Hugo de São de Vitor Didascalicon Da Arte de Ler

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PENSAMENTO HUMANO Didascálicon  D a a rte d e le r o EDITORA UNIVERSITÁRIA SÃO FRANCISCO Hugo de  São Vítor 2a Edição

Transcript of Hugo de São de Vitor Didascalicon Da Arte de Ler

  • PENSAMENTO HUMANO

    Didasclicon

    Da arte de ler

    oEDITORA UNIVERSITRIA

    SO FRANCISCO

    Hugo de So Vtor

    2a Edio

  • HUGO DE SO VTOR

    DIDASCLICON

    DA ARTE DE LER

    Introduo e traduo de Antonio Marchionni

    2- Edio

    OEDITORA UNIVERSITRIASO FRANCISCO

    Bragana Paulista 2007

  • Editora Universitria So Francisco EDUSF Avenida So Francisco de Assis, 218

    Jardim So Jos12916-900 Bragana Paulista, SP www.saofrancisco.edu.br/edusf

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    85.326.2537-1

    189 Hugo, de Saint Victor, [1096?]-1141.H889d Didasclicon: da arte de ler / Hugo de So Vtor ;

    introduo e traduo de Antonio Marchionni. - 2. ed. - Bragana Paulista: Editora da Universidade So Francisco, 2007.

    294 p. - (Coleo pensamento humano)

    Textos paralelos em latim e portugus. ISBN 85.86965.76-6 Inclui bibliografia.

    1. Filosofia medieval. 2. Leitura. I. Marchionni, Antonio. II. Ttulo. III. Srie.

    Ficha catalogrfica elaborada pelas bibliotecrias do Setor de Processamento Tcnico, da Universidade So Francisco.

  • SUMARIO

    Apresentao, 7

    Introduo, 9

    Didasclicon da arte de ler, 41

    Prefcio, 43

    Livro I, 47

    Livro II, 83 Livro III, 131 Livro IV, 169

    Livro V, 205

    Livro VI, 235 Apndices, 267

    Bibliografia, 279

  • Hugo de So Vtor (1096-1141).

  • APRESENTAAO

    Recm-sados de uma civilizao que, em termos de comunicao, pode dizer-se do livro, no nos ocorre espontaneamente ter este fenmeno tambm uma data de ingresso no espectro de usos e costumes da humanidade. Em verdade, mesmo entre os gregos, cuja literatura fez-se parmetro das demais, at Plato, como o atesta o Fdon, foi o livro destinado a objetivos precisos e s aps significativo estgio probatrio angariou prestgio como lugar da tradio e veculo da sabedoria no processo civili- zatrio. Todavia, h de ser este filsofo, por fora do excelente acabamento de seus dilogos, que, para alm do registro dos mitos, das leis e dos gestos e feitos humanos, crnica e histria, h de dar o impulso decisivo para que a escrita se torne coextensiva oralidade, e o livro venha a ser, mais e mais, constante necessria, na instituio do saber.

    Entretanto, na tradio crist, o livro j se encontra de tal modo integrado na disciplina e na eruditio, que passa a ser inclusive sacramental desta mesma tradio: como Agostinho o conhece desde os dilogos em Cassicaco. Dos livros sagrados teologia acadmica ou algo similar nos quadros da Antigidade tardia, passando pela liturgia e pelas vrias formas de catequese, o pensamento cristo crescente h de transmitir Idade Mdia o que codificou e editou, bem como o que herdou dos antigos e h de faz-lo sob a forma do livro, o que faz da leitura um momento decisivo do seu ser, como o atesta a Regula Benedicti. No estranha, pois, que o De Doctrina Christiana, de Agostinho, nascido livro e como tal transmitido, fosse semente de outros livros e paradigma de todo um gnero.

    A Idade Mdia, sem o livro, seria simplesmente outra. Donde o Disdasclicon de Hugo de So Vtor, ele prprio uma arte de ler, fazer pleno sentido qual lugar e veculo da doutrina crist, segundo o referido exemplo agostiniano. Inspirado nesta dou-

  • trina, o livro do Vitorino no apenas um marco da tradio, mas um ato desta e, como tal, no apenas acolhe e transmite, mas nela integra o que colhe em seu meio e em seus tempos, bem como, no que lhe cabe, a constitui, preservando-a qual movimento ativo, o exato contrrio de um depsito. Isto o Vitorino logra sa- ciedade. O fruto que produz, destinado a fazer-se rvore, agora tornado acessvel ao pblico de lngua portuguesa, como fruto, ele prprio, do labor acadmico do Dr. Antonio Marchionni. Chega o momento de dar-lhe a palavra, precisamente quando se prev para o livro um outro status ou um outro destino, para que ele a d, por sua vez, ao mestre medieval da arte de ler.

    Francisco Benjamin de Souza Neto Professor Livre-Docente do Depto. de Filosofia - UNICAMP

  • INTRODUO

    So trs as regras mais necessrias leitura: saber o que se deve ler, em que ordem se deve ler, como se deve ler.Neste livro se trabalha sobre estas trs regras, uma por uma.

    (Da arte de ler, Prefcio)

    O leitor de lngua portuguesa tem em mos, finalmente, um dos livros medievais atualmente mais lidos nos crculos culturais do mundo. Percorrendo a obra Da arte de ler, o leitor jovem e adulto mergulha no mundo cultural do comeo do segundo milnio, quando os jovens de toda a Europa acorriam para as escolas das cidades europias, que naquele momento iam adquirindo uma nova vitalidade aps os sculos da anarquia feudal.

    Sobretudo depois que o famoso pedagogo Ivan Illich escreveu Du lisible au visible1, que um ensaio sobre a revoluo intelectual do sculo XII a partir do Da arte de ler, este livro de Hugo de So Vtor considerado um divisor de guas no saber mundial, de maneira a poder-se falar, diz Illich, de um antes e aps Hugo". Com efeito, incitando seus jovens a ler tudo, Hugo estava inaugurando aquela era do livro, que dari vida Universidade e duraria at o comeo deste terceiro milnio, quando o livro est sendo substitudo pela pgina eletrnica, prancheta onde leremos on line via rdio jornais, revistas e livros,

    Esta obra de Hugo mais conhecida como Didaslicon. O ttulo completo Didaslicon da arte de ler (Didascalicon de Studio Legendi). Os autores da poca costumavam dar s

    1. Illich, L, Du lisible au visible, sur VArt de lire de Hugues de Saint-Victor (Do lsvel ao visvel, sobre a arte de ler de Hugo de S lo Vtor), Paris, d, du Cerf, 1991, Em ingls: In the Vinegard ofthe TexUA ommentary to Hugh *s Didascalicon (Na seara do texto: comentrio ao Didaslicon de Hugo de So Vtor), University of Chicago Press, 1993.

  • suas obras um ttulo grego e o termo Didasclicon queria significar coisas concernentes escola. Ns preferimos apresentar esta traduo com o ttulo Da arte de ler e o subttulo menor Didasclicon.

    A primeira a Sapincia

    Nesta Introduo e em toda a Traduo do livro, manteremos o termo Sapincia significando a Mente de Deus. O termo sabedoria, mais usual na lngua portuguesa falada, no traduzira bem a pregnncia do latim Sapientia, como usado por Hugo de So Vtor na esteira da tradio patrstica e posterior. Em Agostinho e em Francisco de Assis, por exemplo, Jesus, o Verbo e Filho de Deus, invocado como a Sapincia do Pai {Sapientia Patris), expresso que encontramos tambm no Didasclicon da arte de ler (IV, 8).

    Imagine voc, leitor, o primeiro dia de aula no comeo de setembro de 1127 na Escola de So Vtor em Paris. A grande sala com abbadas ogivais ressoa o burburinho dos jovens alunos, que vieram dos quatro cantos da Europa pacificada. Curiosos, eles fixam os olhos na entrada da sala, onde finalmente aparece a figura do renomado Mestre Hugo, que segura na mo seu ltimo livro apenas escrito: Didasclicon da arte de ler. Faz-se silncio. Os alunos se levantam. O Mestre sobe ctedra e entoa uma reza de iluminao. Senta, e todos sentam. No silncio total, sentindo sobre si os olhos sagazes da classe, o Mestre declama pausadamente a primeira frase do livro...: De todas as coisas a serem procuradas, a primeira a Sapincia, na qual reside a forma do bem perfeito.

    Ao jovem aluno logo ensinado que a Sapincia , entre todas as coisas, a primeira. Mas esta Sapincia no alguma coisa, um estgio do conhecimento ou uma sabedoria qualquer. A Sapincia Algum. a Segunda Pessoa da Trindade, o Verbo, o Logos, o Pensamento divino, a Mente de Deus.

    Por que esta Sapincia deve ser a primeira a ser procurada? Porque ela - explica Hugo - a nossa origem. Conhecendo-a, conhecemos a ns mesmos. Com efeito - continua o Mestre - es

  • tava escrito na tripode do templo de Apoio em Delfos o famoso ditado: Conhece-te a ti mesmo. Mas, o que significa para o homem conhecer-se a si mesmo, seno conhecer a sua prpria origem, o lugar divino de onde veio?

    A Sapincia forma do bem perfeito. Ela , antes de tudo, a forma do prprio Deus, que bom e perfeito. Em segundo lugar, a forma do mundo. O mundo e o homem estiveram dentro daquela forma e foram moldados por ela antes de serem criados, como a massa de areia e cimento posta numa frma ou molde antes de virar tijolo, ou como o arquiteto engendra a casa na sua mente antes de transp-la para a prancheta. Como forma causai que cria o mundo, esta forma transfere a sua bondade perfeita para todo o universo. O mundo bom. O homem , originariamente, bom.

    Em suma, tudo aquilo que o homem quer saber sobre si mesmo est l, na sua origem, no seu arqutipo, na sua forma boa, na Sapincia. Em vo - diz Hugo - o homem procura conhecer fora de si aquilo que ele . Basta olhar para dentro de si, descobrindo em si os traos da Sapincia, da mesma forma que o filho se auto- conhece descobrindo em si a frma gentica do seu genitor.

    E como que o homem chega a conhecer esta Sapincia? Hugo responde que tudo comea com o ato de ler, seguido pelo ato de refletir e enfim pelo ato de contemplar.

    A leitura, portanto, o comeo do saber. O bom aluno, diz Hugo, ouve com prazer todos, l tudo, no despreza escrito algum, pessoa alguma, doutrina alguma... pois nenhum texto h, que no tenha algo a ser aproveitado, quando lido no tempo e no modo apropriado (III, 13). Hugo injetava nos jovens uma grande fome de ler e saber. Estudar, lendo, significa conhecer a Sapincia. Por isso, a filosofia, que comea com a leitura, nada mais que um exerccio de amizade com Deus: A procura da Sapincia uma amizade com a divindade e com a sua pura mente (Sapientiae studium est divinitatis et purae mentis illius amicitia, I, 2).

    Com esta saudao programtica - procurem primeiro a Sapincia! - comeava o ano escolstico na Escola da Abadia de So Vtor, na margem esquerda do rio Sena. O homem medieval vivia com as antenas viradas para o alto, sondando os sinais do eterno. Era normal inaugurar um ano escolar com uma exortao de cunho espiritual-metafsico, contrariamente a quanto acontece

  • hoje entre ns, que questionaramos como ingerncia indevida da religio uma exortao deste tipo diante de uma classe.

    No longe da Escola de So Vtor, havia, na Ilha do Rio Sena, uma outra escola, a de Notre-Dame, onde os jovens se encantavam com as argumentaes do Mestre Abelardo. Em seguida, Abelardo transferir o seu ensino na colina de Sainte-Genevive, de onde desciam os vinhedos at o vale, onde ficava a Abadia de So Vtor. Destas escolas nascer, ao redor de 1200, a Universidade de Paris. Os mestres Hugo e Abelardo brilham, na primeira metade do sculo XII, entre os maiores luminares da cena cultural de Paris e da Europa. Abelardo mais exegtico e lgico, Hugo mais mstico, filosfico e teolgico.

