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I RICHARD MORSE: MORRE UM HUMANISTA II MORRE CALASANS, A MEMÓRIA VIVA DA HISTÓRIA DE CANUDOS EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES* I RICHARD MORSE: MORRE UM HUMANISTA Richard M. Morse, no dia 17 de abril do corrente ano, em Petionville, próximo à capital do Haiti, pátria de sua mulher, Emerante de Pradines, sob cujos cuida- dos, em sua saúde abala- da, viveu os últimos anos. Ignoraria o fato, se não me valessem as trocas de informações que colegas de fora ou do país mantêm sem cessar pela Internet; em especial o bilhete que um discípulo de Morse, Jeffrey D. Needell, professor do Departamento de História da Universidade da Flórida, em Gainsville, enviou para o colega José Murilo de Carvalho, com pormenores dessa ocorrência, bilhete que conclui com estas palavras de re- conhecimento, num inglês coloquial: -Morse foi uma pessoa que teve enorme impacto em mi- nha vida e minha carreira. Penso nele muitas vezes efalo dele freqüentemente aos meus alu- nos. Os anos de doença e a distância física en- tre nós preparam-me para isso que é, assim mesmo, uma grande perda pessoal, e sinto a sua falta terrivelmente .• Para a relevância de sua obra e de sua atu- ação, para as amizades profundas que tinha no Brasil, mesmo a imprensa nacional não foi pródi- ga em comentários sobre a perda desse singular historiador norte-americano, que praticava em seus trabalhos uma dialética fusional entre tradi- ções e ousadias inovadoras. Morse era um pen- sador divergente e dissonante, típico representante • Professor Titular de Sociologia da UFC e da UECE, membro do Instituto Histórico do Ceará e da Acade- mia Cearense de Letras. Pesquisador 1-A do CNPq. A despeito de alguns eventos que começam a alterar nossa modorrenta paisagem - em especial os promovidos ou apoiados pelo Cen- tro Dragão do Mar de Arte e Cultura: cinema, teatro, exposições e simpósios filosóficos de perfil internacional, etc. -, parece evidente o paroquialismo de nossa percepção cultural. Cito apenas dois casos mais recentes para ilustrar o sentimento aqui expresso: um grande de Espanha, o poeta Rafael Alberti, derradeiro so- brevivente da -generaciõn 27·, à qual perteceram outras figuras sagradas (Salvador Dali, Federico Garcia Lorca ou Luis Bufiuel), morreu aos 96 anos, a 28 de outubro de 1999; ou ainda, no dia 27 de abril do ano passado, morreu, também aos 96 anos, o Professor Charles Boxer, lingüis- ta, bibliófilo, antiquário e sobretudo grande his- toriador inglês, a quem a Universidade de Londres ofereceu a Cátedra Camões, então a única cátedra de Português no mundo de fala inglesa, e que deixou 350 trabalhos, dentre os quais alguns fundamentais para a historiografia luso-brasileira. Não vi na pobreza da imprensa local nada de significativo sobre tais protagonis- tas cruciais das aventuras do espírito. Essas evocações me levam a refletir sobre silêncio maior que se fez agora com a morte de BEZERRA DE MENEZES, EDUARDO DIATAHY. IN MEMORIAM - RICHARD MORSE: MORRE UM HUMANISTA. P. 131 A 138 131

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IRICHARD MORSE: MORRE UM HUMANISTA

IIMORRE CALASANS, A MEMÓRIA VIVA DA

HISTÓRIA DE CANUDOS

EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES*IRICHARD MORSE: MORREUM HUMANISTA

Richard M. Morse, no dia17 de abril do corrente ano,em Petionville, próximo àcapital do Haiti, pátria desua mulher, Emerante dePradines, sob cujos cuida-dos, em sua saúde abala-

da, viveu os últimos anos.Ignoraria o fato, se não me valessem as

trocas de informações que colegas de fora oudo país mantêm sem cessar pela Internet; emespecial o bilhete que um discípulo de Morse,Jeffrey D. Needell, professor do Departamentode História da Universidade da Flórida, emGainsville, enviou para o colega José Murilo deCarvalho, com pormenores dessa ocorrência,bilhete que conclui com estas palavras de re-conhecimento, num inglês coloquial: -Morse foiuma pessoa que teve enorme impacto em mi-nha vida e minha carreira. Penso nele muitasvezes efalo dele freqüentemente aos meus alu-nos. Os anos de doença e a distância física en-tre nós preparam-me para isso que é, assimmesmo, uma grande perda pessoal, e sinto a suafalta terrivelmente .•

