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Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 1 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL: A QUESTÃO DO LIVRE- ARBÍTRIO EM TOMÁS DE AQUINO, UM EXEMPLO. LIMEIRA, Nathalia Barbosa (UEM) OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM) Introdução Poderíamos iniciar perguntando por que estudarmos, para além do tema proposto, um autor decorridos oito séculos de sua morte? Qual a relevância e a importância de voltarmos o olhar tanto para Tomás de Aquino como para a questão do livre-arbítrio? Podemos supor, como François Guizot afirma: [...] os acontecimentos são maiores do que sabem os homens, e aqueles que parecem à obra um acidente, de um indivíduo, de interesses particulares, ou de alguma circunstância exterior, têm fontes bem mais profundas e um outro alcance (GUIZOT apud OLIVEIRA, 2008, p. 10-11). Os conhecimentos sobre o passado, façam eles referencias à Idade Média, à Antiguidade ou a outra época, são melhores compreendidos em sua totalidade. Se pretendemos compreender a questão do livre-arbítrio em Tomás de Aquino é fundamental que esta apreensão se realize de modo mais totalizante possível, considerando, além dos pressupostos contidos na Suma de Teologia, os aspectos históricos desta época. A coletânea de textos intitulada Pesquisa em história da educação no Brasil, organizada por José Gonçalves Gondra, busca mapear a produção em história da educação no Brasil, destinando para tanto em seu livro, um capítulo a cada região brasileira. O artigo de Denise Bárbara Catani et al, intitulado Um lugar de produção e a produção de um lugar: história e historiografia da educação brasileira nos anos 1980 e de 1990 – a produção divulgada no GT de História da Educação da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em Educação, ANPED. A partir da análise dos trabalhos, os

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL: A QUESTÃO DO LIVRE-

ARBÍTRIO EM TOMÁS DE AQUINO, UM EXEMPLO.

LIMEIRA, Nathalia Barbosa (UEM)

OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM)

Introdução

Poderíamos iniciar perguntando por que estudarmos, para além do tema proposto, um

autor decorridos oito séculos de sua morte? Qual a relevância e a importância de

voltarmos o olhar tanto para Tomás de Aquino como para a questão do livre-arbítrio?

Podemos supor, como François Guizot afirma:

[...] os acontecimentos são maiores do que sabem os homens, e aqueles que parecem à obra um acidente, de um indivíduo, de interesses particulares, ou de alguma circunstância exterior, têm fontes bem mais profundas e um outro alcance (GUIZOT apud OLIVEIRA, 2008, p. 10-11).

Os conhecimentos sobre o passado, façam eles referencias à Idade Média, à Antiguidade

ou a outra época, são melhores compreendidos em sua totalidade. Se pretendemos

compreender a questão do livre-arbítrio em Tomás de Aquino é fundamental que esta

apreensão se realize de modo mais totalizante possível, considerando, além dos

pressupostos contidos na Suma de Teologia, os aspectos históricos desta época.

A coletânea de textos intitulada Pesquisa em história da educação no Brasil, organizada

por José Gonçalves Gondra, busca mapear a produção em história da educação no

Brasil, destinando para tanto em seu livro, um capítulo a cada região brasileira. O artigo

de Denise Bárbara Catani et al, intitulado Um lugar de produção e a produção de um

lugar: história e historiografia da educação brasileira nos anos 1980 e de 1990 – a

produção divulgada no GT de História da Educação da Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesquisa em Educação, ANPED. A partir da análise dos trabalhos, os

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autores evidenciaram quais são os períodos, os temas, as fontes e autores mais

recorrentes nas pesquisas. Há, assim, a tentativa de demarcar o que se tem produzido em

forma de trabalhos e pesquisa em história da educação. Entre os anos de 1985 – 2000,

os períodos pesquisados pelos trabalhos apresentados no GT- HE da ANPED foram

distribuídos em cinco períodos1, dos quais nenhum faz menção direta à Idade Média. Há

no bojo desta obra o indício das lacunas e singularidades e com isso, é lançado o desafio

de avançar na produção do campo ao qual temos indicado e não apenas nele.

