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Homenagema Barcelona

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Relógio D’Água EditoresRua Sylvio Rebelo, n.º 15

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Copyright © Colm Tóibín 1990, 2002Esta obra não pode ser vendida fora de Portugal (e da Europa).

Título: Homenagem a BarcelonaTítulo original: Homage to Barcelona (1990)

Autor: Colm TóibínTradução: Ana Falcão Bastos

Revisão de texto: Michelle Nobre Dias, Anabela Prates Carvalho e Joana Nunes

Capa e fotografia da capa: Carlos César Vasconcelos(www.cvasconcelos.com)

© Relógio D’Água Editores, agosto de 2016

Esta tradução segue o novo Acordo Ortográfico.

Encomende os seus livros em:www.relogiodagua.pt

ISBN 978‑989‑641‑640‑9

Composição e paginação: Relógio D’Água EditoresImpressão: Europress, Lda.

Depósito Legal n.º: 413686/16

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Colm Tóibín

Homenagem a Barcelona

Tradução deAna Falcão Bastos

Viagens

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Demónios e Dragões

Recordo ‑me da estranha humidade durante esse primeiro se‑tembro que passei na cidade. Recordo ‑me do cheiro a ranço e do ruído constante quando os lojistas subiam e desciam os estores de aço. Recordo ‑me do som dos carros e das motos a reverberar contra os velhos edifícios de pedra, do som de passos e das vozes que ecoavam nas ruas estreitas. Estava ‑se em 1975, dois meses antes da morte do general Franco. Eu tinha vinte anos e acabara de chegar a Barcelona.

Os edifícios da Rambla, a longa avenida ladeada de árvores entre a Plaça de Catalunya e o porto, eram tão diferentes como cada rosto que nos avaliava durante uma fração de segundo antes de passar. Essa artéria, movimentada a qualquer hora, era um mundo completamente novo onde se podia deambular à desco‑berta. Os quiosques que vendiam jornais e livros estavam abertos dia e noite. Durante o dia, uma determinada extensão de passeio tinha quiosques que vendiam flores e outra tinha quiosques onde se vendiam animais. As pessoas passavam horas a fio sentadas em mesas no exterior a ver quem passava.

Embora não soubesse espanhol, compreendi que a Rambla tinha os seus costumes e regras próprios. Por exemplo, as pros‑

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titutas vindas do porto não passavam para além de um determi‑nado ponto. Ninguém parecia dirigir ‑se a um sítio em particular. E a maioria das pessoas passeava com todo o vagar. Nas manhãs de domingo, as famílias enchiam a Rambla, a andar para cima e para baixo à sombra dos plátanos. Experimentei todos os bares. Punha ‑me junto dos quiosques a tentar decifrar os cabeçalhos dos jornais e os títulos dos livros.

Uma noite, perto da Catedral, percorri uma viela estreita que ia desembocar numa pequena praça. Tudo estava em silêncio, mergulhado na escuridão e como que escondido. Uma das pare‑des tinha sido gravemente danificada por estilhaços de obus ou por balas. Enquanto estive lá, ninguém passou pela viela e não se ouviu um som além do fio de água que corria de uma pequena fonte no meio da praça.

Comecei a frequentar a cidade antiga. Mal podia esperar que escurecesse, que acendessem os candeeiros nas paredes e que as ruas se tornassem fantasmagóricas, mergulhadas em sombras. Aquele era o mundo tardomedieval dos mestres artesãos, dos canteiros, pedreiros, escultores e arquitetos que sobrevivia intac‑to no meio da cidade.

Quando arranjei trabalho como professor e decidi ficar na ci‑dade durante algum tempo, comecei a estudar a língua e, em ja‑neiro, estava confiante de que tinha feito alguns progressos. Uma noite, fui convidado para jantar num pequeno apartamento do Bairro Gótico. Os outros convidados eram naturais da cidade. À medida que a conversa se prosseguia, dei ‑me conta de que não entendia uma única palavra do que diziam. Todas as noites passa‑das a absorver as subtilezas e singularidades da gramática espa‑nhola haviam sido em vão. Só quando alguém me pediu desculpa por estar a falar em catalão, excluindo ‑me assim da conversa, percebi qual era o problema.

