Histórias da Índia - Edições SM Histórias da Índia Eu n i c E d E So u z a unidade territorial...

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Histórias da Índia Eunice de Souza Tradução Isa Mesquita Ilustrações Maurício Negro Temas Gratidão • Desprendimento • Celebração • Perspicácia • Sabedoria Justiça • Autenticidade • Veracidade • Merecimento • Determinação GUIA DE LEITURA PARA O PROFESSOR As dez histórias presentes em Histórias da Índia têm pro- veniências distintas e representam bem a diversidade cul- tural do país. Fazem parte de repertórios regionais e tradi- cionais cujas origens muitas vezes não podem ser traçadas, devido à antiguidade de suas fontes e também por serem, em sua maioria, contos típicos da tradição oral. As narrativas tratam dos mitos de criação (“O dia em que o Sol se recusou a brilhar”,“Como os homens muda- ram” e “Como surgiu a cócega”), apresentam o tema da har- monia permanente no mundo (“O falso faquir”,“A filha do sábio”,“A galinha roubada” e “O agente de casamento e o leopardo”) e trazem episódios que valorizam a sagacidade (“Gopal e o nababo”, “Os príncipes transformados em pedra” e “Um garoto cego faz um pedido”). Assim categorizadas – e situadas para além de qualquer categorização, por possibilitarem que cada leitor vivencie seu conteúdo de forma particular –, as histórias constituem rico material para mediar nosso contato com a cultura indiana e, ao mesmo tempo, um ponto de referência para nos vol- tarmos, com nova perspectiva, para nossa própria cultura e tradições narrativas. A AUTORA Eunice de Souza nasceu em Poona, Índia. Doutora pela Universidade de Bombaim e mestre em Literatura Inglesa pela Universidade Marquette, Estados Unidos, lecionou no St. Xavier’s College, Bombaim, por dez anos. Publicou os livros de poesia Fix (1979), Women in Dutch painting (1988), Ways of belonging (1990) e Selected and new poems (1994); organizou com Adil Jussawalla antologia de prosa indiana (em inglês); publicou Talking poets, livro de entrevistas com poetas indianos; organizou a antologia Nine Indian women poets; e escreveu diversos livros para crianças. Poemas seus têm sido incluídos em antologias em vários países. O ILUSTRADOR Maurício Negro nasceu em 1968, em São Paulo, capital. Designer gráfico, ilustrador e escritor, formado em Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), ilustrou mais de uma centena de livros, muitos dos quais premiados, e participou de várias exposições e catálogos, no Brasil e no exterior. É autor, entre outros títulos, de Mundo cão (São Paulo: Global, 1999), Balaio de gato (São Paulo: Global, 2000) e Quem não gosta de fruta é xarope (São Paulo: Global, 2006), e integra o conselho da Sociedade dos Ilustradores do Brasil (SIB). 64 páginas APRESENTAÇÃO 2200000142201

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Histórias da ÍndiaEunice de Souza

Tradução Isa MesquitaIlustrações Maurício NegroTemas Gratidão•Desprendimento•Celebração•Perspicácia•Sabedoria Justiça•Autenticidade•Veracidade•Merecimento•Determinação

Guia de leitura

para o professor

AsdezhistóriaspresentesemHistórias da Índiatêmpro-veniências distintas e representam bem a diversidade cul-turaldopaís.Fazempartederepertóriosregionaisetradi-cionaiscujasorigensmuitasvezesnãopodemsertraçadas,devidoàantiguidadedesuas fontese tambémporserem,emsuamaioria,contostípicosdatradiçãooral.

As narrativas tratam dos mitos de criação (“O dia emqueoSolserecusouabrilhar”,“Comooshomensmuda-ram”e“Comosurgiuacócega”),apresentamotemadahar-moniapermanentenomundo(“Ofalsofaquir”,“Afilhadosábio”,“Agalinha roubada”e“Oagentedecasamentoeoleopardo”)etrazemepisódiosquevalorizamasagacidade (“Gopal e o nababo”, “Os príncipes transformados em pedra”e“Umgarotocegofazumpedido”).

Assimcategorizadas– e situadasparaalémdequalquercategorização,porpossibilitaremquecadaleitorvivencieseuconteúdodeformaparticular–,ashistóriasconstituemricomaterial para mediar nosso contato com a cultura indianae,aomesmotempo,umpontode referênciaparanosvol-tarmos,comnovaperspectiva,paranossaprópriaculturaetradiçõesnarrativas.

