Honneth e Hegel

download Honneth e Hegel

of 19

Transcript of Honneth e Hegel

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    1/19

    HERBERT BARUCCI RAVAGNANI

    A discusso filosfica contempornea acerca dos conflitos sociais se encontrapautada pelas contrariedades da configurao poltica atual que, um tanto quanto noencerrada exclusivamente pelos conflitos de classe, se manifesta sob o signo do noreconhecimento de diferenas culturais, de gnero, de raa, tnicas e de orientao sexual. nesse sentido que se justificam as tentativas de atualizao de um modelo terico quecentralize a noo de reconhecimento, tal como fizera o jovem Hegel, para a compreensodessas novas lutas sociais. Portanto, neste artigo procurou-se examinar a influncia dopensamento do jovem Hegel na elaborao da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, oprincipal sistematizador de uma atualizao do modelo hegeliano, tendo por objetivoevidenciar a importncia de se examinar as fontes tericas que propiciaram o instrumentalcategorial do reconhecimento.

    : Hegel; Honneth; reconhecimento; luta social; Teoria Crtica.

    : The contemporary philosophical debate about the social conflicts is guided by thesetbacks of current policy configuration that, someway not entirely closed by class conflicts,are manifested on the sign of non-recognition of cultural differences, gender, race, ethnic andsexual orientation. In this way, its attempted update the theoretical model that centralizesthe concept of recognition, as did the young Hegel, to understand these new social struggles.Therefore, this article sought examine the influence of young Hegel's thought in AxelHonneths theory of recognition, the principal thinker that seeks update the Hegelian model,aiming to highlight the importance of examining the theoretical sources that provided the

    recognition instrumental category.

    : Hegel; Honneth; recognition; social struggle; Critical Theory.

    A filosofia social e poltica contempornea tem se debruado sobre

    questes como as do multiculturalismo, cidadania, direitos humanos, padres

    institudos de desrespeito e reconhecimento tanto das diferenas culturais

    quanto das de gnero, de orientao sexual e de raa. Para tal atual reflexo o

    modelo terico que centraliza as questes de reconhecimento para a

    compreenso do movimento dos conflitos sociais se mostra extremamente

    profcuo e vantajoso, uma vez que coloca os conflitos como sendo lutas morais,

    Bacharel em Filosofia (2007) e mestrando em Filosofia, linha de pesquisa: tica e Filosofia Poltica, pela

    UNESP; bolsista FAPESP com o projeto intitulado Conflito, reconhecimento e justia: uma nova forma Teoria Crtica, sob orientao da Dra. Cllia Aparecida Martins do PPGF da UNESP.

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    2/19

    40 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    como lutas por reconhecimento. Esse modelo surge no centro de perspectivas

    tericas como por exemplo a de Charles Taylor e Axel Honneth para melhor

    refletir sobre essas contrariedades da configurao poltica das ltimas

    dcadas.

    Honneth, sucessor de Habermas no Instituto de Pesquisa Social de

    Frankfurt, constri sua filosofia com o intuito de retomar a tradio da Teoria

    Crtica, pois seus trabalhos se caracterizam por produzir uma posio terica

    contrastante com a de seus antecessores, construindo solues a impasses

    observados na filosofia de Habermas, tal como este havia feito com Adorno e

    Horkheimer. De acordo com Nobre (2003, p. 10), correto considerar Axel

    Honneth inserido na tradio da Teoria Crtica. No entanto, se Honneth

    [concorda] com Habermas sobre a necessidade de se construir aTeoria Crtica em bases intersubjetivas e com marcadoscomponentes universalistas, defende tambm, contrariamente aeste, a tese de que a base da interao o conflito, e suagramtica, a luta por reconhecimento. (Nobre, 2003, pg. 17)

    A teoria do reconhecimento elaborada por Honneth procura ser terico

    explicativa e crtico normativa, na medida em que procura servir de modelo

    avaliativo dos conflitos sociais contemporneos atravs de um conceito moral

    de luta social, e tambm como modelo explicativo acerca do processo de

    evoluo social (Werle, 2004, pg. 53).

    Para elaborar a referida teoria, uma das principais fontes a que

    Honneth recorre o pensamento de Hegel, principalmente seus conceitos de

    reconhecimento, intersubjetividade e conflito. O conceito de reconhecimento

    usado na modernidade pelo jovem Hegel para inverter o modelo hobbesiano de

    luta social segundo o qual o comportamento social e individual pode ser

    reduzido a imperativos de poder, mediante os quais o homem concebido como

    um animal que busca a autopreservao e autoproteo tendo assim, como

    imperativo a si prprio, o aumento do poder relativo em desfavor do outro.

    Para o jovem Hegel a esfera social no definida como o espao de luta pela

    integridade fsica dos sujeitos. Ao contrrio, ela na verdade o espao da

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    3/19

    41 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    eticidade , onde relaes e prticas intersubjetivas se do alm

    do poder estatal ou convico moral individual. Desse modo, a esfera social

    proporciona a possibilidade dos sujeitos se auto-reconhecerem nas suas

    potencialidades e capacidades mais ou menos semelhantes, ou seja, a

    possibilidade de estarem em comunho, reconhecendo o outro na sua

    singularidade e originalidade, o que faz com que cada nova etapa de

    reconhecimento social capacite o indivduo apreender novas dimenses de sua

    prpria identidade, o que, por fim, estimula novas lutas por reconhecimento,

    mostrando que o ponto central deste processo este movimento em que conflito

    e reconhecimento condicionam-se mutuamente.

