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Os doze trabalhos de Hércules

Monteiro Lobato

Atualização ortográfica e projeto gráfico

Iba MendesIba MendesIba MendesIba Mendes

Publicado originalmente em 1944.

Ilustração: Jerônimo Ribeiro

Livro Digital nº 1058 - 1ª Edição - São Paulo, 2019.

Literatura Infantil - Literatura Brasileira.

José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)

Iba Mendes Editor Digital www.poeteiro.com

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PROJETO LIVRO LIVRE

Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia...

E manda o povo pensar! O livro caindo n'alma

É germe — que faz a palma, É chuva — que faz o mar.

Castro AlvesCastro AlvesCastro AlvesCastro Alves

O Projeto Livro Livre é uma iniciativa que propõe o compartilhamento, livre e gratuito, de obras literárias já em Domínio Público ou que tenham a sua divulgação devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato Digital. Sendo assim, não objetivamos fins comerciais ou promoção política. Tal qual o saudoso Nelson Jahr Garcia, pioneiro na divulgação do Livro Digital no idioma português, sempre estudei por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos. Por isso, sinto-me também na obrigação de "retribuir ao menos uma gota do que ela me

proporcionou". Daí o nosso esforço que se resume na simplicidade e na solidariedade.

***

Segundo normas e recomendações internacionais estabelecidas pela maioria dos países, incluindo Brasil e Portugal, uma obra literária entra em Domínio Público 70 anos após a morte do seu criador intelectual.

O nosso Projeto, que tem por objetivo colaborar na divulgação da Literatura em Língua Portuguesa, em suas variadas modalidades, busca assim não violar nenhum direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por imprecisa razão, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza de nos informar no e-mail: [email protected], a fim de que seja imediatamente suprimido de nosso acervo.

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Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a proteção da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temível inibidor ao livre acesso dos bens culturais. Assim esperamos!

***

O Livro Digital é – certamente – uma das maiores revoluções no âmbito editorial em todos os tempos. Hoje qualquer pessoa pode editar sua própria obra e disponibilizá-la livremente na Internet, sem aquela imperiosa necessidade das editoras comerciais. Graças às novas tecnologias, o livro impresso em papel pode ser digitalizado e compartilhado nos mais variados formatos digitais, tais como: PDF, MOBI, EPUB, entre muitos outros. Contudo, trata-se de um processo lento e exaustivo, principalmente na esfera da realização pessoal, implicando ainda em falhas decorrentes da própria atividade de digitalização. Por exemplo, erros e distorções na parte ortográfica da obra, o que pode tornar ininteligíveis palavras e até frases inteiras. Embora todos os livros do Projeto

Livro Livre sejam criteriosamente revisados, ainda assim é possível que algumas dessas falhas passem despercebidas. Desta forma, se o distinto leitor puder contribuir para o esclarecimento de eventuais incorreções, pedimos gentilmente que entre em contato conosco, a fim de efetuarmos as devidas correções.

***

Ressaltamos, por fim, que o Projeto Livro Livre não se limita a simples publicação de textos já disponíveis na Internet, sem qualquer critério. Em vez disso, pautamos nosso trabalho no esmero gráfico e ortográfico, na digitalização e atualização de novas obras, na publicação de autores do nosso tempo, na conversão de livros em áudio etc. Buscamos assim popularizar o Livro Digital, tornando-o acessível a qualquer pessoa e sem nenhum custo.

É isso!

Iba Mendes

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ÍNDICE

ALGO MAIS: Esse extraordinário Monteiro Lobato!...............

O LEÃO DA NEMEIA Hércules............................................................................................ Preparativos..................................................................................... Perto da Nemeia.............................................................................. Na Nemeia........................................................................................ O encontro........................................................................................ O couro do leão................................................................................ O jantar do herói.............................................................................. A HIDRA DE LERNA Os centauros..................................................................................... Em Micenas...................................................................................... O Visconde desgarra-se.................................................................. A cabeça de Medusa........................................................................ Meioameio........................................................................................ A pele do leão................................................................................... A CORÇA DE PÉS DE BRONZE A corça de pés de bronze................................................................ Em Micenas de novo....................................................................... O Monte Cirineu.............................................................................. A Corça.............................................................................................. O plano de Pedrinho...................................................................... Segundo salvamento do Visconde................................................ Vitória................................................................................................ O JAVALI DE ERIMANTO O javali de Erimanto....................................................................... Luta com os centauros.................................................................... Rumo ao Erimanto.......................................................................... A Fênix.............................................................................................. Pã, o deus da Arcádia...................................................................... O Monte Erimanto..........................................................................

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Rumo a Micenas............................................................................... A fuga do javali............................................................................... AS CAVALARIÇAS DE AUGIAS As cavalariças de Augias................................................................ Os argonautas................................................................................... O Rei Augias..................................................................................... Segunda expedição de Hércules.................................................... O louco.............................................................................................. No palácio de Medeia..................................................................... O rei antipático................................................................................. AS AVES DO LAGO ESTINFALE As aves do Lago Estinfale............................................................... Amor, amor...................................................................................... O esparramo das aves.................................................................... A volta............................................................................................... Mais façanhas de Hércules............................................................. Dionisos............................................................................................. Enristeu enfurece-se........................................................................ O TOURO DE CRETA O touro de Creta.............................................................................. Tudo deu certo................................................................................. A pega do touro............................................................................... O rastreamento................................................................................. Dédalo.............................................................................................. O herói-menino................................................................................ A loucura do rei............................................................................... OS CAVALOS DE DIOMEDES Os cavalos de Diomedes................................................................. Em Delfos.......................................................................................... Hércules acalma-se.......................................................................... As éguas............................................................................................ A mudez de Emília.......................................................................... O caldeirão de Medeia....................................................................

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O CINTO DE HIPÓLITA O cinto de Hipólita.......................................................................... A virada............................................................................................ O asno de Ouro................................................................................ Rumo a Temiscira............................................................................ Tudo vai bem.................................................................................... Os bois de Gerião............................................................................. OS BOIS DE GERIÃO Os bois de Gerião....................................................................... Oceano.......................................................................................... Na ilha de Gerião............................................................................. Avé, Avé, Evoé! ................................................................................. A boiada....................................................................................... Faetone.......................................................................................... Nos domínios de Clóris.................................................................. O POMO DAS HESPÉRIDES O pomo das Hespérides................................................................. O deus e o herói............................................................................... No palácio de Nereu....................................................................... No jardim.......................................................................................... O dragão de cem cabeças................................................................ A volta............................................................................................... Prometeu........................................................................................... O abutre............................................................................................. HÉRCULES E CÉRBERO Hércules e Cérbero.......................................................................... No inferno......................................................................................... Desapontamento do rei................................................................... Desasnamento de Lúcio.................................................................. Belerofonte....................................................................................... Despedidas.......................................................................................

330 334 339 344 356 365 368 373 379 385 390 403 406 411 415 421 426 432 438 443 449 451 456 464 471 477 481

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ESSE EXTRAORDINÁRIO MONTEIRO LOBATO! Coisa difícil e fácil a gente escrever sobre Monteiro Lobato. A gente pensa que é fácil porque há um mundo de coisas para dizer sobre a sua obra, a sua vida, as suas atitudes, mas difícil, por isso mesmo, porque não sabemos como começar, nunca achamos ter dito o suficiente, e percebemos que nunca chegaremos mesmo a dizê-lo. Precisamos de mais distância. Ainda nos encontramos muito ao pé da montanha, não nos afastamos o necessário para perspectivá-la. E, no entanto, Monteiro Lobato é tão simples, tão humano, tão accessível, tão sincero, que conquistou as crianças do Brasil, todas as crianças, de todas as idades. Eu não o conheço pessoalmente, mas acredito na sua sinceridade, porque seria impossível conceber que um escritor que fez da verdade o substrato de todas as suas páginas, das mais ingênuas às mais sérias, tivesse coragem para se enganar a si próprio. O estilo é o homem, e no caso de Monteiro Lobato, basta lê-lo, para se descortinar o homem "por dentro" sem "véus diáfanos", sem tibiezas, sem distorcismos. Ainda agora, relendo muitas de suas páginas, e entrando em contato com outras inéditas, todas enfeixadas pela Cia. Editora Nacional num magnífico volume comemorativo do 25º aniversário de sua estreia como escritor, me deixo aqui, de cócoras, a matutar na sua extraordinária personalidade. Lobato é complexo e simples. Talvez o complexo nele seja a vida, seja a variedade de assuntos que atraem a sua atenção, o mundo mesmo, "o vasto mundo" de Carlos Drummond de Andrade. O simples é ele mesmo, sua maneira de contar, de dizer, de transmitir o complexo. No fim, devo estar meio

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paradoxal, mas vá lá. Lobato também o é. Nele, há um pouco de tudo, na multiplicidade de suas atividades intelectuais. Mas, é sempre ele mesmo, quer se trate de uma acanhada tertúlia sobre ortografia e acentuação, quer de um problema vital para o Brasil, como a questão do petróleo. É a rês extraviada, singularmente extraviada pelo caminho certo, evitando a manada que vai passivamente, a toque de flauta e sob a estocada do espigão, para os currais. Mas bem poucos como Lobato podem tomar tais atitudes, porque ele realmente tem em si as credenciais de cultura, inteligência e coragem moral, necessárias para remar contra a corrente. Caberia aqui, aquele pensamento de Romain Roland: "Pensar sinceramente, mesmo que seja contra todos, ainda é pensar por todos". Estes aspectos da personalidade de Monteiro Lobato, podemos observar neste volume: "Urupês, outros contos e coisas", onde, sob sua supervisão, se encontram selecionadas as suas páginas mais decisivas, a respeito dos aspectos e problemas que mereceram sua análise e estudo. Por estes dias de muita sombra e subserviência, quando um grande número de intelectuais preferiu ao silêncio digno, ou ao menos, a entrelinha imprevidente e audaciosa, a demagogia fácil e remunerada do sabujismo, confesso que minha admiração por Lobato, se não cresceu, ganhou em intensidade. Ele é daqueles escritores que ainda se dão ao luxo de usar uma coluna vertebral, e dá gosto a gente ouvir esse idioma estranho de independência, espécie de "sermo eruditus" abolido diante da invasão barbárica. Há na prosa do autor de Mr. Slang e o Brasil, quando ela vai além do conto, da obra de ficção, e focaliza assuntos sérios, no campo econômico e social, um ar irreverente e superior de espadachim da pena. E se esse intemerato d'Artagnan caboclo há de irritar os que não ousam terçar armas com ele aberta e lealmente, em campo neutro, a nós moços, só entusiasmo pode causar. Afinal de contas, Lobato é uma tábua de salvação, à qual se apegam os que não querem soçobrar definitivamente. Dia chegará em que todos avistaremos terra, e pisaremos terra, e seremos novamente livres.

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O que agrada sobretudo em Monteiro Lobato é a sua dupla independência de estilo e caráter, realizando uma obra limpa, objetiva, realista, mas nem por isso isenta daquele sopro mágico de beleza, que é o que caracteriza a verdade que também é arte. De um modo geral, no entanto, o "pai" do Jeca Tatu não é homem de palavras, mas de assuntos. Dele não se dirá o que se disse de certo clássico português, "que era um estilo à procura de assunto". Em Lobato, há uma coincidência feliz, mas foi sem dúvida o "assunto" que encontrou um estilo, e que estilo! Foi assim que, de certa feita, precisando defender seus interesses que eram os interesses de toda uma coletividade, "virou" escritor da noite para o dia. O fato é que nele o "assunto" dominou sempre a palavra, porque Lobato é destes raros escritores que só escrevem quando realmente têm alguma mensagem a transmitir. A palavra nele, sempre traduz alguma coisa. Nunca sobra, enfeita, é luxo de estilo. Ao contrário, é um instrumento da ideia, da criação. Explica-se por isso o horror que ele tem ao preciosismo, ao academismo, ao rebuscado, numa palavra: ao verbalismo "snob" metido a literatura. Curioso é que este admirável "provinciano" do mundo, ao contrário dos outros provincianos, os de província, e por isso, mesmo, nunca fez questão de esconder a origem. Geralmente o literato provinciano chega à cidade grande envergonhado da sua "espécie", com um artiguinho pronto sobre um acadêmico qualquer. Fala baixo, feito seminarista, abaixa as pálpebras, feito menina de colégio de freira, é todo humildade diante dos "nomes" da capital. Em pouco, porém, se enverniza de "civilização", faz questão de perder os ares de "imigrante", cobre as canelas, sacode o pó das sandálias, perfura uma rodinha, faz os seus artigos encomiásticos, e se tem talento realmente, dentro de algumas semanas "corta" todos os colegas, faz blague sobre os acadêmicos seus amigos, e sabe sorrir ironicamente à Eça... Oh! o sorriso à Eça dos intelectuais que se naturalizaram citadinos... Mas, que tem isso a ver com o admirável observador de "Problema vital"? Nada evidentemente. O regional em Lobato é acidente. Nele,

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na realidade, tudo é universal. Não conheço nacionalismo mais "do mundo" que o deste caboclo das serras da Mantiqueira, que um dia, casualmente, "forçado pelas circunstâncias" encontrou o seu verdadeiro "talweg". (Terá realmente encontrado?) O nacionalismo de Lobato não tem parentesco nenhum com qualquer nacionalismo pigmentado ou reacionário. É realista, objetivo. Não vê o Brasil através das lentes do romantismo, muito menos das lentes de aumento do "ufanismo" que tocou às raias do absurdo e do ridículo. O seu primeiro artigo até sobre o nosso "Jeca", revolucionou os arraiais "nacionalistas". Foi preciso que Rui, no seu célebre discurso sobre "A questão social e política no Brasil", endeusasse a figura do Jeca Tatu desenhado por Monteiro Lobato, para que os brasileiros reconhecessem que o Brasil estava de cócoras. Lobato amou sempre na sua terra, a terra dos homens; nos homens de sua terra, o homem, animal às vezes racional, com todos os seus defeitos e qualidades. Como bem acentua Artur Neves, no prefácio que dedicou a esta "antologia" lobateana, referindo-se ao aparecimento de Urupês: "Daí por diante a obra de Monteiro Lobato, em todos os setores, vai ser uma obra de denúncia implacável e sistemática: denúncia da falseação política; denúncia do estado de lazeira das populações do interior ("Problema vital"), denúncia da "ignorância e da patifaria do governo" ("Mr. Slang e o Brasil"), denúncia da sabotagem das riquezas feita pelo oficialismo a serviço do imperialismo ("O Escândalo do Petróleo"), denúncia dos esnobismos e da macaquice do que hoje chamamos granfinismo ("Ideias de Jeca Tatu"), denúncia de todas as "estilizações" das fraquezas nacionais e de todas as racionalizações dos nossos defeitos. "Na Antevéspera", "América", prefácios e inúmeros artigos em jornais e revistas. A mentira, o enfeite sistemático das nossas coisas, desesperava-o. Mas Lobato sabia fazer Justiça. Depois que verificou que a causa da "ruindade" do nosso Jeca, era mais a doença do que outra coisa, não teve pejo de pedir-lhe perdão." O fato é que, no artigo, no conto, em livros; poético, satírico, irônico, sério ou brincalhão, piedoso ou irreverente, Lobato nunca traiu a

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verdade, e nunca se envergonhou de reconhecer um caminho errado, para procurá-la num outro melhor. É dessas inteligências que não cabem em definições, nem podem ser catalogadas, e isto pela simples razão de que possui medidas e dimensões próprias. Não pertence a escolas, igrejinhas ou grupos. É um franco atirador das letras, guerrilheiro do ideal. No máximo, podem-nos acorrer ao pensamento outros grandes escritores, quando certas tangências espirituais nos levam a essas remotas aproximações. Às vezes, na sua descrição, o paisagista nos leva a pensar em Euclides da Cunha, nos seus melhores trechos, muito embora haja na realidade, sob o ponto de vista estilístico, um abismo entre ambos. Outras vezes nos lembramos de Machado de Assis. Já pensei em Chaplin, em Carlitos — o cômico-trágico, lendo alguns dos seus contos, ou aquelas suas páginas de flagrantes da vida. Se abro seus livros de criança, meus olhos se enchem de desenhos coloridos à Walt Disney. Na realidade, não há influência em Lobato. Posso pensar em Bernard Shaw ou La Fontaine, mas Lobato é sempre Lobato, e sua obra é singular e característica nas letras brasileiras. E com toda a sua irreverência e adorável simplicidade, é um puro "clássico" da melhor literatura moderna do Brasil.

--- J. G. DE ARAÚJO JORGE

Revista "Letras Brasileiras", março de 1944. Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES

O LEÃO DA NEMEIA

HÉRCULES

Na Grécia Antiga o grande herói nacional foi Héracles, ou Hércules, como se chamou depois. Era o maior de todos — e ser o maior de todos na Grécia daquele tempo equivale a ser o maior do mundo. Por isso até hoje vive Hércules em nossa imaginação. A cada momento, na conversa comum a ele nos referimos, à sua imensa força ou às suas façanhas lendárias. Dele nasceu uma palavra muito popular em todas as línguas, o adjetivo "hercúleo", com a significação de extraordinariamente forte.

A principal característica de Hércules estava em ser extremamente forte, extremamente bruto, mas dotado de um grande coração. No calor das façanhas muitas vezes matava culpados e inocentes — e depois chorava arrependido. Disse Anatole France: "Havia em Hércules uma doçura singular. Depois de em seus acessos de cólera golpear culpados e inocentes, fortes e fracos, Hércules caía em si e chorava. E talvez até tivesse dó dos monstros que andou destruindo por amor aos homens: a pobre Hidra de Lerna, o pobre Minotauro, o famoso leão do qual tirou a pele para transformá-la em peliça. Mais de uma vez, ao fim dum daqueles feitos, olhou horrorizado para a clava suja de sangue... Era robustíssimo de corpo e mole de coração."

— Coitado! Tinha coração de banana...

— Esta conversa ocorria no Sítio do Picapau Amarelo, entre a boa Dona Benta e seu neto Pedrinho. E o assunto recaíra em Hércules porque o garoto estivera a recordar passagens das suas aventuras na Grécia Heroica, como vem contado no O Minotauro.

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— E se voltarmos para lá? — exclamou Pedrinho. — Aquela Grécia não me sai da cabeça, vovó... — Para que, meu filho? — Para assistirmos às outras façanhas de Hércules. Só vimos uma: a destruição da Hidra de Lerna. São doze... Dona Benta fez ver que o fato de terem saído incólumes da luta entre Hércules e a hidra fora um verdadeiro milagre, sendo impossível que tal milagre se repetisse nas outras façanhas. — Eu quase morri de medo — disse a boa velhinha — quando, lá na casa de Péricles, em Atenas, tive comunicação de que você, Emília e o Visconde estavam assistindo a essa luta de Hércules com a tal serpente de sete cabeças... — Nove — corrigiu Pedrinho. — Oito mortais e uma imortal. — Ou isso. Quase morri de medo, porque bastava que uma simples gota do sangue da hidra espirrasse em vocês para irem todos para o beleléu. Pedrinho danava com aqueles medos da vovó. Sempre que ele sugeria alguma aventura nova, lá vinha ela com o tal medo e a tal pontada no coração. Resultado: ele metia-se nas aventuras do mesmo modo, mas escondido, sem licença dela. "Os velhos não entendem os novos"— dizia Pedrinho. "Querem nos governar, querem nos obrigar a fazer exatinho o que eles fazem. Esquecem-se de que se fosse assim, o mundo parava — não havia nada novo... E note-se que vovó não é como as outras velhas. No começo não quer, e opõe-se; mas se realizamos às escondidas alguma aventura, assim que vovó sabe faz uma cara de espanto e de zanga, mas esquece logo a zanga e gosta, e às vezes ainda fica mais entusiasmada do que nós mesmos." E Narizinho acrescentou: "Vovó diz que não, só por dizer, porque o tal 'não' sai da boca dos velhos por força do hábito. Mas o 'não' de vovó quer quase sempre dizer 'sim'."

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Dona Benta opôs-se a que Pedrinho voltasse à Grécia para tomar parte nas onze façanhas do grande herói, mas opôs-se dum modo que era o mesmo que dizer: "Vá, mas escondido de mim..." e Pedrinho exultou. — Falei com vovó — foi ele correndo dizer a Narizinho — e ela veio com aquele "não" de sempre, que nós traduzimos por "sim." Vou mandar o Visconde fabricar o pó de pirlimpimpim necessário. Volto lá com o Visconde e a Emília... — E eu? Fico chupando no dedo? — Ah, você não pode ir, Narizinho. Vovó não anda boa do reumatismo, tem necessidade de um de nós sempre junto dela.

PREPARATIVOS Pedrinho explicou ao Visconde os seus planos de nova viagem pelos tempos heroicos da Grécia Antiga. "Vamos nós três, eu, você e Emília." — Emília já sabe do projeto? — Já, e está atropelando tia Nastácia para que lhe arrume uma canastrinha nova. Diz que desta vez vai completar o seu museu com mil coisas gregas. O Visconde suspirou. Sempre que Emília se lembrava de viajar com canastra, era ele o encarregado de tudo: de carregá-la às costas, de vigiá-la. E se desaparecia qualquer coisa, lá vinha ela com a terrível ameaça de "depená-lo", isto é, arrancar-lhe as pernas e os braços. — Que quantidade de pó quer? — indagou o Visconde.

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— Aí um canudo bem cheio. O pó de pirlimpimpim era conduzido num canudinho de taquara-do-reino, bem atado à sua cintura. Ele tomava todas as precauções para não perder o precioso canudo, pois do contrário não poderia voltar nunca mais. Mas como em aventuras arrojadas a gente tem de contar com tudo, o Visconde sugeriu uma ideia ditada pela prudência. — O melhor é levarmos três canudos, um com você, outro comigo e outro com a Emília. Desse modo ficaremos três vezes mais garantidos. Emília, na cozinha, atropelava tia Nastácia. — Quero uma canastrinha nova e maior, onde caiba muita coisa. A negra, entretida em fritar uns lambaris, resmungava: — Pra que isso agora? Estou cansada de fazer coisas para você, Emília. Ora é isto, ora é aquilo. Canastra agora!... Não serve mais a última que fiz? — Muito pequena. Quero uma, o dobro. — E pra quê? Que tanta coisa tem para guardar? — e largando da colher espiou bem dentro dos olhos da ex-boneca. — Hum!... Estou cheirando reinação nova... Esses olhinhos não negam. Que vai fazer? — Nada — respondeu Emília com a maior inocência. — Só que tenho muitas coisas a guardar e a canastrinha velha já está cheia. — Eu sei, eu sei... — resmungou a preta. — Pra mim, é reinação nova. Onde é? Vá — diga...

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Emília começou a inventar uma mentira bem arranjada demais. Todas as mentiras da Emília eram assim: tão bem arrumadinhas que todos logo desconfiavam. A negra não acreditou em coisa nenhuma; mas, para se ver livre da atropeladeira, disse: — Está bom. Faço, sim. Que remédio? Você quando quer uma coisa fica pior que carrapato... — e à noite, no serão, fez a canastra nova do tamanho que a atropeladeira queria. Dona Benta apareceu e viu a negra entretida naquilo. — Hum!... Canastrinha nova... Isso é sinal de Grécia. Pedrinho está com saudades de mais aventuras por lá. — E Sinhá deixa? — disse Nastácia, lembrando-se das aflições passadas no labirinto de Creta, quando andou às voltas com o horrendo Minotauro. — Eu já disse que não — respondeu a boa velha — mas Pedrinho não acredita nos meus "nãos." Eles querem acompanhar Hércules em seus outros trabalhos... — Credo! — exclamou a preta, sem saber que "trabalhos" eram aqueles, e Narizinho veio pedir à vovó que falasse de Hércules. Dona Benta falou. — Ah, minha filha, que maravilhoso herói foi esse massa bruta! Era filho de Zeus, o grande deus lá dos gregos, e de Alcmena, a mulher mais bela da época, grande como uma estátua, forte, imponente. Mas Zeus era casado com a deusa Hera, a qual, enciumadíssima com aquele filho de seu esposo na terra, jurou persegui-lo sem cessar. E assim foi. A vida do pobre Hércules tornou-se um puro tormento, tais e tais armadilhas lhe armava a deusa. Mas era defendido por Zeus. Hera armava as armadilhas e Zeus as desarmava — e assim foi até o fim. — Que fim? — quis saber a menina.

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— O triste fim que Hércules teve, coitado, um herói tão bom... — Conte o fim de Hércules, vovó. D. Benta contou que depois duma infinidade de aventuras, entre as quais os famosos Doze Trabalhos, Hércules casou-se com Dejanira, a quem amava muito. Mas um dia, numa das suas expedições, foi dar nas terras do centauro Nesso. Hércules já se havia batido contra os centauros do antro de Folo e matara-os a todos, menos a esse Nesso, que fugira. Parece que Hércules não reconheceu nessa ocasião o seu velho inimigo, pois tendo de atravessar um rio a nado, pediu a Nesso que passasse Dejanira. Daí lhe veio a desgraça. Nesso, no meio do rio com a esposa de Hércules ao ombro, teve a ideia de dar-lhe um beijo à força. Lá da margem Hércules viu tudo e, tomando uma flecha, zás, espetou-a no coração do centauro. Era ferida mortal. Nesso ia morrer, mas antes disso teve tempo de dar a Dejanira um filtro potentíssimo. Quem pusesse no corpo uma peça qualquer do vestuário respingada com esse filtro envenenar-se-ia e morreria a pior das mortes. Dejanira guardou o filtro e alcançou a nado a margem onde Hércules a esperava. — E o centauro? — Esse morreu na água e lá se foi boiando... Tempos depois Hércules se meteu em nova aventura, na qual salvou uma linda moça de nome Iole, levando-a consigo à Ilha de Eubeia, onde havia um altar a Zeus. Lá, querendo oferecer um sacrifício a Zeus, mandou um mensageiro à sua casa em Traquis, buscar uma túnica. Chamava-se Licas, esse mensageiro. Era um abelhudo. Em vez de limitar-se a cumprir a missão, contou a Dejanira toda a aventura e falou da maravilhosa beleza de Iole, que Hércules salvara e levara para Eubeia. Uma feroz onda de ciúme encheu o coração de Dejanira, fazendo-a lembrar-se do venenoso filtro de Nesso. E sabe o que fez? Entregou ao mensageiro a túnica que Hércules mandara buscar, mas toda borrifada com o tal filtro... — Malvada! — exclamou a menina.

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— Ao receber a túnica, o pobre Hércules vestiu-a descuidosamente e foi ao altar fazer o sacrifício a Zeus. Lá chegando, começou a sentir no corpo uma dor horrenda como se tivesse vestido uma túnica feita de chamas implacáveis. E morreu torrado. — Malvada! — repetiu Narizinho, mas Dona Benta explicou que a intenção de Dejanira não fora aquela. — Nunca imaginou que a túnica fosse vestida pelo herói; julgou que era destinada à linda Iole; de modo que ao saber do acontecido, desesperou-se e correu a enforcar-se numa árvore.

PERTO DA NEMÉIA No terceiro dia pela manhã já tudo estava pronto para a partida. Pedrinho deu uma pitada de pó a cada um e contou: Um... dois e... três! Na voz de Três, todos levaram ao nariz as pitadinhas e aspiraram-nas a um tempo. Sobreveio o fiun e pronto. Instantes depois Pedrinho, o Visconde e Emília acordavam na Grécia Heroica, nas proximidades da Nemeia. Era para onde haviam calculado o pó, pois a primeira façanha de Hércules ia ser a luta do herói contra o leão da lua que havia caído lá. O pó de pirlimpimpim causava uma total perda dos sentidos, e depois do desmaio vinha uma tontura da qual os viajantes saíam lentamente. Quem primeiro falou foi Emília: — Estou começando a ver a Grécia, mas tudo muito atrapalhado ainda... Parece que descemos num pomar... Pedrinho também viu árvores em redor. Esfregou os olhos. Deixou passar mais alguns segundos. Depois:

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— Não é pomar. É um olival. Esta Grécia é o país das oliveiras, as árvores que dão azeitonas. E parece que estas oliveiras estão carregadas. Instantes depois estavam os três em estado normal. O Visconde sentara-se em cima da canastra da Emília, a qual não tirava os olhos das árvores. — Maduras, Pedrinho. Por que não enche o seu embornal? Gente é como automóvel: não anda sem estar sempre comendo qualquer coisa. O automóvel bebe gasolina nas bombas; a gente "manduca" o que encontra. Pedrinho trepou numa oliveira das mais carregadas e começou a encher o embornal, depois de haver provado uma e cuspido, numa careta. — Estão maduras, sim — disse ele — mas Nastácia, que só conhece azeitonas de lata, não é capaz de reconhecer estas. Gosto muito diferente e horrível. Lembra certas frutinhas do mato que ninguém come, de tão amargas ou itês. As azeitonas só se tornam comestíveis depois de várias semanas de maceração em água de sal. Ficam então deliciosas. Mas sem isto, nem macaco as come! Emília fez logo o projeto de uma grande produção de azeitonas, e: — Mais, mais, Pedrinho! — não cessava de dizer e ele ia jogando. Perto dali ficava a residência do dono do olival e uma pastagem muito bonita, com um rebanho de carneiros tosando o capim. Um pastorzinho distraía-se a tocar flauta, com um cão ao lado. Súbito o cão farejou qualquer coisa, enfitou as orelhas — e veio para o olival, na volada. Pedrinho nunca teve medo de cachorros. Dominava-os com o olhar e a firmeza da voz. Assim foi com aquele.

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— Quieto, quieto, Joli! — gritou energicamente. O cachorro parou de latir e pôs-se a balançar a cauda. Depois, dando com o Visconde, "não entendeu." Arrepiou-se todo de medo. Era-lhe um desconhecido — e o desconhecido amedronta qualquer animal. Pedrinho tentou sossegá-lo, passou-lhe a mão pelo pescoço. — Nada de sustos, Joli. Não é nenhuma aranha de cartola e sim o nosso grande sábio lá do sítio, o Senhor Visconde de Sabugosa — mas a explicação de nada adiantou: o pobre cachorro positivamente "não entendia" o Visconde... Lá adiante o pastor se levantara e guardava a flauta. Estava com a cara de quem diz: "Que diabo disto é aquilo?" Pedrinho dirigiu-se a ele, acompanhado dos outros. Em que língua iriam entender-se? "Que acha, Emília?" E ela: "Aplique o faz-de-conta. Faça de conta que nós sabemos grego e ele nos entende muito bem." Assim foi. Graças ao grego "faz-de-conta" de Pedrinho, puderam conversar perfeitamente. — Bom dia, amigo! Somos viajantes vindos dum século e duma terra muito distantes destes aqui. — Destes o quê? — perguntou o jovem grego. — Deste século e desta terra... O pastorzinho não entendeu, nem podia entender, o que levou Emília a exclamar: "Ai, ai! Vamos ter de novo aquelas mesmas dificuldades de entendimentos que tivemos com Fídias e os outros em Atenas", e não querendo perder tempo com tentativas inúteis, perguntou:

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— Pastorzinho grego, pode dar-nos notícias do Senhor Hércules? — O interpelado fez cara de bobo. "Hércules?" Quem seria esse. Hércules? Nunca ouvira pronunciar tal nome. Emília explicou que era um "massa bruta" assim, assim, que andava pelo mundo fazendo proezas das mais tremendas. De nada adiantou a explicação. O rapaz não tinha a menor ideia de Hércules. O Visconde, que estava de banda, sentado sobre a canastrinha, sacudiu a cabeça e riu-se com o riso filosófico dos sábios. — Ai dos ignorantes! — exclamou. — Como é que este moço há de saber de Hércules, se nesta Grécia nunca houve Hércules nenhum? Hércules não é nome grego; é o nome romano com o qual foi batizado mais tarde. O herói que andamos procurando chama-se em grego Héracles. Ao ouvir aquele nome tão popular naquele tempo, o pastorzinho iluminou o rosto. — Bom, este conheço. Não há quem o não conheça por aqui, tantas e tantas têm sido as suas proezas. Héracles é um herói invencível... — Pois é a ele que andamos procurando — disse Pedrinho. — Amigo velho. Já caçamos juntos... — Já caçaram juntos? — repetiu o pastorzinho, espantado. — Que é que caçaram? — Uma cobra de nove cabeças, a célebre Hidra de Lerna. O rapaz não entendeu porque para ele essa façanha de Hércules ainda estava no futuro, e mostrou-se muito admirado quando Pedrinho contou a história do Leão da Nemeia que Hércules iria matar.

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— Leão da Nemeia? — repetiu. — Sim, eu sei desse leão. É um terribilíssimo monstro que caiu da lua e anda por lá comendo gente. Só se alimenta de gente. — E por que o não matam? — quis saber Emília. — Matar o Leão da Nemeia! Quem pode, se é invulnerável? Emília ignorava a significação da palavra "invulnerável", mas não querendo passar por ignorante aos olhos do moço fingiu precisar qualquer coisa da canastra e foi ter com o Visconde. E enquanto abria e remexia na canastrinha, perguntava a meia voz: — Que quer dizer invulnerável, Visconde? Responda bem baixo. O Visconde compreendeu e ajudou-a. — Invulnerável é o que não pode ser ferido por arma nenhuma, uma espécie de "corpo fechado." — Emília ainda perguntou: — "E que tem a palavra "invulnerável" com ferida?" — O Visconde explicou que em latim "ferida" era "vulnera." Emília, muito lampeira, voltou a falar com o pastorzinho. — Com que então é invulnerável? ah, ah!... Havemos de ver isso. Quero ver se Hércules vulnera ou não vulnera esse leão da lua... Já sabe da novidade — que Hércules foi convidado a vir matar esse leão? O pastorzinho não sabia e admirou-se. Não havia dúvida que Héracles nunca havia perdido luta nenhuma, mas que poderia fazer contra um leão em cuja carne seta nenhuma penetrava? "Pobre Hércules!" — exclamou ele. — "Desta vez vai espetar-se... O cachorro do pastor não tirava os olhos do Visconde, e volta e meia dava um "au." Nunca vira um animalejo tão estranho, de cartolinha e ainda por cima falante...

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— Deixe o Visconde em paz, Joli! — gritou Pedrinho. O jovem grego explicou que o nome do cachorro era Pelópidas. — E a tal Nemeia onde fica? — indagou Emília. — Longe?... — Perto. Vocês seguem por esse carreiro até a encruzilhada. Lá tomam à esquerda e vão andando, andando, até encontrarem um rio. Depois seguem rio acima até uma ponte. A Nemeia começa para lá da ponte. — Não há letreiro? — perguntou Emília, fazendo o Visconde, lá na canastrinha, sacudir a cabeça e murmurar: "Letreiro! Que ideia!... O pobre rapaz nem sabe o que é letra, quanto mais letreiro." E estavam nisso, quando, de súbito, um berro distante soou. Evidentemente um urro de leão da lua, coisa muito mais horrenda que urro de leão da terra. O pastorzinho tremeu. Só pensou numa coisa: juntar o rebanho e tangê-lo para o curral — e lá se foi no galope, seguido pelo cachorro. O urro vinha de muito longe — da Nemeia. Eles tinham de ir para lá, pois só lá era possível encontrarem o grande herói grego. Se ficassem ali estavam perdidos, pois quem os defenderia do leão? O pastorzinho? Ah, ah... Já na Nemeia talvez encontrassem Hércules, e na companhia de Hércules nada teriam a temer. — Vamos para a Nemeia! — ordenou Pedrinho. O Visconde espantou-se. "Para a Nemeia? Ao encontro do leão que lá está urrando?" — Ao encontro de Hércules — respondeu Pedrinho. — Se tivermos a grande sorte de encontrá-lo, estaremos salvos, mas aqui... Se o leão nos pega por aqui, estaremos irremediavelmente perdidos. Terra de gente medrosa. Olhe como corre o pastorzinho...

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De fato, o pastorzinho já ia longe com os carneiros, como se estivesse sendo perseguido por mil leões. Foram para a Nemeia. Seguiram pelo carreiro até a encruzilhada; depois tomaram à esquerda até dar num rio, e subiram rio acima até uma ponte.

NA NEMEIA — A Nemeia começa aqui — disse Pedrinho ao chegar à ponte, e com as mãos na cintura pôs-se a examinar a paisagem. Não levou muito tempo nisso. Novo urro do leão, muito mais perto, o fez arrepiar-se. — Temos que trepar numa destas árvores — sugeriu ele precipitadamente, e deu o exemplo: marinhou árvore acima com agilidade de macaco. Emília fez o mesmo; repimpou-se num galho bem lá de cima. Lá embaixo só ficou o Visconde, todo pateta. Subir em árvore o Visconde não subia. Os sábios são desajeitadíssimos. A única solução era suspendê-lo. Pedrinho correu os olhos em torno. Viu um cipó num galho perto. Conseguiu agarrá-lo, depenou-o de todas as folhas e desceu uma ponta ao Visconde. — Segure bem que eu o suspendo. — E a canastrinha? — lembrou o pobre sábio. — Deixe-a aí ao pé da árvore — resolveu Emília. — Leão não come canastras... Assim foi feito. O Visconde escondeu a canastrinha num oco da árvore e pendurou-se na ponta do cipó. Pedrinho o foi suspendendo. Já estava o sabugo para mais de meio quando a sua

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cartolinha esbarrou num ramo seco e lá caiu. Que fazer? Voltar para apanhar a cartola ou... Novo urro do leão já bem perto fez o Visconde esquecer-se da cartolinha para só pensar na salvação da pele. Um sábio sem cartola é uma coisa feia, mas um sábio devorado por um leão é coisa mais feia e triste ainda. A árvore era a mais alta dali, e de tronco muito reforçado. Ainda que tentasse, o monstro não os alcançaria em seus pulos. E foi a conta. Nem bem se tinham acomodado nos melhores galhos, quando a fera rugiu pertíssimo — e afinal apareceu! Que horrendo bicho! Pedrinho nunca imaginou que os leões da lua fossem tão enormes, tão possantes, com tão copiosa juba e tão afiadas presas. Parece que havia acabado de comer alguém. As manchas de sangue no seu pelo ainda estavam frescas. O leão parou junto ao tronco da árvore e farejou. Sentiu que havia seres humanos lá em cima — chegou a entortar a cabeçorra e espiar. Pedrinho, que levara uma pedra no bolso, arremessou-a contra o olho da fera! Está claro que não adiantou coisíssima nenhuma, porque os leões invulneráveis têm também os olhos invulneráveis. O monstro nem sequer piscou. Apenas botou fora a horrenda língua vermelha e passou-a pela beiçorra, como quem diz: "Se alguém anda em cima desta árvore, meu papo está garantido. Sento-me aqui e espero que o almoço desça." Pedrinho sondava os horizontes, ansioso pelo aparecimento de Hércules. Só o grande herói podia salvá-los daquela perigosa situação. A não ser que Emília... — Emília — disse ele erguendo os olhos — que faremos caso Hércules não apareça?

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— É no que estou pensando — respondeu a diabinha. — Há o pó. Mas se recorrermos ao pó, ele nos leva muito longe daqui e perdemos a primeira façanha. O remédio é um só: esperar para ver o que acontece. O Visconde, muito satisfeito de ter-se livrado da canastrinha, declarou achar-se muito bem; ele não tinha a menor dúvida em ficar morando ali toda a vida. Sim, as coisas são muito simples para os seres que não comem. O terrível da vida é o eterno problema da comida. "A gente come e não adianta nada" — costumava dizer a ex-boneca — "porque por mais que comamos, temos de comer no dia seguinte. Ai que saudades do tempo em que eu não comia!... " O leão deitara-se, mas com a cabeça erguida, atento. Súbito, deu um ronco rosnado e enfitou os olhos em certo rumo, como quem está cheirando qualquer coisa. — Ele farejou carne humana! — disse Pedrinho. — Será Hércules? Era. Logo depois o vulto do herói emergiu de trás duma grande moita. Estava de arco em punho. Ia atirar. O leão pôs-se de pé, como que à espera. Hércules ajeitou no arco uma seta, fez pontaria e zás! despediu-a como Zeus no Olimpo despedia raios. A seta assobiou no ar e veio bater de encontro ao peito do leão. Mas em vez de cravar-se naquele largo peito, entortou a ponta de ferro e caiu. Hércules lançou segunda flecha, e terceira e quarta e quinta. O resultado foi o mesmo. Despedaçavam-se no peito do leão ou entortavam a ponta. — Bem disse o pastorzinho que este leão é invulnerável — exclamou Emília. — Inflechável! e o bobo do Hércules não percebe. Melhor avisá-lo, Pedrinho. Pedrinho botou as mãos em concha para aumentar o volume da voz e gritou na direção do herói: "Assim, é inútil. Ferro não entra no peito deste leão. É invulnerável... As flechas acertaram nele, mas

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entortam a ponta ou se despedaçam. Abandone o arco e pense noutra coisa." Hércules ouviu atentamente aquelas palavras e, como não distinguisse o menino lá entre as folhas, julgou ser algum aviso do céu, donde muitas vezes lhe viera socorro. Se a deusa Hera o perseguia, a grande Palas Atena e outras deusas menores o ajudavam. A fera encaminhava-se já em sua direção, a passos lentos e decididos, o olhar chamejante de cólera. Ia raivosamente atacar e devorar aquele audacioso humano que estupidamente a atacava a flechaços. — Pobre Hércules! — exclamou Emília. — Está ali, está liquidado. Como há de defender-se das garras deste monstro, se suas flechas nem lhe arranham a pele? — Com flecha não vai — disse Pedrinho — mas há a clava. Vovó me contou que a clava de Hércules é pior que os martelos-pilões das fábricas de ferro: não há o que não amasse. Esse leão é invulnerável, mas será também inamassável? Hércules havia largado o arco e tomado a clava, ou maça, feita dum tronco de oliveira, que havia arrancado com raiz e tudo — madeira duríssima. E não esperou que o leão se chegasse até ele, também ia avançando ao seu encontro. O momento era dos mais emocionantes. Lembrava aqueles momentos nos circos de cavalinhos em que a música para. A música ali era a conversa dos pequenos aventureiros empoleirados na árvore. Todos haviam emudecido. Que pode a palavra humana dizer em circunstâncias assim? Já estavam bem perto um do outro, os dois tremendos contendores. Súbito, o leão armou bote e lançou-se que nem bomba voadora. Hércules, agilissimamente, regirou no ar a poderosa clava e desferiu

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um golpe de derrubar montanhas. O tremendo golpe alcançou o leão no ar — plaf!... bem no centro da testa. O leão caiu, tonto, mas a clava se fez em vinte pedaços. Uma lasca veio cair ao pé da árvore dos picapauzinhos. Hércules arregalou os olhos. A fera tonteara apenas, já estava novamente de pé e ainda mais ameaçadora — e ele desarmado — sem a sua potente clava... Que fazer? E Pedrinho viu-o levantar os olhos para o céu, como quem pede inspiração. — Dê uma ideia, Emília! — gritou Pedrinho. — Se o não ajudarmos com uma boa lembrança, lá se vai o nosso querido Hércules. Emília pensou rapidamente: "Se as flechas falharam e se a clava se despedaçou ao primeiro golpe, o jeito agora é atracar-se ao pescoço do leão e afogá-lo." Pensou e gritou para Hércules: — Atraque-se com ele, Senhor Hércules! Grude-se no pescoço do leão e vá apertando até que ele morra de falta de ar. O leão é invulnerável e inamassável, mas talvez não seja inasfixiável... Novamente Hércules ouviu aquilo como se fosse uma sugestão do céu, e bobamente ergueu os olhos para as nuvens como agradecimento. Sim, era o que lhe restava: atracar-se com o monstro e procurar asfixiá-lo. E foi o que fez. Lançou-se contra o leão ainda mal saído da tonteira e abraçou-o pela garganta. Ah, que luta foi aquela! Jamais iria Pedrinho esquecê-la. O abraço de Hércules era pior que o abraço de mil tamanduás. Havia juntado o pescoço do leão como uma torquês junta o pedaço de ferro que aperta. O leão escabujava, fazia esforços tremendos para desvencilhar-se — mas quem jamais se desvencilhou dum abraço hercúleo? Pedrinho, Emília e o Visconde "torciam." — Aí, Hércules! — gritava o menino. — Firme, firme! Vá apertando como chave inglesa aperta porca de parafuso...

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— Não afrouxe nem um minutinho! berrava Emília. — Ele já está sem fôlego. É apenas invulnerável, não é inafogável... Até o Visconde ajudou, cientificamente: — Os pulmões dos quadrúpedes param de funcionar quando o oxigênio não entra. Conserve-o sem ar nos pulmões por dois ou três minutos que as funções metabólicas ficam perturbadas e ele afrouxa... Hércules apertava, apertava. O monstro já tinha os olhos saltados, como querendo pular das órbitas. A língua saíra para fora quase um palmo — aquela horrível língua vermelha de leão da lua. O monstro começava a afrouxar. Seus músculos foram se bambeando. — Mais um bocadinho e pronto! — gritou o menino. — Animo, Senhor Hércules!... O herói parecia de aço. Aqueles músculos potentíssimos quase que estalavam, de tão tensos. E que alentado era! Seu peito perdera a forma do peito humano normal — virara uma série de tremendos nós de músculos, cada um maior que o outro. E foi assim por mais dois ou três minutos. Finalmente o leão moleou o corpanzil duma vez. Estava liquidado. Hércules ainda o manteve no arroxo por mais algum tempo e afinal o largou. A massa morta do leão da lua descaiu, aplastou-se no chão. — Morto! Mortíssimo! — berrou Emília. — Hurra! Hurra! Hurra!... Viva o herói dos heróis!...

O ENCONTRO Só então Hércules percebeu que as vozes vinham da árvore e não do

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Olimpo. Firmando os olhos, deu com os três picapauzinhos repimpados nos galhos. Mas estava tão frouxo que nada disse. Respirava ofegantemente. Seu peito subia e descia. O suor brotava-lhe da pele em grossos pingos — o suor hercúleo. — Podemos descer — disse Pedrinho, e escorregou pela árvore abaixo. Os outros fizeram o mesmo. Já mais aliviado da canseira, Hércules se aproximou. — Quem são vocês? —foi a pergunta. Pedrinho explicou que tinham vindo de um século futuro para acompanhá-lo em onze de seus trabalhos, onze só, porque a um deles — a luta com a Hidra de Lerna — já haviam assistido. Hércules não entendeu. Além de burrão de nascença, como todos os grandes atletas, não podia entender aquela história de "vir dum século futuro." Talvez nem século ele soubesse o que era. Um herói daqueles só sabe de hidras, leões, minotauros e mais, monstros com que tem de bater-se. E fez a cara palerma dos que não entendem o que ouvem. Emília tomou a palavra: — Somos do sítio de Dona Benta, Senhor Hércules. Este aqui é o Pedrinho, o neto número um e primo de Narizinho. E esta aranha de cartola (o Visconde já estava de cartolinha na cabeça) é o famoso sábio Sabugosa, carregador da minha canastra. Fugimos lá do sítio, montados no pó de pirlimpimpim, unicamente para acompanhar os Onze Trabalhos de Hércules que nos faltam. Já temos um na coleção. Hércules ficou na mesma. Olhava para um, olhava para outro e não entendia nada de nada. Emília continuou: — Queremos ajudá-lo, Senhor Hércules, e já o ajudamos na sua luta contra o leão. Quem deu a ideia do afogamento fui eu, que sou a "dadeira de ideias" lá no sítio. Caçoam de mim, chamam-me

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asneirenta, dizem que tenho uma torneirinha de asneira — mas nos momentos de aperto é comigo que todos se arranjam. Hércules continuava com cara de bobo. Emília prosseguiu: — Podemos fazer o seguinte. O Visconde fica sendo o seu escudeiro, como aquele Sancho que acompanhava D. Quixote. Sempre há de servir para alguma coisa. Eu forneço as ideias. Pedrinho dá um excelente oficial de gabinete, ou ajudante de ordens. O senhor fica sendo o muque do bando; Pedrinho, o órgão de ligação; eu, o cérebro; e o Visconde, a escudagem científica... Depois de Emília falou Pedrinho, dizendo a mesma coisa com outras palavras. Por fim falou o Visconde. E tanto falatório fez que o grande herói fosse compreendendo alguma coisa. Compreendeu e riu-se. Achou graça naquela estranha associação e pediu esclarecimentos. Informou-se de quem era D. Quixote. Emília respondeu: — Ah, Senhor Hércules, nem queira saber! D. Quixote é um famoso cavaleiro andante dos séculos futuros, um tremendíssimo herói da Espanha — mas com uma diferença: em vez de vencer nas aventuras como os heróis daqui ele sai sempre apanhando, com as costelas quebradas, mais moído de pau no lombo do que massa de pão bem amassada — e foi por aí além. Contou as principais façanhas de D. Quixote, todas terminadas com uma pancadaria no lombo do herói. — Mas se é assim — disse Hércules — por que lhe chamam herói? Herói aqui na Grécia não apanha, dá sempre... — É que ele é herói moderno. No nosso mundo moderno tudo é diferente. Até o Visconde é um herói científico.

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Hércules sentara-se junto ao tronco da árvore, com Pedrinho de pé à direita e Emília já sentada em seu colo. A pouca distância ficara o Visconde, também sentado sobre a canastrinha. Emília falava, falava sem parar. E tais coisas disse que acabou ainda mais amiga de Hércules do que o ficara do Quindim. O sol ia descambando, mas na Grécia não se dizia sol, sim "carro de Apolo." Hércules ergueu os olhos para o céu e murmurou: — O carro de Apolo está já perto do fim do seu curso. Vésper não tarda no céu. Tenho de partir... Pedrinho, que sabia muita coisa da vida do grande herói grego, desejava fazer algumas perguntas sobre pontos incertos. — É cedo ainda, Senhor Hércules. Antes de levantarmos acampamento quero que me responda várias perguntas. — Fale. Pedrinho queria saber por que motivo, sendo Hércules tão forte, se havia submetido ao rei Euristeu, o qual lhe impusera aquele trabalho. "Por que não escangalha com esse rei duma vez, com um bom golpe de clava na cabeça, em vez de andar correndo perigo para satisfazer às imposições do malvado? Vovó não soube me explicar esse ponto." — Ah — exclamou Hércules suspirando. — A coisa é comprida, vem de longe; vem do tempo de minha loucura... — Então já esteve louco? — perguntou Emília. — Que engraçado... Hércules estranhou aquele "engraçado." Como podia alguém achar graça na loucura? Emília explicou-se contando o caso da loucura de D. Quixote, que ela achava engraçadissima.

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Hércules desfiou a história do seu casamento com Mégara, da qual teve oito filhos. — Sim, oito filhos e filhas, e um dia os matei a flechaços... — Matou os filhos a flechaços? — repetiu Emília, horrorizada. — Sim, mas não por culpa minha — coisas lá da deusa Hera, que tanto me persegue. Essa deusa me fez cair num acesso de loucura — e eu então matei meus próprios filhos e filhas, coitadinhos... — Como foi? Conte... — Eu estava nessa ocasião em Tebas, donde saí para realizar uma aventura. Deixei Mégara e meus filhos entregues aos cuidados de Anfitrião. Minha aventura era liquidar uma série de monstros e gigantes malvados. E andava lidando nesse trabalho, quando um tal Licos se apoderou de Tebas e matou muita gente — e ia também matar Mégara e meus filhos. E já estava com a espada erguida sobre a cabeça de minha esposa, quando concluí o meu trabalho e voltei para Tebas. Ah! foi a conta! Dei tamanha moçada em Licos que o achatei como esta folhinha aqui — Hércules exemplificou com uma folhinha seca apanhada do chão. Logo em seguida tratei de oferecer aos deuses um sacrifício de agradecimento — e foi então que Hera me enlouqueceu. E, louco furioso, matei não só meus filhos como também a pobre e querida Mégara, minha esposa... — Que horror! Deusa malvada a tal Hera — exclamou Pedrinho. — Malvada, sim. Nunca me perdoou o fato de ser eu filho de Zeus com Alcmena — e me persegue sem cessar. Tudo que na vida me cai em cima vem de Hera... E depois de matar minha pobre gente eu me aprestava para matar também o bom Anfitrião, quando a boa Palas... — A mesma que os romanos iriam chamar Minerva — explicou o Visconde. —... me salvou de mais esse horrendo crime.

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— Como? — Lançando-me lá do céu uma grande pedra contra o peito. A pedrada de Palas curou-me da loucura. Voltei a mim e horrorizei-me com o que havia praticado. Não há maior desgraça que um bom pai e um bom esposo matar os seus queridos filhos e sua querida mulher. Horrorizei-me... — Mas desde que estava louco, não tinha culpa nenhuma — disse Pedrinho. — Matou sem querer... — Crime involuntário — explicou cientificamente o Visconde. Hércules continuou: — Involuntário ou não, cometi esse horrendo crime — e o remorso tomou conta de mim. Condenei-me então ao desterro, e fui consultar o Oráculo de Delfos para saber qual a terra para onde exilar-me. Eu por esse tempo não me chamava Hércules, como agora. Meu nome era Alcides. Foi a Pítia do Oráculo de Delfos quem me trocou o nome e sugeriu a minha vinda para as terras do Rei Euristeu. Esse rei me impôs como penitência a realização de Doze Trabalhos terríveis. A luta contra o Leão da Nemeia foi o primeiro. Pedrinho sentiu uma batida forte no coração. Quis avisar Hércules duma coisa, mas conteve-se. Depois com pretexto de ver se o leão já estava frio, afastou-se com a Emília e o Visconde e disse-lhes: — O pobre Hércules sabe menos da sua própria vida do que eu, que sou de séculos adiante. Vovó me contou como foi. O caso este: Hércules consultou a Pítia, a Pítia lhe deu um mau conselho. A diaba andava vendida a Hera. Faz tudo que Hera manda — e por isso aconselhou a procurar o tal Euristeu, que é a maior das pestes. Os tais Doze Trabalhos foram o meio que Hera achou de metê-lo em tremendos perigos, de modo que não escape. Que acham vocês: devo avisá-lo disso ou não?

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Emília pensou depressa e com muita lógica. — Não! Não deve avisá-lo de coisa nenhuma, pois do contrário ele desobedece à Pítia e nós ficamos logrados —ficamos impedidos de assistir aos seus trabalhos famosos. O melhor é conservá-lo na ignorância do futuro, mesmo porque ele vai sair vitorioso. Aquele Oráculo de Delfos! Não há patifaria maior. A Pítia deixa-se subornar, e dá palpites de acordo com os que melhor lhe pagam. A patifaria humana é eterna, como diz o Visconde. — Sim, é isso — concordou Pedrinho. — Hera está convencida de que o herói não aguenta os tais Doze Trabalhos, a boba!... Mas Hércules vai realizá-los maravilhosamente. Melhor, mesmo, ficarmos quietos. Ele que continue na ilusão — e voltaram para a companhia do herói, com carinhas muito fingidas.

— Está mortíssimo, sim — disse Emília referindo-se ao leão.

— Já esfriou. Que vai fazer dele?

O carro de Apolo já estava mais baixo — mais perto da cocheira onde se recolhia todas as tardes. Hércules levantou-se. — Vou tirar-lhe a pele. Já que esse leão é invulnerável, seu couro dará um ótimo escudo. Disse e encaminhou-se para o leão morto. Tinha de escorchá-lo, mas para isso era indispensável faca — e Hércules estava sem faca. Olhou em redor, como à procura de qualquer instrumento cortante, caco de vidro, lasca de pedra. Não viu nenhum. Pedrinho compreendeu. — Já sei o que procura, amigo Hércules. Faca, não é? Faca não tenho comigo. Vovó nunca me deixou andar com faca de ponta, aquela boba. Mas tenho um bom canivete Rodger — e sacou do bolso um canivete Rodger de cabo de osso queimado e lâmina afiadissima. Hércules achou graça no instrumento, pois não havia canivetes

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naquele tempo. Examinou-o atentamente. Abriu-o e fechou-o diversas vezes — e numa delas cortou o dedo. Emília correu à canastrinha em busca do carretel de esparadrapo. Destacou a fita gomada e cortou um pedaço, dizendo: — Para pequenas cortaduras, nada melhor que isto. Chama-se es-pa-ra-dra-po ou ponto-falso. Conhece? Hércules não conhecia. Deixou que a ex-boneca lhe colocasse no dedo a tira de esparadrapo e admirou-se de ver o sangue estancar. Ótimo! A sua associação com os três picapauzinhos já estava dando bons resultados. Em seguida virou o leão de barriga para cima. — Vocês seguram-no pelas patas nessa posição, que eu vou riscá-lo no ventre. Pedrinho segurou bem firme as patas dianteiras do leão enquanto a Emília e o Visconde faziam o mesmo às traseiras — e Hércules riscou dum extremo a outro a pele do leão. O Visconde veio com a sua ciência: — Lindo golpe longitudinal! —palavra que deixou o herói na mesma. Nunca houve no mundo um atleta que soubesse o que é "longitudinal." — Hércules não está entendendo nada, Visconde — disse Emília. — Explique-lhe o que é isso. — Um golpe longitudinal— explicou o Visconde com toda a seriedade — é um golpe ao comprido, ou no sentido do comprimento. — E um golpe no sentido da largura? — quis saber Emília.

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— Não temos para isso palavra especial — respondeu o sabinho. — Devia ser "golpe latitudinal", porque largura é latitude, mas tal palavra não existe nos dicionários. Pedrinho contou a Hércules que o Visconde era um grande gramático, o que também deixou o herói na mesma. O coitado nem gramática sabia o que era... Riscada a pele do leão com aquele lindo corte longitudinal, Hércules, com a mão direita, agarrou a pele pela juba e com a esquerda segurou firme a carcaça do animal — e dum só puxão arrancou a pele inteirinha. — Que força tem o nosso amigo! — exclamou Pedrinho, entusiasmado. — Lá no sítio, para tirar a pele dum boi, um "camarada" leva tempo — tem de a ir destacando da carne com a ponta da faca. Hércules dá um puxão e pronto!... Mas não basta arrancar uma pele, é preciso esticá-la com varas e pô-la ao sol para secar. Que iria fazer Hércules, com a noite já próxima? — E agora? — indagou Pedrinho. — Que é do sol para secar esse couro? Hércules mostrou-se indeciso. Sim, o carro de Apolo já ia entrando na cocheira. Só se dormissem ali para secá-la no dia seguinte... Entreolharam-se. Não sabiam o que fazer. Nas histórias das grandes façanhas estes pequenos detalhes práticos da vida nunca aparecem, e no entanto sem atendê-los convenientemente as grandes coisas se tornam impossíveis. Uma pele de leão tem de ser secada ao sol. Em seguida há que ser curtida, pois do contrário resseca, fica mais dura que pau e não tem utilidade para coisa nenhuma. O Visconde deu uma boa opiniãozinha:

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— Couro cru, isto é, não curtido, não vale nada. Se houvesse um curtidor aqui por perto... Hércules só entendia de proezas tremendas. Para as coisinhas prosaicas da vida era a maior das inutilidades. Ouviu a história do curtidor e abriu a boca, com expressão de quem está sem nenhuma ideia na cabeça. Emília tomou apalavra. — Já descobri o jeito de resolver o problema. Lá no olival onde aterrissamos há aquele pastor de carneiros. Todo pastor entende de curtimento de couro, porque vive lidando com a pele dos carneiros que morrem ou são mortos. Minha ideia é irmos ter com ele — e até podemos dormir naquela casinha... Hércules achou excelente a ideia.

O COURO DO LEÃO — Pois vamos ver o tal pastor — disse ele; e pondo a pele fresca aos ombros, bem dobrada, fez menção de partir. Um problema surgiu. Pedrinho podia, ainda que com esforço, acompanhar as passadas gigantescas do herói —mas Emília e o Visconde? Como criaturas tão minúsculas conseguiriam acompanhá-lo? A solução veio de Hércules: — Muito simples. Levo montados em meus ombros cá a minha "dadeira de ideias" e mais o meu escudeiro... Disse e, pegando a Emília, colocou-a sentada em seu ombro direito; e com o Visconde fez o mesmo, colocando-o em seu ombro esquerdo sobre a pele do leão.

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Sobrou Pedrinho, que teria de acompanhá-lo correndo. Pronto! Hércules pôs-se em marcha, e só nesse momento Emília lembrou-se da canastrinha. — Pare, Hércules! O Visconde esqueceu a minha canastra... Pedrinho correu em busca da canastrinha e entregou-a a — Que há dentro desta caixeta? — perguntou o herói, retomando a marcha interrompida. — Por enquanto, bem pouca coisa ainda — mas vai acabar cheia. Aqui dentro estão os guardadinhos de emergência que eu trouxe lá do sítio e três unhas do Leão da Nemeia — lembrança deste primeiro trabalho. De fato, Emília não se esquecera de arrancar e guardar lá dentro três formidáveis unhas do famoso leão da lua... Durante a marcha rumo ao olival Hércules foi contando aventuras e mais aventuras, enquanto Emília desfiava todo o rosário das coisas prodigiosas acontecidas no sítio de Dona Benta. — Que sítio é esse? — perguntou o herói. — Ah, nem queira saber! — respondeu Emília. — É a nossa Grécia Heroica lá do mundo moderno, no século 20. O sítio é a nossa fazendinha gostosa. Temos o pomar, temos o ribeirão, temos a porteira do pasto, temos o cupim perto da porteira, temos a vaca Mocha... Hércules entendia bem pouco de tudo aquilo, mas estava gostando de ouvir. Era como se fosse música nova — a música dos tempos futuros. Emília não parava. — E temos Dona Benta, a melhor vovó que existe, de óculos, saia rodada. E temos tia Nastácia, a cozinheira. Para bolinhos, não há

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outra. E temos Narizinho, a neta de Dona Benta, muito minha amiga. — Por que não vieram todos? — perguntou Hércules. — Ah, estas façanhas são muito fortes para as duas velhas. Medrosíssimas, coitadas! Narizinho podia vir porque é como nós, não tem medo de nada. Ficou por causa dos reumatismos e das pontadas da vovó. Da outra vez viemos todos, mas Dona Benta, Narizinho e Nastácia ficaram em Atenas, em casa de Péricles, no século 5º antes de Cristo. Hércules não entendia nada. — Que história é essa de século 5º antes de Cristo? — perguntou. Pedrinho teve de explicar a cronologia, isto é, a marcação do tempo antes e depois de Cristo. — Aqui, por exemplo — disse ele — vocês estão no século 7º antes de Cristo. Quer dizer que Cristo vai nascer daqui a sete séculos. E nós vivemos no século 20, depois do nascimento de Cristo. Ah, que trabalhão teve Pedrinho para explicar toda essa história de séculos antes e depois de Cristo — e para explicar quem havia sido Cristo... — Sim — disse ele — porque todos estes deuses da Grécia de hoje, inclusive Zeus, que é hoje o supremo, tudo isso vai desaparecer. Por que foi dizer aquilo? Hércules parou, assombrado. "Desaparecer?" Como desaparecer, se eram os deuses eternos e únicos? Até o Visconde teve de tomar parte na discussão, e por fim Hércules fingiu que entendeu, embora na realidade não houvesse entendido

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coisa nenhuma. E ainda estavam a falar em séculos e deuses, quando avistaram ao longe o olival. — Estamos chegando! — gritou Emília. — Lá está o bosque de azeitoneiras... A luz do dia já no fim mal dava para avistarem o vulto sombrio do olival e a casinha do dono. Havia luz dentro. — Que luz usam por aqui? — perguntou Emília, e ao saber que era a luz dos candeeiros de azeite riu-se de dó e contou a história do gás e da luz elétrica. Hércules não podia compreender outra luz que não a dos candeeiros de azeite e a dos archotes. Emília explicou-se como pôde. Falou dos fósforos, uns pauzinhos que se acendem com uma simples esfregação na caixa, e falou dos botões da eletricidade, que "a gente aperta e todas as lâmpadas se acendem." O pobre herói estava tonto. Chegaram. Encontraram a casinha fechada. A luz, interna aparecia por uma frincha da porta. Hércules apeou de seus ombros os dois engarupados e jogou a pele no chão. Pedrinho adiantou-se e toque, toque, toque, bateu. — Quem é? — respondeu uma voz lá dentro. — Somos viandantes que queremos pouso — gritou o menino. Imediatamente a porta se abriu e a cara do pastorzinho apareceu. — Boa noite, amigo! — disse Pedrinho. — Está me reconhecendo? — Sim, você esteve lá no pasto dos carneiros, naquela hora em que o leão urrou... — Exatamente. E de lá fomos à Nemeia e encontramos Héracles e "matamos"o leão da lua. Aqui está a pele...

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Só então o pastorzinho deu com o vulto agigantado do herói — e tremeu. Ficou sem fala. — Nada de medos — disse Pedrinho. — O amigo Héracles é de boa paz. Eu sou o seu oficial de gabinete. Ele tirou a pele do leão e anda em procura de quem a saiba curtir. Você deve entender de curtimento de couros, não? O pobre pastorzinho gaguejou que sim, sem que seus olhos se despregassem do tremendo vulto do herói. — Pois então está tudo ótimo. Hércules vai deixar aqui o couro do Leão da Nemeia para que você o prepare como faz aos pelegos. Ele quer servicinho bem feito, está entendendo? — E também queremos que nos dê pousada por esta noite — ajuntou Emília. — Quem é o dono da casa? Você? O pastorzinho explicou que não. Os donos estavam fora, tinham ido consultar o Oráculo de Delfos. Ele ficara tomando conta de tudo, mas com ordem de não deixar entrar ninguém. Pedrinho objetou que o tal "ninguém" não podia referir-se a eles, porque eles eram eles e Héracles era o famoso Héracles, o grande benfeitor da Grécia que acabava de libertar a zona do mais terrível dos leões. O pastorzinho, trêmulo como geleia fora do cálice, abriu a porta. Hércules entrou com os outros atrás. Casinha modesta, de humildes agricultores, fabricantes de óleo de oliva. A azeitona era a principal cultura dos gregos. Não só a usavam na comida, como para a iluminação. Havia ali na sala uma prensa rústica de extrair azeite. Emília, lampeiríssima como sempre, foi tomando conta da casa. Varejou os quartos, mexeu nos guardados, foi ter à cozinha. Viu lá o fogo aceso e uma perna de carneiro no espeto. O pastorzinho estava preparando o seu jantar.

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— Viva, viva! — exclamou ela cheirando a carne assada. — Está no ponto. Mas isto aqui dá só para o pastorzinho. Pedrinho e eu. Como irá Hércules arrumar-se? E foi para a sala discutir o assunto. — Encontrei o pastor assando um lindo pernil que só dá para nós. E o Senhor Hércules? Como vai arranjar-se? Hércules era um gigante de estômago gigantesco. Comia um boi inteiro com a mesma facilidade com que Pedrinho comia meio frango assado. O assunto foi rapidamente debatido. Hércules declarou que estava com fome e, como não houvesse por ali nenhum boi, contentava-se com três carneiros — e foi ao curral examinar os que havia.

O JANTAR DO HERÓI O pastorzinho estava na maior aflição. Três carneiros! Que conta iria dar aos patrões quando voltassem? Pedrinho tomou a palavra. — Um herói como Hércules nunca pensa em dinheiro, nunca anda com dinheiro no bolso — e nem bolso ele tem, pois vive nu, de tanga. E o dinheiro que eu tenho comigo não vale nada nesta Grécia Heroica. Mas podemos fazer um negócio; sou dono aqui deste canivete que o próprio Hércules acha a maravilha das maravilhas — e mostrou o canivete ao pastorzinho depois de abrir a lâmina grande. "Veja que corte. É Rodger, a melhor marca inglesa. Vale seis carneiros; mas como não sou cigano, troco-o por três apenas..."l O jovem grego, já sorrindo, examinou atentamente a maravilha. Experimentou a lâmina num pauzinho. Que fio! — Pois aceito o negócio. E até dou em troca os seis carneiros.

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— Para que quero seis? — disse Pedrinho. — Amanhã vou-me embora para longe. Só me interessam os três que o Senhor Héracles vai devorar. Estavam nesse ponto, quando Hércules apareceu com três carneiros às costas, já de pescoço torcido. Ele matava carneiros como tia Nastácia matava frangos. Zás, trás, pronto. E como assar aquilo? Está claro que lá fora, pois no fogão da casinha era impossível. Hércules arrancou várias árvores secas, com raiz e tudo, e amontoou-as. O Visconde levou brasas da cozinha e acendeu a fogueira. Quando tudo se reduziu a tições, Hércules preparou três espetos e enfiou neles os três carneiros, depois de tirar-lhes as peles e limpá-los das barrigadas. Um forte cheiro de carne assada invadiu a casinha. O jovem grego olhava, olhava. Quando havia de imaginar semelhante coisa? Ele ali diante de Héracles, o mais famoso herói da Grécia, o matador do Leão da Nemeia e autor de tantas façanhas que corriam de boca em boca!... Enquanto se assavam os carneiros, todos ficaram em redor do fogo trocando impressões e contando histórias. Pedrinho mostrou-se interessado em saber da vida ali. — Que é que vocês gregos fazem? Como se vestem? Que comem, além de carneiro assado? E o pastorzinho a tudo atendia. Deu-lhes uma boa ideia da vida simples que levavam os gregos da Grécia Heroica e indagou da que eles levavam nos tais tempos modernos. — Ah, nem queira saber, greguinho! — respondeu Emília. — Nós lá vivemos uma vida que vocês não podem entender. Tudo diferentíssimo, tão diferente que não vale a pena tocar no assunto. Quando estivemos em Atenas — na futura Atenas do tempo de Péricles — foi um trabalhão para fazer aqueles escultores e filósofos

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entenderem um bocado da nossa vida moderna. Por fim desistimos. Em comparação com a nossa época moderna, vocês são atrasados demais... Os carneiros já estavam no ponto. Hércules arrancou um do espeto e pôs-se a comê-lo, como Pedrinho comia mangas lá no sítio: dava mordidas e besuntava-se todo de gordura. Comeu os três carneiros como se fossem três queijadinhas. Depois limpou a boca nas costas da mão e disse que estava com sono. Recolheu-se. Cama para um homem daquele não havia. O remédio foi arrumar-lhe uns pelegos no chão da sala. Seis pelegos — e ele ainda ficou com os pés de fora!... Num instante dormiu, tal qual criança nova que se deita e já vai fechando os olhos. Os outros ainda se quedaram por ali a conversar. Pedrinho contou a história da luta de Hércules com o Leão da Nemeia. — Ah, foi bonito! Nós lá de cima da árvore não perdíamos nem uma isca. Primeiro lançou uma série de flechas, mas foi o mesmo que nada. Era leão dos invulneráveis. As setas batiam-lhe de encontro ao peito e espatifavam-se, ou entortavam a ponta. Depois atacou-o com a clava — com a tremenda clava feita dum tronco inteiro de árvore, e a clava partiu-se em mil pedaços, como se fosse de vidro. Depois Emília gritou: "Agarre-o pelo pescoço e afogue-o!" e foi o que ele fez. Atracou-se ao pescoço do leão e estrangulou-o... O pastorzinho estava assombrado. — Felizmente! — exclamou. — Esse leão andava fazendo os maiores estragos no povo da Nemeia. Só se alimentava de carne humana e não havia o que lhe chegasse. A semana passada comeu cinco homens, quatro mulheres e três crianças...

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Uma coisa preocupava Pedrinho: como é que, sendo invulnerável, o seu canivete cortara tão bem a pele do leão? Mistério. Emília veio com uma explicação como o nariz dela. "É que era canivete Rodger..." — e o Visconde apresentou uma ideia mais científica: "Invulnerável enquanto vivo; depois de morto perdeu a invulnerabilidade." — Mas, sendo assim — lembrou Pedrinho — de nada vai adiantar para Hércules um escudo feito dessa pele, já que a pele morta é vulnerável... Aquele ponto ficou obscuro. A dormida dos picapauzinhos na casa do olival foi das melhores. Estavam cansadíssimos, de modo que tiveram um sono de pedra. Só o jovem pastor não conseguiu fechar os olhos. Héracles ali na sala, dormindo naqueles pelegos! Héracles roncando como um boi! Héracles com três carneiros assados no bucho! Muita coisa para um pobre pastor... No dia seguinte, muito cedo, o herói levantou-se e foi tomar banho no rio que passava ali perto. Quando voltou já os picapauzinhos estavam de pé e com saudades do café da manhã lá no sítio. — Ah, tia Nastácia aqui! — suspirou Pedrinho. — O que mais falta me faz nestas excursões é sempre aquele café da manhã, com pão-de-ló, com bolinhos de milho, com broinhas de fubá — todos os dias ela inventa uma coisa nova... O "café" ali no olival era leite de ovelha, só, sem mais nada. Emília fez careta, mas tomou-o; depois foi ao léu em busca de azeitonas. Havia por lá tinas próprias para a maceração, sempre cheias de azeitonas na salmoura. — Leite com azeitonas! — disse ela. — Está aqui um "café da manhã" que nunca imaginei...

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Hércules declarou que tinha de ir à cidade de Micenas, onde morava o Rei Euristeu, para dar conta da façanha realizada. — Querem ir comigo ou ficam aqui? — perguntou ele a Pedrinho. — Ficar aqui fazendo o quê? — foi a resposta do menino. — Viemos para assistir a todas as suas façanhas, Senhor Hércules, não viemos para ficar colhendo azeitonas num olival... — Pois então aprontem-se que vou partir. Na véspera tinha vindo o Visconde sentado sobre a pele do leão, no ombro esquerdo de Hércules, muito a cômodo no macio pelo da fera. Mas agora? Como poderia manter-se naquele ombro nu — manter-se a si e ainda tomar conta da canastrinha? Emília achou melhor que Hércules conduzisse a sua canastrinha já muito pesada para o pobre Visconde. E arranjando com o pastor uma correia de bom comprimento, atou as pontas nas alças da canastrinha e entregou-a ao herói. — Leve-a a tiracolo, como se fosse o seu binóculo, Senhor Hércules — e o grande herói grego obedeceu: arrumou a canastrinha da Emília a tiracolo como se fosse um binóculo... Pedrinho riu-se consigo mesmo, como quem diz: "A diabinha já tomou conta deste massa-bruta. Já faz dele o que quer... Hércules disse ao pastorzinho que voltaria mais tarde, depois da pele curtida — ou então mandaria buscá-la pelo seu escudeiro Sabugosa. Ao ouvir isso, o Visconde arregalou o olho. Ter de voltar ali e levar para Micenas aquele couro de leão da lua lhe pareceu aventura maior que todos os Trabalhos de Hércules juntos. E olhou para Emília com ar de quem pede socorro. Emília riu-se. — Não se aflija, Visconde. Na hora dou um jeito qualquer. Partiram. O pastorzinho ficou de pé na soleira da porta, a acompanhá-los com

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os olhos. Ainda não voltara a si completamente. A estranha aventura da véspera era das que escacham com qualquer pastor. Depois lembrou-se do canivete e riu-se. Foi buscá-lo. Tentou abri-lo. Não sabia. Lida que lida, acabou também cortando o dedo. Atou-o com uma tira de pano e voltou à porta. Já iam longe os aventureiros. Pedrinho corria atrás do herói, como um cachorrinho corre atrás dum touro...

A HIDRA DE LERNA OS CENTAUROS Apesar de já de língua de fora, Pedrinho não cessava de admirar a maravilhosa musculatura de Hércules. Já Emília não dava àquilo nenhuma atenção. O que queria era prosa, e sobretudo convencer o herói de ir passar uns tempos no Picapau Amarelo. — Não há nada de mais nisso — dizia ela. — Até D. Quixote já esteve lá, e bem que dormiu uma soneca na redinha de Dona Benta. Você não vai sentir nenhuma diferença de clima, porque aquilo lá é uma Grécia, do mesmo modo que esta Grécia aqui é o sítio de Dona Benta da antiguidade. — Mas há lá, então, os mesmos seres que existem por aqui? — perguntou Hércules, sem moderar a marcha. — Há e não há — respondeu Emília. — Há porque às vezes os mesmos daqui aparecem por lá, como aconteceu com a Quimera. E não há porque... O herói interrompeu-a com cara de espanto. — A Quimera? Pois esteve lá a Quimera?... Aquele monstro horrível contra o qual lutou Belerofonte?...

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— Isso mesmo — confirmou Emília. — Foi vencida por Belerofonte, o qual, entretanto, não a matou bem matada. A Quimera sarou e virou um verdadeiro monstro doméstico. Ele tem dó dela, coitada, e guarda-a no quintal, como faz o tio Barnabé com aquele burro velho. Já não sai fogo de sua boca, só uma fumacinha de vulcão extinto. — E como foi a Quimera parar lá? quis saber Hércules, ainda admirado de tamanho prodígio. — Ah, isso aconteceu quando todos os personagens do Mundo das Fábulas resolveram mudar-se para as "Terras Novas", isto é, as fazendas vizinhas que Dona Benta comprou especialmente para acomodá-los — e Emília desfiou o principal das aventuras contadas no "O Picapau Amarelo." Hércules gostou muito do pedacinho em que Sancho aparece no palácio do Príncipe Codadade, em busca de remédios para as machucaduras de seu amo D. Quixote, o qual havia tido um encontro com a Hidra de Lerna. Riu-se com desprezo. Não há maior desprezo do que o dos heróis antigos para com os heróis modernos. — Atacar a Hidra de Lerna, ah, ah... É que ele não sabe que esse monstro de nove cabeças tem uma imortal. Homem nenhum poderá destruí-la — e muito receio que Euristeu me imponha como Segundo Trabalho uma luta contra a Hidra de Lerna... Depois, voltando a D. Quixote, riu-se de novo, ah, ah, ah... — Com aquele espeto comprido que ele usa quando monta em Rocinante. Rocinante é o cavalo dele — magro como um cambau. O Visconde, lá do outro ombro, cochichou ao ouvido de Hércules que o tal espeto comprido era uma lança. — Sim, uma lança — repetiu o herói. — Chega a ser irrisório! Mas se esse tal herói saiu da luta apenas machucado, então é que a hidra

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nem sequer lhe deu a honra de atacá-lo com uma das suas nove cabeças — limitou-se a dar-lhe duas ou três chicotadas com a ponta da cauda. Ah, ah, ah... A risada de Hércules encheu Pedrinho de curiosidade. "Que será que estão conversando?" Ele não aguentava mais a carreirinha no trote. Sentia-se frouxo. Criou coragem e gritou: — Senhor Hércules! Pare um bocadinho. Preciso descansar uns minutos... O herói parou, virou o rosto e deu com o seu oficial de gabinete lá atrás. Riu-se e, como tivesse muito bom coração, atendeu ao pedido, do menino quase sem fôlego. Ficou a esperá-lo. — O meu oficial está frouxo —murmurou. — Muito pequeno para me acompanhar. Mas com paradas assim, quando chegaremos a Micenas? Vamos lá, senhora dadeira de ideias. Dê uma ideia que resolva este problema. Emília tinha mais ideias na cabeça do que um cachorro magro tem pulgas no pelo. Resolveu o caso num ápice. — O jeito que vejo é um, um só, amigo Hércules: arranjar para Pedrinho um cavalo, porque a pé já vi que não nos acompanha. Se está de língua de fora no comecinho das nossas aventuras, imagine no fim... Depois teve uma ideia melhor ainda. — Cavalo, não, Hércules. Um centauro!... Pedrinho a nos acompanhar montado num centauro, haverá coisa mais linda? Hércules sorriu. — Os centauros são monstros indomáveis. Já lutei contra eles e sei.

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— Um potrinho de centauro — sugeriu Emília. A ideia abalou Hércules. Sim, um potrinho de centauro talvez fosse amansável... Ele jamais pensara nisso nem ninguém ali na Grécia. — Podemos tentar, não há dúvida. Aqui perto fica a querência duma manada de centauros. Se entre eles houver um bom potrinho, podemos laçá-lo e experimentar o amansamento. Estavam nesse ponto quando Pedrinho os alcançou. — Uf! — foi exclamando, enquanto se sentava numa pedra. — Estou a botar os bofes pela boca... — Mas o remédio está achado, Pedrinho — disse Emília lá de cima do ombro do herói. — Hércules vai arranjar para você um centauro... Pedrinho arregalou os olhos. — Um centauro? Eu lá aguento andar montado num desses monstros? — Um centauro filhote, Pedrinho. Um potrinho de centauro... O rosto do menino iluminou-se. Se era um potrinho, então podia ser viável — e que gosto o seu, quando de volta ao século 20 pudesse contar a todo mundo que a sua montaria lá na Grécia fora um potrinho de centauro! A inveja do Jojoca e dos outros. As suas entrevistas aos jornais... — E onde encontraremos isso? — Por aqui mesmo — respondeu Hércules. — Eu estava contando à dadeira de ideias que fica por estas paragens a querência dum

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pequeno bando de centauros. Muito provável que haja entre eles algum novinho... Disse e também se sentou em outra pedra ao lado de Pedrinho, apeando Emília e o Visconde. A ex-boneca não cabia em si de tanta importância. A sua última ideia aumentara muito a consideração em que o herói já a tinha. "Dadeira de ideias", sim, e das boas... Restava descobrir em que rumo ficava a tal querência. O Visconde aproveitou o ensejo para mostrar a sua ciência filológica. — Querência! — exclamou. — Gosto muito desta palavra. É como lá onde moro os campeiros denominam os lugares onde os animais nascem e passam os primeiros anos. Ficam querendo bem a esses lugares, e se um campeiro os leva para longe e solta-os, eles vêm correndo para ali. É uma palavra que vem do verbo querer... Mas Hércules não queria gramática, queria descobrir o ponto de reunião dos centauros, e para isso ergueu-se e pôs-se a sondar os horizontes. Seu nariz farejava. Depois disse, apontando em certa direção: — Deve ser deste lado... — Como sabe? — perguntou Emília. — Saber propriamente não sei, mas sinto, tenho um palpite que é neste rumo — e apontou. — E são bons os seus palpites, Senhor Hércules? Lá em casa a palpiteira-mor é tia Nastácia. Outro dia teve um palpite na Vaca e jogou dois cruzeiros. Quase acertou. Deu o Touro — pertinho... Hércules não entendeu, porque na Grécia só havia os Jogos Olímpicos, não havia o Jogo do Bicho. — Pois então vamos para lá — propôs Pedrinho já ansioso por ver-se montado num potro de centauro.

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Foram. A um quilômetro de distância Hércules entreparou e aspirou o ar, como faz um cachorro perdigueiro. — Bom — disse ele. — Estamos perto. Vou deixar vocês ocultos aqui nesta moita para que não me atrapalhem no laçamento do potrinho. Mas... e laço? Como arranjarei um laço? Não havia laço por ali nem sequer cipó — e Hércules ficou sem saber como agir. Estava acostumado a atacar centauros com suas flechas e mesmo com a clava, mas agora tinha de apanhar um vivo — e como, sem laço? Hércules olhou para Emília com ar de quem diz: "Vamos, dê uma ideia." Mas dessa vez quem deu a ideia foi Pedrinho — Nada mais fácil — disse ele. — Lá nos pampas os gaúchos pegam os animais de dois jeitos: com laço ou com bolas... — Que é isso de bolas? — quis saber o herói. — Ah, é uma esperteza das boas. Eles arranjam três bolas bem rijas, aí do tamanho de laranjas, e as prendem a uma correia de certo comprimento; depois juntam as três correias pela outra ponta, num nó. — Mas como é que com isso podem pegar cavalo? — Muito simples. Eles correm atrás dos cavalos bravos e quando chegam acerta distância giram no ar as três correias com bolas e arremessam aquilo de encontro às pernas dos animais. As bolas vão regirando pelo ar e ao darem de encontro às pernas traseiras dos cavalos, enrolam-se — eles perdem o equilíbrio e caem. Hércules admirou-se muito da esperteza. Bem razoável, sim. Mas como arranjar três bolas? Pedrinho resolveu o problema.

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— Três pedras mais ou menos redondas servem — e aqui há muitas. Vou escolhê-las. Num instante descobriu três pedras arredondadas, assim do tamanho de laranjas. Voltou correndo. — Estas servem, e correia temos a da canastrinha da Emília. Hércules encarregou-o de fazer as "bolas" — e em quinze minutos Pedrinho deu conta do recado. Ficou um jogo de bolas bem tosco, mas servia. Depois fez uma demonstração do manejo daquilo. Regirou as bolas no ar e projetou-as de encontro a duas varas fincadas a certa distância. As bolas bateram nas varas e enrolaram-se nelas. — Está vendo? — disse o menino radiante. — Se em vez de varas fossem as pernas do centaurinho na corrida, ele perdia o equilíbrio e vinha ao chão. Entendeu? Apesar de burrão, Hércules entendeu perfeitamente; e chegou a dizer que se saísse bem com as bolas no caso do centaurinho, ia adotar o sistema. Além do arco e da clava, levaria também consigo um bom jogo de bolas sempre que saísse para aventuras. — Faça uma prova, Senhor Hércules — propôs Emília. — Aprenda a calcular bem a força. Hércules fez. Tomou as bolas, regirou-as no ar como vira o menino fazer e arremessou-as de encontro às duas varas. Mas foi um desastre. As duas varas foram arrancadas do chão e sumiram-se ao longe, arrastadas pela violência do impacto. — Sua força é grande demais, Senhor Hércules — disse Emília. — Tem que lançá-las só com uma forcinha...

