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46 A CLÍNICA PRECOCE História de uma colaboração psicanalista/pediatra Graziela Cabassu Histórico de um percurso: encontro psicanalista/médico de Proteção Materna e Infantil (PMI) Há alguns anos, tentamos, com alguns colegas, uma experi- ência de caminho comum entre uma abordagem psicanalítica da psicopatologia do lactente e as práticas médicas exercidas nas con- sultas com crianças pequenas. Com efeito, a disposição de prevenção da Proteção Materna e Infantil na França permite que essas consultas ofereçam ao lactente, e a tudo que o envolve, uma alta qualidade de escuta e de intervenção, condições difíceis de reunir em outros ambientes, hospitalares ou privados. Essa experiência se desenvolveu em dois tempos: a primeira, em que eu mesma trabalhava na PMI e fazia parte das equipes de prevenção, durante uns dez anos. E a segunda, com um grupo de colegas, quando pensamos em promover cursos de formação destinados aos médicos, à luz de nossa experiência adquirida nesse campo, com um objetivo preciso: a prevenção precoce dos problemas de personalidade já detectáveis em lactentes e crianças pequenas.

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A CLÍNICA PRECOCE

História de uma colaboração psicanalista/pediatra

Graziela Cabassu

Histórico de um percurso: encontro psicanalista/médico de

Proteção Materna e Infantil (PMI)

Há alguns anos, tentamos, com alguns colegas, uma experi-

ência de caminho comum entre uma abordagem psicanalítica da

psicopatologia do lactente e as práticas médicas exercidas nas con-

sultas com crianças pequenas.

Com efeito, a disposição de prevenção da Proteção Materna

e Infantil na França permite que essas consultas ofereçam ao lactente,

e a tudo que o envolve, uma alta qualidade de escuta e de intervenção,

condições difíceis de reunir em outros ambientes, hospitalares ou

privados.

Essa experiência se desenvolveu em dois tempos: a primeira,

em que eu mesma trabalhava na PMI e fazia parte das equipes de

prevenção, durante uns dez anos. E a segunda, com um grupo de

colegas, quando pensamos em promover cursos de formação

destinados aos médicos, à luz de nossa experiência adquirida nesse

campo, com um objetivo preciso: a prevenção precoce dos

problemas de personalidade já detectáveis em lactentes e crianças

pequenas.

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CLÍNICA PRECOCE

Esses dois percursos se completam. De fato, durante os anos

trabalhados nesse campo, adquirimos um conhecimento do lactente

e das problemáticas freqüentemente encontradas pelas equipes

médicas, que nos permitiram, a partir daí, elaborar e ajustar o

conteúdo do segundo percurso, para melhor instrumentalizá-las.

O segundo aspecto dessa colaboração, que ainda continua,

atualmente, se desenvolve no sentido de realizar pesquisas destinadas

a formar as equipes na identificação precoce dos sinais, antes da

ocorrência das síndromes do autismo, sempre com um propósito

de prevenção.

Esse duplo percurso se apóia na hipótese de que uma

intervenção rápida e pertinente, desde a aparição dos primeiros

sinais de sofrimento precoce, tem melhores chances de interromper

ou, pelo menos, desviar a evolução das perturbações. Também se

apóia na realidade institucional, pelo menos na situação francesa

atual: os profissionais da Proteção Materna e Infantil são,

freqüentemente, as primeiras testemunhas das dificuldades do laço

mãe/criança. Por isso, a acuidade de seu olhar e sua faculdade de

discriminação tornam-se capitais para a realização de ações de

prevenção precoce.

Um outro propósito dessa colaboração é o de dar meios

aos profissionais da área não apenas de discriminar a aparição das

perturbações, como também, em um número significativo de casos,

de reagir de maneira apropriada, o que por vezes pode ser suficiente

para modificar o quadro. Em outros casos, a dificuldade encontrada

ultrapassa o âmbito de algo que possa ser tratado in situ: nesse caso,

é preciso encaminhar as famílias a um tratamento especializado.

Esse último ponto se mostra com freqüência difícil, pois o

diálogo entre equipes de prevenção para crianças e equipes de saúde

mental nem sempre é fácil. Assim, outro dos objetivos desses

percursos é o de criar laços de colaboração entre instituições, tendo

em vista uma prevenção precoce.

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BOI DA CARA PRETA: CRIANÇAS NO HOSPITAL

Primeiro tempo: o trabalho de campo de um psicólogo da PMI

Depois de cerca de vinte anos, eu terminei meus estudos e

minha formação analítica pessoal, e me dediquei ao tratamento de

adultos, ou seja, à psiquiatria. Mas, ajudada pelos acasos do mercado

de trabalho, eu me reencontrei na prevenção infantil.

Não foi uma surpresa sem conseqüências, pois eu não estava

preparada para isso, assim como não o estavam as equipes que me

acolheram: na melhor das hipóteses não me davam atenção, na pior,

não me queriam.

De fato, o que é que um “psi” poderia fazer lá, com bebês

em boa saúde, mães em boa saúde, não tendo nenhuma necessidade

de cuidados psíquicos?