    Para o jovem Hegel toda identidade se constri num ambiente dialgico

    e esse ambiente preexiste a qualquer prtica social ou poltica, o que marca o

    aspecto intersubjetivo, ou de interao, essencial do campo de constituio dos

    sujeitos. Esse contexto originrio tido como um pano de fundo tico onde

    existe uma certa forma de aceitao recproca intersubjetiva, isto , uma forma

    de reconhecimento preexistente a toda formao dos sujeitos. Tal

    reconhecimento preexistente pressupe a existncia de direitos que, no

    entanto, no esto explicitados nem conscientes neste contexto. Cabe ao

    contrato, ento, o restabelecimento consciente e explcito daqueles direitos

    anteriores, ou seja, o contrato a realizao, mediante a reflexo, de direitos

    que j existiam. O contrato no cria direitos, ele os restabelece. A luta social

    no uma luta por poder, mas uma luta por reconhecimento. O contrato

    configura-se como uma luta por reconhecimento que no se constitui em

    autopreservao fsica somente, mas como um conflito que gera e desenvolve asdistintas dimenses da subjetividade humana, sendo o conflito a lgica do

    desenvolvimento moral da sociedade.

    Da perspectiva da teoria do reconhecimento, os atores da vida social no

    podem ser compreendidos separadamente do contexto moral e cultural em que

    esto inseridos. Esse contexto quase sempre se encontra escondido,

    subentendido nas prticas sociais e polticas de um povo, muito dificilmente

    expostos nos discursos explcitos. nesse sentido que, avaliando a constituio

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    4/19

    42 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    da identidade humana, em consonncia com Hegel, entende-se que os sujeitos

    se constroem a partir de sua prpria auto-interpretao, a qual s se d dentro

    de um contexto dialgico, ou seja, cultural.

    Para Honneth, em sua obra Luta por Reconhecimento: a gramtica

    moral dos conflitos sociais (2003), Hegel une pretenses universalistas com a

    preocupao permanente com o desenvolvimento do indivduo, do singular. a

    partir da intuio hegeliana de uma luta motivada moralmente que Honneth

    ir encontrar tambm os pressupostos de uma fenomenologia das formas do

    reconhecimento, ou, em outras palavras, as diferentes esferas da vida social

    em que diferentes formas de reconhecimento (e desrespeito) movem os conflitos

    sociais, o que, segundo ele, Hegel sups em sua juventude com os conceitos de

    amor, direito e eticidade, distintos campos de interao social

    relacionados respectivamente famlia, sociedade civil e ao Estado, os quais

    contm especificidades quanto realizao da autonomia e individuao.

    Hegel obteve um ganho na teoria da subjetividade, nos diz Honneth, ao

    realizar a distino terica entre os diversos estgios da formao da

    conscincia individual com maior preciso conceitual e, em decorrncia, com a

    possibilidade de empreender aquela diferenciao de vrios conceitos de

    pessoas que havia faltado at ento sua abordagem. Mas esse ganho na

    teoria da subjetividade tem um preo: o abandono das alternativas da

    comunicao, pois, segundo Honneth, ele perdeu de vista a idia de uma

    intersubjetividade prvia do ser humano em geral, e com isso seu pensamento

    ficou obstrudo e no pde realizar a distino necessria de diversos graus de

    autonomia pessoal dentro do quadro da teoria da intersubjetividade.Este artigo tem como pano de fundo a construo honnethiana de uma

    teoria social crtica baseada na luta por reconhecimento, mas procurar

    especificamente expor o modo como Honneth avalia a tese do jovem Hegel da

    luta por reconhecimento, especialmente na obra em que sistematiza mais

    precisamente seu modelo, a Realphilosophie de Jena (Jenaer Realphilosophie)

    de 1805/1806. Seguindo a orientao de Honneth, procuraremos mostrar o

    quo importante a construo hegeliana, ainda que receba vrias crticas do

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    5/19

    43 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    mesmo, para a construo de uma teoria do reconhecimento que deseje oferecer

    um modelo avaliativo dos movimentos sociais contemporneos.

    A orientao para uma filosofia do esprito marca o quadro da

    Realphilosophiede Hegel, o que assinala a mudana de paradigma que este

    realiza no interior de sua prpria filosofia de juventude, j que nas suas obras

    anteriores Sistema da eticidade1 e Maneiras cientficas de tratar o direito

    natural2, o conceito de esprito ainda era sub-aproveitado em favor de uma

    interpretao mais intersubjetiva dos fenmenos.

    De acordo com a nova filosofia, o esprito aquele que tem a capacidade

    de autodiferenciao, que capaz de exteriorizar-se e retornar a si, fazendo-se

    o outro de si mesmo num processo constante de reflexo e auto-reflexo. A

    tarefa da filosofia seria, portanto, de examinar gradualmente as etapas

    reflexivas de sua constituio para ento compreender onde ele se diferencia

    completamente o final do processo o saber absoluto sobre si. O propsito

    fundamental de Hegel, com isso, ento desvendar o modo de realizao do

    esprito, o qual se identifica tambm com a formao da conscincia humana.

