HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros...

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.AMéUCODAGMARAMAU-IO Enquanto me lavava na corrente das Musas, disse: "Meu, t meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio, a todos possui um cego amor próprio e consola a ambição esta inspiração poética. Mas tu crês que, sendo Calíope verdadeira, os fios correm a meu favor. Por isso, no meu dia de anos, ainda que mais poderoso, não desdenhes meus pobres recursos nem mesa pobre. Antes vem, tu que não és ingrato, com três companheiros, na hora justa! Tenho um cabrito, cuja cabeça engrossam as hastes, e uma porca dum ano, que ainda não foi mãe, e da capoeira vem um frango que lá engorda. Também Pomona não estará ausente com a sua abundância. E não faltarão os dons do fácil Niseu, que hão-de dissipar os cuidados ansiosos, se esvaziarmos negros picheis. Além disso, adubarei de versos os pratos, seguindo na esteira dos ritmos hábeis de Flaco, decerto inferior a ele, mas não julgado poeta de lira destemperada. 314 HUMMTASVOLLV I MMII MARGARIDA MIRANDA Universidade de Coimbra M ú S I C A PARA O TEATRO HUMANíSTICO EM PORTUGAL: Dom Francisco de Santa Maria, Miguel Venegas S. I. e o Colégio das Artes de Coimbra (1559-1562) Xv Wl cenmrys Jesuit Theatre brought about the tising of a new musical genre in Portugal, which was a conscious attempt at restoring certain characteristics of the Music for Chorus in ancient Greek drama. An unpublished letterfoundin the Jesuit Roman archives, written by the same time in which the earliest plays by M. Venegas S.I. were beingwritten in Coimbra, says that the Chorus performs oprime more trágico. The cantus parts ofVenegas' Tragoediã AchabivreK written by Dom Francisco de Santa Maria, and the extant parts of that work have recently been found in the Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (MM 70). Dating from 1562, these parts are the earliest ofHumanistic Theatre. After a short analysis of diis music, the A. condudes that, in Portugal, thanks to the interaction of playwright and music composer, the sort ofmusic that was composed for performances at the Jesuit schools, rather than being a simple theatrical ornament, was profoundly shaped after clássica! Rhetoric principies. Os Coros dramáticos do teatro jesuítico Sine musica theatrurn non delectat Quem quiser estudar o teatro neolatino em Portugal não pode prescindir do auxílio de um texto programático, concebido por um jesuíta long professor no Colégio das Artes de Coimbra, para acompanhar a edição da obra dramática, em 1605.' No Praefatio ad lectorem, Luís da Cruz expõe ,os anos sua os 1 Tragicae comicaeque actiones a régio Artium Coliegio Societatis lesu, datae Conhnbricae in Publicum Theatrurn. Autore Ludovico Crucio eiusdem Societatis, olisiponensi. Nunc primum in lacem editae et sedulo diligenterque recognitae. Cum priuilegio. Lugduni, apud Horatium Cordon. MDCV. Para um estudo global do teatro neolatino em Portugal vd. Claude-Henri Freches, Lt Tbéâtre Neo-Latin au Portugal (1550-1745), Paris, Lisbonne, 1964.

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AMeacuteUCODAGMARAMAU-IO

Enquanto me lavava na corrente das Musas disse Meu t

meu seraacute este ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas natildeo trocarei este pobre por dez ricos

Aacutelbio a todos possui um cego amor proacuteprio e consola a

ambiccedilatildeo esta inspiraccedilatildeo poeacutetica Mas tu crecircs que sendo

Caliacuteope verdadeira os fios correm a meu favor

Por isso no meu dia de anos ainda que mais poderoso

natildeo desdenhes meus pobres recursos nem mesa pobre

Antes vem tu que natildeo eacutes ingrato com trecircs

companheiros na hora justa

Tenho um cabrito cuja cabeccedila jaacute engrossam as hastes e

uma porca dum ano que ainda natildeo foi matildee e da capoeira

vem um frango que laacute engorda

Tambeacutem Pomona natildeo estaraacute ausente com a sua

abundacircncia E natildeo faltaratildeo os dons do faacutecil Niseu que

hatildeo-de dissipar os cuidados ansiosos se esvaziarmos

negros picheis

Aleacutem disso adubarei de versos os pratos seguindo na

esteira dos ritmos haacutebeis de Flaco decerto inferior a ele

mas natildeo julgado poeta de lira destemperada

314

HUMMTASVOLLV I MMII

MARGARIDA MIRANDA

Universidade de Coimbra

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Dom Francisco de Santa Maria Miguel Venegas S I e o

Coleacutegio das Artes de Coimbra

(1559-1562)

Xv W l cenmrys Jesuit Theatre brought about the tising of a new musical genre in Portugal

which was a conscious attempt at restoring certain characteristics of the Music for Chorus in

ancient Greek drama An unpublished letter found in the Jesuit Roman archives written by the

same time in which the earliest plays by M Venegas SI were beingwritten in Coimbra says that

the Chorus performs oprime more traacutegico The cantus parts of Venegas Tragoediatilde AchabivreK

written by Dom Francisco de Santa Maria and the extant parts of that work have recently been

found in the Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (MM 70) Dating from 1562 these

parts are the earliest of Humanistic Theatre After a short analysis of diis music the A condudes

that in Portugal thanks to the interaction of playwright and music composer the sort of music

that was composed for performances at the Jesuit schools rather than being a simple theatrical

ornament was profoundly shaped after claacutessica Rhetoric principies

O s C o r o s d r a m aacute t i c o s d o t ea t ro j e su iacute t i co

Sine musica theatrurn non delectat

Quem quiser estudar o teatro neolatino em Portugal natildeo pode prescindir

do auxiacutelio de um texto programaacutetico concebido por um jesuiacuteta long

professor no Coleacutegio das Artes de Coimbra para acompanhar a ediccedilatildeo da

obra dramaacutetica em 1605 No Praefatio ad lectorem Luiacutes da Cruz expotildee

os anos

sua

os

1 Tragicae comicaeque actiones a reacutegio Artium Coliegio Societatis lesu datae Conhnbricae in

Publicum Theatrurn Autore Ludovico Crucio eiusdem Societatis olisiponensi Nunc primum in

lacem editae et sedulo diligenterque recognitae Cum priuilegio Lugduni apud Horatium Cordon

MDCV

Para um estudo global do teatro neolatino em Portugal vd Claude-Henri Freches Lt

Tbeacuteacirctre Neo-Latin au Portugal (1550-1745) Paris Lisbonne 1964

_MARGAIlaquo[)AiVkNDA

princiacutepios da nova poeacutetica em que assenta a sua concepccedilatildeo de teatro um teatro

inspirado nos textos sagrados e na moral cristatilde buscando simultaneamente os

cacircnones esteacuteticos de Horaacutecio e de Aristoacuteteles e reflectindo influecircncias de Plauto

de Terecircncio e de Seacuteneca bem como dos autores do drama neolatino europeu

Sobre a participaccedilatildeo da muacutesica neste geacutenero de teatro Luiacutes da Cruz eacute

infelizmente mais omisso Tudo quanto diz se encerra na brevidade de algumas

linhas finais E no entanto elas parecem referir-se a algo que teraacute sido criado

especificamente peio teatro jesuiacutetico portuguecircs e que se teraacute tornado seu

distintivo Segundo Luiacutes da Cruz os Coros dramaacuteticos do teatro neolatino em

Portugal eram um momento alto da representaccedilatildeo ceacutenica de que os portugueses

se podiam orgulhar

laquoHaacute coros em todas estas peccedilas pois sem muacutesica o teatro natildeo deleita E

aleacutem das flautas que nunca faltaram sempre na nossa obra eacute de esperar o canto