    Uma filosofia crist

    Da arte de ler , antes de tudo, um texto de filosofia. Nele no se faz recurso autoridade dos livros sagrados, como faria a teologia. Nele, tudo explicado com a luz da razo, como faz a filosofia. Mesmo quando, nos 3 ltimos livros, Hugo ensina como ler os livros sagrados, o faz numa compostura racional.

    Trata-se, claramente, de uma filosofia crist, cujo ponto de partida a existncia do Ser Transcendente, Deus, que d ao mundo a existncia (causa agente), a forma (causa formal), a matria (causa material), a finalidade (causa final).

    Deus, em Da arte de ler, definido por Hugo sobretudo com a palavra Razo (Ratio). Deus , em si, uma ordem, uma harmonia, uma inteligncia racional. Este conceito de Ratio um dos mais importantes na filosofia do Da arte de ler. Criando o mundo, Deus dota-o de sua prpria racionalidade, de sua prpria ordem. A Sapincia criadora A Razo nica e primeira de todas as coisas (sola rerum primaeva ratio, I, 2)

    No se trata de uma razo lgica ou instrumental, como nas filosofias modernas. A razo dos modernos apenas a capacidade cognitiva e discursiva do homem. Chama-se lgico tudo aquilo que est na mente humana. A razo lgica um fato humano, a regra do pensar mental na conduo do saber cientfico. Ela uma funo neurolgica do crebro humano, sem nenhum parentesco com a divindade.

  • A Ratio do Da arte de ler a Ratio onto-lgica de Algum que (ontos) independentemente da mente humana, antes desta, causa e ordem desta. Esta Ratio, criando o mundo, torna-o semelhante a si mesma, divinamente ordenado e harmnico. Ela o arqutipo do mundo. A Razo Divina, portanto, encontra-se estendida, depositada no universo e sobretudo no homem.

    Desta Ratio o mundo e o homem so constitutivamente, no apenas metaforicamente, semelhana, simulacro, espelho (similitudo, simulacrum, speculum). Forma perfeita do mundo, a Ratio divina in-forma o mundo. E a mente humana, parecida com as estruturas racionais do universo (rerum omnium similitudine insignita, 1 ,1), um pouco tudo (omnia esse dicitur, 1 ,1), nela cabendo tudo (universorum capax est, 1 ,1), e possui as condies para compreender tudo, inclusive o prprio Deus, a Sapincia.

    Esta ordem racional do homem no universo continuamente ferida no corpo e no esprito pelas formas sensveis e materiais que distraem o homem. Como restaurar esta ordem? A semelhana do homem com a Sapincia restaurada pelo prprio homem, mediante a atividade manual do trabalho e, sobretudo, pela atividade intelectual: somos reparados pelo conhecimento (doctrina reparamur, 1 ,1). Nisto insere-se o ato de ler, cuja finalidade introduzir aquele que l e estuda naquele conhecimento que restaura em ns a semelhana com a divindade. Concepo grandiosa do saber humano!

    evidente, nesta filosofia de Hugo,.o seu parentesco com conceitos neoplatnicos, orientais e cristos a um s tempo. O Pseu- do-Dionsio, o Comentrio de Macrbio ao Ciceroniano Somnium Scipionis e os escritos de Bocio inspiram conceituai e verbalmente as pginas do Da arte de ler. Particularmente vivos so, decorrentes do Timeu de Plato e dos neoplatnicos Flon e Plotino, conceitos como a correspondncia entre a alma do mundo e a alma do homem, a definio do homem essencialmente como alma, a divindade do intelecto humano, a reciprocidade da Ratio em seus trs nveis: na mente divina, na natureza, no homem.

    Uma filosofia da educao

    Enquanto destinado a ensinar o que ler, como ler, por que ler, o Da arte de ler tambm um texto de filosofia da educao.

  • Vendo aquelas ondas de jovens que chegavam nas escolas de Paris, o Mestre Hugo concebeu a idia de apresentar-lhes um quadro geral dos estudos e das disciplinas, para que eles se situassem e pudessem escolher. , na histria, o primeiro livro pedaggico direcionado diretamente aos alunos, que nele encontravam um roteiro sobre o que ler e como ler. Alm disso, nele os jovens encontravam conselhos sobre as qualidades que fazem do jovem um bom discpulo, cuja virtude suprema a disciplina.

    Vejamos, por um momento, o currculo escolar da poca, varivel antes da criao das universidades em 1200, mais fixo com a multiplicao delas.

    Primeiro, estudava-se na faculdade das artes o trvio (trs vias, artes da linguagem: gramtica, dialtica e retrica) e o quadrivio (quatro vias, artes das coisas: aritmtica, msica, geometria, astronomia). Era uma espcie de colegial, que acontecia entre os 14 e os 20 anos. Em artes, estudavam-se os livros de lgica, matemtica, fsica e metafsica dos filsofos gregos, rabes e dos prprios mestres que davam os cursos.

    Depois, acedia-se s faculdades de teologia, direito ou medicina, que duravam 6 anos para adquirir a licena e o doutorado. Mas o estudo da teologia durava de 8 a 15 anos, e o doutorado em teologia podia ser obtido com a idade mnima de 35 anos.

    Em medicina, estudavam-se Hipcrates, Galeno e as sumas rabes de Avicena e Averroes. Em direito, estudavam-se principalmente os decretos cannicos da Igreja e a legislao imperial. Em teologia, discutiam-se as sentenas de algum pensador exmio (auctoritas). As aulas costumavam comear com a leitura de um texto de um grande autor (lectio, lio), e em seguida proce- dia-se a questes (quaestio) e discusses (disputatio).

    Para que serve a educao? Para onde voc, jovem, quer ir mediante o estudo e a leitura? Para onde um professor de ento e de hoje quer levar o aluno pelo ato de ensinar? A resposta clara em Hugo. Fazer artes, teologia, direito e medicina tem a finalidade de, conhecendo as maravilhas da natureza, conhecer o Artfice dela. Em suma, o ler e o ensinar so um entretenimento com a Mente divina.

  • Mas o ato de ler tambm um ato moral e poltico, pois aquele que se alimentou da leitura deve alimentar a cidade, vigiando sobre ela como uma sentinela.

    Uma introduo ao saber

    O Da arte de ler tambm uma Introduo aos estudos, a primeira introduo escrita no segundo milnio.

    Hugo tinha diante dos olhos outras introdues ao saber, de outros grandes pedagogos, as quais lhe servem de fontes: o Da Doutrina Crist de Agostinho (sculo V), o Das npcias da filologia e de Mercrio de Marciano Capella (s. V), as Instituies das lies divinas e seculares de Cassiodoro (s. VI), as Etimologias de Isidoro (s. VII), o Da formao dos clrigos de Ra- bano Mauro (s. IX).

    Este gnero de Introdues ao saber nasce em ambientes alexandrinos na metade do sculo II, estende-se pelos ambientes srio-rabes e penetra nos ambientes latinos a partir de Bocio, no sculo V. O termo filosofia era utilizado para indicar o saber em geral, ou melhor, a reflexo mais profunda sobre o significado das vrias cincias.

    Os alexandrinos e os rabes foram os primeiros a iniciar o costume de enquadrar estas introdues em seis perguntas: 1) o que a filosofia? 2) por que chamada assim? 3) qual a sua inteno? 4) qual a sua finalidade? 5) quais as suas divises e subdivises? 6) o que deve-se dizer sobre cada uma delas? O Da arte de ler, em seus primeiros trs livros, responde a todas estas perguntas: 1) elenca quatro definies de filosofia, 2) explica a origem grega do termo atribuda a Pitgoras, 3) declara a inteno da filosofia, 4) mostra a sua finalidade, 5) prope as divises da filosofia, acrescentando a novidade das cincias mecnicas, isto , o trabalho manual, 6) d explicaes sobre cada uma das partes nas quais a filosofia se subdivide.

    Acerca da primeira pergunta, o que a filosofia, a primeira definio a etimolgica, atribuda a Pitgoras, na qual a filoso

  • fia o amor {filia) da Sapincia (sofa). O filsofo no aquele que possui a Sapincia, mas aquele que humildemente procura, amando-a, a Sapincia. Esta Sapincia em Hugo , como dissemos, a Mente de Deus: A filosofia o amor e o zelo e em um certo sentido uma amizade para com a Sapincia, a qual, no carecendo de nada, mente viva e nica causa primordial das coisas (I, 2; II, 1).

    A segunda definio, de sabor estico, conhecida em ambientes romanos, bizantinos, agostinianos e latinos: A filosofia a disciplina que investiga exaustivamente as razes de todas as coisas humanas e divinas (I, 4; II, 1).

    A terceira definio evoca a mentalidade grega: A filosofia a arte das artes e a disciplina das disciplinas (II, I).

    A quarta definio chama em causa a idia da morte. Trata-se da morte desejada ou fsica, que para o estico representa o grau mximo de liberdade. A preocupao com a morte (cura mortis) , em Ccero, nos Padres e na Escolstica, uma fonte de sabedoria: A filosofia a meditao sobre a morte, que convm sobretudo aos cristos, os quais, subjugada a ambio deste sculo, por meio da convivncia especulativa j vivem semelhana da ptria futura (II, 1).

    Uma novidade na cultura mundial: o trabalho como parte do saber filosfico

    Em termos de diviso geral do saber e de classificao das cincias, chegam at Hugo duas tradies: a) a tradio platni- co-estico-agostiniano-isidorense, que divide a filosofia em fsica, tica e lgica, b) a tradio aristotlico-alexandrino-boecia- na, que divide a filosofia em terica, prtica e poitica. De 900 a 1100 corre um perodo de silncio nas Introdues Filosofia. Repentinamente, sob o impacto dos textos greco-rabes e dos primeiros textos cientficos de Aristteles, o sculo XII explode. o momento do Da arte de ler.

  • Hugo introduz uma grande novidade, acrescentando filosofia as cincias mecnicas e dividindo-a em quatro partes: terica, prtica, mecnica, lgica. A terica se divide em teologia, matemtica e fsica; a matemtica compreende aritmtica, geometria, astronomia e msica. A prtica se divide em solitria (tica, moral), privada (econmica, dispensativa), pblica (poltica, civil). A mecnica engloba 7 cincias: manufatura da l, armadura, navegao, agricultura, caa, medicina, lazer. A lgica se divide em gramtica (arte de escrever) e ratio disserendi (arte de argumentar); a arte de argumentar se divide em demonstrativa, provvel e sofistica; a provvel se divide em dialtica e retrica.

    Como pode-se observar, as sete artes liberais do trivio e do quadrivio situam-se nas subdivises da matemtica e da lgica. As 7 cincias mecnicas, pela primeira vez na histria, adquirem o status de saber parte. Eis o esquema:

    terica

    ' teologia

    - matemtica

    . fsica

    ' aritmtica msica geometria

    . astronomia

    prticaindividual (moral)

    privada (econmica) pblica (poltica)

    filosofia

    mecnica

    fabricao da l armamento navegao

    * agriculturacaamedicina.teatro

    lgicagramtica

    raciocniodemonstrao r prova------

    .sofisticadialtica

    .retrica

  • Esta diviso quaternria da filosofia em Hugo evidencia uma novidade enorme em comparao com o nmero 3 recorrente nas divises anteriores. Hugo introduz na diviso do saber as cincias mecnicas, isto , o trabalho humano. A seguir diremos algo especfico sobre este ponto. Isto revela que Hugo adota o princpio aristotlico pelo qual necessrio haver tantas partes da filosofia quantas so as diversidades dos seres, mas observa que o trabalho do homem tinha ficado, at ento, fora da reflexo filosfica.