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O herói repetiu a experiência e por fim acertou o "ponto de bala" da força. — Ótimo! — disse ele. — Agora me vou. Fiquem aqui bem quietinhos, que não me demorarei. E Hércules partiu no rumo da querência dos centauros, com as bolas ao ombro. O Visconde filosofou que o laço de laçar animais, as bolas de embolá-los, as armadilhas de apanhá-los vivos, tudo são produtos da inteligência em sua luta contra a força bronca. A força não tem esperteza, é burríssima, e por isso acaba sempre vencida pela esperteza da inteligência. Emília assanhou-se toda. Esperteza e inteligência eram com ela. — Sei disso, Visconde. Depois que domei o Quindim e agora tomei conta deste Hércules, estou mais convencida que a verdadeira força é a cá do miolinho... Conversaram mil coisas. O sabugo informou que a segunda aventura de Hércules ia ser o pega com a Hidra de Lerna, façanha a que eles já haviam assistido. — Valerá a pena repetir? — Para mim, não — disse Emília. — É coisa vista e já contada. Podemos acompanhar o Senhor Hércules até Lerna, e lá, enquanto ele mata a Hidra, nós nos divertiremos com qualquer coisa que houver. E assim ficou assentado. Uma hora passaram ali dentro da moita, projetando isto e mais aquilo. Pedrinho aproveitou a pausa para uma soneca. Súbito, um rumor estranho. Correram para fora. Olharam. Lá longe vinha vindo

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Hércules atracado a um centaurinho. Ah, bem que ele pinoteava e corcoveava, mas que animal naqueles mundos jamais escapou das unhas do herói? Pedrinho suspirou. — Se é bravo assim aquele potro, não sei o que será de mim... Só se eu aplicar a peia... Ele chamava assim uma correia atada às duas patas traseiras dos cavalos de modo a impedi-los de disparar. A peia embaraça o livre jogo das pernas. Hércules chegou, rindo-se. — Deu tudo certo — disse ele. — Encontrei um bando de oito centauros, com este potrinho no meio. Fui me aproximando agachado, de modo que não me percebessem. Quando me vi a boa distância para lançar as bolas, ergui-me de repente e volteei-as rápido no ar. Os monstros assustaram-se e fugiram num galope louco. O potrinho, como o mais fraco, galopava na rabeira. Eu, zás! Lancei as bolas com o mínimo de força possível. As bolas assobiaram no ar e pegaram-no pelas pernas. O pobre animalzinho levou o maior tombo de sua vida. Rebolou pelo chão como se estivesse virando cambalhotas. Os outros sumiram-se ao longe, enquanto eu alcançava este antes que tivesse tempo de desembaraçar as patas. E agarrei-o. Cá está a sua montaria, Pedrinho. — Temos que lhe aplicar a peia disse Emília. Hércules ignorava o que fosse. Pedrinho explicou e aplicou o sistema. Apesar dos valentes coices do potro, conseguiu pear-lhe as patas traseiras, de modo a deixá-lo sem movimentos livres. — Pronto, Senhor Hércules! — gritou o menino depois de acabado o serviço. Pode soltá-lo. — E se fugir?

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— Não foge, não. No primeiro tranco que der para fugir, cai por terra, do mesmo modo que quando foi embolado. Hércules afrouxou o braço. O centaurinho desembaraçou a cabeça e, supondo-se livre, deu um arranco para escapar no galope. Ah, quem disse? Saiu tudo exatinho como o menino previra. A peia agiu que nem de encomenda, e o potrinho rolou no chão, vencido. Ergueu-se, fez nova tentativa para escapar no galope e foi novo tombo. Terceira tentativa, terceiro tombo. E como já estivesse exausto de tanta luta, sossegou. Depois de descansar uns instantes, respirando ofegantemente, o potrinho ainda fez duas ou três tentativas de fuga mas os novos tombos que caiu fizeram-no compreender que era tudo inútil. Estava vencido... — Pode montar — gritou Hércules. Ainda com medo, o menino aproximou-se do centauro. Fez uma tentativa para saltar-lhe sobre o lombo mas o potro refugou, fugiu com o corpo e Pedrinho caiu. — Coragem! — gritou Hércules. Tente de novo — e foi agarrar o rebelde pelo pescoço. Dessa vez o menino conseguiu montar. — Posso largá-lo? — perguntou Hércules, que ainda o conservava preso pela cintura. — Pode! — respondeu Pedrinho corajosamente, e Hércules largou-o. Ah, os pinotes que o animalzinho deu, os corcovos e as novas quedas! Mas Pedrinho era um verdadeiro domador de cavalo bravo. Tanto se havia exercitado lá no sítio com o pangaré e outros animais novos, que ficou em cima do centauro que nem um carrapato.

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— Aguenta, Pedrinho! — gritava Emília entusiasmada. — Mostre para esse bobo que em outra vida você já foi cowboy de cinema. Até o Visconde, sempre tão calmo e científico, se entusiasmou. Batia palmas, dançava. Os centauros são homens e cavalos ao mesmo tempo, e como têm a parte dianteira homem, com cabeça, peito e braços de homem, pensam e sentem como os homens. E falam. O centaurinho, convencido de que fora domado, aquietou-se e falou. Perguntou porque lhe faziam aquilo. Emília explicou tudo tão bem explicado e fez-lhe tais e tais promessas, que ele não só sossegou como até chegou a sorrir. — Pois é isso — concluiu ela radiante. — Podemos te levar lá para o sítio: Já temos o rinoceronte e o Burro Falante e a Vaca Mocha. E vai ver o que é vida boa, meu amor! A gente brinca de tudo, até de viagem ao céu. Daí a pouco estavam mais camaradas do que se tivessem nascido juntos. Hércules não voltava a si do espanto. Que prodígios eram aquelas três criaturas do tal século 20! Tinham ideias melhores que todas as ideias da Grécia. Resolviam problemas dos mais complicados. Chegavam até a realizar prodígios ainda maiores que as suas façanhas. Domesticar um potrinho de centauro!... Quem na Grécia Heroica jamais pensara nisso? E seus olhos não se despregavam do maravilhoso quadro: Pedrinho, Emília e o Visconde brincando com o centaurinho — brincando, como as crianças brincam de corre-corre, esconde-esconde, chicote-queimado...

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EM MICENAS A viagem dali para Micenas foi um regalo. Estava resolvido o problema do transporte não só de Pedrinho como dos outros dois e da canastra. Todos e tudo no lombo daquele novo amigo conquistado graças às excelentes ideias de Pedrinho e tão bem engambelado pelas lábias da Emília. Até o Visconde, que nunca havia brincado por causa da sua gravidade de sábio, resolvera brincar também — e brincava muito desajeitadamente, mas com grande prazer. Emília cochichou para Pedrinho: — Veja o milagre! O nosso Visconde era um verdadeiro caixão de defunto, de tão sério — parecia até o Burro Falante, que jamais brincou em toda a sua vida. Agora está até bobo, a fazer coisas de palhaço... Depois de muito caminhar, avistaram ao longe uma cidade. — Micenas! — exclamou Hércules. Lá mora o Rei Euristeu. Vamos todos juntos ao palácio ou vou eu só? — Todos juntos! — berrou Emília lá de cima do centauro. — Quero ver a cara desse malvado. — Por que malvado? — perguntou Hércules. O bom Hércules nada sabia da terrível trama contra ele cozinhada entre os deuses do Olimpo. Fora por instigação de Hera que o Oráculo de Delfos o mandou dirigir-se para Micenas, quando, depois da sua loucura assassina, o herói pensou em castigar-se com o desterro. A razão era a seguinte. Euristeu viera ao mundo antes de Hércules, e Hera havia pedido a Zeus que concedesse ao futuro rei uma graça, qual a de "dominar a todos os seus vizinhos." Como Hércules fosse nascer logo depois nas proximidades de Micenas, tinha de ficar submetido a Euristeu, e isso por um decreto do Deus Supremo — decreto que nem esse próprio Deus Supremo podia

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revogar. A tramoia de Hera deu certo. Embora fosse o tremendíssimo herói que sabemos, tinha o pobre Hércules de ficar sempre submetido a Euristeu. E o rei títere vivia lhe ordenando que executasse tais e tais trabalhos, escolhidos entre os mais perigosos, para que de um momento para outro ele acabasse vencido e destruído. O primeiro trabalho de que Euristeu encarregou Hércules foi o que já vimos: ir à Nemeia e dar cabo do leão da lua. Se por acaso Hércules voltasse com vida, Euristeu o encarregaria de outro ainda mais perigoso — e assim até dar cabo dele. Tudo por instigação da ciumenta Hera... Os picapauzinhos sabiam disso, porque eram do século 20, mas Hércules tudo ignorava e, portanto, nada suspeitava daquela conspiração. A entrada dos expedicionários em Micenas foi o maior acontecimento jamais ocorrido naquela cidade: Hércules na frente e um centaurinho muito risonho atrás, com três criaturas no lombo — uma compreensível: um menino, embora vestido exoticamente; e duas incompreensíveis: uma miniatura de menina, aí de três palmos de altura; e uma "aranha de cartola." Como naquele tempo não houvesse milho, já que o milho é originário da América e só seria conhecido na Europa depois de Cristóvão Colombo, ninguém podia adivinhar que o corpo de tal aranha não passava de um sabugo de espiga de milho. A notícia correu e o ajuntamento nas ruas foi se tornando cada vez maior. Nas proximidades do palácio, os expedicionários tiveram de abrir caminho na multidão. O Rei Euristeu ficou desapontadíssimo com a volta do herói, pois estava mais que certo de sua morte. Se o Leão da Nemeia era invulnerável, como poderia alguém escapar-lhe das unhas? — Sim, Majestade — disse Hércules. Matei-o, sim. Matei o Leão da Nemeia...

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Euristeu sofismou. — E que provas me dá disso? Trouxe a pele do leão? — Eu ia trazer — respondeu Hércules — mas "eles" acharam melhor que eu a deixasse num curtidor. — Eles quem? — berrou o rei, mal dominando a sua cólera, filha do despeito. — O meu oficial de gabinete, a Emília "dadeira de ideias" e o meu escudeiro Sabugosa... O rei nada entendeu e ainda mais colérico ficou. E quase estourou quando Hércules fez a apresentação dos três picapauzinhos. — Aqui estão eles — Pedrinho, Emília e o Visconde... Os cortesãos aproximaram-se do rei e deram-lhe chá de erva-cidreira. Euristeu sossegou um pouco mais. — Mas a pele? Quero saber da pele. Faço questão de ver a pele. — Verá, Majestade — respondeu Hércules com a maior paciência — mas só depois de curtida. Já determinei ao meu escudeiro que fosse buscá-la no curtidor, lá perto da Nemeia, quando estiver pronta. Coisa de pouco tempo. Emília resolveu meter o bedelho. — Majestade — disse espevitadamente como era seu costume — não é só a pele que mostra que um leão foi morto as garras também... O rei ficou na mesma. Emília continuou:

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—Eu trouxe em minha canastra de viagem três unhas desse leão. E voltando-se para o Visconde: "Vá buscar minha canastrinha." O Visconde foi e voltou com a canastrinha às costas, bufando. Emília abriu-a, tirou as três unhas do leão e apresentou-as ao rei. — Unhas de leão, isto? — exclamou o estúpido soberano. — Esporas de galo velho, isso sim. Não me enganam, não. Quero a pele. Hércules conformou-se e prometeu apresentar-lhe a pele dentro de alguns dias. Apesar de toda a sua má vontade, Euristeu foi obrigado a concordar. Deixando o palácio, tratou Hércules de acomodar-se em Micenas. Como o curtimento duma pele leva dias, ele era forçado a ficar por ali matando o tempo. Emília teve uma ideia. — Enquanto estamos parados, podemos fazer uma coisa: um circo de cavalinhos! Hércules levantará pesos incríveis e entortará barras de ferro. O centaurinho poderá fazer muita coisa, pular arcos, dar coices, além de que só sua presença já é um acontecimento. Esta cidade nunca viu nem sombra de centauro. Mas Pedrinho achou bobagem pensarem tal coisa. Um herói como Hércules prestar-se a exibir-se como hércules de feira! — O bom é irmos esperar num campo aberto. Isto de cidades não serve para Hércules. Ele não cabe nelas, fica desajeitado, sem movimentos... Tem que hospedar-se numa hospedaria como todo mundo. Na hora do jantar como é? Vêm umas comidinhas para a mesa, que não lhe chegam nem para a cova dum dente. Não me saem da lembrança os carneiros assados que ele comeu no olival. Três, Emília, três!... — Pois vou sugerir-lhe a sua ideia, Pedrinho: irmos acampar longe da cidade, num ponto onde haja rebanhos. E também vou lhe dizer

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uma coisa: que quem come com tamanha fúria, tem que pagar. Isso de correr mundo sem dinheiro no bolso não está certo. No olival você teve muita sorte: pagou os carneiros com o canivete — mas agora? Você não pode andar dando tudo o que tem para pagar o que o heroísmo come. Hércules tinha saído para acomodar o centaurinho numa estrebaria. Pouco depois voltou. Emília fez-lhe "gesto de subir" — ou de ser subida ao seu ombro. Era assim que conversava com o tremendo herói, bem pertinho de seus ouvidos. — Hércules — disse ao ver-se lá em cima. — Não podemos ficar nesta cidade. Não há espaço para você, não há carneiros para assar, o centaurinho vai ficar triste. Melhor irmos para um campo. Ar livre. Horizontes. Olivais. Carneirada. Rios para banho... — Era no que eu estava pensando — respondeu Hércules. — Não me ajeito em cidades. Nunca me ajeitei. Não posso por os pés na rua sem que comece a juntar-se gente. Tenho medo de que de súbito me venha algum acesso de cólera e eu os arrase... Outro ponto sobre que discutiram foi a conveniência de mandarem o Visconde para o olival. — Ele que fique lá aguardando o aprontamento da pele. — E vai montado no centaurinho? — Oh, não! — exclamou Emília. Por coisa nenhuma no mundo Pedrinho entregaria o potro ao Visconde. Ele é sábio, Hércules, e os sábios são péssimos cavaleiros. Caía logo e adeus, potro! Meioameio está muito nosso camarada, mas... — Meioameio? — interrompeu Hércules sem entender.

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— Sim, foi como batizei o potrinho. Está nosso camarada, mas de repente vem a saudade da vida livre e bota-se. — Mas se não vai no centauro, o escudeirinho tem de ir a pé — e a pé leva um ano para chegar lá. — A pé, sim — concordou Emília — a pé ele levará um ano para chegar ao olival. Mas a pó? Hércules não entendeu. — A pó? — Sim. Se em vez de ir a pé, ele for a pó de pirlimpimpim? O Visconde traz consigo na cintura um canudo desse pó. Conforme o tamanho da pitada, o pó leva a gente para mais perto ou mais longe — e num instante. É zás, trás — pronto! A maior maravilha moderna é o nosso pó de pirlimpimpim. Quer ver? — e Emília chamou pelo Visconde. — Escute aqui, sabinho. Resolvemos que você vá esperar o curtimento da pele lá no olival e que parta imediatamente. — No centauro? — perguntou o Visconde. — Isso é o que você quer, maroto, para ir brincando pelo caminho — mas pensa que o Encerrabodes deixa? — Mas se eu não for no centaurinho, não poderei trazer a pele... — Ora não pode! Nunca vi coisa mais simples. Basta vestir a pele num carneiro grande e esfregar uma pitada de pó de pirlimpimpim no nariz dele — o carneiro vem chispando, com a pele de que está vestido e ainda com você montado. E aqui chegando, Hércules come o carneiro.

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O rostinho do Visconde iluminou-se. A solução pareceu-lhe maravilhosa. Emília ainda fez várias recomendações e saiu com o Visconde a fim de ver nas lojas um presentinho para o pastor. De volta disse a Hércules, referindo-se ao pó: — Repare como isto chispa. Visconde tirou da cintura o canudinho de pó, tomou uma pitada e um, dois... três! Desapareceu como por encanto.

O VISCONDE DESGARRA-SE Ninguém notou o seguinte: quando o Visconde cantou o TRÊS e ia aspirando a pitadinha de pó, Emília, sem querer, esbarrou nele, fazendo que uns grãos de pó caíssem por terra. Coisa das mais insignificantes, que nem Emília nem Visconde perceberam — mas, bastou para que o Visconde, em vez de ir acordar no olival, fosse acordar em ponto muito diferente: em Sérifo, um lugar que ele nem sabia onde era, e acordou bem em cima do telhado dum palácio. Foi isso uma grande sorte, pois se caísse numa rua seria fatalmente caçado e levado para algum jardim zoológico. Todos ali na Grécia o achavam com muito jeito de aranha. Mas havendo, sem que ninguém o visse, aterrissado naquele teto, estava salvo — e se aspirasse uma pitadinha mais bem calculada iria parar no olival. Aconteceu, porém, uma coisa extraordinária. O Visconde era um sábio, e os sábios gostam de saber. Quis logo saber que telhado era aquele e quem morava no palácio. Algum rei? O Visconde já de algum tempo andava transformado. Mudara muito. Perdera a casmurrice antiga, ria-se, dizia graças — e chegou até a dançar de contentamento — coisa que deixou Emília muito

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apreensiva. Pois essa mudança no Visconde estava se revelando também ali no telhado. Em vez de tirar da cintura o canudo de pó e tomar a pitadinha que o levasse ao olival, só pensava numa coisa: levantar uma telha, esgueirar-se para o forro da casa e lá de cima espiar o que pudesse. Quanto à ida ao olival em busca da pele do leão, nisso nem pensou. Visconde teve de fazer muita força para recuar uma das telhas. Suou para o conseguir. E passando pela fresta entrou no forro do palácio. Tudo bastante escuro ali, naquele intervalo entre as telhas do telhado e o forro propriamente dito. Mesmo assim encontrou várias rachinhas, pelas quais podia espiar o que se passasse lá dentro. Era o palácio do Rei Polidectes, o qual se achava celebrando um banquete por motivo de seu noivado com Hipodâmia. Nessa festa reuniam-se os principais chefes guerreiros do país e vários heróis entre estes o grande Perseu. Estavam à mesa do banquete, muito alegres e rumorosos, já bastante bêbados. Em dado momento Perseu perguntou ao rei que presente desejava receber de todos eles. — "Cavalos!" — respondeu Polidectes. — "Posso até presenteá-lo com a cabeça da Medusa!" — exclamou Perseu, já perturbado pelos vinhos. — Dar um cavalo é pouco para mim. Todos riram-se de tamanha bazófia, porque a tal Medusa era o horror dos horrores. Mas ficaram sérios e com dó de Perseu quando o rei disse: "Pois bem. Traga-me a cabeça da Medusa, em vez dum cavalo." A Medusa era uma Górgona! Só mesmo na Grécia poderia aparecer uma coisa assim. O Visconde sabia da história das Górgonas e pôs-se a recordar. — Eram três irmãs: Esteno, Euriale e Medusa. As duas primeiras tinham propriedades divinas: não estavam sujeitas à velhice nem à

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morte. Mas Medusa era mortal. E que feia, que horrenda megera! Tinha o rosto sempre convulso pela cólera e a fazer esgares. Os cabelos eram fios de bronze entrelaçados de serpentes coleantes. Nariz chato, dentes de porco, alvíssimos, e uns olhos muito redondos, que chispavam relâmpagos. Negra. Vivia a lançar gritos — e eram os mais terríveis e espantosos gritos da antiguidade. E ainda tinha asas e braços de bronze. O pior da Medusa, porém, era o seu poder de reduzir a pedra todas as criaturas em que fixasse os olhos. Impossível monstro mais hediondo e mais perigoso porque com um simples olhar petrificava à distância qualquer herói que pretendesse atacá-la. O banquete correu na maior animação até tarde da noite e por fim começaram a dispersar-se. O Visconde pensou lá consigo: "Perseu vai ver se traz a cabeçada Medusa e eu posso assistir a essa façanha" — e tratou de sair para a rua. Como não houvesse iluminação de lampiões naqueles tempos, o Visconde podia andar desembaraçadamente pela cidade, sem medo de que o descobrissem e pusessem num museu. Os últimos convidados iam saindo, e entre eles o herói. O Visconde tinha de acompanhá-lo de longe, mas como, assim no escuro? Em resposta às suas dificuldades, a nuvem que tapava a lua se esgarçou e caiu sobre a terra um lindo luar. O Visconde pôs-se a seguir o herói. Perseu caminhava de cabeça baixa, como quem está imerso em profunda cisma. Foi andando até sair da cidade, e encaminhou-se para uma praia ali perto. O reino de Sérifo era numa ilha. Lá na praia sentou-se nuns arrecifes, com a cabeça entre as mãos. Num momento de entusiasmo alcoólico fora fazer aquela bravata e agora arcava com as consequências: tinha de levar ao Rei Polidectes a cabeça da Medusa... Mas como, se Medusa petrificava com o olhar quem dela se aproximava? Tudo isto o Visconde, escondido ali atrás

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dele lhe ia lendo na expressão do rosto e nas palavras que de vez em quando lhe escapavam da boca. E estava nisso quando, de repente, surge Hermes ou Mercúrio. Hermes era o mensageiro dos deuses, o leva-e-traz. — Que é que o põe triste assim, Perseu? — perguntou Hermes. O herói contou a sua desgraça. — Num banquete a nós oferecido perguntamos a Polidectes que presentes queria receber. "Cavalos" — foi sua resposta — eu, já toldado pelo vinho, prometi, sabe o quê? A cabeça da Medusa... Hermes animou-o. — Para tudo há jeito, Perseu. Vou ajudá-lo, e farei que lá no Olimpo a deusa Palas também o ajude. Palas é sua amiga. E sentando-se ao lado do herói, começou a formular um plano. — Escute. Há as Greas, também filhas de Forcis, como as Górgonas. São três: Penfredo, Ênio e Dero, e as três só possuem um dente e um olho, dos quais se servem cada uma por sua vez. Você tem de ir procurá-las; e no momento em que uma for passando o olho para outra, tem de agarrá-lo, bem agarrado. Elas vão ficar na maior ânsia para que lhes seja restituída aquela preciosidade — e então você impõe condições. — Que condições devo impor, Hermes? — Basta uma. Que indiquem o caminho que leva à mansão das ninfas possuidoras dos objetos necessários para a vitória sobre a Medusa. — Quais são esses objetos?

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— A coifa de Hades que torna invisível quem a põe na cabeça; umas sandálias de asas e um surrão. — Para que esse surrão? — É um surrão próprio para conduzir a cabeça da Medusa depois de cortada. Faça tudo como digo, que irá cobrir-se de fama com um dos feitos mais prodigiosos destes tempos. O Visconde tudo via e ouvia. Prestou muita atenção na vestimenta do mensageiro dos deuses, que já conhecia daquela vez em que com Pedrinho e Emília penetrou no Olimpo. Hermes usava asas no calçado, para andar bem depressa. Mensageiro vagaroso não vale nada. Bom. Hermes não tinha mais nada a fazer ali. Despediu-se e lá se foi, veloz como um patinador. Perseu estava radiante. Nunca um socorro divino chegara tão no momento. E, levantando-se da pedra, pôs-se a caminho rumo à morada das três Greas. O Visconde seguia-o rente — e teve de fazer prodígios para acompanhá-lo. Enquanto Perseu dava uma passada o sabugo tinha de dar oito. Por felicidade o herói não mostrava pressa nenhuma — ia caminhando vagarosamente. Afinal chegaram. As Greas estavam na sala examinando um ponto de tricô. Enquanto uma o via com o olho único da casa, as outras esperavam a vez, completamente cegas. Depois o tricô mudava de mãos e o olho também e assim as três se arrumavam para enxergar. Perseu entrou e apresentou-se — e enquanto uma o via com o olho único, as outras demonstravam a maior sofreguidão para receber o olho e vê-lo também. "Dá cá o olho! Dá cá o olho!" diziam as duas cegas, espichando as mãos para pegar a preciosidade. Outra mão também espichou — e quando a que estivera usando o olho tirou-o da órbita e estendeu-o para as irmãs, quem o apanhou foi Perseu.

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O "fecha" foi tremendo. Gritaria histérica. Desmaios. Todas falavam a um tempo e ninguém se entendia. Por fim o herói conseguiu tomar a palavra. — Escutem, tontas! Vou restituir oolho. Para que quero este olho se tenho dois? Está claro que vou restitui-lo — mas só se me ensinarem o caminho da mansão das ninfas... — As que guardam os objetos necessários para a vitória sobre a Medusa? perguntaram as três ao mesmo tempo. — Sim — respondeu Perseu. Elas relutaram. Acharam que era traição. Perseu procurou convencê-las. Disse que a Medusa era um monstro que já havia feito a desgraça de muita gente. Se ele conseguisse cortar-lhe a cabeça, era um grande bem para o mundo. As três Greas conferenciaram entre si, aos cochichos e por fim concordaram. — Pois não há dúvida. Vamos revelar o caminho para a mansão de tais ninfas e você nos restituirá o nosso olho. — Fechado! — exclamou Perseu. E assim foi. Elas ensinaram-lhe o caminho e ele lhes restituiu o olho preciosíssimo. O Visconde, atrás da porta, tudo via e ouvia.

A CABEÇA DE MEDUSA Nas aventuras heroicas é o mesmo que na vida comum moderna. O

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meio de conseguir qualquer coisa é descobrir o jeito. Medusa abusava do seu poder porque até então só heróis pouco espertos tinham ido combatê-la. Atacavam-na como se atacassem uma fera qualquer — e iam ficando reduzidos a estátuas de pedra. Com Perseu não ia ser assim, porque aprendera o jeito certo e único. O caminho para a mansão de tais ninfas era dos mais complicados. Tomava por ali, virava acolá, torcia à esquerda, agora à direita. Só mesmo seguindo um roteiro escrito como o que as Greas haviam dado a Perseu. Afinal o herói chegou e pediu as três coisas. As ninfas não opuseram a menor resistência. Parece que tinham ordem de entregar aquilo ao primeiro que alcançasse chegar até lá. O Visconde, sempre rente, espiando tudo, com muitas cautelas para não ser visto. Medo do jardim zoológico... A lua estava quase no fim de seu curso. Mais uns momentos e o sol a substituiria no céu — coisa que para o Visconde era o diabo. Vinha daí o seu interesse em que o herói concluísse a aventura da Górgona antes do amanhecer. E lá ia ele trotando atrás do herói já na posse dos três preciosos objetos. Não ficava muito longe a casa ou o antro de Medusa. Anda que anda, trota que trota, chegaram. Perseu espiou. Medusa estava dormindo despreocupadamente. Que horrenda era! Apesar de valoroso, o Visconde sentiu-se de pernas bambas. Teve de agarrar-se à parede. Perseu foi entrando com as maiores cautelas, apesar de ter na cabeça a coifa que o invisibilizava. Quando chegou à distância própria, tirou a faca da cintura e com um golpe de mestre decepou a cabeça do monstro. Em seguida meteu-a no surrão. Pronto! Estava realizada uma das maiores façanhas da antiguidade.

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O Visconde teve ensejo de ver bem como era a tal famosa cabeça da Medusa. Os olhos não viu, porque ela os tinha fechados: morrera dormindo. Mas viu-lhe os cabelos de bronze entremeados de cobras. Era um verdadeiro ninho de cobras, das quais só apareciam a cabeça e metade do corpo. As caudas ficavam inseridas no couro cabeludo, como raiz de cabelo. Horrendo, horrendo... Quando Perseu deixou o antro da Górgona decapitada, os dedos cor-de-rosa da aurora começavam a anunciar a vinda do sol. O Visconde pôs o dedo na testa. — Inútil continuar acompanhando este herói — refletiu consigo — Já vi o principal. O resto vai ser a entrega da cabeça da Medusa ao rei, o qual ficará com cara de bobo, admiradíssimo da façanha de Perseu. Não preciso ver mais. E assim pensando, tirou da cintura o canudinho de pó de pirlimpimpim e mediu na palma da mão a dose necessária para ir dali ao olival. Feito o que, aspirou-o — e pronto! Foi aterrissar diante da casinha. O pastor guardava as ovelhas lá no pasto, e tocava a mesma flauta daquele dia. O Visconde encaminhou-se para ele. Quando ia chegando, o cachorro o percebeu e pôs-se, com os pelos do dorso arrepiados, a recuar, e a rosnar na linguagem do "medo ao desconhecido", própria dos cães. O pastorzinho olhou. — Oh, a aranha de cartola por aqui outra vez? Que veio fazer? — Ver se a pele do leão já está pronta. Hércules tem de apresentá-la ao rei como prova de que, de fato, matou o leão. Do contrário o rei não acredita.

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— Pronta? — exclamou o pastorzinho. — Você pensa que isto de curtir uma pele grossa como a dos leões é coisa que se faça assim do pé para a mão? Leva tempo, meu caro. Leva ainda mais uma semana, pelo menos. — Uma semana? — repetiu o Visconde coçando a cabeça. — Isso no mínimo. Pode até levar mais. Depende. Nunca curti couro de nenhum animal da lua. É possível que sejam diferentes dos nossos aqui. — E que fico eu fazendo toda uma semana neste olival? — perguntou o Visconde. — Isso é com você. Poderá ajudar-me na tosa dos carneiros, que vai começar amanhã. Poderá colher azeitonas... O Visconde não gostou de nenhum dos dois alvitres. Ia pensar sobre o assunto. De repente o pastorzinho olhou bem para ele e deu uma risada. — Escute, aranha. Diz você que veio buscar a pele do leão? — É verdade. Para isso vim. — Ah, ah, ah... Uma pulga de animalejo desse tamanho lá pode com aquele couro de leão, o maior que ainda vi? Ora vá se lavar... O Visconde explicou-lhe a ideia da Emília: costurar a pele sobre um carneiro bem grande e dar-lhe a cheirar uma pitada do pó. — Que pó é esse? — perguntou o pastorzinho. O Visconde explicou pachorrentamente os maravilhosos efeitos do maravilhoso pó, mas não conseguiu convencê-lo.

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— Vá saindo com essas histórias! disse o rapaz. — Pó... Pó... Cara de pó tem você, sua barata tonta! e, depois, se fosse verdade, então acha que me ia levando daqui um carneiro assim sem mais nem menos? Pensa que isto aqui é a casa da sogra, onde entra todo o mundo e todos fazem o que querem? Outro ofício. O Visconde explicou que tinha de ser assim, porque ou ele levava a pele do leão com um carneiro dentro ou Hércules danava e vinha buscá-la — e o pastorzinho bem sabia que, nesse caso, em vez de perder um carneiro ele iria perder três... O argumento valeu. Os melhores argumentos são os que ameaçam o bolso das criaturas. Foram ver se a pele estava no ponto. De caminho o Visconde perguntou: — Que tanino emprega? — Tanino? — repetiu o jovem grego, que pela primeira vez ouvia essa palavra. — Sim, o tanino de curtume... O pastorzinho engasgou. Ele não usava tanino nenhum para curtir couro, porque naqueles tempos esse processo ainda não fora inventado. O Visconde explicou. — Quando você morde certas frutas verdes, não sente uma coisa que "pega" na boca? Pois é o tanino da fruta. À medida que ela vai amadurecendo, vai o tanino se transformando em outras coisas; mas enquanto a fruta está verde o tanino é muito forte. Na banana verde, por exemplo. O tanino está ali em quantidade! Pois esse tanino a substância que lá no mundo moderno os homens usam para curtir os couros crus, ou "verdes", como dizem os técnicos. Os couros são mergulhados durante um ou dois meses numa solução fortíssima de

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tanino, e ficam curtidos, isto é, não mais apodrecem, como o couro cru, e ainda se tornam impermeáveis à água e macios. Mas aqui? De que modo vocês curtem couros? Enquanto falavam iam andando de rumo ao "curtume." O Visconde admirou-se. Era a primeira vez que via curtir couro pelo sistema do fumeiro. Havia uma cova no chão com muita lenha acesa, uma cova tampada de modo a canalizar a fumaça para uma abertura ou chaminé. E sobre a chaminé estava estendida a pele do leão, esticada por varas e mantida suspensa por quatro esteios. — Então é assim? No fumeiro?... — Exatamente. O pastorzinho examinou o estado da pele. — Ainda não está no ponto — disse. "Ele" quer serviço bem feito. — Quanto tempo vai demorar? O pastorzinho apalpou o couro, cheirou-o, experimentou-o entre os dentes e com a ponta da língua. Depois respondeu com a maior segurança: — Seis dias. Em seis dias deixo isto uma beleza. Visconde arrenegou. Ficar ali seis dias caçando moscas, a matar o tempo?... Se o pastorzinho fosse de mais cultura, esse tempo de espera não queria dizer nada. Mas que adiantava a um sábio como o Visconde conversar com um ignorante? E o Visconde pensou em Sócrates. "Ah, se ele estivesse aqui! Até um ano eu esperaria, na prosa com esse grande filósofo, sem perceber a passagem do tempo."

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MEIOAMEIO Enquanto lá no olival o Visconde procurava meios de matar o tempo, na cidade de Micenas, Hércules acolhera muito bem o conselho de Emília e estava se preparando para a mudança. — Sim, o campo aberto... O ar livre... Os horizontes... As carneiradas... Esse ambiente para uma criatura excepcional como o herói, no qual tudo era imenso — as cóleras, as lutas, o apetite, as venetas... Hércules só se sentia bem quando solto na plena e larga natureza. Partiram. Pedrinho na frente trotava no gracioso potro semi-humano, com Emília e a canastra no colo. Hércules vinha atrás, a sorrir, com os olhos no lindo quadro. Ele já estava querendo bem àquelas criaturas do século 20. E como as admirava! A inteligência daquele menino, a habilidade e a esperteza de Emília, a ciência do seu escudeiro saído em busca da pele do leão... Notável, tudo notável... E Meioameio era também um encanto. Hércules sempre vivera em luta com os centauros, já tendo abatido muitos. Mas pela primeira vez via bem de perto e a cômodo um desses entes, e conhecia-o na intimidade — e nada encontrou em Meioameio que justificasse o seu antigo ódio aos centauros. Sim, se eram uns brutos, isso vinha apenas da falta de educação. Que diferença entre eles e os homens também sem educação? E Hércules, com toda a sua burrice, "teve uma ideia", talvez a primeira ideia de sua vida: que é a educação que faz as criaturas. Saídos da cidade, Hércules tomou certo rumo e foi ter a uma bela campina a duas léguas dali. Topografia ondulante, belos trechos de floresta nas baixadas pasto rasteiro nas mansas encostas. Um rio de águas cristalinas passava por ali.

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— Que lindo ponto para uma fazenda! — exclamou Pedrinho. — Se fossem minhas estas terras, eu erguia a casa naquele tope — e indicou certa elevação a pouca distância do rio. Hércules chegou até à margem e bebeu pelas mãos em cuia. Bebeu como um elefante. Pedrinho teve a impressão da existência dentro dele de verdadeira "caixa d'água" — e para enchê-la só mesmo nos ribeirões. Beber e comer. Hércules tinha bebido, precisava agora comer. O seu apetite estava já de bom tamanho. Pôs-se a sondar os longes daquela pradaria. Não tardou a sorrir: tinha visto um rebanho de carneiros. — Lá está o meu almoço — disse ele e voltando-se para o centaurinho: — Vá lá e me traga três carneiros de bom ponto. O centaurinho partiu no galope. Emília estranhou aquela sem-cerimônia. — Como vá lá e traga? — disse ela. Aqueles animais têm dono. Quem quer carneiros, compra-os. Não entendo esta moda aqui na Grécia. Hércules deu uma risada hercúlea. — Ah, ah, ah... Comigo é assim. Quando quero, pego. Isso de comprar as coisas com dinheiro é para os que não podem pegá-las. — E não acontece nada? — Claro que não — respondeu o herói. — Lá no olival, por exemplo: que aconteceu depois que comi os três carneiros? Nada. Pedrinho entrou na conversa. — Sim, mas isso foi porque eu paguei os carneiros.

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— Com que moeda? — Dei em troca dos carneiros o meu canivete Rodger, afiado que nem navalha. Hércules comoveu-se ao saber daquilo. O pobre menino sacrificara uma prenda querida para sanar a brutalidade que ele, Hércules, havia cometido, qual a de tomar os carneiros sem consentimento do dono. E sentiu que aquele menino já era um produto da educação que a ele, Hércules, faltava. A ideia da educação que momentos antes havia concebido estava a aperfeiçoar-se em seu cérebro. E Hércules disse: — Estou achando bonito esse sistema de respeitar o que é dos outros. Bonito, sim. Só hoje botei o pensamento no caso — e aprovo. E se ainda fosse criança como você, era o caminho que eu ia seguir. Na idade que tenho já não posso mudar. Muito difícil... — Quer dizer que vai continuar pegando o que quer sem dar satisfação ao dono? — Sim. — Por quê? — Porque é tarde. A varinha nova, o jardineiro verga e lhe dá esta ou aquela forma — mas que jardineiro dá forma ao tronco duma oliveira velha? Meioameio havia alcançado o rebanho e abatido a coices três carneiros. Os outros fugiram por aqueles campos, tomados do maior pânico. Nada mais imprevisto que a aparição de um centaurinho. Minutos depois Meioameio chegava com os três carneiros às costas. Jogou-os aos pés do herói.

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Hércules sorriu o bom sorriso da fome que vê chegar o prato. Mas na hora de abrir os carneiros surgiu uma dificuldade. Não havia faca e Pedrinho estava sem o seu precioso canivete. Que fazer? Emília salvou a situação. — Tenho na canastrinha uma lâmina Gillette — e foi buscá-la. Quando a apresentou a Hércules, o herói arregalou os olhos. — Que é isto? — Uma lâmina boa para abrir carneiros — respondeu Emília. Hércules tentou pegar na lâmina, mas deixou-a cair. Fina demais, delicada demais para aquelas mãos tremendas. E veio-lhe uma risada hercúlea. — Ah, ah, ah. Então quer você abrir os carneiros com esta coisinha tão mimosa? Que bobagem! Mas Pedrinho ia mostrar que não era bobagem. Apesar da sua velha repugnância pelo sangue, foi ele quem abriu os carneiros. Só fez isso. O resto, a tirada da pele e das entranhas, foi serviço do centaurinho. — Por que não trouxe quatro? — perguntou-lhe Hércules. — A ordem foi para três — respondeu o obediente Meioameio, que também estava com fome e esperançoso de que pelo menos um quarto de carne Hércules lhe daria. E foi o que aconteceu. Depois de assada toda aquela carnaria, o herói mediu Meioameio de alto a baixo e disse: — Para você um quarto basta — e deu-lhe um quarto de carneiro. — E você, Pedrinho? E você, Emília... Sirvam-se.

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Pedrinho e Emília juntos comiam tão pouco em comparação com os seus companheiros, que Hércules arregalou os olhos ao ver o menino tirar a sua parte. — Só isso? — Isto me enche o papo por um dia inteiro — e ainda sobra para encher o papinho da Emília... Foi um regalo aquele almoço ao ar livre, à margem do ribeirão de águas cristalinas. Hércules confessou jamais ter comido uma carne tão deliciosa. — Que fizeram vocês neste carneiro que ficou tão bom? — perguntou. — É que trouxemos da cidade uma boa dose de sal — respondeu Emília. — Nós dos tempos modernos não comemos carne sem sal. Hércules nunca prestava atenção a essas pequeninas coisas, e muitos bois e carneiros assados comera sem sal nenhum. Agora estava verificando como a carne melhora com o salgamento. Vendo aquilo, Emília suspirou: — Ai que saudades... — De quem, Emília? — De tia Nastácia. Estou imaginando o maravilhoso assado que ela faria com estes carneiros, se estivesse aqui conosco. Ah, aquilo é que é cozinheira. Hércules interessou-se pelo assunto. — Quem é essa dama?

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— Não é dama nenhuma — respondeu Emília. — É simplesmente tia Nastácia, a maior quituteira do mundo — e tais coisas contou das proezas culinárias da negra, que um fio d'água começou a pingar da boca do herói e do centaurinho. — Um dia há de conhecê-la, Senhor Hércules. Não perco a esperança de vê-lo aparecer lá pelo Picapau Amarelo. Lembre-se de que já me prometeu.

A PELE DO LEÃO Lá pelo fim do sexto dia estavam sentados à beira do ribeirão, na prosa de todas as tardes, quando subitamente um animal estranhíssimo "apareceu" a certa distância. Não veio de outro lugar, não foi chegando como um animal comum. Apareceu! E pelo aspecto não lembrava nenhum animal conhecido. Tinha um vago jeito de leão, por causa da juba, mas um leão desengonçado, com as patas bambas, ou melhor, com oito patas: quatro exteriores, enormes, bambas, verdadeiras patas de leão, e outras quatro mais delicadas e firmes como as dos carneiros. — Que estranho monstro será aquele? — exclamou Hércules, passando a mão no arco. Foi Emília quem adivinhou. — Já sei! — berrou ela antes que o herói lançasse a flecha. É a pele do leão da lua!... Hércules não entendeu. — Como? Que história é essa? — Sim — respondeu Emília. — O Visconde estava atrapalhado com o problema de trazer a pele e eu então dei essa ideia: "Você costura a

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pele em cima dum carneiro dos maiores e esfrega-lhe no nariz uma dose do pirlimpimpim. — Ele vem voando e com ele a pele." Juro que é isso — e correu na direção do estranho animal. Exatamente. Era um carneiro revestido duma pele curtida; e agarrado ao pelo da juba, uma esquisita aranha: o Visconde de Sabugosa! Tinham vindo juntos os três: o carneiro, a pele e o sabugo. Mas o Visconde ainda estava desacordado. Voltou a si nos braços da Emília. — Coitadinho... Deve estar sofrendo do coração. Já custa a sair do desmaio do pirlimpimpim... Pedrinho descoseu a pele do leão e soltou o carneiro, que permaneceu bobo e apalermado a ponto de nem sair do lugar. Hércules aproximou-se. Tomou a pele. Examinou-a. — Ótimo! Desta vez Euristeu vai dar-se por convencido... — e jogou a pele sobre o ombro. Desde aquele momento nunca mais iria o herói abandonar a pele do Leão da Nemeia. Passou a usá-la como escudo — e de muitos golpes esse escudo o livrou, porque era invulnerável. Pedrinho verificou esse ponto. Não conseguiu abrir nela nem sequer um furo com a ponta das setas de Hércules. Como então o seu canivete a cortara naquele dia? Podia ser por muita coisa. Talvez a invulnerabilidade "cochilasse" naquele momento e fosse apanhada desprevenida. O caso é que a pele "vulnerável" do dia da morte do leão estava de novo "invulnerabilíssima". — Bom. Tenho de voltar a Micenas para apresentar isto ao rei. — Eu, se fosse você — disse Emília não apresentava nada. Ia chegando e esfregando a pele na cara dele. Aquele rei antipático o que precisa é disso: uma boa esfregação de pele nas fuças...

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Hércules lá se foi com a pele ao ombro. O Visconde viu-se imediatamente rodeado e especulado. Todos queriam saber das suas aventuras no olival. — Aventura no olival não tive nenhuma, mas de caminho para lá aconteceu-me a coisa mais inesperada e prodigiosa... — Que foi? — indagaram todos na maior ansiedade. O Visconde gozou aquilo e não teve pressa em contar. Queria irritar-lhes ainda mais a curiosidade. — Ah, uma coisa que nem queiram saber. Uma coisa tremenda!... Emília, indignada, agarrou-o pelo pescoço. — Conte já tudo, depressa, se não eu o depeno... — De caminho para lá caí em cima do telhado dum palácio... — Como? Então errou no cálculo da pitada? — No cálculo não errei, mas agora me lembro que no momento de aspirar o pó você deu uma cotoveladinha sem querer. Bastou isso. Uns grãos de pó caíram e eu não aspirei a pitada certa. Resultado: em vez de aterrissar no olival, aterrissei no telhado do palácio de um rei... — Como há reis nesta Grécia! — observou Emília. — Até parece livro de contos da carochinha... — Aterrissei no telhado e resolvi espiar... — e o Visconde contou tudo quanto vira no palácio do Rei Polidectes, e foi contando, até referir-se à cabeça da Medusa. Ao ouvir essa palavra, Pedrinho arrepiou-se, pois sabia da história.

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— A cabeça da Medusa? — exclamou ele. — Pois teve Perseu a coragem de espontaneamente oferecer ao rei a cabeça dessa Górgona, em vez de um simples cavalo como os outros? — Ele estava bêbedo — resolveu Emília. — Pois ofereceu — continuou o Visconde — e contou tudo: a saída de Perseu para fora da cidade, suas meditações lá na praia, sentado no rochedo; o aparecimento de Hermes... Ao falar em Hermes, Emília perguntou: — Ainda usa aquelas asinhas nos pés? — Sim — respondeu o Visconde — e também inventou uma moda de asinhas no capacete. Mas apareceu Hermes, sentou-se ao lado dele e... E o Visconde contou tudo quanto já sabemos. Ao chegar ao ponto da entrada de Perseu na casa da Medusa, descreveu com cores tão vivas a cabeça do horrendo monstro que Emília desmaiou... — Olhe o que você fez, Visconde! — ralhou Pedrinho, amparando-a. — Emília já não é aquela mesma de outrora, do tempo de boneca, quando não tinha nem uma isca de coração. Virou gentinha e das que têm coração de banana... Mas não demorou muito o desmaio da criaturinha. Com uns borrifos d'água voltou a si. O Visconde contou o resto, mas sem carregar muito nas cores, de medo de outro desmaio. — E foi assim — concluiu ele — que tive a sorte de ver o que ninguém no mundo viu. Ver, ver, ver... Ver a Medusa viva, dormindo! Ver o herói cortar-lhe a cabeça dum só golpe, antes que

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ela tivesse tempo de abrir os olhos petrificadores. E vê-lo botar aquela cabeça de cabelos de cobra dentro do surrão mágico... Tudo isso eu vi, e ninguém no mundo viu nem verá. A minha maior glória vai ser essa... A curiosidade em torno de tão prodigiosa aventura não se satisfez com a narrativa do Visconde. Emília reclamava detalhes. — Como era a inserção dos cabelos cobras? — Tinham a cauda enfiada no couro cabeludo.

— E moviam-se, esses cabelos-cobras?

— Logo que entramos, Medusa estava dormindo e as cobras também. Mas depois que Perseu a decapitou, as cobras acordaram, assanhadíssimas, e não pararam mais de se mover dum lado para outro.

— Com as bocas e as línguas de fora? — Sim. Umas boquinhas muito vermelhas e aquelas linguinhas nervosas. — E os olhos da Medusa? — Não pude vê-los, porque a encontrei dormindo. Mas são muito redondos. — E petrificavam as pessoas... — Sim, isso posso atestar. Ali pelas redondezas do antro da Medusa vi muitas estátuas de pedra estranhíssimas, cada qual numa atitude de ataque. Uma tinha o braço erguido, no gesto de quem vai arremessar uma lança. Outra era a dum bonito herói com o arco distendido e a flecha apontada. Outra era de outro herói com a clava no ar. Eu não entendi aquilo. Julguei que aquela paragem fosse

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algum grande parque em abandono, ainda cheio de estátuas de pedra. Depois compreendi tudo: eram os heróis que haviam procurado destruir a Medusa e que com um simples olhar dos seus terríveis olhos redondos ela transformara em pedra. — Que horror! E quantas estátuas dessas viu lá? — quis saber Pedrinho. O Visconde franziu a testa, como quem calcula mentalmente. Depois disse: — Umas cem... — Cem?... — Talvez haja mais. Umas cem visíveis. Deve haver muitas outras ocultas pelo mato. Pedrinho ficou cismativo. Estava ali uma coisa que ele queria ver: o parque de heróis petrificados pelo tremendo olhar da Medusa... Depois mudaram de assunto. Pedrinho perguntou: — E como se arranjou com o pastorzinho para que cedesse sem pagamento esse carneirão? — Provei-lhe a maravilha que é o pó de pirlimpimpim e dei-lhe uma dose. Mas tenho medo de que o bobinho haja desrespeitado as minhas instruções e a estas horas esteja a umas mil léguas de lá, em um século muito distante deste. Estavam nesse ponto de prosa, quando Hércules apontou. Vinha de volta. Todos ficaram muito atentos, à espera das novidades. — E então? — exclamou Pedrinho.

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— Aconteceu exatamente o que eu receava — disse ele. — O rei mostrou-se visivelmente contrariado quando verificou que a pele era mesmo de leão e duma espécie de leão que não há na terra. Logo, só podia ser o leão caído da lua. E então me disse: —"Muito bem, grande herói. Vejo que é deveras valente e forte, e que há de gostar de sair ao encontro de inimigos ainda mais fortes que o Leão de Nemeia. Ordeno, portanto, que se apreste e vá destruir a Hidra de Lerna. Esse monstro anda a arrasar aldeias, e a fazer estragos horríveis. Informe-se de tudo e traga-me aqui as cabeças da hidra... — E isso o preocupa, Hércules? — perguntou Emília. — Sim, porque essa hidra tem nove cabeças, uma das quais imortal. Como um ente mortal como eu pode vencer um imortal? Os picapauzinhos já haviam assistido a essa façanha de Hércules e pois não compartilhavam dos receios do herói. Mas nada disseram. Seria a maior das complicações explicar-lhe a história da primeira estada deles ali naquela mesma Grécia Heroica. E Emília disse: — Ótimo. Pois vamos atrás dessa porcaria de hidra. Juro que Hércules vai matá-la bem matada e limpar aqueles pântanos de Lerna de tão horrendo monstro. Mas como essa aventura não nos interessa, apenas o acompanharemos até lá; e enquanto ele mata a cobra, nós brincaremos de pega-pega com Meioameio. E assim foi. Partiram dali para Lerna só fazendo pouso para dormir e comer. Quando avistaram os pântanos, Pedrinho disse: — Amigo Hércules, como a aventura da hidra não nos seduz, vamos acampar aqui, e aqui ficaremos à sua espera. Vá, mate a hidra e em seguida venha ter conosco. Nós o esperaremos com três carneiros assados.

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Hércules afastou-se, muito triste de ter de deixar a companhia de seus novos e preciosos amigos. De vez em quando voltava os olhos para trás. Da última vez que o fez pareceu-lhe que estavam inventando um brinquedo novo. E era verdade. Emília havia dito: — Chega de cartola! Isto não passa dum pedaço queimado. Temos de variar. O brinquedo de hoje vai ser a "ciranda-cirandinha" — e ensinou a Meioameio como era. O centaurinho vivia no maior enlevo. Lá no rebanho ele era o único da sua idade, de modo que vivia sorumbático por falta de companheiros de brinquedo. Mas ali, oh delícias! Emília, uma louca no brinquedo, chegava até a ficar fora de si. Pedrinho não o era menos — e o Visconde, no seu começo de loucura heroica, dera de brincar com tal espetaculosidade que chegou a dar na vista. — Pedrinho — cochichou Emília — não acha que o Visconde está se excedendo? — Sim, acho que está muito mudado e que continua a mudar... — Pois isso está me preocupando bastante — confessou Emília. — Ele também é um heroizinho e todos os heróis passam por um período de loucura. Não viu D. Quixote? — É verdade, sim, Emília. D. Quixote, Rolando, e até o nosso amigo Hércules, quase todos os heróis enlouquecem. Sobre a loucura de Rolando até há aquele célebre poema de Ariosto que vovó tem lá numa edição de luxo, com desenhos de Gustavo Doré, "Orlando Furioso." Orlando é o nome de Rolando em italiano. Dali a pouco estavam na ciranda-cirandinha, e quem cirandava com maior fúria era justamente o Visconde de Sabugosa, o ex-grave e cartoludo sabinho lá do sítio. Até nem mais de cartola andava. Com

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um pontapé havia jogado a velha cartolinha nos pântanos de Lerna, berrando: — Chega de cartola! Isto não passa dum pedaço de canudo de chaminé com abas. Por que cartola? Para que cartola? — e pôs-se a dançar uma rumba...

A CORÇA DE PÉS DE BRONZE A CORÇA DE PÉS DE BRONZE A Hidra de Lerna tinha fama de possuir muitas cabeças — mas quantas? As opiniões variavam de sete a cem. E o número certo só ficou perfeitamente estabelecido depois da façanha de Hércules. Só então a Grécia soube que a hidra tinha nove cabeças, oito mortais e uma imortal. Mas Hércules tivera receio de enfrentar a hidra sozinho, e fora em busca do seu amigo Iolau. Enquanto isso, naquele prado que marginava o pântano os picapauzinhos brincavam. Meioameio estava numa verdadeira lua-de-mel com os seus novos amigos. Como os achava delicados! Como eram gentis e bons de sentimentos! Nada de coices, como lá entre os brutíssimos centauros, nada de violências e arbitrariedades. E Meioameio sonhava com os encantos do tal sítio de Dona Benta sobre que tanto falavam. Ah, se ele se pilhasse lá... Mas como os brinquedos daquele dia até passassem da conta, em certo momento todos afrouxaram. — Chega! — disse Pedrinho deixando-se cair na grama (e os outros fizeram o mesmo.) — Estou que não aguento mais... — Eu também — ajuntou Emília.

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— E eu dei tantas cambalhotas — disse o Visconde — que estou com uma dorzinha no pescoço. Estiraram-se no chão e dali a pouco todos dormiam — exceto o Visconde. Os ameaçados de loucura começam assim: perdendo o sono. O centaurinho também dormiu, mas despertou antes dos outros e saiu por ali a fora no galope. Ao cair da tarde, quando depois de haver matado a hidra, Hércules reapareceu acompanhado de Iolau, só o Visconde lhe iria dar os parabéns. Pedrinho e Emília continuavam num sono de pedra. Hércules fez a apresentação: — O Visconde de Sabugosa, meu escudeiro. Iolau espantou-se. — Seu escudeiro, Hércules? Uma aranha dessas... — Pois, meu caro, é a aranha mais sabida que pode haver. Fala com a competência dos grandes mestres de Atenas. Quer ver? E voltando-se para o Visconde: — Vamos, amigo escudeiro, diga uma sabedoria aqui para o Iolau... O Visconde não vacilou, e declarou em muito bom grego: — PANTA REI, OUDEN MENEI. — Que é isso? — perguntou Hércules, que em matéria de pensamentos filosóficos era o que no século 20 nós chamamos "uma besta."

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— Estas palavras querem dizer "tudo passa, nada permanece." São palavras do grande filósofo Heráclito de Éfeso, que vai vir ao mundo no ano 576 antes de Cristo. Iolau refranziu a testa: sinal de que não estava entendendo. Hércules explicou: — Há aqui um embrulho de séculos para diante e para trás que eu não entendo por mais que eles me expliquem. Também vivem às voltas com um tal Cristo e um tal Sítio lá dum tal "século 20." Ouço a conversinha deles como quem ouve a música das terras exóticas. Bem pouco pesco. — E aquela anãzinha ali? — perguntou Iolau mostrando Emília, ainda ferrada no sono. — Ah, essa é a minha "dadeira de ideias..." — Quê? — Sim, é quem me dá ideias... — E pode lá ter ideias um pingo de gente assim? — Fique sabendo, Iolau, que dessa cabecinha brotam mais ideias do que vespas duma vespeira — e algumas excelentes! A ideia de matar o leão da lua por estrangulamento veio dela. Foi quando os conheci. Estavam trepados a uma árvore, e eu, já sem flechas em meu carcás e com uma clava reduzida a estilhaços, não sabia o que fazer, quando uma vozinha alambicada soou: "Senhor Hércules, agarre-o pelo pescoço e afogue-o" — e foi o que fiz... Chama-se Emília, e parece que é Marquesa de Rabicó, ou coisa assim. Quando estão brigados, só a tratam de Marquesa. — E este belo menino? — Ah, este é o meu oficial de gabinete...

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— Oficial de gabinete? — Coisa lá deles. É um companheirinho, um auxiliar: Menino excelente, tão educado que às vezes até me envergonha. Parece incrível, mas tenho aprendido muita coisa moral com esse menino. E até coisas técnicas. Ensinou-me um meio excelente de derrubar centauros na corrida — e contou minuciosamente a história da captura do centaurinho por meio das bolas. — Pegou então um centaurinho? — O estranho não é tê-lo pegado, é que esse centaurinho está hoje tão nosso amigo, e progride tanto em educação, que ando com remorsos de haver outrora matado tantos centauros. Eles são gente como nós, Iolau, apenas mais rústicos, mais selvagens. Mas se os trouxermos para o nosso convívio, ficarão iguaizinhos a nós mesmos — e Hércules expôs a Iolau aquela sua "ideia sobre a educação", a única que jamais brotou na cabeça bronca do herói. — E onde está o centaurinho domesticado? — perguntou Iolau. — Por aí. Olhe!... Lá vem ele no galope... Realmente, Meioameio vinha na volada como quem viu qualquer coisa prodigiosa. — Que há? O centaurinho estava tão ofegante que mal podia falar. — Eu... eu saí no galope por esse mundo a fora e... fui dar num bosque muito estranho. Parecia um parque abandonado, tal o número de estátuas de pedra que se erguiam em certo ponto: estátuas de heróis no ataque, uns esticando o arco, outros arremessando a lança. Compreendi tudo. Eu estava na terra das Górgonas, lá onde "ele" viu Perseu cortar a cabeça de Medusa — e

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ao dizer "ele" apontou para o Visconde. E então me veio a curiosidade de espiar o cadáver sem cabeça da monstra. Iolau arregalara desmesuradamente os olhos. — Cadáver sem cabeça? Pois cortaram a cabeça da Medusa? — Sim — interveio o Visconde. — Assisti a tudo. Vi tudo com meus olhos. Perseu cortou aquela cabeça toda cobras e guardou-a num surrão mágico... — Para quê? — Para levá-la de presente ao Rei Polidectes... O assombro de Iolau era tamanho que ele não conseguia fechar a boca. A Górgona decapitada, afinal!... Aquilo era o pior monstro da Grécia, por causa do olho petrificador. — Continue, Meioameio — disse Hércules. O centaurinho continuou: — Pois é. Eu estava evidentemente nas proximidades do antro da Górgona, conforme indicavam aqueles heróis de pedra — os heróis que foram matá-la, e ela de longe, com um simples olhar, transformou em estátuas... E afinal dei com o antro. Fui entrando cautelosamente. Súbito, ah, Zeus, que horrendo quadro! Estendido no chão, o corpo sem cabeça da Medusa... O Visconde interveio: — Quando Perseu a decapitou ela estava na cama... — Pois encontrei-a no chão — disse o centaurinho. — Nessas mortes assim há sempre estrebuchamento e o corpo ferido muda de lugar. Estava no chão. Eu olhava, olhava... Olhava sobretudo para o corte vermelho do pescoço. Subitamente, imaginem o que aconteceu!

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Aquele corte começou a mexer-se... começou a alargar-se como se qualquer coisa fosse saindo de dentro. E essa coisa afinal saiu. Era um cavalo branco... Um cavalo de asas enormes, a mais linda visão que alguém possa imaginar... — Pégaso! — exclamou Pedrinho, que acordara e viera juntar-se ao grupo. Bem disse vovó que o lindo Pégaso era um "produto" da Górgona... Meioameio continuou: — Pois vi o prodigioso cavalo de asas sair de dentro do cadáver da Medusa!... Vi com estes meus olhos e custa-me a acreditar... — E que fez ele, depois de sair de dentro do cadáver da Medusa? — quis saber Emília, que também se aproximara. — Fez como fazem as borboletas quando deixam o casulo: ficou uns instantes a secar as asas úmidas e a experimentar os músculos, até que por fim tentou o voo. — E voou? — No começo tentou só. Quem nunca voou atrapalha-se no começo. Tem que ir aos poucos. Mas tive medo de que me acontecesse qualquer coisa e disparei para cá. Pedrinho falou da visita de Belerofonte lá ao sítio de Dona Benta. — Que Belerofonte? — perguntou Hércules. O menino explicou que Belerofonte era o nome do herói coríntio que em breve iria conquistar e domar Pégaso, fazendo dele o seu animal de sela. Pois esse herói, montado em Pégaso, havia aparecido lá pelo sítio e ficado na casinha de Dona Benta durante vários dias. Pégaso fora posto no pasto do Burro Falante, onde também estava o Rocinante de D. Quixote. Isso no século 20 depois de Cristo.

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Hércules piscou para o Iolau como quem diz: "Essa é a linguagem deles. Falam sempre nessas coisas misteriosas — "sítio, vovó", "D. Quixote", "antes e depois de Cristo..." Súbito, um berro da Emília: — Lá está ele!... Pégaso!... Já criou força e está se elevando no céu... Todos olharam na direção indicada e de fato viram uma coisa, deslumbrante: Pégaso no voo!... Suas grandes asas brancas lembravam o movimento das asas dos gaivotões do mar. Que serenidade, que majestade de voo!... Muita coisa bonita há no mundo, muita coisa bela. Mas quem não viu Pégaso voando não viu a coisa mais bela de todas. O sol batia naquela brancura de asas e tornava-as deslumbrantes... Pégaso seguiu no seu voo, sempre a subir, a subir em espiral, até que desapareceu atrás das nuvens. Os picapauzinhos, portanto, assistiram à estreia de Pégaso no céu tão azul da Grécia...

EM MICENAS DE NOVO Levaram toda uma hora a comentar a maravilha das maravilhas. Depois Hércules falou: — Basta. Temos agora de voltar a Micenas. Ele trazia numa sacola as cabeças da hidra — oito, segundo disse. — Oito, Hércules? — reclamou Emília. — E a nona? — Ah, essa não pude trazer. Era a imortal. Tive de enterrá-la bem fundo, e colocar uma enorme pedra em cima. Continua viva, mas no seio da terra.

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Emília não gostou daquilo. — Aquele rei antipático é capaz de encrencar — disse ela. — capaz de exigir a apresentação da nona cabeça... — Isso não — tornou Iolau — porque Euristeu não sabe que a hidra tinha exatamente nove cabeças. A lenda corrente ora diz um número, ora diz outro: vai de sete a cem. Nada aconteceu dali até Micenas. Volta e meia Hércules e Iolau erguiam os olhos para as nuvens, na esperança de verem Pégaso por mais uma vez — mas inutilmente. Iolau admirava-se da transformação que se ia operando no gênio de seu amigo. Nada mais da bruteza antiga. Estava sociável, alegre, brincalhão, sempre muito atento às ideiazinhas da Emília, aquele espirro de gente. E que familiaridade tinha ela com o tremendo herói! Era "você para lá, você para cá", como se se dirigisse a Pedrinho ou ao Visconde. E o herói gostava daquilo... Ao avistarem Micenas, Hércules disse a Pedrinho que fosse esperá-lo com os outros lá no "camping", enquanto ele entrava na cidade com Iolau para dar contas a Euristeu da segunda façanha realizada. E separaram-se. Pedrinho e o bando partiram para o "camping"; Hércules e o amigo entraram em Micenas. A notícia do Segundo Trabalho de Hércules já havia explodido como bomba, começando a circular de boca em boca. Quando o herói foi a palácio, já o rei sabia de tudo. Euristeu estivera carrancudo, a excogitar um novo trabalho para aquele maldito herói que de fato tinha jeito de ser invencível. E consultou um seu ministro de Estado, célebre pelas manhas e patranhas. — Eumolpo — disse o rei — Hércules não tarda a vir procurar-me para dar conta de sua peleja com a Hidra de Lerna, mas já sei de

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tudo. Ele venceu-a como também venceu o Leão da Nemeia. Que terceiro trabalho posso impor-lhe? Eumolpo segurou o queixo, a refletir. Depois sorriu. — Achei!... — disse muito contente. Hércules venceu o leão e a hidra, monstros brutescos que só valiam pela força. Mas se o lançarmos contra a famosa Corça de Pés de Bronze? — A Corça Cirinita? — Sim, a linda corça de chifres de ouro e pés de bronze lá do templo de Ártemis, no Monte Cirineu. Essa corça é consagrada à deusa, de modo que Ártemis a protege. Tem grande fama, porque nada no mundo corre com maior velocidade — e não se cansa. Pode correr um ano inteiro sem parar — e tem os pés de bronze justamente para isso — para correr o tempo que quiser sem necessidade de descanso para o casco. Hércules é pesadão. Escora hidra e leões. Mas duvido que pegue uma corça tão veloz e, ainda mais, protegida pela irmã de Apolo... Euristeu aprovara imediatamente a insidiosa ideia, de modo que estava todo amável e risonho quando Hércules apareceu. Fingindo não saber de nada, disse logo de começo: — Então, Héracles? Venceu a hidra também ou... Venci-a, sim, Majestade, e aqui trago a prova — respondeu o herói abrindo o saco e mostrando as horríveis oito cabeças do monstro. Falta uma, a nona, justamente a imortal. Essa tive de esmagá-la, queimá-la e enterrá-la bem fundo, com uma enorme pedra em cima. — Meus parabéns, Héracles! Muito prazer me dá vê-lo de novo forte e perfeito com mais um Trabalho realizado. Tuas proezas justificam a fama que tens. Aqui em Micenas o povo só fala em Héracles, só

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quer saber de Héracles. E ainda ficará mais apaixonado pelo grande herói, se Héracles me trouxer aqui, vivinha, a Corça Cirinita. Hércules empalideceu. Sabia da fama dessa corça invencível na corrida. Mas lembrando-se da sua "dadeira de ideias" e dos mais companheiros de aventuras, consolou-se lá por dentro com um "Quem sabe?" e disse ao rei: — Perfeitamente, Majestade. Espero ter a honra de trazer, aqui, bem vivinha, a famosa veada dos pés de bronze. Logo que Hércules saiu, Euristeu esfregou as mãos e disse ao velhaco Eumolpo: Desta vez não me escapa... Quando o herói ia chegando ao "camping", todos lhe voaram ao encontro, encarapitados no centauro. — Sua Majestade meteu-me agora num sério embaraço. Quer que eu traga a célebre Corça Cirinita. — Que é isso? — Uma corça lá dum templo de Ártemis no Monte Cirineu, mas não uma corça comum. Além de protegidíssima da deusa, tem os chifres de ouro e os pés de bronze. Quer dizer que não gasta os cascos por mais que corra — e tem fama de correr tão rápida como o corisco. Este Trabalho vai me dar mais trabalho que os outros. Que vale minha força contra a velocidade? Todos puseram-se a refletir porque o caso realmente oferecia dificuldades e aspectos novos. Pedrinho foi o primeiro a falar. — Escute, Hércules. Lá no sítio de vovó eu vivo lidando com os caçadores vizinhos e deles aprendi mil coisas. Caçar essa corça deve ter relação com o que lá chamamos "caçar veado", mas com uma

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diferença: veado cansa na corrida e esta veadinha de pés de bronze não pode cansar. Assim sendo, minha ideia é não incluir a caçada de corça na categoria da "caça de veado", e sim na de paca... Hércules não sabia o que era paca. Pedrinho explicou o melhor que pôde. — E paca, Hércules, a gente caça dum modo muito diferente: esperando que ela volte para a toca... — Mas a corça não tem toca! — Não há ser vivo que não tenha a sua toca. Até eu, o Visconde e Emília temos a nossa — disse o menino apontando para a cabana de ramagens. — Chamo toca ao lugar certo em que o animal, quando se cansa de correr mundo, vem para descansar. Podemos primeiramente fazer uma tentativa de pegar a corça na corrida — e para isso dispomos de Meioameio. Se falhar, então recorreremos ao método da "espera na boca da toca". Hércules achou razoável a proposta e, para caçoar com a Emília, disse: — Este meu oficial de gabinete está me saindo melhor que a encomenda. Suas ideias até parecem superiores às da minha "dadeira de ideias..." Emília fez focinho de pouco caso. — Ah, ah, ah... Você não me conhece. Lelé (e desde aquele momento passou a tratá-lo assim.) Dou ideias nas ocasiões gravíssimas, quando o perigo é grande. Nessas coisinhas sem importância da vida diária, deixo que o cérebro de Pedrinho funcione — e assim não canso o meu. Você ainda há de ver, Lelé, como são as minhas grandes ideias...

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Pedrinho cochichou ao ouvido de Hércules que quando se via em grandes apuros, sem saber o que fazer, Emília lançava mão do "faz-de-conta", o que é muito fácil. Depois teve de explicar ao herói toda a técnica do faz-de-conta, que Hércules achou maravilhosa. — E dá certo esse tal faz-de-conta? — Está claro que dá, mas é um recurso de vencidos. A gente só deve recorrer ao faz-de-conta quando se sentir na última extremidade — na ultimíssima... Hércules ficou a cismar naquilo.

O MONTE CIRINEU No dia seguinte levantaram acampamento e lá se foram de rumo ao Monte Cirineu. Viagem linda. Em certo ponto deram com um bando de ninfas que saíam do bosque, tontas de terror, perseguidas por três sátiros. — Lelé! — berrou Emília. — Não deixe monstros tão feios atropelarem as coitadinhas... Hércules não disse nada. Sacou do carcás três setas e dobrando o arco, despediu uma atrás da outra — záz! zás! zás!... Os três sátiros rolaram por terra, mas embolados apenas, não mortos. As flechas não os haviam trespassado. Hércules admirou. Quê? Pois então suas flechas já não atravessavam um sátiro? Emília explicou, com o maior lampeirismo:

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— Fui eu, Lelé, que tirei a ponta de várias flechas de seu carcás. Deixei metade com ponta, metade sem ponta. — Para quê? — Para isso que aconteceu. Não seria uma estúpida maldade dar cabo dos pobres sátiros? Assim, com a minha ideia das flechas sem ponta as ninfas se salvaram e eles ficaram apenas machucados. — Acho que Emília tem razão — ajuntou Pedrinho. — Nada de mortes inúteis. Para quê? Hércules não gostou muito daquela reinação mas resignou-se. Se fosse discutir, seria pior. Os argumentos Emílianos eram como flechas de ponta: dos que matam as objeções. Foram ver os sátiros caídos lá adiante. — São meioameios também! — exclamou Emília. — Corpo de homem e pernas e pés de bode — e chifres de bode na testa... — E catingudos! — observou Pedrinho tapando o nariz. — O mesmo cheiro daquele bode lá da fazenda do Coronel Teodorico... Os três sátiros jaziam por terra, estropiados pelos setaços de Hércules, mas sem ferida de sangue. Gemiam com a dor da machucadura. — Olhem quem está espiando! — exclamou em certo momento o Visconde e todos viram lá na fímbria do bosque o bando de ninfas com os olhos fixos neles. Hércules disse: — Assim que sairmos daqui, correm todas para cá e vêm cuidar destes sátiros. As ninfas fogem dos sátiros só por coquetismo. Na

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realidade pelam-se por eles. Onde há sátiros há ninfas, e onde há ninfas há sempre sátiros... E assim foi. Logo que todos se afastaram dali, as ninfas vieram na carreira ao encontro dos sátiros caídos. Depois os levaram a braços para dentro da floresta. Continuaram a viagem. Como era agradável viajar na Grécia! Uma delícia de clima, uma delícia de paisagem. De vez em quando cruzavam-se com viandantes a pé, e havia paradas para uma prosinha. Foi numa dessas paradas que vieram a conhecer os donos do olival, uma família composta de marido, mulher e três filhos. O vulto agigantado de Hércules assustara o homem, fazendo-o colocar-se à frente da esposa e dos filhos como para defendê-los. E ao dar com o centauro, ficou com mais medo ainda, branco que nem papel. Pedrinho interveio: — Somos de paz, amigo. Este é o grande Héracles que anda a realizar os seus famosos trabalhos. Já matou o Leão da Nemeia e a Hidra de Lerna... E cá o Meioameio é um grande amiguinho nosso... — Matou o Leão da Nemeia? — repetiu o homem com assombro. — Sim. Por que se admira? — É que moro lá nas vizinhanças. Saímos em peregrinação a Delfos, para consulta ao Oráculo de Apolo e... Emília interrompeu-o: — Ah, então já sei. Moram no olival, onde há um pastorzinho com um rebanho, não é?

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— Exatamente! — exclamou o homem com a fisionomia iluminada. — Como sabe disso, menininha? — É que estivemos lá e até dormimos em sua casa. — E o Senhor Héracles também? — Claro que sim. — Mas... não há lá cama que lhe sirva. — Dormiu em seis pelegos estendidos no chão. — Bom. Só assim. E como vão os meus carneiros? — Ótimos. Só que desapareceram quatro. — Quatro? Como? — O pastorzinho contará o que houve. Hércules já estava dando sinais de fome e Pedrinho propôs que acampassem ali e Meioameio fosse incumbido de obter a boia. Emília convidou os donos do olival a almoçarem com eles. Meia hora depois estavam todos perfeitamente acamaradados diante de quatro carneiros sobre as brasas, e o assombro do homem não teve limites quando viu Hércules sozinho dar cabo de três. Sua esposa cochichou-lhe baixinho: "Está explicado o desaparecimento dos quatro carneiros nossos..." Depois do almoço, Hércules gostava de tirar uma breve soneca, o que fez sem nenhuma cerimônia. Os donos do olival ficaram sentados junto dele vendo a juventude divertir-se. Meioameio estava empenhado em fazer cabriolas de todo jeito para assombro dos meninos do olival, os quais não cabiam em si de tanto gosto.

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— Deixa-me montar um bocadinho? atreveu-se a dizer um deles, vendo Pedrinho encavalado no centauro. — Venha para a garupa. O menino foi, e boa galopada deram por aqueles campos! Quando voltaram, Hércules, já desperto, estava se espreguiçando "Ahhhh!..." um espreguiçamento hercúleo que assustou o casal. — Bom, criançada! — gritou o herói erguendo-se. — Toca a andar. Daqui ao Monte Cirineu ainda é um bom pedaço. Despediram-se. O homem agradeceu a Hércules a honra que lhe dera de escolher sua casa para dormir, e ofereceu-lhe os seus préstimos e os da filharada. Separaram-se. — Adeus! Adeus! Voltem lá. Vão passar uns dias conosco!... — gritavam de longe os três meninos. E Pedrinho, de cima do centauro, respondia: — E vocês apareçam pelo sítio de vovó. Está chegando o mês das tangerinas... A última etapa do percurso foi vencida com certa lombeira. Isso de carregar tantos carneiros no bucho não torna a gente mais leve... — Será aquele morro? — perguntou em certo ponto Emília. Era, sim. Era aquele o Monte Cirineu e logo depois avistaram o templo de Ártemis. — Quem é essa Ártemis? — perguntou Emília, e o sabuguinho contou: — Ártemis é o nome duma das grandes deusas do Olimpo, filha de Zeus e irmã de Apolo. É a Diana dos romanos — a Diana Caçadora

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que a gente vê nos desenhos com arco na mão e carcás de flechas a tiracolo... — E acompanhada dum cachorro ou duma veadinha — rematou Emília. Dona Benta me mostrou uma Diana assim. — Exatamente — disse o Visconde. Mas a nossa Ártemis é uma deusa meio masculina. Não quer saber de trabalhos de mulher, tricô, bordados, cozinha. Seu gosto é a caça. Vive caçando e não tem medo de nenhum animal feroz. Voa atrás deles nas florestas e vara-os com os seus dardos. — Que é dardo, Visconde? — Uma pequena lança de arremessar. — E como é então que o noivo da filha do Elias Turco escreveu aquela carta que Narizinho viu, com esta frase que me ficou na cabeça: "Teus olhos dardejam..." — Bom — explicou o Visconde — dardejar quer dizer arremessar dardos. A palavra aí está em sentido figurado. Os turcos têm os olhos muito fortes, muito brilhantes, e os daquela turquinha parecem emitir raios de luz. O Candinho, noivo dela, achou raios parecidos com os dardos e usou a palavra "dardejar..." Meioameio havia parado bem diante do templo — um lindo templo grego, todo colunas na frente e em cima aquele triângulo do frontão. Pedrinho apeou, desceu os outros e ficou de nariz para o ar, contemplando as esculturas em alto relevo. O Visconde abriu o bico e disse: — Esse alto-relevo do frontão representa a matança das Nióbidas, ou filhas da pobre Níobe.

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Todos puseram-se atentos, inclusive o centaurinho. O Visconde continuou: — Níobe, filha de Tântalo, casara-se com um grande herói tebano de nome Anfião, e tivera nove filhos, cada qual mais bonito. Mas cometeu a imprudência de orgulhar-se disso e andar se gabando de ser superior em fecundidade à mãe de Ártemis. Resultado: esta deusa que é muito vingativa, resolveu dar cabo da bela ninhada. Invadindo a casa de Níobe, matou a flechaços todas as suas filhas, enquanto o irmão de Ártemis, Apolo, fazia o mesmo a todos os filhos homens, que andavam por fora, caçando. Essas esculturas representam a grande tragédia de Níobe... Meioameio abria a boca sempre que o Visconde abria a sua torneirinha de ciência. Que fenômeno prodigioso! — pensava lá consigo o potro de centauro. Como dentro duma aranha daquele tamanho cabia tanta coisa! E duma vez em que perguntou a Emília a razão do fenômeno, ela respondeu: — Porque ele é um sábio. Sábio quer dizer isso: cheio de ciência. O Visconde é um sabugo de milho que em vez de ter grãos de milho por fora, tem grãos de ciência por dentro. É só darmos corda e a caixa de música pega a tocar... Hércules havia entrado no templo para oferecer um sacrifício deusa. Emília teve a ideia de fazer o mesmo. — Vamos, Pedrinho, oferecer um sacrifício a Ártemis? Aqui a moda não é rezar, é sacrificar. — E que é sacrificar? — perguntou o menino. Emília deu a palavra ao Visconde, o qual respondeu: "Sacrificar é oferecer um holocausto no altar de um deus. E holocausto quer dizer queimar totalmente uma vítima". Essa palavra vem de "holos", que quer dizer "todo", e "Kaio", que quer dizer "eu queimo." Para ser

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holocausto é preciso que haja destruição pelo fogo da vítima inteirinha..."

A CORÇA O Visconde fez uma preleção completa sobre os sacrifícios gregos, ou melhor, antigos, porque todos os povos da antiguidade usavam esse meio de aplacar a cólera dos deuses ou conquistar-lhes o favor. "Eles eram ingênuos" — disse o sabuguinho. "Julgavam que o fumo das carnes queimadas nos templos ia ter aos narizes dos deuses e os aplacava ou comovia." Contou que depois esse costume foi mudando. Em vez de queimar animais, queimavam plantas aromáticas ou derramavam vinho no fogo; depois passaram a depositar oferendas nos altares — costume que muito agradou aos sacerdotes, os quais, na qualidade de "espoletas" dos deuses, ficavam com as oferendas — e o Visconde foi por aí além. Não havendo nem sequer um pombo para sacrificar à deusa (coisa aliás que Pedrinho não admitiria), a ideia da ex-boneca foi queimar no altar de Ártemis três fios de cabelos da cauda do centaurinho. Meioameio comoveu-se com a lembrança. Três fios de cabelos de sua cauda queimados no altar da deusa, que amor! Hércules já ia saindo do templo — e eles, com a prosa, não puderam verificar que sacrifício o herói oferecera; e já iam entrando no templo com os três fios de cabelo sobre as duas mãos em salva da Emília, quando um "bé" soou. Um "bé" da veadinha... — A corça! — gritou Hércules e todos se atiraram na direção do "bé", ainda a tempo de verem no ar o risco dos três pulos com que a corça venceu a distância que ia dali até o bosque próximo. Seus chifres de ouro brilharam ao sol, e quando suas patas de bronze batiam nalguma pedra do chão o som era de sino.

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— Está no bosque! — exclamou Hércules. — Vamos cercá-lo de cinco lados, já que somos cinco — e colocou seus quatro companheiros em quatro pontos estratégicos, ficando ele a ocupar o quinto. O bosque era pequeno, um simples capão de mato no meio da pradaria circundante. — E agora — continuou — temos que ir fechando o círculo. Ela há de tentar fugir por uma das cinco direções — e quem sabe se conseguiremos agarrá-la no pulo? E assim fizeram. Cercaram o bosque e foram apertando o círculo, mais, mais, mais, de modo que a corça, bem lá no meio do capão de mato, ou pulava fora do círculo constringente ou seria agarrada. A corça percebeu o jogo e compreendeu o plano. Mas errou num ponto: contou só quatro perseguidores. Não incluiu entre eles o Visconde, nem sequer prestou a menor atenção nesse heroizinho. Quem, no mato, pode prestar atenção a um sabugo de milho ainda com palhinhas no pescoço e sem cartola? E como não houvesse prestado atenção no Visconde, a corça resolveu fugir justamente pelo setor do Visconde. "Eles esqueceram-se de botar alguém ali..." devia ter pensado consigo mesma. Mas não fugiu naqueles tremendos pulos que dava no limpo, visto como dentro da mata os embaraços são muitos — cipós, galhos, ramagens. Arremessou-se aos pulinhos, e num deles caiu justamente em cima do Visconde, o qual agarrou-se a uma das suas patas de bronze. A corça nem percebeu o que fora. Era como se alguma simples maçaroca de palha houvesse enganchado em seu pé, e lá continuou nos pulinhos até ver-se em campo aberto. Aí parou e voltou a cabeça, porque sentiu que a maçaroca ainda estava presa à sua perna. Fez uns movimentos de coice e nada — a maçaroca não desgrudava. A corça, então, raivosa, firmou a pata e com os chifrinhos de ouro arrancou o Visconde e arremessou-o para trás mas sem perceber que se tratava dum ser vivo, inteligente e agente. E lá se foi pela pradaria a fora, aos pulos de vinte metros cada um. Os outros caçadores,

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percebendo que a corça já havia saído do bosque, trataram de reunir-se, na esperança de que um deles a houvesse agarrado. — Olá, olá, aqui todos! — gritou Hércules e todos correram para onde ele se achava. — Então, Pedrinho? — Nada... — Não saiu do seu lado, Meioameio? — Não... — Nem do seu, Emília? — Não... Que mistério aquele? A corça devia ter-se escapado por um dos cinco lados... Só então Pedrinho lembrou-se do Visconde. — Falta o Visconde! — gritou. — Ainda nada sabemos do setor do Visconde. Mas que fim levara o Visconde? Pesquisaram em todas as direções, e nada. Voltaram ao bosque e examinaram minuciosamente o setor que lhe tinham dado — e nada. Pedrinho era muito hábil em descobrir coisas nas florestas, de tanto que as frequentava lá no sítio de Dona Benta. Não tardou a perceber, pelo amassado da vegetação, que o setor de fuga da corça fora justamente aquele. E pôde acompanhar os rastros da corça até à saída para o campo. Os rastros amiudavam-se em certo ponto. — Aqui ela parou uns instantes e pererecou. Houve qualquer coisa aqui...

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Pedrinho estava certo. Fora ali que a corça arrancara com o chifre a "maçaroca" presa à sua pata de bronze. Pedrinho continuava no exame. — E daqui — disse ele — ela partiu no galope. Há estes rastos de pererecamento e mais nada. O próximo rasto deve estar neste rumo a vinte metros de distância — e de fato a vinte metros dali encontrou novo rasto da corça. — Mas o Visconde, Pedrinho? — insistiu Emília. — Será que a corça o levou nos dentes? Ele é milho e as veadas são milhívoras... — Quem procura acha — respondeu Pedrinho — e puseram-se todos a procurar o Visconde ali na macega, porque no bosque não havia o menor sinal dele. Súbito, pá! o pezinho de Emília deu uma topada numa coisa nem dura como pedra nem mole como queijo. Ela abaixou-se para ver o que era, recuou os capinzinhos e deu um berro: — Heureca! Achei o Visconde!... Está aqui, mas completamente morto e amarrotado. Todos correram para lá, e de fato viram o Visconde morto e destroçado, sujo de terra, com várias palhinhas do pescoço arrancadas. Pedrinho agarrou-o e auscultou-o, para ver se o coração batia. Um riso de triunfo acendeu sua cara. — Vivo!... Vivo, sim!... O coração está fraquinho, mas batendo. Foi um desmaio apenas. Mas que é que teria acontecido? — Num dos pulos a corça caiu bem em cima dele e amassou-o, foi isso — disse Emília.

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— Se fosse isso, tínhamos de encontrá-lo lá no bosque; no ponto em que havia ficado, e não aqui tão longe. Como veio parar aqui? Eis o mistério. Meioameio foi no galope a um riacho perto a fim de trazer água. Que água milagrosa! Bastaram uns borrifos no rosto do Visconde para que ele abrisse os olhinhos e voltasse a si. Olhou para todos, ainda tonto e pateta. Depois disse: — Foi com o chifre. Foi com o chifre de ouro que a malvadinha me arrancou. — Está "variando" — cochichou Pedrinho para Emília, mas logo depois viu que não: o Visconde estava mas era contando muito certo o que havia ocorrido. — Ela rompeu do meu lado... Vinha em cima de mim... Eu agarrei-a pelo pé e fechei os olhos. Parece que ela nem percebeu. Continuou de pulo em pulo até sair do mato, mas aqui no campo me viu agarrado ao seu pezinho de bronze e sacudiu-o no ar. Como eu não o largasse, veio com o chifre... e me arrancou dali e me jogou longe. Perdi então os sentidos. A consternação foi geral, não só pelo que acontecera ao Visconde como pelo fato de a corça, depois de uns momentos nas unhas de um deles, ter conseguido escapar. — Que pena, ter tomado pelo setor do Visconde, justamente o mais fraquinho do grupo! Ah, se viesse do meu lado... Hércules mostrava-se desapontadíssimo. Perdera aquela oportunidade única, e agora? Como descobrir a corça outra vez? Naquele seu galope desapoderado, onde estaria ela naquele momento? E por mais que pensasse no caso não conseguia formular ideia nenhuma.