Para a relevância de sua obra e de sua atu-ação, para as amizades profundas que tinha noBrasil, mesmo a imprensa nacional não foi pródi-ga em comentários sobre a perda desse singularhistoriador norte-americano, que praticava emseus trabalhos uma dialética fusional entre tradi-ções e ousadias inovadoras. Morse era um pen-sador divergente e dissonante, típico representante

• Professor Titular de Sociologia da UFC e da UECE,membro do Instituto Histórico do Ceará e da Acade-mia Cearense de Letras. Pesquisador 1-A do CNPq.

A despeito de algunseventos que começama alterar nossa modorrenta paisagem - em

especial os promovidos ou apoiados pelo Cen-tro Dragão do Mar de Arte e Cultura: cinema,teatro, exposições e simpósios filosóficos de perfilinternacional, etc. -, parece evidente oparoquialismo de nossa percepção cultural. Citoapenas dois casos mais recentes para ilustrar osentimento aqui expresso: um grande deEspanha, o poeta Rafael Alberti, derradeiro so-brevivente da -generaciõn 27·, à qual perteceramoutras figuras sagradas (Salvador Dali, FedericoGarcia Lorca ou Luis Bufiuel), morreu aos 96anos, a 28 de outubro de 1999; ou ainda, no dia27 de abril do ano passado, morreu, tambémaos 96 anos, o Professor Charles Boxer, lingüis-ta, bibliófilo, antiquário e sobretudo grande his-toriador inglês, a quem a Universidade deLondres ofereceu a Cátedra Camões, então aúnica cátedra de Português no mundo de falainglesa, e que deixou 350 trabalhos, dentre osquais alguns fundamentais para a historiografialuso-brasileira. Não vi na pobreza da imprensalocal nada de significativo sobre tais protagonis-tas cruciais das aventuras do espírito.

Essas evocações me levam a refletir sobresilêncio maior que se fez agora com a morte de

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da tradição humanística e erudita, mas que desdeSócrates, Voltaire e outros não se recusa ao usoda ironia e da irreverência como argutos instru-mentos de renovação do pensamento e supera-ção das idéias recebidas, fossem quais fossem suasposições no espectro ideológico.

Nem de longe pretenderia eu inventariaraqui a personalidade generosa, o percurso in-telectual e o pensamento contido na obra ino-vadora dessa figura imensa de estudioso, querejeitava o atributo de "brasílianista", posto fos-se alguém de invejável conhecimento do Brasil,em cujos escritos e em cuja cátedra na Columbia,em Yale, em Stanford ou por onde lecionou,esforçou-se para ensinar ao Brasil e demais na-ções da Ibero-América (como preferia chamar omundo luso-hispânico) a livrar-se do sentimen-to de inferioridade e a reconhecer sua profundaexperiência cultural. Foi um dos poucos pensa-dores norte-americanos originais de hoje, arma-do de extraordinária simpatia pela área do NovoMundo que elegera para estudar, sem perder avisão de conjunto dada por sua profunda erudi-ção mas também por seu espírito anárquico ecarnavalizante, que lhe permitia traçar encruzi-lhadas de pensamento que envolviam Tomás deAquino, Rousseau, os Jesuítas espanhóis do sé-culo XVII, Leopoldo Zea, Sérgio Buarque deHolanda, Oswald de Andrade, Antonio Candido,a Escola de Frankfurt, Foucault, e mais poetas eromancistas.

Quando no final dos anos 80 do passadoséculo, realizei um seminário em torno de seuEI Espejo de Próspero - un estudio de Ia dialécticadel Nuevo Mundo (México: Siglo XXI editores,1982 - de que a Companhia das Letras deu umaversão brasileira em 1988), senti a dificuldadede meus alunos de pós-graduação face à densaerudição histórica e cultural desse curto e lumi-noso ensaio.