Deste modo, e seguindo as indicações de Guizot, é necessário avançarmos nas pesquisas

em história da educação, compreendendo as particularidades de cada objeto de pesquisa

ou ação social. Entendemos que voltar nosso olhar ao medievo se faz imprescindível na

medida em que, mesmo que não tenhamos uma relação direta com tais produções, quem

poderia supor que Agostinho, Robert Grosseteste, Alberto Magno, Roger Bacon, Tomás

de Aquino, Willian de Ockham, Nicole d’Oresme, para citar apenas alguns nomes, não

fizeram e ainda fazem parte de nossa formação?

Como mencionam as professoras Eliane Lopes e Ana Maria Galvão no livro História da

Educação (2001, p.17):

A história nos permite ver que, em outros lugares, culturas e em outras épocas, ou aqui perto de nós, a educação, de modo geral [...] têm mudado, mas parecem manter alguns elementos intocados que surpreendemente, são os mesmos, aqui.

Isso pressupõe um novo olhar à história, àquilo que compreendemos enquanto

permanências e rupturas do homem com ele mesmo, do homem com o ambiente em que

vive, do homem com sua história, daquilo que nega ou daquilo que permanece ao longo

do processo histórico.

1 No total de 156 trabalhos analisados e distribuídos em 5 grupos. São eles: 1. século XVI – XVIII; 2. século XIX; 3. final do século XIX/ início do XX; 4. século XX; 5. outros.

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Nossa pesquisa fundamenta-se, neste contexto, nas idéias proposta pela Escola dos

Annales. Os Annales que inicialmente designavam uma revista, Revue Les Annales d´

Histoire Économique et Sociale, organizadas por Marc Bloch e Lucien Febvre,

provocaram uma verdadeira revolução na teoria da história, como ressalta Rojas (2004,

p. 67). Esta revolução se faz pelo novo olhar que dão à história e consequentemente, a

toda investigação que se possa fazer a partir dela, o que de modo algum pode reduzi-la a

julgar ou narrar os fatos humanos, elegendo para si grandes homens, grandes feitos,

grandes fatos.

Ao contrário do movimento positivista2, a história proposta pela Revue des Annales é

uma proposta de história como ciência dos homens, dos homens em seu tempo

(BLOCH, 2001, p. 55). Assim, ao propor uma ciência na qual seu objeto seja o homem

é necessário compreender o que estamos designando pelo termo homem. Como afirma

Bloch:

Ora, homo religiosus, homo oeconomicus, homo politicus, toda essa ladainha de homens em us, cuja lista poderíamos estender à vontade, evitemos tomá-los por outra coisa do que na verdade são: fantasmas cômodos, com a condição de não se tornarem um estorvo. O único ser de carne e osso é o homem, sem mais, que reúne ao mesmo tempo tudo isso (BLOCH, 2001, p. 89).

Bloch parece pressupor, pela passagem acima, que todas as discussões que pretendem

definir o homem, seja como homem político ou homem religioso, são discussões vazias

de significado, pois o homem, sendo político ou não, sendo religioso ou não, é homem.

2 Segundo a análise de Triviños, Introdução à pesquisa em Ciências Sociais, (1987, p. 33-36), as raízes do positivismo podem ser encontradas na Antiguidade, embora seja sistematizada por Bacon, Hobbes e Hume nos séculos XVI, XVII e XVIII. Atribui-se a August Comte à fundação deste movimento. Muito brevemente, podemos afirmar que as características principais desta corrente é a busca pela objetividade e neutralidade científica, deixando o subjetivismo de lado. “Este conhecimento objetivo do dado, alheio a qualquer traço de subjetividade, eliminou qualquer perspectiva de colocar a busca cientifica ao serviço das necessidades humanas, para resolver problemas práticos” (p. 36).

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Nesta concepção de história importa interrogorar os fatos, buscando uma compreensão

maior, de modo que a história do passado, por exemplo, não seja apenas narração dos

fatos, mas a compreensão do homem enquanto parte da sociedade, enquanto constituinte

e constituída pela mesma, já que “o passado é, por definição, uma dado que nada mais

modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que

incessantemente se transforma e aperfeiçoa” (BLOCH, 2001, p. 75). Não cremos com

isso num incessante progresso linear do homem na história, mas que os conhecimentos

que temos e ainda teremos sobre os fatos e o homem, isto sim cremos em progresso.

