interior da capela-mor, com especial autorização do bispo Dom Guadalupe, por ser o grande benemérito da igreja. Diga-se que o ser enterrado dentro da capela era um privilégio somente concedido aos clérigos. Outro fato curioso, é que mais tarde, em 8 de junho de 1747, encontramos um outro Gabriel Ponce de Leon tomando matrimônio com Tereza Maria de Jesus. Seria ele um descendente do fundador do arraial? Ou um escravo com o mesmo nome de seu senhor, como era comum ocorrer á época?

O companheiro de descobrimento de Ponce de Leon, o capitão

Manuel Correia de Paiva, português de origem, que foi outro que pa-rece ter se estabelecido no arraial. Foi um dos primeiros no arraial a receber uma patente militar, a de capitão-mor. Além disso, tornou-se o primeiro guarda-mor de Conceição. Cargo muito importante e de

certo prestígio na região, cujas principais atribuições eram de medir e repartir as lavras minerais; conce-der licenças para mineração, controlar a produção de ouro no distrito etc. Porém, em contrapartida, não podia possuir lavra de ouro para exploração em be-nefício próprio. Em 5 de agosto de 1737, Manuel de Paiva esposou a sua escrava crioula, Jacinta de Bar-ros, natural de Sergipe, em uma cerimônia realizada

após uma consulta “secreta”, como afirma o termo lavrado no dia do casamento. O secreto, na verdade, talvez tenha a ver com uma Ordem Régia de 27 de janeiro de 1726, que procura coibir o casamento de brancos com negros, reprovando “... a baixa infâmia de brancos ca-sarem-se com negros, manchando o sangue com essas alianças, exem-plos de tão baixos sentimentos”. Provavelmente, por aquela época, o capitão Manuel de Paiva já se encontrava no estado de viúvo, pois em 1780 falece em Conceição um tal de Domingos Correia de Paiva, declarando ser filho do Capitão Manuel Correia de Paiva e de sua mulher Joana Correia Paiva, já defuntos.

Outro ilustre morador do arraial é o capitão Manoel Teixeira da Sil-va, que exerce o cargo de comissário, e como tal fica responsável pela realização da matrícula de escravos em toda a freguesia.

O capitão Manuel de São Tiago Franco, cuja figura se liga ao episódio de surgimento do culto de Bom Jesus de Matosinhos em Conceição, pois foi um escravo seu que encontrou a milagrosa imagem do Bom Jesus, quando catava lenha no mato. Foi um próspero minerador da região e, em 1749, declarava ser possuidor de 29 escravos.

O sargento-mor José Botelho da Fonseca, falecido em 20 de janeiro

de 1754, em estado solteiro, que residia na Rua Direita do arraial. Como vimos acima, foi o responsável pela instalação de um Corpo de Cavalaria de Homens Brancos no distrito.

Plácido da Silva Esteves, natural de Braga, que em 26 de agosto de 1745 aparece casando com Mariana de Souza, filha do capitão Lourenço de Souza Rodrigues.

Manuel Luis Tamel, também natural de Braga, que em 28 de agosto de 1745 contrai matrimônio com Ana Maria da Silva, de São Gonçalo da Vila do Príncipe.

Inácio Ribeiro Pereira, que era viúvo de Catarina de Souza Passos, casa--se, em 23 de outubro de 1749, com Ana Luisa da Conceição, filha de José Luis Quadros, todos moradores no arraial. O português José Vieira Braga, que toma por esposa Maria da Costa Oliveira, natural de Conceição.

Como podemos perceber, muitos dos primeiros moradores do arraial eram portugueses, que para ali se dirigiram em busca de oportunidades. Enriqueceram-se, formaram apreciáveis fortunas; estabeleceram seus ne-gócios e criaram famílias, contribuindo, assim, para a estabilidade social e econômica do lugar.

o ElDoraDo Ouro brotava nas ruas e hordasde aventure iros invadem o arra ia l

A primeira riqueza de Conceição foi o ouro. Foi com ele que surgiu e cresceu o arraial, trazendo boas expectativas de negócios para os primei-ros colonos que ali se estabeleceram. Pelo menos, era isso que se pensava à época, quando circulavam notícias que qualificavam a região como uma das mais promissoras: assim achava Francisco Tavares Brito, quando, ao referir-se ao Serro do Frio, afirmava que “nelle se acham infinitas minas, e particularmente na Conceiçam aonde há hú monte de desmedida gran-deza, no qual se acha ouro”.

Descobertas as primeiras minas pelo grupo chefiado por Gabriel Pon-ce de Leon no leito do Cuiabá, a notícia se espalha rapidamente e hordas de aventureiros confluem para a região: sobem do litoral, seguindo as trilhas abertas pelos bandeirantes paulistas; ou chegam ali trilhando o caminho dos currais, cuja existência é bem mais antiga do que as ban-deiras, pois serviam para abastecer o sul do Brasil com as mercadorias e gados do nordeste.

O ouro brotava nas ruas em dias de enxurrada em Conceição do Mato Dentro e levava ao delírio os habitantes recém-chegados às montanhas do Espinhaço. O mineral era tão abundante que despertou o interesse até mesmo dos religiosos. Um sem-número de padres e frades levantavam suas batinas para garimpar no Rio Santo Antônio, levando o clero a se misturar aos aventureiros na busca insana pelo mineral dourado. Um delegado episcopal, visitando o arraial de Conceição nessas primeiras épocas de euforia causada pelas descobertas, ficou estupefato ao ver uns setenta padres com as batinas arregaçadas, com as águas do rio pelos joelhos, bateando o vil metal, em vez de estarem cuidando das coisas espi-rituais! Os religiosos, ao verem o distinto homem, tentaram suborná-lo, te-mendo as excomunhões e outras severas penas. Mas o visitador tomou a atitude correta: expulsou os padres, mandando prender onze deles, por-que estes “foram encon-trados sem batina, em

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qcompanhia de suas concubinas, vivendo do mal de Satanas, e por usarem cabelos compridos, botas atacadas com fivelas de prata, esporas grandes de prata dourada, fivelas nos sapatos e algumas perucas”.

Nos anos que se seguiram à descoberta das jazidas de Conceição, a Coroa portuguesa se esforçava de todas as maneiras para cercar os ca-minhos que pudessem fazer com que tanto ouro fosse contrabandeado sem pagar os tributos para El rei. E não devia ser fácil. Estimam alguns historiadores que mais de dois terços do ouro extraído no arraial teria sido desviado pelos descaminhos, especialmente pelo norte, em direção à Bahia. As autoridades coloniais impunham regras duras, estabeleciam punições rigorosas que eram, em certos casos, auxiliadas pela ação da Igreja – o que foi possível graças à instituição do Padroado, onde se mes-clavam as competências do Estado e da Igreja. Criavam punições severas, invadiam casas e tentavam conter uma verdadeira euforia criada pela quantidade de ouro que encontraram em todos os cantos de Conceição.

Não temos registro de quanto ouro foi extraído nas lavras de Concei-ção das primeiras décadas após o descobrimento até o terceiro quartel do século XVIII, momento a partir do qual a mineração começa a definhar. Mas um fato é certo, ao longo de décadas, o ouro de Conceição serviu para encher os cofres da Coroa portuguesa, em especial, para satisfazer os caprichos do rei Dom João V, que gostava de gastos excêntricos em obras monumentais, como o palácio convento de Mafra. O ouro do Brasil serviu também para financiar a reconstrução de Lisboa, que seria violentamente atingida pelo terremoto ocorrido no Dia de Todos os Santos, no ano de 1755. Teria o ouro do arraial do Mato Dentro contribuído decisivamente para que a cidade fosse reconstruída, tomando os ares modernos que a marcam até hoje.

Como a extração do ouro de aluvião depositado no fundo dos rios não exigia grandes recursos, sendo relativamente fácil, desencadeou-se uma corrida de aventureiros para a região de Conceição. Para melhor controlar a exploração do ouro nos rios e córregos, era preciso ordená-

-la, distribuindo os espaços para que cada um pudesse minerar. Esses espaços são as datas, cuja distribuição, em Minas Gerais, ficou a cargo do guarda-mor das Minas. Porém, antes do surgimento desse posto, a dis-tribuição ficava a cargo do chefe local, no caso, o próprio Ponce de Leon, ou mesmo o capitão Manuel Correia de Paiva.

A Coroa portuguesa tinha o interesse no maior número de minas pro-dutivas, pois, com isso, alcançava o máximo do rendimento dos quintos. Nesse ponto, era conveniente conceder datas relativamente pequenas (60 x 66 m = 30 braças em quadra / 1 braça = 2 varas = 2,20 m), considera-das mais produtivas. A sua distribuição foi normalizada por regimento e funcionava da seguinte maneira: ao descobridor cabia a primeira data; a segunda permanecia na mão da Fazenda Real e devia ser vendida em leilão público; o descobridor tinha direito a mais uma data, agora como minerador, à sua escolha. O minerador com menos de 12 escravos so-mente tinha direito a 2 ² braças por escravo, isso, para evitar que a data ficasse inexplorada; fato que demonstra a importância, desde cedo, da escravatura na atividade mineradora.

No começo, a mineração se desenvolvia no leito dos rios ou em ter-renos pouco acima do nível de seus leitos e não havia problema com o uso da água. Era o ouro aluvial, retirado por bateias. Com o passar do tempo, a busca por novas minas alcança as nascentes dos cursos d´água e sobe os morros, o que deve ter ocorrido a partir da década de 1720. Nes-se momento, se introduz o método do talho aberto, onde o desmonte do terreno era feito com o uso de água corrente, com auxílio de alavancas e almocafres. Outros métodos foram ainda adotados posteriormente, no-tadamente após o esgotamento do ouro aluvial, como os buracos, poços e as minas, mas que não foram tão difundidos em Conceição.

Verifica-se que nos dois métodos mais difundidos, por bateia e por talho aberto, o fator água era preponderante, pois sem ela não se mine-rava. A busca por terrenos com água foi tão concorrida na época, que foi preciso uma lei do conde de Assumar, de 24 de fevereiro de 1720, conhe-

cida como “Provisão das águas”, para normalizar o uso das águas, de modo a evitar que “os mais poderosos se apropriassem do curso d´água, desviando-o para suas lavras, forçando os mineradores que não tinham água a comprá-la por preço exorbitante”.

População de escravos era maior que de brancos Como se ressaltou anteriormente, o escravo foi um elemento

imprescindível na atividade mineradora: quanto maior o seu número, maior a produtividade alcançada. Mesmo com os esforços da Coroa em li-mitar o número de escravos negros nas Minas – evitando desfalcar outras regiões produtoras do Brasil –, a mineração atraiu um contingente enor-

me de escravos, geran-do em quase todas as localidades mineiras uma população de es-cravos e de forros in-finitamente maior do que aquela formada por homens brancos livres.

Nesse aspecto, é in-teressante assinalar que a população de negros cativos e forros e ainda de pardos no arraial de Conceição, na primeira metade do século XVIII, período em que o ouro foi extraído em maior abundância, foi tam-bém superior à de bran-cos livres. Constatação

que pode ser confirmada por informações levantadas em documentos daquela época:

Um livro de matrícula de escravos, datado de 1749, registra para a freguesia de Nossa Senhora da Conceição a elevada quantia de 1.584 es-cravos, sendo que no arraial de Conceição se encontra inscrito o maior número deles, de 252.* Os maiores proprietários de escravos assinalados para Conceição, naquele ano, eram Manuel de São Tiago Franco, com 29 escravos; o sargento-mor José Botelho da Fonseca, com 24; o padre Ma-nuel Gonçalves da Silva, com 20; Jerônimo Ferreira de Araújo, com 17; o padre Miguel de Carvalho Almeida Matos e Manuel de Oliveira Sampaio, com 14; Vicente Francisco Leão e Santos Ribeiro, com 11 (diga-se que a média de escravos por proprietário na zona mineradora era de 4 a 7).

O documento traz ainda algumas particularidades: o responsável pelo levantamento foi o capitão Manoel Teixeira da Silva, morador no arraial, e cujo nome se repete em inúmeros registros de casamentos, in-clusive acompanhando vários escravos seus ao “altar”. Mas, curiosamen-te, seu nome não aparece arrolado no referido livro, indicando o número de escravos que possuía e que deveria ser bem relevante. Aliás, nesse as-pecto, assinala-se que o maior proprietário de escravos da freguesia era um indivíduo por nome Francisco Moreira, residente em Morro do Pilar, que possuía 87 cativos.

Outro documento é o livro de Batismos, Casamentos e Óbitos da ma-triz de Conceição, referente aos anos de 1735 a 1754. Nesse período foram realizados ali 177 casamentos, dos quais 61 (34,5%) foram entre escra-vos; 36 (20,3%) entre pardos; 12 (6,8%) entre brancos e pardos; 3 (1,7%) envolveram forros e escravos; 2 (1,1%), brancos e escravos; e 1 (0,5%) envolveu escravo e mestiço índio; foram, portanto, 115 casamentos envol-vendo pessoas de cor (negros e pardos), contra 60 (34,0%) entre pessoas somente brancas e, ainda, 2 (1,1%) entre brancos com mestiços índios. Um dado curioso é que um desses casamentos, realizado em 1737, uniu um dos primeiros exploradores da região, o português Manuel Correia

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qde Paiva, com a crioula Jacinta de Barros, sua escrava, natural de Ser-gipe; essa escrava, segundo informação dada por Geraldo Dutra, teria feito uma generosa doação para a construção da igreja do Rosário, onde os negros se reuniam para rezarem, realizarem suas festas e espantarem suas agruras.

Essa supremacia da população de negros escravos e forros sobre os brancos livres sempre foi um motivo de grande preocupação para as au-toridades coloniais: havia um medo permanente de que essa disparidade racial em favor dos negros se transformasse em atos de rebeldia e rebeli-ões, como realmente vinham ocorrendo, ou de ações individuais de trans-gressão contra os senhores de escravos. Aliás, nesse caso, Geraldo Dutra relata um distúrbio de escravos ocorrido no arraial de Conceição, por volta de 1727, durante a visita do bispo do Rio de Janeiro, Dom Guadalu-pe. A confusão resultou na morte de um filho de um importante morador local, sendo responsabilizados pelo crime oito escravos, condenados à morte por enforcamento em um patíbulo construído às pressas no outeiro próximo à igreja matriz. Desde então o local ficou denominado “Morro da Forca” ou “Morro das Oito Cabeças Negras”.

Por conta de acontecimentos como esse, ao longo de todo o século XVIII, foram estabelecidas interdições que visavam impedir o surgimento de condições favoráveis à rebeldia escrava, como proibir o uso de armas pelos negros e mesmo pelos mulatos, impor limites à circulação de es-cravos durante à noite, marcar por ferro em brasa os escravos presos em quilombos, entre outras. No que se refere a Conceição, em relação ao caso acima descrito, o bispo visitante resolveu interditar a entrada de negros “por dentro da cerca da igreja, principalmente nas ocasiões de missas e festejos, para que não haja desarmonia e tumultos na casa de Deus”.

os quilombosMas o que causava a maior dor de cabeça nas autoridades coloniais

eram os quilombos, agrupamentos que se constituíram ao longo do sé-

culo XVIII, em várias partes da Capitania, formados por escravos que se reuniam em uma comunidade cuja característica dominante foi o fato de estarem rebelados contra a social escravista. Enfim, ali eles poderiam restaurar o estado de liberdade que antecedeu a sua escravização, no caso dos escravos africanos, ou experimentar um sabor inédito de vida livre, no caso dos escravos “crioulos”, isto é, aqueles nascidos no Brasil.

Mas os quilombolas não levaram uma vida fácil, pois foram dura-mente perseguidos pelas autoridades coloniais, tendo sido, para isso, criada uma tropa especializada, composta por capitães do mato e seus comandados, cujas atividades eram recapturar escravos fugidos, desco-brir, atacar e destruir os quilombos. Descoberto e atacado um quilombo, era comum as tropas de ataque tomarem como troféu as cabeças de qui-lombolas mortos em combate, que eram salgadas e transportadas para as principais vilas, onde eram expostas em público para comprovarem os resultados da ação.

Segundo a tradição, Conceição chegou a ter um importante quilom-bo, denominado “Quilombo do Meloso”, mas não há registros documen-tais que comprovem a sua existência e onde teria sido ele formado. No entanto, há documentos que descrevem a existência de quilombos na imensa Comarca do Serro do Frio, que trouxeram grandes preocupações às autoridades locais. Um desses quilombos existiu para “a banda do Itambé”, que foi destruído por um capitão do mato por nome Veloso, que trouxe como prova da ação “setenta mãos direitas”, pelas quais recebeu 70 oitavas de ouro – dez por mão – e muitos presos, a 32 oitavas cada um. Outro documento a respeito é uma carta do ouvidor da Comarca do Serro, Antônio Ferreira do Vale Melo, dirigida ao rei, datada de 1731, na qual expõe suas preocupações com os excessos cometidos na referida comarca pelos negros “calambolas”. Segundo ele, esses negros infestavam todas as estradas da comarca, promovendo assaltos e trazendo pânico e medo para as pessoas. E que certa feita eles

fizeram na paragem chamada o Tejucusú [sic] cinco mortes, entre estas

um religioso de São Bento e nos outros dias seguintes outras muitas chegan-do o desaforo de athe tirarem mulheres de casa e de seos maridos e levarem nas para os matos e a forma das mortes que davam as muitas pessoas que matavam era sangrando as por varias partes do corpo e deixando as eva-dir em sangue athe espirarem e a hua delas crucificaram na (...)

Relatos que demonstram a violência gerada por esses tristes episó-dios, seja pelo lado das autoridades locais, tentando extinguir de manei-ra cruel e exemplar os quilombos, seja pelo lado dos quilombolas, cujas ações eram também carregadas de crueldade e brutalidade.

Seja como for, a supremacia dos negros sobre a população de brancos marcaria definitivamente a conformação populacional de Conceição, pois um século mais tarde, a população do município estava composta por 2.023 brancos, 5.693 pardos e 5.204 pretos, num universo de 12.920 habitantes, como nos indica um mapa populacional da Comarca do Serro do Frio.

Fato interessante na história de Conceição envolvendo os escravos é que com a decadência do ouro, muita gente deixou a cidade e partiu.

Conta-se, inclusive, que várias fazendas foram abandonadas e aca-baram nas mãos de escravos. É o caso, por exemplo, da fazenda Mata Ca-valo, que acabou sendo herdada pela escrava conhecida por Mãe Tança, que depois se notabilizaria por proteger negros e índios fugitivos, fundan-do uma espécie de quilombo nas imediações de Conceição.

Hoje, a cidade se prepara para, mais uma vez, levar sua energia para todos os confins do planeta, através do minério de ferro, essencial para o desenvolvimento humano, para a tecnologia e para a sustentabilidade.

o CoMÉrCioA decadência do ouro dá lugar ao entreposto comerc ia l

Em meados do século XVIII a produção do ouro em Conceição não se apresentava mais como uma atividade tão promissora quanto antes; a escassez do ouro aluvial e das talhas abertas e o alto custo de métodos ex-

ploratórios mais sofisticados e arriscados desanimavam os mineradores. Como se disse antes, riquezas eram feitas e desfeitas na mesma rapidez. Mas isso era fenômeno comum a muitas outras localidades, e não restrito somente a Conceição. O arraial, por essa época, já aparentava uma ma-lha urbana melhor definida, com a igreja Matriz, do Rosário e Santana demarcando claramente seus principais núcleos urbanos e residenciais.

É sabido que a extração do ouro, desde o início, não foi a única ati-vidade exercida no ambiente das Minas Gerais. As pessoas precisavam comer, vestir, morar, enfim, su-prir suas necessidades básicas de vida. Tudo rela-tivo a isso tinha que, de certa maneira, chegar até a região; ou, dito de outra maneira, a região tinha que ser abastecida: mercadorias tinham que vir de fora, quando não eram produzidas ali, e comercia-lizadas. Aí entravam em cena os mascastes, os tro-peiros, os comerciantes estabelecidos, além dos oficiais mecânicos e forros ambulantes. É essa combinação de atividades comerciais e prestação de serviços que irá manter por muitos anos, mesmo após o declínio considerá-vel da mineração, a coesão de várias localidades, inclusive de Conceição.

Para se ter uma ideia, em 1736, quando a exploração do ouro encon-trava-se a todo vapor, Conceição apresentava um quadro comercial bem diversificado, composto por 4 lojas pequenas, 1 loja mediana e 12 vendas. Estava servida por 5 alfaiates, 4 ferreiros, 4 carpinteiros, 1 ourives e 1 sapateiro, e ainda 6 “ambulantes”, isto é, negros ou negras forras que pagavam um tributo para poderem trabalhar vendendo balaios, galinhas e algum tipo de bebida e comida (como as negras tabuleiras).

O documento que registra esses dados traz algumas particularidades: Domingues Álvares Guedes exercia o ofício de alfaiate em Conceição, mas possuía uma loja mediana e uma venda. Já Diogo Dias Correia era uma espécie de empresário da época, pois mantinha uma rede de lojas espa-lhadas pelas localidades da região: uma loja pequena e outra mediana

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qno Tijuco (atual Diamantina), onde residia, e outras 4 lojas pequenas em Andrequicé, Gouveia, Conceição e Morro do Pilar.

Já em 1749, verificamos a presença em Conceição de 8 lojas pequenas, 1 corte de gado, 1 loja mediana de Manoel Gomes de Veras e uma botica de Manoel Teixeira Coelho. É importante salientar que no período todas as lojas e ofícios eram tributados: a loja pequena, 4 oitavas; a loja media-na e a venda, 8 oitavas; os ofícios mecânicos e ambulantes, 2 oitavas, um quarto da oitava e 4 vinténs.

Mas na virada do século XVIII para o XIX a situação não era a mes-ma. Um cenário de depressão, resultante da paralisação progressiva das lavras de ouro pelo empobrecimento das minas de mais fácil exploração, paira Lages] e poderá ter até 200 fogos; porém, assim mesmo mostrando decadência e muitas casas arruinadas; para John Mawe (1809-1810): “A aldeia de Conceição me pareceu bastante grande para conter somente dous mil habitantes, mas, como a maior parte das [aldeias] deste distrito, caminhava rapidamente para a decadência”; já para o francês Auguste de Saint-Hilaire (1816), “Conceição pode ter cerca de duzentas casas que se alinham em duas ruas paralelas. À exceção de Itambé, de todas as povoações até então vistas, nenhuma apresentava como essa tantos sinto-mas de decadência e miséria”; mas admite que pelo “tipo das casas prova que seus primeiros ocupantes gozavam de abastança. Nessa época o ouro retirava-se sem dificuldades dos terrenos próximos à povoação; as minas, porém, se empobreceram, e os atuais proprietários não possuem recursos para fazê-las explorar”.

Na fala dos viajantes se infere, portanto, um cenário de decadência – todos eles usam esse termo –, ruína (das casas), miséria e paralisação das minas. O cenário urbano do arraial – só vai tomar foros de vila em 22 de março de 1840 – ainda aparenta ser mesmo de 50 anos atrás: 200 casas alinhadas em duas ruas paralelas (Rua Direita e De Trás), onde se pola-rizava o maior número de habitantes do lugar e onde se erguia – como hoje se pode ainda verificar – as melhores construções daquela época.

É importante salientar aqui que esse ar de abandono que os viajantes sentem ao chegar ao lugar é, possivelmente, ilusório, tendo em vista que, estando a mineração paralisada, as pessoas tendem a ir para suas ro-ças, situadas nas redondezas do arraial cultivando ou criando gado, e nas quais permaneciam por dias a fio sem ir na sua residência “oficial”. Aliás, é esse ainda um costume muito forte em cidades do interior, cuja atividade principal seja a agricultura e a pecuária, e nas quais escutamos sempre as pessoas dizerem “nesta semana vou para a roça”.

Isso quer dizer que, mesmo apesar desse sintoma de decadência per-cebido pelos viajantes, o arraial não se estagnou completamente. Pessoas deixaram o distrito, com certeza, por falta de perspectiva de emprego e de negócios; mas outras permaneceram, mantiveram seus pequenos negó-cios e até aventaram a possibilidade de ampliá-los. Um desdobramento disso foi o surgimento de pequenas produções domésticas, notadamente para a produção de tecidos, instaladas em várias residências, tornando--se, assim, uma espécie de alternativa para estagnação da economia e fixação das pessoas – mulheres especialmente, apesar de absorver tam-bém o trabalho masculino – nos seus domicílios. Os próprios viajantes presenciaram muito desses teares domésticos em funcionamento pelas lo-calidades que passaram na freguesia de Conceição; o citado John Mawe, referindo-se especificamente ao arraial, diz que a “única manufatura do lugar é a do algodão que se fia à mão e com o qual fazem panos grossei-ros de camisas”; já Saint-Hilaire, passando pela aldeia de Tapera (atual Santo Antônio do Norte), afirma que não é a agricultura e nem tampouco a mineração que mantém a sua atual população, mas, sim, a fabricação de tecidos de algodão, colchas, lençóis e toalhas que comercializam na região e no Rio de Janeiro. Fabricam ainda chapéus de algodão utiliza-dos na região e no sertão. E quase todo mundo na aldeia se ocupa na fabricação das peças.

Por esses testemunhos verificamos que as populações das “aldeias” de Conceição não se dispersaram, apesar de esgotadas as possibilidades de

mineração. Buscaram uma diversificação das atividades produtivas que, se não se mostraram suficientes para gerar desenvolvimento do lugar, pelo menos permitiram a manutenção da estrutura social local.

No caso específico do arraial de Conceição há que se mencionar ou-tros fatores que explicam a não dispersão da população após a derroca-da do ouro. Em primeiro lugar, o clima ameno e benéfico para a vida das pessoas influenciou no aumento da população; as terras banhadas pelo baixo Santo Antônio e pelo Rio do Peixe propiciaram o desenvolvimento de modo apreciável da economia rural, com a expansão da agricultura e da criação de animais; a sua posição privilegiada, no meio da rota que liga o norte aos centros mais desenvolvidos da Província mineira, trans-forma a cidade em um entreposto comercial, movimentado pela passa-gem de viajantes e tropeiros, que frequentavam os hotéis e os tradicionais ranchos de tropas, que emprestavam aos bairros os aspectos caracterís-ticos das bestas de cargas, no seu constante vaivém. Movimento que foi quebrado temporariamente, ao final do século XIX, pelo prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil até o norte do Estado, mas que foi reabilitado após a construção das estradas de rodagem, que ligaram a cidade à capital e às cidades vizinhas.

Por fim, há que se considerar o Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, que vinha sendo realizado na cidade desde 1790. As celebra-ções, que ocorriam entre os dias 14 a 24 de junho de cada ano, atraíam muitos milhares de romeiros, que vêm animados pelo sentimento religio-so, mas gerando também todo um comércio local, transformando a cida-de em um centro de interesse de populações de várias partes do País. Não podemos esquecer ainda do “Jubileuzinho”, realizado durantes os dias de carnaval, que, apesar de menor prestígio, traziam devotos das cidades vizinhas, cujo movimento os comerciantes locais sabiam explorar.

Dessa maneira, Conceição se manteve coesa durante todo o mofino século XIX e no limiar do século XX – por volta de 1893 – possuía 300

casas, distribuídas em 8 ruas e 4 praças, com uma cadeia pública e sua Casa de Câmara. A população aproximada era de 4.000 almas. Com-parando-se esse quadro com outro, fixado 50 anos depois, verificaremos que no século XX Conceição alcançou um desenvolvimento urbano muito significativo: já possuía 788 prédios, distribuídos em 63 logradouros, dos quais seis estavam inteiramente pavimentados e quatro somente parcial-mente, sendo outros dois ajardinados (praças).

o iNTENDENTE CÂMara Pr imeira fábr ica de ferro das Américas

Esgotado o ciclo do ouro, podemos afirmar que Conceição se enve-redou pelo ciclo do ferro. Mas não foi uma mudança tão natural como se possa imagi-nar. Notícias sobre a existência do ferro no território das minas já vinham sendo espa-lhadas desde o início da mineração aurífera. Em 1735, o governador da Capitania, Gomes Freire de Andrade, retornando de uma via-gem de inspeção que fez ao Tijuco, relata ao rei D. João V que “desde a Vila do Príncipe ao arraial de Conceição, passando pelo Mato Dentro, indo a Itabira até Vila Rica, grande quantidade de ferro cobre as imensas monta-nhas; no Tijuco existem muitas serras cober-tas de ferro iguais às de Vila Rica (...)”.

