I — Estudos - Editorial Franciscana · paz, de tal forma que – como escreve Tommaso da Spalato...

69
I — Estudos O EMPENHO DOS FRADES MENORES 1 PELA JUSTIÇA E PELA PAZ Frei José Rodríguez Carballo Ministro Geral OFM ————— 1 Conferência proferida pelo Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, Frei José Rodrí- guez Carballo, dia 22 de Outubro de 2004, no II Congresso Europeu dos Delegados de Justiça e Paz da Ordem Franciscana. 5

Transcript of I — Estudos - Editorial Franciscana · paz, de tal forma que – como escreve Tommaso da Spalato...

I — Estudos

O EMPENHO DOS FRADES MENORES 1

PELA JUSTIÇA E PELA PAZ

Frei José Rodríguez Carballo Ministro Geral OFM

————— 1 Conferência proferida pelo Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, Frei José Rodrí-

guez Carballo, dia 22 de Outubro de 2004, no II Congresso Europeu dos Delegados de Justiça e Paz da Ordem Franciscana.

5

II CONGRESSO EUROPEU DOS DELEGADOS DE JUSTIÇA E PAZ DA ORDEM FRANCISCANA

Há mais de quarenta anos o Papa João XXIII, membro da Família Fran-

ciscana como Irmão professo da Ordem Franciscana Secular, confiava ao mundo a sua mensagem de paz, propondo aos homens e às mulheres de boa--vontade uma nobre missão: «recompor as relações da convivência na ver-dade, na justiça, no amor e na liberdade». Tantos anos passados, essa missão continua a ser profundamente actual e urgente, como actuais são aqueles fundamentos a partir dos quais se torna possível construir o edifício da paz, hoje profundamente deteriorado.

É verdade que a humanidade sempre teve necessidade de paz, mas hoje adverte-se mais essa necessidade do que noutras épocas. A guerra, a violên-cia, o terrorismo voltaram a “habitar” prepotentemente a nossa história como instrumentos “cómodos” para dirimir conflitos, afirmar as próprias razões, resgatar-se de velhos equívocos, responder à ameaça mesma do terrorismo… Sim, com os factos do tristemente famoso 11 de Setembro 2001 – repetidos no não menos tristemente famoso 11 de Março 2004 – adensaram-se nuvens espessas no presente, gerando incertezas e temores em relação ao futuro.

Será possível entrever neste horizonte escuro o arco-íris da reconcilia-ção e da paz? Será possível recuperar o ramo de oliveira? A nobre missão de que falava o “Papa bom” transformou-se num desafio para aqueles que levam a sério o destino da humanidade e, sobretudo, para aqueles que se dizem discípulos de Cristo e seguidores de Francisco.

1. A nossa humanidade “crucificada” Para que se compreenda melhor qual o significado do nosso empenho a

favor da paz, creio que seja necessário tratar, ainda que brevemente, da não paz, isto é, da violência, verdadeiro flagelo do nosso tempo. A violência, de

6

facto, não consiste somente no uso das armas, nas guerras, no terrorismo e nos maus-tratos, casos estes em que se fala de “violência directa “, por que nos dias de hoje existe uma “violência estrutural”, que não se exerce direc-tamente, mas através das estruturas. É ela originada pelo facto de que alguns têm tudo, e mais do que tudo, e outros nada têm e morrem por causa da extrema miséria. Há, enfim, uma “violência cultural” originada em ideias, razões emotivas e símbolos que legitimam quer a violência que apelidámos “directa” quer a “estrutural”. A “violência cultural” é, pois, o verdadeiro “caldo de cultura” quer da violência directa quer da estrutural. Os três tipos de violência alimentam-se reciprocamente e frequentemente a violência directa está ao serviço da violência estrutural, enquanto que a violência cultu-ral justifica tanto a violência directa como a estrutural. O resultado é que se forma uma rede de violências que se tornam armadilhas mortais para os que nelas caem.

Esta rede de violências é tecida por muitas situações de injustiça que se tornam “terreno fértil” para as violências de massa. Por falta de tempo limi-tar-me-ei nesta sede a indicar algumas destas situações visivelmente presen-tes na Europa e que deveriam interrogar seriamente todos os que nos senti-mos chamados a ser construtores de paz neste continente. Na Europa, que oficialmente é considerada como o “clube dos ricos”, há 60 milhões de pobres, quer dizer, de pessoas que recebem menos de metade do rendimento “per capita” dos Países a que pertencem. O desemprego tem contas muito elevadas, sobretudo entre a população juvenil e as mulheres, de modo que muitos são expostos a uma vida insegura e com escassas perspectivas de futuro, mas ainda pior é a assim eufemisticamente chamada “flexibilidade de emprego” que tem como consequência a desagregação da família. A imigra-ção comporta muitas vezes a marginalização, desigualdade e injustiça frutos da rejeição e da não-aceitação da real condição humana do outro. Frequen-temente os imigrantes são aceites pelas suas capacidades de trabalho, o bom rendimento nos trabalhos mais duros esquecendo que para além do corpo há uma pessoa, uma religião uma cultura. A mulher continua a padecer, em muitos casos, descriminações, maus-tratos, violências domésticas. Os fun-damentalismos dos quais brota a intolerância e a negação do outro. A polí-tica, dominada pela ideologia neo-liberal e que, em muitos casos, tem somente em vista a manutenção do poder, iludindo as instâncias internacio-nais de controlo moral e democrático, e politizando a religião para legitimar os confrontos bélicos com outras culturas. Tais confrontos, na maior parte dos casos, escondem ou dissimulam outros interesses “não confessáveis” e, não poucas vezes, fundamentalismos de tipo religioso. A chamada religião do consumismo cujos frutos são a febre do ter, do possuir, de experimentar

7

novas sensações. Todas estas e outras situações constituem uma ameaça real à paz, uma vez que fazem parte da “violência cultural”, quando não já da “violência directa”, que acaba por se transformar em “violência estrutural”, causa imediata da “violência directa”.

2. Os Frades Menores arautos da Paz a exemplo de Francisco Nós, que nos dizemos discípulos de Jesus, não podemos ficar indife-

rentes a estas situações. Jesus confiou aos seus discípulos a missão de leva-rem a paz onde quer que fossem: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’» (Lc 10, 5). Construir a paz, semear a paz, ser obreiros da paz, para aqueles que escolheram seguir os passos de Jesus, não é uma opção entre outras, mas um verdadeiro empenhamento evangélico.

No interior deste empenho comum «para alcançar o desenvolvimento em paz, para salvaguardar a própria natureza e o mundo que nos circunda», cada um ocupa «o lugar próprio» (Sollicitudo Rei Socialis 47). A vocação comum a “ser instrumentos de paz” pode e deve estar presente de modos diversos, tendo em conta as situações em que cada um vive, as próprias res-ponsabilidades e os próprios carismas.

Neste contexto é lógico e necessário que nós, “Frades Menores”, nos perguntemos que empenho, como franciscanos e enquanto franciscanos, deveremos assumir na construção da paz; porque e como estamos empenha-dos na paz.

Se para qualquer cristão o empenho pela paz não constitui uma opção ainda o é menos para aqueles que, enquanto Frades Menores, escolheram seguir “mais de perto” os passos de Jesus a exemplo de Francisco de Assis. Tendo em conta o exemplo de Francisco, nós, Frades Menores, somos cha-mados a dar uma contribuição específica para a paz.

Nós, Frades Menores, chamados a partilhar «na nossa carne as ânsias e os medos vividos pelos nossos contemporâneos» (Il Signore ti dia pace, Documento finale Capitolo general 2003 = Sdp 20), rezemos com Francisco para que o Senhor ilumine as trevas dos nossos corações e nos conceda uma fé recta, uma esperança certa, uma caridade perfeita (cf OCD). Peçamos ainda que nos conceda a graça de «nos abrirmos ao diálogo com o Deus da história» (Sdp 27d) para podermos dar uma resposta evangélica adequadca a tantos “sinais de morte e de violência”. Em contacto com a “humanidade ferida” sentimo-nos enviados pelo Espírito a “curar as feridas” de tantos dos nossos irmãos, que, entre nós e nas nossas cidades, são atingidos pela violên-

8

cia estrutural, cultural e directa, porque neles reconhecemos a imagem de Cristo crucificado. Como a Paulo, também a nós «o amor de Cristo nos empuxa» (2Cor 5, 14) a amar e a caminhar solidariamente com as vítimas da vioência. Numa sociedade como a nossa onde as trevas parecem vencer a luz peçamos para sermos «lumes luminosos presentes na noite obscura dos povos, faróis geradores de esperança» (Sdp 6).

Qual a razão de uma contribuição específica dos franciscanos na cons-trução da paz? Desejo aqui recordar o gesto profético de João Paulo II. Quando as guerras, o desespero, as injustiças, as privações de toda a ordem afligiam tantos seres humanos o Papa convida todos os crentes e todos os homens de boa-vontade a peregrinar a Assis. Porquê Assis?

Na sua última peregrinação a Assis a 24 de Janeiro de 2002 – mas não só nesta ocasião – o Papa João Paulo II dá-nos a resposta: «Encontramo-nos em Assis, onde tudo fala de um singular profeta de paz chamado Francisco. Ele não é somente amado por cristãos, mas também por todos os outros crentes e por aqueles que, embora afastados da religião, se reconhecem nos ideais da justiça, da reconciliação, do amor, que foram os seus ideais».

Para nós franciscanos o porquê e o como ser construtores de paz emerge da experiência humana e cristã do nosso irmão e pai Francisco. Uma vez entendido adequadamente o sentido da palavra de Cristo em S. Damião, o Pobrezinho fez-se, tornou-se, promotor da paz, servindo-se de cartas circula-res e andando pelo mundo para anunciar o Reino de Deus e o dom divino da paz, de tal forma que – como escreve Tommaso da Spalato – «toda a subs-tância das suas palavras tinha em vista acabar com as inimizades e lançar os fundamentos de novos pactos de paz».

Verdadeiramente Francisco foi um homem empenhado, até ao mais fundo de si mesmo, na paz e reconciliação, chegando ao ponto de realizar gestos que, para além de arriscados ou precisamente por o serem, eram ver-dadeiramente proféticos. Exemplos eloquentes são os “gestos” de Sena, onde conseguiu pôr fim a uma luta que já tinha provocado dois mortos (Fl 11); de Arezzo, em que pôs termo a uma verdadeira guerra civil que ameaçava uma mortandade (2C 108); de Assis, onde reconciliou o bispo e o governador (EF 101); de Síria, indo desarmado ao encontro do Sultão (1C 57). Com razão chamou S. Boaventura a Francisco «anjo da verdadeira paz», que «anunciou aos homens o evangelho da paz e da salvação» (LM prol. 1).

Conquistado por Deus – que é mansidão, segurança, paz … (cf HD) e seguido Cristo pobre e crucificado, que com o seu corpo oferecido e o seu sangue derramado nos obtém a reconciliação e a paz – Francisco convida-nos a cumprimentar com a saudação que lhe revelou o Altíssimo: «O Senhor te dê a paz!» (T 23) e exorta-nos a sermos «pacíficos e modestos, mansos e

9

humildes» (2R 3, 11), recordando-nos constantemente que a nossa missão consiste em sarar as feridas, andar buscando os que estão perdidos, recompor as fracturas…

Para um franciscano «avizinhar os povos, inclusive os inimigos, à paz e ao bem», empenhar-se no «surgimento de uma nova época, em suscitar uma nova visão da vida e das relações, fundadas na justiça e no amor, como caminhos para a paz», é uma das exigências da «urgência» que sentimos de «voltar ao essencial da nossa experiência de fé e da nossa espiritualidade para nutrir, mediante a oferta libertadora do Evangelho, o nosso mundo divi-dido, desigual e faminto de sentido, tal como o fizeram no seu tempo Fran-cisco e Clara de Assis» (Sdp 1. 2). Como franciscanos não nos basta “contar” o que Francisco fez pela paz, mas, inspirando-nos nele, devemos «cumprir a tarefa que nos foi confiada no nosso fragmento de história» (Sdp 3). Por isso, queremos «na itinerância e no diálogo, partilhar a vida com o próximo e ofe-recer o nosso melhor esforço para com eles criar uma cultura alternativa de sinais capazes de difundir a alegria e a paixão pela vida» (Sdp 24); queremos «ser portadores de alegria, de comunhão e de partilha solidária (solidale)» (Sdp 25); queremos, como Francisco, oferecer «uma bênção de paz» (Sdp 30) a todos quantos sofrem.

Numa “sociedade crucificada” como a nossa por causa de violências de todo o género, da guerra, do terrorismo, conscientes de que a paz é insepará-vel da justiça (cf Sal 85, 11; Is 60, 17), do perdão, da verdade, do amor e da liberdade; que não haverá paz duradoura enquanto houver países que cha-mamos “subdesenvolvidos” ou países do “terceiro mundo”; que a paz é uma das manifestações da vinda do Reino (Rm 14, 17), nós franciscanos quere-mos fazer uma leitura, dar uma interpretação e oferecer um juízo destes sinais de morte à luz do Evangelho (cf Gaudium et Spes; Sdp 6) e da nossa espiritualidade. Queremos «ser nós mesmos sinais legíveis de vida para um mundo sedento de novos céus e nova terra» (Sdp 7), educando «para a cul-tura da não violência e do respeito pela criação» (Sdp 13); favorecer o diá-logo entre as culturas, as diversas gerações, os sexos, as religiões e as ideo-logias, como caminho para a paz (cf Sdp 15), evitando todo o tipo de funda-mentalismo, “humus de que brota a intolerância, o autoritarismo, a coacção, o dogmatismo, o fanatismo, o sectarismo, o racismo, a exclusão do outro porque diverso…, a violência, a guerra (Sdp 14). Nesta sociedade em que nos foi dado viver, desejamos vivamente que «onde quer que estejamos», anun-ciemos «com clareza a necessidade de um mundo acolhedor, justo, tolerante e pacificado» (Sdp 40).

Como Franciscanos, chamados a construir e manifestar a presença do Reino de Deus entre nós, não podemos eximir-nos de trabalhar pela paz e

10

pela justiça. No que é que consiste o nosso empenho em favor da justiça e da paz? Quais as consequências deste empenho? Quais as propostas para um empenho eficaz em favor da justiça e da paz?

3. Os Frades Menores ao serviço da paz. Algumas acções concretas O nosso empenho pela paz. como cristãos e como franciscanos faz-nos

trabalhar incansavelmente por eliminar a “violência directa” para que brote a liberdade; a “violência estrutural” para que brote a justiça social; a “violência cultural” para que brote a harmonia que não é só “coincidentia oppositorum”, mas um espaço onde haja lugar para todos, um espaço de respeito da diversi-dade. Sim, o nosso empenho pela paz leva-nos a trabalhar para conjunta-mente implantar a liberdade, a justiça e a harmonia: os três ingredientes da paz.

A grande dificuldade consiste em que estes três ingredientes têm dificul-dade em conviver procurando cada um invadir o campo dos outros. Diz-nos a experiência que quando as rédeas estão nas mãos da justiça, facilmente são sacrificadas a liberdade e a harmonia – pensemos nos sistemas comunistas – e quando se desenvolve somente a liberdade é fácil que sofram a justiça e a harmonia – pensemos nos sistemas capitalistas.

Isto coloca diante de nós uma meta que, sabemo-lo desde o início, nunca será atingida em plenitude. Esta verificação, longe de nos desencorajar põe-nos diante de um desafio que nos obriga a estar sempre em caminho, sempre na atitude de quem começa, pois que, enquanto nos sentirmos cha-mados a trabalhar sem descanso para alcançá-la já agora, sabemos que os nossos esforços nunca alcançarão os resultados desejados. É o já e o ainda não de toda a realidade escatológica, como o é a paz. E enquanto estivermos no já e ainda não, não podemos esquecer que Deus «nos confiou o ministério da reconciliação» (2Cor 5, 18). Este ministério exige de quem o recebeu – e foi recebido por todos os baptizados – um empenho a favor da paz, da justiça e da harmonia.

E enquanto trabalhamos sem descanso para eliminar a violência directa e estrutural, devemos trabalhar com a mesma energia para criar uma cultura da paz. Isso exige que nós: • trabalhemos continuamente na pacificação do nosso coração e na

reconciliação com a nossa história pessoal; • organizemos programas de educação para a paz nos nossos colégios,

paróquias, na pastoral juvenil, no campo do trabalho…;

11

• sensibilizemos a opinião pública para o bem da paz através da pregação, catequese de jovens e adultos, jornadas de reflexão e de retiro…;

• vivamos relações interpessoais isentas de violência ou competitividade, particularmente entre nós e no nosso trabalho com os outros;

• criemos instâncias de reflexão sobre a paz; • apoiemos e sustentemos as posições pacifistas, desde que ponham em

discussão a violência estrutural e permaneçam nas possibilidades do real. Uma vez que a paz, como já dissemos, é inseparável da justiça e da ver-

dade, é-nos pedido: • optar por uma distribuição adequada dos recursos económicos a nível

interno nas nossas Fraternidades, eliminando diferenças escandalosas entre Fraternidades ricas e pobres, entre Frades ricos e pobres, «para que sejam tutelados os direitos de cada um e respeitada a dignidade humana» (CCGG 96, 3);

• evitar a acumulação e favorecer a solidariedade concreta com os pobres; • investir nos “fundos éticos” e trabalhar pela transparência absoluta das

nossas economias “ad intra” e perante a sociedade; • apoiar projectos de desenvolvimento económico e de ajudas conjuntu-

rais a favor dos menos favorecidos, quer a nível nacional quer interna-cional (CCGG 96, 2);

• «instaurar, em Cristo ressuscitado, uma sociedade justa, livre e pacífica» (CCGG 96, 2), em comunhão com todos os homens de boa vontade;

• formar adequadamente os pobres para que tomem «consciência da sua dignidade de homens, a defendam e a façam valer» (CCGG 97, 2), e os ricos para que restituam «a Deus, sempre presente nos pobres, todo o bem gratuitamente recebido» (CCGG 98, 1);

• anunciar a reconciliação e a conversão a todos os que «constituem uma ameaça para a vida e para liberdade» (CCGG 98, 2).

Dado, enfim, que a justiça vai de par e passo com a verdade, «construir

a paz com as obras de paz é difícil e exige a restauração da verdade» (João Paulo II, Menssagem para a XIII Jornada mundial pela paz, 3). Não existe verdadeira paz se não for edificada sobre a verdade. Por isso, a quem se sente chamado a ser instrumento de paz e justiça, também se exige: • sentir-se “pesquisador” da verdade, sobretudo entre os pobres (cf Lc 10,

21), e não “possuidor” da mesma; • «chamar pelo nome os actos de violência – homicídio, massacres de

homens e mulheres, tortura – quaisquer que sejam a forma que assumam

12

… não para estigmatizar indivíduos e povos, mas para contribuir para a mudança dos comportamentos e dos espíritos e para restituir à paz as suas possibilidades» (João Paulo II, idem);

• anunciar a verdade portadora de salvação que Cristo «caminho, verdade e vida» (Jo 14, 6) nos entregou;

• procurar os meios apropriados para uma informação verdadeira e comu-nicá-la aos outros. 4. O Delegado de Justiça e Paz (=DJPIC). Uma mediação útil na

construção da paz A figura do DJPIC conta-se entre as mediações aptas para actuar o

nosso empenho pela paz e justiça. Desejo aproveitar esta ocasião para mani-festar a minha estima e apreço fraterno pelo trabalho dos DJPIC da Europa e, por vosso meio, pelo trabalho de todos os DJPIC da Ordem. Estou consciente de que o vosso trabalho não é fácil, por isso mesmo é que vos manifesto a minha proximidade e vim aqui.