    Hugo l a histria e percebe que o tempo estava grvido da necessidade de inserir o agir manual do homem no saber filosfico. E o tempo era o do sculo XII, que representa a aurora de novos dias na Europa e na histria da humanidade

    A revoluo intelectual do sculo XII.Da natureza resolvida em teologia natureza resolvida em cincia e filosofia

    Hugo de So Vtor, juntamente com Abelardo, Adelardo de Bath, Thierry de Chartres, Gilberto de Poitiers, Guilherme de Conches, John de Salisbury, Pedro Lombardo e So Bernardo, integra o grupo de pensadores que, na primeira metade do sculo XII, interpretam um novo papel da razo no estudo do mundo natural e supranatural. Anteriores de cem anos ao esprito emprico do franciscano Roger Bacon, eles aparecem nas cidades em desenvolvimento da Frana e da Inglaterra. Discutem literatura, medicina, lgica, gramtica, dialtica, retrica, geografia, preocupados em descerrar a Razo, a constituio profunda das coisas, e as regras da linguagem na interpretao da cincia. Ningum pode discutir sobre as coisas - afirma Hugo - se antes no conhecer o modo de falar correta e verdadeiramente. Trata-se, evidentemente, de uma nova maneira de debruar-se sobre as coisas da natureza2. Eles no conseguiram avanos maiores nas

    2. As mudanas intelectuais implicadas na revalorizao do mundo terreno nos sculos XII-XIV esto ilustradas no volume de um congresso internacional em La Mendola, Alpes italianos, em 1964: La Filosofia delia Natura nel Medioevo, Societ Editrice Vita e Pensiero, Milano, 1966.

  • cincias da natureza, porque faltava-lhes o clculo infinitesimal (descoberto em 1700 por Newton e Leibniz) e faltava-lhes sobretudo a luneta (descoberta em 1600 pelos holandeses e utilizada por Galileu).

    Antes do ano mil em vo procuraramos na patrstica crist um conceito fsico e cientfico da ordem csmica. Para os Padres gregos e latinos o mundo o conjunto das coisas que Deus criou nos seis dias do Gnese. Prevalece o conceito teolgico-mstico: mais que a estrutura do mundo fsico e o estudo das leis que regulam a mecnica do universo, procurava-se neste o vestigium (vestgio) de Deus3.

    Passados os sculos obscuros das invases brbaras (V-VII) e da anarquia feudal (IX-X), sculos de primitivismo, brutalidade, destruio, medos e incerteza, ao redor do ano mil desponta a aurora de tempos diversos. Tinha terminado o perodo das migraes internas de povos inteiros pela Europa, e, com ele, terminava o perodo das guerras ininterruptas. A segurana europia do incio do segundo milnio fixa os homens ao trabalho nas campanhas ao redor do castelo senhorial e nos ncleos urbanos, produzindo uma retomada demogrfica, que efeito e causa de uma revitalizao agrria. A isso concorrem novidades tcnicas, como o arado pesado, a ferradura e o peitoral nos cavalos, a rotao bienal e trienal na semeadura, o acesso aos legumes com a diminuio de doenas, e o moinho de vento, que se junta ao moinho dgua para moer os gros e mover aparelhos destinados a curtumes, fabricao de tecidos, trabalho em lenho e empastamento do papel. Generaliza-se o costume de vestir-se com tecidos.

    O aumento da produo agrcola com o fim das guerras provoca o aumento da populao e da expectativa de vida. O vigor agrcola e demogrfico leva ao comrcio, ao mercado, s feiras e s viagens, enquanto o excedente populacional faz aparecer novos povoados ao redor da capela do senhor transformada em parquia e ao redor da igreja-catedral e da residncia do bispo, onde se aglomeram refugiados provenientes das glebas. a ci

    3. Nardi, B., Sguardo panormico alia filosofia delia natura nel Medioevo, em La Filosofia delia Natura nel Medioevo, op. cit, p. 11.

  • dade comunal (il Comune), fortificada e autnoma como o castelo, povoada por camadas intermdias entre a casta feudal e a camada rural, com palcios e templos gticos, mercados e praas, onde se cruzam estudantes, engenheiros, artesos, letrados, not- rios, advogados, vagabundos, cruzados, mercadores, cavaleiros, clrigos, mdicos, juizes e professores. J no basta mais o esquema trifuncional, atribudo a Adalbero de Laon, que dividia a sociedade medieval em orantes, guerreadores e trabalhadores (oratores, bellatores, laboratoresf. A cidade ferve de idias, obras, organizaes e instituies. Isto impulsiona o homem medieval a uma nova estima de suas capacidades, substituindo o medo da natureza misteriosa e hostil com o domnio sobre aquela natureza.

    No horizonte profissional despontam novas figuras de juristas, notrios, mdicos, artistas, professores e mestres, que ascendem a cargos educacionais, econmicos e polticos, superando o rgido verticalismo feudal e dando vida a uma nova ordem de convivncia cvico-comunitria.

    Em filosofia, fuga e ao desprezo do mundo substitui-se a estima do mundo, estimulada pelas obras do Pseudo-Dionsio (s. V), cuja Hierarquia, comentada por Scoto Erigena e pelo prprio Hugo, lana nova luz sobre o operar construtivo e terreno do homem em sinergia criativa com o Sumo Bem. A razo se pretende uma instncia cognitiva com estatuto prprio, intensificando seus servios ao mundo e natureza, que se tornam temas das escolas de Chartres e de So Vtor. Isto acontece sobretudo na Frana capetngia, revigorada econmica e culturalmente pelo rei Lus VI, enquanto a reforma gregoriana promovida pelo monge cluniacense Hildebrando, futuro papa Gregrio VII, injeta nos ambientes eclesisticos novos ardores espirituais com novos desafios jurdicos, exegticos, apologticos, teolgicos, organizativos e curriculares. Aumenta o nvel cultural do clero e, conseqentemente, dos funcionrios pblicos, enquanto as escolas, que at ento eram administradas pelas abadias beneditinas sob o signo do espiritual, transferem-se para as catedrais e 4

    4. Le Goff, J., Le travai! dans les systmes de valeur, em Le Traval au Moyen ge, Actes du Colloque International de Louvain-la-Neuve, 1987, Louvain-la-Neuve, 1990.

  • outras instituies cannicas, com enfoques naturalsticos sobre a cincia, o indivduo e a sociedade5. Nestas escolas comea a modernidade, quando a tradio e o princpio de autoridade (itraditio e auctoritas) so acrescidas pela indagao e disputa {quaestio e disputatio), ou seja, pelo debate criativo, que ser o cerne do mtodo escolstico de ensino.

    Em fsica registra-se a inventividade de um renovado esprito emprico, de modo que hoje se fala de uma revoluo intelectual do sculo XII, um gnero de iluminismo medieval a meio caminho entre o iluminismo de Mileto de 600 aC e o iluminismo francs de 17506. Na verdade, trata-se de mais um renascimento acrescido renascena carolngia do sculo IX e renascena de 1500. Alguns, reservando o termo renascena ao sculo XV, preferem falar, com relao s outras renascenas, de pr-mo- dernidade ou proto-renascena7 8.

    Propensa a ver a Idade Mdia dos sculos XII e XIII como o pice da metafsica e como ascenso para a sntese clssico-cris- t de Santo Toms e Dante Alighieri, a historiografia moderna apenas ultimamente comeou a dar ateno ao aparecer de uma mentalidade emprica entre 1075 e 1150. A novidade do sculo XII sintetizada por Bruno Nardi nestes termos: a uma fsica lida em chave teolgica se junta uma fsica lida em chave filos- fico-cientfica. E, para confortar esta afirmao, costuma-se recorrer a duas expresses de Hugo de S. Vtor, a primeira indicando a interpretao religioso-alegrica do mundo, a segunda realando a interpretao cientfica do mundo:

    1) Este universo sensvel como um livro escrito pelo dedo de Deus, isto , criado pela fora divina, e todas as criaturas so como figuras no inventadas pela vontade humana, mas organizadas pela vontade divina para manifestar a Sapincia de Deus {De tribus diebusf.

    5. Morris, C., The Discovery ofthe Individual 1050-1200, London 1972.6. Haskins, C., The Renaissance o f the TweUth Century, Cambridge, 1927.7. Giard, L, Hugues de Saint-Victor cartographe su savoir, em VAbbaye parisienne de

    Saint-Vidor au Moyen ge (Biblioteca Victorina I), Paris-Turnhout, Brpols, 1991, 253-269, p. 255.

    8. Hugonis de Sancto Victore, De Tribus Diebus (Liber VII do Didasclicon), PL176,814.

  • 2) A natureza um fogo criador que nasce de alguma fora para gerar as coisas sensveis. De fato, os fsicos dizem que todas as coisas so geradas pelo calor e pela umidade (1,11).

    Carter tpico desta revoluo intelectual no sculo XII , segundo Ivan Illich no livro acima citado, a revoluo do livro ou cultura livresca. 0 papel vindo da China via Toledo, o velino em pergaminhos finos, a tinta, a minscula carolngia, a adoo da escrita em itlico e a caneta com ponta de feltro facilitam nas oficinas dos copistas (scriptoria) a compilao de livros, que so encomendados por bibliotecas, juristas, mercadores e senhores. O Livro da revelao, do doutor, do filsofo, da autoridade, agora ladeado por livros de professores e pesquisadores, com ndices, pargrafos, resumos, palavras-chave e, em geral, uma nova organizao tcnica e esttica da pgina. Ao copista se acrescenta o autor (auctor, do latim augere, aumentar, aquele que aumenta o saber), leitura monacal acrescenta-se a inveno esco- lstica, narrao a reflexo, leitura a compilao, escuta a disputa. O homem aprende a manusear os conhecimentos ao invs de apenas l-los e a novidade do ato de escrever cria a novidade do ato de ler e ensinar.

    De acordo com Illich, do mesmo modo que a substituio dos ideogramas pelo alfabeto fencio no sculo VIII aC significou a primeira revoluo cultural da humanidade, que deu o nascimento filosofia grega, a cultura livresca do sculo XII representa a segunda revoluo cultural da humanidade, que d origem Universidade. Gutenberg, trs sculos depois, apenas acelerar com a tipografia esta nova onda cultural desencadeada no sculo XII. Hoje, segundo Illich, com a apario do v- deo-livro, estamos assistindo terceira revoluo cultural da humanidade, que dar origem a no sabemos quais novos campos do saber pelo ciberespao.

    esta a poca que o Da arte de ler de Hugo interpreta. Alguns dizem que data destes anos o incio da era moderna, quando desaparecem da cena bizantinos, rabes e povos invasores e entram em ao as cidades do centro e do norte da Europa, juntamente com o aparecer das escolas de direito de Pavia, Mi

  • lo, Mntova, Verona e Bolonha, da escola mdica de Salerno e, no norte, das escolas filosfico-teolgico-literrias de Chartres, Laon, Notre-Dame, Saint-Victor.

    A Escola de So Vtor: lugar e tempo de transio

    A complexa e inexorvel passagem do simbolismo da natureza para a pesquisa sobre a natureza, da teologia simblica para o debate dialtico, encarnada pela Escola de So Vtor. A cavalo entre o antigo e o moderno, So Vtor uma escola interna e externa, contemplativa e ativa, herdeira da tradio e partidria das reformas, espiritual e intelectual, Sapincia e cincia (sapientia et scientia). E dentro da Abadia de So Vtor o Mestre Hugo, cnego e professor, que encarna o esprito da Escola, derivando da a expresso Hugo e sua Escola9.