Infelizmente, não posso dar mais, nestasumária nota, do que esmaecida imagem dessegrande espírito capaz de dizer em curtas e inci-sivas palavras a convergência de perspectiva quevia entre Mário de Andrade e T. S. Eliot. Capaz

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de renovar a historiografia com sua tese de dou-torado sobre A Formação Histórica de São Pau-lo e de demonstrar que as Américas do Sul eramnão um "problema", mas imagem especular emque a outra América podia ver suas própriasenfermidades. Capaz de conversar com homenscomuns dos muitos países que conhecia. Ou demanter alto diálogo com velhos amigos comoSérgio Buarque e Antonio Candido.

Fortaleza, 27 de abril de 2001.

NOTA - Quando comuniquei ao Profes-sor Ralph Della CAVAeste texto sobre a mortede Richard MORSE, ele me enviou o depoimen-to que reproduzo a seguir:

DEPOIMENTO DE RAlPH DEllA CAVA SOBRERICHARD MORSE

Sábado, 28 de abril de 2001

Caro Diatahy:

Hoje o New York Times publicou o necro-lógio de Richard Morse.

Só conheci o Morse na reunião da SBPC deRecife (974). Nessa época, ele já resenhara omeu livro Milagre em joaseiro numa das revistasacadêmicas norte-americanas, de uma maneira li-sonjeira e elogiosa. No encontro do Recife, des-cobri que ele, então representante da FundaçãoFord no Rio, tinha feito circular meu ensaio sobreCanudos e joaseiro (que você depois traduziu deum modo tão preciso") entre Duglas [TeixeiraMonteirol e seus alunos, e Walnice [NogueiraGalvãol, todos estudiosos de movimentos popu-lares e "conjurados paulistanos", responsáveis pelaminha vinda à reunião da SBPC.

Na realidade, foi por meio da Walnice, aquem eu não conhecia, que recebi o convite.Joguei-o na cesta de papéis - era abril de 1974-achando eu que a ditadura militar, ainda em vi-gor, não iria permitir a minha entrada no país. A

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Walnice persistiu no convite e no final de maio,logo às vésperas do fim do nosso ano letivo, elame telefonou. Eu estava no Queens College eentre outros assuntos ela me falou do Morse,como quem também tivesse sugerido a minhavinda, disse do teor do encontro, dos termos doconvite. Em resposta à minha pergunta sobrecom que roupa deveria me apresentar (lembra-se que dez anos antes, por volta de 1964, quan-do eu vim para o Ceará a fim de pesquisar ahistória do Padre Cícero, até na Praça do Ferreira- no centro de Fortaleza - a gente andava depaletó e mesmo de gravata, estilo da época"),ela, surpresa com a minha indagação e quaserindo, me lembrava da Revolução portuguesa,então em pleno sucesso, e me recomendava jeanse um cravo vermelho na lapela!

Só na minha ida ao Rio, na mesma ocasião(974), depois da minha passagem por Fortalezae ]oaseiro, matando as saudades após uma déca-da, foi que comecei a conhecer face a face oMorse. Lá no apartamento dele (o da FundaçãoFord) na praia de Leblon, conversávamos muitoe ele lentamente saboreava uma ou outra bebida(forte), que me parecia agudizar ainda mais suafina ironia e irreverência. Tocava nas mesmas te-clas: que a América Latina tinha muito para ensi-nar aos norte-americanos; que estes eramarrogantes e cegos e sem cultura (pelo menoseram essas as idéias por trás de suas declaraçõesmuito mais refinadas). Por ser descendente davelha estirpe norte-americana, sobretudo dos quesão os nossos 'quatrocentões' do Nordeste dosEE.UU., os seus pares o "toleravam", mesmo queele tivesse rompido com eles, não só por ter abra-çado uma cultura então vista como "negli-genciável", mas também por ter-se casado comuma Haitiana (ainda que fosse ela descendenteda mais alta classe social da ilha).