Segundo me explicaram, todos eles, as famílias e amigos, fa‑lavam catalão como primeira língua, embora também fossem

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fluentes em espanhol. No entanto, a maioria não sabia escrever essa língua e eram poucos os que alguma vez tinham lido um livro em catalão. Explicaram ‑me que esse idioma não era apenas falado em aldeias e locais recônditos, mas que era usado pelas classes prósperas de Barcelona. Franco tinha proibido o seu uso público em 1939.

Descobri que o catalão não é um dialeto do espanhol nem do provençal, embora tenha ligações estreitas com ambos. Algumas palavras, como casa, por exemplo, são iguais em espanhol. Ou‑tras, como mangar (comer) estão próximas do francês ou do italiano. A maioria dos vocábulos que designam frutos, vegetais e especiarias são completamente diferentes do espanhol. A ma‑neira de formar o pretérito perfeito simples não se assemelha a nenhuma língua. A conjugação perifrástica do imperfeito forma‑‑se mais ou menos como em espanhol e o imperfeito do conjun‑tivo forma ‑se como em italiano.

O catalão é uma pura língua latina e não possui sons árabes. Assim, a pronúncia da palavra «Barcelona» não tem o som in‑glês «th» que se ouve na série Fawlty Towers. Os sons do cata‑lão são duros e guturais. A língua está repleta de substantivos curtos e incisivos como cap (cabeça), fill (filho) e clau (chave); e o mesmo quanto aos verbos: crec (creio), vaig (vou) e vull (quero).

Na altura em que comecei a aprender catalão, em 1976, não precisava apenas da língua para acompanhar as conversas em jantares, mas também para acompanhar o que a multidão gritava nas ruas e para ler o que estava escrito nas paredes. Nesse ano, a língua que fora privilégio da classe média da cidade e que, desde a Guerra Civil, fora usada sobretudo portas adentro, saía agora para as ruas como uma vingança.

Em 1977 era como se nunca tivesse sido proibida. A nova Espanha estava preparada para permitir à Catalunha uma certa autonomia e à língua catalã um certo respeito oficial. Nesses

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anos em que vivi em Barcelona, a Rambla deixou de ser o centro da vida na cidade e passou a ser um centro de divergência polí‑tica, onde a multidão se opunha à polícia, onde gás lacrimogéneo e balas de borracha eram disparados e havia cargas policiais à bastonada. Quando subia a Rambla todas as manhãs para ir tra‑balhar tinha de passar por jipes carregados de polícias, vestidos de cinzento e com metralhadoras apontadas aos transeuntes. Po‑rém, na altura em que deixei a cidade, em 1978, a Rambla volta‑ra a ser igual a si própria, a democracia, pelo menos de momen‑to, estava salvaguardada e os cidadãos de Barcelona podiam mais uma vez deambular em liberdade na Rambla e analisarem‑‑se uns aos outros por breves instantes.

Regressei ao meu país e voltei a Barcelona de férias umas quantas vezes ao longo dos anos. Uma vez por outra, na Irlanda, encontrava alguém que falava catalão. Ouvir de novo a língua, fazia ‑me reviver tudo: a beleza da cidade velha, os grafítis em vermelho nas paredes da Catedral, o fermento político, o cheiro a alho, os rostos rebeldes numa manifestação frente à polícia, as palavras de ordem, a liberdade sexual e o calor.

Em janeiro de 1988 regressei a Barcelona para escrever este livro. Fiquei lá durante o ano inteiro e, desde então, tenho um quarto na cidade. As pessoas perguntam ‑me se Barcelona mu‑dou; algumas das alterações foram óbvias, como os nomes das ruas, agora só em catalão. A criminalidade aumentou. Mas, mes‑mo assim, não sabia bem o que responder. No último domingo de setembro de 1988, e também o último dia da festa de la Mer‑cè, que não era celebrada durante o franquismo, senti ‑me de novo suficientemente à vontade, como que em casa, para olhar à minha volta atentamente, tirar notas e talvez fazer um inventário.

Nessa manhã mal se conseguia avançar pela Rambla: a aveni‑da estava tão apinhada como sempre, mas o troço entre o porto e o Gran Teatre del Liceu parecia mais esquálido do que nunca. Dava a sensação de que pessoas que deviam estar na cadeia an‑

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davam a passear em liberdade e que a polícia podia carregar a qualquer momento.