    Hugo nasce ao redor de 1095, provavelmente na Saxnia10, e chega a Paris ao redor de 1115, morrendo em 1141.

    Eram os dias de grandes acontecimentos, quando as primeiras cruzadas conquistavam Jerusalm, os mosteiros cistercien- ses eram erguidos sobre a disciplina do trabalho manual e intelectual, a Chanson de Roland celebrava o Sacro Romano Imprio e dava incio s literaturas autctones, o tratado de Worms punha fim contenda das investiduras, o cristianismo se renovava nas leis e no esprito, os primeiros vidros sustentados com chumbo davam incio arte gtica nas janelas da Igreja de Saint-Denis em Paris.

    O nascimento da Escola de So Vtor datado de 1108, ano em que o arquidicono Guilherme de Champeaux deixa a Ilha da Cidade (le de la Cit), onde ensinava, e se instala em uma capela em honra de So Vtor, com alguns anexos, na margem es

    9. Sicard, P., Hugues de Saint-Victor etson cole, Brepols, 1991.10. a tese de Taylor, J., The Origin ofEarly Life o f Hugues o fS t Victor: an Evluation

    ofthe Tradition, Notre Dame, 1957, p. 60. Segundo Baron, Hugo nasceu em Ypres, nos Flandres; cf. Baron, R., Notes biographiques sur Hugues de Saint-Victor, Revue dhistoire ecclsiastiques, 1956, p. 920-934.

  • querda do Sena, iniciando logo uma escola. Em sua Histria das minhas desgraas, Abelardo, que foi discpulo e crtico de Guilherme na questo dos universais, conta que este no prprio monastrio para onde se retirou por razes religiosas, abriu uma escola pblica. Em 1113 o rei Lus VI promove o local a abadia e a entrega aos cnegos de Santo Agostinho. Em 1114 a abadia reconhecida pelo papa Pascal II, que nomeia Gilduno como primeiro prior, enquanto o fundador Guilherme, feito bispo de Chlons, l morre em 1121.

    volta de 1115 chega o jovem Hugo, trazido por um rico tio arquidicono de Halberstadt, que, parece, doou o dinheiro para construir uma nova igreja e as moradas monsticas. Hugo certamente espectador atento a estes trabalhos, a julgar pela cura com a qual descreve os utenslios e as aes da construo civil em Da arte de ler. Ao redor de 1125 a abadia possui preben- das e terrenos espremidos entre a montanha de Sainte-Genevi- ve e a le, mas os meios financeiros e fundirios da abadia so relativamente escassos. Ao redor de 1135 o captulo da abadia assim formado: o abade Gilduno, que era tambm confessor do rei, o prior Eudes, um vice-prior, um mestre ou magister (Hugo), um ecnomo, quatro diconos, trs subdiconos, trs clrigos, trs vicrios. A partir desta data, a abadia recebe uma onda de simpatia e um afluxo de doaes, que fazem de So Vtor um rico complexo da capital, ao qual, em 1148, anexada tambm a abadia de Sainte-Genevive.

    Os cnegos de So Vtor organizam-se em uma Ordem com uma Regra e um cerimonial, enquanto as casas da Ordem se ramificam na Frana e fora dela at o final do sculo XII, quando este ardor diminui. Na metade do sculo XV se procede a trabalhos de restaurao e ampliao. Em 1504 um raio destri a igreja e sobre ela construda uma nova, terminada em 1530. Ao redor da igreja ficam a casa reservada ao bispo de Paris, o noviciado, a biblioteca, a enfermaria de 60 metros com uma capela, esttuas e decoraes, um ptio quadrado de 30 metros ao redor do qual stuam-se o refeitrio e os dormitrios dos clrigos, um local reservado aos estudantes externos de So Vtor, um edifcio de 25 metros de comprimento reservado escola, as salas do

  • captulo. Aps ter recebido, no sculo XVIII, ornamentaes em esttuas e pinturas, o complexo de So Vtor destrudo quase totalmente pela Revoluo Francesa. O que resta depois dela permanece sob a autoridade do Imprio, mas um relatrio de 1803 assinala o estado de precariedade total do conjunto. Os moradores do povoado prximo abadia se adentram nos terrenos da mesma, e em 1813 a abadia de So Vtor desaparece dos mapas urbanos. Hoje, perto da atual Rue de Saint-Victor, restam da antiga abadia alguns poucos locais restaurados, sobre os quais foram erguidas construes, ocupadas pelo Corpo dos Bombeiros da cidade de Paris.

    O desenvolvimento intelectual da Escola de So Vtor registra algumas dcadas de ouro, que vo de 1125 a 1185. Estimulada pelo ensino de Hugo, a escola v florescer telogos, filsofos, sbios, poetas, pregadores, confessores. Em lgica e teologia brilha Guilherme de Champeaux. Hugo distingue-se como cartgrafo do saber, leitor da Escritura e hermenutico, filsofo, telogo da histria, contemplativo e mstico, pedagogo, gramtico e gemetra. Achard (m. 1171) telogo e mstico. Ricardo (m. 1173) autor fecundo em pedagogia e mstica. Andr (m. 1175) destaca-se na prtica da exegese bblica e da crtica textual. Brilharam tambm os nomes dos Mestres Gauthier, Go- dofredo, Adam, Garnier, Toms Glico.

    A Abadia, fora intelectual e fora poltica, protegida pelos reis e pelos papas. De l so escolhidos cardeais e confessores de reis e papas, para l bispos e arcebispos dirigem-se para fazer retiros espirituais, l encontramos em 1134 o jovem Pedro Lombar- do, acolhido por recomendao de So Bernardo e, provavelmente, discpulo de Hugo. O scriptorium da Abadia fervilha de minia- turistas e escreventes de tratados, cartas e sermes, cuja produo manuscrita se espalha pelos departamentos da administrao real, pelas bibliotecas, pelas casas privadas e pelas escolas.

    A obra de Hugo

    O Mestre Hugo impressiona pela fertilidade em obras escritas, e o nmero delas parecia notvel j em 1154 ao cronista Ro-

  • bert de Torigny, quando este registrava que o mestre Hugo escreveu tantos livros que no haveria modo de enumer-los, to espalhados eles esto11. A Patrologia Latina de Migne rene em trs volumes12 o acervo de obras, opsculos e cartas de autoria certa e duvidosa do nosso autor, em um total de 52 ttulos, divididos em obras exegticas, dogmticas, msticas e epstolas. O manuscrito mais antigo de que dispomos (Vaticano Regina 167), datado da metade do sculo XII, enumera 15 tratados de Hugo. Os manuscritos posteriores primeira organizao das obras, ordenada pelo abade Gilduno em 1152, dez anos depois da morte do mestre, j listam 54 ttulos, nmero aproximado que se mantm at os nossos dias, quando os estudiosos fazem consistir as obras de Hugo em 48 ttulos autnticos e oito duvidosos13.

    Com centenas de manuscritos espalhados por 45 bibliotecas europias, as obras de Hugo foram objeto de vrias edies, que so as de Paris em 1518 e 1526, de Veneza em 1588, de Magonza e Colnia em 1617, de Rouen em 1648, de Migne em 1854 e 1879, alm de edies parciais de escritos especficos. Est em preparao uma nova edio de todas as obras de Hugo por iniciativa do Hugo-von-Sankt-Viktor Institut, em Frankfurt, na Alemanha.

    Vrios livros do vitorino foram traduzidos em lngua francesa, flamenga, italiana, alem, catal, inglesa e, agora, tambm portuguesa. Entre as obras de Hugo mais recordadas e comentadas encontram-se: Didasclicon da arte de ler, Dos sacramentos da f crist, Sobre a hierarquia celeste do Santo Dionsio, Sobre o Eclesiastes, Da unio do esprito e do corpo, Dos trs dias, Da essncia do amor, Solilquio sobre o penhor da alma, Em louvor do Amor, Da arca mstica de No, Da arca moral de No. Hugo escreveu tambm um livro de geografia, recentemente aceito como autntico, o Descrio do mapa do mundo.

    11. Robert de Torigny, De immutatione ordinis monachorum, PL 202, 1313.12. Tomus 175, 176, 177.

    13. Baseamos esta afirmao na bibliografia oferecida por Sicard, P., op. c it

  • Da arte de ler

    0 Da arte de ler, escrito em 1127, precede quase todos os outros escritos de Hugo. um livro de grande fortuna, sobretudo nos ltimos decnios. Smbolo da efervescncia de uma poca, o Da arte de ler a obra mais famosa do vitorino em termos de racionalidade filosfica, ao lado do Dos sacramentos, que evidencia a face teolgica do vitorino. As edies e tradues ba- seiam-se em bem 126 manuscritos, nmero que atesta o interesse pela obra durante sete sculos. A ltima traduo do Da arte de ler a presente, para o portugus. A traduo para o alemo data de 199714. de 1991 a traduo francesa15, que segue de perto a traduo italiana de 198716. Primeira entre todas, a traduo para o ingls de 1961, reeditada em 199117. Todas estas tradues baseiam-se no texto crtico latino elaborado pelo americano Buttimer em 193918.

    Se, em geral, a figura de Hugo est sendo vistosamente revi- sitada nos ltimos decnios enquanto propulsora de novos tempos, o Da arte de ler em particular objeto de estudos literrios e filosficos em vrias universidades, como se deduz de um rpido passeio pelos currculos universitrios alocados na Internet. Esta obra, que j exercitou notvel influncia nos sculos sucessivos sua apario, est voltando a atrair as mentes.

    O Da arte de ler , entre outras coisas, um currculo medieval dos estudos. Dependendo do ngulo de anlise, visto como um livro ora filosfico, ora mstico, ora tico, ora antropolgico, ora pedaggico. Com certeza, o Da arte de ler incorpora o esp

    14. Hugo von Sankt Viktor, Didascalicon de studio legendi, bersetzt und eingeleitet von Thilo Offergeld, Freiburg, Herder, 1997.

    15. Hugues de Saint-Victor, L art delire Didascalicon. Introduction, traduction et notes par Michel Lemoine. Paris, ditions du Cerf, 1991.

    16. Ugo di San Vittore, Didascalicon, Idoni delia promessa divina, Uessenza delVamore, Discorso in Iode dei divino amore. Introduzione, traduzione e note di Vincenzo Liccaro, Milano, Rusconi, 1987.

    17. The didascalicon ofHugh ofSt. Victor: a medieval guide to the arts, translated from the Latin with an introduction and notes by Jerome Taylor. New York, Columbia Uni- versity Press, 1991.

    18. Hugonis de Sancto Victore, Didascalicon De Studio Legendi, a criticai text by Bro- ther Charles Henry Buttimer, M.A., Washington, The Catholic University Press, 1939.

  • rito das novas organizaes religiosas da poca, tendentes a recapturar o ascetismo da Igreja primitiva, combinado com o servio ao prximo e com as novas exigncias da cidade medieval. O pensar e o agir em realimentao recproca, ou melhor, o agir pensando, no rasto do ora et labora (trabalha rezando), constituem o mtodo da obra.

    O Da arte de ler composto de seis livros, trs dedicados ao conhecimento das coisas do homem pela leitura dos escritos literrios e trs dedicados ao conhecimento das coisas de Deus pela leitura da Sagrada Escritura. Tambm esta diviso equalitria entre a esfera da razo e a da revelao sinaliza a centralidade da unio corpo-esprito, prtica-teoria, temporal-eterno, manu- al-intelectual no pensamento de Hugo.

    O Livro / resume as bases ontolgico-gnoseolgicas da filosofia de Hugo: a alma do mundo e a alma individual, a abrangncia e a diviso da filosofia, a razo, a essncia das coisas, mundo sublunar e supralunar, semelhana do homem com Deus, o agir do homem e de Deus, a natureza.