A sua erudição o protegia. Seu livro sobreSão Paulo'" fora bem recebido e um ensaio seusobre Fernando e Isabel - que todos nós, dageração depois da dele, tivemos que ler - mar-cou época. Nele, Morse argumentava que '0 ele-mento nuclear- da civilização ibero-americana

era que -o homem moral é melhor do que oeconômico .•(1) [Em Inglês: moral rather thaneconomic man). Esta visão, então revisionista,tinha procedência na obra do seu professor napós-graduação na Columbia, Frank Tannenbaum,e de outro mestre da época, Lewis Hanke.

E ela vigorou pelo menos por uns dez ouvinte anos. Da sua própria geração, os livros deStanley Stein ou Marvin Harris pareciam ter finca-do mais fundo na historiografia produzida lá fora.Mais tarde, a primeira onda de 'brasilianistas' apa-receu e mostrou não só um "fraco" pelo Brasil,mas também metodologias, perspectivas e temasbastante novos e ricos. Mesmo que Morse detes-tasse esse rótulo (de 'brasilianista'), ele foi erigido,querendo ou não, como um dos mais importan-tes padrinhos da nossa geração, senão o pai.

Até certo ponto, ele tinha razão: na reali-dade, ele tivera um percurso próprio, tão inde-pendente como o seu intelecto. Foi um dosprimeiros norte-americanos, ainda no períododa segunda guerra mundial, a passar um tempode estudos no Brasil, no caso em São Paulo.Seus colegas e contemporâneos, aí, incluíamAntônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda eFlorestan Fernandes. Nesse sentido, ele era maispai da geração de Fernando Henrique Cardosodo que da nossa.

No cargo que ocupava na Fundação Ford,na primeira metade dos anos setenta, ele apoioufortemente a criação de um dos maiores centrosmundiais de preservação de documentos e de-poimentos, e de pesquisas sobre o século xx.Refiro-me ao CPDOC, organização modelo queem 2003 completará trinta anos de vida. Lembrobem da visita que fiz com ele à Biblioteca Nacio-nal (ainda naquele mês de julho de 1974), e foino CPDOC que ele me apresentou à CelinaMoreira Franco, a força vital atrás desse empre-endimento. Outras iniciativas, as mais variadas einovadoras, também receberam o aval de Morse.

Nas questões políticas da época, ele opera-va com a maior discrição. Buscava "dicas" comseus velhos amigos brasileiros na sua subtil resis-tência ao regime de então, favorecendo e aprovei-

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tando das brechas (como a própria SBPC) para"abrir espaço", como se dizia na época. Morse, nomeu entender, não foi "político" - nem no sentidomilitante, nem no convencional. Lembro quandolhe pedi sua assinatura num documento que es-crevi denunciando a morte sob tortura de VladimirHerzog (documento que eu não assinei por meachar um opositor do regime por demais conheci-do, mas que foi publicado na New York Review ofBooks), ele hesitou bastante. Mas, depois de terconfirmada a participação de Charles Wagley,Stanley Stein, Thomas Skidmore, e Alfred Stepan,prestara ele então seu apoio incondicional.

Acho que os abaixo-assinados não com-binavam bem com seu estilo, mais dado às ter-túlias e discussões intelectuais.

O Espelho do Próspero era bem mais doseu gênio e da sua visceral crítica aos seus con-temporâneos norte-americanos. Mesmo assim,ele não sofreu muito por ter-se expressado tãoabertamente. Da Ford Foundation, ele foi para aUniversidade de Yale e, em seguida, para a deStanford (depois de uma briga sobre a outorgade cargo vitalício à Emilia Viotti da Costa, deque ele discordava - perdeu a questão e porisso, corria na época o boato, deixou a universi-dade de Yale). Mais tarde foi convidado peloWoodrow Wilson International Center ForScholars, em Washington, DC, então gerenciadopelo grande russólogo James Billington - que éhoje o atual Diretor da Biblioteca do Congressodos EE. UU. - e creio, também, que antigo cole-ga seu na Princeton University, onde Morse fezsua graduação, passou ele um tempo aí, encar-regado do programa latino-americano.