Eu concordava com tais opiniões, pois eu mesma me

perguntava em que eu poderia contribuir, enquanto “psi”, numa

consulta com lactentes, onde a dimensão médica era a autoridade

maior, onde a problemática social era levada em conta, e onde

mesmo o aspecto educativo era levado em consideração, através

do viés do desempenho na sala de espera e dos conselhos educativos

dispensados às famílias.

Foi nesse contexto que eu encontrei o lactente e tudo que o

envolve: a maior parte do tempo com a mãe e irmãos, pois as

consultas são feitas durante o dia. Às vezes, até os pais, cujas

participações passei a considerar importantes; e essa foi uma parte

significativa de meu caminho.

O início desses diálogos foram trabalhosos. Pouco a pouco,

comecei a me interessar por aquilo que me incomodava nos médicos.

Precisamente, por aquele tipo de problemática de que eles não

gostavam, porque punham em cheque seus recursos, aquelas em

que sua competência, seu arsenal terapêutico clássico funcionava

mal, mesmo que não houvesse urgência: eram os sintomas que

alertavam menos por sua gravidade do que por sua freqüência e

recorrência. O bebê não fixava bem o olhar, não ganhava peso,

apesar de tudo ter sido mudado: o leite, as doses, os conselhos de

aleitamento para a mãe, e, contudo, nenhuma melhora.

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CLÍNICA PRECOCE

Eis o que me interessou: era, sem dúvida, nesse tipo de situação

que o “psi” poderia trazer algum esclarecimento, sem invadir a área

nem dos médicos, nem dos educadores, nem dos assistentes sociais,

ou seja, os representantes dos três outros discursos presentes nesse

lugar.

Eu, então, me aproveitei desse filão e contei com a ajuda dos

trabalhos dos analistas que mais trataram essas questões da primeira

infância – em particular Winnicott – e me dediquei aos problemas

clínicos, os quais essas equipes acabaram por aceitar que eu partilhasse.

Foi assim que me apaixonei pela psicopatologia do lactente

e, mais particularmente pela formação dos processos psíquicos

precoces. Isso me levou naturalmente a me interessar pelas

problemáticas graves e precoces, e, em particular, pelo autismo.

Por que isso? Porque quando um bebê se desenvolve

normalmente, ele apresenta aquilo que chamo de “a aparente

simplicidade do normal”, ou ainda, “a opacidade do normal”. Ou

seja, que um bebê que se apresenta às consultas regulares e que

acompanhamos tranqüilamente à medida em que cresce, nos dá a

impressão de “mágica”, onde tudo vai por si só. A impressão

consciente é que tudo isso se dá sem qualquer participação nossa.

De fato, é muito difícil captar a complexidade dos processos

subjacentes a partir da opacidade da situação dita “normal”.

Foi nesse momento que me defrontei com a primeira criança

autista com a qual me ocupei. Era um bebê que se desenvolvia de

maneira atípica, com o qual se ocupavam todos os tipos de médicos:

oftalmologistas, porque seu estrabismo psicológico havia se fixado;

os (CRL), porque se acreditava que fosse surdo, etc. Eu relatei sua

história num artigo Maxime: entre entendre et ouïr (Maxime: entre escutar

e ouvir) (1), onde mostro como sua surdez não era devida a uma

deficiência sensorial, mas a uma dificuldade de comunicação, que o

trabalho analítico pôde fazer regredir. É um dos ensinamentos

fundamentais que eu aprendi da experiência com o autismo: face a

suspeitas de deficiências sensoriais da primeira infância, freqüentes e

banais, é preciso sempre deixar uma margem para a hipótese de

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BOI DA CARA PRETA: CRIANÇAS NO HOSPITAL

uma deficiência da comunicação. Ou seja, para alguma coisa que

não seja da ordem do equipamento sensorial, nem do funcionamento

dos órgãos, mas da aparelhagem significante. Com efeito, isso a

que chamamos a percepção humana é o resultado de uma montagem

entre um funcionamento de órgãos e uma aparelhagem significante.

Meu interesse por esses tipos de patologias extremamente

comprometedoras se justifica pelo fato de que elas põem a nu,

tornam visíveis se posso dizer, como um filme em câmara lenta, os

processos subjacentes à emergência do psiquismo. São crianças que

levam anos para olhar, para falar, aquilo que as crianças que se

desenvolvem normalmente fazem no espaço de algumas semanas

ou meses. Assim, num segundo artigo dedicado a Maxime, eu relato

como aconteceu, no transcurso de três anos de paciente trabalho

analítico, a construção do objeto, a partir do objeto autista (2).

O conhecimento que adquiri com a prática de terapeuta de

crianças portadoras de patologias graves me permitiu atender

também a clínica comum, proveniente de consultas a lactentes, onde

sinais muito discretos permitiam intervenções leves e rápidas, às

vezes sem intermediação de ninguém.

Com efeito, um outro conhecimento que adquiri nesse

percurso foi que o saber específico do terapeuta é extrapolável em

situações que ultrapassam o âmbito de cura clássico, e que pode ser

posto à disposição do pessoal médico e educativo que lida com as

crianças em diversas instituições. Há múltiplas formas de atuação

indireta ou institucional, que são possíveis acionar ou promover. E

essas diferentes “práticas” se mostraram extremamente fecundas

em termos de resultados.