Alguns anos mais tarde, em 1770, uma Carta Régia assinada pelo rei Dom José e o Marquês de Pombal, encarregava o conde Valadares de “(...) enviar com muita brevidade uma relação de todas jazidas de ferro exis-tentes no território da Capitania uma carta geográfica da região onde existe o minério de ferro (...)”.

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qNo entanto, a resposta, ao que parece nunca foi dada, porque às auto-

ridades da época só interessava o metal amarelo. Tanto foi assim, que a rainha Dona Maria I, mediante um Alvará publicado em 1º de janeiro de 1785, ordenava a extinção e abolição de todas as fábricas e manufaturas no Brasil. A intenção por trás desse ato era reerguer a exploração do ouro do abatimento progressivo em que mergulhava, elevando as arroubas aos altos índices dos tempos áureos.

Mas a ideia de se extrair o ferro não foi sepultada com o ato de uma rainha insana. Em 1799, o príncipe regente D. João ordenou ao gover-nador da Capitania de São Paulo que encarregasse o metalúrgico João Manso Pereira de examinar o melhor local em que se pudesse instalar uma fábrica de ferro. Dois anos depois, em Minas Gerais, o naturalista mineiro José Vieira Couto indagava-se, a respeito do ferro, “por que fata-lidade até hoje não nos temos baixado para levantar da terra essas ri-quezas, que ela tão largamente nos oferece!”. Dez anos depois de escritas essas linhas, o naturalista pôde ver a realização de suas projeções: surgia a primeira forja nacional.

Entretanto, antes disso, foi preciso esperar até a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808. Nesse mesmo ano, mediante um Alvará de 1º de abril, foram revogados todos os opressivos impedimentos que se ha-viam posto às manufaturas e indústria em geral, e permitindo a todos os vassalos fundar, em qualquer parte do País, os estabelecimentos que lhes conviesse, medida esta que se estendeu também aos estrangeiros que viessem residir no Brasil.

Assim, uma carta régia datada de 10 de outubro de 1808 autorizou ao Intendente dos Diamantes, o Dr. Manoel Ferreira da Câmara Bitten-court Aguiar e Sá – mais conhecido por Intendente Câmara – a deduzir 120:000$00 réis da assistência anual, que pela fazenda se fazia para os trabalhos da extração, 10:000$00 réis no ano de 1808 e 4:000$00 nos dois anos seguintes, para serem aplicados, como mais convenientes fossem, ao estabelecimento de uma fábrica de ferro, no lugar mais apropriado da

Comarca do Serro do Frio.

Em 5 de abril de 1809 deu o Intendente Câmara inicio às obras da fábrica, com o assento da primeira pedra do alto-forno, no arraial do Morro do Gaspar Soares - que pertencia ao arraial de Conceição - , lugar abundante em ferro e cômodo em sua preparação. O plano inicial foi a construção de um forno-alto com vinte e oito pés de altura, para vazar o ferro pelo sistema da Alemanha. Mas a insuficiência de água para mo-vimentar os malhos e foles fez o Intendente alterar o plano primitivo, e levantar três fornos baixos pelo sistema catalão, que deviam funcionar ao mesmo tempo e auxiliar o forno maior. Mas a falta de água continuou e os fornos deixavam de trabalhar dois ou três dias por semana.

No ano de 1815 foram fundidas as primeiras barras de ferro em um alto-forno no Brasil. As barras foram conduzidas até o arraial do Tijuco em carros cobertos de flores e figuras alegóricas e levadas até a casa da Intendência, em clima de grande festa e regozijo público.

Depois de um efêmero período de florescimento, a Fábrica Real do Pilar começou a entrar em decadência, pela falta de trabalhadores e ofi-ciais competentes. Por conta disso, em 1820, D. João VI manda contratar mestres e artistas peritos na metalurgia do ferro e nos serviços de altos--fornos para as fábricas do Brasil. Destes, foram destinados à Fábrica do Pilar dois fundidores prussianos em alto-forno, o mestre Hermano Utsch e o oficial seu filho João Henrique Utsch, por um contrato de 10 anos.

Em 1822, Câmara deixa de ser Intendente para assumir uma cadeira na Assembleia Constituinte Brasileira. A fábrica fica sem direção perma-nente e entra em franco processo de decadência. Em 1830 encerra-se o contrato dos Utschs, que resolvem explorar por conta própria as jazidas de ferro existentes entre os distritos de Itambé e Pilar. Sem direção, a Fábrica Real do Morro do Pilar foi praticamente abandonada e por or-dem do Conselho de 26 de fevereiro de 1831, foi determinado proceder-se um inventário de todos os bens da fábrica, a saber: uma casa de pedra

e taipa destinada ao carvão; uma casa de pedra com alto-forno, foles e roda; casa de pedra do martelo grande, com três fornalhas de fundir e duas de resfriar; casa com moinho; rego que conduz água para a fábrica na extensão de meia légua; 70 cabeças de bois para carro...

A Fábrica Real do Morro do Pilar não veio a “vingar”, como esperava seu fundador, mas o seu exemplo serviu de modelo para muitas outras pequenas fábricas e forjas que existiram na região de Conceição. Geral-do Dutra, em seu livro, baseando-se em relatório elaborado por Joaquim Cândido da Costa Sena, intitulado Viagem de estudos metalúrgicos no centro da Província de Minas (1881), enumera alguns desses empreendi-mentos:

Fábrica de Ferro do Tenente João Martins – situada a doze quilô-metros do Morro de Gaspar Soares, no lugar denominado Lages. Nela se emprega o sistema de cadinho. Fundem-se diariamente seis arrobas de ferro, utilizadas na confecção de enxadas, foices e ferragens.

Fábrica de Ferro do Coronel Antônio Rodrigues – forja situada a três quilômetros do Morro de Gaspar Soares. Produz 75 a 90 quilos de ferro, transformados em ferraduras.

Fábrica do Tenente Jorge – situada a três quilômetros do Morro de Gaspar Soares, no lugar denominado Coqueiro. Produz enxadas, cravos, ferraduras etc.

Fábrica de Ferro do Sumidouro – situada a sete quilômetros de Con-ceição, fundada por João Henrique Ustch. Em estado de abandono.

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qCiDaDE PENSaNTEComo Conceição se transformou num centro irradiador do pensamento

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

Sérgio Lacerda

Era comum que famílias de maior condição econômica en-viassem seus filhos homens para estudar no seminário do Caraça ou em ouro Preto. as mulheres eram enviadas para os internatos. Com o tempo, a cidade passou a ser referên-cia também em termos educacionais, com o surgimento, no início do século XX, do asilo São Joaquim e, por volta de 1917, do ginásio São francisco, que recebeu inúmeros estudantes não só da cidade, como de diversos arraiais e lugarejos de toda a região e até de outros estados.

Cachaça, bo is e educação

Interessante é mergulhar nos primórdios da educação de Conceição do Mato Dentro e descobrir que ele só come-çou a existir de fato para as famílias que viviam por

estas bandas quando o imperador publicou a famosa Lei Régia de 10 de novembro de 1772, em que o governador-geral da ca-pitania, Antonio Carlos Furtado de Mendonça, criava a pedido de dom José I um imposto sobre a aguardente e sobre a venda de gado para custear os investimentos da Coroa em educação na cidade. Afinal, a aguardente era um produto com larga pro-dução na cidade e o seu uso já era, naquela época, fiscalizado pelo governo e, principalmente, pela Igreja. O gado já havia se disseminado pelas fazendas e era fonte de receita importante do município já em meados do século XVIII.

O imposto sobre a venda de aguardentes e gado foi chamado

de “subsídio literário” e ajudou a fixar os alicerces do que viria a ser o ensino em Conceição já no final do século XVIII. Naqueles tempos, apenas as famílias abastadas, que enviavam seus filhos para estudar fora, tinham acesso ao ensino. Os homens simples não tinham acesso à educação e à ‘Corte’ resolveu, por inspi-ração do Marquês de Pombal, criar o tão afamado imposto. O valor era expressivo. Cobrava-se, segundo relata Geraldo Dutra em seu livro História de Conceição do Mato Dentro, oitenta mil réis por barril de aguardente e duzentos e vinte e cinco réis por cabeça de gado abatida.

A primeira escola primária de Conceição só veio a surgir realmente depois da instituição do subsídio literário, na verda-de, 21 anos depois. Foi inaugurada no dia 5 de março de 1793 pelas mãos do padre Manuel Francisco da Silva, nomeado pelo rei Dom José I como professor régio – e “mestre de ler, escrever e contar”. Recebia para a importante função a bagatela de 150 mil réis e exerceu suas atividades até o ano de 1811. A nomea-ção ocorreu por força do documento registrado à página 315 do Códice número 524, do Arquivo Público Mineiro.

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qInteressante também é a reivindicação do povo do arraial,

que pediu diretamente ao imperador Dom Pedro I que criasse uma cadeira de Latim e outra de Francês na Freguesia de Con-ceição, nomeando para a função o cidadão Joaquim Patrício Teixeira. A nomeação ocorreu por força de Decreto publicado em 5 de março de 1823, referendado pelo ministro José Boni-

fácio de Andrada e Silva, conforme o documento descrito a seguir: “Tendo sua majestade o Imperador, por Decreto de 5 de março próximo passado, ordenado a criação de uma Cadeira de Gramáti-ca Latina, na Freguesia de Conceição do Mato Dentro, comarca do Serro do Frio, com o ordenado que tem as outras na

Província de Minas Gerais: houve por bem fazer mercê a Joa-quim Patrício Teixeira, por Portaria da mesma data, de o pro-ver na dita cadeira, procedendo-se primeiro ao exame e mais diligências de estilo em semelhantes provimentos. E nesta con-formidade o manda participar pela Secretaria de Estado dos negócios do Império, ao Governo Provisório da Província de Minas Gerais para sua inteligência. Palácio do Rio de Janeiro, em 10 de abril de 1823. José Bonifácio de Andrada e Silva” – Ar-quivo Público Mineiro, Sec. Provincial – Cód. Número 15.

A vocação de Conceição do Mato Dentro para ser um centro educacional da região começa a surgir aí. Amparado pelo apoio da Igreja, ainda no final do século XIX a cidade proporciona aos seus moradores a instalação do educandário feminino. Foi do então arcebispo de Diamantina, Dom Joaquim Silvério de Sousa a iniciativa de criar um instituto educacional voltado para as jovens da cidade. Nascia, assim, com o auxílio de do-ações e esmolas do povo concecionense, o Asilo São Joaquim, entregue às Irmãs Clarissas Franciscanas. A inauguração ocor-

reu em 15 de julho de 1913, denominando-se Escola Normal e Asilo São Joaquim, por meio do Decreto Nº 3.958, assinado pelo então presidente de Minas, Bueno Brandão.

Alguns anos mais tarde, o mesmo Dom Joaquim (que mais tarde deu nome à cidade vizinha) estabeleceu as bases para a criação de um dos maiores educandários do nordeste mineiro – o Ginásio São Francisco, que seria erguido com a participa-ção direta dos padres capuchinhos que vieram da Itália para assumir a missão de educar os jovens do sexo masculino em Conceição. Inaugurado em 1918, sob a direção do francisca-no frei Vicente di Licodia, o ginásio acabou se transformando numa escola renomada, atraindo gente de todos os municípios da região e até mesmo de outros estados.

Já em 1926, o governo de Antonio Carlos possibilitou a cria-ção de mais uma escola: o Grupo Escolar Daniel de Carvalho, cujo primeiro diretor foi o destacado educador Sebastião Jorge, homem que se dedicou durante toda a vida ao ofício de ensinar.

Interessante é que desde o final do século XVIII era tradição nas escolas de Conceição o ensino do francês. As tradições liber-tárias herdadas da Revolução Francesa já encontravam respaldo em toda Minas Gerais e havia cerimônias importantes para mar-car a Queda da Bastilha, feriado municipal à época. Nas escolas, estudantes aprendiam o francês e era costume, tanto no Serro quanto em Conceição, o hasteamento da bandeira da França. Essas tradições libertárias, segundo relatos do advogado Wagner Safe, influenciaram várias gerações de concecionenses e fizeram da cidade um dos berços do movimento liberal em Minas.

Celeiro de grandes homensMas a condição de celeiro de grandes homens e mulheres, fi-

guras proeminentes que fizeram história no País, começou mui-

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qto antes do surgimento desses educandários. Filhos de famílias tradicionais de Conceição buscavam seus estudos em centros próximos, como Ouro Preto. Um deles fez história como um dos maiores mineralogistas mineiros, sendo o primeiro conceicio-nense a ocupar o relevante cargo de presidente de Minas Gerais.

O nome dele era Joaquim Cândido da Costa Sena, o pri-meiro a estudar a fundo e a defender a exploração das inú-meras jazidas de minério de ferro de Conceição do Mato Den-tro, nos idos dos anos Oitocentos. Nascido em 13 de agosto de 1852 numa pequena casa da rua de Trás, filho de pais pobres, Costa Sena estudou Humanidades no Colégio Caraça, sob a orientação dos padres lazaristas, sempre se destacando entre os melhores alunos. De lá, seguiu para a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde estudou com expoentes como Ozório de Almeida e Paulo de Frontin, transferindo-se mais tarde para a Escola de Minas de Ouro Preto, fundada pelo francês Henrique de Gorceix. Formou-se em 1880 e, pouco tempo depois, já era preparador do curso de Mineralogia e Geologia daquela escola.

Sua carreira na Escola de Minas foi fulgurante e Costa Sena assumiria, anos mais tarde, com a aposentadoria de Gorceix, a cadeira de diretor-geral da renomada universidade ouro-preta-na, cargo que ocuparia pelo resto de sua vida. Cientista de reno-me internacional, levou para vários países seus conhecimentos em Mineralogia e na Engenharia de Minas. Entre os títulos que amealhou em vida, estão o de comendador da Ordem da Coroa da Itália, Oficial da Academia Francesa, membro efetivo da So-ciedade de Mineralogia de Paris, da Sociedade Imperial de Mine-ralogia de São Petersburgo, na Rússia, da Sociedade de Geologia de Berlim e da Geologycal Society of America, entre outros.

Humanista, Costa Sena dizia: “Reparai a natureza que vos cerca e vereis que é própria para criar lutadores, porque é nas

cristas das montanhas que a águia e o condor tecem seus ni-nhos”. Extremamente religioso, como era comum nas famílias tradicionais de Conceição do Mato Dentro, ensinava que

“a religião é o vínculo que prende a terra ao céu, a criatura ao Creador [sic]. Ela é o farol que ilumina o cérebro e o coração, inexaurível tesouro em que encontra o fraco o lenitivo para seus males e aflições e o forte corretivo à sua grandeza e pode-rio. É a luz benfazeja que nos guia nas elucubra-ções científicas, porque ciência sem religião é uma navegação sem bússola”.

Costa Sena também foi um homem extremamente caridoso e, em suas vindas a Conceição, sempre ajudou as pessoas, levando meninos po-bres da cidade para estudar na Escola de Minas de Ouro Preto. Entre seus alunos, esta-vam conceicionenses que se destacariam na vida social de Minas, como o poeta e li-terato Francisco Antonio Fer-reira da Silva, o dr. Casimiro de Sousa e o médico e deputado Pedro Luiz.

“Pelo trabalho, procurai cercar de glória vossos nomes, enchendo de paz vossa consciência...A vozeria dos homens é nada, a

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Fonte: Arquivo da Escla de Minas de Ouro Preto

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qvoz da consciência é tudo, e o cumprimento do dever é o caminho da imortalidade”,

dizia Costa Sena.

Com certeza, a história de Costa Sena inspirou muitos ho-mens em Conceição, que viriam a ocupar cargos importantes no cená-rio político e econômico de Minas Ge-rais. Homens públicos como Daniel de Carvalho, visionário que, como se-cretário de Obras e Viação do Estado, foi o responsável pela construção da estrada rodoviária que ligaria defini-tivamente a cidade à capital de Mi-nas, a MG-10, construída no início do século XX e inaugurada em 1926 com a presença do presidente Washington Luís. Daniel de Carvalho era filho dos conceicionenses Ana Utsh de Carvalho e de Antonio Serapião de Carvalho e nasceu em Itabira. Também exerceu o cargo de Ministro da Agricultura no governo Eurico Gaspar Dutra e, entre outros feitos, ajudou definitivamente o Ginásio São Francisco, que tinha sua existência comprometida após a crise gerada pela Revolução de 30.

Também alçado ao cargo de ministro, Augusto Costa foi uma figura expoente de Minas Gerais nascido em Conceição. Fi-lho de Bento Joaquim Costa Pinto e Maria Augusta de Almeida Costa, teve uma carreira brilhante galgando postos desde fun-cionário público até chegar a deputado estadual por mais de uma legislatura. Presidiu a Caixa Econômica Estadual e chegou

a ministro do Tribunal de Contas do Estado.

Outro destacado conceicionense foi o cônego Hermógenes Casimiro de Araújo Brunswick, filho do capitão Manuel Ferrei-ra de Araújo e Souza e de dona Joaquina Rosa de Santana. Ho-

mem de grande cultura, sacerdote da mais alta estirpe, foi referência para uma geração de mineiros que tinham no seu exemplo um grande legado. Cônego Hermógenes prestou inúmeros serviços ao País pela integridade de seu caráter, o que o levou a ser condecora-do com insígnias como a Ordem de Cristo e a Ordem da Rosa.

Filho do coronel Modesto Justino de Oliveira e dona Custódia Augusta da Silva, Clodomiro de Oliveira nasceu em Itambé do Mato Dentro, que no passado pertencia a Conceição, e foi um destacado engenheiro na defesa do patrimônio mineral de Conceição do Mato Dentro e, tal qual o mineralogista Costa Sena, um dos precursores na discussão sobre a questão do desenvolvimento siderúr-gico de Minas Gerais. Suas ideias o levaram a

ser convocado pelo presidente Arthur Bernardes para exercer o cargo de ministro da Agricultura, Indústria, Comércio, Viação e Obras Públicas. Engenheiro civil e de Minas formado na Escola de Minas de Ouro Preto, também exerceu o cargo de catedrático dessa instituição renomada.

Algumas figuras públicas exerceriam cargos destacados na história recente do Brasil, como o jornalista José Aparecido de Oliveira, filho de Conceição do Mato Dentro que construiu uma vida pública singular. Aparecido teve uma carreira política ex-

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qponencial, que começou como assessor do prefeito de Belo Horizonte Américo Renê Gianetti, depois como chefe de gabinete do prefeito Celso Mello Azevedo e posteriormente como secretário particular da Presidên-cia da República no governo Jânio Quadros. Foi deputado federal, se-cretário de Interior e da Agricultura no governo Magalhães Pinto. Como primeiro ministro de Cultura do Brasil, alavancou vários movimentos e atividades culturais pelo País e pelo exterior, como embaixador do Bra-sil em Portugal. Foi, também, o articulador e um dos idealizadores do movimento para unir todos os países de língua portuguesa, que culmi-nou na criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Ho-mem de grande cultura e uma fenomenal capacidade de unir pessoas e projetos estratégicos para a cultura de Minas Gerais e para o País, José Aparecido figura como um dos homens que mais contribuíram para a transformação cultural, social e humana de Conceição do Mato Dentro.

O bispo José Maria Pires, nascido no distrito de Córregos, é conhecido como “Dom Pelé” ou Dom Zumbi e é um dos prelados mais importantes na história da Igreja brasileira. Hoje, aos 93 anos, Dom José é o único bispo vivo que participou do Concílio Vaticano II, momento singular na história da Igreja católica. Atuou ao lado de dom Helder Câmara na con-solidação dos movimentos sociais surgidos no seio da igreja brasileira. É um dos religiosos mais queridos do Brasil. Faz parte de uma elite inte-lectual da Igreja católica brasileira e de toda uma tradição de religiosos voltados para a “ação preferencial com os pobres”.

Certa vez, segundo o sociólogo Pedro A. Ribeiro de Oliveira, numa reunião com bispos dom José contou que iniciou uma missa com as seguintes palavras: “Em nome de Olorum, de Oxalá e de Ifá”, ouvindo como resposta da plateia: “Axé”. Justificou aos que o criticaram que se podia invocar a Trindade na língua portuguesa, no latim ou no grego, porque não poderia fazê-lo na língua Nagô¿

D. José nasceu com vocação para padre e foi ordenado pelo primeiro pároco de Córregos, no final do século 18, chamado Dom Antonio. Foi pe-

las mãos de dom Joaquim que transferiu-se para o estado da Paraíba, onde teve uma vida de intensa entrega religiosa, acreditando sempre numa Igre-ja de bases mais sociais, notadamente voltada aos mais pobres.

Aos 93 anos, lúcido e ativo, apesar de aposentado, continua com uma visão de igreja libertária e social. Em 2011, com o advento dos cinquenta anos do Concílio Vaticano II, espera que o papa retorne a Igreja ao seu papel de comprometimento com os mais pobres.

Médicos, engenheiros, músicos, empresários que hoje elevam o nome de Conceição no cenário nacional e internacional são o fruto de uma cidade que se criou como um centro de inteligência desde a sua história mais remota. Conceição não exportou apenas o ouro e o minério, mas levou para o mundo gente do mais alto quilate, pessoas comuns que se destacam nas mais diversas áreas do conhecimento humano.

imprensa nasceu das mãos de um poetaÉ de iniciativa de um poeta o surgimento do primeiro jornal de Con-

ceição do Mato Dentro. Alphonsus de Guimarães, autor de Setenário das Dores de Nossa Senhora, Câmara Ardente, Dona Mística, Kyriale, Men-digos, Ismália e um dos ícones do movimento Simbolista. Batizado com o nome de Afonso Henrique da Costa Guimarães, o poeta não era filho da cidade. Nasceu em Ouro Preto no dia 24 de julho de 1870 e veio para Conceição para exercer inicialmente o cargo de promotor de Justiça e, posteriormente, de juiz substituto.

Fundou o primeiro vespertino de Conceição, intitulado jornal Concei-ção do Serro, o qual também assinava com seu pseudônimo.

“Órgão oficial do município, tratará paralelamente das necessidades e interesses deste e do Estado, bem como da comunhão brasileira; na sua humilde esfera será a Al-menara que velará com o seu clarão protetor pelo socego [sic], paz e prosperidade dos nossos conterrâneos”,

definia-se o periódico em sua primeira edição, publicada em 20 de março de 1904.

“A linguagem será sempre lídima e correta, como con-vém a quem escreve para um povo civilizado; consistin-do a essência da civilização, como emeritamente disse o imortal poeta florentino, no desenvolvimento harmônico da humanidade, para que esta harmonia não se turbe em dissonâncias ásperas, sempre reinará nestas colunas a fi-dalga maneira de dizer a verdade em estilo puro, longe dos esterquilínios tão comuns à imprensa partidária”

– sublinhava a primeira edição do jornal.

Cinco anos mais tarde, já em 1909, Conceição via nascer o jornal do farmacêutico José Inácio de A. Lima, chamado de Cidade de Conceição. Esse jornal circulou até novembro de 1911 e foi retomado anos depois, dando continuidade à sua história. Na esteira do jornalismo indepen-dente, surgiu no dia 21 de agosto de 1921 o jornal ‘A Conceição’, edita-do pelo jornalista Joaquim Ribeiro, um dos proeminentes intelectuais do município naquele início de século. Árduo defensor de Getúlio Vargas, Joaquim Ribeiro expunha suas opiniões abertamente nas páginas do “A Conceição”, tendo sido um dos ícones na defesa da Revolução de 30, de matizes extremamente nacionalistas.

“A Conceição” circulou com gráfica própria até 1930. Quatro anos depois surgiria o jornal com maior número de edições já veiculadas no município. Vinculado à irmandade do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, o Boletim do Bom Jesus prestou um grande serviço à comunidade, publi-cando matérias relevantes e farta publicidade. Ainda na década de 30, mais precisamente no ano de 1931, Sincero Ribeiro, primo do jornalista Joaquim Ribeiro e funcionário do jornal “A Conceição”, fundaria o jornal

“Conceição”, que circulou por pouco tempo e de forma irregular.

O Boletim do Bom Jesus ficou alguns anos sem ser publicado e voltou em 20 de junho de 1941, circulando até a década de 1950 e tornando-se o jornal mais importante da história de Conceição. Na mesma década sur-giria o jornal “A Voz de Conceição”, editado pelo Ginásio São Francisco, sob a direção do frei Agatângelo, de conotação extremamente católica, mas com matérias de cunho político, informações agrícolas e anúncios curiosos, como o que, na edição do dia 15 de outubro de 1950, destacava:

“Guerra à Crise: Faça suas compras na Casa Chiqui-

nho Soares – próxima ao Mercado – Fazendas – Calçados – Chapéus – Armarinhos”.

Outros jornais se sucederam na história mais recente de Conceição, como a Folha de Conceição, dentre outras publicações, algumas delas vinculadas ao Executivo Municipal.

Esporte e musicalidadeO esporte sempre foi praticado em Conceição do Mato Dentro desde

os princípios do arraial. Uma prova disso é o documento que o visitador episcopal Dom frei Antonio de Guadalupe fez publicar em 26 de abril de 1727 contendo uma série de advertências aos fiéis católicos do arraial de Nossa Senhora da Conceição do Serro Frio. Uma dessas ordens dizia, expressamente:

“...como nos constou em visita, que os moradores deste arraial tem nos seus Jogos de Bola, onde com frequência, escândalo e publicidade estão muitos fazendo-se, especial-mente aos Domingos e Dias Santos, continuamente, jogan-do, distraindo-se a si e aos outros da assistência, que deve fa-

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qzer aos ofícios Divinos, ordenamos ao Rev. Pároco que condene os que neste particular forem mais frequentes relapsos”.

Segundo interpretação do historiador Célio Macedo, esses “jogos de bola” a que se referia o severo bispo, deveria se asse-melhar ao esporte de “bocha”, cuja origem remonta a um jogo praticado no Egito e na Grécia antiga e que teria chegado ao Brasil pelas mãos dos italianos. Certo é que já no século XVIII o povo de Conceição, mesmo sob o olhar repreensivo da Igreja, se encontrava na rua para brincar de bola, o que, com certeza, deixou raízes em toda a história da cidade.

O futebol, por exemplo, sempre teve presença marcante na história de Conceição e há registros da prática do esporte no início do século XX, quando pelo menos duas equipes disputa-vam jogos em partidas presenciadas por inúmeros torcedores na cidade. Os primeiros times de futebol de Conceição, segun-do relatos do sr. Corinto Oliveira, que foi jogador amador na cidade – Esporte Clube Conceição e Matosinhos Esporte Clube –, movimentaram a vida esportiva local, disputando partidas no campo perto do santuário de Matosinhos e, posteriormente, no estádio municipal. Jogavam em várias cidades da região, disputando torneios regionais de futebol. Anos depois surgiu o Maranhão Esporte Clube, segundo o sr. Corinto, uma dissidên-cia do Conceição Esporte Clube. Nascia ali uma divergência histórica e o clássico da cidade passou a ser entre os dois dis-sidentes.

O vôlei também foi muito difundido em Conceição. O gran-de incentivador dos times locais foi o médico dr. Juvêncio da Silva Guimarães, um entusiasta do esporte que depois se torna-ria prefeito. Ao lado de José Antero, outro técnico, dr. Juvêncio promovia jogos e treinos na cidade.. A senhora Cleide Moreira,

ex-jogadora do único time feminino da cidade, o Esporte Clube Conceição, conta que nestes tempos (final da década de 50), a cidade vivia uma época de ouro:

“Participamos de jogos do Campeonato Mi-neiro e tínhamos inclusive a carteirinha da Fe-deração de Vôlei. A Consuelo Rajão era a levan-tadora. Participamos de muitos jogos, em Sete Lagoas, Diamentina e Belo Horizonte, tendo à frente os técnicos José Antero e doutor Juvêncio. Eu era cortadora, apesar de ser de pequena estatura. Certa vez, fomos jogar no Minas Tênis Clube e fui convidada para jogar lá. Jogamos também contra o América e na cidade de Itabi-ra. Onde chegávamos para jogar, todo mundo tinha medo de jogar com a gente. Tempos de ouro para Conceição”.