    Para tanto, Hegel expe trs etapas essenciais de formao do esprito que

    correspondem a 1) esprito subjetivo: relao do indivduo consigo prprio; 2)

    esprito efetivo: relaes dos sujeitos entre si que j se encontram

    institucionalizadas, e 3) esprito absoluto: relaes reflexivas dos sujeitos

    socializados com a totalidade do mundo. O que nos interessa aqui subjaz a essemovimento de formao como fora motriz da comunidade tica na primeira

    etapa do processoum modelo de luta social por reconhecimento.

    De acordo com as formulaes de Honneth, na etapa de formao do

    esprito subjetivo, a anlise filosfica hegeliana procura esclarecer quais os

    tipos de experincias que o sujeito precisa vivenciar para perceber-se a si

    1 Ou Sistema da vida tica (1991).2

    Ou Sobre as maneiras cientficas de tratar o direito natural: seu lugar na filosofia prtica e sua relaocom as cincias positivas do direito (2007).

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    6/19

    44 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    mesmo como uma pessoa legitimamente dotada de direitos, o que o

    possibilitaria participar da vida pblica institucional, ou seja, no esprito

    efetivo. Um dos aspectos dessa fase de formao seria o cognitivo, que

    envolveria etapas como a intuio, a capacidade de representao lingstica e

    a imaginao, capazes de revelar conscincia individual do sujeito a

    possibilidade de produzir categorialmente as coisas do mundo, sendo por isso

    caracterizado por Hegel de inteligncia. O carter de inteligncia do esprito

    subjetivo abriria caminho para que o sujeito tambm pudesse se saber como

    capaz de criar produes prticas. Tal seria a feio do segundo aspecto dessa

    fase de formao, o de auto-objetivao: aps conceber-se como um sujeito

    capaz de gerar a ordem da realidade, a conscincia individual se v como

    geradora tambm de produes prticas ou de contedo por meio de uma auto-

    objetivao que se d por auto-experincias. Isso construdo atravs de um

    processo de realizao da vontade individual, da qual a vontade marca, para

    Hegel, de todas as relaes prticas do sujeito com o mundo. O esprito

    subjetivo se reconhece, portanto, como vontade a partir de quando supera as

    experincias puramente tericas e passa s experincias prticas prprias no

    mundo. Essas auto-experincias prticas no mundo so experenciadas como

    aes de trabalho, as quais so mediadas (ou auxiliadas) pelo instrumento e

    finalizadas com o produto (ou obra), pelo qual a inteligncia atinge a

    conscincia do seu agir por ser o resultado de sua atividade singular.

    No entanto, segundo Honneth, quando Hegel introduz a noo de

    vontade ele j encontra dificuldades para trat-la nos moldes da

    intersubjetividade que fora marca de seus escritos anteriores, problema quevai se estender a toda a sua filosofia futura, j que construda em bases da

    filosofia da conscincia (2003, pg. 76). Para explicitar essa dimenso da

    autocompreenso da conscincia individual, ele tem que incluir nesta etapa de

    formao do esprito subjetivo a relao familiar e em especial a sexual,

    caracterizada como uma forma fundamental de interao homem-mulher que

    iria alm do carter instrumental da vontade no processo anterior de auto-

    objetivao. Pela relao amorosa os sujeitos reconhecem-se numa

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    7/19

    45 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    reciprocidade de um saber-se-no-outro na medida em que constroem um

    conhecimento partilhado intersubjetivamente pelos dois acerca de si mesmos

    no outro. Para designar essa relao mtua Hegel usa, na Realphilosophie,

    pela primeira vez o termo reconhecimento, que coloca o amor como

    sentimento que proporciona a primeira confirmao da individualidade do

    sujeito, assim como tambm expresso no Sistema da eticidade. esta tese que

    permite abrir caminho para identificar que o desenvolvimento da identidade

    pessoal, em Hegel, est intimamente ligado s formas de reconhecimento por

    outros sujeitos e que, mais importante ainda, no h como experenciar-se

    integralmente como sujeito sem reconhecer o parceiro de interao como

    pessoa; ou seja, pode-se identificar em Hegel que na relao de reconhecimento

    h constitutivamente uma presso para a reciprocidade, segundo Honneth

    (2003, pg. 78), e que o amor elemento fundamental para que o sujeito se

    reconhea e se sinta aprovado na sua natureza instintiva particular, o que

    posteriormente lhe permitir que, de modo geral, tenha autoconfiana para

    agir e participar da formao poltica da vontade no seio da sociedade

    institucionalizada, embora o amor para isso constitua ainda somente uma fase

    primria.

    por ser a relao amorosa e familiar ainda uma fase insuficiente para

    o processo de formao do esprito que Hegel tem de ampliar esse processo,

    trazendo uma vez mais o instrumental categorial de uma luta por

    reconhecimento, agora franca e diretamente crtico do conceito hobbesiano de

    luta e estado de natureza. Para sustentar seu conceito de luta ele faz uso

    prprio dos pressupostos da teoria da comunicao e da intersubjetividade eentra, com isso, em confronto com o modelo de luta de todos contra todos.