Pude assim diversificar a minha prática e, em particular, intervir

junto a equipes educativas sob a forma de grupos de estudo, de

observação e de análise de situações, as quais permitem multiplicar

as ações e obter resultados bem interessantes, seja no manejo de

certas situações graves, seja na realização de trabalhos especializados.

O trabalho “com intermediários”, foi particularmente

implementado: desde as puericultoras indo às casas quando avisadas

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CLÍNICA PRECOCE

do nascimento ou por causa da notificação da ocorrência de

problemas, passando pelas monitoras em educação familiar (antigas

Trabalhadoras Familiares) no âmbito de ações de prevenção a longo

prazo em famílias de risco, até equipes educativas dos Centres Maternels(Centros Maternos), que acolhem jovens mães em grande sofrimento.

As maneiras de acolhimento clássicas, tipo creches de curtos

períodos e creches coletivas, também chamaram muito minha

atenção, pois as ações de prevenção nesses lugares abertos a todos

podem se mostrar fundamentais para um número muito grande de

crianças.

Segundo tempo: a implantação de ações de formação

A lei sobre a formação profissional permanente na França

permitiu colocar à disposição do pessoal da primeira infância uma

série de programas, cujos conteúdos foram pensados em função

desse conhecimento extraído da prática.

Aqueles destinados aos médicos de PMI está entre os que

obtiveram maior sucesso há muitos anos.

Seu conteúdo aborda aspectos técnicos e institucionais

próprios à função do médico de PMI na França, e comporta três

dias consagrados à clínica precoce, às disfunções do laço e à

prevenção dos distúrbios graves do funcionamento psíquico.

A experiência dessas trocas parece provar que a percepção

que os médicos têm da clínica, freqüentemente funcional quanto à

primeira infância, se modificou. E que melhores parcerias de trabalho

podem se estabelecer dentro das equipes, bem como com outros

interlocutores institucionais, em particular a saúde mental.

O objetivo principal desse percurso é tornar o médico sensível

à dimensão relacional de sua clínica cotidiana, dificilmente redutível

a uma abordagem puramente somática. Essas são, em linhas gerais,

o conteúdo das noções que nós, psicanalistas, nos esforçamos em

partilhar com os médicos.

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BOI DA CARA PRETA: CRIANÇAS NO HOSPITAL

A clínica precoce

A clínica precoce é o termo que escolhemos para designar o

fato de que, para o lactente e a criança pequena, o corpo e seu

funcionamento são o suporte de um certo número de manifestações

que, por serem somáticas, não o são menos tomadas por uma

dimensão simbólica. É sob esse aspecto que podemos chamar a

“intricação somato – psíquica” que me esforçarei em esclarecer.

A prematuridade da espécie: noção do outro da relação

Nos últimos dez anos aprendemos muito sobre a vida intra-

uterina, e, mesmo que ainda reste muito a descobrir, tornou-se banal

reconhecer que o estado emocional da mãe traz conseqüências, de

maneira manifesta, no que vai se passar com a criança, não apenas

durante e ao final da gravidez, mas também no momento do

nascimento.

Sabemos, por exemplo, que o feto ouve in utero, e que se

mostra sensível à questão da palavra e da voz. Foram feitos vários

estudos sobre esse assunto, tanto de modo experimental (12), quanto

clínico. Eu mesma me interessei por essa questão complexa das

trocas materno-fetais, numa comunicação apresentada num colóquio

sobre a Linguagem do Lactente (Paris, março de 1992), onde eu

me detive em três casos clínicos: um bebê anoréxico, um bebê

bulímico e um bebê que vai indo bem, para mostrar como as trocas

que as mães tiveram com eles ao final da gravidez e durante o

período néo-natal influenciaram no seu desenvolvimento(3).

Dito de outro modo, e provavelmente, além do nascimento

biológico no sentido de expulsão, o bebê humano já é um ser de

relação. Um ser para o qual a relação que tem com esse outro

humano que o carrega já se mostra fundamental para o seu futuro.

Isso parece simples, mas não é. Poderíamos, legitimamente,

nos perguntar por que, para os humanos, o laço com o outro assume

uma tal importância.

A resposta não parece estranha ao nosso tema. Ela me parece

ligada ao estado de prematuridade da criança humana ao nascimento.

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CLÍNICA PRECOCE

Não a prematuridade clínica, aquela que determina as intervenções

em neonatologia, mas a prematuridade normal, aquela de todo o

bebê em boa saúde ao termo de uma gravidez sem problemas.

Essa prematuridade, chamada de “estado de sofrimento

primordial”, determina que a sobrevida entre humanos não esteja

assegurada sem ajuda exterior. Mesmo quando um recém-nascido

está no seu estado ótimo ao nascimento, ele não tem nenhuma

possibilidade de sobreviver sem a ajuda de um semelhante. Eis o

que chamamos a mãe, a mamãe. A personagem materna se torna

incontornável por causa da prematuridade da espécie, pois nossa

vida dependeu disso, no sentido absolutamente próprio.