Sempre me preocupou a resposta a esta pergunta: o que fazer para que a

JPIC, elemento essencial da nossa espiritualidade franciscana, se torne parte da vida quotidiana dos Frades? Esta pergunta está unida a uma outra que me parece igualmente importante e poderia ajudar a responde à primeira: qual deve ser o trabalho de um DJPIC? Desejo agora deter-me sobre esta questão.

Ao responder não pretendo ser exaustivo, mas desejo sublinhar, em jeito de decálogo, alguns aspectos que considero fundamentais para o desenrolar do vosso importante “ministério” e evitar que o DJPIC seja visto como uma “avis rara”.

Tenho para mim que, no seu trabalho tão delicado, o DJPIC deva:

• Mostrar-se muito próximo dos Frades da Fraternidade local e provincial, participando na vida quotidiana da sua Fraternidade e da Província. A sua missão consiste em ser o fermento na massa, o sal que dá sabor. Por isso o DJPIC não pode sentir-se, nem ser visto, como um “corpo estra-nho” à vida quotidiana dos Frades. Isso prejudicaria gravemente a sua obra pela nobre causa em que crê e para a qual trabalha.

• Permanecer bem “centrado” n’ Ele, com o coração voltado para o Senhor e “concentrado” sobre todos os elementos essenciais do carisma franciscano. O DJPIC deve ser um homem “apaixonado” por Deus para ser “apaixonado” pelos homens, como os profetas, transmitindo a cada

13

instante a beleza de seguir Cristo segundo a “forma vitae” que Francisco nos deixou.

• Conhecer a fundo (não basta um conhecimento superficial para poder formular um juízo) a realidade que se vive nas diferentes partes do mundo, onde se sofre qualquer tipo de violência, para poder informar convenientemente os Frades, julgar e criar, deste modo, uma cultura de paz, justiça e integridade da criação.

• Favorecer uma reflexão com os Frades sobre as situações de violência e injustiça oferecendo-lhes material de formação e reflexão, sobretudo baseado na Doutrina Social da Igreja, de modo a poder dar respostas cristãs a tais situações (cf CCGG 96, 1).

• Colaborar intensamente com os Secretários da Formação e dos Estudos e para a Evangelização para poder alcançar todos os Irmãos. Só assim a JPIC entrará no coração e na vida e missão de todos os Frades.

• Informar os Ministros, os seus Definitórios e todos os Frades das actividades programadas e daquelas que, como Delegado, se tem inten-ção de realizar; tornar os Frades com responsabilidade de governo parti-cipantes das próprias inquietações e esperanças.

• Elaborar um projecto de JPIC com objectivos próprios, mas de modo que os meios estejam em “comunhão”com o Projecto de Vida Fraterna da Província, e avaliá-lo periodicamente. Simultaneamente o DJPIC deve coordenar na Província as actividades que se desenvolvem no campo da JPIC.

• Animar os Irmãos a participarem nas actividades da JPIC programadas pela Província, a Conferência e a Igreja local.

• Colaborar activamente com os outros DJPIC da Diocese, da Conferên-cia, da Família Franciscana e de outros religiosos.

• Sentir-se ele mesmo num processo permanente de formação e conver-são.

5. Em jeito de conclusão A nossa vida, como toda a vida consagrada, é uma síntese da atracção

por Jesus e de compaixão pelo homem, lugar de encontro entre o caminho de Deus e os caminhos dos homens, mistura de humano e divino. Será neste âmbito da nossa vida que florescerá o nosso empenho pela paz e pela justiça. Se viesse a faltar a atracção por Jesus, a nossa acção em favor da paz e da justiça não passaria de um mero empenho social e político. Se faltasse a compaixão pelo homem – interiorização nas próprias vísceras da dor do

14

outro, que se converte em amor operativo – seria uma fuga, uma evasão, que nada tem de evangélico, como a do sacerdote e do levita da parábola. Em qualquer dos casos a nossa vida perderia a própria dimensão profética mais profunda. Chamados a sermos profetas da esperança num mundo dominado pelo desespero mantenhamos viva a paixão por Deus e a paixão pelo homem. Somente assim seremos verdadeiros instrumentos de paz, justiça e reconci-liação.

Traduziu: Frei Nuno Allen Serras Pereira

15

INCULTURAR A MENORIDADE 1

Fr. Lluís Oviedo, OFM

————— 1 Publicado em L. PADOVESE (ed.), Minores et subditi omnibus: Trati caratterizanti

dell’identitá francescana, Actas do Congresso celebrado em Roma, 26-27 de Novembro de 2002, Ed. Collegio S. Lorenzo da Brindisi, Roma 2003, pp. 445-456, com o título “Inculturare la Mino-ritá”.

17

INCULTURAR A MENORIDADE O termo “inculturação” evoca, em primeiro lugar, a necessidade de rela-

cionar a mensagem cristã com a cultura ambiental, para que essa mensagem se torne compreensível e significativa. Trata-se duma missão consubstancial à teologia, que nasce e existe para tornar a fé inteligível em qualquer con-texto e tempo. Num sentido mais restrito, a ideia de inculturação indica uma opção precisa e um programa consciente de adequação dos núcleos da fé e da práxis cristã ao contexto cultural em que se propõem. Isto exige uma atenção às condições ambientais em mudança, de acordo com os diferentes lugares e tempos, e tendo em conta as minorias étnicas das várias regiões. Nesta pers-pectiva a oferta teológica não pode ser a mesma em Portugal, ou nos Andes, na Alemanha ou na Índia. Além disso, parece que é uma obrigação da teolo-gia o integrar os elementos culturais que se geram no decurso da história, de modo a fazê-los seus e recriá-los dentro da tradição cristã. Desta forma, a proposta de fé evangélica sente-se enriquecida e fecundada, podendo, assim, expressar-se numa linguagem nova e mais adequada.

No segundo caso, deparamo-nos com uma estratégica teológica e pasto-ral especialmente moderna, embora fundamentada no princípio de encarna-ção, um princípio que, entre outras coisas, reivindica a capacidade de a fé assumir e fecundar as mais diversas expressões culturais, sem anular o seu valor próprio. Na base desta posição, está um respeito profundo pela plurali-dade cultural e sua riqueza implícita. Esse “respeito”, só por si, já constitui uma “primeira inculturação”, uma forma de assumir e de reconhecer o ambiente em que nos movemos.

O programa agora descrito, não é evidente. Na verdade registam-se muitas dúvidas a este respeito, em especial no que concerne às possibilidades e aos limites do dito projecto. À partida não se pode garantir os resultados e, para colocar só uma objecção, devemos estar atentos em não diluir as con-vicções fundamentais da fé, no esforço de ir ao encontro da exigências cultu-rais. Parece necessário uma certa “negociação” ou “trade-off”, como dizem os ingleses, o que exige uma verificação de todas as tentativas de incultura-

18

ção da fé. Também neste caso, ao aceitar esta premissa, a teologia vai-se adaptando um pouco mais às condições básicas do nosso ambiente cultural, marcado por um intercâmbio a todos os níveis.

O conceito de menoridade, ao qual queremos dar atenção, coloca pro-blemas específicos ao nosso esforço de inculturação, porque, ao contrário de outros temas da vida cristã ou de propostas espirituais, apresenta um nível de contrastes diversificados no contexto das sociedades avançadas e que torna ainda mais urgente a tarefa da inculturação. Convém, por isso, fazer uma distinção clara entre os aspectos da fé e da práxis cristã mais facilmente inculturáveis e os aspectos mais resistentes a toda a síntese cultural. Esta dis-tinção é necessária, sobretudo, na momento de estabelecer as estratégias mais adequadas e de recordar a presença de alguns núcleos de identidade diferen-ciada e contrários a uma cultura demasiado homogénea. De qualquer forma, a questão da menoridade, que desejamos tenha uma certa relevância cultural, oferece um magnífico “caso de estudo” para verificar a teoria e a práxis da inculturação.

O passo seguinte no nosso itinerário consiste em recordar que há funda-mentalmente duas estratégias ou formas de analisar as propostas da fé em relação ao ambiente cultural: a primeira aponta mais para uma síntese ou a união, trata de aproveitar características comuns, destacando os rasgos mais úteis, ou ao menos complementares para ambas as partes; a segunda assume o valor provocativo do contraste, a dialéctica e o paradoxo. Nesta segunda orientação, a fé torna-se significativa precisamente pela sua novidade e pelo seu carácter não assimilável a toda a cultura humana. Convém recordar que estas duas variedades são praticamente “tipos ideais” e extremos, sendo fácil encontrar “versões intermédias”. Basta mencionar as conhecidas propostas formuladas por Richard Niebuhr, em Cristo y la cultura, e mais recentemente por outros teólogos, como Hans Frei2. Ambos eles tratam de classificar a pluralidade de opções que temos à disposição no momento de referir a fé à cultura. Por agora contentemo-nos com os casos mais notórios para levar a cabo a nossa reflexão.

A “menoridade” pode, em primeiro lugar, aproveitar as diversas possi-bilidades que oferecem algumas culturas actuais das sociedades avançadas, mostrando assim a sua relevância e conveniência, e incluso para actualizar a própria linguagem, o próprio estilo, chamados a assumir um tom “clara-mente” moderno. De facto, é fácil detectar problemas e necessidades que emergem nos tempos recentes e convidam a uma mudança de atitudes. São hoje muitos os que reconhecem que uma forma de vida mais pobre, que —————

2 H. RICHARD NIEBUHR, Christ and Culture, Harper & Row, New York 1951; HANS FREI, Types of Christian Theology, Yale Univ., Pr., New Haven-Londen 1992.

19

renuncia às pretensões do carreirismo e do êxito, simplifica muito a existên-cia e, em consequência, a tornam mais serena e bela. O programa que Schu-macher propõe há vinte e cinco anos no seu livro Small is beautiful (O pequeno é formoso) constitui um dos exemplos mais claros3. O livro recen-temente reeditado no contexto da sensibilidade da anti-globalização e dos imperativos de uma cultura que se move entre a alternativa e a integração na “grande matriz” cultural do nosso tempo, ainda tem actualidade.

Não é difícil vislumbrar as virtualidades que oferece esta “nova cultura” ou os “novos movimentos de protesto” para uma inculturação do programa franciscano de menoridade: numa sociedade que sofre de estresse, de acti-vismo, da competição, do desenvolvimento ilimitado, propõe-se uma via mais serena, simples e gratuita, um sentido de vida que favorece a comuni-cação, a abertura aos outros, o acolhimento desinteressado, a alegria das coi-sas pequenas, a proximidade aos irmãos e irmãs, entendidos não como con-correntes, mas como pessoas a quem podemos servir. Há muitos aspectos que podem ser aproveitados dentro de um programa genérico de “redução da complexidade” da existência pessoal e social, através de um estilo de vida “menor”: antes de tudo trata-se do fim duma colonização dos outros; uma proposta de libertação autêntica de muitas ânsias e desejos induzidos através de certos circuitos perversos como a publicidade e as mensagens dos media; uma proposta distante e crítica em relação a alguns aspectos da vida social que é melhor evitar; uma aproximação a culturas mais vigorosas e modelares; um espírito menos agressivo, mais pacífico, que sabe poupar energia e meios… Trata-se, em definitivo, de um “estilo de vida” que pode ser assu-mido também como programa de “vida quotidiano” de inspiração francis-cana4.

Não obstante tudo o que se disse anteriormente, devemos estar cons-cientes de que a proposta franciscana de menoridade apresenta ferfís mais duros e difíceis de “inculturar”. Um dos mais óbvios é a sua ligação con-substancial com a obediência: resulta que, no programa franciscano, e tam-bém evangélico, a menoridade exige a disposição para a obediência e o sacri-fício da própria vontade. Esta tradição espiritual põe-nos de sobreaviso con-tra a falsa menoridade de quem mantém uma posição íntima de auto--afirmação, mesmo sendo observante e virtuoso no resto. Neste ponto não chegamos a acordo: não é fácil estender pontes ou traçar zonas de intersecção neste tema com as culturas contemporâneas. Trata-se de uma espécie de —————

3 E. F. SCHUMACHER, Small is Beautiful: Economics as if People Mattered, Hartley & Marks 1999.

4 Um exemplo oferece o pequeno ensaio de J. A. MERINO, Filosofia da Vida, visão francis-cana, Ed. Franciscana, Braga, 2000.

20

“núcleo duro” da menoridade. O máximo que poderíamos afirmar é que o tópico franciscano da menoridade iria ao encontro de algumas inspirações da recente filosofia da “intersubjectividade” que faz uma proposta de radical passividade perante o “outro” (Levinas). Mas, certamente, um punhado de filósofos não fazem uma cultura. Pelo que conheço, não existe uma “cultura da obediência”, nem integrada nem alternativa, e conhecemos muitas “cultu-ras de desobediência”.

Perante esta realidade, não nos resta outra alternativa que experimentar a “estratégia B”, isto é, a que aponta o significado cultural a partir do con-traste ou da novidade. Nos últimos tempos foi o teólogo inglês e os seus seguidores da “radical Orthodoxy”, quem mais insistiu nesta via. Os autores citados consideram que a única forma que temos de reivindicar o sentido do anúncio cristão consiste em apresentá-lo como “estranho e inaudito”, de acordo com um dos seus livros: The Word Made Strange. Nesse mesmo sen-tido pode soar como algo estranho e novo o convite a assumir uma proposta de obediência e de disponibilidade para o outro5.

Mas há que ir mais além: também a outros níveis se propõe um con-fronto cultural quando se assume a sério o programa de menoridade: como renúncia, como espírito de serviço e de despojamento, como vontade de negação de si mesmo. A força da Kenosis, vinculada intimamente ao espírito de menoridade, como forma de vida que nasce da cruz, são ideias declarada-mente estranhas, quase por definição, à nossa cultura e até a toda e qualquer cultura. Tomada a séria, subverte a ordem das coisas que se apoia sobre um esquema de afirmação, não de negação. É difícil “negociar” estes aspectos do espírito franciscana e, definitivamente, do espírito evangélico, sobretudo quando se tem em conta a trama que compõe os modernos sistemas sociais, seus dinamismos e exigências, sua tendência geral de afirmação, e não a auto-negação e o esquecimento de si.

De qualquer forma devemos ser cautelosos ao considerar o contraste para não exagerar demasiado as coisas. A experiência vivida e a memória histórica, obrigam-nos a ser mais realistas ao propor e executar programas demasiado radicais. Convém reconhecer alguns limites a este respeito, pois o programa da menoridade, identificado com o da Kenosis e radicalizado, pode desembocar em posições exageradas e até impossíveis, típicas dos ideais fundamentalistas, sempre rejeitados pela Igreja. Não esqueçamos, pelo menos no princípio, que a Kenosis não é um suicídio, e que o esquecimento de si está em função de uma dinâmica que pode levar ao sentido oposto: a exaltação. Então não parece justa a pretensão de inculturar um ideal impossí-

————— 5 J. MILBANK, The Word made strange, Blackwell, Oxford, 1988.

21

vel e até pouco cristão. O aproveitamento duma dinâmica de confronto cultu-ral não pode ir além dum certo limite, é bom redordá-lo, para evitar equívo-cos ou propostas de projectos nada realistas.

Ao menos para nós católicos, a capacidade de diálogo com a razão e a cultura não é um acto secundário, antes pertence à verdade da mensagem evangélica, o que significa, por outras palavras, que as propostas da fé e seus modelos de vida não devem ser levados até ao absurdo.

Infelizmente há que registar, ao menos como inventário, algumas for-mas de inculturar a menoridade desenfocadas e negativas, especialmente quando acontecem exageros no sentido do que acabamos de assinalar: muitas vezes o ser menor identificou-se com a chamada ao anonimato, quase a um desaparecer do horizonte cultural e social, uma atitude de silêncio e timidez, que na realidade escondia a incapacidade de um compromisso mais sério e a falta de convicções fortes. Além disso, nos últimos tempos assistimos ao apa-recimento de tendências degenerativas da virtude da menoridade que se tra-duziu em formas de indiferença para o interior da comunidade e de comple-xos de superioridade para o exterior, atitudes concretas manifestadas por certos religiosos, especialmente entre os mais jovens. Assistimos a uma ten-dência, geralmente inconsciente, que partindo do princípio de se somos os últimos, também as nossas instituições e a nosso presença devem ser as pio-res: as nossas universidade, colégios, paróquias e missões sempre serão pio-res que as outras realidades eclesiais. Isto não é justo! É tempo de superar tais orientações para poder encarnar a menoridade de forma decidida, sem pôr em causa a sobrevivência do projecto franciscano.

Considero oportuno, neste contexto uma segunda advertência: há que evitar uma ingénua combinação dos dois modos de inculturar a menoridade acima descritos: como forma de solidariedade ou de protesto, e como obe-diência e submissão. Trata-se de duas semânticas opostas, de dois projectos diferentes e deveríamos ser conscientes disso. A via do protesto é a de rei-vindicação e de afirmação; a Kenosis é o caminho da renúncia e da negação de si mesmo. Provavelmente temos de escolher, mas não me parece que seja possível neste campo manter “o melhor dos dois mundos possíveis”: o da tradição moderna da reivindicação e o da tradição ascética cristã.

A vontade de pôr em prática o valor ou ideal da menoridade coloca outros problemas, especialmente na relação entre a pessoa e a instituição. Antes de tudo devemos ter presente que o problema é que deve ser nas apli-cações práticas que se pode verificar o alcance real do programa evangélico e não nas declarações ou nos documentos. A este respeito, tenho a impressão que o problema mais grave e que se arrasta desde as origens franciscanas, reside na dificuldade em combinar as exigências evangélicas com a sua radi-

22

calidade e as instituições com a seu realismo e pragmatismo. Já nas narrações das origens se percebem os sinais deste conflito e não é difícil e encontrar fragmentos nos Escritos e Legendas que manifestam como Francisco viveu uma forte tensão com os condicionalismos institucionais, as exigências da missão organizada e a estabilidade. Certamente que foi ele o primeiro que percebeu as dificuldades da inevitável dinâmica da institucionalização, como que o preço a pagar (segundo algumas leituras), para salvar e tornar opera-tivo a vários níveis a “experiência franciscana”.

É necessário recordar que as instituições têm vida própria, algo que se ignorou muitas vezes: o problema é se funcionam ou não e não se são “menores” ou “maiores”. As instituições requerem estabilidade, um certo nível de adesão e o reconhecimento de legitimidade; mas também necessitam estatutos, uma vida organizada, meios de contenção de e disciplina contra os que se servem delas, previsões para assegurar a sobrevivência e reduzir as margens de contingência e, por fim, devem situar-se dentro duma espessa rede de colaboração com outras instituições eclesiais e civis. Trata-se de algumas características que não casam bem com o “espírito de menoridade”.