Aquela era a zona frequentada por Picasso nos anos em que viveu na cidade; foi ali que George Orwell, em maio de 1937, viu, fascinado, a multidão construir barricadas com rapidez e habilidade. Agora havia homens por ali de pé, à espera e a ver o que se passava, enquanto à sua volta vendedores ambulantes vendiam bijutaria e tapetes, cassetes baratas e roupa indiana.

A Rambla começou como um pequeno curso de água, um rio sazonal cujo leito era usado como estrada na estação seca. No século xiv, quando a cidade cresceu, foi rodeada por novas mu‑ralhas; mais tarde, no século xviii, o curso de água foi desviado e tornou ‑se a rua que Federico García Lorca tinha esperança de que continuasse para sempre. Alguns dos edifícios são do século xviii: o Palácio da Virreina, perto do mercado, foi construído na década de 1770, tal como a Casa March, mais abaixo do outro lado. Mas a maioria data do século xix, como o Gran Teatre del Liceu, construído em 1847 e reconstruído em 1861, depois de um incêndio, e reconstruído mais uma vez em 2000, depois de outro incêndio.

Alguns dos edifícios foram construídos num estilo que mais tarde tornou a cidade famosa: usando azulejos, mosaicos e moti‑vos florais, misturando imagens medievais com os estilos do mo‑vimento Arte Nova, com decoração e cor no exterior dos edifícios. A Antiga Casa Figueres, por exemplo, foi construída em 1902, tendo sido restaurada recentemente e reutilizada como pastelaria.

Do outro lado da rua, um banco comprou e restaurou a Antiga Botica Bruno Cuadros, terminada em 1885 com toda a cor ela‑borada e decoração subtil do seu pasticho original do estilo japo‑nês. Mas estes edifícios destacam ‑se na Rambla; na altura em que havia dinheiro suficiente para construir em Barcelona, a Rambla deixara de estar na moda, sendo substituída pela Rambla de Catalunya e pelo Passeig de Gràcia.

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Depois de se passar a Ópera e o mosaico colorido concebido por Miró, o ambiente muda e entra ‑se no mundo mais estável e sólido das floristas. As pessoas caminham de uma forma dife‑rente, as roupas são mais elegantes e ninguém se pergunta se seremos uma presa fácil. Ao passar diante das bancas que ven‑dem aves em direção à Plaça de Catalunya, circula ‑se numa zona calma.

Como sempre, nesse domingo havia uma fila à porta do Agut, o restaurante por trás do Passeig de Colom, na Carrer Gignàs. Só depois das três horas seria possível arranjar ‑nos uma mesa, disse ‑nos o proprietário à uma e meia. Depois de ter chegado a acordo com os meus companheiros e concluído que a espera valia a pena, anotei o meu nome e disse ‑lhe que voltaríamos.

O proprietário é jovem, mas sisudo e com um ar grave. Leva a sério o seu papel. Em 1976, a primeira vez que fui ao restau‑rante, era o pai dele que estava à frente do negócio. O seu com‑portamento foi descrito por John McGahern num conto intitula‑do The Beginning of an Ideia: «O jefe atento à menor negligência, com a toalha vermelha e branca ao ombro como uma dragona.»

Às três horas, havia uma grande multidão à porta do Agut; toda a gente parecia estar convencida de que seria o próximo a entrar, e cada vez que o proprietário chegava e chamava um no‑me da lista todos os outros soltavam suspiros e gemidos de fome e desespero. Por fim, chegou a nossa vez. Quando nos sentámos, o casal da mesa ao lado estava a comer a sobremesa, um sorvete de limão regado com champanhe. A comida parecia boa, as pes‑soas animadas e satisfeitas e os empregados serviam constante‑mente mais vinho e gritavam ordens para a cozinha.

A comida era catalã tradicional. A escalibada do Agut era particularmente boa: cebolas e pimentos verdes e vermelhos as‑sados na grelha e depois pelados e banhados em azeite. Seguiu‑‑se o frango de campo cozinhado com camarões, servido num prato de cerâmica antiquado, e profiteroles para a sobremesa.

