I Para que Filosofia? - · PDF filetigos. essa pessoa especial costumava ser uma mulher e ......
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Maritena Chaui
Convite FilosoAa
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I \ Para que Filosofia?
.. . - --Conhece-te a ti :mes:mo
Quem viu o filme Matrix - antes que se tornasse o primeiro de uma srie - h de se lembrar da cena em que o heri Neo levado pelo guia Morfeu para ouvir o orculo.
Que um orculo? A palavra orculo possui dois sigo
nificados principais, que aparecem nas expresses "con sultar um orculo e "receber um orculo. No primeiro ca so, significa uma mensagem misteriosa" enviada por um deus como resposta a uma indagao feita por algum hu-mano; uma revelao divina que precisa ser decifrada e interpretada. No segundo, significa "uma pessoa especial", que recebe a mensagem divina e a transmite para quem en-viou a pergunta divindade, deixando que o interrogante decifre e interprete a resposta recebida. Entre os gregos ano tigos. essa pessoa especial costumava ser uma mulher e
era chamada sibila.
Em Matrix, aparece a sibila. uma mulher que recebeu o orculo (isto . a mensagem) e que tambm o orculo (ou seja. a transmissora da mensagem). Essa mulher per-gunta a Neo se ele leu o que est escrito sobre a porta de entrada da casa em que acabou de entrar. Ele diz que no. Ela ento l para ele as palavras. explicandolhe que so
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de uma lngua h m~ito desaparecida, o latim. O que est escrito? Nasce te ipsum. O que significa? "Conhece-te a ti mesmo_" O orculo diz a Neo que ele - e somente ele -poder saber se { u no aquele que vai livrar o mundo do poder da Matrixe, portanto. somente conhecendo a si mes-mo ele ter a resposta.
Poucas pessoas que viram esse filme compreenderam exatamente o significado dessa cena. pois ela a represen-tao, no futuro. de um acontecimento do passado, ocor-rido h 23 sculos. na Grcia.
Havia. na Grcia antiga. na cidade de Delfos. um santu-rio dedicado ao deus Apolo, deus da luz. da razo e do co-nhecimentoverdadeiro. o patrono da sabedoria. Sobre o por tal de entrada desse santurio estava escrita a grande mensagem do deus ou o principal orculo de Apolo: "Conhe-ce.te a ti mesmo". Um ateniense, chamado Scrates. foi ao santurio consultar o orculo. pois em Atenas. onde mora va. muitos diziam que ele era um sbio e ele desejava saber o que significava ser um sbio e se ele poderia serchamado de sbio. O orculo. que era uma mulher. perguntoulhe:"O que voc sabe?". Ele respondeu: "S sei que nada sei". Ao que o orculo disse: Scrates o mais sbio de todos os homens. pois o nico que sabe que no sabe". Scrates. como todos sabem. o patrono da Filosofia .
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Neo e iI HatrL'\: -- ---- -- ~- ------------ ---
Se vo ltarmos ao filme Matnx, podemos perguntar por que foi feit o o pa ral elo entre Neo e Scrates.
Comecemos pelo nome das duas personagens mascu-linas principa is: Neo e Morfeu. Esses nomes so gregos.
Nero signifi ca "novo" ou "renovadc" e, quando dito de algum, significa "jovem ria' f'r- a e no ardor da juventude".
Morfeu pertence mitologia grega: era o nome de um esprito, filho do Sono e da Noite, que possuia asas e era capaz, num nico instante, de voar em abso luto silncio para as extremidades do mundo. Esvoaando sobre um ser humano ou pousando levemente sobre sua cabea, tocan-do-o com uma papoula vermelha, tinha o poder no s de fa?~lo adormecer e sonhar mas tambm de aoarecer-!" e 1, .", ,!10 . ':;rr'Jll o formJ hU'nali J. t d~S~)3 rr, a tl,:~r~~ 7j::_.
. ,') rllme. ~:'lo r feu se comur. l( (leia primpl! c '. E'2 com f':(! ~ , quede flerta assustado com o rudo de uma mensagem na tela de seu computador. E, no primeiro encontro de ambos, Morfeu surpreende Neo por sua extrema velocidade, por ser capaz de voar e por parecer saber tudo a respeito des-se jovem que no o conhece. Vrias vezes, Morfeu pergun-ta a Neo se ele tem sempre a impresso de estar dormindo e sonhando, como se nunca tivesse certeza de estar real-mente desperto. Essa pergunta deixa de ser feita a partir do momento em que, entre uma pnula azul e uma verme-lha oferecidas por Morfeu, Neo escolhe ingerir a vermelha (como a papoula da mitologia), que o far ver a realidade. ~ Morfeu quem lhe mostra a Matrix, fazendo-o compreen-der que passou a vida inteira sem sEber se estava desper-to ou se dormia e sonhava porque, realmente, esteve sem-pre dormindo e sonhando.
O que a Matrix? Essa palavra latina. Deriva de ma-ter,que quer dizer "me". Em latim, matrix o rgo das f-meas dos mamferos onde o embrio e o feto se desenvol-vem; o tero. Na linguagem tcnica, a matriz o molde para fundio de uma pea; o circuito de codificadores e de-codificadores das cores primrias (para produzir imagens na televiso) e dos sons (nos discos, fitas e filmes); e, na in-fonmtica, a rede de guias de entradas e sadas de elemen-tos lgicos dispostos em determinadas interseces.