Na verdade por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano

para que se ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cena

o que tem um efeito admiraacutevel Portanto fizemos desfilar os que cantam com

vestes aparatosas e neste geacutenero podem porventura os Portugueses ter feito algo

de notaacutevel Mas considera tudo isto sem grande importacircncia Leitor

humaniacutessimo Daacute-lhe a importacircncia que entenderes em consciecircnciaraquo2

Segundo Luiacutes da Cruz no limiar do seacuteculo XVII em Portugal os Coros

do teatro eram sempre cantados Os dramaturgos jesuiacutetas consideravam

indispensaacutevel ao novo teatro a existecircncia de Coros musicais O mesmo texto

pressupotildee no entanto que foi precisamente em Portugal que nasceu pela

primeira vez aquele geacutenero de peccedila coral dramaacutetica tepresentada em cena e

interpretada por algueacutem que tambeacutem era personagem do drama laquoNa verdade

por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano para que se

ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cenaraquo

Pela primeira vez segundo Luiacutes da Cruz o Coro apresentava-se ao puacuteblico

2 Traduccedilatildeo de R M Rosado Fernandes Cf R M Rosado Fernandes e J Mendes de

Castro P Lias da Cruz SI O Proacutedigo Tragicomeacutedia Novilatina Lisboa Instituto Nacional de

Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1989 vol II pp 36-37

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MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

envergando as vestes proacuteprias da personagem que representava ou seja fazendo

parte integrante da composiccedilatildeo dramaacutetica e natildeo com mera funccedilatildeo ornamental

Esse aspecto dava agrave composiccedilatildeo coral um caraacutecter essencialmente distinto da

muacutesica que se associava agraves tradiccedilotildees europeias do intermezzo dramaacutetico

Foi na verdade durante a segunda metade do seacuteculo XVI que em

Portugal se definiu o amplo papel que a muacutesica viria a ter no teatro escolar

jesuiacutetico As suas origens poreacutem continuam ainda em grande parte

desconhecidas Como acontece com o teatro jesuiacutetico de Itaacutelia e da Alemanha

as obras mais representativas do periacuteodo das origens mdash tanto no que respeita agrave

criaccedilatildeo literaacuteria como agrave criaccedilatildeo musical mdash continuam ainda sujeitas a conclusotildees

apressadas facilmente condicionadas por preconceitos ideoloacutegicos

Quem ler o primeiro capiacutetulo de Pensar eacute morrer ou O Teatro de Satildeo

Carlos na mudanccedila de sistemas soacutecio comunicativos desde fins do seacutec XVIIaos nossos

dias de Maacuterio Vieira de Carvalho por exemplo eacute levado a pensar que o drama

neolatino mdash que o autor focaliza sempre por oposiccedilatildeo ao teatro de Gil Vicente

mdash sofreu simplesmente cie um atraso essencial que correspondeu ao

retardamento geral da evoluccedilatildeo musical verificado em Portugal no decurso do

seacuteculo XVII Que o canto e a muacutesica do teatro jesuiacutetico consistiriam apenas em

laquoformas preexistentes desenvolvidas independentemente do teatro escolar e

inseridas neste () Tratar-se-ia enfim de canccedilotildees intercaladas muacutesica

incidental episoacutedios musicais que se destinavam por vezes a criar cor localraquo

nada tendo a ver portanto com a lenta evoluccedilatildeo para o dramma per musica em

que o canto e a muacutesica satildeo elementos constitutivos do todo laquoNa verdade tudo

leva a crerraquo continua laquoque os jesuiacutetas portugueses se limitaram a utilizar formas

preexistentes da muacutesica religiosa popular e militar e a aumentar a sua quantidade

3 Segundo Owen Rees Polipbony in Portugalc 1530-c 1620 Sourcesfrom tbe Monastery of Santa Cruz Coimbra Graland Publishing New York and London 1995) dentro da tradiccedilatildeo musical do teatro secular neoclaacutessico italiano surgiram ocasionalmente tentativas de dar muacutesica agraves palavras do Coro ou de uma determinada personagem como aconteceu em 1566 na representaccedilatildeo agravetAiacuteidoro de Gabriele Bombace em que um soprano solista cantava acompanhado de muacutesica instrumental Vd p 121 n 8 Os Coros mais famosos da tradiccedilatildeo italiana satildeo poreacutem os que compocircs Andrea Gabrieli em 1585 para o Eacutedipo tiranno de Orsatto Giusriniani Tambeacutem esses satildeo como veremos posteriores aos Coros que inauguraram o teatro jesuiacutetico do Coleacutegio das Artes de Coimbra

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JVIAIiacuteARIDAMIRANDA

nas tragicomeacutedias Isso natildeo basta para lhes atribuir precedecircncia no desbravar

do caminho para u m a dramaturgia de nova qualidaderaquo1

Pretendem estas paacuteginas afirmar precisamente o contraacuterio em Portugal

os jesuiacutetas foram realmente responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de u m novo geacutenero traacutegico

do qual a muacutesica vem a ser parte integrante como se vecirc pela teoria poeacutetica

exposta pelo P Luiacutes da Cruz no proacutelogo agraves suas peccedilas

Ora sabemos que o pensamento esteacutetico eacute sempre resultado da reflexatildeo

sobre u m corpus que o representa Se foi possiacutevel a Luiacutes da Cruz definir u m

coacutedigo esteacutetico preciso foi porque u m nuacutemero significativo de obras de arte

corporizou tendencialmente os preceitos por ele postulados Refiro-me natildeo

apenas aos dramas do proacuteprio Luiacutes da Cruz mas tambeacutem aos dramas dos autores

que o precederam no Coleacutegio das Artes nomeadamente agraves trageacutedias daquele

que foi seu maior mestre e que viria a ser tambeacutem o pai do teatro Jesuiacutetico em

Portugal Migue l Venegas5 cuja obra devia suceder em C o i m b r a agrave obra

dramaacutetica de Buchanan e Diogo de Teive dois dos humanistas que t inham

fundado o Coleacutegio Real de D Joatildeo III

Estaacute ainda por aprofundar a influecircncia que teraacute tido Venegas sobre a

obra do seu disciacutepulo Luiacutes da Cruz mas os Cataacutelogos do ano de 1559 enviados

do Coleacutegio das Artes para Roma e hoje pertencentes ao Archivum Romanum

Societatis Iesu colocam Luiacutes da Cruz estudante na primeira classe (Retoacuterica)6 e

4 Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1993 p 23 O itaacutelico eacute da minha autoria 5 Miguel Venegas era professor no Coleacutegio Trilingue da Universidade de Alcalaacute de

Henares quando entrou na Companhia de Jesus Foi professor de Retoacuterica e Humanidades no

Coleacutegio de Sanro Antatildeo em Lisboa entre 1556 e 1558 tendo depois vindo para Coimbra onde

permaneceu ateacute 1562 A sua brilhante carreira de Professor e o mal estar de jesuiacuteta levou-o

depois a Roma a Paris e de novo a Roma para finalmente deixar a Companhia em Iacute567 e

regressar a Espanha A Universidade de Salamanca acolheu-o como professor de Retoacuterica e ali

o dramaturgo competiu mais do que uma vez com Sanchez de las Brozas (o Brocense) em

concursos dramaacuteticos escolares tendo vindo a derrotaacute-lo em 1570 As uacuteltimas notiacutecias biograacuteficas

vecircm de Alcalaacute sua terra natal aonde teraacute regressado jaacute na deacutecada de 70 Foi no entanto em