A AutorA Eunice de Souza nasceu em Poona, Índia. Doutora pela Universidade de Bombaim e mestre em Literatura Inglesa pela Universidade Marquette, Estados Unidos, lecionou no St. Xavier’s College, Bombaim, por dez anos. Publicou os livros de poesia Fix (1979), Women in Dutch painting (1988), Ways of belonging (1990) e Selected and new poems (1994); organizou com Adil Jussawalla antologia de prosa indiana (em inglês); publicou Talking poets, livro de entrevistascom poetas indianos; organizou a antologiaNine Indian women poets; e escreveu diversos livros para crianças. Poemas seus têm sido incluídos em antologias em vários países.

o ilustrAdor Maurício Negro nasceu em 1968, em São Paulo, capital. Designer gráfico, ilustrador e escritor, formado em Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), ilustrou mais de uma centena de livros, muitos dos quais premiados, e participou de várias exposições e catálogos, no Brasil e no exterior. É autor, entre outros títulos, de Mundo cão (São Paulo: Global, 1999), Balaio de gato (São Paulo: Global, 2000) e Quem não gosta de fruta é xarope (São Paulo: Global, 2006), e integra o conselho da Sociedade dos Ilustradores do Brasil (SIB).

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Panorama histórico da civilização indiana

Operíodomaisantigodacivilizaçãoindianadequetemosno-tícia remonta a um numeroso conjunto de ruínas localizadas naregiãonoroestedopaís, escombrosde cidadesquepermaneceram habitadasatéaproximadamenteoséculoXVa.C.Nãoháinformaçõessobreaorigemdasociedadequeconstruiuessascidades,conhecidascomocivilizaçãodovaledorioIndo,masestima-sequeelatenhaseestabelecidonaquelaregiãoporcercadedoismilênios.SóépossívelobterinformaçõessobreaculturadovaledoIndopormeiodasruí-nasedosobjetosaliencontrados,nosquaisfigurammuitastabuletascomsímbolosqueatéhojenãoforamcoerentementedecifrados.

Outra importante cultura que constituiu aAntiguidade in-dianaéacivilizaçãovédica.Elatambémfloresceunoespaçogeo-gráficodovaledoIndoeseformouprovavelmenteapartirdointercâmbioculturalfeitoentreospovosaboríginesindianoseosnômadesprovenientesdaregiãodoCáucaso.Acivilizaçãovédi-casurgiuemtornodoséculoXVa.C.epermaneceufortementeinstituídaatécercadeVIIIa.C.,semnuncadesaparecerporcom-pleto,poissemanteve,aolongodosmilênios,comoumaespé-ciedepráticaortodoxadohinduísmo.Osbrâmanes,sacerdotesdessacultura,propagavamaexecuçãoderituaiscomoelemen-tocentralnocotidianodessasociedade.Enocernedosrituais estavamascoleçõesdetextoscompostosemlínguasânscrita,emgrandepartepoéticos,chamadosdeVeda,quesignifica“sabedo-ria”.Essasobras,preservadasemmanuscritosenatradiçãooral,sãotratadascomgrandereverênciapeloshinduístas.

NoséculoVIIIa.C.,começaramaseconsolidarosvaloresquecaracterizamohinduísmo,comosconceitosdetransmigraçãodaalma,carmaelibertaçãodosciclosdereencarnação.Nesseperío-do,ummovimentoculturalseexpandiupelonortedoterritórioindiano,nosarredoresdorioGanges,edifundiuasprimeirasfor-mulaçõeshistoricamentedocumentadasarespeitodaioga.Dessemovimentoculturaltambémsurgiramosprincípiosdobudismoedojainismo,querenegamatradiçãotextualvédicae,poressarazão,nãosãoconsideradosreligiõeshinduístas,aindaquesejamindianosnaorigem.Nesseperíodo,asescolasdepensamentopas-saramadifundiraspráticasmeditativas,asreflexõessobreainter-dependênciadafisiologiaedaconsciênciaeasconcepçõesde“mi-crocosmo”e“macrocosmo”,queveemoserhumanoeouniversocomoespelhosumdooutro.

