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Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009
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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL: A QUESTÃO DO LIVRE-
ARBÍTRIO EM TOMÁS DE AQUINO, UM EXEMPLO.
LIMEIRA, Nathalia Barbosa (UEM)
OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM)
Introdução
Poderíamos iniciar perguntando por que estudarmos, para além do tema proposto, um
autor decorridos oito séculos de sua morte? Qual a relevância e a importância de
voltarmos o olhar tanto para Tomás de Aquino como para a questão do livre-arbítrio?
Podemos supor, como François Guizot afirma:
[...] os acontecimentos são maiores do que sabem os homens, e aqueles que parecem à obra um acidente, de um indivíduo, de interesses particulares, ou de alguma circunstância exterior, têm fontes bem mais profundas e um outro alcance (GUIZOT apud OLIVEIRA, 2008, p. 10-11).
Os conhecimentos sobre o passado, façam eles referencias à Idade Média, à Antiguidade
ou a outra época, são melhores compreendidos em sua totalidade. Se pretendemos
compreender a questão do livre-arbítrio em Tomás de Aquino é fundamental que esta
apreensão se realize de modo mais totalizante possível, considerando, além dos
pressupostos contidos na Suma de Teologia, os aspectos históricos desta época.
A coletânea de textos intitulada Pesquisa em história da educação no Brasil, organizada
por José Gonçalves Gondra, busca mapear a produção em história da educação no
Brasil, destinando para tanto em seu livro, um capítulo a cada região brasileira. O artigo
de Denise Bárbara Catani et al, intitulado Um lugar de produção e a produção de um
lugar: história e historiografia da educação brasileira nos anos 1980 e de 1990 – a
produção divulgada no GT de História da Educação da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação, ANPED. A partir da análise dos trabalhos, os
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autores evidenciaram quais são os períodos, os temas, as fontes e autores mais
recorrentes nas pesquisas. Há, assim, a tentativa de demarcar o que se tem produzido em
forma de trabalhos e pesquisa em história da educação. Entre os anos de 1985 – 2000,
os períodos pesquisados pelos trabalhos apresentados no GT- HE da ANPED foram
distribuídos em cinco períodos1, dos quais nenhum faz menção direta à Idade Média. Há
no bojo desta obra o indício das lacunas e singularidades e com isso, é lançado o desafio
de avançar na produção do campo ao qual temos indicado e não apenas nele.
Deste modo, e seguindo as indicações de Guizot, é necessário avançarmos nas pesquisas
em história da educação, compreendendo as particularidades de cada objeto de pesquisa
ou ação social. Entendemos que voltar nosso olhar ao medievo se faz imprescindível na
medida em que, mesmo que não tenhamos uma relação direta com tais produções, quem
poderia supor que Agostinho, Robert Grosseteste, Alberto Magno, Roger Bacon, Tomás
de Aquino, Willian de Ockham, Nicole d’Oresme, para citar apenas alguns nomes, não
fizeram e ainda fazem parte de nossa formação?
Como mencionam as professoras Eliane Lopes e Ana Maria Galvão no livro História da
Educação (2001, p.17):
A história nos permite ver que, em outros lugares, culturas e em outras épocas, ou aqui perto de nós, a educação, de modo geral [...] têm mudado, mas parecem manter alguns elementos intocados que surpreendemente, são os mesmos, aqui.
Isso pressupõe um novo olhar à história, àquilo que compreendemos enquanto
permanências e rupturas do homem com ele mesmo, do homem com o ambiente em que
vive, do homem com sua história, daquilo que nega ou daquilo que permanece ao longo
do processo histórico.
1 No total de 156 trabalhos analisados e distribuídos em 5 grupos. São eles: 1. século XVI – XVIII; 2. século XIX; 3. final do século XIX/ início do XX; 4. século XX; 5. outros.