    O Livro II apresenta as artes: a teologia, a matemtica com as artes do quadrivio, a quadratura da alma e do corpo, a fsica, as cincias mecnicas em nmero de 7, a lgica com as artes do trvio.

    O Livro III d aos jovens conselhos sobre como ler e o que ler: quais foram os autores das artes, artes prioritrias na leitura, discernimento no estudo, meditao, memria, disciplina, humildade, silncio, despojamento, exlio.

    O Livro IV abre a srie dedicada leitura dos livros sagrados: nmero e ordem dos livros, seus autores e tradutores, seu cnon, autores do Novo Testamento, significado dos nomes dos livros sagrados, conclios, escritos autnticos e apcrifos, etimologia de certos nomes como cdigo, volume, carta, pergaminho e outros.

    No Livro V Hugo d as regras exegticas de interpretao na leitura dos livros sagrados: modo de ler, o trplice mtodo his- trico-alegrico-tropolgico no estudo das Escrituras, significado das palavras e das coisas, as sete regras com as quais a Escritura se exprime, os obstculos ao estudo, o fruto da leitura divi

  • na, como fazer da Escritura um meio para corrigir os costumes, os estgios do estudo e do entendimento para chegar perfeio, os trs tipos de leitores da Escritura, entre os quais alguns procuram somente a cincia, outros, a maravilha, outros, enfim, a salvao.

    O Livro VI dedica-se mais amplamente ao estudo dos trs mtodos de interpretao da Escritura e oferece outros conselhos de leitura: interpretao histrica em sua ordem temporal {ordo temporis), interpretao alegrica segundo a ordem de conhecimento (ordo cognitionis), interpretao tropologica (moral) com ateno s coisas mais que s palavras, reflexes sobre os termos letra, significado, sentena e meditao.

    O Apndice d um resumo aforstico sobre as trs maneiras de existirem das coisas na mente divina, na natureza, na mente do homem.

    Uma filosofia do trabalho em Da arte de ler.Um fio condutor entre a Idade Mdia e a Modernidade?

    Grandes discusses foram travadas sobre a introduo das cincias mecnicas na filosofia por obra de Hugo. Qual o significado de tal ato? Alguns acham que trata-se de algo apenas aleatrio. Outros afirmam que Hugo possua um esboo de filosofia do trabalho humano. Demonstrei na minha tese de Doutorado em Filosofia na Unicamp Trabalho e Razo no Didasclicon de Hugo de So Vtor os elementos de uma filosofia do trabalho em Hugo.

    Hugo notvel por ter sido o primeiro, na histria das idias, a situar dentro da filosofia as cincias mecnicas19, ou seja, a ao eficaz do trabalho humano sobre a natureza. A esta revalorizao do trabalho manual e do trabalho em geral corresponde uma filosofia do mesmo. Qual? Pode a Idade Mdia contribuir para um dos temas mais decisivos do novo milnio, o do traba

    19. Did. II, XX-XXVII. O Didasclicon no usa a expresso artes mecnicas, corrente nos comentaristas.

  • lho humano? A nvel filosfico, certamente sim. Nos colquios dos ltimos quarenta anos, freqentemente os medievalistas centraram suas pesquisas sobre o trabalho na Idade Mdia, tra- tando-o sob o aspecto histrico, social, jurdico e tcnico20. Mas Hugo oferece a possibilidade de termos tambm um significado filosfico do trabalho humano.

    O interesse pelo significado humano-subjetivo do trabalho, para alm do seu significado tecnolgico-mercadolgico, veio novamente cena nos ltimos anos, nos quais a anarquia financeira mundial, que ameaa o equilbrio entre os povos, evidencia-se como criatura de um erro fundamental, que a separao entre o trabalho e a propriedade do mesmo. No liberalismo, o trabalho do trabalhador, mas a propriedade do mesmo pertence ao capitalista. A partir desta dissociao (alienao, perda) no trabalho, os produtos fabricados pelo trabalhador adquirem vida prpria no mercado pelas mos do capitalista e se tornam mercadorias feti- chizadas com poder anti-humano, fato que se desdobra em mistificaes econmicas, polticas, sociais e culturais. Esta fetichizao dos produtos do trabalho humano ainda mais virulenta quando as mercadorias, transformando-se em seu equivalente universal, que o dinheiro, do vida ao sistema financeiro, cujo processo de centralizao a nvel mundial apontado, hoje, como uma das maiores ameaas convivncia humana21.

    A soluo deste descolamento entre trabalho e propriedade do mesmo se d pela devoluo ao trabalhador da propriedade do seu trabalho. A esta necessidade responde o recente reaviva- mento dos estudos sobre o trabalho humano seja em ambientes marxistas, a partir dos Manuscritos econmico-filosficos22 de Marx, como em ambientes catlicos, a partir da encclica papal

    2 0 .0 trabalho na Idade Mdia foi tema de um Congresso da Universidade de Perugia em 1980, de um Colquio Internacional em Lovaina em 1987, de outro Congresso Internacional em Montreal em 1967.

    21. R. Kurz, O colapso da modernizao, So Paulo, Paz e Terra, 1992.0 autor conclui pela urgncia de restabelecer no mundo o primado do "trabalho vivo (produo) sobre o "trabalho morto (dinheiro).

    22. K. Marx, Manuscritos econmicos e filosficos de 1844, em E. Fromm, Conceito marxista de homem, Rio de Janeiro, Zahar, 1970, p. 83-170.

  • Laborem Exercens23. Na verdade, foi Hegel o primeiro dos pensadores modernos a refletir sobre o trabalho como autoforma- o do homem e sobre a necessidade de o trabalho liberar-se da negatividade do sistema de trabalho dependente.

    O conceito de reflexividade do trabalho sobre a pessoa do trabalhador assumido hoje como o fulcro de todas as filosofias do trabalho: construindo objetos, o trabalho constri a essncia, o crebro, do prprio trabalhador: diz-me como trabalhas e te direi quem s! Numa leitura atenta do Da arte de ler, parece-nos que o moderno conceito de reflexividade no trabalho est presente tambm no pensamento de Hugo.

    Em Hugo o trabalho humano uma imitao da natureza (imitatio naturae), que, por sua vez, um simulacro do arqutipo divino. Numa lgica descendente-ascendente, consubstanciada na frmula neoplatnica e agostiniana de sada-retorno (exi- tus-reditus), dizemos que as formas presentes na forma do bem perfeito, que a Mente divina (Sapientia), materializam-se nas formas da natureza, so apropriadas pela mente do homem e finalmente so transferidas para o objeto do trabalho humano. O trans-frmar pelo trabalho um processo de transferir-formas. No final do processo, o objeto do trabalho in-formado por uma forma originada na mente humana, na natureza e, finalmente, na Mente divina. A mente do trabalhador, que imita as formas divinas presentes na natureza e as contempla no objeto produzido, resta in-formada (in-formatur) por uma esttica divina. Temos aqui a reflexividade de que falam os modernos. Isto constitui um fio condutor, que ligaria organicamente o pensamento medieval ao pensamento moderno, interessado a impulsionar o atual trabalho dependente para uma nova forma de trabalho livre e associado. fascinante.

    Certo, h uma distino entre o esquema hugoniano-cristo e o esquema dos materialistas. O esquema de Hugo contm a dimenso transcendente, onde o ponto de partida a Mente divina, que se exterioriza na natureza, depois no homem, depois nas obras do homem, para retomar a si mesma na atividade mental-ma-

    23. Carta encclica de Joo Paulo II, Sobre o trabalho humano, So Paulo, Vozes, 1984.

  • nual do homem (filosofia), que uma amizade com a Sapincia. H um movimento circular entre quatro elementos: Mente divi- na-natureza-homem-trabalho-Mente divina.

    Ao passo que o esquema materialista de Marx e epgonos se mantm nos limites imanentes da natureza material. 0 ponto de partida a mente do homem, que, em sociabilidade com os outros, se exterioriza na natureza transformada pelo trabalho, rea- limentando, numa reciprocidade dialtica teoria-prxis, uma nova representao de si, da natureza e ds^utros. Em Marx h um movimento triangular de relao recjkoca entre trs plos: homem-natureza-trabalho-homem24.

    Seja em Hugo seja em Marx o trabalho medeia a relao do homem com a natureza, constituindo-se em auto-realizao do homem. Em Hugo, todavia, a essncia do homem dada antes do trabalho, por obra da Mente divina, que forma do homem. Pelo trabalho manual, condio corprea do trabalho intelectual, esta essncia restaurada em continuao. No esquema materialista, ao contrrio, no h subjetividade anterior ao trabalho: o homem realiza a sua essncia unicamente no trabalho, que condio nica da gnese histrica, atividade essencial, vir-a-ser e, como se expressava tambm Hegel, autodesenvolvimento do homem. O homem, neste monismo materialista, o nico mediador do prprio homem. Expresso acabada desta atitude prometica, que assume o concreto vivido como nica fonte da teoria, Han- nah Arendt, para quem o pensamento no jorra de alguma filosofia ou metafsica da histria, mas nasce do acontecimento da experincia vivida e a partir desta inicia o seu exerccio terico25.

    O otium (cio) como atividade

    O ato de ler , em Hugo, um cio {otium). Vale a pena refletir um instante sobre este termo, mostrando a sua conexo com o trabalho.

    24. Cf. I. Mszros, Marx: A teoria da alienao, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 96.25. Arendt, H., Condio humana, So Paulo, Edusp, 1981.

  • 0 termo otium em latim significa: a) inao, repouso, tempo ivre (em oposio a negcio - negao do otium - trabalho, pressa), b) dedicao aos estudos e expanso da conscincia Humana (scribendi otium, disponibilidade para escrever, diz C- :ero em Ofcios 2, 4).

    Em Da arte de ler, o termo otium existe no sentido de dedicao ao saber, que vai da leitura meditao e contemplao. Hugo diz que o otium a quietude exterior da vida para dedicar-se a estudos dignos e teis: A quietude da vida ou interior, para que a mente no se perca em desejos ilcitos, ou exterior, para que o tempo livre (otium) e a comodidade permitam estudos honestos e teis. Uma e outra pertencem disciplina moral (III, 16). O vitorino destaca que o tempo livre (otium) dedicado aos estudos torna-se motivo de vergonha se no conduzido com ordem e mtodo: O mtodo to importante, que sem ele qualquer tempo dedicado aos estudos (otium) torpe e todo trabalho intil (V, 5).

    O otium , em grego, skhol, que carrega o significado de pausa, parada, repouso, inocupao, indolncia, tempo disponvel, tempo livre e tambm colquio cientfico, leitura, recitao. Deste ltimo significado deriva a skhol como o lugar onde o mestre l, d lio, onde se discute, se pensa. O grego skhol flui para o latim schola, que significa pesquisa douta, disquisio, explanao de um objeto cientfico ou literrio, lio e explicao de obras eruditas. Metonimicamente, o termo schola vem designar tambm o lugar onde isto tudo acontece, como tambm a galeria onde os homens cultos se renem e onde as obras-de-arte so expostas, a sala de espera dos banhos pblicos com suas longas conversas, as sedes das corporaes, os lugares de reunio. Por fim, schola vem indicar o pensamento de um mestre seguido por discpulos em seitas e correntes.

    Em breve, o otium, skhol em grego, schola em latim, em italiano scuola e em portugus escola, carrega consigo o significado de atividade pensativa e artstica do homem. A escola um otium, ou seja, um clima espiritual e um estado do esprito, muito diverso do suor e calor do dia representado pelo trabalho.