NoséculoIIIa.C.,comumreiconhecidocomoAshoka,quegovernouentre270e232a.C.,ocorreupelaprimeiravezaunifi-caçãodosváriosreinosqueexistiamautonomamentenoterritó-rioindiano.Costuma-sedizerquefoinesseperíodoqueaÍndiaassumiuumafeiçãoterritorialparecidacomaquetemhoje.Essa

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sistema socialO sistema social da Índia é bastante

complexo, pois o país é composto

de muitas etnias, culturas regionais

e história milenar de influência

estrangeira. Chama a atenção o

princípio de organização social

conhecido como sistema de castas. A

palavra “casta” remete, em português,

à ideia de pureza e, por essa razão,

os estudiosos não a consideram boa

tradução para o termo sânscrito que

dá nome a esse sistema social. A

sociedade é dividida em grupos sociais

que são chamados, em sânscrito, de

varna, que significa “cor”, devido tanto

a elementos étnicos envolvidos na

história social da Índia como ao fato

de que cada um possui uma cor que

o simboliza. São eles os brâmanes,

os xátrias, os vaixás e os sudras. Os

brâmanes são os encarregados da

sabedoria, sacerdotal e filosófica.

Os xátrias são responsáveis pela

manutenção e pela defesa do território.

Os vaixás ocupam-se da produção

mercantil e agropastoril. E os sudras

realizam os trabalhos pesados e

considerados indignos pelos demais,

além de artesanato e produção manual.

Na história da Índia antiga,

percebe-se certa mobilidade entre

as funções sociais, tendo havido,

por exemplo, dinastias de reis

provenientes do grupo dos sudras. A

Constituição indiana, que data de sua

independência do domínio inglês,

proíbe qualquer tipo de discriminação

embasada nesse antigo sistema de

divisões sociais.

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unidadeterritorial foimantidaapenasatéofinaldadinastiaàqualoreiAshokapertencia,chamadadedinastiaMaurya,cujofimsedeuporvoltade183a.C.

Apartirdesseperíodo,acivilizaçãoindianapassouporgran-desebuliçõesculturais,comadifusãodobudismoeapropaga-çãodasformaspopularesdohinduísmo,caracteristicamentede-vocionais.Noiníciodaeracristã,ocultodevocionalaosdeuses,sobofundamentodedoutrinasbastantecomplexas,expandiu-se intensamenteefigurounasartesliteráriasevisuaiscomnumero-sasrepresentaçõesdeumigualmentenumerosopanteão.

Noprimeiromilêniodaeracristã,ohinduísmoseconsolidoucomoamploconjuntodepráticasedoutrinasreligiosas,unifica-dopelobramanismoediversificadopeloselementosdasculturasregionais, as quais mantiveram muitas de suas peculiaridades,tantonoscostumes,nalínguaenamúsicacomoemoutrasma-nifestaçõesculturais.

NoiníciodoséculoXIIId.C.,apósséculosdepresençaislâ-micanaÍndia,assistiu-seaumverdadeirodomíniomuçulmano,quepassou,ainfluenciarfortementeapolítica,aeconomiaeaspráticassociais.NoséculoXVIII,apresençabritânicasucedeuoimpériomuçulmano,levandoaÍndia,dessavez,aoestatutodecolôniaporcercadedoisséculos.

NoiníciodoséculoXX,asdemandaspelaindependênciacon-seguiramampliaropoderlocaldiantedoimpériobritânico,sendopropagadasentreapopulaçãocomoumaquestãourgente.Nalutainternaenadivulgaçãointernacionaldacausaindiana,Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948) destacou-se como a perso-nalidade mais influente no processo pacífico de independên-cia, ecoando, em sua voz, os anseios coletivos de milhões depessoas que se viam sem condições mínimas de subsistência. Gandhiassumiupapeldeliderançacomumposicionamentoéticoembasadoemvaloresantigosdohinduísmo,concentrandoemsimesmoeemseudiscursoosideaisdaahimsa e do satya-graha – “não violência” e “veracidade”, respectivamente. Os ideais de Gandhipropunhamumaformapacíficaderesistência,pormeiodadesobediênciacivil,contraoautoritarismoimperial.