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Nossa pesquisa fundamenta-se, neste contexto, nas idéias proposta pela Escola dos
Annales. Os Annales que inicialmente designavam uma revista, Revue Les Annales d´
Histoire Économique et Sociale, organizadas por Marc Bloch e Lucien Febvre,
provocaram uma verdadeira revolução na teoria da história, como ressalta Rojas (2004,
p. 67). Esta revolução se faz pelo novo olhar que dão à história e consequentemente, a
toda investigação que se possa fazer a partir dela, o que de modo algum pode reduzi-la a
julgar ou narrar os fatos humanos, elegendo para si grandes homens, grandes feitos,
grandes fatos.
Ao contrário do movimento positivista2, a história proposta pela Revue des Annales é
uma proposta de história como ciência dos homens, dos homens em seu tempo
(BLOCH, 2001, p. 55). Assim, ao propor uma ciência na qual seu objeto seja o homem
é necessário compreender o que estamos designando pelo termo homem. Como afirma
Bloch:
Ora, homo religiosus, homo oeconomicus, homo politicus, toda essa ladainha de homens em us, cuja lista poderíamos estender à vontade, evitemos tomá-los por outra coisa do que na verdade são: fantasmas cômodos, com a condição de não se tornarem um estorvo. O único ser de carne e osso é o homem, sem mais, que reúne ao mesmo tempo tudo isso (BLOCH, 2001, p. 89).
Bloch parece pressupor, pela passagem acima, que todas as discussões que pretendem
definir o homem, seja como homem político ou homem religioso, são discussões vazias
de significado, pois o homem, sendo político ou não, sendo religioso ou não, é homem.
2 Segundo a análise de Triviños, Introdução à pesquisa em Ciências Sociais, (1987, p. 33-36), as raízes do positivismo podem ser encontradas na Antiguidade, embora seja sistematizada por Bacon, Hobbes e Hume nos séculos XVI, XVII e XVIII. Atribui-se a August Comte à fundação deste movimento. Muito brevemente, podemos afirmar que as características principais desta corrente é a busca pela objetividade e neutralidade científica, deixando o subjetivismo de lado. “Este conhecimento objetivo do dado, alheio a qualquer traço de subjetividade, eliminou qualquer perspectiva de colocar a busca cientifica ao serviço das necessidades humanas, para resolver problemas práticos” (p. 36).
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Nesta concepção de história importa interrogorar os fatos, buscando uma compreensão
maior, de modo que a história do passado, por exemplo, não seja apenas narração dos
fatos, mas a compreensão do homem enquanto parte da sociedade, enquanto constituinte
e constituída pela mesma, já que “o passado é, por definição, uma dado que nada mais
modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que
incessantemente se transforma e aperfeiçoa” (BLOCH, 2001, p. 75). Não cremos com
isso num incessante progresso linear do homem na história, mas que os conhecimentos
que temos e ainda teremos sobre os fatos e o homem, isto sim cremos em progresso.
Em Domínios da História (1997, p. 7-8), Cardoso e Vainas ressaltam os principais
pressupostos dos Annales, os quais destacamos aqui: a crença no caráter científico da
história, que de mera narração dos fatos, surge enquanto ciência – ainda que em
construção; o debate permanente com as ciências sociais, deixando de lado o espírito
das especialidades, promovendo assim a pluridisciplinaridade. Este aspecto pode ser
observado no próprio nome da revista dos Annales. Ao propor uma revista sobre história
econômica e social abandona-se a teoria dos grandes fatos históricos, como a histórica
política ou militar, visando uma história que dê conta dos processos sociais, como a
história social e econômica; propõe com isso uma maior ênfase nas fontes que não
sejam somente escritas, abrindo a possibilidade de pesquisas mais completas e
complexas, ou seja, o alargamento do que compreendemos pelo termo fonte em nossas
pesquisas; a história é então vista como história-problema, ou seja, a idéia de que a
história parte de problemas e chega sempre a novos problemas; por fim, a consciência
dos níveis de temporalidade. Embora Bloch tenha feitos alguns esboços sobre esta
perspectiva é Fernand Braudel quem incorpora tal paradigma à perspectiva annalista
(ROJAS, 2004, p. 78). A noção de tempo é distinta dependendo de quais estruturas se
trate. As estruturas mentais, por exemplo, muda mais lentamente que as estruturas
econômicas e estes níveis são considerados fundamentais no ofício do historiador.