Coimbra (1558-1562) que Miguel Venegas produziu as suas principais obras dramaacuteticas Para

uma biografia mais completa de Miguel Venegas vd Margarida Miranda Miguel Venegas e o

nascimento da Trageacutedia Jesuiacutetica A Tragoedia cui nomen inditum Achabus Tese de doutoramento

apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2002 pp 2 1 - 6 1

Archivum Romanum Societatis Icsu (doravante ARSI) Lus 43 foi 82r

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MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Miguei Venegas mestre ora da primeira ora da segunda classe (Humanidades)

alternando com Pedro Perpinhatildeo7

Entre os disciacutepulos de Miguel Venegas em Coimbra em 1559 contava-

-se pois Luiacutes da Cruz jaacute jesuiacuteta e estudante de prima De 17 anos Recebido en

Dec de 1557 Oye en la Ia classe Sabe latin mediocremente y algun griego Tiene

buena habilidad Es bien dispuesto Assim reza o Cataacutelogo de 1559 a seu respeito

Aos 17 anos ainda natildeo era possiacutevel adivinhar o verdadeiro talento poeacutetico de

Luiacutes da Cruz mas podemos tomar como certa a sua participaccedilatildeo naquela que

foi a primeira trageacutedia a ser representada em Coimbra pelos jesuiacutetas a Satatilde Gelboeus

que Miguel Venegas compocircs para os seus disciacutepulos em 1559- O estudo da obra

literaacuteria destes dois dramaturgos mostraraacute pois os seus numerosos pontos de contacto

Daquele acontecimento em 1559 quarenta anos antes da ediccedilatildeo

definitiva da Ratio Studiorum dos jesuiacutetas existem alguns testemunhos

contemporacircneos imprescindiacuteveis para uma correcta valorizaccedilatildeo do lugar

destes espectaacuteculos na histoacuteria do teatro e na histoacuteria da muacutesica

A carta de Pecircro Dias

En meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus de Miguel Venegas deu-se

precisamente no iniacutecio de Julho daquele ano por ocasiatildeo das festas da Rainha

Santa Isabel a padroeira do Coleacutegio O testemunho mais conhecido eacute o da

carta quadrimestral de Outubro daquele ano escrita por Pecircro Dias8

laquoAl d o m i n g o seguiente se represento u n a tragedia que c o m p u s o ei P

maest ro Venegas () Auiacutea en cada acto un choro de letra m u y deuota y m u y

bien c o m p u e s t o en p u n c t o de canto de oacutergano y 8 oacute n u e u e muacutesicos que los

can tauan m u y bien y con ten taacute ronse t a n t o todos destes choros m aacute x i m e los

7 ARSI Lus 43 foi 107r 167v e 71-72

s M O N U M E N T A HISTOacuteRICA SOCIETATIS IESU Litterae quadrimestre ex univems

praeter Indiam et Brasiliam locis in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur Romam missae 7 vols

Madrid-Roma 1894-1932 (Doravante Litt Quad)Vo 6 p 362-363

319

jVtoTOA MIRANDA

religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz

(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que

no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta

tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para

todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general

el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias

y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que

algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan

la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de

Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E

Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo

O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade

com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os

coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio

A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica

que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar

simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio

A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado

muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi

muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco

sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de

onde saiacuteam as personagens

A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo

Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela

nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e

de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no

teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel

estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros

da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros

cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava

uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou

Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade

320

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de

louvor)

Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos

concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias

preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees

proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental

executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como

observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em

Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees

musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos

Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em

vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras

escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto

Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria

provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela

de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante

a representaccedilatildeo da trageacutedia

O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante

do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes

de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente

aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de

semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a

vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio

das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos

Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho

Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70

12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105

321

MARGARIDAMKANDA

para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham

sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o

humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica

conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se

a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu

valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo

polifoacutenica13

Quem teraacute sido pois o seu autor

Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como

compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4

um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente

com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os

muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra

nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram

Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro

anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando

se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de

Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do

Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um

A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio

musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu

Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos

de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra

Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria

daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco

laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()

Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom

Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso

tinha especial graccedilaraquo

Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de

Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de

segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147

A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de

D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552

322

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo

Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco

Castelhano pois nascera no reino de Castela

Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista

Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico

seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica

Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco

Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo

frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557

foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas

recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a

cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os

anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares

oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se

compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois

oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior

solenidade[6

Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria

destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos

de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de

aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a

Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de

contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1

Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical

de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia

Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia

ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela

pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo

Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o

16 Litt Quad 6 pp 360-361

Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de

Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade

de Letras da Universidade de Coimbra 2001

323

JVIARiacuteARIDA MIRANDA

Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade

emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo

Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos

Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos

seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de

larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais

de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra

como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo

de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico

em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559

como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no

paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade

Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia

causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram

19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos

entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de

inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de

Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio

Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138

Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais

omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia

a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum

modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em

mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos

levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos

ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S

I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe

XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis

University 1970

Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees

principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I

Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp

213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na

Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra 1997

324

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que

Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um

momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo

de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges

de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista

nada de semelhante

A versatildeo latina da mesma carta

Optiacuteme more traacutegico canebantur

Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute

modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20

Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar

recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De

um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a

traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos

para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs

laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum

quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant

ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine

nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus

domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis

unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum

prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione

factum est ut oprime suas partes egerint

In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat

quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus

multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant

uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros

m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56

325

_MARGARIDAMBMNDA

rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil

se uidisse melius apertissime affirmabant

Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor

Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca

designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex

omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus

aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus

relictus est

Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro

incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum

etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et

uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim

erat illustrata ()

Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et

omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse

afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret

magnificentius celebrari posse tcstabantur

Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili

gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis

ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22

laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava

com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns

degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de

avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora

construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os

actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico

na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados

Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes

No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava

um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto

agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute

ARSI Lus 51 foi 56

326

M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que

lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham

visto coisa melhor

A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo

reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado

com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo

reservou outro lugar no paacutetio de baixo

A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos

numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer

pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e

de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras

elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()

Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens

eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais

elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a

Coimbra nada mais digno haveria para o receber

Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas

com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto

agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo

N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado

pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam

preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute

agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a

habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o

t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido

s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral

do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia

u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J

literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a

muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da

Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute

nos Coros da trageacutedia

327

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 2: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

_MARGAIlaquo[)AiVkNDA

princiacutepios da nova poeacutetica em que assenta a sua concepccedilatildeo de teatro um teatro

inspirado nos textos sagrados e na moral cristatilde buscando simultaneamente os

cacircnones esteacuteticos de Horaacutecio e de Aristoacuteteles e reflectindo influecircncias de Plauto

de Terecircncio e de Seacuteneca bem como dos autores do drama neolatino europeu

Sobre a participaccedilatildeo da muacutesica neste geacutenero de teatro Luiacutes da Cruz eacute

infelizmente mais omisso Tudo quanto diz se encerra na brevidade de algumas

linhas finais E no entanto elas parecem referir-se a algo que teraacute sido criado

especificamente peio teatro jesuiacutetico portuguecircs e que se teraacute tornado seu

distintivo Segundo Luiacutes da Cruz os Coros dramaacuteticos do teatro neolatino em

Portugal eram um momento alto da representaccedilatildeo ceacutenica de que os portugueses

se podiam orgulhar

laquoHaacute coros em todas estas peccedilas pois sem muacutesica o teatro natildeo deleita E

aleacutem das flautas que nunca faltaram sempre na nossa obra eacute de esperar o canto