Diria que foi entre os Pau listas que Morsefoi sempre benquisto e hoje muito pranteado, comoo assinala o artigo -O Americano Intranqüilo-, deCarlos Guilherme Mota, na Folha de São Paulo, de25 de abril. Não é de surpreender-se: discípulostambém de Antônio Cândido, as novas geraçõeschegaram a apreciar Morse e sua contribuição deuma maneira leal e compreensível.

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Diria mais que Morse tocava com cons-tância a mesma música e fazia muitas improvi-sações sobre a mesma. Com insistência, ele erguiacomo uma bandeira de uma cruzada a nova cul-tura da América Latina, que ele descobriu quan-do ainda moço e a reteve a vida toda como umgrande tesouro civilizatório.

Acrescento ainda que, além da ironia e dairreverência - virtudes tão caras não só aos bra-sileiros, mas a todos nós que buscamos armasdiversas para as nossas batalhas - e da paixãopelas idéias, ele adorava o Brasil, uma boa ca-chaça, as mulheres, o samba, o carnaval (em1975, eu participei com ele e sua esposa de umensaio da Mangueira, escola em que ela desfi-lou naquele anol), e também a desvairadapaulicéia, os intelectuais paulistanos, e os seuspróprios filhos e sua esposa.

Poderia ter vivido mais plenamente?!

NOTAS

• No tom coloquial deste depoimento, o autorrefere-se aí ao seu ensaio -Brazilian Messianismand National Institutions: a reappraisal of Ca-nudos and Ioaseiro-, cuja tradução realizei, ten-do sido publicado na Revista de Ciências Sociais(UFC), Fortaleza, vol. VI, n.Q 1 e 2 (1975): 121-139. [Nota de Eduardo Diatahy B. de Menezes].

•• Mais uma vez o autor adota o tom coloquial ese dirige a mim. [Nota de Eduardo Diatahy B.de Menezes].

••• O autor refere-se ao: Formação Histórica deSão Paulo (de comunidade a metrópole). Col.-Corpo e Alma do Brasíl-. São Paulo: Difel, 1970.[Nota de Eduardo Diatahy B. de Menezes].

1 "Toward A Theory Of Spanish Government",journal OfThe History Cf Ideas, vol. 15 (january1954), pp. 71-93.

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11MORRE CALASANS, A MEMÓRIA VIVA DA HISTÓRIADE CANUDOS

Quando a nossa existência individual seprolonga, seguimos pela vida a acumular perdasde relações amigas que se vão. Foi assim, agora,com este velho amigo, mestre e companheiro namesma paixão pela história do Sertão e a de Ca-nudos em especial. Às 22hOO do dia 28 de maio,em sua residência em Salvador, faleceu JoséCalasans Brandão da Silva 0915-2001), com 86anos incompletos e 55 anos de "canudologia":perdemos a memória viva da história de Canu-dos, de sua guerra, de sua gente e de seu líder,de sua utopia sertaneja e cristã. Estudioso quealimentou a chama sagrada da busca pela veraci-dade de uma história de oprimidos tão vilipendi-ada pelos discursos sapientes e por umahistoriografia tradicionalista. Seu empenho deci-dido deu alento a inúmeras gerações de pesqui-sadores que, felizmente, têm enriquecido os rumosque ele trilhou, ampliou e iluminou.

Cineasta e pesquisador baiano, que diri-giu Paixão e Guerra no Sertão de Canudos e quemantém na Internet uma das páginas mais ricasde documentação sobre Canudos, Antônio Olavofoi quem me deu a notícia por essa via. Curtanota de solidariedade. No meu espanto, escrevi-lhe pedindo pormenores. No dia seguinte, eledizia que Calasans vinha mal há tempo, lembra-va o derrame que tivera há uns 8 ou 9 anos e ascrises de depressão que o acompanharam des-de então, mal penoso quando vem na juventu-de e tanto mais duro ainda na vetusta idade.(Sobre isso, recordo que de duas vezes em queele se comprometeu a participar como confe-rencista em seminários sobre Canudos, promo-vidos aqui na Universidade Federal do Ceará,em 1993 e 1997, por ocasião dos centenários dafundação e da destruição de Belo Monte, elenão compareceu por acometido dessas crises).A família instalara uma UTI dentro de casa paracuidar dele a toda hora. Na noite do dia 28,adormecera definitivamente.