Em Domínios da História (1997, p. 7-8), Cardoso e Vainas ressaltam os principais

pressupostos dos Annales, os quais destacamos aqui: a crença no caráter científico da

história, que de mera narração dos fatos, surge enquanto ciência – ainda que em

construção; o debate permanente com as ciências sociais, deixando de lado o espírito

das especialidades, promovendo assim a pluridisciplinaridade. Este aspecto pode ser

observado no próprio nome da revista dos Annales. Ao propor uma revista sobre história

econômica e social abandona-se a teoria dos grandes fatos históricos, como a histórica

política ou militar, visando uma história que dê conta dos processos sociais, como a

história social e econômica; propõe com isso uma maior ênfase nas fontes que não

sejam somente escritas, abrindo a possibilidade de pesquisas mais completas e

complexas, ou seja, o alargamento do que compreendemos pelo termo fonte em nossas

pesquisas; a história é então vista como história-problema, ou seja, a idéia de que a

história parte de problemas e chega sempre a novos problemas; por fim, a consciência

dos níveis de temporalidade. Embora Bloch tenha feitos alguns esboços sobre esta

perspectiva é Fernand Braudel quem incorpora tal paradigma à perspectiva annalista

(ROJAS, 2004, p. 78). A noção de tempo é distinta dependendo de quais estruturas se

trate. As estruturas mentais, por exemplo, muda mais lentamente que as estruturas

econômicas e estes níveis são considerados fundamentais no ofício do historiador.

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Liberdade e Livre-arbítrio

A questão da liberdade é um tema recorrente dentro da história do pensamento humano.

Diferentes pensadores em épocas distintas discutiram esta questão desde a Antiguidade

clássica até a contemporaneidade. No longo período que conhecemos como Idade

Média as discussões sobre o livre-arbítrio fizeram-se presentes em diversos pensadores

como Santo Agostinho, Boécio, Santo Anselmo, Bernardo de Claraval, Tomás de

Aquino, Ockham, dentre outros. Esta discussão se faz importante na medida em que

buscamos conhecer no homem o que faz dele senhor de suas ações, ou seja, aquilo que

denominamos livre-arbítrio, pois como o próprio termo indica, afirmar o homem como

possuidor do livre-arbítrio implica responsabilizá-lo por seus atos.

Nosso estudo analisa o conceito de livre-arbítrio proposto por Tomás de Aquino. Voltar

nosso olhar para o medievo e especialmente para este autor é significativo uma vez que

no mestre Aquino esta questão aparece como característica humana e diferente do que

propõe o senso comum definindo livre-arbítrio como plena satisfação das vontades, para

o Aquinate a razão é o principal vetor de decisão de nossas atitudes. A elaboração de

uma teoria da moral, que pressupõe o livre-arbítrio, a retidão da vontade e o império da

razão sobre nossa volição afirmam o homem enquanto senhor de si, como aquele que

produz e é responsável por seu meio.

No início do século XII encontramos mudanças significativas no plano da cultura e do

ensino: o surgimento das universidades, as quais eram pensadas em função das pessoas

que as compunham e não a partir das áreas de conhecimento, formando um órgão

institucional do corpo religioso e político da cristandade ao lado do sacerdócio e do

império.3 Serão nas universidades, de fato, que se dará o encontro do aristotelismo e o

saber cristão. Tornou-se necessário, deste modo, a criação de um novo método de

ensino, voltado e atento a estas questões. 3 Tais aspectos são desenvolvidos na obra Escritos de Filosofia: problemas de Fronteiras, de Henrique Lima Vaz.

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Antônio Severino em seu artigo A busca do sentido da formação humana: tarefa da

Filosofia da Educação, discute a educação sob a perspectiva ética e política, pois desde

a Antiguidade e por todo o medievo estes conceitos aparecem ligados à idéia de

formação humana e portanto, à idéia de educação. A idéia-força da educação na

Antiguidade era o “[...] aprimoramento ético-pessoal e esta era a finalidade da

educação” (SEVERINO, 2006, p. 622). Entendemos com isso que mesmo as literaturas

mais antigas - como as de Hesíodo, por exemplo, trazem consigo um modelo de

formação, seja a partir do trabalho, como o fez, ou a partir de uma sociedade que se

satisfaça num bem comum, como propõe Aristóteles - expõem um homem que se

aprimora cada vez mais a partir de suas ações.