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Liberdade e Livre-arbítrio
A questão da liberdade é um tema recorrente dentro da história do pensamento humano.
Diferentes pensadores em épocas distintas discutiram esta questão desde a Antiguidade
clássica até a contemporaneidade. No longo período que conhecemos como Idade
Média as discussões sobre o livre-arbítrio fizeram-se presentes em diversos pensadores
como Santo Agostinho, Boécio, Santo Anselmo, Bernardo de Claraval, Tomás de
Aquino, Ockham, dentre outros. Esta discussão se faz importante na medida em que
buscamos conhecer no homem o que faz dele senhor de suas ações, ou seja, aquilo que
denominamos livre-arbítrio, pois como o próprio termo indica, afirmar o homem como
possuidor do livre-arbítrio implica responsabilizá-lo por seus atos.
Nosso estudo analisa o conceito de livre-arbítrio proposto por Tomás de Aquino. Voltar
nosso olhar para o medievo e especialmente para este autor é significativo uma vez que
no mestre Aquino esta questão aparece como característica humana e diferente do que
propõe o senso comum definindo livre-arbítrio como plena satisfação das vontades, para
o Aquinate a razão é o principal vetor de decisão de nossas atitudes. A elaboração de
uma teoria da moral, que pressupõe o livre-arbítrio, a retidão da vontade e o império da
razão sobre nossa volição afirmam o homem enquanto senhor de si, como aquele que
produz e é responsável por seu meio.
No início do século XII encontramos mudanças significativas no plano da cultura e do
ensino: o surgimento das universidades, as quais eram pensadas em função das pessoas
que as compunham e não a partir das áreas de conhecimento, formando um órgão
institucional do corpo religioso e político da cristandade ao lado do sacerdócio e do
império.3 Serão nas universidades, de fato, que se dará o encontro do aristotelismo e o
saber cristão. Tornou-se necessário, deste modo, a criação de um novo método de
ensino, voltado e atento a estas questões. 3 Tais aspectos são desenvolvidos na obra Escritos de Filosofia: problemas de Fronteiras, de Henrique Lima Vaz.
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Antônio Severino em seu artigo A busca do sentido da formação humana: tarefa da
Filosofia da Educação, discute a educação sob a perspectiva ética e política, pois desde
a Antiguidade e por todo o medievo estes conceitos aparecem ligados à idéia de
formação humana e portanto, à idéia de educação. A idéia-força da educação na
Antiguidade era o “[...] aprimoramento ético-pessoal e esta era a finalidade da
educação” (SEVERINO, 2006, p. 622). Entendemos com isso que mesmo as literaturas
mais antigas - como as de Hesíodo, por exemplo, trazem consigo um modelo de
formação, seja a partir do trabalho, como o fez, ou a partir de uma sociedade que se
satisfaça num bem comum, como propõe Aristóteles - expõem um homem que se
aprimora cada vez mais a partir de suas ações.
Para Aristóteles, o homem se realiza enquanto cidadão da polis, como homem político4
e isso se deve, particularmente há dois aspectos: o primeiro refere-se à própria
constituição do homem, enquanto ser racional e, portanto, capaz de reflexão. A partir do
discurso, ou seja, daquilo que lhe possibilita organizar e conhecer as demais coisas, o
homem organiza-se tendo em vista sua sobrevivência e seu pleno desenvolvimento, o
que lhe permite o estabelecimento da vida em comunidades, aldeias ou cidades. Um
segundo aspecto refere-se à cidade quanto seu objetivo final, ou seja, toda cidade é
constituída em vista de algum bem. Embora consideremos que o homem sobre qual
escreve Aristóteles deve compreender que é por natureza que ocupam o lugar que
ocupam5, a idéia central é aquela do homem que se realiza – e esta realização pressupõe
ação – na e pela cidade. E deste modo, “[...] não há melhor critério para definir o que é
4 Lemos na obra Política de Aristóteles: “(...) Uma cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver cidade será um decaído ou um sobre-humano. (...) A razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza, conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui palavra. Assim, enquanto a voz indica prazer ou sentimento, e nesse sentido é também atributo de outros animais, o discurso, por outro lado serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto.” (1253ª 1-10). 5 Segundo Aristóteles: “Em primeiro lugar, aqueles que não podem existir sem o outro devem formar um par. É o caso da fêmea e do macho para procriar; é ainda o caso daquele que, por natureza, manda e daquele que é obedece, para a segurança de ambos” (Política, 1251b 25).