  • Oportunamente, algumas filosofias do trabalho afirmam que o trabalho perde o seu sentido se no vivificado pelo otium, isto , por uma reflexo filosfica sobre o prprio trabalho. 0 otium uma dimenso da vida, que podemos chamar de vertical, heterognea dimenso horizontal do trabalho, mas complementar a ela. 0 otium expanso da conscincia humana pelos campos artsticos, religiosos, culturais, comunitrios. O otium a reflexo, a festa, o exerccio da unidade moral que, ultrapassando a particularidade dos interesses cotidianos por meio de uma viso unitria da existncia, d significado a todas as aes do homem. Enquanto heterogneo com respeito ao trabalho, o otium no se ope a ele. O otium pertence a outro tipo de atividade, em um nvel superior com relao ao trabalho e tcnica. H, complementariamente, uma atividade-trabalho e uma ativi- dade-otium. O trabalho subordina-se ao otium como meio para o fim, e o otium a instncia que reveste o trabalho de justificao e valor26.

    A filosofia do Da arte de ler sobre o trabalho humano um otium, que confere atividade manual um sentido, uma finalidade, uma plenitude. A finalidade do otium a de lanar uma luz intelectual sobre a concretude do agir humano.

    O ler o incio do saber.A perfeio do saber est na ao e na contemplao

    Ler, para Hugo, um modo de viver, um afeto de amizade, um ato moral e social, um cio reparador, restaurador e inspirador. A leitura como sabor da Sapincia d consolo a quem a procura, felicidade a quem a encontra, beatitude a quem a possui: a procura da Sapincia o mximo conforto na vida. Quem a encontra feliz, e quem a possui beato (I, 1).

    Mas a leitura o comeo da aprendizagem (principium doctrinae), cujo ato final, j sem regras e amarras fsicas, o vo li

    26. Cf. Bagolini, L., A filosofia do trabalho, So Paulo, LTr, 1996, p. 53s.

  • vre da contemplao. Entre a leitura e a contemplao existem outros degraus pelos quais o estudante deve passar, a fim de alcanar a perfeio. So estes os cinco degraus: 1) a leitura, 2) a meditao, 3) a orao, 4) a prtica, 5) a contemplao. Entre estes cinco degraus, o primeiro degrau, a leitura, dos principiantes, e o supremo, a contemplao, dos perfeitos (V, 9).

    A leitura informativa, portanto, deve ser seguida pela reflexo meditativa, na qual alcana-se o discernimento crtico. Depois vem a orao, na qual adquire-se a fora e a clarividncia para o agir (o agnstico moderno mudaria o termo orao por conscincia). Segue a prtica, na qual a vontade firme exercita-se na execuo de boas obras e na pesquisa dos melhores caminhos a seguir na vida. Por ltimo, vem a contemplao, na qual o agir aprovado em sua validade cristalina. A meditao contemplativa, por sua vez, realimenta todos os degraus anteriores, dando-lhes sentido.

    A contemplao orienta os passos da leitura, mas logo se libera das regras da leitura, deleitando-se a correr pela campina aberta, fixando a agudeza do ato contemplativo sobre a verdade, em uma liberdade que Hugo assim descreve:

    A contemplao... se deleita em vagar por campos abertos, onde possa fixar seu livre olhar na contemplao da verdade, e cortejar ora estas ora aquelas causas das coisas, e ora penetrar em coisas profundas, e deixar nada ambguo, nada obscuro. O princpio do saber est na leitura, a perfeio do saber, na contemplao (III, 10).

    A meditao contemplativa oferece, a quem a escolhe, uma vida jucunda e o mximo de consolo na tribulao, segregando a alma do barulho do dia e fazendo-a degustar nesta vida a doura da paz que ser total na vida alm da morte. A contemplao ensina a procurar e a entender, atravs das coisas que foram criadas, aquele que as criou, instruindo o nimo com a cincia e pre- enchendo-o de letcia. A contemplao faz compreender melhor a tica, os mandamentos e as obras de Deus, pois obra de Deus tudo aquilo que a sua potncia cria, sua Sapincia ordena, sua graa restaura.

  • Leitura e moral

    Leitura e moral so duas faces do ato de ler. A leitura tende para a ao: a leitura prpria do principiante, o agir dos perfeitos (V, 8). Mas o bom costume tambm condio para uma boa leitura. E a mente que queira alcanar a tranqilidade moral necessria ao conhecimento deve livrar-se dos desejos ilcitos, da tirania do suprfluo e at do apego ao lugar. famoso, neste ltimo sentido, um passo potico do Da arte de ler (III, 19):

    delicado aquele para o qual a ptria doce; e j forte aquele para o qual qualquer terra a ptria; mas na verdade perfeito aquele para o qual o mundo inteiro um exlio.O primeiro fixou o seu amor ao mundo, o segundo o espalhou, o terceiro o extinguiu.

    A tica o pressuposto para o conhecimento do bem. o que Hugo afirma ao descrever as trs coisas necessrias ao estudante: a) o talento natural para compreender e memorizar rapidamente os ensinamentos, b) o exerccio para educar o talento, c) a disciplina moral, para harmonizar a conduta com o saber, pois conhecimento e tica iluminam-se reciprocamente.

    Quem procura o conhecimento no pode negligenciar a disciplina moral, resumida nas atitudes de humildade, zelo em querer, vida quieta, reflexo silenciosa, austeridade de vida, pois no louvvel a cincia maculada por uma vida impudica (III, 12). O preceito o de compor o saber com a vida, para que, vivendo de modo louvvel, o estudante harmonize a conduta com o saber (III, 6). E ainda: o olho do corao deve ser purificado pela prtica da virtude, para que depois possa ser perspicaz na investigao terica da verdade (VI, 14).

    Amor, iluminao, doura, ruminao

    A procura do saber, como procura da Sapincia, amor e devotamento zeloso (amor et studium). O ato de ler, como ins

  • trumento desta procura, um momento de amor, iluminao e doura. Em Da arte de ler, o verbo iluminar, os substantivos iluminao, doura e mel, com os adjetivos iluminado e doce, ornamentam e aquecem a ao intelectual do homem.

    A leitura dos divinos elquios, ainda que aparentemente rida em sua simplicidade lexical, proporciona uma doura tal, que apropriadamente aqueles elquios so comparados ao favo de mel, enquanto as leituras profanas muitas vezes no passam de parede de barro caiado (luteus paries dealbatus), pois sob uma mo de cor escondem a falsidade e a precariedade das coisas passageiras. A Escritura Sagrada como uma selva, e a leitura permite colher seus frutos dulcissimos. Os estudos da juventude proporcionam na velhice frutos dulcissimos. Os velhos sbios cantaram, aproximando-se da morte, cantos de cisne mais doces que os habituais. Dizia Homero que da boca do velho Nestor fluam palavras mais doces que o mel. E, citando os versos de Virglio, Hugo nos leva aos exilados e emigrantes, em relao aos quais diz que no sabe por qual doura todos so conduzidos a pensar na sua terra natal.

    Os bens eternos so doces. Os escritos de Gregrio ressoam docemente aos ouvidos e na alma. Citando os seus esforos no estudo, Hugo conta em pormenores aquilo que fazia desde menino para aprender. Entre outras coisas, conta como aprendia a proporo dos sons ouvindo as cordas musicais presas numa madeira, e, enquanto os ouvidos se instruam sobre os intervalos dos sons, a sua alma enchia-se de doura semelhante do mel. E, entre tantas douras, no podiam faltar em seu livro menes aos doces de sobremesa preparados na cozinha.

    Matria e alma, corpo e esprito vivem em simbiose de gudio na atividade intelectual do homem. Os mistrios divinos revestem-se, nas Escrituras, de letras humanas, da mesma forma que as cordas do violo fixam-se na madeira e o lenho torna o som das cordas mais doce, assim como o mel mais doce no favo, tudo isso provocando a doura do entendimento espiritual (spiritalis intelligentiae suavitatem).

    Como se v, o corpo humano celebrado em Hugo de So Vtor seja em seu esforo material no trabalho como em sua ten

  • so intelectual, pois o corpo como o lenho do violino e o favo do mel, capaz de dar volume e esplendor Forma divina, Sapincia, presente no mundo.

    O ato de ler, como todo trabalho intelectual, seguido por um ato de ruminao, semelhana das ruminaes dos versculos da Bblia pela boca dos monges durante os trabalhos manuais, e semelhana dos mantras ruminados pelos monges no alto do Tibet. Aquilo que os olhos, os ouvidos e a mente captam na leitura ruminado pacientemente na meditao, da mesma forma que o boi, para alimentar-se, traz para o paladar aquilo que acumulara no ventre: colhemos na leitura frutos dulcissimos e na reflexo os ruminamos (V, 5). E a contemplao, ato final do estudo, faz pregustar a doura da paz eterna.

    A Sapincia ilumina o homem (Sapientia illuminat hominem, I, 1). Iluminado, o homem realiza o gnthi teautn, o conhece-te a ti mesmo. Assim clareado, o homem adquire o discernimento para traduzir em boas obras aquilo que conheceu: a graa de Deus, que, indo tua frente, te iluminou, seguindo-te dirija os teus ps no caminho da paz (V, 9). A Sapincia, em suma, o sol que ilumina o caminho do homem para a ceia celeste.

    Esta claridade da iluminao reina tambm no quarto cu da Divina comdia, cu do sol, habitado pelos espritos sbios. Chegando a este cu, Dante Alighieri recebe como guia So Boa- ventura, que, a certa altura, apontando ao poeta um grupinho de sbios, lhe diz:

    Hugo de So Vtor est aqui com eles27.

    Sobre o texto e a traduo

    O texto latino apresentado o da edio crtica de Ch. H. Buttimer, citado na Bibliografia e editado nos Estados Unidos em 1939 a partir da Patrologia Latina de Migne (1879), que

    27. Dante, Paraso XII, 133.

  • contm as obras de Hugo de So Vtor em trs volumes (175, 176,177). A subdiviso dos seis Livros em pequenos captulos a mesma apresentada por Buttimer. Dos trs Apndices apostos traduo, os primeiros dois (Apndice A e B) aparecem no texto de Buttimer como os ltimos dois captulos do Livro VI, mas preferi seguir o esquema das tradues inglesa, francesa e alem. Freqentemente, por razes didticas, quebrei um longo pargrafo do original em pargrafos menores.

    A traduo podia seguir dois caminhos: ou fazer uma traduo livre, ou tentar uma traduo literria. Optei por esta ltima, seja porque percebi que no dificultaria sobremaneira a leitura, seja porque o estilo de Hugo de So Vtor possui uma poe- ticidade prpria e uma flexo ingenhosa da frase, belezas que seria um pecado trair.

  • DIDASCALICGN

    DA ARTE DE LER*

    * Nesta edio bilnge, optamos por colocar o texto latino espelhado com o texto da traduo brasileira, ou seja, nas pginas pares encontra-se o texto latino e nas mpares o respectivo texto traduzido. Quanto s notas de rodap, uma ressalva importante: existem duas sequncias de notas, uma para o texto latino e outra para o texto traduzido.

  • PRAEFATIO

    M ulti sunt quos ipsa adeo natura ingenio destitutos reliquit ut ea etiam quae facilia sunt intellectu vix capere possint, et horum duo genera mihi esse videntur.

    Nam sunt quidam, qui, licet suam hebetudinem non ignorent, eo tamen quo valent conamine ad scientiam anhelant, et indesinenter studio insistentes, quod minus habent effectu operis, obtinere merentur effectu voluntatis.

    Ast alii, quoniam summa se comprehendere nequaquam posse sentiunt, minima etiam negligunt, et quasi in suo torpore securi quiescentes eo amplius in maximis lumen veritatis perdunt, quo minima quae intelligere possent discere fugiunt. Unde psalmista: noluerunt, inquit, intelligere ut bene agerent1. Longe enim aliud est nescire atque aliud nolle scire. Nescire siquidem infirmitatis est, scientiam vero detestare, pravae voluntatis.