Na verdade por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano

para que se ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cena

o que tem um efeito admiraacutevel Portanto fizemos desfilar os que cantam com

vestes aparatosas e neste geacutenero podem porventura os Portugueses ter feito algo

de notaacutevel Mas considera tudo isto sem grande importacircncia Leitor

humaniacutessimo Daacute-lhe a importacircncia que entenderes em consciecircnciaraquo2

Segundo Luiacutes da Cruz no limiar do seacuteculo XVII em Portugal os Coros

do teatro eram sempre cantados Os dramaturgos jesuiacutetas consideravam

indispensaacutevel ao novo teatro a existecircncia de Coros musicais O mesmo texto

pressupotildee no entanto que foi precisamente em Portugal que nasceu pela

primeira vez aquele geacutenero de peccedila coral dramaacutetica tepresentada em cena e

interpretada por algueacutem que tambeacutem era personagem do drama laquoNa verdade

por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano para que se

ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cenaraquo

Pela primeira vez segundo Luiacutes da Cruz o Coro apresentava-se ao puacuteblico

2 Traduccedilatildeo de R M Rosado Fernandes Cf R M Rosado Fernandes e J Mendes de

Castro P Lias da Cruz SI O Proacutedigo Tragicomeacutedia Novilatina Lisboa Instituto Nacional de

Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1989 vol II pp 36-37

316

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

envergando as vestes proacuteprias da personagem que representava ou seja fazendo

parte integrante da composiccedilatildeo dramaacutetica e natildeo com mera funccedilatildeo ornamental

Esse aspecto dava agrave composiccedilatildeo coral um caraacutecter essencialmente distinto da

muacutesica que se associava agraves tradiccedilotildees europeias do intermezzo dramaacutetico

Foi na verdade durante a segunda metade do seacuteculo XVI que em

Portugal se definiu o amplo papel que a muacutesica viria a ter no teatro escolar

jesuiacutetico As suas origens poreacutem continuam ainda em grande parte

desconhecidas Como acontece com o teatro jesuiacutetico de Itaacutelia e da Alemanha

as obras mais representativas do periacuteodo das origens mdash tanto no que respeita agrave

criaccedilatildeo literaacuteria como agrave criaccedilatildeo musical mdash continuam ainda sujeitas a conclusotildees

apressadas facilmente condicionadas por preconceitos ideoloacutegicos

Quem ler o primeiro capiacutetulo de Pensar eacute morrer ou O Teatro de Satildeo

Carlos na mudanccedila de sistemas soacutecio comunicativos desde fins do seacutec XVIIaos nossos

dias de Maacuterio Vieira de Carvalho por exemplo eacute levado a pensar que o drama

neolatino mdash que o autor focaliza sempre por oposiccedilatildeo ao teatro de Gil Vicente

mdash sofreu simplesmente cie um atraso essencial que correspondeu ao

retardamento geral da evoluccedilatildeo musical verificado em Portugal no decurso do

seacuteculo XVII Que o canto e a muacutesica do teatro jesuiacutetico consistiriam apenas em

laquoformas preexistentes desenvolvidas independentemente do teatro escolar e

inseridas neste () Tratar-se-ia enfim de canccedilotildees intercaladas muacutesica

incidental episoacutedios musicais que se destinavam por vezes a criar cor localraquo

nada tendo a ver portanto com a lenta evoluccedilatildeo para o dramma per musica em

que o canto e a muacutesica satildeo elementos constitutivos do todo laquoNa verdade tudo

leva a crerraquo continua laquoque os jesuiacutetas portugueses se limitaram a utilizar formas

preexistentes da muacutesica religiosa popular e militar e a aumentar a sua quantidade

3 Segundo Owen Rees Polipbony in Portugalc 1530-c 1620 Sourcesfrom tbe Monastery of Santa Cruz Coimbra Graland Publishing New York and London 1995) dentro da tradiccedilatildeo musical do teatro secular neoclaacutessico italiano surgiram ocasionalmente tentativas de dar muacutesica agraves palavras do Coro ou de uma determinada personagem como aconteceu em 1566 na representaccedilatildeo agravetAiacuteidoro de Gabriele Bombace em que um soprano solista cantava acompanhado de muacutesica instrumental Vd p 121 n 8 Os Coros mais famosos da tradiccedilatildeo italiana satildeo poreacutem os que compocircs Andrea Gabrieli em 1585 para o Eacutedipo tiranno de Orsatto Giusriniani Tambeacutem esses satildeo como veremos posteriores aos Coros que inauguraram o teatro jesuiacutetico do Coleacutegio das Artes de Coimbra

317

JVIAIiacuteARIDAMIRANDA

nas tragicomeacutedias Isso natildeo basta para lhes atribuir precedecircncia no desbravar

do caminho para u m a dramaturgia de nova qualidaderaquo1

Pretendem estas paacuteginas afirmar precisamente o contraacuterio em Portugal

os jesuiacutetas foram realmente responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de u m novo geacutenero traacutegico

do qual a muacutesica vem a ser parte integrante como se vecirc pela teoria poeacutetica

exposta pelo P Luiacutes da Cruz no proacutelogo agraves suas peccedilas

Ora sabemos que o pensamento esteacutetico eacute sempre resultado da reflexatildeo

sobre u m corpus que o representa Se foi possiacutevel a Luiacutes da Cruz definir u m

coacutedigo esteacutetico preciso foi porque u m nuacutemero significativo de obras de arte

corporizou tendencialmente os preceitos por ele postulados Refiro-me natildeo

apenas aos dramas do proacuteprio Luiacutes da Cruz mas tambeacutem aos dramas dos autores

que o precederam no Coleacutegio das Artes nomeadamente agraves trageacutedias daquele

que foi seu maior mestre e que viria a ser tambeacutem o pai do teatro Jesuiacutetico em

Portugal Migue l Venegas5 cuja obra devia suceder em C o i m b r a agrave obra

dramaacutetica de Buchanan e Diogo de Teive dois dos humanistas que t inham

fundado o Coleacutegio Real de D Joatildeo III

Estaacute ainda por aprofundar a influecircncia que teraacute tido Venegas sobre a

obra do seu disciacutepulo Luiacutes da Cruz mas os Cataacutelogos do ano de 1559 enviados

do Coleacutegio das Artes para Roma e hoje pertencentes ao Archivum Romanum

Societatis Iesu colocam Luiacutes da Cruz estudante na primeira classe (Retoacuterica)6 e

4 Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1993 p 23 O itaacutelico eacute da minha autoria 5 Miguel Venegas era professor no Coleacutegio Trilingue da Universidade de Alcalaacute de

Henares quando entrou na Companhia de Jesus Foi professor de Retoacuterica e Humanidades no

Coleacutegio de Sanro Antatildeo em Lisboa entre 1556 e 1558 tendo depois vindo para Coimbra onde

permaneceu ateacute 1562 A sua brilhante carreira de Professor e o mal estar de jesuiacuteta levou-o

depois a Roma a Paris e de novo a Roma para finalmente deixar a Companhia em Iacute567 e

regressar a Espanha A Universidade de Salamanca acolheu-o como professor de Retoacuterica e ali

o dramaturgo competiu mais do que uma vez com Sanchez de las Brozas (o Brocense) em

concursos dramaacuteticos escolares tendo vindo a derrotaacute-lo em 1570 As uacuteltimas notiacutecias biograacuteficas

vecircm de Alcalaacute sua terra natal aonde teraacute regressado jaacute na deacutecada de 70 Foi no entanto em