    Como a relao de reconhecimento familiar no capacita ainda o sujeito a

    reconhecer-se como uma pessoa de direito, Hegel o coloca dentro de um

    contexto social que coincidiria metodologicamente com o estado de natureza de

    Hobbes. Ele descreve a situao da seguinte forma, de acordo com Honneth:

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    8/19

    46 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    Ao lado da totalidade de uma famlia colocada, de certomodo analiticamente, uma srie de identidades familiaressemelhantes, de sorte que resulta da um primeiro estadode convvio social; na medida em que cada uma das

    famlias co-existentes deve se apoderar de uma poro deterra para seu bem econmico, ela excluinecessariamente a outra de seu uso comum da prpriaterra (2003, pg. 82-83).

    Isso seria o que Hegel chama de estado de natureza como descrito pela

    tradio, o qual, devido a existncia da pluralidade de identidades familiares,

    geraria de certo modo uma concorrncia social entre elas, sendo papel do

    direito natural prescrever os direitos e deveres de cada indivduo para com o

    seu prximo tendo em vista esta relao de concorrncia. Mas ele acompanha

    Hobbes somente at aqui, pois, como nos seus textos anteriores sobre o direito

    natural, ele no aceita remeter a construo do contrato social a uma

    propriedade de fora como a prudncia, no caso de Hobbes, ou os postula dos

    da moral, no caso de Kant e Fichte. Hegel quer demonstrar que o surgimento

    das relaes jurdicas deriva de um processo de relacionamento prtico que se

    encontra no interior mesmo do contexto social de concorrncia entre os

    indivduos e que o direito trabalharia essas relaes:

    O direito a relao da pessoa em seu procedimento paracom o outro, o elemento universal de seu ser livre ou adeterminao, limitao de sua liberdade vazia. Essarelao ou limitao, eu no tenho por minha parte demaquin-la ou introduzi-la de fora, o prprio objeto esseproduzir do direito em geral, isto , da relao quereconhece (HEGEL apudHONNETH, 2003, pg. 85).

    Para que esse papel do direito se fundamente, preciso uma nova

    concepo do estado de natureza dos homens, ou pelo menos uma nova viso

    sobre as relaes que estes mantm entre si num contexto como este. Isso

    Hegel procura realizar lanando mo novamente de sua teoria da

    intersubjetividade. Para ele, considerando que h relaes sociais

    intersubjetivas anteriores ao processo de socializao, torna-se claro que existe

    um consenso normativo regulador mnimo que subjaz a essas relaes, mesmo

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    9/19

    47 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    elas sendo de concorrncia, pois o reconhecimento recproco componente

    obrigatrio prvio de qualquer luta ou conflito; no h como haver conflito se

    as partes no se reconhecerem minimamente como partes, ou seja, os sujeitos

    s entram em luta por reconhecerem-se sujeitos. Destas relaes pr-

    contratuais Hegel extrai o contedo moral ou normativo que posteriormente

    dever ser levado em considerao para a construo consciente do contrato ou

    das leis reguladoras das relaes sociais, as quais seriam expresso genuna do

    tornar-se consciente dessas relaes de reconhecimento. O papel e carter

    inovador do direito da Realphilosophiecomeam, ento, a se delinear nestas

    formulaes.

    Uma tal descrio singular do estado de natureza dos homens tem

    desenvolvimentos tambm singulares. Hegel interpreta os atos destrutivos de

    forma totalmente diferente da de Hobbes, segundo Honneth. Quando um

    indivduo se v lesado ou atingido de certa forma por outro indivduo3, e comete

    em represlia um ato destrutivo contra o mesmo, no est reagindo por medo

    da ameaa atual e futura que representa este sujeito, mas sim porque suas

    expectativas de reconhecimento por parte do outro no foram atendidas. Aqui

    se percebe o fundamental da argumentao hegeliana, de acordo com Honneth,

    que o fato de que nas relaes de interao entre os sujeitos est

    subentendida a expectativa de reconhecimento pelos outros sujeitos. O sujeito

    lesado reage por se ver ignorado em sua condio pelo outro sujeito, por no se

    ver de qualquer forma conhecido pelo outro, e no porque quer aumentar seu

    poder relativo ou satisfazer suas necessidades sensveis. Por outro lado,

    reconstruindo tambm o ponto de vista daquele que lesa o outro, Hegel mostraque este, em todo o momento de sua ao, achara que ela s mantinha relao

    com o seu contexto particular, mas a partir da reao do lesado ou ofendido, ele

    percebe, retrospectivamente, que sua ao na verdade atingira indiretamente

    todo o contexto particular do outro tambm, e alm disso a prpria pessoa do

    outro, j que no lhe reconhecera no seu contexto, excluindo-o ou ignorando-o

    3

    Ou ainda (trocando metodologicamente o sujeito pela famlia), quando da tomada de posse da terra de umafamlia por outra, naquele contexto que Hegel caracteriza como possuidor de vrias identidades familiares.

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    10/19

    48 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    com sua ao: Ele (o sujeito da tomada de posse, A.H.) toma conscincia de

    que ele fez algo totalmente diferente do que visava: seu meu era o puro

    relacionar de seu ser consigo mesmo, seu ser-para-si desimpedido (HEGEL

    apudHONNETH, 2003, pg. 89). Descentrando seu modo de ver ele pode ento

    incluir o outro na sua autopercepo de sujeito, o que amplia seu conhecimento

    de si e o coloca como dependente socialmente do outro, mesmo estando em

    situao de conflito com ele. Honneth acredita ento que fica claro, desse modo,

    como a percepo da identidade pessoal est vinculada intrinsecamente com o

    reconhecimento recproco, e o papel extremamente necessrio do conflito ou

    luta para o desenvolvimento gradual das relaes de reconhecimento.