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O PLANO DE PEDRINHO Sentaram-se todos eles nos degraus do templo para o estudo da situação. O centaurinho propunha-se a seguir os rastos da corça, e a persegui-la no mais louco dos galopes, se acaso a encontrasse. Pedrinho objetou que era inútil. — Pois se de cada pulo ela vence vinte metros, como pode um cavalo alcançá-la? Emília advertiu-o de que Meioameio não era cavalo. — Eu disse cavalo — justificou-se o menino — porque para os efeitos da corrida ele é cavalo — e Meioameio concordou. O problema era saber que direção tomara a corça. Os rastos, visíveis no chão até certo ponto, perdiam-se dali por diante. Ela tanto podia ter-se dirigido para norte como para sul, para leste como para oeste. E devia já estar longíssima. — E se consultássemos o Oráculo de Delfos? — lembrou Emília. Pedrinho não achou sem pé nem cabeça a sugestão. — Vale a pena tentar, sim, Emília. E podemos mandar para lá o Visconde, no pó de pirlimpimpim. Num instante ele vai e volta. Como já esteve em Delfos e conhece o Oráculo, há de arranjar-se muito bem. — Não sei — duvidou Emília. — O Visconde esteve lá apenas como "oferenda" que fizemos aos sacerdotes. Com a Pítia ele não lidou. — Não lidou mas sabe como se deve fazer. Os sábios sabem tudo. Hércules, que estava sem ideia nenhuma na cabeça, também

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aprovou a lembrança da Emília. Quem sabe? Tudo era possível naquela Grécia. Assentado o plano, Pedrinho deu ao Visconde todas as instruções e mandou-o tomar a pitada. Hércules o havia informado com precisão da distância dali até Delfos, de modo que o Visconde não errou no cálculo do pó, indo aterrissar direitinho nos arredores da cidade. Mas — ai! um grande transtorno o esperava. Já ia ele entrando no Templo de Delfos, quando, por azar, deu nos olhos do mesmo sacerdote a quem Pedrinho o entregara como oferenda. O sacerdote arregalou os olhos e exclamou: — Por Apolo! Os cavalos de Diomedes me comam se esta aranha não é a mesma que me fugiu lá da Tesouraria — e zás! agarrou o Visconde pelas palhinhas do pescoço e encaminhou-se para o depósito. O pobre sabinho nem sequer esperneou. Para quê? Numa situação daquelas, nada mais inútil que o esperneamento. O sacerdote abriu o depósito e jogou-o para cima dum montão de oferendas: blocos de ouro, estatuetas preciosas, peças de seda bordada, frascos preciosos de perfumes, muito âmbar, muito marfim, incenso e mirra. Pedrinho havia calculado que em uma hora o Visconde ia, consultava o Oráculo e voltava, mas já se haviam passado três horas e nada. Chegou por fim a hora do jantar e nada de Visconde. Meioameio pôs-se a preparar o assado de Hércules — que nesse dia era um garrote de dez arrobas. Os outros, sentados em redor do braseiro, debatiam o estranho caso do Visconde. Que lhe poderia ter acontecido? Cada qual formulava uma hipótese — e foi Emília quem acertou. Depois de muito parafusar, disse: — Juro que ele está guardado na Tesouraria! — Que ideia! — exclamou Pedrinho. — Por quê?

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— Com certeza um daqueles sacerdotes que o levaram para o depósito das oferendas o reconheceu — e o trancafiou de novo. — Mas... — Sim — continuou Emília — porque o Visconde tem o defeito de ser dessas criaturas que dão muito na vista. É exótico demais. Impossível que se apresentasse diante do Oráculo sem que os sacerdotes o reconhecessem. Quem é que vê o Visconde e depois se esquece?... Pedrinho ficou pensativo. Quem sabe?... — E agora, Pedrinho, nós é que temos de ir a Delfos, não só para consultar a Pítia como para salvar pela segunda vez o Visconde. — Isso não! — gritou Pedrinho. — Ele está com um canudo de pó na cintura. Com uma pitadinha escapa de lá ainda que mil sacerdotes o cerquem. — Perfeitamente. Mas como o Visconde não aparece, é sinal de que os sacerdotes o "desarmaram" antes de prendê-lo no depósito. Pedrinho não entendeu o "desarmaram". Emília explicou: — Tomaram-lhe o misterioso canudinho da cintura. Hércules continuava com a cabeça completamente vazia de ideias. Estava tão aborrecido com a perda do escudeiro que às vezes lhe vinham ímpetos de ir a Delfos, arrombar a golpes de clava a porta da Tesouraria e arrancar de lá o Visconde, bem nas barbas dos sacerdotes. A refeição daquela tarde foi das mais tristes. Apesar da excelência do assado, todos o comeram por comer, com o pensamento longe dali.

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Pedrinho estava com ar concentrado, piscando muito: sinal de intensa preocupação. Por fim assentou no plano proposto. — Sim, Emília, não há remédio. Temos de ir nós dois a Delfos. Do contrário perdemos o Visconde. Ele que não aparece é que está sem o canudinho — e de que vale nesta Grécia um Visconde sem pó? — Pois vamos — resolveu Emília. Podemos partir amanhã cedo. O Oráculo abre às dez horas. O sono daquela noite fez pendant com o jantar: um sono inquieto, com pesadelos, desagradável. Até Hércules custou a pregar os olhos. Só quando os primeiros galos cantaram é que o sono o venceu. Mas a preocupação de Hércules não era apenas o caso do seu escudeiro e sim também como apanhar a corça. Na manhã seguinte Pedrinho discutiu com Emília sobre o presente a oferecer aos sacerdotes da Pítia, porque os sacerdotes não fazem nada de graça. Com eles é ali no "quem não paga não tem." E só aceitavam boas pagas. Que poderiam os dois picapauzinhos oferecer aos orgulhosos sacerdotes do Oráculo de Delfos? — A pele do leão da lua! — lembrou Emília. — Oh, mas você pensa que Hércules vai consentir em desfazer-se dessa maravilhosa pele-escudo invulnerável? Nunca... — Sei disso, Pedrinho, mas podemos dar um jeito. — Que jeito? — Deixe o caso comigo. Minutos depois estava Emília contando a Hércules que lá no século vinte as damas usavam peles de muitos animais, inclusive uma tal raposa prateada, que era raríssima. E por causa do valor dessas

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peles os homens foram descobrindo os melhores meios de preservá-las, de livrá-las de bichinhos e bolor. — Sim, porque dá dó ver uma pele rara, como por exemplo, essa sua, que é única no mundo, começar de repente a perder o pelo até ficar aí uma pele pelada, sem valor nenhum... — E que fazem para a conservar? — perguntou Hércules, já com medo de perder a sua preciosa pele-escudo. — Desinfetam-nas de quando em quando — respondeu Emília — e teve de explicar o que era desinfecção, coisa desconhecida naqueles tempos. Depois falou nos vários desinfetantes de cheiro forte, e nas ervas aromáticas que envenenam com o cheiro as pequeninas traças das peles. Falou tão bem sobre aquele assunto, que Hércules acabou como ela queria: pedindo que lhe desinfetasse a pele. Emília citou o melhor processo a usar estender a pele ao sol com uma camada de folhas de cheiro por cima. O sol fazia que o aroma das folhas se infiltrasse por entre os pelos e poros da pele, etc., etc. Logo depois lá estava a pele do leão estendida sobre uma grande laje e totalmente coberta de folhas aromáticas. Isso o que Hércules pensava, porque a realidade era bem outra. Sobre a laje só havia folhas e mais folhas, sem pele nenhuma embaixo. A pele do leão já estava bem enrolada e embrulhada, pronta para ir com eles a Delfos. Hércules, coitado, não desconfiava de coisa nenhuma, mas por precaução Emília ainda disse: — E não mexa lá, Lelé, senão estraga tudo. Quem põe as folhas em cima da pele, esse mesmo tem de tirá-las. É como se usa lá no mundo moderno.

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Resolvido o caso da oferenda, só lhes restava calcular bem calculada, a pitadinha de pó — e pronto! Mestre que era em tais cálculos, Pedrinho despejou na palma da mão de Emília a quantidade exata e fez o mesmo na sua. Em seguida Um... Dois... e três!... — Zunnn... Instantes depois despertavam nos arredores de Delfos, a mesma cidade a que tinham ido no tempo das aventuras com o Minotauro. Recordaram-se de tudo, e até reconheceram certas caras vistas naquela ocasião. — O Oráculo já está aberto? — perguntou Pedrinho a um passante, e como a resposta fosse afirmativa encaminharam-se para o Templo de Apolo. Como vinham gentes de todas as cidades gregas para consultar a Pítia, mesmo àquela hora a multidão já era grande. Pedrinho, com a pele ao ombro, dirigiu-se ao vestíbulo onde se discutiam as oferendas. Descansou o rolo no chão e disse a um dos sacerdotes: — Pode me atender aqui mesmo num caso especial? O sacerdote franziu a testa, curioso do que poderia ser. — Fale, menino. Pedrinho explicou que estavam com grande urgência; precisavam consultar a Pítia e voltar com a maior pressa. — Há muitas pessoas na frente — respondeu o sacerdote. — Mas se fizermos uma oferenda valiosíssima, como jamais houve outra?

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— E que pode ser essa preciosidade? — A pele do leão da lua que Hércules matou na Nemeia — e Pedrinho desenrolou diante do sacerdote atônito a maravilhosa pele, única no mundo. O sacerdote cheirou-a, apalpou-a, correu a mão pela pelagem macia. Era um grande conhecedor. Frequentemente lidava com oferendas de peles de toda sorte de animais — mas pele como aquela jamais vira. E chamou um companheiro, e depois outro, ficando os três a cochichar. Por fim reuniram-se em redor da pele todos os sacerdotes do templo. Emília piscava para Pedrinho.

SEGUNDO SALVAMENTO DO VISCONDE Depois de todos aqueles cochichos, o sacerdote aproximou-se de Pedrinho e declarou: — Aceitamos a sua proposta. Será levado à presença da Pítia nestes três ou quatro minutos — e ele mesmo foi guardar na Tesouraria a preciosa pele. De caminho notou que havia uma frase escrita na parte pelada do couro. Tentou ler. Não conseguiu e deliberou lá consigo: "Depois de fechado o expediente virei decifrar isto." E trancou a pele lá dentro. A frase escrita numa língua que ninguém do mundo antigo poderia ler, porque era uma língua futura, dizia o seguinte: Visconde: palpitamos que você está preso aí na Tesouraria e privado do pó. Vai uma pitada num embrulhinho bem no fundo da orelha desta pele. Num momento em que o sacerdote abrir a porta, aspire o pó mas depois de bem embrulhado na pele, porque é preciso que se escapem os dois, você e a pele. Pedrinho.

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De volta da Tesouraria, o sacerdote levou Pedrinho e Emília para o recinto da Pítia, que lá estava de camisolão branco diante da trípode a fumegar. Pedrinho, que já conhecia todo aquele cerimonial, aproximou-se dela com Emília pela mão e disse: — Desejo saber em que rumo está correndo a Corça Cirineia que o grande herói Hércules está encarregado de pegar; e também desejo saber se ela volta. A Pítia ouviu a pergunta com a maior atenção e depois, estendendo os braços, debruçou-se sobre aquela fumaça, aspirando-a. Ficou logo em estado de embriaguez e falou: "Depois de chegar à terra dos hiperbóreos, o corisco voltará para sua deusa." Estava terminada a consulta. O sacerdote fez ao menino gesto para que se retirasse e cedesse o lugar ao consulente seguinte. — Que acha da resposta, Pedrinho? — perguntou Emília logo que se viu na rua. — Não acho nada porque não sei onde é a terra dos hiperbóreos. Só o Visconde poderá me esclarecer. Temos de esperar pelo Visconde. Ele é lerdo, como todos os sábios, mas impossível que não sinta o cheiro da pele e não desconfie. E se desconfiar, está claro que vai examiná-la e dará com o meu recado escrito. — Mas que dose de pó você calculou? — Ah, pensei muito nisso, sim. Pus uma verdadeira pulga de pitadinha, a necessária para ele escapar de lá e cair nos subúrbios da cidade. Temos de ir esperá-lo lá na estrada grande. E assim fizeram. Plantaram-se à beira da estrada grande, muito atentos, sempre a olhar em todas as direções a ver se de repente o Visconde e a pele aterrissavam. O lance era arriscadíssimo. Se antes

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do pôr do sol o Visconde não reaparecesse com a pele, tudo estava perdido: teriam então uma só coisa a fazer — voar para o sítio de Dona Benta, abandonando a aventura dos Doze Trabalhos de Hércules. Era essa a opinião de Pedrinho. — E deixamos aqui o Meioameio? — objetou Emília quase com carinha de choro. — Que remédio? Porque de uma coisa eu tenho certeza: se Hércules descobre que nós lhe furtamos a pele, e nos vê de novo pela frente, ah, dá-lhe uma daquelas cóleras hercúleas e ele nos achata com o pé, como achatou o caranguejo. Emília suspirou com os olhos no sol. Que horas seriam? — Calculo em três já passadas — disse Pedrinho. — O tempo está voando e aquele estupor do Visconde não dá sinal de si. Com certeza nem viu pele nenhuma e está estudando cientificamente alguma baratinha grega... Parece mentira cabeluda, mas assim que acabou Pedrinho de pronunciar essas palavras, eis que uma coisa cai a poucos passos dali — plaf! Uma pele! A pele do leão. Pedrinho e Emília correram para lá. Abrem-na e dão com o Visconde dentro, ainda tonto, a passar a mão pelos olhos! — Avé! Avé! Evohé... — berrou Emília, fazendo que vários passantes olhassem para ela e rissem. Depois de bem voltado a si, o Visconde contou tudo quanto havia acontecido. — Pois é — disse ele. — Assim que aterrissei, tonto ainda que eu estava, senti um agarramento. Eram as duas mãos dum sacerdote que me seguravam de jeito a não me deixar o menor movimento livre. "Estes bichos às vezes mordem", pareceu-me ouvi-lo dizer — e lá se foi comigo para a Tesouraria. Antes de me largar lá, examinou-

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me de alto a baixo e deu com o meu canudinho de pó atado à cintura. Tirou-o, cheirou-o sem aspirar, provou um bocadinho com a ponta da língua. "Que será isso? Talvez o alimento deste inseto. Mas como foi que da outra vez me fugiu daqui? Não compreendo..." e afinal fechou-me na Tesouraria, no meio duma montanha de preciosidades. — E quais foram os seus pensamentos lá na Tesouraria, Visconde? — quis saber Emília. — Eu pensei o que podia pensar: que dando por falta de mim, vocês fatalmente viriam procurar-me; e que chegando cá a Delfos, fatalmente descobririam o meu paradeiro; e que descobrindo o meu paradeiro... — Já sei, Visconde — interrompeu Emília. — E como descobriu o nosso recado escrito na pele? — Pelo cheiro. Mal o sacerdote largou lá a pele, senti uma forte catinga de leão no ar. "Macacos me lambam se isto que acabou de entrar não é a pele do leão da lua!" E levantando-me fui ver. Sim, era ela mesma, reconheci-a logo. E por felicidade dei com o recado, porque a pele estava enrolada com o pelo para dentro. O resto não é preciso contar... — O que é preciso é voltarmos incontinenti. O carro de Apolo já está bem perto da cocheira... Sim. O relógio de parede de Dona Benta devia estar dando quatro horas lá no sítio. Pedrinho calculou duas pitadas de pó e distribuiu-as pelas duas palminhas de mãos estendidas. Depois calculou uma terceira para si. Aspiraram as três pitadas ao mesmo tempo e zuann!... foram despertar no Monte Cirineu, a poucos metros da laje. — Emília — disse Pedrinho logo que a tontura passou — vá com o Visconde ver Hércules e entretenha-o enquanto eu coloco a pele

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debaixo das folhas. E quando eu der um assobio de dois dedos, pode vir. Emília pegou o Visconde pela mão e foi correndo na direção do templo. Encontrou Hércules dormindo ao sol, feliz como um lagarto. Quando no sono o herói esquecia-se de todas as suas inquietações. Meioameio estava ausente, com certeza em busca do jantar. Emília pegou do chão uma palhinha e fez cócegas no ouvido de Hércules. O herói deu um grande tapa em si mesmo e despertou. E ficou uns instantes apatetado ao ver diante de si o seu prodigioso escudeiro ali com a boneca. — Então, meu caro, que foi que aconteceu? Emília tomou a palavra. Era preciso falar e falar e falar até que soasse o assobio de Pedrinho — e ela falou pelos cotovelos. Contou tudo de tudo e mais alguma coisa. E quando no fim Hércules disse: "Bom. Estou ciente. Preciso agora ir recolher a minha pele" — Emília deu uma grande risada. — Está ciente, Lelé? Ah, como é ingênuo! Tenho muita coisa ainda a dizer e da mais alta importância, como, por exemplo... Mas não precisou inventar mentiras: o assobio de Pedrinho havia soado. — Que assobio é aquele? —indagou o herói. — É de Pedrinho. Está nos chamando na laje. Hércules rumou para lá, acompanhado da Emília. Pedrinho, de mãos na cintura, olhava muito atento para a camada de folhas. — Posso retirar a pele? — perguntou ele logo que o herói chegou — e na voz de "sim", esparramou as folhas e suspendeu a linda pele. Hércules levou-a ao nariz. Fez uma careta.

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— Extraordinário! Como é que depois de passar horas e horas ao sol sob uma camada de folhas odoríferas, esta pele só mostra a mesma catinga de sempre? Estou vendo que nas peles invulneráveis nem os cheiros penetram...

VITÓRIA Depois de sossegados quanto ao ponto principal, que era a restituição da pele, Pedrinho chamou o Visconde para uma consulta. Queria saber que eram os hiperbóreos." O Visconde sabia. — Hiperbóreos: os antigos chamavam assim aos povos do norte, das terras glaciais perto do Polo. — Bom — disse Pedrinho. — Então a resposta do Oráculo quer dizer que a corça vai numa carreira até perto do Polo e só depois volta cá para este templo. A interpretação está das mais fáceis. E pôs-se a raciocinar. Se a corça ia e voltava, nada mais inútil do que saírem dali. Em vez de correrem mundo às tontas, como cegos, sem quase nenhuma probabilidade de encontrar a corça, o cômodo, o bom, o certo, o agradável, era ficarem acampados ali até que ela voltasse. Outra: se a corça vencia vinte metros de cada pulo, era fácil calcular aproximadamente quanto tempo levaria para ir e voltar. Eles estavam na Grécia cuja latitude é de... — Visconde: qual a latitude da Grécia? — A Grécia fica entre 37 e 40 graus de latitude norte. — E as terras hiperbóreas que a Pítia falou?

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— Isso é o arquipélago de Spitzberg, lá entre 76 e 80 graus de latitude. A distância daqui até lá é duns 40 graus; quer dizer que passa de 5 mil quilômetros. Pedrinho coçou a cabeça. Cinco mil quilômetros! Que pena haver tantos quilômetros no mundo... Depois calculou a velocidade da carreira da corça, achando 200 quilômetros por hora. Mesmo assim ela levaria 52 horas para ir e voltar. Não era muito. Podiam esperar ali. Mas apesar de haver feito pouco caso no faz-de-conta da Emília, Pedrinho resolveu recorrer a ele para encurtar o prazo. — Sim — disse para si mesmo. — Faz-de-conta que a corça volta depois de amanhã — e correu a dizer aos outros que com base em seus estudos e nos do Visconde, a corça estaria de novo ali depois de amanhã à tarde. Hércules não duvidou. Ele já não duvidava de nada que os seus maravilhosos companheirinhos dissessem. E como vamos fazer para pegá-la? — Aplicar o meu sistema de esperar a paca na toca. No caso da corça, a toca é o templo de Ártemis. Podemos esperá-la aí no campo, cada um de nós num dos pontos de passagem mais provável. Emília já estava ali, muito atenta, de mãos na cinturinha. Ao ouvir aquilo, deu uma risada. Depois: — Mas se o templo é a toca, por que não a esperarmos dentro da toca? Hércules assustou-se com a ideia. Seria uma profanação, um desrespeito à vingativa Ártemis. Mas Emília não cedeu. — Tenho um jeito que acomoda tudo — disse ela. — Armamos uma rede à entrada do templo. A entrada não é bem dentro do templo e a deusa não pode dizer nada.

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Hércules ainda coçou a cabeça, indeciso, mas Pedrinho e Emília foram cuidar da rede. — Há de haver pau de embira no capão de mato — disse o menino. — Vou ver — e correu para lá. Meia hora depois voltava com uma boa quantidade de embira excelente. Chamou os outros. — Temos de desfiar toda esta embira e torcer uma cordinha assim da grossura dum barbante — e puseram-se ao trabalho. Hércules ajudava, segurando a ponta do cordel que os outros iam torcendo. Meioameio mostrou-se muito hábil naquilo. Uma hora depois estavam com um novelo de cordel mais que suficiente para a rede necessária. Pedrinho imaginou-a no formato dos sacos de filó que usam os caçadores de borboletas. Também lembrava certas armadilhas de pegar peixe. — Tal qual um covo — dissera o Visconde. Pronta a rede, armaram-na entre as colunas da fachada do templo, num ponto por onde a corça fatalmente passaria. Armaram-na só para experiência, porque a rede não podia ficar ali dois dias à espera da corça. Embora não fosse um templo muito frequentado, volta e meia aparecia por lá um ou outro fiel. Muito bem. Tudo estava perfeitamente estudado e preparado, e Hércules já sorria no antegozo da vitória. O jantar daquela tarde foi dos mais alegres, porque estavam novamente todos reunidos e absolutamente certos da vitória. Mais umas horas e pronto! O malvado Euristeu iria ficar com a cara de asno. O dia seguinte foi só de brincadeiras e galopadas no centauro. Mas Pedrinho notou que o Visconde estava se tornando muito "variável."

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Ora brincava, ora não brincava, e quando saía do brinquedo era para ficar com o olho parado. Emília cochichou para Pedrinho: "Será um grande transtorno se ele enlouquece aqui..." — Por que há de enlouquecer, Emília? Não seja agourenta. — É que os sintomas estão se amiudando. Durante todo o caso de Delfos o Visconde comportou-se com a maior perfeição, sem a menor loucurinha, mas hoje não está bem. — Vovó diz que os loucos têm períodos de lucidez e loucura — lembrou o menino. — Deve ser isso. Dormiram muito bem aquela noite todos, menos o Visconde. O sabugo passou-a de olhinhos arregalados e parados num ponto, piscando muito.

.......................................... E afinal chegou o grande dia da vitória, o dia em que tinham de apanhar viva a Corça de Pés de Bronze. Logo pela manhã Pedrinho veio com uma boa ideia: por Meioameio de sentinela na estrada, com instruções para espantar qualquer visitante do templo que aparecesse. — Fique dentro do mato da margem, escondidinho. Quando aparecer algum fiel, dê um pulo para a estrada e amedronte-o como quiser. Coices, só em caso de última necessidade. Meioameio riu-se. — Não vai ser preciso. Este povo tem tal pavor dos centauros, que a simples vista de um os faz correr ainda mais rápidos que a corça. Bom. Estavam sós no campo, livres de importunos, e podiam armar a rede. Pelos cálculos de Pedrinho só lá pela tarde a corça chegaria,

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mas precaução nunca é demais. E foi ótimo que pensasse assim, porque a corça veio três horas antes do cálculo de Pedrinho. Eles haviam acabado o almoço e estavam deitados por ali, cochilando, sem pensamento nenhum na cabeça quando Emília, trepada a uma árvore, gritou: — Sentido! Estou vendo um pulo a grande distância. Pedrinho explicou a Hércules que os olhos de Emília sempre foram famosos. Certa vez chegou até a enxergar uma pulga no dragão de São Jorge, lá na Lua. E se ela estava vendo pulos, então era mesmo a corça que vinha vindo. O toque de "Sentido!" fez que todos se levantassem e se colocassem, bem escondidos, nos pontos que Pedrinho havia determinado. Em cima da árvore Emília continuava a ver pulos. — É ela, sim! Vem de pulo em pulo, e vai ficando maiorzinha à medida que se aproxima. Neste um minuto está aqui. Como custou a passar aquele último minuto de espera! Emília ainda gritou: — Os chifres de ouro rebrilham ao sol. Ela está pulando o ribeirão... Do ribeirão ali eram cem metros cinco pulos. E todos viram a corça dar esses cinco pulos finais e mergulhar no templo, justamente no ponto desejado: — o vão das duas colunas entre as quais fora armada a rede. — Está no papo!... — berrou Pedrinho voando para lá. Todos o seguiram, e lá deram com a corça na rede e Pedrinho em cima dela, tal qual no dia em que se atirou sobre a peneira do saci. Bem que a coitadinha tentara fugir, ao perceber que caíra num laço — mas seu chifre de ouro enganchou-se nas malhas da rede, o que deu a Pedrinho tempo de chegar e atirar-se. Se não fosse aquele abençoado

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enganchamento, o mais certo era ter a corça escapado pela segunda vez — e aí, então, nunca mais!... Pedrinho não se esquecera de tecer com o resto das embiras uma boa corda — e lá estava ele com as mãos por dentro das malhas procurando atar a ponta dessa corda naqueles chifrinhos de ouro. Depois disso feito, levantou-se e disse: — Pronto! Podemos retirá-la da rede. Vendo-se livre da rede, o animalzinho julgou-se livre de tudo mais e disparou — mas a ponta da corda estava bem segura na mão de Pedrinho, o qual a derrubou com um sacão violento. A corça ainda fez duas ou três tentativas de fuga, mas breve se deu por vencida e baixou a cabeça. Todos a rodearam. Emília ergueu-lhe uma das patas e bateu com uma pedrinha para ver se era bronze mesmo. O som foi de sino. Depois examinou os chifres de ouro. Que belos e como ficariam bem em seu museuzinho! — Hércules — disse ela — quero que me corte os chifres desta corça. O tal Euristeu não sabe como ela é. Fica pensando que é mocha. Mas Hércules não a atendeu — e foi a única vez em que não atendeu a um pedido da Emília. A razão era muito clara. Se ele serrasse os chifres de ouro da corça, ficavam os tocos — e depois Euristeu iria acusá-lo de ladrão daquele ouro. Hércules era burrão, mas muito honesto. No dia seguinte partiram para Micenas com a corça na corda. Como Pedrinho seguisse montado em Meioameio e lhe ficasse incômodo ir segurando a ponta da corda, teve a ideia de amarrá-la no rabo do centaurinho — e assim fez. A entrada dos heróis em Micenas causou sensação. Hércules na frente; depois o centauro com os picapauzinhos montados; e por fim, pela cordinha, a famosa Corça

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de Pés de Bronze e Chifres de Ouro, cuja existência era notória na Grécia inteira. — Isto, sim, é que é um herói de verdade! — disse uma voz no meio do povo. — Já matou o Leão da Nemeia, já liquidou a Hidra de Lerna e agora traz a corcinha do Monte Cirineu. Que trabalho poderá haver no mundo que Héracles não realize? Quando o herói entrou no palácio de Euristeu com a corça Cirinaica nos braços, Sua Majestade, mortificado de paixão, fulminou com os olhos o pobre ministro Eumolpo que lhe sugerira aquele Trabalho. — Salve, Majestade! — começou Hércules. — Aqui tendes a Corça de Pés de Bronze e Chifres de Ouro que vivia sob a proteção da gloriosa Ártemis — e soltou ali na sala do trono o maravilhoso animalzinho. O despeito de Euristeu em virtude de mais essa vitória de Hércules transparecia em seus olhos. Mas procurou dominar-se e disse secamente: — Felicito-o. Amanhã determinarei o Trabalho seguinte — e fazendo gesto de fim de audiência, desceu do trono e foi conferenciar com Eumolpo sobre o que fazer daquele invencível herói. Depois de sair do palácio, Hércules reuniu-se aos meninos, que o esperavam na rua, e disse: — O rei ainda não me deu nenhuma incumbência nova. Temos de esperar. — Aqui ou no "camping"? — Está claro que no "camping". Toca para lá.

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Com que alegria voltaram ao querido acampamento lá perto do ribeirão de águas cristalinas! Com que felicidade se espalharam por ali, procurando as coisas deixadas, matando as saudades! — Temos de melhorar nossa cabana — propôs Emília. — Nós viramos e mexemos nesta Grécia, mas a nossa verdadeira residência é aqui — e começaram a estudar a reconstrução da cabana. — E por que — disse Pedrinho — em vez de reconstruir essa miserável choupana de palha, não havemos de fazer uma casinha como a que os Meninos Perdidos construíram para Wendy? A ideia encantou a todos, e o resto do dia passaram na maior atividade, reunindo materiais de construção. A floresta forneceu muita coisa, e o que não havia na floresta era comprado no Armazém Faz-de-Conta que Emília abriu à beira da estrada. Lá adquiriram telhas para o telhado, e vidraças já prontas, e tábuas para o assoalho, de modo que a casinha se foi tornando uma beleza. — Na frente quero uma fila de colunas como a do templo de Ártemis — reclamou Emília. — Mas que é das colunas? — Vou mandar uma dúzia lá do meu depósito — e foi com as colunas faz-de-conta do Armazém de Emília que o arquiteto Pedrinho ergueu a fachada da construção. Emília exigiu ainda, sobre as colunas, um frontão ao tipo do de todos os templos gregos, com esculturas. — Quero no frontão um auto-relevo que represente as principais cenas da caça à corça. Esculturas de mármore. — E quem vai esculpir isso? — Lá no meu armazém também vendo esculturas maravilhosas — e

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Pedrinho construiu o frontão e colocou lá as maravilhosas esculturas vindas do Armazém da Emília. Hércules não largava dos meninos e babava-se de gosto ao vê-los brincar. Na sua vida de herói, sempre em luta com toda sorte de monstros e guerreiros, nunca tivera tempo de prestar atenção nesses bichinhos tão interessantes chamados "crianças." E das crianças o que mais agora o interessava era o "tal de brinquedo." Parece que a única preocupação do bicho criança é brincar e brincar e brincar. E no brinquedo usam muito aquela maravilha do faz-de-conta. A gente grande não sabe o que é isso, por isso a gente grande é tão infeliz. Hércules começou a compreender que a maior maravilha do mundo é realmente o faz-de-conta — isto é, a Imaginação, o sonho. A casinha nova já não era casa — era templo habitável. Templo por fora e casa de morada por dentro. Mas os templos têm que ser dedicados a alguém. — Templo de que deus ou deusa, Pedrinho? — perguntou Emília depois de tudo pronto. O menino pensou. Os deuses e deusas da Grécia andavam fartos de templos, tantos havia por lá. O melhor era dedicarem aquele templozinho à vovó, coitada, tão longe dali e com reumatismo. Emília concordou — e imediatamente viu surgir na fachada do templo um letreiro entalhado em mármore faz-de-conta: Templo de Avia. Emília não entendeu. — Avia é vovó em latim — explicou Pedrinho. — Mas a língua aqui é a grega. Ponha aí vovó em grego. — Era o que eu queria fazer, mas não sei e não quero dar o gosto de me informar com Hércules. Se ele descobrir que não sei nem como é

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vovó em grego, é bem capaz de perder a fé em toda a minha sabedoria... Que deliciosa noite passaram na casinha nova! Hércules dormiu ao relento, como de costume, e o centaurinho também. Isso fez que a sensação de segurança dos picapauzinhos fosse imensa. Guardados por um semideus e por um centauro! Que mais poderiam desejar? No dia seguinte chegou um mensageiro com um pergaminho. Hércules, que era analfabeto, pediu a Pedrinho que o lesse. O menino desdobrou o rolo e leu o seguinte: — Sua Majestade o Rei Euristeu, de Micenas e Tirinto, ordena ao seu súdito Héracles que siga imediatamente para Erimanto, na Psófida, a fim de descobrir o monstruoso javali que anda a assolar aquelas paragens. E como assim quer, assim manda. Eumolpo, Primeiro-Ministro de Sua Majestade Altíssima. Hércules arreganhou um sorriso. Se era um javali, então se tratava de massa-bruta, e de massa-bruta ele jamais teve medo. Para Hércules o perigo estava em trabalhos como o da corça, contra a qual a sua força era inútil, um trabalho que requeria muita inteligência. Se vencera com tamanha facilidade a Corça de Pés de Bronze, isso fora em virtude da colaboração de Pedrinho e dos outros. "Sim", refletia consigo o herói. "Eles representam a Inteligência e eu só disponho da Força. Em muitos casos a Força nada vale e a Inteligência é tudo — como no da corça. Mas um javali, ah, ah, ah... São ainda mais broncos do que eu..." Depois deu ordem aos outros já reunidos em seu redor: — Aprontem-se que amanhã de madrugada vamos partir para o Erimanto.

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Emília lembrou-se da casinha. — E fica largada aqui este nosso amor de casinha? — Que remédio? Mas espero que ninguém ousará por as mãos nela, sabendo que é nossa. Todos aqui temem os meus músculos... E Hércules concluiu o seu pensamento com uma "piada" muito fina, a primeira e última de sua vida: — E se alguém estragar a casinha, aplicamos o faz-de-conta e o estrago desaparece... Emília teve de engolir o remédio que ela tanto receitava para os outros, mas apesar disso foi lá à casinha e pregou um letreiro de papel de verdade (papel não: costas do pergaminho momentos antes recebido), o qual dizia assim: ESTA CASA TEM DONO. AI DE QUEM MEXER NELA!... SERÁ ESMAGADO PELO PÉ DE HÉRACLES, COM A MESMA FORÇA COM QUE ESMAGOU O CARANGUEJO... No dia seguinte, às quatro e meia da madrugada, partiram para o Erimanto.

O JAVALI DE ERIMANTO

O JAVALI DE DE ERIMANTO Hércules e seus companheiros lá iam de rumo à Arcádia. Nessa parte da Grécia ficava o Monte Erimanto, que vinha sendo assolado por um gigantesco javali. Cada vez que o monstro descia para os vales era para fazer estragos horrorosos. Daí o pavor dos seus moradores e o pedido de socorro que endereçaram ao Rei Euristeu: "Majestade, haja por bem dar jeito nesta fera, pois do contrário

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estamos perdidos." E com esperança de que Hércules perdesse na luta, Euristeu mandou-o combater o feroz javali. A Arcádia era a região mais atrasada de toda a Grécia, por ser muito montanhosa e por isso mesmo pouco povoada. A indústria não ia além da pastoril. Sempre que um poeta grego fazia um poema bucólico, era na Arcádia que punha a cena. Se outro precisava dum pastor, ia buscá-lo na Arcádia, E com o passar do tempo a Arcádia ficou para o resto da Grécia como o símbolo do bucolismo, da vida simples e rústica. Até hoje a palavra Arcádia lembra pastores tocando flauta para os carneiros ouvirem e pastoras de cestinhas no braço atrás das margaridas do campo. Quem deu essas noções sobre a Arcádia foi o Visconde, que andava passando bem do desarranjo cerebral. Pedrinho não sabia se ele sarara de todo ou se estava atravessando um "período de lucidez." — E as pastoras também usavam grandes chapéus de palha de aba larga — lembrou Emília. — Vi pastoras assim num leque antigo de Dona Benta. O Visconde contou que os poetas são uns mágicos: tomam as sujas pastoras da realidade e as transformam em mimos de criaturas, com açafates de flores ao braço, pezinhos bem calçados, saia rodada e o clássico chapéu de palha preso ao queixo por uma barbela de fita. Fazem delas uma coisa de leque e de poema, mas as pastoras de verdade são muito diferentes, coitadas: são mulheres do povo, grosseiras por falta de educação e trato — e nem sombra imaginam como aparecem faceiríssimas nos tais leques e poemas. Nesse ponto da conversa Hércules, que seguia na frente parou para falar com um viandante. Queria saber onde ficava a residência do centauro Folo, seu amigo. — Folo? — repetiu o viandante. Mora por aqui, sim, coisa de uma légua neste rumo. Mas está aí uma coisa que eu não sabia: que Hércules tivesse um amigo centauro...

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— Tenho dois, esse Folo e o de nome Quiron, que mora na Maleia — respondeu o herói. — Confesso o meu antigo ódio aos centauros, do que aliás me arrependo, pois vi que com um pouco de educação eles se tornam excelentes criaturas, como o nosso amigo Meioameio. O passante não sabia quem era. Hércules explicou: — Um centaurinho novo que capturamos e amansamos. Lá vem ele... e apontou para Meioameio que vinha na volada com os carneiros do almoço aos ombros. O viandante ficou apavorado, pois era a primeira vez que via um desses tremendos seres. Folo morava por lá, mas o nosso homem nem sequer passava por perto de seus domínios. Enquanto o centaurinho preparava o almoço, Hércules deixou-se ficar sentado ali, a conversar com o passante, isso depois de ter feito a apresentação de Pedrinho, do Visconde e da Emília. Grande admiração e espanto do homem, sobretudo diante do Visconde, que ele achou parecidíssimo com uma aranha. — E esse canudo com abas que ele tem na cabeça? — Chama-se "cartola" — respondeu Emília. — É o chapéu usado no mundo moderno pelas pessoas importantes — presidentes de República, ministros, doutores, sábios. Estezinho sábio. Depois de informar-se de muita coisa do "tal mundo moderno", o homem pediu a Hércules que lhe contasse por miúdo a sua atuação no célebre caso do choque entre os Centauros e os Lápitas. Hércules, porém, tinha vergonha de contar coisas da Grécia perto do seu escudeiro, o qual sabia de todos os assuntos muito mais que ele — e deu a palavra ao Visconde. — Escudeiro, conte a este homem o que sabe dos centauros. E o sabuguinho contou.

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— Antes de mais nada — disse ele — temos de ver como os centauros surgiram nesta Grécia. A coisa começou no Olimpo, certa vez em que os deuses estavam se banqueteando com a ambrosia e o néctar. Entre os comensais figurava um criminoso asilado no Olimpo: Íxion, o Rei dos Lápitas, o qual era filho de Zeus e uma ninfa. — Asilado por quê? — indagou Pedrinho. — Porque havia matado o sogro, e Zeus, com dó do filho assassino, asilou-o na morada dos deuses. Mas esse Íxion era do chifre furado. Em vez de ficar quietinho, sabem o que fez? Pôs-se a namorar Hera ou Juno, a esposa de Zeus. — Que desaforo! — exclamou Emília. — E Zeus? — Zeus estava de muito bom humor quando percebeu a coisa, e em vez de zangar-se com o patife, teve uma ideia: mandou que uma nuvem tomasse a forma de Juno e correspondesse ao namoro de Íxion. — Que coisa engraçada! — exclamou Pedrinho. — Estou vendo que o Olimpo dos gregos é um verdadeiro teatro. — Se é! E por isso não tem conta o número de dramas, comédias e tragédias da literatura clássica em que o enredo é uma passagem qualquer lá no Olimpo. Nunca houve no mundo maior manancial de casos prodigiosos, e isso porque o Olimpo era filho da Imaginação grega, a mais rica de todas as imaginações da antiguidade. Esse caso de Íxion até hoje é recordado. Quando alguém toma uma coisa por outra, o uso é dizer-se: "Ele tomou a nuvem por Juno." — E que aconteceu?

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— Aconteceu que Íxion namorou a nuvem e depois andou se gabando. Zeus, então, encheu-se de cólera e arremessou-o ao Tártaro, que era o inferno dos gregos, onde Mercúrio, por ordem de Zeus, o amarrou a uma roda que iria virar eternamente — uma roda a que também estavam amarradas inúmeras serpentes... — Mas que tem tudo isso com os centauros? — Tem que os centauros começaram assim. Nasceram dos amores de Íxion com essa nuvem e um dia declararam guerra ao filho de Íxion que o sucedera no trono, reclamando sua parte na herança. Esse filho de Íxion teve medo da luta e fez com eles um acordo; depois convidou-os para a festa de seu casamento com Hipodâmia. A grande encrenca nasceu daí. Os centauros eram também filhos de Íxion, desses que puxam ao pai. No meio da festa ficaram com as cabeças muito esquentadas e puseram-se a namorar a noiva. Depois quiseram raptá-la, e também as outras moças presentes na festa. — Que escândalo! — E que desastre! — exclamou o Visconde. — Imaginem que entre os convivas estavam três tremendos heróis: aqui o meu amo Hércules, Teseu e Nestor. Esses heróis se atracaram com os insolentes centauros, mataram a muitos e expulsaram da Tessália os restantes. Foi então que vieram refugiar-se aqui, nestas montanhas da Arcádia. Hércules estava de boca aberta. Como é que aquela aranhinha pernuda sabia tanta coisa certa? Talvez fosse sortilégio "daquilo" que ele não tirava da cabeça e no mundo moderno se chamava "cartola." Daí a grande veneração e respeito do herói pela cartolinha do Visconde. Depois falaram em Folo, o centauro amigo que o herói desejava visitar, e Hércules voltou-se para Meioameio.

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— Escute. Vamos daqui à morada de Folo e é possível que encontremos por lá outros centauros. Tenho receio de que você sinta a voz do sangue e queira nos abandonar... O centaurinho deu uma gargalhada. — Ficar por aqui entre estes brutos? Nunca!... Depois do que ouvi de Pedrinho e Emília, só um lugar no mundo me serve: o sítio de Dona Benta. — Então posso ficar sossegado? Sem receio de que você nos fuja e fique aqui por estas montanhas com os seus iguais? — Claro que pode. Fiz tal amizade com Pedrinho que nada no mundo nos separara. Hércules sossegou.

LUTA COM OS CENTAUROS À tarde chegaram à morada de Folo, o qual, com grandes demonstrações de contentamento, veio à porta receber o amigo. Eram na verdade velhos camaradas. Folo admirou-se muito de o ver em companhia de um centaurinho, e mais ainda ao saber do modo como Hércules o pegara. Depois de muita prosa, Folo abriu um barril de vinho para festejar o aparecimento do herói. Era um vinho excelente e de cheiro muito forte — cheiro que o vento levou até à floresta onde estavam os outros centauros. — Hum!... — fez um deles, farejando o ar. — Aposto que Folo abriu aquele barril de vinho que recebeu de presente. Isso quer dizer que está de visita. Quem será?

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E, conversa vai conversa vem, surgiu entre eles a ideia de um ataque à morada de Folo para "raptar" o barril de vinho. Armaram-se de machados, paus e grandes pedras e partiram em desapoderado galope. Quem os viu foi Emília, com os seus olhinhos de telescópio. — Estou vendo! — gritou ela do alto duma grande penedia. — Estou vendo um bando de centauros! Talvez sejam os parentes de Meioameio que o querem tomar de nós. Avise ao Lelé, Visconde! — e enquanto o Visconde corria a avisar o herói, Emília, depezinha na ponta dos pés, olhava, olhava. — O bando vem vindo no galope! Uns trazem machados, outros trazem paus e pedras. Vêm de nariz para o ar, farejando o barril de vinho que Folo abriu... Hércules estava de prosa com o seu amigo centauro, sem nada desconfiar do furacão em marcha. O Visconde aproximou-se com o recado. — Senhor Hércules, a Emília manda dizer que os centauros vêm vindo no galope. Hércules deu um pulo, já em guarda e de mão no carcás. E enquanto Folo perguntava o que era, ele sacava as flechas sem ponta e jogava-as a um canto. Só queria as bem pontudas. — Os centauros vêm vindo! — repetiu Hércules. — Vamos ter luta feroz. — É que cheiraram esta vinhaça — disse Folo. — Eles são a própria intemperança em pessoa. Nesse momento chegou até eles o tropel dos centauros, cada vez mais próximos. Hércules passou a mão na clava e esperou. As flechas ele as usava para os ataques à distância.

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Os tremendos monstros chegaram e pararam de brusco diante da morada de Folo, como param cavalos no galope quando o cavaleiro colhe dum tranco as rédeas. O mais alentado de todos avançou e disse: — Sabemos do barril de vinho e queremos beber. O cheiro nos foi levado pelo nosso amigo vento. Folo explicou que abrira aquele barril para obsequiar o seu velho amigo Héracles, que tinha vindo visitá-lo. O nome de Héracles provocava ódio e pavor entre os centauros, de modo que ao ouvi-lo o bando caiu em guarda. E omo já tivessem bebido naquele dia e estivessem com as cabeças quentes, a arrogância os empolgou. O chefe disse: — Ótimo que o tenhamos encontrado! Entre nós e esse herói há velhas contas a ajustar. Por sua causa estamos reduzidos à nossa atual condição aqui nestas agrestes paragens. Ele que salte cá fora, se não é o poltrão dos poltrões. Mal disse isso e, como uma bomba voadora que cai do céu, Hércules explodiu no meio deles. Sua clava, pesada como uma montanha, alcançou o chefe dos centauros pelo ombro e "apeou-o" isto é, fê-lo vir ao chão estrebuchando. Vendo aquilo, os outros atiraram-se contra o herói com as armas que traziam, mas foi o mesmo que agredir o rochedo de Gibraltar. O herói unia a força à agilidade; com esta desviava-se dos golpes e com a força golpeava uma vez só. Cada clavada era um centauro no chão. Caíram assim quatro, e os dois restantes fugiram. Hércules ainda teve tempo de espetar um deles com uma seta. Folo ficou sentidíssimo daquilo, porque era parente e amigo dos cinco centauros mortos. Que loucos! Que imprudentes! Virem atacar a quem? A Héracles, o invencível herói que já os havia destroçado na festa dos Lápitas. Loucos, loucos!... Tinha agora de enterrá-los — e Folo reuniu todos os corpos num certo ponto para o funeral.

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Depois foi em busca do fugitivo alcançado à distância pela seta de Héracles. Tomou o cadáver nos braços. A seta estava cravada em suas costas. Folo arrancou-a, mas ao fazê-lo feriu-se na mão. Foi a conta. Dali a pouco estorcia-se em dores e morria uma morte horrorosa. O veneno que Hércules usava nas setas era infalível. O triste fim de seu amigo centauro encheu de dor o coração do herói. Hércules chorou como uma criança, apesar das palavras de Pedrinho: — Não adianta, Hércules! O que adianta é fazermos os funerais de Folo e enterrarmos o cadáver dos outros. Emília censurou-o com a maior severidade: — Esse seu gênio exaltado não dá certo, Lelé. Por qualquer coisinha fica fora de si, enxerga tudo vermelho e lá vem a hecatombe. Matar cinco lindos centauros, que judiação! Bastava dar-lhes uma boa sova. De sova a gente sara, mas quem morre desaparece para sempre. O bom sistema é o dos americanos nas fitas de cowboys. Quando chega a hora, o pega é tremendo, é dos que fazem a gente se torcer na cadeira. O "bom", depois de ser quase vencido, acaba vencendo e pondo o "mau" nocaute. Mas ninguém morre! Era o que você devia fazer aqui: por nocaute estes centauros, mas só. Que direito tem uma criatura de tirar a vida de outra — não é mesmo, Visconde? — Sim — respondeu o escudeiro. Entre os mandamentos da Lei há um que diz: "Não matarás." — Está vendo Lelé? Até o seu escudeirinho sabe que isso de matar é só quando se trata de hidras de Lerna ou de leões da Lua. Matar cinco centauros é contra todas as leis, porque há poucos centauros no mundo, e no dia em que todos desaparecerem o mundo ficará vários pontos mais sem graça.

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O herói ficou envergonhadíssimo de sua ação, e concordou que era um bruto, indigno de ter um escudeiro como o Visconde de Sabugosa. Depois do sermão moral da Emília e duma prédica do sabuguinho, Héracles disse: — Muito bem. O que está feito, está feito. Vamos enterrar com toda a solenidade o meu querido Folo e depois prosseguiremos em nossa penetração rumo ao Erimanto. O enterro de Folo foi um ato comovente. Pedrinho fez um discurso ao pé da cova, tão bonito que Hércules esvaziou toda a sua reserva de lágrimas. Emília aparou uma dessas lágrimas num vidrinho de homeopatia lá da sua canastra, e escreveu no rótulo: "Lágrima hercúlea, recolhida por mim mesma no dia do enterro de Folo." A ciganinha não perdia ensejo de tirar partido de todos os acontecimentos. Mas esse encontro de Hércules com os seis centauros não foi o último. Tempos depois o herói esqueceu as censuras da Emília e o sermão do Visconde, e teve outro encontro com o resto dos centauros, aos quais atacou a flechaços e fez fugir para a Maleia. Lá morava Quiron, o mais sábio de todos os centauros e também amigo de Hércules. A cólera de Hércules, porém, não respeitou coisa nenhuma: foi para a Maleia e mesmo nos domínios de Quiron continuou a perseguição dos centauros fugidos. E como aconteceu que uma das suas setas acertasse por acaso em Quiron, mais esse seu amigo veio a morrer por causa da cólera do herói. O desespero de Hércules nessa ocasião não teve limites, e para vingar a morte de Quiron voltou-se contra o resto dos centauros com fúria maior ainda. Muito poucos se salvaram: só os que conseguiram alcançar um promontório onde o deus das águas, Netuno, os transportou para a Ilha das Sereias. E foi nessa ilha que

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se extinguiu a curiosa raça dos centauros, filhos do Rei Íxion e da nuvem E que ele tomou por Juno. Bom, mas isso se deu tempos depois, não foi tragédia assistida pelos picapauzinhos. A parte a que eles assistiram foi apenas a luta entre Hércules e os seis centauros beberrões, atraídos pelo barril de Folo. Pedrinho não quis que Meioameio visse aquilo, para que não fosse testemunha do massacre de tantos parentes. E durante todo o tempo tratou de mantê-lo afastado do antro de Folo, ora a fazer isto, ora a fazer aquilo, sempre coisas distantes. Uma delas foi informar-se lá pelos arredores do Monte Erimanto se o monstruoso javali ainda andava muito feroz. — Cada vez mais calamitoso — veio dizer Meioameio depois de uma galopada até lá. — Dizem os moradores das vizinhanças que ainda ontem desceu o monte com a velocidade duma avalancha de pedras que rolam pela encosta abaixo. Por onde passou ficou uma estrada aberta no arvoredo. Ele galopava às cegas, preferindo derrubar as árvores a desviar-se... — Quer dizer que é um tanque de carne — observou o menino, fazendo que Meioameio perguntasse o que era tanque. — Tanque é um javali de aço que lá nos nossos tempos modernos os homens usam na guerra. Também não se desviam de árvores: derrubam-nas e passam-lhes por cima. Meioameio ficou a ruminar aquilo. "Javali de aço! Como era lá possível uma coisa assim?"

RUMO AO ERIMANTO No dia seguinte, bem descansado da luta da véspera e já com a

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cabeça fresca, porque os seus remorsos só duravam algumas horas, lá partiu Hércules de novo. Os três picapauzinhos, montados em Meioameio, seguiam ao lado do herói, entretidos no comentário dos acontecimentos da véspera. — Pobre Folo! — dizia a ex-boneca. Quando havia de pensar que por causa da tal fera do Erimanto ia ter uma morte horrível e tão fora de tempo? Mas será eternamente lembrado lá no meu século 20... Hércules não entendeu. — Por quê? — Porque levo em minha canastra um souvenir dele: a ponta de sua cauda. Hércules riu-se. — Pelo que vejo, Emília, o seu museuzinho é a maior maravilha moderna... — E é mesmo Lelé. Há lá coisas que nenhum museu no mundo tem nem terá, como, por exemplo, um vidrinho de néctar do Olimpo, um trinco de porta do quarto de Dona Aspásia... Pedrinho arregalou os olhos. — Até isso trouxe de lá, Emília? E não nos contou nada... — Não contei para que não se implicassem comigo, mas tenho lá esse trinco, e o pé de frango de seis dedos e tantas outras coisas que só indo lá e vendo. Pedrinho contou a Hércules toda a história da Emília nos começos, no tempo em que era boneca de pano e muda, e falou muito de sua célebre torneirinha de "asneiras."

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— Era uma danada naquele tempo. Assim que abria a boca, lá vinha uma asneira — e bem engraçada às vezes. Lembro-me de uma. Nós tínhamos ido ao País das Fábulas, onde encontramos Monsieur de La Fontaine caçando fábulas para o livro que escreveu. Era um homem já bastante antigo, do tempo em que se usavam calções de seda, sapatos de fivelas e cabeleiras de cachos. Emília achou muito sem jeito aquele homem de cabelos compridos, porque isso de cabelos compridos é coisa de mulher. E indo então à sua célebre canastrinha tirou de lá uma "perna de tesoura", que deu de presente ao fabulista. La Fontaine olhou bem para aquilo, e riu-se. "Para que quero isto bonequinha?" E ela muito lambeta: "Para cortar o seu cabelo." La Fontaine admirou-se. "Como cortar o meu cabelo se é uma tesoura de uma perna só?" E a Emília soltou a asneirinha: "Pois corte de um lado só..." Eram assim as asneirinhas dela, coisas absurdas, sem nem cabeça. Hoje está mudada e mais sábia que um dicionário, mas mesmo assim de repente dá uma abridinha na torneira... Emília não prestava atenção à conversa, toda absorvida no canto de um rouxinol. Quando a avezinha parou, bateu palmas. — Viva! Viva! Derrota longe os sabiás lá do sítio. Parece que vai inventando as músicas... O Visconde, que em entendidíssimo em música de passarinhos, confirmou o "parece" da Emília. — Sim — disse ele. — O rouxinol não repete música, não é como os outros passarinhos que aprendem um canto e passam a vida a repeti-lo. — Mas o canário não é assim. Aquele belga de Pedrinho, lá no sítio, canta inventadamente — lembrou a ex-boneca. — Parece — disse o Visconde. — O que ele faz é cantar uma música muito comprida, mas depois que chega ao fim volta ao começo. E assim todos os outros passarinhos lá da roça, o sabiá, o pintassilgo, o

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"soldado"... Acho que o rouxinol é o único que não repete música, e por isto tem tanta fama. É a maravilha do I mundo passarinheiro. Uma caixinha de música viva e encantada. Assim que o dia morre e vem se aproximando a noite, ele começa a cantar nos sombrios da mata, e canta cada vez mais triste até que a noite cai. Não há quem ouça a sua música e não fique melancólico. O rouxinol que provocara aquelas considerações começou a cantar novamente. O Visconde ergueu o dedo, em gesto de "parem e escutem." Todos pararam e escutaram. — Sim, não podia haver música mais saudosa, nem mais bem executada. Não havia um errinho, não havia a menor desafinação. O prodigioso cantor de penas ia improvisando, inventando a sua música de despedida da luz do sol. Pela primeira vez na vida, Hércules deu atenção ao rouxinol — e aquela música mexeu com ele lá por dentro. Era a "educação" — e "sua ideia sobre a educação" lhe voltou à cabeça, fazendo-o pensar este pensamento: "Estes picapauzinhos estão me educando... Quando o rouxinol emudeceu, todos ficaram por alguns minutos sem dizer nada, ainda magnetizados pelo enlevo. Depois o Visconde falou: — Tudo aqui neste povo tem uma explicação poética. Sabem como os gregos explicam o aparecimento do rouxinol e da andorinha? Ninguém sabia. O sábio ali era só o Visconde, o qual tossiu o pigarro e contou a história de Filomela e Progne. — Estas duas moças, filhas de Pândion, rei de Atenas, eram muito amigas, dessas que não se largam. Certo dia Progne casou-se com Tereu, rei da Trácia, de quem teve um filho de nome Ítis. Mas nem esse menino a consolava da ausência de Filomela. Que saudades! Era das que quanto mais o tempo passa, mais apertam. Um dia Progne não aguentou mais e disse ao marido: "Vá a Atenas e traga minha irmã, pois do contrário morrerei de saudades." Tereu foi, mas

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era um mau sujeito esse tipo. Ao dar com Filomela, uma beleza de criatura, apaixonou-se violentamente; e ao trazê-la, tentou no meio do caminho obrigá-la a fugir com ele. Filomela, cheia de indignação, repeliu aquela proposta absurda — e sabem o que aconteceu? — Tereu suicidou-se! — disse Emília. — Matou-a! — disse Pedrinho. — Raptou-a à força! — disse Hércules. — Suspirou! — disse Meioameio. — Todos erraram. Tereu nem se suicidou, nem a matou, nem a raptou, nem suspirou. Como Filomela não parasse de chorar e gritar, ele cortou-lhe a língua, e depois trancou-a num velho castelo abandonado que havia por ali, deixando-a sob a guarda de gente de sua confiança. E continuou a viagem sozinho. Chegando em casa fez um ar muito triste e contou a Progne que a "coitadinha da Filomela havia morrido." — Imaginem o desespero de Progne! — disse Emília. — Eu, quando voltar para o sítio, nem conto essa história para tia Nastácia... O Visconde continuou: — A coitadinha da Filomela ficou sem a língua mas não ficou sem cérebro, de modo que não fazia outra coisa senão pensar num meio de mandar aviso à sua irmã, desmascarando aquele monstro. Mas avisá-la como? Pensa que pensa, afinal descobriu um jeito: fazer um comprido bordado com uma série de cenas que fossem representando toda a sua história. Se Progne visse esse bordado, compreenderia tudo e viria salvá-la. E assim foi. Depois de terminar o lindo bordado, jogou-o por uma das janelinhas da torre. Jogou-o ao vento — e o bordado foi cair bem no meio da estrada. Não tardou que uns viajantes a caminho da Trácia o vissem e pegassem. "Que lindo! Que maravilha!..." exclamaram. "Uma coisa bela assim merece

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ser levada de presente à rainha", e quando chegaram à Trácia foram ao palácio oferecer à rainha a maravilha. Assim que Progne viu o bordado, seu coração palpitou: reconheceu os pontos que em menina ela mesma havia ensinado à sua irmã Filomela; e atentando na série de cenas do bordado, compreendeu tudo: Filomela não estava morta, como havia dito o infame Tereu, e sim presa no castelo. — Que bom! — exclamou Emília batendo palmas. — Aposto que Progne vai salvá-la. — Isso poderá fazer — disse Pedrinho. — Mas a língua? Quem conserta uma língua cortada? Continue, Visconde. — Então — continuou o Visconde — durante uma das grandes festas a Dionisos, que o Rei Tereu dava todos os anos, Progne aproveitou-se da barafunda para disfarçar-se e correr ao castelo velho, onde subornou os guardas, entrou e raptou a irmã. Cá fora, disfarçou-a também e toca para o palácio em festa! Entraram sem que ninguém as visse. O rei estava se banqueteando num desses banquetes dos reis antigos que varam horas e horas e vão até à madrugada. E Progne, então... Que imaginam que essa rainha fez? — Consertou a língua de Filomela disse Hércules. — Deu-lhe uma faca para que matasse o rei — disse Pedrinho. — Desmascarou o rei seu marido — disse Meioameio. — Nada, nada! — declarou o Visconde. — Progne estava tomada de tal ódio pelo marido que imaginou a mais terrível das vinganças: ajudada pela irmã, matou o menino Ítis, filho de Tereu, e cortou-lhe a cabeça... — Que monstra! — berrou Emília. Que culpa tinha o coitadinho? — Nenhuma, está claro. Mas é sabido que o ódio é assim: não

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respeita coisa nenhuma. O ódio de Progne contra o marido estendeu-se ao menino, que era um produto desse marido, uma espécie de prolongamento dele. Muito bem. Tereu estava no banquete, já com a cabeça tonta de tanto vinho, de modo que quando viu entrar Filomela com uma coisa em punho julgou que fosse visão. Esfregou os olhos. Olhou de novo. Sim, era ela mesma... A cunhada adiantou-se e jogou para cima da mesa a coisa que trazia na mão. Tereu arregalou os olhos: era a cabeça de seu filhinho Ítis! Hércules estava comovidíssimo. Quis dizer qualquer coisa mas engasgou. — E que fez o Rei Tereu? — perguntou Emília. — Ficou uns instantes apatetado. Depois sacou da espada e investiu contra seu próprio irmão Drias, também ali presente, certo de que esse irmão era cúmplice em tudo aquilo. Atravessou o pobre Drias com a espada e atirou-se em perseguição das duas irmãs. — E matou-as também? — Não teve tempo. Os deuses do Olimpo, achando que aquela família precisava de conserto, transformaram Filomela em rouxinol, Progne em andorinha, Ítis em corruíra e Tereu em poupa. — Isso é que é saber fazer as coisas! Filomela que por ter perdido a língua não podia falar, virou a linguinha de ouro de toda a passarinhada! Mas se eu fosse Zeus virava Tereu em urubu. Era o que ele merecia.

A FÊNIX Do rouxinol a conversa passou para outras aves e por fim recaiu sobre a célebre fênix.

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— Oh, a fênix! — exclamou Hércules. — Já ouvi falar. Dizem que vive séculos. Tem o tamanho da águia e na cabeça um topete dum vermelho vivíssimo. As penas do corpo, também vermelhas, com exceção das do pescoço que são douradas. — E as da cauda? — Essas são brancas, entremeadas de algumas cor de sangue. — Que linda deve ser! — exclamou Pedrinho. Já era noite quase fechada. Hércules ajeitou-se por ali mesmo para dormir, e os picapauzinhos procuraram o abrigo duma gruta de pedra. Meioameio deitou-se na entrada da gruta. Era ele o guarda-noturno dos seus amigos do século 20. Os sonhos daquela noite foram sonhos "ornitológicos", como disse no dia seguinte o Visconde, e foi explicando: "Ornitologia é a ciência que estuda as aves. Logo, quem sonha com passarinho tem um sonho ornitológico..." Ao retornarem à viagem para os montes do Erimanto, a conversa voltou ao mesmo assunto da noite anterior: aves. — Conte mais alguma coisa da fênix, Lelé! — pediu Emília — e o herói contou. — O que me disseram foi o que narrei ontem e mais isto: a fênix tem olhos brilhantes como estrelas... — Que lindo!... — E quando sente que a hora da morte está chegando, começa a juntar no mato ramos de plantas cheirosas, resinas e gravetos; e com

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aquilo tudo faz uma espécie de ninho dentro do qual se acomoda. Isso antes do carro de Apolo aparecer no horizonte. Quando aparece e seus raios começam a esquentar, aquele ninho resinoso pega fogo e vira uma grande fogueira na qual a fênix é completamente consumida, só ficando um montinho de cinzas. E aí então é que acontece o prodígio: no meio daquela cinza aparece um ovo, do qual logo sai uma nova fênix. Essa fênix junta toda aquela cinza e vai depositá-la no altar do Sol, na cidade de Heliópolis. — Que lindo! — exclamou Emília. A fênix renasce de suas próprias cinzas! — E não há nenhuma fênix aqui por esta Grécia, Lelé? — Às vezes aparece alguma, vinda de outras terras. Mas não ave grega. Minutos depois dessa conversa Emília gritou: "Alto!..." e todos pararam. Ela trepou ao ombro de Meioameio e ali de pé, com a mão em viseira, pôs-se a sondar a distância. E ia falando: — Estou vendo muito longe uma ave a amontoar um ninho-fogueira... Belíssima, sim... Toda cor de pitanga, com topete muito vivo e rabo branco... — Será uma fênix? — exclamou Pedrinho, já assanhado — e Emília continuou: — Não sei, mas está fazendo direitinho como Lelé disse. Traz para o ninho-fogueira plantas odoríferas... O Visconde suspirou. Estava achando aquilo um pouco demais. Que daquela distância Emília visse a ave trazer plantas para o ninho, ainda vá lá. Mas declarar que as plantas eram odoríferas? Seria possível que além dos olhinhos de telescópio ela possuísse tele-olfato?

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— Está pronto o ninho-fogueira! — continuou Emília. — Agora a ave ajeitou-se no meio daqueles "combustíveis" e está rezando de mãos postas, à espera de que um raio de sol venha incendiá-la... Embora Hércules acreditasse cegamente no que a ex-boneca dizia, também começou a achar aquilo "demais" — e deu ordem a Meioameio para correr até lá e ver se era assim mesmo. O centaurinho partiu no galope, com o Visconde no lombo, porque os verdadeiros sábios nunca perdem ensejo de verificar o que podem. E enquanto Meioameio galopava na direção da fênix, Emília continuava a ver "coisas", mas já preparando uma escapatória. — Uma vez no Deserto do Saara disse a marotinha — eu vi uma coisa linda: um chafariz lá muito longe. Não podia haver encontro mais lindo no Saara do que o de um chafariz, para gente que estava morrendo de sede, como nós... Pedrinho pensou em desmascarar a ex-boneca, dizendo que tudo aquilo era invenção. Emília jamais havia estado em Saara nenhum; mas de dó dela limitou-se a dizer: — Esse chafariz devia ser uma das chamadas "miragens" tão frequentes nos desertos. Os viajantes sedentos veem oásis e coisas onde não há oásis nem coisa nenhuma. Hércules ficou na mesma, porque na terra grega não havia desertos, nem oásis, nem miragens. Emília continuou. — E bem pode ser que aquela fênix seja uma miragem... Não! Não é!... Esperem, esperem um pouco... Está mas é pegando fogo! Pronto! O ninho-fogueira pegou fogo!... A fênix está se consumindo nas chamas... O centaurinho acabava de chegar ao ponto indicado e por mais que

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olhasse não percebeu fênix nenhuma. O Visconde sorriu consigo, murmurando: "Aquela Emília..." E como nada achassem, voltaram. — Não encontramos ave nenhuma — disse Meioameio ao chegar. — Eu e o Visconde demos uma volta por lá e nem sinal. Hércules, já meio desconfiado, olhou para Emília, a qual botou as mãos na cintura e deu uma gargalhada gostosa. — Nunca vi dois sarambés maiores! Quando chegaram lá, a fênix já havia sido devorada pelo fogo. Em vez de procurarem uma "ave", deviam ter procurado uma "cinzinha", mas aposto que nem pensaram nisso. Meioameio olhou muito desapontado para o Visconde. Realmente, eles não tinham tido a ideia de procurar cinzinha nenhuma... — Pois, meus grandes bobos, o que se deu foi isto: enquanto vocês galopavam para lá, a fênix desapareceu consumida pelas chamas e ficou reduzida a um punhadinho de cinzas. Querendo tirar a prova daquilo, Hércules deu ordem a Meioameio para voltar e verificar a existência da cinzinha. Meioameio partiu, e enquanto galopava para lá Emília "continuou a ver. — Que beleza! — exclamou fazendo cara de admiração. — Estou vendo a maravilha das maravilhas... A cinza está se juntando... está tomando forma... É a fênix que renasce de suas próprias cinzas. Pronto! Está formadinha... Agora começou a experimentar as asas. Vai voar... Voou!... Hércules estava de boca aberta. Que maravilha, aquela criaturinha! Enquanto isso Meioameio e o Visconde chegaram novamente ao ponto indicado e puseram-se a procurar cinzinhas. Nem sombra! Não havia nem cheiro de cinza — e voltaram desapontados.

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— Nada encontramos, Hércules — disse Meioameio ao chegar; e o Visconde confirmou: — Não há lá nem sequer sombra de nenhuma cinzinha. Emília deu nova gargalhada. — Os bobos!... Como poderiam ter encontrado cinza, se quando vocês estavam no meio do caminho a fênix renasceu e lá se foi pelos ares? Queriam que ela ficasse parada, à espera dos dois sarambés? Desse modo Emília embaçou a todos com a sua prodigiosa esperteza e até Pedrinho ficou na dúvida. "Quem sabe se é mesmo verdade tudo quanto ela disse?" Apenas um não duvidou da Emília: Hércules. Não duvidou naquele momento nem nunca. Ficara tão escravo daquela criaturinha, que era Emília dizer, era ele jurar em cima, como se ela fosse o próprio escudo da deusa Palas. O incidente foi o assunto da conversa entre Pedrinho e Hércules, num momento em que os dois se afastaram do resto do bando. — Emília faz coisas que atrapalham a gente — disse Pedrinho. — Aquela história da pulga que ela viu nas escamas do dragão de S. Jorge parece caçoada pura — mas quem sabe? Tudo é possível neste mundo. Esse caso da fênix, hoje. Ela veria mesmo a fênix incendiar-se e renascer das cinzas ou estava nos enganando? Impossível saber. Hércules, porém, já não tinha a menor dúvida. — Na minha opinião, viu. Ela contou tudo tão certinho... — Ah, Hércules, você não conhece a Emília. É um dos maiores mistérios dos tempos modernos. Nasceu boneca de pano, feia e muda, feita lá pela tia Nastácia, e foi indo, foi "evoluindo", até ficar no que é. Hércules não tinha vergonha de perguntar o que era quando não

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entendia alguma palavra, e perguntou o que queria dizer "evoluindo." — Evoluir é mudar com aperfeiçoamento. Uma coisa que muda mas não se aperfeiçoa, não está evoluindo. A água dum rio está sempre mudando de lugar, mas não evolui; porque muda sem aperfeiçoar-se, entendeu? Hércules fez um esforço para entender e parece que entendeu, pois disse: — Nesse caso, eu também estou evoluindo. Minhas ideias estão mudando. — Para melhor ou para pior? — Para melhor...

PÃ, O DEUS DA ARCÁDIA A Arcádia tinha o seu deus especial. Os picapauzinhos ficaram sabendo disso depois do encontro dum velho viandante. Não era nenhum velho tonto, mas um grande velho do tipo "filósofo". O Visconde agarrou-o e não o largou o tempo inteiro, porque os sábios gostam de conversar com os sábios. O principal assunto da conversa foram os deuses, e sobretudo o deus da Arcádia. — Sim — dissera o velho em certo momento — esta Arcádia tão rústica tem um deus só dela: Pã. O Visconde tinha suas noçõezinhas sobre Pã, mas ignorava os pormenores e a verdadeira especialidade desse deus. O velho viandante proporcionou-lhe uma aula sobre o assunto.

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— Pã é o deus especial da Arcádia, o guardião destes rebanhos e o seu multiplicador. É também o protetor dos pastores. — Veio do Olimpo? — indagou o Visconde. — Não. Pã nasceu nestas paragens, e dum modo muito interessante. Certa vez Hermes, o mensageiro dos deuses, aterrissou por aqui, bem nos campos sagrados de Cilene, e se apaixonou loucamente por uma formosa ninfa. Apaixonou-se a tal ponto que se ofereceu como pastor a Driops, o pai da ninfa. — Que graça! — exclamou Emília. — Ele, um deus do Olimpo, a empregar-se como pastor de ovelhas... e Pedrinho recordou o caso do Jacó da Bíblia, que por amor a Raquel, filha de Labão, contratou-se por sete anos como pastor das ovelhas do futuro sogro, e findo o prazo contratou-se por mais sete anos. Só assim conseguiu casar-se com Raquel. — Pois com o deus Hermes aconteceu coisa parecida — disse o velho. — Teve de servir de pastor nos rebanhos de Driops para obter a mão de sua filha. Afinal casou-se — e o deus Pã foi o resultado desse casamento. Mas Pã nasceu com pés de bode e chifrinhos na cabeça. Todos se horrorizaram com o fenômeno, menos Hermes. Assim que o estranho menino nasceu, tratou de voar com ele para o Olimpo a fim de mostrá-lo aos seus companheiros de divindade. Embrulhou-o numa pele de lebre e lá se foi. Quando no Olimpo abriu a pele e exibiu o filhote, houve risadas e caçoadas — e deram-lhe o nome de Pã. O deusinho de pés de bode foi crescendo aqui na Arcádia e ficou moço. Mas muito feio, o pobre, com aqueles pés e aqueles chifres: As ninfas metiam-no a riso, o que o fez jurar que nunca em seu coração amaria mulher nenhuma. Mas certo dia Cupido travou com ele uma luta corpo a corpo e, apesar de ser apenas um menino, venceu-o. As

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ninfas que assistiram à cena deram grandes gargalhadas. E o pobre Pã não teve remédio senão amar. — Com tia Nastácia também foi assim — berrou Emília. — Quando eu a espetei com uma das flechas de Cupido, levou as mãos ao peito, revirou os olhos para o céu e pôs-se a soltar suspiros de amor... O velho também não entendeu aquilo, e continuou: — Começou a amar, e logo depois encontrou a ninfa Sirinx, que só queria saber da caça e tinha recusado a mão de todas as divindades. Pã foi se chegando e dizendo que queria ser seu esposo. Sirinx não disse nada, saiu correndo por ali a fora — e Pã atrás. Mas como era um deus e os deuses correm mais que as ninfas, acabou alcançando-a lá adiante. — E agarrou-a!... — Ah, não!... Assim que a ia agarrando, Sirinx virou uma touceira de caniço... Emília cochichou para Pedrinho: "Aposto que o tal caniço era taquara do reino." — E dessa touceira de caniço começou a levantar-se um canto muito suave e queixoso. Pã comoveu-se e cortou sete canudos de vários tamanhos; depois emendou-os em cera — e foi assim que nasceu a célebre flauta de Pã, instrumento que nunca mais ele iria abandonar e ficaria sendo o seu distintivo. — Por que nunca mais abandonou essa flauta? — quis saber Emília, e o velho respondeu: — Porque assim que a usava, fluíam de todos os bosques ninfas e mais ninfas, para dançar em redor dele. Entre essas ninfas havia uma de nome Pítis, que diante das músicas de Pã se mostrava mais enternecida que as outras. E vai então, e o deus feio sente de novo o

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fogo do amor a arder em seu coração. E tocando na flauta com maior sentimento ainda, vai andando, vai andando, rumo a um lugar solitário onde havia um alto rochedo. Lá se senta bem no píncaro e continua a tocar. Atraída pela música, Pítis vem vindo, e para melhor ouvi-lo senta-se a seu lado. Pã, coitado, perde a cabeça e faz-lhe uma declaração de amor. Mas a ninfa era a namorada de Bóreas, o terrível vento norte, o qual, enciumadíssimo, toma-se de grande furor e sopra uma rajada para cima deles. — Bóreas soltou um pé-de-vento, eu sei! — disse Emília. — E tão forte foi essa rajada que a pobre Pitis perdeu o equilíbrio e tombou do rochedo abaixo, despedaçando-se nas pedras. Os deuses lá no Olimpo, que tudo viam, apiedaram-se da coitadinha e transformaram os seus pedaços em pinheiros — um pinheiro que cresce entre pedras. Desde esse dia Pã tomou o pinheiro como a sua árvore e passou a andar com uma coroa de folhas de pinheiro enganchada nos chifres. — Quer dizer que ele amava e não conseguia casar? — Exatamente. Seu destino era nunca poder unir-se à criatura amada, como mais tarde no caso da ninfa Eco, filha do Ar e da Terra. Cada vez que Pã tocava, essa ninfa repetia as últimas notas lá longe. Pã voava para lá e tocava de novo — e Eco repetia de novo as últimas notas, mas sempre ao longe, como se estivesse mofando dele. Emília deu uma risada gostosa. — Deus mais bobo nunca vi! Pois não percebia que a tal Eco não era ninfa nenhuma e sim isso que chamamos eco? Conte aqui ao velho o que é eco, Visconde. O sabuguinho explicou que eco era a reflexão dum som. "O som dá de encontro a um obstáculo e reflete, isto é, volta para trás."

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O velho prosseguiu: — Pois o deus Pã não sabia disso e levou muito tempo a correr atrás da ninfa Eco... — E eu sei desse deus mais um pedacinho que você não sabe — disse o Visconde para o velho. — No reinado do imperador romano Tibério, reinado que vai ser a muitos séculos de distância-tempo daqui, o capitão de um navio ancorado num porto do Mediterrâneo ouvirá uma voz misteriosa que clamará: "O grande deus Pã morreu!" E desde aí ninguém mais ouvirá falar nele. — Isso não sei — disse o velho — porque é coisa do futuro. Só sei que hoje o deus Pá ainda existe e continua a multiplicar os carneiros e cabras desta Arcádia, a proteger os pastores, e a perseguir a ninfa Eco com as melodias de sua flauta de sete canudos. Depois contou o começo da história da ninfa Eco. — Ah — disse ele — Eco havia se tornado tão faladeira e inventadeira de coisas, que a deusa Hera enfureceu-se e condenou-a a um castigo muito interessante: só repetir os últimos sons do que acabasse de ouvir. Desse modo a mentirosíssima Eco parava de mentir, porque só podia repetir o finzinho do que ouvisse. — Então foi daí por diante que ela virou eco — disse Emília. O Visconde explicou que o som "eco" tem esse nome por causa da ninfa Eco e não o contrário, como supunha a Emília. O velho concordou e Hércules roncou. Sim, porque durante toda aquela aula de mitologia o grande herói não fez outra coisa senão dormir e roncar. Estavam descansando à beira duma fonte, junto à floresta. Lá dos campos de pastagem vinham os "més" dos carneiros da Arcádia. — Um dia em que Eco saiu à caça — continuou o velho — deu com um rapaz da mais perfeita beleza: Narciso filho do Rei Cefise.

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Imediatamente seu coração se encheu de amor — mas como declarar esse amor, se o castigo de Hera a impedia de falar antes dele? A coitada só podia repetir as últimas palavras que Narciso dissesse... — Que horror! — exclamou Pedrinho. — Só agora compreendo a crueldade desse castigo... — Sim, o pior possível — concordou o velho — como a pobre Eco iria verificar. Narciso se perdera na mata e não vendo nenhum dos seus companheiros gritou: "Não há alguém por perto de mim?" "Mim" — respondeu Eco de trás dum rochedo. Narciso olhou em redor e não viu ninguém. "Se há" — gritou de novo, "então juntemo-nos!" E Eco, muito alegre, repetiu "juntemo-nos!" e apresentou-se aos olhos de Narciso. Mas o rapaz teve uma decepção. Esperava ver surgir um dos seus companheiros e o que apareceu foi a importuna e insistente ninfa. E repeliu-a, dizendo: "Pensa que eu te amo?" A pobre Eco foi obrigada a repetir o "eu te amo" final e fugiu no maior desespero. Desde então caiu em profunda tristeza e foi emagrecendo e se consumindo até ficar só ossos; quando chegou a esse ponto, Zeus transformou-a em pedra e deixou que sua voz ficasse no mundo a repetir as últimas notas dos sons refletidos. Emília bateu palmas. — Gosto dos gregos porque em tudo botam uma historinha. Para o Visconde e os sábios modernos o eco é a tal reflexão dos sons. Para os gregos é a voz da ninfa Eco transformada em pedra. Cem vezes mais lindo...

O MONTE ERIMANTO E foi assim, com paradas pelo caminho e conversas com viandantes, que o grupo alcançou a região onde se erguia o Monte Erimanto. Lá

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estava ele! Coberto de vegetação, mas listrado, de alto a baixo, como se grandes penedos houvessem descido pela encosta. Hércules explicou: — Aquelas faixas de vegetação arrasada correspondem às decidas do javali rumo ao vale. Vejam que violência tem o ímpeto desse monstro... Pedrinho observou que nos tempos modernos só os tanques conseguiam produzir efeitos assim — e teve um trabalhão para dar ao herói uma boa ideia do tanque. — Mas que é que os puxa? — queria saber Hércules, e muito se admirou da resposta de Pedrinho: "Os tanques não são puxados, são empurrados de dentro por um grande número de cavalos invisíveis, chamados H. P." Hércules ficou a cismar naquilo. Muito bem. Estavam em face do Erimanto, o monte habitado pelo feroz javali. Tinham de conferenciar sobre o que fazer. A ideia de Hércules era avançar contra a fera e matá-la a flechadas ou golpes de clava, mas Pedrinho apresentou uma objeção: — Mata e depois? Como vai provar ao Rei Euristeu que de fato matou o javali do Erimanto e não outro javali qualquer? — Levo a pele — disse o herói. — A pele! A pele!... Peles de javali não faltam no mundo. O rei tem direito de duvidar. — Que devo fazer então? — Levar o javali vivo!

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Hércules coçou a cabeça e ficou a pensar. Depois pediu a opiniãozinha da Emília. — E você que acha, Emília? — Acho o mesmo que Pedrinho. Um javali vivo convence muito mais que uma pele de javali. — E você, Visconde? — Idem, idem — respondeu o Visconde — e explicou que esta palavra latina "idem" queria dizer "o mesmo." A Meioameio o herói nada perguntou, porque não dava muita confiança ao centaurinho. Refletiu mais uns minutos e resolveu: — Pois fica assim. Não o matarei. Apanhá-lo-ei vivo. Mas como? Aqui Pedrinho entrou com o seu jogo, mestre que era em armadilhas de caçador. Lembrou-se logo do mundéu. — Só com mundéu, Hércules! — E que é isso? — O mundéu é um fosso de boa profundidade coberto de paus com uma camada de terra e folhas secas por cima.

Constrói-se o mundéu no carreiro do animal, isto é, num caminho por onde ele tenha fatalmente de passar.

— E que acontece?

— Acontece que quando o animal vem pelo caminho, de repente pisa na tampa falsa do mundéu e tudo aquilo afunda para o buraco com ele junto.

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O rosto de Hércules iluminou-se. Como era engenhosa e clara aquela astúcia! — Sim — disse ele. — Adotemos o sistema, que parece ótimo — e encarregou Pedrinho de determinar o melhor ponto para a construção do mundéu. Nada mais difícil, porque o mundo é grande e a caça perseguida pode passar por aqui, por ali ou por acolá. Como armar o mundéu na trilha certinha que a caça vai escolher? Isso era trabalho de muita dedução, como os de Sherlock Holmes, e realmente deu serviço ao miolo dos três picapauzinhos. Em que ponto armar o mundéu? Pela faixa de vegetação amassada nas encostas do Erimanto via-se que o monstro não tinha carreiro certo. Ora rasgava a floresta num ponto, ora a rasgava em outro muito distante do primeiro. Como adivinhar? E estavam na maior indecisão, quando Emília resolveu o caso. — Grandes bobos! — disse ela. Quando as coisas encrencam desse modo, vocês bem sabem que só há um remédio: aplicar o faz-de-conta — e tomando a frente do bando caminhou até certo ponto da encosta e disse com a maior segurança: "Faz de conta que é exatamente por aqui que a fera vai passar. Hércules nada entendeu daquilo, e Pedrinho não quis entrar em grandes explanações. Apenas disse que o faz-de-conta era um sistema infalível, mas só aplicável como último recurso. Determinado o ponto onde armar o mundéu, a tarefa de escavar o chão coube ao herói. Hércules lascou um tronco de árvore para fazer uma cavadeira, e com ela abriu, num instante, um enorme fosso de sete metros de largura por outros tantos de comprimento e profundidade — e chamou Pedrinho para ver se bastava. — Sim — disse o menino, depois de medir com os olhos a fundura do fosso.

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— Não há javali, nem animal nenhum, que vença sete metros no pulo. — Como não? — contestou Emília. Qualquer tigre ou veado pula muito mais que isso. Pedrinho explicou que realmente pulavam muito mais, porém aproveitando-se do impulso da carreira. Lá no fundo do fosso, sem espaço para correr e ganhar impulso, o animal pulador ficava como que sem pernas. Pedrinho era mestre em pulos. Emília concordou. Depois de pronto o fosso, Hércules, sempre dirigido por Pedrinho, quebrou galhos e os foi colocando par a par sobre a boca do fosso. Em seguida jogou terra sobre aquela estiva e cobriu a terra com folhas secas. Pedrinho colaborou na parte final da obra, consistente em deixar a camada de folhas secas "bem natural", de modo que o javali não desconfiasse. Emília chegou a espalhar por cima umas flores silvestres. — Bom! — disse Pedrinho depois de armado o mundéu. — É preciso agora torcermos cordas bem fortes, por que temos de içar o bicho aí do fundo — e mandou Meioameio buscar embiras em quantidade. Eles já haviam torcido cordas na aventura da Corça de Pés de Bronze, de modo que o serviço andou depressa. Pedrinho precisava de quatro cordas, duas compridas e fortíssimas ou "cordas de guia", como as denominava; depois, uma menor para "peia" das patas do animal; e a última para a "focinheira". Hércules ficou sentado, a vê-lo preparar a peia e a focinheira, embora não compreendesse muito bem aquilo. Prontas que foram as cordas, Hércules mandou-os ficarem escondidinhos numa gruta próxima. "Nada de trepar em árvores, porque esse javali derruba com a maior facilidade qualquer árvore."

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E depois que os viu bem abrigados, plantou-se atrás do mundéu e rompeu em berros de desafio ao javali, que evidentemente morava no topo do Erimanto. — Porcalhão. Venha, se tem coragem! Aqui o aguarda Hércules, o herói invencível!... O bobo do javali, lá no alto do Erimanto, caiu na asneira de ouvir aquilo e enfurecer-se. Está claro que não tinha a menor noção de quem fosse o tal Hércules, e no caso só viu um humano qualquer que tinha o topete de desafiá-lo, a ele, o javali invencível. E lançou-se com a maior impetuosidade na direção do desafio, arrasando a floresta em sua passagem. O barulho foi de avalancha. Grandes árvores estalavam e abatiam-se como se fossem débeis plantas de jardim. Por via das dúvidas Hércules se mantinha de clava em punho, uma clava nova feita do melhor pau daqueles arredores. Mas à sua frente jazia bem oculto o mundéu de Pedrinho... Quando o javali divisou o vulto de Hércules, faíscas de gana espirraram de seus olhos vermelhos — e ele avançou para o herói em linha reta. De repente tchibum! Pisou na tampa falsa e lá se foi para o fundo do fosso, de cambulhada com toda aquela paulama e folharia seca. — Hurrah! — berrou Pedrinho ao ouvir o estrondo e, montado em Meioameio, partiu no galope de rumo ao mundéu. Lá estava o monstro a roncar e a debater-se, tonto da queda e sem a menor ideia do que lhe acontecera. Em seguida chegaram Emília e o Visconde, e ficaram todos à beira do fosso, a espiar o monstro colhido no mundéu. — Cara de coruja! — berrava Emília. — Faça avalancha agora, se é capaz...

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Depois de gozarem por algum tempo a fúria impotente e o desespero do javali, trataram de laçá-lo com as duas cordas compridas — e aí quem resolveu o caso foi o Visconde. — Desça lá, e corra a laçada na pata do monstro — ordenou Pedrinho. Ah, para essas proezas arriscadas o bom era sempre o Visconde, não só por não atrair a atenção da presa como por ser "consertável." Cada vez que lhe acontecia alguma, tia Nastácia tomava do paiol um sabugo novo e refazia-o. O Visconde era a fênix do Sítio do Picapau Amarelo. Apesar de todo o seu medo, o sabuguinho desceu ao fundo do fosso e foi passando a laçada pelo pé do javali. O monstro bem que o viu, mas não ligou a mínima importância. Um animal naqueles apuros não liga importância a milhos. Preso que foi o javali pelo pé, Hércules o suspendeu como os guindastes dos portos suspendem as grandes cargas; e quando as patas traseiras ficaram de jeito, Pedrinho amarrou a peia. Depois disse a Hércules: — Deixe-o cair de novo no fundo do buraco. Temos agora de laçá-lo pelo pescoço e suspendê-lo de modo que eu possa colocar a focinheira. E assim foi feito. Dessa vez não foi preciso o auxílio do Visconde. Depois de algumas tentativas com a laçada, Hércules colheu o javali pelo pescoço e puxou. Lá foi lentamente suspenso pelo guindaste hercúleo — e Pedrinho pôde ajeitar-lhe no focinho a engenhosa focinheira. — Pronto! — gritou. — Pode sacá-lo fora duma vez, Hércules! Com um puxão o herói sacou do fosso o monstro peado e enfocinheirado. Meioameio segurava a ponta da outra corda, de

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modo que o bicharoco já nada podia fazer. Uma corda o mantinha dum lado e outra corda o mantinha do lado oposto. Mesmo assim o javali estrebuchou e corcoveou como burro bravo.