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Com a aproximação das cinco horas, todo o restaurante foi dominado por uma sensação de pressa e de expectativa. Por todo o centro da cidade havia cartazes a anunciar o correfoc que teria lugar às sete, a incitar as pessoas a usarem roupa velha e a cobri‑rem a cabeça e pedindo a quem morava ao longo do percurso por onde os demónios e dragões iriam passar que não atirassem água para cima dos participantes. «Respeitem os demónios e dragões», dizia um dos letreiros afixados pelas autoridades.

Os festejos tinham começado na sexta ‑feira, com um discurso proferido por José Carreras, fogo de artifício sobre o edifício da Câmara e concertos nas praças da cidade velha às dez horas. Maria del Mar Bonet, que na década de 1970 tinha escrito uma das canções clássicas em catalão contra a polícia franquista, que tinha sido presa e havia cumprido uma pena sob o antigo regime, era agora paga pela municipalidade para cantar em frente da Catedral iluminada, com a sua fachada encimada por pináculos, recortada contra o céu límpido. Cantava em catalão, canções dos trovadores medievais, dos séculos xii e xiii, e também canções que ela própria compunha, sobre amor e amizade e a ilha de Maiorca de onde era natural. Ergui os olhos uma vez, distraído por qualquer coisa no céu, e vi uma gaivota a voar em direção ao pináculo da Catedral e ficar aí a pairar, iluminada pelos holofo‑tes, com as asas perfeitamente imóveis. E permaneceu assim durante tanto tempo que toda a gente começou a reparar nela e um pequeno grito ergueu ‑se da multidão.

No sábado, ao final da tarde, os gigantões percorriam o cen‑tro da cidade velha a dançar ao som dos tambores. Cada aldeia e cada bairro da cidade tinham os seus gigantões e alguns leva‑vam ‑nos a Barcelona para aquelas festas. Os rostos dos que desfilavam nas ruas eram maravilhosos, perfeitamente calmos e serenos: reis, rainhas, mouros, piratas, ceifeiros, nobres de am‑bos os sexos, todos com mais de cinco metros de altura, a rodo‑piar e a correr para a seguir se imobilizarem de modo que os

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pequenos humanos que os transportavam pudessem descansar e ser substituídos.

No domingo à noite era a apoteose. Nessa altura as coisas iam ser duras. Podiam empurrar ‑nos, derrubar ‑nos, queimar ‑nos com o fogo de artifício que seria acoplado aos dragões e demónios. No sábado à noite tinham ‑se atrasado os relógios e às cinco e meia, quando a multidão se dirigia à Plaça de Sant Jaume, já começava a escurecer.

Na praça havia cabos suspensos com fogo de artifício e em frente da entrada da Câmara encontrava ‑se um enorme demónio com mais fogo de artifício. Na praça viam ‑se alguns idosos e crianças pequenas às cavalitas dos pais, mas predominavam os jovens, rapazes e raparigas em grandes grupos, com chapéus na cabeça para se protegerem das faúlhas e lenços à mão para pro‑tegerem os pulmões dos fumos de enxofre.

Cinco para as sete: estávamos à espera, afastados do centro da zona de perigo, não longe da carrinha que a Cruz Vermelha tinha instalado na praça. Agora já começava a escurecer e às sete horas a praça inteira tornou ‑se uma massa de estrondos e pequenas explosões e o ruído de uma fila de foguetes disparados silvava sobre as nossas cabeças com uma chuva de centelhas. O demó‑nio em frente da Câmara iluminou ‑se como que percorrido por uma descarga elétrica. E cinco minutos mais tarde, tudo estava acabado — a praça ficou mergulhada na escuridão e os primeiros estoiros e calafrios terminaram. Era chegada a altura da parada.

Por momentos, durante o fogo de artifício, quando o som das explosões ecoava contra as velhas paredes da Plaça de Sant Jau‑me, recordei ‑me da última vez que ouvira aquela praça reverberar com explosões. Nos anos imediatamente depois da morte de Fran‑co, aquele era um dos locais onde os manifestantes se reuniam e onde a polícia chegava em jipes, munida de bastões, espingardas com balas de borracha e outras armas. Recordei essa praça em 1976 e 1977, com uma enorme multidão reunida em frente da