O problema é bastante agudo e assume até formas de dramatismo; e deu ocasião a tentativas de solução teórica e prática. Tal problema pode ser for-mulado nos seguintes termos: como inculturar um ideal tão refractário e pouco realista em relação às exigências institucionais, isto é, contraprodu-cente e não operativo, quando se procura a eficácia e a missão? Temos algu-mas resposta: a fórmula da “hipocrisia organizada de Brunson”; a função da semântica respeito à instituição de Luhmann; a distinção entre os níveis pes-soal e institucional; a aplicação do modelo da “opção radical” de Stark, que inclui um cálculo total de vantagens, também de tipo transcendente; e a cria-ção de um âmbito cultural próprio de forma a valorizar as propostas cristãs.

1- A tese de Brunson é muito simples: toda a organização tem diversos

tipos de exigências. As principais são: de produção (também de valores sim-bólicos) e de legitimação6. Dado que a cada uma delas preside uma lógica peculiar, surge a miúdo uma disparidade nas estratégias da organização, que em geral se resolve pelo modo coerente: por um lado requer eficiência e bons níveis de produção; por outro espera-se que a organização projecte uma boa imagem num ambiente muitas vezes hostil e suspeitoso. A chamada “hipocri-sia”, não em sentido moral, mas técnico, surge quando a retórica que se ofe-rece vai em sentido oposto às práticas e decisões que se adoptam. A primeira serve para legitimar e justificar; a segunda para produzir a sério, para criar —————

6 N. BRUNSSON, The Organization of Hypocrisy: Talk, Decisions and Actions in Organiza-tions, John Willey, Chichester-New York, 1989.

23

valor. Parece que, ampliando muito a visão, todas as instituições se vêem afectadas por essa forma de divisão interior. Também a vida religiosa conhece certamente a diferença entre as declarações programáticas e as reali-zações concretas, especialmente porque o seu programa tende bastante ao maximalismo e à radicalidade (ao menos verbal), o que conduz a inevitáveis incoerências e rupturas quando se tem em conta as realizações concretas da vida consagrada.

Talvez seja este um dos motivos que explicam tantos desaires de gera-ções inteiras de franciscanos em relação às instituições, como também um certo saudosismo das origens com a sua frescura e espontaneidade sem com-plicações, um rasgo que anda associado a um certo “género narrativo” e a uma espécie de “mito das origens”, em contraste com a complexidade e aco-modações posteriores. Aceitar as instituições, a única via para a incultura-ção efectiva de um carisma, significa ter que fazer as contas aos dilemas e paradoxos acima descritos. Não obstante, uma coisa é assumir certos níveis imprescindíveis de tensão entre o discurso, por um lado, e as estratégias efectivas, por outro, sem abusar da dita tensão. A hipocrisia, neste caso, não é só uma inevitável situação de conflito interno, mas passa até a ser cinismo. Poderíamos aduzir alguns episódios da história antiga e recente das Ordens franciscanas como exemplo dessa deturpação. Todas as vicissitudes á volta da discussão sobre a pobreza no século XIV, às vezes pouco edificantes, constituem um caso de “simulação retórica e jurídica”. Em vez desta retórica havia de se ter enfrentado os problemas vindos das necessidades estruturais de uma organização religiosa de certas dimensões que pareciam contradizer a letra e o espírito da Regra franciscana.

De qualquer forma é sempre difícil evitar esta cisão. Recorre-se a uma retórica bela e ambiciosa sobre a menoridade, mas as instituições e as estru-turas aparecem aos olhos de muitos nas antípodas do que proclamam os documentos e as várias exortações.

As exigências realistas das instituições favorecem algumas formas de inserção e de presença que com o tempo se tornam cada vez mais estáveis e consistentes, seguindo uma espécie de “norma evolutiva”, que selecciona as estruturas melhor adaptadas. Não parece que nos últimos anos, apesar de muitas declarações de boas intenções, tenha diminuído a diferença e a tensão assinalada; ao contrário, muitos podem ter a impressão de que quanto mais se fala, por exemplo, de “opção preferencial pelos pobres”, como expressão de menoridade, mais se torna patente o contraste com as estruturas e meios que servem para realizar essas opções. Esta situação convida a um abordagem diferente do discurso ou das formas institucionais, um conflito que parece longe de estar solucionado.

24

2- Uma segunda visão do problema, serve-se das distinções propostas

por Niklas Luhmann na sua teoria dos sistemas sociais. Dos muitos pontos importantes, devemos reter dois: o que se refere à virtualidade das semânti-cas religiosas para abrir o espaço de comunicação, o que torna possível a experimentação e os câmbios, as variações e as novas selecções. Dá a impressão de que se não se der um certo desnível ou “salto” entre os discur-sos que interpretam a realidade e a realidade mesma, não haverá possibili-dade de progresso, nem se registará nenhum crescimento de marcos dos sis-temas sociais e menos ainda das realidades eclesiais. Por isso, a tensão entre o discurso e a instituição é necessária, e pode até ser criativa, na condição de que se abram os ditos espaços e se procure novas mutações e selecções7. Dá a impressão de que nos últimos anos se deram diversas mutações, embora poucas fossem seleccionadas e quase nenhuma chegou a “re-estabilizar” no sentido de dar origem a um novo marco institucional, ou ao que poderíamos chamar uma reforma. Tal percepção parece indicar um déficit nos processos de inculturação da menoridade franciscana em curso, um motivo que convida uma certa revisão, não só das experiências realizadas, mas também da semântica usada no discurso dos últimos anos.

A fecunda produção de Luhmann aconselha que aproveitemos outra das suas inspirações. O sociólogo alemão foi um dos que assinalou os aspectos positivos do carácter “contra-adaptativo” (maladaptative, counteradaptive) de muitas das formas religiosas no presente8. Com efeito, uma das claves que poderiam devolver significado a um sistema social em declínio, como é a religião, está precisamente na capacidade de aproveitar as margens do sis-tema social e, inclusive, subvertê-lo. Este processo acontece de várias for-mas: a nível cognitivo, porque a religião vive na sombra, ou melhor “da sombra”, que deixa cada forma de conhecer, com a necessária exclusão do “não-saber”, do desconhecido, mas que reclama um “nome” ou uma designa-ção; em segundo lugar, a nível sistémico, porque aproveita a contingência residual ou que nenhum outro sistema é capaz de aproveitar; e terceiro, a nível mais empírico, porque consegue integrar no sistema social grupos e povos marginais que não têm outra possibilidade de “comunicar em socie-dade”. A conclusão é que a religião como sistema social não pode deixar de ser uma forma “marginal” e “contra-adaptativa”, sobretudo alguns dos seus segmentos que acentuam, ainda mais, a dinâmica descrita. Tudo isto pode ter —————

7 N. LUHMANN, Die religion der geselschaft, Suhrkamp, frankfurt A. M. 200, pp. 244 ss., 270 s.; Organization und Enscheidung, Westdeutscher Vg., Opladen 200, p. 355.

8 N. LUHMANN, «Society, Meaning, religion – Based on Self-reference», in Sociological Analysis 46 (1985) 1.005-1020.

25

uma aplicação ao nosso nível: a menoridade pode representar um limite, tanto semântico como prático, dentro da necessária e positiva tensão religiosa com o espaço envolvente. Em termos menos abstractos, a forma franciscana de assumir a realidade evangélica e suas limitações institucionais, seria um marco debaixo do qual alguns rasgos de negatividade se podem transformar num discurso positivo, alcançar um significado social e, deste modo, tornar relevantes aquelas expressões de debilidade, de renúncia e sacrifício, que nenhum outro código social consegue apresentar como positivo, a não ser o “código cristão”. Talvez até seja precisamente o dito carácter paradoxal e contra-adaptativo, o que torna relevante o código religioso, e exige a mensa-gem evangélica9.

3- Um terceiro modo de enfrentar o problema, consiste em distinguir

claramente entre o nível familiar e pessoal. Trata-se de um recurso que nos é familiar, tem a sua história e apesar de tudo tem actualidade. De forma muito simples, exige-se aos indivíduos um certo estilo de vida e uma vocação à menoridade; mas essas mesmas condições não se estendem a outros níveis, às instituições, que são regidas por uma lógica bastante diversa. Os estudio-sos da “teoria das instituições e, sobretudo, os chamados “neo-instituciona-listas” levam anos advertindo sobre a particularidade destas formações sociais. Em primeiro lugar, não funciona a analogia entre a instituição e o indivíduo, uma vez que este último actua de forma mais ou menos razoável e previsível, com certa lógica. As instituições, por sua vez, distanciam-se, nas suas expressões, do esquema racional de actuação, podendo até parecer “irra-cionais”. As instituições, também as religiosas, têm uma vida mais prolon-gada, tornam-se rígidas para fazer frente às contingências e às emergências que se lhes apresentam; e tendem a ser auto-reprodutivas e a favorecer com-portamentos estandardizados, incluso quando deixam de ser “razoáveis”10. Em consequência, todo o processo de institucionalização deve aceitar algu-mas condições que impeçam que as opções práticas e os projectos idealistas encarnados pelos indivíduos, sejam projectados sobre a organização.

Já S. Francisco às vezes fazia de sociólogo, quando admoestava os seus frades sobre as consequências ligadas á possessão de bens e estruturas, que —————

9 Como exemplo: há pouco tempo um político de certo talante declarava que uma posição modesta e sem ambições quando se ocupam postos importantes só teria sentido “dentro da menta-lidade fracniscana”, certamente não no âmbito político.

10 J. G. MARCH, «Introduction: A Chronicle of Speculations About Decision-Making in Organizations», J. G. MARCH (ed.), Decisions and Organizations, BASIL BLACHWELL, Oxford--NewYork 1988, pp. 1-21; P. J. di MAGGIO-W. W. POWELL, «The Iron Cage Revisited: Institutio-nal Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields», en American Sociological Review 48 (1083) 147-160.

26

tinham de ser defendidas com armas ou com advogados. O realismo das gerações posteriores levou a uma maior flexibilidade e a uma aceitação das “regras do jogo”, muitas vezes em contraste com a lógica da menoridade, quando assumida num sentido radical.

Uma tentativa de resposta perante esta problemática que pode até pro-vocar desânimo, é a notória distinção entre exterioridade e interioridade, onde o que conta não são tanto as estruturas, mesmo que necessárias, mas a capacidade de interiorizar a mensagem evangélica ou os compromissos da vocação franciscana por parte dos irmãos. Aqui reside, segundo alguns, a verdadeira oportunidade para inculturar a menoridade e, em geral, o espírito franciscano. É aí que se deve pôr a ênfase, sustentam alguns autores, e deixar de lado as estruturas e os esquemas que se referem sobretudo á visibilidade e às formas externas. Não obstante a boa vontade, não parece que a “dita” via tenha dado mostras de eficácia, pelo menos até agora.

Esse modelo corre o risco de tender para formas puristas, analisadas há alguns anos pelo intelectual católico francês Jean Guitton que criticou a ten-dência de descuidar os aspectos da vida cristã que requerem um certo grau de “impureza” (como as instituições eclesiásticas, por exemplo); os puristas costumam ser adversos aos compromissos e negociações com aspectos da realidade ou mediações que a longo prazo não podem ser ignorados e que os leva a comportamentos insustentáveis11. O outro rasgo, consiste em sacrificar a dimensão da “visibilidade” da vida religiosa, que requer muitas vezes mediações institucionais. Se se acentua a dimensão pessoal à custa da insti-tuição, provoca-se um déficit que recai sobre as possibilidades reais da inculturação, uma dinâmica que não pode ficar confinada aos limites da pura interioridade. As consequências da dita aposta podem observar-se nas esta-tísticas das identidades franciscanas nas últimas décadas, uma constatação que convida a reflectir sobre as apostas institucionais que estamos chamados a realizar, o sobre a revisão dos marcos institucionais que arrastamos12.

4- Outra via a percorrer é a que serve de axioma á “opção racional”.

Segundo alguns sociólogos como Rodny Stark e Roger Finke, que estudaram de perto muitas instituições religiosos, o problema reside mais em identificar o quadro racional que guia a opção religiosa, seja por parte dos indivíduos (a

————— 11 J. GUITTON, Lo impuro, EDB, Madrid, 19992. 12 Parece que em muitos casos o marco institucional em que se move a vida consagrada é o

que se arrasta desde os meados do século XIX, no período da restauração e da implantação de muitas fundações; esse marco deixou de ser operativo e de ajustar-se às exigências do ambiente actual. Trata-se de algo que requer aprofundamento.

27

parte da procura), como das organizações religiosas (a parte da oferta)13. Dita característica participa dos rasgos comuns a toda a forma racional: cálculo de vantagens e ganhos, poupança de custos, possibilidade de modificar as opções, necessidade de negociar… O específico da racionalidade religiosa é a análise de um valor simbólico, isto é, inacessível, gerido pelo “sector reli-gioso”, e que podia ser identificado com os “bens transcendentes” e “esca-tológicos”. Sem embargo está bastante claro que na administração de tais “bens” se entrecruzam interesses que têm que ver com outros bens de carác-ter material e afectivo. A questão é como pode propôr-se uma instituição religiosa e a sua inerente oferta, no contexto de constante negociação. No nosso caso, e baixando da teoria à aplicação prática, a coisa parece bastante clara: se a proposta que as Ordens franciscanas oferecem consegue sublinhar o seu valor específico religioso, podendo compensar os sacrifícios e as renúncias a outro tipo de valores, então a instituição pode justificar também suas estruturas, materialidade, limitações várias e incluso os paradoxos que referimos. Ora, tal estratégia requer que se acentuem alguns aspectos, como por exemplo a clara, mesmo que paradoxal, superioridade da opção pela menoridade, no que se pode chamar uma espécie de “transferência semân-tica”: logo que é percebido como menor e desprezado no código mundano (como dizia S. Francisco em seu testamento), torna-se grande no código da transcendência e do Reino de Deus.

A problemática nesta perspectiva agora assumida, anda à volta da des-valorização que mesmo os religiosos fizeram dos bens que ofereciam, preci-samente em nome duma melhor inculturação. A teria da “opção racional” indica uma via diferente, a de valorizar as próprias opções no código que lhe é mais próprio: o da transcendência. Se, pelo contrário, se tenta ser menores em tudo, também na qualidade do próprio seguimento evangélico, compa-rando com outras opções cristãs e humanas, então termina-se num enredo de situações absurdas e auto-destrutivas, como ocorre, por exemplo, ao perder o sentido da excelência e especificidade da vida consagrada em relação a outros caminhos de vida cristãs, sem deixar de exigir renúncias comparati-vamente muito maiores. Só ao distinguir e reivindicar o valor das opções evangélicas, se pode proceder a uma verdadeira inculturação das mesmas. A instituição pode jogar um papel importante a este respeito: como mostrou a contribuição de Giuseppe Buffon, 14 essa pode “institucionalizar” certos valo-res, tornando-os significativos e visíveis, e comunicando a seus membros um —————

13 R. STARK-R. FINKE, Acts of Faith: Explaining the Human Side of Religion, Univ. of California Pr., Berkley-Los Angeles-Londem, 2000.

14 G. BUFFON, «Speculum sumus…», publicado em Selecciones de Franciscanismo 97, (2004) 63-100.

28

sentido de excelência. A semântica criada noutros tempos à volta da pobreza, qualificada com um recurso a superlativos, como “altíssima” e “santíssima”, é um indício da capacidade de oferecer um código de excelência em ordem a motivar e animar aqueles que devem realizar opções evangélicas difíceis e perseverar nas mesmas.

5- Por último, é bom recordar um princípio que deve presidir a relações

entre oferta religiosa e contexto cultural: uma boa inculturação não implica que a fé cristã ou as opções de vida evangélica sejam considerados como meras “variáveis dependentes” dentro dum esquema em que o ambiente cul-tural assume o carácter de uma constante que determina todo o resto. Uma visão desse tipo é muito parcial; demonstrou-se, desde muitos pontos de vista, a capacidade de elementos singulares ou de determinado sistema, pode-rem mudar as condições do próprio ambiente, de “subverter seu contexto”. A menoridade não se inculturaliza só pela sua habilidade em se adequar a certas condições ambientais ou pela sua capacidade de assumir novas categorias ou tendências, mas pela sua capacidade de influenciar o ambiente e de criar cultura, talvez “menor”, mas significativa. O desafio pode ser expresso nes-tes termos: em que medida se consegue criar um “capital simbólico” que sabe apreciar uma valor nas expressões da menoridade? Ou noutros termos: pode-se imaginar um “mundo possível” em que se inverta uma série de valo-res, mesmo dentro de uma determinada rede de instituições eclesiais?

As indicações dos teólogos da “Radical Orthodoxy” parecem úteis a este respeito, quando se trata de inverter o esquema cognitivo que domina o ambiente social inteiramente secularizado. Neste sentido há que descobrir o valor das instituições religiosas, como geradoras, através de instrumentos de formação e outros, de um marco cognitivo diverso, onde se afirma outra semântica, e onde a menoridade adquire um sentido pleno, porque a reali-dade é lida numa clave distinta do resto do mundo; e porque se gera um determinado imaginário colectivo, quiçá uma “contra-cultura”. Na verdade, essa “nova cultura” deve poder ser acolhida e compreendida dentro dos limites das instituições religiosas. Está aqui um desafio para a nossa geração: olhar a cultura que nos rodeia sem complexos; confrontá-la com uma cultura diversa, de forma a iludir aridez secularizante e de criar valor com a ajuda da graça.

Traduziu: Frei José António Correia Pereira

29

SANTA CLARA DE ASSIS (APONTAMENTOS DA SUA VIDA E OBRA)

Dr. Pedro José Martins (OFS)

31

SANTA CLARA DE ASSIS (APONTAMENTOS DA SUA VIDA E OBRA)

Apresentação Prévia: Não se pretende com estas linhas uma exposição exaustiva e cronoló-

gica da vida e obra de Santa Clara, mas tão somente breves apontamentos reflexivos da importância dessa mulher para o seu tempo e para os nossos dias.

Sendo cada um de nós fruto do ambiente familiar em que foi criado e da época em que nasceu, iniciamos estes apontamentos observando a conjuntura sócio política e religiosa em que Clara cresceu e se formou. Só após esse passo iremos tentar compreender um pouco a grandeza do seu testemunho e obra.

Ao longo destas páginas falar-se-á diversas vezes de Francisco de Assis. De estranhar seria o contrário, dado que não se pode compreender um sem o outro. Embora de estratos sociais diferentes, rapidamente compreenderam a geminação das suas vocações: servir o Senhor Deus Altíssimo, sem nada de próprio, em obediência e castidade.