No dia 31 de maio, foi lançado em Salva-dor um livro dedicado a Calasans, Os Intelectu-ais e Canudos, organizado por Manoel Neto eRoberto Dantas, e que lhe foi entregue dois diasantes de sua morte. Sua filha Madalena, psicólo-ga que mora no Rio, estava presente e comen-tou: -foi a última grande emoção que ele teveem vida •.

Imediatamente, enviei a notícia para vári-os colegas, dentre os quais Eduardo Hoornaert,Ralph Della Cava e Idelette Muzart. Esta, profes-sora da Universidade de Paris X - Nanterre, co-ordena uma lista de discussão sobre Brasil-Françana Internet, espalhou a notícia aos quatro ven-tos e lembrou um fato curioso que mostra bemo espírito brincalhão de mestre Calasans: em ja-neiro de 1986, quando participávamos do En-contro de Laranjeiras - próxima de Aracaju, estacidade é promotora desse evento que congregaestudiosos da cultura popular - cujo homenage-ado daquele ano era justamente o professorCalasans. No discurso de abertura, o Prefeito dacidade dirigiu-se a ele com expressões como ·0

grande setuagenáriol-, "o ilustre setuagenário-,-o nosso setuagenário-, etc. Calasans, sentadona primeira fila do auditório, ao lado de Idelette,comentou para ela em voz bem clara: "Se estehomem ainda insistir em me chamar de velho,eu vou xingar a mãe delel-. Por certo as risadasda primeira fila encurtaram a oratória prefeitoral.

Participei desse Encontro, que durou 3 ou4 dias. A manhã do sábado foi livre. Calasansme convidou a acompanhá-Io numa caminhadapelo Mercado Central. Ele era sergipano e nas-cera em Aracaju, no dia 14 de Julho, data nacio-nal da França, em que esta comemora suaRevolução. Mas Calasans, com seu temperamentoafetuoso e convivial, nada tinha de revolucioná-rio, mas antes de missionário das coisas de nos-sa história. A despeito do volume de trabalhosque publicara, Calasans era sobretudo um ho-mem de fala rica e sábia, arrimado em prodigio-sa memória. Recordo ainda de nossa longaconversação em que discutíamos sobre váriostemas em torno de Sílvio Romero, de sua polê-

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mica com Teófilo Braga, etc. Mas recordo, so-bretudo, que Calasans em meio aos corredoresdo mercado, parava a toda hora para trocar con-versa animada com a gente do povo e, em vári-as barracas, ia comprando uns marte linhos demadeira bem torneados - semelhantes a essesque usa um Juiz - e em seguida os enfiava noenorme bolso de seu paletó. Intrigado, indaguei-lhe sobre o significado daquilo. E ele de prontoexplicou: -Esses martelinhos só existem aqui emAracaju. Nos sábados, reúno em minha casa, emSalvador, a turma do Instituto Histórico para to-mar cerveja e comer caranguejo. Vou fazer esseregalo aos colegasl-.

Era esse o homem que conheci, bom ami-go e desprendido, que distribuía generosamen-te seus conhecimentos com todos. E eu poderianarrar inúmeros fatos pitorescos de manifesta-ções semelhantes do seu gênio bem humorado.Mas prefiro registrar que participavam tambémdo Encontro dois outros velhos amigos que jáse foram: Cândido Procópio Ferreira de Camargoe Thales de Azevedo.

Todavia, conheci Calasans num outro gran-de evento, um debate memorável para os estu-diosos da história de nossos movimentospopulares. Refiro-me à Reunião da SBPC, emRecife, no ano de 1974, na mesa-redonda sobreCanudos e temas correlatos, de que participa-ram vários amigos: José Calasans, Thales de Aze-vedo, Duglas Teixeira Monteiro, Walnice Galvãoe Ralph Della Cava. Destes amigos e compa-nheiros de jornada, só os dois últimos permane-cem vivos, pesquisando e publicando. Porcoincidência, acaba de sair, em maio, um ensaiode Walnice Nogueira Galvão, com dedicatóriajustamente a José Calasans: O Império do BeloMonte - vida e morte de Canudos, São Paulo,Editora Fundação Perseu Abramo, 200l.