Em11dejunhode1947,aÍndialibertou-sedodomínioinglêse,em15deagostodomesmoano,ocorreuumadivisãoterrito-rial,estabelecendo limitesde fronteiraentre ÍndiaePaquistão,maiscomofrutodoconfrontodoquecomosoluçãoparaosse-cularesconflitosvividosentreshinduístasemuçulmanos.DesdeentãoaÍndiaéumademocraciaeumarepúblicalivre.

o universal e o regional na civilização indiana

Aimportânciadadaaosânscritofezcomquesetornasseumalíngua de cultura, isto é, que ultrapassa as fronteiras regionais

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dasvariadastradiçõespresentesnacivilizaçãoindiana.Emmeioàsmuitastradiçõesquesedesenvolveramparalelamente,osânscritotornou-sealínguadecomposiçãodaquelesquepretendiamtersuasobrascompreendidasalémdoslimitesdesualocalidadedeorigem.

Há,comisso,namilenarhistóriada Índia,duas tendênciasculturais opostas, mas que sempre se estimularam reciproca-mente: uma, de origem sânscrita, universalizadora; a outra, representadapeloconjuntodascentenasdelínguasedialetosin-dianos,decaráterregional.

O conjunto das dez narrativas de Histórias da Índia repre-sentaumaamostrabastanteexpressivadapluralidaderegionalda cultura indiana. Cada uma delas provém de uma cultura eregiãoeremete,dessaforma,atradiçõesespecíficas.Apenas“Afilhadosábio”derivadeumaobracompostaemlínguasânscri-ta, conhecida como Panchatantra.As demais nos fazem sentirquantocadaregião,mesmoqueinterligadaàsdemaisáreasdoterritórionacional,possuiumatradiçãoespecífica,queserevelanoscontospassadosdepaisparafilhos,naculinária,naspráticasreligiosas,nasfestaspopulares,namúsica,nadançaetc.

mitologia, contos PoPulares e sabedoria

NaÍndiaantiga,amitologiaeoconhecimentoqueentende-moshojecomocientíficoeramtratadoscomreverênciaerespei-to.Sabemosqueopovoindianodesenvolveu,alémdoextensorepertório de temas mitológicos, vasto conhecimento das prá-ticas médicas (incluindo pequenas cirurgias), das ciências as-trais,dasdescriçõeslinguísticas,bemcomodasartesdramáticas,musicaiseliterárias.Nota-se,comisso,quemito,ciênciaeartenãosãoelementosquenecessariamenteseopõememumaso-ciedade.NocasodaÍndia,essasvárias formasdeconstruçãoetransmissãodeconhecimentoforamsefortalecendodemaneirarecíprocaduranteséculos.

Poressarazão,pode-sebuscarsabedorianashistóriasnãosim-plesmentecomodadocientíficooucomoorientação“moral”queprocuraencerrarempoucaspalavras“oqueoautorqueriadizer”,mascomoumpontodepartidaparareflexõessobreavida,amorte,oamor–emsuma,sobreosignificadodaexistênciahumana.

Ashistórias“OdiaemqueoSolserecusouabrilhar”,“Comooshomensmudaram”e“Comosurgiuacócega”possuemestrutu-rasmitológicassemelhantes.Elasdescrevemaorigemdefatosoufenômenosnaturaiscomosquaisestamosacostumados–ocantodogaloparaonascerdoSol,aausênciaderabonocorpohumanoeasensaçãofísicadacócega.Nessasnarrativas,nãohápreocupaçãoapenascomadescriçãodomundonatural,mas,sobretudo,comossentimentosdiantedonascimentododia,docorpohumanoedeumaexperiênciatátil.

mitoloGia A Índia, como toda cultura tradicional,

sempre fez, e ainda faz, intenso uso

das histórias como fonte de sabedoria,

não como conhecimento técnico,

mas como forma de instrução para a

relação do ser humano com o mundo

natural e com seus semelhantes.

Por essa razão, as narrativas que

classificamos como mitos e contos

populares são tratadas com grande

respeito pelos indianos. A oposição

que o senso comum costuma fazer

entre “mito” e “verdade”, nesse

sentido, é somente uma percepção

pouco aprofundada da função da

atividade narrativa. O mito não se

propõe como uma “verdade” na

mesma categoria que os conceitos

científicos; ele trata dos sentimentos,

das relações dinâmicas entre o

sujeito, que percebe, e o mundo,

que é percebido. A ciência tem

como meta aproximar-se o máximo

possível da descrição objetiva do

mundo. Em outras palavras, ciência

e mito estabelecem suas respectivas

sabedorias de modo particular.