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qDona Cleide cita as principais jogadoras de vôlei

de Conceição do Mato Dentro:“Nosso time era formado por Consuelo Ra-

jão, Isaurinha Silva, Luiza Silva, Luciana Sil-va, Maria Célia Rocha, Maria Célia Silva, Deise Miranda, Miriam Portilho, Bete e outras.”

A cidade contava também com um time de vôlei masculino, que era formado, entre outros jogadores, por Zé Antero, Eustá-quio Barros, Elzen, Tarcísio Lazarini, Roberto Ferreira, Afonso Lazarini, Amauri Brandão e Wilson Carneiro, segundo relato da senhora Cleide. “Treinávamos na quadra onde hoje é o Serra Velha, ao lado da casa do sr. Joaquim Juá”, relembra.

A musicalidade também esteve presente na história de Con-ceição, com certeza embalada pela forte influência da religiosi-dade – seja a católica com a música sacra, ou a de origem ne-gra com os batuques que viriam mais tarde originar o samba. Bandas de música sempre fizeram parte da vida conceicionen-se. As mais destacadas eram a Banda Lira da Paz, criada pelo maestro João Rodrigues – mestre Janjão – em 1910, e a banda Lira da Conceição. A Lira da Paz existe até hoje e ainda faz apresentações em festejos religiosos e públicos. Anteriormente, existiu em Conceição a banda Lira São Francisco.

Grupos de seresta e violeiros também fizeram parte da história de Conceição e foram registrados em achados interes-santes que merecem registro. Um relato do viajante inglês John Mawe que, de passagem por Conceição no início do século XVIII, dá bem a dimensão desse costume musical: “Cheguei a Concei-ção, grande aldeia muito bela (...). Recebi muitas visitas dos aldeiões [sic]; a notícia da chegada de um inglês despertava a sua curiosidade (...). À noite, as moças vieram cantar lindas modinhas acompanhadas ao violão”.*

Um dos grupos de seresta mais ativos de Conceição, princi-palmente nas décadas de 1950 e 1960, foi criado sob a batuta do mestre Teiado, segundo relata o sr. Adriano Silva Filho, que, à época, ainda jovem, era tocador de violão na cidade.

“Íamos para as fazendas tocar viola e ficávamos às vezes a noite inteira. Assim, eu entrava na maioria das festas mesmo sem ser convidado, porque tocar violão era um jeito de estar nos acontecimentos sociais da época”, conta ele.

Mesmo numa cidade conservadora e que vivia sob os aus-pícios da Igreja e sob o olhar rigoroso de padres e vigários, Con-ceição nasceu e cresceu sob o signo da alegria. A forte presença dos negros, que no passado sempre foram maioria na cidade, era garantia de festejos que não dispensavam o batuque, mui-tas vezes reprimidos pelas autoridades políticas e eclesiásticas.

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qJá nos anos Setecentos, relatos de repreensões ao costume dos negros e mestiços de tocar tambor eram comuns.

Mas o espírito festeiro sempre tomou conta de Conceição. O Jubileu do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, por exemplo, nasceu de uma grande festa que o povo fez para comemorar a chuva que viera para amenizar uma seca terrível – ou, quem sabe, para fazer jorrar ouro nas enxurradas ladeira abaixo. Já naquela época, final dos anos Setecentos, havia relatos de cantorias e festejos embala-dos pela musicalidade que sempre fez parte da vida de Conceição.

Musicalidade que ajudou também a alimentar uma velha tra-dição da cidade, qual seja a de comemorar com muita alegria o carnaval, festa que já era citada antigamente nas visitas dos bispos, com ameaças de excomunhão e acusações de heresia aos fiéis. O car-naval de Conceição do Mato Dentro ganhou ainda mais brilho com a inauguração do Éden Clube, na praça central do bairro do Vintém.

Geralmente, era animado pelas bandas, que tocavam até de madrugada. Muitas gerações cresceram na cidade e se divertiram em bailes memoráveis realizados no Éden Clube. E o carnaval de rua, também tradicional na cidade, tirava de casa muita gente que saía com suas máscaras para se divertir e extravasar o senti-mento de alegria sempre presente na vida dos filhos de Conceição.

Mais recentemente, nas décadas de 1960 e 1970, o Festival da Canção Popular de Conceição do Mato Dentro (Fescap) reuniu músicos de toda a região e ajudou a divulgar muitos talentos.

“O festival era realizado no Colégio São Joaquim. Cada turma tinha um cantor. Chico Costa era padrinho de uma tur-ma. Eustáquio Barros defendeu a música pra gente. Roberto Ferreira e Jaime Mosquito também participaram no festival”, conta Cleide Moreira, à época estudante em Conceição. Foi um momento inesquecível na história da música na cidade. Depois

surgiu o Festival da Canção de Conceição do Mato Dentro.

Denise Miranda participou do grupo que venceu uma das edições do Festival da Canção, em 1970. O festival era realiza-do no antigo Cine Paroquial (onde hoje funciona a Biblioteca Pública) e no Éden Clube. A música vencedora desta edição foi E Fica Assim e Denise estava ao violão acompanhada de Rosinha Lima, Fafá Rajão, Cadinho e Lucinha do Adão. Os festivais, reali-zados com o apoio do concecionense José Aparecido de Oliveira, tinham nomes de peso no júri. Participaram figuras da cultura brasileira como Zuzu Angel, Ziraldo e Millor Fernandes. “Eram músicas de qualidade, no nível da bossa nova”, conta Denise.

CinemaA vida social também passou a ser preenchida já no início do

século XX, com a chegada das salas de cinema. A primeira delas surgiu ainda na década de 1910, pelas mãos do austríaco Augus-to Borman, com exibições nos salões da Câmara Municipal. Era o tempo do cinema mudo e Conceição animava as exibições com a utilização de um gramofone. Depois, veio a sala de exibição de outro imigrante da Áustria, chamado Anselmo Turrer, que tam-bém trouxe para a cidade o primeiro gerador de energia elétrica, segundo relata o escritor Joaquim Ribeiro Costa em seu livro de memórias “Conceição, Fonte de Saudade”. Mário Lunardi viria depois criar o Cine Excelsior e o cinema falado só chegaria em 1934, pelas mãos do imigrante Toufic Tanure. O advogado An-tonio João de Matos lembra-se também do Cine Paroquial, que funcionava em frente ao Fórum, e do Cine Floresta, na subida da Santana, de propriedade do sr. Nico Floresta.

Uma culinária muito peculiarComo cidade que recebia gente de todas as regiões do País e do

mundo, desde que nasceu, no século XVIII, Conceição também aju-

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qdou a estabelecer as bases para o nascimento de uma gastronomia muito peculiar e bem afeita ao modo de vida dos mineiros.

Dessa forma, desde os tempos do arraial foram surgindo in-fluências que misturavam costumes indígenas, de negros africa-nos, portugueses e de imigrantes de todas as partes do mundo.

O que ficou de registro nessa cultura alimentar se perpetuou e atravessou os séculos. Conceição do Mato Dentro, por exemplo, foi o berço do famoso pastel de angu, até hoje uma tradição culinária que pode ser encontrada em bares e restaurantes da cidade.

Quem conta sobre o surgimento dessa receita do pastel de angu é dona Lélia Generoso, esposa do sr. Antonio Magno:

“Muita gente vem de longe perguntando so-bre o tal pastel de angu de Conceição do Mato Dentro. Na realidade, eu nunca trabalhei como cozinheira, e sim, como professora. Eu dava aula de Educação Física no grupo escolar, mas a receita do pastel de angu foi passada pela mi-nha mãe. Naquela época o angu era uma comi-da mais comum entre os escravos. Na verdade, minha mãe pegou essa receita da escrava que tomava conta dela; o angu era muito fácil, visto que fubá não era uma coisa muito valorosa na-quela época. E o recheio do pastel era feito com as sobras das refeições dos fazendeiros. Assim nasceu o pastel de angu. Foi passando de gera-ção em geração, até chegar aos dias de hoje, re-ferência gastronômica no mundo inteiro!

Muitas receitas da região também ficaram famosas com o uso do vegetal conhecido como ora-pro-nobis, uma Ora-pro-nobis (Pereskia

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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FOTO PASTEL DE ANGU JORGE

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qaculeata), do latim “rogai por nós”,

uma espécie de cactos cuja origem é desconhecida. Provavel-mente, deve ter sido trazida para o Brasil por algum imigrante. Diz a lenda que o nome surgiu porque os moradores roubavam a planta no quintal da casa de um padre, enquanto ele rezava o ora-pro-nobis (Orai por nós). O nome científico é uma homena-gem ao cientista francês Nicolas-Claude Fabri de Peiresc, o que pode deduzir também uma origem européia para a planta.

Certo é que em Conceição as velhas cozinheiras, geralmen-te negras que herdaram receitas dos seus antepassados, sempre cozinharam o ora-pro-nóbis em pratos à base de frango caipira e carne de porco. Daí surgiram receitas deliciosas que ainda hoje são fartas na mesa do povo de Conceição e em seus restau-rantes, como a costelinha de porco com ora--pro-nóbis, o frango caipira com ora-pro-nóbis e tantas outras.

Outra tradição culinária que pouco se vê em outros lugares diz respeito ao consumo do broto de samambaia Pteridium aquilinum (L.) Kuhn. Muito consumido na região da Serra do Tomaz, o broto de samambaia é uma comida exótica, geralmente combinada com lombo de porco e muito apreciada pelos amantes da culinária ge-nuinamente mineira. Na verdade, essa iguaria tem origem oriental e já era consumida havia muitos séculos por japoneses, que a conhecem por “warabi”, mas há estudos que dizem que ela deve ser preparada com cuidado porque contém toxidade em sua composição química.

As senhoras de Conceição do Mato Dentro, geralmente au-xiliadas pelas mulheres do povo, a maioria negras e mulatas, descendentes de escravos, cultivavam o hábito de escrever seus livros de receita. Felizmente, alguns deles ainda sobreviveram ao tempo, como o da família do sr. Homero Generoso, que guarda até hoje preciosidades que eram preparadas por sua mãe, dona Mirtila Generoso (mãe da dona Lélia), e que tivemos o privilé-gio de reproduzir neste livro. Receitas que traziam o esmero com os temperos e especiarias comuns nas hortas da cidade desde os tempos do arraial, como a salsa, o alho, a pimenta-do-reino, a pimenta-malagueta e tantas outras.

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mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qmosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

o MiTo Da ilha BraSilPré-histór ia ambienta l e a convivência ét ica com a Serra do Espinhaço

Loriel Rocha

obedientes ao pedido do embaixador José aparecido , brasi-leiro ímpar grande amigo da cultura luso-brasileira, ousa-mos propor uma reflexão transdisciplinar dos arquétipos nacionais brasileiros, buscando as suas raízes na histo-riografia mítica portuguesa, transpondo-os e traçando paralelos possíveis, tanto quanto possa, para a história de Conceição do Mato Dentro.

Após-modernidade aceitou o desafio de reunir de modo transdisciplinar o que havia sido desunido pelo positivismo materialista, iniciando o mergu-

lho na “realidade profunda” do mundo e dos seres. Mas ainda são escassos os “Arqueólogos do saber” (Gandra 2000, n0.1, p.3) que trabalham à margem de quaisquer chauvinismos e como contraponto indispensável à cultura de massa tão em moda.

Ao assumir tal empreitada, colocamos firme fé no pensa-mento antigo que afirma que o “rio de Heráclito flui” porque o leito do rio não flui. O movimento estriba-se no não movimen-to. E para concretizá-la, optamos pelo mito da Ilha Brasil, que carrega em seu núcleo sapiencial uma mensagem de cunho uni-versal e ético de vital importância para o planeta, a natureza e os seres viventes como um todo.

A Ilha Brasil é um mito vasto e antigo, presente no imaginá-rio de vários povos do Atlântico, cujos tentáculos entrelaçam di-ferentes culturas, configurando um mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acon-tecerá a reintegração de todos os seres criados com a natureza.

Tempo, portanto, de uma Nova Terra , rediviva em si mesma, porque pautada em uma “ética e responsabilidades universal” (Carta da Terra) .

Se coube ao Brasil ser parte integrante da narrativa lite-rária histórica do corpo do mito, é porque nos cabe, enquanto Nação, parte da responsabilidade de fazer acontecer uma Nova Era no planeta. Uma Nova Era universal, inclusiva, pacífica, mais feliz e melhor para tudo e para todos . E para nos auxiliar a cumprir a parte que nos cabe, nada mais justo do que conhe-cer e acolher a nós mesmos e à nossa história.

O mito da Ilha Brasil, de alcance universal, teve desdobra-mentos importantes no Descobrimento do Brasil. Aliás, este, fei-to singular da ação Templária, inexistiria sem o mito, pode-se dizer que foi movido em razão dele. Um desses desdobramentos relaciona-se com o que se convencionou chamar de “entradas e bandeiras”, o outro, com a presença mariana e a consagra-ção do Brasil a Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Ambos os temas, o minério e Nossa Senhora da Conceição, constituem presença marcante na história de Conceição do Mato Dentro.

Cânyon do Peixe tolo: cenário magnífico de montanhas em Conceição do Mato Dentro

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qInfelizmente, neste, nos cabe apenas apontar esparsos elos exis-tentes entre o mito e suas relações, porque foge ao escopo deste trabalho. Toda economia tem o seu preço. Estamos conscientes disso, e assumimos o risco.

Por outro lado, e lado basilar do nosso compromisso com José Aparecido, orienta-nos a exposição de pontos que possam germinar futuros estudos mais acurados sobre o Brasil, seu povo e a cultura lusíada. Mas, sobretudo, fazer um convite à reflexão aos conceicionenses que, como grande parte dos bra-sileiros, padecem o mal de se considerarem marginais ao con-texto do mundo, síndrome tupiniquim criada por uma cultura europeizante, que nos mantêm atavicamente suspensos em ne-nhum ponto fixo de nós mesmos. E dentro dessa falta de equilí-brio, nos exigem verticalidade como país do futuro, como se a ausência de rumo pudesse guiar para um norte cego. E, para acalmar a angústia desse futuro que não chega, acenam-nos com o conforto da possibilidade de que somos um povo feliz fadado ao sucesso. Mas, atentem bem que

[...]Essa felicidade que supomosÁrvore milagrosa que sonhamosToda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamosPorque está sempre apenas onde a pomosE nunca a pomos onde nós estamos.

(Carvalho apud Alves 1960, p.119)

Em sendo assim, vamos colocar a felicidade onde nós estamos, e com o que somos. E para tanto, propomos nos

insurgir contra a falta de ponto fixo em nós, dentro de nós e no entorno de nós, por meio de uma pedagogia do afe-to, que contemple um ufanismo pátrio sem ser vaidoso nem tampouco superficial, mas sendo simplesmente aquele que nos confere o direito inalienável de sermos um país e um povo com passado, presente e futuro, alicerçados na verdade histórica de nossos defeitos e nossas virtudes. Pois, somente assim seremos verticais, e auxiliaremos a cumprir a parcela que nos cabe dentro do plano universal de uma Nova Era de Paz e Fraternidade mundial.

Amar, conhecer, respeitar e servir o Brasil, eis o funda-mento de nossa pedagogia do afeto. Porque, na certeza de que ser brasileiro “é também uma arte, e uma arte de grande al-cance nacional, e por isso, bem digna de cultura” julgamos pertinente a organização e exposição dessas ideias metafí-sicas que realizam a unidade do espírito e da matéria, que caracteriza o Ser desde os gregos antigos, e brota como flor espiritual multirracial, cujas pétalas são, simultaneamente, grega-ária-semita-índia-afro.

É nessa fusão de contrastes que nascemos, crescemos e nos desenvolvemos. Nada mais justo, portanto, do que nos ufanar-mos desse “caos” harmônico que nos impulsiona, purifica e diviniza, mantendo nossa independência de caráter brasilei-ramente conservada, causa de admiração e espanto. Somos, enquanto Nação e enquanto povo, um Gigante Adamastor que precisa navegar o Grande Mar da Verdade.

À voz desse sangue híbrido responde a voz do Brasil e nesse diálogo misterioso nos moldamos “gigantes em berço esplêndi-do ao som do mar e à luz do céu profundo”. Somos uma obra sônica por natureza articulada e...

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q“Seremos de tal lirismoque por descuido somentevoltaremos ao instintode comer os grãos de pólen.

Tão luminosos seremos,de tal pureza divina,que em nós haverá tormentose o néctar for ingeridoe mancharemos o amorse houver escolha de sumoe pesaremos o dobrocom o perfume dos frutos”.

(Lessa apud Alves, op. cit., p.230)

a importância de uma Metodologia Transdisciplinar

À semelhança do Bolero de Ravel, o mito da Ilha Brasil vai num crescente, enlaçando-se com imaginários outros, compon-do uma sinfonia literária matemática. Como exemplos dessa sinfonia literária temos o culto pagão às Deusas Mães, o Paraí-so Perdido, o Santo Graal e o Ciclo Arturiano, o Deus Endovélico dos Lusitanos, a Alquimia lítica, o mito dos Thuata-de-Dannan, entre outros. Cada um deles relata, na forma de parábolas ou de lendas, conhecimentos que representam respostas às eternas perguntas do homem sobre o Cosmos, a origem da vida e a po-sição que ele, homem, assume diante disso.

A julgar pela aparência exterior inexiste qualquer tipo de conectividade entre tais mitos e a razão consiste em que os es-tudos a que se propõem a buscar essas ligações são seara árida,

terreno afeito aos Arqueólogos do saber. De modo urgente e necessário, conclama Manoel Gandra (2000, Ibidem). a uma nova atitude epistemológica, de viés transdisciplinar:

“Com efeito, raros são aqueles que hoje em dia persistem em negar que os mitos e as tradições constituem os melhores guias para os Arqueólogos do saber. No entanto, são verda-deiramente arbitrárias as razões pelas quais é recusada a certos mitos e tradições a legitimi-dade consentida a outros. O conformismo re-ligioso e, designadamente, aquele que preside ao ensino das chamadas humanidades estão, indubitavelmente, na origem dos aludidos dis-tinguo. Convirá, por conseguinte, alterar tal metodologia, isto é, em vez de apriori desden-har de um relato lendário, ou da semântica consagrada de um monumento, por mais in-críveis que possam parecer, convirá interrogá-los, reportando-se a um manancial de refer-ências e topoi obtidos a partir de disciplinas como, entre outras, a astronomia, a numero-logia pitagórica, a geometria simbólica, a ico-nologia, a heráldica, a geomancia, a história e a geografia míticas nacionais. Isto, tão só porque os mitos arcaicos, manifestando quali-dades específicas do Sagrado, consubstanciam uma visão do mundo que pressupõe a única globalização genuína. De facto, eles exprimem a nostalgia das origens, através da busca das relações entretidas por terra e céu para a con-stituição de um vasto templo, espécie de escada

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qde Jacob com vista à realização da Parusia”.

Na mesma linha, e aprofundando as palavras de Gan-dra, Fidelino de Figueiredo (1959, p.47-48) faz uma chamada de atenção à metodologia materialista presente na historiogra-fia que prefere ignorar a interrogar tais mitos, permanecendo lacrada ao diferente, com claros prejuízos ao saber e à cultura dos povos. Ao mesmo tempo, de modo hierático, afirma a exis-tência de dois planos históricos, o superficial e o subterrâneo, onde o último determina e influencia o primeiro:

“A história que se ensina e que baseia a gov-ernação e os comentários jornalísticos, outrora matéria oficial dos cronistas régios e ainda hoje departamento predilecto da erudição acadêmi-ca, está para a história integral como a espuma suja da superfície para as fermentações de um líquido, ou como a queda outonal da folhagem e o seu apodrecimento sob a chuva para a evolução biológica das plantas: uma parte, e parte miserável, de um nobre conjunto. [...] A história integral possui outro plano oculto, o da subterrânea acção criadora – subterrânea como a das raízes daquele arvoredo que no Ou-tono se despiu das suas frondas que lhe sobem das ocultas raízes. A esta história enganosa e ruidosa da superfície opõe-se a verdadeira e si-lenciosa, a das fermentações profundas, a das raízes invisíveis, a infra-história – zona em que a inteligência estimulada por todos os anseios labuta, não pelo domínio do homem sobre o homem, sim pelo domínio do homem sobre a

Terra, com toda a fenomenalidade que o en-volve e todo o cenário do Cosmos que o defron-ta. Essa infra-história é que determina a agi-tação da história aparente. Assim a realidade profunda e invisível do mundo vibratório do átomo determina a aparência enganosa e bela do mundo empírico das sensações. Para os ob-servadores vulgares só existem as cores, os sons, as formas, os contactos, os sabores, o frio e o calor. E nesse palco sensorial decorre a única história ao seu alcance, a dos reis e generais, a das guerras, a dos morticínios e prepotências..., história que se anima de muito movimento e colorido mas que não passa de meia história. Ora, como em boa verdade coexistem os dois mundos, o das sensações de perímetro humano e o da vibração atômica de perímetro univer-sal, assim coexistem os dois planos da história, o da aparência superficial e o da realidade profunda”.

Analisar a história luso-brasileira sobre o plano oculto, eis e desafio que nos impôs o Embaixador José Aparecido. E desa-fio simultaneamente instigante e hercúleo, porque, se a história dos povos é semelhante a um diamante multifacetado, então, todas as faces compõem o diamante, mas, uma única face está impedida de representar todo o diamante. No entanto, uma única face da nossa história, a do plano de superfície, é o que nos tem sido apresentada ao longo do tempo pelas eminências de gênio. Como Salomé que pede a cabeça de João Batista, his-toricamente, sofremos uma espécie de degola simbólica, somos impedidos de pensar pela nossa própria cabeça e devemos acei-

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qtar pensar pela cabeça dos outros. Já é tempo de começarmos a raciocinar .

E convirá ao raciocínio clarificante o cultivo da amizade com a verdade. Sobre isso, com propriedade, Mahatma Gan-dhi advertiu que “a verdade tem a dureza de um diamante e a delicadeza de uma flor”.

os Templários e a formação do império BrasileiroAbundam mitos subjacentes aos Descobrimentos Portugue-

ses, bem como à formação do Império Brasileiro . A historiogra-fia registra, desde muito cedo, os precoces e estreitos laços entre a Ordem do Templo e os círculos aristocráticos portucalenses (Silva, 2003). A Ordem do Templo de-sempenhou papel fundamental tanto na formação da nacionalidade portuguesa quanto na expansão urbana portuguesa, ocorrida ao longo dos séculos XII e XIII,

além de mentora e patrocinadora dos Descobrimentos Portu-gueses, no século XVI.

Acrescido a isso, a Ordem também teve papel decisivo nas guerras de Reconquista da Península Ibérica, exerceu poderosa influência em vários reinos da Europa, e foi decisiva para as Cruzadas. Vale frisar que, no tocante à este último item, vincu-lou-se de tal modo a imagem Templária às Cruzadas que sua vital presença e importância em Portugal foi abafada. Eviden-temente que os Templários tem muito a ver com as Cruzadas. No entanto, os Templários portugueses configuram um tipo mui-to particular de templário. E a Ordem do Templo em Portugal se desenvolve de modo bastante específico.

Relações extremamente complexas se teceram entre os reis

portugueses e a Ordem do Templo . Apesar disso, o silêncio que paira sobre essa relação da Coroa Portuguesa com os Templá-rios é significativo, o que denota sua radical importância e a existência do supracitado plano subterrâneo a que Fidelino faz menção, e consequentemente, a imperativa necessidade de fazer uma releitura transdisciplinar da história. Isso não só, porque o tema sobre os Templários é carregado de estigmas. Reações bipolares acontecem no trato dessa questão, que oscila entre a admiração incrédula e a discrição da ignorância pretensiosa. Mas, sobretudo, porque o diálogo e a interprenetração de dife-rentes campos do saber certamente estará mais habilitado para falar sobre as faces do diamante.

Há muitos anos, Gandra (2006, p.11) se dedica a descorti-nar o enigmático véu de silêncio que paira sobre os Templários e sua presença em terras da Lusitânia, e afirma sem titubear:

“Se a alguma Ordem religiosa e militar é

creditável o dom da sagração do planeta de acordo com preceitos geomânticos tradicio-nais legados ao ocidente pela antiguidade greco-latina delineando aquilo que, com pro-priedade, pode ser chamado uma geografia sagrada, essa Ordem foi a do Templo, um dos mais activos agentes da arte da concertação universal nos tempos mediévicos”.

A lapidar frase de Gandra traz em seu bojo palavras que apontam um específico rumo revelador das ações Templá-rias: uma Ordem religiosa e militar sagrou o planeta por meio da geomância , criando um espaço geográfico diferen-ciado, porque ritualisticamente consagrado , objetivando

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o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qum alcance universal , acima do espaço-tempo, portanto, metafísico.

Ora, infere-se dessas palavras que a Ordem assume para si, claramen-te, uma atuação Divina. Mas, é impossível determinar o quê ou quem conferiu tal missão e poder aos Templários. Podemos apenas constatar as linhas de força orientadoras.

Com razão, Gandra afirma a existência do Projeto Templário e o Evangelho Português levado a termo pela Coroa Por-tuguesa. E para a perfeita consecução de seus obje-tivos, a Ordem do Templo lançou mão de estratégias múltiplas, entre elas, resgatou, reavivou e disseminou vários mitos arcaicos. Um desses mitos, o da Ilha Bra-sil, foi particularmente importante para todo o secular processo que antecedeu e envolveu os Descobrimentos Portugueses, cujo ápice converge para o Brasil, identi-

ficado como sendo o Paraíso Perdido .

Por tudo isso e, com frontalidade corajosa, a considerar seriamente que uma Ordem Iniciática regeu ocultamente os destinos de Portugal objetivando a procura do Paraíso Perdido, identificado como sendo o Brasil, a pergunta que nos cabe fazer é: como pensar o Brasil e os brasi-leiros sob essa ótica?

oS MiToS DE CoNqUiSTa: a ilha BraSil O Imaginár io do At lânt ico e sua Mult id imensional idade

As maravilhas do território brasileiro, e por conseguinte, do seu todo geográfico, é cantada nos mitos de vários povos. O mais antigo desses mitos, o da misteriosa Ilha Brasil, que no imaginário medieval irlandês e europeu representava o Paraíso Terrestre, foi o que mais decisivamente contribuiu para a preservação da unidade territorial brasileira. Presente na cartografia desde 1280, situada no Oceano Atlântico, a extremo oes-te da Irlanda, dizia-se que ficava envolta em brumas, desocultando-se a cada sete anos. Permanece representada na documentação cartográfica

ao longo dos últimos 500 anos e sua derradeira referência dá-se na Carta Náutica do Almirantado Britânico em 1873 (Cantarino 2004, p.330), por-tanto, muito tempo depois dos Descobrimentos Portugueses.

Cabe atentar para uma singularidade da cronologia das documenta-ções cartográficas que representam a Ilha Brasil. A mítica Ilha aparece, pela primeira vez, situada no hemisfério norte, perto da costa da Irlanda. Gradativamente, a posição geográfica da Ilha no Oceano Atlântico se des-loca em direção ao hemisfério sul do planeta, em direção oposta, portan-to, ao seu ponto inicial. Juntamente com as imagens da Ilha Brasil, que muda constantemente de forma (Cantarino, op. cit., p.311-330) aparecem também representadas figuras de monstros oceânicos, e as ondas do pró-prio Atlântico são estilisticamente revoltas, bravias, “ferozes”.

A linguagem mítica de muitas dessas cartas cartográficas ainda intri-gam especialistas ao longo dos séculos, pois, sabe-se que transmitem um tipo de saber. A quê ou a quem se destinam? O historiador português Adão da Fonseca (1992), tece a seguinte interpretação do imaginário português de um Oceano Atlântico repleto de monstros: “Na Idade Média, não é o Atlântico em si que é maravilhoso; ele funciona como um dos âmbitos espa-ciais onde o maravilhoso tem lugar. Não se trata, portanto, do maravilhoso do oceano, como hoje se diria, mas do maravilhoso no oceano”.