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cidadão, em sentido restrito[...]”, afirma Aristóteles, “[...]do que entender a cidadania
como a capacidade de participar na administração da justiça e no governo”
(ARISTÓTELES, Política, 11275a 22). Ética e política perpassam, assim, a formação
do homem grego antigo. A idéia de política deriva da qualidade ética do homem. Ora, se
os homens forem éticos, a cidade será justa. Segundo Severino:
A política fica como que condicionada à ética, ou seja, à qualidade e à intensidade do aprimoramento da postura e das ações morais das pessoas individuais. A boa qualidade da polis está na dependência direta da qualidade da vida individual dos seus habitantes (SEVERINO, 2006, p. 623).
Na Idade Média quando são conhecidas as obras da Antiguidade clássica, a idéia de
educação do homem medieval perpassa também o campo ético e político, ainda que a
idéia de salvação lhe seja fundamentalmente inerente. Quando o Aquinate propõe, por
exemplo, uma beatitude terrena, uma espécie de participação da bem-aventurança
eterna, isso implica pensar o homem frente à suas decisões, responsabilizando-se pelas
mesmas. Segundo Weber, em seu artigo La béatitude selon Thomas d’Aquin, Tomás de
Aquino rompe com seus contemporâneos ao pressupor uma beatitude que se relaciona
com as ações presentes, já que a felicidade não tem conotação com o fim da ação ou
com o agir, mas com o:
[...] prazer supremo o qual goza uma atividade, exercendo-a como participação do corpo encarnado, da admiração intelectiva e amando o que Deus é nele mesmo e por nós (WEBER, 1996, p. 95).6
Tomás de Aquino propõe uma beatitude que se realiza não como uma atividade que se
identifica com o corpo, mas com a alma. É na alma que está à racionalidade do homem.
Na mesma alma estão presentes suas vontades e sentimentos. Cabe ao homem, a partir 6 Plaisir suprême dont jouit une activité, exercée avec la participation du corps ressuscite, d’admiration intellective et aimante de ce que Dieu est lui-memê et pours nous.
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do poder de livre escolha, deliberar e eleger o que melhor lhe parece, a partir da sua
razão. Deste modo, a partir de suas ações o homem pode participar da beatitude
terrestre. A escolha dos atos perpassa o campo da ética e da política, ainda que de modo
distinto ao da Antiguidade clássica.
Se pretendemos entender o homem frente a um modelo de formação que pressupõe a
ética e a política como intrínsecas nesse processo, é forçoso retomarmos alguns
conceitos sobre a moral para entendermos por qual viés se passa à construção do
modelo de homem medieval, à luz de Tomás de Aquino.
Jacques Leclercq em As grandes linhas da filosofia moral, afirma que só há problema
moral no qual há liberdade (1967, p. 233). Ora, a vida apresenta diversas situações ao
homem nas quais é necessário exercer seu poder de escolha, ou seja, ter o domínio da
sua ação. Para este autor, “[...] a liberdade ou o livre-arbítrio reclama simplesmente a
possibilidade de agir livremente” (1967, p. 244). E continua:
Para fazer ato de liberdade, é preciso que intervenha a razão; depois que o ato pareça bom, mas não necessário, que se encontre, pois, em presença duma alternativa, que haja escolha (LECLERCQ, 1967, p. 245).