Esse sentido se tornará figurado com o passar do tempo,

mas é, sem dúvida, desse pedestal do real, sobre o qual se apóia a

relação dita primordial, que guardamos todas essas cicatrizes,

absolutamente indeléveis, sob a forma daquilo que chamamos o

amor.

Pois, mesmo quando não dependemos mais de ninguém, no

sentido próprio, porque nos tornamos adultos capazes de sobreviver

por nós mesmos, dependemos sempre dos outros pelo viés do

amor. Essa força incrível que tem, para os humanos, o laço com o

outro, está fundada, no meu entender, na experiência da dependência

absoluta que todos nós atravessamos na relação primordial com

esse outro, a quem devemos nossa sobrevivência. E ficamos assim

marcados pelo resto da vida, qualquer que seja o grau de maturidade

psico-afetiva que sejamos capazes de atingir na idade adulta.

Mas, podemos objetar que os bebês humanos não são os

únicos a nascerem prematuros. Num grande número de outras

espécies mamíferas, os bebês nascem também prematuros e os

adultos genitores são obrigados a se ocupar dos jovens durante um

tempo variável para assegurar sua sobrevivência. É isso que os

etólogos chamam de comportamento de “chocar”.

Certo. Porém as outras espécies de mamíferos dispõem de

instintos, o que designa precisamente comportamentos geneticamente

programados, próprios a cada espécie. Tais instintos vão lhes

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permitir ordenar seus períodos de cortejar, seus acasalamentos, o

chocar, a conduta no grupo, o comportamento frente ao predador

etc., o que os dispensa da necessidade de pensá-los.

Além do mais, esses comportamentos podem ser de uma

imensa complexidade; todos conhecem o exemplo das abelhas, ou

das formigas brancas, mas isso não muda nada em relação ao

problema: é um sistema de signos, não de significantes. Quando se

é operária entre elas, assim se permanece, e quando se é rainha,

também se permanece, e isso não produz questionamentos a

ninguém: nenhuma reivindicação, nenhum desejo.

Entre os humanos, não é assim: nós temos muitos registros

genéticos e os conhecemos cada vez melhor. Mas, as cadeias genéticasregistradas, que seriam especificamente humanas, não as temos. Somos

obrigados a pensar os nossos comportamentos, com a ajuda da

linguagem.

Uma hipótese antropológica sustenta que a espécie humana

teria perdido, no curso da evolução, suas programações instintivas

em favor do desenvolvimento do neocórtex, onde têm lugar as

funções superiores, especialmente a linguagem, enquanto sistema

significante, para além de todas as línguas faladas. Uma tal hipótese

é sedutora, pois nos permite conceber a linguagem como o

instrumento específico produzido pela espécie humana para a

garantia de sua sobrevivência.

O bebê humano é um ser de linguagem: noções de necessidade,

demanda e desejo

Eis-nos aqui introduzidos na questão da relação com o outro,

enquanto central para a sobrevivência, não apenas do ponto de

vista dos cuidados indispensáveis, mas, sobretudo, pelo fato de que

esses cuidados devem ser pensados com um sistema significante, a

linguagem.

Freud jamais empregou o termo “mãe”. Ele empregou, para

designar esse outro indispensável, um termo alemão: nebensmench,

que foi traduzido para o francês por: “próximo assegurador”. Esses

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dois termos constituem uma definição em si. Em primeiro lugar,

“próximo”: no sentido bíblico, ou seja, semelhante.

Por que um semelhante? A história nos prova que houve muito

poucas crianças-lobo e os relatos são exagerados e problemáticos.

Na história de Victor, a criança de Aveyron, e do Dr. Itard, – sobre

a qual Truffaut extraiu um belo filme L’ enfant sauvage (A criança

selvagem), – vemos muito bem que o que falta a Victor são

justamente os processos de humanização e em particular a linguagem:

ele teve sobrevida psicológica, sem dúvida, pela interpretação dos

animais.

Essas histórias provam que a sobrevivência pode eventual-

mente ser assegurada – e mesmo assim, em casos muito raros: al-

guns entre os milhares de indivíduos que comporta a humanidade

–, mas essa forma excepcional de sobrevivência deixa inteiramente

em suspenso a questão da humanização. A humanização só pode

ser transmitida por um semelhante. Veremos também porque o

fato de que seja um semelhante ainda não é suficiente: deve ser

também assegurador, ou seja, portador de um desejo de sobrevivên-

cia em relação ao recém-nascido.

Lacan também não fala da mãe. Ele fala do outro da relação.

Mas ele distingue dois “outros”: um grande, com o A maiúsculo, e

que designa, não uma pessoa psíquica, mas uma instância. O grande

Outro é uma noção complexa, mas da qual pode-se dizer que se

trata de um conjunto, no sentido da teoria dos conjuntos, impossível

de contar e contudo não infinito, daquilo que compõe o universo

simbólico, no qual um dado recém-nascido será mergulhado desde

antes de seu nascimento.