Com essas palavras, afirma então o autor que o Atlântico , em si mes-mo, não tem um sentido de concretização geográfica direta, ou seja, não representa o mar oceano, mas, sim, “aponta para o quadro mais geral de espaços marítimos desconhecidos”. Ele aponta mais três aspectos im-portantes. O segundo aspecto importante é o da intercomunicabilidade geográfica desse Oceano, ele é universal, une em si todos os oceanos e terras, de cariz ambivalente, sendo simultaneamente manso e tenebroso. O terceiro aspecto é o espaço do incógnito e da aventura , é o espaço onde o homem encontra a si mesmo, na superação do obstáculo, no esforço, na viagem. O quarto aspecto revela que o monstro é o reflexo de uma homologia universal do Macrocosmo com o Microcosmo, é uma categoria

que permite tornar o desconhecido numa relação com o conhecido, é um enigma e uma esfinge que nos interroga e coloca-se nos lugares de passa-gem, sendo fonte de descobrimentos.

Ao seguir essas observações, acrescentando a elas a Ilha Brasil, surge uma oculta mensagem em forma de imagem fluida, que de tão lenta parece parar no tempo-espaço: o Paraíso que flutua do norte polar em direção ao hemisfério sul, uma vez desvelado, unirá o mundo inteiro abrindo perspec-tivas e dimensões inimagináveis para a natureza, o mundo e os seres.

Essa é exatamente a mensagem da Parusia Universal que os Templá-rios disseminam e os Descobrimentos carregam. É inegável que os Des-cobrimentos alteraram a face do mundo, inaugurando uma nova era de intercâmbio e ecumenismo planetário. E se o “comércio” foi a via para tal gesta, é de somenos importância. Pois, finalmente, o Paraíso revelou-se, e em espaço austral.

Quanto ao mistério do mar, repare-se que os versos do poema Infante de Fernando Pessoa (1941, p.51) aludem claramente à aparição de uma terra una e indivisa, unida pelo trabalho do maravilhoso no Mar:

Deus quer, o home sonha, a obra nasce.Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse . Sagrou-te e foste desvendado a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,Clareou, correndo, até ao fim do mundo,E viu-se a terra inteira, de repente,Surgir, redonda, do azul profundo .

Quem te sagrou creou-te portuguez.Do mar e nós em ti nos deu signal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.Senhor, falta cumprir-se Portugal! .

Numa observação atenta nota-se que o Poeta fala em dois mares. O primeiro, que abre os versos, é escrito com letras minúsculas; o segundo, que fecha o poema, é escrito com letra maiúscula. E a frase “Senhor, falta cumprir-se Portugal!” parece mais uma exclamação para Algo dirigido por um espectador estupefato que presencia o desenrolar da cena, e não a constatação da interrupção da missão de um país, como tem sido mui-tas vezes interpretado, causa de disputas entre a mátria portuguesa e a pátria brasileira.

Por sua vez, uma terra uma e indivisa unida pelo mar remete à ima-gem de um círculo. O círculo , considerado a figura geométrica perfeita, comunica o centro com a circunferência através do raio. É a divina ge-ometria do círculo que traz a Parusia e o cumprimento da teleologia dos tempos. Mas, aqui, na figura do círculo, em relação aos Descobrimentos, uma trágica rutura acontece, e tragédia dupla.

Na primeira tragédia, para Portugal, a certeza do não cumprimento da totalidade da missão dos Descobrimentos constrói a utopia necessá-ria do Sebastianismo, com toda a fenomenalidade que o envolve, junto com a angústia de uma glória inconcluída. O cultivo de tais argumen-tos paralisam o psiquismo português. Desse modo, o fluxo que deveria fluir rumo ao hemisfério sul fica estacionado no vazio da inconclusão, à espera do retorno do Rei. A conseqüência disso para o Brasil, segunda tragédia, é que lhe resta a empírica promessa de ser um país do amanhã, tempo verbal da suspensão de ação por ausência.

Mas, de onde tais tragédias duplas retiram seu ponto de apoio? Pois, se, como afirma o Poeta “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”, e se, “Deus quis que a terra fosse toda uma/ Que o mar unisse, já não se-parasse”, depreende-se que os Descobrimentos seguem um fluxo Divino,

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qsendo, portanto, impossibilitado ao humano a suspensão ou interrupção do próprio fluxo; e se ele o houve, foi porque “Deus quer”. Mas, se Deus quis, a vontade Divina cumpriu-se após os Descobrimentos, porque “Deus quis que o mar unisse, já não separasse”. E o mar é unido no hemisfério Sul. Em sendo assim, como ler o nevoeiro, e a necessidade dele, que cai sobre Portugal e o Brasil?

Historicamente, a paralisação do fluxo teleológico do círculo cria dois cismas, construídos dentro da interpretação eloquente de que um único cír-culo pode ter dois centros. A única possibilidade de resolução matemática desse impasse é a figura da Vescica Piscis cuja geometria expressa clara-mente que a ação que se faz já está feita, portanto, é passado-futuro que recai no futuro passado. Einstein já demonstrou há tempos a simetria da reflexão no tempo. E aqui, unindo Brasil a Portugal , existe uma confluên-cia, de vez que é sabido que o que é paralelo só se encontra no infinito, e acrescento que esse encontro só se pode dar pela sobreposição.

Pensar Brasil e Portugal como gêmeos divinos, eis a divina geometria, que, ao menos parece ter sido pensada no século XVIII pelos representan-tes da Ilustração luso-brasileira . De certo modo, o tema da gemelidade Brasil-Portugal pode ser vislumbrada na CPLP, através da busca de uma unidade na língua, tendo na figura do Professor Agostinho da Silva um árduo defensor.

Corroborando as palavras acima do Poeta, bem como a literatura do imaginário e o imaginário cartográfico, está Manoel Gandra (2006, p.111), para quem o Divino conduziu humana gesta:

“A expansão portuguesa não foi, nem fruto do acaso, nem um feito político da Coroa ou de cortesãos esforça-dos, antes a missão de uma Ordem iniciática. Motivada por expectativas milenaristas e messiânicas coletivas, sin-creticamente compendiadas no Auto do Império, a gesta

marítima lusa resolve-se na demanda do Paraíso Perdido, esse Centro Espiritual Supremo só alcançável, garantem-no escritos espirituais medievos como o Conto do Amaro, a Navegação de São Brandão, o Livro de José de Arimatéia e o Orto do Esposo, pelo nauta audaz que, em demanda do seu destino, embarque nas naus da Iniciação”.

Atente-se que o dito acima, somado às mensagens cartográficas da Ilha Brasil, anuncia a Ordem do Templo como sendo a agente de um plano escatológico oculto subjacente aos Descobrimentos. Plano este que traz claro um sentido espiritual por excelência, e corrobora a esperança no futuro, já pleno da presença de Deus.

Sob essa ótica, a procura e o desocultamento geográfico do Paraíso Perdido necessitam e têm uma implicação geológica, pois, é a partir de um Centro que todos os pontos se unem à roda, sem os quais inexiste o círculo. E para concretizá-lo, há medida de esforço?

“Valeu a pena? Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

a antiguidade do Solo Brasileiro e o Mito da ilha Brasil

Segundo o Gênesis Bíblico, o Paraíso é a “terra” mais antiga do mun-do, geologicamente falando. Após a expulsão do Casal Primordial do Jardim do Éden, o Paraíso é “selado”, “ocultado”, “proibido”, aos primei-ros humanos e seus descendentes, e assim será até o cumprir dos tempos, quando tudo retornará ao que era antes. E o que era antes? Um estado de pureza perpassava toda a natureza, e além da imaginação do que isso significa, nada mais podemos afirmar.

Certamente que as implicações dessa antiguidade geológica remetem à antiguidade antropológica e linguística. Portanto, o Paraíso, como a

terra mais velha da Criação é também o berço matriz da língua e da ge-nética dos povos . A descoberta do Paraíso é simultaneamente um feito técnico, científico e religioso, e a fusão de ambos confere um poder inigua-lável àquele que o detém.

A demanda do Paraíso, em nome de um imperativo ideológico, a sis-temática ocultação de documentos na chamada Política de Sigilo dos Descobrimentos , a presença secular dos Templários em Portugal, a dis-seminação de mitos da Ilha Brasil na cartografia medieval, a assinatura de Tratados como o de Tordesilhas, entre outros feitos, sublinha a ges-tação de uma futura geometria de requalificação dos espaços urbanos e territoriais do mundo. A descoberta do Paraíso desordenaria, ou antes, reordenaria todo o mundo conhecido, e ele nunca mais seria o mesmo.

Vemos na esteira dessa estratégia literário-racional da chamada Po-lítica de Sigilo dos Descobrimentos, a “preocupação” da Coroa Portugue-sa no que tange ao sistemático catalogamento dos aspectos físico-geográ-ficos da nova terra descoberta , juntamente com a identificação da fauna e da flora e as inúmeras analogias feitas do observado com o Paraíso.

Acrescido a tudo isso, temos o oportuno evento imputado à carta de Crético que motivou “Portugal ter proibido, desde 1591, a presença de estrangeiros em solo brasileiro, durante os três longos séculos que se se-guiram ao documento do Crético – entre a divulgação de sua carta, em 1501, e a abertura dos portos às nações amigas, decretada por D. João VI, em 1808 – não se editaram muitas obras na Europa com menções ao Brasil, e as editadas, na maioria das vezes, traziam descrições sucintas e apressadas do país (França, 2010).

Uma das consequências dessa proibição, desse “selamento” por parte da Coroa Portuguesa, é que os estrangeiros fizeram descrições breves e, seguramente, superficiais do Brasil e de seu povo (França, ibidem). Mas foi a partir delas que se criou o modo como os europeus tanto quanto nós mesmos pensaram e agiram em relação ao Brasil.

Se é incontroverso que movimentos bivalentes fizeram parte da forma de regência de Portugal nos assuntos que tangem ao Brasil, e sobre os quais há pesada crítica, é impossível negar que dentro da visão da infra--história de Fidelino de Figueiredo, esses movimentos assemelham-se a um jogo de xadrez.

A tarefa escatológica ingente que se coloca a Portugal é o fenômeno tremendo de ser agente da Criação do Novo Mundo:

“Visto a chegada ao Brasil, em 22 de Abril de 1500, não ter passado da tomada de posse oficial e toda in-tencional desse território austral, que se acreditava ser o Paraíso reencontrado e, hoje, se tem por certo consti-tuir o cenário apropriado para a incubação de um novo biótipo de humanidade, consentâneo com as caracterís-ticas da próxima Era, à qual, por sua qualidade solar, apenas convirá uma Raça Dourada”

(Gandra, op. cit., 1997, p.49).

Sobre a perspectiva vetorial da identificação da natureza do Paraíso, a tomada de posse oficial do Brasil fez-se à vista do Monte Pascoal, de acordo com o cálculo do Mestre João, a 17o de latitude Sul.

Na literatura, na política, na religião, no imaginário, no comércio, a mítica Ilha Brasil foi sustentada e construída ao longo dos séculos. A per-gunta que fazemos é: geologicamente há registros dela? Para responder a essa pergunta, passemos ao próximo item.

a localização da Serra do Espinhaço e o Mito da ilha BrasilComo já referido, o Brasil aparece em vários mapas antigos, anteriores

aos Descobrimentos, como uma ilha localizada a oeste da Europa. Portan-to, do ponto de vista geográfico , o nome Brasil já existia nos mapas medie-

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qvais. Nas mitologias normanda e celta, essa Ilha (denominada Hy Brazil, ou Ilha de São Brandão) estava localizada num lugar de clima tropical, onde as condições de vida eram as ideais.

Do ponto de vista geológico, entre 10 e 5 milhões de anos (Ma) atrás (no Período Mioceno), foram registradas algumas das maiores ingressões marinhas (avanço do mar sobre o continente) na atual América do Sul. Essas elevações do nível do mar, que podem durar milhares de anos, são provocadas pelo derretimen-to das calotas polares em períodos interglaciais. As grandes in-gressões marinhas Miocenas ocuparam extensas áreas do nosso continente, devido à Cordilheira dos Andes estar, ainda, em fase de elevação. Portanto, onde hoje temos a cordilheira, existiam imensas áreas planas (pouco acima do nível do mar) no que hoje é Colômbia, oeste do Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina. Du-rante essa grande ingressão, o Brasil (exceto a Amazônia e o Mato Grosso) formou uma gigantesca ilha (Webb, 1995) e, o Espinhaço fazia parte dela. Foi o único momento, no passado geológico re-cente, em que o Brasil foi – de fato – uma ilha.

Haveria, então, alguma relação entre esta gigantesca Ilha Brasil e o Hy Brazil celta? Obviamente, estamos discutindo uma feição geológica que ocorreu 2 Ma antes da aparição dos pri-meiros hominídeos. Embora seja impossível de explicar do pon-to de vista cartesiano, não deixa de ser uma intrigante relação entre a história geológica e a mitologia.

“In Nomini Patris, Filii, Spiritus Sancti Et Rex”

Essa sugestiva e explícita frase em latim “In Nomini Patris, Filii, Spiritus Sancti Et Rex” que significa “Em Nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo e do Rei” mostra bem como se deu o crescimento da Ordem do Templo em Portugal a partir dos

serviços prestados a D. Afonso Henrique e seus sucessores na defesa de fronteiras e povoamento do reino, além de evidenciar o relacionamento extremamente complexo que se deu entre os soberanos lusitanos e os diversos Mestres da Ordem do Templo.

A quaternidade apresentada na frase é formada pelas Três Pes-soas da Trindade e por uma quarta pessoa, o Rex, o Rei, que se su-põe, seja o Rei de Portugal. E assim o será. No entanto, convém es-clarecer que a palavra Rex, refere-se, além do monarca português, à um outro Rei, a quem os Templários também prestavam obediên-cia, conhecido com Rei do Mundo, conforme se verá a seguir.

Desde D. Teresa , mãe de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, a assinatura dos soberanos é uma Cruz sobreposta a uma Rosa Mística com quatro palavras latinas dispostas nos quadrantes: PAZ e LUX, nos superiores, REX e LEX, nos inferiores (Gandra 1997, p. 32) . Essa mesma Cruz Templária é encontra-da na Palestina e na Abissínia (Daehnhardt 1993, p.52-54). As quatro palavras em latim fazem menção às funções espirituais (Guénon 1958, p. 26-27) que o Rei do Mundo desempenha, o que torna admitido a ligação de Portugal à um reino espiritual, oculto. Considera-se, então, que o Rei de Portugal, o monarca, de cariz temporal, assim como os Templários, obedece aos de-sígnios do Rei do Mundo, reino espiritual. Dessa feita, o Conda-do Portucalense é movido por divinal mistério, desde seu início.

À primeira vista, essa ligação pode soar exótica. Mas, recor-de-se que essa relação simbólica e simbiótica entre o poder tem-poral e o espiritual era prática corrente na Antiguidade. Quanto a isso, vale recordar que a existência da duplicidade de poder temporal e espiritual funda Roma e notabiliza sua história; e, entre os egípcios, o Faraó era a própria vivificação da divindade, fundindo na carne o espírito, mistério ontológico que será cen-tral na pessoa de Cristo, séculos depois. Igualmente, a mitologia

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qgrega ou persa atesta que própria existência da realeza fundamentava seu estatuto temporal num sangue divino, criando um laço indissolúvel entre o céu e a terra. Após o pacto do rei merovíngio Clóvis com a Igreja, Roma estabeleceu na Europa uma supremacia que não foi desafiada durante mil anos (Baigent et all 1993, p.197), e durante séculos a Igreja de Roma, na pessoa do Papa, é quem legitimava os reis. Portanto, é histórico essa prática de enlaçar os dois poderes, o temporal e o espiritual. Somente com o tempo, e tempo recente, há separação efetiva entre as duas funções, criando um poder político e um religioso, habitando esferas diferentes.

Mas, cabe aqui recordar que essa antiga prática está bastante enfra-quecida na Europa quando Portugal “re-unifica” novamente esses pode-res, cingidos misticamente na célebre Batalha de Ouriques, em que D. Afonso Henriques vê o Sinal da Cruz e o Cristo Crucificado nela. O para-lelismo instigante entre as funções ordenadoras e reguladoras do Rei do Mundo com os sinais rodados das assinaturas da realeza portuguesa, que claramente reivindicam um estatuto de realeza divina para Portugal , projeta o espaço geográfico de Portugal num supratempo.

Desse modo, desde D. Afonso Henriques, a realeza portuguesa é inves-tida de duplo poder simultaneamente temporal e espiritual: “Ao fadar a grei portuguesa, a cristofânia de Ourique missionou-a como Populus Praeelectus Christi para a fundação do Império de Cristo e trouxe-lhe, concomitantemente, a legitimação da realeza de direito divino na pessoa do primeiro Afonso, ‘aquele a quem Deus ama’, e de seus descendentes” (Gandra 1997, p.32).

Do acima exposto emerge uma singularidade, que é também mensagem a ser decifrada: os monarcas portu-gueses unificam, sob uma única Coroa, o poder temporal com dois poderes espirituais, o de Roma e o do Rei do Mundo. O que resulta da consumação desse triplo laço?

A dupla investidura divina permanece na Coroa

portuguesa mesmo após o término da Dinastia de Avis, prolongando-se na Dinastia de Bragança, e tendo um impacto direto na história do Bra-sil. A cristofânia de Ourique, somada ao Pacto do Padroado , evocam e autorizam a Coroa Portuguesa um estatuto divino: os reis portugueses são, simultaneamente Rei e Sacerdote. O Pacto do Padroado atravessa toda a história da formação da nacionalidade brasileira e termina so-mente em com o advento da República, onde o Estado se torna laico.

A constatação histórica de Portugal como reinado sagrando o Brasil como Império denuncia uma circularidade entre ambos, preludiando a concretização da Era do Espírito Santo , onde a humanidade redimida viveria em harmonia. “Que tempo é esse que imita a eternidade e se desenrola como círculo”?

Além disso, cabe observar que os relatos literários sobre o Rei do Mundo antecedem a cristofânia de Ourique. Na Europa do medievo se enraizava a lenda do Reino do Prestes João, convertido numa das repre-sentações do Centro Espiritual Supremo, sede do representante de Deus na Terra, e a busca pela identificação definitiva do Reino se intensificava (Gandra 2006, p. 85-103) a cada dia. Inúmeros viajantes e missionários se empenharam no desocultamento do mítico Reino de Prestes João, e nesse particular, os monges franciscanos tiveram papel preponderante . A tradição do Prestes João é introduzida em Portugal por Afonso III,

que viveu em França entre 1227 e 1246, e a par-tir do século XIV a Etiópia recebe atenção geral. A busca do paradeiro do Reino e dos descendentes do monarca espiritual continuou com o Infante D. Henrique, e prossegue em D. Manoel, o Venturoso, monarca dos Descobrimentos.

Encontramos nos símbolos ligados aos Desco-brimentos outro testemunho que integra essa gale-ria da circularidade ligada ao conceito de realeza divina do Rei do Mundo: além do próprio Rei D.

Manoel, a esfera armilar , símbolo do monarca, claramente reivindica um estatuto imperial espiritual. O símbolo da esfera armilar reflete, portanto, a continuidade da missão de uma Ordem iniciática, onde a gesta marítima lusa resolve-se na demanda pelo achamento do bíblico Paraíso Perdido, cerne do coração da cristandade, cenário divino do Pecado Original e da trágica queda do Casal Primordial.

A esfera armilar, desde cedo foi incorporada às Armas do Brasil, e perma-nece até hoje, de modo estilizado, na Bandeira Brasileira como globo celeste.

o Mito da ilha Brasil como instrumento de conhecimento e controle político

Há divergências de opiniões entre os pesquisadores no tocante à im-portância da mineração como veículo principal na formação das vilas e cidades no período colonial (Souza, 2009), pois, atribui-se que, de certo modo, o objetivo das entradas e bandeiras tem um cunho eminentemente político-mercantil, descomprometido do sentido de fomentar uma identi-dade cultural (Ibidem, p.6).

À parte tais discussões e no que concerne ao nosso foco neste, trata-se da influência que o imaginário da Ilha Brasil exerceu na colonização e povoamento do Brasil Colônia, conforme atestam Chauí ( 2000) , Sturari (2006) e observa Ferreira (2008, p.8-9):

“Ao chegarem ao Brasil, ouviram os primeiros colo-

nizadores relatos sobre duas fascinantes lendas: a da Serra das Esmeraldas, faiscante de pedraria verde, e a da Serra da Prata, uma grande montanha toda branca, que resplandecia ao sol, chamada pelos indígenas de Sabarabuçu. Tais relatos motivaram a organização de expedições armadas ou bandeiras, que penetraram nos sertões desconhecidos, à procura das cobiçadas riquezas. Essas lendas constituíram fatores decisivos – seguidos,

mais tarde, pela busca do ouro – para a conquista do ter-ritório brasileiro e a sua expansão para além das fron-teiras delimitadas pelo tratado de Tordesilhas, expansão facilitada, a partir de 1580, pela União das Coroas Ibéri-cas, quando Portugal ficou sob o domínio espanhol. E o Tratado de Madri, marco legal determinante para con-figuração territorial do futuro país independente, viria a ser, no dizer do geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli, citado por Ivan Thiago Machado de Oliveira, o “deposi-tário da epopéia territorial bandeirante que reafirmou o direito primordial inscrito no mito da Ilha Brasil” .

Cumpre considerar que o imaginário das riquezas míticas reportam à referências geográficas, necessitando, portanto, da organização de expe-dições armadas, que por sua vez, prescinde de conhecimento de caminhos e de comunicação. E para tanto, a demarcação de fronteiras, o conhe-cimento da trajetória dos astros e estrelas (Bicalho, 2010), o controle e conhecimento das rotas terrestres e aquáticas, o conhecimento da posição geográfica das minas, enfim, há todo um aparato técnico, financeiro, polí-tico, etc, envolvidos. Evidentemente que a combinação de conhecimento técnico e atividade científica são realmente os aspectos que determinam o sucesso, ou não, dessa empreitada (Ibidem).

A relevante questão que se põe quanto a isso é do modo como Portugal efetuou a organização das expedições armadas, e que critério foi utiliza-do para a seleção das famílias encarregadas de as conduzir, dado que é consabida o fato de que muitas das expedições era de cunho privado. Co-roando tudo isso, temos o insólito decreto régio que, desde 1591, proibiu a entrada de estrangeiros no Brasil até a vinda de D. João VI com a família real, em 1808, e os escassos recursos financeiros da Coroa Portuguesa diante de tal projeto, que desde antes dos Descobrimentos encontrava-se em situação financeira precária .

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qQual foi o critério seguido para a criação do corpo técnico que plane-

jou as expedições armadas, oficiais ou privadas? Mesmo se considerando que Portugal tivesse tais quadros a seu serviço, cabe notar a “rapidez e a pouca margem de erro”, considerado o gigantismo territorial do Brasil, que essas expedições tiveram. Dentro desse contexto, o papel dos nativos

brasileiros é fundamental. Parte deles o conhecimen-to que tanto os portugueses quanto os espanhóis utili-zarão para penetrar no vasto território desconhecido (Kook, 2009).

Inexiste cultura indígena sem mitologia, como bem atesta a antropologia. Portanto, a transmissão dos conhecimentos indígenas estavam impregnadas desses relatos, notadamente os do Eldorado. E é rele-

vante que tenham sido absorvidos pelas expedições, o que denota um pen-samento inclusivo por parte da Coroa, e estrategicamente inteligente. O projeto de ocupação das terras da colônia portuguesa, além das questões racionais, teve sua força motriz traduzida no imaginário da Ilha Brasilis, que se apresenta desde antes dos Descobrimentos, é desenvolvido nos sé-culos XVI e XVII e tem desdobramentos até o século XVIII. Por outro lado, se o imaginário contribuiu para impulsionar a expansão (Moraes, 2006) dos domínios portugueses, resultou no “desaparecimento” e “destribali-zação” dos nativos, contribuindo para a miscigenação interracial. Caso emblemático dessa fusão de sangues é o da família Arcoverde, descenden-te de nobres indígenas.

Um imaginário múltiplo aparece nos relatos de pesquisadores, serta-nistas, religiosos, nobres, viajantes, etc., indo da Ilha Brasil ao Eldorado, passando por Sabarabuçu, a Lagoa Encantada de Eupana, o Lago de Gor-gonzo, a Cidade de Axuí, o Lago Dourado agrupado ao Rio do Ouro, o Rio das Esmeraldas, O Reino da Pedra Encantada, o Lago de Parima e Manoa, a Lenda das Amazonas.

A profusão de relatos míticos contrasta com a clássica negativa histo-

riográfica em aceitá-los como verídicos, comportamento construído desde os gregos antigos, que duelam e sobrepõem o lógos ao mytho.

Um dos mais importantes desses relatos míticos para a Região Central ( Boaventura, 2009) do Brasil foi o de Sabarabuçu, cuja expedição de Fer-não Dias Paes marcou a história de Minas Gerais com o descobrimento dos seus mananciais auríferos, abrindo possibilidade para explorações futuras. Tempos depois, seguindo o trajeto de Paes, vai a expedição de Gabriel Ponce de Leon.

A despeito da veracidade dos relatos lendários, o fato é que o Brasil daqueles idos apresentava uma riqueza mineralógica absolutamente im-pressionante, impensável nos dias de hoje.

E a riqueza dos veios justificava a imigração descontrolada. Segundo Pohl (Apud Souza 2009, op. cit., p.8), “era comum que um espaço de onze metros, tanto no Ribeirão do Ouro Preto e no do Carmo quanto no Ribei-rão Bento Rodrigues produzisse cinco arrobas de ouro. Os faiscadores classificavam como riachos de bom rendimento aqueles nos quais uma bateia de cascalhão dava sete gramas e meia de ouro”. Tem início, assim, uma produção aurífera que logo se reflete nas remessas enviadas para a Europa, que sobem de 725 quilos em 1699 para 4.350 em 1703 (Holanda 1968, p.265).

Solicitamos ao geólogo Francisco Javier Rios que nos fizesse o cálculo atual do que representa essa passagem citada por Pohl e a resposta que obtivemos foi surpreendente:

“Sobre sua pergunta sobre o ouro na época da colônia, cinco arrobas de ouro correspondem a aproximada-mente 75 kg de ouro (sem incluir prováveis impurezas de chumbo, ferro etc.). Ao preço de hoje, equivalem à singela quantia de R$2.840.000,00. Uma fortuna em ina-creditáveis 11 metros de leito de rio! Os garimpeiros da at-

ualidade dão pulos quando, numa única batelada, con-seguem mais do que uma mísera grama de ouro. Imagine 7,5 gramas x batelada! De fato, a quantidade de ouro aluvionar presente nos rios na época da colônia, era, pro-vavelmente, absurdamente alta (vide Capítulo A Serra do Espinhaço em Conceição do Mato Dentro: memória ge-ológica e desafios da mineração). Em aproximadamente 150 anos, o ouro aluvionar dos rios do setor da Estrada Real em Minas foi quase totalmente extraído. Hoje so-mente encontramos o ouro denominado primário, dentro das rochas, geralmente em profundidade. De acordo com o historiador Carlos Fatorelli, de 1700 até 1801, o Brasil “exportou” 65.000 arrobas de ouro ( ao preço de hoje: USD 20 bilhões), um lucro e tanto para a Coroa!”

Concluindo: o Brasil é de fato o Paraíso Perdido, ao menos no que con-cerne à sua riqueza de solo. E para encontrá-la o imaginário foi vetor primor-dial. Refutar essa verdade é celebrar banquetes degolando os presentes.

o imaginário do Eldorado e as Conexões entre Ponce de leon e o Vale Paranaibano.

Conceição do Mato Dentro foi fundada por Gabriel Ponce de Leon, per-sonagem cujos registros oficiais são esparsos e dúbios. Pelas suas mãos, chega a primeira imagem de Nossa Senhora da Conceição, a Patrona de Portugal (Santos 1996, p.7-23), segundo mostra a iconografia da imagem.

Dutra testemunha que Ponce de Leon deixou testamento e posses. En-tretanto, o paradeiro destes é até hoje desconhecido. Além da imagem de Nossa Senhora da Conceição, parece que pouco ou nada restou sobre a presença e passagem de Ponce de Leon por Conceição do Mato Dentro. Esse “silêncio” nos registros históricos nos moveu em busca da genealogia de Ponce de Leon, uma vez que se trata de sobrenome antiguíssimo ligado

à nobreza espanhola. Na busca desse rastro, encontramos significativos episódios da época do Império Filipino (Vilardaga, 2008) onde aparece o personagem Ponce de Leon com atuação esquemática e política desde a Cidade Real de Guaíra, passando por Sorocaba, interior de São Paulo, até chegar às terras das Minas Gerais. A extensão do tema requer pesquisas profundas sobre a relação Espanha-Portugal no século XVI, o que foge ao escopo geral do nosso trabalho. De toda feita, julgamos por bem apresen-tar alguns fatos que consideramos importantes como elementos contri-buintes para a presença de Ponce de Leon em Conceição do Mato Dentro.