    Hegel conclui, segundo Honneth, que, tendo em vista que h uma

    aceitao prvia entre os parceiros de interao antes mesmo que haja um

    conflito entre eles, no pode-se deduzir que estes sujeitos hajam por puro

    egosmo, pois reconhecem o outro positivamente quando orientam suas aes,

    baseando-as nesse reconhecimento.

    A aceitao entre os sujeitos contrapostos ele a concebe como sendo uma

    interao de desigualdade, pois a reao do sujeito lesado a de fazer com

    que o opositor tenha conscincia dele, mostrando o saber intersubjetivo que

    possui de si mesmo, e revelando ao outro que ele no possui exatamente este

    saber de si mesmo, j que sua ao no teve consentimento intersubjetivo.

    Essa reao busca mostrar, acima de tudo, que no motivada simplesmente

    pela ofensa ou tomada da posse em si, mas pelo fato de o sujeito que causou a

    ofensa no ter percebido, ou ter ignorado, a condio do outro, ou ainda ter

    interpretado de maneira equivocada suas intenes e seu contexto prprio. Novocabulrio hegeliano, segundo Honneth, a reao busca afirmar-se como

    absoluto, mostrando-se como vontade no mais como ser-a, mas como ser-

    para-si sabido (2003, pg. 91). Com tais consideraes, fica claro que Honneth

    entende que Hegel coloca no contexto conflituoso do estado de natureza um

    processo pelo qual o sujeito procura sustentar a incondicionalidade moral de

    sua vontade, objetivando tornar sua pessoa merecedora de reconhecimento, ou

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    11/19

    49 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    seja, a existncia de uma luta por reconhecimento no interior do espao

    conflituoso do estado de natureza.

    Finalmente, como concluso da formao do esprito subjetivo, Hegel usa

    o que ele chama de luta de vida e mortepara explicitar o fechamento daquela

    experincia de formao individual pela qual os sujeitos podem conceber-se

    como pessoas legitimamente dotadas de direitos. No entanto, Honneth acha

    que a referncia morte no de modo algum evidentemente necessria para

    atingir tal estgio de compreenso das identidades pessoais, visto bastar o

    sujeito experienciar a vulnerabilidade moral do parceiro para poder reconhec-

    lo.

    De qualquer forma, finda portanto o trabalho que ele havia se colocado

    como necessrio ao processo de formao do esprito subjetivo: a vontade

    individual se reconhecendo como pessoa dotada de direitos, pronta para

    participar da vida social entre sujeitos reconhecidos institucionalmente, isto ,

    na esfera do esprito efetivo. Deste processo podemos depreender que Honneth

    salienta o papel da luta por reconhecimento como no apenas elemento

    constitutivo da formao do esprito, mas tambm, e essencialmente, agente

    configurador deste processo, sendo responsvel pela normatividade que o

    movimenta e que gera o desenvolvimento do direito, na medida em que a

    esfera social se constri somente pelas relaes jurdicas. Por isso, segundo ele,

    Hegel tem agora que congruir a construo da esfera social com o processo de

    realizao do direito, mostrando como essa realizao tem como alicerce um

    contexto intersubjetivo de relaes, como esclarece Honneth:

    (...) diferentemente do amor, o direito representa paraHegel uma forma de reconhecimento recproco que noadmite estruturalmente uma limitao ao domnioparticular das relaes sociais prximas. Por isso, s com oestabelecimento da pessoa de direito dada numasociedade tambm a medida mnima de concordnciacomunicativa, de vontade geral, que permite umareproduo comum de suas instituies centrais (2003,pg. 95-96).

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    12/19

    50 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    A relao do direito seria como que uma base e fundamento

    intersubjetivo para as relaes sociais, posto que tenciona cada sujeito a

    respeitar as pretenses legtimas de todos os outros sujeitos. No entanto,

    apenas o princpio da relao do direito no garante por si mesmo em que

    aspecto e em que medida os sujeitos tm e podem reconhecer uns aos outros

    como pessoas de direito. A relao jurdica, para ser introduzida no cerne da

    construo da realidade social, tem ainda que abarcar contedos materiais

    para, de uma relao abstrata de reconhecimento, se ampliar gradativamente

    at se concretizar na sociedade civil, considerada por Hegel como uma

    estrutura institucional proveniente deste processo de acmulo de diferentes

    formas de relacionamento jurdico. A troca, por exemplo, uma ao tpica de

    pessoas que se reconhecem como pessoas de direito, para Hegel, na qual h um

    enorme potencial de intensificao das relaes, visto o valor de troca ser para

    ele expresso da concordncia mtua dos sujeitos regras intersubjetivas.

    Hegel concebe as instituies de propriedade e de troca como produtos do

    desenvolvimento da interao das relaes comunicativas elementares com a

    realidade das formas de reconhecimento jurdico, as quais se modificaro a

    partir da instituio do contrato, pois este torna consciente, na forma de um

    saber reflexivo, essa reciprocidade contida na relao de troca.