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a virtude Pessoal e a lei universal

É uma atribuição bastante comum das narrativas indianas oensinamento de como o indivíduo deve comportar-se diante davida social. Segundo muitas vertentes filosóficas da Índia antiga,avirtudepessoalealeiuniversaldependemumadaoutra,esemumaperfeitaharmoniaentreasduasasociedadeentraemdeclí-nio.Poressa razão,cadaumdeveconhecera simesmoevincu-lar-se com muita naturalidade a seu lugar no mundo, social ereligiosamente. Existe uma palavra, em sânscrito, que sintetizaessa ideia: dharma. O dharma é, ao mesmo tempo, virtude pes- soaleleiuniversal;graçasaele,osciclosbiológicos(denascimento,desenvolvimento,maturidadeedeclínio)eoscósmicosenaturais(sucessãodasestaçõesdoano,osmovimentosplanetários,arenova-çãodaságuasetc.)acontecemdemaneiraharmoniosa.Nessesenti-do,oindivíduo,quandoexecutavirtuosamenteseupapelemmeioàdinâmicadasociedade,estáagindodeacordocomodharma.

Ashistórias“Ofalsofaquir”,“Agalinharoubada”e“Oagentedecasamentoeoleopardo”exemplificambemaharmoniadasucessãodos fatosque levaospersonagensaexperimentarodharma.Em“O falso faquir”e“Agalinha roubada”, aspessoasqueagiramdeformanãovirtuosarespondempelasconsequênciasdeseusatos.Nahistória“Oagentedecasamentoeoleopardo”,oagentecontinuoucumprindosuafunção,unindomaisumcasal,atémesmoquandopretendialivrar-sedeumanimalquelhedavamedo.

O ensinamento do dharma almeja, em última instância,mostrarparaaspessoasqueoindivíduoépartedeumtodoeque, quanto mais ele se aproxima desse ideal, mais natural setornaavirtudeemsuavida.Trata-sedeumaposturaativadeconfiança em relação à vida e ao mundo, nunca abrindo mãodaaçãoesemprelevandoemcontaqueestadeveserrealizadasegundoprincípiosmaisamplosdoqueointeresseindividual.

Um caso à parte é o da história “A filha do sábio”, em queameninaqueumdia já foiratoabnegaocasamentocomoSol,comanuvem,comoventoecomamontanha,para,aofinaldessepercurso,vernoratooesposoideal.Nessanarrativa,estãoembutidasduasconcepçõesimportantes:aspessoasdevemmanter-sefiéisaoslugaresqueocupamnomundo,eamaterialidadedosobjetosquedominamossentidosdeveserultrapassadaparaoserhumanoal-cançar a própria essência. Os quatro pretendentes são feitos dosquatro elementos mais densos da constituição da matéria: fogo,água,areterra.Elessãosubstânciadetodocorpomaterialeobjetosprimordiaisquepodemescravizarossentidos.Negarocasamentocomosquatropretendentessugereumpercursodesuperaçãodossentidoseumabuscaporestadoexistencialmaiselevado,oqualaiogaeaalquimiaindiana(rasayana)tinhamcomograndemeta.

PanchatantraO Panchatantra consiste num repertório

inestimável de fábulas que foram

transmitidas aos povos europeus por

meio da cultura árabe. Em sua origem,

a coleção de histórias do Panchatantra

tinha como função o ensino da

conduta social àqueles destinados a se

ocupar dos assuntos de Estado, fossem

reis, príncipes ou administradores.

Os enredos dessas fábulas trazem a

personificação de animais que, em

seus atos, ilustram situações vividas

nas relações humanas. Seus conteúdos

remetem ao século II a.C., mas a forma

de composição que foi preservada é

posterior e data da metade do primeiro

milênio da era cristã.