Cada um, à sua maneira, foi por vezes considerado louco (1Co 1, 25; 1Co 3, 18-23), obstinado ou mesmo burro1 ao renunciar a uma vida cómoda e descontraída que lhe estava reservada pela família. Ela, porque nobre e no topo da pirâmide social de Assis, ele, porque filho der um grande comer-ciante da mesma cidade, poderiam ter tido uma vida desafogada. No entanto, e cada um à sua maneira, preferiram trocar uma segurança pré-estabelecida pela vocação de Abraão: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai, e vai para a terra que eu Te indicar” (Gn 12; 16).

Como toda a semente lançada em boa terra, Clara, pelo seu exemplo e heroicidade de vida, transformou-se em planta vigorosa que, por sua vez, germinou e deu muito fruto (Mt 13; 23). Por essa razão, e antes de uma sín-—————

1 Ver a Oração do Burro no Apêndice I.

32

tese final, terminar-se-ão estes Apontamentos com uma breve abordagem da expansão da Ordem das Senhoras Pobres, hoje Clarissas.

1. O Ambiente sócio político Clara de Offereduccio nasceu em Assis em 18 de Julho de 1193. Seus

pais, Favarone de Offereducio e Hortolana, pertenciam a uma poderosa família da aristocracia de Assis.

Era esta uma época em que começavam a adivinhar-se os ventos de mudança que iriam conduzir à ascensão económica da burguesia comercial. Em consequência desta conjuntura, a nobreza sentiu a necessidade de justifi-car a sua legitimidade, de fixar as suas origens em antigas e remotas linha-gens.

As primeiras casas em que tal tendência se começou a notar foram as casas reais, estas ainda na época carolíngia. Contudo, o fenómeno começou gradualmente a estender-se às outras casas nobres. Aliás, no século XII a concepção de família entre os nobres era primordialmente dinástica. Esfor-çando-se cada família em fazer remontar a sua linhagem masculina ao mais profundo da História.

Noutro contexto, assiste-se no século XII a um apogeu da vida rural no Ocidente. O campesinato livre2 é mais numerosos, e dispõe de parcelas de terra. No entanto, devido ao Regime de Sucessão essas vão sendo cada vez mais reduzidas. Nem sempre, porém, a melhoria do seu estatuto jurídico, é acompanhada de uma melhoria do seu estatuto económico.

Por seu lado, os grandes senhores fundiários vêem também os seus rendimentos mais reduzidos e as suas fortunas serem delapidadas. Onde não é conhecido o sistema de Morgadio, as partilhas sucessórias reduzem, quase até ao infinito, o património fundiário, e os actos de guerra, como as cruzadas e outras expedições militares, exigem a canalização de muito dinheiro para o seu financiamento. Como resultado desta situação verificam-se autênticas falências de fortunas da nobreza, que irão conduzir ao abandono das terras por falta de rentabilidade ou de meios para as manter. Quanto mais falidos, maior a necessidade de justificar o seu estatuto.

Voltando a nossa atenção para Assis, verificamos que, por esta altura, reinava na cidade forte sentimento comunitário ao nível dos diversos grupos sociais. Mesmo entre a nobreza existia como que uma organização, a con-serteria (grupo de nobres de um mesmo local) que se manifestava aos mais

————— 2 Os Servos da Gleba continuam com um estatuto muito mais duro, não podendo, entre

outras coisas abandonar a terra onde nasceram.

33

diversos níveis, principalmente quando estava em causa a defesa de interes-ses comuns.

No contexto político, por circunstâncias históricas particulares, desde há muitos anos que Assis alternava a sua lealdade entre o Papado e o Império Romano Germânico. Os Senhores nobres apoiavam ora um, ora outro, de acordo com as suas conveniências.

Em 1160, no Diploma de Pavia, o Imperador Frederico Barba Ruiva prometia a Assis o controle do Condado, não se podendo construir castelos ou fundar novas cidades sem o consentimento da primeira. Perante tal benesse, todos se unem à volta do monarca. Gradualmente, porém, os nobres começam a sentir-se lesados nos seus interesses pelos mercadores e artesãos, que pretendem transportar as suas mercadorias sem lhes pagarem portagem. Por seu lado, os Servos da Gleba começam a abandonar os campos em busca de melhor vida na cidade3.

Ao sentirem a perda do controle da situação, os nobres apelam para a intervenção do Imperador, então Henrique VI, que receando que se possa perder o controle nas Comunas, opta por auxiliar a nobreza. A situação torna--se cada vez mais tensa e adivinha-se a guerra civil.

Sempre atento aos acontecimentos, Inocêncio III propõe-se libertar Assis do jugo imperial. Para tal, bastava apenas que Assis aceitasse o seu poder. Em contrapartida, o Papa libertaria os habitantes da cidade de toda a obrigação de servidão.

O povo da cidade, ao ver posta em causa a sua autonomia, pelos senho-res mais fortes da Cristandade, rejeita tanto a opressão do Imperador como a sedução do Sumo Pontífice.

Rebenta a guerra civil que se pressentia, sendo recíproca a repressão entre nobres e burgueses.

Aos primeiros sinais de levantamento os nobres começam, numa pri-meira fase, por defender os seus bens. Porém, sentindo-se ameaçadas, algu-mas famílias aristocráticas, entre elas a de Clara, optam por procurar refúgio em Perúgia, cidade que cedo se põe ao lado dos novos refugiados exigindo a Assis o respeito pelos direitos dos nobres em fuga. O resultado desse ulti-mato foi a guerra entre as duas urbes.

Embora se possa pensar que nessa guerra está subjacente uma luta entre grupos sociais, a verdade é que essa situação foi, tão somente, um pretexto para que as duas rivais de longa data se defrontassem com ferocidade. A tudo isso assistiam o Papado e o Império, que se aproveitavam das situações con-junturais de acordo com as suas conveniências políticas. —————

3 Aqui, como noutros pontos da Europa os campos começam a ficar ao abandono por falta de mão de obra.

34

Os últimos anos da infância e a adolescência de Clara passam-se nesse ambiente de intolerância e ódio fratricida.

2. Nasce uma nova espiritualidade Ao mesmo tempo que esses acontecimentos se desenrolam, a vida espi-

ritual do Ocidente entra também em convulsão. Era a época dos grandes movimentos contestatários da Igreja do Ocidente: o tempo dos Valdenses, dos Cátaros, dos Humiliati, …

Porém, na sua História Occidentalis (História da Cristandade) um Bispo da época, Jacques de Vitry, afirma que há um grupo que representa, de facto, uma renovação e aponta para um real renascimento do modo de vida da Igreja Primitiva. Esse grupo, que tem à sua frente um tal Francisco, oriundo de Assis, é conhecido por Irmãos Menores. Este prelado chega mesmo a designá-los por “novos atletas” que, com a autenticidade do seu modo de vida, pretendiam seguir no encalço de Jesus. A imitação dos santos fora substituída pela imitação de Cristo.4

Ao contrário dos grupos heréticos acima citados, esses homens não pretendiam reformar e contestar a Igreja, mas reformarem-se a si próprios, iniciando um novo estilo de vida. A ninguém criticavam, a ninguém aponta-vam. Viviam, sim, como profetas da paz, da reconciliação e da fraternidade.

Não obstante esta realidade, um cónego alemão da época, Buschard de Uperg, relaciona os movimentos franciscano e dominicano com o estilo de vida dos Valdenses e dos Humiliati. Posição semelhante assumiam alguns membros da Cúria Romana e da hierarquia, mas, independentemente dessas opiniões e receios, as duas Ordens conseguiriam ocupar o seu lugar no seio da Igreja.

De facto, a novidade trazida por Francisco de Assis e companheiros, como por Domingos de Gusmão e seus irmãos, foi o propósito de quererem viver o Evangelho em santa simplicidade, humildade e pobreza, mantendo-se dentro da obediência à hierarquia e à doutrina da Igreja.

O gradual reconhecimento da heroicidade do modo de vida de Francisco de Assis e seus irmãos irá ter, em conjunção com toda a educação que rece-bera, profundas implicações no futuro de Clara de Offereduccio.

————— 4 Aos Franciscanos juntar-se-ão os Dominicanos nesse esforço de profunda purificação da

vida cristã.

35

3. A Educação de Clara Hortolana, mãe de Clara, mulher impregnada de caridade pelo próximo

e extremamente devota, cedo conseguiu transmitir à filha um amor profundo a Deus e aos mais desfavorecidos, não sendo assim de estranhar que bastante cedo Clara começasse a ver o rosto de Cristo nos indigentes, a quem muitas vezes, com as suas aias, dava esmola e comida.

Como nobre que era, é bem possível que Clara tomasse contacto com a etiqueta própria do seu estatuto social, numa espécie de gineceu em que ela, e outras crianças e adolescentes, eram educadas por senhoras da mesma con-dição social. Aí, não só terá estabelecido contacto com aquilo que uma jovem nobre deveria saber, como terá também ouvido os velhos mitos nórdicos, as histórias de Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda, a Canção de Rolando, … Também junto da família, e em festas palacianas, terá tomado contacto com as Canções de Gesta e de Amor que Jograis e Trovadores espalhavam então por toda a Europa.

Em suma, Clara viveu a infância e adolescência dentro da mística da cavalaria e no ambiente do Amor cortês. O seu destino era o casamento e para esse desenlace estava a ser preparada. Tal situação, era aliás, perfeita-mente normal numa época em que muitas vezes os compromissos matrimo-niais entre as famílias nobres eram decididos na infância e na tenra adoles-cência5.

Dado que nos deixou textos escritos pelo seu punho, sabemos que Clara aprendeu a escrever. Tal situação não era muito comum na época, mas temos notícias de que havia algumas nobres alfabetizadas. Onde terá aprendido a escrever? Não o sabemos. No entanto, não é de excluir a hipótese de que tenha frequentado algum mosteiro feminino. Nessa época tal situação acon-tecia por vezes com algumas jovens da nobreza, ainda que o seu destino não fosse a vida religiosa.

Em suma, em todo o processo educativo de Clara houve a preocupação de lhe incutir o autodomínio, a verticalidade, a delicadeza, … Todas os prin-cípios que lhe foram sendo transmitidos irão fazer de Clara uma mulher de convicções e de certezas, que lhe iriam ser bastante úteis num futuro pró-ximo.

————— 5 Na época feudal era comum que as raparigas atingissem a maioridade aos 12 anos e os

rapazes aos 14, embora em algumas regiões da Europa as raparigas tornavam-se maiores aos 15 e os rapazes aos 18.

36

4. Clara e Francisco: Origens diferentes, um mesmo propósito Numa primeira abordagem, o contacto entre estes dois filhos de Assis

era, no mínimo, inconcebível. Pertencendo a grupos sociais diferentes e antagónicos, eram ínfimas as possibilidades de travarem conhecimento, quanto mais de dialogarem.

Clara nascera no seio de uma das mais prestigiadas famílias da aristo-cracia e Francisco pertencia à burguesia, grupo social que queria fazer valer os seus direitos perante a nobreza. No entanto, a comunhão, que vão desco-brindo existir entre eles, o amor que têm a Deus e aos irmãos, vai destiná-los a caminharem lado a lado em direcção ao mesmo objectivo: Servir a Deus e ao próximo, cumprindo na íntegra a mensagem e os preceitos presentes nos Santos Evangelhos.

As primeiras notícias que Clara teve de Francisco foram os rumores resultantes do escândalo dos seus “desvarios” por altura da conversão. Des-baratar assim a fortuna paterna para dar o dinheiro aos mais pobres, não era, de facto, algo muito comum.

Após as troças que o chamavam de “louco”, Clara ouve o que se passou, perante D. Guido, Bispo de Assis e de toda a população da cidade. Por certo, os relatos dos acontecimentos daquele dia, terão feito com que pensasse mais profundamente nos gestos de Francisco. Um homem que, lucidamente, renuncia à fortuna paterna perante o bispo, próprio pai e uma multidão de curiosos, chegando ao ponto de se despojar da própria roupa, não pode ser um transtornado ou um demente. Algo a faz intuir que aquele homem, que até havia pouco tempo era conhecido como rei da juventude de Assis, tivera uma experiência religiosa fortíssima, que o fizera descobrir Cristo na radica-lidade da observância do Evangelho.

Passados três anos da fuga para Perúgia, Clara e sua família tinham já por esse tempo regressado do exílio. Não obstante, o coração de Clara conti-nuava sensível ao sofrimento dos mais pobres, continuando aquilo que já fazia, saindo com as suas aias, distribuindo-lhes esmolas e alimentos.

Mais do que nunca se falava em casamento, a sua idade a isso a obri-gava. Porém, Clara começava a sentir-se comprometida com um Noivo muito especial. Assim, mal o assunto era abordado fazia-se desentendida ou desviava o rumo da conversa.

Ela sente que quer servir a Deus na radicalidade, mas como? Aquele Francisco poderia ajudá-la? Mas como chegar até ele para se abrir e aconse-lhar?… A ansiedade começa a trabalhar no seu peito e, prudentemente

37

começa por ouvir as pregações do Jogral de Deus6. A este, por seu lado, começam também a chegar rumores da caridade de Clara, levando-o a pres-sentir ter naquela jovem uma alma gémea.

Dando mostras das suas convicções e coragem, Clara resolve ultrapassar todas as convenções e barreiras sócio culturais e ousa encontrar-se com Fran-cisco. Mais do que nunca, começa a sentir que dialogar com aquele homem, com o qual comunga nos mais altos ideais, era a chave para descobrir o seu caminho para se entregar a Cristo.

Com o decorrer dos encontros, essa consciência vai-se consolidando. Quer um quer outro desejam servir a Deus na mesma radicalidade. Ambos se sentem irmanados no seu amor por Cristo pobre e crucificado que se revela na figura do pobre e do que sofre. Em suma, começam a ter consciência de que um é o reflexo e o complemento do outro. Esses encontros, sempre na companhia de uma amiga, por parte de Clara, e de alguns irmãos, por parte de Francisco, vão-se tornando cada vez mais frequentes.

Desses encontros vai nascendo um respeito recíproco, de que Clara, anos mais tarde, no seu Testamento dará testemunho, com as seguintes pala-vras:

“O Filho de Deus fez-se nosso caminho, (cf. Jo 14, 16), como nos mos-

trou e ensinou pela palavra e pelo exemplo o nosso bem-aventurado Pai S. Francisco, seu apaixonado imitador”7

5. Uma opção radical O fogo que ardia em Clara, e que a impelia a viver o Evangelho à

maneira de Francisco e seus companheiros, não podia ser extinto. Assim, e fazendo vir ao de cima a coragem e a determinação em que tinha sido for-mada, dá o grande passo.

Era a noite de 28 para 29 de Março de 12128. O Domingo de Ramos terminava as suas horas e Clara, de acordo com o que já tinha sido combi-nado com Francisco, saiu, acompanhada de uma amiga, pela porta dos mor-tos do castelo. Embrenhando-se pelo mato, dirige-se para a igrejinha de Santa Maria dos Anjos. Clara tinha optado, por fim, em se entregar a Deus.

Vestida como que uma noiva, apresenta-se perante Francisco. Este faz com que se lhe vista o burel e que se lhe cinja a corda, cortando-lhe os cabe-los de seguida. A partir daquela noite Clara irá, por opção, viver sem nada de —————

6 Nesta altura Francisco já vivia em comunidade com os primeiros companheiros. 7 In Testamento de Santa Clara § 5 – “Fontes Franciscanas II – Santa Clara”, p. 69. 8 Cf. Quadro Cronológico Comparado, Fontes Franciscanas II, p.486.

38

próprio e em castidade. Após a cerimónia, e ainda nessa noite, é encami-nhada para o Mosteiro de S. Paulo, onde é recolhida pelas beneditinas que aí viviam.

Clara tomara o seu destino nas mãos e tinha consciência desse facto. Por essa razão, quando alguns familiares, liderados pelo seu tio Monaldo, inva-dem o Mosteiro, para a devolver à casa paterna, ela enfrenta-os como um cavaleiro cercado e prestes a ser capturado. Mas… em vez de se entregar ou tentar fugir… enfrenta-os!

O que aconteceu na manhã do dia 29 de Março de 1212 foi um acto de heroísmo.

Os seus parentes nem se importaram de violar o direito de asilo do Mos-teiro, tal era a vontade de demover Clara dos seus propósitos. Ela, no entanto, agarrou-se à toalha do altar como que empunhando um escudo e arrancou o toucado como que desembainhando uma espada… Só perante a visão da cabeça rapada, símbolo da consagração a Deus, é que os seus fami-liares se quedaram e desistiram dos seus intentos.

O sangue dos Offreduccio fluía-lhe, de facto nas veias, e os seus dezoito anos testemunhavam uma maturidade bem consolidada.9

Depois de ter permanecido algum tempo no Mosteiro de S. Paulo, encontra abrigo no Mosteiro de Santo Angelo de Panzo. Só mais tarde se irá radicar na Igreja de S. Damião, o primeiro Mosteiro das Senhoras Pobres, onde a sua Fraternidade se irá consolidar. A forma de vida consagrada de Clara junta-se então a umas outras tantas que já floresciam no centro da Europa (por exemplo as Beguinas).

A Clara irão mais tarde juntar-se as suas irmãs Inês10 e Beatriz, sua mãe Hortolana, e as suas primas Balvina e Amada11.

A partir de S. Damião a novidade de Clara começará a estender as suas vergônteas.

————— 9 Clara não tinha rejeitado o matrimónio nem fugido dos seus compromissos sociais. O seu

passo foi antes de mais um acto de coragem de quem contornou um obstáculo que a impedia de se entregar a Cristo com radicalidade. Ao trilhar o caminho que escolhera preferiu o papel de Maria ao de Marta (Lc 10, 38-42), nunca tendo sido uma mulher que caísse na tentação de se instalar. Olhou-se sempre, ao longo da vida, como uma peregrina.

10 Cujo nome de Baptismo seria Catarina. 11 Fora de S. Damião irão destacar-se Isabel de França, Inês de Praga, com quem irá manter

um fecundo contacto epistolar, Isabel de Cracóvia, entre outras.

39

6. A luta por uma Regra e pela defesa da pobreza entre as Irmãs De início, a Comunidade de S. Damião não seguiu qualquer Regra

canonicamente reconhecida pela Igreja, mas sim uma Fórmula Vitae, que lhes fora dada por S. Francisco.

Quando, em 1215, o Concílio de Latrão impõe a todas as novas Ordens e Movimentos Religiosos a obrigação de aceitar as Regras já existentes (S. Bento e Santo Agostinho)12, começam as preocupações de Clara que ansiava dotar a sua Comunidade de uma Regra de Vida original e que testemunhasse a sua opção radical por Cristo. Clara, como mulher inteligente que era, sabia que tinha de agir com prudência. Os passos a dar, para que o seu anseio se concretizasse, teriam de ser seguros e firmes.

Assim, e numa altura, que, quando eram pedidos privilégios à Santa Sé, eram sempre no sentido de aumentar o poder e a posse de bens, Clara vai sur-preender a Cúria Romana e o Papa ao pedir-lhes um Privilégio muito espe-cial. Esse Privilégio deveria permitir-lhes, a ela e às Irmãs, renunciar a qual-quer tipo de propriedade e cumprirem o mais rigoroso Voto de Pobreza. Esta ousadia cai com surpresa e perplexidade entre os cardeais e Inocêncio III. Estupefacto, o Papa satisfaz o pedido, não sem antes impor algumas condi-ções.