    Simultaneamente, pelo contrato aumenta-se o contedo material do

    reconhecimento institucionalizado, isto , com o contrato o reconhecimento

    jurdico alcana uma nova fase no processo de sua concretizao social e

    permite a Hegel j pensar a existncia das formas de injustias, entendidas

    como violaes do direito que marcam o no acoplamento da vontade singular comum: Eu posso romper unilateralmente o contrato, pois minha vontade

    singular vale como tal, no s na medida em que ela comum, mas a vontade

    comum s ela mesma na medida em que minha singular (...) Pondo-se

    efetivamente a distino, eu rompo o contrato (HEGEL apud HONNETH,

    2003, pg. 99). O emprego da coero encontra legitimidade ento a partir

    desta considerao, pois a normatividade daquelas regras fundamentais de

    reconhecimento recproco quebrada ou no respeitada pelo sujeito que se

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    13/19

    51 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    lana contra o contrato, visto que a violao do direito significa a no adoo

    das obrigaes que esto implicadas quando se consente o contrato, ou seja, o

    sujeito ataca as prprias regras de reconhecimento que permitiram

    anteriormente construir sua prpria identidade como pessoa de direito.

    Por outro lado, do uso da coero jurdica emerge um processo

    conflituoso que pressupe tambm para a etapa de relao jurdica uma luta

    por reconhecimento, uma vez que o constrangimento jurdico causa um

    sentimento de desrespeito no sujeito atingido, que reage coero da sociedade

    por meio de atos destrutivos, ou crimes.

    Para Hegel o crime sempre motivado por desrespeito social, porquanto

    pelo crime o sujeito busca o reconhecimento da particularidade de sua vontade

    atravs do respeito singularidade de suas expectativas. Ainda, para Hegel o

    ato criminoso sempre um ataque pessoa enquanto pessoa e ao seu saber

    sobre si, sendo que a necessidade, a carncia econmica, etc., so sempre

    secundrios quando se trata de motivao de luta ou conflitos, pois pertencem,

    em sua concepo, carncia animal, portanto no primordiais4. s por no

    se ver reconhecido em sua vontade prpria que o sujeito age provocativamente,

    buscando o reconhecimento no crculo dos relacionamentos sociais.

    Assim, o processo de construo e concreo dos contedos do

    reconhecimento jurdico podem ser tidos como pertencentes j esfera da

    vontade geral, na qual o crime possui uma funo de provocao moral, pois

    pressupe expectativas morais que o sujeito pretende fazer-se valerem

    sociedade. No entanto, quanto ao contedo especfico de cada crime,

    problemtico defini-lo a priori, segundo Honneth: Da a resposta questoacerca do papel que a luta por reconhecimento assume no nvel da realidade

    social depender da soluo das dificuldades de entendimento provocadas pela

    tese de Hegel sobre a fonte interna do crime (2003, pg, 102). Segundo

    Honneth, essas dificuldades se expressam por haver duas formas possveis, de

    4 Pode-se conceber que aqui se encontra o ponto inicial da perspectiva de Honneth que mais tarde vai entrarem conflito com a de Nancy Fraser sobre as questes de reconhecimento e redistribuio, Este (Honneth)

    advoga que todos os conflitos sociais tm como natureza primria a luta por reconhecimento (...) Fraser

    acredita que Honneth tenha subsumido as lutas por distribuio de renda ao reconhecimento (MATTOS,2006, pg. 147) resume Mattos.

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    14/19

    52 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    acordo com as explicaes de Hegel, de interpretar o desrespeito social que o

    indivduo sofre com a coero jurdica. De um lado pode-se conceber que esse

    desrespeito fruto do no reconhecimento social da vontade singular do sujeito

    porque as aplicaes das normas jurdicas institucionalizadas com o contrato

    perdem de vista o contexto especfico e individual do sujeito, atuando de forma

    demasiado abstrata para se mostrar justa a ele. Desse modo, a coero jurdica

    se mostraria excessivamente formalista, tendo que, para avanar no

    aprendizado moral, a sociedade ampliar sua sensibilidade quanto s

    especificidades do contexto particular do sujeito provocador. Por um outro lado,

    pode-se conceber que o desrespeito parte do no reconhecimento da vontade

    singular do sujeito pois as normas jurdicas institucionalizadas com o contrato

    tm em seu contedo abstraes to grandes que perdem de vista as diferenas

    materiais entre os indivduos. Desse modo, a coero jurdica seria

    extremamente formalista no quanto s aplicaes das normas, mas quanto ao

    prprio contedo das mesmas, tendo, ento, os sujeitos de direito que

    ampliarem a igualdade material dos indivduos, para a ento possibilitar a

    ampliao das normas jurdicas.

    Porm, Honneth enxerga que Hegel, a partir desse ponto, comete uma

    falha ao no prosseguir com a argumentao na linha de uma constituio

    ainda maior de uma estrutura do reconhecimento jurdico, j que ele no

    atribui provocao moral do crime nenhuma novidade quanto ao contedo do

    reconhecimento, apenas que ela implica na passagem do direito natural ao

    positivo, isto , da relao de direito informal para a organizada pelo Estado.

    Isso significa que para Hegel o crime apenas serve como uma oportunidade dereestruturao institucional do direito. A lei funciona ento somente como

    prescrio negativa das liberdades, agindo sempre como sano do Estado e

    nunca representa diferenciaes ou especificaes de novos contedos morais.