Do mesmo modo que Idelette Muzart,Eduardo Hoornaert me respondeu de imediatocom este comentário: -Larnento com você a mortedo mestre Calasans. Eu o chamo de 'o Tucídidesde Canudos', pois como Tucídides superouHeródoto em separar o rigorosamente histórico

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(baseado em depoimentos e 'história oral' avantIa lettre) do mítico e lendário, Calasans come-çou a trabalhar Canudos além do 'mitológico'de Euclydes da Cunha. Isso até agora não estáclaro entre os estudiosos de Canudos e da histó-ria do Brasil em geral..

Calasans fizera seu curso secundário noAteneu Sergipense. Bacharel em 1937, pela Fa-culdade de Direito da Bahia, volta à sua cidade,ensina no Colégio Estadual de Sergipe e torna-se catedrático da Escola Normal Rui Barbosa.Fixa, a partir de 1947, residência definitiva emSalvador. Ensina na Universidade Católica e naFaculdade de Filosofia da Universidade da Bahia.Pelo velho regime, em 1951, faz concurso deLivre-Docência de História do Brasil nessa Fa-culdade, onde defende a tese: O Ciclo do BomJesus Conselheiro. Conquista depois, nessa mes-ma Faculdade, a cátedra de História Moderna eContemporânea mediante concurso em que éaprovado na defesa da tese Os Vintistas e a Re-generação Econômica de Portugal, em 1959.Chefiou por muito tempo o Departamento deHistória dessa Faculdade, de que foi Diretor nosanos de 1974 e 1975; e, de 1980 a 1984, ocupouo cargo de Vice-Reitor da UFBA. Foi membroatuante do Instituto Geográfico e Histórico daBahia e da Academia de Letras da Bahia, e diri-giu, até recentemente, o Museu Eugênio TeixeiraLeal - Memorial do Banco Econômico.

Como iniciara desde jovem suas pesqui-sas folclóricas e históricas sobre o tema de suapredileção, ao casar pilheriou com o nome desua mulher, Lúcia Maciel, dizendo ao sogro:·Até que enfim vou ter alguém na família com osobrenome do Conselbeiro» Em perfeita harmo-nia com esse espírito brincalhão, Calasans eraum pesquisador sério e inovador. Com efeito,bem antes de se tornar um procedimento siste-mático da historiografia moderna, ele superoua versão oficial e tradicional sobre Canudos,não só vasculhando ampla documentação nosarquivos da Bahia, Sergipe, Pernambuco e Ce-ará, bem como nas trilhas e povoados dos ser-tões que percorreu longamente, mas sobretudo

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reconstituindo a sua história oral, colhida deremanescentes e combatentes do Arraial do BeloMonte. Dava maior valor a esses testemunhosvivos e zombava de dados pretensamente rigo-rosos: -Estatísticas de guerra - dizia ele - sãoiguais a estatísticas de comicio.» Eu próprio tro-çava com ele, dizendo que na confraria dosestudiosos de Canudos: da Bahia para o Sul,eles são euclydianos; da Bahia para o Norte,somos conselheiristas. E ele sempre sublinha-va que Euclydes da Cunha, em sua obra-prima,trancara Canudos numa gaiola de ouro.

Calasans era um investigador infatigável.E foi divulgando os resultados de seu labor emartigos e ensaios, que espalhou por inúmerosperiódicos no Brasil e no exterior. Desde os anos50, saiam seus primeiros livros e opúsculos so-bre essa temática: em 1950, o mencionado OCicloFolclórico do Bom Jesus Conselheiro - con-tribuição ao estudo da Campanha de Canudos(Salvador: Tipografia Beneditina); em 1952, AGuerra de Canudos na Poesia Popular (Salva-dor: Centro de Estudos Baianos) - sobre o as-sunto, ele dará depois um estudo mais amplo,Canudos na Literatura de Cordel (São Paulo:Ática, 1984); em 1957, saiu Euclydes da Cunha eSiqueira Menezes (Aracaju: Movimento Culturalde Sergipe); enfim, em 1959, enfeixando algunsdos ensaios anteriores e contendo outros no-vos, como o curioso estudo -As Mulheres de OsSertões-, publicou o livro No Tempo de AntônioConselheiro - figuras e fatos da Campanha deCanudos (Publicações da Universidade daBahia). Nesta obra, apresenta de forma sistemá-tica a primeira bibliografia comentada dos estu-dos sobre Canudos e dá, em germe, um-vocabulário de Canudos-, que constituiria maistarde seu grande livro de pesquisador do tema,o Dicionário de Canudos, com mais de 600 ver-betes, cuja publicação prometera para 1997, cen-tenário da destruição de Belo Monte, mas quedeixou inédito.