É bem possível que, numa primeira fase, a clausura não fosse muito rigorosa. As Irmãs, por certo, desejariam trabalhar junto dos mais desfavore-cidos, dando-lhes assistência em hospícios. No entanto, se Clara e as Irmãs desejassem, de facto, esse Privilégio teriam de ceder pelo menos em dois aspectos:

1º – A clausura teria de ser rigorosa; 2º – Clara teria de aceitar o cargo de Abadessa do Mosteiro de S.

Damião13. O facto é que Inocêncio III concedeu a Clara o Privilegium Paupertatis,

que permitia às Irmãs viverem sem rendimentos certos. Tal situação era de facto excepcional, dado que, na época, normal seria que os Mosteiros de Irmãs tivessem rendimentos certos para fins de subsistência.

A situação, embora a possível, não desagradou de todo a Clara, no sen-tido em que esse Privilégio garantia, em certa medida, que ela e as Irmãs não seriam obrigadas a observar uma Regra pré existente, para além de lhe abrir uma porta para lutar por uma Regra de Vida própria. Mas a luta, de facto, ainda estava no seu início.

————— 12 Aí a Regra de S. Francisco era uma excepção. 13 Sabemos que só com a persistência de Francisco é que Clara aceitou o cargo.

40

Em 1219 o cardeal Hugolino deu às Irmãs de S. Damião uma Regra de Vida. Esse texto perdeu-se e uma versão revista do mesmo seria editada quando esse cardeal foi elevado à Cátedra de Pedro com o nome de Gregório IX.

A Regra Hugolina, no entanto, vai desagradar a Clara, que a rejeita. As influências beneditinas e cirtersciences nela presentes, mais a grande ênfase dada à clausura e à propriedade comunitária, são, na perspectiva da Guardiã de S. Damião, uma ameaça real à leitura do estilo vida que desejava para si e suas Irmãs.

A partir desse momento, Clara irá de novo mostrar a fibra e a tenacidade herdada da educação recebida. Tendo a certeza de que a sua vocação estava a ser posta em causa, vai mostrar de novo que o sangue paterno lhe corre nas veias e portar-se-á como uma “guerreira”.

Anos mais tarde, em 1247, Inocêncio IV escreverá uma nova Regra para as Senhoras Pobres. Nela, torna-as membros da Espiritualidade e da Família Franciscana. Contudo, essa Regra continua a enfermar dos defeitos da Regra anterior: continua a permitir rendimentos e possessões em comum o que, na convicção de Clara, matava o seu propósito de vida e punha em causa o Pri-vilégio da Pobreza. Assim, e num gesto temerário, ou mesmo revolucioná-rio14, Clara irá ousar, a partir de 1247, escrever uma Regra de Vida para si e suas Irmãs. Para tal vai inspirar-se na Fórmula Vitae, recebida de Francisco e na Regra da Ordem dos Frades Menores.

Fazendo justiça à sua simplicidade Clara nunca se apresenta nesse texto como Fundadora da nova Ordem dando a paternidade da mesma a Francisco. Ela é, tão somente, a primogénita do Poverello.

A luta pelo reconhecimento da sua Regra vai ser titânica e prolongar-se--á por longos anos. De tal forma isto é uma realidade que só na véspera da sua morte lhe chega às mãos a Bula de Aprovação da sua Regra de Vida.

Finalmente, Inocêncio IV confirmara a versão de Clara do Privilegium Paupertatis e a principal característica da sua Regra: O Voto da mais estrita pobreza apostólica.

Ao ter o texto da Bula nas mãos, Clara beijou-o e respirou de alívio. 7. A Espiritualidade de Clara A plântula15 de Francisco – Desde muito cedo Clara se considerou a si

própria como a plântula de Francisco. Este fora o agricultor, que lançara a —————

14 Se tivermos em linha de conta as decisões do Concílio de Latrão. 15 Embrião vegetal contido na semente, que começa a desenvolver-se pela geminação;

Pequena planta nascida há pouco. (Dicionário da Língua Portuguesa, 6ª Edição, Porto Editora).

41

semente que demonstrava a possibilidade de se poder viver conforme os Evangelhos, e Clara um pequenino rebento que dela saíra.

Contudo, esse embrião não era pacífico. Ele reage para ser planta, esfor-çando por romper a terra contra as dificuldades que o impediam de ver a luz do sol: veja-se como enfrentou o seu tio Monaldo e restante família no Mos-teiro de S. Paulo; veja-se a dificuldade que Francisco teve para que ela acei-tasse ser Abadessa de S. Damião; veja-se como os Sumo Pontífices se verga-ram à vontade indómita de Clara, até que o Privilégio da Pobreza fosse aceite e a sua Regra de Vida aprovada; …

Qual o segredo de Clara? Donde lhe vem esta força? A resposta é só uma:

Clara centrou a vida em Cristo Jesus. Ele foi o seu único amor. Fran-cisco somente lhe apontou o caminho para materializar esse amor.

No século XIX, Domingos Sávio, dialogando com D. Bosco, afirmou que ele era um pedaço de pano e o sacerdote o alfaiate. De seguida, pediu-lhe que tomasse aquele pano e fizesse com ele o mais belo fato para o mais digno dos Senhores: O Senhor Deus Altíssimo16. Não será atrevimento pen-sar que, possivelmente, na mente de Clara se terá passado algo de semelhante em relação a Francisco.

O que é certo é que entre os dois existia uma tal complementaridade, uma tal simbiose, que a imagem mais próxima que se pode ter entre estes dois filhos de Assis é a do líquen: Assim como neste a humidade do fungo alimenta a alga, e os nutrientes desta alimentam o primeiro, assim a vida activa de Francisco e dos Irmãos tonificava a oração de Clara e das suas Senhoras Pobres. Por seu lado, através da oração e contemplação, Clara e suas Irmãs vivificavam a vida apostólica activa de Francisco e dos seus Irmãos Menores.

Tendo como referência os Evangelhos podemos também afirmar que estas duas formas de vida se completavam com a mesma harmonia que exis-tia entre Marta e Maria (Lc 10, 38-42).

Em suma, entre Clara e Francisco existia “uma indissolúvel comunhão carismática, uma real e harmoniosa complementaridade”17 que se via nos mais pequenos pormenores. Na verdade Francisco, sempre que angustiado ou duvidoso no rumo de vida a seguir, procurava em S. Damião, junto de Clara, o conforto espiritual e o esclarecimento que necessitava através da sua ora-ção, com nos é narrado no capítulo XVI das Florinhas deste filho de Assis.

—————

16 Cf. p. 6 do Boletim Salesiano, nº 484, Maio/Junho de 2004. 17 CARBALLO, Fr. José Rodriguez (OFM), Clara de Asís y de hoy – un corazón seducido y

conquistado por el Señor, Ocasión de la Carta, § 4.

42

A mulher Eucarística – Do ponto de vista emocional, Clara era uma mulher profundamente equilibrada. Sabia perfeitamente como glorificar o seu Amor e como ser uma Mãe para suas Irmãs. E a força desse equilíbrio radicava na Eucaristia. Clara era, de facto, uma mulher eucarística.

Toda a sua acção (confecção de paramentos litúrgicos;…) como toda a sua oração, estavam centradas na glorificação do Santíssimo Sacramento. Nele via de facto o Deus verdadeiro, que, tendo incarnado numa virgem, se deixou aniquilar na cruz, e que, pela Sua ressurreição, nos salvou da morte e do pecado.

O tesouro que Clara descobriu não o guardou só para si. Estimulava também as Irmãs a aproximarem-se do Santíssimo Sacramento, não só em adoração e oração como também na comunhão. Exortava-as mesmo a comungar ao menos sete vezes por ano.

Outro testemunho de uma espiritualidade radicada no amor ao Santís-simo Sacramento é, por exemplo, a altura em que S. Damião estava em risco de ser invadido por mercenários muçulmanos.

Naquele tempo, Frederico II tinha-se incompatibilizado com o Papa no tocante ao controle de Assis. Entre as suas tropas estavam seguidores do Islão, que chegaram mesmo a pôr em risco a integridade de S. Damião e das Senhoras que lá viviam. Perante o pânico que se tinha instalado entre as Irmãs, Clara pede que o Santíssimo Sacramento seja exposto. Rezando diante dele com toda a confiança, consegue, na verdade, que o Mosteiro e as Irmãs não sejam molestados. De facto, e sem razão que o justificasse, os muçulma-nos retiraram-se.

A dimensão Contemplativa – Clara, como Francisco, ao fazer dos

Santos Evangelhos a única Regra de Vida, foi descobrindo na sua vida o primado de Deus e da Sua Palavra. Essa descoberta fez com que “a dimen-são contemplativa se tornasse a primeira e fundamental expressão do seguimento de Cristo”18.

A dimensão contemplativa de Clara traduzia-se numa entrega total e absoluta a Cristo, numa identificação tal que ela conseguiu intuir a gratui-dade do Mistério da Encarnação. Numa das suas cartas a Inês de Praga ela exclama: “Oh maravilhosa humildade! Oh admirável pobreza! O Rei dos anjos, o Senhor do Céu e da Terra (Mt 11, 25), reclinado num presépio!” 19

————— 18 CARBALLO, Fr. José Rodriguez (OFM), Clara de Asís y de hoy – un corazón seducido y

conquistado por el Señor, Dimensión contemplativa: “Transfórmate toda entera [todo entero], por la contemplación, en imagen de su divindad” (3CCl 13), § 1.

19 4CCl, 20-21 in Escritos de São Francisco e Santa Clara de Assis, Editorial Franciscana, p. 287

43

No entanto, para Clara, a Contemplação não era uma volúpia intelectual, era uma vivência que implicava toda a sua pessoa, em todas as dimensões: espiritual, intelectual, e afectiva. Aquele cujo Amor nos encontra (4CCl, 11) é absoluto. Por isso a sua alma e coração estavam perpetuamente voltados para Deus, havendo uma progressiva identificação esponsal com o Amado. E essa identificação era de tal forma intensa que nem as paredes da carne seriam obstáculo. Só Cristo deveria transparecer (Gl 3, 20).

A dimensão Fraternal – Uma outra característica da espiritualidade de

Clara foi o facto de ter uma profunda noção de que, perante Deus, não há distinção entre as pessoas. Assim, e apesar de noutras famílias religiosas sabermos que havia distinções baseadas nas origens sociais dos seus mem-bros, na Fraternidade de Clara não era levada em linha de conta esse aspecto porque, para Deus, todos somos iguais. Ela própria se dispunha ao serviço das que estavam doentes, fazendo questão de cuidar com maior carinho daquelas que apresentassem enfermidades mais repelentes, lavando e tra-tando-lhes as feridas, para além de fazer os despejos. Mesmo às Irmãs que pediam esmola no exterior, muitas vezes lhes lavava e beijava os pés depois de regressarem ao Mosteiro.

Clara tinha uma profunda noção de que Deus, em muitas circunstâncias, poderia revelar-se no que é menor (Mt 12, 25b-26). Assim, e mais uma vez, ao contrário do que acontecia em muitas Ordens Monásticas, obrigava a que, no Capítulo Conventual, a Abadessa ouvisse todas as Irmãs sem excepção.

8. A penitência e a doença em Clara: Um dinamismo evangélico Clara, tal como Francisco, não se importava de vestir, com alegria e dis-

ponibilidade, a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo todos os dias (Mt. 16, 24b). Essa atitude era materializada numa vida de penitência, que testemu-nhava a sua cooperação com a salvação de seus irmãos e a sua entrega apai-xonada a Jesus pobre e crucificado:

• O seu hábito era grosseiro, e por baixo dele, à guisa de cilício inte-gral, envergava como que uma veste de pele de porco, ficando as cerdas em contacto com a sua própria pele;

• Muitas vezes, um cilício, feito de crinas de cavalo, era apertado com força em torno dos seus rins;

• Andava sempre descalça; • O jejum era constante; • A sua cama era composta de simples fardos de palha ou feixes de

vimes;

44

• Usava um madeiro como travesseiro; • As vigílias eram quase contínuas; • …20 Não será de estranhar que tanta mortificação lhe prejudicasse a saúde,

mas nunca abandonou esse propósito, mesmo quando adoeceu gravemente21. O corpo, demasiado castigado pelas mortificações e penitências, cedeu irre-versivelmente à doença. Foram a partir daí vinte e oito a vinte e nove anos de sofrimento, até à hora da sua morte.

Apesar da situação em que se encontrava, Clara mostrava-se perma-nentemente tranquila e satisfeita. Nos seus últimos dezassete dias de vida, o seu estado de fraqueza era tal que já não conseguia tomar qualquer alimento. Não obstante, mantinha-se senhora de uma lucidez invejável. Até ao momento de falecer, continuaria a fazer transparecer a tenacidade e verticali-dade que sempre a caracterizaram.

Ao pressentirem que a morte de sua mãe espiritual estava próxima, as Irmãs, compadecidas, choravam-na com antecipada saudade. Perante tal realidade, Clara nunca deixou de as exortar a permanecerem fieis à sua voca-ção, recordando-lhes continuamente os benefícios recebidos da parte de Deus. E para que as suas filhas não caíssem em desânimo, Clara, ofereceu--lhes uma Benção, que estendeu às futuras Irmãs22.

9. A vinda da irmã morte Ao sentir por perto a irmã morte, Clara fez questão de se confessar por

temer não ter sido fiel no cumprimento de alguns pontos das promessas do Baptismo ou da sua Profissão Religiosa.

Perto da morte, teve junto de si, para além do seu confessor, Frei Rei-naldo, alguns dos primogénitos da Ordem dos Frades Menores: Frei Juní-pero, Frei Angelo, e Frei Leão, a ovelhinha de Deus. Entre eles houve diálo-gos repletos de palavras edificantes, acerca de Deus e do exemplo de S. Francisco.

Clara de Offereducio morreu, na companhia de algumas irmãs, aos ses-senta anos, quarenta e dois após os seus esponsais com Cristo. Era o dia 11 de Agosto de 1253.

————— 20 Esta austeridade não era imposta às Irmãs. Só no Capítulo III da Regra (8-11) se faz

referência ao jejum e mesmo assim com algumas situações de excepção (Cf. RCL, III, 8-11). 21 Só com muita persistência é que Francisco a convenceu dormir numa enxerga e só com a

imposição do Bispo de Assis, e a pressão do primeiro, é que começou a aliviar o rigoroso jejum. A partir daquela altura estava obrigada, ao menos, a comer onça e meia de pão por dia.

22 Ver Apêndice II.

45

A notícia da morte de Clara provocou grande consternação entre a população de Assis e todos, de todos os grupos sociais, ocorreram pronta-mente ao Mosteiro de S. Damião.

Com medo de que o corpo fosse roubado, para aproveitamento de relí-quias, o «Podestá» de Assis fá-lo guardar por soldados armados. As cerimó-nias fúnebres seriam no dia seguinte.

No dia das exéquias reina grande alvoroço. O papa Gregório IV estava presente e seria ele a presidir às exéquias.

O Vigário de Cristo manda que se cante o Ofício das Virgens. Por pru-dência o cardeal Reinaldo, não obstante ser o cardeal protector da Ordem, aconselha que se reze o dos Defuntos.

Após as cerimónias, e por comum acordo entre as autoridades religiosas e civis, o corpo de Clara é levado para a Igreja de S. Jorge, onde já tinha repousado o corpo de Francisco. Todos os que acompanhavam o cortejo estavam num estado de espírito confuso, entre a dor de terem perdido um ente querido, e a alegria de pressentirem que, a partir daquele momento, iriam ter junto de Deus alguém que intercedesse por eles.

Pouco tempo depois de os restos mortais de Clara terem sido sepultados na Igreja de S. Jorge, os cónegos de S. Rufino, a quem pertencia a Igreja, permitem que as Damas Pobres mudem para junto da sua mãe espiritual. Aí, pelo menos, estariam a salvo de eventuais assaltos e desacatos. As Irmãs assim fizeram, tendo-se transformado em Mosteiro o hospital que existia em anexo à Igreja.

10. O processo de Canonização Após o falecimento de Clara, a Igreja começou a sentir os frutos de qua-

renta e dois anos de Apostolado, silencioso e firme, dessa filha de Assis. A sua bondade e caridade haviam ficado na memória das Irmãs e do povo em geral, havendo a convicção generalizada que a primeira das Senhoras Pobres intercedia junto de Deus pelos que mais necessitavam.

Clara só não foi canonizada quase logo a seguir à sua morte porque o já supramencionado cardeal Reinaldo a tal desaconselhou Inocêncio IV. Seria mais prudente haver primeiro uma rigorosa averiguação dos seus méritos.

Entretanto, chegavam junto do Papa cada vez mais os rumores da fama de santidade de Clara de Assis e Inocêncio IV não podia continuar surdo. Através da Bula Gloriosus Dominus, de 18 de Outubro de 125323, encarrega

————— 23 Dois meses após a morte de Clara de Assis.

46

D. Bartolomeu, bispo de Espoleto, do início do Exame Jurídico da vida e obra desta filha da Igreja.

Após longa e rigorosa investigação, junto das Irmãs que a tinham conhecido e dos Irmãos Menores que com ela tinham contactado, a docu-mentação foi enviada ao papa Inocêncio IV que, entretanto, falecera. Caberá ao cardeal Reinaldo, então papa Alexandre IV, analisar em profundidade a documentação entregue. Clara será elevada aos altares pelo mesmo papa em 15 de Agosto de 1255 e na Bula de Canonização o mesmo chamar-lhe-á, entre outros louvores, princesa dos pobres e modelo dos penitentes.

11. O legado de Clara de Assis Se a fama de Clara já era grande antes do seu falecimento e posterior

canonização, após este último evento espalhar-se-á por todo o Ocidente. Aqui e ali, um pouco por todos os países europeus, começam a aumentar o número de Mosteiros das Senhoras Pobres, que se juntam aqueles que já existiam.24

Para além da Europa temos conhecimento de que nos finais do século XIII, havia um Mosteiro na Síria (Ptolomaida). As irmãs que aí viviam foram martirizadas em 1291 pelos muçulmanos, não sem antes se desfigurarem para não serem desonradas.

Mais tarde, em 1529, e fruto da conquista do México por Fernando Cortês, as Irmãs Clarissas já tinham dois Mosteiros nesse território. Aí, a sua principal missão foi dedicarem-se à educação das filhas dos invasores e mesmo dos nativos.

À medida que a Espanha se ia expandindo pelo mundo, os Mosteiros das filhas de Santa Clara iam sendo implantados. Há, por exemplo, notícias da presença de Clarissas nas Filipinas, pouco tempo depois dos espanhóis aí se instalarem.

Contudo, a memória da vida de Clara vai cristalizando no tempo e o entusiasmo, que existia entre as primeiras Irmãs vai perdendo o primitivo vigor. Tal como já tinha acontecido entre os Frades Menores, houve Irmãs que queriam permanecer numa maior fidelidade ao estilo de vida da sua fun-dadora e outras que desejavam organizar a Ordem de acordo com as caracte-rísticas do tempo em que viviam.