Esse conjunto simbólico ultrapassa cada sujeito que o habita

e o determina de muitas maneiras, quanto ao essencial, sem que ele

o saiba. O pequeno outro, com um a minúsculo, designa cada sujeito,

na singularidade de suas vicissitudes, que faz dele um representante

único e não exaustivo do grande Outro ao qual pertence.

A mãe é para o bebê, segundo Lacan, um pequeno outro

tomando o lugar de um grande Outro (8). Por que? Porque no seu

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entender, enquanto interlocutora primordial, ela vai transmitir ao

bebê do qual cuida, um amontoado de particularidades do grande

Outro que a determinam, mas “revisto e corrigido”, se assim posso

dizer, pelo prisma de sua subjetividade pessoal, ou seja, aquilo que

as vicissitudes de sua história singular escreveu nela.

O que é que uma mãe vai transmitir ao seu recém-nascido,

sem o saber, enquanto cuida dele? Essencialmente, que ela escuta

como demandas que deseja satisfazer aquilo que ele manifesta de suas

necessidades e a maneira como ela o faz.

Os registros muito precoces e inconscientes da maneira como

o outro cuidou dela serão, em grande parte, os registros aos quais

uma mãe fará apelo para cuidar do seu bebê.

Eu proponho definir aquilo que foi chamado – muito mal,

no meu entender, levando em conta o que acabo de dizer – de

“instinto materno”, como: “a reativação dos traços mnêmicos

inconscientes da maternagem recebida.”

Esta simples constatação nos permite abordar o campo das

transmissões transgeracionais: pois, se a capacidade maternal não

fosse, ela também, adquirida, ou seja, resultante de maternagem

recebida, estaríamos ao abrigo da repetição mortífera da falência

parental sob suas diversas formas.

Mas isso nos introduz também ao aspecto radical do

funcionamento do psiquismo humano: pelo fato de que essas

necessidades sejam ouvidas e tratadas como demandas desejando serem

satisfeitas, o bebê humano, desde que entra em contato com seu

outro da relação, deixa seu estatuto de ser de necessidade para se

transformar em ser de desejo.

No esquema chamado “grafo do desejo”(7), Lacan representa

a mudança radical de registro que opera, para todo o sujeito, sua

introdução no mundo da linguagem: a linha que sobe a partir do

delta representa a necessidade: o recém-nascido vai esfriar, e terá

necessidade de ser reaquecido; terá fome e terá necessidade de ser

alimentado; não poderá se deslocar no espaço de maneira autônoma,

terá necessidade de ser transportado, carregado. No momento da

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abertura das vias aéreas, o sopro inicial da respiração vai produzir

um barulho, puro fenômeno físico mecânico, o qual servirá como

descarga frente ao acúmulo de tensões, do mesmo modo que as

agitações motoras. Tudo isso constitui o que poderemos classificar

do lado da necessidade.

Mas, nesse momento, essa formação vai encontrar o grande

Outro, em A, encarnado na personagem materna. O que significa

dizer que essa formação cega da necessidade vai encontrar, naquele

que o acolhe, uma resposta humana. Ou seja, que para a mãe que

ouve seu recém-nascido gritar, não se trata absolutamente de um

fenômeno físico mecânico, seu bebê a chama, ele fala com ela, e ela

responde: “estou aqui”. E, a partir desse instante, ao qual chamamos

de encontro inaugural, esse grito não é mais um barulho, é um apelo,

e a partir desse instante, antes de qualquer palavra propriamente, o

bebê fala, o bebê se tornou um sujeito.

Essa mudança tem lugar em todos os registros de trocas do

recém-nascido com o meio ambiente. Eu me deterei sobre três

grandes registros, sabendo que ‘todas’ as nossas necessidades, mesmo

as necessidades corporais aparentemente as mais elementares, são

distintas, imbricadas, indissoluvelmente ligadas a uma questão de

sentido, devido a essa tomada pela linguagem, que faz com que nosso

corpo, aquilo que chamamos de nosso corpo, não seja senão nossa

imagem do corpo, ou seja, corresponda a uma construção psíquica.

Os três registros que vou abordar são, respectivamente a

oralidade, a especularidade e a questão da voz, o que recobre aquilo

que Lacan falou sobre a pulsão invocante.

A oralidade

Em todas as histórias de alimentação no primeiro ano, que

vêm nutrir, como se pode bem dizer, a clínica pediátrica do cotidiano,

o que se passa no estômago ou na mamadeira raramente está em

questão e, se esse for o caso, é rapidamente resolvido. O que torna

a situação complexa, é o sentido que toma a troca alimentar, a qual

implica ao mesmo tempo o desejo inconsciente da mãe e aquilo

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que ela atribui como desejo do bebê. É propriamente a questão da

metáfora do amor que dá suporte à relação alimentar.

No tratamento das dificuldades alimentares precoces, essa

leitura nos permite avançar: quanto mais a mãe responde sobre o

plano estrito da necessidade, “superalimentando” o bebê, mais o

bebê vai recusar, e essa dinâmica se acentua se a mãe insistir.

A clínica das recusas alimentares simples do primeiro ano

deve chamar nossa atenção para a tonalidade da relação mãe/bebê:

com efeito, uma recusa no plano alimentar traduz muitas vezes, por

parte do bebê, uma tentativa de por um limite à intrusão da mãe,

mesmo que se dê num outro plano da relação.