    (...) se as novidades que o crime deve ter provocadopraticamente na relao jurdica tivessem de se restringirs a essa nica e institucional dimenso, ento averdadeira exigncia de seu ato no receberia ajustamente uma considerao social; pois sua meta oculta

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    15/19

    53 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    mas determinante tem de ser em todo o caso (...) asuperao de um formalismo jurdico cujo efeito lesivo nopode ser precisamente anulado pela mera criao de umainstncia de sano estatal. O crime tem sua origem no

    sentimento de um desrespeito, cujas causas normativas,portanto, no pode ser realmente eliminadas pelasinovaes jurdicas que ele mesmo deve poder forar(2003, pg. 104).

    A continuao do texto hegeliano no cumpriria seus prprios objetivos,

    segundo Honneth, pois abandonaria a meio caminho a proposta de atribuir o

    desenvolvimento da relao jurdica presso normativa de uma luta por

    reconhecimento, deixando esse empreendimento apenas como uma sugesto.

    No entanto, Honneth tambm considera que Hegel pode ter seguido este

    caminho porque para ele somente haveria reconhecimento da vontade singular

    na esfera das relaes ticas do Estado, pois tal vontade encontraria aprovao

    social pela experincia do desdobramento do reconhecimento recproco possvel

    somente em um contexto institucional. A especificidade de um quadro de

    filosofia da conscincia que esse contexto no significa o ponto culminante

    das potencialidades inerentes vida social, como significa num contexto

    marcadamente intersubjetivo, mas a etapa de formao do esprito em que ele

    se volta a si, o esprito efetivo. Esta etapa marcaria o ponto no qual a relao

    de reconhecimento jurdico alcanaria a realizao total de si mesma, onde o

    esprito atingiria a exteriorizao mxima na objetividade da realidade social,

    libertando-se de qualquer resqucio subjetivo da etapa anterior, retornando da

    esfera social para si, portanto. Dessa exteriorizao mxima se formariam os

    rgos institucionais do Estado advindos do Poder Legislativo recm surgido.

    O movimento normal do esprito, como j dito, seria o de exteriorizao

    mxima e retorno a si, porm, para efetuar esse retorno, o esprito teria que

    uma vez mais realizar uma experincia de auto-reflexo junto realidade

    institucionalmente constituda do direito para dar seguimento constituio

    da eticidade e formao completa do Estado (2003, pg. 107).

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    16/19

    54 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    De modo resumido, Honneth considera que Hegel, ao se utilizar de

    conceitos como esprito subjetivo e esprito efetivo no texto da Realphilosophie,

    procurou evidenciar etapas pelas quais desdobrava-se novas formas de relaes

    de reconhecimento recproco; na primeira, por meio do desenrolar da relao

    amorosa, e na segunda por meio de uma constituio conflituosa da relao

    jurdica. O que Honneth entende como implicao desta tentativa que Hegel

    no consegue suprir as expectativas postas por ele mesmo, pois j no pode

    mais pensar numa eticidade social do Estado como uma relao constituda e

    concretizada intersubjetivamente:

    Se Hegel tentasse dar conta das expectativas assimsugeridas, ele teria de conceber a esfera tica do Estadocomo uma relao intersubjetiva na qual os membros dasociedade podem saber-se reconciliados uns com os outrosjustamente sob a medida de um reconhecimento recprocode sua unicidade o respeito de cada pessoa pelaparticularidade biogrfica do outro formaria de certo modo

    o fermento habitual dos costumes coletivos de umasociedade (2003, pg. 107-108).

    Os hbitos culturais dos membros de uma sociedade garantiriam a

    integrao social da coletividade na medida em que expressariam a unidade e

    unicidade da mesma, de acordo com uma teoria do reconhecimento, sendo esta

    unidade produto daquela eticidade prpria em que o reconhecimento poderia

    ser distinguido como o meio pelo qual se do as diferentes formas de interao

    social: Esse passo, porm, a guinada conseqente para um conceito de

    eticidade prprio de uma teoria do reconhecimento, Hegel no efetuou (2003,

    pg. 113). Segundo Honneth, Hegel finaliza seu texto praticamente anulando

    essa possibilidade, pois, sendo o Estado a concreo institucional daquela

    ltima experincia de auto-reflexo do esprito, as relaes interativas entre os

    sujeitos na sociedade ficam subjugadas s relaes destes para com a instncia

    superior do Estado. Nele, a vontade geral se torna instncia de poder nico,

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    17/19

    55 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    referente aos sujeitos de direito, e representante de sua qualidade espiritual.

    Em decorrncia, a eticidade assim delineada constitui-se na relao dos

    sujeitos com o Estado apenas, e no nas relaes entre si, revelando o carter

    autoritrio dos hbitos culturais que potencialmente devem se desenvolver a

    partir do estabelecimento desta relao como a relao tica por excelncia.

    Ainda, no sendo a fundao do Estado explicada da mesma forma como o

    surgimento da relao jurdica, isto , por meio dos conflitos intersubjetivos,

    Honneth afirma que a nica forma de Hegel conceb-la t-la como resultado

    do poder tirnico de grandes homens, personalidades fortes e dirigentes que

    expressariam a vontade absoluta:

    Desse modo, todos os Estados foram fundados pelo podersublime de grandes homens, no pela fora fsica, poismuitos so fisicamente mais fortes do que um. (...) Eis asuperioridade do grande homem: saber expressar avontade absoluta. Todos se renem em torno de suabandeira, ele seu deus (HEGEL apudHONNETH, 2003,pg. 110).