Segundo Frei Joaquim Capela25, em 1260 havia já entre as Senhoras Pobres a vigência de três Regras: A do cardeal Hugolino ou Gregoriana, —————

24 Temos notícias de alguns Mosteiros em Portugal, sendo o mais célebre o de Vila do Conde.

25 Cf. em Santa Clara, Editorial Franciscana, Braga, 1992, p. 166.

47

(retocada por duas vezes uma pelo papa Inocêncio IV e outra pelo papa Ale-xandre IV), a de Santa Clara (baseada na Fórmula Vitae e na Regra de S. Francisco) que foi confirmada pelo papa Inocêncio IV e a Regra de Long-chams, da autoria de S. Boaventura e aprovada em 1258 por Alexandre IV.

Para evitar uma confusão que poderia prejudicar a vivência das Irmãs, o cardeal protector da Ordem, João Caetano Orsini, com o acordo de S. Boa-ventura, redigiu umas novas Constituições. Estas, inspiradas na Regra de Gregório IX, autorizavam o uso de bens temporais e rendas. Isto desagradou a algumas Irmãs mais fiéis ao legado de Clara dado que punha em causa o Privilégio de Pobreza, com tanto esforço conseguido por Clara.

Mais tarde, em 1263, Urbano IV vai aprovar estas Constituições, tor-nando-as obrigatórias para todas as Fraternidades em que não estivesse em vigor a primitiva Regra de Santa Clara. Iria ser também Urbano IV a deter-minar que o nome da Ordem das Senhoras Pobres passasse a ser Ordem das Religiosas de Santa Clara ou, muito simplesmente, Clarissas.

A partir de então, as Irmãs foram divididas em dois Ramos, canonica-mente reconhecidos: As Clarissas, ou Senhoras Pobres, se seguiam a Regra de Santa Clara e as Urbanianas que tinham adoptado as Constituições de Urbano IV.

Os séculos XV e XVI vão assistir a tentativas de reforma de algumas Fraternidades de Irmãs:

No século XV, São Bernardino de Sena e Santa Colecta de Corbie vão de facto conseguir que alguns Mosteiros sejam reconduzidos à antiga obe-diência. Esta santa escreveu, aliás, novas Constituições, que permanecem em vigor em muitas Comunidades.

Em 1540, Madre Maria Longo, sob a orientação dos Irmãos Menores Capuchinhos, fundou em Nápoles uma Comunidade de Clarissas Pobres. As Constituições saídas desta Reforma pouco diferiam daquelas elaboradas por Santa Colecta.

Independentemente da Regra, ou Constituição, que as filhas espirituais

de Clara seguem, a verdade é que há nelas o firme propósito de perpetuarem, nas suas vidas, os exemplos e a espiritualidade de Francisco e Clara de Assis. Os seus exemplos continuam a chamar jovens, que não receiam servir a Igreja na radicalidade e na disponibilidade totais.

Assim os Frades Menores, mais em contacto com o mundo, e as Irmãs Clarissas, mais recolhidas na oração e contemplação, continuam a apontar

48

caminhos, sempre válidos e actuais, para seguirem a Cristo numa dinâmica autenticamente evangélica.26

12. Foi Clara uma inovadora? Clara foi inegavelmente alguém que contribuiu para uma renovação da

Igreja, com uma coragem e uma visão que, em alguns pontos, estavam por certo à frente da sua época. O seu apostolado, como o de Francisco de Assis, radicou fundamentalmente no seu testemunho pessoal e vivencial.

Entre vários itens podemos destacar os seguintes: 1- Clara foi a primeira Religiosa a escrever, e a ver aprovada, uma

Regra de Vida como norma de vida. Esse feito é de inegável importância, e um testemunho de uma temerária coragem, se tivermos em atenção as deci-sões do Concílio de Latrão. Através da sua Regra, impôs inovações que revolucionaram a vida religiosa feminina e a forma de vida nos Mosteiros. E a audácia de Clara foi tal que fez com que essas inovações começassem a ser aplicadas nos Mosteiros da Ordem que ajudara a fundar muito antes da apro-vação canónica, por Inocêncio IV, da sua Regra de Vida.

2- Tal como Francisco de Assis, Clara viveu intensamente o binómio

pobreza/humildade27. Essa atitude, a que S. Boaventura chamará de minori-dade, traduziu-se não só pelo facto de nunca ser querer apoiar em cartas e Recomendações Apostólicas, em seu proveito ou em proveito da Ordem, como também pelo amor e deferência que dedicava aos prelados e sacerdo-tes, a quem tratava como Senhores, pois eram os instrumentos directos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Clara sentiu-se sempre filha da Igreja e ao seu maternal cuidado recomendou todas as irmãs, quer as suas contemporâneas quer as vindouras;

3- Os cargos não seriam vitalícios. As irmãs com cargos de

responsabilidade nos Mosteiros (Abadessa; Conselheiras;…) deveriam aban-doná-los quando já se não mostrassem capazes para os mesmos. Assim dever-se-ia, nessas circunstâncias, providenciar a eleição de novas Irmãs;

————— 26 Dentro da obediência das Clarissas inserem-se as Concepcionistas, fundadas em Toledo

em 1489, por Santa Beatriz da Silva e as Anunciadas fundadas em Burgos em 1501, por Santa Joana de Valois.

27 No entanto, ao contrário de Francisco, não rejeitava o uso do dinheiro desde que este não pusesse em causa a opção pela pobreza e fosse usado para as necessidades da Comunidade.

49

4- Criou a figura da Vigária que substituiria a Abadessa nas suas fun-ções quando esta tivesse algum impedimento para as exercer;

5- Inspirada pelo convívio tido com as Monjas Cistercienses, não

centralizou o Governo da Ordem. Os Mosteiros teriam os seus órgãos gover-nativos autónomos;

6- A Abadessa teria sempre de consultar um Conselho de oito irmãs

para as decisões mais importantes; 7- Para preservar a união fraterna, Clara determinou que entre as Irmãs

não houvesse a possibilidade de divisões. Nessa conformidade todas as Irmãs, incluindo a Abadessa, teriam, uma vez por semana, em Reunião Fra-terna: Reconhecer as suas faltas, comuns e públicas, e tratar dos assuntos da vida do mosteiro;

8- Na sua Ordem a distinção entre grupos sociais não poderia ter lugar.

Clara interpretou, à letra, o que S. Paulo escrevera aos Colossenses: “…não há grego nem judeu, circunciso ou incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo, que é tudo em todos.” (Cl 3, 11);

9- Clara fez da contemplação silenciosa o meio mais indicado para

saborear o Amor de Deus e um método eficaz para a formação da capacidade de discernimento e do sentido de responsabilidade das suas Irmãs;

10- Clara nunca entendeu a reclusão vivida pelas Senhoras Pobres como

estando à margem da sociedade. Pelo contrário a vida nas Fraternidades deveria ser um espelho e um compromisso para com aqueles vivem no mundo.

Poder-se-iam continuar a desenvolver aspectos em que Clara interveio

para ajudar a humanidade a melhor amar a Deus. O seu legado está longe de ser anacrónico, mantendo uma seiva viva e vigorosa. Clara foi, de facto, uma inovadora, que em muitos aspectos ainda estará por descobrir. Se algo se pode dizer então de Clara é que foi uma mulher viril, de um só querer e de um só sentir.

Ao longo dos seus sessenta anos, nunca deixou de se esforçar para con-seguir viver o seu amor por Deus e pelo próximo, segundo o Evangelho, mantendo-se fiel ao legado de Francisco.

50

Um provérbio oriental diz: Quanto um dedo aponta para a Lua, o insensato olha para o dedo, mas o sábio olha para a Lua.

Clara foi essa sábia que soube olhar bem para o Alto, para onde o dedo de Francisco apontava.

Assim “como Francisco foi um alter Christus, um outro Cristo, assim Clara foi o cumprimento da promessa de Francisco:«Benditos e felizes os que assim fazem e assim perseveram, porque sobre eles repousará o Espírito do Senhor, que neles fará morada. Estes são os filhos do Pai celeste, que realizam as obras do Pai, e são esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo» (Cf. 1 CF, 5-10)”28

Apêndice I Oração do Burro Senhor, meu Criador, obrigado porque me fizeste um burro, capaz de Te

ouvir servindo os homens, meus irmãos. Não compreendo porque muitos deles querem ser burros, porque eu

nunca quis ser homem. Isso não é de admirar porque eu tenho pouco enten-dimento, ao passo que eles são inteligentes.

Humildemente reconheço que, como os meus irmãos, os homens, tenho defeitos e qualidades: sou paciente, trabalhador e amigo. Mas também sou teimoso, muito teimoso, e rebelde.

Só tenho pena de que o homem não tenha orelhas grandes como eu, para estar atento a qualquer voz. Talvez ele ouça mais por dentro do que eu. Mas quem sou eu para julgar … se sou apenas um burro!?

Estou muito contente por ser um humilde burro. Antepassados meus foram muito honrados por Ti: basta só lembrar a

teimosia da burra de Balaão, que acabou por falar transmitindo a Tua mensa-gem; a burrita que levou Maria até casa de Isabel e que a transportou até à gruta de Belém e aqueceu o ambiente com o seu bafo e lhe possibilitou depois a fuga para o Egipto.

E como não lembrar também o jumentinho que levou Jesus, num dia de triunfo, até Jerusalém?

Além disso, o samaritano colocou o homem abandonado sobre o seu burro. Também colaborei nessa obra de amor que Jesus louvou. —————

28 In CONFERÊNCIA DOS MINISTROS GERAIS DA PRIMEIRA ORDEM FRANCISCANA E DA TOR – “Ouvi, pobrezinhas, eleitas do Senhor …” p. 3.

51

Chamam-me burro, Senhor, meu Criador, mas poucos se podem gabar de tantas glórias e de um serviço tão desinteressado como o meu …

Será por isso, talvez por inveja, que os homens me chamam burro? J. Santos (Missionário) = adaptado = In Família – Boletim Paroquial – Calhariz de Benfica Apêndice II Benção de Santa Clara “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amen. O Senhor vos abençoe e vos guarde, vos mostre o seu rosto e se compadeça de vós. Volte para vós a sua face e vos dê a paz (Num 6, 24) a vós minhas irmãs e filhas, e a todas as que no futuro hão-se pertencer à nossa fraternidade, e a todas as outras que em toda a Ordem perseverem na santa pobreza. Eu, Clara, serva de Nosso Senhor Jesus Cristo, plantazinha do nosso pai São Francisco, irmã e mãe vossa e de todas as Irmãs Pobres, ainda que indigna, suplico, pela misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo, e pela intercessão de sua mãe Maria Santíssima, de São Miguel Arcanjo, de todos os santos anjos de Deus, e de todos os santos e santas, que o Pai Celeste vos dê e confirme esta santíssima benção no Céu e na terra: que na terra vos multiplique na sua graça e virtude, entre os servos e as servas da Igreja militante; e no Céu vos glorifique e exalte, entre os seus santos e santas da Igreja triunfante. E vos abençoo Durante a minha vida e depois da minha morte,

52

Quanto posso e mais do que posso, Com todas as bençãos que o Pai das misericórdias (2 Cor 1, 3) concedeu ou venha a conceder aos seus filhos espirituais, no Céu e na terra, e com as quais um pai ou mãe espiritual abençoa e abençoará seus filhos e filhas espirituais. Assim seja. Amai sempre a Deus, a vossas almas e a vossas irmãs. Sêde solícitas em cumprir o que prometestes ao Senhor. O Senhor esteja convosco E faça que vivais sempre em união com Ele. Amen. Bibliografia: Fontes: Nova Bíblia dos Capuchinhos Difusora Bíblica, 1ª Edição, Lisboa/Fátima, 1998 Fontes Franciscanas II – Santa Clara de Assis Editorial Franciscana, 2ª Edição, Braga, 1996 Escritos de São Francisco e Santa Clara de Assis Editorial Franciscana, Braga, 2001 Obras Específicas: GASPAR, Maria do Rosário F. Clara – a constelação e o signo (Vida e Espiritualidade de Santa Clara de Assis Paulinas, Prior Velho, 2004 CAPELA, Joaquim (OFM) Santa Clara de Assis Editorial Franciscana, 4ª edição, Braga, 1992 IRIARTE, Frei Lázaro Francisco e Clara de Assis – à escuta da Palavra Editorial Franciscana, Braga, Outubro de 2000

53

Obras Gerais: LECLERC, Elói Retorno ao Evangelho – A gesta de Francisco de Assis Editorial Franciscana, Braga, Janeiro de 2002 BOLTON, Brenda A Reforma na Idade Média Edições 70, Lisboa, Janeiro de 1986 FOURQUIN, Guy Senhorio e Feudalidade na Idade Média Edições 70, Lisboa, Setembro de 1978 PERNOUD, Regine A mulher no tempo das catedrais Gradiva, Viseu, Julho de 1984 Documentos retirados da Internet: CARBALLO, Fr. José Rodriguez, OFM CLARA DE ASIS Y DE HOY – Un corazón seducido y conquistado por el Señor

(en el 750 aniversario de la muerte de Santa Clara y de la aprobación de su Regla – Carta del Ministro general de la Ordem de los Hermanos Menores en el ía de Santa Clara de Asís, Roma, 2004

CONFERÊNCIA DOS MINISTROS GERAIS DA PRIMEIRA ORDEM

FRANCISCANA E DA TOR – “Ouvi, pobrezinhas, eleitas do Senhor (Carta que inau-gura o 750º aniversário da morte de Santa Clara), Roma, 4 de Outubro de 2002

Enciclopédias e dicionários: Nova Enciclopédia Larrousse Círculo de Leitores, Mem Martins, Fevereiro de 2003 Dicionário da Língua Portuguesa Porto Editora, 6ª Edição, Porto, 1985 Periódicos: Boletim Salesiano – revista da Famíla Salesiana nº 484, Maio/Junho de 2004 Lisboa Opúsculos: Família: Boletim Paroquial – Calhariz de Benfica (XV Domingo Comum C) nº

507 11 de Julho de 2004

54

A OFS – ORIGENS E ACTUALIDADE

Dr. Pedro José Martins (OFS)

55

A OFS – ORIGENS E ACTUALIDADE Reflexão Prévia Mergulhar nas raízes da nossa Vocação, compreendê-las e nelas reflectir

é sempre algo que nos pode ajudar, sem soberbas intelectuais, a reavaliar como hoje vivemos a dimensão secular da Vocação Franciscana.

A Terceira Ordem da Penitência, ou a Ordem dos Irmãos da Penitência, como inicialmente se chamava, foi a terceira Ordem fundada pelo nosso pai seráfico São Francisco de Assis.

É de notar que a vocação de Francisco foi uma descoberta pessoal atra-vés de uma leitura da vida e dos acontecimentos em que a Fé lhe serviu como grelha de análise e de acção. De facto, a partir do cativeiro de Perúsia (1202 – 1204), Francisco começa a sentir uma inquietude no seu espírito e vai compreendendo, gradualmente, que só a pode ultrapassar mediante de um compromisso cada vez mais sério e apaixonado com Nosso Senhor Jesus Cristo.

O chamamento que Francisco sentia no íntimo de sua alma asseme-lhava-se ao de Abraão, Moisés, Samuel, Paulo de Tarso, …, e a outros tantos homens a quem Deus se revelou a pouco e pouco. Por vezes, havia a alegria de uma manhã soalheira que mostrava o recto caminho, por outras a escuri-dão da noite, das dúvidas e das incertezas. Mas Francisco era um homem apaixonado e apesar das incertezas, aceitou o desafio de uma Vocação que se foi revelando etapa a etapa.

Primeiro, começa por uma caminhada individual de purificação e de compreensão do sentido de sua vida e, posteriormente, com a vinda gradual de homens que, querendo seguir o seu exemplo, pediram para viver com ele segundo o seu modo de vida. Foi, assim, descobrindo que o Senhor lhe tinha dado irmãos e começa a descortinar as maravilhas da vida em Fraternidade. Tanto assim é que em 1210, quando os Irmãos chegam ao número de doze resolve, em conjunto com os companheiros, ir pedir autorização a Inocêncio

56

III, então Sumo Pontífice, para viver segundo o Santo Evangelho. Surge deste pequeno rebanho a Ordem dos Irmãos Menores.

As repercussões da “revolução” iniciada por Francisco e por seus com-panheiros na Igreja e na sociedade foram semelhantes às ondas de choque provocadas por um sismo de grande magnitude. Porém, esse “sismo”, não sendo destrutivo, obrigou a Igreja e os Crentes a reequacionar o modo como espalhavam e viviam a Fé em nosso Senhor Jesus Cristo. Rapidamente, esta doação radical e absoluta atraiu a simpatia e mesmo uma adesão mais com-prometida da parte de alguma hierarquia da Igreja, clérigos, homens e mulhe-res de todas as condições, que optaram por abandonar os bens terrenos para viver ao estilo destes irmãos e mesmo casais que desejavam viver a sua fé de forma mais autêntica 1.

Ao contrário dos grupos heréticos de então, que também advogavam o regresso à origem da observância do Evangelho, mas rompendo com a Igreja, Francisco, não por razões intelectuais ou analíticas, mas sim porque amava profundamente Aquele que deu a Sua Vida para nos libertar dos grilhões da morte, sentia que devia libertar-se de todos os bens terrenos para se oferecer ao seu Amado, sem nenhum empecilho temporal. É esse o sentido da pobreza evangélica à maneira de Francisco. Ele libertou-se de todos os seus bens para melhor poder amar o Amor que não era amado.

A criação da Ordem dos Frades Menores (Primeira Ordem), a criação da Ordem das Damas Pobres [ Clarissas ] com a colaboração de Santa Clara de Assis (Segunda Ordem), e a criação da Ordem dos Irmãos da Penitência, hoje Ordem Franciscana Secular, (Terceira Ordem), não estavam nos planos ini-ciais de Francisco. Foram, porém, consequência do seu enorme amor pelo Altíssimo, que incendiou as consciências de então. As três Ordens por ele fundadas2 respondiam de diferentes formas a uma necessidade de renovação interna da Igreja do Ocidente, que cada vez mais se afastava dos caminhos que nosso Senhor Jesus Cristo tinha indicado.

É sobre o impacto da mensagem de Francisco sobre a vida dos leigos que, não saindo do século, desejaram, e ainda desejam, viver segundo o seu modo de vida, que agora se vai reflectir.

————— 1 Estão entre estes os primeiros membros da Ordem dos Irmãos da Penitência. 2 Ou fundadas pelo Espírito Santo como o Pai Seráfico gostava de dizer.

57

ORDEM FRANCISCANA SECULAR As Origens Encontramos referências à origem da Ordem dos Irmãos da Penitên-

cia na Legenda Maior de S. Boaventura e nas Florinhas de São Francisco de Assis.

De acordo com o doutor seráfico na sua Legenda Maior, os Irmãos da Penitência surgiram porque homens e mulheres, unidos pelos laços do matrimónio, desejavam, continuando no entanto na sua condição, viver a sua Fé segundo o exemplo do Pobre de Assis. Para lhes facilitar o cumprimento dos seus anseios, Francisco impõe-lhes uma forma de vida 3.