RUMO A MICENAS Depois de muito pinote e corcovo o javali do Erimanto compreendeu que era inútil resistir. Estava completamente frouxo. — Bom — disse Hércules. — Podemos agora levá-lo a Micenas. Eu sigo na frente segurando-o pela corda do pescoço, e Meioameio segue atrás, segurando-o pela corda do pé — e foi assim que o tremendíssimo javali do Erimanto chegou a cidade de Micenas, com grande assombro da população e maior desapontamento do Rei Euristeu. — Pronto, Majestade! — disse Hércules ao surgir diante do rei com a terrível fera na corda. Euristeu, sentado no trono, tremeu de medo. E se aquelas cordas arrebentassem e o javali se lançasse contra ele? Mas não houve nada disso. Eumolpo deu ordem para a rápida construção duma jaula, e uma hora depois o javali do Erimanto estava solidamente engaiolado e exibido na praça pública às multidões curiosas. A notícia desse Quarto Trabalho de Hércules correu pela Grécia inteira com a velocidade do raio. Desde Atenas até Esparta só se falava daquilo, e lá no Olimpo a deusa Hera teve um faniquito. Maldito herói! Pela quarta vez saía incólume duma terrível trama contra ele preparada. E a implacável perseguidora pôs-se a pensar em um novo trabalho, dessa vez absolutamente acima das forças de qualquer herói. Qual seria? pensou, pensou... Depois sorriu e disse

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consigo: "Já sei!..." — e mandou Hermes, o mensageiro dos deuses, levar um recado a Euristeu. Enquanto isso, Hércules e os picapauzinhos voltavam ao "camping" à beira do ribeirão. Lá encontraram tudo como haviam deixado. Ninguém ousara tocar em coisa nenhuma da casinha da Emília — ou do Templo de Avia... No dia seguinte Hércules recebeu chamado urgente do palácio de Euristeu. Foi. — Às ordens, Majestade!... Euristeu estava risonho — sinal de que o novo Trabalho ia ser muito mais duro que os primeiros. Eumolpo, rente ao trono, babava-se de gosto. — Hércules — disse Euristeu — muito bem te saíste na façanha contra o javali do Erimanto, e agora tenho nova incumbência a dar-te. — Às vossas ordens, Majestade! — respondeu o herói humildemente. Euristeu continuou no mesmo tom amável: — Quero que vás ao reino de Augias visitar esse colega e que limpes as suas famosas cavalariças. Hércules voltou ao "camping" muito apreensivo. "Que será? Que me reservará a mim o Rei Augias?" E quando Pedrinho lhe perguntou qual ia ser o Quinto Trabalho, respondeu: — Uma visita, meu caro! Apenas uma visita e umas vassouradas. Euristeu encarregou-me de ir ter com o Rei Augias e de lhe limpar as cavalariças.

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— Quem é ele? — Um rei possuidor de inumeráveis rebanhos de cavalos... — Só isso? Só fazer a limpeza? — Só...

A FUGA DO JAVALI Que linda a manhã do dia seguinte! O carro de Apolo galopava no campo azul do céu sem nuvens. Hércules, depois do banho no ribeirão, chamou Pedrinho para debater a viagem ao reino do Rei Augias. E estavam nisso quando um mensageiro a cavalo apontou ao longe. Vinha no maior dos galopes. — Que será? — murmurou Pedrinho. O cavaleiro chegou e apeou bem diante deles. Estava quase sem fala. — Que há, homem? — perguntou Hércules. O mensageiro tomou fôlego e falou entrecortadamente: — Há... há que o javali... arrebentou a jaula e fugiu... — Fugiu? — Sim... Fugiu e está fazendo os maiores estragos na cidade... Investe contra toda gente e estraçalha os que pega... Os guardas do rei atacaram-no, mas em vão... Sua Majestade Euristeu não sabe mais o que fazer e manda pedir socorro a Hércules...

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O herói pôs-se de pé e correu em busca da clava. Depois pendurou a tiracolo o carcás de flechas e tomou o arco. — Pois vamos ver isso! — gritou e foi correndo para a cidade. Os picapauzinhos ficaram tontos por uns instantes, sem saber o que fazer. Depois decidiram-se. Tinham de acompanhar seu amigo Hércules. Meioameio já estava pronto para recebê-los no lombo. O cavalo do mensageiro, assustadíssimo de ver o centauro, havia disparado por aqueles campos a fora. O pobre homem ficou a pé. — Monte aqui na garupa! — gritou-lhe Pedrinho, e ajudou-o a colocar-se na garupa do Meioameio. E o centauro, com aquela penca de gente no lombo, lá se foi no galope rumo a Micenas. Ao entrar na cidade, Hércules dera com a população tomada de verdadeiro pânico. Uns escondiam-se nos porões, outros trepavam ao telhado das casas. Depois que os guardas do rei foram destripados pelas terríveis presas do javali, ninguém mais ousava atacá-lo. Só pensavam em fugir ou esconder-se. — Onde está ele? — perguntou Hércules ao ministro Eumolpo, que avistou a tremer de medo em cima do telhado do palácio. — Na praça do mercado! — gritou o ministro. Hércules encaminhou-se para a praça do mercado, e já de longe avistou o monstro fazendo os maiores estragos nas verduras. Em seu redor havia muitos cadáveres de guardas destripados, alguns ainda vivos e gemendo de cortar o coração. — Espera que te curo! — rosnou Hércules, firmando a mão no cabo da clava e avançou.

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O javali reconheceu-o. Largou as verduras e levantou a cabeça, os olhos já chamejantes de cólera. Ia destroçar aquele imprudente herói como havia destroçado os guardas do rei. Nesse momento Meioameio, que viera em desapoderado galope, entrou na praça, de modo que os picapauzinhos puderam assistir à batalha. E que batalha tremenda foi! O javali investiu contra Hércules e Hércules o esperou com a clava erguida. — Chegamos a tempo de assistir ao primeiro round! — berrou Pedrinho pondo-se de pé no lombo do centauro. — Aposto que no primeiro golpe já Hércules o abate. Mas não foi assim. O golpe do herói pegou a fera em pleno crânio, mas parece que o crânio do javali era de aço. A clava rachou pelo meio... — A clava rachou — berrou Emília e o monstro nem deu sinal de sentir. Só com flechas. Hércules que recue e... Foi o que Hércules fez. Dando um tremendo salto para trás, colocou-se a vinte metros do javali, de modo a poder ajeitar no arco uma flecha. Esticou a corda e zás!... A flecha espetou no toitiço do monstro, mas não cravou fundo, nem alcançou centro vital. Apenas serviu para enfurecê-lo ainda mais — e o javali investiu para cima do herói com o ímpeto de uma bomba voadora. Hércules deu outro salto para trás e despediu segunda seta, a qual não produziu maior resultado que a primeira. O javali deu um bote traiçoeiro e quase apanhou o herói com suas presas afiadíssimas.

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Eumolpo, lá de cima do telhado, estava radiante. "Desta vez Hércules está perdido. O javali vai dar cabo dele" e gritou para o Rei Euristeu, que a tudo assistia do balcão do palácio: "A clava de Hércules falhou e as flechas também estão falhando. Tudo vai indo otimamente." Euristeu, lá no balcão, sorriu. A situação de Hércules não era boa, e isso porque na pressa de partir lá do acampamento errara na escolha das flechas, pondo no carcás justamente as de que Emília tinha arrancado a ponta. Só depois de haver lançado a segunda seta é que o herói percebeu a causa do desastre. Desastre, sim, porque nunca em sua vida de herói acontecera semelhante coisa: lançar duas flechas contra um corpo de animal e não vê-lo cair estrebuchando. E se estava sem as suas famosas flechas tão mortais, que fazer? E Hércules suou frio. Súbito, Pedrinho empalideceu. — Estou compreendendo tudo! Ele está lançando contra o monstro justamente as flechas que Emília "humanizou." E agora? E voltando-se para Emília: — E agora, sua mexedeira? Sem clava e sem flechas de ponta o nosso amigo Hércules está desarmado... Emília assustou-se. Seu coraçãozinho pulou como cabrito lá dentro do peito. O remédio era um só: recorrer ao faz-de-conta. E ao ver Hércules lançar contra o monstro a terceira seta, gritou: — Faz de conta que essa é de ponta! Remédio milagroso! A seta cravou-se no toitiço do javali ao lado das outras duas, mas com um efeito muito diferente. O monstro dá um urro, revira os olhos e descai sobre as patas traseiras como um animal descadeirado. Depois afocinhou.

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Estava vencido... — Hurrah! Hurrah!... — berrou Pedrinho — e de cima de todos os telhados hurras delirantes estrugiram. E Emília cantou o "Avé! Avé! Evoé..." que ela não sabia o que significava, mas achava um grito muito próprio para ocasiões assim. Os micenianos escondidos no fundo das casas ou abrigados em cima dos telhados começaram a afluir à praça e breve uma grande multidão se juntou em redor do javali morto. Cada um dizia uma coisa ou dava uma ideia. Súbito, um boato entrou a circular: que Hércules andava associado a uma pequenina feiticeira dotada de forças maravilhosas. O rumor tivera origem na mexericagem do homem que viera na garupa de Meioameio; de lá assistira ele a toda a luta e ouvira o grito mágico da Emília: "Faz de conta que essa é de ponta." — Sim, foi ela! — dizia o homem para o povo. — Eu vi tudo muito bem. Só depois de seu grito mágico é que as flechas de Hércules voltaram a ser mortais. Antes disso espetavam o javali e não lhe causavam o menor dano — e surgiu a ideia de uma manifestação popular à estranha criaturinha. Aqueles rumores não tardaram a chegar aos ouvidos do rei, o qual, furioso com a intervenção da pequena feiticeira, deu ordem aos seus guardas para que a prendessem. Vendo as coisas nesse ponto, Pedrinho tomou uma resolução de verdadeiro chefe. — Toca para o acampamento e na volada! — gritou. — Já, já!... — e o centaurinho rompeu no galope. Minutos depois todos apeavam muito contentes junto ao Templo de Avia. — Não gosto de povo nem de reis — disse Pedrinho. — É com a maior facilidade que eles passam dum extremo a outro. Nada como este nosso isolamento aqui, bem guardados como estamos pela clava de Hércules e pelo nosso amigo centauro. Mas... que fim levou Hércules?

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Pedrinho olhou em todas as direções e não viu sinal do herói. Súbito, Emília gritou: "Lá está ele!... Vem saindo da Floresta." Sim. Hércules vinha saindo da floresta, onde se internara a fim de escolher madeira para uma nova clava. — Bom! — exclamou Pedrinho já sossegado. — Se Hércules está conosco, nada mais temos a temer.

AS CAVALARIÇAS DE AUGIAS AS CAVALARIÇAS DE AUGIAS — Se as cavalariças de Augias exigem um Hércules para a sua limpeza, então esse rei tem cavalos que não acabam mais. — Sim, possui-os inúmeros e além disso é ladrão de cavalos. — Como? — Certa vez um tal Neleu mandou quatro excelentes animais, já vencedores em várias provas, disputar uma corrida de carros na capital do reino de Augias. Sabem o que Augias fez? Gostou muito dos cavalos, elogiou-os para o auriga... — Que é auriga? — Cocheiro. Elogiou-os para o auriga e com o maior cinismo lhe disse: "Pode ir embora. Estes cavalos ficam sendo meus.” — Que patife! — exclamou Emília. Eu pregava-lhe um coice... E que fez dos cavalos? — Pôs junto com os demais, lá na sua imensa cavalariça. Nesse

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ponto da conversa Pedrinho começou a abrir na cara o sorriso de quem descobriu a pólvora. — Já estou percebendo o negócio! disse ele. — Esse rei devia ter uma grande ideia na cabeça. Diga-me uma coisa: era fértil a terra lá onde ele morava? — Sim. Muito fértil. Pedrinho atrapalhou-se. Sua ideia fora que Augias estava acumulando esterco para fertilizar o reino; mas se as terras eram férteis, então, então... — Então ele era um grande porco! — resolveu Emília e deu uma cuspidinha de nojo. Quem estava contando aos picapauzinhos a história de Augias era um viandante. Em todas as aventuras pela Grécia eles encontravam, nos "momentos psicológicos", um viandante de aspecto venerável, que tudo sabia e tudo explicava. Da primeira vez ninguém desconfiou de coisa nenhuma; mas a coincidência daquele encontro em quase todas as aventuras fez que a hipótese da Emília fosse aceita: "Ele é um emissário de Palas, ou Minerva, a deusa da sabedoria; repare que aparece como por acaso nos momentos que temos necessidade de saber qualquer coisa da história antiga ou da vida deste país." E Emília botou-lhe o nome de Minervino... A réplica de Emília, achando que Augias era um grande porco, fez que o velho Minervino sorrisse; ele já estava acostumado com aqueles desbocamentos da ex-boneca. — Não sei se o Rei Augias é isso, menininha, só sei que os seus estábulos são imensos e estão com uma camada de esterco como nunca foi vista igual no mundo. — No mundo antigo pode ser — objetou Emília. — Lá no nosso mundo moderno "tivemos" as camadas de guano do peru, que,

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segundo diz o Visconde, atingiam a metros de espessura. As das cavalariças de Augias não devem ser tão espessas, pois como então podem os cavalos entrar lá? Hão de bater com a cabeça no forro... — Não sei — disse o velho viandante — nada vi com meus próprios olhos, mas ouço falar nisso. E agora vai para lá Hércules, com ordem de Euristeu para limpar as cavalariças de Augias. Estou curioso de ver como o nosso herói se desempenhará dessa missão. Emília cuspiu de novo, com carinha de nojo e disse: — Não vou gostar deste Quinto Trabalho de Lelé. Muito sujo... E o cheiro de tanto esterco deve ser horrível. A palavra "cheiro" teve a propriedade de arrancar o Visconde do torpor em que se achava. O sabuguinho levantou-se e aproximou-se da Emília com os olhos muito arregalados e com o dedo no ar repetiu várias vezes a mesma palavra: — O cheiro... O cheiro... O cheiro... Todos julgaram que o Visconde houvesse enlouquecido de uma vez, mas não. Ele havia apenas resolvido um problema — o terrível problema que o preocupava desde a véspera: "Por que razão havia Euristeu dado aquele trabalho a Hércules?" Sim, porque isso de limpar uma cavalariça, mesmo enorme como a de Augias, não era um trabalho na altura de Hércules, já que só exigia força física e paciência. Com uma boa turma de trabalhadores armados de enxadas e pás, qualquer empreiteiro pode limpar todas as cavalariças do mundo. Mas quando Emília falou em "cheiro", a cabecinha do Visconde iluminou-se. — Sim, o cheiro!... Sim, o mau cheiro daquilo!... Deve ser um cheiro venenoso e mortal, uma espécie de gás asfixiante!...

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Euristeu lembrou-se de encarregar meu amo desse Trabalho não porque seja um Trabalho acima das forças de qualquer homem comum, mas porque as venenosas emanações do esterco revolvido vão afinal destruir meu amo... O Visconde, como bom escudeiro, só tratava Hércules de "amo", tal qual Sancho com D. Quixote. Ao ouvir aquele monólogo, Pedrinho bateu palmas. — Bravos ao Sherlock! Descobriu tudo!... Sim, só pode ser isso. E que vai aconselhar ao seu amo, Visconde? — O emprego de uma boa máscara contra gás, daquelas usadas na Grande Guerra. — E onde arranja tal máscara? — Você constrói uma. — Eu?... — exclamou o menino — e pôs-se a refletir. Já tinha visto uma das tais máscaras. Não era coisa muito complicada. Acontecia, porém, que as máscaras dependem dos gases, isto é, para tal gás tal máscara. Ora, não conhecendo ele o gás das cavalariças de Augias, não podia construir uma máscara de confiança, certa, segura, havendo a possibilidade de o pobre Hércules levar a breca com máscara e tudo. O problema era mais complicado do que parecia. Por fim, cansado de pensar naquilo, disse consigo mesmo: "Na hora veremos" e mudou de assunto. — Escute, Minervino — pediu em seguida. — Conte-nos mais histórias desse Augias. O velho viandante contou que Augias era um dos Argonautas; e depois teve de contar a história dos Argonautas; e para contar a história dos Argonautas teve de referir-se ao Tosão de Ouro.

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Pedrinho, que já ouvira falar no Tosão de Ouro, quis saber o que era. O viandante explicou: — Um pelego de carneiro... Foi um desapontamento. Pedrinho esperava coisa muito mais misteriosa. — Sim — disse o viandante. — Um pelego, mas que pelego! ... Provinha do carneiro mágico que levou pelos ares Frixo e Hele... — Quem eram esses dois? — quis saber Emília. O viandante coçou a cabeça, desanimado; depois disse: — Estas histórias emendam-se de tal maneira uma na outra que não têm fim. Para explicar o caso dos argonautas tenho de ir recuando, recuando... Bom, Frixo era um herói beócio... — Como beócio? Bobo? — Não. Os beócios não eram bobos, eram apenas os nativos da Beócia, uma das partes da Grécia. Mas, por amor de Palas, Emília, pare com as perguntas, se não tenho que ir recuando até aos começos do mundo. Frixo, um herói beócio que juntamente com sua irmã Hele fora indicado para o sacrifício ao tempo de uma grande seca na zona, era dono de uma verdadeira preciosidade: um carneiro de velo de ouro... — Que é velo? — quis saber Emília. — É pelo — respondeu Minervino, já meio danado, e prosseguiu: — possuía esse carneiro de velo de ouro, que lhe fora dado por sua mãe Néfele. E foi nesse carneiro mágico que os dois irmãos fugiram momentos antes de serem levados para o altar do sacrifício.

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Fugiram, e ao passarem das terras da Europa para as da Ásia, Hele perdeu o equilíbrio e caiu no mar. — Eles iam voando? — Sim, os carneiros mágicos voam. Caiu no mar e desde aí aquela nesga de mar passou a chamar-se Helesponto, em homenagem à pobre Hele. O Visconde meteu o bedelhinho para dizer que nos tempos modernos o Helesponto mudara de nome, passando a chamar-se Dardanelos. — E Frixo? Que fez? — perguntou Pedrinho. — Frixo continuou no voo e desceu na Cólquida, onde sacrificou o precioso carneiro num templo de Ares. O Visconde explicou que esse Ares era o mesmo deus Marte dos romanos. — Sacrificou o carneiro, tirando-lhe a pele, deu-a de presente a Etes, o rei da Cólquida. Etes ficou radiante, porque era uma preciosidade sem-par no mundo, e guardou-o pendurado de um velho carvalho, com um terrível dragão junto ao tronco, de sentinela. — Quem sabe se esse dragão não é o mesmo que S. Jorge levou para a Lua? sugeriu Emília, mas Pedrinho tapou-lhe a boca: "Deixe Minervino falar." O viandante prosseguiu: — O caso espalhou-se imediatamente pela Grécia inteira, despertando as maiores invejas. Todos os reis gregos passaram a sonhar com o Tosão de Ouro — entre eles Pélias, o rei de Iolcos. Esse Pélias tinha um sobrinho que era herói...

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— Pelo que vejo, isto de heróis nesta Grécia Antiga é uma profissão como a de capanga lá no nosso mundo moderno... — Não atrapalhe, Emília! Continue, Minervino. — Sim, Jasão, o tal sobrinho de Pélias, já estava com fama de herói e por isso Pélias o encarregou da grande empresa: ir à Cólquida e apoderar-se do Velo de Ouro, custasse o que custasse. Isso foi o começo da célebre expedição dos Argonautas.

OS ARGONAUTAS — E que fizeram esses Argonautas? — quis saber Emília. — Embarcaram no navio Argo... — E daí lhes vem o nome de Argonautas — observou sabiamente o Visconde. — Nauta quer dizer navegador. Argonautas são os navegadores do Argo. Minervino olhou para o Visconde com espanto. Como sabia coisas aquela aranha de cartola! Depois contou que até Héracles fazia parte desse grupo de navegadores — Hércules, Castor, Pólux, Orfeu, Telamon, Peleu, todos comandados por Jasão. — Era um grupo de heróis dos mais luzidos e valentes — e tinha de ser assim, dadas as tremendas dificuldades da empresa. A ordem do rei a Jasão era para lhe trazerem o Velo de Ouro "custasse o que custasse." — E como foi que eles pegaram o pelego? Como se livraram do dragão? — Ah, a história é comprida! — respondeu o viandante. — O rei da Cólquida tinha duas filhas feiticeiras, uma de nome Circe, muito

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famosa, e outra de nome Medeia, que ia ficar famosíssima justamente por causa da expedição dos Argonautas. Quando o Argo, depois de muitas voltas, chegou à Cólquida, Medeia conheceu Jasão e apaixonou-se. Foi um namoro que rendeu grandes coisas. Jasão contou-lhe muito em segredo ao que vinha, isto é, que vinha roubar o Velo de Ouro. Medeia assustou-se. O dragão era de fato terrível e invencível e acabaria devorando todos os Argonautas, se por acaso o atacassem de frente. Era preciso recorrerem à astúcia. "Vou fazer uma coisa"— disse Medeia. "Sou mágica; sei de drogas para tudo e tenho uma que fará o dragão adormecer; esse dragão está guardando o velo justamente porque tem a propriedade de dormir com um olho e vigiar com outro — e então você furta o velo." — Estou vendo — disse Emília — que nessa aventura dos Argonautas o verdadeiro herói não foi Jasão nem nenhum de seus companheiros. Foi Cupido... — Quem é Cupido? — perguntou o viandante. O Visconde explicou que Eros, o deus do Amor, iria chamar-se mais tarde Cupido, "porque todos estes deuses gregos de hoje vão mudar de nome; Zeus passará a ser Júpiter; Hera virará Juno; Palas passará a ser Minerva — e assim por diante. Até o meu amo Héracles passará a ser Hércules." — Hum!... — exclamou o viandante como quem afinal compreende uma coisa. — Estou agora entendendo porque vocês o tratam de Hércules... — Sim — disse o Visconde. — Meu amo é Héracles para vocês aqui desta Grécia Heroica. Nos nossos tempos modernos ele Hércules, como Eros é Cupido... Continue lá a sua história. — Pois graças ao filtro que Medeia deu ao dragão é que o seu namorado conseguiu a pele do carneiro. O pobre dragão, pela primeira vez na vida, adormeceu com os dois olhos... Obtida a pele,

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o que aos Argonautas restava era fugirem dali com a maior rapidez — e lá zarpou o Argo com todas as velas soltas, levando a bordo Medeia. — Fugiu com o namorado então? — Fugiu e foram juntos para Iolcos, onde se casaram e ela realizou mágicas famosas. — Conte uma — pediu Emília. — A mais famosa de todas as mágicas de Medeia foi o "remoçamento" do velho Eson, pai de Jasão. Medeia picou o velho em pedacinhos e ferveu tudo numa grande caldeira. E do vapor fez que brotasse um Eson vivinho e moço... — Que maravilha! — exclamou a ex-boneca. — Imagine se pilhássemos Medeia lá no sítio para picar e ferver Dona Benta e tia Nastácia... Que lindo não seria Dona Benta aí com vinte anos e tia Nastácia uma mucama toda requebrada de dezenove... E que mais houve com Medeia? — Ah, nem queira saber!... Não houve o que ela não fizesse, inclusive dar cabo de Pélias, tio de Jasão, que havia ocupado o trono do velho Eson. Medeia usou duma engenhosa esperteza: convenceu as filhas de Pélias de que também podiam remoçar o pai por aquele processo da fervura na caldeira. As moças que o picassem e pusessem o picadinho numa caldeira; ela Medeia se encarregaria de fazê-lo renascer jovem e bonito. As bobas assim fizeram: mataram e picaram o pai e ferveram tudo na caldeira. Mas quando chegou a hora de reviver aquele picadinho, Medeia deu uma grande risada... O que ela queria era ver o Rei Pélias morto para que o seu esposo Jasão ocupasse o trono... — Que danada! — exclamou Emília. — E deu certo a patifaria?

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— Falhou, porque antes de Jasão pegar o trono, um irmão de Pélias, de nome Acasto, pegou-o primeiro... e Medeia e o marido tiveram de fugir para Corinto. Mas se eu for contar toda a história de Medeia, não acabo mais. Era mesmo uma danada, como disse esta menininha. — E os Argonautas? Volte à história dos Argonautas — pediu Pedrinho. — Ah, os Argonautas ainda fizeram mais que Medeia, em suas famosas viagens do Argo. Mas não vou contar nada disso. Contei o que contei unicamente para mostrar quem eram esses famosos aventureiros, entre os quais figurava o nosso Augias, rei da Êlide — o homem do esterco. Nesse ponto da história apareceram Hércules e Meioameio que tinham saído juntos para a caça ao almoço. Vinham vindo com um novilho — e o almoço daquele dia foi novilho ao espeto. Hércules continuava preocupado com a incumbência que lhe dera Euristeu: limpar as cavalariças de Augias. Como fazer para a realização de semelhante coisa? E, cansado de pensar naquilo, pediu a opinião dos picapauzinhos. — Que acha do meu caso, Emília? — perguntou à ex-boneca. — Ainda não acho nada, Lelé. Estou ruminando... — E você, escudeiro? — perguntou ao Visconde. O sabuguinho expôs a sua teoria dos gases venenosos, que fatalmente escapariam dos estábulos quando tamanha massa de esterco fosse removida — e Hércules arregalou os olhos. Achou muito propósito naquilo. — E você, oficial? — perguntou depois a Pedrinho.

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Pedrinho também estava com medo das emanações mefíticas do esterco e andava a pensar num modo de remover de longe aquele guano. Assim se evitaria a aspiração dos gases. — Tudo depende da situação das cavalariças — respondeu o menino. Se, por exemplo, houver um rio perto, que corra em nível mais alto que o das cavalariças, há um meio... — Qual? — perguntou o herói, ansioso. — Desviar o curso desse rio, de modo que ele jorre para dentro dos estábulos e leve para longe a estercaria toda... O rosto de Hércules iluminou-se. Estava ali uma ideia realmente maravilhosa. Sim, jogando um rio para cima do esterco o caso se resolvia perfeitamente. E mais uma vez o herói assombrou-se da extraordinária inteligência daquele picapauzinho. Mas tinha que ver. Tinha que falar com Augias, obter dele autorização para a limpeza e depois examinar os arredores a fim de descobrir um rio de nível mais alto. E a debaterem o assunto lá prosseguiram na viagem rumo à Élide, depois de comido inteirinho o novilho assado. Na manhã do outro dia entraram nas terras de Augias. Já de longe viram o seu palácio, e mais adiante as tais cavalariças. Oh, eram imensas! Davam para conter mais de mil cavalos. Pelos campos vizinhos pastava uma cavalhada solta que não tinha fim. Não havia dúvida: aquele Augias devia ser o maior ladrão de cavalos da Grécia Heroica.

O REI AUGIAS Chegados à capital, Hércules mandou que os picapauzinhos o esperassem em certo ponto fora da cidade e foi sozinho falar com o rei. Encontrou-o examinando um novo lote de lindos cavalos recebidos naquele momento.

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— Majestade — disse Hércules reverentemente — aqui estou em trânsito e desejava fazer uma visita às famosas cavalariças de que tanto se fala na Grécia inteira. Augias tinha orgulho de suas cavalariças e gostava de mostrá-las aos visitantes. "Pois não" — respondeu — e foi ele mesmo mostrá-las a Hércules. Imensas! Davam para abrigar mais de mil, talvez dois mil cavalos, e Hércules notou que a camada de esterco era não só espessíssima como dura como um chão de terra batida. E abordou o assunto: — Majestade, porque não faz nestas cavalariças uma limpeza em regra? Tanto esterco assim acumulado não pode fazer bem aos animais. — Sim, já pensei — mas limpá-las como? Meus homens têm medo de mexer nisso — medo de envenenamento. E noto que meus cavalos já andam a ressentir-se. Tenho de limpá-las, sim, mas como? Hércules correu os olhos pelas redondezas e perguntou como quem não quer: — Majestade, não há aqui por perto algum rio? O rei estranhou a pergunta, mas respondeu que sim — que passavam ali por perto dois rios, o Alfeu e o Peneu. Hércules então animou-se e disse: — Pois, Majestade, proponho-me a limpar completamente estas cavalariças, sob uma condição... — Qual? — Pagar-me o serviço com dez por cento da cavalhada. Augias segurou a barba e ficou pensando — ficou pensando num meio de

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tratar o serviço por aquele preço e depois passar a perna no herói. E piscando o olho respondeu: — Pois aceito o negócio. Você me limpa as cavalariças e em pagamento recebe a décima parte dos meus animais. Hércules, porém, sabia que os reis não são criaturas merecedoras de muita confiança e exigiu uma testemunha para maior garantia do contrato. E como estivesse presente o jovem Fileu, filho de Augias, pediu-lhe que testemunhasse o ajuste. Fileu concordou. Ficou como testemunha e fiador do pai. — Pois muito bem — disse Hércules. — Amanhã começarei o serviço — e, despedindo-se de Augias, voltou para o lugar onde havia deixado os picapauzinhos. — Pronto! — disse a Pedrinho. — Já contratei o serviço da limpeza e amanhã tenho de meter mãos à obra. — E indagou da existência do rio? — Sim, existem dois, o Alfeu e o Peneu. — De nível mais alto que as cavalariças? — Imagino que sim, mas não sei. Temos que verificar isso — e de ordem ao escudeiro Sabugosa para tirar a limpo aquele ponto. O Visconde era um sábio que sabia tudo, inclusive medir o nível dum lugar em relação a outro, como fazem os engenheiros. Pediu a Pedrinho que o pusesse sobre o lombo de Meioameio e lá se foi no galope. Uma hora depois voltava com boas notícias. — Fiz os cálculos necessários — disse ele — e meu amo pode ficar certo de que os dois rios correm três metros acima do nível das cavalariças.

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— Como o verificou? — quis saber o herói. — Por meio de cálculos geométricos e trigonométricos — respondeu o sabugo científico, deixando o herói na mesma. O pobre Hércules nem sequer desconfiava da existência da Geometria e da Trigonometria. — Mas — continuou o Visconde — medi o volume das águas dos rios e verifiquei que só juntando os dois poderemos ter o enxurro necessário para remover a estercaria toda. Juntar no mesmo leito as águas dos dois rios era coisa muito simples para um "massa bruta" como Hércules, porque dependia apenas de força física. Mas... e se depois de juntas as duas águas a torrente resultante corresse noutro rumo que não no das cavalariças? — Também estudei esse ponto — disse o Visconde. — A topografia do terreno nos favorece. Se as águas forem encaminhadas para tal e tal rumo, entrarão por uma garganta que vai despejar a jusante das cavalariças. Hércules tonteou com aquele "jusante" de engenheiro... Mas entendeu mais ou menos. Se era assim, então estava o caso resolvido. Com as águas do Alfeu reunidas às do Peneu obtinha ele um volume torrencial com a força suficiente para arrastar toda aquela estercaria — e tratou de ir realizar o trabalho da junção das águas. Enquanto isso, lá no palácio o Rei Augias esfregava as mãos, contentíssimo. "Se ele executar a tremenda empreitada, eu resolvo o grande problema que tanto me preocupa; mas isso de pagar o serviço com a décima parte de meus animais me parece muita coisa..." E ficou a refletir no meio de lograr o herói. Nesse momento entrou na sala do trono um intrigante de nome Lepreu, o qual disse: "Já descobri tudo, Augias. Héracles veio cá por instigação do Rei Euristeu..."

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— Por instigação de Euristeu? — repetiu Augias. — Hum!... Isto tem água no bico... — e deu uma risada gostosa, como quem acaba de descobrir a solução dum problema. — De que está a rir-se? — perguntou Lepreu. — Uma boa ideia que me veio — disse Augias, mas calou-se, não revelou o seu pensamento. No dia seguinte ao meio-dia já os trabalhos de escavação estavam prontos; só faltava romper uma barreira para que os dois rios se juntassem. Os picapauzinhos foram para junto do herói, a fim de assistirem à junção das águas. Chegada a hora, Emília contou: um... dois e... três! Na voz de Três, Hércules pregou um tremendo pontapé na barreira. A terra voou longe e as águas do Alfeu e do Peneu se juntaram com grande fragor. E escachoando numa espumarada cor de terra vermelha, rolaram em torrente pela garganta que ia ter às cavalariças. Nesse momento Pedrinho teve uma ideia de primeira ordem. — Hércules, Hércules! — gritou ele. — Você esqueceu-se duma coisa: arrombar as paredes das cavalariças na face em que a água vai bater. Se não fizer isso, a enxurrada passa dos lados e todo o seu esforço estará perdido. Hércules viu que era mesmo e foi voando para as cavalariças. Tinha de arrombar a parede antes que o enxurro chegasse — coisa muito simples, pois que só exigia força. Com meia dúzia de pontapés demoliu as paredes. Logo depois a torrente de lama chegou e foi enveredando pelo rombo aberto. Os cavalos presos lá dentro fugiram espavoridos, enquanto a água ia arrancando enormes placas de estercaria velha, revolvendo aquilo e arrastando tudo para longe.

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Uma hora depois não havia naqueles estábulos nem cheiro da imensa porcaria acumulada. Hércules então tratou de barrar as águas reunidas e fazê-las novamente correr pelos velhos leitos do Alfeu e do Peneu. Pronto! Estava realizado mais um dos famosos Trabalhos de Hércules: a limpeza das cavalariças de Augias. Só lhe restava agora ir ter com o rei e cobrar o preço da empreitada. Hércules foi procurá-lo. — Pronto, Majestade! As vossas cavalariças acham-se mais limpas que o chão deste palácio. Augias estava contentíssimo daquilo, mas como fosse um grande patife não tinha a menor ideia de cumprir o trato. E veio com a desculpa mais indecente do mundo. — Sim — disse ele. — Reconheço que o trabalho de limpeza foi realizado de maneira perfeita, e em paga desse serviço quero ter o gosto de oferecer ao amigo Hércules um excelente cavalo de sela. — Um cavalo de sela? — repetiu o herói, atônito. — Como isso? Nosso trato foi o pagamento do décimo da cavalhada. Augias riu-se e negou com o maior cinismo. — Não me lembro de ter feito semelhante acordo... Eileu, o filho de Augias, estava presente. Era um moço honesto, que não havia puxado o mau caráter do pai. Ao ouvir aquilo, adiantou-se e disse: — Perdão, meu pai! Fui testemunha do trato. Meu pai prometeu a Héracles, em troca da limpeza das cavalariças a décima parte da cavalhada.

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Augias mordeu os beiços, danado com a intervenção daquele "mau" filho, e agarrou-se a outro pretexto. — Sim, pode ser que eu haja feito essa combinação. Minha memória às vezes falha. Mas se acaso a fiz, não sou obrigado a cumpri-la, porque o Senhor Héracles veio cá limpar as minhas cavalariças por instigação do Rei Euristeu, e portanto não me sujeito às suas sugestões. Se quer um cavalo de sela em paga do serviço, escolha-o. Se não quer, então que se ponha daqui para fora imediatamente — e você também, Fileu! Um rapaz da sua idade, filho de rei, que não sabe agir politicamente nada merece de seu pai. Ponham-se daqui para fora os dois! Hércules teve vontade de rachar aquele rei pelo meio, mas conteve-se. Disse apenas: — Isto não ficará assim, Majestade. Dentro de alguns dias darei a minha resposta — e retirou-se. Quando os picapauzinhos souberam do infame procedimento de Augias, encheram-se da mais nobre indignação. Emília quis aplicar um golpe faz-de-conta. Hércules sossegou-os. — Qualquer coisa que fizermos para este rei, ele lançará contra nós os seus soldados, que são muitos, e estaremos perdidos. Minha resposta vai ser outra. Vou formar um grande exército, a cuja frente virei destronar Augias e colocar no trono o meu honesto amigo Fileu. — disse apoiando a mão sobre o ombro do moço. Se fôssemos contar a história inteira da formação do exército de Hércules teríamos, só para isso, de encher mil páginas. Diremos apenas que Hércules formou o seu exército e veio atacar o Rei Augias. O Visconde foi encarregado do serviço da Intendência militar; Pedrinho assumiu o cargo de chefe do Estado-Maior — e Emília encarregou-se da espionagem. Mas apesar de toda aquela excelente organização, a luta acabou em desastre, e isso por causa dum acidente que ninguém esperou: a súbita doença de Hércules.

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Antes de travar-se a batalha o herói caiu de cama com uma febre altíssima. O seu fiel escudeiro Sabugosa teve de largar a Intendência e vir tratar do bom amo. Tomou-lhe o pulso, examinou-lhe a língua. — Está saburrosa, sim — disse o sabuguinho. — Os sintomas são de envenenamento. Meu amo envenenou-se com os gases mefíticos das cavalariças de Augias. Até eu senti dor de cabeça naquele dia. — E eu, uma tontura — declarou Emília. — E eu, uma azia de estômago — declarou Pedrinho. — E eu, um calafrio — declarou Meioameio. — Pois é — concluiu o Visconde. Tudo isso, efeitos dos gases letais daquela infame esterqueira. Mas como estávamos muito longe, respiramos apenas um mínimo de gás. Já meu amo teve de aproximar-se para arrombar as paredes e foi então que se envenenou. — E por que só agora se manifestaram os efeitos dos gases? — interpelou Pedrinho. — Porque num organismo forte como o de meu amo um veneno leva semanas para agir. As defesas orgânicas dos seres hercúleos são também hercúleas. Meioameio estava de boca aberta diante da ciência do sabuguinho. Aquela inoportuna doença de Hércules foi um desastre, porque o exército se viu privado de seu grande chefe e foi facilmente derrotado pelas forças de Augias. Hércules teve de fugir e ficar oculto num bosque durante toda a doença. Como se debateu no incêndio da febre!

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Como delirou!... E teria morrido, se não fosse o acerto das drogas que o Visconde lhe deu a beber, preparadas com ervas dali mesmo — mentruz-de-sapo, digitalis, beladona e outras.

SEGUNDA EXPEDIÇÃO DE HÉRCULES Doze dias durou a doença de Hércules. No décimo terceiro a febre começou a ceder e o Visconde disse: — Meu amo está salvo! O regozijo foi imenso. Meioameio saiu no galope pelos campos vizinhos, a corcovear, a dar coices para o ar, a espojar-se na relva, feliz como um potrinho novo. Durante os doze dias da doença do herói, Meioameio não arredara pé ali de sua cama de folhas secas. Pedrinho foi quem ouviu as primeiras palavras de Hércules já salvo do perigo. — Onde estou eu? — perguntou o convalescente. — Que houve? — E ao saber que o seu exército fora destroçado e ele estava oculto numa floresta, chorou de paixão. O Visconde deu-lhe um chazinho de erva-cidreira para acalmá-lo. Hércules caiu em sonolência profunda. No dia seguinte pulou da cama, já completamente bom. — E agora? — perguntou Emília. — Agora, figurinha, agora tenho de levantar outro exército e fazer com o Rei Augias o que fiz com a parede de sua cavalariça; mandá-lo para o beleléu com um bom pontapé. Hércules havia aprendido com a Emília a palavra "beleléu" e volta e meia aplicava-a.

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A organização do novo exército foi fácil e rápida, porque já tinham a experiência do primeiro. O Visconde voltou a dirigir o Serviço de Intendência e Pedrinho passou de chefe do Estado-Maior a Ajudante de Ordens do General Hércules. — E que aconteceu? — Ah, aconteceu que o exército de Augias levou a maior surra de que há memória na Grécia Antiga. Augias foi arrancado de seu trono e jogado pela janela como se fosse um caco de telha. Caiu a duzentos metros de distância, espatifando-se todo. Depois da tremenda vitória, o herói indagou do paradeiro de seu amigo o jovem Fileu. — Está na Dulíquia — informaram-no. — Vá voando à Dulíquia e traga-me cá Fileu. — Onde é a Dulíquia? — perguntou o centaurinho. — Não sei — berrou Hércules. — Pergunte. Vá num pé e volte noutro. Meioameio saiu com velocidade dum vendaval. Duas horas depois voltava coberto de suor espumarento, mas com Fileu no lombo. Hércules abraçou-o e disse: — Augias está morto e seu exército derrotado. O novo rei é você — e fincou-o no trono. Depois disse ao escudeiro: — Avise aos povos da Élide que o novo rei é Fileu. O Visconde chegou à janela, pediu a Pedrinho que o erguesse no ar,

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e com sua voz de milho gritou para a multidão aglomerada defronte: — Rei morto, rei posto! Viva Sua Majestade o Rei Fileu! — Viva! Viva! — aclamou a multidão com o maior entusiasmo, porque ninguém na Élide gostava de Augias. E assim terminou a segunda expedição de Hércules. — Bom. E agora? — perguntou Pedrinho depois de tudo terminado. — Agora temos de voltar a Micenas. Preciso dar conta a Euristeu da realização de mais este Trabalho. Emília, que andava "por aqui" com o tal Euristeu, desabafou. — Por que não vai lá e não faz com ele o mesmo que fez com Augias? —Impossível, figurinha! Euristeu é protegido de Hera... Foi nesse instante que o Visconde de Sabugosa deu o primeiro sinal positivo de loucura. Estava sentadinho por ali ouvindo a conversa dos outros, de cartola na cabeça, como sempre. Aquela cartola fazia parte do Visconde, não era como o chapéu comum dos homens que é posto na cabeça e tirado quando dentro de casa. O Visconde não tirava da cabeça a cartola nem nas igrejas. Também não cumprimentava a ninguém pelo sistema de "tirar o chapéu". Dizia só "Olá", fazendo um gestinho de adeus, ainda que o cumprimentado fosse o próprio Júpiter. Também comia e dormia de cartola na cabeça. Pois naquela tarde tudo mudou. Assim que da boca de Hércules saiu o nome da deusa Hera, o sabuguinho tirou da cabeça a cartola e jogou-a longe. Depois deu uma gargalhada histérica e resmungou: "Hera! Hera! Era uma vez uma vaca amarela que entrou por uma porta e saiu por outra. Quem quiser que conte outra..."

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Todos estranharam aquilo — aqueles modos e aquelas palavras tão impróprias de um sábio. E mais ainda quando o Visconde segurou as palhinhas do pescoço, como se fossem barbas repartidas ao meio, e disse com ar satisfeito: "As armas e os barões assinalados... , barões e viscondes. Viscondes e condes de Monte Cristo. Condes de Monte Cristo e duques e marquesas, e comendadores, e coronéis e cabos-de-esquadra e eu... e eu... e eu. Bumba-meu-boi! Zubumba! Os Zombis... os Zombis... os Zombis..." e seus olhos pareciam querer saltar das órbitas. Não havia a menor dúvida: o pobre Visconde de Sabugosa enlouquecera! Já de algum tempo vinha mostrando certos sinais de perturbação dos miolos, ma com intervalos de perfeita lucidez. Agora, porém, a incoerência de suas ideias já não deixava nenhuma dúvida. Louco... Louquíssimo... A consternação foi geral. Hércules suspirou uma vez, e depois outra e outra. Pedrinho ficou profundamente apreensivo e Emília danou. — Em vez de enlouquecer lá no sítio, onde temos todos os recursos, este estrepe vem enlouquecer justamente aqui, para nos atrapalhar a viagem! E para mim essa loucura é fingimento. Como sabe que todos os heróis acabam loucos, ou passam durante a vida por um período de loucura, está "bancando" o louco, para ficar igual a Hércules, a Rolando, a D. Quixote... Pedrinho ameaçou-a de um beliscão se continuasse a fazer tão má ideia do pobre sabuguinho. — Não há nada na vida do Visconde que justifique semelhante hipótese, Emília. O Visconde sempre foi honestíssimo, incapaz duma mentira... — Mentiu sim — berrou Emília — naquela vez do pau-falante! — Mentiu à força, coitadinho. Você obrigou-o a mentir. Espontaneamente o Visconde jamais mentiu nem uma isca de

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mentira em toda a sua existência. Para mim ele é o modelo dos sabugos. — Mas isso não é razão para vir nos atrapalhar com uma loucura tão fora de propósito — insistiu Emília. — Quer ficar louco? Vá ficar louco na casa de sua sogra... O Visconde não dava o menor tento ao que dele diziam. Continuava a pronunciar palavras sem nexo, quase sempre científicas: "A metempsicose tem suas raízes na Índia... A sobrevivência do mais forte... Hormônios... Fava de Santo Inácio..." isso em meio a uma série de gargalhadas histéricas e arrepiantes. Depois, ah, depois fez tal qual D. Quixote quando o famoso herói da Mancha se despediu de Sancho para ficar de retiro e penitência na na montanha. D. Quixote despediu-se de Sancho e pôs-se a virar cambalhotas, em fraldas de camisa... Pois o Visconde fez a mesma coisa; deu uma série de cambalhotas e ficou a fazer experiência de andar com as mãos no chão e os pés no ar... Nesse ponto Pedrinho não reteve as lágrimas — chorou, e Hércules desviou o rosto para que não vissem a lágrima que também lhe veio. Mas Emília, nada! Nada de comover-se. Estava a rir-se ironicamente e a caçoar do pobrezinho. — Cambalhotas mais feias nunca vi. Um verdadeiro sábio não enlouquece desse jeito tão bobo. Se não fossem as suas defesas orgânicas (Pedrinho e Hércules), eu o agarrava agora e depenava... Ao ouvir aquele "depenava", o Visconde interrompeu as cabriolas e pôs-se a tremer como geleia. Era o antigo pavor que mesmo na demência reaparecia: o velho medo de ser "depenado" de suas pernas e seus braços. Tanto Emília o ameaçou com isso, desde os começos da vida do Visconde, que o terror ficou incrustado em seu subconsciente — e agora, na loucura, manifestava-se naquele tremor. Depois o coitadinho caiu de joelhos, começou a rezar e a fazer pelo-sinais.

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LOUCO — Pronto! — exclamou Emília. Agora é que está perdido de uma vez. Dona Benta diz que as loucuras religiosas são incuráveis. O Visconde rezava num murmúrio imperceptível. Pedrinho aproximou-se para ouvir. Eram palavras incoerentes de louco varrido: "Fava de Santo Inácio... Erva de Santa Maria... Xarope de São João... Melão-de-são-caetano..." Emília teve uma ideia. — Esperem!... Esperem!... Já sei... Ele está nos sugerindo uma coisa: que há remédios no mundo e que se lhe derem um bom remédio talvez o curem. Pedrinho achou razoável aquilo. — Sim. Pode ser. Mas que remédio podemos dar ao Visconde? De medicina eu não entendo nada. — Lelé há de entender alguma coisa. Pergunte-lhe. Pedrinho perguntou a Hércules seentendia de remédios. — Não, mas sei onde mora um homem que é o mais sabido em doenças e curas de toda a Grécia. — Quem é? — O grande Esculápio, o herói da medicina. — E onde poderemos encontrá-lo? — Esculápio é um filho de Apolo que foi educado pelo meu amigo

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Quiron, na cidade de Epidauro. Tudo quanto Quiron sabia da arte de curar, transmitiu-o ao moço — e Esculápio revelou-se um desses alunos que ficam sabendo mais que os mestres. No tempo da nossa expedição para a conquista do Pelego de Ouro, o médico do Argo era ele, e durante toda a campanha foi quem nos curou todas as feridas e males. E sei que sua ciência nunca parou de crescer. Já no tempo do Argo conseguia ressuscitar mortos... — Ressuscitar mortos? — repetiu Pedrinho com assombro. — Sim — reafirmou Hércules. — Diante de meus olhos ressuscitou vários companheiros, como Licurgo, Tíndaro, Glauco, e mais tarde ressuscitou Hipólito, vítima da Rainha Pedra. Podemos dar um pulo até Epidauro para uma consulta a esse semideus da medicina. Se Esculápio não curar o meu escudeiro, quem o curará? — Sim — repetiu Pedrinho. — Para quem ressuscita gente morta, curar uma loucurinha como a do Visconde deve ser brincadeira de criança. Mas como levar o pobre Visconde? Os loucos têm que andar amarrados ou em camisas-de-força. — Ou em gaiolas! — berrou Emília. — Na loucura de D. Quixote o remédio foi uma boa jaula. Pedrinho não achou fora de propósito a ideia. Se levassem o Visconde solto, isso iria exigir uma vigilância permanente, diurna e noturna — coisa muito cansativa. Mas uma boa gaiola dispensava tal vigilância — e assim pensando, foi cortar varas na floresta para construir a gaiola do louco. Que momento doloroso o em que, depois de feita a gaiola, Pedrinho agarrou o Visconde e botou-o lá dentro como se fosse um passarinho! Até Emília se comoveu. O pobre demente ficou de pé, agarrado às varetas da gaiola, gritando: "O binômio de Newton!... O quadrado da hipotenusa!... A cabeleira de Berenice..." — tudo coisas

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científicas. Os verdadeiros sábios só têm uma coisa dentro de si: ciência, e mais ciência. — Ele sempre foi assim — disse Emília. — Daquela vez lá no sítio em que ficou com "obstrução de álgebra", o Doutor Caramujo abriu-lhe a barriga e tirou um mundo de letras, sinais e coisas algébricas. Foi então que vi que os sábios têm um verdadeiro recheio de ciência nas tripas... Outra dificuldade se apresentou: como levar até Epidauro aquela gaiola com o louquinho dentro? Meioameio opôs dificuldades. Com a gaiola no lombo ele não poderia galopar, ficaria com os movimentos embaraçados. Quem resolveu o problema foi Hércules. — Posso levá-lo a tiracolo, como levo a minha aljava de setas — e foi o que se fez. Pedrinho arranjou uma correia e com ela amarrou a gaiolinha na aljava do herói... A viagem até Epidauro foi muito triste. Hércules já havia criado amor ao seu escudeiro, e os outros estavam apreensivos, com medo de que o louco não aguentasse a caminhada e falecesse no caminho. Emília resmungava como negra velha, apesar das advertências e ameaças de Pedrinho. — Hei de contar a vovó essa sua maldade, Emília. Todos aqui, até Meioameio, estamos tristíssimos com o caso do Visconde — só você, em vez de tristeza, está que é só gana... Coisa mais feia nunca vi... — Não nasci para enfermeira — disse a diabinha. — Acho que quem ficar doente ou louco deve ir para a casa de sua sogra. — Mas o Visconde não quis ficar doente! — berrou Pedrinho. Ficou louco sem querer, em virtude dos gases venenosos. — Por que não tapou o nariz, como eu?

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— Esquecimento, Emília. Você não ignora que os verdadeiros sábios são muito distraídos. Ele esqueceu-se de tapar o nariz. — Pois quem se esquece de tapar o nariz numa ocasião como aquela é bem merecedor de que os outros também o esqueçam à beira duma estrada... E assim discutindo chegaram a Epidauro. Hércules indagou da residência de Esculápio e recebeu uma desanimadora informação. E sabem dada por quem? Pelo famoso viandante que aparecia nos momentos mais oportunos. Quem o viu primeiro foi a Emília. — Olhem quem ressuscitou: Minervino!... — Onde? — Lá vem ao nosso encontro... Nada mais certo. O misterioso viandante aproximou-se e saudou-os como a velhos camaradas. — Então, por aqui? Que querem em Epidauro? Hércules contou a história da loucura de seu escudeiro e disse que tinham vindo consultar o famoso Esculápio, o semideus da medicina. O viandante suspirou. — Ai de nós!... — disse num gemido. — O grande mestre da arte de curar já não reside entre os gregos... — Para onde foi? O viandante apontou para o céu.

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— Zeus o transformou numa das constelações da abóbada celeste... — Por quê? — Ah, meu amigo, Esculápio aperfeiçoou-se demais na sua ciência, e daí lhe veio a perdição. Não se limitava a só curar os doentes, também ressuscitava os mortos. E tantas ressurreições fez, que Plutão, o deus dos infernos, inquietou-se e foi queixar-se a Zeus: "Esculápio está baixando muito a população do meu reino. A barca de Caronte, transportadora dos mortos, já não encontra passageiros." Zeus franziu a testa. "Por quê?" — perguntou. E Plutão respondeu: "Porque Esculápio anda a ressuscitar todos os que morrem." Zeus refletiu consigo que aquilo era de fato uma grande irregularidade na ordem das coisas. Se Esculápio devolvia a vida aos mortos, então estava se tornando um deus como os do Olimpo — e, cheio de ciúmes, fulminou-o com um raio. Depois, reconhecendo o grande mérito do fulminado, transformou-o numa das constelações do céu. — Em qual delas? — Na constelação da Serpente. — Por que da Serpente e não do Jacaré? — Porque o Galo, o Cão e a Serpente haviam sido consagrados ao grande Esculápio. — Mas por que o Galo, o Cão e a Serpente e não o Rato, o Coelho e o Hipopótamo? — insistiu Emília. O viandante calmamente explicou. — Porque o Galo e o Cão correspondem aos símbolos da Vigilância — e os bons médicos devem estar sempre vigilantes à cabeceira dos enfermos; e a Serpente porque é o símbolo da Prudência, qualidade indispensável aos médicos de peso.

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Pedrinho observou que no mundo moderno a Serpente ainda era um dos símbolos da medicina. Hércules ficou desapontadíssimo com aquele desfecho. Já que Esculápio não existia, que fazer do seu escudeirinho louco? Emília bateu na testa: sinal de ideia de primeira ordem. — Já achei a solução! — berrou. — Esculápio não existe, mas existe Medeia. Levemos-lhe o Visconde. Ela pica-o em pedacinhos, ferve tudo num caldeirão e do vapor extrai um Visconde novo, moço, lindo e sem loucura nenhuma. Os outros entreolharam-se. Não havia dúvida que era uma solução. — Mas onde encontraremos Medeia? — perguntou Pedrinho. — Minervino há de saber — disse Emília — e olhou para o viandante. O velho sorriu, como quem de fato sabia do paradeiro de Medeia. E Hércules também sorriu, mas de outra coisa; da estranha coincidência de também ter sido Medeia quem o curara da sua loucura. — Sim — disse. — Foi Medeia quem me curou da loucura em Tebas, mas ignoro onde reside hoje essa grande mágica. — Está numa cidade da Ática, casada com o velho Rei Egeu — informou o viandante. — Pois então vamos para lá — determinou Hércules.

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NO PALÁCIO DE MEDEIA Foi outra viagem muito penosa e triste a que fizeram em procura da grande mágica. Afinal chegaram. Medeia reconheceu o herói que anos antes ela havia curado da loucura e perguntou-lhe ao que vinha. Hércules respondeu: — Andamos peregrinando em procura de quem restabeleça o meu escudeiro Sabugosa. — Que tem ele? — Loucura. Respirou os maus gases das cavalariças de Augias e ficou desarranjadinho da cabeça. — Pois traga-o à minha presença respondeu Medeia — e assombrou-se quando Hércules abriu a gaiolinha a tiracolo e tirou de dentro o pobre sabugo científico. — Isto?... Então é isto o escudeiro do grande herói nacional da Grécia?... Muito custou a Hércules convencê-la de que se fisicamente o Visconde era aquilo só, em ciência era um sábio maior que todos os sábios de Atenas — e contou-lhe diversas passagenzinhas científicas do Visconde. Medeia olhou para Hércules com certa desconfiança, como quem está pensando: "Será que eu não o curei bem curado? Será que está novamente de miolo mole?" E só depois do testemunho dos outros, de Pedrinho, Emília e até de Meioameio, é que deliberou consertar o Visconde.

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— Dê-me isso aqui — disse ela — e pegando o Visconde arrancou-lhe os braços, as perninhas e a cabeça; depois picou o tronco inteiro com uma faca. Lançou tudo numa caldeira e acendeu o fogo. Com alguns minutos de fervura o picadinho ficou no ponto. Um vapor grosso ergueu-se da caldeira. Medeia rezou as suas palavras mágicas — e com o maior assombro todos viram surgir um Visconde de Sabugosa novinho em folha, jovem e corado, sem a menor sombra de loucura nos miolos... — Pronto! — disse ela entregando ao herói o escudeiro consertado. — Pode levá-lo, mas em paga quero uma coisa: e cochichou-lhe ao ouvido o que desejava em pagamento da cura do Visconde. — Oh, impossível! — respondeu o herói. — Impossível por quê? — teimou Medeia e Hércules puxou-a de banda para um prolongado cochicho. Emília estranhou aquela conspiração em que volta e meia os dois olhavam para ela, mas nunca veio a descobrir a causa. Fora o seguinte. Medeia, como boa feiticeira, já havia descoberto o grande "segredo mágico" de Emília, e estava, pedindo ao herói que lhe desse como pagamento da cura do Visconde "aquela criatura tão maravilhosa." Mas que "segredo mágico" era esse que interessava até a uma grande feiticeira como Medeia? Simplesmente o "faz-de-conta" como qual Emília solucionava os casos mais difíceis. A história da aplicação do "faz-de-conta" na luta entre Hércules e o Javali do Erimanto já havia chegado até aos ouvidos de Medeia. E foi uma felicidade que Emília não viesse a saber da proposta de Medeia, pois que do contrário havia de querer ficar no palácio da grande feiticeira para picar gente e ferver o picadinho no caldeirão mágico. Só divertimentos assim encantavam realmente a diabinha.

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Enquanto Hércules conversava com Medeia, Emília e Pedrinho examinavam e reexaminavam o Visconde novo. "Vire de costas" — dizia um. — "Agora vá até lá" — dizia outro. — "Dê uma carreirinha num pé só" — mandou Emília — e o Visconde saiu pulando num pé só, como o saci, coisa que nunca havia feito em sua vida. — Ótimo! — exclamou Emília. — Medeia nos deu um Visconde mais esperto e ágil que um macaco. Resta saber se é sábio como o Visconde velho. Pergunte-lhe qualquer coisa de ciência, Pedrinho. E o menino perguntou: — Quantos dedos tem uma mão-de-milho? — Cinquenta! — respondeu o belo viscondinho, e explicou: "Mão-de-milho" é uma medida de milho ainda em espigas. Cada mão-de-milho tem 25 pares de espigas. Logo, as espigas são os dedos da mão-de-milho. E como 25 pares de espigas são 50 espigas, a mão-de-milho tem 50 dedos!... Pedrinho abriu a boca diante da esperteza do Visconde fervido — e teve vontade de pedir a Medeia que também o fervesse a ele em sua caldeira mágica. Imaginem que Pedrinho não sairia! Hércules não pôde pagar a Medeia o preço da cura do Visconde, teve de ficar devendo. Despediu-se dela e retirou-se segurando Emília pela mãozinha — de medo que no último instante a terrível feiticeira a raptasse. Nada mais tinham a fazer ali. Era tempo de voltarem a Micenas a fim de que o herói desse conta a Euristeu da execução do Quinto Trabalho. Puseram-se a caminho, e no dia seguinte tiveram mais uma vez a preciosa companhia do tal viandante. E o estranho é que ele

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apareceu justamente na horinha em que Emília desejou saber a história de Circe, a irmã de Medeia... — Que pena Minervino não estar aqui para nos contar a história da Circe! — havia dito a ex-boneca — e como por encanto Minervino apareceu. Uma coincidência assim era para espantar qualquer criatura — mas que é que espantava os picapauzinhos? Em vez de arregalar os olhos, Emília disse com a maior naturalidade: — Conte-nos, Minervino, a história da Circe, irmã de Medeia... E o viandante contou. — Ah, Circe foi a mais famosa feiticeira de todos os tempos. Sua história é toda um romance... — Pois leia-nos esse romance — pediu Emília. Minervino limpou o pigarro e falou da Ilha de Ea onde morava Circe. — Que maravilhosa ilha! —disse ele. — O palácio da feiticeira era um puro encanto. Impossível maior luxo. E lá dentro vivia Circe uma verdadeira vida de sonho, cantando, dançando ou fazendo preciosíssimos bordados no meio de numerosos leões, tigres, lobos e outros animais selvagens... — Que história é essa? — exclamou Emília, intrigada. — Não estou entendendo... — Circe era possuidora de uma beleza sem-par — explicou o viandante — de modo que vivia atraindo heróis para a sua ilha. Mas assim que eles desembarcavam, ela os tocava com a sua varinha mágica e os virava no que queria leões, tigres, lobos... Quando de volta da Guerra de Troia o navio de Ulisses aportou naquela ilha, a curiosidade de muitos companheiros do herói fez

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que eles fossem espiar a famosa feiticeira — e Circe zás! transformou-os em porcos. — Em porcos? Coitados... — Sim, em porcos. Mas um que escapou da triste sina foi contar tudo a Ulisses. Este Ulisses era o verdadeiro símbolo da habilidade humana e da astúcia. Ao saber da sorte dos companheiros, refletiu, e tratou de aconselhar-se com Hermes, de quem era protegido. Hermes deu-lhe uma planta mágica que o defenderia de todos os sortilégios de Circe e instruiu-o de tudo quanto tinha a fazer. E lá vai Ulisses, muito fresco da vida, para o palácio de Circe. E tais e tantas fez com suas histórias e manhas que acabou enfeitiçando a feiticeira. A boba ficou perdidinha de amor por ele. Ora, quem ama nada nega ao objeto amado — e Ulisses conseguiu que a feiticeira "desvirasse" os seus companheiros transformados em porcos. Voltaram a ser homens outra vez. Ulisses passou todo um ano na ilha de Ea, enlevado na beleza de Circe; e depois, com muito jeitinho, conseguiu licença para dar um pulo até à Ilha de Ítaca... — Eu sei! — disse Pedrinho. — Ítaca era a terra desse herói, onde morava a sua fiel esposa Penélope, sempre a fazer aquele bordado que não acabava mais. — Por que não acabava mais? — quis saber Emília. — Porque Penélope desmanchava de noite o pedaço feito de dia. — E para que essa bobagem? — Boba é você com tantas perguntas. Não sabe então a história de Penélope, que vovó contou? Penélope era a fiel esposa de Ulisses, o qual havia ido com todos aqueles heróis de Homero para a famosa Guerra de Tróia, a qual durou dez anos. Terminada a guerra, levou Ulisses outros dez anos em viagens por mar e aventuras maravilhosas, antes de chegar à sua Ilha de Ítaca...

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— E a pobre da Penélope passou todo esse tempo a esperá-lo? Mulher mais boba nunca vi!... — Sim — disse o viandante. — Ela era um símbolo de fidelidade conjugal. — A boba número um é o que ela era! — berrou Emília. — Vinte anos a esperar um marido que não fazia outra coisa senão namorar todas as Circes do caminho! Ah, se fosse eu... — Sim, Penélope esperou-o com a maior paciência — prosseguiu Minervino — e para ganhar tempo e iludir os numerosos príncipes que a cortejavam... — Por que a cortejavam? — Todos queriam casar-se com ela a fim de ocupar o trono de Ulisses. E ela então... — Já sei! — interrompeu Emília. — A palerma ficou a fazer o tal bordado que não acabava mais — a tal teia de Penélope. Agora me lembro que Dona Benta nos contou isso. Minervino quis saber quem era essa tal Dona Benta de quem volta e meia os picapauzinhos falavam. Emília explicou: — Ah, meu amigo, Dona Benta é uma Circe dos tempos modernos, uma feiticeira lá da nossa Ilha do Picapau Amarelo... — Também transforma heróis em animais? — Não! Faz o contrário. Transforma animais em seres racionais e lindos de alma. A varinha de condão de Dona Benta chama-se Bondade. Foi com essa varinha que ela me transformou de boneca de pano em gente, e transformou um rinoceronte da África no Quindim e fez do Burro Falante um verdadeiro filósofo — e Emília

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foi inventando mil coisas sobre Dona Benta, metade verdadeiras, metade fantasias. Pedrinho admirou-se da imaginação da ex-boneca e cochichou para o Visconde: "Ela está melhor do que nunca! Parece até que foi fervida..." E assim, nessa prosa encantada em que se misturavam feiticeiras e deuses, heróis e bichos, invençõezinhas da Emília e mitologias de Minervino, o bando de Hércules chegou a Micenas.

O REI ANTIPÁTICO O acampamento à beira do ribeirão estava exatinho como o haviam deixado. O viandante gostou muito do Templo de Avia e das costeletas dos carneiros "achados" pelo centaurinho. Hércules foi espadanar-se na água do ribeirão, em mais um dos seus banhos hercúleos. Hercúleos, sim, tais e tantas eram as cabriolas que ele fazia na água. Parecia um boto. Pedrinho, espiando a canastrinha da Emília, encontrou lá dentro várias novidades muito curiosas: um pacotinho de esterco das cavalariças de Augias, um vidrinho do caldo da fervura do Visconde e até uma mentira mitológica: um pedaço da teia de Penélope. Depois do banho, Hércules foi a Micenas falar com "o antipatia", que era como a ex-boneca chamava Euristeu. Esse rei já estava no conhecimento de tudo relativo ao Quinto Trabalho de Hércules. Como o herói demorasse a aparecer, a notícia de sua grande proeza tinha chegado na frente. Na Grécia inteira não se falava em outra coisa senão na limpeza das cavalariças de Augias e na destruição desse mau rei pelo segundo exército do herói.

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Emília aproveitou o ensejo para "apertar" o misterioso viandante e forçá-lo a contar quem era. — A mim ninguém me engana — disse a ex-boneca. — Juro que você é um mensageiro do Olimpo, uma espécie de Hermes da deusa Minerva... O viandante abriu a boca. Não podia compreender como aquela criaturinha houvesse penetrado em seu segredo. — Como sabe? — perguntou. — Ora como sei!... Sei porque adivinho as coisas. Isso de você aparecer justamente nos "momentos psicológicos" e de saber tanta coisa da história e da lenda deste país, isso me fez desconfiar... Minervino acabou contando tudo. — Sim — disse ele — sou um mensageiro de Palas, e fiquem sabendo que é graças a essa deusa que vocês ainda estão vivos... — Por quê? — exclamou Pedrinho, assustado. — Porque Hera já sabe tudo e está danada com o auxílio que vocês vêm dando a Hércules. A verdadeira razão do herói já ter realizado cinco trabalhos sem que nada de mal lhe acontecesse, está unicamente numa coisa: na ajuda que vocês lhe têm dado. O caso do Javali do Erimanto, por exemplo, deixou Hera impressionadíssima; e com meus próprios ouvidos pilhei-a dizendo a Hermes: "É aquela feiticeirinha que me está estragando o jogo. Possui um talismã mágico, o tal "faz-de-conta", com o qual já salvou Hércules de várias situações perigosíssimas." Disse e encarregou Hermes de roubar dá Emília esse talismã... — Que coisa! — exclamou Pedrinho, assustado. — Então o Olimpo já está a incomodar-se conosco?

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— Se está!... Não discutem outro assunto. Até Zeus anda interessado em vocês, mas a favor. Hera está contra e por causa disso Palas me destacou para, sob a forma de viandante, guiar vocês nos passos perigosos e ir neutralizando ou desmanchando as armadilhas de Hera. O grande empenho dessa deusa é dar cabo de Emília. Ao ouvir semelhante coisa, Emília avermelhou de cólera e desabafou: — Forte bisca! O Visconde entrou no debate para adverti-la de uma coisa muito séria. — Cuidado com a Nêmesis, Emília! — disse ele. Só Minervino entendeu o Visconde, e lhe deu razão, dizendo: — Sim, Nêmesis é a divindade da justiça e é também a divindade que castiga os culpados da hybris. — Hybris? — repetiu Pedrinho. — Hybris é o pecado da "insolência na prosperidade." Quando uma pessoa fica muito importante e começa a desprezar os outros, e a orgulhar-se muito de seus dons, comete o pecado da hybris — e lá vem Nêmesis castigá-la, abater-lhe o orgulho. Emília anda orgulhosa demais, gabando-se demais. Isso é hybris. E se é hybris, da que tome cuidado coma deusa Nêmesis!... — E não está aqui você para proteger-me contra tudo por ordem de Minerva? — Estou, sim, mas meus poderes não são ilimitados. Se você passar da conta, que poderei fazer? Nêmesis é poderosíssima.

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Emília encolheu-se, um tanto amedrontada. Momentos depois Pedrinho descobriu-a queimando umas ervas secas em cima duma pedra. "Que é isso?" perguntou-lhe. E a diabinha: "É um altar da grande deusa Hera, à qual estou oferecendo um sacrifício de plantas aromáticas." Pedrinho piscou para o mensageiro de Palas. Lá no palácio de Euristeu, Hércules nem pôde falar. Assim que abriu a boca para dar conta da realização do Quinto Trabalho, "o antipatia" o interrompeu com um gesto. — Já sei de tudo — e estou muito descontente com o desfecho desse último Trabalho. Minha ordem foi apenas para que limpasse as cavalariças de Augias, não para que o expelisse do trono. Espero que daqui por diante faça o que mando e não se exceda em façanhas não encomendadas. — Assim será, Majestade — respondeu o herói humildemente. — E agora? Euristeu já havia combinado com Eumolpo o novo Trabalho a impor a Hércules, um Trabalho muito mais perigoso que os cinco primeiros: a destruição das ferocíssimas aves do Lago de Estinfale. — O novo trabalho que hei por bem impor-te, Hércules — disse com a maior solenidade Euristeu — é ires a Estinfale destruir os avejões de penas de bronze. É só — e fez gesto de fim de audiência. Hércules nada sabia de tais aves, mas não deixou de ficar apreensivo. Se Euristeu o mandava atacá-las, então é que não eram aves comuns. E se não eram aves comuns, então como seriam? De volta ao acampamento, Pedrinho correu-lhe ao encontro. — E agora, Hércules?

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— Tenho de voltar à Arcádia para destruir as aves do pântano de Estinfale... — Que aves são essas? — Não sei... Hércules nada sabia de tais aves, mas Minervino devia saber. Que não sabia o misterioso mensageiro? Pedrinho foi consultá-lo. — Amigo, que sabe das aves do Lago Estinfale? Euristeu acaba de dar ordens a Hércules para ir destruí-las. Minervino empalideceu. — As aves do Lago Estinfale? Oh, sei... São aves monstruosas e invencíveis por causa do número e das penas... — Das penas? — repetiu Pedrinho sem entender. — Sim, possuem penas de bronze, penas enormes, pesadíssimas e cortantes como facas. Essas aves só se alimentam de carne humana, dos passantes que transitam por perto do lago. De grande distância arremessam tais penas com pontaria segura — e ai do viandante por elas alcançado!... Na minha opinião este Trabalho é muitíssimo mais difícil e perigoso que os outros. — Por quê? — Por causa do número de aves — mais de mil. Imagine todas elas arremessando contra o herói suas venenosas penas de bronze. Basta que uma acerte... — Mas de longe Hércules poderá matá-las com suas flechas. Minervino sorriu.

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— Hércules é um e elas são mil. Para cada flecha que o herói lance, elas lançam mil penas afiadas. De que maneira poderá ele resistir? Acho o caso muito sério e vou aconselhar Hércules a nada fazer antes que eu discuta no Olimpo o assunto. Pedrinho ficou seriamente apreensivo. Sim, aquele Trabalho era muito diferente dos outros. Até então Hércules tivera de enfrentar um inimigo único; agora tinha de enfrentar mil ao mesmo tempo. Tudo mudava de aspecto. E Pedrinho lembrou-se das formigas que apesar de tão minúsculas vencem pelo número. Minervino deu a palavra de ordem: — Combinemos uma coisa, vocês podem ir já para a Arcádia, mas nada façam sem ouvir-me. Vou consultar minha deusa e depois irei procurá-los. — Onde? — Nos arredores da cidade de Estinfale. Nada façam sem minhas instruções. Disse e afastou-se.

AS AVES DO LAGO ESTINFALE AS AVES DO LAGO ESTINFALE O lago pantanoso de Estinfale ficava na Arcádia, perto da cidadezinha do mesmo nome. Era um lago como outro qualquer daquele tipo. Certa manhã, porém, ocorreu uma curiosa novidade: o lago estava cheio duns estranhos avejões aquáticos. O contentamento dos estinfalinos foi grande. As aves aquáticas em regra são boas para comer, como os patos, as marrecas, as batuíras

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— e os caçadores locais se assanharam. Logo depois partiu rumo ao lago um grupo duns cinquenta, armados de arco e flechas. Iam em busca do jantar. De longe já os caçadores viram a superfície das águas cheia dos tais avejões, muito maiores que os cisnes. E de uma cor esquisita, como a do bronze — uma cor metálica. Que aves seriam aquelas? Os homens aproximaram-se cautelosamente, agachados, escondidos pela vegetação marginal; quando viram as aves ao alcance, fizeram boa pontaria e lançaram suas flechas. As flechas, entretanto, acertavam nas aves e ricocheteavam como se houvessem batido de encontro a corpos sólidos. Nova série de flechas foram arremessadas, igualmente sem efeito nenhum. Davam de encontro ao peito das aves e ricocheteavam. O caso espantou seriamente aqueles homens, e mais ainda verem que em vez de se mostrarem assustadas, como é o comum quando caçadores atacam as aves aquáticas, aquelas se puseram a arrepiar as penas e a investigar com os olhos muito vivos, como que tomando a posição dos seus atacantes. Evidentemente iam passar de agredidas a agressoras. E como pareciam belicosas! Que fazer? Os caçadores entreolharam-se. Por fim resolveram tentar mais uma revoada de setas — e mais cinquenta setas voaram rumo ao peito dos avejões. E o que então sucedeu foi o assombro dos assombros. Os avejões, mais arrepiados ainda, romperam numa gritaria atordoadora; depois sacudiram as enormes asas como se quisessem desembaraçar-se das penas — e mil penas vieram cair em cima dos caçadores. Que hecatombe! Não ficou um só de pé. Todos caíram como que fulminados. As penas arremessadas eram de bronze e cortantes como facas...

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Em seguida as aves acudiram num grande açodamento e em minutos estraçalharam e devoraram todos aqueles corpos. Eram aves antropófagas. Como os cinquenta caçadores não reaparecessem em Estinfale, a população inquietou-se. Novos homens partiram em procura dos primeiros — e também não voltaram. Só depois da destruição de duzentos ou trezentos estinfalinos é que a cidade compreendeu o que se passava. O pânico foi imenso. Não tinha fim a choradeira das mulheres que haviam perdido tão tragicamente os seus homens. Apenas um conseguiu salvar-se e lá apareceu em Estinfale com duas penas de bronze. Ah, como aquilo andou de mão em mão! Todos queriam vê-las, cheirá-las, prová-las. E ficou assente um ponto: o lago estava coalhado de tremendíssimas aves de penas de bronze comedoras de carne humana... Que fazer? A luta era impossível. Tornava-se necessário recorrer aos heróis, porque só os grandes heróis, Hércules, Teseu, Perseu, Jasão e outros, sabiam lutar e vencer os monstros. Mensageiros foram mandados à corte dos reis com pedido de socorro — e foi então que Euristeu pensou em Hércules. Ah, dessa vez o herói sucumbiria na empresa. Enquanto isso, as aves do lago continuavam na faina de caçar caçadores, pastores e gente do comum, fosse homem mulher ou criança. Viandantes incautos, que nada sabiam daquilo e passavam pela beira do lago, eram impiedosamente lacerados pelas penas de bronze e em seguida devorados. A matança tornou-se horrorosa. Estavam as coisas nesse pé quando Hércules chegou a Estinfale. A alegria dos habitantes foi enorme. Ninguém lá ignorava quem fosse o herói. Sua vitória sobre o javali do Erimanto, montanha não longe dali, corria de boca em boca. Hércules foi conferenciar com o chefe da cidade.

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— Sim, chefe, aqui estou a mandado de Euristeu para destruir as aves de penas de bronze. — De que modo vai atacá-las? — Com as minhas setas mortais. O chefe riu-se. — Seta nenhuma tem efeito contra essas aves, porque são revestidas duma verdadeira couraça de penas de bronze. Nossos caçadores tiveram ensejo de verificá-lo — e já não existem, os imprudentes... Hércules riu-se. As flechas dos homens comuns eram uma coisa; as suas, algo muito diferente. Nunca houve ser vivo, homem ou animal, que resistisse a uma só das suas setas — e apesar da advertência do mensageiro de Palas o herói resolveu fazer naquele mesmo dia a experiência. Depois de acomodar Meioameio, Pedrinho e os mais num "camping" à beira da cidade, partiu sozinho, de arco em punho, com a aljava bem cheia de setas. E teve o cuidado de examiná-las, uma a uma, para ver se a Emília não as tinha “humanizado." O meio de Emília "humanizar" as flechas era quebrar-lhes aponta... Hércules aproximou-se do lago o mais cautelosamente que pôde, agachado, ora oculto por um tufo de vegetação, ora por uma pedra. Desse modo chegou a um ponto de onde pôde observar à vontade os avejões. Grandes, sim, enormes, e cor de bronze. Estavam calmos, vogando serenos na superfície turva do lago. Minutos antes haviam apanhado e devorado toda uma família de viajantes descuidosos. Hércules escolheu uma seta de ponta bem aguçada, firmou-a na corda do arco e retesou-se ao máximo. Fez pontaria e zás!... A flecha assobiou num silvo de serpente e foi bater em pleno peito da ave mais próxima.

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— Blen!... O choque produziu um som de sino de bronze, mas nada da seta cravar-se no alvo; desviou-se para a direita e lá adiante afundou na água. Aquele som de sino foi um toque de rebate. Todas as aves o ouviram e arrepiaram-se; mas como não descobrissem onde estava o imprudente caçador, não houve nenhum arremesso de penas de bronze. Limitaram-se a permanecer alertas, espiando de todos os lados. Hércules ficou apreensivo. O mensageiro de Palas estava certo. Com as flechas não poderia vencer os avejões, nem tampouco os venceria com a sua poderosa clava. Como entrar em semelhante pântano com a clava em punho? Atolar-se-ia e as aves o devorariam vivo. Melhor aceitar o conselho de Minervino — e deliberou ir esperá-lo no acampamento. Hércules afastou-se do pântano com as mesmas cautelas com que se havia aproximado; e como ao lado dos esqueletos dos caçadores mortos visse muitas penas de bronze, apanhou uma das menores para levá-la de presente à Emília. Ao chegar ao acampamento encontrou o centauro assando os três carneiros de todos os dias, com os outros sentados por ali em redor do fogo. Pedrinho ergueu-se. — E então, Hércules? Que resolveu? — perguntou o menino. O herói emitiu um suspiro. — Nada ainda. Verifiquei um ponto bem aborrecido: minhas setas não varam as penas de bronze dos tais avejões. Batem nelas, arrancam um som de sino e ricocheteiam. E como também nada posso fazer com a clava, não sei... — Bem disse o mensageiro que era um Trabalho muito difícil! — lembrou Emília. — Agora o que Lelé tem a fazer é esperar pela volta de Minervino.

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AMOR, AMOR... Ninguém tinha a menor ideia de quanto tempo teriam de esperar ali nos arredores de Estinfale. Podia ser uma hora, podiam ser vários dias. Pedrinho deliberou montar um acampamento como o de Micenas e para isso saiu em Meioameio para a escolha do sítio mais adequado. Breve encontrou um bem ajeitadinho, com ribeirão de águas cristalinas, floresta próxima e carneiros ao longe. A Arcádia era toda um carneiral. As únicas pessoas por ali existentes eram pastores e pastoras, algumas bem jovens e bonitas. Depois de instalado o acampamento, volta e meia surgiam pastorinhas curiosas que vinham espiá-los, a princípio muito medrosas, depois acamaradadas. Isso deu em resultado uma coisa de todo imprevisível e prodigiosa. O Visconde, cujo caráter mudara muito depois da fervura, começou a sentir lá por dentro umas comichões estranhas. De vez em quando suspirava, revirava os olhos. Emília desconfiou e foi dizer a Pedrinho: — Está me parecendo uma coisa: o Visconde está amando!... — Quê? — Amando, sim. Cada vez que aparece por aqui aquela graciosa pastorinha de nome Climene, ele fica todo atrapalhado, como quem sente uma coisa que não sabe o que é. Para mim trata-se de amor... — Impossível, Emília! Nunca houve milho que amasse... — Também nunca houve milho que falasse e soubesse ciência, e o Visconde fala e sabe ciência. Ele "mudou", exatamente como eu mudei. Mudou por efeito da fervura de Medeia.

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Pedrinho pôs-se a cismar naquilo e a observar o Visconde. Logo depois apareceu Climene, uma garota de dez anos, com um lindo presente de queijo e azeitonas. O gosto dessa pastorinha era contar coisas ali da Arcádia e indagar de como era a vida no mundo moderno. As histórias do sítio de Dona Benta, que Emília narrou, andavam a lhe virar a cabeça. Que linda menina a Climene! Pele dum lindo moreno claro e perfil perfeitamente grego, com o clássico nariz em linha reta. Emília lembrou-se daquela escrava Aglaé lá da casa de Péricles. O mesmo tipo, o mesmo modo de falar e até as mesmas curiosidades. Seu maior prazer era montar com os outros no centaurinho para galopadas pelos campos. Assim que a Climene apareceu com o queijo e as azeitonas o Visconde corou. Pedrinho pôs-se a observá-lo disfarçadamente. Sim, o Visconde "ficava outro" perto da pastorinha. Se ia falar, engasgava. Se ia andar, tropeçava. E não tirava os olhos dela. Em certo momento afastou-se do grupo, e foi colher um buquezinho de flores silvestres, muito desajeitadamente, que veio oferecer à menina. Climene foi o primeiro amor do Visconde de Sabugosa — primeiro e último. Nunca mais a tirou do coração. Tudo lhe eram pretextos para procurá-la, para ensinar-lhe coisas de ciência. E não cessava com os presentinhos. Climene acabou notando aquela assiduidade e disse-o à Emília. — Por que é que ele tanto me olha e lida comigo? — Ah, Climene! O Visconde era uma coisa antes dá fervura e está muito diferente agora — e contou o caso da passagem do Visconde pela caldeira de Medeia. Até aquele dia, era um sábio como outro qualquer. Só cuidava de ciência. Mas de repente enlouqueceu, e então nós o levamos ao palácio da grande feiticeira para uma boa fervura no caldeirão mágico. Do vapor que saiu, a famosa Medeia fez um viscondinho novo, muito diverso do primeiro. Ele hoje ainda

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gosta de ciência e sabe coisas — mas a ciência já não é tudo para ele, como no começo. E isso, sabe por quê? Porque está amando. — Amando? — repetiu a menina muito admirada. — Sim. Está perdidinho de amor por você... Climene abriu a boca. Era muito criança ainda e nada sabia do amor. Emília teve de explicar-lhe tudo. — E que devo fazer? — perguntou Climene. — Oh, deve corresponder ao amor do Visconde. Quando ele piscar, você pisca também — e explicou-lhe o "pisco" do namoro. E quando ele suspirar, você também suspira. E se ele revirar os olhos, você também revira os olhos. — E quando me der um buquezinho de flor? — Você beija as flores e prende-as no vestido. Também pode, de vez em quando, dar-lhe uma flor... O namoro do Visconde tornou-se o divertimento de Emília e Pedrinho durante horas de espera ali no "camping" de Estinfale. Até Hércules percebeu o jogo e encantou-se. Hércules estava começando a ficar seriamente apreensivo. Três dias já se tinham passado e nada de Minervíno aparecer. Uma ideia lhe veio à cabeça. Chamou o oficial de gabinete e disse: — Estou com medo duma coisa: que Hera tenha descoberto a função de Minervino e esteja a atrapalhá-lo. Lembre-se como ele nos aparecia tão de pronto nas viagens anteriores — e agora, nada justamente agora que nos prometeu vir. Receio que lhe tenha acontecido alguma coisa.

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O herói estava certo. Os repetidos aparecimentos de Minervino no Olimpo fizeram que Hera desconfiasse. Ele aparecia por lá e ficava pelos cantos aos cochichos com Palas, a protetora de Hércules. E tantas Hera fez, que afinal descobriu a função daquele homem: era o leva-e-traz de Palas, o seu mensageiro secreto. — Hum! — rosnou a vingativa deusa. — Espera que te curo — e chamou Hermes. — Escute aqui. Palas anda tramando coisas contra mim, para favorecer Hércules. Vive aos cochichos com aquele mensageiro lá — e apontou para Minervino. — Quero que você vire mosca e pouse perto deles para ouvir o que conversam. Hermes assim fez. Virou mosca e foi pousar no ombro de Minervino, naquele momento muito entretido com Palas. — Ele já está lá? — havia perguntado a deusa. (Ele era Hércules.) — Deve estar — respondeu Minervino. — Separamo-nos em Micenas, depois que Euristeu o encarregou de destruir os avejões do Lago Estinfale. Eu, porém, aconselhei-o a ir para a cidade desse nome e a nada fazer antes de receber instruções minhas — e cá estou para receber as ordens da grande Palas. Aquelas aves são indestrutíveis pelos meios comuns flechas e clava — por causa das penas de bronze que as revestem. Se Hércules as ataca, ei-lo perdido. Neste momento já deve o herói estar acampando nos arredores de Estinfale, à minha espera. Palas ficou momentos a refletir. Depois disse: — Sim, sem a minha ajuda Hércules nada conseguirá. Aquelas aves de bronze são um estratagema de Hera, que as pôs naquele pântano justamente como armadilha para Hércules. Mas ando cá com uma ideia. Sou dona daqueles címbalos com que Hefaistos me presenteou.