Se os dados sobre Gabriel Ponce de Leon são difusos e dúbios, o mes-mo já não ocorre com relação ao seu sobrenome de família. O sobrenome Ponce de Leon tem vínculo direto com as famílias reais ibéricas e euro-peias. O nome Ponce de Leon surge da combinação de duas famílias no-bres. O Rei Alfonso IX, de Leão e Castela, teve vários filhos bastardos. Com Aldonça Martins da Silva foi pai, em 1215, de Aldonza Alfonso de Leon, que se casou com Pedro Ponce de Cabrera. Sua descendência passou a assinar Ponce de Leon.

Os Ponce de Leon notabilizam-se pelos vastos serviços prestados à no-breza espanhola e portuguesa. E um deles, especificamente, Juan Ponce de Leon y Figueroa (1460-1521), foi explorador espanhol que se tornou o primeiro governador de Porto Rico por nomeação da Coroa Espanhola. Liderou a primeira expedição à Flórida. Ele integra a equipe de Cristóvão Colombo em sua viagem ao Novo Mundo. Mas o específico mito da busca pelo Eldorado e sua Fonte da Juventude o tornam lendário. Morrerá, inclusive, acreditando na existência dela. Como visto anteriormente, o imaginário do Eldorado foi um dos que moveram tanto a Coroa Espanho-la quanto a Coroa Portuguesa no desbravamento dos sertões brasileiros. Nas genealogias da América Central e México, aparecem sobrenomes das famílias mais importantes da Espanha, como o de Elvar Cabeça de Vaca, fundador de Buenos Aires e que depois veio a ser governador do Prata.

A pesquisa sobre Gabriel Ponce de Leon nos levou à fundação da ci-

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

dade de Sorocaba, interior de São Paulo. Gentilmente, Lenio Richa, membro do Colégio Brasileiro de Genealogia e da Asso-ciação Brasileira dos Pesquisadores de História e Genealogia, nos cedeu, através de correspondência eletrônica, os dados que dispõe sobre Ponce de Leon, escrevendo do seguinte modo:

“Coloco a seguir o Caput da minha página Ponces To-rales, é o mais antigo que encontrei nos livros brasileiros”.

PoNCES ToralESGabriel Ponce de Leon, n. Cidade Real de Guairá, Paraguai,

fct. Parnaíba, 1655, f. do Cap. Barnabé de Contreras e Violante de Gusman, c. no Paraguai com Maria de Zunega Torales, f. de Pedro Fernandes ou Rodrigues Cabral ou do seu irmão An-tonio Rodrigues Cabral, ambos paulistas, filhos de Bartolomeu Fernandes e de Ana Rodrigues (em Fernandes), que em 1611 foram para o Guairá, num suposto 1º casamento de um deles com Maria de Zunega, n. Vila Rica, naquele país, que depois foi a 1ª esposa do Cap. Baltazar Fernandes, o Povoador, fundador de Sorocaba, e com este vieram para Parnaíba, acompanhados ainda do irmão de Maria de Zunega, Bartolomeu de Torales, este f. de outro Bartolomeu de Torales e Violante de Zunega (em Fernandes), e de sua 1ª mulher Ana Rodrigues Cabral, fct. Par-naíba, 1634 (em Raposos Góes, de SL), todos naturais de Vila Rica, esta f. de Antonio Rodrigues Cabral, já citado, e Joanna de Escobar. Tiveram 7 filhos, que estão em SL.7.227, entre os quais:

(1.187, 230, 268, 2.67, PP.40, 77/8, 182 e SL.3.90).

Obs.: Versão de Américo de Moura. Silva Leme descreveu Maria de Torales como sendo n. Parnaíba e filha de Baltazar Fernandes, por isso, apesar de não ter feito este Título, juntou a geração ao Título Fernandes Povoadores, Cap. 2º, Par. 1º”.

Além dessas informações, no geral, os dados genealógicos

brasileiros sobre Ponce de Leon não apresentam variações no-táveis. Inclusive nos estudos de Pedro Taques, um dos mais famosos genealogistas brasileiros, sobre Barnabé de Contreras y Leon, também podemos encontrar referências esparsas a Ponce de Leon, que segue, como demonstrado antes, o itinerário de Fernão Dias Paes, que se em-penhou na busca da Ilha Bra-sil e da lendária Sabarabuçu. Referências mais completas sobre a genealogia da nobre-za espanhola são encontradas em sites de busca internacio-nais especializados sobre o tema.

Mas, apesar da escassez de dados, merece atenção a ínti-ma ligação de Ponce de Leon com o Cap. Balthazar Fernan-des, Povoador e Fundador de Sorocaba. Pois, a presença de castelhanos em São Paulo du-rante a União Ibérica (1580-160) problematiza conexões dos moradores castelhanos com a Coroa Portuguesa (Vi-lardaga, 2008), mormente no tocante às rotas de escoamentos de minérios que se utilizavam para tanto do Caminho de Peabiru , trajeto também envolvido no mito do Eldorado.

A familía Fernandes construiu vínculos bastante estreitos com o Paraguai, estabelecendo relações entre São Paulo e aque-

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qle país. O Cap. Balthazar (Vilardaga, ibidem), amigo e partícipe ativo na mítica Aclamação de Amador Bueno , parece intencionar construir, por intermédio de ligações familiares por casamento com outras famílias castelhanas poderosas e influentes, proveitosos laços que ultrapassam os vínculos familiares. Assim, o casamento de Ponce de Leon com a filha de Fernandes que, a princípio, poderia parecer singelo, evidencia uma arquitetura econômico-política de influentes famílias castelhanas do vale paraibano, com repercussões em Minas Gerais, e outras regiões do Brasil:

“Os movimentos de aproximação sistemática entre São Paulo e o interior paraguaio que se efetivaram no momento mesmo da união das coroas, quando eram to-dos “cristãos e vassalos de um mesmo rei” ocorreram por uma conjunção de motivos e interesses. Corredor para Potosí, trocas comerciais ou cobiça sobre a mão de obra indígena são os motivos, laicos, mais explícitos; entretan-to, estes objetivos serão atravessados por circunstâncias regionais. De alguma maneira podemos ver São Paulo como uma vila que esteve situada entre dois impérios, o português e o espanhol, e esta definição não tange so-mente a geografia, mas também a natureza dos proces-sos coloniais e da própria configuração da população da vila, bastante marcada pela presença castelhana.

Alguns trabalhos têm sido produzidos sobre a presen-ça portuguesa na América espanhola e sobre as redes de solidariedade que estes organizavam nestes territórios, a maior parte deles articulados ou sobrepostos a interesses comerciais. No caso dos castelhanos na América portu-guesa os trabalhos são praticamente inexistentes, com raríssimas exceções (Amaral, 1981, p.9); e muito menos pensados em termos de articulações de interesses. Portan-to, ver as tratativas de casamento entre os Benitez de Vila

Rica e os Camargo de São Paulo; bem como a atuação dos Godói, não deve ficar na simples coincidência, mas como uma construção de uma rede de solidariedade e de ar-ticulações que carregavam também forte sentido identi-tário, no caso, castelhano. Isso foi ainda mais intenso, na história da vila de São Paulo, quando dos casamentos de famílias importantes nos destinos daquela comunidade, como os Buenos com os Camargos ou dos Rendon com os Buenos; costuras simbolicamente poderosas na quase mítica e suspeita Aclamação de Amador Bueno, quando da chamada Restauração portuguesa”

(Vilardaga, Ibidem).

Podemos inferir, então, que havia “projetos minerais ” ambiciosos no período da União Ibérica, que construíram um universo de conexões entre a região do Paraguai e São Paulo atravessando regionalismos, e se utili-zando do mítico caminho inca de Peabiru, e seus ramais, que, ao mesmo tempo em que procuravam por janelas comerciais, defendiam poderosos interesses de certos grupos comerciais já estabelecidos nas Américas. Por-tanto, a ampliação e controle de certos espaços é vital para o sucesso desse “projeto comercial”.

Muito embora a chegada de Ponce de Leon em Conceição do Mato Dentro tenha ocorrido após o período da União Ibérica, é certamente provável que esse deslocamento tenha íntimas ligações com os eventos ocorridos no Vale Paranaibano. Isso tão somente porque, Ponce de León pertence a um círculo de homens ricos e poderosos, cujas atividades, entre outras, estão diretamente ligadas com a mineração. Vejamos.

Jaime Cortesão na obra Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil propõe a existência de uma “missão secreta” de Raposo ligado ao mito da Ilha Brasil. O Cap. André Fernandes, homem de extrema confian-ça de Raposo, era amigo de Francisco Bueno, irmão de Amador Bueno

e Bartolomeu Bueno, que por sua vez, é amigo de Balthazar Fernandes, irmão de André Fernandes e sogro de Ponce de Leon. O sogro de Raposo Tavares, o Cap. Manoel Pires tem estreitas ligações com a cidade de Cotia--SP, e em sua trajetória, o mito do Eldorado aparece. Bartolomeu Bueno é concunhado de António Rodrigues Arzão, de quem herda seus registros e segue os caminhos abertos por Fernão Dias( famoso pela busca das esme-raldas na mítica Serra de Sabarabuçu), sogro de Borba Gato. É atribuído a Arzão ter sido o primeiro que chegou as terras do Serro Frio e um dos primeiros a descobrir ouro nas Gerais (Casa da Casca). Arzão descen-de de famílias de sertanistas e mineradores, e está ligado aos Bueno de São Paulo. Amador Bueno e Lourenço Castanho Taques, ricos senhores, apoiavam os jesuítas e Salvador Correia de Sá e Benevides. Em que pese ainda o fato dos monarcas D. João IV e D. Afonso VI e D. Pedro II (de Por-tugal) terem escrito, de próprio punho, cartas à Lourenço Castanho Ta-ques e António Arzão. As grandes expedições e descobertas por Lourenço Castanho Taques, Borba Gato, Matias Cardoso de Almeida e Fernão Dias norteiam os sertanistas e as expedições pelo interior da colônia.

Por todo o acima exposto é plausível considerar que estamos nova-mente diante de uma teia de circularidade na história em que o papel de Ponce de Leon é, no mínimo, intrigante. Porque, se a presença de Ponce de Leon em solo mineiro deve-se a desdobramentos de acontecimentos passados em São Paulo, ligados à “mineração” no Brasil colônia no pe-ríodo filipino, por sua vez, as expedições armadas ou bandeiras, germe dos núcleos mineradores, está intimamente conectada com os chamados mitos de conquista, que guarda, como semente oculta, referências difusas a outro mito de conquista: o da Ilha Brasil.

O mito da Ilha Brasil, identificada com o Paraíso Perdido, remete à ideia de uma natureza original, divina, imaculada, tema de graves estudos tanto por parte da Teologia quanto da Filosofia da Natureza, e atualmente, da Ecologia e da Ética. Cabe também ressaltar o sancionado elo existente entre Nossa Senhora da Conceição com o Dogma da Imacu-

lada Conceição, que tem diretas ligações com o mito do Pecado Original, evento ocorrido no bíblico Paraíso Perdido. Passemos agora a Nossa Se-nhora da Conceição.

Mas, antes, cabe citar um pequeno detalhe sobre Nossa Senhora da Con-ceição: a imagem trazida por Ponce de León veio da cidade de Itú-SP, terras de André Fernandes, irmão de Balthazar Fernandes. A iconografia da ima-gem demonstra que ou ela é portuguesa ou criada por artesãos portugueses.

O manto de Nossa Senhora sobre Portugal e o Brasil“Grande parte da jurisdição para o desenvolvimento

da devoção e da doutrina da Virgem Maria estava locali-zada no Oriente – síria, copta, armênia e grega –, sendo que o oeste latino apenas assimilou os resultados vindos do Oriente”(Pelikan 2000, p. 255). A devoção à Virgem Maria caminhou paralela ao cristianismo e o papel da Virgem na história dos últimos vinte séculos é fundamen-tal. E, “um dos mais profundos e persistentes papéis da Virgem Maria na história foi o de esta-belecer um elo com outras tradições.

(Ibidem, p.99).”

No Ocidente, o desenvolvimento da apresentação desse tema e sua consequente introdução, levou séculos. A forma parcial e preconceituosa com que Maria, “a Mu-lher”, foi apresentada na sociedade e representada na li-teratura e na pintura reflete muito de como essa figura é emblemática e tem sido encarada.

A importância histórica, simbólica, psicológica e teleológica de Maria transcende o cristianismo. Com razão, Gregório de Nissa afirma: “Deus se adapta a ela (Maria) e fala uma linguagem humana”. Com Maria o céu tem rosto, a humanidade queda-se redimida do Pecado, e a Parusia

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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qUniversal, realização própria da Era do Espírito Santo, efetiva-se.

Considerada profana ou não, essa devoção, filha de heresias pagãs , tornou-se um capítulo controverso da historiografia portuguesa, dada a amplitude de seus aspectos. O culto e “os nomes que se deram às imagens de Nossa Senhora, venerada na antiga Lusitânia, estavam ligados a lo-cais específicos de cultos anteriores” (Daehnhardt 1993, p.15-16) pagãos.

A antiga Lusitânia , terra dos celtiberos, povo misterioso e do qual pouco se sabe, que juntamente com os vândalos, cultivavam o cristia-nismo ariano – de Arius , sacerdote cristão de Alexandria. O grande mal desses povos foi terem sido bons guerreiros e cristãos convictos , que não se submetiam à hierarquia da Igreja de Roma, gerando da parte desta uma intolerância tremenda, causa de terríveis guerras. Após séculos de massacre os celtiberos foram “anexados” à nova fé, como afirma Rainer Daehnhardt : “Como essas primeiras páginas da história da Igreja Cristã são muito negras evita-se falar delas. Nos livros de História de Portugal fala-se muito sobre a “reconquista cristã”. Este termo indica-nos que an-tes das invasões árabes já existia cristianismo em terras da Lusitânia, mas pouco ou nada se fala deste cristianismo inicial, que foi ariano pri-meiro, e bizantino e católico depois.”

(Daehnhardt, op. cit., p.28)

Mais adiante, na mesma obra, o autor aprofunda essa ligação vândalo-lusitana aproximando-a dos Burgundii ou Burgonheses, povo germânico oriundo da costa do Báltico, celtas ligados à natureza, cujo local principal de culto ficava na Ilha de Bornholm, hoje pertencente à Di-namarca. A primeira dinastia portuguesa, a de Avis, de origem borgonhesa , por parte do Conde D. Henrique. Por-tanto, as ligações entre a Casa Ducal Borgonhesa, os Reinos de Leão e Castela e o futuro Condado Portucalense são di-retos. S. Hugo de Cluny e Bernardo de Claraval uniram em

casamento os reinos de Leão e Castela com cavaleiros bor-gonheses (Daehnhardt, ibidem, p.47). Dessa união, brota uma das mais famosas dinastias europeias, a da Casa de Avis, cuja grande matriarca, Teresa, a quem Fernando Pes-soa na Mensagem dedica um poema, descenderá de Tubal , através de seu pai D. Afonso VI.

“A origem borgonhesa da primeira Casa Reinante, que fez renascer Portugal duma Lusitânia, séculos antes desa-parecida com a sua integração no Império Romano pode-nos parecer mais compreensível, ao verificarmos o pa-ralelismo do fim da Lusitânia estatal e espiritual com o fim da Borgonha estatal e espiritual, que então se preparava”

(Daehnhardt, ibidem, p52).

Noutras palavras, Portugal nasce vocacionado para as demandas do espírito, com as bênçãos de Bernardo de Clavaral e dos Templários, e sob a proteção do Manto de Nossa Senhora .

Vemos assim que, as metamorfoses que acompanham toda a história portuguesa, encontramos, veladamente, o mito celta da Ilha Brasil. E dentro dessa complexa trajetória, o antigo Deus Endovélico dos lusitanos é substituído pelo Arcanjo Miguel, como protetor da identidade lusitana no Portugal, e cabe a D. João IV a decisão de substituir o Arcanjo por Nos-sa Senhora da Conceição (Daehnhardt, op. cit., p16), venerada em Vila Viçosa (Barbosa 1862, p.170-182). O rei, ao tentar obter reconhecimento político da Casa de Bragança, destrói ou oculta um culto ancestral?

É exatamente a imagem de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Casa dos Bragança, que chega pelas mãos de Ponce de Leon em Minas Gerais. Um grande périplo ela trilhou até as montanhas de Minas.

No tocante à ligação de Nossa Senhora com a Casa Real portugue-sa também é deveras sintomática a exposição de Manoel Gandra (1997,

p.44) que cita a proposição de Duarte de Galvão para a fórmula de cál-culo das gerações portuguesas fazendo-a descendente direta de Abrãao. Chama a atenção, na referida Árvore Real da Geração e consanguini-dade de Christo do Brasão de El Rey e Redentor de Portugal D. João IV, os frutos da árvore, que em sua maioria fazem referências à mulheres. Mais adiante, o autor, aprofundando o estudo desses cálculos na procura da visualização do autêntico biorrítimo nacional lusitano, debruçando--se sobre o Horóscopo de Portugal levantado por Fernando Pessoa, afir-ma que o valor 17 resume a arcatura ontogenética da nação portuguesa, e esclarece as ligações diretas entre o número 17 e a Virgem, enlaçando tais ritmos ao Brasil, como demonstrado anteriormente.

A Primeira Crônica Geral da Espanha, um texto escrito, como ante-riormente citado, sob a orientação de Afonso X, monarca de Leão e Castela entre 1254 a 1284, o monarca afirma que o primeiro povoamento da His-pania foi feito pelos descendentes de Noé, e desenvolve o tema da formação peninsular sob as bênçãos de Nossa Senhora, descendente direta dos Reis de Judá (Gonçalves, 1961). A Cronica Geral assume-se como manifesto legiti-mador da atuação do monarca e invoca o direito e o dever divino dos reis da Espanha baseados nas tradições épico-lendárias nobiliárquicas que de-tinham uma missão messiânica universal, concretizável por mediação cle-rical. O engrandecimento da nobreza peninsular na Crônica Geral prepara o terreno para o projeto de dominação real e clerical do mundo conhecido pretendido por Leão e Castela, mas, efetivado por Portugal.

A Crônica será copiada e acrescentada ao longo dos séculos XIV e XV, estando na base da Crônica Geral de Espanha de 1344, a primeira grande obra historiográfica portuguesa, de autoria do conde Pedro Afon-so de Barcelos, um bastardo do rei d. Dinis e bisneto do rei Afonso X. A referência a uma realeza com passado épico-militar e herdeira de um destino imperial espiritual, autorizada divinamente a colonizar terras, está presente tanto em Espanha quanto em Portugal. E em ambas mora a aspiração à aventura marítima.

Esse cenário, recriando a sua versão do texto Bíblico, forneceu o en-quadramento para a formação dos reinos de Leão e Castela, bem como o do futuro Condado Portucalense, continuado de modo ininterrupto até os Descobrimentos Portugueses. Esse amplo contexto construído casa-se perfeitamente com o mito da Ilha Brasil, dando bases políticas, religiosas, teológicas, econômicas, à procura do Paraíso Perdido. Cabe inquirir se Gabriel Ponce de Leon, por descender diretamente de D. Afonso X, e por ter um seu antepassado se notabilizado pela busca do Eldorado, e por ser ele mesmo Ponce de Leon ligado à ricos espanhóis em São Paulo, através de Balthazar Fernandes, não andará a procura do mítico Eldorado.

Depois de tudo isso, a considerar as reflexões contemporâneas sobre o Pecado Original que atestam que a “queda” pode encontrar uma sa-ída na Imaculada Conceição (Coyle 1999 p.55-66) de Maria, arquétipo no qual a unidade humana original permanece intocada, vislumbra-se o peso e o poder do projeto Templário, devotos da Virgem, e o amplo impacto que a procura pela mítica Ilha Brasil, ou antes, o reencontro do Paraíso Perdido significam para o advento da Parusia universal.

Imaculada Conceição: Sua Importância Como Símbolo Escatológico No “Fim dos Tempos”

Como nota de fechamento ao tema da Ilha Brasil, ainda umas últi-mas palavras e, palavras heréticas.

A tradição mítica dos povos conservou e assegurou a transmissão da existência de um Centro Espiritual Supremo, a terra do “Rei do Mundo”. Está ligado à esse Centro o “Coração do Mundo”, cujas descrições ba-seiam-se em idêntico simbolismo com o Graal.

(Guénon 2008, p.13).

De acordo com Baigent et all (1993, p.234) após a morte de Cristo, o Santo Graal é levado para a Bretanha, por José de Arimatéia e Nicode-mus . Sobre essa base desenrola-se a história dos Cavaleiros da Távola

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qRedonda. A associação dos Templários com o Graal e o Ciclo Arturiano é clássica. O mito cristão do Santo Cálice converge com o mito celta do Graal, por sua vez, objeto de culto e procura em Portugal , onde preco-cemente se difunde esse tipo de literatura (Megale 2001, p. 78-79). De imediato, resulta que o símbolo do Graal é comum a essas diferentes tra-dições culturais. No entanto, o mesmo já não se pode dizer da Ilha Brasil, componente da literatura celto-portuguesa. E aonde o mito da Ilha Brasil dialoga com o mito do Graal, e por conseguinte, com os Descobrimentos Marítimos, o Paraíso e a Imaculada Conceição? Vejamos.

Donnard (2009) assegura que na literatura céltica a Ilha Brasil tem seu significado primitivo como metonímia do Outro Mundo. O Outro Mundo aparece num gênero de literatura irlandesa, as narrativas de viagens, que são relatos de circunavegações de heróis irlandeses, em que o Outro Mundo se revela ao herói através de manifestações intermediadas quase sempre pelas águas brumosas e por ilhas que surgem e desapare-cem. Um dos elementos desse Outro Mundo é a suspensão do tempo. Esse gênero literário antecede a Navegação de São Brandão, comumente associada à Ilha Brasil. A Navegação de São Brandão exerce uma forte influência na cartografia medieval, e isso explicaria a representação da Ilha de São Brandão nos mapas, mas não explicaria a Ilha Brasil. Não há nos textos hagiográficos nem tampouco na Navegação de São Bran-dão, menção à Ilha Brasil. Mas como a Ilha Brasil surge nos mapas e per-manece neles como uma tradição celto-portuguesa é matéria que merece uma apurada investigação, e de alto custo.

“Como explicar o nome Brasil na cartografia medi-eval desde o século XII sendo produtiva até meados do século XVII? Qual a origem deste nome? Qual o seu sig-nificado? Diante de uma simples análise quantitativa de sua representação na cartografia medieval não podemos evitar a impressão de que o nome Brasil representava al-

guma coisa muito significativa para os geógrafos e nave-gantes europeus, mas, sobretudo, para os portugueses.”

(Ibidem)

A tradição céltica irlandesa possui uma infinidade de ilhas míticas que aparecem e desaparecem, se deslocam pelo mar. Sabemos pela li-teratura arturiana que os heróis guerreiros eram enterrados numa ilha mágica. De todas essas ilhas, a Ilha Brasil foi a mais famosa, e a que se destacou do contexto celta Irlandes para viajar pelo mundo. Na hagio-grafia, os elementos mágicos e maravilhosos dessas ilhas permaneceram, mas, por força da escatologia cristã as ilhas do Outro Mundo da mito-logia céltica foram associadas à Terra da Promissão. Pela freqüência e configuração da Ilha Brasil, só se pode concluir que a Ilha Brasil tenha sido um elemento importante de uma mitologia antiga e, que sua impor-tância ultrapassa o universo celta.

(Ibidem)

Depreende-se desse extenso painel mítico-literário que o Graal, ligado ao ciclo arturiano, insere-se num contexto muito maior, e de difícil investigação, porque certamente, a transmissão de seus vários conteúdos provém de um fundo de memória celta pré-cristão e, oral. E a razão pela qual a monarquia portuguesa, bem como os Templários, unem essas imagens e as transformam numa epopéia marítima merece, certamente, melhores observações.

Passemos agora a um outro ponto do mito do Graal, ligado à tradi-ção cristã, relegado à condição de heresia. São clássicas as referências ao Graal no cenário do Novo Testamento, notadamente na Última Ceia e na fuga de José de Arimatéia para a Bretanha. Entretanto, a conotação Bíblica do Graal antecede o Novo Testamento. Suas raízes podem ser bus-cadas no Antigo Testamento, onde se encontra vinculado, entre outros, à acontecimentos ocorridos no Jardim do Éden, o Paraíso.

Dentro do cenário arcaico, “o cálice teria sido trabalhado pelos an-

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qzem de um Novo Mundo na qualidade do Paraíso re-descoberto, porque, a ordem do mundo foi restaurada, desde que o Graal tenha sido redescober-to, ou recuperado, pelos legítimos herdeiros da tradição primordial. E se o Graal foi recuperado, é de se supor que tenha sido trazido para o Brasil, identificado como o Paraíso. Essa trajetória ortodoxa valida-se sobre ela mesma: o Graal é trazido de volta ao local de onde saiu pelas mãos de Set.

Depreende-se, então, que a questão da identificação/descoberta do Pa-raíso de modo algum é matéria vulgar. Ora, diante do acima exposto, é evidente que, se o Paraíso - como afirmam as eminências de gênio- é uma construção mítica sem fundamento concreto e, se ele, em razão disso, nunca foi des-coberto; então, nos cabe constatar e aceitar que, ao reduzir o Todo ao nada, ficou o mundo inconcluso como a mais autêntica realidade manifes-ta desde a Criação, e nessa desdita, que é também fracasso, resta a certeza de que se falharam os Templários e os colonizadores, igualmente falharam as religiões, falharam os sábios, falharam os santos e os profetas, falharam as nações, falharam os homens, falhou Deus e, sobretudo, falhou a Santíssi-ma Virgem e o seu Amor pelas criaturas e pelo mundo! Caso o Paraíso seja uma magnífica imaginação literária, a história, apresentada desse modo, é reduzida a um embuste, e embuste milenar, mas, primorosamente planeja-do. Resta-nos saber por quê, por quem e com que finalidade.

Assim, envolto no meio destas, e de outras melancólicas liturgias in-telectuais, nem sempre felizes, e dos “fundamentados” argumentos, nem sempre justos, que marcaram a passagem do Jardim Divino para um in-ferno de maldições, passou desapercebido um aspecto central do mito do Graal e do Paraíso, intimamente conectado com a Imaculada Conceição.

Para Coyle (op.cit., p.66) “o mito da “queda” sugere o fato espantoso e inexplicável de que estamos alienados do nosso verdadeiro eu, o falso eu, que nos mantém na superfície da realidade, precisa morrer”. Esse morrer é um despertar, onde descobrimos nossa unicidade com Deus. Mas, atente que essa união só se pode dar através do campo oculto do Amor , para o qual inexiste explicação.

jos numa esmeralda desprendida da fronte de Lúcifer, por ocasião de sua queda”(Guénon 2008, p.14), após a batalha nos céus com o Arcanjo Miguel. Portanto, a esmeralda, metamorfoseada no Graal, pertence à Lúcifer.

Lúcifer , à parte as considerações dogmáticas que pesam sobre ele, é um personagem misterioso, que ocupa uma posição celestial singular: é o Anjo preferido do Senhor, cujo nome significa “aquele que brilha” (Ezequiel 28:13); tido como “o sinete da perfeição”, que de tão especial significava “LUZ e UN-GIDO”; chamado de “Rei de Tiro” (Ezequiel 28:12) (Kalleb 2000, p. 46-47). É igualmente poderoso: o Jardim do Éden, um jardim de pedras, jardim basica-mente mineral, nem totalmente espiritual nem totalmente material, mas sim, uma mistura de ambos, um mundo misto, um local de encantos e delícias, era domínio de Lúcifer. Jardim em hebraico gan,significa local defendido ou protegido, e eden, lugar do prazer, de encantos.

(Ibidem, p. 35-38; Mourão, 2002).