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Câmara, a exigir a amnistia, liberdade, autonomia, com comunis‑tas, socialistas e nacionalistas unidos a gritar as mesmas palavras de ordem. Recordei como tínhamos medo quando a polícia inves‑tia pela praça com os seus bastões, como toda a gente corria para uma das saídas e, ao encontrá ‑la bloqueada, se precipitava em pânico para outra. Recordei ‑me de como, num fim de tarde de domingo em 1977, sem parar de olhar para trás enquanto corria em direção à Via Laietana, me apercebi de que a atenção de dois polícias estava concentrada em mim e eles estavam a ganhar ter‑reno. Corri em direção a Sant Just e fiquei aí à espera, a tremer de medo. Lembro ‑me de outro entardecer límpido em que vi um cír‑culo de polícias na praça a espancar uma rapariga com bastões, batendo ‑lhe com força, com paixão e fúria, sem parar. Mantivemo‑‑nos todos a uma distância segura, sem saber o que fazer, sem que ninguém tivesse a coragem suficiente para intervir.

Durante todos os anos do regime de Franco e os dois anos que se seguiram uma placa permaneceu na parede à direita da enorme porta da Câmara, a dizer aos cidadãos de Barcelona que «La Guerra Ha Terminado» — a Guerra Civil tinha terminado e o «exército vermelho» fora derrotado. Cinquenta anos mais tarde, estávamos na praça e dessa mesma porta surgiam dragões de to‑dos os tamanhos e feitios, como que a saírem das fauces da mor‑te, a cuspirem fogo e a abrirem caminho pela praça. Por vezes iam de encontro à multidão, que gritava aterrorizada e os empur‑rava para evitar as chamas. Bandos de jovens corriam ao seu en‑contro como que para os atacar e procuravam mantê ‑los à distân‑cia enquanto os monstros tentavam aproximar ‑se. Cada vez que um novo monstro fogoso aparecia tinha início outro simulacro de luta. Não tardámos a ficar mais corajosos e a aproximarmo ‑nos do centro, de onde podíamos ver cada demónio sair, alguns deles enormes e cobertos de escamas, outro multicores e com rostos ferozes como figuras de banda desenhada. Mas guardávamos sempre espaço para fugir se um deles decidisse perseguir ‑nos.

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Um a um eles saíam, um desfile de criaturas horrendas e gro‑tescas. Os seus zeladores, detentores e protetores carregavam sacos com foguetes e podiam parar sem aviso prévio, fixar novos petardos nos dispositivos para os lançar e largá ‑los sobre a mul‑tidão desprevenida e excitável. O cortejo devia terminar no Pas‑seig de Colom e, às nove horas, a última grande exibição de fogo de artifício teria lugar junto à estátua de Colombo para celebrar o décimo aniversário do desfile. Este tivera início em 1979, no momento em que a cidade começava a erguer ‑se de novo após o longo período de domínio do velho ditador.

Depois de todos os monstros terem saído, seguimos caminho e voltámos a encontrar o desfile no Passeig de Colom. Aqui, os jovens da cidade estavam nas suas sete quintas. Havia grupos debaixo dos prédios a implorar às pessoas que se encontravam nas varandas que lhes atirassem água para cima. «Aigua! Ai‑gua!», berravam em catalão, e soltavam gritos de alegria quando lhes atiravam baldes de água para cima. Outros corriam ao en‑contro dos felizardos que tinham encontrado quem lhes fizesse a vontade e todos se deliciavam com os duches de água fria.

Agora atacavam os demónios e dragões com maior ferocida‑de, tentando impedir o avanço dos que transportavam o fogo de artifício. Mas o desfile continuava o seu caminho em direção à estátua ao fundo da Rambla sem grande problema, até começa‑rem a sentar ‑se à frente dela a gritar em catalão: «no passareu, no passareu», ou seja, «não passarão». Os que transportavam os archotes começaram a atacá ‑los com as faúlhas, e rebentaram batalhas simuladas, sem que uma única vez alguém se irritasse ou batesse num adversário. Por fim, conseguiram afastá ‑los a tempo de os demónios chegarem à estátua de Colombo e de se ver o fogo de artifício sobre a cidade.

A música começou às dez. Pela terceira noite consecutiva, havia bandas a tocar nas antigas praças e na colina de Montjuïc, sobran‑ceira ao porto. Agora havia uma multidão na Rambla, a entrar nas

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estações de metro ou a dirigir ‑se à Plaça de Catalunya, a passear e a matar o tempo, à espera que os concertos começassem.