Além de outros trabalhos seus, tais comoo precioso Quase Biografias de Jagunços - oséqüito de Antônio Conselheiro (Centro de Es-

tudos Baianos da UFBA, 1986) ou o seu livroCartografia de Canudos (Salvador, Conselho Es-tadual de Cultura, 1997) em que compedia vá-rios artigos e ensaios, ou ainda merecemencionado seu bom ensaio -Canudos não-Euclidiano: fase anterior ao início da Guerrado Conselheiro-, publicado no livro organiza-do por José Augusto Vaz Sampaio Neto e cola-boradores, que constitui a bibliografia maiscompleta sobre a temática, Canudos- Subsídi-os para a sua reavaliação história (Rio de Ja-neiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986),além desses trabalhos, repito, Calasans bata-lhou também pela reedição de algumas obrasraras sobre o tema, livros que ele prefaciou,como por exemplo: Odorico Tavares, Canu-dos, Cinqüenta Anos Depois - 1947 (Salvador:Conselho Estadual de Cultura, 1993); e AlvimMartins Horcades, Descrição de Uma Viagem aCanudos (Salvador; EdUFBA, 1996).

Com o imenso saber que acumulara sobreo assunto, tornou-se uma referência internacio-nal e obrigatória de todos quantos se debruçamsobre a matéria. Amigo fiel, jamais negou ajudasempre que dele precisei para alguma informa-ção ou o mais freqüentemente para obter cópiade algum documento.

Em 1983, doou à Biblioteca Central daUFBA tudo quanto, nos seus anos de estudo epesquisa, garimpou de documentação sobreCanudos, sobre Antônio Vicente Mendes Maciel- o Conselheiro, e até sobre Euclydes da Cu-nha: livros, revistas, jornais da época, docu-mentos particulares como cartas e bilhetesescritos durante o conflito, depoimentos desobrevivente e seus descendentes, etc .. Umacervo de 4 mil volumes com que funda assimo Núcleo do Sertão, que se acha hoje localiza-do no Centro de Estudos Baianos, e onde hácoisas preciosas e raras como o manuscritoencadernado das anotações evangélicas e ser-mões do Conselheiro, que tive a alegria e aemoção de examinar aí.

Mas uma das maiores contribuições deCalasans foi sem dúvida ter recomposto pacien-

BEZERRA DE MENEZES, EDUARDO DIATAHY. IN MEMORIAM - RICHARD MORSE: MORRE UM HUMANISTA. P. 131 A 138 137

Page 8: I RICHARD MORSE: MORRE UM HUMANISTA - repositorio.ufc.br · nos. Os anos de doença e a distância física en-tre nós preparam-me para isso que é, assim mesmo, uma grande perda

temente e dignificado, com seu trabalho de pes-quisador, a imagem e o valor de Antônio VicenteMendes Maciel, esse seguidor do Padre Ibiapina,imagem e valor degradados pelas elites brasilei-ras: políticos, Igreja, a tradição letrada e o Exér-cito nacional. Calasans confirma em pormenor,com sua obra, a denúncia que Euclydes pôs naNota Preliminar com que abre seu Os Sertões:

«Aquela campanha [contra Canudos] ... foi,na significação integral da palavra, um crime.»

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Idéia semelhante àquela que vem expres-sa nos versos candentes do belo Romanceiro daInconfidência, de Cecília Meireles:

•Toda vez que um justo grita,um carrasco o vem calar.Quem não presta, fica vivo:quem é bom, mandam rnatar..

Fortaleza, 21 de junho de 2001.

2001