Para Aristóteles, o homem se realiza enquanto cidadão da polis, como homem político4

e isso se deve, particularmente há dois aspectos: o primeiro refere-se à própria

constituição do homem, enquanto ser racional e, portanto, capaz de reflexão. A partir do

discurso, ou seja, daquilo que lhe possibilita organizar e conhecer as demais coisas, o

homem organiza-se tendo em vista sua sobrevivência e seu pleno desenvolvimento, o

que lhe permite o estabelecimento da vida em comunidades, aldeias ou cidades. Um

segundo aspecto refere-se à cidade quanto seu objetivo final, ou seja, toda cidade é

constituída em vista de algum bem. Embora consideremos que o homem sobre qual

escreve Aristóteles deve compreender que é por natureza que ocupam o lugar que

ocupam5, a idéia central é aquela do homem que se realiza – e esta realização pressupõe

ação – na e pela cidade. E deste modo, “[...] não há melhor critério para definir o que é

4 Lemos na obra Política de Aristóteles: “(...) Uma cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver cidade será um decaído ou um sobre-humano. (...) A razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza, conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui palavra. Assim, enquanto a voz indica prazer ou sentimento, e nesse sentido é também atributo de outros animais, o discurso, por outro lado serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto.” (1253ª 1-10). 5 Segundo Aristóteles: “Em primeiro lugar, aqueles que não podem existir sem o outro devem formar um par. É o caso da fêmea e do macho para procriar; é ainda o caso daquele que, por natureza, manda e daquele que é obedece, para a segurança de ambos” (Política, 1251b 25).

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cidadão, em sentido restrito[...]”, afirma Aristóteles, “[...]do que entender a cidadania

como a capacidade de participar na administração da justiça e no governo”

(ARISTÓTELES, Política, 11275a 22). Ética e política perpassam, assim, a formação

do homem grego antigo. A idéia de política deriva da qualidade ética do homem. Ora, se

os homens forem éticos, a cidade será justa. Segundo Severino:

A política fica como que condicionada à ética, ou seja, à qualidade e à intensidade do aprimoramento da postura e das ações morais das pessoas individuais. A boa qualidade da polis está na dependência direta da qualidade da vida individual dos seus habitantes (SEVERINO, 2006, p. 623).

Na Idade Média quando são conhecidas as obras da Antiguidade clássica, a idéia de

educação do homem medieval perpassa também o campo ético e político, ainda que a

idéia de salvação lhe seja fundamentalmente inerente. Quando o Aquinate propõe, por

exemplo, uma beatitude terrena, uma espécie de participação da bem-aventurança

eterna, isso implica pensar o homem frente à suas decisões, responsabilizando-se pelas

mesmas. Segundo Weber, em seu artigo La béatitude selon Thomas d’Aquin, Tomás de

Aquino rompe com seus contemporâneos ao pressupor uma beatitude que se relaciona

com as ações presentes, já que a felicidade não tem conotação com o fim da ação ou

com o agir, mas com o:

[...] prazer supremo o qual goza uma atividade, exercendo-a como participação do corpo encarnado, da admiração intelectiva e amando o que Deus é nele mesmo e por nós (WEBER, 1996, p. 95).6

Tomás de Aquino propõe uma beatitude que se realiza não como uma atividade que se

identifica com o corpo, mas com a alma. É na alma que está à racionalidade do homem.

Na mesma alma estão presentes suas vontades e sentimentos. Cabe ao homem, a partir 6 Plaisir suprême dont jouit une activité, exercée avec la participation du corps ressuscite, d’admiration intellective et aimante de ce que Dieu est lui-memê et pours nous.

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do poder de livre escolha, deliberar e eleger o que melhor lhe parece, a partir da sua

razão. Deste modo, a partir de suas ações o homem pode participar da beatitude

terrestre. A escolha dos atos perpassa o campo da ética e da política, ainda que de modo

distinto ao da Antiguidade clássica.

Se pretendemos entender o homem frente a um modelo de formação que pressupõe a

ética e a política como intrínsecas nesse processo, é forçoso retomarmos alguns

conceitos sobre a moral para entendermos por qual viés se passa à construção do

modelo de homem medieval, à luz de Tomás de Aquino.