À direita, ficava a Plaça Reial; a tão caluniada praça, que ti‑nha fama de estar na origem de todo o crime agora existente no centro da cidade, o lugar onde paravam os autores de roubos por esticão e os traficantes de droga, o local de encontro de turistas, ladrões e candongueiros, mas do qual os habitantes respeitáveis da cidade se mantinham afastados. A praça, de estilo neoclássico francês, foi construída entre 1848 e 1860 e, em 1879, Antoni Gaudí concebeu os candeeiros do centro, uma das primeiras en‑comendas que recebeu. Foi ‑lhe acrescentada uma fonte e tem palmeiras altas. Nas manhãs de inverno soalheiras — em geral, no inverno em Barcelona o céu é límpido e o sol brilha —, o local fica lindo e no verão é possível beber lá cerveja e comer tapas até depois das duas da manhã. Porém, mesmo assim, a praça é mal ‑afamada. A partir do princípio da década de 1980, a municipalidade tem tentado tornar o local aprazível, mas sem grande êxito. Depois, as autoridades começaram a organizar concertos de jazz aos domingos à noite; um arquiteto na moda refez os edifícios e dizia ‑se que escritores e cantores iam para lá viver a qualquer momento. No entanto, nada disto teve o menor impacto na gente que frequenta o local, que não mudou muito desde 1975. Quem vai à Plaça Reial tem de estar vigilante e, ao que parece, nada se irá modificar.

Porém, nessa noite de domingo da festa de la Mercè, todos os lugares de todas as esplanadas de bares estavam ocupados. Por uma vez, o plano funcionava: a classe média estava confortavel‑mente sentada na Plaça Reial. O empregado serviu ‑nos copos de cerveja e tiras de choco panadas com rodelas de limão. À nossa volta, só se ouvia falar catalão. Os mesmos catalães que tinham abandonado a praça aos estrangeiros e aos forasteiros estavam de volta nessa noite, de regresso à parte baixa da cidade que tinham aprendido a recear. O temor que sentiam tivera origem não apenas

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em anos anteriores, quando a venda de heroína se tornara incon‑trolável na zona, mas nos anos que se haviam sucedido à Guerra de Cuba no final do século xix, quando havia uma miséria deses‑perada; nos anos subsequentes à Primeira Guerra Mundial em que o desemprego e a agitação eram enormes e nos anos da Guerra Civil, quando os anarquistas ocuparam o centro da cidade.

Naquele domingo à noite, os catalães também estavam na Plaça de Sant Jaume, a dançar ao som de uma banda que tocava valsas vienenses. Aqui havia mais pessoas de idade. Cada gera‑ção parecia ter encontrado o seu nível na última noite dos feste‑jos. Na Plaça del Rei, ao virar da esquina, a música era mais li‑geira e moderna, sendo aí que se encontravam as pessoas elegantes, aquelas que mais tarde se deslocariam para os clubes noturnos frenéticos, e que agora se encontravam na praça do século xiv a oscilar ligeiramente ao ritmo da música.

Um bar à esquina, um velho estabelecimento com janelas no primeiro andar a deitar para a praça, encontrava ‑se agora meio vazio, embora a noite estivesse quente e a praça cheia. Os cata‑lães e os cidadãos de Barcelona em geral, que têm pouca apetên‑cia pelo álcool, raramente consomem mais de uma bebida num bar e muitas vezes contentam ‑se com uma Coca ‑Cola durante toda a noite.

Por toda a cidade, a música prosseguiu. Na sexta ‑feira à noite, cento e oitenta mil pessoas tinham ido ao concerto de rock gra‑tuito no Montjuïc e naquela noite encontravam ‑se aí de novo cem mil pessoas; anteriormente, calculava ‑se em cem mil o nú‑mero das que haviam assistido ao desfile dos dragões e demó‑nios no correfoc, e igual número de crianças tomaram parte em diversos eventos realizados na cidade durante o fim de semana, todos eles pagos pela autarquia. Não houvera brigas nem deten‑ções. Agora reinava a paz e a estabilidade na cidade. Quando a meia ‑noite se aproximou, as praças estavam cheias de gente. Barcelona divertia ‑se.