Conforme se observa, apesar da Força e do Poder inerentes à sua con-dição, a enigmática mutação sofrida pelo personagem foi sem preceden-tes. No entanto, para Kelly (2008) Lúcifer, metamorfoseado em Satã e este associado ao Diabo, ao Inimigo, foi uma construção histórica sem ne-nhum fundamento bíblico. Na mesma direção, também Giovani Papinni (s/d) chama a atenção para a figura poderosa e tremenda de Lúcifer – a qual dá origem a todo esse fantástico desfile de mistérios e de turpitudes seculares– e aponta que ela aparece só em pano de fundo de um cená-rio muito mais complexo. Um dos véus desse cenário é a associação de Lúcifer com a Serpente, e desta com Eva, e de Eva com a Virgem Maria, cenário vital para o desenvolvimento do pensamento cristão ocidental, e a forma como a história foi escrita.

(Pelikan 2000, p.63-79).

Após a batalha nos céus, “o Graal é confiado à Adão no

Paraíso Terrestre, mas que, por ocasião da queda [Pecado Original], Adão perdeu-o, pois, não pôde levá-lo consigo ao ser expulso do Éden [...]. O que se segue é mais enig-mático: Set retorna ao Paraíso Terrrestre e recupera o precioso Vaso. [...] Consequentemente, desde então, ocor-reu pelo menos uma restauração parcial [ da ordem do mundo], o que significa que Set e aqueles que, após ele, pos-suíram o Graal podiam, com isso, estabelecer em algum lugar da Terra um centro espiritual, à imagem do Paraíso Perdido. A lenda, aliás, não diz onde e nem por quem o Graal foi conservado até a época de Cristo, nem como foi assegurada sua transmissão. Mas a origem céltica que lhe é atribuída permite-nos, provavelmente, entender que os druidas tiveram uma parte nisso e devem ser incluídos entre os conservadores regulares da tradição primordial [...]. A Távola Redonda estava destinada a receber o Graal quando um dos cavaleiros conseguisse conquistá-lo e trazê-lo da Grã-Bretanha à Armórica”

(Guénon, op. cit., p. 14-15).

Nesse ponto, cabe destacar que os Cavaleiros da Távola Redonda fa-lham em trazer o Graal para a Armórica (Megale 2001, p. 72). Além disso, o Reino de Avalon fica inacessível aos Cavaleiros e a tradição sofre uma rutura, emblematizada na pessoa de Viviane do Lago, a Grã-Sacerdotisa de Avalon. Além disso, é primordial perceber que, é partindo do ponto da fa-lha de Galaad em recuperar o Graal que Portugal “constrói” uma demanda mítica que assegura a continuidade dessa missão inconcluída. Portanto, os monarcas (Nascimento, 2008; Zierer, 2003) portugueses e os Templários se pre-tendem representantes e continuadores legítimos dessa gesta.

Sob essa ótica, é validada a representação que os Descobrimentos fa-

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qAmor... Como atesta o Dogma da Imaculada Conceição, é na figura de

Maria que o dilema Bíblico desenrolado no Paraíso se soluciona, quando da vinda final do Reino de Deus. O símbolo da Imaculada Conceição mostra que a pecaminosidade acumulada no mundo em conseqüência do Pecado Original no Jardim do Éden, não supera o desejo divino de salvar (Ibidem, p.64). Porque o símbolo da Imaculada significa pureza de realidade e cons-ciência anterior ao Pecado, mantendo intacta a unidade original humana.

Diante da verdade de que o Graal foi confiado à Adão no Paraíso, e quan-do Adão foi expulso do Paraíso, por ocasião de sua “queda”, o Graal perdeu-se, deduz-se que, o homem afastado de seu Centro original e eterno torna-se um errante no mundo. Consequentemente, reunir-se novamente à esse Centro, é imperativo planetário, universal. A concretização dessa reunião demanda re-descobrir o Paraíso, para nele habitar novamente. E essa re-descoberta só se pode fazer sob as bênçãos e o manto da Imaculada Conceição.

O que fazer com tudo isso? Continuar com o inquérito, interrogar é pre-ciso, interrogar é uma indisfarçável forma de afeto, um convite à hospitali-dade. As perguntas, orientam, as respostas, paralizam. Aristóteles afirmou que o homem é dotado de “razão”. Álvaro Ribeiro, afirma que “razão” é o nome do espírito humano, uma razão animada, metafísica, portanto. É ela quem confere verticalidade ao homem, jamais sua anatomia.

Concluindo, é nuclear o entendimento clarificado de que

“A irrelevância das palavras face ao irreversível poder dos símbolos reduz a disassociação entre o “verbo” e a “carne”, en-tre o “sagrado” e o “profano”. A interpretação do “sentimento” simbólico transcende a uma cultura sofisticada, inserindo-se à uma sabedoria inata, arcaica e não mistificada, em estado de latência no memorial adormecido a conceitos formais e praticados a uma bula imposta como comportamento social massificado em função de uma razão comum não inquirida.

As palavras, relatoras do raciocínio, e que se preten-

dem fidedigna escriba das histórias e dos seres, realizam a amestração verbal, sustentadas a um formulário rígido e acadêmico, que tornam impermissível o relacionamento do valor simbólico ao sistema habituado.

Assim, o homem exerce a existência através do minis-tério de um racionalismo básico, sem a profilaxia do senti-mento oculto, no global das vezes, considerado fantasista ou improvável. Não há pretensão alguma no desejarmos saber a mais que o concedido. É apenas um direito inalienável superior a todos os direitos que o são por assim se terem feito. Está em nós este desígnio da “razão”, aliás, está antes de nós, onde certamente deveríamos estar também.

Sobretudo, o mito da Ilha Brasil indica que o mundo camin-ha para o fim de seu obscuro labirinto, exausto das repetidas guerras em todas as suas sucursais ativas. Desde a do alecrim e à manjerona até a nuclear e celeste, é que devemos nos pergun-tar se o mundo foi feito, criado por um Deus de direito porque, paralelo à uma criação a visão futura de um Apocalipse. E , se no mais medíocre pensamento foi uma casualidade sideral, uma circunstância genética, é espantoso que o macaco tenha chegado a Mozart ou um girino engendrado todos os artifícios do pensamento humano. Devemos nos perguntar como o aus-traloptecus ergueu o que resta de um gigantesco Egito ou urdiu uma estatuária grega nas delícias de suas filosofias.

Assim, entre um Deus oleiro, uma mitologia simbolista, um macaco genial, um Descobrimento Marítimo fortuito e im-becil e uma catástrofe cósmica, o homem que gerou um povo, que gerou o poder e a história e que é digerido por ambos, caminha como criança conduzida por pais desconhecidos para o túmulo do soldado sem nome sob o Arco do Triunfo. Parece-me que já é tempo de começarmos a raciocinar”.

Anna Menezes O Livro dos Fragmentos (1980)

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qmosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

MiToS E fENôMENoS “lUMiNoSoS” CoMPõEM o iMagiNário PoPUlar A aura de mist ic ismo, a perseguição aos “fe i t ice i ros” e as luzes que aparecem

em determinadas reg iões e desaf iam a c iência

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

Sérgio Lacerda

Conceição do Mato sempre carregou consigo um ar de mis-ticismo guardado em seus morros, suas vielas e ruas de paralelepípedos que remontam ao século XViii.

Ao longo de sua história, há diversas passagens sobre a ação de feiticeiras e curandeiros, com suas man-dingas e mistérios, vivendo por estas paragens, o

que levava os bispos e padres a agir com dureza contra o que a Igreja considerava heresias. Eram comuns os relatos sobre a ação de curandeiros, velhos e velhas que faziam benzeção com suas rezas e curavam com a utilização de raízes e plantas.

Tradições que passaram por gerações e ainda permanecem vivas, como a de dona Maria das Graças, da comunidade de Água Santa, no distrito de São Sebastião do Bonsucesso. Com um copo d’água na cabeça da pessoa, ela vai fazendo suas rezas, munida de ramos de arruda nas mãos e garante que consegue melhorar a saúde da pessoa, retirando “quebrantes, curando de espinhela caída, de mau-olhado e até de doenças”.

Dona Maria é só um exemplo. Há séculos que essas tradi-ções vêm sendo mantidas em Conceição, mas pouco se estudou sobre isso. Esse assunto continua guardado nos porões da histó-ria da cidade. Simplesmente há pessoas que acreditam, outras que rejeitam e não colocam fé nessas formas diferentes – e com sabedorias que existem há séculos – de tratar o corpo e a alma. Herança dos índios, que tinham seus rituais de cura e lidavam com as ervas para espantar muitos de seus males. Dos negros africanos, com seus rituais e ritmos de tambores para “atrair os bons espíritos”. Ou mesmo dos povos pagãos e “cristãos no-

vos” que chegaram aos montes vindos do Norte de Portugal com suas tradições ritualísticas herdadas dos celtas, essas tradições permaneceram vivas na história de Conceição.

Nos tempos coloniais a Igreja era cruel e rigorosa com os que praticavam algum rito religioso que não estivesse de acordo com as regras eclesiais. Alguns foram até tolerados por conveniência, como os que se relacionavam com o culto a divindades da África que vieram com os povos escravizados para o Brasil e acabaram sendo incorporados em ritos católicos – o chamado sincretismo religioso. O maior exemplo é o culto a Nossa Senhora do Rosário.

A prática da “feitiçaria” – rituais sagrados cultivados pe-los povos pagãos - era rechaçada de forma dura e cruel pela Igreja, que já o fizera há séculos na Europa, com o recrudes-cimento da Inquisição e a prática de queimar em praça pú-blica os hereges que insistiam em manter esses rituais, muitos deles atribuídos aos judeus. Bom exemplo disso está No Livro de Devassas, documento elaborado pelos bispos visitadores, onde há muitos relatos da maneira como a Igreja, à época, tratava essa questão. Numa dessas devassas, realizadas em

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qConceição do Mato Dentro no ano de 1734, o bispo visitador condena tais rituais:

“E disse que é público e notório que um negro por nome José, escravo do capitão Diogo de Aguiar de Mato Dentro, cura de feitiços, e que um compadre dele, por nome Sebastião Rodrigues de Carvalho, lhe dissera a ele, testemunha, que o dito negro fora a sua casa e nela fizera umas...(ileg) para advinhar [sic] quem fazia mal a uma pessoa de sua casa e que, pondo um prato com água no chão ao pé dele e que, perguntando o dito Sebastião Rodrigues para o prato, respondeu uma voz ao pé do prato aquilo que se perguntou” (página 39, livro Mato Dentro – referência bibliográfica número 28).

Casos de feitiçaria como esses poderiam levar o acusado a penas duras, como a prisão por vários anos.

Alguns grupos mantiveram vivas heranças ancestrais con-denadas no passado. É o caso dos rituais da umbanda e do can-domblé, que hoje são perpetuados por alguns clãs de famílias afro-descendentes em Conceição.

fenômenos luminosos de aparição de “luzes”Os mistérios que envolveram a história de Conceição atra-

vessaram os séculos desafiando os con-ceitos mais racionais e as religiões tra-dicionais. Alguns foram retratados em fenômenos luminosos que despertaram a atenção de estudiosos da Ufologia, ciên-cia que estuda esses fenômenos de luzes e objetos voadores não identificados, de várias partes do mundo. Grupos surgiram

em tempos mais modernos para estudar o aparecimento dessas ‘luzes’ indecifráveis, que poderiam estar relacionadas com a

existência de civilizações ocultas de outros planetas em visita à Terra, ou de seres vindos do próprio interior do planeta, de acordo com outras teorias.

Assim ocorreu quando um grupo de estudiosos chegou a Con-ceição do Mato Dentro na década de 1980 para criar o “Projeto Al-vorada”, cujos membros acreditavam que a região seria a sede de um grande acontecimento planetário, por ocasião de uma imensa transformação, a exemplo do que ocorrera durante o dilúvio re-tratado na Bíblia. As montanhas de Conceição, segundo membros desse grupo, seria o palco para “estabelecer contatos com seres in-terplanetários durante a transição para a Era de Aquário”.

Esses grupos ainda estão presentes na vida de Conceição pregando uma era de transformações que teriam Conceição como um dos principais cenários. Talvez a mesma transforma-ção apregoada por Pedro Rates de Hanekin, em pleno século 18, quando ousou desafiar a Coroa portuguesa dizendo que a re-gião seria no futuro o nascedouro da pátria do quinto império.

Vários outros estudiosos de temas relacionados com objetos voadores não identificados (Ovnis) acreditam ser essa região da Serra do Espinhaço um lugar mágico e ainda desconhecido. E citam como evidência de suas verdades os relatos e as várias histórias contadas por pessoas comuns sobre certos tipos de fe-nômenos comuns na região. Fenômenos que ocorrem há vários anos em localidades como o distrito do Tabuleiro, na comu-nidade de Parauninha, na serra do Cipó, em Baldim e outras partes da Serra do Espinhaço.

Um desses relatos é da moradora de Conceição conhecida como Dona Cotinha. Durante muitos anos ela morou no distri-to do Tabuleiro, onde, segundo garante, as “luzes” aparecem com muita frequência. É o que descrevemos a seguir:

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

o mito da ilha Brasil, de al-cance universal, teve desdobra-mentos importantes na história brasileira. aliás, esta inexistiria sem aquela, foi movida em razão daquelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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q“Eu me mudei do Tabuleiro para Con-

ceição, porque aqui a gente fica mais seguro. Quando eu morava lá eu já sabia que a gente não poderia ficar olhando muito para essa luz, porque quando a gente fica olhando, a gente fica abismada e de repente a luz some. E quan-do aparece já está em cima da gente. Eu corri uma vez para o mato, ela ficou esperando, e depois saiu. Se a gente ficar debaixo de alguma cerca, ela também não para. A luz tem o forma-to de uma canoa, e tem outra como uma bola pionada; a luz é sempre vermelha. Ela sempre passa baixinho, em lugares descampados, nun-ca anda rápido, sempre devagarzinho, como se estivesse procurando alguma coisa. A primeira vez que eu vi tem uns 15 anos, a gente via ela [sic] todos os dias; e por isso ninguém saía de casa à noite. Várias pessoas já viram este apa-relho. O curioso é que ele não corre atrás de animais, somente de pessoas que ficam olhando para ele. Eu queria saber mesmo, de onde vem este aparelho e para onde ele vai”.

Dona Cotinha conta também as experiências vividas pelo filho, também relacionadas com o fenômeno das aparições lu-minosas:

“Meu filho também já teve que correr do aparelho: uma vez ele tava voltando pra casa, e anoiteceu. A luz correu atrás dele, ele desceu do cavalo e correu para o curral. Entrou desesperado pra dentro de uma cochei-ra e o aparelho ficou esperando do lado de fora; depois

foi embora, porque quando viu que ele conseguiu fugir, não ia conseguir mais pegar ele [sic]. Mas logo na hora que ele saiu[sic] pra vir pra casa, o aparelho apare-ceu novamente e dessa vez ele se escondeu no meio do mato. Se você estiver no meio do mato o aparelho não pega, então ele ficou parado até a luz ir embora, depois disso ele nunca mais ficou no campo de noite”.

E conclui o seu relato, dizendo:

“Eu não aconselho ninguém a ficar à noite no descampado, porque várias pessoas já corre-ram dessa luz. Tem gente que fala que essa luz é de pessoas do outro mundo que querem aju-dar a gente, mas eu não acredito que querem ajudar. Um homem que chamava Nem foi pego pela ‘luz’. Ele disse ter pedido para ela soltar ele, porque ele tinha família, precisava voltar. Então eles deram um livro pra ele e mandaram ele [sic] estudar, soltaram ele [sic] em Barão de Cocais. E disseram que iriam voltar para pegá--lo. Ele apareceu muito arisco e abobado com um corte pequeno na testa. Depois disso, quan-do dava [sic] 6 horas, ele já trancava a porta de casa e não saía mais; passado o tempo, esse ho-mem morreu. Então eu não acho que esse apa-relho vem para nos ajudar, porque se ajudasse faria bem para as pessoas e não correria atrás da gente. É uma coisa que a gente não entende, e dá muito medo, e não tem ninguém para vir aqui explicar o que é. E a gente também sabe

mosaico de cariz teleológico que aponta para a Parusia Universal, Tempo Divino onde acontecerá a reintegração de todos os seres criados. Tempo, portanto, de uma Nova Terra2, rediviva em si mesma, porque pautada em uma ética e re

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qque quem tentar pegar a luz vai acabar se dan-do mal. Aquele farol é tão forte que já deixou até um cumpadre [sic] nosso cego. Se eles fa-lasse [sic] pelo menos qual é o rumo deles, mas a gente não sabe, porque quando está de 5 a 6 horas [sic] da manhã a luz some, e depois só volta ao anoitecer. Eu acho que ela tem algum esconderijo, ou então uma luz maior onde ela fica durante o dia. Eu sei dizer é que a luz deles tem um ímã que puxa as pessoas para dentro. Eu sei é que tem gente dentro daquele apare-lho, igual a gente anda de carro, essa luz leva essa gente. Já deram tiro no aparelho, diz que tine [sic], mais [sic] não adianta nada, ela tem uma proteção muito forte. E essa luz anda pra todo lado, pro lado de Três Barras. Pro lado da Lapinha o povo sempre dá notícia. Ali pras ban-das do Salão das Pedras também dá pra ver. O meu patrão tentou filmar, mas o trem era tão forte que a câmera queimou o visor e tudo”.

Todo dia se vê aterrissado no pontal de ferro ali; todos os dias ele fica ali aterrissado. Ele fica paradim [sic], depois das 8 e fica a noite inteira... Outro dia um cumpadre [sic] tava aqui em Conceição e foi embora de a pé [sic]; ele deu sorte que tinha um córrego e ele bateu de barriga do córrego, entrou pra dentro e conseguiu fugir. Chegou na fazenda puro barro. A luz não entra na água, respeita cerca, se você esconder de baixo da barriga do cavalo ela também não para, porque se levar você vai ter que levar o cavalo, e o cavalo deve dá trabalho demais pra ele, né?”.

Outra história fantástica é contada pelo sr. José Joaquim Elói, um respeitado morador, ma-tuto roceiro que também viveu na região do Ta-buleiro. Diz ele que “certa feita estava dentro de seu barraco, localizado num topo de monta-nha, quando acordou de madrugada com um forte barulho dos cães e também dos animais que estavam no curral. Era uma algazarra só e o homem resolveu pegar a garrucha e levan-tou pra ver o que estava acontecendo lá fora. Logo que se levantou da cama, pôde notar um clarão enorme sobre o telhado. Abriu a porta e viu um vulto enorme, luminoso, em cima de sua cabeça. Não pensou duas vezes. Disparou várias vezes a arma, olhando pra cima pra es-pantar o objeto desconhecido”.

A intensidade da luz deixou seu Elói tonto e ele voltou para dentro de casa. Aos poucos o barulho dos animais foi cessan-do e ele então resolveu voltar para a cama. Quando acordou, percebeu que não mais enxergava as coisas. Tinha ficado cego. O relato é um mistério que até hoje intriga os moradores de Conceição que conhecem o fato que foi relatado nos principais meios de comunicação especializada em discos voadores no planeta. Pela sua história de vida, ninguém jamais ousou con-trariar a versão daquele senhor.

Algumas pessoas que vivem em comunidades rurais confir-mam a existência dessas luzes e garantem que elas aparecem há mais de cinquenta anos. É o caso do sr. Deco, da comunida-de do Sapo, morador da localidade do Beco.

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q“Todo mundo sabe da existência destas lu-

zes. Mas isto sempre foi um mistério. Uma vez fomos seguir ela [sic]. Eu e um companheiro meu. Eu nunca tive medo. Mas quando chegá-vamos perto ela se afastava. Ficava baixinho no pasto. Era vermelha e arredondada. Nin-guém sabe explicar o que é.”

Dona Maria das Graças, da comunidade de Água Santa, lembra que as pessoas antigas diziam que essas luzes apare-ciam no lugar onde havia ouro. Chamavam essas luzes de “mãe do ouro”. Relatos idênticos são colhidos por pessoas de comuni-dades distintas e a cultura popular encontrou nesse termo uma forma de identificar o fenômeno.

Pouco se sabe sobre esses fenômenos, mas eles fazem parte dos relatos dessa gente, especialmente em comunidades mais afastadas de Conceição do Mato Dentro. Um dia, quem sabe, eles irão despertar o interesse de pesquisadores, que poderão dar suas versões para essas aparições misteriosas.

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CoNCEiÇÃo Do MaTo DENTro:A emergência de um povo paradigma

Frei Sinvaldo Tavares

Conceição do Mato Dentro, assim como tantos outros lu-gares do planeta, tem se convertido, nos últimos anos, em cenário de uma tensão e um campo de experimentação en-tre dois paradigmas opostos. De um lado, grandes corpora-ções extrativistas do minério de ferro, de outro, pessoas e movimentos sensíveis ao cuidado da vida no Planeta. Ex-pressão local de um embate cuja abrangência é global. a atividade minerária, que no início do século XViii era abun-dante e expressiva neste município, registrada em uma grande “corrida pelo ouro nesta região”, ressurge agora, em um novo contexto histórico, despertando uma urgente, profunda e necessária reflexão sobre a identidade do mu-nicípio e a construção de um caminho de sustentabilidade para toda sua gente.

Trata-se do enfrentamento entre o velho paradigma hegemônico e o emergente paradigma ecológico. O embate se dá no interior mesmo de um único proces-

so histórico em que o novo paradigma vai emergindo mediante um processo duplo e simultâneo: a radicalização das contra-dições do paradigma hegemônico e a potencialização dos veios alternativos que despontam em meio a suas contradições inter-nas. Em suma, o velho paradigma está agonizando enquanto o novo paradigma encontra-se em processo de gestação.

a crise do paradigma antropocêntrico moderno A noção de paradigma remete ao sistema disciplinado me-

diante o qual a sociedade atual se orienta e organiza o conjunto de suas relações. A crise do paradigma moderno seria, no fun-do, uma crise no conjunto de modelos ou de padrões a partir dos quais organizamos nossa relação conosco mesmos, com as demais pessoas e com o conjunto da realidade na qual estamos inseridos. O que se encontra em crise, na verdade, é o paradig-ma tipicamente ocidental, sintoma de um incorrigível antropo-centrismo, expresso na peculiar atitude de se colocar sobre as coisas, objetivando-as, e julgando-as distantes e desconectadas do ser humano, concebido como sujeito. A vontade desenfreada do ser humano de tudo dominar tem marcado os destinos da civilização ocidental técnico-científica. A exacerbação do saber concebido como poder está nos conduzindo, paradoxalmente falando, à total sujeição aos imperativos de uma Terra degra-dada. A ilusão, enfim, de um crescimento desmedido e de um progresso ilimitado voltados para a melhoria das condições de vida nos está levando a uma degradação sem precedentes, per-ceptível, sobretudo, na deterioração progressiva da qualidade de vida nossa, dos demais seres vivos e do próprio Planeta.

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qA utopia da criação de um novo mundo onde pela primeira

vez a fome e as demais necessidades básicas do ser humano seriam de vez debeladas está sucumbindo face às contradições escandalosas como, por exemplo, a produção do subdesenvol-vimento de nada menos do que 2/3 da inteira população mun-dial. O mito da perfeita utilização dos recursos da Terra, en-carnado pelo ser humano de maneira voluptuosa e obstinada, tem produzido a exaustão dos sistemas vitais e a desintegração do equilíbrio ambiental. A agravar ainda mais a situação de degrado e exaustão à qual tem sido submetido o Planeta, são as incidências do desastre ecológico em termos de exclusão e mar-ginalização dos pobres da Terra. Em virtude da assim chamada “revolução tecnológica”, sobretudo através dos processos de in-formação e robotização, o trabalho e a criatividade humanos se tornam cada vez dispensáveis. Fala-se, hoje em dia, em socie-dades de plena atividade, para distingui-las das sociedades de pleno emprego. Com a emergência do capitalismo neoliberal, veio à tona uma das maiores contradições da civilização oci-dental: o trabalhador sequer tem o direito de se deixar explorar por meio de sua inserção no mercado de trabalho. Percebemos hoje, mais do que nunca, o caráter reducionista e profunda-mente excludente do paradigma civilizacional moderno.

Tais constatações levam-nos a refletir seriamente sobre os conflitos provocados pela atual dinâmica da sociedade contem-porânea. O primeiro deles seria entre a reprodução da humani-dade e os destinos do Planeta Terra. Encontramo-nos, para todos os efeitos, encurralados dentro de um beco-sem-saída: de um lado, nossas sociedades têm cada vez mais necessidade da Terra e de seus recursos; de outro, o Planeta suporta cada vez menos nosso crescimento. A esse respeito podemos afirmar de forma cla-ra e contundente que os limites do capital são os limites da Terra.

Não menos grave resulta o conflito entre a reprodução do capitalismo e da humanidade. A reprodução do capitalismo está cada vez menos relacionada com a reprodução da huma-nidade, pelo fato do capitalismo se autonomizar cada vez mais da sociedade na qual se encontra inserido.

E, por último, a Terra e as pessoas humanas que nela habi-tam estão à mercê de uma economia que se impõe como a fata-lidade do “nosso tempo”. Trata-se de um acirrado conflito entre a reprodução do capitalismo, incluída naturalmente parte da humanidade ligada a suas atividades e a seus produtos, e a re-produção da Terra com o conjunto de suas criaturas. Numa pala-vra, as prioridades do capitalismo neo-liberal são radicalmente distintas daquelas orientadas pela ética e pelos valores humanos.

a lenta gestação do paradigma ecológicoO paradigma ecológico – também chamado de paradigma

da complexidade – encontra-se em processo de gestação. Qual teia de relações, o real é extremamente complexo. Particular-mente densa é a complexidade em todos os organismos vivos. E o planeta Terra se revela sempre mais como um grande organis-mo vivo. À diferença de outros enfoques que insistem em frag-mentar a realidade, a perspectiva ecológica contempla-a em sua irremissível complexidade, evitando reduzir ou simplificar seus fenômenos. Somente uma visão sistêmica e holística fará justiça à complexidade do real, posto que irá conceber seus fe-nômenos no enlace das quatro dimensões constitutivas do novo paradigma ecológico: ambiental, social, mental e espiritual.

Neste novo horizonte de compreensão, as distintas singula-ridades emergem mais nitidamente no bojo das intrínsecas re-ciprocidades que compõem esta teia da vida. No caso específico do ser humano, sua peculiar singularidade emergirá, portanto,

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qna medida em que o inserirmos na sua comunidade de vida. Quanto mais forem potencializadas suas inerentes e intrínse-cas inter e retro-relações na complexidade de suas alteridades, mais desabrochará sua mais lídima e própria singularidade. Neste sentido, a autêntica tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana pressupõe um cuidado especial para que tam-bém sejam salvaguardados os direitos da Humanidade e tam-bém os direitos da Terra e de sua comunidade de vida.

Importa salientar a reciprocidade entre a tutela da digni-dade humana e a defesa da dignidade da Terra e, portanto, a mútua implicação entre ambas. Toda vez que se ferem os direitos das demais criaturas e do planeta como um todo, acaba-se des-respeitando os direitos da pessoa humana. A natureza, entendi-da como o conjunto de todas as criaturas, deve ser protegida pelo que ela é e não enquanto eventual potencial à disposição do ser humano. O planeta deve ser, portanto, salvaguardado em nome de uma dignidade que, para todos os efeitos, lhe é própria.

Neste sentido, salientamos a peculiar relevância da recém elaborada “Carta da Terra” e a pertinência do novo conceito por ela proposto: “comunidade de vida”. Este documento representa uma forma avançada de se compreender os direitos como direitos humanos, direitos sociais, direitos ecológicos e direitos da Terra, como Planeta vivo. É o que, de resto, lemos no próprio documento:

“A Carta da Terra está concebida como uma declaração de princípios éticos funda-mentais e como um roteiro prático de signifi-cado duradouro, amplamente compartido por todos os povos. De forma similar à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a Carta da Terra será utilizada como

um código universal de conduta para guiar os povos e as nações na direção de um futuro sus-tentável”.