A anorexia severa do lactente, que é um quadro grave e pouco

freqüente, mas de prognóstico letal a curto prazo, existe para nos

provar, para por a descoberto, o que sustenta a relação alimentar:

um sujeito pode recusar até a morte a satisfação da necessidade, em

nome de seu reconhecimento enquanto ser de desejo.

Não é inútil lembrar isso, pois a proximidade entre oralidade

e o registro da necessidade nos expõe freqüentemente ao perigo de

cair pura e simplesmente no nível da necessidade, ignorando ou

desconhecendo sua dimensão simbólica, ou seja, aquilo em que ela

interessa na questão do desejo.

A especularidade

A especularidade, da raiz latina speculum, espelho, interessa à

questão do olhar.

Essa questão é particularmente central para nós, não apenas

porque a ausência do olhar constitui o sinal patognômico das

patologias autistas, mas também porque o funcionamento do olhar

preside à constituição da imagem do corpo, da qual depende o

desenvolvimento psicomotor.

Assim que o recém-nascido aparece no campo perceptivo

da mãe, no momento da expulsão, e que se torna, portanto,

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perceptível no sentido visual, táctil, auditivo, ele entra em contato

com o que costumamos chamar de “bebê imaginário”.

Esse termo designa uma construção psíquica essencialmente

inconsciente, da qual são portadoras as mulheres em estado de

gestação.

O nascimento, então, corresponde a esse tempo de encontro

onde, no movimento que chamamos de “reconhecimento

primordial”, esse estrangeiro absoluto, se encontrará enganchado no

conhecido, reconhecido como familiar: ele é bem como esperávamos.

Esse ato é uma pura projeção, mas extrai seu valor fundador

de seu poder de introduzir o recém-nascido numa filiação, numa

pertinência.

Esse tempo do reconhecimento primordial coloca a mãe

em posição de poder atribuir, a esse bebê que se tornou seu, os

objetos de seu desejo. Ele então se constitui no olhar que ela dirige

a ele, uma imagem composta do real do corpo do bebê e das

atribuições do desejo materno(10).

Winnicott, logo em seguida à publicação do Estado do espelhode Lacan, escreveu um artigo que se intitula “Le rôle du miroir de la

mère et de la famille dans le développement de l’ enfant” (O papel

do espelho da mãe e da família no desenvolvimento da criança) (13),

onde postula que é no olhar que a mãe dirige ao bebê que sua

imagem se forma e à qual ele vai poder se identificar. À questão:

“quando o bebê olha para a mãe, o que ele vê?”, a resposta será:

“ele mesmo”.

Aquilo que Lacan irá postular, por seu lado, no Stade du Miroir(Estágio do Espelho) (9), é que o bebê que é olhado assim se tornará

aquele que perceberá sua própria imagem no espelho. Ele situa esse

momento entre 6 e 18 meses, quando, num movimento de

antecipação à maturação motriz, o bebê se percebe como uma

unidade na qual se precipita ao mesmo tempo seu “eu” e a imagem

do corpo. O que conta, nesse momento inaugural, é a confirmação

de que a criança demanda do adulto que o carrega, esse vai e vem

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em que é o outro que ratifica a percepção de nós mesmos e que

levará Lacan a dizer que o sujeito emerge do campo do Outro,

descentrado de si mesmo e num movimento em que a alienação

será própria de sua relação com sua própria imagem.

Uma mãe deprimida, ou psiquicamente ausente da relação,

restitui ao bebê de que cuida uma imagem problemática de si mesma.

“Os bebês ... confrontados longamente com a experiência de não

receber em troca aquilo que eles mesmos estão dando ... olham,

mas eles próprios não se vêem”, diz Winnicott (14), e indo mais

longe: “se o rosto da mãe não responde... a ameaça de um caos se

coloca, e o bebê organiza sua retração ou não olha nada ... e o

espelho se torna então uma coisa que se pode olhar, mas na qual

não é possível se ver”(15) .

Dificilmente se poderia melhor exprimir o fator de risco

considerável que constitui para o recém-nascido a depressão materna

e, sobretudo, quando ela se apresenta como uma “depressão

branca”, ou seja, sem sintomas, apenas como uma forma de ausência

psíquica. Esse tipo de depressão pode não alertar, porque essas

mães continuam capazes de vaguear em suas ocupações, cumprir

as tarefas junto ao bebê, contudo a natureza “mecânica” das trocas

que ela estabelece com ele pode comprometer os processos que

descrevemos aqui.

Todos os aspectos daquilo que eu chamaria a “clínica do

olhar” devem ser considerados como fundamentais ao curso do

primeiro ano. Quando as operações psíquicas correspondentes se

mostram favoráveis, o que podemos habitualmente observar é que

o estrabismo psicológico ao estado de imaturidade da motricidade

ocular ao nascimento regride espontaneamente em favor da

constituição do campo visual, em torno do final do 4o mês; que a

solicitação ocular e as coordenações viso-motoras operam,

permitindo que o diálogo “olho a olho” funcione sem dificuldade,

não apenas entre o bebê e a mãe, mas também entre o bebê e nós,

observadores exteriores.