No filme, a Matrix tem todos esses sentidos: ela , ao mesmo tempo, um tero universal onde esto todos os se-res humanos cuja vida real "uterina" e cuja vida imagin-ria forjada pelos circuitos de codificadores e decodifica-dores de cores e sons e pelas redes de guias de entrada e sada de sinais lgicos.
Qual o poder da Matrix? Usar e controlar a intelign-cia humana para dominar o mundo, criando uma realidade virtual ou uma falsa realidade na qual todos acreditam. A Matrix o feitio virado contra o feiticeiro: criada pela inte-
Para que filosofia ?
"gncia humaoa, a Matrix i:llel igncia artificial que des tri a inteligncia que a criou porque s subsiste sugando o sistema nervoso central dos humanos.
Antes que a palavra computador fosse usada co rren-temente , quando s havia as enormes mquinas militares e de grandes empresas, falavase em "crebro eletrn ico". Por qui" Porque se tratava de um obje to tcnico muito di-
ferente de todos at ento conhecidos pela humanidade.
De fato, os objetos tcnicos tradicionais ampliavam a for-a fsica dos seres humanos (o microscpio e o telescpio aumentam o limite dos olhos; o navio, o automvel e o
avio aumentam o alcance dos ps humanos; a alavanca, a aolia, a chave de fenda, o martelo aumentam a fora das rros humanas; e assim por diante). Em contrapartida, o "creb,o elet':->ico" ou cnmputador ?mplia e mesmo subs-!':-lJi, :~1[l:':~.-,~ j~~" - f .:,c:;'. i:-:t ~ !E" ( ~' -1 is do:: seres h i l
. ~ ~ ] ~. V; . ', . , ~ o~" :;1;'-l;,u:'::Jor gi !::.1 nt2 :. ( 0 q ~e- escraviz?
os horrlens, usando a m~llte deles para controlar as pr-prias percepes, sentimentos e pensamentos, fazendo-os crer que o aparente real.
Vencera poder da Matrix destruir a aparncia, restau-rar a realidade e assegurar que os seres humanos possam
perceber e compreender o mundo verdadeiro e viver real-mente nele_ Todos os combates realizados por Neo e seus companheiros so combates cerebrais e do sistema nervo-so, isto . so combates mentais entre os centros de sensa-o, percepo e pensamento humanos e os centros artifi-ciais da Matrix. Ou seja, as armas e tiroteios que aparecem na tela so pura iluso, no existem, pois o combate no fsico e sim mental.
Neo e Scrates
Por que as personagens do filme afirmam que Neo "o escolhido"? Por que eles esto seguros de que ele ser capaz de realizar o combate final e vencer a Matrix?
Porque ele era um pirata eletrnico, isto , algum ca-paz de invadir programas, decifrar cdigos e mensagens,
mas, sobretudo, porque ele tambm era um criador de pro-gramas de realidade virtual, um perito capaz de rivalizar com a prpria Matrix e competir com ela. Por ter um poder semelhante ao dela, Neo sempre desconfiou de que a rea-lidade no era exatamente tal como se apresentava. Sem-pre teve dvidas quanto realidade percebida e secreta-mente questionava o que era a Matrix. Essa interrogao o levou a vasculhar os circuitos internos da mquina (tanto
assim que comeou a ser perseguido por ela como algum perigoso) e foram suas incurses secretas que o fizeram
ser descab.erto por Morfeu.
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'='Pa'!l'!!.a -"ou'!'e'-CF";I"'o""so,,fi""a"-? ________________________________ JMMi;Huiil~t'l 11
Por que Scrates considerado o "pa trono da Filoso-
fi a'" Po rque jamais se contentou com as opinies estabe-
lec idas. com os preconcei tos de sua sociedade. com as cren-
as inquest ionadas de seus conterrne os. Ele costumava
dizer que era Impeli do por um esprito interior (como Mor-
reu inst igando Neo) que o levava a desconfiar das aparn-
cias e procu rar a realidade verdadeira de todas as coisas.
Scrates andava pelas ru as de Atena -' endo aos ate-
nienses algu mas perguntas: " O que isso em que voc
acredita?", "O que isso que voc est dizendo?", "O que isso que voc est fazendo?"_ Os aten ienses achavam, por exemplo. Que sabiam o que era a justi a_ Scrates lhes
fazia perguntas de ta l maneira sobre a justia que, emba-
raados e confusos, chegavam concluso de que no sa-biam o que ela significava. Os aten ienses a~editavam que
sJbiam o Qu e era a coragem_ Com suas perguntas incans-
veL'~, Scr:: tLs os faz;:; c.onduir que no saoiam O que sig-nificava a coragem . Os aten ienses acreditavam tambm
que sabiam o que eram a bondade, a beleza , a verdade,
mas um prolongado dilogo com Scrates os fazia perce-
ber que no sabiam o que era aquilo em que acreditavam.
A pergunta "O que ?" era o questionamento sobre a
realidade essencial e profunda de uma coisa para alm das
llparncias e contra as aparncias. Com essa pergunta, S-
Erates levava os atenienses a descobrir a diferena entre
parecer e ser, entre mera crena ou opinio e verdade_
Scrates era filho de uma parteira. Ele dizia que sua
me ajudava o nascimento dos corpos e que ele tambm
era um parteiro, mas no de corpos e sim de almas. Assim
como sua me