Jacques Leclercq em As grandes linhas da filosofia moral, afirma que só há problema

moral no qual há liberdade (1967, p. 233). Ora, a vida apresenta diversas situações ao

homem nas quais é necessário exercer seu poder de escolha, ou seja, ter o domínio da

sua ação. Para este autor, “[...] a liberdade ou o livre-arbítrio reclama simplesmente a

possibilidade de agir livremente” (1967, p. 244). E continua:

Para fazer ato de liberdade, é preciso que intervenha a razão; depois que o ato pareça bom, mas não necessário, que se encontre, pois, em presença duma alternativa, que haja escolha (LECLERCQ, 1967, p. 245).

Vontade e razão constituem-se, dessa forma, aspectos essenciais das discussões éticas e

morais, as quais surgem justamente pelo fato do homem ser dotado de razão7

(LECLERCQ, 1967, p. 247), já que é por tais capacidades (volitiva e racional) que o

homem delibera sobre suas ações. Para além das discussões que pretendam saber qual

capacidade prevalece sobre a outra – se a vontade ou a razão no que tange à discussão

sobre o livre-arbítrio – nossa pesquisa dá luz ao homem tido no tempo e, deste modo,

7 A frase em sua integralidade é “o problema moral, a ciência da moral provem do fato de ser o homem dotado de razão, mas de razão fraca”.

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histórico e socialmente determinado, em suma: em sua materialidade e considerado num

processo de formação.

A análise de Leclercq considera quatro elementos fundamentais para discutir o homem

no que diz respeito a sua vida moral. São eles: o corpo, a afetividade, a inteligência e a

vontade (1967, p. 319). A vida afetiva ou o que Leclercq denomina sensibilidade é o

imenso labirinto que vai da sensação ao pensamento e caracteriza-se como “[...] o ponto

de encontro do espírito e do corpo” (1967, p. 326). Ou seja, a vida afetiva permeia tanto

a vida corporal, já que sentimos fome, dor, calor e as mais diversas manifestações dos

sentidos; e à vida do espírito, já que as sensações se traduzem em sentimentos. “O

sentimento”, afirma Leclercq, “[...] é uma força de si irracional, que procura satisfazer-

se em si mesma, sem levar em conta a orientação racional da vida” (1967, p. 327).

Donde ser a inteligência a grande mestra na constituição moral do homem.

A inteligência exerce um “papel de visão” (LECLERCQ, 1967, p. 333) orientando a

vida afetiva. A questão que se impõe aqui é aquela que discute a liberdade de

pensamento. “É a inteligência o fundamento de tudo o que distingue o homem do

animal e negligenciar a inteligência é descurar desenvolver-se humanamente”

(LECLERCQ, 1967, p. 340). Deste modo, consideramos a inteligência como a

faculdade ou capacidade eminentemente humana.

Falar em vontade é também falar em inteligência, uma vez que apenas os seres dotados

de razão possuem vontade. E como a inteligência deve imperar sobre a vontade é

preciso que esta se submeta à razão. Tomás de Aquino a considerou de dois modos:

quanto à universalidade de seu objeto, já que deseja o bem universal e, quanto a uma

faculdade própria dos homens que tem seu ato próprio8.

8 Suma de Teologia, Iª, q. 82, a. 4, ad. 1.

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Hanna Arendt, no segundo volume da obra A Vida do Espírito, discute a questão da

vontade privilegiando em sua análise os principais pensadores ao longo da história do

pensamento humano, refletindo sobre como a idéia de vontade desenvolveu-se ao longo

dos séculos. Na Antiguidade, afirma Arendt, “[...] a faculdade da Vontade era ignorada

[...] e sua descoberta resultou de experiências sobre as quais quase não ouvimos falar

antes do primeiro século da Era Cristã” (1993, p. 189). Foi ignorada, justifica a autora,

pois sendo a noção de tempo cíclica para os gregos antigos, era evidente a idéia de que

havia um retorno.

Não é portanto de se estranhar que os gregos não tivessem noção da faculdade da Vontade, nosso órgão espiritual para o futuro, em princípio indeterminado, sendo, portanto, um possível anunciador de novidade (ARENDT, 1993, p. 200).

Na sociedade cristã medieval, com a idéia-força de que o mundo se inicia com a história

de Adão e Eva e se finaliza na ressurreição de Cristo “[...] a seqüência da história

pressupõe um conceito retilíneo de tempo” (ARENDT, 1993, p. 200). O aparecimento

da vontade teria sua origem na teologia. Deste modo, todas as discussões sobre

liberdade que nos remetem à Idade Média retornam sempre a questão da vontade.