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O som do bronze desses címbalos é tão terrível que não há ouvidos que o suportem. Vou mandar meus címbalos para Hércules. Ele que se aproxime do lago e vibre-os com toda a força. As aves, atordoadas, fugirão para longe, porque nem sequer as aves de penas de bronze suportam a vibração dos címbalos de Hefaistos. Disse e foi buscá-los. Embrulhou-os num pedaço de nuvem e disfarçadamente entregou-os ao mensageiro. Minervino partiu. A mosca sentada em seu ombro imediatamente voou e, depois de assumir a forma de Hermes, apressou-se em contar tudo à vingativa esposa de Zeus. — Hércules só usará desses címbalos se eu deixar de ser a deusa das deusas rosnou Hera — Vá colocar-se à porta do Olimpo, Hermes. Quando o mensageiro aparecer, arremesse-o montanha abaixo, de modo que role por entre as pedras e se despedace. Ah, Palas! Tu não sabes com quem estás lidando... Hermes cumpriu fielmente as instruções recebidas. Correu a colocar-se na porta do Olimpo, e quando Minervino apareceu, com os címbalos, arremessou-o morro abaixo com um grande tranco. O pobre mensageiro rolou pela escarpa da encosta do Monte Olimpo, dando de pedra em pedra e fazendo-se em mil pedaços. Mas Palas, espertíssima que era, percebeu a manobra e acudiu-o dum modo curioso: fazendo que os seus pedaços fossem cair bem dentro da caldeira de Medeia. A grande feiticeira, que estava a ferver um novo picadinho humano, levou susto no momento de condensar os vapores. Em vez de um "rejuvenescido", apareceram dois — o que lhe haviam encomendado e um novo, totalmente imprevisto. — Quem é você? — perguntou Medeia a Minervino, que voltara à vida novo em folha, jovem e corado — e ao saber de tudo a feiticeira alegrou-se. Ela era amiga de Hércules, ao qual já salvara da loucura e que estava a lhe dever o rejuvenescimento do "escudeiro."

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Minervino, ainda tonto da fervura, pegou os címbalos de Palas, ali caídos ao pé da caldeira, e encaminhou-se a toda pressa para Estinfale. Foi encontrar o herói ao pé do braseiro, comendo o assado de todos os dias. Quem primeiro o avistou foi Emília. — Lá vem um lindo moço! — disse ela, ao vê-lo aparecer lá longe. — Quem será? — Todos olharam. Sim, um moço de bela aparência, com um embrulho debaixo do braço. Ninguém ali o conhecia. Minervino aproximou-se e disse: — Pronto, Hércules. Aqui estou, conforme prometi. — Quem é você? — Não me conhece mais, Hércules? Não conhece mais o mensageiro de Palas? Todos riram-se. — O mensageiro de Palas é um velho — disse o herói. — Você é moço. — Fui velho — explicou Minervino mas o caldeirão de Medeia me rejuvenesceu — e contou toda a história. Depois para documentar as suas palavras, desembrulhou os címbalos e entregou-os a Hércules. — Aqui tem — disse ele — os prodigiosos címbalos com que Hefaistos, o deus do fogo e dos metais, presenteou minha deusa Palas. Ela os oferece a Hércules como o único meio de afugentar as aves de penas de bronze. — Como? — indagou o herói, sem nada compreender. — Se estes címbalos forem vibrados à beira do Estinfale, as aves de bronze, atordoadas, abandonarão o pântano e se sumirão para sempre no espaço.

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Pedrinho aproximou-se para ver o instrumento. Era um triângulo de ferro com uma série de campainhas do mais sonoro bronze que ainda houve no mundo. Hefaistos, que tinha o segredo de todos os metais, jamais fundira um tão poderoso como aquele — e justamente por isso o oferecera a Palas, a sua grande amiga do Olimpo. Emília teve a má ideia de experimentar o som duma das campainhas e nela bateu com uma lasca de Pedra. Apesar da pancadinha ter sido na realidade insignificante, o som produzido deixou-os completamente atordoados por mais de uma hora, com a impressão de haverem ensurdecido. Imaginem-se o efeito de todas aquelas campainhas tocadas ao mesmo tempo pela força hercúlea do grande herói! — Quem é Hefaistos? — quis saber Emília — e o mensageiro de Palas explicou.

O ESPARRAMO DAS AVES — Hefaistos, menininha, é um dos filhos de Zeus e Hera. Como nascesse muito feio, sua mãe, furiosa, arremessou-o do Olimpo abaixo. — Que peste! — exclamou Emília mas bateu na boca, como quem retira a expressão. — Isto é, que danada... — Sim, Hera horrorizou-se com aquele filho e arrojou-o do Olimpo abaixo, bem em cima da Ilha de Lemnos, onde havia um vulcão. Lá cresceu Hefaistos e virou ferreiro e que ferreiro!... Um ferreiro como nunca houve outro no mundo, cuja forja era o vulcão. O Visconde cochichou para Climene que aquele ferreiro era conhecido no mundo moderno por Vulcano. Minervino prosseguiu: — Nessa forja gigantesca ficou ele a trabalhar os metais — todos os metais, inclusive o bronze maravilhoso com que fez estes címbalos.

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E era a Hefaistos que Zeus encomendava os seus raios. Periodicamente o divino ferreiro galgava a montanha do Olimpo para levar a Zeus novos feixes de raios e consertar os que entortavam. Construiu suas oficinas dentro da terra, junto ao vulcão, e lá trabalhava com os Ciclopes, os gigantes de um só olho no meio da testa. Todas as afamadas peças de metal da nossa grande Grécia têm sido fabricadas por ele. Foi ele quem fez o trono e o cetro de Zeus. Foi quem fez o carro de Hélios... O Visconde explicou a Climene que Hélios era o cocheiro que conduzia o carro do sol. —... o escudo de Aquiles, e tantas coisas mais. Como fosse muito feio e coxo, a título de compensação deu-lhe Zeus como esposa Afrodite, a deusa da formosura suprema. O Visconde cochichou para Climene que Afrodite era a mesma Vênus, mãe de Eros ou Cupido. — Mas — continuou Minervino — em trabalho nenhum Hefaistos se aprimorou tanto como na têmpera do bronze destes címbalos — e vocês acabam de ter prova. Com a pancadinha que Emília deu num deles, quase ficamos todos com os tímpanos arrebentados. — Mas por que cargas d'água esse Hefaistos fez semelhante presente a Palas? — quis saber Pedrinho. — Ah, porque não há deusa que Hefaistos mais queira, visto como veio ao mundo justamente por intermédio dele. — Como? — Certa ocasião fora Zeus assaltado por uma dor de cabeça horrível. Remédio nenhum a aliviava. Por fim, levado pelo desespero, mandou chamar Hefaistos lá na Ilha de Lemnos. "Que desejas de mim, Zeus?" — perguntou o ferreiro." Quero que me fendas o crânio com um golpe de malho, porque já não suporto a imensidão desta

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dor." Hefaistos não discutiu; ergueu o malho e desfechou sobre a cabeça do deus dos deuses um golpe tremendo, tal o de Hércules no crânio do javali. — E os miolos de Zeus saltaram longe... — disse Emília. — Não. Da cabeça de Zeus não saíramos miolos; saiu Palas Atena, armadinha de escudo e lança. Daí a ligação entre Hefaistos e a minha grande deusa. Minervino ainda contou muita coisa do ferreiro coxo, enquanto ia mastigando o naco de carne assada que Pedrinho lhe dera. — Bom — disse Hércules depois de finda a história. — Tenho de cuidar da minha missão. Vou ao lago atordoar as aves com estes címbalos. Fiquem vocês aqui e tapem o mais que puderem os ouvidos. — Com quê? — indagou Emília. — Se houvesse uns chumaços de algodão... Não havia algodão, mas na floresta abundavam musgos. Meioameio saiu no galope em busca dum sortimento. Todos atafulharam os ouvidos com musgo. Hércules fez o mesmo e lá se foi de rumo ao pântano, com os címbalos debaixo do braço. Emília trepou à árvore mais alta de todas para espiar a cena de longe, e lá de cima foi descrevendo aos outros as peripécias da façanha. Parecia um speaker de rádio a dar conta dum jogo de futebol. — Lá vai indo ele!... Firme, garboso, lindo... Que amor de atleta é o nosso Lelé!... Já chegou à beira do lago. Está correndo os olhos pelas aves, como a despedir-se delas... As aves já o viram. Começam a arrepiar-se...

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Nesse momento um som terrível encheu os ares. Apesar de terem os ouvidos tapados e estarem tão longe, todos se sentiram completamente surdos. Emília lá do alto continuava a gritar embora ninguém mais a ouvisse. — Começou!... Está sacudindo os címbalos com uma força tremenda. Parece que a gente vê o som espirrar do bronze... As aves estão aflitas... Não compreendem o que há. Estão tapando com toda a força os ouvidos... Inútil... O som dos címbalos vara qualquer obstáculo... Agora as aves começaram a pererecar como doidas... Sim... Parecem baratas em dia de chuva, quê não sabem se correm ou voam... Algumas já estão voando... E outras... E outras... E agora todas... Todas, sim!... Todas levantaram voo e lá vão subindo para as nuvens... Vão ficando pequeninas... Pontos no espaço... pronto! Desapareceram. Hércules havia parado de vibrar os címbalos. — Vamos ao seu encontro! — gritou Pedrinho. — O nosso grande herói acaba de realizar maravilhosamente o seu Sexto Trabalho. Foram-lhe ao encontro, ainda com os ouvidos surdos e uma zoada lá dentro. Acharam-no caído por terra, como morto. Pedrinho sacudiu-o: — Hércules! Hércules!... Que há, amigo Hércules? — e o herói nada, mudo como um peixe. — Será que foi ferido por alguma pena? — sugeriu Emília, mas o exame feito não revelou coisa nenhuma. — Ele está em "estado de choque" por causa da violência do som — disse o Visconde. — Temos de deixá-lo em repouso por uma ou duas horas.

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Mas não foi assim. Só no dia seguinte Hércules voltou a si daquele "estado de choque" causado pela violência do som dos címbalos de Palas Atena. Mas ficou como se acabasse de sair de um pesadelo. Pedrinho tomou os címbalos e embrulhou-os muito bem no pedaço de nuvem, dizendo: "Se isto fica a descoberto, de repente recebe uma pancadinha por acaso e nos põe novamente surdos." E o mensageiro? Sumira-se misteriosamente. O som dos címbalos não os atordoara apenas a eles ali nas proximidades do pântano. Alcançara também a cidade. Não houve por lá quem não ensurdecesse. Mas depois de completamente restaurada a normalidade dos tímpanos, não houve quem não corresse a visitar as margens do lago. Que desolação!... Esqueletos e mais esqueletos, de gente comida pelas aves antropófagas. E uma quantidade de penas de bronze pelo chão! Cada qual levou uma para casa, como lembrança. Minervino havia partido para o Olimpo e lá estava a cochichar com Palas num canto. — Ah, deusa! Nunca vi trabalho mais bem feito. Assim que Hércules começou a sacudir os címbalos, o som "foi demais"; as aves entraram a agitar-se como que tomadas de súbita loucura. E foram levantando o voo e todas se sumiram no espaço. — Para onde iriam? — Afastaram-se rumo sul. Com certeza, para os fundões da África. Depois contou o tranco que Hermes lhe havia dado e de como caíra bem dentro da caldeira de Medeia...

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— Sei, sei — disse Palas. — Vi tudo e foi por agência minha que você caiu em tal caldeira. Mais uma vez saiu Hera derrotada. A alegria da população de Estinfale foi imensa. Estavam livres da maior das calamidades. Houve festas em honra do grande herói e seus amigos. Climene não largava mais do bando, cada vez mais cortejada pelo Visconde... e também por Pedrinho. Ah, que cena melancólica foi a da "desilusão do Visconde", quando percebeu que tinha um rival e era esse rival o realmente gostado por Climene! A pastorinha correspondia ao amor do Visconde por brincadeira. Gostar mesmo de verdade, só de Pedrinho. Quando Hércules falou em partir, houve resistências. — Por que tão cedo? — disse o menino. — É tão simpática esta cidade de Estinfale... O Visconde suspirou e falou em ficar mais uns dias para "estudos do dialeto grego falado ali" — e até Climene puxou brasa para a sua sardinha. — E se as aves voltarem? — disse ela. — Eu, se fosse Hércules, ficava por aqui ainda algum tempo — por prevenção... De dó dos três, o herói retardou a volta por mais três dias. Por fim disse: — Chega de namoros. Toca para Micenas. Houve despedidas comoventes. Abraços. E por instigação da Emília o Visconde deu um beijinho em Climene o primeiro e último de sua vida...

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A VOLTA A viagem de volta correu sem novidades. Como Emília mostrasse interesse em conhecer a vida do herói desde os começos, o Visconde tomou a palavra. — Estive ontem conversando sobre o assunto com o mensageiro de Palas, e posso contar o que ouvi. — Pois conte. Como foi o nascimento de Hércules? — A mãe de Hércules era a mulher de maior beleza de seu tempo. Chamava-se Alcmena. Um dia deu à luz duas crianças gêmeas: Íficlo e Alcides, que foi o primeiro nome do nosso herói. Mas Juno desconfiou da alegria de seu divino esposo. Aquele interesse de Zeus pelos gêmeos causou-lhe ciúmes — e a partir dali entrou a persegui-los. A primeira coisa que fez foi dar ordem a duas horríveis serpentes de escamas azuis para que fossem ao berço das crianças e as devorassem. — Juno ou Hera? — interrompeu Emília. — Hera é a mesma Juno. Eu prefiro dizer Juno porque o nome Hera confunde-se com o verbo "era" e às vezes atrapalha a história. Os meninos estavam no melhor dos sonos quando as serpentes se insinuaram no quarto, com os olhos vermelhos de fogo e as línguas de fora. A escuridão era completa; ninguém podia vê-las. Como salvar as duas crianças? Mas lá no Olimpo, Zeus descobre a maldade de Juno e faz que uma claridade intensa ilumine o quarto. Os gêmeos acordam ofuscados pela luz — e dão com as cobras!... — Imaginem o susto dos coitadinhos! — exclamou Emília. — E depois? — Íficlo foi o que despertou primeiro. Dá um grito de pavor e foge na disparada. Só então Alcides acordou. Acordou mas não fugiu, porque o seu destino era não fugir de perigo nenhum.

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Em vez de fugir, agarra nas duas serpentes pelo pescoço e começa asfixiá-las como fez ao Leão da Nemeia. As serpentes enrolaram-se nele, tomadas de horríveis convulsões, mas suas mãos não afrouxavam o aperto, de modo que elas não tiveram outro remédio senão morrer. — Bravos! Bravos!... — berrou Emília. — Um filhinho assim até eu queria ter. E a tal Alcmena, mãe deles? Não fez nada? — Alcmena dormia num quarto próximo. Ao ouvir o grito de Íficlo, despertou seu esposo Anfitrião e mais gente do palácio. Correm todos para o quarto das crianças — e lá dão com aquele quadro horrível: o pequeno Alcides agarrado ao pescoço das duas serpentes, uma em cada mão! Alcmena solta um grito de horror, mas o pequeno Alcides sorri e lança-lhe aos pés as duas serpentes mortas... — Que gosto para Alcmena, ter um filhinho assim!... E depois? — Depois Alcmena foi consultar um grande adivinho daqueles tempos, o famoso Tirésias, para que lhe tirasse a sorte do menino. Tirésias concentrou-se e falou que nem o Oráculo de Delfos: "Vosso filho vai tornar-se um herói invencível e acabará transformado numa das constelações do céu, mas isso depois de haver cá na terra destroçado os monstros mais tremendos e sobrepujado os guerreiros mais temíveis. O Destino lhe impõe Doze Trabalhos de grande vulto. Por fim morrerá devorado pelo fogo de Nesso — e então sua alma irá viver no Olimpo. — E tudo saiu certinho? — Sim. Tirésias não se parecia com as tiradeiras de sorte do nosso mundo moderno, que erram muito mais do que acertam. Tudo

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quanto declarou se cumpriu fielmente. Depois da leitura da sorte do menino, Alcmena sossegou e tratou de criá-lo da melhor maneira. A educação de Alcides foi orientada por Linos, filho de Apolo, o qual lhe ensinou as ciências e as letras. Emília fez focinho irônico e disse que não dava nada por aquele professor, visto como Hércules, em matéria de ciências e letras, valia menos que um sabugo científico. O Visconde explicou: — É que as ciências ensinadas não eram as do nosso mundo moderno e sim as ciências da luta, ou a arte da luta, porque a luta é mais arte do que ciência. Ensinou-lhe todos os truques dos grandes lutadores, as rasteiras, como aplicar um bom swing 1qxo do adversário, como fazer todas essas coisas de que Pedrinho tanto gosta. Também lhe ensinou a manejar a clava e a não errar um só flechaço. E ensinou-lhe a governar os carros de corrida, a enristar a lança, a defender-se com o escudo, a atacar o inimigo e livrar-se de seus golpes, a organizar um exército. Não houve o que lhe não ensinasse. — Aposto que houve! — disse Emília. — Aposto que não lhe ensinou a ler e escrever. — A leitura e a escrita de pouco adiantam aos heróis. Em geral são analfabetos. Com eles é ali no muque e na agilidade, só. E assim se foi formando Alcides, de modo a não deixar em má posição o grande Tirésias que lhe leu o futuro. Um poeta grego, de nome Teócrito, conta num dos seus poemas que a cama de Alcides menino era uma pele de leão, e que desde muito novo alimentava-se de carne assada, em vez de sopas de pão, leite condensado e outras delicadezas modernas. E já então comia mais que um carregador. — Hoje, três carneiros é a conta — disse Emília. — Não faz por menos. Naquele dia em que só comeu dois, até tive dó dele. Que fome teve de noite! O Visconde continuou:

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— Mas a sua tremenda energia tinha de causar desastres — e daí tantas mortes ou homicídios que lhe enchem a história. Tornou-se um grande matador de gente e bichos — e sabem quem foi a sua primeira vítima? — Quem? — O seu próprio mestre Linos... — Bem feito! — exclamou Emília. — Quem o mandou ensinar-lhe tanta "ciência"? E por que matou Linos? — O caso foi assim. Querendo Linos certa vez avaliar os progressos do discípulo, pediu-lhe que escolhesse o melhor livro duma estante cheia de verdadeiras obras-primas das letras gregas. E vai Alcides e escolhe o Manual do Perfeito Cozinheiro dum tal Simão. Linos, danado, passou-lhe uma descompostura. E o jovem Alcides, perdendo a cabeça, pegou de uma citara, que estava ao alcance de sua mão, e aplicou em Linos um dos golpes que esse mestre lhe havia ensinado. Matou-o. — Irra! Que gênio!... — exclamou Pedrinho. — Era um crime aquele, dos que as leis punem — e lá vai o nosso Alcides para o tribunal de justiça. Lá se defendeu citando uma célebre "Lei de Radamanto" que não considerava crime o homicídio cometido contra um atacante. Linos o atacara com palavras violentas; ele respondera com uma citarada. Foi absolvido... Mas Anfitrião, com medo de outras façanhas como aquela, enviou o rapaz para o Monte Citeron, a viver entre pastores — e foi lá que o desenvolvimento de Alcides se completou. Em Citeron matou o primeiro leão — um terrível leão que andava a desbastar os rebanhos do rei dos Téspios. Começa neste ponto a sua verdadeira vida de herói. — Para mim começou com o asfixiamento das cobras, quando ainda estava no berço — quis Emília.

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— Seja — disse o Visconde. — Mas as grandes coisas de Alcides vieram depois da morte desse leão. Indo a Tebas, encontrou essa cidade vencida pelo Rei Ergino, o qual impôs aos tebanos o pagamento dum tributo anual de cem bois. Hércules chegou à cidade exatamente no dia em que os emissários de Ergino estavam a reclamar os cem bois do primeiro pagamento. — "Que história de bois é essa?" — foi ele dizendo — e ao saber da imposição de Ergino, agarrou os emissários e cortou-lhes os narizes e as orelhas. "Digam lá ao Rei Ergino que os cem bois são estes narizes e estas orelhas cortadas." Ofensa mais grave não era possível e Ergino levantou um exército para atacar os tebanos. A grande força desse exército estava na cavalaria, mas o nosso herói, à frente dos tebanos, usou dum recurso: forrou de enormes pedras a única passagem entre montanhas por onde poderiam entrar os cavalarianos. Isso atrapalhou grandemente o ataque de Ergino, o qual foi batido e morreu na luta. Os tebanos, então, impuseram ao reino de Ergino o pagamento dum tributo de duzentos bois. Graças a Hércules a situação invertera-se. Muito gratos da sua preciosa ajuda, os tebanos consagraram ao herói vários templos e lhe erigiram diversas estátuas. Uma delas, Héracles Rinokloustes, ou "o que corta narizes"; e outra dedicada a Héracles Hipodetes, ou "o que barra os cavalos." E ainda por cima o rei de Tebas concedeu-lhe a mão de sua filha Mégara. — Sei, sei! — exclamou Pedrinho. A mesma que ele matou durante o seu período de loucura. — Sim. Mégara deu-lhe três filhos, e tudo estava correndo muito bem, quando Juno... — Já estava demorando! Juno era dessas que não esquecem nem perdoam nunca. Uma perfeita me... ia dizendo Emília mas engoliu o resto da palavra "megera." Emília andava com medo de Juno.

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MAIS FAÇANHAS DE HÉRCULES O Visconde continuou: — A loucura de Hércules foi um artifício de Juno. A deusa o enlouquecera de propósito, para que ele matasse a esposa e os filhos — e já vimos como isso se deu. Em consequência desse desastre é que Hércules se condenou a si mesmo ao exílio, indo parar nas unhas de Euristeu. Tudo isto contou o Visconde, bem acomodado no lombo de Meioameio, enquanto seguiam de rumo a Micenas. Hércules, lá atrás, marchava calado, remoendo qualquer ideia. Emília lançou-lhe uma olhadela e disse: "Em que será que Lelé está pensando?" — Aposto que no jantar — respondeu Pedrinho, medindo com os olhos a altura do sol. — Já estamos na hora. Logo adiante, à beira de um riozinho, detiveram-se para cuidar dos estômagos. Meioameio saiu no galope para "prear" os carneiros do costume e os picapauzinhos foram conversar com o herói. — Em que é que está pensando, Lelé? — perguntou Emília. Hércules fez cara de quem acorda de um sonho. Ficou de olhos parados por uns instantes. Depois disse: — Estava pensando no mais que inventará Hera para me perseguir. Tenho medo duma coisa: que apesar da proteção de Zeus e de Palas, Hera acabe vencedora. Não descansa! Nunca vi ódio igual. Desde o dia em que matei as duas serpentes, jamais cessou de conceber

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meios de dar cabo de mim. E há aquela previsão de Tirésias que me preocupa... — A tal da tal fogueira de Nesso? — Sim. Não posso compreender o que seja. Fogo — fogueira — chamas... De que modo posso morrer queimado? Tenho horror ao fogo... — Ah, o fogo é mesmo uma peste! — disse Emília. — Certa vez, no dia de São João, lá no sítio, queimei o dedo com pólvora e como doeu! Só quando tia Nastácia molhou a queimadura com querosene é que a dor passou. — Pólvora? Querosene? — repetiu Hércules, que pela primeira vez ouvia tais palavras. — Pedrinho e o Visconde se aproximaram. — Visconde — disse Emília — conte ao Lelé o que é pólvora e querosene. O Visconde falou como um verdadeiro filósofo. — A pólvora — disse ele — foi a invenção que deu cabo dos heróis. Nos tempos modernos não pode haver heróis como estes cá da Grécia justamente porque a pólvora não deixa. A força física pouco adianta. Com um tiro até um menino derruba um gigante. — Tiro?... — Sim. O tiro é um estouro da pólvora dentro dum cano — e o Visconde explicou como pôde o mecanismo do tiro. Falou das espingardas, dos revólveres, dos canhões, das bombas aéreas tudo artes da pólvora. Mas por mais que explicasse, Hércules ficava na mesma e vinha com perguntas desanimadoras.

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— Então um leão como o da Nemeia, ou uma hidra de nove cabeças, ou um javali como o do Erimanto, vocês lá o derrubam com o tal tiro? — Brincando, Lelé! — gritou Emília. — Até os rinocerontes e hipopótamos da África, que são dos maiores bicharocos que existem, um caçador qualquer os derruba com uma bala na cabeça. — Bala? — Bala é a mensageira do tiro. Há o tiro, que é a voz da pólvora; e logo que o tiro estoura, lá vai a mensageira "bala" cravar-se no inimigo e pronto! Ele estrebucha e morre... — E que tamanho tem essa mensageira? — Oh, às vezes é bem pequenina. Para abater um leão da Nemeia ou um javali do Erimanto, basta uma balinha deste tamanho — e mostrou o dedo polegar de Pedrinho. Hércules assombrou-se. Não podia conceber semelhante prodígio. Como uma coisinha tão minúscula podia dar cabo dum monstro? Emília ria-se. — É que essas mensageiras varam tudo quanto existe. Varam escudos, varam couraças e penetram no corpo dos atirados. — Hércules sorriu e, apontando para a pele do Leão de Nemeia, que por ser invulnerável trazia sempre consigo, perguntou: — Vara isto também? — Se vara!... Brincando... — Como, se esta pele é invulnerável?

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— Invulnerável hoje, aqui, para setas e lanças. Para uma bala de carabina ou revólver, é tão vulnerável como um figo podre... Emília falou em figo porque Meioameio vinha chegando com uma cesta de figos — e que deliciosos estavam! — Bons como aqueles da casa de Péricles — disse Emília comendo um. — Está um mel. — E também arranjei mel — disse o centaurinho apresentando uma ânfora que havia trazido. — E também estas maçãs... Foi uma festa. Até o herói regalou-se — e a conversa recaiu sobre frutas. Pedrinho contou a história de todas as frutas do sítio de Dona Benta — as jabuticabas, as jacas, as ameixas, as grumixamas, as pitangas, as cabeludas... —Temos lá as chamadas frutas tropicais — disse o menino. — Aqui na Grécia só há as frutas das zonas frias e temperadas — maçãs, uvas, peras. E tâmaras, Hércules, há por aqui? Hércules contou que na Grécia só havia tâmaras importadas. — Também lá onde moramos só há tâmaras importadas. Vêm em latinhas. Hércules quis saber o que era "latinha". A dificuldade de conversar com os gregos estava em que eles não podiam ter ideia nenhuma das coisas modernas. "Lata", "garrafa", "caixa de fósforo", ”cigarro"... Como explicar essas coisas para quem nunca as viu? Mas de tudo quanto os picapauzinhos disseram o que mais interessou ao herói foram as carabinas e os canhões modernos. Quando soube que um canhão lançava uma bala enormíssima a muitos quilômetros de distância,

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abriu a boca. E mais ainda quando soube que as balas "estouravam quando caíam." — Então — disse ele — daqui deste ponto os guerreiros modernos podem destruir uma cidade como Micenas, que fica a dez léguas? — Brincando! — respondeu Pedrinho. — Nas lutas do nosso mundo o inimigo recebe balas sem enxergar quem as atira — e falou dos bombardeios aéreos. — Ah, que custo foi fazê-lo compreender o que era um avião! — Aves de ferro? Como as do Estinfale? — Pior, mil vezes pior. São aves enormíssimas que voam a grandes alturas com velocidades prodigiosas, e lá de cima despejam bombas ou balas de tamanhos incríveis. A cidade de Berlim foi destruída por vários dias de chuva de bombas" arrasa-quarteirões." — Que quer dizer isso? — Quer dizer que cada bomba arrasava um quarteirão inteiro... Hércules não parava de assombrar-se. Depois perguntou: — Mas então a vida lá no tal mundo moderno é um horror. Se chovem sobre as cidades bombas do céu, como se arranjam as mulheres e crianças? — Vão todas para o beleléu. Ficam reduzidas a farelo. Aqui a luta é só contra os monstros ou outros guerreiros. Já a fúria das balas não distingue: pega o que encontra. O grande brinquedo dos nossos tempos modernos consiste em destruir, destruir, destruir. Cidades inteiras desaparecem em horas. Populações inteiras são estraçalhadas. Por isso é que nós gostamos tanto da Grécia, tão bonita, cheia de heróis que só atacam monstros, cheia de deuses

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amáveis, de pastores e pastorinhas, de ninfas nos bosques, de náiades nas águas, de faunos e sátiros nos campos. Pedrinho confirmou as palavras da Emília. — Sim, meu caro Hércules. Para nós modernos esta Grécia é tão bonita que por meu gosto eu me mudava para cá. Como vovó gostou da Atenas do tempo de Péricles! Até hoje ela suspira quando se lembra da semana passada lá. Houve uma panateneia em que Narizinho tomou parte — e vovó também, metida num vestido velho de Dona Aspásia... Por mim, eu não saía nunca mais daqui. Acho a Grécia o encanto dos encantos. Um suco! Hércules recaiu em cismas de olho parado... O jantar daquele dia foi o melhor de todos. Além dos assados do costume, tiveram uma esplêndida sobremesa. Depois o assunto caiu sobre a aventura de tia Nastácia com o Minotauro na Ilha de Creta. Isso fez que o herói se referisse ao que andava correndo na boca do povo. — Fala-se muito num touro enfurecido que anda por lá a fazer os maiores estragos. Meu receio é que depois deste meu trabalho, Euristeu me mande dar cabo desse touro... — "Receio", Hércules? — exclamou Emília. — Pois então Hércules receia alguma coisa? O herói explicou que se tratava dum "touro louco", e ele tinha medo dos loucos. — Depois do meu período de demência, fiquei com um verdadeiro horror à loucura. A gente nunca sabe como um louco vai agir. Os loucos me desnorteiam e me causam uma sensação muito desagradável de insegurança...

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— Com os bêbados também é assim — disse Pedrinho. — É o que vovó vive dizendo. E por falar em bêbado, Hércules, será verdade o que contam do deus Baco? Que vive bêbado? Lá no nosso mundo moderno chamamos aos bêbados "devotos de Baco..." Quem contou aos picapauzinhos a história de Baco não foi Hércules, e sim o mensageiro de Palas, que inopinadamente reapareceu naquele momento.

DIONISOS Antes de Minervino tomar a palavra, o Visconde explicou que na Grécia nunca houve nenhum Baco. Esse nome é romano. Na Grécia houve Dionisos, que mais tarde os romanos transformaram em Baco. — Que história é essa — observou Emília — dos tais romanos mudarem o nome de todos os deuses gregos? — Ah, depois que os romanos dominaram e conquistaram a Grécia, eles reformaram tudo e foram mudando os nomes. Dionisos virou Baco. Minervino, que não sabia nada disso, por serem coisas do futuro, admirou-se muito. Depois contou a história de Dionisos. — Esse deus — disse ele — é filho de Zeus e de Semele, a qual veio a morrer fulminada meses antes que ele nascesse. Zeus então tomou o menino e colocou-o dentro de sua própria coxa, onde o deixou ficar até o dia marcado para o nascimento. — Que coisa! — exclamou Emília. Esses tais deuses do Olimpo nascem de todos os jeitos. Palas brotou da cabeça de Zeus. Agora este Dionisos sai de sua coxa... Isto me faz lembrar a cartola daquele

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prestidigitador que apareceu lá na vila no circo de cavalinhos. Não havia o que não saísse de sua cartola: marrecos, pombos, coelhos... Minervino continuou: — Assim nasceu Dionisos e foi educado pelas ninfas de Nisa. Mas educado às soltas pelo mundo como um verdadeiro selvagem. Que vida a sua! Mais parecia um herói que um deus. Visitou muitos reis, fez-se amar por Ariadne na Ilha de Naxos, tomou parte na famosa guerra entre os deuses e os gigantes, comandou uma expedição à Índia. Tinha nomes em quantidade: Nísio, Brômio, Ditirambo, Evio, Baco, Zagreu, Sabázio... E andava seguido duma alegre comitiva de sátiros, faunos, mênades, bacantes, silenos e até do deus Pã. — Que pândego não devia ser! — comentou Emília. — E não foi o inventor do vinho? — Indiretamente — respondeu Minervino — porque a uva é atribuída a ele. Vinho não passa de caldo de uva fermentado. Daí o ter-se tornado o deus mais popular de todos, o deus das alegres festas em que há muito vinho e todos ficam de cabeça tonta... Estas histórias iam sendo contadas durante a marcha para Micenas. Minervino seguia ao lado de Meioameio, de modo a poder conversar com os picapauzinhos enquanto caminhavam. E ainda estava ele a falar de Dionisos, quando chegaram a uma aldeia em festas, justamente uma festa dionisíaca, isto é, com muita dança alegre e muito vinho mais alegre ainda. Hércules deu ordem de alto. Seria curioso mostrar aos picapauzinhos como era uma festa popular na Arcádia. Na praça principal da aldeia todo o povo estava reunido para assistir ao desfile duma procissão cômica. Na frente vinha um bode enfeitado de flores e coroas; a seguir dançarinos e músicos tocando

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flautas e citaras. E uns cantavam e pulavam. E havia os que gritavam como que tomados de delírio. Depois a procissão parou diante dum tablado tosco onde estava sendo levada uma representação teatral muito cômica. Mas tudo no maior entusiasmo. Minervino ia explicando: — Eis a alegria dionisíaca. Há uma contaminação geral. Todos vibram de alegria. São as festas de que o povo comum gosta mais. Pedrinho observou que aquilo devia ser a origem do carnaval moderno, e deu a Minervino uma ideia do carnaval moderno. — Mas lá o deus do carnaval não é Dionisos, e sim Momo. Os devotos de Momo regalam-se, pulam e divertem-se como aqui, excitados pelo álcool e pelo “ar”. Fantasiam-se de todos os jeitos, com máscaras no rosto e as vestes mais extravagantes. Estou vendo que as coisas do mundo são eternamente as mesmas; só mudam de nome. O Visconde assanhou-se e resolveu tomar parte na representação. Galgando o tablado, pôs-se também a pular, dançar e cantar. E como todos achassem muita graça naquela esquisitíssima aranha de cartola, tornou-se o herói da festa. Depois deram-lhe um gole de vinho. O Visconde bebeu de um trago — e começou a "exceder-se". Fez coisas de matar de vergonha Dona Benta e tia Nastácia, se elas soubessem. — Quem o viu e quem o vê! — exclamou Pedrinho. — O nosso Visconde, que era tão grave e sisudo, está agora um perfeito malandro. Até bebe... Imagine se lhe pega o vício e dá em pau d'água — Assim que chegarmos ao sítio temos de fazer tia Nastácia reformar o Visconde — disse Emília. — Este está cafajéstico demais. O bom era o antigo...

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Hércules gostava de vinho e quase bebeu também. Emília não deixou. — Nada, Lelé! Você com vinho na cabeça há de tornar-se a peste das pestes. É capaz de fazer as maiores loucuras e dar cabo de toda esta pobre gente. Não quero que beba! Hércules suspirou. Como já fosse tarde, resolveram dormir naquela aldeia. No dia seguinte, antes que a população saísse da cama, já estavam de novo a caminho. — Estou achando um ar de quarta-feira de cinzas — observou Pedrinho — e contou ao mensageiro de Palas como eram as quartas-feiras de cinzas lá no mundo moderno, quando toda gente que tomava parte nas festas do carnaval aparecia com cara de ressaca e um gostinho de cabo de guarda-chuva na boca. Minervino ainda contou muita coisa das festas dionisíacas e das outras festas populares dos helenos. Naquele tempo as palavras "Grécia e grego" não existiam. Aquilo ali ainda era a "Hélade", e os seus habitantes se chamavam "helenos." — Por que é assim? — quis saber a Emília — e foi o Visconde quem explicou. Apesar da sua ressaca, o sabuguinho ainda estava funcionando muito bem. — Houve por aqui um chefe de tribo de nome Helen, filho de Deucalião e Pirra, o qual se fez rei da Etiótida. Por causa disso seus súditos passaram a chamar-se helenos, e estas terras todas da Grécia passaram a ser conhecidas como a Hélade, ou o país dos helenos. — Mas donde vieram esses helenos? — quis saber Pedrinho. — Diz a história que procediam do Cáucaso, onde a raça é branca e muito bonita. Emigraram de lá para aqui no tempo dos pelasgos,

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que eram uma espécie de índios daqui, ou habitantes primitivos. Como fossem muito valentes e inteligentes, os helenos submeteram os pelasgos e se substituíram a eles. — Como lá em nossa terra os portugueses se substituíram aos índios — cochichou Emília para Hércules — a quem andava ensinando muita coisa da história americana em geral: Bolívar, Washington, Frei Caneca. O Visconde continuou: — Foram os romanos quem mais tarde descobriram esse nome de Grécia. A mania deles era mudar o nome das coisas, e muitas vezes mudavam para pior, porque Hélade me parece muito mais bonito que Grécia. A prosa foi logo depois interrompida por um incidente verdadeiramente maravilhoso. Em certo ponto, ao dobrarem uma curva da estrada, deram com um enormíssimo gigante a gemer sob um peso tremendo. Era Atlas!... Era o gigante Atlas, condenado a sustentar o céu sobre os ombros... O espanto dos picapauzinhos não teve limites. Todos ficaram com os olhos tão arregalados que quase lhes caíam das órbitas, e Emília pela primeira vez na vida tremeu. Minervino explicou que Atlas era um dos gigantes, ou titãs, que haviam feito guerra aos deuses do Olimpo. Foram vencidos e castigados. A Atlas, Zeus condenou a ficar toda a vida suportando nos ombros o peso dos céus. Hércules aproximou-se dele e perguntou por que gemia tanto. — Ah, herói! — respondeu o gigante — Gemo porque estou ansioso por ir roubar um dos pomos do Jardim das Hespérides e não posso. Se largo isto, o céu cai sobre a terra e esmaga-a. Hércules, herói de melhor coração que jamais houve no mundo, apiedou-se do titã e disse:

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— Pois vá em busca do pomo de ouro que eu fico sustentando o céu. Mas não demore muito. Atlas sorriu e, passando o céu para os ombros do herói, desapareceu. — Emília ficou assombrada. Apesar de saber da força imensa do Lelé, jamais supôs que chegasse àquele ponto. Sustentar o céu nos ombros!... E com medo de que ele não aguentasse e caísse esmagado aproximou-se e: — Não abuse dessa maneira, Lelé! Largue disso. O condenado a sustentar nos ombros o céu foi o gigante, não você — mas Hércules nada respondeu: não podia nem falar. Aquilo assustou os picapauzinhos. E se Atlas não voltasse? Ou se quando voltasse já Hércules estivesse esmagado pelo peso? Mas felizmente Atlas voltou. Vinha radiante, com o pomo de ouro na mão. — Pegue o céu depressa, que Lelé já está sem fala — não aguenta mais! — gritou-lhe Emília na maior impaciência. Atlas piscou velhacamente. — Arcar outra vez com esse peso, eu que consegui livrar-me dele? Ah, ah, ah... Quem é tolo que peça a Zeus que o mate e a Caronte que o carregue. Emília viu as coisas mal paradas. Se aquele estafermo não retomasse o seu posto, Hércules arriaria a carga — e lá desabava sobre a terra a imensidade dos céus, com todas as estrelas, planetas, cometas — e como era? Nem uma perninha de pulga escaparia ao mais completo esmagamento. Foi o que Emília explicou ao gigante Atlas. — Se você não segura o céu, já, já, que acontece? Lelé arreia, coitado, e o céu vem abaixo, e o primeiro esmagado vai ser justamente você,

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que é o mais grandalhão. A lua bate nessa sua cabeça antes de bater nas nossas. E apontando para Hércules, que já dava sinais de exaustão: — Não vê que suas forças já estão no fim? Mais uns segundos e pronto — Lelé arreia... Tenha dó, pegue um bocadinho enquanto ele toma fôlego. Atlas, na sua imensa burrice de gigante, resolveu "pegar o céu um bocadinho enquanto Hércules tomava fôlego" — e recolocou-o aos ombros. Que alívio! Ao ver-se liberto de tamanho peso, o herói caiu sentado, sem falar, pálido como a morte. Emília abanou-o no rosto, deu-lhe água a beber. Hércules foi voltando a si. Assoprou-se, tal qual o Visconde. O sangue foi-lhe voltando ao rosto. Por fim falou: — Apre!... É peso... Estou como que esmagado por dentro. Mais uns segundos e arriava a carga. Cinco minutos se passaram. Achando que Hércules já devia estar suficientemente descansado, Atlas chamou-o: — Venha, amigo! Basta de fôlego... — Bobo alegre!... Quem vai ficar aí toda a vida é você, porque foi você, não Lelé, quem se revoltou contra os deuses. Aguente!... Ao ouvir isso, Atlas teve um acesso de fúria, e mesmo de céu aos ombros espichou a mão para agarrar Emília e torcer-lhe o pescoço. Com esse movimento a abóbada celeste vacilou, quase caiu... Foi um instante terrível. Hércules, de um pulo, escorou o céu dum lado — enquanto Pedrinho quase arrancava o braço de Emília com o puxão que lhe deu.

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O perigo passou. Todos respiraram O céu havia voltado ao equilíbrio de sempre, bem firme no ombro de Atlas. Pedrinho ainda estava com o coração aos pulos, do tremendo perigo passado. Custou-lhe voltar ao normal. Nisto viu Emília arrumando qualquer coisa na canastrinha. Espiou. Era o pomo das Hespérides! Atlas o havia deixado cair no chão e ela, mais que depressa o apanhara e escondera...

EURISTEU ENFURECE-SE Foi um alívio quando chegaram de novo ao acampamento de Micenas. — Uf!... — exclamou Emília. — Escapamos de boa. Tive medo que depois do caso do gigante ainda nos acontecesse mais alguma. Não há o que não aconteça nesta Hélade... O herói estava derrancado. O esforço que tinha feito para sustentar o céu fora o maior de toda a sua carreira. Chegou e caiu na relva para um sono de vinte e quatro horas. Esqueceu-se até de comer. Os grandes cansaços tiram a fome. Enquanto Hércules dormia, os picapauzinhos ocuparam-se das coisas do costume. Pedrinho deu ordem a Meioameio para "cavar" seis carneiros. — Sim, porque a fome de Hércules, quando acordar, vai ser dupla. Traga seis, ou sete... O sono de Hércules foi o mais prolongado de sua vida. Vinte e quatro horas! Meioameio voltou com a carneirada. Matou-os, assou-os e ali ficou com aquela carnaria toda à espera de que o herói acordasse. Só no dia seguinte, lá pelas onze, Hércules abriu os olhos. Espreguiçou-se.

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— Onde estou eu? — disse estremunhado — mas ao dar com os seis carneiros no espeto sorriu e seu jantar foi verdadeiramente hercúleo. Só deixou os ossos. — Que sono, Lelé! — exclamou Emília. — Pensei que não acordasse mais. O herói sorriu. — Sono de quem teve de sustentar o céu às costas... — disse ele. — Acha que é brincadeira? — E o resto do dia passaram ali no acampamento recordando as peripécias do Sexto Trabalho. Pedrinho observou: — Acontecem por aqui coisas que lá em nosso mundo ninguém acredita nem pode acreditar. A aventura do gigante Atlas, por exemplo. Quem lá em nosso mundo vai acreditar numa coisa assim? Começa que lá Atlas não é gigante nenhum, e sim um livrão com uma série de mapas — Europa, Ásia, África, América e Oceania... — E é também o nome de um osso acrescentou o Visconde — uma das vértebras que sustentam a cabeça. — E é também o nome duma montanha do norte da África — lembrou ainda Pedrinho. — Ah, cada vez gosto mais desta Grécia. Que terra! Vai a gente por um caminho e de repente que vê? Um titã sustentando o céu... Bem diz Emília que isto é a terra do "não há o que não haja..." Hércules confessou que estava sentindo uma dor nas costas. — Pudera! — exclamou Pedrinho. — E bom será que não esteja com qualquer quebradura lá por dentro. Você abusa, Hércules. Um dia se estrepa...

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Hércules ainda ignorava que o pomo de ouro estivesse com Emília. Quando soube, quis ver. Tomou-o na mão, contemplou-o longamente e disse: — Vocês não calculam o que tem havido nesta Grécia por causa destes pomos... Há certos tesouros que constituem uma verdadeira desgraça para o mundo. Todos querem possuí-los — e sobrevêm guerras, lutas, calamidades. Estes pomos têm dado o que fazer aos heróis — e o primeiro que sai lá do Jardim das Hespérides é justamente este... Emília estava com medo de perder a preciosidade. Pensou, pensou, e por fim teve uma ideia: esconder o pomo dentro de uma casca de laranja. Assim camuflado, ninguém o furtaria. Mas onde a laranja? — Não há laranjas por aqui, Minervino? — perguntou ela ao mensageiro de Palas. — Sim, há. A laranja é uma fruta comum a todos os países destes mares. Estes mares queria dizer o Mediterrâneo e os pequenos pedaços do Mediterrâneo que têm tantos nomes: Mar Tirreno, Mar Adriático, Mar Egeu, Mar Negro. Todas as terras banhadas por esses mares são laranjíferas. Mas como ali por perto do acampamento não houvesse laranjeira nenhuma, Emília pediu a Meioameio que, quando encontrasse alguma, não deixasse de lhe trazer. — Quero uma laranja um pouco maiorzinha que o pomo... No dia seguinte, bem descansado, foi Hércules para Micenas dar conta ao soberano da realização daquele último Trabalho. Ao saber que o herói havia espantado para longe as aves do Estinfale, Euristeu mordeu o beiço. — Minha ordem não foi essa! — berrou erguendo-se do trono. —

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Minha ordem foi para que destruísse aquelas aves. Se se limitou a espantá-las, logo as teremos lá outra vez. — Não há perigo, Majestade. A lembrança do som daqueles címbalos fará que nunca mais voltem. — Que címbalos? — Os címbalos com que Hefaistos presenteou a grande deusa Palas. Euristeu, que de nada sabia, arregalou os olhos. — E como os obteve? — Diretamente do Olimpo, mandados por Palas por intermédio dum mensageiro. Euristeu olhou para Eumolpo, ali muito lambeta ao lado do trono. O caso se complicava. Se Hércules andava assim tão protegido por Palas, então Hera tinha de tomar outras providências. E Euristeu esfriou. Conhecendo o poder de Palas, teve medo de que essa deusa, na fúria de proteger Hércules, acabasse dando cabo dele, Euristeu. Tinha de pensar naquilo. — Bom, se é assim — disse para Hércules — apareça aqui amanhã. Vou pensar no assunto e ver qual o novo Trabalho. Hércules voltou ao acampamento e no dia seguinte lá compareceu perante o rei, cujo ar já não era o da véspera. Mais alegre e confiante, como quem está de ideias novas. A razão da mudança era que em sua conferência com o ministro Eumolpo este lhe havia falado assim: "Há uma coisa que talvez Hércules não consiga realizar: a destruição do Touro de Creta." Euristeu ignorava o que fosse. "Que touro é esse?" perguntou. E Eumolpo respondeu: "Ah, Majestade, é um touro gigantesco que está tomado de loucura. Um touro louco! Se um simples cão hidrófobo o que sabemos, imagine-se um touro louco! Impossível que desta vez Hércules saia vitorioso." Euristeu

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sorriu diabolicamente — e foi à esfregar as mãos que recebeu o herói. — Às ordens de Vossa Majestade! — disse Hércules, humilde como sempre. — Aqui estou para receber a missão que Vossa Majestade haja por bem confiar-me. E Euristeu, com um riso mau na boca feia: — Quero que vá à Ilha de Creta e me traga vivo o Touro Louco. Só. Hércules retirou-se bastante aborrecido. Touro louco! Depois de seu período de loucura viera-lhe um incoercível medo aos loucos. Mas que fazer? Eram ordens do rei. Tinha de cumpri-las — e voltou para o acampamento com a notícia. — Temos agora de ir a Creta! — gritou de longe para os picapauzinhos. Há lá o tal Touro Louco. Euristeu quer que eu lhe traga vivo esse monstro... Emília bateu palmas. — Creta? A ilha do Minotauro? Que amor!... Eu já estava com saudades dessa ilha onde passamos dias tão interessantes — e contou a Hércules toda a história de tia Nastácia quando esteve detida no labirinto do Minotauro. Hércules espantou-se. — Como? Pois então entraram no labirinto e conseguiram sair? Isso me parece um portento, porque quem lá entra nunca mais encontra a porta de saída. — Pois nós entramos e saímos. E descobrimos lá dentro tia Nastácia a fazer bolinhos e o tal Minotauro gordo como um porco de tanto comer bolinhos — e desfiou a história inteira.

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— Hoje — disse ela — o coitado deve estar magríssimo e portanto muito mais perigoso. Quando terá mais daqueles bolinhos? Hércules quis saber o que eram “bolinhos", e Emília os pintou tão gostosos que lhe veio água à boca. O herói suspirou. "Bolinhos", "pipocas", "cocadas de fita", "manjar branco", "quindins", "rosquinhas" — ah, como deviam ser deliciosos os doces e quitutes daquela cozinheira cujo nome vivia na boca dos picapauzinhos! — Sim — disse Emília. — Tia Nastácia é a Circe da cozinha. Pega um pato e faz um "pato com arroz" que é da gente comer e berrar por mais. E para doces, então, não há igual. Dona Benta diz que ela é uma "doceira do céu..." Meioameio, que tudo ouvia, lambeu os beiços. O dia seguinte passaram-no em preparativos. O Templo de Avia foi reformado e enfeitado com uma série de placas comemorativas dos Trabalhos realizados. Pedrinho fincou em redor do templo uma porção de estacas, cada uma tendo na ponta uma escultura tosca: um leão, uma hidra, um javali, uma ave de pena de bronze, uma corça — mas engasgou na representação do Quinto Trabalho: a limpeza das cavalariças de Augias. Como figurar aquilo numa escultura? Emília resolveu o problema. — Faz de conta que as cavalariças são um cavalo e os Rios Alfeu e Peneu são dois cachorros que se atiram contra o cavalo e foi assim que Pedrinho figurou em sua escultura o Quinto Trabalho de Hércules. Em seguida pôs-se a diabinha a pensar na "defesa" do pomo de ouro. Não era conveniente andar com ele na canastrinha, viajando de um ponto para outro. Muito melhor guardá-lo bem escondido ali mesmo. E foi o que fez. Pediu a Pedrinho que cavasse um buraco

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bem fundo. Ajeitou lá dentro o pomo de ouro e a pena de bronze. E depois de tudo bem coberto com terra, mandou que Hércules botasse uma grande pedra em cima.

O TOURO DE CRETA O TOURO DE CRETA O caso do touro de Creta foi consequência da briga entre um deus e um rei. Mas antes de o abordarmos, temos de ver para quem é a cartinha que o Visconde está escrevendo. Hércules havia pingado o ponto no seu sexto Trabalho e dera ordem de levantar acampamento. Enquanto Meioameio e Pedrinho cuidavam disso, Emília remexia em sua canastrinha e o Visconde "elaborava" uma carta. — Para quem está escrevendo, Visconde? — perguntou a ex-boneca sem interromper a arrumação de seus guardados. — Para Dona Benta — respondeu o sabuguinho. Emília continuou a lidar com os seus bilongues ainda por uns vinte minutos — e o Visconde sempre trabalhando lá com a carta. De repente Emília desconfiou: — Que cartinha tão comprida é essa, Visconde? — e correu para ver, O Visconde tapou-a com a cartola. Emília deu um peteleco na cartola e agarrou a carta. Não era para Dona Benta, não. Era para a Climene... — Ah, malandro!... Escrevendo cartinha de amor, hein? — e pôs-se a ler enquanto o Visconde apanhava a cartola e a limpava com o cotovelo, muito vexado e desapontado. Emília leu:

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Idolatrada criança! Com o coração despedaçado de mágoas que tomo da pena para traçar estas linhas. Tua imagem não me sai da imaginação. Em tudo te vejo, Climeninha. Olho para os olhos de Hércules e o que vejo são os teus olhos, Climeninha. Olho para aquelas florestas e o que vejo são os teus cabelos, Climeninha. Minha vida virou uma tristeza. Não acho graça em nada — nem na Emília... Nesse ponto Emília interrompeu a leitura e encarou-o com olhinhos duros. — Nem em mim, hein? Julga que ando fazendo graças para os estafermos acharem?... — e botou-lhe a língua. Depois continuou a ler: Hércules não para, coitado. Tem agora de ir a Creta atrás dum touro hidrófobo. Hidrófobo quer dizer louco, isto é, louco propriamente não, porque "hidro" você bem sabe que é "água" no lindo idioma grego; e "phobos" é também outra linda palavra grega com significação de "horror". Hidrófobo: que tem horror à água. Mas lá no nosso mundo o povo ignorante chama "louco" ao que é "hidrófobo". Emília interrompeu a leitura para observar que nas cartas de amor o galã não deve dar lições de língua. — Pedantismo deste tamanho nunca vi, Senhor Visconde. A Climene é o que lá no mundo moderno chamamos uma "burrinha do campo". Bonita, sim, de rosto, mas crassa na ignorância... Crassa, crassa... Que é crasso, Visconde? Minervino disse ontem que Hércules é de uma "ignorância crassa". O Visconde explicou que a palavra "crasso" vem do latim "crassus" — espesso, grosso, pesado. Ignorância crassa quer dizer ignorância grossa, cascuda. Emília continuou:

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— Pois a Climene é assim: um mimo de nariz, mas crassa lá por dentro — e o Senhor Visconde com essas hidrofobias!... Nem quero ler o resto — tome a carta. E ponha um P. S. meu, assim: "Emília manda dizer que entrou por uma porta e saiu por outra." Só isso. — Por quê? — indagou o Visconde, desnorteado. — Que quer dizer com isso? — Nada. — Então por que me manda escrever? — Para equilibrar, Visconde. Conheço aquela menina; Juro que ela vai pular por cima de todas as suas hidrofobias e gostar do meu P. S. Para uma boba daquelas a gente só deve escrever bobagens. Outra coisa: como vai mandar essa carta? — Pelo pirlimpimpim. Esfrego uma isca de pó no nariz dela e... Emília arregalou os olhos, como fulminada por súbita ideia. Ficou uns instantes assim. Depois berrou, no maior entusiasmo: — Que maravilha!... Parece incrível que eu já não houvesse tido essa ideia. Assim como o pirlimpimpim transporta gente, também poderá transportar coisas. É só esfregar uma isca de pó no nariz das coisas!... E a cabeça de Emília começou a ferver com as novas possibilidades do transporte pirlimpimpinesco que ela via diante de si. Até o pomo... Até a pena de bronze... Sim... podia "expedi-los" para o sítio de Dona Benta por meio do pirlimpimpim e desse modo cessavam as suas preocupações ali na Grécia.

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— Visconde, Visconde! — gritou ela agarrando o sabuguinho e abraçando-o. — Sabe que inventou, sem querer, uma das maiores invenções modernas? Mande a carta da Climene já, e mande dentro uma pitadinha do pó para a resposta, com explicação sobre o modo de usar... E se nós recebermos a resposta da Climene, então fica provado que o Visconde de Sabugosa é o maior inventor de todos os tempos... O Visconde ainda não havia terminado a carta a Climene, mas teve de mandá-la assim mesmo, incompleta e sem jeito, tamanha era a ânsia de Emília em verificar a realidade da grande invenção. Hércules lá de longe gritou: — Estamos na hora. Toca a partir! — Não, não herói!... Impossível partirmos hoje. Estou empenhada numa experiência formidável. Corra aqui. Hércules aproximou-se de Emília. — Que há? — Há isto — e Emília explicou-lhe a ideia do Visconde, de remeter uma carta para Estinfale pelo processo do pirlimpimpim. Hércules não entendeu. — Como? — O pirlimpimpim age pelo nariz. A gente aspira o pó e pronto. O Visconde teve a ideia de esfregar uma isca de pirlimpimpim no nariz da carta. Se produzir efeito, se a carta fizer fiun e sumir no espaço e chegar direitinha ao endereço, então, então, então... — e Emília nem pôde concluir, de tão comovida que estava.

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— Então, quê? — indagou Hércules, com toda a sua burrice de herói nacional. Emília encarou-o com ar de dó. — Que crasso você é, Lelé!... Pois não percebe que se isso acontecer estará descoberto um meio maravilhoso para o transporte das coisas? Se a carta for direitinha e chegar às mãos de Climene, e se a resposta de Climene também nos vier direitinha... — e Emília nem pôde concluir. Pôs-se a chorar. Choro de emoção. Choro de Madame Curie quando viu brilhar no escuro a primeira partícula de radium. Hércules continuava com o seu ar pasmado. Emília danou. — Pois não vê, homem de Deus, que se o pirlimpimpim levar uma carta pode levar tudo mais, até um elefante? Hércules arregalou os olhos. Estava começando a compreender. Depois, aplicando o caso ao seu caso, disse: — Sim... É mesmo!... Podemos até trazer o touro de Creta com uma boa pitada de pó!... — Pois está claro! Podemos trazer o touro, podemos trazer até a Ilha de Creta inteira, com o labirinto e tudo. E isso será a maior das revoluções de todos os tempos! Só sinto uma coisa: que a ideia tenha sido do Visconde e não minha. Eu é que merecia ter tido essa ideia... Pedrinho aproximou-se, e ao saber da grande ideia também vibrou. — Meu Deus! — disse ele. — Se a coisa der certo, o mundo fica sendo nosso, Emília! Não haverá o que não possamos fazer. Meioameio, que estivera cuidando dos preparativos da viagem, aproximou-se e disse ao herói: — Pronto. Já arrumei tudo. Podemos partir.

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— A viagem está adiada — respondeu Hércules. — Temos de aguardar a experiência do Visconde. O sabuguinho tirou da cintura o canudo de pó e derramou na palma da mão uma isca. Depois, com muitas cautelas, esfregou o pirlimpimpim no nariz da cartinha, já galantemente sobrescritada: Excelentíssima senhorita Climene, gentil pastorinha residente em

ESTINFALE (na Arcádia)

Assim que a carta sentiu no nariz a ação do pó, espirrou o fiun e desapareceu. Todos bateram palmas, inclusive o herói. A coisa ia indo otimamente. Restava apenas que viesse a resposta — e com que ânsia esperaram a resposta da Climene! Pedrinho duvidou. — Não vem resposta nenhuma — disse ele. — Climene não sabe escrever; ela mesma me disse. São ignorantíssimos aqueles pastores da Arcádia. — Mas tem uma amiguinha que sabe — gritou Emília — a Cloé, filha do chefe dos pastores.

TUDO DEU CERTO! O resto do dia foi passando na maior inquietação. Emília não tirava os olhos do céu, na esperança de ver uma cartinha cair de súbito ali no acampamento. E havia apostas. "Aposto que ela vai cair aqui” — dizia um. "E eu aposto que ela não cai, fica pairante no ar como folha seca ao vento", — dizia outro. A ânsia era geral, e talvez mais em Hércules do que nos outros. Estava pensando no touro. Euristeu queria o touro vivo.

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Ora, era muito longe a tal Creta, separada do continente pelo mar, de modo que o problema de trazer um touro de Creta até Micenas, e ainda mais um touro louco, ocupava-lhe todos os pensamentos. Se a invençãozinha do Visconde resolvesse o problema, seria ouro sobre azul... Hércules chegou até a perder a fome. Quando à tarde o centaurinho assou os três carneiros do costume, o herói só comeu dois. Pela primeira vez sobrava comida. O carro de Apolo ia descambando no horizonte quando a resposta de Climene chegou. Chegou como uma folha seca que o vento traz. Chegou, deu várias voltas no ar e foi cair bem junto aos pés do Visconde. Todos se precipitaram. Quem a agarrou foi Emília. Coitadinha!... Estava tão trêmula de emoção que nem pôde abrir a carta. — Abra, Pedrinho. Pedrinho abriu. Devia ser a letra da Cloé. Amiguinho Visconde: Chegou sua carta! Como fiquei contente... Cloé a leu para mim. Sinto muito suas aflições. Cloé diz que a história da "hidrofobia" está certa. Aqui tudo na mesma. As aves do lago não voltaram. O assunto de todos ainda é o mesmo: as aves de penas de bronze. Cloé vai me ajudar a fazer como você diz: esfregar o pozinho no nariz desta resposta. Não contei a ninguém este caso — só a Cloé. De medo que me tomem como feiticeira. Adeus. Muitas lembranças ao Senhor Pedrinho e ao Senhor Hércules. Tenho saudades das galopadas que dei no lombo de Meioameio.

Sua criada obrigada Climene Que delírio!... Emília pulava, dançava, dizia palavras sem sentido. O Visconde beijava a cartinha e apertava-a de encontro ao coração. Pedrinho sonhava mil sonhos cada qual mais louco, e Hércules sorria: estava resolvido o problema do transporte do touro louco de Creta até Micenas! Só Meioameio não deu demonstrações de entusiasmo. Sua inteligência não alcançava as tremendas

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consequências que da invenção do Visconde poderiam advir para o mundo. Hércules, já de coração sossegado, foi comer o último carneiro, completando assim a ração normal de três. Em seguida deu ordem de partida. A viagem a Creta era longa. Não convinha perderem mais tempo. Emília propôs que em vez de partirem a pé, como das outras vezes, partissem “a pó”. — Sim, todos aspiramos uma pitada de pirlimpimpim e num fiun estamos em Creta. Hércules tonteou com a ideia. Mas seria o pó suficientemente forte para levá-lo a ele, que pesava dez arrobas? Pedrinho contou que até tia Nastácia já tinha ido à lua "a pó". Disse que para o pirlimpimpim um peso como do herói “era canja." Mesmo assim Hércules estava irresoluto. Quem o forçou a decidir-se foi a Emília. — Nada mais fácil do que experimentar, Lelé. Se o pó não puder com você, nós vamos "a pó" e você vai "a pé". Experimentemos. Hércules concordou. Pedrinho tirou da cintura o seu canudo e pôs-se a calcular as doses e a distribuir as pitadas. Para Hércules deu quatro. Depois ensinou-lhe como fazer. — Todos temos de aspirar o pirlimpimpim ao mesmo tempo, quando eu cantar três. Vem o fiun e pronto. — E se vocês forem e eu ficar? — ainda objetou o herói. — Nesse caso, voltamos e seguiremos todos a pé.

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Hércules aceitou essa solução. Pedrinho disse: "Pois então aprontem-se que vou cantar os números" — e começou: "Um... Dois... e três!" Na voz de três, todos aspiraram o pó e o fiun soou violento.

........................................ O primeiro a acordar em Creta foi Pedrinho. Abriu os olhos, tonto. Viu todos ali juntos, mas ainda desacordados. O segundo que abriu os olhos foi o Visconde. Os outros continuavam em estado de "choque", como dizia o sabugo. — Será que dei pó demais? — refletiu Pedrinho e foi sacudir Emília. A ex-boneca arregalou os olhos, tontinha, tontinha. Depois Meioameio despertou. Só faltava Hércules. O tremendo herói estava aplastado no chão, como morto. Os picapauzinhos o rodearam. Deram-lhe tapas no peito. De um rio perto trouxe Meioameio água nas mãos e jogou-lhe na cara. Emília espetou-o em vários pontos com um espinho. Nada. Nada de Hércules acordar! — Será que lhe dei dose forte demais? — murmurou Pedrinho já meio inquieto. — Hércules nunca aspirou este pó. Quem sabe lhe fez mal ao coração e está morto? O Visconde encostou o ouvido ao peito de Hércules para auscultá-lo. Sentiu o bater do coração... — Vivinho está — gritou o sabugo, — mas o seu estado de choque é dos tremendos. Tudo com Hércules é enorme: o seu apetite, a sua força física, os seus sonos... Temos de esperar. E esperaram. Mais de duas horas passaram ali ao lado do herói, à espera de que ele voltasse a si — e nada de Hércules voltar a si. A situação ia se tornando séria. Pedrinho arrependeu-se do que tinha

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feito. E se Hércules morresse? Nêmesis era capaz de vir justar contas com eles... Vendo as coisas nesse pé, Emília tomou uma resolução extrema. Ajoelhou-se, de mãos postas, e pediu com todo o fervor: "Palas, deusa linda, valei-nos nesta aflição! Mandai-nos socorro pelo vosso diligente mensageiro Minervino!" O milagre operou-se: Minervino não tardou a aparecer! E apareceu já ciente de tudo e com o remédio na mão. Curvando-se sobre o herói adormecido, derramou-lhe na boca entreaberta várias gotas de filtro mágico. Foi a conta. O herói abriu um olho. Depois abriu o outro. Depois suspirou e por fim sentou-se. — Onde estou eu? — foram suas primeiras palavras. — Talvez na Ilha de Creta — respondeu Pedrinho. Certeza não tenho. Não há por aqui letreiros. Minervino confirmou a suposição. Estavam realmente na Ilha de Creta. E enquanto Hércules voltava totalmente a si, contou que lá do Olimpo a deusa Palas havia acompanhado tudo com o maior interesse, e vendo Hércules por tanto tempo sem sentidos, lhe tinha dado ordem de vir socorrê-lo. — Estes atletas — disse Minervino têm em geral o coração hipertrofiado, de modo que drogas que para uma criatura do comum não fazem mal, para eles são muitas vezes venenos. Vocês agiram com grande imprudência. Desse modo ainda acabam liquidando com o grande herói nacional da Grécia... — Gotas do que, essas que lhe pingou na boca? De elixir paregórico? — quis saber o Visconde. — Os deuses do Olimpo não revelam aos mortais o segredo de seus filtros. Palas Atena deu-me este frasco sem dizer o que continha.

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Emília tirou-lhe da mão o frasco para ver se trazia rótulo. Depois cheirou. Ficou na mesma. Os filtros de Palas eram realmente impenetráveis para as criaturas humanas. Hércules já estava completamente restabelecido, e ao saber do longo desmaio e da intervenção da deusa alegrou-se. Evidentemente, Hera tentara destruí-lo, mas fora obstada pela sua protetora — e erguendo os olhos para o céu agradeceu com um olhar a preciosa intervenção de Palas. Depois: — Com que então é isto aqui a Ilha de Creta? — Sim. Estamos em Creta — respondeu Minervino. — E o touro? — Ainda não mugiu — disse Emília mas não tarda. Sinto uma aura de loucura no ar. Nem bem falou, e um mugido horrendo se fez ouvir ao longe. Hércules pôs-se em pé, já de clava em punho. Seus olhos chamejaram. Seus músculos se retesaram. Mas Pedrinho advertiu-o de que tinha de levar o touro vivo. Nada, pois, de clava nem flechas. — Sim — disse Hércules, recordando-se. — Euristeu exige que lhe leve o touro vivo... Puseram-se a planejar a captura do touro. Pedrinho foi de opinião que o melhor meio era laçá-lo, como lá no mundo moderno fazem os vaqueiros do sertão. Hércules não tinha prática de laço. Teve de receber lições do menino.

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— Mas antes de mais nada — disse precisamos trançar um laço — e explicou como se fazem os laços. "Toma-se um couro de boi e com uma faca bem afiada vai-se cortando nele um tento sem fim..." — Que quer dizer tento sem fim? indagou Hércules. — Tento sem fim é uma tira que a gente corta em forma de espiral, como quando descascamos laranja. Fica uma tira compridíssima. E precisamos de quatro couros para obter quatro tentos do mesmo tamanho. Depois é só trançá-los. — Trançar de três eu sei — gritou Emília. — De quatro, não. Pedrinho sabia trançar de quatro, e se Meioameio lhe obtivesse quatro couros de boi ele se encarregaria de tudo: de cortar os tentos e trançá-los. O touro mugiu outra vez ao longe. Hércules, nervoso, apertou novamente o punho da clava. Pedrinho pediu a Meioameio que saísse de galope e só voltasse com quatro couros de boi; e explicou: — Couros crus. Curtidos não servem. E couros sem buracos de berne. Minervino ignorava o que era berne, porque na Grécia não havia semelhante praga — e ficaram a conversar sobre bernes e carrapatos enquanto o centaurinho partia a galope por aqueles campos afora. A Ilha de Creta era "bovinífera", como disse o Visconde, isto é, abundante em bois. Tudo ali era boi. O Minotauro era um boi-homem ou um homem-boi. E para Emília até o Rei Minos tinha jeito de ser um verdadeiro "boi real".

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A PEGA DO TOURO Minervino contou a história desse rei. — Era filho de Europa — disse ele — e sobrinho de Cadmo... — O que inventou o alfabeto? — Sim, Cadmo goza a fama de ter sido o criador do alfabeto. Ele e Europa eram filhos de Agenor, um rei da Fenícia. Certo dia em que a linda Europa passeava com suas amigas pelas praias da Fenícia, eis que de súbito aparece um touro de maravilhosa beleza que vinha raptá-la. E de fato a raptou. Esse touro era o próprio Zeus metamorfoseado em touro. Emília cochichou para Hércules que "metamorfose" era o mesmo que "virar" e citou um caso: "Eu, por exemplo, me metamorfoseei, da boneca de pano que era na gentinha que sou. Minervino prosseguiu: — O belo touro arrebata Europa lá na Fenícia e foge com ela para aqui. O Rei Minos não passa do produto desse rapto. Minos, Minos!... Um grande rei. É o legislador da ilha, foi quem a livrou dos piratas saqueadores e foi o aprisionador do Minotauro. Quando esse monstro surgiu e pôs-se a devastar a ilha, Minos incumbiu Dédalo da construção do famoso labirinto — e prendeu o Minotauro lá dentro. Minervino ia contar mais coisas de Minos, quando Meioameio apareceu com os quatro couros encomendados. Jogou-os ao chão perto de Pedrinho. "Pronto!" Pedrinho examinou-os e achou-os ótimos. "Nem um buraquinho de berne. Vão dar uns tentos ótimos. E faca? Sem faca bem afiada, nem Hércules desdobra um couro em tentos."

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— Preciso de uma faca! — berrou o menino, e todos ficaram a olhar uns para os outros. Quem salvou a situação foi a Emília. —Faca não tenho em minha canastra, mas tenho aquela perna de tesoura que dei para o Sr. La Fontaine e ele felizmente não aceitou. Bem amoladinha, substitui qualquer faca. Veja minha perna de tesoura aí na canastra, Visconde! Pedrinho, que era mestre em amolar, descobriu por ali uma laje bem lisa, na qual deixou a perna de tesoura afiada como navalha. Hércules olhava, olhava. A diligência daquele menino o enchia de satisfação. Depois começou Pedrinho a "desdobrar os couros em tentos." Suou, coitado, e teve de ser ajudado por Meioameio. Horas depois estavam prontos quatro tentos compridíssimos. Restava trançá-los — e Pedrinho "trançou de quatro" à vista de todos, para que todos aprendessem. Hércules olhava, olhava. Meioameio vinha revelando muita habilidade. Aprendia com rapidez incrível e desse modo confirmava aquelas ideias de Hércules sobre a educação. O dia inteiro passaram naquilo e também metade do dia seguinte. E afinal ficou pronto o laço, um formidável laço, porque Pedrinho cortara os tentos com um centímetro de largura. — Experimente, Hércules. Veja se isto aguenta a pega de um touro. Hércules experimentou e admirou-se da resistência daquela "corda de couro". Estavam nisso quando sobreveio uma agitação. Gritaria ao longe. Passou um homem a correr. E depois mulheres e crianças, todas com ar espavorido.

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Pedrinho correu a informar-se do que havia. — O touro louco! O touro louco!... — era o que toda gente gritava, sem interromper a fuga. "O touro louco está devastando a nossa aldeia, destruindo nossas casas..." — Por que o não matam? — indagou Pedrinho. — Impossível!... — respondeu um dos homens. — Esse touro parece um raio. Investe como um corisco. — Sabe que Héracles está aqui e veio especialmente para livrar a ilha? Na voz de Héracles, o homem parou olhou para o menino, muito espantado. Não havia entre os helenos quem não conhecesse o grande herói — e se ele estava em Creta, razão já não havia para fugas. E o homem gritou para os outros, e num instante uma multidão inteira se reuniu em redor de Pedrinho. "Diz este menino que Héracles está aqui, vindo para pegar o touro." "Héracles? O filho de Zeus e Alcmena? Onde está ele?" Pedrinho levou aquela multidão à presença do herói, e todos se assombraram. As caras iluminaram-se como lampiões que se acendem. Héracles ali!... Estavam salvos!... Pedrinho tomou a palavra e disse: — Povos de Creta! As vossas desgraças chegaram ao fim. O grande Hércules veio do continente com fim expresso de agarrar vivo esse touro que assola estas paragens. Já trançamos o laço de couro cru com que iremos laçá-lo. Interrompei a vossa fuga. Amanhã estareis reconstruindo os vossos lares. Bem sabeis que Héracles é infalível. Quem destruiu o leão da Nemeia? Ele. Quem matou a hidra de Lerna? Ele. Quem caçou o javali do Erimanto? Ele. Quem apanhou a corça de pés de bronze? Ele. Quem limpou as cavalariças de Augias? Ele. Quem afugentou do Estinfale aquelas aves antropófagas? Ele.

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Quem vai libertar a Ilha de Creta das devastações do touro louco? Ele... A multidão rompeu em aplausos delirantes. Salvos! Salvos, afinal!... Se Héracles estava ali, então nada mais tinham a temer... E as mulheres choravam e os homens dançavam num delírio de contentamento. Súbito, no meio daquela festa, um mugido pavoroso. O monstro vinha vindo. Estabeleceu-se o pânico. As mulheres debandaram com as crianças e muitos homens fizeram o mesmo. Só os mais inteligentes ficaram ali junto de Héracles, pois estariam mil vezes mais seguros na companhia do herói invencível do que bobamente a correrem pelos campos. Emília trepou a uma árvore. Seus olhinhos telescópicos faziam dela a mais preciosa das espias. E lá de cima "irradiava" informações. — Estou vendo só a poeira do touro, bem longe ainda, mas nesta direção. Sim... É ele mesmo... Começo a distinguir a ponta dos chifres e agora toda a cabeça... O resto do corpo some-se dentro da nuvem de pó... Vem vindo do nosso lado... Quando encontra uma casinha, investe contra ela e com uma chifrada manda-a para o beleléu... Pedrinho já havia entregue a Hércules o laço e dava-lhe as últimas instruções sobre o melhor modo de manejar a laçada. "Você dá várias voltas no ar, por cima da cabeça, e só arremessa quando o touro chegar a uns trinta passos de distância. A laçada tem que cair certinha sobre os chifres, isto é, tem que abarcar os chifres. E então você puxa com toda força — cerra a laçada. O resto — como ensinei: Você dá uma volta do laço num tronco de árvore e segura firme a ponta — e vai puxando, vai puxando, até forçar o touro a encostar os chifres no tronco.” Pedrinho era mestre naquilo. Não faltava nunca aos rodeios anuais das fazendas vizinhas do sítio de Dona Benta e, escondido da vovó

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medrosa, aprendera a laçar garrotes, já bem taludos e até potros de um ano. Hércules, porém, nunca havia laçado coisa nenhuma, de modo que se sentia bastante atrapalhado e com medo de falhar. Que fiasco, se ali diante daquele povo ele erra o golpe e o touro escapa! Emília continuava a "espicar", e agora "espicava" como um speaker de rádio quando a bola vai se aproximando do gol. — Vem vindo... Vejo-lhe o corpo inteiro... Que touro, meu Deus!... Bate longe o Beethoven do Coronel Teodorico... Tem pelo de zebu Guzerate... Encontrou um cupim... O cupim voou pelos ares... Chegou!... É hora, Lelé!... Drible e jogue o laço. Hércules já estava girando no ar a laçada, à espera de que Pedrinho desse o sinal. Pedrinho deu o sinal: — Agora!... Hércules arremessou o laço, mas errou... A laçada colheu o touro pelas ancas, indo pegar um toco de pau que havia por ali. Sobreveio o pânico. Toda aquela gente debandou. Uns treparam na árvore de Emília. Outros sumiram-se no galope. Hércules largou do laço e apanhou a clava. Ia receber o touro em luta peito a peito. Ia fazer asneira — estragar tudo. Pedrinho interveio a tempo. — Não, Hércules! Nada de clavas. Eu laço esse bicho — e veloz como um raio tomou o laço, deu a laçada e pôs-se a girá-la no ar. Na fúria em que vinha, o touro varou por ali sem alcançar o herói, que se desviara agilmente, como fazem os toureiros na arena. O touro enganado e mais furioso ainda fez meia-volta e investiu novamente, mas dessa vez o arremesso da laçada colheu-o pelos chifres. Estava seguro. Pedrinho jogou a ponta do laço para Hércules e voou para cima da árvore de Emília. Hércules deu uma volta no tronco e fez como Pedrinho lhe havia ensinado. Desviava-se das marradas do touro e ia estirando o laço, de modo que o touro fosse ficando cada vez mais peado, mais próximo do tronco. E

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assim, encurta que encurta, breve o touro se viu com a testa colada ao tronco, isto é, com o tronco entalado entre seus chifres. — Hurra! Hurra!... — berrou Emília. — Viva Pedrinho! Viva Hércules!... O touro bufava, babava, urrava, fazia os mais tremendos esforços para arrancar-se dali — inutilmente. O laço de quatro tentos que Pedrinho trançara era dos que touro nenhum rebenta, e estava aguentando firme. O touro, afinal, exausto do esforço, aquietou-se. — Já não tuge nem muge — berrou Emília. — Hurra! Hurra!... Os cretenses que haviam fugido começaram a voltar, e logo ali em torno da árvore grande multidão se formou. Uns queriam linchar o touro. Outros diziam-lhe os mais feios nomes. Hércules interpôs-se. — Não. Respeitemos o vencido. Tenho ordens para levá-lo a Micenas. Uma dificuldade surgiu. Os que estavam empencados na árvore tinham medo de descer com aquele touro lá embaixo. Mas Emília deu o exemplo: atirou-se para os braços de Hércules. Os outros fizeram o mesmo. A alegria era imensa. Todos falavam. Cada qual dizia uma asneira maior. Hércules devia estar vexado, porque afinal de contas o herói da festa fora Pedrinho, não ele. Mas seu coração era generoso demais para dar abrigo a sentimentos inferiores. Em vez de sentir ciúmes, pegou o pequeno nos braços e disse: — Eu queria ter um filho como você, Pedrinho! — e beijou-o. Emília não se conteve: chorou de emoção; e até o Visconde, que era milho fervido, enxugou sua lagrimazinha...

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O RASTREAMENTO Depois que o povo se dispersou, Hércules disse: — Muito bem. A primeira parte deste Trabalho está concluída. Temos agora cuidar do estômago e descansar... Amanhã partiremos para Micenas. Meioameio saiu no galope do costume para prear os três carneiros, enquanto Emília ficou de cochichos com Minervino. Pedia-lhe qualquer coisa. Que coisa? O frasquinho vazio do filtro de Palas. Para quê? Para enchê-lo com a baba do touro louco. Seu museu lá no sítio ia enriquecer-se tremendamente com as maravilhas que lhe estavam a render os Trabalhos de Hércules. Depois do jantar Pedrinho lembrou que o touro também tinha estômago. Era preciso alimentá-lo — e Meioameio foi arrancar uma grande braçada de capim, que jogou ao pé da árvore. Hércules deu uma folgazinha no laço para que o touro vencido pudesse comer. Que noite foi aquela, passada sob as estrelas da ilha do Rei Minos, empanturrados de carneiro assado e glória! Não houve sonhos. Só sono e dos mais pesados. Sono tão pesado que ninguém percebeu nada do que se passou. — Passou-se então qualquer coisa durante a noite? — Sim. Quando lá no Olimpo a implacável Juno viu que o touro de Creta estava vencido e Hércules continuava incólume, a cólera lhe estufou o papo. E chamando um ratinho mandou-o que corresse até lá, roesse o laço e soltasse o touro. O ratinho obedeceu, de modo que pela manhã, quando Hércules acordou... — Que é do touro? Não havia touro nenhum no palanque...

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Foi o maior desapontamento jamais ocorrido na Grécia. A vingativa Juno vencera. Todo o esforço do herói e de Pedrinho estava perdido. Tinham de capturar o monstro novamente. Mas para onde se dirigira o touro? Pedrinho sabia "rastrear", isto é, seguir o rastro dos animais. Aprendera essa arte sutil com um velho campeiro do Coronel Teodorico. Rastrear em chão de terra desnuda é fácil, porque os rastros ficam impressos na lama ou pó — mas ali, naqueles campos revestidos de capim mimoso? Só mesmo um mestre rastreador e Pedrinho de novo assombrou o herói com a sua habilidade. Pelo acamado do capim e outros sinais que só os rastreadores percebem, pôde ir acompanhando o rumo levado pelo touro em fuga. Trabalho de paciência e demorado, mas feliz. Pedrinho seguia na frente, rastreando, e os outros atrás. E assim foram indo, indo... Súbito, um encontro imprevisto: Teseu, o grande herói! O encontro de Teseu e Hércules lembrou a Pedrinho o encontro do explorador Stanley com o Dr. Livingstone, lá no centro da África. — Teseu da Ática? — disse Hércules estendendo a mão para Teseu. — Héracles da Hélade? — disse Teseu, apertando a mão de Hércules. Os dois heróis abraçaram-se e puseram-se a conversar. Hércules contou que viera à ilha por causa do famoso touro louco, e Teseu contou que estava ali para dar cabo do Minotauro. — Do Minotauro? — exclamou Pedrinho com espanto. — Pois esse monstro ainda vive? — Sim — respondeu o herói da Ática, e aqui estou para libertar esta ilha de tão horrendo monstro. Não tem conta o número de vítimas que já fez. O Rei Minos houve por bem encarregar-me da missão. Mas quem é este menino, Héracles?

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Hércules fez as apresentações e contou da maravilhosa ação do seu "oficial de gabinete" Pedro Encerrabodes de Oliveira na captura do touro de Creta, o qual, infelizmente, graças ao camundongo de Hera, tinha conseguido libertar-se e fugir. Depois apresentou Emília de Rabicó, e o Visconde de Sabugosa, o seu "escudeiro." Teseu achou graça. — E aquele centaurinho que lá vem com carneiros ao ombro? Hércules contou toda a história da captura do jovem centauro e dos maravilhosos progressos que vinha fazendo. Teseu estava simplesmente tonto com aquelas novidades; chegou a abrir a boca ao saber da aventura dos picapauzinhos com o Minotauro. — Com que então viram vocês o Minotauro? Conseguiram entrar no labirinto e sair? — Sim — respondeu Emília e desfiou toda a história, contou o truque dos carretéis de linha que usou, isto é, que foi desenrolando à medida que entrava, de modo a poderem guiar-se na saída. Teseu não sabia nada de carretéis. Emília correu à sua famosa canastra e trouxe um. — É isto. Linha número 50, J. P. Coat. Muito boa para pregar botões. Mede 200 jardas, ou 138 metros na medida decimal que usamos no mundo moderno. Tenho três carretéis. Posso ceder um... Teseu aceitou. Que dia aquele! Os picapauzinhos não cessavam de admirar o herói da Ática. Embora não tivesse a imponência de Hércules, Teseu revelava maior beleza. E que inteligência!...

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Minervino desfiou-lhe a história, enquanto os dois heróis devoravam os carneiros. — Ah, meus amiguinhos, vocês tiveram hoje a honra de travar conhecimento com o herói que quase eclipsou a glória de Héracles. Sua origem é real, pois é filho de Egeu, rei de Mégara. Foi Teseu quem conquistou a Ática — e como prêmio teve a cidade de Atenas, a glória da Hélade. Suas aventuras heroicas quase que se equiparam às de Hércules. A primeira foi a luta contra Corineto, que matava os viajantes a golpes de clava. Corineto quer dizer "o que combate com clava." Teseu matou-o e apossou-se de sua terrível clava —nunca mais abandonando-a. A Ática era vítima de malfeitores famosos, como Esciron, que obrigava os viandantes a lavar— lhe os pés no alto dum penedo e depois os arrojava ao mar, onde eram comidos por uma tartaruga monstruosa; como Sinos, que atava os viandantes a uma árvore encurvada até o chão e depois, largando-a, os arremessava longe, despedaçando-os; como Procusto, que "ajustava" as vítimas ao tamanho do seu leito, ora cortando um pedaço das pernas, ora esticando-as com a maior violência; como Cercion, que obrigava todo mundo a lutar com ele e depois matava os vencidos. A todos Teseu destruiu, com aplicação das mesmas torturas que esses homens perversos tinham inventado. — Que peste o tal Procusto! — observou Pedrinho. — Já ouvi referências ao "leito de Procusto", mas não sabia o que era. — E que mais fez Teseu? — quis saber Emília. — Ah, não tem conta! São infinitas as proezas de Teseu, e sempre norteadas para o bem. Ele é o amigo das liberdades, o castigador dos tiranos e monstros. Foi quem deu cabo de Fea, a javalina de Cromion, mãe daquele javali do Erimanto, vencido por Héracles. E até sei de coisas que ainda não aconteceram, mas vão acontecer. — Como sabe? — perguntou Emília.