A gestação do paradigma ecológico, ademais, possibilita--nos recuperar a consciência da intrínseca dimensão mistérica da inteira realidade criada e da vida em suas mais distintas formas e expressões. Trata-se de se predispor a reviver aquela originária experiência do conhecer como nascer junto e, por-tanto, reconhecer as coisas a partir de uma relação constitutiva e vital nossa para com as mesmas. Nessa mesma linha, impres-cindível se faz recuperar o verdadeiro sentido da compreensão como articulação entre as várias dimensões que exprimem a complexidade do real: um saber inclusivo tecido ponto por ponto mediante os movimentos recíprocos e complementares da distinção e da conjunção. Importa, enfim, redescobrir o sen-tido mais originário do pensar como curar. De fato, pensum em latim era uma espécie de ungüento que se colocava sobre a ferida para protegê-la e, ao mesmo tempo, curá-la; o verbo fran-cês penser conservou as ressonâncias etimológicas do pensum latino, pois significa pensar, mas, também, curar cuidando e cuidar curando. E, neste sentido, remete-nos à dimensão ética de todo raciocínio e conhecimento humanos. Pensa-se e reflete--se não apenas com o intuito de especular dando, assim, asas à curiosidade, mas, ao contrário, pensa-se com a intenção de remediar e de curar as feridas abertas de nossa realidade hu-mana, histórica e cósmica.

Em outras palavras, poderíamos falar não mais de um sa-ber como poder, poder este predatório e perverso, mas, agora, nesta nova configuração, de um saber cuidar, de um aprender a conviver com as demais criaturas. Trata-se, em suma, de uma

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qautêntica ressignificação do poder através do aprender a cui-dar. Não mais um saber que oferece a ilusória impressão de gerar certeza e segurança, mas, ao contrário, um saber peculiar que se revela sensível à dinâmica do aprender a lidar com as incertezas e a cuidar de si, dos outros e das criaturas todas como maneira singular de conviver e de cuidar da vida.

“Uma vida não basta ser vivida... precisa ser sonhada.”

Recorro a esses versos do grande poeta Mario Quintana para aludir ao futuro da humanidade e da vida no Planeta. Vivemos uma situação de grave crise planetária: dramática, todavia, não trágica. Ousaria imaginá-la como um doloroso parto que dará à luz novos rebentos, inaugurando um novo tempo. “Há um tempo para cada coisa. Há o período da floração e, em seguida, vem o tempo da colheita. Mas não menos fecundo é o lento e silencioso tempo da germinação. Não estaríamos sendo convocados, no pre-sente, a nos lançarmos na árdua tarefa da semeadura?

Oxalá seja-nos concedido acolher essa interpelação de fun-do que nos advém da gravidade da situação em que vivemos como uma incumbência: resgatar o que de melhor existe em nós no enfrentamento destemido das grandes questões que se nos apresentam nesse “nosso tempo” caracterizado por grandes transformações. Elas constituem não apenas problemas a serem debelados, mas, sobretudo, ocasiões únicas para o permanente processo de recriação de nossa vocação humana. Tais questões, no fundo, tornam nossa vida mais digna de ser vivida, porque nos convidam a não apenas vivê-la, mas a sonhá-la...

As iniciativas e articulações várias em defesa da vida que têm ganhado corpo na sociedade de Conceição do Mato Den-tro não se colocariam nesse marco de uma fecunda semeadura cujos rebentos já começam a despontar vigorosamente?

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a NaTUrEza CoMo PoNTo DE ENCoNTro ENTrE o rUral E o UrBaNoA Busca de uma nova at i tude para Conceição do Mato Dentro

Loryel Rocha

o físico Brian Swimme, de modo pertinente, indica algumas preocupações e rumos possíveis da ciência contemporânea, bem como, aponta a necessidade de defendermos um diálo-go entre as ciências da natureza e a filosofia da natureza, uma vez que ambas, dentro de suas áreas, procuram com-preender o mundo em sua especificidade ontológica:

Nossa civilização ocidental moderna começou com uma espécie de esquizofrenia cultural. Nossa pesqui-sa científica efetivamente desvinculou-se, no início do

período moderno, de nossas tradições humanistas-espirituais. Por boas razões, sem dúvida, mas hoje a neurose se espalhou por di-versos continentes. Emaranhados na mais terrificante patologia da história da humanidade, talvez possamos nos atrever a perguntar se foi realmente boa essa ideia, essa fragmentação do universo [...]. No entanto, algo extraordinário está ocorrendo na nossa época; algo que tem o poder de pôr fim a esse impasse. Refiro-me à transfor-mação radical da nossa visão básica do mundo. [...] O universo, considerado como um todo, assemelha-se muito mais a um ser em desenvolvimento. O universo tem um princípio e encontra-se no meio do seu desenvolvimento: uma imensa epigênese cósmica. [...] De que modo que a compreensão mais profunda nos dá poderes? – possibilitando-nos reinventar o homem no contexto da nova histó-ria cósmica. Não será preciso mais nada. Um novo ponto de vista sociológico, uma nova teoria psicológica é insuficiente para lidar com a magnitude de nossas preocupações. Temos de compreender o que existe de humano no interior das dinâmicas intrínsecas da Ter-ra. Alienados do cosmos, encarcerados dentro de nossas estreitas estruturas de referência, não sabemos, enquanto espécie, o que pre-

cisamos fazer. Somente descobriremos nosso papel mais amplo rein-ventando o homem como uma dimensão do universo emergente .

Na mesma linha, e de igual modo, muitos outros pensado-res, políticos, religiosos e leigos estão empenhados em encontrar novos meios de obter cooperação intercomunitária na qual a diversidade da natureza e humana seja reconhecida e o direito de todos seja respeitado. Um dos aspectos mais promissores da era moderna é o surgimento de um movimento internacio-nal pela paz e pelo diálogo. E nesse sentido, tanto as ciências quanto a filosofia da natureza e a Ética Universal podem e de-vem dar seu contributo. Se o século XX foi palco de tragédias mundiais, como as duas grandes guerras mundiais, foi também o berço de organizações transnacionais e da busca de diálo-go e de cooperação internacional. Vale considerar o grande trabalho que vem sendo desenvolvido pela ONU, pela UNESCO, pela Organização Mundial da Saúde, pela Corte Internacional de Haia, pelo Banco Mundial; as ações surgidas em decorrência do Tratado de Brundtland, da Declaração dos Direitos Huma-nos, da Carta da Terra; o conforto levado pelos Médicos Sem

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qFronteiras, pelos Doutores de Alegria. São tanto os exemplos, e tão enriquecedores.

Cabe ao século XXI aprofundar o rumo já iniciado de reco-nexão com a natureza e o principal esforço recai sobre cada ser humano verdadeiramente ocupado com uma maior humani-zação da humanidade, pois, “o espírito fica muito mais aberto e assume dimensões verdadeiramente internacionais” (DALAI--LAMA. Uma ética para o novo milênio, p. 161) quando se “pen-sa globalmente e age localmente”, dístico-chave do pensamento ecológico e sustentável.

O diálogo e o ato de compartilhar emergem como tronco único, convidando à construção de uma nova práxis mundial, pois, família, pátria, humanidade, planeta, representam seres espirituais , cada vez mais complexos, que estão indissoluvel-mente ligados ao cosmos. E dentro dessa imediata urgência se legitima a busca pela supressão ao máximo do estranhamento dos saberes e dos seres trilhando a convicção de que, para nos querermos como atenienses desnecessitamos de nos movimen-tarmos como espartanos:

“(...) Devemos decidir viver com um sen-tido de responsabilidade universal, identifi-cando-nos com a comunidade terrestre como um todo, bem como com nossas comunidades locais. Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual as dimensões local e global estão ligadas. Cada um compartilha responsabilidade pelo presen-te e pelo futuro bem-estar da família humana e de todo o mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com

toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gra-tidão pelo dom da vida e com humildade em relação ao lugar que o ser humano ocupa na natureza. Necessitamos com urgência de uma visão compartilhada de valores básicos para proporcionar um fundamento ético à comuni-dade mundial emergente”

(CARTA DA TERRA Disponível em: www.cartadaterrabrasil.org

Acesso em: 10 jan. 2010)

Nunca é demais relembrar as prudentes palavras de F. Scott Fitzgerald em O Grande Gatsby: “o teste de uma inteligência de primeira linha é a habilidade de ter duas ideias opostas em mente ao mesmo tempo”. Essa espécie de inteligência que preci-samos cultivar no século XXI certamente será aquela apontada pelo sábio provérbio chinês:

O dedo aponta para a Lua;o tolo olha para o dedo;o sábio, para a Lua.

o Compromisso de Construir uma Educação e uma Ética ambiental Universal na Serra do Espinhaço

Os registros paleolíticos gravados nas cavernas e nas pedras na Serra do Espinhaço, na Serra da Capivara, nas cavernas de Lascoux, em Altamira, entre outros, atestam que além da pre-sença humana inteligente, a preocupação da relação do homem com a natureza sempre foi objeto de reflexões ao longo da his-tória da humanidade. O célebre axioma teleológico Universo, Macrocosmo X Homem, Microcosmo foi objeto de pensamento

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qde muitos pensadores e sábios. A resposta ao enigma proposto pela Esfinge a Édipo carrega consigo também as questões ati-nentes ao ser humano e sua relação consigo próprio, com os outros e com o mundo.

Dessas reflexões sobre a natureza, surgiram inúmeras cul-turas e correntes de pensamento que resultaram em aportes teó-rico-filosóficos basilares, alguns deles, com efetiva influência no pensamento ocidental. Vale destacar, nesse sentido, pensadores fundamentais na configuração das concepções modernas sobre a natureza: a criação por Platão da Teoria das Ideias – doutri-na que concebe um mundo dividido em claro/escuro, Perfeito, no qual a positividade tem lugar de destaque –; o pensamento de Aristóteles, por ter justificado a escravidão “por natureza”; ou as ideias defendidas por René Descartes, que soube tão bem distinguir os homens dos animais, considerando estes últimos como simples máquinas. Acerca dessa herança, Ferry (A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem, p. 77-78) ar-gumenta que as três posições filosóficas opostas invocadas nor-malmente para valorizar o humano em detrimento do animal e da natureza não são mais pertinentes dentro de um contexto moderno.

Desse modo, vale ressaltar a urgente necessidade de um amplo debate em torno das questões relativas a essa temáti-ca, focalizando, como defendem muitos autores, ao máximo, a historicidade nela envolvida a partir de um amplo referencial. A discussão sobre a questão ambiental conciliando-a com o de-senvolvimento sustentável deve considerar os seus fundamen-tos ideológicos e os argumentos desenvolvidos a partir deles, bem como as relações e interpretações que se estabeleceram, historicamente, entre o ser humano e a natureza.

Contudo, apesar de ser um tema há muito refletido, pare-

ce que essa discussão tem merecido um destaque especial na atualidade, tendo em vista, dentre outros fatores, o contexto de degradação ambiental que vivenciamos e a crise de valores.

“O que está em jogo, já há algum tempo, não é o destino de uma parte do mundo, mas da espécie humana e do mundo vivo como um todo. Do ponto de vista da filosofia, não se trata apenas da produção de conhecimento infor-mativo sobre o mundo, mas da compreensão do mundo e da decisão sobre a ação; a questão do conhecimento não é hoje somente um pro-blema teórico, mas é problema prático e isso demanda reflexão filosófica.”

Abordando o sentido das relações humanas com o mundo e com o outro, Leff evidencia que a crise que abre o novo mi-lênio é um convite à reflexão filosófica, à produção teórica e ao julgamento crítico, sobretudo no tocante aos fundamentos da modernidade. Ela implica a mudança do paradigma cultural vigente, assentado no poder de dominação da natureza, bem como a introdução da convivência cooperativa, da concidada-nia, da sinergia, da compaixão, da inclusão de tudo, orientan-do um processo de reconstrução social. A concepção de novas estratégias conceituais e praxeológicas acentua a pertinência de uma atitude reflexiva que não se restrinja a questões genéri-cas sobre a natureza em si, mas que remeta a uma nova cosmo-logia. “Por cosmologia entendemos a imagem do mundo que uma sociedade faz para si, fruto da ars combinatória dos mais variados saberes, tradições e intuições. Essa imagem serve de orientação geral e confere a harmonia necessária à sociedade,

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qsem a qual as ações se atomizam e perdem o seu sentido dentro de um sentido maior” (BOFF, Ética da vida, p. 81). Através da cosmologia, as relações e os saberes se estabelecem, e com eles, a sociedade.

A fundação de uma nova centralidade nas práticas e no pensamento humanos propicia a ressignificação dos seres vi-ventes e da natureza, transformando, inclusive, o conceito de sustentabilidade para o planeta, que deve partir, portanto, e inicialmente, do questionamento do nosso ser no mundo, revi-sitando as concepções e as ações que norteiam o nosso viver, como seres historicamente situados, que carregam consigo in-fluências do pensamento filosófico desde a Antiga Grécia até os dias atuais.

A ideia de natureza influencia diretamente a sociedade e os costumes, pois a filosofia natural sempre precedeu e modelou a filosofia moral. Quanto a isso, vale recordar que São Francis-co de Assis, o Patrono da Ecologia, revelou e demonstrou a be-leza e a grandiosidade de uma interação respeitosa com todas as formas de vida.

De igual modo, a visão da ética budista revela o que sig-nifica exercer uma subjetividade solidária e integrada com os seres e suas fragilidades, sem restringir o acolhimento e as diferenças e celebrando incessantemente a vida universal. “A profundidade da ética budista é revelada quando se percebe que a busca é colocar-se antes de bem e mal, antes das dualida-des da percepção, dos conflitos, das emoções, das dicotomias, sejam religiosas, sejam mundanas. Ou seja, a realização moral é posterior à resolução dos conflitos “interiores” (mentais, que não se desligam de modo algum do exterior), é posterior ao aflorar da natureza interior. “No que se refere à ética, contudo, o mais importante é que, onde o amor pelo próximo, a afeição,

a bondade e a compaixão estão vivos, verificamos que a condu-ta ética é espontânea”’

(Dalai-Lama, apud PELIZZOLI, Correntes da ética ambiental, p. 84-85).

E, se há uma ligação tão íntima entre a nossa visão, es-sencialmente formada pela ciência, da natureza, e a relação ética que mantemos com ela, isso acontece porque conhecer a natureza é, antes, se situar relativamente a ela, o que, em li-nhas gerais, pode dar-se de três formas: 1) a que coloca o ser humano como um microcosmo no macrocosmo, em posição de observação (visão grega); 2) a que coloca o homem no exterior da natureza, em posição de experimentação e controle (visão moderna); 3) a que reinscreve o homem na natureza, sem posi-ção privilegiada, mas insistindo em nossa pertença à natureza, reinscrição esta que temos que, por meio da reflexão ética e filosófica, buscar incessantemente.

Nesse sentido, acreditamos que especificamente no caso de Conceição do Mato Dentro, tendo em vista que seu histórico de surgimento e de desenvolvimento aconteceu dentro da visão do mundo do Brasil colonial, que propunha a dominação da natureza como forma de desenvolvimento, urge fazer uma reto-mada sobre algumas concepções que foram dadas à natureza e as relações que se estabeleceram com ela, enfatizando pensa-mentos, comportamento e atitudes que empreendam uma nova proposta para o projeto moderno de “dominação” da natureza.

Entendemos que essa reflexão e busca por uma nova ati-tude são pertinentes e indispensáveis para podermos analisar as bases em que se assenta a atual crise ecológica mundial e conceicionense, bem como para desencadear ações e estratégias de resolutividade da mesma, incluindo aí, a educação e a ética ambiental , base nuclear para a construção de um amanhã me-

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qlhor e mais feliz para tudo e todos.

E, no fortalecimento desse caminho, e de certo modo, o co-roando, devemos seriamente considerar que o título de Reserva da Biosfera concedido pela UNESCO à Serra do Espinhaço já traz em si uma dimensão de universalidade à região, e portan-to, exige de seu entorno uma gestão integrada das mentes e dos territórios como meio de concretizar tal universalidade. Nes-se caso a ética ambiental suplanta o discurso” verde” inócuo, presentes tanto da ecologia de superfície quanto do desenvol-vimento econômico materialista, para ser, em grande escala, uma atitude de mudança de abertura da mente humana para a construção de uma nova cosmovisão. É a partir disso que a aceitação e inclusão das diferenças naturais e humanas se fará presente, impactando no comportamento, nas sociedades, nas empresas, na política, na economia, na religião, enfim, em todos os setores habitados pelos seres viventes.

Nesse sentido, aliar a educação com a ética ambiental para auxiliar a formar o bom caráter do homem é um imperativo planetário, pois, sem ele, todas as ações empreendidas mantêm--se superficiais. E e é dentro dela que historicamente se rutu-ram os espaços e os tempos, erigindo o que se chama cultura da violência. O fortalecimento e o estímulo a uma pedagogia da desaprendizagem da violência encaminhará a sociedade ao reencontro com a natureza, pois, a “felicidade que supomos só a encontramos onde nós estamos”.

“Acredito que cada um dos nossos atos tem uma dimensão universal. Por causa dis-so, a disciplina da ética, a conduta íntegra e um discernimento cuidadoso são elementos decisivos para uma vida feliz e significativa.

(...) Estou convencido de que é imprescindível cultivarmos o que chamo de sentimento de res-ponsabilidade universal. (...) Uma das grandes vantagens de desenvolver essa noção de res-ponsabilidade universal é nos tornarmos sen-síveis a todos os seres – e não só aos que estão mais perto de nós. Passamos a ver melhor a necessidade de cuidar antes de tudo daqueles membros da família humana que sofrem mais. Reconhecemos a necessidade de procurar não causar divergências entre nossos semelhantes. E nos tornamos mais conscientes da importân-cia imensa de promover um estado de satisfa-ção. Quando negligenciamos o bem-estar dos outros e ignoramos a dimensão universal dos nossos atos, fazemos uma distinção entre nos-sos interesses e os interesses dos outros. (...) Se damos demasiada ênfase a diferenças superfi-ciais e por causa delas fazemos rígidas discri-minações, não há como evitar um acréscimo de sofrimento e desgaste para nós e para os outros – o que não faz sentido. (...) Avaliando essas realidades, vemos que a ética e a necessi-dade pedem a mesma reação”(DALAI-LAMA, Uma ética para o novo milênio, p.122-124).

a Profundidade da Cosmovisão indígena de Natureza

O conceito moderno de natureza como um espaço separado dos seres é estranho ao mundo mítico dos índios. O sentido da palavra physis evoluiu bastante dos antigos gregos até a mo-dernidade , tendo interpretações que oscilam do absoluto ao

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qrelativo . O esférico mundo conceitual dos índios e dos antigos gregos, que explica a íntima interconectividade que existe entre a natureza e os seres, abre o mundo ao diálogo e à fraternidade universal.

Por outro lado, se o desbravamento do território nacio-nal foi feito tendo os inúmeros mitos indígenas como uma das referências para a procura de riquezas, tal como o Eldorado, a parte nuclear desse pensamento mítico, que se polariza em torno do respeito e conexão com a natureza, não foi de todo absorvida pelos colonizadores. Porque, desde Descartes, e an-tes dele, o comportamento ante a natureza tem sobre ela uma relação de domínio de exploração. E nesse aspecto, essa heran-ça do período colonial transmitida à modernidade é trágica, e urge ser revista e deposta.

A concepção de natureza , ao longo do tempo, foi influencia-da por muitos pensadores e culturas, mantendo-se revestida de grande complexidade e exigindo um olhar ampliado para que se pudessem extrair, com maior fidedignidade, os significados presentes. O pragmatismo presente nessas concepções impede o contato fidedigno e respeitoso do homem para com a natu-reza. Uma nova atitude quanto a isso deve ser considerada. E, atualmente, as tradições nativas talvez possam nos fornecer respostas e meios de entendimento e de relação com a natureza.

Porque, entre os povos indígenas, desde o seu surgimento até os dias atuais, prevalece a cosmovisão: uma concepção de responsabilidade para com e pelo mundo natural, baseada numa relação de parentesco ou afiliação entre os mundos hu-mano e não humano. Como exemplos, podemos citar a percep-ção da tribo Maori da Nova Zelândia, para quem todos os seres humanos e não humanos partilham a mesma linhagem, têm a mesma origem. Entre os povos indígenas dos Andes , há o sen-

timento semelhante de universalidade e laço genealógico entre elementos da natureza (estrelas, sol, lua, plantas, animais) e os seres humanos, sendo todos parentes e, simultaneamente, filhos, pais e irmãos.

Os índios teceram e desenvolveram sua cultura e civiliza-ção intimamente associadas à natureza. Com isso, para esses povos naturais, o conceito de meio ambiente carrega, em si, despertencimentos e ruturas, uma vez que meio é metade de algo. Para o índio não existe meio ambiente , existe a natureza, dado que o índio vive na terra e não sobre a terra. A natureza não é uma fronteira, não é algo que apenas circunda um povo, é a vida desse povo, com a qual eles têm uma relação ontológi-ca de pertença.

Essa é a grande lição da cultura indígena que precisamos recuperar e aprender. Não sem razão Mircea Eliade advertiu que o mito narra, explica e revela. E desde antes dos Descobri-mentos a história nos acena para a necessidade desse aprendi-zado presente na literatura do imaginário. Já é tempo de come-çarmos a refletir.

a ressignificação da Natureza e do Ser humano e a afirmação de uma Nova atitude para Conceição do Mato Dentro

A Ecologia critica o pensamento moderno por ter transfor-mado todos os produtos da atividade humana em mercadorias. Os conceitos econômicos dominantes trazem paradoxos incon-ciliáveis: o comércio aumenta a desigualdade social; financia o monopólio e o mundo humano passa a ser o mundo do capital. Sobre esse contexto, acirra-se também a crítica ao domínio da natureza em nome de modelo econômico. A racionalidade co-locada a serviço do capital, que para subsistir precisa dominar

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qa natureza, evidencia a ditadura da produção e da felicidade. O valor operacional da razão tem fundamentos matemáticos, financeiros e o progresso subjuga o homem. Dominar a natu-reza para produzir e progredir é o único critério a que se pode colocar a razão a serviço.

Nesse cenário, como conciliar ego e natureza? A Ética e a Educação Ambiental, aliadas à Filosofia da Natureza critican-do essa relação, podem apresentar saídas organizadas para que, a partir de uma salutar convergência, possa haver uma ressignificação do ser humano e da natureza.

Precisamos de uma nova ótica sobre o valor e significado da vida, uma ética da vida, que demanda responsabilidade universal, segundo os preceitos inclusos na Carta da Terra. Sobre essa nova ótica Leonardo Boff afirma que a economia é referência de inclusão, e não de exclusão: “O Papa João Paulo II, na encíclica Solicitudo rei socialis (1987), traçou as linhas éticas de um desenvolvimento que não se restringe apenas à produção de bens materiais, mas que é integrado e integral, baseado na solidariedade mundial e na socialização de todas as produções técnico-científicas, postas a serviço da superação dos arqui-inimigos da humanidade, como a fome, as doenças, a impotência diante da violência da natureza etc.”

(cf. BOFF. Ética da vida, 2009, p.51)

Mais à frente, Boff dimensiona a tragédia de um ego prisio-neiro do lucro: “A religião da mercadoria possui a sua ética, segundo a qual o interesse individual constitui a norma geral de comportamento. Assim, o interesse do padeiro não reside em saciar a fome das pessoas (interesse social), mas em ganhar di-nheiro com a venda do seu pão (interesse privado). Os limites do interesse egoístico não são os interesses dos outros, mas os

contratos que devem ser sacrossantamente observados”

(ibidem, p. 53)

Parece óbvio, portanto, que para resolver as contradições de um mundo ruturado, globalizado, transnacionalizado e técnico-científico precisamos de múltiplos esforços que aceitem o desafio de desencadear um processo de reforma de visão sobre o cosmos, a natureza e o homem. No entanto, a estratégia para consolidar esse desafio deve repensar seriamente a autoridade da razão como fonte segura para encontrar as soluções, pois, caso contrário, o ponto fixo do esforço permanecerá intocado.

A estratégia para a consolidação dessa nova visão tem so-bre si um desafio que se inicia com a questão da subjetividade e a demarcação do conhecimento, passando para a construção de um novo modelo de urbanidade cuja questão biológica da vida humana e animal e sua relação com a natureza devem ser de igual modo revisitadas.

Não obstante a tendência às oposições, o século XXI deve encontrar uma forma original de tratar essas questões, por-que o pragmatismo racional carrega uma fragilidade de apoio como sustentáculo de seu argumento. O químico indiano Ikbal Taimni comenta a fragilidade desse argumento:

“Não se trata, como às vezes se supõe, de uma opinião basear-se em fatos do mundo ob-jetivo e outra em percepções subjetivas no reino da mente. Ambas baseiam-se na mente. Ambas são subjetivas num sentido e objetivas em ou-tro. Pois não é o conhecimento obtido através dos órgãos dos sentidos fundamentado na per-

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qcepção de imagens mentais presentes em nossa mente e, portanto, subjetivo em sua natureza essencial? As pessoas não compreendem que os órgãos dos sentidos são apenas postos avança-dos da mente, e o conhecimento do chamado mundo objetivo é essencialmente de caráter subjetivo. Assim, ambas as opiniões sobre o mundo que nos cerca baseiam-se na mente e na experiência humana. Trata-se portanto, apenas de uma questão de se dar crédito a uma opinião porque esta nos convém, preferindo permanecer envolvidos nas experiências atra-entes da vida inferior, rejeitando a outra por-que não desejamos encarar os problemas reais da vida e empreender a tarefa de nos livrarmos das ilusões e limitações em que estamos enlea-dos.”

Em concordância com Taimni e avançando mais na ques-tão, Fernandes propõe uma nova visão sobre a natureza huma-na: em vez de “termos” experiências, somos as experiências que pensávamos que tínhamos. A tese do autor caminha na contra-mão das tentativas pós-modernas de conceber o ser humano como produto da mente, do pensamento e da linguagem.

A importância da experiência para o conhecimento é funda-mental para a biologia do amor : “toda experiência cognitiva inclui aquele que conhece de um modo pessoal, enraizado em sua estrutura biológica”. Como seres vivos, somos constitutiva-mente incapazes de observar um mundo de objetos independen-tes daquilo que fazemos ao observá-lo. Nossa experiência está indissoluvelmente ligada à nossa estrutura.

Na filosofia hindu, considerar o mundo individual como algo independente do Mundo Divino ou Natural, é uma ilusão e é dessa ilusão que decorre a separação sujeito-objeto.

Assim, de acordo com os pressupostos da ecologia profun-da, toda a vida seria fundamentalmente sagrada e una. A visão sistêmica de que todas as formas de vida se organizam em rede integra as diferentes dimensões biológica, cognitiva e sociocultural da vida. O universo compõe um todo unificado, constitui um único corpo sagrado.

Portanto, a visão antropocêntrica e utilitarista de que a natureza existe para servir aos interesses do homem não pode mais ser reconhecida como veraz. Por outro lado, reconhecer a unidade da mente e da vida – ou da mente e da natureza – não dissolve a existência individual . O mistério oculto por trás da natureza ao ser capaz de dar unidade a todas as formas de vida define tanto o indivíduo quanto o coletivo e não privilegia nenhum sobre o outro.

Sob essa ótica, o conceito de cidades como espaços diame-tralmente opostos ao campo (concebidos como “espaços mais próximos da natureza”) se altera, em razão de vencidas as ambiguidades. Deveremos ser capazes de criar um novo con-ceito de urbanismo que suprima a dialética urbano X rural e entenda que a natureza faz parte da vida das cidades, e vice--versa. Integralizar a vida humana e natural é uma necessária reflexão, pois impele a uma mudança conceitual na abordagem dessas duas dimensões do vivo implicando em uma reelabora-ção conceitual de uma para com a outra.

Desenvolver cidades respeitando o padrão de organização co-mum a todas as criaturas vivas, conectando o caranguejo, o melro, a orquídea, o homem e o carro desenvolve uma nova percepção

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qde cognição, pois o processo do conhecer se amplia pelo sentir e pelo experenciar, trazendo uma expansão radical à mente, porque, ao reconceituar a noção de experiência não a considerando como algo exclusivo do fazer científico, mas sim, como algo pertencente à vida cotidiana, se afirma que nenhum ser humano, em nenhum momento, fala ou escuta algo fora da sua experiência, pois, todos nós pertencemos a uma história, temos uma história, somos uma história. E a nossa história enquanto seres humanos é a história de seres que vivem imersos na experiência do dialogar com a nature-za, irmãos das estrelas e das árvores.

A coerência dessa nova atitude é dada pela configuração de uma convicção de fundo: a de que o lugar da ciência, da religião, da técnica, da economia, da política, etc., não pode ser desconec-tada dos territórios, dos locais, das pessoas e da natureza, pois, sejam eles urbanos ou rurais, em todos eles existem seres huma-nos e natureza, em todos eles habita a vida, fenômeno universal.