    A tendncia autoritria atinge sua completude, conforme defendeHonneth, quando Hegel atribui vontade absoluta do esprito o carter de

    nica vontade capaz de manter o poder poltico, pois somente ela consegue

    forar a obedincia, conter em si o saber de todos, dar o n firme do todo. A

    vontade absoluta pode ser encontrada somente numa pessoa singular e esta a

    justificao do filsofo para a forma monarquista de governo.

    Hegel ainda define o cidado (citoyens), em contraposio ao burgus

    (bourgeois), como aquele que tem sua autoconscincia constituda na relaoreflexiva com o universal superior do Estado, e no aquele que se constri na

    relao interativa com outros que compartilham mutuamente o carter de

    cidado; para Honneth, resulta dessa concepo que se relacionar eticamente

    no contexto social se formar para a obedincia ante ao poder da comunidade,

    e que, diferentemente do que se podia esperar, j no h absolutamente espao

    algum, nestas formulaes hegelianas, para o movimento do reconhecimento

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    18/19

    56 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    Knesis, Vol. I, n 01, Maro-2009, p.39-57

    que d aos sujeitos respeito mtuo pela integridade e especificidade de cada

    um:

    Hegel pde expor em sua Realphilosophiea construo domundo social (...) como um processo de aprendizagem ticoque conduz, passando por diversas etapas de uma luta, arelaes cada vez mais exigentes de reconhecimentorecproco. Se ele tivesse seguido o mesmo processo demodo coerente at a constituio da comunidade tica,ento lhe teria ficado patente tambm a forma de umainterao social na qual cada pessoa pode contar, para suaparticularidade individual, com um sentimento dereconhecimento solidrio (2003, pg. 113).

    Para Honneth, portanto, falta Realphilosophie um conceito

    intersubjetivo de eticidade, no que se refere ao reconhecimento solidrio da

    singularidade individual, para que possa cumprir as suas prprias exigncias.

    Mas Honneth acredita que Hegel j no pode obter mais este conceito com o

    paradigma de uma filosofia da conscincia. Segundo ele, Hegel jamais

    retornar a abordar originalmente o programa de uma luta por

    reconhecimento, e j na Fenomenologia do Espritovolta a atribuir a esta luta

    o papel nico de formar a autoconscincia, e ainda empobrece o modelo na

    dialticado senhor e do escravoimpregnando-o praticamente com o conceito de

    trabalho.

    Honneth, desse modo, reconhece a profundidade e fecundidade do

    projeto hegeliano de construo da teoria da intersubjetividade e tambm seus

    conceitos de reconhecimento e eticidade, porm no concorda com os rumos que

    sua filosofia tomou quando assumiu um modelo de filosofia da conscincia. Acrtica de Honneth, destarte, procura evidenciar estes aspectos, mostrando que

    ele se coloca como simptico ao projeto, mas crtico quanto realizao.

    Em linhas gerais, a partir dessa crtica que Honneth constri sua

    teoria do reconhecimento, buscando atualizar a tese hegeliana luz de

    premissas que correspondessem a um contexto de relaes ps-tradicionais. As

    aberturas encontradas por ele no modelo hegeliano permitiram que ele

    satisfizesse as necessidades de uma teoria social crtica baseada no

  • 7/29/2019 Honneth e Hegel

    19/19

    57 Luta por reconhecimento: a filosofia social do jovem Hegel segundo Honneth

    reconhecimento que pretendesse abarcar as questes atuais da filosofia

    poltica, ainda que muitas e variadas crticas se dirijam sua teoria. Somente

    o fato de haver um acirrado debate sobre a noo de reconhecimento entre os

    mais diversos pesquisadores e autores da filosofia poltica e cincias sociais

    como Axel Honneth, Charles Taylor, Rainer Forst e Nancy Fraser, alm da

    necessidade de se pensar as questes de no reconhecimento tnico, racial, de

    gnero e de desigualdades scio-econmicas, j explicitam o carter necessrio

    de se analisar as fontes tericas que propiciaram o instrumental categorial

    acerca do conceito de reconhecimento, e o modo como ele utilizado por um de

    seus principais sistematizadores na contemporaneidade, Axel Honneth.

    HEGEL, G. W. F. O sistema da vida tica. Trad: Artur Moro, Rio de Janeiro:Edies 70, 1991.

    ______. Sobre as maneiras cientficas de tratar o direito natural: seu lugar nafilosofia prtica e sua relao com as cincias positivas do direito. Trad.Agemir Bavaresco. So Paulo: Loyola, 2007.

    HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramtica moral dos conflitossociais(Trad. Luiz Repa). So Paulo: Ed. 34, 2003.

    MATTOS, Patrcia. A Sociologia poltica do reconhecimento: As contribuiesde Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. So Paulo: Annablumme,2006.

    NOBRE, Marcos. Luta por reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crtica.In: HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramtica moral dos

    conflitos sociais. So Paulo: Ed. 34, 2003, p. 07-19.WERLE, Denlson Lus. Lutas por reconhecimento e justificao danormatividade. (Rawls, Taylor e Habermas) Tese de Doutorado, Depto.Filosofia, FFLCH/ USP, 2004.