    Est aliud hominum genus quos admodum natura ingenio ditavit et facilem ad veritatem veniendi aditum praestitit, quibus, etsi impar sit valitudo ingenii, non eadem tamen omnibus virtus aut voluntas est per exercitia et doctrinam naturalem sensum excolendi. Nam sunt plerique qui negotiis huius saeculi et curis super quam necesse sit impliciti aut vitiis et voluptatibus corporis dediti, talentum Dei terra obruunt, et ex eo nec fructum sapientiae, nec usuram boni operis quaerunt, qui profecto valde detestabiles sun t

    Rursus aliis rei familiares inopia et tenuis census discendi facultatem minuit. Quos tamen plene per hoc excusari minime posse credimus, cum plerosque fame siti nuditate laborantes ad scientiae fructum pertingere videamus. Et tamen aliud est

    i . Sl 35,4.

  • PREFACIO

    H muitas pessoas que a prpria natureza deixou to desprovidas de capacidades, que tm dificuldade para entender at as coisas fceis, e destas pessoas parece-me haver dois tipos.

    H alguns que, mesmo no ignorando os seus prprios limites, buscam o saber com tal afinco e insistem to obstinadamente no estudo, que merecem obter, por obra da vontade, aquilo que no obteriam pela eficcia do estudo em si.

    Mas h outros os quais, sentindo que nunca poderam compreender as coisas altssimas, desprezam tambm as coisas mnimas e, como que repousando em seu prprio torpor, tanto mais perdem a luz da verdade nas coisas sumas, quanto mais fogem das coisas mnimas que poderam aprender. Por isso, o salmista diz: No quiseram entender, para no ter que agir retamente. No saber e no querer saber so de longe duas coisas bem diversas. No saber questo de incapacidade, mas detestar o saber perversidade da vontade.

    H um outro tipo de indivduos, todavia, que a natureza dotou de engenho, oferecendo-lhes um acesso fcil para chegar verdade. Nestes, todavia, mesmo havendo uma alta capacidade de engenho, nem em todos h a mesma virtude e a mesma vontade de educar a capacidade natural por meio de exerccios e de instruo. Com efeito, muitos destes, mergulhados mais do que o necessrio nos afazeres e nas preocupaes desta vida ou dados aos vcios e os prazeres do corpo, sepultam na terra o talento recebido por Deus e no almejam obter dele nem o fruto da sabedoria nem os juros das boas obras. Estes so realmente muito detestveis.

    Em outras pessoas, ainda, a pobreza do patrimnio familiar e os recursos escassos dificultam a possibilidade de aprender. Achamos, todavia, que estes no podem ser minimamente desculpados, uma vez que vemos muitos os quais, mesmo sofrendo de fome, sede e nudez, alcanam o fruto do saber. Uma coisa

  • cum non possis, aut u t verius dicam, facile non possis discere, atque aliud posse et nolle scire. Sicut enim gloriosius est, cum nullae suppetant facultates, sola virtute sapientiam apprehendere, sic profecto turpius est vigere ingenio, divitiis affluere, et torpere otio.

    Duae praecipue res sunt quibus quisque ad scientiam instruitur, videlicet lectio et meditatio, e quibus lectio priorem in doctrina obtinet locum, et de hac tractat liber iste dando praecepta legendi.

    Tria autem sunt praecepta magis lectioni necessaria: primum, ut sciat quisque quid legere debeat, secundum, quo ordine legere debeat, id est, quid prius, quid postea, tertium, quomodo legere debeat. De his tribus per singula agitur in hoc libro. Instruit autem tam saecularium quam divinarum scripturarum lectorem. Unde et in duas partes dividitur, quarum unaquaeque tres habet distinctiones. In prima parte docet lectorem artium, in secunda parte divinum lectorem. Docet autem hoc modo ostendendo primum quid legendum sit, deinde quo ordine et quomodo legendum sit

    Ut autem sciri possit quid legendum sit aut quid praecipue legendum sit, in prima parte primum numerat originem omnium artium deinde descriptionem et partitionem earum, id es t quomodo unaquaeque contineat aliam, vel contineatur ab alia, secans philosophiam a summo usque ad ultima membra. Deinde enumerat auctores artium et postea ostendit quae ex his videlicet artibus praecipue legendae sin t Deinde etiam quo ordine et quomodo legendae sin t aperit. Postremo legentibus vitae suae disciplinam praescribit, et sic finitur prima pars.

    In secunda parte determinat quae scripturae divinae appellandae s in t deinde numerum et ordinem divinorum librorum et auctores eorum et interpretationes nominum. Postea agit de quibusdam proprietatibus divinae scripturae quae magis sunt necessariae. Deinde docet qualiter legere debeat sacram scripturam is qui in ea correctionem morum suorum et formam vivendi quaerit Ad ultimum docet illum qui propter amorem scientiae eam legit, et sic secunda quoque pars finem accipit

  • voc no poder aprender, ou melhor, no poder com facilidade, outra coisa poder e no querer aprender. Se mais glorioso aprender a sabedoria somente por meio da virtude, sem dispor de possibilidade alguma, certamente mais torpe possuir o engenho, abundar em riquezas, e entorpecer no cio.

    Existem principalmente duas coisas por meio das quais uma pessoa adquire conhecimentos, ou seja, a leitura e a meditao. Destas, a leitura detm o primeiro lugar na instruo, e dela se ocupa este livro, dando as regras do ler.

    So trs as regras mais necessrias para a leitura: primeiro, saber o que se deve ler; segundo, em que ordem se deve ler, ou seja, o que ler antes, o que depois; terceiro, como se deve ler. Neste livro se discorre sobre estas trs regras, uma por uma. O livro d instrues seja sobre as leituras profanas seja sobre a leitura dos textos sagrados. Por isso, ele se divide em duas partes, cada qual tendo trs captulos. Na primeira parte d instrues ao leitor das artes, na segunda ao leitor dos livros divinos. O livro procede de modo a mostrar primeiro o que deve ser lido, depois em qual ordem e como se deve ler.

    Para que se possa saber o que ler ou o que ler prioritariamente, na primeira parte o livro primeiro enumera a origem de todas as artes e depois apresenta a descrio e a diviso delas, ou seja, como cada uma contenha a outra ou contida por outra, dividindo a filosofia do vrtice at os ltimos elementos. Em seguida, o livro enumera os inventores das artes e em seguida mostra quais destas artes merecem ser lidas com prioridade. E explica tambm em qual ordem e como devem ser lidas. Por fim, o livro prescreve aos leitores uma disciplina de vida, e assim termina a primeira parte.

    Na segunda parte, o livro determina quais Escrituras devem ser chamadas divinas, e apresenta o nmero e a ordem dos livros sagrados, assim como os seus autores e as explicaes dos nomes. Depois, trata de algumas peculiaridades mais importantes da Sagrada Escritura. Em seguida, ensina como deve ler a Sagrada Escritura aquele que procura nela a correo dos seus costumes e uma forma de vida. Por ltimo, o livro instrui a pessoa que l tais Escrituras por amor do saber, e assim termina tambm a segunda parte.

  • LIBER PRIMUS

    Caput I: De Origine artium

    Omnium expetendorum prima est sapientia, in qua perfecti boni forma consistit

    Sapientia illuminat hominem ut seipsum agnoscat, qui ceteris similis fuit cum se prae ceteris factum esse non intellexit

    Immortalis quippe animus sapientia illustratus respicit principium suum et quam sit indecorum agnoscit, ut extra se quidquam quaerat cui quod ipse est satis esse poterat Scriptum legitur in tripode Apollinis: gnoti seauton2, id est cognosce te ipsum, quia nimirum homo si non originis suae immemor esset omne quod mutabilitati obnoxium est, quam sit nihil, agnosceret.

    Probata apud philosophos sententia animam ex cunctis naturae partibus asserit esse compactam. Et Timaeus Platonis ex dividua et individua mixtaque substantia, itemque eadem et diversa, et ex utroque commixta natura, quo universitas designatur, entelechiam formavit.

    2. Xenofonte, Memorabilia 4,2,24.

  • LIVRO I

    CAPTULO 1: Da o r ig em d as artes

    De todas as coisas a serem buscadas, a primeira a Sapincia, na qual reside a forma do bem perfeito1.

    A Sapincia ilumina o homem para que conhea a si mesmo, ele que, quando no sabe que foi feito acima das outras coisas, acaba achando-se semelhante a qualquer outra coisa2.

    A mente imortal do homem, iluminada pela Sapincia, se volta para o seu princpio, e percebe quanto inconveniente ao homem procurar coisas fora de si, uma vez que poderia ser-lhe suficiente aquilo que ele prprio . L-se, escrito na tripode de Apoio: gnoti seauton, ou seja, conhece-te a ti mesmo. De fato, o homem que no esqueceu a sua origem sabe que nada tudo aquilo que sujeito mutabilidade3.

    Uma convico aceita entre os filsofos afirma que a alma formada de todas as partes da natureza. E o Timeu de Plato diz que a entelquia formada de uma substncia divisvel, indivisvel e uma mistura das duas, e de uma natureza idntica e diversa e uma mistura das duas. E a tudo isso ele deu o nome de universo4.

    1. Esta Sapincia, da qual Hugo fala, a Mente Divina, na qual o mundo e o homem foram pensados como numa forma, num molde, num arqutipo. A Sapincia no algo, Algum. a Segunda Pessoa da Trindade, o Logos e Pensamento de Deus. E a forma perfeita de Deus bom como, pela criao, a forma boa do mundo e do homem. Nesta traduo, o termo latino Sapientia ser traduzido por Sapincia, em itlico, toda vez que Hugo de So Vtor se refere Mente de Deus, o Verbo, ao Pensamento Divino. O termo sabedoria no traduzira tal significado de Sapientia (cf. IV, 8).

    2. Esta "iluminao, por parte da Sapincia, um conceito fundamental na filosofia crist para explicar o conhecimento e o autoconhecimento.

    3 . 0 autoconhecimento do homem se d olhando dentro de si os traos da Sapincia, que origem e princpio do homem. No fora de si, mas dentro de si que o homem se autoco- nhece. mutvel no homem a sua materialidade. imutvel, nele, a sua substncia divina.

    4. Em Plato o universo (entelquia) formado pela alma do mundo, elemento inteligvel (o mesmo, indivisvel) e pela matria (o diverso, divisvel). O Demiurgo, que o Deus organizador do universo, no criador, empasta a matria valendo-se das formas inteligveis.

  • Ipsa namque et initia et quae initia consequuntur3 capit, quia et invisibiles per intelligentiam rerum causas comprehendit, et visibiles actualium formas per sensuum passiones colligit, sectaque in orbes geminos motum glomerat4 5, quia sive per sensus ad sensibilia exeat sive per intelligentiam ad invisibilia ascendat, ad seipsam rerum similitudines trahens regyrat, et hoc est quod eadem mens, quae universorum capax est, ex omni substantia atque natura, quo similitudinis repraesentet figuram, coaptatur.

    Pythagoricum namque dogma erat similia similibus comprehendi, ut scilicet anima rationalis nisi ex omnibus composita foret, nullatenus omnia comprehendere posset, secundum quod dicit quidam:

    Terram terreno comprehendimus, aethera flammis, Humorem liquido, nostro spirabile flatu*.

    Nec tamen existimare debemus viros in omni rerum natura peritissimos hoc de simplici essentia sensisse, quod ulla se partium quantitate distenderet, sed, ut apertius mirabilem eius demonstrarent potentiam, dicebant ex omnibus naturis constare, non secundum compositionem sed secundum compositionis rationem6.