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— Porque frequento o Olimpo, e lá ouço o que os deuses conversam sobre as coisas do porvir. Este touro de Creta, por exemplo. O que vai acontecer está escrito nas páginas do futuro. — Está predeterminado — disse cientificamente o Visconde. Minervino riu-se da "aranha-de-cartola" e continuou: — Héracles levará vivo a Euristeu este touro de Creta, mas Euristeu o soltará novamente. E o touro louco irá numa corrida furiosa até aos arredores de Maratona, e assolará aquela região. O Rei Egeu mandará contra ele o herói Androgeu, futuro vencedor de todos os concursos de várias Panateneias — e esse herói sucumbirá na empresa. Teseu então atrever-se-á a ir atacar o touro, e o agarrará a unha, e o levará para Atenas, onde o passeará pela cidade; depois o sacrificará ao Apolo de Delfos. Mas isto ainda são coisas do futuro, como também a luta de Teseu contra as amazonas e tantas e tantas coisas mais. Agora veio ele a esta ilha para dar cabo do Minotauro. — E vai vencer o Minotauro? — Sim... Terminada a refeição, os dois grandes heróis se despediram. Teseu lá se foi com o carretel de linha nº 50 na mão e Hércules e Pedrinho continuaram no rastreamento do touro. Vários dias se passaram assim, sem que o menino perdesse a pista do touro de Creta... E foram andando, andando até que deram com a entrada do famoso labirinto. O chão ali estava desnudo, de modo que os rastos do touro se misturavam com rasto de gente e outros animais. Pedrinho desnorteou. Não podia garantir que o touro houvesse entrado.

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— Pode ser que sim, pode ser que não — disse ele para Hércules. O melhor é entrarmos para investigar. O herói vacilou. Entrar no labirinto era fácil, mas como sair? Aquele labirinto dava lá dentro mil voltas, e fora construído justamente para que quem entrasse não pudesse mais sair. Emília sossegou o herói. — Não tenha medo, Lelé. Para nós esse labirinto é "canja". Já estivemos lá dentro, fomos até onde mora o Minotauro e depois saímos com a maior facilidade. — Como? — Por meio da linha dos meus carretéis. Tenho três na canastra. — Mas não os deu ao herói da Ática? — Dei um. Ainda restam dois. Dois bastam...

DÉDALO A entrada no labirinto de Creta processou-se exatamente como da primeira vez, quando lá estiveram em procura de tia Nastácia. Emília seguiu atrás de todos, desenrolando a linha. Por que atrás? Porque se seguisse na frente, os outros podiam embaraçar a linha nos pés e estava tudo perdido. Emília era muito previdente. Foram entrando. Eram corredores e mais corredores, uma coisa sem fim. Em certo ponto a linha do segundo carretel acabou. E agora? Pedrinho resolveu o caso. Fez fogo, obteve carvão e mandou que o Visconde viesse de carvãozinho em punho riscando o chão. Hércules não cessava de admirar aquele menino. Que engenho! Que habilidade para tudo! Tão simples a ideia do carvão...

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Afinal chegaram ao fim, exatamente lá onde da outra vez os picapauzinhos haviam encontrado o Minotauro gordíssimo de tanto comer os bolos de tia Nastácia. Mas, em vez de Minotauro o que viram lá foi um homem... Hércules abordou-o. — Quem és tu? Espero encontrar o Minotauro e dou com um homem... — Sou Dédalo — respondeu o interpelado. Tive um atrito com o Rei Minos e fui encerrado aqui... — Dédalo? — repetiu Hércules com arde espanto. — Dédalo, o mesmo construtor deste labirinto? — Exatamente. Estou preso na arapuca por mim próprio construída... O espanto foi geral. Dédalo preso na armadilha que ele mesmo concebera! Que coisa prodigiosa!... O Visconde lembrou o caso do Doutor Guillotin, aquele francês que inventou a guilhotina e afinal acabou guilhotinado; e também veio com o célebre caso do touro de bronze de Perilo. Esse Perilo meteu-se um dia a mau, e concebeu a ideia de um novo suplício: um touro de bronze oco. Punha-se lá dentro a vítima e acendia-se um grande fogo embaixo. Ao sentir-se queimado vivo, o supliciado rompia aos urros — e a assistência tinha a impressão de que era o touro que estava urrando. — Que bisca! — exclamou Pedrinho. — Monstro mau assim nunca vi. — Pois esse malvado recebeu o castigo que merecia — continuou o Visconde.

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— Como? — Perilo construiu o touro oco e muito lampeiramente foi oferecê-lo ao tirano Fálaris. O tal Fálaris, que era outra peste, exclamou: "Ótimo! Façamos a experiência", e mandou acender fogo debaixo do touro e meter lá dentro ao próprio Perilo. — Bem feito — berrou Emília. — Eu fazia exatissimamente a mesma coisa. Dédalo suspirou. — Pois foi o que a mim me aconteceu. Construí por ordem de Minos este labirinto e agora cá me vejo preso, também por ordem de Minos... — Mas teve uma grande sorte — disse Pedrinho. — Vamos salvá-lo. Basta que nos acompanhe, que logo estará fora daqui. Dédalo riu-se com grande tristeza. — Impossível. Eu, que sou o construtor deste labirinto, sei que quem nele entra não sai mais... — Bobagem, Dédalo. Aqui estamos nós que já estivemos cá e saímos. E agora entramos de novo e vamos de novo sair — e explicou o truque da linha inventado pela Emília. Dédalo abriu a boca. Depois pediram-lhe notícias do Minotauro. — Já não existe. Esteve cá ontem um herói tremendo, que se atracou com o monstro e matou-o. — Teseu!... — gritou Pedrinho. — E onde anda ele? Já saiu?...

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— Ah, não! Nem sairá. Deve andar perdido aí por esses corredores sem fim. — Pois havemos de salvá-lo também, disse Pedrinho. E o touro de Creta? Dédalo não entendeu. Pedrinho explicou: — O touro louco, sim. Nós o estamos perseguindo. Já o pegamos uma vez a laço e o amarramos a uma árvore. Mas Juno mandou de noite um ratinho roer o laço — e o boi fugiu. Estamos agora atrás dele. Viemos seguindo os rastos até à entrada do labirinto. Talvez haja penetrado aqui, não sei. Dédalo foi de opinião que não havia entrado. — Asseguro que não entrou. Depois da morte do Minotauro, o silêncio tem sido completo. Se houvesse entrado eu teria ouvido seus urros. — E o cadáver do Minotauro? Onde está? Dédalo levou-os ao ponto onde residia o Minotauro. — Ei-lo!... Sim. Lá estava o Minotauro estendido por terra, morto, mortíssimo. — De que modo conseguiu Teseu vencê-lo? — Em luta corpo a corpo. Atracou-se com ele e estrangulou-o. Que herói tremendo é Teseu!... Longamente estiveram ali a examinar o Minotauro morto.

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— Sim — observou Emília. — É o mesmo que vimos daquela vez, mas muito mais magro. Depois que raptamos tia Nastácia, ficou sem quitutes... Hércules acertou com Pedrinho um plano para salvar Teseu, e não foi difícil encontrá-lo. Dédalo tinha na cabeça todo o plano daquela construção, de modo que fez várias deduções, como as do Sherlock Holmes, e depois de meia hora de pesquisa deu com o herói da Ática. Que festa foi o encontro! O pobre Teseu já estava desanimado e exausto de tanto andar por aqueles malditos corredores despistantes, mas quanto mais andava mais emaranhado ficava. Tudo correu bem. Uma hora depois estavam todos fora do labirinto. Facílima fora a saída, graças ao risco de carvão do Visconde e ao fio de linha dos dois carretéis da Emília. Ao ver-se de novo restituído à luz do dia, Teseu levantou os olhos para o céu e fez um agradecimento a Palas, a deusa de Atenas. Depois abraçou Hércules; também abraçou o Pedrinho e o Visconde e deu um beijo na Emília. — Obrigado, amigos! Graças a vocês, acabo de ressuscitar. Sim, considero o meu caso um verdadeiro caso de ressurreição, pois já me considerava absolutamente morto... — Por que não usou o carretel que eu dei, herói? — perguntou Emília. — Usei-o, mas breve a linha se acabou. Duzentas jardas é pouco para este infernal labirinto. Dédalo disse que só uma linha de 800 metros poderia ir da entrada até ao ponto final. Com um carretel só, de modo nenhum Teseu poderia arranjar-se.

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As despedidas de Teseu e Dédalo foram comoventes. Cada um seguiu num rumo. Depois que se afastaram, Hércules olhou para Pedrinho. — E agora, oficial? Perdemos a pista do touro... Pedrinho voltou a examinar o chão. Súbito, deu um grito. — Achei de novo o rasto! Ele chegou até aqui mas não entrou — e fez ver a Hércules o verdadeiro caminho tomado pelo touro. — Pois continuemos a nossa perseguição — disse o herói. O carro de Apolo já ia descambando e o estômago de Hércules já estava a reclamar carneiros. O centaurinho partiu no galope para a preia do costume, enquanto os outros se sentavam margem dum riacho. — Que dia cheio! — observou Pedrinho. — Quanta coisa!... — E que lindo herói é Teseu! — disse Emília. — Que ar inteligente... Está me lembrando aquele atleta que Narizinho viu em Atenas e tanto a encantou. Hércules não deixou de sentir uma ponta de ciúme diante daquele entusiasmo de Emília pela beleza do herói ático. Mas lá no íntimo deu-lhe razão. Os deuses fizeram-no, a ele, Hércules, musculoso demais, excessivo em tudo. Isso lhe assegurava a posição de Herói Nacional da Grécia — o maior de todos, o invencível. Mas privava-o da beleza sem par do herói de Atenas...

O HERÓI-MENINO A perseguição ao touro louco consumiu mais dois dias. No terceiro, pela manhã, o encontro dum viandante veio confirmar as deduções

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de Pedrinho. Aquele homem ouvira um urro estranho em certa direção — e apontou: — Lá naquele rumo. Suponho que se ocultou no capão de mato que se vê daqui. Encaminharam-se todos para o bosque. Hércules à frente. Logo depois ouviram um urro. — Ele! — exclamou Pedrinho. — Aquela voz é minha conhecida... Hércules pediu o laço — mas que é do laço? O centaurinho esquecera-o na entrada do labirinto. Enquanto Meioameio ia no galope em busca do laço. Hércules, de clava em punho, foi avançando cautelosamente. Súbito, novo berro mais próximo — e o touro apareceu. Apareceu na fímbria do bosque. O mesmo olhar chispante, os mesmos bufos. Escavava o chão com fúria. Ao dar com o herói, urrou de novo e investiu em sua direção com ímpeto de bomba voadora. Hércules, de pé firme, esperou-o de clava erguida. Mas Pedrinho advertiu-o novamente: — Nada de clava, Hércules! Não se esqueça de que tem de o pegar vivo. O herói lembrou-se das ordens de Euristeu e largou a clava. Ia agarrar o touro a unha. O touro aproximou-se com uma velocidade incrível e investiu. Hércules o esperou firme como um rochedo. Ah, que cena aquela!... Quando a marrada do touro colheu o herói pelo peito, um som balofo quebrou o silêncio reinante — bá! Mas o touro havia encontrado um contendor digno de si. Sua marrada foi como um golpe de martelo-pilão de encontro a um bloco de aço inamolgável. O touro estacou. Os braços do herói o haviam cingido pelos chifres — e Pedrinho sentiu um frêmito de entusiasmo diante daquela

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verdadeira escultura viva: os dois gigantes imobilizados, como se subitamente transfeitos em pedra. Nenhum dos dois se movia uma linha. Imóveis, imobilíssimos, como que congelados... Os picapauzinhos deliravam. Aquela cena valia todas. O tremendo esforço de Hércules neutralizava o tremendo esforço do touro. Nenhum dos dois podia mover-se, mudar de posição. E assim iriam ficar até ao regresso de Meioameio. Um galope. Era Meioameio que vinha vindo. Ao ver de longe o herói atracado com o touro, seu galope redobrou. — Pronto! — disse ao chegar, jogando o rolo do laço para Pedrinho. O pequeno herói do Picapau Amarelo tomou-o, fez a laçada e correu para o touro. Mas como podia colher na laçada os chifres do touro, se os chifres do touro estavam colocados aos flancos de Hércules? Emília gritou: — Lace-o pelo pé!... Era uma sugestão de bobinha. Uma laçada pelo pé escapa com o primeiro tranco de um boi. Pedrinho ia laçá-lo pelo pescoço. Isso era contra todas as regras dos rodeios, mas o único jeito naquele momento — e, desfazendo a laçada, lançou a argola por cima do cangote do touro. Restava agora alcançar a argola caída no chão do outro lado e refazer a laçada. Mas como puxar a argola caída do outro lado? Se houvesse por ali uma vara de gancho... — O Visconde aqui! — berrou Pedrinho — e Emília empurrou em sua direção o sabuguinho. Pequeno como era, podia pegar a argola e trazê-la para o lado de cá, passando por baixo do pescoço do touro. O Visconde tremia. O touro podia esmagá-lo com uma patada. Não tinha coragem. Emília veio de lá e deu lhe um tranco. O Visconde foi cair bem em cima da argola. Encheu-se de ânimo. Agarrou a argola e, passando por baixo da papada do touro, veio entregá-la a Pedrinho. Pedrinho enfiou a outra ponta do laço na argola e assim refez a laçada. Jogou então a ponta do laço para Meioameio e gritou:

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— Corra e estique... Meioameio assim fez. Pegou na pontado laço e disparou. A laçada foi se fechando. Fechou-se completamente. O monstro estava seguro pelo pescoço. — Corra uma volta do laço nessa árvore aí! — gritou Pedrinho; e Meioameio correu uma volta do laço em torno ao tronco da árvore indicada. — Agora segure firme! — gritou Pedrinho. Meioameio segurou firme. — Pronto, Hércules! Pode largar o touro. Hércules desprendeu-se daqueles chifres e deu um grande salto de banda. O touro, liberto, urrou e investiu contra o herói. Hércules deu novo salto de banda — e assim várias vezes, enquanto Meioameio ia encurtando o laço. Momentos depois estava o touro novamente com a cabeça junto da árvore, como da primeira vez — mas o aperto da laçada em seu pescoço o ia estrangulando. Era preciso transferir a laçada do pescoço para os chifres. Como? Pedrinho pensou depressa. O único jeito era fazer outra laçada na outra ponta do laço e passá-la pelos chifres do touro. E foi o que fez. Preso o touro ao tronco pela laçada dos chifres, e bem amarrado, podiam afrouxar a laçada que o prendia pelo pescoço. Meioameio executou habilmente a operação — e não sem tempo. O touro já estava de olhos esbugalhados e sem fôlego. Se demoram dois ou três minutos mais, adeus touro de Creta!... Pronto! Lá estava o tremendo animalão novamente seguro e bem seguro. Emília bateu palmas. Hércules sorria e o Visconde assoprava-se todo. Ainda não estava completamente refeito do ato de heroísmo que realizara sem querer. Hércules abraçou Pedrinho. Pela segunda vez reconheceu que um garoto como ele era novidade na Grécia.

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— Muitos heróis temos tido por aqui, oficial; mas herói-menino, o primeiro que apareceu na Hélade foi você. Emília reclamou um bom abraço no Visconde. “Ele também contribuiu muito, Lelé. Foi quem passou a argola do lado de lá para o de cá.” Hércules apertou a mão do sabuguinho, dizendo: “Meu Valente escudeiro!” Ótimo. Estava tudo ótimo. Restava apenas vigiarem de noite para prevenir novo roimento do laço pelo camundongo de Juno. Emília teve a ideia de botar um gato preso ao tronco, mas onde encontrar um gato naquele ermo? A ideia vencedora foi a do Visconde: esfregar o laço com suco de erva-de-rato, que é venenosíssima. E como ninguém soubesse que erva era aquela, o sabuguinho científico explicou: — As chamadas ervas-de-rato são muitas, todas da família Palicurea. Há a Palicurea strepens de flores amarelas em cacho; há a Palicurea noxia, que é rubiácea. Há a Palicureanitotianoefolia, outra rubiácea classificada por Martius. E há a Palicurea rigida, também chamada "Douradinha-do-campo..." Emília quase deu nele. — Estupor!... Em vez de tanta exibição de ciência, melhor que vá correndo ao bosque ver se encontra qualquer dessas Palicureas... O Visconde foi e encontrou um pezinho da Palicurea officinalis, tão boa como qualquer outra para envenenar os ratinhos de Juno. Amassou aquelas folhas entre duas pedras chatas, fez um mingau e deu-o a Pedrinho. — Basta que esfregue isto no laço.

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Foi o que Pedrinho fez — e na manhã seguinte puderam observar o maravilhoso efeito da receitinha do Visconde: lá estava ao pé do tronco o cadáver do camundongo de Juno... Muito bem. A primeira parte daquele Trabalho de Hércules fora feita. Restava a segunda, talvez a mais difícil: conduzir aquele touro até Micenas. A Ilha de Creta erguia-se a uns cem quilômetros do continente. Como atravessar esses cem quilômetros do Mediterrâneo com aquele touro no laço? Puseram-se a estudar o problema. Emília pensou no pirlimpimpim. Com uma boa esfregadela do maravilhoso pó no focinho do touro, ia ele num só fiun para Micenas, mas para isso era necessário que Hércules também aspirasse o pó. E Palas se opunha. Palas havia terminantemente proibido ao herói recorrer novamente ao tal pó transportador, visto como o seu coração hipertrofiado poderia não resistir — E se fizéssemos Meioameio seguir com o touro? — sugeriu Pedrinho. Hércules opôs-se. Meioameio era ainda muito novo. Não aguentaria o touro lá na chegada. Ideia vem, ideia vai, ficou assentado o seguinte: Hércules atravessaria os cem quilômetros de mar a nado, puxando o touro, e eles iriam "a pó" esperá-lo numa praia do continente. E assim foi feito. Logo depois do almoço, Pedrinho distribuiu as doses de pirlimpimpim, muito bem calculadas para um fiun até ao extremo do promontório de Maleia. Lá esperariam pelo herói com o boi — e seguiriam por terra para Micenas. O promontório de Maleia ficava na parte da Hélade chamada Lacônia; Micenas ficava na parte chamada Argólida. Hércules desamarrou da árvore o touro e lá seguiu com ele rumo ao mar, enquanto os outros aspiravam as doses do pirlimpimpim.

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Instantes depois despertavam numa praia do promontório de Maleia. — Onde estará Hércules neste momento? — refletiu Pedrinho, logo que se viu livre da tontura. Muito longe do mar ainda... Que acha, Visconde? Já terá Hércules chegado à praia? — Oh, não! Pelos meus cálculos, ele tem de caminhar umas três horas. — E quantas horas levará nadando? O Visconde respondeu que um bom nadador pode vencer cem quilômetros em vinte horas — e pôs-se a discorrer sobre a natação. Em certo ponto Emília interrompeu-o. — E aquela história de Leandro e Hero, que Dona Benta contou? — Ah, isso foi muito triste — respondeu o sabuguinho. — Havia em Sestos uma sacerdotisa de Vênus de nome Hero, muito moça e linda. Sestos era uma cidadezinha situada na margem europeia do Helesponto, esse estreito que hoje se chama Dardanelos. Do outro lado do estreito ficava a cidade de Ábidos, onde morava Leandro. Este rapaz conheceu Hero numa festa de Vênus e apaixonou-se e todas as noites atravessava o Helesponto a nado para ver a namorada. — Que largura tinha o estreito naquele ponto? — Mil e quinhentos metros — disse o Visconde. Todas as noites Hero acendia um fogo no alto dum morro para guiar Leandro. Mas lá em certa ocasião ele passou sete dias sem aparecer. Sete vezes a coitadinha acendeu o fogo e nada. — Que houve? — Houve que Leandro, numa das suas travessias, foi apanhado por

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um temporal e afogou-se. As ondas levaram o seu cadáver às praias de Sestos. Ao ter conhecimento disso a pobre Hero lançou-se ao mar e morreu também... Emília engoliu um soluço. O sabuguinho continuou. Contou que mais tarde o poeta inglês Byron, que andava pela Grécia, tentou e conseguiu repetir a façanha de Leandro. Atravessou o Helesponto a nado, exatamente no mesmo lugar. — E não morreu afogado? — Não. Foi morrer da febre apanhada em Missolonghi, uma cidade grega que ainda não existe mas vai existir. A história de Hero e Leandro entristeceu os picapauzinhos e comoveu o jovem centauro. — E se Héracles não aguenta e também morre, como Leandro? — lembrou Emília. Estou com medo...

A LOUCURA DO REI Mas tudo acabou bem. No dia seguinte, pela manhã, foram para cima duma grande pedra aguardar o aparecimento do herói. O mar manso estendia diante deles as suas águas azuis. Minutos depois Emília, que era a grande "enxergadeira”, gritou: — Estou vendo dois pontinhos lá longe... Dirigem-se para cá... Duas cabeças, uma de homem, outra de boi... São eles, sim... E eram mesmo. Dali uma hora Hércules safou-se do mar, puxando o touro por um chifre. Que festa foi a recepção do herói! Hércules chegou cansadíssimo,

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completamente exausto. Felizmente o touro estava mais cansado ainda, se não teria fugido pela segunda vez. A viagem dali até Micenas correu cheia de peripécias e lances heroicos. O caminho que seguiram passava pela parte leste da Arcádia — e muito insistiu o Visconde para uma paradinha em Estinfale. Mas como essa urbe ficasse muito fora de mão, o Visconde, suspirando, teve de desistir da sua esperança de rever a pastorinha Climene... Afinal chegaram, e na forma do costume os picapauzinhos se dirigiram ao acampamento enquanto Hércules levava o touro para a cidade. Que prazer encontrarem-se de novo naquele amável retiro, com o ribeirão a murmurejar como de costume e a floresta verdinha lá perto! O templo de Avia não fora bulido por ninguém. Perfeito como o haviam deixado. Lá se erguiam as estacas com as esculturas comemorativas dos Trabalhos de Hércules. Pedrinho fincou mais uma e pregou no topo a sétima escultura representando Hércules atracado com o touro. Depois teve uma ideia: — E se déssemos um pulo até a cidade? Foram. Encontraram Micenas num grande tumulto por causa da chegada do herói. Todos já sabiam a história do touro de Creta, e estavam correndo para a praça do mercado a fim de vê-lo. Hércules amarrara-o lá num palanque e fora apresentar-se ao rei. — Pronto, Majestade! — disse ele na sua voz mansa de herói bem comportado diante da soberania. — Cumpri fielmente a missão que Vossa Majestade houve por bem confiar-me. O touro de Creta está amarrado num esteio na praça do mercado.

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Euristeu fechou a carranca. Que responder? Estava já cansado das vitórias do herói. Indubitavelmente Palas tinha mais força de que Juno. E Euristeu consultou com os olhos o ministro Eumolpo, sempre ali muito lambetamente ao pé do trono. Eumolpo, que já tinha na cabeça um novo Trabalho destinado ao herói, cochichou três segundos com o soberano. Euristeu desenfarruscou a cara e disse para Hércules: — Muito bem. Agora o que tem a fazer é ir dar cabo dos cavalos de Diomedes. Hércules não sabia que cavalos fossem aqueles. Eumolpo explicou: — Diomedes é rei dos bistônios, na Trácia. Possui uns cavalos que só comem carne humana. Diomedes alimenta-os com os náufragos que as tempestades arrojam às costas do seu reino. Sua Majestade ordena que vás e liquides com esses cavalos antropófagos. Hércules baixou a cabeça respeitosamente, murmurando: — Assim será feito, Majestade! Disse e saiu. Euristeu ficou a conferenciar com Eumolpo. Estavam tramando qualquer coisa. Depois ordenou a um dos guardas: — Vá à praça do mercado e solte o touro de Creta. O guarda abriu a boca e ousou dizer: — E que será do povo lá reunido, Majestade? Euristeu fulminou-o com o olhar. — Cumpra as minhas ordens e não discuta. O guarda foi soltar o touro.

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Enquanto isso os picapauzinhos chegavam à praça onde o povo se comprimia para ver o monstro prisioneiro. Os comentários ferviam. — Que belo animal! — dizia um. — Belo, sim, mas perigosíssimo. Olhe como baba de cólera e fumega. Parece até que espirra fogo... —Tenho medo de Creta — dizia outro. Já estive lá uma vez. Tudo são touros na ilha — e há aquele horrendo Minotauro preso no labirinto. Pedrinho interveio: — Houve o Minotauro. Já não existe. — Como? Por quê? — e vários curiosos o rodearam. — Sim — confirmou Pedrinho. — O grande herói Teseu da Ática lá esteve e estrangulou o monstro. O espanto foi geral. Ninguém ainda sabia do grande acontecimento. A roda de curiosos em torno dos picapauzinhos ia aumentando cada vez mais. O Visconde, sobretudo, provocava mil comentários. Uma aranha de cartola! E quando souberam que todos três haviam tomado parte na aventura do herói, o assombro não teve limites. Nesse momento chegou o guarda do rei. — Espalha! Espalha!... — gritou. Vim com ordens de Sua Majestade para soltar este bicho. Ninguém entendeu. — Soltar o touro de Creta? Soltar um monstro que já fez tantos estragos no mundo?...

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—Sim, são ordens de Sua Majestade e as ordens de Sua Majestade não se discutem — respondeu o guarda, já com a mão no laço para desfazer o nó. Quando o povo percebeu que o touro ia mesmo ser solto, ah, caiu num grande pânico. Foi uma gritaria geral e um corre-corre, como nunca se viu. Uns voavam por aquelas ruas como lebres. Outros embarafustavam-se pelas casas e trancavam as portas por dentro. O guarda soltou o touro e, coitado, foi a sua primeira vítima. O touro o colheu nos chifres e arremessou a vinte metros de distância, todo arrebentado. E quantos não morreram naquele dia... O monstro estava com o ódio represo, de maneira que ao ver-se solto explodiu num horrendo acesso de furor. Cada arranco que dava era uma criatura que caía em pandarecos. Pedrinho agarrou Emília e o Visconde pelas mãos e sumiu-se dali a toda — corria arrastando os coitadinhos. Minutos depois chegou ao ponto onde Meioameio os esperava. Jogou os dois sobre o lombo do jovem centauro, montou e disse: — Fujamos no maior galope! O maldito Euristeu mandou soltar o touro. Essas palavras valeram mais do que quanta espora há no mundo. Nunca Meioameio galopou com tamanha velocidade. Chegados ao acampamento, uma ideia os assustou. — E se o touro vem por aqui? E se nos reconhece e vinga-se? O melhor é treparmos àquela árvore — e Pedrinho apontou para a árvore mais alta. Todos subiram, menos Meioameio. Sua defesa era o galope. — Não posso compreender a ideia do tal rei mandando soltar o touro — observou Pedrinho lá no galho. — Para mim ele é ainda mais demente que o touro.

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— E Hércules que não vem? — impacientava-se Emília. — Será que vai atracar-se novamente com o touro lá na cidade? — Acho que não — opinou o Visconde. — Agora me lembro do que disse Minervino. O touro vai para Maratona, onde será novamente capturado por Teseu. É o que está gravado nas páginas do livro do futuro. Nesse momento — lá vem Lelé!... gritou Emília. Sim, Hércules vinha vindo, de cabeça baixa, como absorto em apreensões. Chegou e riu-se de ver tantos "pica-paus" na árvore. — Desçam! — disse ele. — Nada há mais a recear. O touro já saiu da cidade e afundou por esses campos. — Não virá deste lado? — Não. Tomou outro rumo. — Qual a razão de haver Euristeu mandado soltar o touro? — perguntou Pedrinho. — Não sei. Os desígnios de certos soberanos são inescrutáveis — foi a resposta de Hércules.

OS CAVALOS DE DIOMEDES OS CAVALOS DE DIOMEDES

Pedrinho não estava entendendo a Hélade. — Mas afinal de contas — disse ele — isto aqui me parece mais uma salada de pequenos países do que um país só. Explique-me esta Hélade, Minervino. O mensageiro de Palas explicou que o que chamavam Hélade não

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passava dum cacho de paisezinhos independentes, mas com a mesma língua e os mesmos deuses. Havia a Lacônia, a Messênia, a Argólida, a Fócida, a Tessália, a Magnésia... — Chega! — berrou Emília. — Pare na Magnésia, se não é capaz de vir também o Bicarbonato... — E é para um desses cocos do grande cacho helênico que vamos indo — continuou o mensageiro. — Vamos indo para a Trácia. Sim, era para a Trácia que se iam encaminhando Hércules e seu bando, acompanhados do precioso Minervino. E Hércules ia para a Trácia porque era lá que ficava o reino dos bistônios, então governado por um rei de nome Diomedes, dono dos tais cavalos que comiam gente. Pedrinho havia observado que no mundo moderno os equinos eram todos herbívoros; carnívoro não existia nenhum. Mas numa Grécia em que havia de tudo, nada mais natural que também houvesse cavalos antropófagos. — Eles não haviam nascido antropófagos — explicou Minervino. — Mas como Diomedes, em vez de capim ou aveia, só dava carne humana, foram mudando de gênio, tornando-se ferozes e por fim viraram uns horríveis monstros. Diomedes os alimenta com os náufragos que dão à praia — os náufragos estrangeiros; aos nacionais ele perdoa. — Malvado! — exclamou Emília. — Por isso é que eu sou democrática. Isso de reis e tiranos é uma desgraça. Tratam os súditos do mesmo modo que os deuses do Olimpo tratam os homens. Minervino aconselhou-a a não falar assim dos deuses, porque os deuses tudo viam e ouviam e eram muito vingativos. E a propósito contou uma conversa recentemente ouvida no Olimpo. — Estava Hera falando em voz baixa com Zeus, o seu divino esposo. Dei um jeitinho e pude pescar um trecho...

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Emília interrompeu-o: — Mas então você mora no Olimpo, Minervino? — Não; mas como estou trabalhando para a minha deusa Palas, volta e meia dou um pulo até lá para dar conta dos meus trabalhos e receber ordens. Foi numa dessas vezes que ouvi a tal conversa. Não sei se devo contar... Minervino vacilava. — Que diziam? — Falavam justamente de você, Emília. Hera queixava-se a Zeus dum "pelotinho humano" que aparecera por aqui juntamente com uma "aranha de cartola" e um menino estrangeiro. O "pelotinho humano" — dizia ela — andava "interferindo" em muita coisa, e falava dos deuses com grande irreverência. Já por duas ou três vezes havia tratado a ela, a deusa suprema, de "peste" e "bisca". Ora, isso era inadmissível — e Hera pediu a Zeus que a fulminasse com seus raios. Zeus refranziu os sobrolhos e prometeu que sim. Mas logo depois que Hera se afastou, Palas, a quem informei de tudo, aproximou-se e disse: "Não dês atenção a Hera, Zeus. O tal "pelotinho" está do meu lado e trabalhando muito bem na proteção de Héracles. Foi quem o salvou no caso do Javali do Erimanto. Hera enfureceu-se com isso e quer agora vingar-se." Zeus conhece muito bem aqueles deuses e deusas; anda a par das intrigalhadas todas e vai "temperando" o Olimpo com grande habilidade. Foi assim que naquele dia prometeu a Hera fulminar Emília e depois prometeu a Palas protegê-la. — Então ele é pau de dois bicos? — Mais ou menos. Zeus é manhoso. Sabe agir politicamente — e vai

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temperando. Mas vocês tomem muito cuidado com a língua. O peixe morre pela boca e as criaturas humanas morrem pela língua. Depois dessa prosa o assunto recaiu sobre Diomedes, o rei dos bistônios. Minervino contou que os cavalos desse rei não eram cavalos e sim éguas. Quatro éguas, de nome Podargo, Lampon, Janto e Deno. Tão ferozes ficaram que viviam presas em correntes. — E é verdade que têm cascos de bronze? — perguntou Pedrinho, que ouvira alguém dizer isso. — Sim, têm cascos de bronze, como a corça do monte Cirineu que Hércules capturou. — Hércules, não; nós... corrigiu o menino. O herói seguia lá atrás, como de costume; estava mentalmente conversando consigo mesmo. E de tanto parafusar, sentiu uma perturbação como se fosse recair na loucura. E o que em seguida fez, se não era loucura era coisa muito parecida. Hércules entreparou e gritou para os outros: — Alto! Antes de seguir para a terra dos bistônios quero chegar a Delfos para uma consulta ao Oráculo. — Sobre que, Lelé? — perguntou familiarmente Emília, mas Hércules não respondeu. Isso deixou a todos numa grande incerteza. "Que será?" Pedrinho foi de opinião que "havia qualquer coisa". Talvez houvesse Hércules cometido algum crime e o roesse o remorso. Pedrinho acertou. Num acesso de cólera em Micenas havia ele matado sem razão nenhuma a um miceniano, e vinham daí os seus remorsos, aquele ar enfarruscado, aquele remoimento interior. E a súbita ideia que lhe veio de ir a Delfos também se ligava a esse fato. Hércules queria saber se o crime perpetrado fora uma ofensa a

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Apolo. Por que a Apolo? Porque a vítima estava sacrificando a Apolo no momento em que Hércules a abateu. Depois de Micenas era Delfos a cidade grega mais conhecida dos picapauzinhos. Haviam estado lá durante a primeira vinda à Grécia em procura de tia Nastácia; e fora graças à resposta do Oráculo que descobriram a negra no labirinto. Estiveram depois segunda vez para a salvação do Visconde, como já foi contado num dos capítulos destas histórias. E para lá iam agora pela terceira vez... Para quê? Ignoravam. Hércules andava fechadíssimo em copas. Para chegarem a Delfos tinham de atravessar o istmo de Corinto e depois a Ática. Delfos ficava na Fócida. Tais viagens eram sempre a mesma coisa. Passavam por aldeias e pousavam em acampamentos improvisados, como aqueles de Micenas e Estinfale. Meioameio era o encarregado da mesa, e ora apresentava um boi assado, ora uns tantos carneiros. Minervino já fazia parte do bando, embora com desaparecimentos súbitos quando voava para o Olimpo a fim de dar notícias ou receber ordens de sua deusa. O Visconde andava mais "assentado". Aquela fúria de namoro e o entusiasmo pela vida de logo depois da fervura no caldeirão de Medeia iam passando. Ainda pensava em Climene, mas só de longe em longe e cada vez com menos amor. Emília chegou a cochichar para Pedrinho: "Talvez nem seja preciso que tia Nastácia conserte o Visconde. Ele está se consertando por si mesmo." E estava. O fogo de mocidade transmitido pelo caldeirão da feiticeira já era um fogo sem calor. O Visconde até parara de beber. Quando de passagem por uma aldeia lhe ofereciam vinho, ele recusava com toda a delicadeza. Pedrinho, sempre apreensivo com o estranho estado d'alma de Hércules, volta e meia falava disso a Minervino.

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— Hércules perdeu a expansibilidade. Não o vejo rir-se. Esquece de responder ao que perguntamos. Que será?... Tenho medo que lhe dê um novo acesso de loucura. Quem já ficou louco uma vez está sempre ameaçado de recaída, diz vovó. E assim foi a viagem até Delfos, muito menos alegre e divertida do que as outras. Pairava sobre eles como que uma nuvem de tragédia.

EM DELFOS Há sempre maior prazer em voltar a uma cidade do que em visitá-la pela primeira vez. Aquela terceira entrada em Delfos regalou Pedrinho e Emília como uma volta para casa. Iam reconhecendo inúmeras coisas e recordando passagens das vezes anteriores. E até certas caras reconheciam. — Olhem aquele homem cabeludo que vimos da primeira vez! — observou Emília apontando para um tipo asiático. Parecido com o Zé Canhambora... Eles haviam instalado o acampamento numa várzea dos arredores e lá deixaram Meioameio. O centaurinho não gostava dos centros urbanos. Não entendia o pavor que a sua presença causava. Hércules, sem dizer palavra, havia seguido para a cidade. Os três picapauzinhos foram a pé logo depois. Delfos era uma cidade diferente de todas as outras. Um grande centro de peregrinação. Gente de todas as cidades gregas, e mesmo de muitas terras estrangeiras, afluía constantemente para lá, em consulta ao famoso Oráculo. Por causa da contínua interferência dos deuses nos negócios dos homens, a preocupação de todo mundo era "sondar" a vontade dos deuses por meio de consultas à Pítia, ou à pitonisa captadora das intenções do Olimpo. Os sacerdotes do Templo de Apolo viviam numa perpétua dobadoura, sem tempo para se coçar. E como nada fizessem de graça, o recebimento de

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presentes não tinha fim. E que presentes!... Até tijolos de ouro maciço eram ofertados ao Templo, em cujos depósitos se acumulavam imensas riquezas. Os picapauzinhos encaminharam-se para o Templo e lá encontraram Hércules preparando-se para a consulta. — Que será? — murmurou Emília. — Estou pegando fogo de tanta curiosidade... Entraram. Ficaram a um canto, vendo e observando tudo. A Pítia estava atendendo ao mensageiro de um rei da Beócia interessado em conhecer o desfecho de uma guerra que vinha tramando. A Pítia atendeu-o. Depois de ouvir-lhe a pergunta, levantou os braços, curvou-se para os vapores que saíam da trípode e com um ar de desvairada murmurou o "vaticínio". Aqueles vapores tinham a propriedade de deixar a Pítia em estado de transe, como os médiuns que recebem um espírito. Emília deu um jeitinho de aproximar-se e ouviu a resposta: — "Antes que as folhas dos plátanos forrem o chão — um rei será apeado do trono.” O Oráculo falava sempre dum modo ambíguo, isto é, que tanto podia ser uma coisa como outra. E as respostas eram então "interpretadas" pelos sacerdotes — quase sempre a favor de quem oferecia os mais custosos presentes. O emissário do rei da Beócia retirou-se e foi conferenciar com os sacerdotes. Era a vez de Hércules. O herói aproximou-se da Pítia. Emília fez-se menorzinha do que era e chegou mais perto ainda, ansiosa por não perder uma só palavra da consulta. Mas aconteceu um fato estranhíssimo e inédito no Templo de Apolo. Ao ver Hércules chegar, a Pítia afastou-se da trípode!... Foi um assombro. Todos os presentes arregalaram os olhos e entreabriram as bocas.

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Hércules, o grande herói nacional grego, havia recebido em pleno rosto uma bofetada de Apolo... Como iria ele reagir? Resignar-se-ia àquilo ou... O "ou" venceu. Hércules, tomado dum acesso de cólera que fez a assistência tremer de medo, avançou para a trípode, arrancou-a do chão e saiu com ela ao ombro para fora do Templo... Emília correu ao encontro de Pedrinho e do Visconde e, tomados de pânico, foram voando para o acampamento. Lá chegaram sem fôlego, e foi a arqueja que Pedrinho contou a Meioameio o acontecido: — Hércules foi... foi repelido pela Pítia! Assim que se aproximou ela... ela retirou-se para os fundos do Templo! E Hércules então agarrou a trípode, arrancou-a e saiu com ela erguida no ar... Saiu do Templo e sumiu-se... Meioameio ficou assombrado. Nisto Minervino apareceu. Também estivera no Templo e observara tudo. — Hércules é irmão de Apolo por parte de pai — disse ele. O que houve não passa de briga entre irmãos. A ofensa que Hércules fez a Apolo, arrancando de lá a trípode, é a maior de todas. Prevejo grandes catástrofes... — E que vai fazer, Minervino? — Vou já para o Olimpo consultar Palas — disse e afastou-se. Os pica-paus ficaram ali sozinhos, tontos duma vez, sem nenhuma ideia na cabeça. — E agora? — exclamou Pedrinho. — Hércules sumiu. Estamos largados aqui nesta terra estranha e sujeitos a tudo...

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Depois de muitas vacilações, Pedrinho resolveu que montassem em Meioameio e saíssem pelo mundo a ver se encontravam o herói. Lá cavalgaram o centaurinho, e lá partiram num desapoderado galope. Quando avistavam algum viandante, detinham-se para perguntar: — Não viu Hércules? Não sabe dele? Os viajantes nada sabiam e Meioameio retomava o galope. E assim até darem com um que pôde informar alguma coisa. — Vi, sim, mas não sabia que fosse Hércules. Vi passar um herói de formas truculentas, com uma tripeça ao ombro... — E que rumo tomou? — Passou por mim resmungando palavras terríveis e lá se foi nesta direção. Meioameio retomou o galope no rumo indicado, e assim chegaram às proximidades duma cidadezinha de nome Gítio, no interior do Peloponeso. De longe avistaram um homem de alentada estatura, com uma coisa aos ombros. — É ele! — gritou Emília. — É Lelé com a trípode da Pítia... O centaurinho voou ao encontro do herói, mas de súbito estacou. Outro herói havia surgido diante de Hércules. Pedrinho imediatamente o reconheceu: "Apolo!... É o próprio deus Apolo, irmão de Hércules por parte de pai..." Nada mais verdadeiro. Era Apolo em pessoa que descera do Olimpo e na maior fúria ia atacar Hércules para retomar a trípode. Os picapauzinhos sentiram os cabelos em pé. Luta entre dois irmãos — haverá nada mais terrível? E se Hércules era Hércules, Apolo era um deus. Ora, um deus não pode ser vencido por um humano. Logo, Hércules estava arriscado a perder a partida.

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Os dois tremendos irmãos se defrontaram e romperam em acusações. Apolo declarou que a Pítia recusava-se a atendê-lo por causa do homicídio injusto que ele havia cometido em Micenas. — Tu mataste um dos meus devotos! — acusou Apolo. — Por isso a Pítia recusou-se a receber-te. Hércules respondeu: — Irmãos somos, filhos do mesmo pai. Não reconheço tua superioridade sobre mim. Estou de posse da trípode e vou estabelecer o Oráculo de Héracles, em contraposição ao Oráculo de Apolo. A luta de boca foi subindo de fúria, mas no momento em que eles iam atracar-se num pega horrível, eis que de súbito um raio desce do céu e espeta-se no chão entre os dois. Era um severo aviso de Zeus, o pai de ambos. Hércules e Apolo estarreceram. Compreenderam a significação do aviso celeste. Se não acatassem aquele aviso, Zeus, na sua fúria, fulminá-los-ia com outro raio. E lá se imobilizaram um diante do outro como dois galos de briga que refletem no que fazer. Mas Palas interveio. Fez que o acesso de furor do herói se acalmasse — e Hércules foi caindo em si. Pôs-se a falar menos exaltadamente. Discutiu o assunto com mais calma — e por fim cedeu. Reconheceu que ele, não Apolo, era o culpado. Sim, ele havia matado o devoto de seu irmão e arrancado a trípode do Templo. Nada mais justo que Apolo acudisse em defesa do que era seu — do seu devoto e da trípode de seu Templo. E Hércules entregou a Apolo o que era de Apolo. Em seguida, muito vexado do que sucedera, arrepiou caminho, evidentemente com a ideia de voltar por Delfo se reunir-se aos amigos deixados no acampamento. Meioameio correu-lhe ao encontro. A surpresa do herói foi grande.

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— Vocês aqui!... — Sim — disse Pedrinho. — Vimos tudo. Estivemos no Templo e assistimos à desfeita da Pítia... — Aquela bruxa! — acrescentou Emília. Hércules então se abriu. Contou a história do seu homicídio em Micenas, explicando-o como mais uma tentativa de Hera para perdê-lo. — Sim, foi a minha divina perseguidora quem me fez vir o sangue à cabeça e matar aquele homem. Foi também ela quem me fez arrebatar a trípode, desse modo ofendendo mortalmente ao meu irmão Apolo... Nesse momento Minervino reapareceu, de volta do Olimpo. Contou que acabava de estar com a deusa Palas, que Palas soubera de tudo e fora agarrar-se com Zeus para prevenir a horrorosa luta entre os dois irmãos. Disse mais que o acesso de furor de Hércules em Micenas fora mais um truque de Hera para desgraçar o seu perseguido. Hércules suspirou. — Que vida a minha! Não passo de um joguete das deusas do Olimpo... O ódio de Hera não arrefece... Minervino consolou-o, dizendo que também a proteção de Palas não arrefecia. — Minha boa deusa tem sempre os olhos sobre ti, Hércules. Inúmeras vezes já te salvou — e assim continuará agindo. Quem goza da proteção de minha deusa nada tem a recear. Emília perguntou por que motivo era Palas tão poderosa. Minervino respondeu:

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— Porque goza da predileção do deus supremo, já que passou os primeiros meses de sua existência em sua divina coxa. Além disso, Zeus e todos no Olimpo admiram-na e respeitam-na como a deusa da Sabedoria. Palas, grande Palas, teu mensageiro te admira e te venera do fundo do coração! Tu, sim, és a deusa das deusas... Emília fez-lhe a mesma advertência que dias antes ele lhe fizera: — Cuidado, hein? Se Hera ouve, vai sentir-se enciumada — e adeus Minervino...

HÉRCULES ACALMA-SE As cóleras de Hércules eram hercúleas. Não passavam com a facilidade com que passam as cóleras dos homens comuns. Havia se reconciliado com Apolo, mas mesmo assim refervia lá por dentro, como refervem as lavas de um vulcão. Isso explica a volta enorme que ele deu para chegar à Trácia. Em vez de seguir diretamente para lá, como era o natural, resolveu passar pelo reino da Líbia. Preciso espairecer — disse ele. — O fogo da cólera ainda me queima lá por dentro. Vou chegar até à Líbia. Pedrinho admirou-se. A Líbia era no norte da África, uma terra muito quente. Ora, se Hércules estava ardendo em fogo interno, como então pensava na Líbia? Muito mais lógico que fosse para a terra dos hiperbóreos, onde tudo é gelo. Mas Minervino explicou que o grande herói era partidário da teoria médica do similia similibus curantur, isto é, para curar fogo, mais fogo — só isso poderia explicar aquela sua ideia da Líbia. Depois contou que o rei da Líbia era um gigante de sessenta côvados de altura — Anteu, filho de Geia e Posseidon, ou Netuno, o deus do mar. E disse que muito receava um pega entre Hércules e esse gigante.

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— Que é côvado? — perguntou Emília. O Visconde respondeu que o côvado era uma medida muito antiga, equivalente a três palmos. Sessenta côvados equivaliam a 180 palmos, ou mais ou menos 36 metros. — Trinta e seis metros de altura? — arrepiou-se Emília. — Mas então é gigante de verdade... — Sim, só dez metros menor que a estátua da Liberdade no porto de Nova Iorque. Minervino contou que as "cóleras recolhidas" de Hércules só saravam com a realização duma proeza tremenda, e que aquela ideia de ida à Líbia tinha água no bico — não era para espairecer, não... — Para mim, ele quer pegar-se com o gigante Anteu! E estou com medo disso... — Por quê? — indagou Emília. — Acha então que Hércules, que já sustentou sobre os ombros o céu enquanto Atlas ia roubar o pomo das Hespérides, lá pode ser batido por um gigante? — É que Anteu é invencível. Pode lutar quanto tempo for sem nunca se cansar. — Por quê? — Porque é filho de Geia, ou a Terra, Geia lhe transmite força pelos pés. Emília teve uma ideia repentina. — Se é assim, há um jeito de vencer esse gigante: basta suspendê-lo no ar, não deixando que seus pés toquem a terra!

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Minervino entreabriu a boca. Sim, parecia estar ali uma solução... Emília foi correndo conversar com o herói e puxou o caso de Anteu. — É verdade mesmo que esse Anteu é invencível, Lelé? Hércules respondeu que sim, por causa da força contínua que recebia de sua mãe Geia. — Por onde recebe essa força? — perguntou a diabinha. — Pelos pés — declarou Hércules. — Os que lutam com ele cansam-se, mas Anteu não se cansa porque Geia está continuamente lhe transmitindo força pelos pés. — E se for erguido do chão e conservado no ar? Desse modo Geia não lhe poderá transmitir força nenhuma. É como a eletricidade lá no mundo moderno. Não havendo ligação, não há eletricidade. Hércules enrugou a testa. A ideiazinha de Emília soou-lhe como uma tremenda revelação. Sim, ponderou lá consigo. Se eu o erguer... se eu o mantiver com os pés desligados da terra... E um sorriso imenso iluminou-lhe o rosto. Hércules havia compreendido uma grande coisa. "Não havendo ligação, não há eletricidade." Sim, sim... Se ele conseguisse desligar da terra os pés de Anteu, o gigante morreria por falta de força... Hércules nada mais disse; limitou-se a agarrar Emília e a beijá-la. Parecia incrível, mas aquela minúscula criaturinha acabava de lhe ensinar o único meio de vencer um gigante invencível... A viagem dali por diante tornou-se uma verdadeira festa. A alegria do herói manifestava-se de mil maneiras. A casmurrice desaparecera. Pôs-se a contar mil coisas de sua vida passada, desfiou um rosário sem fim de proezas tremendas e como alegria

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traz fome, o seu jantar daquela tarde foi o mais abundante de todos: Hércules devorou sete carneiros assados. Anteu era o terror da Líbia. Seu maior gosto consistia em provocar para a luta todos os estrangeiros aparecidos por lá; matava-os, e com os ossos ia erguendo um horrível templo em honra a Netuno. Morava em Tíngis, onde fica hoje a cidade de Tânger — e Tíngis se chamava assim justamente por ter sido fundada por Tinge, a mulher de Anteu. Para chegar até lá, o grupo de Hércules tinha de atravessar o Mediterrâneo, e surgiu uma dificuldade: Meioameio! Como não houvesse memória de centauro embarcado em navio, Pedrinho não achou conveniente que o centaurinho seguisse com eles. Podia acontecer muita coisa. Ficou resolvido que Meioameio os esperasse lá naquele promontório da Maleia onde já haviam estado. Hércules era um em terra e outro no mar. Enjoou, coitado! E que coisa horrível foi o enjoo de Hércules!... Chegou a assustar as sereias e nereidas com os seus tremendos vômitos... Afinal chegaram, e a entrada de Hércules em Tíngis foi uma verdadeira entrada triunfal. Até lá havia chegado a fama do grande herói heleno, de modo que a população, que vivia esmagada pelo despotismo daquele rei, encheu-se de esperanças. Quem sabe se o herói heleno não realizaria o sonho secreto de todos: libertar o reino do cruel despotismo de Anteu? Todos queriam vê-lo e assombravam-se diante da sua impressionante musculatura. Anteu foi logo notificado da presença do grande heleno — e riu-se, como quem diz: "O templo que estou erigindo em honra a meu pai será enriquecido demais uma bela camada de ossos." E mandou desafiá-lo para a luta. Hércules aceitou o desafio.

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Na hora marcada a população inteira de Tíngis se reuniu na praça principal a fim de assistir a mais uma das lutas do soberano com um estrangeiro. Já estavam cansados de presenciar essas lutas e de testemunhar a invencibilidade de Anteu, mas daquela vez uma vaga esperança luzia em todos os corações. — Como vai ser a luta, Lelé? — perguntou Emília. — Com clava ou com arco e flecha? Hércules respondeu que seria luta corpo a corpo, sem armas, só de músculo contra músculo. — E vou aplicar aquela sugestão sua, Emília; vou "desligar" o gigante, como lá no mundo moderno vocês desligam a tal eletricidade. Minervino continuava apreensivo, mas quando soube que Hércules ia pôr em prática a ideia da Emília, murmurou mais aliviado: "Quem sabe?" Chegou a hora. Nunca fora vista em Tíngis maior massa de povo. A expectativa era enorme. — Corriam de boca em boca mil versões sobre as façanhas realizadas por Hércules — a destruição do leão da lua, do javali do Erimanto, do touro de Creta, e muita gente apostava nele. Os partidários do tirano apostavam em Anteu, mas secretamente torciam pela vitória do grego. Hércules apareceu na praça acompanhado de seus estranhos amigos — Minervino, Pedrinho, o Visconde e Emília. Inúmeros curiosos rodearam o grupo e não cessavam de espantar-se ante a curiosíssima figurinha da "aranha de cartola". De repente, um murmúrio no povo. Era Anteu que vinha vindo. Chegou. Emília teve uma pequena decepção. Em vez dum gigante de 36

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metros de altura, do tamanho duma torre de igreja, viu aparecer um homem de apenas mais um palmo que Hércules. — Por que isso? Não tinha ele então 60 côvados? Quem conta um conto aumenta um ponto, diz o ditado. A altura de Anteu era só um palmo maior que a de Hércules; mas isso contado desde ali da Líbia até a Hélade, ia aumentando de pontos até dar 60 côvados. Não havia dúvida, porém, de que Anteu era um gigante, como também Hércules era bastante agigantado. Sim: dois "massas". Os formidáveis contendores mediram-se com os olhos. Anteu estava risonho o riso dos lutadores seguros de si e jamais derrotados. Tinha fama de invencível, e ninguém mais do que ele acreditava nessa invencibilidade. Hércules apresentou-se sereno como sempre. Seu rosto não revelava a menor expressão de inquietude. — Preciso desses ossos! — disse Anteu numa gargalhada. Em vez de replicar, Hércules atacou. Mas atacou como atacava sempre, confiante na sua força e certo de suplantar o adversário. Em todas as lutas vence o mais forte, o que bate mais, o que se cansa menos. O cansaço é a principal causa de todas as derrotas. Quem aguenta um minuto mais que o parceiro, está vencedor. Hércules não o ignorava. Naquele dia, porém, teve ocasião de verificar a "incansabilidade" de Anteu. Depois de meia hora de luta, atracado com o Número Um de todos os grandes lutadores da antiguidade. Anteu apresentava-se ainda mais fresco do que uma bela manhã de maio. E sorria o sorriso descuidoso dos invencíveis. O calor da luta fizera que Hércules esquecesse completamente a ideiazinha da Emília quanto à "desligação" do gigante; de modo que estava a lutar com Anteu como sempre lutara até ali. Mas estranhou uma coisa: nunca, em tempo algum, houve contendor que resistisse tanto. Em regra o nosso herói derrubava o adversário nos primeiros golpes. E Anteu resistia já de meia hora sem apresentar o mínimo sinal de cansaço. Hércules começou a inquietar-se.

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Nesse momento Emília gritou: — Desligue, Lelé!... Um clarão iluminou o cérebro do herói. Lembrou-se da conversa sobre a eletricidade e do plano que ele havia concebido de destacar do solo os pés de Anteu. Como fora esquecer-se daquilo? Que cabeça a sua!... Mas estava salvo. A advertência de Emília viera muito a tempo. Hércules deu então um golpe habilíssimo, do qual resultou ficar Anteu de pernas para o ar, completamente destacado da terra, e enquanto com uma das mãos lhe apertava o pescoço, com a outra o impedia de pousar os pés no chão. A força de Anteu esvaiu-se como por encanto. O gigante estrebuchou no ar e moleou o corpo... O povo estava no maior estarrecimento de assombro. Ninguém falava. Todas as respirações suspensas, como no circo de cavalinhos quando a música para. Por alguns instantes Hércules ainda manteve suspenso aquele corpo sem vida; depois arremessou-o ao solo — e o gigante aplastou-se como um pano molhado que cai... A multidão continuava paralisada de espanto. Seria possível? Estariam realmente libertos do odioso rei? E todos esfregavam os olhos, com medo de que fosse sonho. Mas quando se convenceram de que não era sonho e sim maravilhosa realidade, o hurra que o povo deu foi um urro uníssono que durou minutos e minutos. — Viva Héracles, o herói invencível! Viva Héracles — o nosso libertador! Uma onda de gente lançou-se de rumo ao herói para erguê-lo e carregá-lo em triunfo. Hércules chamou Emília. Ergueu-a e levou-a ao braço, como uma menina leva uma boneca. E lá seguiu para o palácio sob o delírio das aclamações. Uma voz gritou, indicando Emília:

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"É o talismãzinho dele! Um talismã vivo!..." Hércules respondeu: "Mais que isso. É o meu verdadeiro cérebro. É a minha dadeira de ideias..." palavras que ninguém podia entender. Minervino seguia rente, com o Visconde erguido ao ombro e a mão dada a Pedrinho. E foi a primeira vez que Pedrinho lamentou não ser gente grande, pois, comprimido na imensa massa de povo, era arrastado pela onda e não via coisa nenhuma. No palácio o povo quis que Hércules ocupasse o trono da Líbia. Um rei como aquele, que regalo! E num momento de embriaguez o herói quase aceitou a coroa tão espontaneamente oferecida. Mas o "talismã" chamou-o à ordem. "Não pense em tronos, Hércules. Dona Benta diz que o pior dos monstros é o povo, porque um dia aclama os chefes e no dia seguinte os destrói. Nada como ser "herói em seco” — só, sem mais nada." Hércules deu-lhe razão e agradecendo a manifestação popular, declarou que o trono da Líbia tinha de ser ocupado pelo mais digno dos líbios. O povo que o escolhesse e o sentasse no trono por tanto tempo ocupado pelo cruel Anteu. Terminada a grande manifestação, Hércules foi ao templo de Netuno, feito com os ossos das pobres vítimas do gigante, e destroçou-o a pontapés. Emília gritou para Pedrinho que não se esquecesse de meter no bolso uma vértebra para o seu museuzinho. À noite houve um grande banquete oferecido ao herói. Hércules comeu como nunca — e beberia de cair, se Emília não interviesse: "Nada de excessos alcoólicos, Lelé. Muito perigoso. Você perde a cabeça e põe-se a fazer estragos nestes pobres líbios tão entusiastas." Hércules obedeceu e só tomou água com mel. No dia seguinte o herói amanheceu outro. Havia sarado completamente do acesso de "cólera recolhida". O Visconde observou que para os grandes heróis só os grandes remédios. "Um mortal comum cura-se com qualquer laxante de sulfato de magnésia, para um Hércules o purgante tem de ser um Anteu." Um egípcio aproximou-se e disse:

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— Grande Héracles, meu país também está necessitado de uma limpeza no trono. Temos como rei um verdadeiro monstro, talvez ainda pior que Anteu. — Quem é ele? — Busíris, filho de Posseidon e Lisianasa. Anteu lutava e matava todos os estrangeiros aportados na Líbia. Busíris sacrifica no altar de Zeus todos os que aportam ao Egito. Por que não vais lá e não libertas o nosso povo daquela calamidade feita homem? Hércules olhou para Emília como quem pede parecer. Emília disse: — O papel dos heróis é limpar de monstros o mundo. Vá, Lelé, e achate com o tal Busíris. Hércules prometeu e, depois de despedir-se do novo rei e daquele bom povo, tomou o rumo do Egito. Busíris no começo não se revelara cruel, e assim foi até o dia em que uma grande seca assolou o país. Nove anos durou tal seca. Os bois foram definhando todos. As plantações secaram-se. Gente morria de fome por todos os cantos. Vendo a gravidade da situação, um famoso adivinho daquela época, de nome Frásio, procurou o rei e disse: — O meio de pôr fim à horrível estiagem que está destruindo o Egito é um só: sacrificar a Zeus um estrangeiro. Frásio era estrangeiro, e Busíris fez como o tirano Fálaris: mandou agarrá-lo e sacrificá-lo no altar de Zeus. E como por coincidência viesse uma chuva no dia seguinte, Busíris convenceu-se de que o meio de fazer chover estava realmente naquilo — nunca mais cessou com os sacrifícios humanos. Minervino advertiu ao herói do grande perigo que era para um estrangeiro penetrar no reino de Busíris, o qual possuía grandes

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exércitos. Mas aconselhado pela Emília o herói desprezou o conselho da prudência e transpôs as fronteiras do Egito. Ao ter conhecimento do fato e dos propósitos de Hércules, Busíris enfureceu-se e lançou contra ele um exército de dez mil núbios ferozes como tigres. Hércules foi capturado, acorrentado e conduzido à presença de Sua Majestade. — Sei o que fizeste para o meu grande amigo Anteu — disse-lhe Busíris, mas vou vingar a majestade real ofendida pelo teu crime. Serás sacrificado amanhã no altar de Zeus. Os picapauzinhos ficaram numa grande aflição. Pela primeira vez viam Hércules dominado e infamemente acorrentado. E como o exército de Busíris era um verdadeiro enxame de vespas ferozes, armadas de lanças pontiagudíssimas e escudos de couro de rinoceronte, Pedrinho e o sabuguinho consideraram tudo perdido. Unicamente Emília não perdeu a fé no herói. — Ele arruma-se — dizia ela. — Como, boba? — Não sei; só sei que no último momento dá um jeito. Tenho a mais absoluta confiança em Lelé. Mas apesar da confiança da Emília, Minervino, Pedrinho e o Visconde não viam de que modo o herói acorrentado pudesse arrumar-se — e estavam na maior angústia. Chegou o dia do sacrifício. Numerosos sacerdotes dispuseram-se em redor do altar de Zeus à espera da vítima. E quem era a vítima a ser sacrificada a Zeus? Justamente um dos mais generosos e famosos filhos de Zeus... Minervino e os picapauzinhos fora colocar-se num ponto de onde

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tudo podiam ver — o Visconde e Emília erguidos nos braços do mensageiro de Palas, Pedrinho de pé sobre um bloco de granito. Súbito, a multidão rumorejou e abriu alas. Era Hércules que vinha vindo, seguido duma legião de soldados. Busíris e seus cortesãos ocupavam uma plataforma erguida às pressas para aquele fim. Emília viu Hércules e a despeito de sua confiança no destino do herói teve vontade de chorar. Lá vinha ele acorrentado de pés e mãos e, por ironia, coberto de guirlandas de flores de lótus, que é a principal flor do Egito. O sacerdote sacrificador, lá diante do altar correu o dedo pelo fio da faca sagrada. "Se cortasse o dedo seria bem feito!" — pensou Emília. Hércules parou diante do altar. Não havia mudado em coisa nenhuma. A sua confiança em si próprio só era igualada pela confiança de Emília no destino dele. O sacrificador subiu a um banquinho, porque se tratava duma vítima muito alentada, e ergueu a faca. Ia cravá-la na garganta do herói... Mas o que houve até parece mentira. Naquele momento Hércules contraiu os músculos num esforço potentíssimo — e as algemas de ferro que o ligavam às correntes se romperam como se fossem de vidro. Libertou-se e, agarrando as correntes, utilizou-se delas como se fossem a sua clava. Num ápice varreu a soldadesca toda. O "espalha" foi dos nunca vistos. Corpos despedaçados voavam em todas as direções. A grita se fez imensa. Todo mundo fugia no maior pânico. O chão ficou juncado de escudos e lanças. Um grande claro se abriu em redor dele. Lá na plataforma, Busíris e os cortesões agitavam os braços, sem saberem o que fazer. Muitos fugiram a tempo. Os que patetearam foram atingidos pelas correntes que o herói arremessou — e caíram esmoídos. Um elo da corrente alcançou Busíris pela testa, e a mioleira espirrou como espirra água de poça quando cai uma pedra

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em cima. Hércules havia libertado o mundo de mais um odioso rei. E como a Houve uma panateneia em que Afidamante, filho de Busíris, e o arauto Calves, ficou o Egito também livre daquele filhote de serpente e do odioso anunciador das ordens cruéis do soberano esmigalhado.

AS ÉGUAS Depois de mais aquele tremendo feito. Hércules ficou radicalmente curado de qualquer restinho de "cólera recolhida" que por acaso ainda houvesse em seu coração — e lembrou-se das éguas de Diomedes. — Sim, temos de cuidar disso. Cada dia que passo aqui, mais vítimas lá nos bistônios são devoradas por aqueles monstros — e deu ordem de volta. A volta de Hércules para a Grécia foi rápida, e ocorreu sem outro incidente além do novo enjoo que o assaltou na travessia do Mediterrâneo. Que horríveis os enjoos do herói!... O Visconde aconselhou-o a cheirar e morder um limão, mas nunca houve remédio mais inútil. Hércules só sarou quando pôs o pé no promontório da Maleia. Lá estava Meioameio a esperá-los. Aproximou-se no galope, alegre e radiante como um menino que entra em férias. Pedrinho, Emília e o Visconde, todos falavam ao mesmo tempo. Cada qual queria ser o primeiro a contar os tremendos casos sucedidos na Líbia e no Egito. Depois conversaram sobre Diomedes. Meioameio contou que dava pena o que se passava por lá. As éguas carnívoras tinham um apetite hercúleo. Devoravam uma vítima por dia. Quatro éguas, quatro vítimas. O infame Diomedes espalhara um verdadeiro batalhão de guardas pelas costas a fim de recolher os pobres náufragos. Era o que toda gente por ali dizia.

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Prosseguindo na viagem, o grupo chegou à terra dos bistônios, onde acamparam fora da cidade em que residia o rei. Hércules, que estava cansadíssimo porque a viagem por mar o enfraquecera muito, determinou refazer-se com dois dias de repouso absoluto — e pediu a Pedrinho que fosse ver onde ficavam as éguas. Pedrinho partiu com o Visconde. As éguas viviam num estábulo de granito, solidamente acorrentadas. Quem tirou a limpo esse ponto foi o Visconde. Pedrinho ficou de longe, escondido atrás duma árvore. As comissões mais perigosas sempre cabiam ao sabuguinho. Pequeno como era, e com o seu ar de aranha de cartola, com facilidade se insinuava por toda parte sem que o percebessem. O seu reduzido tamanhinho facilitava tudo — e se por acaso levasse à breca, tia Nastácia fazia outro. Sabugos não faltavam no sítio de Dona Benta. O Visconde chegou até a entrar no estábulo das monstruosas éguas para verificar se tinham realmente cascos de bronze. Tinham. Ele bateu num deles com um pedregulho. Terminado o repouso, Hércules levantou-se completamente refeito da viagem por mar e pronto para a realização da nova proeza. Seguiu o caminho indicado pelo Visconde, indo dar nos estábulos. Diante das éguas se deteve para estudar a situação. Eram quatro. Tinha de arrancá-las dali uma por uma; isso, porém, depois de destroçar uma dúzia de guardas ali postos por Diomedes. Essa parte foi a mais simples. Com doze golpes de clava Hércules abateu os doze guardas. E agora? Como fazer com as éguas? Lembrou-se duma coisa. Perto morava Abderos, um seu amigo. Submeteria as éguas e as levaria a Abderos para que as guardasse. Por que isso? Por que não as destruía duma vez? A explicação era a seguinte: Hércules desejava pregar em Diomedes uma grande peça: fazer que aquelas éguas, que já haviam comido tanta gente, também

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o comessem a ele. Deixava-as guardadas por Abderos; e depois de derrotar as forças de Diomedes e aprisionar esse rei, então o faria devorar pelas éguas. Um malvado daquela marca estava a reclamar um castigo assim. E Hércules subjugou uma por uma as éguas e as levou para a vila de Abderos. — Conserve-as aqui até que eu traga a sobremesa que merecem estas devoradoras de gente. Disse e voltou para desafiar Diomedes e suas forças. O exército dos bistônios foi facilmente derrotado e Diomedes aprisionado. Hércules acorrentou-o e levou-o à morada de Abderos, mas lá passou por uma grande decepção: as éguas haviam devorado o seu pobre amigo... A dor de Hércules foi imensa. Depois da dor veio a cólera — e, agarrando Diomedes, arremessou-o para cima dos monstros famintos. Pedargo foi a primeira que mordeu. Lampon, Janto e Deno vieram a seguir. Em segundos Diomedes se viu estraçalhado e transferido para o bucho das feras. E agora? Matá-las? Não. Tinha de levá-las vivas a Euristeu, pois do contrário o desconfiado rei não acreditaria na realização do oitavo Trabalho de Hércules. Mas como levá-las ali da Trácia até Micenas? Conduzir o touro de Creta fora fácil, porque o touro era um. Tratando-se de quatro éguas a dificuldade quadruplicava. A solução que Hércules achou foi muito simples: levá-las uma a uma. Para isso teria de fazer quatro vezes o trajeto dali a Micenas, ida e volta. O que se fez. As éguas foram levadas uma a uma e deixadas escondidas lá na floresta do acampamento. Como não comiam capim, houve necessidade de alimentá-las com carne — e os rebanhos dos arredores sofreram forte devastação.

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Depois de conduzir para a floresta as quatro éguas e de deixar lá o Visconde a guardá-las, o herói foi ao palácio como das outras vezes. — Quero falar com Sua Majestade — disse ao porteiro — e o porteiro o introduziu à real presença. — Majestade, as éguas de Diomedes, comedoras de gente, já se acham aqui, conforme as ordens recebidas. — Onde? — Na floresta do nosso acampamento, guardadas pelo meu escudeiro. Euristeu desapontou pela oitava vez. O despeito o fez morder os lábios. Olhou para Eumolpo. O ministro tinha a cara no chão. O rei segurou a barba. Ficou pensando por alguns segundos. Depois disse: —Muito bem. Solte-as... Hércules não discutia ordens. Não fez nenhum sinal de estranheza. Limitou-se a uma curvatura de cabeça. — Assim será feito, Majestade — e voltando ao acampamento disse a Pedrinho: “Euristeu ordenou-me que soltasse as éguas.” — Soltá-las? — exclamou o menino, admiradíssimo. Soltar essas feras antropófagas?... — É o que me resta a fazer... Pedrinho não compreendia aquela estranha submissão de Hércules ao rei. Com um peteleco podia mandá-lo para o beleléu, e no entanto humilhava-se diante dele, executava-lhe todas as ordens por mais absurdas que fossem, como faz o escravo para o senhor.

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O Visconde estava sentadinho num toco de pau lá na fímbria da floresta. Hércules gritou-lhe de longe: — Solte as éguas, escudeiro!... Emília espantou-se daquele absurdo. Que coisa!... Mandar o coitadinho soltar quatro monstros antropófagos, pesadamente acorrentados. A forcinha do Visconde não dava nem para erguer um dos elos das correntes. Será que o herói enlouquecera de novo? — cochichou ela para Pedrinho. E protestou: — Isso também não, Lelé. É preciso respeitar a fraqueza humana. Hércules deu uma grande risada. — Estou brincando — e foi ele mesmo soltar as éguas. Os picapauzinhos treparam à árvore mais próxima e foi lá de cima que assistiram ao terrífico espetáculo da galopada das éguas de Diomedes por aqueles campos afora... Que destino tiveram tais monstros? Dias depois vieram a sabê-lo por Minervino, quando o mensageiro de Palas voltou da mansão dos deuses. — Foram devoradas por um bando de lobos nas encostas do monte Olimpo. — Lobos? — exclamou Emília muito assustada. — Lá é possível que existam lobos capazes de devorar semelhantes monstros? Minervino explicou que era um bando de lobos olímpicos. Revoltado contra o procedimento de Euristeu, o deus dos deuses lançou contra elas um bando de lobos ferocíssimos.

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— Por que não as matou com aqueles raios fabricados por Hefaistos? — quis saber Emília. — Porque Zeus reserva os seus raios para fulminar os homens. No dia seguinte recebeu Hércules um chamado de palácio. Foi. O rei já havia conferenciado com Eumolpo e escolhido mais um Trabalho para o herói — o nono. E foi nestes termos que o comunicou: — "Hipólita, a rainha das amazonas, possui aquele cinto maravilhoso com que Ares a presenteou. Minha filha Admeta faz questão de ser dona desse cinto. É só." Hércules voltou para o acampamento tão apreensivo como das outras vezes. Era tal qual o General Napoleão que, consultado sobre o que sentia antes de travada a batalha, respondeu: "Medo". Cada vez que Euristeu o incumbia dum trabalho, Hércules sentia medo. Assim foi naquele dia. Quando chegou ao acampamento ainda estava inquieto. — Que vai ser agora? — perguntou Pedrinho, que lhe saíra ao encontro. Hércules suspirou. — Algo terrível. Admeta, a ambiciosa filha de Euristeu, quer ser dona do famoso cinto que Ares deu à rainha das amazonas. Tenho eu de ir ao reino dessas terríveis guerreiras em busca do tal cinto... — Está com medo, Hércules? — Medo propriamente não — declarou o herói — mas não me iludo quanto às dificuldades desse trabalho. As amazonas são guerreiras terríveis e numerosíssimas — e o pior é que são mulheres. Nunca lutei contra mulheres, chego até a achar uma coisa sem jeito. Daí vem a minha preocupação. Perto dali, lá defronte do Templo de Avia, estava Emília sentadinha ao lado do Visconde, falando mal de Juno.

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— Bisca maior nunca vi! — dizia ela. — Má, má, má até ali. Parece até aquela negra lá perto da ponte, que matou a filha de tanta judiação. Ah, se eu fosse Zeus! Jogava aquela bisca lá de cima com um bom empurrão, e casava-me com Palas. Essa, sim, merece ser deusa. O Visconde recordou a advertência de Minervino sobre o perigo de falar mal dos deuses. — Ela não escuta — disse Emília. — Estou falando baixinho... Além disso, eu... Emília não acabou a frase. Tentou concluí-la e não pôde. Ficara subitamente áfona, ou sem voz. Muda! Muda como um peixe! Pensava direitinho, queria falar e nada — de sua boca não saía som nenhum. O Visconde, impressionadíssimo, examinou-lhe a garganta. Depois foi correndo avisar Pedrinho, lá às voltas com Hércules. — Pedrinho — disse ele — parece que Emília emudeceu... — Emudeceu? Como? Que história é essa?... — Emudeceu; ficou muda; perdeu a faculdade de falar. — Como?... — Estava conversando comigo muito bem, ali na porta do Templo, e de súbito parou no meio duma frase: "Além disso, eu..." Pôs-se a fazer caretas, esforçou-se e nada. Nada mais saiu, nem sai. Espiei a gargantinha dela. Tudo normal. É um mistério que não compreendo. Pedrinho correu a ver. Encontrou Emília muito agitada, querendo falar e não podendo. Muda. Absolutamente muda! Na ânsia de explicar-se, foi lá à canastrinha, tirou um pedaço de papel e com um toco de lápis escreveu: "Quebrou-se lá dentro de mim alguma peça.

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Quero falar e não posso. Tenho medo de que seja castigo do céu; eu estava falando mal de Juno, a coitada, uma deusa tão bonita e boa! Se ela tem ódio a Hércules é com razão. Hércules não tem culpa nenhuma, bem sei, mas Juno tem razão. Coitada!... Há de sofrer muito com aquele marido tão ruim... Perdão! Zeus também não é ruim, coitado. Só que a trabalheira dele é demais..." Pedrinho perguntou: — Mas não pode mesmo falar nada, Emília? E ela escreveu: "Não está vendo? Felizmente não fiquei surda e me arrumo deste modo: ouço e dou a resposta por escrito..." — Mas isso não pode ficar assim, Emília. Temos de ver um jeito de curar essa mudez. Se for coisa do Olimpo, nós nos arranjaremos com Palas por intermédio de Minervino. E se for algum desarranjo fisiológico, podemos consultar os grandes médicos de Atenas — ou então procuraremos Medeia. Ela dá uma fervura e pronto. Emília escreveu: "Não quero que me fervam. Tenho medo de ficar cozida por dentro. A minha mudez há de ser mesmo coisa lá do Olimpo, porque veio exato no momento em que eu a chamava de bisca. Minervino me há de valer." O mensageiro de Palas era um homem esquisito. Ora estava ali, ora não estava. Aparecia e desaparecia sem dizer adeus — mas naquele momento em que tanto precisava dele, nem sinal de Minervino. O Visconde contou a Hércules a história da subitânea mudez da Emília. — Pois é isso. Parou no meio da frase e nunca mais. Mudíssima, coitadinha... Hércules não queria acreditar.

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— Há de ser coisa passageira. Uma vez fiquei assim por causa dum forte resfriado. Perdi completamente a voz... — Ficou áfono — disse o Visconde. — Pois "áfono" (privado da voz) é uma palavra grega. "A" quer dizer sem, e "phone" você sabe que é voz. Nós lá no nosso mundo moderno usamos muitas palavras vindas daqui, como "fonógrafo", escrita da voz; "fotografia", escrita da luz, isto é... — e o Visconde explicava, explicava e Hércules não entendia. Apesar de grego, o herói ignorava as palavras gregas da ciência, que o Visconde, que era sabugo, tinha na ponta da língua. Hércules admirava muito o Visconde. Ficava às vezes horas a ouvi-lo falar das tais coisas científicas, fazendo os maiores esforços para entendê-lo. Por causa daquela sua "ideia sobre a educação", o herói procurava educar-se nas cienciazinhas do escudeiro. — Pois é — disse o Visconde. — Emília está áfona — sem voz — muda... Você também ficou áfono por causa do resfriado. E muito receio que a mudez da Emília seja uma vingança de Hera. — Por quê? — Porque Emília estava falando mal de Hera quando emudeceu. Emília não tem papas na língua. Diz tudo quanto sente. E como está de ponta com Hera, volta e meia a trata de "bisca"... — Que é bisca? — perguntou Hércules. O Visconde disse tudo o que sabia sobre a palavra "bisca" e rematou: — Quando lá no sítio a gente quer falar mal duma pessoa, diz "é uma peste", “é uma praga” ou “é uma bisca". Emília vivia chamando Hera de bisca — e foi numa dessas vezes que emudeceu...

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Hércules ficou pensativo. Depois levantou-se e foi ver a nova vítima da vingativa deusa. — Então, Emília? É verdade que perdeu a fala? Emília fez uma carinha de "sim" que deixou o herói seriamente condoído. — Temos de cuidar dela — disse ele voltando-se para Pedrinho. — Palas, a boa deusa que tanto me tem valido, há de valer a ela também. Aguardemos a vinda do mensageiro. A mudez da Emília foi um sério transtorno para o herói e os picapauzinhos. Emília era a alma do bando. Sem Emília ninguém se arrumava — além de que só ela possuía o segredo mágico do faz-de-conta, esse supremo recurso das ocasiões de grande perigo. Se não fosse a aplicação do faz-de-conta na luta de Hércules com o javali do Erimanto, onde estaria o herói naquele momento? Com certeza morto e enterrado. E como era assim, Hércules decidiu que a restauração da voz da Emília tinha muito mais importância para todos eles do que a conquista do cinto de Hipólita.

A MUDEZ DA EMÍLIA Todos os outros assuntos foram encostados. Hércules e Pedrinho não tiravam da cabeça o caso daquela misteriosa mudez. Como não pudessem encontrar uma "causa fisiológica", como dizia o Visconde, assentaram em que a causa era divina — evidentemente vingança de Juno. A pobrezinha estava tão convencida disso que entrou a adular a deusa. O Visconde pilhou o papel em que ela acabava de escrever uma oração assim: "Divina Juno, a mais formosa das deusas, a mais bondosa de todas — protegei-nos! Se te ofendi, perdoa-me. Uma deusa tão importante não pode vingar-se duma pobrezinha como

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eu, feia, boba etc." e ia por aí além, com as maiores adulações possíveis. Depois pediu a Pedrinho que construísse um altar em honra a Juno e o encheu de flores. Hércules estava profundamente comovido e a estranhar uma coisa: como é que já tendo sido pai de vários filhos nunca sentiu por nenhum deles o que sentia por aquele pelotinho de gente? Dois dias passaram eles ali a só pensarem naquilo, cada vez mais ansiosos pela volta de Minervino. No terceiro dia pela manhã o mensageiro de Palas reapareceu. — Que há? Que tristeza é essa? — disse ele, percebendo que algo de anormal havia acontecido. Pedrinho explicou o caso da mudez. — Hum! — exclamou o mensageiro. — Eu bem que avisei. Eu bem que andava prevendo isso. A irreverência da Emília tinha de acabar mal. Não conheço a causa da mudez; mas estou a jurar que e uma vingança de Hera... — Vem vindo do Olimpo? — indagou Pedrinho. — Não ouviu nada por lá a respeito? — Nada. Estive combinando com Palas a defesa de Hércules no novo Trabalho que ele vai empreender. As amazonas são as mais terríveis guerreiras que o mundo já viu. Palas fez-me mil recomendações. — Pois só vejo uma saída — disse Pedrinho, — você voltar ao Olimpo para discutir o caso da Emília. Já que Palas se interessa tanto por Hércules, não há de querer que ele fique privado da ajuda da Emília. No caso do javali foi ela quem salvou tudo. E mesmo no caso de Anteu, se não fosse a sua lembrança da "desligação" é muito possível que a luta acabasse de outra maneira. E Hércules já disse que não dará um passo para a ida à terra das amazonas antes de

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resolver o caso da Emília. Volte já ao Olimpo para conversar com Palas. Minervino concordou. Era de fato o que havia a fazer — e lá partiu para o Olimpo. Encontrou os deuses a se banquetearem. O lindo Ganimedes, com uma ânfora de ouro em punho, estava a servi-los de néctar. Zeus, imponentíssimo em sua barba olímpica, comentava o caso da briga entre Apolo e Hércules. — Ah, estes meus filhos! — disse ele depois de sorver um gole da divina bebida e lamber os beiços. — Vivem em rixas. Nós que devíamos dar o bom exemplo aos humanos, comportamo-nos ainda pior que eles. Que trabalho tenho para harmonizar estes deuses e deusas!... Hera me dá mil aborrecimentos com o seu inextinguível ódio a Hércules — e agora é Apolo que também se põe contra ele... Apolo procurou justificar-se. — Reconheço as qualidades de Hércules, mas também reconheço que frequentemente se excede. Desta vez, por exemplo. Não só se atreveu a matar um humano que me fazia um sacrifício, como foi a Delfos e arrancou de lá a trípode. Ora, isso também é demais... — Fez muito bem! — disse Palas. — A Pítia ofendeu-o da maneira mais brutal. Ele queria consultá-la para conhecer o teu pensamento, Apolo, e certamente se submeteria ao que tu, por intermédio da Pítia, lhe dissesses. Mas a Pítia deu-lhe as costas... — E fez o que devia fazer, — contraveio Apolo. — Estava informada do crime de Hércules contra a pessoa dum meu devoto. — Sus! Sus!... — exclamou Zeus. — Basta de recriminações. Penso como Palas. Se Hércules foi consultar a Pítia, é que estava com remorsos na consciência e procurava ser guiado. Hércules não mata por maldade. Erra muitas vezes, eu o reconheço, mas erra de boa fé.

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Juno mordeu os lábios. A indulgência de Zeus para com o herói punha-a fora de si. Foi nesse momento que Minervino entrou. Entrou na sala dos banquetes olímpicos e fez de longe um sinalzinho a Palas. A deusa levantou-se disfarçadamente e foi ver o que era. — Que há? — Há que Emília perdeu o dom da voz. Emudeceu subitamente no meio duma frase... Palas fincou os olhos em Juno, que naquele momento cochichava ao ouvido de Hermes. — Escute. Sobre que assunto estava Emília falando no momento de emudecer? Minervino respondeu muito baixinho: "Sobre Hera. Estava dizendo que bisca maior não pode haver." Palas sorriu de satisfação, murmurando entre dentes: "E não disse nada de mais..." E depois de uns instantes de pausa: — Pois já não tenho dúvida nenhuma: Emília emudeceu por interferência de Hera. Vejo nisso o dedo da "bisca". Depois daquele caso do javali do Erimanto, Hera jurou perder Emília. E na luta de Héracles com Anteu, ela também ouviu perfeitamente o conselhinho de Emília: "Desligue, Lelé!" e foi exatamente isso o que determinou a vitória. Observei tudo muito bem. Estávamos todos aqui assistindo à luta. Ao ouvir essas palavras Hera mordeu os lábios. Eu pensei cá comigo: "Pobre Emilinha! Nunca mais terá sossego..." E vem agora você com essa história da mudez... Minervino disse que tanto Hércules como Pedrinho e o Visconde não viam outra solução afora a intervenção divina.

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— Estão convencidos de que a mudez não sobreveio em consequência de nenhum distúrbio fisiológico, e sim da intervenção de Hera. — E não erraram. Há de ter sido Hera, sim. Como está esperançosíssima de que Héracles perca a partida na expedição contra as amazonas, quer afastar a Emília... E Palas ficou a refletir. Tinha de atrapalhar o jogo de Hera. Mas como? Depois duma breve pausa disse: — Só vejo uma solução: Medeia. Hércules que a leve ao palácio de Medeia. Com uma boa fervura, a Emilinha fica totalmente nova e mais faladeira do que nunca. Aconselho isso. O mensageiro fez uma reverência e saiu. Minutos depois chegava ao acampamento. Chamou Hércules de parte e deu-lhe conta da sua missão. — Palas já está a par de tudo e acha que só uma boa fervura no caldeirão de Medeia poderá restituir a falinha da Emília.

O CALDEIRÃO DE MEDEIA Foi um custo convencer Emília a se deixar ferver pela grande feiticeira. —"Não quero, não quero" — escreveu no papelzinho. "Tenho medo de ficar cozida por dentro." Minervino explicou que isso era absurdo. Todos tinham visto os bons resultados do caldeirão na experiência do Visconde — e também lá estava jovem e bonito aquele Rei Egon, de quase oitenta anos, que ela picou e ferveu. A fervura que cozinha por dentro é a

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fervura comum das cozinheiras. A fervura da grande feiticeira era magia da mais alta, e com efeitos muito diversos. — "Tenho medo, tenho medo... escreveu de novo Emília. Pedrinho interveio. — Medo! Medo!... Estou admirado de ver essa palavra neste papel. Você lá no sítio nunca teve medo de coisa nenhuma, e agora está que nem vovó. Qualquer dia se põe a ter medo também das baratas... Emília escreveu: "Pergunte ao Visconde o que ele sentiu." Pedrinho perguntou. — O que senti? — repetiu o Visconde. — Ah, um atordoamento delicioso quando a feiticeira me dividiu em pedacinhos com aquela faca; depois perdi os sentidos. Quando acordei, me vi moço e corado... Emília escreveu: "É que ele estava louco. Já comigo vai ser diferente porque não estou louca. Só se me cloroformizarem... — Há clorofórmio por aqui? — perguntou Pedrinho ao mensageiro — e teve de explicar o que significava clorofórmio e quais os seus efeitos. Minervino respondeu que não, mas havia várias plantas dormideiras de um efeito maravilhoso. — Com uma gota do caldo dessas plantas o paciente dorme e não sente dor nenhuma. Emília escreveu que não era "paciente" e sim impaciente; e que se de fato esses sucos adormeciam uma criatura, então, então..." e parou. — Então o quê? — Perguntou Pedrinho.