Já segundo as Florinhas de São Francisco, o santo terá pensado dar ori-gem à Ordem Terceira quando pregou no castelo de Carmano. Aí, depois de uma fogosa pregação, homens e mulheres desse lugar quiseram abandonar suas terras e bens para o poderem seguir. Vendo essa reacção entusiástica por parte deles, Francisco, não lhes permitiu tal, prometendo, no entanto, que iria pensar numa forma de vida que lhes permitisse salvarem as suas almas. Tendo ouvido essa promessa os habitantes de Carmano sentiram-se conforta-dos e dispostos a viver num espírito de penitência, segundo as orientações de Francisco.4

Os primeiros Irmãos Um casal da cidade de Paggibonsi, Luchesio e Bona Donna, são-nos

referenciados como os primeiros Irmãos da Penitência, a quem o irmão Fran-cisco deu uma Norma de Vida. Não há dúvida de que a entrada de Fr. Fran-cisco na vida deste casal provocou uma alteração no seu quotidiano. A sua caridade para com pobres, peregrinos e viúvas melhorou consideravelmente, para além de passarem mais tempo em obras de caridade, visitando e cui-dando de doentes nos hospitais e vendendo grande parte dos seus bens para entregar o produto da venda aos pobres, reservando para si um pequeno jar-dim, onde se aplicavam numa agricultura de subsistência. Luchesio abando-nou mesmo as suas roupas habituais e envergou, até o fim dos seus dias, uma túnica rústica de camponês. Poucas não foram as vezes que este homem, depois de tocado por Francisco, foi pelas ruas esmolando, para si e para os mais desfavorecidos.

————— 3 Cf. S. Boaventura – Legenda Maior – IV, 6. 4 Cf. Florinhas de S. Francisco de Assis, XVI.

58

Perante este exemplo, vão-se juntando a este casal primordial outros casais e pessoas que viviam em celibato, para viverem de uma forma mais de acordo com o evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. A estes, e para sua orientação, São Francisco deu uma Norma de Vida.

De acordo com a mesma, os irmãos, para além de vestirem hábito pobre, teriam de levar uma vida em espírito de oração e de prática de actos de cari-dade. Esse modo de vida poderia ser concretizado em matrimónio ou solita-riamente.

Para além disto, pela sua Norma de Vida, os Irmãos da Penitência esta-vam obrigados a:

• Restituir os bens injustamente conseguidos. • Pagar os dízimos em atraso. • Fazer Testamento atempadamente. • Não fazer juramentos, a não ser em casos extraordinariamente espe-

ciais. • Não aceitar cargos públicos. • Não usar armas. Este último aspecto trouxe, aliás, os primeiros conflitos com as autori-

dades públicas. De facto, os Irmãos da Penitência recusavam pegar em armas contra os seus semelhante, como aconteceu na cidade de Faenza, no século XIII. Esse fenómeno alastrou rapidamente por toda a Itália e teve como con-sequência imediata acções de retaliação por parte do poder público.

A partir desse momento os Irmãos da Penitência foram proibidos de dar as suas propriedades aos pobres. Em defesa dos Penitentes acorreu o cardeal Hugolino, grande amigo e Protector de S. Francisco e de seus Irmãos meno-res na Cúria Romana.

Os textos Legislativos As Fraternidades dos Irmãos da Penitência foram proliferando de forma

espontânea e dispersa e depressa o Senhor Papa percebeu a necessidade de organizar as Fraternidades de forma estruturada e organizada.

De acordo com Lehmann, poder-se-á identificar a 2ª Redacção da Carta a todos os Fieis (escrita em 1220?) como sendo a primeira Regra para a Ordem dos Irmãos da Penitência.5 Outros, porém, afirmam que a primeira Regra dada aos irmãos da Penitência foi elaborada por São Francisco sob a —————

5 Cf. FFI – Carta a Todos os Fiéis.

59

orientação do cardeal Ugolino (mais tarde Gregório IX), por volta de 1221 e posteriormente aprovada pelo Senhor Papa Honório III. Esta, no entanto, ter--se-á perdido. Do que não há dúvidas é que este documento serviu de base de trabalho para a primeira redacção oficial da Regra de Vida da Ordem dos Irmãos da Penitência, que foi aprovada em 1228 pelo Papa Gregório IX. Anos mais tarde, em 1289, o papa Nicolau IV promulga uma Regra Uni-forme para a Cristandade.

A partir desse momento a Regra de Vida dos Irmãos da Penitência, ou Ordem Franciscana Secular, como agora é denominada, tem vindo a sofrer significativas alterações, sem, no entanto, abdicar da sua espiritualidade, de molde a poder adaptar-se mais á evolução dos tempos. É nesse contexto que teremos de compreender as alterações feitas no pontificado de Leão XIII, em 1883, de forma a adaptar a Regra às condições da Era Industrial.6 Só mais tarde, em 1978, mais concretamente em 24 de Junho, é que o papa Paulo VI aprova e confirma a Regra que ainda hoje seguimos. As razões desta nova redacção decorrem da nova realidade da Igreja do Ocidente saída do Concílio Vaticano II e da própria evolução da sociedade.

Algo digno de nota é o facto de, devido ao relacionamento que o nosso pai espiritual e seus sucessores tiveram, e têm, com aqueles que ocupam a Cátedra de Pedro, só o Sumo Pontífice pode ordenar o reajustamento da Regra de Vida dos Irmãos Franciscanos Seculares.

A Estrutura A Ordem Franciscana Secular é, antes de mais nada, uma Ordem Reli-

giosa, mas uma Ordem Religiosa leiga, que centra a sua vivência na Obe-diência e na vida em Fraternidade. A ela podem pertencer irmãos leigos de ambos os sexos, bem como diáconos, sacerdotes diocesanos e prelados, desde que se identifiquem com a espiritualidade do irmão Francisco. Conta-ram-se igualmente no seu seio alguns Sumos Pontífices como por exemplo, entre outros, o papa João XXIII, de saudosa memória, e o papa Paulo VI.

Tal como os nossos primeiros irmãos, e de acordo com o exemplo de Francisco de Assis, temos consciência de que fazemos parte da Estrutura da Igreja, e, portanto, devemos-lhe fidelidade. Primeiramente, na pessoa do Papa e depois perante a hierarquia canonicamente instituída.

A nossa vida em Fraternidade é o cerne do nosso crescimento espiritual à maneira de Francisco. É em Fraternidade que descobrimos, como Fran-cisco, que o Senhor nos deu irmãos. É em Fraternidade que conseguimos —————

6 Para dar uma leitura mais actualizada da regra aprovada por Leão XIII, em 1957 a Sagrada Congregação dos Religiosos promulga as Constituições Gerais para a Ordem Terceira.

60

crescer na amizade, na oração, no trabalho apostólico, dentro e fora da Fra-ternidade. Em suma, em Fraternidade partilhamos e ficamos enriquecidos com o exemplo e fé dos irmãos. Em Fraternidade, somos vasos comunican-tes, em que a partilha dos dons que cada um tem é algo de tão natural como o ar que respiramos. Em Fraternidade, retemperamos as nossas forças, que depois nos permitem dar o nosso testemunho, discreto mas eficaz, num mundo em que Deus é cada vez mais um desconhecido ou uma personagem mitológica (ou de um belo conto de fadas).

Não é por acaso que a Estrutura da Ordem Franciscana Secular começa pela Fraternidade Local e que depois se vai alargando, como que num abraço, em crescendo, para as Fraternidades Regionais, Nacionais e, final-mente, Internacional,7 que fraternalmente se ajudam, partilham experiências e comunicam.

É na Fraternidade Local que somos admitidos e fazemos a nossa Formação (inicial e posterior), é nela que professamos o nosso Modo de Vida, é através da Fraternidade Local que poderemos eventualmente ser excluídos, ou nos excluímos, das estruturas da Ordem Franciscana Secular. Em suma, a Fraternidade Local é a célula primordial da Ordem Franciscana Secular, tal como a família é a célula da sociedade.

Espiritualidade e modo de vida A espiritualidade do Franciscano Secular é bastante simples de explicar.

É a de Francisco de Assis, pobre, obediente e humilde, adaptada no entanto à realidade secular e ao estado de vida de cada irmão.

No fundamental pede-se ao Franciscano Secular que observe, e viva no seu quotidiano, o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A espiritualidade do Franciscano Secular traduz-se por ver a Deus como a Suprema Santidade e Bondade, cuja principal característica é ser Amor. É nesse Amor que vivemos, é nesse Amor que somos criados e vivemos, é nesse Amor que somos redimidos, é nesse Amor que somos salvos, e é nesse Amor que conseguimos amar …

É por sentirmos em nós o infinito Amor de Deus que depois se nos torna fácil:

• Sentirmo-nos em comunhão com Cristo pobre e crucificado. • Amar a Sagrada Escritura.

————— 7 Cada uma destas Estruturas tem um Conselho, composto por irmãos, um Irmão Ministro e

um Assistente Espiritual que geralmente é um irmão sacerdote da Primeira Ordem [ O.F.M.; O.F.M. (capuchinhos); O.F.M. (conventuais) ].

61

• Viver e amar a celebração sacramental da Igreja. • Ter uma vida de oração liturgica, pessoal, familiar e comunitária. • Perseverar numa contínua atitude de conversão. • Perdoar com gratuitidade. • Ter o sentido de fraternidade com todos os homens e restante cria-

ção. • Oferecermo-nos ao Senhor de acordo com o estado de vida a que

fomos chamados. • Termos a noção de que podemos, e devemos, partilhar nossos bens

com quem nada tem8. • Não nos sentirmos escravos dos bens materiais, posição social ou

dos cargos de chefia que ocupemos. • Preocuparmo-nos com a justiça e a paz. • Obedecer às legítimas autoridades. • …. É por sentirmos em nós o Amor de Deus que se nos torna fácil sen-

tirmo-nos instrumentos da Sua Paz. A espiritualidade e modo de vida do Franciscano Secular são o resultado

de um amor profundo pelo Altíssimo que, por Amor, tudo criou para todos e convida a fazer das nossas vidas um acto de partilha contínua, aos mais diversos níveis. Tudo aquilo que temos são dons do Senhor, e como tal não devemos ser como aquele que enterrou o seu talento na terra. Tudo o que somos, tudo o que temos, tem de ser posto à disposição dos irmãos e do bem comum. Se os retivermos, se não estivermos dispostos a partilhar, estaremos a privar os outros daquilo a que têm direito.

No entanto, isso só nos é possível se formos verdadeiramente livres e a liberdade só pode ser conquistada se conseguirmos rebentar as cadeias que nos impedem de ser solidários: a soberba, a ganância, o egocentrismo; …

A pobreza evangélica, tão amada por Francisco de Assis, não é um drama ou uma maldição, é antes um acto de suprema libertação em que o homem, despido de todos os seus bens e de todo o amor próprio, está por fim apto a receber e a sentir a plenitude do Amor Divino e a estar disponível para o irmão.

O Franciscano Secular pode também sentir essa libertação e essa dispo-nibilidade de se ver perante os seus bens materiais como um gestor, ou

————— 8 Francisco dizia muitas vezes que aquilo que temos foi-nos emprestado e que devíamo-lo

restituir aos pobres, os seus verdadeiros donos.

62

alguém que detém o usufruto dos mesmos, e de encarar os seus cargos pro-fissionais como um ministério em favor e benefício do próximo.

Um Franciscano, Consagrado ou Secular, deve ter uma atitude filial perante Deus e uma postura de menoridade perante o Altíssimo e os irmãos. Uma atitude plena de humildade, em que se tem a consciência de que sem Deus nada existe, nada se é, nada se pode. Tudo o que temos, tudo o que somos é dom gratuito do Senhor. Nada se deve querer senão Deus. O resto virá por acréscimo.9

O Fundamento da vida do Franciscano Secular tem de se enraizar no Evangelho, Palavra Viva e Actuante, e na disponibilidade total para ser guiado pelo Espírito Santo que, ao ensinar a viver segundo a Boa Nova de Jesus, permite que Este transforme a sua vida, tal como transformou a de Francisco, como se pode verificar pelas suas próprias palavras no seu Tes-tamento:

“E depois que o Senhor me deu o cuidado dos irmãos, ninguém me

ensinava o que devia fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou que deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho. E eu assim o fiz escrever em poucas e simples palavras e o Senhor Papa me confirmou.10”

Francisco descobriu em Cristo a Sua Divindade e Humanidade, que O

fez semelhante a nós no corpo, vontade e emoções, excepto no pecado. A vida Evangélica, descoberta pela sensibilidade espiritual de Fran-

cisco, e que todo o Franciscano, Secular ou não Secular, é convidado a seguir, induz-nos a amar todos os homens concretos que se cruzam connosco na vida, independentemente de nos causarem alegria, felicidade ou dor. Aquele que vive evangelicamente, à maneira de Francisco de Assis, sente que o Amor de Deus vibra dentro dele, sente que Deus é amor e por isso con-segue amar como Jesus Amou.

Usando as palavras do próprio Santo de Assis, poderemos sintetizar a posição da Espiritualidade Franciscana no relacionamento com os homens da seguinte forma:

“Nunca devemos desejar estar acima dos outros, mas antes devemos ser

servos e sujeitos a toda a humana criatura por amor de Deus (Pe 2, 13). E todos os que assim procederem, e perseverarem até ao fim, sobre eles repoi-

————— 9 Em suma é ter levar à prática o Sermão da Montanha. (Mt. 5, 1-12). 10 Cf. Testamento de S. Francisco in Fontes Franciscanas I.

63

sará o espírito do Senhor (Is 11, 2) e neles fará morada e mansão (Jo 14, 23). E serão filhos do Pai Celeste (Mt 5, 45), cujas obras fazem.”11

Vivência em Família Francisco ao ver-se confrontado com o nascimento de uma nova família

religiosa quis demarcar-se dos moldes hierarquizados que eram então comuns nas Ordens Monásticas suas contemporâneas. Ele anseia viver em Fraternidade, em espírito de família onde ele próprio se vê como irmão e mesmo mãe desse primeiro grupo12, como se pode ver no Capítulo XVI da Vida Segunda de Tomás de Celano:

“[Francisco] teve uma certa noite a seguinte visão enquanto dormia.

Viu uma galinha pequena e escura, semelhante a uma pomba doméstica, [… ] e uma ninhada tão grande que, por mais que girasse em redor, não conse-guia abrigar-se toda debaixo das asas. “13

Intuindo que tal sonho se referia a ele e aos seus primeiros Irmãos, rapi-

damente chega à conclusão que os deveria entregar ao cuidado da Igreja de forma a protegê-los dos ataques dos seus inimigos e das tentações que os poderiam fazer cair na soberba. Sob a protecção maternal da Igreja o pequeno rebanho iria perseverar na observância da pureza evangélica.

Também na Regra que escreveu para os Eremitérios, Francisco mostra como o espírito de família deveria estar presente na vida dos irmãos:

————— 11 Cf. FFI – 2CF, II, 47-49. 12 O que não invalida Francisco de encarar a Igreja como mãe solicita. 13 Cf. FFI – 1C 24..

64

II — Documentos

TOTA PULCHRA ES MARIA

No 150º. Aniversário da Definição Dogmática da Imaculada Conceição da Virgem Maria

Carta de Frei José Rodríguez Carballo, ofm,

Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores no Dia de Santa Beatriz da Silva

Às muito queridas Irmãs da Ordem da Imaculada Conceição

Introdução A Família Franciscana sente unidos ao próprio ser, com laços indissolúveis, o

amor à bem-aventurada Virgem Maria, de quem o Filho de Deus recebeu «a carne verdadeira da nossa humanidade e fragilidade» 1, a imitação da altíssima pobreza, que o Verbo incarnado, junto com a bem-aventurada Virgem Maria, sua Mãe, pra-ticou enquanto viveu neste século 2 e a proclamação inflamada e devota das maravi-lhas que Deus operou na que é «sua serva e mãe» 3.

Francisco legou aos seus filhos esta humilde certeza: É a Santíssima Trindade quem levanta com infinito amor essa igreja que é a Virgem Maria, e a consagra para que seja «palácio, tabernáculo e casa de Deus»; é a Santíssima Trindade quem tece

————— 1 Escritos de São Francisco: 2CF 4. 2 Cf. Constituições Gerais da Ordem da Imaculada Concepção (= CG) 41 § 2. 3 Cf. Escritos de São Francisco: Saudação à Virgem Maria 5.

65

esse «vestido» precioso de Deus; é a Santíssima Trindade quem faz de Maria de Nazaré «serva de Deus e Mãe de Deus» 4.

E talvez seja nessa certeza humilde, nascida da contemplação do Irmão Fran-cisco, que temos de buscar a origem da firmeza e do afecto com que a Família Fran-ciscana propôs durante séculos à piedade dos fiéis, defendeu nas aulas universitárias e proclamou na pregação a Imaculada Conceição da Virgem Maria, pois de todo razoável lhes parecia afirmar que assim tão formoso quis Deus o seu palácio, assim tão agraciado o seu tabernáculo, assim tão limpa a sua casa, assim tão adornado o seu vestido, assim tão humilde a sua serva, assim tão maravilhosa a sua Mãe.

A bem-aventurada Beatriz da Silva bebeu desde menina nesta fonte carismá-tica um amor entranhável à Mãe de Deus, e, “depois de viver com o Senhor uns 30 anos como secular no mosteiro de São Domingos de Toledo, decidiu fundar um novo mosteiro ou a Ordem da Imaculada Concepção para enaltecer o mistério da Imaculada Conceição e propagar o seu culto»5.

Podemos, pois, dizer com razão que os Frades Menores e as Concepcionistas Franciscanas vivemos «em Maria Imaculada uma admirável comunhão»6.

Agora, neste ano que nos traz à mente com ressonâncias de jubileu a definição dogmática da Imaculada Conceição de Maria, no dia em que celebramos a festa da mãe Santa Beatriz, também eu quis partilhar convosco a alegria dessa «admirável comunhão em Maria Imaculada», que permite aos franciscanos confessarmo-nos sentirmo-nos concepcionistas, e a vós Concepcionistas permite que professeis e vos chameis franciscanas7.

1. Unidos nesta «admirável comunhão» carismática, contemplamos o mistério da Imaculada Conceição

Quando falamos da nossa mãe da terra, as palavras são inspiradas à mente pelo

coração. Para falar da Imaculada Virgem Maria, nossa Mãe do Céu, será necessário, reconhecida a pobreza da nossa fé e da nossa caridade, que peçamos palavras de luz e de amor ao Espírito Santo de Deus. Ele permite que nos aproximemos do mistério de Maria, a «virgem de Nazaré», e torna possível que a nossa fé a contemple como a vê o próprio céu, como «cheia de graça e morada do Altíssimo»8.

Na saudação do anjo Gabriel a nossa Senhora, o crente sente ressoar ecos de palavras proféticas que a fidelidade de Deus, interpelando a fé de Maria de Nazaré, está a mudar em palavras de evangelho.