Vontade e razão constituem-se, dessa forma, aspectos essenciais das discussões éticas e
morais, as quais surgem justamente pelo fato do homem ser dotado de razão7
(LECLERCQ, 1967, p. 247), já que é por tais capacidades (volitiva e racional) que o
homem delibera sobre suas ações. Para além das discussões que pretendam saber qual
capacidade prevalece sobre a outra – se a vontade ou a razão no que tange à discussão
sobre o livre-arbítrio – nossa pesquisa dá luz ao homem tido no tempo e, deste modo,
7 A frase em sua integralidade é “o problema moral, a ciência da moral provem do fato de ser o homem dotado de razão, mas de razão fraca”.
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histórico e socialmente determinado, em suma: em sua materialidade e considerado num
processo de formação.
A análise de Leclercq considera quatro elementos fundamentais para discutir o homem
no que diz respeito a sua vida moral. São eles: o corpo, a afetividade, a inteligência e a
vontade (1967, p. 319). A vida afetiva ou o que Leclercq denomina sensibilidade é o
imenso labirinto que vai da sensação ao pensamento e caracteriza-se como “[...] o ponto
de encontro do espírito e do corpo” (1967, p. 326). Ou seja, a vida afetiva permeia tanto
a vida corporal, já que sentimos fome, dor, calor e as mais diversas manifestações dos
sentidos; e à vida do espírito, já que as sensações se traduzem em sentimentos. “O
sentimento”, afirma Leclercq, “[...] é uma força de si irracional, que procura satisfazer-
se em si mesma, sem levar em conta a orientação racional da vida” (1967, p. 327).
Donde ser a inteligência a grande mestra na constituição moral do homem.
A inteligência exerce um “papel de visão” (LECLERCQ, 1967, p. 333) orientando a
vida afetiva. A questão que se impõe aqui é aquela que discute a liberdade de
pensamento. “É a inteligência o fundamento de tudo o que distingue o homem do
animal e negligenciar a inteligência é descurar desenvolver-se humanamente”
(LECLERCQ, 1967, p. 340). Deste modo, consideramos a inteligência como a
faculdade ou capacidade eminentemente humana.
Falar em vontade é também falar em inteligência, uma vez que apenas os seres dotados
de razão possuem vontade. E como a inteligência deve imperar sobre a vontade é
preciso que esta se submeta à razão. Tomás de Aquino a considerou de dois modos:
quanto à universalidade de seu objeto, já que deseja o bem universal e, quanto a uma
faculdade própria dos homens que tem seu ato próprio8.
8 Suma de Teologia, Iª, q. 82, a. 4, ad. 1.
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Hanna Arendt, no segundo volume da obra A Vida do Espírito, discute a questão da
vontade privilegiando em sua análise os principais pensadores ao longo da história do
pensamento humano, refletindo sobre como a idéia de vontade desenvolveu-se ao longo
dos séculos. Na Antiguidade, afirma Arendt, “[...] a faculdade da Vontade era ignorada
[...] e sua descoberta resultou de experiências sobre as quais quase não ouvimos falar
antes do primeiro século da Era Cristã” (1993, p. 189). Foi ignorada, justifica a autora,
pois sendo a noção de tempo cíclica para os gregos antigos, era evidente a idéia de que
havia um retorno.
Não é portanto de se estranhar que os gregos não tivessem noção da faculdade da Vontade, nosso órgão espiritual para o futuro, em princípio indeterminado, sendo, portanto, um possível anunciador de novidade (ARENDT, 1993, p. 200).
Na sociedade cristã medieval, com a idéia-força de que o mundo se inicia com a história
de Adão e Eva e se finaliza na ressurreição de Cristo “[...] a seqüência da história
pressupõe um conceito retilíneo de tempo” (ARENDT, 1993, p. 200). O aparecimento
da vontade teria sua origem na teologia. Deste modo, todas as discussões sobre
liberdade que nos remetem à Idade Média retornam sempre a questão da vontade.