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— "Então pode ser" — escreveu ela. Bom. A resistência de Emília estava meio vencida. A outra metade seria vencida lá por Medeia — e Hércules deu ordem de marcha. Partiram. No dia seguinte chegavam ao palácio da feiticeira. Hércules explicou o caso. Medeia, porém, não trabalhava de graça; e como ainda não houvesse recebido o pagamento da cura do Visconde, aproveitou-se da situação. — Sim, disse ela. Poderei ferver a nova doentezinha — mas... e aquela sua dívida, Hércules? O pobre herói coçou a cabeça. Eles são todos a mesma coisa: nunca pensam em dinheiro. D. Quixote era assim. Rolando também. Hércules, Teseu, Perseu, todos eram assim. E aquela exigência de Medeia o desnorteou. Pedrinho meteu o bedelho: — Emília tem uma canastrinha cheia de preciosidades. Pode muito bem pagar não só a cura do Visconde como a dela. Com o pomo de ouro, por exemplo... — "Dar o meu pomo de ouro em pagamento da cura do Visconde? Oh, nunca!" — escreveu a muda no papelzinho. — Cura do Visconde e a sua também, Emília. Não seja tão cigana. Que adianta possuir um pomo de ouro na canastra e ser muda? Pense bem. Ao ouvir falar em pomo de ouro Medeia ficou toda assanhada. Não havia na Hélade quem não ambicionasse a posse da maravilha. — E como conseguiu este pelotinho de gente um pomo com o qual todos os heróis vivem sonhando?

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Hércules contou o caso do gigante Atlas. Medeia ficou mais assanhada ainda. Emília afinal cedeu. — Sim. Vá lá. Fica o pomo pelas duas curas — e suspirou. O pomo estava no acampamento de Micenas com a enorme pedra em cima. Só Hércules tinha a força necessária para removê-la — e lá vai o pobre Hércules para Micenas. Não havia o que ele não fizesse para o bem da sua dadeira de ideias. Enquanto o herói ia e vinha, ficaram todos hospedados no palácio de Medeia. Passado algum tempo Hércules voltou. Vinha radiante, com o pomo na mão. — Pronto!... Medeia pegou na preciosidade e deslumbrou-se. Não havia dúvida que era realmente um dos tais pomos das Hespérides, de tanta fama no mundo inteiro. Valia não duas, mais mil curas. — Pois vamos começar a operação disse ela e encaminhou-se para a sala da fervura com todos atrás. Lá estava a grande caldeira ao fogo. Medeia botou mais lenha, e já de faca na mão olhou para Emília dizendo: "Aproxime-se!" Emília, porém, correu a agarrar-se a Hércules. Parecia tomada de grande medo. Medeia avançou em sua direção com a faca de Barba Azul em punho. Emília berrou: — Não! Nunca!... Ser picada por esse facão? Nunca!... — Mas é preciso, Emília — murmurou Hércules com toda ingenuidade, sem perceber que Emília já estava falando e portanto curadíssima da mudez sem necessidade de fervura nenhuma. — É preciso. Não posso dispensar o concurso de minha "dadeira de ideias" na viagem ao reino das amazonas; e que me adianta uma dadeira de ideias muda?

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Todos assombraram-se da lerdeza do herói. Estava ouvindo Emília falar e ainda convencido de sua mudez! Pedrinho, num verdadeiro delírio de contentamento, abriu-lhe os olhos: — Não vê que ela sarou por si mesma, Hércules? Não vê que está falando? Hércules arregalou os olhos e compreendeu — e que alegria a sua! Agarrou Emília e beijou-a. Depois abraçou Pedrinho e o Visconde. Tudo salvo! Tudo arrumado! A mudez desaparecera do modo mais misterioso. O herói desconfiou que havia sido coisa dos deuses e correu os olhos em redor em procura de Minervino. — Que é de Minervino? Sumira-se momentos antes. Ao ver o pavor de Emília diante da enorme faca, o mensageiro apiedara-se dela e voara ao Olimpo. — Palas, minha grande deusa, tende dó da coitadinha! Lá está diante de Medeia com a maior cara de horror que ainda vi. Horror da faca de picar gente... Veja se descobre outro modo. Palas compreendeu tudo e foi cochichar qualquer coisa ao ouvido de Zeus — e Zeus então operou o milagre: fez que a fala de Emília voltasse sem o recurso da fervura. Que alegria lá no palácio de Medeia! Pedrinho dava pulos de contentamento. O Visconde assoprava-se todo — sinal da "euforia" dos sabugos científicos. E Hércules então, esse babava-se de gosto. Emília falava e falava sem parar, como para reaver o tempo perdido. Ficou tal qual aquela boneca de pano que lá no sítio de Dona Benta tomou as pílulas falantes do Doutor Caramujo e falou pela primeira vez. Falou tanto que Medeia teve de tapar os ouvidos. — Levem esta diabinha daqui que já estou tonta.

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Mas Emília continuou a falar e reclamou a devolução do pomo. — Eu concordei em dar o pomo em troca da cura do Visconde e da minha. Mas como sarei por mim mesma, acho que a senhora só tem direito à metade do pomo... Hércules arregalou os olhos. Que esperteza!... Ele não havia se lembrado daquilo — e declarou a Medeia que Emília tinha razão. Se o pomo fora aceito como pagamento de duas curas, o pagamento de uma cura só tinha de ser meio pomo. Medeia afinal cedeu, de tão tonta que estava com o falatório da diabinha. E como fosse uma pena partir ao meio uma tal preciosidade, propôs dar em troca do pomo inteiro um talismã dos mais preciosos: uma varinha de condão. Os olhos de Emília chisparam. Seu maior sonho sempre fora possuir uma varinha de condão — para "brincar de virar as coisas". Medeia foi lá ao quarto dos badulaques e trouxe uma varinha de condão como as que as fadas usam. — Aqui a tem... Emília até tremeu ao pegar a vara e foi a virar mil coisas pelo caminho que ela voltou para o acampamento. — Saí ganhando! Saí ganhando!... gritava. Com esta varinha eu viro em ouro os pomos que quiser — e fez experiência numa azeitona. Com um toque da varinha virou-a num lindo pelote de ouro. Hércules estava de boca aberta. Que prodígio de esperteza, a sua minúscula "dadeira de ideias!..."

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O CINTO DE HIPÓLITA

O CINTO DE HIPÓLITA De volta ao acampamento Emília passou a tarde a virar e desvirar coisas. "Vira que vira, virade" eram as palavras que tinham de preceder ao toque da varinha — e o objeto em que a varinha tocava realmente virava na coisa pedida. Até o Visconde ela virou em jacaré, e o desvirou, porque o jacaré estava arreganhando uma enorme boca vermelha para devorá-la. E virou o Templo de Avia em uma encantadora casinha de boneca. E virou a clava de Hércules em mão de pilão — e assim por diante. Depois desvirava e deixava tudo como antes. Enquanto isso Hércules, de mão no queixo, seguia matutando no nono Trabalho que Euristeu lhe havia imposto: ir ao reino das amazonas conquistar o célebre zóster da rainha das amazonas, isto é, o cinto que Ares ou Marte dera a Hipólita, e ela usava como distintivo da sua realeza. As amazonas formavam uma curiosa raça de mulheres guerreiras, filhas de Marte e Harmonia. Habitavam as paragens do Termodonte, perto de Temíscira, no Ponto. O Reino do Ponto ficava na Ásia Menor, junto ao Ponto Euxino. As amazonas eram a contraparte feminina dos centauros; não que tivessem metade do corpo cavalo, metade mulher, mas, como só andassem a cavalo, pareciam formar com os cavalos um só corpo. Em seu reino não havia homens, só mulheres, e valorosíssimas — as maiores guerreiras da antiguidade. Desde mocinhas comprimiam o seio esquerdo de modo a atrofiá-lo. Para quê? Para não atrapalhá-las no lançamento das flechas. Além de valentíssimas eram de grande beleza e trajavam-se moda dos bárbaros: vestes bem justas no corpo, barrete frígio, bombachas

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diferentes das dos gaúchos. Para a defesa traziam um escudo redondo; e como armas, o arco e o dardo. Homem nenhum entrava no reino das amazonas, e o que ousasse fazê-lo era imediatamente destruído. Vinha daí a preocupação de Hércules. Como, sozinho, invadir aquele reino e arrancar da cintura de Hipólita um zóster que a não abandonava nunca? E Hércules pensava, pensava. Por fim resolveu levar bons companheiros. Só com a ajuda de outros heróis poderia conseguir alguma coisa e pensou em Teseu, Peleu, Telamon e outros grandes amigos. Tinha, pois, antes de mais nada, de procurar esses heróis e propor-lhes a aventura. Mas moravam em cidades diferentes. Procurá-los todos e discutir o assunto era empresa demorada. Hércules chamou Pedrinho. — Escute. Tenho de reunir vários amigos para a aventura das amazonas. Isso vai exigir uma série de viagens a uma série de terras. O melhor me parece que eu parta sozinho. Depois de formar o meu bando, venho buscar vocês. Hércules partiu em primeiro lugar para Atenas em procura de Teseu, o herói da Ática. Os pica-paus ficaram sozinhos. O primeiro dia se passou numa "viração" furiosa. O "Vira que vira, virade" não parava. Até o ribeirão Emília virou num pastorzinho da Arcádia que não sabia falar, apenas "murmurejava", como murmurejam os ribeirões. E Pedrinho, que nunca fora um menino adulador, estava agora todo amor e cuidados com a Emília. Como não adular uma criaturinha armada de tanto poder? E por mais absurdo que isto pareça, até Juno lá no Olimpo começou a ter medo de Emília — segundo informações do mensageiro de Palas no dia seguinte. — Acabo de chegar do Olimpo — disse ele. — Palas está radiante com a nova derrota de Hera no caso da mudez, e me disse que já agora nada tem Emília a recear das peças da deusa. "Se um leão for lançado contra Emília, ela o recebe com uma varada e transforma-o

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no que quiser — mosca, borboleta, pão-de-ló. Aquela varinha de condão é realmente um prodígio — mas é bom que ela saiba de uma coisa. Todas as varas de condão possuem um poder limitado. A de Emília só dá para cem viradas. Depois de cem viradas, torna-se uma vara comum, como as de marmelo, que só servem para surrar crianças. Avise-a disso." Ao saber da limitação de sua varinha mágica, Emília quase chorou de desespero. Com a brincadeira do vira-vira ela já tinha gasto quase todo o poder da vara mágica — e de maneira tão boba, meu Deus! virando até pedregulhos do chão, pedacinhos de pau, moscas... Pelos cálculos do Visconde, só devia haver na vara umas trinta viradas de resto! Quer dizer que Emília tinha desperdiçado setenta em puras bobagens. Cumpria-lhe agora poupar com o maior ciúme as restantes. E Emília, com um suspiro, guardou na sua canastrinha a vara de condão já quase no fim. Depois perguntou ao Visconde: — Que é "condão" Visconde? Às vezes a gente leva usando uma palavra toda a vida sem saber certo o que é. O sabuguinho explicou que a palavra "condão" vinha da palavra persa "condo", que queria dizer "sábio ou adivinhador". De modo que na língua portuguesa condão significava "prerrogativa", "privilégio", "graça", "dom". E vara de condão queria dizer vara de adivinhar. — Mas a minha vara não adivinha — objetou Emília. Vira só. — Adivinha, sim — respondeu o Visconde. — Quando você diz "Vira que vira, virade", ela adivinha o que você quer e executa a ordem. Todos engoliram a explicação.

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Lá pelas cinco horas estavam os três sozinhos ali no acampamento, à espera de Meioameio que saíra em procura de frutas e queijo para o jantar. De repente... — Que é aquilo lá? — exclamou Pedrinho apontando. Parece uma meninada... Era realmente uma meninada que vinha naquela direção — uma molecada de Micenas. Vinham correndo, numa gritaria. — Já sei! — berrou Emília. Souberam da minha vara e vêm atacar-nos... Numa das viradas ela havia virado um besouro em menino, e como naquela afobação se esquecera de desvirá-lo, o menino fugira e fora contar à molecada de Micenas a prodigiosa história. Os moleques ficaram no maior assanhamento e vinham em bando conquistar a vara. Que fazer? A resistência era impossível, pois se tratava dum bando de vinte. Recurso único: virá-los em qualquer coisa. Mas para virar vinte meninos era necessário gastar vinte viradas — e das trinta viradas que ainda sobravam na varinha só ficariam dez... Emília berrou: — Não quero! Não quero!... Não quero gastar quase todo o resto das minhas viradas à toa... — Não quer? então muito pior. — Tomam a vara — e zero... Emília, na maior aflição, compreendeu que tinha de ceder. Mesmo assim pensou num jeito de economizar uma virada: — Pois está bem. Vou virar dezenove moleques. O vigésimo você atraca-se com ele. Ou aguenta dois?

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Pedrinho declarou que dois ele aguentava. Ela que virasse dezoito que ele dava conta dos dois restantes. Desse modo bastavam dezoito varadas. Emília ainda ficava com doze viradas na varinha. Os moleques já vinham bem perto. Já se ouviam perfeitamente seus gritos. "A vara de condão é minha!" — berrava um. "É minha!" — berrava outro. "É de quem pegar!..." berrava a maioria. Tal qual a molecada do século 20 que corre atrás de balão queimado. Se os moleques de Micenas pegassem a vara, iriam espatifá-la — exatamente como os moleques modernos espatifam os balões caídos...

VIRADA — E no que é que os viro? — perguntou Emília. — Em moscas! — sugeriu Pedrinho. — Em livros! — lembrou o Visconde, que andava com saudades de umas leituras. Mas Emília, ciganinha como era, resolveu virá-los em coisas de utilidade prática de muita falta ali no acampamento — uma faca, um canivete daqueles gordos que têm saca-rolha, lima de unha, chavinha de parafuso etc., e em mais coisas que no momento veria. Os moleques chegaram e pararam. O mais taludo adiantou-se e disse: — Soubemos que há por aqui uma varinha de condão muito boa para virar coisas. Se nos entregarem por bem essa varinha, tudo acabará sem estragos. Se não entregarem por bem, entregarão por mal — e nós deixamos vocês todos reduzidos a pó de traque...

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Emília ainda correu os olhos pelo campo, na esperança de avistar Meioameio. Com o centaurinho ali talvez lhe fosse possível economizar mais umas viradas. Não vendo sinal de Meioameio, respondeu ao insolente ultimato do moleque: — A vara está aqui! Venham tomá-la, se são capazes. Viro a todos vocês em sapos horrendos... A ameaça tonteou os meninos, mas como prudência não é coisa que existe em moleque da rua, o chefe do bando avançou para arrancar a vara das mãos de Emília. Ela, porém, mais que rápida, cantou o "Vira que vira" e transformou-o em canivete. E com a mesma presteza virou um segundo em faca. E deu uma varada num terceiro, virando-o em tesourinha de unha. Enquanto isso Pedrinho achatava dois com os seus tremendos golpes de cow-boy de cinema. Emília virou um quarto em rolinho de esparadrapo, lembrando-se da falta que isso fizera no dia da cortadura do dedo. E foi virando os outros. Meioameio apontou lá longe, mas muito tarde. Não tinha mais tempo de ajudar na guerra. Estavam completamente derrotados os moleques de Micenas. Em vez deles só se viam por ali, espalhados pelo chão, os objetos de uso a que a vara mágica os reduzira. Dezenove moleques, dezenove objetos — isso porque, no calor da luta, Emília dera também uma varada num dos dois já derrotados por Pedrinho. — Avé, avé, evoé!... berrou a vitoriosa criaturinha, enquanto recolhia as preciosidades — o canivete de saca-rolha, a faca, a tesourinha, o rolo de esparadrapo... Só havia escapado um atacante, mas lá estava nocaute, com Pedrinho ajoelhado em cima de seu peito e a berrar: — “Conheceu, papudo? Pensa que pica-pau tem medo de molecada grega?” Que festa foi aquilo! Emília, radiante como a deusa Palas, examinava um a um os objetos. Sua canastrinha nem dava para tanta coisa...

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Depois, fez a conta das viradas restantes na varinha. Tinham sobrado onze. Ótimo! Com onze viradas na vara, quanta coisa não poderia fazer no futuro? E o Visconde? Ninguém havia prestado atenção nele durante o calor da luta. — Que é do Visconde? — berrou Emília. — Que houve, Visconde? Que gemidos são esses? — Estou ferido — disse ele com voz fraca. Parece que me quebraram a perna... Emília ergueu-o. O Visconde caiu de novo. Não podia aguentar-se de pé. Pedrinho veio examiná-lo. — Sim, quebrou a perna esquerda, o coitadinho. Nada mais certo. O pobre escudeiro estava com a perna esquerda quebrada — quebradíssima... Mas para quem dispõe dos milagres duma vara de condão, perna quebrada de Visconde o de menos. Com uma simples varadinha troca-se uma perna quebrada por uma nova — e Pedrinho gritou: — Emília, venha virar a perna quebrada do Visconde em perna nova. A cigana aproximou-se. Examinou a fratura e disse: — Com duas talas e um pouco de esparadrapo você conserta muito bem essa quebradura. Não vale a pena gastar uma virada com isto. E daí não se arredou. Por mais que o menino insistisse, a ciganinha não se animou a gastar uma virada no conserto do Visconde.

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— Bem diz Nastácia que você não tem coração, — queixou-se Pedrinho. E ela: — Tenho coração, sim, mas também tenho cabeça. Se com duas talas e um pouco de esparadrapo ele se arruma, por que hei de gastar com esta perna uma virada inteira, eu que só tenho onze na varinha? Não e não e não. — Então não quer bem ao Visconde? — Quero, sim, e muito — mas... e se eu não estivesse na posse da varinha? Tudo não se arranjaria muito bem com as talas? Pois faz de conta que não tenho vara nenhuma... E não houve meio. Pedrinho teve de preparar duas talas e entalar entre elas a perninha quebrada do Visconde. Depois fez-lhe um par de muletas. O moleque nocaute ainda estava ali, sob a guarda do centaurinho. Que fazer dele? Soltá-lo era perigoso: voltaria correndo para Micenas, avisava lá o povo e as complicações poderiam ser terríveis. Os pais iriam dar queixa ao Rei Euristeu — e nada mais natural que o "antipatia" mandasse uma escolta justar contas com eles. A solução era conservá-lo ali. Chamava-se Melampo o jovem prisioneiro, muito vivo e ar de remador. Pedrinho propôs-lhe um negócio: — Soltar nós não soltamos, porque você vai lá e conta tudo e temos complicações. Os vencidos na guerra são prisioneiros de guerra. Mas não queremos abusar da nossa força. Somos de bom coração e boa vontade. Proponho que fique aqui conosco, fazendo parte do nosso bando. As aventuras são tremendas — e contou a história dos oito Trabalhos de Hércules já realizados com a ajuda deles.

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— E agora vamos seguir para o reino das amazonas, em busca dum tal cinto duma tal Hipólita. Quer ir conosco? Perguntar a um menino daqueles se quer tomar parte em aventuras é o mesmo que perguntar a gato faminto se quer bofe. Melampo aceitou a proposta com o maior entusiasmo. E para animá-lo ainda mais Pedrinho disse: — Para começo, pode dar um galope por esses campos montado em Meioameio. O rosto de Melampo iluminou-se. Uma galopada de centauro, quanto não vale isso? Montou e lá se foi na disparada e de volta aderiu de coração ao grupo dos picapauzinhos, como se também fosse um neto de Dona Benta. Os dias passados ali foram dos mais agradáveis que tiveram na Grécia. Melampo era mestre em brincadeiras. Ensinou a Pedrinho todos os brinquedos dos meninos de Micenas e foi ensinado em todos os brinquedos modernos. Quem não gostou da história foi Meioameio. — Gente demais para o meu lombo — disse ele. — Se vocês arranjassem um jumentinho... A ideia foi recebida com palmas. Um jumentinho para Melampo! Mas onde encontrar um jumentinho? Melampo sabia. Não havia o que Melampo não soubesse ali daqueles arredores. Contou que a certa distância ficava uma bela criação de cavalos e jumentos, dum homem rico lá da cidade. Podiam chegar até lá e... Melampo montou em Meioameio e partiu no galope em procura do jumentinho. Emília ficou a consolar o Visconde.

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— Isso sara — dizia ela. — E se não sarar, tia Nastácia troca essa perna por outra, novinha e linda. Depois, mudando de assunto: — Que quer dizer Avé, avé, evoé?... Eu vivo berrando esse Ale guá dos gregos mas sem saber o que significa. O sabuguinho científico, gemendo, gemendo, explicou que naquela célebre guerra entre os deuses e os titãs, Zeus transformou o seu filho Baco num leão terribilíssimo e atiçou-o em cima dos gigantes com estas palavras: "Eu, uie, evohé, Bacche!" — Bem, meu filho, coragem Baco! Nas festas ao deus Baco os seus adoradores repetiam essas palavras sacramentalmente. — Mas o avé, avé, evoé? — insistiu Emília. — Isso é asneirinha sua, Emília. "Avé" quer dizer "Salve". "Evoé!" quer dizer "coragem." Salve, salve, coragem! é asneirinha sua, Emília. — E o "Ave" da "Ave Maria" também é "salve"? — Sim. Tanto faz dizer Ave Maria como Salve Maria... ai, ai, ai... Como me está doendo a perna...

O ASNO DE OURO Meioameio e Melampo voltaram trazendo pelo cabresto um belo asno de peludas e compridas orelhas, e antes de apear já Melampo gritou para Pedrinho: — Não foi necessário furtar jumento nenhum lá da criação do tal homem. Encontramos este sem dono logo ali adiante... Todos correram para ver. Emília achou-o com "muito ar" do Burro Falante.

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— Por que ar? — Tem ar até de falar — disse Emília; — e dirigiu-lhe a palavra: — Não será você também dos tais que falam, asno? — Sim — foi a resposta. — E falo porque sou homem e não asno. Esta aparência que estão vendo não é a com que nasci. Meninos comuns que ouvissem essas palavras da boca dum asno haviam de encher-se de verdadeiro terror — mas os picapauzinhos eram crianças que não se admiravam de coisa nenhuma neste mundo. Tudo lhes parecia naturalíssimo. Em vez de se sentirem tomados de terror, pediram ao asno que contasse a sua história. E o asno contou: — Chamo-me Lúcio. Em certa excursão que fiz a uma cidade da Tessália hospedei-me em casa do velho Milon, ao qual me haviam recomendado; e lá vim a saber que sua esposa era uma grande mágica. Quem mo revelou foi a criada Fótis. "Se quiser convencer-se, espie aquele quarto. É nele que a esposa de Milon prepara as suas feitiçarias." Espiei e vi a velha esfregando-se com uma pomada — e logo se transformou em coruja e saiu voando pela janela. Fiquei ansioso por fazer a mesma experiência: transformar-me em coruja e gozar a delícia dum passeio noturno pelos céus da Tessália. Com a ajuda de Fótis, penetrei no quarto da feiticeira e lá dei com uma bela coleção de potinhos de pomada. Cada uma transformava uma pessoa numa certa coisa. Peguei na que me pareceu pomada de coruja e esfreguei-me todo. Mas, ai de mim!... Eu havia errado de potinho e a pomada que passei no corpo me transformou em asno em vez de coruja. Meu desespero foi enorme. Que fazer? Fótis me disse que só havia um meio de perder aquela forma e readquirir o aspecto humano: comer rosas. Mas como não houvesse rosas por ali, eu tinha de esperar pelo dia seguinte. Era noite fechada. Fiz o que podia fazer: fui em procura duma cocheira;

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de manhã eu sairia pelo mundo em procura de rosas. Súbito, um rumor estranho. Eram ladrões que tinham vindo assaltar a casa de Milon — e lá me levaram pelo cabresto para uma caverna muito escura nas montanhas. E como eu resistisse a coices, quantas pancadas me deram! Fiquei mais morto que vivo, quase descadeirado. Lá pela madrugada passei por um soninho e tive um sonho. Nesse sonho a deusa Ísis me apareceu e disse: "Breve haverá uma festa em minha honra. Quando o sacerdote vier com a braçada de rosas que costumam depositar em meu altar, aproxime-se e coma uma. Voltará imediatamente à sua antiga forma humana." Fiquei radiante por dentro, mas como sair dali? Os ladrões não me levavam ao pasto — e preso lá fiquei longos dias, até que ontem foi a caverna assaltada por ladrões de outro bando. Houve luta e mortes. Aproveitei-me da confusão para fugir... — E foi pegado por Meioameio, não é assim? — Exatamente. Eu vinha vindo pela estrada, quando me surge à frente este centaurinho. Murchei as orelhas, submissamente — pois que pode fazer um pobre asno diante dum centauro? E agora estou aqui... Pedrinho ficou radiante. Dispor de um asno para conduzir Melampo já era uma grande coisa, mas dispor de um asno falante era mil vezes melhor — e propôs-lhe um negócio. — Nós não somos daqui, somos do mundo moderno, lá do sítio de vovó. Viemos para tomar parte nos Trabalhos do famoso Hércules. Conhece-o? O asno respondeu que não havia na Hélade quem desconhecesse o grande herói.

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— Pois é isso. Somos os companheiros e ajudantes de Héracles. Já estivemos em oito Trabalhos e agora vamos caçar o cinto da Hipólita, a rainha das amazonas. Proponho um negócio: você adere ao nosso bando na qualidade de cavalgadura de Melampo. No fim das aventuras, come as rosas do sacerdote de Ísis e volta a ser Lúcio. Topa? O asno coçou a cabeça. Aquilo de tornar-se cavalgadura dum menino desconhecido não era nada agradável, mas que fazer? Acabou concordando. — Pois está fechado. Fico na qualidade de cavalgadura deste menino. No fim, como as rosas e pronto. Melampo deu um pulo para cima do lombo do asno e disse: — Pois vamos a um passeio por estes campos. Quero ver se bom de andadura. O asno resignou-se. Não tinha prática nenhuma de levar cavaleiros em seu lombo. Trotou desajeitadamente. Levou esporadas do calcanhar de Melampo. Mas como fosse muito inteligente, breve se ajeitou às suas novas funções de cavalgadura. Estavam nisso, quando Hércules apareceu. Vinha com um fulgor de satisfação nos olhos. Ao ver aqueles personagens novos, um asno e um menino desconhecido, fez cara de ponto de interrogação. Emília explicou:

— Este é o Melampo, nosso ex-prisioneiro de guerra e agora amigo. E este é um tal Lúcio que em vez de pomada de coruja usou pomada de quadrúpede. Hércules não entendeu. Foi preciso que Pedrinho tudo explicasse miudamente. Depois contou que havia sido muito feliz em sua excursão.

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— Estive com Teseu, Peleu, Telamon, Sólon e outros heróis. Todos aderiram ao meu plano de ataque às amazonas e estão a preparar-se. Vim buscar vocês. Amanhã partiremos. Vamos nos reunir em Temíscira, no Ponto. — Teseu ainda continua lindo? — indagou Emília, que na aventura de Creta muito se impressionara com a beleza do herói. — Sim — respondeu Hércules. — A beleza de Teseu é quase divina. Encontrei-o em Atenas às voltas com um touro capturado nos campos de Maratona. Sabem que touro era? Ninguém sabia. — Aquele mesmo que pegamos em Creta e Euristeu soltou. Teseu conduziu-o a Atenas a fim de sacrificá-lo no altar de Palas. E o meu escudeiro?... perguntou Hércules, notando a ausência do sabuguinho. Não o estou vendo... Pedrinho contou a história do assalto dos meninos de Micenas, a luta havida, as dezenove viradas da varinha, o aprisionamento de Melampo e por fim a desgraça do Visconde. — Levou um tranco dos tais moleques e quebrou a perna. Já a encanei e fiz-lhe um par de muletas. Agora está dormindo um soninho. Hércules foi vê-lo. Lá estava o Visconde numa cama de musgos da floresta, a dormir um sono agitado. De vez em vez saíam-lhe da boca palavras inconexas. — Está delirando, — explicou Pedrinho. — Febre alta... Hércules ficou apreensivo. Se estava febrento assim o seu escudeiro, como poderiam partir no dia seguinte?

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— Dá-se um jeito, disse Emília. Pode ir numa redinha no lombo de Lúcio. Amanhã a febre passa. Logo que acordar hei de fazê-lo beber um chazinho de quina. — E onde acha quina por aqui, Emília? — perguntou Pedrinho. — Na Farmácia do Faz-de-conta... — respondeu ela, muito lampeira.

RUMO A TEMISCIRA Hércules tinha de ir por mar até ao Ponto Euxino, que era como então se chamava o Mar Negro de hoje. Por lá ficava o tal reino do Ponto, perto da Capadócia — a terra de São Jorge. Próximo de Temíscira, a capital desse reino, é que deviam reunir-se para a aventura das amazonas os amigos convidados por Hércules. A viagem por mar correu péssima para o herói, com aquela sua mania de enjoar o tempo inteiro, mas foi boa para a perninha do Visconde. Os ossos da quebradura soldaram-se; mesmo assim ficou mancando e não dispensava as muletas. Meioameio também foi — e também enjoou. Era a primeira vez que um centauro entrava em navio. No desembarque tiveram uma agradável surpresa. Foram recebidos pelo mais lindo e amável dos deuses: Zéfiro. — Mas Zéfiro não é um vento? — perguntou Emília — e o Visconde: — Sim. Para os modernos é um agradável ventinho de primavera. Para os gregos é um deus — e que lindo deus! Suave, tão fresquinho, tão perfumado das primeiras flores da primavera! Tem lindas asas de borboleta e a fronte cingida duma coroa de "primaveras".

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Pedrinho observou que no sítio de Dona Benta havia muitos pés de "primaveras”. — As lá do sítio são outras — disse o Visconde. São buganvílias, nome dado em honra a Bougainville, um famoso navegador francês. As daqui são flores duma plantinha rasteira que abrem no começo da primavera. Zéfiro usa na cabeça violetas e "primaveras" das daqui. Tem o corpo diáfano... — Que é diáfano? — quis saber Emília. — É um vocábulo composto de duas palavras gregas: "dia", através, e "phaino", eu brilho... Diáfano quer dizer quase transparente, ou translúcido. Quando a luz atravessa completamente um corpo, como no caso do cristal, diz-se que o corpo é transparente e quando não o atravessa completamente e sim "mal e mal", diz-se que é diáfano. O Visconde explicava as coisas tal qual Dona Benta: havia aprendido com ela. — Muito bem — disse Emília. — Zéfiro tem o corpo diáfano; e que mais? — Muito lépido e leve, desliza pelo espaço graciosamente, com uma cesta de flores na mão — daí os perfumes que vai espalhando à sua passagem. Zéfiro casou-se com Clóris, a mesma divindade que os romanos chamavam Flora, e é o pai de Carpo, uma das três Graças. — Quais são as outras? — Essas lindas divas têm nomes variáveis. Chamam-se Aglaia, Tália e Eufrosina, segundo diz o antiquíssimo poeta Hesíodo em seu poema sobre os deuses. Outros dizem que são Cleta, Pasiteia e Pito; outros, que são Faena, Hegêmona e Auxo; outros, que são Talo, Auxo e esta Carpo, filha de Zéfiro. As Graças em grego chamavam-se Cárites, nome que vem de caris, isto é, graça, alegria, agrado, amabilidade. E são um encanto as três Cárites. Só se preocupam de

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uma coisa: agradar — e possuem de fato o maravilhoso dom de agradar. Tudo no mundo que é macio, fino, afável, gostoso vem das Cárites... — Que mimo!... — exclamou Emília. — Já estou me encantando com elas. E juro que das três a mais bonita e agradável é Carpo, a filha de Zéfiro e Flora. Que delícia ser filha dum vento ou brisa tão leve e da deusa das flores perfumadas! e Emília ficou de narizinho para o ar, num enlevo, respirando com delícia o Zéfiro que perpassava. O Visconde continuou: — Zéfiro teve mais filhas: as Brisas... — As Brisas? — berrou Emília. — Que amor!... Qual a diferença que há entre ventos e brisas? — A mesma que há entre adultos e criancinhas. O vento é o pai — forte, valente, enérgico; a brisa é uma menininha de três ou quatro anos que só cuida de brincar. — Eu que sou? Brisa ou vento? — Você, às vezes, Emília, é um verdadeiro Pé-de-Vento... Enquanto assim conversavam a bordo da barca de vela, o pobre herói, de bruços na amurada, com os olhos muito brancos, vomitava as tripas. Pedrinho olhava-o com expressão condoída. — Mas não haverá um remédio para tanto enjoo? Nossa viagem vai ser longa — mais de trezentos quilômetros. E se Hércules morre? Emília teve uma ideia. — Visconde, os gregos possuem um deus para cada coisa. Será que não há um para o enjoo? — Ignoro — respondeu o sabuguinho. — Pergunte a Melampo.

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Nada mais inútil do que perguntar certas coisas a Melampo. Apesar de grego, sabia muito menos da história e das lendas gregas do que o Visconde, um simples sabugo. Melampo era mestre só numa coisa: reinações. Chegava até ao absurdo de, ali naquela barca tão apertadinha, montar no asno de ouro e fingir que estava galopando. E fincava-lhe os calcanhares como se fossem esporas e batia-lhe nas ancas tapas estalados... O Visconde contou que a história de Lúcio transformado em asno ia ser narrada por um escritor romano chamado Apuleio, que ainda estava no calcanhar da bisavó. Ao saber disso, o asno derrubou as orelhas. "Quer dizer que vou me prestar para a risota do mundo, ai, ai..." Antes do embarque já havia Lúcio descoberto uma linda roseira carregada de rosas e quase chorou de desespero. Bastava abocanhar uma delas e estaria devolvido à sua forma humana. Mas teve de engolir em seco. Estava ligado àquele grupinho pela palavra de honra. O pior era que sua função ali se resumia a uma coisa só: funcionar como besta de carga dum moleque de Micenas... Afinal chegaram — e não foi sem tempo. Hércules parecia Tony Galento quando foi tirado a braços do ringue. Teve de apoiar-se em Meioameio para não cair. O Visconde aconselhou-lhe um repouso de dois dias em terra. — Sim — acrescentou Emília — porque desse jeito, Lelé, se aparecer por aqui alguma das amazonas, quem perde o cinto é você — e apontou para a pele de leão invulnerável. Depois da luta contra o leão da Nemeia o herói nunca mais abandonara a preciosa pele. Pedrinho encarregou-se de procurar um sítio adequado ao repouso de Hércules. Escolheu um grupo de árvores, cuja sombra ficou sendo o "sanatório". Lá a vítima do enjoo se deitou e regalou-se com

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a delícia de sentir-se em terra firme. No dia seguinte Hércules amanheceu quase bom. O chazinho que lhe deu o Visconde era um porrete para "herói enjoado" — como disse Emília. Melampo fora bater papo com uns viandantes lá na estrada. Perguntou-lhes se os outros heróis já estavam em Temíscira. Ninguém sabia de herói nenhum. Quando o menino contou que fazia parte da comitiva de Héracles, o qual estava no "sanatório" descansando de sua viagem por mar, todos espantaram-se; e um deles, o mais corajoso, foi fazer uma visita ao herói. Encontrou-o estirado à sombra da árvore, comendo um carneiro assado. A fome já havia renascido. Emília explicou: — Ontem parecia um bacalhau de porta de venda. Hoje até fome tem. Chegou tão descadeirado, o pobre... O visitante supôs que o "descadeirado" se referia a alguma derrota em luta. Por maiores que sejam os heróis, às vezes apanham boas tundas no lombo, como tanto aconteceu a D. Quixote. — Quem o descadeirou? — Um gigante chamado Mar — respondeu Emília — o único que derrota Lelé. Queria que você visse como ele ficou de olho branco... À tarde chegou outro navio: era o de Peleu — e também ressurgiu Minervino. Hércules foi receber o recém-vindo enquanto o mensageiro de Palas atendia à curiosidade dos pica-paus contando quem era Peleu. — Oh! um grande e famoso herói disse ele. — Rei de Iolcos, irmão de Telamon. Foi o verdadeiro causador da guerra de Tróia... — Como? — exclamou Pedrinho. Pois a causadora da guerra de Troia não foi Helena, a mulher do rei Menelau?

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— Foi — mas quem meteu Helena no embrulho, se não Peleu? Logo, o verdadeiro causador de tudo foi ele. — Conte lá isso. — Peleu, depois de muitas aventuras, tomou posse da cidade de Iolcos e fez-se rei. E como estivesse viúvo, desposou a Nereida Tétis. — Que é nereida? — quis saber Emília. Minervino coçou a cabeça. A eterna curiosidade de Emília não tinha fim. — As nereidas são as filhas de Nereu e Dóris. As nereidas personificam as particularidades das ondas: o movimento, a cor, o marulho. Glauce é a nereida do azul; Talia, a da cor verde; Cimodocéia, a do marulho; Dinamene, a dos movimentos rápidos dos vagalhões... Pois bem: Peleu casou-se com Tétis, lá na gruta de Quiron, no Monte Pélio. Foi um dos mais importantes casamentos da antiguidade. Até os deuses vieram assistir à cerimônia e trouxeram os mais lindos presentes. Peleu havia mandado convite para todas as divindades, maiores e menores, exceto uma: Éris ou a Discórdia. E estavam no melhor da festa, quando a terrível Éris surgiu. Chegou e colocou em cima duma pedra um pomo de ouro com esta inscrição: À mais bela! Aquilo era uma provocação às três grandes deusas ali presentes: Juno, Palas e Vênus. A qual fazer-se a entrega do pomo? Como decidir qual das três a mais bela? Tornou-se necessário um julgamento. Convidam para julgador ao jovem Páris, um príncipe filho do rei de Trôia. Páris olha para as três divindades e entrega o pomo a Vênus. — E fez muito bem — disse Emília — porque Vênus é a deusa da beleza. — Isso pensamos nós, mas Juno e Palas não tinham a nossa opinião. Roeram-se por dentro de ódio — e quem pagou foi Tróia. Para se vingarem do julgamento daquele juiz, provocaram a guerra entre os

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gregos e os troianos, da qual Troia saiu completamente destruída. Se não fosse Peleu apaixonar-se por Tétis e promover aquela festa, não teria havido a guerra de Tróia... Hércules apresentou a sua comitiva ao rei de Iolcos, o qual muito estranhou que um herói tão grande andasse com um escudeiro tão pequeno e esquisito, de cartola e muleta. Mas gostou muito de Pedrinho e Emília. Ao saber da atuação desta nos casos do javali do Erimanto e do gigante Anteu, suspirou. — Ah, quanto desejava eu dispor duma "dadeira de ideias" assim! Minha vida tem sido das mais atormentadas porque sempre me faltam boas ideias nos momentos decisivos. E este asno? — É Lúcio! — gritou Emília, — um homem que virou asno porque no escuro do laboratório da feiticeira errou de pomada. E fala como gente, Senhor Peleu. Quer ver? E para o asno: — Diga alguma coisa: Lúcio, muito desapontado daquele papel de "fenômeno" exibido em feira, disse, depois dum suspiro: — Bem-vindo seja a estas paragens o nobre rei de Iolcos... Peleu quase caiu para trás de susto. Era a primeira vez que via um asno falante. Emília deu uma grande risada. — Isto de asnos falantes diz Dona Benta que é o que há mais no mundo. Diz que até nos tronos há asnos falantes — e nos congressos, nos ministérios, nas academias. Mas só asnos de dois pés e com forma humana. Asno falante de quatro pés, só sei deste. Lá no sítio também temos um burro falante, mas asno não burro. Chama-se o Conselheiro — e como fala bem! Só diz coisas filosóficas — sabe o que é, herói?

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Peleu já estava tonto com a parolice de Emília. Pedrinho aproveitou um momento em que a ex-boneca fez uma pausa para engolir e disse: — Já sabemos da sua história, senhor Peleu, e muito lamentamos a desastrada sentença de Páris no caso das três deusas, lá na festa do seu casamento. — Por quê? — exclamou Peleu, admirado. — Porque foi dali que saiu a Guerra de Tróia. Peleu franziu a testa. Jamais havia pensado em tal coisa. Emília meteu o bedelho: — Aquele Páris não tinha a menor habilidade. Se fosse Salomão, a sentença seria uma beleza e todos ficariam contentes. — E qual seria a sentença desse tal Salomão? — quis saber Peleu. — Ele dividiria o pomo em três pedaços e daria um a cada deusa, dizendo: "Empatou!" — Mas um juiz não pode empatar — observou Peleu. Justamente quando as coisas empatam é que os homens recorrem aos juízes. Que é uma sentença se não um desempate? Emília atrapalhou-se, mas não querendo dar o braço a torcer, veio com outra solução das suas: — Salomão chegava ao ouvido de uma dizia: "A mais bela é você, mas não diga nada às outras." Cochichando as mesmas para as três, deixava-as contentíssimas e sem guerra nenhuma. Peleu riu-se e voltou à carga:

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— Mas Páris tinha de entregar o pomo a uma das três... — Eu, se tivesse de entregar o pomo, fazia um passe de mágica e sumia o pomo na manga. E depois, com cara inocente: "Ué! Que fim levou o pomo?", e desse modo embrulhava a todos... — Já sei — interrompeu Pedrinho. — Embrulhava a todos e ia guardar o pomo lá na sua canastrinha. Ah, Peleu, esta bicha só nós é que sabemos o que ela é. Peleu fez uma festinha com o dedo no queixo de Emília e voltou a tratar com Hércules o assunto das amazonas. — Estive pensando, Hércules, que talvez nos seja possível conseguir às boas o que à força vai ser bastante duro. Proponho que mandemos à Rainha Hipólita um parlamentar. — É uma ideia — disse Hércules, e eu poderia enviar o meu escudeiro, se não fosse o desastre que o pôs de perna quebrada. Talvez Pedrinho possa substituí-lo — e, voltando-se, chamou o menino. — Escute, oficial. Tenho de mandar um mensageiro à Rainha Hipólita. O Visconde era o naturalmente indicado, mas a fratura da perna o põe fora de serviço. Pensei em você. Quer ir ter com Hipólita em nosso nome? Pedrinho esfriou. Nunca em sua vida lhe haviam feito uma proposta semelhante. Apresentar-se como parlamentar à presença duma rainha — e que rainha! Hipólita, a grande Hipólita do cinto! A surpresa daquelas palavras deixou-o tonto por uns instantes. — Vamos, responda! — insistiu Hércules. Pedrinho, afinal, desengasgou: — Estou às ordens.

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Hércules voltou os olhos para Peleu como quem diz: "Está vendo que firmeza de decisão?" E para o menino: — Pois apronte-se, que vamos redigir a mensagem. Logo depois partia Pedrinho montado em Meioameio, levando no bolso a mensagem de Hércules e Peleu a Hipólita: "Formosa rainha das invencíveis amazonas! Incumbidos estamos de uma empresa que muito nos vexa: apresentar ao Rei Euristeu o vosso zóster. Altos interesses humanos e divinos assim o querem. Mas longe de nós a ideia de usar da violência contra a rainha das formosas guerreiras; e, assim sendo, esperamos que nos conceda um encontro no qual o assunto possa ser discutido. Respeitosamente beijam a linda mão da rainha das amazonas, Peleu e Héracles." Evidentemente o estilo da mensagem denunciava o dedo de Peleu. Hércules era ali no golpe. Na pena, coitado!... Pedrinho lá se foi no galope e depois de muito andar pressentiu sinais de mudança. — Meioameio — disse ele — parece que estamos chegando. Sinto um cheiro de estrebaria no ar. Deve haver muito cavalo no reino das amazonas. O centaurinho concordou. Seu ótimo faro disse-lhe que a menos de meia légua encontrariam a primeira amazona — e assim foi. Vencida a meia légua, ouviram um trote, e logo depois deram com uma guerreira amazona, de aspecto hostil e lança erguida. Pedrinho empalideceu, mas dominou-se. Quem leva missões como a dele não pode fraquear — e foi com voz deliberadamente firme que abordou a guerreira. — Senhora — disse ele — aqui estou na qualidade de mensageiro de Hércules e Peleu, dois tremendos heróis, e deles trago uma mensagem para a Rainha Hipólita. Quererá ter a gentileza de dizer-me onde posso encontrá-la?

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A amazona mediu-o de alto a baixo e sorriu. Um menino apenas. As instruções que todas recebiam eram para matar qualquer homem que cruzasse as fronteiras do reino; não falavam em menino. E a amazona, baixando a lança, respondeu: — Na tenda branca à margem esquerda do Rio Termodonte. Lá encontrará a nossa grande rainha — e mostrou o rumo. Pedrinho respirou, enquanto Meioameio dizia: — Ela nada fez porque você ainda é um menino. Se se tratasse dum homem feito, ah, tê-lo-ia espetado com a lança! Às vezes vale a pena ser-se crila...” Pedrinho tomou pelo rumo indicado e depois de algum tempo defrontou o Termodonte — um riozinho à toa. — Margem esquerda disse ela. É a de lá. Ponte era coisa que não havia. Tiveram de atravessar a nado. Depois foram andando. Súbito, viram ao longe uma espécie de campo de guerra, com barracas e movimento de animais. — Deve ser lá — disse Pedrinho. — Mulheres guerreiras hão de viver em acampamentos como aquele. E de fato era lá o acampamento da Rainha Hipólita. Assim que as amazonas viram chegar um centaurinho cavalgado por um "homem", voaram com as lanças em riste para recebê-los conforme as ordens. Mas vendo tratar-se dum potrinho de centauro e dum filhote de homem, detiveram-se, como havia feito outra. — Quem é você, menino? — Sou Pedrinho Encerrabodes de Oliveira, oficial de gabinete do Senhor Héracles. Trago desse grande herói e do Rei Peleu uma mensagem para Hipólita, a rainha das amazonas.

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As guerreiras entreolharam-se, trocando palavras que Pedrinho não pôde ouvir. Depois: — Siga-nos! —disseram. —Nós o escoltaremos até à tenda de Hipólita — e lá se foram com o menino à frente. Que estranhas aquelas criaturas! Que fortes! E que aspecto belicoso! Acostumado a ver nas mulheres do século vinte uns seres delicados, frágeis, graciosas, Pedrinho espantava-se do porte imponente e da rija musculatura das amazonas. Cada qual era o que se chama "uma mulher e tanto". Belas, sim duma beleza forte de estátua. E que cavaleiras! Realmente davam ideia de centauras, isto é, de formarem um só corpo com os cavalos. Uma que passou a galope num formoso cavalo branco trouxe a Pedrinho a lembrança das correrias do William Boyd nas fitas americanas. A escolta deteve-se diante da tenda real. Uma das amazonas apeou e entrou. Logo depois aparecia a majestosa figura da rainha. Bela, sim! Bela como as estátuas. O zóster que trazia à cintura indicava a sua dignidade realenga. Pedrinho gaguejou: — Majestade, eu... eu venho da parte de Hércules com esta... esta mensagem e com mão trêmula tirou do bolso o pergaminho. Hipólita estendeu a mão muito branca e tomou-o. Desenrolou-o e leu. Parece que lhe soube bem o estilo porque sorriu. Depois disse: — Este meu zóster, presente de meu pai Ares, anda a virar a cabeça de muitas princesas. Como posso desfazer-me dele sem prejuízo da minha dignidade de rainha das amazonas? Dizei a Hércules, ó pequeno mensageiro, que o caso não pode ser decidido levianamente. Ele que venha conversar comigo. Darei ordens às minhas guerreiras para que o acolham gentilmente.

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Pedrinho, ainda trêmulo, fez uma saudação de cabeça e com o calcanhar ordenou a Meioameio que rodasse para trás. O fato de vir montado num centaurinho havia causado grande surpresa àquelas mulheres. Inúmeras tinha acorrido de todos os lados para verem a maravilha. E comentavam, cochichavam umas ao ouvido das outras. Meioameio afastou-se dali a passo, como que também peado pelo medo. Mas assim que se viu a certa distância, disparou no galope. De volta ao acampamento deu Pedrinho contas a Hércules do desempenho de sua missão, transmitindo-lhe com toda a fidelidade as palavras de Hipólita. Hércules olhou para Peleu. — Parece que tudo vai bem. Se a rainha nos marcou um encontro, é que não está hostil.

TUDO VAI BEM No dia seguinte chegaram as naus de Teseu e dos outros heróis. Desembarcaram e foram para o navio de Hércules combinar o plano de assalto às amazonas. A notícia do bom acolhimento da mensagem causou-lhes agradável impressão. — Ótimo se não houver luta — disse Helamon. — Conquanto sejam guerreiras terríveis, a mim me repugna ter de lutar contra mulheres. Ficarei satisfeitíssimo se chegarmos a um acordo com Hipólita. Estavam ainda no navio de Hércules a discutir o assunto, quando Emília gritou:

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— Lá vem vindo um bando de guerreiras! — e era verdade. Hipólita aproximava-se da praia seguida de enorme séquito de amazonas. O encontro da grande rainha com os heróis foi dos mais auspiciosos. Trataram-se como amigos velhos, e não tardou que a beleza de Teseu amolecesse o coração de Hipólita. Ficou tão amável que com surpresa de todos se propôs entregar-lhe o zóster. Hércules, radiante, viu que tudo ia acabar em festa — e assim seria se não fosse a intervenção de Juno. Sim, de Juno, porque a vingativa deusa, que lá do Olimpo acompanhava o desenvolvimento da aventura, avermelhou de cólera ao perceber a amável disposição da rainha das amazonas. E que faz? Desce imediatamente à terra, disfarça-se em amazona e com ar muito aflito entra a promover o levante das guerreiras que de longe assistiam à conferência de Hipólita com os heróis. — Eles vão raptar a nossa rainha! Se a não defendermos, Hipólita estará perdida — e tais e tantas coisas disse que acabou virando a cabeça de todas. — Ataquemo-los já! Não temos um minuto a perder. Salvemos a nossa amada rainha!... E o que houve então foi coisa que abalou a terra. Como que movidas por mola única, as amazonas lançaram-se ao mais terrível dos ataques contra os heróis. Vinham cegas de ódio, no galope furioso de seus cavalos brancos, as lanças em riste, os olhos a despedirem fagulhas. Hipólita quis intervir, mas não pôde. O tropel do ataque abafava-lhe a voz. Colhidos de surpresa, os heróis mal tiveram tempo de tomar suas armas. E foi a luta que os poetas gregos contam — luta de gigantes. Golpes de clava tremendos, lançaços, avanços e recuos.

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Teseu defendia-se como um leão encurralado. Os golpes de Telamon reboavam. Sólon derrubou duas com uma só clavada. Tão terrível foi o pega que o carro de Apolo, já a descambar no horizonte, como que entreparou, assustado. Os pica-paus haviam corrido para bordo. Só Melampo ficara em terra. O bobinho julgou que aquilo fosse como as lutas dos moleques lá de Micenas — lutas de brincadeira, sem outras consequências além de arranhões, galos na testa, manchas roxas pelo corpo — mas foi cruelmente pisado pela pata dos animais. Em certo momento Hércules tomou uma resolução decisiva. Ficar ali naquela luta era acabar perdendo a batalha. Por maior que fosse a potência do seu grupo, como vencer o número? Eles eram um punhado; as amazonas, uma legião. Nas lutas entre o valor e o número quem sempre acaba vencendo é o número. O jeito eram irem combatendo e recuando na direção dos navios — e de repente agarrar Hipólita e levá-la para bordo como refém. Lá no navio de Hércules os pica-paus, em companhia de Minervino, estavam vendo tudo como de uma frisa de teatro. — Hera, Hera! — exclamava o mensageiro. — Bem que Palas me advertiu. Vendo que tudo ia acabar em acordo, a rancorosa divindade veio em pessoa arengar e amotinar as amazonas... Emília ia dizendo "Que bisca!" mas engoliu em seco e deu um tapa na boca. Pedrinho estranhou a ausência de Melampo. — Está lá ele! — gritou o Visconde. — Caído no chão — talvez morto. Vi quando foi meter-se na refrega. O combate continuava cada vez mais furioso, mas os heróis já estavam recuando. Defendiam-se como leões e recuavam — recuavam na direção dos navios. Súbito, Hércules, que durante toda a luta não se afastara de Hipólita, agarrou-a pela cintura e voou para o navio. Seus companheiros também abandonaram a luta e se

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sumiram nas naus. O desapontamento das amazonas foi imenso. Não tinham contado com aquele golpe estratégico. Em campo raso eram poderosíssimas, mas que poderiam fazer contra os heróis refugiados a bordo? Hércules berrou da amurada: — Detende-vos, valorosas guerreiras! Tenho comigo um precioso refém: Hipólita. E de bom grado a libertarei se depuserdes as armas. As amazonas entreolharam-se, como que indecisas. Que fazer? Uma delas, a mais feroz de todas, justamente a que as havia amotinado, gritou que não, que não deporiam as armas, que lutariam até o fim, que abordariam as naus. — É Hera quem fala — observou Minervino. — Conheço-lhe o tom da voz... — e Emília correu a cochichar para Hércules que a que estava estimulando as outras era a bisc... era a boa deusa Hera. O herói compreendeu tudo e falou de novo para as guerreiras: — Sei quem vos amotinou no momento em que tudo obtínhamos de Hipólita pacificamente, mas sei também de que nada valerá essa intervenção. A grande Palas me protege e permitiu-me capturar a vossa grande rainha. Se não depuserdes as armas, levantarei âncora e partirei com Hipólita prisioneira. Se de fato amais à vossa grande rainha, deixai de atender à voz do despeito e atentei unicamente no que vos digo. As amazonas entreolharam-se de novo e compreenderam a situação. Ou baixavam as armas ou perdiam a sua rainha e de nada valeram os gritos histéricos da falsa amazona que as havia amotinado. Baixaram as lanças em sinal de trégua. Hércules então disse a Hipólita: — Grande rainha, fomos ambos prejudicados pela vingativa deusa que me persegue. O acordo feliz que estávamos a justar desfechou

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na desastrosa luta em que tantas guerreiras perderam a vida e vi-me na contingência de aprisionar nesta nau aquela a quem eu só queria render homenagens. Mas restituir-vos-ei incontinenti à liberdade se, cumprido o acordo feito, me entregardes o vosso zóster. Hipólita não fez objeção nenhuma. Destacou da cintura o zóster e entregou-o a Hércules. — Ei-lo. Levai-o à princesa que tanto o ambiciona. Rainha sou por força do sangue e do devotamento de minhas súditas — não por força dum objeto material. Hércules tomou o cinto e beijou-lhe a mão, dizendo: — O mais humilde súdito da grande Hipólita, a rainha das invencíveis amazonas. Emília sorriu e olhou para Pedrinho. "E não é que ele sabe falar? Lida com as damas que nem D. Quixote." Estava finda a missão que Euristeu incumbira a Hércules. Admeta ia usar na cintura o zóster de Hipólita — mas nem por isso adquiriria a imponente beleza da rainha das amazonas, nem a sua esplêndida majestade. Uma coisa é nascer-se rainha, outra vestir-se de rainha. Hipólita nascera rainha e era-o até à ponta das unhas. Com grande majestade respondera a Hércules e com a maior dignidade deixou o navio para ir juntar-se ao bando de suas guerreiras. Teseu lá de seu barco tudo via. A beleza de Hipólita o tinha impressionado tão tremendamente que na hora da partida dos outros heróis declarou a sua intenção de ficar. — Ficar? — exclamou Peleu com espanto. — Sim. Hércules aprisionou Hipólita e Hipólita aprisionou o meu coração. Já não poderei viver sem ela.

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Horas depois os navios levantavam ferro — todos, menos o de Teseu. O herói da Ática ficou e casou-se com Hipólita. De volta para Micenas, depois de mais uma desagradável travessia do mar, Hércules teve uma aventura de todo inesperada. Ao passar por certa aldeia foi detido por um mensageiro de Litierses, filho de Midas, rei da Frígia. Esse homem possuía ali uma suntuosa propriedade onde passava uma verdadeira vida de filho de rei, a regalar-se com banquetes e vinhos dos mais preciosos. E divertia-se de um modo muito extravagante: obrigando aos que passavam pela estrada a servirem-no por um dia nas tarefas da lavoura — ceifar trigo, colher uvas ou azeitonas; e à tarde cortava-lhes a cabeça e jogava os corpos no Rio Meandro. — Litierses ordena-te que vás limpar o seu chiqueiro de porcos — disse o mensageiro. Hércules riu-se. — Quem é Litierses? — perguntou. — O filho do Rei Midas. Mora aqui nesta grande propriedade e executa todos os trabalhos com um dia apenas de tarefa imposto aos passantes. — E se o passante recusa-se? — Ele corta-lhe a cabeça e joga-o no Meandro. — E se o passante submete-se e dá o dia de serviço reclamado? — Ele corta-lhe a cabeça e joga-o no Meandro. — Leve-me à presença de Litierses. Desejo ter com ele um pequeno entendimento. O homem obedeceu. Levou-o à presença do filho de Midas.

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— Com que então — disse o herói com a maior calma — esta propriedade é lavrada à custa do trabalho e da vida dos passantes? Litierses, que estava à mesa se banqueteando, deu uma grande gargalhada violenta. — Claro, homem! Vou assim executando os trabalhos agrícolas e ao mesmo tempo engordando os peixinhos do rio. Não acha inteligente o meu processo? Hércules engasgou de cólera e, agarrando o malvado, cortou-lhe a cabeça com a própria faca com que o filho do rei se servia — e foi jogá-lo no Meandro, dizendo: — Os peixinhos devem estar sequiosos por esta sobremesa. Pedrinho assombrou-se com a facilidade com que na Grécia os heróis mandavam gente para o outro mundo. Roubar, matar — tudo coisas naturalíssimas. Hércules matou aquele filho de rei e lá prosseguiu na viagem como se não houvesse havido coisa alguma. E nada de polícia, inquérito, processo, júri, promotor, juiz, sentença, cadeia. Tudo muito rápido e expedito. O Visconde observou que nos tempos modernos havia a "justiça organizada", mas ali a Justiça eram os heróis. Eles andavam à caça dos maus, como lá no mundo moderno faz a polícia. E pegavam-nos e liquidavam-nos com a maior simplicidade. Que era Hércules, afinal de contas, senão a Justiça em pessoa? Às vezes errava e matava inocentes — mas que justiça neste mundo não erra? Depois da luta, das amazonas Pedrinho descera à praia em busca de Melampo e havia encontrado o menino desacordado e muito cheio de machucaduras. Com a ajuda de Minervino conduzira-o para bordo, onde o deixou entregue aos cuidados do Visconde. O sabuguinho estava se revelando um excelente médico. Entendia de chás e pomadas como qualquer curandeiro. E assim foi que antes de finda a viagem marítima já estava Melampo completamente "novo", como se tivesse saído do caldeirão de Medeia.

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E como ia o Asno de Ouro? Cada vez mais cheio de suspiros pelo termo daquelas aventuras. Volta e meia encontrava rosas pelo caminho. Uma só que comesse e estaria restituído à forma humana. Tinha entretanto de respeitar a palavra e permanecer peludo até o fim das façanhas do herói. Isis em sonho lhe falara nas "rosas de seu sacerdote", mas o Visconde era de opinião que isso não passava de bobagem. — Não há diferença nenhuma entre uma rosa na roseira e essa mesma rosa nas mãos dum sacerdote. Mas não foi assim. Certa vez em que o Asno de Ouro, enfurecido com as esporadas de Melampo, pregou um coice na palavra de honra e comeu a primeira rosa encontrada, ficou desapontadíssimo: continuou o mesmo asno de sempre, só que com uma rosa no papo. Tinha pois, de aguardar pacientemente as rosas do sacerdote de Isis. E afinal chegaram a Micenas. Chegaram e tiveram uma grande decepção: o acampamento estava destruído! Do Templo de Avia, tão bonitinho, só viram destroços. As estacas com as esculturas das façanhas de Hércules jaziam caídas no chão, sem escultura nenhuma. — Juro que os moleques de Micenas vieram até cá em procura dos outros e nos escangalharam o acampamento! disse Pedrinho. Só há uma coisa que não muda no mundo: os moleques! Que diferença entre os nossos lá do século 20 e estes aqui do século... Que século é este em que estamos, Visconde? — Certeza não tenho, mas cálculo que é o 12 ou 13 antes de Cristo. Pedrinho ficou de olho parado. Depois disse, como que falando consigo mesmo: — Parece incrível que estejamos a trinta e dois ou trinta e três séculos do nosso, isto é, a 3.200 ou 3.300 anos de distância do nosso tempo... Emília suspirou.

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— Uma coisa me aborrece, Pedrinho. É que depois da nossa volta ninguém vai acreditar uma isca do que contarmos. Dizem logo, com aquelas caras muito bobas: "É imaginação... É fantasia de criança..." E, no entanto, nós estamos realmente no "fundo das idades" — como diz o Visconde. Com meus olhos estou vendo o nosso Lelé com a sua clava e a sua pele de leão. Estou vendo Melampo com a sua cara suja. Estou vendo suspiros lá nas tripas deste Asno de Ouro. Estou vendo Miner... Que é de Minervino? — e Emília correu os olhos em redor. Não havia por ali Minervino nenhum. "Com certeza voltara ao Olimpo a fim de combinar novas coisas com Palas" — sugeriu Pedrinho. — Para mim ele foi mas é ver a cara de Juno, disse a ex-boneca. A bisc... a grande deusa deve estar com o nariz bem comprido. Chegou até a descer à terra e disfarçar-se em amazona — e que amazona — e que ganhou? Zero. Coitada!... Aquele "Coitada!" de Emília era uma desajeitadíssima e irônica adulação a Juno. Hércules levantou-se para ir a Micenas dar conta ao rei do novo Trabalho realizado. Emília gritou: — Não vá ainda, Lelé. Deixe-me brincar um pouquinho com o zóster de Hipólita. — Não havia capricho do diabrete a que o herói resistisse — e lá lhe deu ele o cinto para brincar... Emília ajeitou-o na cinta e, pegando numa vara, berrou: — Companheiras! Vinde rodear a vossa rainha ameaçada de rapto por este bando de heróis. Ataquemo-los e destruamo-los. Eles querem roubar este presente que meu pai Ares me deu... e avançou para Hércules com a varinha em riste como se fosse lança. Hércules ria-se, ria-se...

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OS BOIS DE GERIÃO Hércules só voltou da cidade ao cair da noite. — Euristeu alegrou-se muito com o cinto de Hipólita. Parece que desta vez não se aborreceu com a minha vitória, tanto era o empenho de sua filha Admeta em possuir aquele zóster. — E que outro Trabalho ele marcou? — Quer que eu traga para Micenas os bois selvagens do mais horrendo gigante que há nesta Hélade — um de várias cabeças... Gerião. — Já sei — disse Pedrinho. — Ele quer esses bois para ter o gosto de soltá-los. Euristeu é o maior soltador de monstros. Só preciosidades como o cinto de Hipólita é que ele não solta. Espertinho... E onde fica esse tal Gerião? — Muito longe daqui, na Ilha de Eritia, no Mar Jônio. Mar, mar... e Hércules fez cara de vítima — estava se lembrando dos enjoos... Pedrinho correu a contar aos outros o que tinha ouvido. — Mais boi? — exclamou Emília. Como há bois nesta Grécia!... O Visconde aproximou-se, toque, toque, toque, na sua muletinha. Veio sugerir que o verdadeiro era soltar Melampo. — Não nos adianta nada —explicou. Passa o tempo a judiar de Lúcio e não tem juízo nenhum. Um perfeito louquinho. Aquela sua ideia de meter-se na luta entre os heróis e as amazonas é de menino que já teve meningite. Bem capaz de se meter em outras funduras e babau...

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Pedrinho deu razão ao Visconde, mas Emília protestou. — Não! Nada disso. Se o soltarmos, vai correndo a Micenas e conta a história das minhas viradas e pronto — estamos no maior dos embrulhos. Ele que fique até o fim. Depois da última aventura nós o soltaremos a ele e ao Asno de Ouro. O centaurinho vinha no galope com o jantar aos ombros. Todos suspiraram. Emília disse: — Ando com medo que de repente viremos rebanho. Já estou tão enjoada que só de pensar em carneiro já sinto um embrulho no estômago. Hoje só quero frutas — e mandou que Melampo montasse no asno e fosse em busca de frutas — figos, maçãs, morangos, o que houvesse. Melampo foi, mas como não encontrasse fruta nenhuma pelas redondezas teve a ideia absurdíssima de ir procurá-las na feira de Micenas. E lá... ah!... lá foi pilhado pelo seu pai e agarrado, de modo que Lúcio voltou num trote muito sem jeito e de lombo abanando. — Que é de Melampo? — indagou Pedrinho, já com um pressentimento nas tripas. — Foi ao mercado em busca de frutas e lá o pai o agarrou... Era a pior coisa que podia acontecer. Pedrinho ficou pálido como cera. — Estamos perdidos!... Daqui a pouco vem cá o exército inteiro do "antipatia" nos assaltar que nem uma Alemanha e como é? Tenho de prevenir Hércules. O herói também não gostou daquilo. Ficou no ar, sem saber que fazer. Chamou Emília. — E agora, figurinha?

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— Agora — disse ela — o remédio é um só: partimos já, já, já — e quem vai montado no Lúcio sou eu. Depois pediu ao herói que recuasse a pedra que escondia os seus "bilongues". Estava com medo de deixar lá a canastrinha. Hércules afastou a pedra e Emília tirou do fundo a canastra, Abriu-a e guardou lá dentro mais uma lembrança: a mensagem a Hipólita. Ao ser aprisionada a bordo, a rainha das amazonas deixara cair do cinto o pergaminho — e Emília bifou-o. Não era fácil levar aquela canastra em cima do lombo de Lúcio. Pedrinho veio estudar o caso. — Só com um contrapeso — disse ele. — As cargas dos asnos tem que ser duas, uma de cada lado. — Pois arranje um contrapeso. — O Visconde!... Com as muletas o Visconde mal pode aguentar-se em cima do centaurinho. Faço um picuá de cipó e ponho-o como contrapeso da canastra. E assim foi. Meioameio voou à floresta em busca de cipós. Pedrinho teceu com muita habilidade um picuá onde o sabuguinho podia ir comodamente reclinado. — Venha, Lúcio! O asno aproximou-se, suspirando. Pedrinho dispôs sobre o seu lombo o picuá, já com o Visconde contrapesando a canastra. — Ótimo!... Até galopar com isso em cima Lúcio pode. Em seguida montou Emília e pulou para o lombo de Meioameio. — Pronto, Hércules! Podemos partir.

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O herói tomou a frente, em marcha rumo à Ilha de Eritia. Nesse momento soou um tropel de cavalos à distância. Eram os homens de Euristeu. Tudo exatinho como a ex-boneca previra. Melampo contara ao pai a história das viradas da Emília e a notícia breve se espalhou pela cidade inteira. Os pais e parentes dos dezenove meninos virados em objetos foram ao palácio dar queixa a Euristeu. — Majestade, a feiticeirinha que anda em companhia de Hércules usou dum talismã mágico e virou nossos filhos em objetos. Melampo, o único que se salvou, acaba de reaparecer e nos contou tudo. Euristeu olhou para Eumolpo. Depois avermelhou de cólera e deu um grande berro: — Já! Ordeno aos meus guardas reais que partam sem demora a cavalo em perseguição de Hércules e do seu bando. Quero-os aqui, vivos ou mortos!... Minutos depois cem cavaleiros partiam a toda para o camping dos picapaus, com Melampo à frente levado como guia. Mas nada mais encontraram a não ser a fogueira dos assados ainda fumegantes e os destroços comuns a todos os acampamentos. — Maldição! — exclamou o comandante. Fugiram... Hércules com o seu bandinho já estavam a uma légua dali.

OS BOIS DE GERIÃO OS BOIS DE GERIÃO Hércules seguia na frente. Depois vinha Meioameio com Pedrinho no lombo. O asno Lúcio com Emília montada de banda como as mulheres que usam "silhão" e com o Visconde no "picuá", vinha na

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retaguarda. Aposto que bem poucos sabem o que é "silhão" e o que é "picuá"!... Silhão é uma sela de um estribo só, em que as mulheres de saia comprida cavalgam de banda; as que usam culotes montam moda dos homens. E picuá é uma coisa facílima de compreender, vendo —mas difícil de explicar com palavras. Uma espécie de dois bolsos ligados entre si, de modo que cada um fique numa banda do animal. E a carga que vai num dos bolsos faz contrapeso à que vai do outro. Pedrinho havia feito um picuá de cipó, de modo que a canastrinha ficasse dum lado como contrapeso do Visconde, e o Visconde ficasse do outro lado como contrapeso da canastrinha. E assim, um contrapesando o outro, o picuá se equilibrava muito bem sobre o lombo de Lúcio. O asno já não dava suspiro nenhum. Que gostosura lhe foi ver-se livre de Melampo! Emília era um peso-pluma. Quanto pesaria na balança? Uns oito quilos, se tanto. E o Visconde? Ah, esse não chegava nem a um quilo. Mas como, então, podia servir de contrapeso a uma canastrinha cheia de coisas, onde havia até uma pena de bronze? A explicação é que o Visconde pesava pouco, mas sua ciência pesava muito. Emília de prosa com Lúcio, fê-lo contar sua vida inteirinha desde que nasceu. Depois perguntou: — Que ideia aquela de virar coruja? Lúcio respondeu depois de profundo suspiro: — Arrastamento. Puro arrastamento. Vendo a velha virar em coruja e sair pela janela, fui arrastado a fazer a mesma coisa. Não acontece isso a você às vezes?

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— Está claro que acontece. Mas como é que vai pegar uma pomada de coruja e pega uma de quadrúpede? Não havia rótulo nos potinhos? — Havia, mas estava escuro no quarto da velha, e talvez os rótulos estivessem trocados justamente para castigo dos intrusos. Essas feiticeiras são umas danadas — e a prosa foi por aí afora. Pedrinho também não parava de conversar com Meioameio. — Que mina, isso da gente ser metade homem metade cavalo! Fica-se com as vantagens dos dois — a enorme força, os quatro pés e a velocidade dos cavalos e a inteligência e a fala do homem. Mas uma coisa não compreendo: como é que sendo vocês, centauros, tão superiores a nós não centauros, tendo o mesmo cérebro que nós e muito mais força física e meios naturais de defesa, como é que não dominaram os homens? Meioameio, que já estava com a inteligência bem desenvolvida e tinha observado e aprendido muita coisa, deu uma resposta certa: — Por causa dele — e apontou para Hércules com o beiço. — Como? — Por causa dele, sim. Quem foi que destruiu quase todos os centauros? Ele. Como é que os centauros hão de dominar os homens, se ele não deixa haver centauros? Há pouquíssimos hoje. Nossa raça está se perdendo — por quê? Por causa dele... Hércules seguia lá adiante, imerso em pensamentos. Estava a parafusar em Gerião. Como seria realmente esse Gerião? Cada qual afirmava uma coisa. Um, que era filho de Crisaor (o irmão de Pégaso) e da oceânide Calírroe; e que nascera com três cabeças e seis pernas. Outros davam-lhe seis cabeças e três pernas —uma grande trapalhada. Mas fosse como fosse, nada mais terrível do que esse

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monstro da Ilha de Eritia, dono de bois ainda mais belos que os de Creta. Como todos os grandes heróis, Hércules no começo duma aventura mostrava-se inquieto; o sangue-frio só lhe vinha, e da maneira mais absoluta, quando defrontava o perigo. E assim lá seguiam eles de rumo à Ilha de Eritia, cada qual preocupado com uma ordem de ideias. Chegados à costa, Hércules mandou Pedrinho em busca de um navio que os levasse à ilha e ficou sentado por ali, num grande desânimo só de pensar no enjoo que ia padecer. Pedrinho conseguiu um bonito barco de vela de sessenta toneladas — um verdadeiro hiatezinho de navegação costeira. Seu capitão, o velho Agatirso, assustou-se com a presença do jovem centauro — e mais ainda com o asno falante e a aranha de cartola. Mas acostumou-se depressa. Pedrinho fê-lo contar o que sabia do Rei Gerião. — Então é rei também? — admirou-se Emília. — Que terra de reis e bois isto aqui! Quantos... O Visconde explicou que os reis gregos nada tinham com os reis modernos. Não passavam de chefes duma cidade ou dum limitado território. Mais ou menos como um "chefe político", um "coronel" das cidades do interior. O "mandão", o "cacique”. — Sim, continuou Agatirso. Gerião é o rei da ilha, mas um rei monstruoso. Tem três cabeças... — Ouço dizer mil coisas — disse Pedrinho. Uns falam em seis pernas e três cabeças, outros em seis cabeças e três pernas. Como será realmente esse monstro? Agatirso sabia ao certo. Declarou até que já o tinha visto com seus próprios olhos.

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— Tem três cabeças, sim — mas duas pernas só. A tal história das seis pernas não passa de fantasia. — E que tal é como rei? — Ah, a maior das pestes! Riquíssimo em rebanhos. Furta o gado de todo mundo e não há quem lhe furte um só cordeirinho... — Por quê? — Porque seus rebanhos são guardados não só pelo pastor Eurition, outro monstro de duas cabeças, como também por um terrível dragão de sete cabeças. — Na ilha do Minotauro eram bois, aqui são cabeças... — comentou Emília. Três no rei, duas no pastor, sete no dragão. Que cabeçada!... Agatirso continuou: — Além da sua ferocidade, Gerião tem fama de ser a criatura mais forte que o mundo jamais produziu. Luta no campo com os outros mais bravios como se fossem carneirinhos — e até o dragão o teme. E como goza de uma saúde excelente, ai de nós! Temos de suportá-lo ainda por muitos anos... — Isso não — objetou Pedrinho. Não é nada impossível que de repente apareça um herói que dê cabo dele. O velho Agatirso soltou uma risada gostosa. — Dar cabo dele? Ah, ah, ah... Gerião é invencível. Herói nenhum ousa fazer-lhe frente, fica de pernas bambas só de avistá-lo. E vendo Hércules de olho muito branco, caído por ali, já arrasado pelo enjoo, cochichou para Pedrinho: "Está vendo? O seu herói só de ouvir falar em Gerião já está bambo."

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— Oh, não! — explicou Pedrinho. — Aquilo é enjoo. Hércules suporta tudo no mundo, menos viagem de mar. Ah, enjoa mesmo, vomita até os bofes. Agatirso fingiu engolir a explicação: no fundo estava convencidíssimo de que a doença do herói era puro medo. Muitas coisas ainda contou o velho capitão do barco. O rei de Eritia juntara o seu maravilhoso rebanho à custa dos vizinhos. Ia avançando nas terras alheias e pegando o mais bonito. Ficou assim com a flor do gado das redondezas. — E dele ninguém tira um carrapato, de medo do pastor de duas cabeças e do dragão, sei — disse Pedrinho. — Mas quer apostar que Hércules varre com essa cabeçaria toda e leva os bois de Gerião para Micenas? Foi a ordem que recebeu do rei de lá; e quando Hércules recebe uma ordem do tal rei, cumpre-a com o maior rigor. Quantas coisas tremendas já não o vimos executar! — e desfiou a história dos nove trabalhos de Hércules já realizados. Mesmo assim Agatirso olhava com desprezo para o "herói enjoado" e sorria com o maior ceticismo. Positivamente não acreditava que aquele massa-bruta valesse alguma coisa. Marinheiro que não enjoa despreza o embarcadiço que enjoa.

OCEANO Aqueles mares da Grécia tinham um azul especial, um azul muito anilado e transparente. A conversa passou de Gerião para mar. — O mar é o meu elemento — disse o velho marujo. — Desde bem menino que moro sobre as ondas. Posseidon é o meu grande deus. O Visconde sabia mais de Posseidon, ou Netuno, do que aquele velho marujo.

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Emília deu-lhe a palavra. — Fale de Posseidon, Visconde. O sabuguinho tossiu o pigarro e falou. — Posseidon é uma das grandes divindades do Olimpo, irmão de Zeus e Plutão, o deus dos infernos. Para mim o maior dos deuses é justamente Posseidon, porque o mar é muito maior que a terra. Pelo menos é o deus com maior número de adoradores, porque no mar há milhões de vezes mais vidas do que na terra. — E filho de quem era esse deus? — perguntou Emília. — De Saturno. Este Saturno era o tal que devorava os filhos — e se não devorou Posseidon foi porque sua esposa Reia o enganou: apresentou-lhe embrulhado num pano um potrinho recém-nascido. Saturno devorou-o certo de que era o filho. Emília fez cara de superioridade. — Que reis e que deuses há por aqui! Comer carne de cavalo pensando que é carne humana... Pedrinho admirou-se daquela observação. — Ora esta! Como podia ele distinguir? — Pois se eu fosse Saturno distinguiria perfeitamente. — Como, Emília, se você jamais comeu nem uma carne nem outra? Emília viu que era mesmo e calou-se. O Visconde prosseguiu: — Os três grandes filhos de Saturno, salvos de sua fome, foram Zeus, Posseidon e Plutão. A Posseidon coube o reino das águas, os oceanos, os rios e mares por isso recebeu o tridente como símbolo do seu império.

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— Como é que um tridente — ou garfo de três dentes — pode ser símbolo dum império? O Visconde explicou muito bem. — O império das águas é habitado por peixes e outros animais "caçáveis" com espeto, ou com tridente, ou com fisga. Melhor dizermos fisga. O tridente de Netuno era uma fisga de três pontas, com a qual ele fisgava os peixes que queria e também cutucava os cavalos da sua carruagem marinha. E furava a terra para dar nascimento aos rios. E quebrava rochedos, e batia nos vagalhões para apaziguá-los. Ora, nada disso Netuno poderia fazer com um chicote, por exemplo, ou com uma colher, ou com esses cetros todos bordadinhos que os reis de hoje usam. Nada mais natural, pois, que o tridente ficasse como o símbolo do império das águas. — Uf!... — exclamou Emília. — E onde arranjou o tal tridente? — Dizem uns que lhe foi dado pelo seu irmão Zeus. Outros, que foi um presente dos Ciclopes, aqueles gigantes de um só olho na testa. Agradecidos a Netuno por haver sustentado a causa de Zeus na luta contra os titãs, deram-lhe o tridente. — Que história é essa? — exclamou Pedrinho. — Pois Netuno, irmão de Zeus, lá podia ser contra ele? — Podia e foi inimigo de Zeus durante muito tempo, quando morava no Olimpo. Várias vezes conspirou contra Zeus, de cujas ordens fazia pouco caso. Daí vem a sua expulsão do Olimpo e o seu exílio para a Troada, onde, ajudado por Apolo, ergueu os muros da cidade de Tróia. — Estou gostando de Netuno — disse Emília, que era muito revolucionária. — Rebelar-se contra Zeus, que lindo! O Visconde continuou, com grande admiração do velho Agatirso, que apesar de grego era muito fraco em mitologia:

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— Ah, era um deus vingativo e terrível. Foi quem suscitou o monstro que destruiu a Troada, e mais tarde aquele outro que quase devorou Andrômeda, e depois o touro maravilhoso que emergiu das águas e Minos não teve ânimo de sacrificar. Durante a guerra de Troia tomou o partido dos gregos e daí veio o desastre dos troianos. Fez mil coisas, inclusive contestar a Palas o direito de ser a padroeira de Atenas. A fim de decidir a briga, Zeus declarou que daria Atenas a quem fizesse o mais útil presente aos homens. E vai Netuno, então, bate na terra com o tridente e faz surgir o cavalo, animal que até aquele momento não existia... — Espere, Visconde! — berrou Emília. — Se o cavalo não existia e foi criado por Netuno, como é que sua mãe enganou Saturno, dando-lhe a comer um potrinho em vez do próprio filho recém-nascido? O Visconde suspirou. — Ah, isso é um dos maiores mistérios da mitologia. Muitos sábios já quebraram a cabeça no estudo do problema. Eu não sei. O que sei é que apesar do cavalinho que Saturno comeu, quem com um golpe do tridente deu origem ao cavalo foi Netuno. O cavalo iria ser o maior amigo do homem. Era, pois, o maior presente que um deus poderia fazer à humanidade. — E derrotou Palas? — Não. A inteligentíssima Palas contrapôs ao cavalo outro presente de ainda maior utilidade: a oliveira. Emília protestou. Não concordou que a oliveira fosse de maior utilidade que o cavalo, porque "sem a oliveira os homens se arranjariam perfeitamente mas sem o cavalo, como? Diz Dona Benta que sem o cavalo o homem estaria até hoje andando a pé."

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— Pode ser — disse o Visconde — mas Zeus não pensava assim; e quem ficou a padroeira de Atenas foi Palas, em vez de Netuno. E vai Netuno então e, furioso, lançou o mar contra toda a Ática e a submergiu. É na Ática que fica Atenas. — Sei disso. Já estive lá. E depois? — Depois casou-se com Anfitrite — e foi grande vitória sua, porque esta filha de Oceano e Dóris não queria saber dele. Achava-o muito feio e até repugnante. Aquelas barbas verdes de algas marinhas, aquela catinga de maresia... E além disso era o pai de quanto monstro há nos oceanos. — E onde mora Netuno? — quis saber Pedrinho. — No fundo do Mar Egeu. É lá que tem os seus famosos cavalos-marinhos de crina de ouro e patas de palmípede, impetuosíssimos. Às vezes também usa uma carruagem em forma de concha, puxada por quatro delfins. — Deve ser imponente Netuno a galope nesse carro!... — Imponentíssimo. Ele sai de diadema de pérolas e nácar na cabeça, com o tridente numa das mãos e outra estendida como para acalmar as ondas. E quando anda nessa grande concha por sobre a tona do mar amansado, os monstros marinhos sobem das profundezas e seguem-no, os delfins brincalhões vão rebolando na frente. — Estou achando muita graça nos deuses gregos. Eles, a bem dizer, não são deuses — são verdadeiros romances policiais. Bem diz Dona Benta que nunca houve imaginação mais rica que a dos gregos. Pedrinho estava pensando em Andrômeda. Quis saber quem era. O sabuguinho contou. — Andrômeda era filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de Cassiopeia sua esposa. Um dia Cassiopeia teve a audácia de disputar um concurso

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de formosura com as nereidas do séquito de Netuno — e Netuno, furiosíssimo, lançou contra o reino de Cefeu um monstro horrendo. Cefeu, no maior desespero, consultou o Oráculo de Amon, que era o oráculo de Delfos lá da África. E o oráculo de Amon responde que o meio de aplacar a ira de Netuno era expor à fúria do monstro a bela Andrômeda. — E o pai malvado teve a coragem de fazer isso... — Sim, deixou que a linda jovem fosse entregue às nereidas, as quais a amarraram a uma penedia da praia para que o monstro a comesse. — E comeu-a? — perguntou Emília aflita. — Quase. Quando foi chegando com aquela imensa boca vermelha escancarada, eis que aparece... adivinhe quem? — Hércules?... — Não! Perseu, o mesmo que matou a Górgona. Vinha montado... adivinhe no quê? — Em Pégaso! — berrou Emília. — Sim, em Pégaso. Perseu matou o monstro e... adivinhe o que fez? — Desamarrou-a e casou-se com ela... — Isso mesmo. Você é uma danadinha para adivinhar, Emília. Agatirso estava de boca aberta. Nunca imaginou que pudesse haver tanta ciência na barriga de uma aranha de cartola. Nisto um dos marinheiros da barca deu um grito: "Terra! Terra!... " Hércules, que estava caído à popa, com os olhos mais brancos do que nunca, deu um suspiro...

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NA ILHA DE GERIÃO O desembarque operou-se como das outras vezes, com o herói apoiado ao ombro de Meioameio, mais bambo do que se tivesse levado uma boa sova do tridente de Netuno. Pedrinho teve de repetir a mesma cura de "herói enjoado", lá das praias de Temíscira. Depois que se viu "novo", Hércules disse: — Bom. Agora temos de arquitetar um plano. A força do rei desta ilha já sei que está sobretudo no dragão de sete cabeças e no pastor de duas. Tenho de me aproximar com muito jeito para dar cabo do dragão e do pastor — só depois irei justar contas com o rei monstruoso. — Como vai atacar o dragão, Lelé? — quis saber Emília. — Com as minhas flechas — e ao dizer isso, tirou-as do carcás e examinou-lhes as pontas. Desde aquela aventura em que se viu quase perdido diante de um monstro porque Emília havia "humanizado" as suas flechas, o herói nunca mais se meteu a uma empresa sem primeiramente examiná-las. — Fiquem aqui — disse ele. — Vou sozinho — e lá se foi. Os pica-paus ficaram ouvindo as histórias de Agatirso. Não há velho marinheiro que não saiba de muita coisa interessante relativa ao mar. Pedrinho, que era um grande pescador lá no ribeirão do sítio, só queria histórias de peixes. Já Emília só se interessava pelas de monstros. — E a tal serpente marinha de que falam tanto? — perguntou ela. — Nunca jamais encontrou alguma? Não há marinheiro que não fale das serpentes marinhas que vivem nas grandes profundidades e às vezes sobem à tona. Agatirso também tinha a sua.