A nova atitude exige diálogo, que por sua vez para se dar plenamente exige capacidade de dar e de receber. O rabino Nilton Bonder traz um belíssimo exemplo dessa atitude, sob a ótica da Cabala, chamada pelos budistas de “compaixão”:

“CABALA pode ser traduzido literalmente como ‘recebimento”’.

Na tradição rabínica, compreender o sentido do conceito de “receber”, poder vivenciá-lo, é uma arte sagrada a ser exerci-tada e aperfeiçoada por toda a vida.

Uma antiga lenda sobre a geografia da terra de Canaan compara seus dois mares, o Mar da Galileia, abundante em peixes e vida, e o Mar Morto, um caldo de matéria sem vestígio

algum de vida, e se pergunta o porquê da diferença. A resposta, explica-se, encontra-se no fato de que o Mar da Galileia recebe através dos rios o descongelamento das neves do maciço do Go-lam, mas também deixa fluir de si as águas do rio Jordão que terminam no Mar Morto. Esta, porém, por sua vez, retém as águas e não as deixa seguir. Não sabe receber. Pois receber é estabelecer uma relação com a natureza ou o universo. Se expe-rimentamos o recebimento como um fenômeno unilateral, que se limita a algo a nos ser dado, separamo-nos gradativamente da troca, que representa, em última instância, VIDA. O Mar Morto é mar como seu irmão da Galileia, mas desprovido da vitalidade sutil que é produto de um recebimento que só se com-pleta ao deixar fluir de si e propagar-se pela cadeia da vida. Saber receber significa, em outras palavras, ter a capacidade de estabelecer um processo de troca com o universo circundante que nos inclua na corrente ecológica assim formada” .

Saber receber... Quanto a isso, a própria configuração geo-gráfica singular de Conceição do Mato Dentro, cidade histórica pequena envolta num cenário natural exuberante e inserida dentro de uma Serra que é Reserva da Biosfera, já representa esse ponto de partida de conexão entre o rural e o urbano. A ge-ografia de Conceição permite e estimula o convívio direto com a natureza, e o que para muitos é um discurso de viagem turísti-ca, para os moradores da Serra do Espinhaço é uma prática de vida. Mas há desconhecimento e desentendimento dessa rique-za conceitual sobre a natureza, e faltam ações em todos os seto-res para concretizá-lo. Resolvidas essas questões, Conceição do Mato Dentro pode emergir como exemplo de que é possível cons-truir um novo paradigma de urbanidade da “Cidade Jardim”, cidade onde a natureza não é somente um recurso paisagístico, mas, sim um modo de viver e de morrer integrado ao cosmos.

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qConsiderações finais

A cultura indígena tece sua vida em contato com a nature-za. Certamente que essa relação direta com a natureza não se trata de uma contemplação passiva e alienada, mas, ao con-trário, configura-se como ativa e existencial, dado que norteia os rumos e caminhos possíveis a serem seguidos em sociedade. Essa postura de contato do homem com o mundo natural e suas inter-relações com outras formas de vida remetem a uma di-mensão espiritual, uma vez que se busca captar na natureza aquilo que ela tem de sublime e nobre, ultrapassando, desse modo, a visão utilitarista que caracteriza o homem moderno.

A contemporaneidade exige que se tenha um olhar mais profundo diante dos fatos e das manifestações das diferentes formas de vida da natureza não somente como atitude de va-lorização compensatória, mas, sobretudo, como nova atitude planetária a ser construída com e em diferentes frentes. No centro da sociedade moderna contrapõem-se duas correntes opostas, herdeiras de uma corrente de pensamento que se foi construindo no decorrer dos tempos: o antropocentrismo e o ecocentrismo. A primeira valoriza o homem de modo eucêntri-co e singular, colocando a natureza e a vida em sua constante dependência; a segunda nasce como tentativa de deslocar a basilar importância do homem, valorizando a integração eco-lógica entre tudo e todos. Nesse cenário, a interrogação que se faz recai sobre a possibilidade de uma possível harmonia entre ambas as correntes.

Cabe aqui uma observação. Desde o início da história, o ar-gumento do homem como administrador e dominador da natu-reza, seja por direito de posse, seja por superioridade evolutiva, sustentado tanto pela religião quanto pela ciência, mostrou-se extremamente frágil, por inúmeras razões, que fogem ao escopo

deste trabalho. Certamente que essa fragilidade apoia-se antes no homem em vez da natureza, dado que cabe ao primeiro as ações dirigidas contra o segundo, jamais o inverso. Classica-mente, as várias interpretações e formas de administrações da natureza pelo homem foram sujeitas tanto ao poder vigente, quanto à vaidade, quanto à ganância humana, o que ocasio-nou as distorções que hoje podemos constatar e comprovar. Nada nos indica, portanto, que não iremos incorrer novamente na mesma atitude, caso nossa visão de mundo não se altere radicalmente.

A possível harmonia entre homem e natureza deve priorizar a vida em vez das formas e das inteligências. Como já compro-vado pela ciência, a vida é uma manifestação universal e a conexão íntima e indissolúvel entre tudo e todos acontece des-de os níveis aparentes até os níveis invisíveis, formando uma grande teia da vida. E de tal modo estrutura-se essa teia que os conceitos de superioridade e de inferioridade entre espécies tornam-se frágeis e complexos.

Assim, priorizar a visão da vida, ou do biocentrismo, em toda a sua dimensão imanente e transcendente, talvez seja o caminho do meio que possibilitará a recuperação e o diálogo entre o homem e a natureza, entre a ciência e a religião. O en-tendimento de que a vida vincula a natureza e os seres é a fonte inspiradora de uma nova atitude planetária.

A harmonia decorrerá do entendimento de que todas as for-mas de vida existem dentro de seu papel inserido num âmbito cósmico. Uma ética da natureza deverá ser tratada de modo integrador entre todos os seres vivos, estabelecendo novas rela-ções cosmobioecológicas. Pensar uma religião para o homem, uma sociedade para o homem, uma ética para o homem, uma ciência para o homem, uma natureza para o homem, esse tem

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qsido o caminho trilhado até o momento. É necessário e urgen-te repensar esse caminho e afirmar uma nova atitude que não mais sobreponha ou sustente o racional sobre o irracional, a forma de vida orgânica sobre a inorgânica, o homem sobre o mundo, inovando na integração interdimensional e implan-tando a consciência da inexistência de dualismo entre o ho-mem e a natureza.

A degradação da natureza pelo homem evidencia que a crise de valores da sociedade moderna fundamenta-se também no não reconhecimento de outras esferas fora do antropológico e, sobretudo, revela um empobrecimento de entendimento e de sabedoria da realidade do cosmos. O pensamento utilitarista é fonte permanente de desarmonia e desintegração. Vale recordar as sábias palavras de Mahatma Gandhi: “A natureza pode satis-fazer todas as necessidades do homem, porém, não todas as suas ambições”. No mesmo sentido, ultimamente, tem circulado pela internet a frase de uma autora desconhecida que diz o seguinte: “Sempre falamos em deixar um planeta melhor para nossos fi-lhos, e nos esquecemos de deixar filhos melhores para o planeta”. A natureza garante as necessidades básicas do homem, mas é o próprio homem quem ameaça à natureza e a si mesmo. Portan-to, não se trata de salvar a natureza, mas, sim, de humanizar o ser humano. E a melhor maneira de refazer a ligação do homem com a natureza é através da educação do coração, despertando laços afetivos e intelectuais genuínos e sinceros, que assimilem na prática e na teoria que vivemos num Todo unificado.

Assim, se o conceito de natureza está diretamente relacio-nado às visões de mundo que foram manifestadas ao longo da história, em especial, a forma como o ser humano se percebe em relação a ela; nesse sentido, refletir sobre como ele se estabele-ceu e buscar horizontes mais amplos, inclusivos e libertadores

implica em transcender as amarras da dualidade e abrir-se a um diálogo que concilie a imanência e a transcendência, a ra-zão e a emoção, o homem e o cosmos.

Na prática implica em redefinir espaço, ambiente, educa-ção, cultura, saindo do antropocentrismo utilitarista em dire-ção a uma verdadeira relação homem-natureza-planeta. A eco-logia, mais que um ideal romântico, é uma forma de viver e de morrer voltada ao universo e aos seres movidos pela misteriosa verdade de que há um cosmos acima e dentro de nós.

E nesse tocante, Conceição do Mato Dentro pode surgir como modelo de referência conceitual e prática conciliando ecologia com desenvolvimento sustentável embasados na Ética Universal. Num mundo em que as reservas naturais estão cada dia mais escassas, a posição singular de ser e de se fazer uma ci-dade em pleno contato com a natureza, suprimindo a histórica rutura rural-urbano, fará de Conceição um exemplo de como o mito fecundante do passado brasileiro da Ilha Brasil pode ajudar a refundar um novo mundo onde visão da natureza não seja somente uma leitura a ser interpretada, mas, sim, uma di-mensão, e dimensão profunda do viver e do morrer humano.

finalizamos com as palavras da Poetisa:

“A manifestação do Sagrado funda ontolo-gicamente o mundo metafísico. Em uma gran-de extensão onde não é possível nenhum ponto de referência a hierofânia pode revelar o ponto orientador de um novo começo”.

Anna Maria Dutra de Menezes de Carvalho

(As Brasilíades)

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qCAPITULO 02

Agradecimentos

À FAPEMIG (Projeto PPM 539-2009) e ao CNPq (Projeto 302683/2008-9).

Referências

Alcantara Mourão, A.M. 1995. Os fosfatos de Membro Sampaio, Supergrupo Espinhaço, MG. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília.

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Legendas (figuras)

Figura 1. Mapa geológico do município de Conceição do Mato Dentro. Mo-dificado de DNPM (2004).

Figura 2. Foto A: Serras formadas por rochas quartzíticas na Serra do Espi-nhaço. Foto B: Rocha quartzítica tabular, no Salão de Pedras (CDMD) e a Serra da Ferrugem ao fundo. Foto C: Vista geral de CDMD. Ao fundo podem ser vistas as serras portadoras de minério de ferro (ex: Serra do Sapo).

Figura 3. Mapa de Gondwana, com a posição de América do Sul e da Serra do Espinhaço 100 milhões de anos atrás (modificado de Hasui, 2010).

Figura 4. Foto A: Águas superficiais formam vórtices que geram “panelas” nos quartzitos do Espinhaço. Foto B: Dentro dos quartzitos e das formações ferríferas é possível encontrar inclusões fluidas formadas, mormente, por águas e sais (modificado de Lima et al., 2009).

*

(1) CDTN/CNEN

(2)

(3) CPMTC/CGE/IGC-UFMG

CAPITULO 3

Referência da pesquisadora Selma machado

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MORAES, Geraldo

CAPITULO 5 MARCIO SANTOS

Como se sabe, Antonil é uma das fontes mais importantes de informações econômicas do período colonial. A sua obra, escrita na primeira década do Setecentos, é referência obrigatória para o tema.

Para Morais (1942, p. 15), a entrada partiu de Sabará e se deu em 1701.

N O T A S B I B L I O G R Á F I C A S

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q Neste parágrafo e no próximo, sigo a reconstituição desses eventos reali-zada por Morais (1942).

Deve-se lembrar que ainda se estava no período da União Ibérica (1580-1640), que terminaria alguns anos depois. Essa conjuntura, sem dúvida, facilitava os contatos demográficos e mercantis entre as províncias caste-lhanas e o Brasil. Para um estudo das conexões entre São Paulo e as provín-cias espanholas do sul e da presença de castelhanos em São Paulo durante a União Ibérica, vide Vilardaga (2008).

O primeiro ano é o do registro do testamento de Gabriel Ponce de Leon na Vila do Príncipe (Morais, 1942, p. 43). O segundo ano é inferido por Silva Leme (1942, p. 229) a partir do testamento da mãe do sertanista.

Mesmo um potentado como Fernão Dias Pais Leme pode ter tido ancestrais indígenas no passado mais distante. É o que se deduziria, se correta, da genealogia do chefe paulista apresentada por Diogo de Vasconcelos (1974, v. 1, p. 81).

A respeito dos armadores, é esclarecedora a observação de Monteiro (1999, p. 90): “Esta continuidade da empresa do sertão, por assim dizer, se mostra em diferentes detalhes mencionados nos relatos. Assim, por exemplo, res-pondendo ao chamado de seu cunhado, Bartolomeu Bueno ‘se armou’ para ir ao sertão, o que significava mais do que juntar espingardas, pólvora e chumbo: refere-se à ‘armação’, termo corrente na segunda metade do sécu-lo XVII para descrever a organização das expedições de apresamento, onde um ‘armador’ fornecia materiais e mesmo gente para o empreendimento, esperando em retorno metade do lucro da expedição”.

Daí os topônimos Passa-Dois, Passa-Dez, Passa-Vinte, Passa-Trinta (Abreu, 1954, p. 179).

Norman Thrower (1972, p. 64), em obra que traça um panorama da carto-grafia ao longo da história, escreve: “De fato, os dois assuntos [exploração geográfica e a sua representação cartográfica] estão tão proximamente re-lacionados que se pode dizer que um lugar não está realmente descoberto até que tenha sido mapeado de forma a que possa ser atingido novamente”. Tradução livre.

Trata-se dos jesuítas Diogo Soares, português, e Domingos Capacci, ita-liano, que, nas décadas de 30 e 40 do Setecentos, realizaram o primeiro levantamento cartográfico sistemático do território colonial, representado por pelo menos 37 cartas de diversas regiões brasileiras. O trabalho dos chamados padres matemáticos foi contratado pela Coroa portuguesa.

Thrower (1972, p. 81) identifica os três tipos de mapa definidos pela clas-sificação tradicional: (a) de escala pequena ou geográfica; (b) de escala média ou intermediária; e (c) de escala grande ou topográfica. Essa última classe consistiria na “representação sistemática de uma pequena parte da

superfície terrestre, mostrando características físicas (relevo, hidrografia) e características culturais (estradas, fronteiras administrativas)”. “Esses mapas em escala grande”, continua o autor, “apresentam tanto as caracte-rísticas horizontais quanto as verticais numa forma mensurável”.

“Diario da jornada que fes o exm°. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janei-ro athé a cide. de São Paulo, e desta athé as Minas, anno de 1717”, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 3, p. 295-316, 1939.

[Diário da jornada que fez o ouvidor Caetano da Costa Matoso para as Minas Gerais]. Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fe-vereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. v. I, p. 882-897.

Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Eduardo de Castro Almeida, caixa 19, doc 3529.

Anônimo. História da Vila do Príncipe e do modo de lavar os diamantes e de extrair o cascalho. Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos pri-meiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pi-nheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. v. I, p. 882-897. p. 849.

NOTAS CAPITULO05 MARCIO SANTOS FINAL

Para Morais (1942, p. 15), a entrada partiu de Sabará e se deu em 1701.

Neste parágrafo e no próximo sigo a reconstituição desses eventos realiza-da por Morais (1942).

Deve-se lembrar que ainda se estava no período da União Ibérica (1580-1640), que terminaria alguns anos depois. Essa conjuntura sem dúvida fa-cilitava os contatos demográficos e mercantis entre as províncias castelha-nas e o Brasil. Para um estudo das conexões entre São Paulo e as províncias espanholas do sul e da presença de castelhanos em São Paulo durante a

União Ibérica, vide Vilardaga (2008).

O primeiro ano é o do registro do testamento de Gabriel Ponce de Leon na Vila do Príncipe (Morais, 1942, p. 43). O segundo ano é inferido por Silva Leme (1942, p. 229) a partir do testamento da mãe do sertanista.

Mesmo um potentado como Fernão Dias Pais Leme pode ter tido ancestrais indígenas no passado mais distante. É o que se deduziria, se correta, da genealogia do chefe paulista apresentada por Diogo de Vasconcelos (1974, v. 1, p. 81).

A respeito dos armadores, é esclarecedora a observação de Monteiro (1999, p. 90): “Esta continuidade da empresa do sertão, por assim dizer, se mostra em diferentes detalhes mencionados nos relatos. Assim, por exemplo, res-pondendo ao chamado de seu cunhado, Bartolomeu Bueno ‘se armou’ para ir ao sertão, o que significava mais do que juntar espingardas, pólvora e chumbo: refere-se à ‘armação’, termo corrente na segunda metade do sécu-lo XVII para descrever a organização das expedições de apresamento, onde um ‘armador’ fornecia materiais e mesmo gente para o empreendimento, esperando em retorno metade do lucro da expedição”.

Daí os topônimos Passa-Dois, Passa-Dez, Passa-Vinte, Passa-Trinta (Abreu, 1954, p. 179).

Norman Thrower (1972, p. 64), em obra que traça um panorama da carto-grafia ao longo da história, escreve: “De fato, os dois assuntos [exploração geográfica e a sua representação cartográfica] estão tão proximamente re-lacionados que pode-se dizer que um lugar não está realmente descoberto até que tenha sido mapeado de forma a que possa ser atingido novamente”. Tradução livre.

Trata-se dos jesuítas Diogo Soares, português, e Domingos Capacci, ita-liano, que, nas décadas de 30 e 40 do Setecentos, realizaram o primeiro levantamento cartográfico sistemático do território colonial, representado por pelo menos 37 cartas de diversas regiões brasileiras. O trabalho dos chamados padres matemáticos foi contratado pela Coroa portuguesa.

Thrower (1972, p. 81) identifica os três tipos de mapa definidos pela clas-sificação tradicional: (a) de escala pequena ou geográfica; (b) de escala média ou intermediária; e (c) de escala grande ou topográfica. Essa última classe consistiria na “representação sistemática de uma pequena parte da superfície terrestre, mostrando características físicas (relevo, hidrografia) e características culturais (estradas, fronteiras administrativas)”. “Esses mapas em escala grande”, continua o autor, “apresentam tanto as caracte-rísticas horizontais quanto as verticais numa forma mensurável”.

“Diario da jornada que fes o exm°. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janei-ro athé a cide. de São Paulo, e desta athé as Minas anno de 1717”, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n.

3, p. 295-316, 1939.

[Diário da jornada que fez o ouvidor Caetano da Costa Matoso para as Minas Gerais]. Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fe-vereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. v. I, p. 882-897.

Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Eduardo de Castro Almeida, caixa 19, do

CAPITULO 14

SWIMME, O universo é um dragão verde, p. 9-11.

“Se contemplarmos a Vida ou a Natureza, em todas as suas manifestações, observamos que ela se corporiza ou exterioriza sob formas diferentes, em graus de diferente qualidade, distanciados talvez pela acção do Tempo so-bre o Acaso, talvez sobre uma força vagamente dirigida para um vago Fim inatingível...A verdade é que nós vemos uma pedra, mais adiante, uma ár-vore e depois um homem... Percebe-se, em todas estas formas da Natureza, uma ordem ascendente (querida ou casual) que vai da pedra ao homem. A pedra parece tender para a árvore, e a árvore para o homem./ O mineral preparou o advento do vegetal e o vegetal preparou o do homem, por um processo indirecto, isto é, por meio de seres animais inferiores./ A pedra, a árvore, o homem, são três modos de ser da Natureza (reino mineral, vegetal, animal) “anunciando um esforço”, obedecendo a circunstâncias casuais ou subordinando-as à sua vontade, do simples e imperfeito para o mais complexo e perfeito./ Mas esse “esforço” findará no homem? Não. Para além dele, a

Natureza já adquiriu uma forma de ser superior a ele – “a forma espiri-tual” (PASCOAIS, Arte de ser português, 1991, p. 23). (aqui foi colocada a continuação do texto em referência)

”Os homens especulam há muito sobre a vida em outros mundos. Anaxá-goras, Demócrito, Aristóteles, Epicuro, Filolaus e Plutarco acalentaram a ideia [sic] de que a Lua e os planetas eram habitados, e o mesmo fizeram Lucrécio, Lambert, Locke e Kant. Um discípulo de Demétrio, Metrodoro de Quios, refletiu que “seria muito estranho se uma única espiga de milho crescesse numa grande planície ou se houvesse apenas um mundo infinito”. Ideias [sic] semelhantes foram expressas pelo filósofo chinês do século XIII, Teng Um, que escreveu que “numa árvore há muitos frutos, e num reino, muitas pessoas. Seria ilógico supor que além do céu e da terra que pode-mos ver não existam outros céus e outras terras “(FERRYS, O céu da mente, 1993, p.14).

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q (CHEDIAK, 2004, p.82).

(LEFF, apud FLORIANI, Dimas. “Saber ambiental para a sustentabilida-de”. Disponível em: www.angelfire.com/sk/holgonsi/saerambientalleff.pdf ---Acesso em: 10 jan. 2010). Cf. PELIZZOLI, 2004, p.89.

“A filosofia da natureza abarca uma temática muito ampla, já que se estende desde o átomo até o universo, incluindo os viventes e o homem, enquanto ser natural. Pergunta-se, aliás, pelo significado da natureza e pelo seu fundamento radical. Dessa forma, constitui a ponte lógica entre o conhecimento ordinário, as ciências e a metafísica” (ARTIGAS, Filosofia da Natureza, 2005, p. 27).

De modo sucinto, “ética” refere-se a um comportamento humano Ideal; “ética ambiental” refere-se ao comportamento humano em relação à na-tureza; “educar”, segundo Sri Sathya Sai Baba, é formar o bom caráter do homem. Dentro dessas questões, a tarefa de construir uma ética ambiental universal no plano da educação que transcenda as fronteiras do tempo e do espaço é o grande desafio deste milênio. A posição expressa pelo Progra-ma das Nações Unidas para o Meio Ambiente ligada à Unesco e direcionada à Educação representa um aspecto frutífero nessas relações: CONNEXION – Bulletin de l’education relative a l’environnement. Unesco-PNUE – Vol. XVI, n. 2, jun./1991.

Em ....Conceição do Mato Dentro foi....

“A palavra physis indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o de-sabrochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata-se, pois, de um conceito que nada tem de es-tático, que se caracteriza por uma dinamicidade profunda, genética...Neste sentido, a physis encontra em si mesma a sua gênese: ela é arké, princípio de tudo aquilo que vem a ser” ( BORNHEIM, 1993, p.12).

Esta visão dinâmica da physis é também adotada por Heisenberg (Física e Filosofia) como uma forma de energia dentro do seu monismo, que pensa a matéria como algo dinâmico num constante vir-a-ser.

( HADOT, O véu de Ísis, 2006, p.37-38).

“...a realidade é uma rica tapeçaria de níveis entrelaçados, abrangendo desde a matéria até o corpo, até a mente, até a alma, até o espírito. Cada um dos níveis mais elevados “envolve” ou “abarca” dimensões menores como se fosse uma série de ninhos, ninhos dentro de ninhos, dentro de ni-nhos do Ser” (WILBER, A união da alma e dos sentidos, p.13).

Ver o Capítulo: O Desafio do Mundo das Imagens: Desbravando Territórios

em Busca do Mito.

Há dois tipos de natureza, segundo a Filosofia da Natureza: a Natura Naturans e a Natura Naturata. Nos textos clássicos, quando se escreve na-tureza com “N” maiúsculo ela se refere à primeira concepção de natureza a Natura Naturans, de cariz divino. Vale ressaltar que o Pe. Aires de Casal na carta de apresentação da sua obra Corografia Brasilica ao Rei de Por-tugal, escreve a palavra com maiúsculo. Ver o texto: A Antiguidade de Solo Brasileiro e o Mito da Ilha Brasil.

( SPROUL, Mitos primais, 1992,p.368).

Os Incas vinculam a sua existência dentro de um contexto cosmogónico de tal modo que reproduziram arquitetonicamente a Via Láctea no Vale Sa-grado dos Incas, chamada por eles de Mayu, o Rio Celestial, um importante eixo de orientação espiritual ((SALAZAR; SALAZAR, 1996, p.52).

Definição guarani sobre natureza feito pelo Cacique Kaká Werá Jecupé.

(TAIMNI, O homem, deus e o universo, p. 4-5).

(FERNANDES, Ser humano, p. 82).

(MATURANA; VARELA, A árvore do conhecimento, p. 22-28).

(TAIMNI, op. cit., p. 184).

(CAPRA, A teia da vida., p. 145)

(BONDER. A dieta do rabino, 1989, p. 16 e 17). Sobre a capacidade de “dar e receber” é relevante considerar a importância do novo conceito em-presarial trazido por Muhammad Yunus, chamado de “o banqueiro dos po-bres”, ganhador do Prêmio Nobel da Paz que inovou ao criar o conceito de empresa social desconectada do lucro: “Eu vi como o conceito de empresa poderia ser reformulado simplesmente ao desconectar os investidores da expectativa de retorno financeiro sobre seus investimentos. Foi assim que nasceu o conceito de empresa social” (YUNUS. Um mundo sem pobreza, 2008, p. 115). Cabe lembrar de Dee Hock um empreendedor radical que criou o conceito de “empresa caórdica (mistura de caos e ordem)” que foca as relações entre as pessoas ao invés do lucro: “A organização do futuro será a personificação da comunidade baseada em propósito compartilha-do, falando às mais altas aspirações das pessoas (HOCK. Nascimento da era caórdica, 2000, p. 18). Também o Budismo tibetano oferece seu contributo na mesma linha da Cabala. Há muitos anos o lider espiritual dos tibeta-nos, o Dalai Lama, estabelece diálogos com vários empresários ao redor do mundo colocando a filosofia budista para dialogar com a economia e a ecologia. Um belo exemplo desse esforço está em Lama Padma Samten: “ ...a conexão entre caminho espiritual, atividade econômica e proteção

ambiental. Sem o eixo espiritual, acreditamos que o acesso aos bens de consumo e ao poder é a única fonte de felicidade (...). Acredito que a espiritualidade é o caminho para uma relação melhor com nós mesmos e com os outros. A espiritualidade é a base para uma visão ecológica melhor, uma visão de respeito pelos outros seres” (SAMTEN. O lama e o economista, 2004, p. 114). Não poderíamos deixar de registrar alguns exemplos notáveis de organizações que já instauraram um novo padrão de ética, de ecologia e de humanização. Na Índia, as Organizações Satya Sai proclamam que a educação deve formar o bom caráter do homem, e criaram o “Programa de Educação em Valores Humanos”; no Brasil, a empresa Natura há muitos anos criou um nicho de mercado sustentável e ecológico; em São Paulo, o empresário Oscar Motomura comanda, juntamente com Deise Fukumati a Amana-Key, empresa líder em gestão ética nas empresas; em Portugal, na pequena cidade de Mação desenvolve-se um projeto de Museu original em que a força está centrada nas pessoas da comunidade acadêmica e leiga, transversalizando o saber e os costumes; a notável comunidade escocesa de Findhorn que instaurou uma prática multidimensional de contato com a natureza e os seres humanos.

NOTAS CAPITULO 14

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“Muita gente vem de longe perguntando sobre o tal pastel de angu de Conceição do Mato Dentro. Na realidade, eu nunca tra-balhei como cozinheira, e sim, como professora. Eu dava aula de Educação Física no grupo escolar, mas a receita do pastel de angu foi passada pela minha mãe. Naquela época o angu era uma comi-da mais comum entre os escravos. Na verdade, minha mãe pegou essa receita da escrava que tomava conta dela; o angu era muito fácil, visto que fubá não era uma coisa muito valorosa naquela épo-ca. E o recheio do pastel era feito com as sobras das refeições dos fazendeiros. Assim nasceu o pastel de angu. Foi passando de geração em geração, até chegar aos dias de hoje, referência gastronômica no mundo inteiro“Muita gente vem de longe perguntando sobre o tal pastel de angu de Conceição do Mato Dentro. Na realidade, eu nunca trabalhei como cozinheira, e sim, como professora. Eu dava aula de Educação Física no grupo escolar, mas a receita do pastel de angu foi passada pela minha mãe. Naquela época o angu era uma comida mais comum entre os escravos. Na verdade, minha mãe pe-gou essa receita da escrava que tomava conta dela; o angu era mui-to fácil, visto que fubá não era uma coisa muito valorosa naquela época. E o recheio do pastel era feito com as sobras das refeições dos fazendeiros. Assim nasceu o pastel de angu. Foi passando de geração em geração, até chegar aos dias de hoje, referência gastronômica no mundo inteiro!

A memor ia de um povo e seu legado pa ra o fu tu ro