Podemos supor que o homem é pensado a partir de seu tempo e a partir das

peculiaridades de seu tempo. Assim, cada autor dará luz aos conceitos essenciais que

definirão o homem. Se na Grécia Antiga o ideal de homem é aquele que serve a polis,

como se destaca em Aristóteles, na Idade Média o homem é imagem de Deus, pois

emana dEle e, a formação do homem será pensada a partir deste enfoque.

Nascido no século XIII, século do surgimento das Universidades e das Ordens

Mendicantes, do renascimento do comércio e das cidades, do embate entre o

pensamento agostiniano e a expansão do pensamento aristotélico, Tomás de Aquino,

desde jovem, demonstrou zelo e gosto pelo conhecimento, recebeu ainda cedo o hábito

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da Ordem Dominicana.9 Embora sua vida tenha sido breve, sua produção teológica e

filosófica compreende inúmeros tratados e questões, além dos comentários às obras

aristotélicas.

Nossa pesquisa considera as discussões expostas nas questões 6 a 17 da primeira parte

da segunda da Suma de teologia , as quais abordam o movimento da vontade, os atos

humanos, a deliberação, o consentimento e o livre-arbítrio, temas que são fundamentais

para compreendermos o livre-arbítrio para o mestre Dominicano, bem como a questão

83 da primeira parte da Suma de Teologia, a qual discute o livre-arbítrio.

É forçoso, senão necessário, discutir dois termos aparentemente sinônimos: liberdade e

livre-arbítrio. Para a pensadora Hanna Arendt, assim como não podemos falar em

vontade, enquanto volição na Antiguidade Clássica, também não podemos afirmar que

há uma preocupação dentre os pensadores da época com a questão da liberdade.

Segundo esta pensadora, “[...] quando a liberdade fez sua primeira aparição em nossa

tradição filosófica, o que deu origem a ela foi a experiência da conversão religiosa”

(ARENDT, 1979, p. 191). As discussões sobre a liberdade passaram do âmbito político,

como bem nos indicam os escritos de Platão e Aristóteles, por exemplo, para fazer

menção ao homem fundamentalmente político, para um domínio interno ao homem – o

da vontade.]. Para Arendt:

Antes que se tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade, a liberdade era entendida como o estado do homem livre, que o capacitava a se mover, a se afastar de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras pessoas em palavras e ações (ARENDT, 1979, p. 194).

9 Estes, vinculados às Universidades, possuem basicamente, duas preocupações: com a ciência, ou seja, com o conhecimento e com a evangelização. Franciscanos e dominicanos representam as duas Ordens religiosas que expressam sua oposição às riquezas da Igreja, pregando para tal a pobreza e o evangelho. O embate destas duas ordens esteve presente nas Universidades, já que os mestres são de uma ou outra ordem.

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A liberdade é entendida, neste sentido, como liberdade intrinsecamente política, ou seja,

de ação. O livre-arbítrio, por sua vez, definido como a “[...] liberdade de escolha que

arbitra entre duas coisas dadas” (ARENT, 1979, p.197) tem seu surgimento no

pensamento cristão, inicialmente com Paulo e depois Agostinho. Se a liberdade na

Antiguidade clássica fazia parte do mundo da polis, agora será pensada como uma

relação interior, entre eu e eu mesmo, não mais com relação ao exterior. A discussão

acerca da liberdade surge quando esta se torna livre-arbítrio, ou seja, quando se dá no

relacionamento com o próprio eu, surgindo desde modo no bojo das tradições cristãs e,

portanto, no âmbito da religião. Neste contexto, a liberdade divorcia-se da esfera

política em razão da vida contemplativa.

Fundamentando os principais aspectos de nossa pesquisa, entrelaçando os conceitos de

educação, política, ética e moral, nossa pesquisa visa entender sob a perspectiva

proposta pelos Annales, uma questão que diz respeito à formação do homem – o livre-

arbítrio, buscando, deste modo, além de uma interpretação mais ampla e significante

sobre o que seja o homem quando relacionado ao livre-arbítrio, um diálogo maior com

as demais ciências que não seja apenas a História e a Filosofia.

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