    Neque enim haec rerum omnium similitudo aliunde aut extrinsecus animae advenire credenda est, sed ipsa potius eam in se et ex se nativa quadam potentia et propria virtute capit Nam sicut Varro in Periphysion dicit: Non omnis varietas extrinsecus rebus accidit,

    3. Calcidius, Timaeus a Caicidio translatus commentarioque instructus 52.4. Boethius, Anicii Manlii Boethii Philosophiae Consolatio 3, m9.5. Calcidius, op. cit, 51*6. Calcidius, op. cit., 228.

  • A alma, com efeito, conhece os elementos e as coisas que derivam dos elementos, pois pela inteligncia compreende as causas invisveis das coisas, e pelas impresses dos sentidos recolhe as formas visveis das coisas corporeas. Dividida, ela rene o seu movimento em dois crculos, pois, seja que pelos sentidos ela se volte para as coisas sensveis, seja que pela inteligncia ascenda s coisas invisveis, ela circula trazendo para si as semelhanas das coisas. Isto quer dizer que esta mente, que capaz de captar todas as coisas, formada de cada substncia e natureza, para que possa representar em si a imagem das coisas semelhantes a ela5.

    Era uma afirmao pitagrica a de que os semelhantes so compreendidos pelos semelhantes, de maneira que, se a alma racional no fosse composta de todas as coisas, de modo algum ela podera compreender todas as coisas. Neste sentido, algum disse:

    Compreendemos a terra atravs das coisas terrenas,o fogo atravs daquilo que queima,o molhado atravs do lquido,aquilo que sopra atravs do nosso respiro.

    De modo algum, todavia, devemos pensar que os homens versados na natureza de cada coisa achassem que uma essncia simples possa consistir de uma quantidade de partes. Para melhor evidenciar a potncia da alma, eles esclareciam que ela era formada de todas as coisas no segundo uma composio real, mas segundo uma composio virtual6.

    Nem devemos crer que esta semelhana com todas as coisas venha alma de outro lugar ou de fora, pois ela mesma possui esta semelhana por si e de dentro de si em fora de uma certa qual potncia nativa e de sua prpria capacidade. De fato, como diz Varro no Perifseos: nem todas as mudanas ocorrem s coi-

    5. Aqui Hugo estabelece um paralelo entre a alma do mundo platnica e a alma do homem na filosofia crist. Esta alma conhece atravs do conhecimento sensvel dos sentidos e do conhecimento inteligvel da mente, em dois movimentos indicados como crculos circunscritos, cujo ponto de partida e chegada a alma. Esta alma um microcosmo, possuindo dentro de si todas as coisas. De fato, as coisas e a alma tm, ambas, semelhanas com a Sapincia. Se B e C so semelhantes a A, B e C so semelhantes entre si. Por isso a alma capaz de reconhecer e trazer para dentro de si, mediante o conhecimento, as semelhanas ou imagens de todas as coisas. Ela pode conhecer tudo.

    6. A alma, sendo espiritual, simples, no composta, no divisvel como a matria. A totalidade das coisas est dentro da alma virtualmente, no realmente.

  • ut necesse sit quidquid variatur, aut amittere aliquid quod habuit, aut aliquid aliud et diversum extrinsecus quod non habuit assumere. Videmus cum paries extrinsecus adveniente forma imaginis cuiuslibet similitudinem accipit. Cum vero impressor metallo figuram imprimit, ipsum quidem non extrinsecus, sed ex propria virtute et naturali habilitate aliud iam aliquid repraesentare incipit. Sic nimirum mens, rerum omnium similitudine insignita, omnia esse dicitur, atque ex omnibus compositionem suscipere, non integraliter, sed virtualiter atque potentialiter continere, et haec est illa naturae nostrae dignitas quam omnes aeque naturaliter habent, sed non omnes aeque noverunt Animus enim, corporeis passionibus consopitus et per sensibiles formas extra semetipsum abductus, oblitus est quid fuerit e t quia nil aliud fuisse se meminit, nil praeter quod videtur esse credit

    Reparamur autem per doctrinam, u t nostram agnoscamus naturam, et ut discamus extra non quaerere quod in nobis possumus invenire. Summum igitur in vita solamen7 est studium sapientiae, quam qui invenit felix est, et qui possidet beatus.

    Caput II: Quod studium sapientiae philosophia sit

    Primus omnium Pythagoras studium sapientiae philosophiam nuncupavit8, maluitque philosophos dici, nam antea sophos, id est, sapientes dicebantur.

    7. Boethius, op. cit, 3,1,2.8. Boethius, De institutione musica 2,2.

  • sas a partir do exterior, como se fosse necessrio que uma coisa s mude quando perdeu algo que possua ou receba de fora alguma outra coisa que no tinha, como acontece, por exemplo, quando uma parede recebe a cpia de alguma imagem mediante uma forma que vem de fora. Mas, quando um impressor imprime uma figura no metal quente, este comea a representar uma outra coisa, no em virtude de algo que vem de fora, mas por sua prpria fora e capacidade natural. E assim se diz que a mente, cunhada com a semelhana de todas as coisas, num certo sentido todas as coisas e composta de todas as coisas, no em sentido efetivo, mas virtual e potencial7. E esta a dignidade da nossa natureza, que todos tm igualmente, mas nem todos conhecem na mesma medida. O esprito, de fato, quando adormecido sob o efeito das paixes corporais e arrastado para fora de si por obra das formas sensveis, esquece o que ele foi, e, no lembrando de ter sido outra coisa, se acha como sendo apenas aquilo que ele parece ser8.

    Somos reerguidos pelo estudo, para que conheamos a nossa natureza e aprendamos a no procurar fora de ns aquilo que podemos encontrar dentro de ns. A procura da Sapincia , com efeito, um grande conforto na vida. Quem a encontra feliz, e quem a possui beato.

    CAPTULO 2: A f i lo s o f ia a p rocu ra da Sapincia

    Primeiro, entre todos, Pitgoras deu procura da sabedoria o nome de filosofia, e ele preferiu ser chamado filsofo, enquanto antes se falava simplesmente de sphoi, ou seja, sbios.

    7. Hugo acaba de dizer que a alma humana e a sua faculdade intelectiva ou mente possui dentro de si, por sua prpria natureza e substncia, no vinda ou acrescida de fora, a semelhana com todas as coisas e com a Sapincia, fato que permite o conhecimento. No captulo 7 Hugo dir que o homem cognatus da natureza divina, isto , cummatus, com-nascido, cunhado. O conhecimento humano, no fundo, como explicado no captulo 2, um movimento cognitivo inserido dentro do conhecimento maior que Deus tem de si mesmo!

    8. A dignidade da natureza humana, constituda pela semelhana com a Sapincia, corrompida pela ao das paixes, que arrastam o esprito em direo s coisas, afastando-o da Sapincia. A seguir, Hugo afirma a finalidade da leitura e do estudo: pela leitura e pelo estudo, que levam ao conhecimento ou doutrina, o homem reconstitui dentro de si a semelhana com a Sapincia, como dir tambm no captulo 8. Este tema da corrupo e restaurao da natureza humana um tema fundamental do livro.

  • Pulchre quidem inquisitores veritatis non sapientes sed amatores sapientiae vocat, quia nimirum adeo latet omne verum, ut eius amore quantumlibet mens ardeat, quantumlibet ad eius inquisitionem assurgat, difficile tamen ipsam ut est veritatem comprehendere queat. Philosophiam autem earum rerum, quae vere essent suique immutabilem substantiam sortirentu r9, disciplinam constituit.

    Est autem philosophia amor et studium et amicitia quodammodo sapientiae, sapientiae vero non huius, quae in ferramentis quibusdam, et in aliqua fabrili scientia notitiaque versatur, sed illius sapientiae, quae nullius indigens, vivax mens et sola rerum primaeva ratio es t Est autem hic amor sapientiae, in- telligentis animi ab illa pura sapientia illuminatio, et quodammodo ad seipsam retractio atque advocatio, ut videatur sapientiae studium divinitatis et purae mentis illius amicitia. Haec igitur sapientia cuncto animarum generi meritum suae divinitatis imponit et ad propriam naturae vim puritatemque reducit. Hinc nascitur speculationum cogitationumque veritas, et sancta puraque actuum castimonia10.

    Quoniam vero humanis animis hoc excellentissimum bonum philosophiae comparatum est, ut viae filo quodam procedat oratio, ab ipsis animae efficientiis ordiendum est11.

    Caput III: De triplici vi animae et solum hominem ratione praeditum

    Triplex omnino animae vis in vegetandis corporibus deprehenditur, quarum una quidem vitam solum corpori subministrat, u t nascendo crescat, alendoque subsistat. Alia

    9. Boethius, De institutione aritmtica 1,1.10. Boethius, In Isagogen Commenta pr. 1,3.11. Boethius, In Isagogen Commenta sec . 1,1.

  • Com efeito, bonito que ele chame os pesquisadores da verdade no sbios, mas amantes da sabedoria, pois a verdade total est to escondida, que, por mais que a mente arda do seu amor, por mais que se empenhe na sua inquirio, difcil chegar a entender a verdade como ela realmente . E assim ele definiu a filosofia como a doutrina daquelas coisas que fossem verdadeiras e possussem uma substncia imutvel.

    A filosofia , portanto, o amor, a procura, e uma certa amizade para com a Sapincia, mas no aquela sabedoria que se ocupa de tecnologias e de cincias produtivas, e sim aquela Sapincia que, no carecendo de nada, mente viva e nica razo primordial das coisas. Este amor da Sapincia uma iluminao do esprito inteligente por aquela pura Sapincia, e num certo sentido um retorno e um chamamento para si por parte daquela Sapincia, de modo a pder-se concluir que a procura da Sapincia uma amizade com a divindade e com a sua mente pura9. E esta Sapincia transfere para todo tipo de almas o primor de sua divindade e as traz de volta para a sua prpria fora e pureza natural. Daqui nasce a verdade das especulaes e dos pensamentos, assim como a compostura santa e pura dos atos10.

    Sendo que foi concedido aos espritos humanos este bom excelentssimo da filosofia, esta nossa exposio, que segue um certo fio condutor, deve comear pelas prprias capacidades da alma.

    CAPTULO 3: Da trplice potncia da alma e como somente o homem dotado de razo

    Em geral, pode ser detectada uma potncia trplice da alma em sustentar os corpos. Uma confere ao corpo somente a vida, para que, nascendo, cresa e, alimentando-se, continue a viver. A segun-

    9. No ato de filosofar, a Mente divina ilumina a mente do homem, para que este se recoloque na sua dimenso divina originria. Num certo sentido, o ato humano de filosofar um ato do homem, mas tambm um ato de Deus. O homem olha para a Sapincia e recupera a sua semelhana com Ela, a Sapincia ilumina o homem e recupera a integridade divina que tinha infundido nele, chamando-o para si. Deus ganha e o homem ganha. Por isso, a filosofia um exerecio de amizade entre a mente humana e a Sapincia.

    10. Pela filosofia, a alma do homem recupera a sua pureza e fora originria, pelas quais ficam garantidos os dois objetivos do filosofar: a verdade nos pensamentos e a tica nos atos.

  • vero sentiendi iudicium praebet. Tertia vi mentis et ratione subnixa est.

    Quarum quidem primae id officium est, ut creandis, nutriendis alendisque corporibus praesto sit, nullum vero praestet rationis sensusve iudicium. Haec autem est herbarum atque arborum, et quidquid terrae radicitus affixum tenetur.

    Secunda vero composita atque coniuncta est, ac primam sibi sumens, et in partem constituens varium de quibus potest capere, ac m