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desafios na literatura oral e nos contos PoPulares

Ébastantecomumnaliteraturapopularapráticadodesafio,emquealguéméincitadoadarrespostasrápidassobredeterminadotema. Nesse exercício poético, os autores populares devem serligeiros, tanto na composição, apelando ao improviso, como emsuaelocução,rimandoeversificandocommaestria.Na literaturaoral,cadaperformanceequivaleaummomentocriativoúnico,vistoqueaquiloqueocontadorsabedecorsãofórmulasquepodemserdesenvolvidas e reformuladas e não textos fechados. O cantadoradaptaashistóriasdeseurepertórioàscircunstânciasdomomentoemqueestánarrandoouversificando.

Existeaíumparalelismo:osdesafiosseapresentamaosperso-nagensdamesmaformaqueaparecemaospoetasdaliteraturaoral,quandodoisdelesseencontram.Navida,osrecitadoresprecisammostrarsuacompetênciaemsuperarosrequintesdecomposiçãode seuoponente.Nashistórias,ospersonagensdevemresponderrapidamenteàsquestõescomquedeparameutilizaralinguagemdemaneiraengenhosaparacolherbonsfrutosdascircunstânciasemqueseencontram.

Ashistórias“Gopaleonababo”,“Ospríncipestransformadosempedra”e“Umgarotocegofazumpedido”trazemsituaçõesemque os personagens devem ser sagazes. Em“Gopal e o nababo”essa virtude provém da simplicidade de um barbeiro. Em“Ospríncipestransformadosempedra”faltasagacidadeaospríncipes,massobraaorei,quesedispõeaensiná-los.Eem“Umgarotocegofazumpedido”omeninoprocurasatisfazer,comumúnicopedido,todosseusdesejosenecessidades.Ashistóriasdemonstramousobemarticuladodaexpressãoverbalcomopensamentorápido,improvisado,maspreciso,talcomofaziam,eaindafazem,seusnarradores.

MahabharataO Mahabharata é uma das obras mais

conhecidas da literatura sânscrita.

Os estudiosos europeus o classificam

como literatura épica, e a tradição

indiana como itihasa. O termo itihasa

significa “assim (iti) de fato (ha)

ocorreu (asa)” e indica que o relato

presente no Mahabharata constitui

um acontecimento de fato ocorrido,

entendido da mesma forma que

entendemos, por exemplo, a história.

Seu enredo traz o relato de uma guerra

de proporções mundiais que envolve

dois reinos. Apesar de inimigos, os dois

lados estão intimamente relacionados,

pois há parentes, mestres e amigos

separados no campo de batalha. No

instante em que a batalha deve ser

iniciada, o herói chamado Arjuna

inquieta-se com a ideia de ter de lutar

contra pessoas queridas. Essa situação

dá início a um diálogo que tratará dos

deveres sociais e do verdadeiro sentido

da vida. Esse diálogo, que consiste

em 18 capítulos do Mahabharata,

é chamado de Bhagavadgita. O

Bhagavadgita tem sido transmitido de

forma independente, ao longo dos

séculos, como escritura sagrada do

hinduísmo. O Mahabharata, incluindo

o Bhagavadgita, é uma obra coletiva

que foi composta entre os séculos

III a.C. e III d.C.

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dialoGando com os alunos

antes da leitura1.Estimularosalunosacomentarsobreosconhecimentosquepos-

suememrelaçãoàÍndia.Questionaracercadaculinária,dareligião,daliteratura,dahistória,daspersonalidadesindianasetc.

2.Informaraos alunosqueas versões escritasdashistóriasdolivrosãoemgeralposterioresàsversõesoraisequeaspessoasastransmitemdeformaoralenãoescrita.Comentarsobreaimportânciadaoralidadeedaescrita,cadaumacomqualidadesdistintas.Estimularosalunosalembrarhistóriasquetenhamouvido dos membros da família. Pedir-lhes que contem ashistóriasquejáouviram.Procurardestacar,casohajamaisdoqueumaversãodamesmahistória,aimportânciadepreservardiferentesversões,comorepresentativasdetradiçõesparalelas,uma fortemente oral e caracterizada pela recriação incessante,outraformalizadapelaescritaeestabelecidanahistórialiterária.Sugerirqueentrevistempessoasmaisvelhas,conhecidas,sobreashistóriasqueelasouviamquandoeramcrianças.