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CLÍNICA PRECOCE

O que fica evidente, é que a precocidade dessa operação,

bem anterior ao 4o mês nos bebês que vão bem, nos permite levantar

a hipótese de que não é do visual no senso estrito que se trata, mas

antes, de alguma coisa da ordem da representação.

De fato, parece que as representações, mesmo que sejam

persecutórias, hostis e desvalorizantes, permitem que o bebê se

construa. Portanto, é a ausência de representação que constitui

verdadeiramente um impasse, pois tudo se passa como se a criança

se confrontasse com um olhar que não a vê, e, por causa disso, a

identificação que cristaliza o eu não é possível.

Escrevi, há alguns anos, a história de uma menina autista. O

traço marcante desse caso era exatamente que a mãe havia

materializado a ausência de representação que teria dela, sob a forma

de uma boneca. Essa boneca, que inspirou o título de meu trabalho

La poupée sans visage (A boneca sem rosto)(4), era uma boneca de

pano feita pela mãe e que não tivera tempo de bordar, como previsto,

os traços do rosto.

Esse caso é efetivamente exemplar daquilo que se pode chamar

de “cegueira especular”, para distinguir da cegueira efetiva, pois

essa mãe não era cega, e sua filha também não, mas estavam numa

espécie de impossibilidade de se ver uma à outra. É isso que se

designa por ausência de representação, e é essa ausência de representação

que parece constituir, com respeito à operação da dinâmica especular,

o impasse mais radical.

Pulsão invocante: a palavra e a voz

O campo da invocação, ao qual interessa a questão da voz,

recobre um certo número de fenômenos, dos quais gostaria de

isolar dois: a instituição do apelo e a introdução do código, no

sentido da língua falada.

No momento do nascimento, o sopro correspondente à

abertura das vias aéreas produz um barulho: o grito do nascimento.

Aquele ou aquela que o ouve, e que então se constitui como

destinatário, transforma esse grito, do qual podemos dizer, a justo

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BOI DA CARA PRETA: CRIANÇAS NO HOSPITAL

título, que não é emitido por ninguém, como ato de alguém: não é um

barulho, é o bebê que chama e a mãe responde “presente”.

É o momento inaugural, como reconhecimento primordial

para a especularidade: o grito do nascimento é ouvido como um

apelo. Esse ato é fundador pois, em adição a todos os fenômenos

de consciência que se processam nele, o bebê é promovido ao

estatuto de sujeito falante. O sopro vocal e a agitação motora que

têm valor de descarga num primeiro tempo, tomam valor de

linguagem para aquele que o ouve.

E aqui introduzimos a segunda questão fundamental: se há

um sujeito que fala, a mãe poderá fazer a atribuição de sentido que

vai modular a cadeia sonora produzida pelo lactente.

Os bebês bem conduzidos não têm nenhuma dificuldade

em se apropriar dessa atribuição, e rapidamente se ouve a mãe

retornar servindo-se de seu instrumento vocal. Eles irão reclamar

alto e forte quando tiverem necessidade de alguma coisa, mas ficarão

calmos assim que houver uma resposta apropriada, compreendendo

aí uma resposta verbal pedindo que esperem. Eles poderão esperar

sem se desorganizar.

Por outro lado, bebês criados em instituições, ou por mães

em sofrimento, que lidam com respostas anônimas, regulados por

horários rígidos, ou respostas caóticas e aleatórias, terão muito mais

dificuldade de externar tais respostas. Esses bebês têm as maiores

dificuldades para interiorizar o fato de que o seu grito ou sua agitação

motora tenha qualquer poder sobre o meio ambiente. Por isso, eles

se tornam muito difíceis de consolar, eles se agitam sem esperar que

alguém responda e, quando chega uma resposta, não os acalma,

como se o laço entre a satisfação da necessidade e o apaziguamento

não estivesse estabelecido. É a exautão do apelo, desembocando

no mutismo das evoluções pré-autistas.

O segundo aspecto diz respeito à introdução do código, no

sentido da língua falada. Num bebê normal, ele desenvolve uma

forma chamada de “despertar calmo”, onde ele brinca com sua

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CLÍNICA PRECOCE

voz. É o investimento da voz enquanto objeto da pulsão. Quando

se relaciona com a mãe, há uma troca, e ela responde com a ajuda

da voz.

Essas trocas vocais entre mãe e criança são magistralmente

estudadas por S. Ferreira no seu artigo De l’ interation mère/bébé au dialoguemère/bébé (Da interação mãe/bebê ao diálogo mãe/bebê) (6), onde

descreve o funcionamento do “manhês” (motherese) – como a

modalidade – introdução da língua falada na cadeia sonora pela criança.

No “mã mã mã”, a mãe vai recortar a palavra do código: ela

construirá mamãe. Essa operação releva tanto a atribuição quanto ocorte, e produzirá a diversificação do leque sonoro emitido pela

criança, bem como a “legibilidade” pelos que o cercam.