Coimbra (1558-1562) que Miguel Venegas produziu as suas principais obras dramaacuteticas Para

uma biografia mais completa de Miguel Venegas vd Margarida Miranda Miguel Venegas e o

nascimento da Trageacutedia Jesuiacutetica A Tragoedia cui nomen inditum Achabus Tese de doutoramento

apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2002 pp 2 1 - 6 1

Archivum Romanum Societatis Icsu (doravante ARSI) Lus 43 foi 82r

318

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Miguei Venegas mestre ora da primeira ora da segunda classe (Humanidades)

alternando com Pedro Perpinhatildeo7

Entre os disciacutepulos de Miguel Venegas em Coimbra em 1559 contava-

-se pois Luiacutes da Cruz jaacute jesuiacuteta e estudante de prima De 17 anos Recebido en

Dec de 1557 Oye en la Ia classe Sabe latin mediocremente y algun griego Tiene

buena habilidad Es bien dispuesto Assim reza o Cataacutelogo de 1559 a seu respeito

Aos 17 anos ainda natildeo era possiacutevel adivinhar o verdadeiro talento poeacutetico de

Luiacutes da Cruz mas podemos tomar como certa a sua participaccedilatildeo naquela que

foi a primeira trageacutedia a ser representada em Coimbra pelos jesuiacutetas a Satatilde Gelboeus

que Miguel Venegas compocircs para os seus disciacutepulos em 1559- O estudo da obra

literaacuteria destes dois dramaturgos mostraraacute pois os seus numerosos pontos de contacto

Daquele acontecimento em 1559 quarenta anos antes da ediccedilatildeo

definitiva da Ratio Studiorum dos jesuiacutetas existem alguns testemunhos

contemporacircneos imprescindiacuteveis para uma correcta valorizaccedilatildeo do lugar

destes espectaacuteculos na histoacuteria do teatro e na histoacuteria da muacutesica

A carta de Pecircro Dias

En meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus de Miguel Venegas deu-se

precisamente no iniacutecio de Julho daquele ano por ocasiatildeo das festas da Rainha

Santa Isabel a padroeira do Coleacutegio O testemunho mais conhecido eacute o da

carta quadrimestral de Outubro daquele ano escrita por Pecircro Dias8

laquoAl d o m i n g o seguiente se represento u n a tragedia que c o m p u s o ei P

maest ro Venegas () Auiacutea en cada acto un choro de letra m u y deuota y m u y

bien c o m p u e s t o en p u n c t o de canto de oacutergano y 8 oacute n u e u e muacutesicos que los

can tauan m u y bien y con ten taacute ronse t a n t o todos destes choros m aacute x i m e los

7 ARSI Lus 43 foi 107r 167v e 71-72

s M O N U M E N T A HISTOacuteRICA SOCIETATIS IESU Litterae quadrimestre ex univems

praeter Indiam et Brasiliam locis in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur Romam missae 7 vols

Madrid-Roma 1894-1932 (Doravante Litt Quad)Vo 6 p 362-363

319

jVtoTOA MIRANDA

religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz

(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que

no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta

tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para

todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general

el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias

y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que

algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan

la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de

Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E

Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo

O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade

com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os

coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio

A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica

que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar

simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio

A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado

muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi

muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco

sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de

onde saiacuteam as personagens

A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo

Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela

nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e

de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no

teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel

estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros

da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros

cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava

uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou

Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade

320

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de

louvor)

Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos

concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias

preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees

proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental

executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como

observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em

Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees

musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos

Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em

vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras

escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto

Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria

provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela

de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante

a representaccedilatildeo da trageacutedia

O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante

do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes

de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente

aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de

semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a

vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio

das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos

Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho

Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70

12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105

321

MARGARIDAMKANDA

para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham

sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o

humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica

conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se

a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu

valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo

polifoacutenica13

Quem teraacute sido pois o seu autor

Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como

compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4

um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente

com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os

muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra

nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram

Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro

anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando

se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de

Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do

Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um

A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio

musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu

Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos

de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra

Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria

daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco

laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()

Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom

Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso

tinha especial graccedilaraquo

Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de

Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de

segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147

A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de

D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552

322

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo

Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco

Castelhano pois nascera no reino de Castela

Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista

Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico

seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica

Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco

Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo

frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557

foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas

recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a

cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os

anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares

oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se

compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois

oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior

solenidade[6

Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria

destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos

de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de

aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a

Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de

contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1

Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical

de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia

Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia

ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela

pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo

Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o

16 Litt Quad 6 pp 360-361

Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de

Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade

de Letras da Universidade de Coimbra 2001

323

JVIARiacuteARIDA MIRANDA

Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade

emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo

Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos

Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos

seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de

larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais

de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra

como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo

de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico

em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559

como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no

paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade

Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia

causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram

19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos

entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de

inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de

Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio

Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138

Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais

omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia

a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum

modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em

mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos

levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos

ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S

I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe

XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis

University 1970

Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees

principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I

Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp

213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na

Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra 1997

324

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que

Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um

momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo

de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges

de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista

nada de semelhante

A versatildeo latina da mesma carta

Optiacuteme more traacutegico canebantur

Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute

modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20

Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar

recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De

um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a

traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos

para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs

laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum

quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant

ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine

nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus

domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis

unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum

prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione

factum est ut oprime suas partes egerint

In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat

quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus

multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant

uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros

m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56

325

_MARGARIDAMBMNDA

rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil

se uidisse melius apertissime affirmabant

Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor

Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca

designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex

omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus

aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus

relictus est

Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro

incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum

etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et

uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim

erat illustrata ()

Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et

omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse

afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret

magnificentius celebrari posse tcstabantur

Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili

gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis

ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22

laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava

com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns

degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de

avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora

construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os

actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico

na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados

Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes

No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava

um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto

agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute

ARSI Lus 51 foi 56

326

M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que

lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham

visto coisa melhor

A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo

reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado

com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo

reservou outro lugar no paacutetio de baixo

A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos

numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer

pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e

de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras

elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()

Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens

eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais

elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a

Coimbra nada mais digno haveria para o receber

Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas

com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto

agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo

N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado

pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam

preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute

agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a

habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o

t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido

s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral

do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia

u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J

literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a

muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da

Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute

nos Coros da trageacutedia

327

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 3: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

JVIAIiacuteARIDAMIRANDA

nas tragicomeacutedias Isso natildeo basta para lhes atribuir precedecircncia no desbravar

do caminho para u m a dramaturgia de nova qualidaderaquo1

Pretendem estas paacuteginas afirmar precisamente o contraacuterio em Portugal

os jesuiacutetas foram realmente responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de u m novo geacutenero traacutegico

do qual a muacutesica vem a ser parte integrante como se vecirc pela teoria poeacutetica

exposta pelo P Luiacutes da Cruz no proacutelogo agraves suas peccedilas

Ora sabemos que o pensamento esteacutetico eacute sempre resultado da reflexatildeo

sobre u m corpus que o representa Se foi possiacutevel a Luiacutes da Cruz definir u m

coacutedigo esteacutetico preciso foi porque u m nuacutemero significativo de obras de arte

corporizou tendencialmente os preceitos por ele postulados Refiro-me natildeo

apenas aos dramas do proacuteprio Luiacutes da Cruz mas tambeacutem aos dramas dos autores

que o precederam no Coleacutegio das Artes nomeadamente agraves trageacutedias daquele

que foi seu maior mestre e que viria a ser tambeacutem o pai do teatro Jesuiacutetico em