————— 4 Cf. Saudação à Virgem Maria 4-5. 5 Citação tomada do Sumário sobre a vida, as virtudes e a fama de santidade da Beata Bea-

triz da Silva, retirado dos documentos publicados na “Positio”. Em Santa Beatriz da Silva, Postio sobre la vida y virtudes (Toledo 2001) 14.

6 Título da Carta dirigida por Fr. Juan Vaughn, Ministro Geral da Ordem dos Frades Meno-res, às Irmãs da Ordem da Imaculada Concepção, no V Centenário da sua Fundação.

7 CG 1. 8 Cf. Lc 1, 28.

66

«Alegra-te, filha de Sião: solta gritos de júbilo, Israel; festeja-o exultante, filha de Jerusalém… o Senhor no teu meio é rei de Israel. Já não temerás nenhum mal. Naquele dia dir-se-á a Jerusalém: Não tenhas medo, Sião, não desfaleçam as tuas mãos. O Senhor teu Deus está no meio de ti como poderoso salvador»9.

«Não temas, ó terra, alegra-te, festeja, porque o Senhor fez proezas»10. «Exulta sem moderação, filha de Sião, solta gritos de alegria, filha de Jeru-

salém. Eis que o teu rei vem a ti, justo e vitorioso»11. Assim proclamava a profecia que levava esperança ao coração dos humildes e

simples mediante o futuro de graça que Deus se comprometia a dar-lhes. Que se alegre Sião, porque Deus é fiel. Que se alegre Israel, porque o Senhor

mantém a sua aliança. Que se alegre Jerusalém, porque o seu Rei cumprirá a sua promessa. Que os pobres abram já, de par em par, as portas do coração à alegria, ainda que o Senhor não tenha exercido o poder do seu braço para dar ao seu povo um nome novo, para mudar o nome do lugar da sua morada.

«Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo». Assim proclama o mensageiro das boas notícias, que saúda a Virgem Maria e

lhe anuncia cumpridas as promessas do Senhor. Que se alegre o coração da virgem de Nazaré, porque o Senhor exerceu o

poder do seu braço e lhe deu um nome novo: A-que-Deus-tornou-cheia-de-graça. Que se alegre a virgem de Nazaré, pois o Senhor olhou para a humilhação da sua escrava e realizou nela as maravilhas do seu poder e da sua misericórdia: O Senhor está contigo. Que se alegre o coração de todo o crente, que saltem de alegria todos os que se nutrem de Deus no seio da fé, e que todos proclamem o nome da amada: A-que-Deus-bendisse-entre-todas-as-mulheres12.

«Cheia de Graça», chamou-lhe o anjo. «Imaculada», proclamou-a a fé da Igreja. «Puríssima», chamamo-la com devoto afecto todos os fiéis.

Ali, onde o mensageiro do céu disse: «Alegra-te, cheia de graça», a fé humilde e simples dos fiéis disse: «Ave, Maria puríssima».

E o vosso olhar de contemplativas intui que ali, na Imaculada Virgem Maria, já se tinham tornado verdade, antes de ser pronunciadas, as bem-aventuranças evangé-licas: Ditosa ela, a Mãe bendita de Jesus, humilde e pobre13, que em sua pobreza tem a Deus por rei. Ditosa ela, a Mãe chamada a participar no mistério da paixão do seu Filho14, que em sua dor recebe de Deus o consolo. Ditosa ela, a Mãe dulcíssima do Redentor, cheia de humildade e mansidão15, que recebendo a Cristo, recebe de Deus a terra das promessas. Ditosa ela, faminta e sedenta de justiça, pois o Senhor olhou para a humilhação da sua escrava e a cumulou de graça e bênção. Ditosa ela,

————— 9 Sof 3, 14.15-16. 10 Jl 2, 21. 11 Zac 9, 9. 12 Cf. Lc 1, 42. 13 Regra da Ordem da Imaculada Conceição (=ROIC) 8. 18. 14 CG 93. 15 ROIC 44.

67

modelo singular na nova família do Reino, que com amor maternal cuida dos irmãos do seu Filho16, a mulher que veio em nossa ajuda com a sua fé e a sua entrega, pois ela experimentou a misericórdia de Deus, que chega aos seus fiéis de geração em geração. Ditosa ela, consagrada na sua integridade virginal pelo seu Filho primogé-nito17. Ditosa ela, a mulher de coração sempre limpo, Puríssima desde a sua concep-ção, Imaculada na alma e no corpo, em quem o Senhor quis habitar e de quem o Verbo de Deus quis ser Filho. Ditosa ela, mãe da paz, porque Deus quis chamá-la sua. Ditosa ela, atingida pela sua fidelidade, pois Deus foi sempre rei no seu cora-ção.

Em verdade, Mãe de nosso Senhor, também nós, impulsionados pelo Espírito Santo, contemplando as maravilhas que o amor de Deus realizou na sua humilde escrava, dizemos com a tua prima Isabel: «Ditosa tu, que acreditaste, porque o que te disse o Senhor se cumprirá»18, e nos unimos ao clamor de todas as gerações para «proclamar-te ditosa»19.

2. Unidos nesta «admirável comunhão» carismática, contemplamos o mistério da Igreja, esposa de Cristo

A vossa razão de ser na Igreja, queridas Irmãs Concepcionistas, além da con-

templação do mistério da Imaculada Conceição, é o empenho em imitar e reprodu-zir as suas virtudes20.

Vestistes o hábito da vossa Regra para vos desposardes com Jesus Cristo nosso Redentor e honrar com a vossa forma de vida a Imaculada Conceição de sua Mãe21.

Fizestes a vossa profissão religiosa por amor e em serviço de nosso Senhor e da Imaculada Concepção de sua Mãe22.

O vosso hábito e a vossa profissão, assim como a imagem de nossa Senhora que trazeis no manto e no escapulário, são para vós, e também para nós, que conhe-cemos e admiramos a vossa vida, uma memória perpétua de que trazeis no coração a Mãe de Deus como exemplo de vida, e que já não desejais outra coisa senão imitar a sua conduta inocentíssima, seguir a sua humildade, e alcançar com a sua ajuda a necessária liberdade para a obediência da fé e a entrega do amor23.

Para Santa Beatriz, como para vós e para nós, a pobreza professada, abraçada, amada e vivida, aquela mesma pobreza que «para si escolheram nosso Redentor e sua Santíssima Mãe»24 é a maior riqueza que podemos sonhar, o adorno mais pre-—————

16 CG 98. 17 CG 50. 18 Lc 1, 45. 19 Cf. Lc 1, 48. 20 Cf. Decreto de aprovação das Constituições Gerais da Ordem da Imaculada Conceição,

dado em Roma a 22 de Fevereiro de 1993, pela Congregação para os Institutos de Vida Consa-grada e as Sociedades de Vida Apostólica.

21 ROIC 1. 22 Cf. ROIC 5. 23 Cf. ROIC 7. 24 CG 42.

68

cioso da nossa forma de vida25. Nesta pobreza e em tudo o que as irmãs dizem e fazem, se hão-de manifestar, como num sacramento, a humildade e mansidão de nosso Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe26.

O vosso caminho, aquele que o Espírito Santo inspirou a Santa Beatriz é o da humildade e pobreza de nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe bendita27. A isto vos chamou o Senhor com vocação sublime; e isto é o que buscais com entrega generosa. E enquanto, apoiadas na fidelidade de Deus, percorreis esse caminho, o Pai do céu realiza em vós as suas maravilhas, pois vos transforma por amor no que contemplais com amor, e faz vosso, por seu divino poder, o que imitais com a força da sua graça.

E vi descer do céu, enviada por Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, orna-mentada como uma noiva que se adorna para o seu esposo. E ouvi uma voz potente que dizia desde o trono: Esta é a morada de Deus com os homens; Ele habitará com eles e eles serão o seu povo. Deus em pessoa estará com eles e será o seu Deus28.

Aproximou-se um dos sete anjos… e falou-me assim: «Vem cá, vou mostrar-te a noiva, a esposa do Cordeiro». Em visão profética transportou-me ao cimo de uma grande e alta montanha e mostrou-me a cidade santa, Jerusalém, que descia do céu, enviada por Deus, radiante com a glória de Deus. Brilhava como uma pedra preciosíssima parecida com jaspe luminoso como cristal29.

O que vós, Irmãs Concepcionistas, contemplais no mistério da Imaculada Con-cepção e o que com a vossa forma de vida procurais imitar com generoso empenho, seguindo os passos da bem-aventurada Beatriz, isso mesmo realiza com o seu amor e a sua graça o Pai do céu na comunidade dos seus fiéis, na nova Jerusalém, na cidade santa cujo templo é o Senhor Deus e o Cordeiro, na Igreja cuja luz é a glória de Deus e cuja lâmpada é o Cordeiro30.

O que na Virgem Maria admiramos, realizado desde o princípio e de forma eminente e singular, isso mesmo esperamos ver realizado em toda a Igreja, quando, desaparecidos o primeiro céu e a primeira terra, chegada ao seu termo a História da Salvação, Deus seja tudo em todos.

Maria é a primícia do novo povo de Deus, a mulher nova, a primeira discípula da nova lei31.

A alma enche-se-nos de esperança e o coração trasborda de alegria, porque o Senhor visitou e redimiu o seu povo32 – à virgem Maria, à virgem Igreja – olhou para a humilhação da sua escrava33, e encheu de glória a sua casa34.

————— 25 Cf. ROIC 8. 18. 41. 26 Cf. ROIC 44. 27 Cf. CG 3. 28 Ap 21, 2-3. 29 Ap 21, 9-11. 30 Cf. Ap 21, 22-23. 31 Prefácio da Missa de Santa Maria, a mulher nova. 32 Cf. Lc 1, 68. 33 Cf. Lc 1, 47-48 34 Cf. Ag 2, 8

69

Ditosa és, Maria, que, ao receber o anúncio do anjo, te tornaste Mãe do Verbo de Deus. Ditosa tu que, meditando em silêncio as palavras do céu, te converteste em discípula do Senhor35. Ditosos contigo, Virgem Maria, todos os que escutam a pala-vra de Deus e a cumprem36.

De Maria e da Igreja ouvimos dizer: Esta é a morada de Deus com os homens; acampará entre eles. Eles serão o seu povo, e Deus estará com eles e será o seu Deus37. Maria e a Igreja, com a divina Sabedoria, convidam-nos: Vinde comer do meu pão e beber o vinho que misturei; segui o caminho da prudência38.

Em verdade, Irmãs Concepcionistas, na Imaculada Virgem Maria, espelho sem mancha, contemplais já agora a puríssima imagem da vossa glória futura39.

3. Unidos nesta «Admirável Comunhão» carismática, Contemplamos o Mistério de Cristo, o mediador de toda a Graça

Esse prodígio de graça que resplandece de maneira singular e única na Imacu-

lada Conceição da Virgem Maria e que resplandecerá também um dia em todo o corpo da Igreja, tem a sua origem em Cristo Jesus, a Palavra incarnada por quem nos chegou a graça e a verdade40; recebe a sua luz de Cristo Jesus, a Palavra em quem estava a vida que era luz dos homens e que brilha nas trevas41; e encontra na beleza única de Cristo Ressuscitado a razão de ser da imaculada formosura com que Maria e a Igreja foram adornadas.

Se nós, porque reconhecemos que na Igreja o amor do Pai está a realizar as maravilhas que realizou na Virgem Maria, podemos tornar nossas com verdade as palavras do seu cântico e proclamar com ela a grandeza do Senhor, também ela faz suas, com verdade, as palavras da Igreja e bendiz com todos os fiéis o Autor da nossa salvação: Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo42.

Se olhamos para Cristo, imagem de Deus invisível43, aproximamo-nos do abismo do amor misericordioso do Pai: Deus, rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, estando mortos por causa das nossas culpas, vivificou-nos juntamente com Cristo – pela graça fostes salvos – e com ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus, em Cristo Jesus44.

Quando olhamos para Cristo, aproximamo-nos do abismo do seu amor pela Igreja e da fonte de onde se recebe esta graça, formosura e santidade, pois Cristo —————

35 Antífona de entrada da Missa de Santa Maria, discípula do Senhor. 36 Antífona de comunhão da Missa de Santa Maria, discípula do Senhor. 37 Ap 31, 3. 38 Pr 9, 5. 6b. 39 Em Maria, espelho sem mancha, a Igreja contempla já agora a puríssima imagem da sua

glória futura: Antífona de entrada da Missa da Virgem Maria, imagem e mãe da Igreja (III). 40 Cf. Jo 1, 17. 41 Cf. Jo 1, 4-5. 42 Ef 1, 3. 43 Cf. Col 1, 15. 44 Ef 2, 4-6.

70

entregou-se a si mesmo por ela, para a santificar, purificando-a mediante o banho de água, em virtude da sua palavra, e para a colocar diante de si gloriosa, sem mancha nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e imaculada45.

Se olhamos para Cristo, admiramos na glória do esposo a beleza da sua Esposa. Se olhamos para a esposa, vemos reflectida na sua beleza a glória do Cor-deiro imaculado: Chegaram as bodas do Cordeiro, e a sua Esposa adornou-se e foi--lhe concedido vestir-se de linho deslumbrante de brancura46.

Olhamos para Cristo, e aproximamo-nos do mistério da Sabedoria de Deus, que quis desposar-se com a humanidade em aliança eterna de amor.

Olhamos para Cristo, e contemplamos o Filho de Deus que, fazendo-se homem, vivendo para nós e morrendo por nós, se fez inteiramente nosso, e que se nos mostra agora entregue no sacramento da Eucaristia, como noutro tempo se nos revelou entregue no mistério da Incarnação.

Vós, queridas Irmãs, que, inspiradas e chamadas por Deus, vos consagrais totalmente a Deus, desposando-vos com Jesus Cristo, nosso Redentor47, pela profis-são ofereceis a vossa vida a quem antes, em aliança eterna, vos ofereceu a sua, entregais-vos a quem antes inteiramente se vos entregou48, servis a quem desceu do céu para se tornar vosso servidor49, escolheis a quem antes, com amor de predilec-ção, vos escolheu, amais a quem antes, com infinita ternura, vos amou.

Este é um inefável mistério de misericórdia. Se, hoje, é possível, para nós, que, movidos por divina inspiração, desejemos ter o Espírito do Senhor e a sua santa ope-ração50, é porque o Senhor quis, antes, tornar-se para todos fonte do Espírito, e quis chamar-nos a todos a apagar nele a nossa sede51. Se é possível que desejemos tor-nar-nos um só espírito com Cristo, mediante o amor52, é porque, antes, Cristo, por amor, quis tornar-se uma só carne connosco53. Se, hoje, nos é possível, pela profis-são religiosa, seguir mais de perto a Cristo54, o pastor das nossas almas, é porque antes ele seguiu como bom Pastor o rasto da ovelha perdida55 e defendeu, até dar a vida por elas, todas as ovelhas do seu rebanho56. Se, um dia, cada Irmã da Ordem da Conceição sentiu nascer no próprio coração o desejo de entrar no caminho da humildade e pobreza de nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe Bendita, caminho

————— 45 Cf. Ef 5, 25-27. 46 Ap 19, 7b-8ª. A brancura do vestido das Irmãs, que há-de dar testemunho da pureza da

alma e do corpo (ROIC 6), evoca a memória do vestido deslumbrante de brancura da Esposa do Apocalipse, símbolo da sua pureza triunfante.

47 Cf. ROIC 1. Cf. CG 2. 48 Cf. ROIC 2. 49 Cf. ROIC 5. 50 Cf. ROIC 30; CG 69. 51 Cf. Jo 7, 37-39. 52 Cf. ROIC 30. 53 Cf. Ef 5, 31-32. 54 Cf. CG 1. 55 Cf. Lc 15, 4-7. 56 Cf. Jo 10, 11

71

inspirado pelo Espírito Santo a Santa Beatriz57, é porque esse caminho o percorreu, antes, o altíssimo Filho de Deus, que, sendo rico, por nós se fez pobre a fim de nos enriquecer com a sua pobreza58.

Conclusão

Queridas Irmãs Concepcionistas, estes são os laços misteriosos e sublimes que

unem em «admirável comunhão» carismática a vossa vida e a nossa vida: tanto vós como nós reconhecemos, honramos, contemplamos e admiramos a plenitude dos dons de Deus na Imaculada Virgem Maria; contemplamos e admiramos a graça de Deus na beleza e santidade da Igreja; vemos aquela plenitude de Maria e esta graça da Igreja, que flúem, como um rio, da obediência e do amor filial de Cristo, o Senhor, obediência e amor expressos no aniquilamento extremo da sua morte na cruz, e postos continuamente ante os nossos olhos na divina Eucaristia, sacramento que «contém todo o bem espiritual da Igreja, quer dizer, o próprio Cristo, nossa Páscoa e Pão da Vida, que dá a vida aos homens por meio do Espírito Santo»59.

O coração estremece ante a memória que da bem-aventurada Beatriz da Silva subscreve a sua companheira Joana de São Miguel, memória consignada numa bre-víssima Nota biográfica que as Irmãs da Conceição, por ocasião da trasladação dos restos “da primeira fundadora da Ordem da Santíssima Conceição de nossa Senhora a Mãe de Deus”60, colocaram na urna que guardava as suas relíquias. Ali lemos:

“Esta dita senhora (a esclarecida e muito magnífica senhora dona Beatriz da Silva) foi muito devota da Santíssima Conceição, e obteve tanto que alcançou do Santo Padre Regra e hábito e breviário da Santa Conceição…

Por ocasião da sua morte foram vistas duas coisas maravilhosas. A primeira, que, como lhe tiraram do rosto o véu para [lhe dar a unção], foi tanto o brilho que do seu rosto saiu, que todos ficaram espantados. A outra foi que em metade da sua fronte viram uma estrela, a qual ali esteve até que expirou… Disto foram testemu-nhas seis religiosos da Ordem de nosso Pai São Francisco…

Esta senhora… era muito devota da santíssima Paixão e da santíssima Con-ceição…”61.

A vossa vida de Concepcionistas e a nossa de Franciscanos estão unidas pelo amor e devoção à santíssima Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor à Euca-ristia, o amor à Imaculada Conceição da Virgem Maria, Mãe de Deus, e o amor à Igreja, corpo místico de Cristo e morada do Espírito Santo.

Nesta admirável comunhão e com esta mensagem, quis associar a alegria da Ordem dos Frades Menores à vossa alegria na festa de Santa Beatriz, e a piedade

————— 57 Cf. CG 3; ROIC 8. 58 Cf. 2Cor 8, 9. 59 João Paulo II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 1. 60 Santa Beatriz da Silva, Positio sobre la vida y virtudes (Toledo 2001) 41. 61 Santa Beatriz da Silva, Positio sobre la vida y virtudes (Toledo 2001) 41-42.

72

mariana dos Irmãos à vossa piedade no 150º. aniversário da definição dogmática do mistério da Imaculada Conceição da Virgem Maria.

Para as Presidentes das Federações, para todas as Abadessas, para todas as Irmãs da Ordem da Imaculada Conceição, peço a bênção do Senhor e o amparo da Bem-aventurada Virgem Maria.

Roma, na Cúria Geral OFM, 17 de Agosto de 2004 Traduziu: Aristides Dourado

73