Um bebê normal, é um bebê “legível”, compreendido por

outros além de sua mãe. Conhecemos, por outro lado, todos esses

bebês inconsoláveis, cuja agitação e gritos inarticulados não parecem

sequer entrecortados por vocalizações mais estruturadas e, menos

ainda, endereçadas.

Essa atitude da mãe de recortar e de atribuir sentido parece

ausente em mães de crianças que tenham apresentado sintomas

autistas.

No meu trabalho sobre Amélie (5), descrevi a “surdez

significante”, que é esta maneira particular, que certas mães de crianças

autistas têm, de ouvir as emissões vocais da criança ao pé da letra, ou

seja, não oferecendo a diferença necessária para que a vocalização,

por semelhança, seja assimilada a uma palavra do código.

Amélie, chegando um dia à sessão, ficou diante de mim (dirige-

se a mim sem me olhar) e me diz, pegando o telefone: “gui, gui,

gui”. Estupefata, eu replico: “mas é seu pai que se chama Guy. Você

está ligando para seu pai” (de fato, nas sessões precedentes, tinha

havido um jogo consistindo em simular um telefonema ao pai).

Então a mãe me retrucou, incrédula: “Você pode acreditar? mas ela

não disse Guy, ela disse “gui gui gui” ...

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BOI DA CARA PRETA: CRIANÇAS NO HOSPITAL

M.C. Laznik menciona a mesma experiência: “Se digo à mãe

de Philippe que ele acaba de dizer “da” (donne), ela me retrucará,

incrédula, que não é bem isso, que isso se parece mais com “carro”

(ponne) ou “barro” (tonne). Ela não está errada e, contudo, essa

incapacidade de antecipar torna impossível que isso advenha (11).

Esse tipo de situações são o “contra-exemplo” do que se

produz habitualmente, e que parece estar na origem mesma daquilo

que abre o acesso à linguagem.

À guisa de conclusão

Esses anos de experiência de troca com pediatras e pessoal

encarregado da primeira infância já permitem depreender os seguintes

ensinamentos:

1) Parece que essa troca de conhecimento leva, num primeiro

momento, a uma modificação do olhar dos participantes sobre a

problemática apresentada pelos bebês e crianças pequenas em

situação de consulta pediátrica;

2) Parece que, num segundo tempo, essas trocas lhes fornecem

indicadores que lhes permitem não apenas identificar a maior parte

dos sinais de sofrimento precoce, como também intervir, de uma

maneira pertinente, em várias situações da clínica corrente.

3) E enfim, que uma melhor compreensão da natureza das

dificuldades facilita também o diálogo com os que devem se

encarregar, a saber, o pessoal de saúde mental. Isso se manifesta

sobre o campo por uma pesquisa e uma constituição mais fáceis

entre os parceiros de trabalho.

Esse último ponto se mostra fundamental, pois dele depende

o funcionamento das ações de prevenção precoce.

Paris, janeiro de 1999

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REFERÊNCIAS

1 CABASSU, G. Maxime: entre entendre et ouïr. La Psychanalyse deL’enfant, n. 10, Paris, 1991.

2 Le Ballon de Maxime. la psychanalyse de l’enfant, n. 18,

Paris, 1995.

3 Les nouritures terrestres. Congresso Le langage du nourisson,Paris, Mars, 1998.

4 La poupée sans visage. In: La Clinique de l’Autisme, Paris,

Points hors ligne, 1933. Edição brasileira In: LAZNIK, Marie

Christine (org.). O que a clínica do Autismo pode ensinar aos psicanalistas.Salvador: Ágalma, 1994.

5 op. cit. p.86.

6 FERREIRA, S. De l’interaction mère-bébé au dialogue mère-bébé.

La Psicanalyse de l’enfant n. 16, Paris, 1995.

7 Le graphe du désir, particularmente na primeira versão,

dita graphe I, In: LACAN, J., Écrits. Subversion du sujet et

dialectique du désir, Paris: Seuil, 1966, p. 805.

8 LACAN, J. Séminaire sur l’angoisse. Paris, inédit, 1962/63.

9 Le stade du miroir comme fondateur de la fonction

du Je. In: LACAN, J. Écrits, Paris: Seuil, 1966.

10 LAZNIK-PENOT, M. C. Du rôle fondateur du regard de

l’Autre. La psicanalyse de l’enfant, n. 10, Paris, 1991.

11 op. cit. p. 135.

12 MEHLER, J.; DUPOUX, E. Naître Humain. Paris: Ed. Odile

Jacod, 1995.

13 WINICOTT, D. W. Le rôle du miroir de la mère et de la famille

dans le dévellopment de l’enfant. In: WINICOOTT. D. W. Jeu etréalité, Paris: Gallimard, 1990.

14 op. cit. p.155

15 op. cit. p.156

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Sobre a autora

Psicanalista, membro da Association Freudienne Internationale(Paris), trabalha com crianças e bebês em consultório além de atuar

em uma creche pública e um orfanato.

Fundou a Harppe, centro de formação e reflexão da prática

profissional em torno da pequena infância.

Ágalma publicou o seu artigo “A boneca sem rosto” in O quea clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas, Laznik, M. C., org.

1994.