Portugal Migue l Venegas5 cuja obra devia suceder em C o i m b r a agrave obra

dramaacutetica de Buchanan e Diogo de Teive dois dos humanistas que t inham

fundado o Coleacutegio Real de D Joatildeo III

Estaacute ainda por aprofundar a influecircncia que teraacute tido Venegas sobre a

obra do seu disciacutepulo Luiacutes da Cruz mas os Cataacutelogos do ano de 1559 enviados

do Coleacutegio das Artes para Roma e hoje pertencentes ao Archivum Romanum

Societatis Iesu colocam Luiacutes da Cruz estudante na primeira classe (Retoacuterica)6 e

4 Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1993 p 23 O itaacutelico eacute da minha autoria 5 Miguel Venegas era professor no Coleacutegio Trilingue da Universidade de Alcalaacute de

Henares quando entrou na Companhia de Jesus Foi professor de Retoacuterica e Humanidades no

Coleacutegio de Sanro Antatildeo em Lisboa entre 1556 e 1558 tendo depois vindo para Coimbra onde

permaneceu ateacute 1562 A sua brilhante carreira de Professor e o mal estar de jesuiacuteta levou-o

depois a Roma a Paris e de novo a Roma para finalmente deixar a Companhia em Iacute567 e

regressar a Espanha A Universidade de Salamanca acolheu-o como professor de Retoacuterica e ali

o dramaturgo competiu mais do que uma vez com Sanchez de las Brozas (o Brocense) em

concursos dramaacuteticos escolares tendo vindo a derrotaacute-lo em 1570 As uacuteltimas notiacutecias biograacuteficas

vecircm de Alcalaacute sua terra natal aonde teraacute regressado jaacute na deacutecada de 70 Foi no entanto em

Coimbra (1558-1562) que Miguel Venegas produziu as suas principais obras dramaacuteticas Para

uma biografia mais completa de Miguel Venegas vd Margarida Miranda Miguel Venegas e o

nascimento da Trageacutedia Jesuiacutetica A Tragoedia cui nomen inditum Achabus Tese de doutoramento

apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2002 pp 2 1 - 6 1

Archivum Romanum Societatis Icsu (doravante ARSI) Lus 43 foi 82r

318

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Miguei Venegas mestre ora da primeira ora da segunda classe (Humanidades)

alternando com Pedro Perpinhatildeo7

Entre os disciacutepulos de Miguel Venegas em Coimbra em 1559 contava-

-se pois Luiacutes da Cruz jaacute jesuiacuteta e estudante de prima De 17 anos Recebido en

Dec de 1557 Oye en la Ia classe Sabe latin mediocremente y algun griego Tiene

buena habilidad Es bien dispuesto Assim reza o Cataacutelogo de 1559 a seu respeito

Aos 17 anos ainda natildeo era possiacutevel adivinhar o verdadeiro talento poeacutetico de

Luiacutes da Cruz mas podemos tomar como certa a sua participaccedilatildeo naquela que

foi a primeira trageacutedia a ser representada em Coimbra pelos jesuiacutetas a Satatilde Gelboeus

que Miguel Venegas compocircs para os seus disciacutepulos em 1559- O estudo da obra

literaacuteria destes dois dramaturgos mostraraacute pois os seus numerosos pontos de contacto

Daquele acontecimento em 1559 quarenta anos antes da ediccedilatildeo

definitiva da Ratio Studiorum dos jesuiacutetas existem alguns testemunhos

contemporacircneos imprescindiacuteveis para uma correcta valorizaccedilatildeo do lugar

destes espectaacuteculos na histoacuteria do teatro e na histoacuteria da muacutesica

A carta de Pecircro Dias

En meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus de Miguel Venegas deu-se

precisamente no iniacutecio de Julho daquele ano por ocasiatildeo das festas da Rainha

Santa Isabel a padroeira do Coleacutegio O testemunho mais conhecido eacute o da

carta quadrimestral de Outubro daquele ano escrita por Pecircro Dias8

laquoAl d o m i n g o seguiente se represento u n a tragedia que c o m p u s o ei P

maest ro Venegas () Auiacutea en cada acto un choro de letra m u y deuota y m u y

bien c o m p u e s t o en p u n c t o de canto de oacutergano y 8 oacute n u e u e muacutesicos que los

can tauan m u y bien y con ten taacute ronse t a n t o todos destes choros m aacute x i m e los

7 ARSI Lus 43 foi 107r 167v e 71-72

s M O N U M E N T A HISTOacuteRICA SOCIETATIS IESU Litterae quadrimestre ex univems

praeter Indiam et Brasiliam locis in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur Romam missae 7 vols

Madrid-Roma 1894-1932 (Doravante Litt Quad)Vo 6 p 362-363

319

jVtoTOA MIRANDA

religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz

(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que

no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta

tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para

todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general

el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias

y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que

algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan

la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de

Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E

Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo

O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade

com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os

coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio

A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica

que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar

simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio

A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado

muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi

muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco

sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de

onde saiacuteam as personagens

A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo

Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela

nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e

de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no

teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel

estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros

da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros

cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava

uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou

Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade

320

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de

louvor)

Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos

concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias

preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees

proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental

executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como

observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em

Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees

musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos

Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em

vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras

escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto

Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria

provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela

de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante

a representaccedilatildeo da trageacutedia

O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante

do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes

de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente

aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de

semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a

vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio

das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos

Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho

Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70

12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105

321

MARGARIDAMKANDA

para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham

sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o

humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica

conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se

a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu

valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo

polifoacutenica13

Quem teraacute sido pois o seu autor

Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como

compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4

um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente

com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os

muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra

nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram

Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro

anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando

se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de

Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do

Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um

A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio

musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu

Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos

de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra

Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria

daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco

laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()

Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom

Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso

tinha especial graccedilaraquo

Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de

Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de

segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147

A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de

D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552

322

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo

Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco

Castelhano pois nascera no reino de Castela

Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista

Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico

seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica

Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco

Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo

frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557

foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas

recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a

cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os

anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares

oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se

compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois

oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior

solenidade[6

Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria

destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos

de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de

aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a

Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de

contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1

Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical

de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia

Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia

ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela

pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo

Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o

16 Litt Quad 6 pp 360-361

Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de

Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade

de Letras da Universidade de Coimbra 2001

323

JVIARiacuteARIDA MIRANDA

Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade

emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo

Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos

Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos

seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de

larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais

de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra

como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo

de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico

em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559

como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no

paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade

Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia

causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram

19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos

entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de

inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de

Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio

Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138

Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais

omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia

a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum

modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em

mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos

levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos

ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S

I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe

XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis

University 1970

Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees

principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I

Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp

213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na

Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra 1997

324

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que

Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um

momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo

de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges

de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista

nada de semelhante

A versatildeo latina da mesma carta

Optiacuteme more traacutegico canebantur

Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute

modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20

Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar

recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De

um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a

traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos

para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs

laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum

quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant

ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine

nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus

domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis

unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum

prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione

factum est ut oprime suas partes egerint

In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat

quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus

multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant

uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros

m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56

325

_MARGARIDAMBMNDA

rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil

se uidisse melius apertissime affirmabant

Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor

Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca

designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex

omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus

aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus

relictus est

Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro

incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum

etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et

uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim

erat illustrata ()

Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et

omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse

afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret

magnificentius celebrari posse tcstabantur

Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili

gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis

ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22

laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava

com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns

degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de

avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora

construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os

actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico

na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados

Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes

No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava

um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto

agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute

ARSI Lus 51 foi 56

326

M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que

lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham

visto coisa melhor

A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo

reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado

com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo

reservou outro lugar no paacutetio de baixo

A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos

numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer

pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e

de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras

elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()

Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens

eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais

elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a

Coimbra nada mais digno haveria para o receber

Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas

com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto

agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo

N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado

pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam

preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute

agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a

habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o

t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido

s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral

do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia

u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J

literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a

muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da

Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute

nos Coros da trageacutedia

327

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 4: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

jVtoTOA MIRANDA

religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz

(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que

no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta

tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para

todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general

el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias

y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que

algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan

la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de

Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E

Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo

O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade

com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os

coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio

A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica

que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar

simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio

A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado

muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi

muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco

sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de

onde saiacuteam as personagens

A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo

Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela

nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e

de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no

teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel

estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros

da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros

cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava

uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou

Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade

320

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de

louvor)

Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos

concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias

preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees

proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental

executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como

observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em

Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees

musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos

Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em

vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras

escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto

Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria

provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela

de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante

a representaccedilatildeo da trageacutedia

O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante

do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes

de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente

aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de

semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a

vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio

das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos

Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho

Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70

12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105

321

MARGARIDAMKANDA

para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham

sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o

humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica

conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se

a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu

valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo

polifoacutenica13

Quem teraacute sido pois o seu autor

Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como

compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4

um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente

com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os

muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra

nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram

Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro

anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando

se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de

Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do

Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um

A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio

musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu

Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos

de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra

Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria

daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco

laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()

Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom

Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso

tinha especial graccedilaraquo

Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de

Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de

segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147

A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de

D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552

322

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo

Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco

Castelhano pois nascera no reino de Castela

Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista

Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico

seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica

Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco

Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo

frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557

foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas

recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a

cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os

anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares

oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se

compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois

oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior

solenidade[6

Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria

destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos

de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de

aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a

Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de

contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1

Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical

de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia

Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia

ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela

pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo

Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o

16 Litt Quad 6 pp 360-361

Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de

Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade

de Letras da Universidade de Coimbra 2001

323

JVIARiacuteARIDA MIRANDA

Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade

emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo

Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos

Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos

seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de

larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais

de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra

como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo

de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico

em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559

como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no

paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade

Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia

causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram

19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos

entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de

inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de

Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio

Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138

Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais

omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia

a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum

modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em

mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos

levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos

ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S

I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe

XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis

University 1970

Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees

principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I

Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp

213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na

Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra 1997

324

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que

Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um

momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo

de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges

de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista

nada de semelhante

A versatildeo latina da mesma carta

Optiacuteme more traacutegico canebantur

Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute

modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20

Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar

recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De

um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a

traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos

para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs

laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum

quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant

ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine

nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus

domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis

unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum

prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione

factum est ut oprime suas partes egerint

In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat

quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus

multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant

uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros

m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56

325

_MARGARIDAMBMNDA

rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil

se uidisse melius apertissime affirmabant

Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor

Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca

designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex

omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus

aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus

relictus est

Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro

incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum

etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et

uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim

erat illustrata ()

Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et

omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse

afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret

magnificentius celebrari posse tcstabantur

Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili

gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis

ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22

laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava

com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns

degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de

avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora

construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os

actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico

na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados

Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes

No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava

um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto

agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute

ARSI Lus 51 foi 56

326

M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que

lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham

visto coisa melhor

A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo

reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado

com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo

reservou outro lugar no paacutetio de baixo

A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos

numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer

pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e

de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras

elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()

Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens

eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais

elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a

Coimbra nada mais digno haveria para o receber

Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas

com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto

agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo

N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado

pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam

preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute

agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a

habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o

t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido

s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral

do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia

u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J

literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a

muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da

Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute

nos Coros da trageacutedia

327

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 5: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

MARGARIDAMKANDA

para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham

sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o

humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica

conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se

a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu

valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo

polifoacutenica13

Quem teraacute sido pois o seu autor

Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como

compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4

um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente

com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os

muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra

nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram

Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro

anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando

se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de

Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do

Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um

A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio

musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu

Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos

de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra

Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria

daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco

laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()

Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom

Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso

tinha especial graccedilaraquo

Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de

Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de

segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147

A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de

D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552

322

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo

Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco

Castelhano pois nascera no reino de Castela

Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista

Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico

seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica

Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco

Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo

frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557

foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas

recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a

cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os

anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares

oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se

compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois

oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior

solenidade[6

Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria

destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos

de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de

aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a

Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de

contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1

Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical

de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia

Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia

ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela

pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo

Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o

16 Litt Quad 6 pp 360-361

Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de

Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade

de Letras da Universidade de Coimbra 2001

323

JVIARiacuteARIDA MIRANDA

Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade

emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo

Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos

Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos

seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de

larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais

de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra

como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo

de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico

em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559

como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no

paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade

Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia

causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram

19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos

entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de

inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de

Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio

Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138

Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais

omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia

a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum

modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em

mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos

levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos

ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S

I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe

XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis

University 1970

Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees

principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I

Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp

213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na

Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra 1997

324

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que

Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um

momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo

de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges

de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista

nada de semelhante

A versatildeo latina da mesma carta

Optiacuteme more traacutegico canebantur

Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute

modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20

Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar

recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De

um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a

traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos

para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs

laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum

quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant

ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine

nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus

domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis

unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum

prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione

factum est ut oprime suas partes egerint

In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat

quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus

multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant

uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros

m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56

325

_MARGARIDAMBMNDA

rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil

se uidisse melius apertissime affirmabant

Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor

Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca

designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex

omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus

aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus

relictus est

Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro

incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum

etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et

uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim

erat illustrata ()

Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et

omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse

afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret

magnificentius celebrari posse tcstabantur

Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili

gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis

ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22

laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava

com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns

degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de

avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora

construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os

actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico

na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados

Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes

No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava

um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto

agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute

ARSI Lus 51 foi 56

326

M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que

lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham

visto coisa melhor

A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo

reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado

com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo

reservou outro lugar no paacutetio de baixo

A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos

numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer

pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e

de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras

elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()

Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens

eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais

elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a

Coimbra nada mais digno haveria para o receber

Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas

com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto

agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo

N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado

pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam

preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute

agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a

habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o

t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido

s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral

do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia

u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J

literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a

muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da

Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute

nos Coros da trageacutedia

327

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 6: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

JVIARiacuteARIDA MIRANDA

Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade

emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo

Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos

Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos

seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de

larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais

de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra

como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo

de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico

em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559

como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no

paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade

Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia

causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram

19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos

entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de

inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de

Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio

Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138

Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais

omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia

a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum

modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em

mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos

levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos

ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S

I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe

XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis

University 1970

Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees

principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I

Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp

213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na

Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra 1997

324

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que

Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um

momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo

de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges

de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista

nada de semelhante

A versatildeo latina da mesma carta

Optiacuteme more traacutegico canebantur

Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute

modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20

Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar

recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De

um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a

traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos

para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs

laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum

quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant

ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine

nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus

domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis

unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum

prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione

factum est ut oprime suas partes egerint

In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat

quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus

multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant

uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros

m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56

325

_MARGARIDAMBMNDA

rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil

se uidisse melius apertissime affirmabant

Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor

Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca

designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex

omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus

aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus

relictus est

Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro

incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum

etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et

uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim

erat illustrata ()

Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et

omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse

afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret

magnificentius celebrari posse tcstabantur

Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili

gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis

ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22

laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava

com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns

degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de

avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora

construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os

actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico

na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados

Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes

No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava

um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto

agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute

ARSI Lus 51 foi 56

326

M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que

lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham

visto coisa melhor

A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo

reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado

com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo

reservou outro lugar no paacutetio de baixo

A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos

numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer

pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e

de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras

elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()

Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens

eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais

elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a

Coimbra nada mais digno haveria para o receber

Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas

com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto

agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo

N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado

pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam

preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute

agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a

habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o

t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido

s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral

do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia

u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J

literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a

muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da

Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute

nos Coros da trageacutedia

327

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 7: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

_MARGARIDAMBMNDA

rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil

se uidisse melius apertissime affirmabant

Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor

Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca

designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex

omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus

aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus

relictus est

Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro

incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum

etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et

uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim

erat illustrata ()

Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et

omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse

afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret

magnificentius celebrari posse tcstabantur

Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili

gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis

ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22

laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava

com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns

degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de

avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora

construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os

actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico

na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados

Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes

No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava

um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto

agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute

ARSI Lus 51 foi 56

326

M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que

lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham

visto coisa melhor

A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo

reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado

com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo

reservou outro lugar no paacutetio de baixo

A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos

numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer

pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e

de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras

elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()

Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens

eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais

elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a

Coimbra nada mais digno haveria para o receber

Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas

com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto

agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo

N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado

pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam

preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute

agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a

habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o

t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido

s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral

do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia

u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J

literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a

muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da

Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute

nos Coros da trageacutedia

327

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 8: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

_MARCMII)AMIIUNIH

Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham

por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria

acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam

as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo

Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico

esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico

em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia

para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio

Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do

texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como

podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos

ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial

ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos

greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico

novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos

satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-

Os Coros do Manuscrito Musical 70

da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao

momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto

manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio

das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem

escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco

como seria de esperar

Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius

natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos

Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca

13 Owen Rees Op cit p 102-103

328

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia

como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos

exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste

todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam

apenas conjecturar

Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia

de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra

cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo

corresponde agrave sua ordem na peccedila

O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente

em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia

de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor

felix dolor o beate

O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem

qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em

todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que

acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os

fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes

que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo

O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava

encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o

24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de

Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM

ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por

publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados

com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha

dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve

anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A

Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o

excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por

Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e

a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-

-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o

texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental

329

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 9: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

_MARCM)AM)[laquoNT)A

mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da

trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista

Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas

consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos

da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue

publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex

Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os

primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho

tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as

restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26

N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda

por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas

teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com

u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus

cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas

Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia

de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de

D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m

realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash

e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas

t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos

ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28

N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente

Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas

podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo

quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros

fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte

do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se

mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos

muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da

Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da

Cruz SI Lisboa 1988 2 vols

330

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo

que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o

dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre

de Capela do Bispo

Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo

puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica

deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua

proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente

humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu

poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou

para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios

humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar

certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve

surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua

o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de

educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30

O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde

o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio

de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi

outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa

Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de

Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da

eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a

do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio

foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a

notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal

em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)

sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior

realce

Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se

impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um

gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106

331

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

r r

bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 10: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

_MAK(iacuteRIDAMIRANDA

estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua

restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em

que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais

Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma

semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja

unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar

neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade

Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do

Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus

em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido

Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda

salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash

obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade

composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de

assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos

para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as

partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave

variedade da expressatildeo musical

O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros

versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a

compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco

v 2230

Diuinis habeas non habeas fidem

Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei

Aures autfaciles uocibus applices

Omni fixa manet tempore ueriiacuteas

r -

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bdquobdquo

j w

- -

--

--

bdquobdquo

V gtJ

-

-

-

-

Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm

que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos

versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave

332

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica

foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando

o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial

aquela divisatildeo

A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou

seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica

por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do

verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente

Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo

dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em

Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava

ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de

declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do

sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na

natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer

o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por

essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do

Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso

poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a

exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica

reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a

simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as

mutuamente

Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar

respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer

dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam

que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo

humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu

acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie

Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London

19891 pp 154-218

333

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 11: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

MARGARIDA MIRANDA

bullm bull

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora

Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales

eri la iglesia maior

A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi

imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima

da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O

texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo

da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo

dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as

personagens33

Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes

da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser

representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os

que cantam com vestes apatatosasraquo

Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos

das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora

diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao

pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente

caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en

la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas

a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de

Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de

luto

laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos

sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con

sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros

instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34

33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro

de 1559 1 Ibidem p 399

334

Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros

de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees

e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de

Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam

poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista

Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores

escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o

mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por

outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-

-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo

com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a

Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado

nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os

JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente

as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta

anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ

acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos

religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses

ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de

instrumentos durante as festas principais

laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la

representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que

representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui

buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros

delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto

en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()

Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo

i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de

1559

335

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 12: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

JVLARGAMDAMIKANDA

mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas

mas principales en la iglesia maiorraquo37

Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os

alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa

seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer

Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do

mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a

aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam

em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia

de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais

festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo

O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de

Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de

uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da

Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas

lituacutergicas

Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel

Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em

Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o

autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios

literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois

um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos

jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio

Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam

entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma

estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de

manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem

em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom

37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico

como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento

da Trageacutedia Jesuiacutetica

336

MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por

modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de

Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees

A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande

parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom

Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se

viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas

viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do

texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha

vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se

pode com alguma certeza chamar seu mestre9

De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias

instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto

sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a

abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta

nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do

conteuacutedo semacircntico do texto

Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado

de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e

dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada

(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa

Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive

entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()

se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do

triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem

milita etcraquow

bull Op eh p 118

D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668

parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do

mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas

337

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

340 ^m

Page 13: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A

Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra

embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do

dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do

mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas

e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em

1562 tecircm aiacute um importante precedente

D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo

de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores

dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na

composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e

ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das

Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados

religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia

de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros

transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha

assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se

agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559

natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo

naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera

Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu

os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos

tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na

trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo

do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da

Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um

realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade

Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir

o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de

comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo

que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente

cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares

Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999

338

MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL

As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma

estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do

sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras

dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto

poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior

expressividade poeacutetica de modo particular para o final

A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo

por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e

devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem

cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas

como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento

musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira

em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra

Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico

agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra

realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez

com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao

canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto

como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos

tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash

como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42

Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o

actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem

o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3

A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental

nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato

ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente

inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro

t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo

de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998

bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim

Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in

Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391

339

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

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Page 14: HUMMTASVOLLV MMII - Universidade de Coimbra · 2011. 9. 16. · meu será este; ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas, não trocarei este pobre por dez ricos". Álbio,

JViacuteWGTOA MIRANDA

humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para

a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem

vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando

os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente

aos postulados da Retoacuterica claacutessica

Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel

Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum

non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os

dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis

HUMAWASVOLLV I MMIII

GEORGE KANARAKIS

Charles Sturt University (Austraacutelia)

HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE

Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the

only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea

of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)

is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its

population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent

Austraacutelia historically is a self-governing young nation having

achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as

1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and

multilingual society in the world after Israel being of over 200 different

ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4

Australian indigenous languages

However despite its relative youth its geographic location and its

small population it has developed a dynamic and internationally respected

1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http

wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity

Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]

Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-

fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http

wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy

guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul

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