3.LembrarqueoBrasil,assimcomoaÍndia,tambémpossuiricadiversidadecultural.Apresentarasdiferençascomopossibilidadesparalelas,trazendoaideiadequenãoexistemculturasmelhoresou piores. Motivar os alunos a descrever o que caracterizacada região brasileira. Chamar a atenção para manifestaçõesvariadasdavidacotidiana:histórias,música,culinária,religião,regionalismoslinguísticosetc.Procurarintegrarasexperiênciasparticulares,decorrentesdeviagensoudeorigemfamiliar.Depois,estimularosalunosàobservaçãoinversa,questionandosobreascaracterísticasqueunificamaculturadoBrasil,acomeçarpelasunidadeslinguística,territorialepolítica.

depois da leitura1.Destacarosaspectosmitológicosdashistórias“Odiaemqueo

Solserecusouabrilhar”,“Comooshomensmudaram”e“Comosurgiuacócega”.Explicaraosalunosoqueé“mitodeorigem”.Mostrarqueasnarrativasmíticasdolivrofalamdaorigemdeumfenômenoe,aomesmotempo,traduzemsentimentosemrelaçãoaele,apresentandoocantodogalocomoformadereverência,aausênciadorabocomofatordedificuldadeparaoshumanos (enãocomosinaldeevolução)eacócegacomoestímuloàalegria,entre outras interpretações. Procurar narrativas no repertório da cultura brasileira (nas tradições judaico-cristã, africana

ouameríndia)queexpliquemaorigemdealgumfatosocialoufenômenonatural.Solicitarquecriem, individualmenteouemgrupo,umahistóriaquesirvade“mitodeorigem”(propor,porexemplo,umfenômenonaturalaserexplicado).

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2.Observarnashistórias“Ofalsofaquir”,“Agalinharoubada”e“Oagentedecasamentoeoleopardo”omodocomoosacontecimentosseencadeiamnastrajetóriasdosprotagonistas,procurandorefletirsobreasconsequênciasdosatosexecutadospelospersonagens.Namedidadopossível,diminuiraimportânciadasideiasdecastigoourecompensa,paradarrelevonãoaospercursosindividuais,masàharmoniapresentenomundo.Estabelecerparaleloscomproblemascontemporâneos: um bom estímulo é tratar dos desequilíbriosambientaisdecorrentesdeintervençõesdoserhumanonanatureza.Essareflexãopodeajudarosalunosaperceberoserhumanocomopartedanaturezaenãocomoelementoexterioraela;emnívelmaisamplo,valeestimularapercepçãosobreaharmoniaeadesarmoniadasaçõesdosprópriosalunos.

3.Observarotemadodesafionashistórias“Gopaleonababo”,“Ospríncipes transformadosempedra”e“Umgarotocegofazumpedido”.Proporaosalunosqueimaginemoqueresponderiamseestivessemdiantedasmesmascircunstânciasdospersonagensnastrêshistórias.Umbomexercícioésolicitarqueselembremdos jogosdedesafiosverbaisqueconhecem, fazendocomqueinterajamnasperguntaserespostasdadaspeloscolegas.Estimulá--losamemorizareacontarhistórias.Deinício,podesernecessáriosolicitaraelescomantecedênciaquepreparemashistóriasaseremnarradas,mas,comoestímuloreiterado,ahabilidadecertamenteserádesenvolvidadeformasurpreendente.

suGestões de leitura

Para o Professor

Canção do venerável: Bhagavadgita.TraduzidodosânscritoparaoportuguêsporCarlosAlbertodaFonseca.SãoPaulo:Globo,2009.

Para o aluno

Mahabharata pelos olhos de uma criança.RecontadoporSamhitaArni.SãoPaulo:Conrad,2004.

Para ambos

Pañcatantra: fábulasindianas,v.I,IIeIII.TraduzidodosânscritoparaoportuguêsporMariadaGraçaTesheineretal.SãoPaulo:Humanitas,2008.

internet

Yoga com Histórias – Site de um trabalho que desenvolveatividadesdestinadasacrianças,noqualseutilizamnarrativas,especialmenteasdeorigemindiana,emconjuntocomaspráticaséticasecorporaisdaioga.http://www.yogacomhistorias.com.br

Elaboração do guia João Carlos BarBosa Gonçalves (professor de línGua sânsCrita e Cultura indiana e doutorando pelo departamento de linGuístiCa da faCuldade de filosofia, letras e CiênCias Humanas (fflCH; – usp); PrEParação Bruno Zeni; rEvisão márCia menin e Carla mello moreira.