Podemos supor que o homem é pensado a partir de seu tempo e a partir das
peculiaridades de seu tempo. Assim, cada autor dará luz aos conceitos essenciais que
definirão o homem. Se na Grécia Antiga o ideal de homem é aquele que serve a polis,
como se destaca em Aristóteles, na Idade Média o homem é imagem de Deus, pois
emana dEle e, a formação do homem será pensada a partir deste enfoque.
Nascido no século XIII, século do surgimento das Universidades e das Ordens
Mendicantes, do renascimento do comércio e das cidades, do embate entre o
pensamento agostiniano e a expansão do pensamento aristotélico, Tomás de Aquino,
desde jovem, demonstrou zelo e gosto pelo conhecimento, recebeu ainda cedo o hábito
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da Ordem Dominicana.9 Embora sua vida tenha sido breve, sua produção teológica e
filosófica compreende inúmeros tratados e questões, além dos comentários às obras
aristotélicas.
Nossa pesquisa considera as discussões expostas nas questões 6 a 17 da primeira parte
da segunda da Suma de teologia , as quais abordam o movimento da vontade, os atos
humanos, a deliberação, o consentimento e o livre-arbítrio, temas que são fundamentais
para compreendermos o livre-arbítrio para o mestre Dominicano, bem como a questão
83 da primeira parte da Suma de Teologia, a qual discute o livre-arbítrio.
É forçoso, senão necessário, discutir dois termos aparentemente sinônimos: liberdade e
livre-arbítrio. Para a pensadora Hanna Arendt, assim como não podemos falar em
vontade, enquanto volição na Antiguidade Clássica, também não podemos afirmar que
há uma preocupação dentre os pensadores da época com a questão da liberdade.
Segundo esta pensadora, “[...] quando a liberdade fez sua primeira aparição em nossa
tradição filosófica, o que deu origem a ela foi a experiência da conversão religiosa”
(ARENDT, 1979, p. 191). As discussões sobre a liberdade passaram do âmbito político,
como bem nos indicam os escritos de Platão e Aristóteles, por exemplo, para fazer
menção ao homem fundamentalmente político, para um domínio interno ao homem – o
da vontade.]. Para Arendt:
Antes que se tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade, a liberdade era entendida como o estado do homem livre, que o capacitava a se mover, a se afastar de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras pessoas em palavras e ações (ARENDT, 1979, p. 194).
9 Estes, vinculados às Universidades, possuem basicamente, duas preocupações: com a ciência, ou seja, com o conhecimento e com a evangelização. Franciscanos e dominicanos representam as duas Ordens religiosas que expressam sua oposição às riquezas da Igreja, pregando para tal a pobreza e o evangelho. O embate destas duas ordens esteve presente nas Universidades, já que os mestres são de uma ou outra ordem.
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A liberdade é entendida, neste sentido, como liberdade intrinsecamente política, ou seja,
de ação. O livre-arbítrio, por sua vez, definido como a “[...] liberdade de escolha que
arbitra entre duas coisas dadas” (ARENT, 1979, p.197) tem seu surgimento no
pensamento cristão, inicialmente com Paulo e depois Agostinho. Se a liberdade na
Antiguidade clássica fazia parte do mundo da polis, agora será pensada como uma
relação interior, entre eu e eu mesmo, não mais com relação ao exterior. A discussão
acerca da liberdade surge quando esta se torna livre-arbítrio, ou seja, quando se dá no
relacionamento com o próprio eu, surgindo desde modo no bojo das tradições cristãs e,
portanto, no âmbito da religião. Neste contexto, a liberdade divorcia-se da esfera
política em razão da vida contemplativa.
Fundamentando os principais aspectos de nossa pesquisa, entrelaçando os conceitos de
educação, política, ética e moral, nossa pesquisa visa entender sob a perspectiva
proposta pelos Annales, uma questão que diz respeito à formação do homem – o livre-
arbítrio, buscando, deste modo, além de uma interpretação mais ampla e significante
sobre o que seja o homem quando relacionado ao livre-arbítrio, um diálogo maior com
as demais ciências que não seja apenas a História e a Filosofia.
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