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— Certa vez — disse ele, vindo eu em minha barca da Ilha de Paros para a de Naxos, dei de repente com um mar agitadíssimo, mas duma agitação diferente de todas as que eu conhecia. Era como se lá no fundo estivesse havendo um terremoto. Não posso compreender como me salvei. Que vagalhões horríveis! Levantavam-se como torres e depois afundavam como verdadeiros abismos. Uma hora levei assim, agarrado ao toco de mastro de meu bote... — Por que ao toco? — Porque era só o que restava do lindo mastro de meu bote. Já no começo um vagalhão o despedaçou como se fosse uma hastezinha de capim seco. Ficou o toco — e muito que isso me valeu. A ele me agarrei de unhas e dentes durante mais de uma hora. Por fim a tormenta foi serenando — e eu respirei. Estava salvo, graças à bondade de Palas, a minha padroeira. E foi então que vi uma coisa nunca vista em meus anos e anos de voga nestes mares. — Viu a serpente marinha... — Sim, vi... Mas no primeiro momento, nem compreendi o que fosse. Uma cabeça hedionda e como que aflitíssima borbotava pela boca muito aberta uma porção de coisas vermelhas. E aquele enormíssimo corpo de cobra boiava sobre o mar como uma série de SS emendados. Lá no fim, a cauda — uma cauda que batia na água. O monstro deu-me a ideia de estar na agonia. Um vagalhão arrancou dali meu barco — e foi só. Não enxerguei mais nada. Agatirso enxugou a testa. A simples lembrança daquelas cenas fazia-o suar. O Visconde deu uma explicaçãozinha muito boa. — É que tinha havido no fundo do mar algum terremoto, ou alguma súbita erupção vulcânica, e o convulsionamento das águas deslocou

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uma dessas serpentes marinhas das grandes profundidades, arremessando-a à superfície. Ora, a diferença de pressão é muito grande e o organismo do monstro não suportou a súbita passagem da alta pressão do fundo para a pouca pressão da tona — e estourou. — Como estourou? — Rebentou-se todo por dentro, por falta de pressão. É por isso que este homem a viu botando para fora todas as vísceras. O que ele viu foi uma serpente marinha lá das profundas, estourada em consequência da pouca pressão atmosférica da superfície. O velho marinheiro ficou admiradíssimo da segurança do Visconde, embora não entendesse aquela história de "pressão atmosférica". E ainda estavam a falar em serpentes marinhas e peixes, quando Hércules reapareceu. — O caso é difícil — disse ele. — O dragão oculta-se numa das várias cavernas lá existentes. É delas que inopinadamente salta sobre os atacantes. Perto está sempre o pastor de duas cabeças. Quem ataca o pastor arrisca-se a ser atacado pelo dragão — e não podendo prever de que caverna vai sair o dragão, pode ser apanhado de surpresa. Vim pensar sobre o que fazer. Hércules na verdade não tinha vindo pensar coisa nenhuma e sim saber a opiniãozinha da Emília. Percebeu logo que era um desses casos em que a inteligência vale mais que a força bruta. E olhou para ela. Emília segurou o queixo e pôs-se a refletir. De repente disse: — Heureca!... Todos ficaram muito atentos, curiosos de saber o que ela havia

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"heurecado". Emília ainda pensou mais um bocadinho, como que aperfeiçoando a ideia. Depois perguntou: — Quantas cavernas são? — Umas vinte. — Pois o jeito é um só, Lelé: descobrirem que caverna mora o dragão. Feito isso, o resto se torna fácil. — Sim — concordou o herói. — Se eu tiver a certeza de que o dragão está neste ou naquele buraco, posso atacar o pastor e em seguida apontar minha flecha para a boca do buraco certo. — Exatamente — concordou Emília. — Podemos fazer uma coisa: vou junto com você e lá aplico o meu meio de descobrir a caverna certa de onde vai sair o monstro. — Que meio é esse? — indagou Hércules; e ela, muito espevitada: — Não posso dizer; perde o efeito. Mas juro que marco direitinho qual é a caverna do dragão. Hércules deu a mão a Emília e lá se foram. Pedrinho pensou consigo: "Qual será o meio que ela vai usar? O faz-de-conta ou a varinha de condão?" De um certo ponto, entre duas grandes pedras, Hércules mostrou a Emília, lá longe, o pastor de duas cabeças e as várias cavernas. Numa estava o dragão, mas em qual? Quem fosse lutar com o pastor podia ficar com o dragão pelas costas — e como era? A prudência mandava, primeiro certificar-se do ponto certo onde se escondia o dragão: só em seguida atacar o pastor. Hércules pôs os olhos em Emília como quem diz: "E então?" Emília ergueu para ele a sua carinha cavorteira e disse:

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— Nada mais simples. Tape os olhos que eu já digo em que caverna está o dragão. Hércules tapou os olhos — e Emília, muito rápida, foi apontando com o dedinho para as cavernas e dizendo lá consigo: "Faz de conta que não está nesta nem nesta — nem nesta", e assim apontou todas menos uma. "Logo, está nesta última." E para Hércules, alto: — Pronto! Já resolvi o problema. O dragão está escondido naquele buraco da esquerda — aquele lá... e apontou bem direitinho. Hércules ficou assombrado: Não podia compreender de que maneira ela chegara a semelhante conclusão. Quis saber. Indagou. — Não digo! — respondeu a diabinha. Tenho os meus segredos, como Medeia tem os dela... O herói não insistiu. Ninguém no mundo estava mais convencido de que o pelotinho humano era na realidade uma curiosíssima feiticeira dos séculos futuros. E, sendo assim, não teve a menor dúvida de que o antro do monstro fosse realmente o indicado. — Então posso atacar o pastor, certo de que o dragão vai sair daquela caverna? Emília respondeu com majestosa segurança: — PODE! Era o tom de Medeia e Circe. Era o tom dos oráculos. Era o tom de Palas e Hércules não duvidou nem por um milésimo de segundo. — Bom. Fique aqui — disse ele. Vou dar a volta e atacar o pastor por aquele lado de lá.

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— Por quê? — Porque assim ficarei de frente para a caverna do dragão. Meu receio era atacar o pastor pela frente e ter o dragão pelas costas. Emília ficou ali e Hércules deu a volta para atacar o pastor do ponto certo. Teve de ir agachado e oculto pelas pedras. Se se erguesse, o pastor o veria imediatamente, porque uma criatura de quatro olhos vê ao mesmo tempo a norte, sul, leste e oeste. Súbito, Hércules pôs-se de pé num pulo, já com o arco esticado — e a primeira flecha voou, assobiando. O pastor viu o pulo de Hércules e também levou a mão ao arco — mas a flecha de Hércules o pegou antes que ele lançasse a sua. E logo a seguir foi alcançado por outra. Não era preciso mais. Duas cabeças, duas flechas... Tudo ocorreu num abrir e fechar de olhos, mas mesmo assim o dragão oculto numa das cavernas pressentiu o que se passava lá fora e apareceu... Apareceu justamente na boca da caverna indicada por Emília! — "Exatinho como eu disse" — pensou a ex-boneca. "O meu 'faz de conta' é infalível"... Ao ver surgir o dragão, Hércules enviou-lhe uma flecha à cabeça número um, atingindo-a num dos olhos. O herói tinha de lançar sete flechas, uma para cada cabeça, mas isso antes que o dragão o alcançasse. E com que rapidez vinha o dragão em seu rumo! Só a extrema rapidez dos flechaços o salvaria. E Hércules, zós, zás, zós... duas, três, quatro, cinco, seis flechas, todas muito bem cravadas em cada olho direito de cada uma das seis cabeças. Faltava só a sétima — mas não houve tempo: o dragão estava próximo demais para o tiro de flecha — quase junto dele. Hércules então recorreu à clava — e com um só golpe — mas daqueles!!! — amassou a sétima e última cabeça do monstro como uma pessoa qualquer amassa uma bola de

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papel de estanho. Emília ouviu o blaf e viu o dragão cair estrebuchante. Das seis cabeças atingidas uma língua muito vermelha ainda saia e entrava, e a ponta da cauda do monstro "fazia assim", agitada pelo veneno...

AVÉ, AVÉ, EVOÉ! — Avé, avé, Evoé!... — berrou Emília lá onde Hércules a deixara; e foi correndo ver os dois monstros vencidos. Mortos, mortíssimos... E que portentos! Um homem de duas cabeças é tão horrível como um homem sem cabeça nenhuma. Produz na gente o verdadeiro arrepio do horror. E o dragão era um lagarto enorme com enxerto de outros bichos — verdadeira monstruosidade de pesadelo. Não tinha a cor verde do dragão de S. Jorge que ela vira na lua; era malhado de preto e amarelo. Emília pensou: "Levo ou não levo uma lembrança destes monstros?" Mas deu uma cuspidinha de lado: "Não vale a pena.” Depois de contemplar por alguns instantes as suas vítimas, Hércules pensou em Gerião. Como abordá-lo? Os reis vivem em palácios, e invadir um palácio é o mesmo que invadir um lar. O lar é inviolável. O jeito era um só: ficar de tocaia por ali até que o rei aparecesse. Gerião logo saberia do acontecido e fatalmente viria ver o que houve. E assim pensando Hércules resolveu esconder-se numa das cavernas e esperar. Tomou Emília pela mãozinha e foi para a de onde saíra o dragão. Entrou. O teto da caverna estava todo enfeitadinho de pingentes negros: — uns morcegões que se assustaram e lá se sumiram mais para o fundo. Hércules sentou-se, com Emília ao colo. — Como foi que descobriu a caverna certa? — perguntou-lhe. — Conte o grande segredo.

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— Pois é o faz-de-conta, Lelé. Desde que eu fiz de conta que não era nas outras cavernas que o dragão estava, então tinha de ser nesta... Hércules fez cara de quem não entendia aquela história. — Escute — explicou Emília pegando-lhe na mão. — Você tem aqui cinco dedos. Se tira quatro quantos ficam? — Fica um... — Exatamente. Pois foi o que fiz com as cavernas. Eram vinte. Tirei dezenove — ficou uma: esta aqui... Tão simples. Emília achava simples, mas para Hércules o mecanismo do "faz-de-tonta" era um mistério verdadeiramente impenetrável. — O que me admira — disse ele — é que esse processo não falha nunca... — Nem pode falhar — ajuntou Emília. — Se você faz de conta que uma coisa não é, está claro que ela não é. Se você faz de conta que é, está claro que é. Tão simples. Estavam nessa discussão quando um rapagote, de passagem por ali, estranhou a ausência de Eurition e correu os olhos em redor. Ao descobrir o seu cadáver, e logo adiante o do dragão, deu um berro de pavor e saiu voando rumo ao palácio do rei. — Majestade — encontrei Eurition e o dragão mortos a flechaços!... Gerião estufou de surpresa, fúria e ódio; como tivesse três cabeças, fazia cada coisa com uma — surpreendia-se com a primeira, enfurecia-se com a segunda e odiava com a terceira. Para falar também usava as três bocas: dizia uma palavra com a primeira, dizia a seguinte com a segunda e a imediata com a terceira; depois, da capo à primeira como nas músicas.

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Mas ao ouvir aquilo Gerião nada disse. Estufou só. Faiscou com os olhos e saiu a passos precipitados, rumo ao pedregal das cavernas, conduzido pelo rapazola. Hércules e Emília viram-no sem ser vistos. Que estranho gigante aquele! Três cabeças e seis braços, além do mais uma curiosa espécie de asas egípcias. Trazia três escudos nos braços esquerdos e três lanças nas mãos direitas. Hércules percebeu logo que a luta ia ser tremenda, pois era um gigante equivalente a três. Suas flechas de nada valeriam contra tantos escudos, e sua clava teria contra si a réplica de três lanças agindo simultaneamente. Que fazer? Hércules olhou para Emília. Num relance a "dadeira de ideias" apreendeu a essência do caso e disse: — Ele é fortíssimo da cintura para cima e fraco da cintura para baixo? — Por quê? — Porque tantas cabeças, tantos braços, tantos capacetes, escudos e lanças, são muita coisa para só duas pernas. Esqueça o que está da cintura para cima e ataque as pernas. Demolida a base, a torre cai. O rosto de Hércules iluminou-se. Não podia haver coisa mais clara — e nem ele, nem todos os heróis que anteriormente haviam lutado com Gerião, tinham percebido aquele ponto vulnerável!... Hércules ajeitou ao arco uma flecha e emergiu da caverna. Gerião imediatamente o avistou. Quem dispõe de seis olhos em três cabeças nâo perde nada e vê depressa. Gerião viu-o e fechou-se na defesa, coberto pelos três escudos e os capacetes de bronze — mas a seta de Hércules não veio apontada para as "partes nobres do corpo", o peito, o coração, a cabeça, e sim para a humilde parte do chamado joelho — e lá entre os ossinhos do joelho direito de Gerião se cravou a primeira seta do herói. E a segunda seta, vinda logo atrás da

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primeira, também se cravou no joelho esquerdo. Ah, foi a conta!... Gerião, com todas as suas cabeças e todos aqueles braços e escudos e lanças e capacetes, desabou como essas grandes chaminés de tijolo quando uma explosão de dinamite rebenta na base. Um peito de herói pode ser tremendo, o coração do herói pode ser como o de Ricardo Coração de Leão; mas se o joelho dobra, aquilo tudo lá por cima vem logo abaixo, de cambulhada. Escangalhado nos joelhos, Gerião, o monstruoso rei invencível, desabou em cima dos corpos de Eurition e do bicho de sete cabeças. Hércules aproximou-se e facilmente o matou com três golpes de clava, — pá, pá, pá, — um em cada crânio. — Avé, avé, Evoé!... — berrou Emília, correndo a arrancar um botão de ouro da túnica do gigante — um lindo "souvenir". Hércules contemplava os três cadáveres. Quanto havia – sofrido o mundo ali dos arredores por causa da associação daqueles três monstros! Já fortíssimos individualmente, com a associação se haviam tornado invencíveis. Mas lá estavam por terra, extintos. Por quê? Porque não haviam contado com o valor de Hércules em íntima associação com a esperteza da Emília. O herói estava compreendendo o valor da "associação". Muito bem. Euristeu lhe havia ordenado que levasse para Micenas os bois de Gerião. Não lhe ordenara que desse cabo desse rei. Mas como tomar os seus bois sem matá-lo? E como matá-lo sem preliminarmente matar ao pastor Eurition e ao bicho de sete cabeças? A primeira parte do Décimo Trabalho estava executada — e Hércules iria ver como fora simples diante da segunda parte: o transporte da boiada de Gerião para Micenas. O problema do transporte sempre foi muito sério em todos os países, sobretudo na antiguidade, antes das estradas de ferro, dos caminhões e automóveis, dos grandes navios e mais meios existentes hoje. Na Grécia daqueles tempos só havia o lombo de animal, a carreta de duas rodas... e que mais? Só. Os próprios deuses não iam além da

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carreta. Tinham-na mais enfeitada e rica do que a dos homens — mas que era o carro de Apolo se não uma carreta? E a carruagem de Netuno? Essa nem carreta era, sim um trenó, já que não tinha rodas. Tanto os homens como os deuses não iam além da carreta. Como transportar tantos bois dali a Micenas? Hércules e Emília foram ver a boiada de Gerião. Encontraram-na invernando numa pradaria ótima. — Que capim é este? — perguntou Emília; e sua pergunta ficou sem resposta porque Hércules não entendia nada de forragens. Emília viu logo que não era o catingueiro lá do sítio de Dona Benta — e guardou uma folhinha para o Visconde classificar. Bem numerosa a ponta de gado de Gerião. Numerosa para aquele tempo e aquela ilha, mas longe de equivaler ao gado de uma grande fazenda moderna. E nada de zebu. Tudo gado europeu. — Quantas cabeças acha que há aqui, Emília? — perguntou Hércules, que era um "perna-de-pau" em matéria de cálculo. Emília correu os olhos e disse: — Quinhentas e dez, fora os bezerrinhos de ano. Hércules caiu em meditação. Como botar em Micenas toda aquela boiada? Consultou Emília, e ela: — Euristeu não sabe quantos bois existem aqui, de modo que tanto faz levar todos como uns dez apenas. Além disso, acho uma grande injustiça pegar estes bois roubados aos criadores vizinhos e levá-los a um rei distante e tão antipático. O justo será entregá-los aos seus verdadeiros donos e levar para Micenas só uma pequena amostra, aí uns dez ou doze... Hércules achou simplesmente maravilhosa a ideia.

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A BOIADA Enquanto esperavam pela volta de Hércules, os outros, lá na praia, ouviram mais coisas do império de Netuno contadas pelo Visconde. Como sabia coisas o raio do sabugo!

— Antes de Netuno, quem era o dono do mar? — perguntou Pedrinho. — Antes? Era Nereu, filho do Oceano e da Terra. Nereu desposou Dóris e teve cinquenta filhas, as tais nereidas que mais tarde a deusa Flora admitiu em sua corte e transformou em náiades, dríades e napeias. — Admitiu-as para quê? — Para que tomassem conta do riquíssimo tesouro do seu império. Essas ninfas casaram-se com os filhos de Tritão e passaram a morar nas grutas cheias de avencas e samambaias, nas úmidas barrocas dos rios, nas clareiras das matas onde folgam os faunos e silvanos. Logo que Netuno se sentou no trono das águas, outorgou ao velho Nereu o dom de tomar as formas que quisesse. Nereu tornou-se também um hábil adivinho — e foi quem previu a queda de Tróia. Mora num recanto do Mar Egeu, rodeado de muitas nereidas que o divertem com cantos e danças. É um velho muito calmo, muito justiceiro e moderado em tudo. Tem olhos verdes e barba cor do céu. Pedrinho perguntou ao marinheiro se por acaso havia visto alguma nereida. — Sim — respondeu Agatirso. — Vi duas numa praia da Ilha de Naxos.

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— E as tais dríades e napeias? Também viu alguma? — Muitas. As napeias são as ninfas das campinas, e as dríades são as ninfas das árvores. Cada velha árvore das florestas tem a sua dríade morando ali. Pedrinho mostrou-se cético nesse ponto. — Está aí uma coisa que só vendo. — Pois vi muitas, como também já topei com várias hamadríades... — Quais são essas? — As que moram dentro das árvores. Quando derrubam as árvores, elas se libertam e ficam vagueando pelas redondezas... Lúcio e o centaurinho pouco falavam, mas ouviam com a maior atenção. Súbito, Meioameio tomou a palavra e disse: — Eu também tenho visto inúmeras. O mundo está cheio dessas criaturas. E como são lindas!... Perto da praia havia uma floresta de árvores muito antigas, quase que só carvalheiras e castanheiros seculares. Pedrinho olhou. — Será que naquela mata há dríades? — Claro que há — respondeu Agatirso. — Nunca houve floresta sem dríades. — E se fôssemos lá para ver? Foram, Pedrinho no lombo de Meioameio, o Visconde montado em Lúcio. Que mata linda! Velha como o mundo. Aqueles carvalhos deviam ter mil anos. O frescor ambiente parecia um sorvete

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evaporado. E tudo na penumbra, com sombras mais espessas aqui e ali e, de vez em quando um raio de sol que furava o dossel de folhas e vinha numa lista bater no chão. Troncos musgosos. Parasitas — e aquele silêncio majestoso das grandes matas seculares. — Olhe lá!... — exclamou Lúcio apontando para certo ponto. A hamadríade daquele tronco está sentada em cima dele. Pedrinho olhou. Realmente lá estava, a pequena distância, um tronco tombado já de muitos anos, todo orelhas-de-pau e outros cogumelos de cor empalamada, e avencas e samambaias. Tudo isso o menino viu, mas foi só. — Vejo o pau podre e nada mais... Lúcio escondera-se numa moita para não assustar a hamadríade e continuou apontar com os olhos, dizendo: — Pois lá está ela sentadinha no velho tronco morto. Nele habitou até o dia em que a velha árvore caiu. Libertou-se então e não sai das imediações. Passeia, dança, brinca; depois volta a sentar-se no tronco, que nem borboleta. — E como é ela? — Linda — respondeu Lúcio com ênfase. — Muito diáfana. Usa um lindo véu finíssimo sobre o corpo e na cabeça uma coroa de flores silvestres. Não pode existir nada mais delicado que uma hamadríade. Parece um sonho de leveza... Pedrinho olhava, olhava e não via coisa nenhuma. Perguntou ao centauro: — Também vê alguma coisa Meioameio? — Como não? E, olhe!... acaba de levantar-se. Parece que pressentiu a nossa presença. Vai fugir... Fugiu...

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O Visconde também nada vira. Por quê? — Talvez porque vocês não sejam deste nosso tempo, sugeriu o asno. Talvez os olhos de vocês tenham perdido a faculdade de ver certas coisas. Eu vejo perfeitamente as dríades dos bosques. Olhe, está uma, saindo daquela touceira... e apontou com a língua. Meioameio confirmou a afirmação de Lúcio. Havia, sim, aparecido outra representante dessas belas "almas da natureza", e justamente a alma da mais velha árvore daquele bosque. Súbito, fugiu com extrema agilidade e leveza. É que pressentira a aproximação de um fauno. Meioameio e Lúcio viram por ali outras hamadríades, vários faunos e três silvanos — sem que Pedrinho e o Visconde enxergassem coisa nenhuma. Não há maior lástima do que ter olhos modernos... Quando saíram da floresta, avistaram lá ao longe uma grande ponta de gado. Era Hércules que vinha vindo com os bois de Gerião. Correram-lhe ao encontro ansiosos por novidades. — Então? — exclamou Pedrinho. — Como foi a coisa? — A maior das "canjas" — respondeu Emília. — "Orientei" Hércules e foi só, zás-trás, nó cego. "Matamos" o pastor de duas cabeças, "matamos" o dragão e depois "matamos" o tal rei. Hércules foi leal. Não achou que Emília estivesse a gabar-se. Confirmou todos aqueles "amos". — Ajudou-me muito desta vez, sim, — disse ele. — A sua descoberta do antro exato em que se escondia o dragão foi elemento decisivo na minha vitória; e a ideia de ferir Gerião nas pernas, em vez de na cabeça e no peito, como me parecia o certo, foi a melhor ideia de Emília até hoje. — E que vai fazer com esses bois todos?

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— Entregá-los aos donos. Para Micenas só levo dez — outra lembrança ótima cá da Emília. Hércules ordenou a Agatirso que fosse espalhar pelas redondezas a grande notícia do fim trágico de Gerião. E que os donos dos bois aparecessem para recebê-los de volta. — E agora... — disse Hércules mudando de assunto. — Já sei, quer comer! — berrou Emília. Mas desta vez o centaurinho não tem necessidade de sair pelo mundo à cata de carneiros. Assa um boi de Gerião e pronto. À tarde só havia ali cinzas e ossos. Os mugidos em tom de lamento dos bois de Gerião choravam a morte de um companheiro. Mas o herói arrotava, feliz. Nesse dia não houve mais nada. Ficaram por ali a digerir boi e logo que anoiteceu dormiram como anjos de papo cheio. No dia seguinte, logo cedo, começaram a chegar as vítimas dos roubos de gado. Que alegria! Como se confessaram agradecidos ao herói pelo tremendo bem que lhes tinha feito! Gerião era a desgraça da zona. Já de anos vinha fazendo da vida ali um inferno. Depredava os campos vizinhos para apossar-se do melhor. A gratidão daqueles homens era tanta, que prometeram erguer ali um templo a Hércules, o seu grande benfeitor. O herói mandou que fossem apartando o gado de cada um. De sua parte ele só tomava dez vacas, para satisfazer a vontade do rei de Micenas. — E agradeçam isso cá à minha "dadeira de ideias" — disse no fim do discurso. — Se não fosse a sua sugestãozinha tão razoável, eu levaria todos estes bois para Euristeu.

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Os homens vieram agradecer à Emília, com promessas de no futuro templo de Héracles construírem também um altarzinho em sua honra. — E com que nome devemos venerá-la, gentil menininha? — Emília, Marquesa de Rabicó! — respondeu ela com toda a lambetice. Naquele dia não se cuidou de outra coisa senão separar os bois deste ou daquele, sob a fiscalização de Agatirso. E no dia seguinte cuidaram da volta. A viagem para o continente através do Mar Egeu teria sido um encanto, se não fosse o inevitável enjoo do herói. Lá ficou ele novamente caído na proa, de olhos muito brancos, mais morto que vivo. Entrementes os pica-paus assistiram a um espetáculo que nunca supuseram possível a passagem de Netuno e Anfitrite em seus carros!... Quem primeiro viu qualquer coisa, lá muito longe, foi, como sempre, Emília. — Estou vendo!... Será baleia? Será navio?... Uma coisa estranha lá, lá bem longe! — e apontava. Todos olharam naquela direção e realmente viram algo estranho e incompreensível. Só depois que o "mistério" se aproximou é que compreenderam — e foi um deslumbramento. — Netuno!... O carro de Netuno... E era mesmo. Netuno ia passando em seu maravilhoso carro de cavalos-marinhos de crinas de ouro. Como eram majestosos! Vinham nadando e espadanando a água com as mãos dianteiras, que erguiam e desciam como para cavar. Em vez de cascos tinham pés de palmípedes. A carruagem era de deslizamento, como os

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trenós. O deus do mar vinha imponentemente sentado com o tridente na mão esquerda e a direita estendida para as ondas em gesto de "Acalmai-vos diante de vosso deus Posseidon." À frente rebolavam inúmeros delfins brincalhões; e dum lado e de outro, adiante e atrás, volta e meia emergiam carantonhas de estranhíssimos monstros do mar. Os picapauzinhos estavam maravilhados. Nunca lhes passou pela cabeça a possibilidade de assistirem a um tão grandioso espetáculo. Pedrinho gostou imenso do tipo de Netuno, com aquelas longas barbas verdes como algas e o diadema. Emília regalou-se com os cavalos marinhos de pés de pato. Agatirso caíra em êxtase. Ele, um marinheiro, um homem do mar, ver o grande deus das águas em toda a sua pompa, isso era arrasador! Lúcio ficou o tempo todo de boca aberta e as orelhas espetadas para cima como espeques. Meioameio era todo olhos. Depois do carro de Netuno passou o de Anfitrite, mais lindo ainda. Era uma enormíssima concha de nácar puxada por muitas parelhas de delfins, alvos como a neve. Emília bateu palmas e deu gritinhos, como se aquilo fosse um carro de préstito carnavalesco. O Visconde chamou-lhe a atenção: — Cuidado com estas deusas. São muito desconfiadas e por qualquer coisinha castigam os humanos. Palmas lá no nosso mundo é aplauso. Aqui pode ser vaia... O mar, amansado pelo gesto de Netuno, estava que nem um espelho, sem o menor encrespamento da superfície. Em espelho assim o céu se reflete tão lindo que quem olha só vê céu, em cima e embaixo. Só Hércules não viu coisa nenhuma. Quando caía naquele enjoo, nada no mundo, nem Emília, o interessava. Quem quiser saber o que ele sentia, vá viajar de barco e enjoe. Que alívio quando o barco

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desceu a âncora num porto do continente! Pedrinho tomou a si o desembarque dos bois e a sua condução até Micenas. Boi caminha pelos próprios pés, mas tem de ser "tocado" — e eles viraram tocadores de gado. Pedrinho seguia à frente, no lombo de Meioameio; Emília em Lúcio; e o Visconde no picuá vinha atrás, em companhia de Hércules. Volta e meia Pedrinho "aboiava", isto é, cantava um som monótono, Ôooo... como via fazer nas fazendas de gado vizinhas de Dona Benta. O comboio seguiu beirando a praia, com o azul do Mar Egeu dum lado e a costa do outro. Súbito, gritou Emília: — Um gavião... Uma ave qualquer esquisita!... — e apontava para o céu. Todos olharam, inclusive os bois, e realmente viram a atravessar o Egeu, muito alta no céu, uma grande ave. Vinha na direção deles, mas subindo sempre. De repente houve qualquer coisa, porque a ave vacilou, e pererecou lá em cima, perdeu o equilíbrio e começou a cair. — Levou bala! — gritou Emília. — Vem caindo... Sim, vinha caindo com velocidade recrescente e afinal caiu no mar bem perto da praia. — Que será? — exclamava Pedrinho. Ave não é. Me deu impressão dum paraquedista sem paraquedas. Como um ponto negro, o "paraquedista" boiava sobre as ondas que o vinham trazendo à praia. A "torcida" foi grande para que chegasse logo. Era um homem. Era um náufrago do espaço. E talvez ainda estivesse vivo, apenas desacordado. Quando o corpo trazido pelas ondas deu à praia, todos correram-lhe ao encontro. — Que esquisito! Um homem com uns restos de asas nas costas... O Visconde pôs-se a aplicar no náufrago as regras clássicas do socorro aos afogados, consistentes em restabelecer a respiração

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interrompida. Todos o ajudavam, e tanto fizeram que o náufrago respirou, a princípio entrecortadamente, depois com maior regularidade. Em seguida abriu os olhos. Ficou uns minutos assim, tonto. Por fim falou: — Onde estou eu? — Entre amigos — respondeu Pedrinho. Sente-se mal? Quem é você? O náufrago gemeu, com expressão de sofrimento. Não havia dúvida que estava muito machucado da queda. — Diga o seu nome — insistiu Pedrinho — e o náufrago com voz débil: — Ícaro, filho de Dédalo... — Dédalo, o construtor do labirinto de Creta? — Sim — gemeu o infeliz. O Rei Minos encarcerou-me lá com meu pai, mas sem que meu pai soubesse. Procurei encontrar-me com ele, inutilmente. Aquela infinidade de corredores me atrapalhava dum modo horrível. — Está claro — observou Emília. — Sem carretel aquilo não vai. O náufrago arregalou os olhos. — Sim — continuou Emília. — Estivemos com o senhor seu pai lá no labirinto, no dia em que Teseu matou o Minotauro. Depois salvamos Teseu, também atrapalhado com os infinitos corredores — e saímos todos. Mas Dédalo não parecia desconfiar que seu filho estivesse no labirinto. Não nos falou coisa nenhuma. — Não podia saber. Puseram-me incomunicável.

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— E como saiu daquele horror de prisão? — Pelo ar... — Pelo ar?... Ícaro explicou: — Havia por ali, nos escuros, muita coruja e muito morcego. Pus-me a juntar penas de coruja e asas secas de morcegos mortos. Depois descobri uma colmeia de abelhas lá num canto. Comi o mel e fiz uma grande bolota de cera. Foi nesse momento que me veio a ideia. — Que ideia? — De voar. De armar com as penas de coruja e as asas de morcego um grande par de asas que se ajustassem aos meus ombros. Depois faria como as aves — batia as asas e saía voando... — Mas se essa ideia veio quando esteve fazendo a bolota de cera, para que juntou as penas de coruja? — quis saber Emília, que era muito meticulosa. — Não foi já com a ideia do par de asas? — Não. Juntei aquelas penas para fazer um colchão. A ideia de voar veio com o pelote de cera. — Mas que tem a cera com as penas? Não estou entendendo... — É que eu podia construir o meu par de asas com as penas de coruja e as asinhas dos morcegos, emendadas com cera... — E construiu... — Sim, construí o excelente par de asas que me permitiu escapar do labirinto e voar por sobre este Mar Egeu. Voei perfeitamente até certo momento. Depois tive uma lembrança desastrada: ir subindo, subindo, para espiar bem de perto o carro de Apolo...

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— Nós vimos a subida e estranhamos — observou o Visconde. — Para aterrissar aqui não havia necessidade de subir tanto. — Eu sabia disso, mas a curiosidade de ver de perto o carro de Apolo me dominou. Fui subindo, e à medida que ia subindo aumentava o calor dos raios do sol. Súbito, senti que a cera que ligava as penas de coruja estava amolecendo. Precipitei-me na descida. Era tarde. As penas se desagregaram, minhas asas se desfizeram, derretidas, e eu caí... — Teve muita sorte de cair na água do mar. Se caísse em terra, estava agora como o sapo que foi à festa do céu. E agora? Ícaro, cada vez mais arquejante, não teve forças para responder. Foi fechando os olhos e morreu. Hércules estivera ali todo o tempo a acompanhar a cena e a ouvir as últimas palavras do filho de Dédalo. Comoveu-se com o passamento do rapaz. — Bom — disse por fim. — Temos de enterrá-lo com todas as honras — e foi ele mesmo abrir numa pequena elevação da costa o túmulo de Ícaro. Enterraram-no à moda grega. Hércules colocou uma laje em cima, na qual Emília escreveu:

AQUI JAZ ÍCARO, O PAI DA AVIAÇÃO ERRADA

— O pai da aviação certa, sem cera nem penas de coruja, é outro... Finda a cerimônia fúnebre, Pedrinho aboiou e a caravana pôs-se novamente em marcha. Emília ia contando ao asno Lúcio as proezas da aviação moderna. — Nem queira saber, Lúcio, o horror que essa invenção nos saiu! Há os tais aviões, umas aves de metal, aperfeiçoadíssimas, que voam de

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todos os modos possíveis e a todas as alturas e de lá arremessam sobre as cidades enormes bombas. — Que é bomba? — São uns cilindros de ferro, ocos, cheio de TNT. — Que é TNT? — Um explosivo. — Que é explosivo? — Uma coisa, um pó que explode, isto é, arrebenta, pega fogo, faz bum! e escangalha tudo em redor; derruba casas, manda gente despedaçada para o beleléu. O horror dos horrores. — E para que isso? — indagou o asno, surpreso. — Não sei, Lúcio — e também não sabem os próprios homens que fazem isso. Há lá as tais "guerras mundiais". De vinte em vinte anos rebenta uma e todos os países entram na dança, uns a destruírem e incendiarem as cidades dos outros, e a matarem todos os homens jovens e perfeitos. — E os imperfeitos? — Aos velhos, doentes e aleijados, a esses não acontece coisa nenhuma. Ficam em casa lendo os jornais e ouvindo o rádio. Para a matança só são remetidos os perfeitos de corpo. Se um tem um defeitozinho qualquer na vista, por exemplo, já não serve. O asno achou muito estranho aquilo. O razoável seria mandar para o matadouro os velhos e estropiados e deixar com vida os moços perfeitos. Manifestou essa ideia, e depois quis saber quem é que lançava os países uns contra os outros.

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— Ninguém — respondeu Emília. — Todos os chefes começam dizendo que só querem a paz, a paz, a paz — só falam em paz. Não querem a guerra. E o povo, está claro, também não quer a guerra, porque na guerra quem morre e paga o pato é o povo. As mães não querem a guerra porque perdem seus filhos. As irmãs não a querem porque perdem os irmãos. As noivas não a querem porque perdem os noivos. Ninguém, absolutamente ninguém, quer a guerra — mas a guerra vem. — Como vem? — Vem por si mesma. Começa. Estoura. Rebenta. Lá um belo dia a gente abre o jornal da manhã e lê numas letras deste tamanho: REBENTOU A GUERRA... E logo depois está o mundo inteiro dentro da guerra, com os aviões a derramarem bombas do céu e com a matança embaixo feita cientificamente, por meio de maravilhosas máquinas de matar, criadas pelos maiores gênios do mundo moderno. — E depois da matança? — Quando se cansam de matar, e os navios estão todos no fundo dos oceanos, e as cidades são montanhas de cacaria, e só se ouve o choro de milhões e milhões de mães e irmãs e noivas e esposas, e já não há casas onde o povo morar, e nem há pão para o povo comer, e a miséria fica o horror dos horrores, então a guerra para... vem a paz. E sabe o que é paz no mundo moderno, Lúcio? Apenas um descansinho para o desfecho de nova guerra... O Asno de Ouro estava com todos os pelos arrepiados e a dar graças ao Olimpo de viver naquele tempo. O tal mundo moderno ficou em sua cabeça como a imagem do pior dos infernos.

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FAETONE Pedrinho discutia com Meioameio umas reformas que andava com ideia de fazer no sítio de Dona Benta. — Aquilo lá é um amor de sítio, — dizia ele, — mas tem o defeito de todas as coisas modernas: falta de poesia. As árvores do pomar, por exemplo. Excelentes árvores, muito nossas amigas, com os galhos musguentos e até com erva-de-passarinho. Todos os anos enchem-se de flores e depois carregam-se de frutas — laranjas, pitangas, jabuticabas... — Como são estas últimas? — Umas redondas, pretinhas, deliciosíssimas. Dão pregadas no tronco. Cada um de nós tem um pé só seu. Há também cambucás, grumixamas, sapotis, cabeludas, abacaxis, ameixas, pêssegos... um monte! — E cereja tem? — Não. Nunca vi por lá nenhum pé de cereja, e é pena, porque são muito bonitinhos. Ali na Grécia, volta e meia eles davam com pés de cerejas carregadíssimos. — Mas se as árvores são assim tão bondosas, de que se queixa você? — perguntou o centaurinho. — Não estou me queixando das coitadas, tão nossas amigas, mas acho que lhes falta o que vejo aqui nestas: ninfas, dríades e hamadríades. Ponho-me a imaginar que linda não seria a dríade e a hamadríade da minha jabuticabeira, ou da "pitangueira velha", que é a de Emília, ou da mangueira Bourbon de Narizinho. A gente ali a chupar as jabuticabas, a derrubar pitangas ou mangas, e as ninfas em redor espiando a gente... Poesia é isso, Meioameio. Nosso século

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tem muita máquina, tem até máquina de voar; mas em matéria de poesia não chega aos pés disto aqui. Pedrinho fez pausa, cismando. Depois: — Ando a pensar numa coisa: e se levássemos umas duas ou três dríades para soltar lá no sítio? Meioameio respondeu que só consultando o Visconde, muito mais entendido que ele em coisas da Grécia — e foram para a retaguarda consultar o Visconde lá no seu picuá. — Acha possível, Visconde, que possamos levar para o sítio um lote de ninfas, dríades e hamadriades? O Visconde refletiu uns instantes e respondeu: — Só com o consentimento de Flora. Essas ninfas são as guardiãs dos tesouros dessa grande deusa e só poderão sair daqui com sua ordem. — E onde poderemos descobrir a deusa Flora? — Dizem que mora nas Ilhas Afortunadas... — Que ilhas são essas? Nunca ouvi falar... — Também não sei, e parece que ninguém sabe. Os romanos falavam muito nas Insulae Fortunatae, sem dizer ao certo onde ficavam. Uns achavam que era a oeste da Líbia; outros que eram as Ilhas Canárias. Pedrinho quedou-se pensativo. Depois disse: — Lá no acampamento de Micenas, quando Hércules for entregar a Euristeu esse gado, nós podemos tomar uma pitada de pirlimpimpim e dar um pulo às Ilhas Afortunadas.

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Lúcio e Emília, que ignoravam a conversa anterior sobre a introdução de ninfas no sítio de Dona Benta, exclamaram ao mesmo tempo: Para quê? Quando Pedrinho expôs a sua ideia de uma criação de ninfas no pomar, o entusiasmo de Emília foi tamanho que escorregou do lombo de Lúcio, caindo de ponta cabeça no chão. — Ai, ai, ai... — exclamou erguendo-se e espanando-se. — Uma ideia dessas... Como é que nasceu na sua cabeça, Pedrinho, em vez de na minha? Emília ficava enciumada sempre que uma boa ideia acudia aos outros. Todas as "ideias boas", todas as "ideias-mães", tinham de ser dela. E que ideia melhor que a de Pedrinho? Levar ninfas para o sítio, botar cada árvore do pomar com a sua dríade, entalar dentro de cada tronco uma hamadríade... Oh, sim e a dríade mais bonita tinha de ser a da sua pitangueira velha... A sorte da caravana estava em que os bois de Gerião até pareciam gado Gir, de tão mansos. Não chifravam ninguém. Caminhavam muito direitinhos, tal qual uma ponta dos mansíssimos bois de carro lá de Dona Benta. Mesmo assim, em certo momento, "estouraram". — Em que momento? Ah, num dos momentos mais trágicos da humanidade, quando por um triz a terra escapou da maior das desgraças: ser torrada inteirinha pelo sol. A coisa foi assim: um filho de Céfalos e Eos, de nome Faetonte, extasiado de ver Apolo dirigindo o carro do sol, teve a má ideia de lhe pedir que o deixasse guiar um bocadinho. Apolo achou graça e disse: "Venha... "e deixando o carro passou as rédeas a Faetonte. Mas cavalo é cavalo. Tanto faz ser cavalinho aqui na terra como cavalo de Apolo. Quando está num veículo e há mudança de cocheiro, estranha. Os cavalos de Apolo, que nunca tinham sido guiados senão por esse deus, estranharam o novo cocheiro — espantaram-se — e foi aquele horror. O sol, que é quem anda

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naquele veículo de luz, perdeu o equilíbrio e caiu — ou começou a cair em cima da terra. Emília deu um berro: — Lá vem vindo o sol para cima da gente!... — Hércules olhou, viu que era mesmo e, zás, mão no arco. Ia cometer a loucura de matar o sol com uma flechada! A música parou. Pedrinho perdeu a voz, como nos pesadelos. Lúcio deu um zurro: — Não faça isso, herói! Sem sol, como vai o mundo arranjar-se no escuro? — Hércules não ouviu. Estava de arco esticado, apontando... Mas lá no Olimpo, Zeus, que tudo vê, acudiu a tempo. Fulminou com um dos seus raios o imbecilíssimo Faetonte e fez que Apolo fosse correndo tomar conta do carro. A ordem se restabeleceu no céu mas a boiada de Gerião havia estourado. Colhidos pelo pânico, os bois romperam por ali afora, cada qual numa direção. E que luta foi para sossegá-los e reuni-los de novo!... Quando a paz se restabeleceu, Emília suspirou. — Ai que susto! Senti lá dentro de mim uma pontada que nem as de Dona Benta. Acontece cada coisa por aqui... Eh, Grécia! Foi o último incidente ocorrido na viagem para Micenas. No dia seguinte chegaram. Hércules deu ordem ao centaurinho para tomar conta dos bois enquanto ele ia a Micenas apresentar-se ao rei — e lá foi. Emília tirou do picuá o Visconde; depois abriu a canastrinha para ver senão faltava qualquer coisa.

NOS DOMÍNIOS DE CLÓRIS Enquanto Hércules se explicava com o Rei Euristeu, os picapauzinhos deram um pulo até ao reino de Clóris. Foram só os

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três. Meioameio e Lúcio ficaram — este pastando, aquele assando carneiros. O pulo às Ilhas Afortunadas foi feito "a pó". Três pitadinhas do pirlimpimpim, três fiuns e pronto. Acordaram diante do maravilhoso palácio de Clóris, a mesma que mais tarde seria pelos romanos chamada Flora. Que curioso palácio aquele! Tudo lá eram flores, cores lindas e perfumes, frutas deliciosas, musgos, avencas, samambaias e mais mimos vegetais. Pedrinho adiantou-se e parou diante do porteiro: um lindo cravo vermelho. — Senhor cravo — disse ele — somos viandantes vindos de longes terras para um entendimento com a deusa Clóris. Poderá ela receber-nos? O cravo examinou-os com a maior curiosidade e mandou um recado à deusa por um goivo que brincava por ali. Logo depois veio a resposta. Sim, Clóris ia recebê-los imediatamente. Que entrassem. Pedrinho entrou, acompanhado de Emília e do Visconde a manquitolar nas suas muletas. Um lírio do vale seguia na frente, guiando-os através dum jardim de sonho. Depois, uns degraus de macio musgo. Depois, a sala de recepção da amável deusa. Clóris, em todo o esplendor de sua beleza, recebeu-os com um sorriso amável. — Bem-vindos sejam ao meu perfumado reino! Que querem? Pedrinho explicou tudo. Contou quem eram, onde residiam lá nos tempos modernos e falou do pomar de Dona Benta, das árvores de frutas nele existentes, das flores do jardim, muitas das quais Flora desconhecia. Crisandálias, por exemplo, uma flor com que a deusa nem sequer sonhara.

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— Mas nosso pomar tem um defeito disse Pedrinho. Falta-lhe alma. Falta-lhe a poesia que vejo nesta Hélade tão linda. Nossas árvores não possuem cada uma a sua dríade. Dentro dos troncos não há nenhuma hamadríade. Não temos napeias nas campinas nem ninfas nas fontes. Nem nenhuma nereida no ribeirão. Viemos consultar a mais perfumosa das deusas se não nos poderá arranjar pelo menos umas três dríades e outras tantas hamadríades... Clóris estranhou a proposta. Nunca lhe haviam falado assim. Um pedido de ninfas!... Que curioso. Mas para onde iriam essas ninfas? — os pica-paus lhe contaram as mil coisas do sítio de Dona Benta, ela sorriu, realmente encantada. Em seus olhos Emília leu um sincero desejo de também conhecer aquele paraisozinho moderno. Clóris só não pôde perceber como era o tal Quindim. — Cascudo? Com um chifre só em cima do nariz? — Sim — disse o Visconde — e por ter o chifre no nariz é que se chama rinoceronte. Rino em grego é nariz, como todos aqui sabem. Clóris achou uma graça imensa no Visconde. Em sua qualidade de deusa dos vegetais, conhecia todas as espigas do mundo e todos os sabugos — menos aquele, falante e de cartola. E uma ideia lhe passou pela cabeça: ceder as ninfas que Pedrinho queria em troca do sabugo de cartola. — Faço o negócio — disse ela. — Cedo seis das minhas ninfas, à escolha, mas em troca deste maravilhoso sabugo falante. A estranha proposta atrapalhou os picapauzinhos. Puseram-se a conferenciar aos cochichos. Por fim Emília tomou a palavra e, muito xeretamente, disse: — Deusa, nós aceitamos a sua proposta com uma condição: depois de acabadas as nossas aventuras com Hércules e voltados ao sítio de Dona Benta, discutiremos com ela o assunto. Se Dona Benta

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concordar com a troca do Visconde, voltaremos a estas ilhas para fechar o negócio. E assim ficou. Conversaram com a deusa ainda algum tempo e depois se despediram. Que maravilha o palácio de flora! O chão, forrado de frutas vivas, que de repente mudavam de forma, viravam ninfinhas e saíam dançando. Os perfumes do ar também assumiam formas mimosíssimas de pequenos sátiros e faunos aéreos, muito diáfanos, que dançavam com as pomidríades. Pomidríades, chamavam-se as ninfinhas das frutas. E depois eram as cores que tomavam forma e dançavam no ar a dança das pétalas. Nisto um recuo geral de todos aqueles mimos aéreos — não recuo de medo, mas de reverência, Zéfiro, o esposo de Flora, vinha entrando de seu passeio pelo mundo. Puro vento esse deus, o mais suave e agradável de todos. Entrou seguido de mil perfumes — os perfumes das flores que andou beijando pelo caminho, e foi sentar-se ao lado de Flora. Lá ficaram de mãos dadas, olhando para suas lindas filhas também ali presentes — as Brisas. Tanta beleza, tanto perfume, tanto movimento de formas diáfanas no ar, deixaram os picapauzinhos completamente tontos, como que embriagados por um ópio divino. Clóris e Zéfiro, sempre de mãos dadas, olhavam para eles e sorriam. Foi com dificuldade que Pedrinho mediu as pitadas do pirlimpimpim e as distribuiu. Até o fiun soou trêmulo de emoção e todos ainda se sentiam trêmulos quando despertaram no acampamento de Micenas. — Ainda estou sentindo uma tremura — murmurou Emília, que foi a primeira a falar. Pedrinho suspirou e, com ar de quem acaba de sair dum sonho da manhã, disse: — É o tremor da beleza... Os carneiros assados do centaurinho rescendiam. Aquele cheiro os

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fez voltar à realidade — um cheiro que já não falava à imaginação e sim ao paladar. Lúcio tosava os capins ali perto. — E Hércules? — perguntou Pedrinho. — Deve estar chegando — respondeu Meioameio; e indagou do que se passara no pulo ao reino de Flora. Emília respondeu: — Nem queira saber... Tão lindo, tão lindo tudo aquilo, que ficamos com as pernas moles... — Mas arranjaram as ninfas? — Sim. Conseguimos várias em troca do Visconde. Flora encantou-se com o sabuguinho. Vamos voltar lá para fazer o negócio. Meioameio admirou-se da facilidade com que se desfaziam dum velho companheiro. Emília piscou e cochichou-lhe ao ouvido: "Flora vai ser tapeada. Vamos trazer outro Visconde feito pela tia Nastácia, tão parecido com este que ela não desconfia. Desse modo apanhamos as ninfas e conservamos o nosso velho Visconde". Ao ouvir aquilo, o sabuguinho, que havia ficado profundamente triste com a negociação, renasceu. Sua cara iluminou-se dum sorriso — e, aproximando-se de Emília, abraçou-a comovidíssimo. Hércules apontou lá longe. Todos puseram os olhos nele. Vinha com o mesmo ar de sempre — apreensivo, com o medo no coração. Chegou. Sentou-se e foi pegando um dos carneiros assados. Pedrinho interpelou-o: — E então? Soltamos ou não soltamos os bois desta vez? — Ao saber que os bois eram mansos. Euristeu decidiu guardá-los em seus estábulos. Só aos monstros ele manda soltar. — E o novo Trabalho?

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— Tenho de ir ao reino das Hespérides em busca dos pomos de ouro...

O POMO DAS HESPÉRIDES O POMO DAS HESPÉRIDES A viagem de Hércules em busca dos pomos de ouro foi das mais movimentadas. Antes de partir teve de andar indagando onde é que ficava o jardim das Hespérides. Uns achavam que era no país dos hiperbóreos, lá muito ao norte, mas o Visconde objetava: — Não pode ser. A zona hiperbórea, ou polar, é muito fria para favorecer o crescimento duma árvore de pomos. O jardim das Hespérides tem que ser incompatível com os gelos do norte. Deve ficar em clima quente ou temperado. Por fim Hércules se convenceu de que o maravilhoso jardim ficava no extremo ocidental da terra, isto é, bem a oeste. Naquele tempo a "terra" era quase que só a Europa, e o tal extremo ocidental devia ser a península ibérica, onde ficam a Espanha e Portugal. Emília quis saber o que era “pomo”. O Visconde explicou que a palavra "pomo" vinha do latim "pomum" e queria dizer "fruta". — Mas é mais poético dizer pomo em vez de fruta — acrescentou. Fruta dá ideia de mercado ou de verdureira de esquina. Pomo é palavra de luvas de pelica. — Enjoado! — berrou Emília que era muito plebeia. — Só porque vem do latim já está com história. Luvas de pelica! O fedor... Pois eu digo fruta e acabou. — Mas se pomo é fruta em geral, — interveio Pedrinho, — que fruta

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são os tais pomos do jardim das Hespérides? E, antes de mais nada, quem são essas tais Hespérides? O Visconde sabia. Não havia o que ele não soubesse. Contou que se tratava das filhas do gigante Atlas com a ninfa Hespéris. — São quatro, Egle, Eritia, Aretusa e Hestia, cada qual mais encantadora. O jardim das Hespérides é uma pura maravilha que vive tentando os homens e os deuses. Em nenhum outro existem as árvores dos pomos de ouro. Aquilo é um encanto e as quatro irmãs são verdadeiras fadas. Cantam como sereias, dançam como zéfiros e sabem tomar todas as formas. Quando os argonautas lá estiveram e, quase mortos de sede, lhes pediram que indicassem uma fonte, elas se transformaram em areia. E como eles continuassem a pedir água, a areia se transformou em árvore. — Eu me transformaria em torneira para salvar os coitados — disse Emília. — Que adianta areia ou árvore para quem está morrendo de sede? Pedrinho quis saber como era o dragão de guarda ao jardim das Hespérides. — Ah, o mais monstruoso de todos! Cem cabeças que não tiram os olhos dos pomos. Emília estava assombrada. "Cem cabeças!..." Aquele de Gerião que tinha sete já me pareceu tão cabeçudo e vamos agora lidar com um de cem... O Visconde ainda contou que por ocasião do casamento de Juno com Zeus, o dote da noiva consistiu em meia dúzia daqueles pomos — e nunca houve dote maior! E o pomo com que a Discórdia surgiu na festa do casamento de Peleu fora colhido lá. — Mas além de serem de ouro, que outra virtude têm esses pomos? — quis saber Pedrinho.

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— Fazem que o amor nasça com a maior violência no coração de quem os toca. O grupo estava a caminho da Espanha. Hércules seguia na frente, pensando no modo de atacar o dragão. Já dera cabo de uma hidra de nove cabeças e dum dragão de sete — mas que fazer com um de cem? Atacá-lo com suas flechas, de pouco adiantaria, porque toma tempo lançar cem flechas e o dragão o alcançava. Só se houvesse um jeito de adormecê-lo... Lúcio, abanando as orelhas, vinha logo atrás, com Emília de banda em seu lombo e o picuá com a canastra e o Visconde na garupa. Volta e meia o Asno de Ouro suspirava de saudades da sua antiga forma humana. Aquelas aventuras de Hércules não tinham fim — e ele condenado a andar de quatro até que a última se realizasse... Fechava a marcha Meioameio, com Pedrinho no lombo. A amizade entre os dois crescia aos metros. Tratavam-se como irmãos e era um imaginar coisas a fazer no sítio de Dona Benta que não tinha fim. — Com seis ninfas lá, das mais bonitas, e você, um centauro, aquilo fica o suco dos sucos. — Por que não leva também uma mudinha da árvore dos pomos de ouro? A ideia encantou o menino e fê-lo gritar para a Emília: — Olhe o que Meioameio lembrou: levarmos uma mudinha da árvore dos pomos de ouro. Que tal, Emília? A ex-boneca deu uma risada gostosa. — Quando vocês acordam, eu já dormi, sonhei, acordei e estou longe. Já pensei e repensei nisso. Muda o mais certo é não encontrarmos nenhuma; sementes, sim — hei de encontrar sementes. Aquela grandessíssima ladrona da Medeia me roubou o

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pomo de Atlas, mas vou desforrar — vou levar do jardim das Hespérides pelo menos três dos mais madurinhos. O Visconde, lá no picuá, fechou a cara. Não gostou que Emília tratasse daquele modo a grande mágica que o havia curado com a fervura no caldeirão. O pomo fora dado em pagamento dessa cura, com pleno consentimento de Emília. Além disso Emília recebera de volta uma vara de condão preciosíssima. Como então tratava Medeia de ladrona? O Visconde fez-lhe ver isso. E ela: — Ladrona, sim. Cobrar pela fervura dum sabugo um pomo daqueles é ser ladroníssima. Nunca a hei de perdoar. Fui enganada naquele negócio. Julguei que a vara de condão fosse das perpétuas, e não das de só cem viradas. Fui roubada, sim... — e daí não saiu. Na vara de condão de Emília só restavam onze viradas, que ela retinha com o maior ciúme para uso no sítio de Dona Benta. Se não fosse assim, os Trabalhos de Hércules se tornariam verdadeiras "canjas". Na conquista do pomo das Hespérides, por exemplo. Com uma varada ela poderia virar o dragão em pulga mas ficaria só com dez viradas na vara e portanto... — Portanto o que, Emília? — Portanto, não. Já fiz de conta que não tenho vara nenhuma e pronto. Não se toca mais no assunto. Tinha graça eu gastar com Lelé as únicas viradinhas que me restam, um herói tão ajudado por Palas e outros deuses!... Hércules ia atravessando uma zona perigosa. Pedrinho receou encontros e lutas. Sabia do gênio esquentado do herói. Por qualquer coisinha o sangue lhe subia à cabeça e a pancadaria trovejava. Os pressentimentos de Pedrinho saíram certos. Logo adiante surgiu um carro puxado por fogosíssimos corcéis que seguia na mesma direção de Hércules. Em vez de sair do caminho, o herói plantou-se bem no meio da estrada, com as mãos na cintura. Meioameio e

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Lúcio pularam de lado, deixando-o sozinho. Fatalmente, no galope em que vinham, aqueles cavalos iam atropelar o grande Hércules. Mas não foi assim. O condutor estacou-os com um violento puxão das rédeas. — Quem és tu, homem atrevido, que interrompes a marcha do carro de Cicno, filho de Ares? Era esse Cicno um famoso domador de cavalos, realmente filho do deus Marte com Cirene. Abusando da sua origem divina, vivia cometendo em toda parte os maiores abusos. Hércules, que não lhe ignorava o mau renome, respondeu com voz de trovão: — Desce do carro, automedonte, e passa de largo puxando os animais. Hércules sou, filho de Zeus e Alcmena. — Vai ser um fim de mundo — murmurou Emília, toda encolhidinha lá no lombo de Lúcio. São filhos de deuses os dois...

O DEUS E O HERÓI Aquele pega Cicno, gravemente ofendido pelas palavras de Hércules, deu rédeas e estimulou os cavalos para que o atropelassem, mas, rápido, o herói os agarrou pelos freios e os arrancou da carruagem. Cicno ficou na cômica situação dum cocheiro sentado na boleia dum carro sem cavalo nenhum. Teve de saltar em terra e aceitar a luta em igualdade de condições. Aquele pega foi tão curto quão tremendo de ímpeto. Cicno desfere um potentíssimo golpe com a sua terrível lança de bronze, mas a ponta da lança resvala pela pele invulnerável do leão da Nemeia. Hércules responde com o arremesso do dardo, apanhando Cicno pela garganta, na parte descoberta entre o capacete e o escudo. Fora golpe mortal. O filho de Marte cai como que ferido por um raio de Zeus.

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Era a primeira vez que os picapauzinhos viam Hércules manejar o dardo, uma lança curta de arremessar contra o adversário. Como previra muitas lutas naquele décimo Trabalho, o herói fortalecera-se de mais aquela arma. Assim que Cicno, trespassado na garganta, veio por terra, um rugido reboou e o próprio Marte apareceu em socorro do filho. A luta entre Hércules e Marte o deus da guerra foi dessas coisas que a palavra humana jamais descreverá. Pedrinho tapou os olhos com as mãos, de puro horror, e Emília o imitou — mas ficou espiando pelo vão dos dedos. O Visconde, esquecido das muletas, pulou fora do picuá e foi colocar-se longe dali. Meioameio tremia da cabeça aos cascos, e Lúcio não arredou pé de onde estava. Ficara estarrecido, numa verdadeira paralisação de todos os músculos. Marte vestia o traje clássico do deus da guerra e terçava um gládio curto ereto. Hércules ia defender-se com o escudo de Cicno e a clava. Os dois tremendos contendores trocaram olhares chamejantes de ódio e arremessaram-se um contra o outro. O deus Marte estava acostumado a ver o inimigo rolar por terra ao primeiro embate. Era um tranco e pronto. Mas com a firmeza duma rocha Hércules resistiu ao tranco do deus tremendo. Nesse momento uma voz soou imperiosa: "Detende-vos, Ares! Hércules é teu irmão." Era a voz de Palas, que descera da mansão dos deuses para por fim àquele horror. Marte, porém, cego de ódio, não lhe ouve as palavras e ataca o herói com o gládio que nunca repetiu golpe. — Palas corre a tempo e desvia a direção do golpe. O deus, endoidecido de cólera, ergue de novo o gládio — e Hércules aproveita o momento para o ferir no pulso. Ao erguer a lâmina, o pulso de Marte ficara fora da proteção do escudo!... Assombro dos assombros! Pela primeira vez no mundo um homem feria um deus em combate — e que deus: Ares, o deus da guerra!... Para quem luta com espada ou gládio, um rasgão no pulso já

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significa inutilizamento completo — mas Hércules ainda desfere contra o deus um golpe da clava. O deus cai... Ao verem aquilo, Fobo e Deimos, os condutores do carro de Marte, lançam-se em seu socorro, levam-no para o carro e disparam rumo ao Olimpo no maior dos galopes. Hércules havia vencido na luta ao próprio Marte!... Prodigioso! Quando Pedrinho tirou as mãos dos olhos e, ainda cheio de susto, perguntou o que tinha havido, Emília respondeu: — Eu também tapei a cara, mas vi tudo. Lelé espetou com a ponta do dardo o pulso do deus e depois derrubou-o com um golpe da clava. E então acudiram os dois homens do carro e sumiram-se com ele... — Derrotou Marte?... — exclamou Pedrinho no maior dos assombros. — Impossível. Um homem não derrota um deus... — Pois Lelé derrotou o pior dos deuses, justamente o da guerra! Lelé é o número dos números — e pulando do lombo de Lúcio, Emília foi correndo abraçar o herói. — Erga-me, Lelé! — disse ela olhando para cima, porque o alentado herói era "lá em cima". Hércules ergueu-a no braço, sentadinha ali como uma criança nova — e Emília beijou-o no queixo. Nem lhe alcançava as faces, a pequenitota. — Sim, senhor, Lelé! Bichão maior nunca imaginei. Vencer até ao deus da guerra! É batatal... Escute: quem era a linda moça que apareceu no momento psicológico e desviou aquele golpe de Marte? — Palas... — Palas? — repetiu Emília admiradíssima. — Que pena eu não ter sabido... — Por quê?

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— Para vê-la melhor. Quando a gente não sabe quem é uma pessoa não a vê bem, bem, bem... Logo que ele a depôs no chão, Emília correu a contar a Pedrinho toda a história da luta a que o bobo assistira mas não vira — de medo. — Medo de que Pedrinho? — Homem, nem sei, Emília. Pareceu me tão tremendo aquilo, que tive medo que fosse o fim do mundo — e fechei os olhos como nos pesadelos. Nos pesadelos, quando ia caindo num abismo, ele fechava os olhos e pronto salvava-se. — Pois não sabe o que perdeu — continuou Emília. — Vi tudo, tudo. Vi quando Palas chegou... — Quê?... Palas também tomou parte no barulho? — Ela nunca abandona o nosso grande amigo. E veio no momentinho justo, quando a espada de Marte ia alcançando Lelé. Palas, então, com o dedo, desviou o golpe. E quando Marte caiu, já ferido no pulso e com uma clavada na cabeça, aparecem os dois estafermos lá do carro. Vi quando agarraram Marte nos braços e lá se foram num galope louco. — E eu sei o nome desses dois ajudantes — disse o Visconde, que estava ouvindo a conversa. — Fobo e Deimos. — Fobo e Deimos? — repetiu Pedrinho. — O nome daqueles dois satélites do planeta Marte? — Sim — confirmou o Visconde. — Os astrônomos deram aos satélites de Marte os nomes de Fobo e Deimos exatamente por isto; porque nesta luta contra Hércules foram eles que o acudiram.

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Muito bem. Finda uma batalha, é o dever do vencedor enterrar os mortos e Hércules enterrou Cicno. Emília, como de costume, veio com o seu epitafiozinho:

Aqui jaz um domador de cavalos que encontrou quem o domasse.

Aqueles fatos tinham ocorrido à beira dum rio de nome Equedoro, no qual Hércules tomou o seu banho "espadanado" de sempre, e depois todos fizeram o mesmo. Como na Grécia Heroica não houvesse comodidades modernas, — banheiro de água quente e fria, — eles adotavam o sistema dum banho ao ar livre em todos os ribeirões encontrados. O único que não podia tomar banho era o Visconde, porque os sabugos são muito porosos; se caem na água, embebem-se de todo e emboloram. Emília jamais se esqueceu da "fase verde" do primitivo Visconde, quando umedeceu e foi encontrado completamente coberto de bolor azul-esverdeado. Dali partiram para as margens do rio Eridiano (justamente o que os latinos chamavam Pádus e os italianos de hoje chamam Pó). Esse rio estava ganhando fama porque dias antes caíra por lá o cadáver de Faetonte, o tonto que se metera a guiar o carro do sol e fora fulminado por Zeus. Hércules tivera informação de que À margem desse rio moravam umas ninfas, filhas de Zeus e Têmis, que sabiam muita coisa sôbre o jardim das Hespérides. Lá acamparam, e depois de mais uma suculentíssima refeição de carneiros o herói ordenou a Pedrinho que desse uma volta pelos arredores e indagasse do paradeiro das ninfas. O oficial pulou em Meioameio e lá se foi no galope. Uma hora mais tarde voltava com a informação certa: as ninfas filhas de Zeus e Têmis tinham residência a meia légua dali, num bosque. Hércules foi vê-las sozinho. — Esperem-me aqui — recomendou. Não me demorarei muito.

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Enquanto o esperava, Pedrinho foi ao banho — e de relance viu à beira d'água uma nereida, ou a ninfa do rio. Viu-a muito de relance, porque assim que ela o percebeu, mergulhou que nem uma sereia. Pedrinho admirou-se duma coisa: como é que viu tão bem aquela nereida e não viu as dríades do bosque na aventurade Gerião? Tudo mistérios, naquela Grécia de mistérios. De volta do banho deu com o herói já de volta. — Então? — indagou Pedrinho. — Encontrei-as, sim, mas houve erro da parte do meu informante. Quem está no segredo da localização do jardim das Hespérides é outra pessoa, não elas. É Nereu, o velho deus do mar deposto por Netuno. Temos de ir em procura desse venerável ancião — mas como arrancar-lhe o segredo? Mestre que era em arrancar a vida aos monstros, o herói atrapalhava-se quando tinha de descobrir um segredo. Com ele era ali na violência. Para as coisas que necessitavam de miolo, o herói tinha de apelar para os picapauzinhos. — Que acha que devo fazer? — perguntou ao menino — e como este engasgasse chamou Emília. Emília veio, xeretíssima. Sempre que Hércules dava a honra de chamá-la, vinha toda a rebolar-se, certa de que o mundo inteiro estava assistindo à cena. — Que quer de mim, amor? — disse ao chegar. — Uma consulta. Tenho de ir ao palácio do velho Nereu, que quem sabe da exata localização do jardim das Hespérides. Mas estou atrapalhado com um problema: como arrancar ao antigo deus do mar o segredo?

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Emília segurou o queixo e enrugou a testa. Depois seus olhos brilharam como brilho do heureca... — Podemos fazer com ele o que fizeram com a Cuca lá no sítio — e contou toda a história do amarramento da Cuca e do suplício do pingo na testa. Foi o meio de obrigá-la a fazer o que eles queriam — isso naquela história do saci. Hércules deu plena aprovação à luminosa ideia.

NO PALÁCIO DE NEREU Dias depois chegaram ao velhíssimo palácio do velho Nereu. Velho, velho, velho. Não podia haver maior velhice. De tão velho, estava já todo coberto de musgos e algas, ostras e mariscos. Parecia menos um deus do que um casco de navio encalhado. O seu palácio era uma gruta de velhíssimos e carcomidos rochedos beira-mar. As ondas entravam e saíam, e entravam novamente — e assim já de séculos e séculos — sécula seculórum. Cada ondada das ondas era como bafo de ar que o velho deus craquento respirava — e assim ia vivendo a sua vida sem fim, porque enquanto houver ondas haverá vida em Nereu. Foi o que os picapauzinhos sentiram ao espiar de longe aquele casco de deus encalhado lá na gruta imensa que lhe servia de palácio. Tudo pedra, com o teto de estalactites em cima e pontas e mais pontas de estalagmites embaixo. E quanta alga verdinha como cana, e vermelha, e de todas as cores do limo! E quantas conchas e quantos caramujos dos enormes! E polvos passeando por ali, e caranguejos caranguejando. Até aquele Bernardo, o Eremita da festa de casamento de Narizinho lá estava — isto é, um tataravosíssimo antepassado do Bernardo, o Eremita de Narizinho. E um cheiro de maresia velha, e uma umidade pesada, e uma penumbra de meter medo, com morcegões avoengos dos morceguinhos modernos. Velhice era ali — Velhice da água, das

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ondas, dos bichos marinhos, das pedras. Emília sentiu-se logo velhinha, das bem corocas, e até começou a caducar, com uma fala muito trêmula, e pegou num bordão para apoiar-se. Sentia-se arcada como as italianas muito velhas e toda enrugadinhas de rosto. Até catacega ficou. — Me dê sua mão, visvisconde, balbuciou ela — e enquanto lá esteve não largou da mão do sabuguinho. Nereu estava dormindo, reclinado em seu leito de pedras negras cobertas de limo e cracas. Hércules parou diante dele. Que fazer para induzir uma criatura daquelas a contar um segredo? A sugestão de Emília não prestava. Pingo na testa!... Que adianta pingar água na testa duma múmia de deus já sem sensibilidade nenhuma e a viver toda a vida sob chuva de pingos que caíam do teto? E Hércules olhou para Emília com ar desanimado. Apesar de velhinha e aparentemente caduca, Emília ainda funcionava muito bem de cabeça. Percebeu logo que naquele caso de nada valia o remédio usado contra a Cuca na aventura do saci disse: — O jeeito Lelé, ééé sugestionar esta múmia e faazer que ela soonhe em voz alta. Pedrinho aprovou a ideia e, chegando perto de Nereu, começou a sugestioná-lo à sua moda, murmurando com voz disfarçada e grossíssima: — Deus, deus do mar! Nereu, grande Nereu, ó vós que sabeis todos os segredos do mundo porque sois velho como o mundo! Emília ia repetindo no outro ouvido de Nereu, como um eco, as últimas palavras de Pedrinho: —... muundo...

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— Sabeis todos os segredos menos um só... —uum sóó... repetiu o eco. — Todos, menos o segredo da localização do jardim das Hespérides... —... Hespérides — repetiu Emília em sua vozinha trêmula de eco velho. Nereu, mergulhado no sonho, ouviu aquele som estranho, tão diferente dos que ouvia habitualmente por ali, das ondas que entravam e saíam. E lembrou-se do jardim das Hespérides. E sorriu um feio sorriso desdentado de velho velhíssimo. E falou em voz alta, como certas pessoas falam nos sonhos: — Sim... sei... as Hespérides... lembro-me sim. Quatro... Lá no jardim perto de Tíngis... Não era preciso mais. Sem querer o velho Nereu revelara no sonho o que ninguém no mundo sabia: o jardim das Hespérides ficava perto da cidade de Tíngis, a mesma em que eles haviam estado em aventura anterior. Fora lá que Hércules vencera Anteu, o filho de Geia. — Nada mais temos a fazer aqui disse Hércules. Saíamos deste úmido palácio entorpecedor. Saíram. À proporção que ia se aproximando das portas da imensa gruta, a ex-boneca ia remoçando. Primeiro botou fora o bordão em que se apoiava. Depois endireitou o corpo. E quando se viu restituída à luz do sol, estava já sem a menor tremura da falinha. — Uf!... — exclamou, espreguiçando-se e desentorpecendo os músculos. — Velhice das que pegam na gente, é a primeira que vejo. Nós chamamos de velhas Dona Benta e tia Nastácia, mas perto de Nereu as duas nem nasceram ainda...

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Hércules confessou que também havia sentido um entorpecimento dos músculos. Não havia dúvida que as velhices muito velhas contagiavam até os próprios heróis. Depois de se restaurarem aos raios do sol e de trocarem mil impressões sobre o velho Nereu, puseram-se a caminho da Líbia. Emília observou que não encontrava na gruta nenhuma nereida "dançando e cantando para distrair o velho pai", como lhe haviam contado. Com certeza, vendo que Nereu não saía nunca daquele sono de deus do mar aposentado, elas tinham fugido para cantar e dançarem lugares mais alegres. A viagem à Líbia foi repetição da primeira. Hércules, coitado, enjoou como nunca, e chegou à praia da Líbia com o olho mais branco que manjar-branco. Mas restabeleceu-se prontamente e seguiu para Tíngis. O povo da cidade o recebeu com grandes honras. Houve festas e mais festas, presentes e mais presentes. Emília ganhou um escaravelho de ouro, fabricado pelos ourives do Egito, terra vizinha. Mas ninguém na cidade pôde informar coisa nenhuma sobre o jardim das Hespérides. Hércules olhou para Emília como quem pede opinião — e ela: — Nereu disse que o jardim ficava perto daqui, mas não declarou onde. A palavra perto na boca dum diabo velho como aquele pode significar uma boa lonjura. — E que acha que devemos fazer? — O remédio, Lelé, parece-me um só: aplicar o faz-de-conta — e aplicou-o: Faz de conta que fica a dois dias de marcha rumo sul. Hércules continuava a não entender muito bem aquele negócio do

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faz-de-conta, mas já se habituara a não duvidar dos seus efeitos. Voltou-se para os outros e deu ordem de marcha: — Vamos caminhar rumo sul durante dois dias. O jardim das Hespérides é lá. — Lá onde, Hércules? — reclamou Pedrinho. — Dois dias é "tempo" não é "lugar". O herói olhou novamente para Emília — e Emília, lampeirissimamente: Com dois dias de marcha batida chegaremos a um certo lugar. O jardim das Hespérides é aí e pronto! Aposto um pomo! Diante daquela firmeza nada mais restava senão porem-se a caminho, e puseram-se a caminho, com o pobre Lúcio sobrecarregado com os presentes recebidos. Muitas rosas vira ele em Tíngis e grande vontade lhe veio de comê-las mas era um asno de palavra. Havia prometido aguentar até o fim e aguentaria. O terreno era dos arenosos — beira de deserto. Árvore dos países temperados, nenhuma. Só palmeiras, sobretudo tamareiras. Pedrinho regalou-se de comer tâmaras no cacho e levou um sortimento no lombo de Lúcio. Meioameio dava galopadas gostosas, porque para um centauro nada melhor do que as planícies sem tropeços. Em certo ponto viram uma miragem estampada no céu. — Que maravilha! — exclamou Pedrinho; e o Visconde explicou que a miragem reproduz como um espelho o que está embaixo. — Então essa miragem está reproduzindo o jardim das Hespérides! — berrou Emília. — Estou vendo a árvore dos pomos de ouro, carregadinha... E era mesmo. Logo adiante avistaram, lá bem longe, um começo de jardim.

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O jardim das Hespérides, afinal...

NO JARDIM Um jardim encantado no meio do deserto! De longe parecia um oásis como todos os oásis. Que é um oásis? O Visconde explicou: — A causa dos desertos é a falta d'água. Planta é um bichinho que não vive sem água. Nos pontos do mundo onde não chove, não há rios, e portanto não há água, e portanto não há vida de espécie nenhuma. A vida nasceu da água e só vive com água. Mas em certos pontos desses desertos, existem, aqui e ali, fontes de águas subterrâneas, que vêm de longe e brotam à superfície; e então as sementes que o vento traz germinam e viram capões de mato. Oásis é isso: um capão de mato no meio do deserto. — Que mato? — perguntou Emília. — Em geral, palmeiras e outras plantinhas desérticas, como os cactos. Nascem e crescem ali na nesga de chão que a fonte umedece. E é graças aos oásis que os beduínos podem atravessar o deserto. Organizam caravanas de camelos que varam de um oásis a outro, como os trens varam duma estação a outra, como as tropas varam de um pouso a outro. — E por que usam esses beduínos camelos e não cavalos? — Porque o camelo adaptou-se ao deserto. Aprendeu a encher-se de água quando a encontra e a passar dias e dias sem beber nem um pingo. — Então são caixas d'água ambulantes... — Isso mesmo. Levam-na consigo — e muitas vezes, nos grandes

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apuros, os beduínos matam os camelos para beber a água que eles guardam lá dentro. Emília cuspiu, com cara de nojo. — Grande porcaria... — Quando a sede vem os homens bebem até as águas mais sujas — elas viram o néctar dos deuses... Não há maior tortura que a da sede — e assim conversando sobre sede e fome, camelos e águas limpas e sujas, a expedição foi se aproximando daquele jardim-oásis. Que lindo! Como se regalaram só de vê-lo à distância! Muitas palmeiras como nos oásis comuns, mas debaixo das palmeiras numerosas plantas das que dão flores lindas e frutas gostosas. Hércules parou. Tinha de planejar a entrada no jardim, e todo cuidado seria pouco. Havia o dragão de cem cabeças de guarda àquilo. Em que ponto ficava o dragão? Escondido nalguma gruta, como o da ilha de Eritia? E o herói, na forma do costume, volveu os olhos para os pica-paus. Eles é que sabiam pensar certo nas ocasiões difíceis. — Então, oficial? — exclamou Hércules olhando para o seu oficial de gabinete. Pedrinho estava muito atento, como que a procurar se havia uma entrada no jardim. Não viu nenhuma. Podiam entrar por onde quisessem. Uma solução lhe veio: — Podemos mandar o Visconde assuntar. Emília aprovou a ideia, mas com um aperfeiçoamento: — E o Visconde pode ir camuflado, vestido de folhas secas, como aquele "bicho-folhagem" das histórias.

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O sabuguinho suspirou. Era sempre assim. Só nos momentos perigosos se lembravam dele. Havia ali pelo chão muitas folhas trazidas pelo vento. Pedrinho juntou uma porção para camuflar o Visconde. — Há cera em sua canastra, Emília? Havia um pelotinho. Que é que não havia na canastra Emiliana? E lá abriu ela a canastra e tirou a bolota de cera. E sabem que cera? A de Ícaro. Enquanto os outros ouviam as derradeiras palavras do pobre moço caído lá no mar e lançado praia pelas ondas, Emília, sempre tão prática, ia tirando com a unha os restos da cera do coto daquelas asas derretidas pelo sol. Com aquela cera Pedrinho fez do Visconde um perfeito bicho-folhagem, do qual nem as Hespérides nem o dragão desconfiariam — e lá foi o Visconde investigar. Meia hora depois regressava. — Vi tudo — disse ele. As Hespérides moram num maravilhoso palácio no centro do jardim. Bem na frente há uma árvore carregada dumas frutas do tamanho de laranjas-limas, dum amarelo de ouro. Deve ser a que procuramos. — Por que não trouxe um pomo? Não os havia pelo chão? Pedrinho riu-se. — Que ingenuidade! Pois é lá possível que pomos de ouro andem pelo chão, como as laranjas lá do nosso pomar? As Hespérides juntam todos e guardam-nos como as maiores preciosidades do mundo. E o dragão, Visconde?

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— Estava lá de guarda, sim. Encontrei-o dormindo com metade das cabeças. As outras vigiavam, com os olhos muito abertos. — São cem mesmo? — Não contei, mas é cabeça que não acaba mais. — E as Hespérides? — quis saber Emília. — Vi três passeando pelo jardim. Lindas! Impossível criaturas mais lindas — e o Visconde, que era grande apreciador da beleza feminina, revirou os olhos para o céu. Bom. Hércules ficou instruído da situação. Restava agora estudar o meio de destruir o monstro. Atacá-lo com flecha já vira ser absurdo. Que fazer? e o herói olhou para Emília. "Que fazer, Emilinha?" A ex-boneca segurou o queixo e franziu a testa. Era assim que "espremia" a caixa das ideias, fazendo que espirrasse alguma. Depois de uns instantes seus olhos brilharam — sinal de ideia espirrada. — O meio é narcotizar esse bicho... Pedrinho fez cara de decepção. — Soluções teóricas são muito fáceis. Narcotizar!... E onde o narcótico, boba? No deserto, não há farmácia nas esquinas. Emília pensava, pensava. Hércules não tirava dela os olhos. Como fazer? Evidentemente Emília estava remoendo uma ideia qualquer, com ar de quem quer e não quer. Por fim disse, depois dum profundo suspiro: — O jeito é um só: fabricarmos ópio...

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A decepção cresceu. Pedrinho soltou um "Oh!" de desapontamento e Lúcio olhou para o centaurinho. Emília, porém, os surpreendeu com uma resposta inesperada: — Podemos fabricar ópio com a varinha de condão. Arranjem-me um pouco d'água. O rosto de Pedrinho iluminou-se diante da imprevista generosidade da cigana. Ia ceder uma das viradas de sua vara! Milagre puro! Só o amor poderia explicar aquilo. "Será que está apaixonada por Hércules?" Pedrinho despejou na palma da mão do herói um pouco d'água da sua frasqueira, enquanto Emília, com muitos suspiros, abria a canastra em busca da varinha. — Abaixe essa mão, Lelé — disse depois ao herói, que estava com a mão em concha com a água dentro. Hércules abaixou-a à alturinha da ex-boneca. Emília deu um último suspiro, dos mais puxados, e: "Vira que vira, virade!" tocou na água com a varinha. Imediatamente a água virou num caldo grosso e preto. O Visconde veio provar. "Sim, é ópio do legítimo!" Muito bem. Estava obtido o ópio. Como agora fazer o dragão beber aquilo? Emília perguntou ao Visconde: — Não viu se o dragão tinha algum bebedouro perto, como o das galinhas e pintos? O Visconde refranziu a testa, como procurando recordar-se. — Creio que tinha... Tinha, sim, agora me lembro. — Pois então volte lá e despeje este ópio na água do bebedouro.

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Hércules continuava com a mão em concha, com aquele caldo preto dentro. De que modo dar aquilo ao Visconde? Hércules atrapalhava-se com qualquer coisa. Teve novamente de olhar para Emília. — Pois despeje na cartolinha dele, Lelé. O herói sorriu. Tudo tão simples para Emília — e lá foi o caldo preto para a cartola do Visconde. Encheu-a de transbordar. — Pronto, vá! — ordenou Emília — e o visconde-folhagem lá se foi, passo a passo, segurando com toda a atenção as abinhas da cartola, de medo de tropeçar e derramar aquilo. Voltou ao jardim e... não apareceu mais. Depois de meia hora de espera todos ficaram nervosos. Por que não voltava o Visconde? Que lhe teria acontecido? As hipóteses eram muitas. "Quem sabe se foi descoberto e comido pelo dragão?" — dizia um. "Quem sabe se alguma Hespéride havia dado com a maçaroca a mexer-se e a levara para o palácio como uma curiosidade da natureza?" Duas horas se passaram e nada. Por fim Pedrinho tomou uma resolução: mandar Lúcio ver o que havia. O pobre do Asno de Ouro tremeu da cabeça aos pés. Seus pelos arrepiaram-se, mas Emília explicou que se fosse muito cautelosamente e espiasse de longe, de dentro das moitas, podia ver sem ser visto e verificar se o dragão bebera a água com ópio. — Como posso saber disso? — murmurou o pobre asno, ainda trêmulo.

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— Se o dragão estiver acordado, é que não bebeu. Se estiver dormindo é que bebeu. Tão simples... E Lúcio não teve remédio senão ir, mas foi com um pensamento mau na cabeça: "Eles não têm dó de mim? Pois então me desligo da palavra dada — e se houver no jardim rosas, mastigo as que puder", e com esse plano lá se foi cautelosamente de rumo ao jardim. Todos ficaram à espera na maior ansiedade. E se o dragão houvesse comido o Visconde e comesse também o pobre asno?

O DRAGÃO DE CEM CABEÇAS Mas não foi assim. Minutos depois voltava Lúcio, pé ante pé, de cabeça baixa e orelhas caidíssimas, como se andando assim ninguém o enxergasse. Não tendo encontrado rosa nenhuma, vinha dar contas da missão. — Sim — disse ele. Encontrei o monstro dormindo com todas as cabeças. Os olhos de Hércules brilharam. Emília deu um pinote e Pedrinho bateu palmas. Tudo ia correndo maravilhosamente bem. Com o dragão adormecido pelo ópio, a façanha de Hércules se tornava uma brincadeira de criança. Era só chegar e com a clava ir macetando aquelas cabeças. — E o Visconde? — perguntou Pedrinho. — Não o viu? — Vi, sim. Vi uma das patas do dragão apoiada numa coisa ou maçaroca de folhas secas que deve ser o Visconde. Ele aproximou-se demais e... Hércules correu a mão pela clava, alisando-a. Depois ergueu-se e

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disse: — Vou com Pedrinho. Os outros esperem-me aqui — e foi com o seu oficial. Entraram no jardim com a perícia com que os índios entram no mato, sem fazer o menor barulho. Foram varando, varando por entre as plantas, na maior parte desconhecidas de ambos. Súbito, uma clareira à frente. Lá estava diante deles o palácio das Hespérides! Pedrinho tremeu de entusiasmo. — Que maravilha! — exclamou em voz baixa. Parece coisa de sonho... E diante do palácio viram uma árvore com frutas amarelas — evidentemente os pomos de ouro. E lá estava de guarda à árvore o dragão de cem cabeças — mas dormindo, coitado, com todo aquele cabeçame aplastado no chão. Pedrinho encheu-se de coragem e disse: — Me dá a sua clava, Hércules. Eu mesmo esmago pelo menos metade daquelas cabeças. O herói riu-se. Pedrinho nem pôde erguer a tremenda clava. Devia pesar umas quatro arrobas. Mas vendo ali no chão um pedaço de pau de bom tamanho, apanhou-o. — Com isto me arranjo. O tacape do síndios lá da minha terra é um pau mais ou menos assim — e lá se foi de tacape em punho rumo ao dragão adormecido. Caminhava cautelosamente, pé ante pé, como o asno, e já de tacape erguido. E ia descarregar o primeiro golpe numa das cabeças, quando deu com o Visconde. Exatinho como Lúcío dissera: estava seguro sob uma das patas do monstro. Pedrinho entreparou, sempre de tacape levantado. "Está vivo, Visconde?" — perguntou. — "Sim" — respondeu uma vozinha espremida de sabugo esmagado por pata de dragão. — "E aguenta até matarmos este bicho?" — ainda perguntou o menino. — Sim" — respondeu de novo o “empatado".

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Pedrinho sossegou e, erguendo o tacape no máximo, desceu-o com toda a força sobre a cabeça número um do dragão. Era dura. Foi o mesmo que dar uma paulada numa pedra. Pedrinho ergueu de novo o tacape e desferiu segunda pancada com mais força — e ficou ali, bá, bá, bá, a malhar tacapadas na cabeça número um. Hércules, ali perto, ria-se. Pedrinho já estava a suar e frouxo — e não conseguiu esmoer nem sequer uma das cem cabeças. Parou olhou para Hércules, desanimado. — Agora é que vejo que isto de ser herói não é para todos! Não aguento mais — e jogando o tacape, sentou-se, ofegante. Hércules então ergueu a clava e esmoeu de um golpe a cabeça número um, e depois a número dois — e assim todas, uma por uma, até a noventa e sete. Quando faltavam apenas três, o dragão acordou e arreganhou para ele três horríveis bocarras vermelhas, com mais dentes que as dos crocodilos, e com línguas de ponta de flecha. E atacou. Hércules saltou para trás num pulo de tigre, arrastando consigo Pedrinho. Senão fosse isso, adeus neto de Dona Benta! Sentado ali a descansar, como estava, e desprevenido, foi o puxão de Hércules que o salvou. Uma flecha partiu do arco do herói — e outra — e outra. As últimas três cabeças do monstro penderam e foram juntar-se às noventa e sete já esmagadas. Nesse momento uma voz soou atrás deles: — Avé, Avé, Evoé! Os dois voltaram o rosto. Era Emília que, não resistindo à tentação de ver com seus olhos a matança do dragão, deixara os companheiros e viera sozinha. Lá estava ela trepada a uma árvore...

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O grito de Emília ecoou no palácio das Hespérides. Aretusa, ocupada em tricotar um cinto para Juno, ouviu aqueles "Avés" e estranhou, por que além delas só havia no jardim maravilhoso o dragão. Ora o dragão era mudo como as serpentes — só silvava de vez em quando, tsi, tsi, tsi, como a Kaa do Livro da Jângal. E a moça correu a ver do que se tratava. Dando com o herói e um menino lá perto do dragão imóvel, evidentemente morto, Aretusa soltou o grito das sereias: — Humanos!... Suas três irmãs acudiram à janela Egle, Hestia e Eritia, cada qual mais linda. Emília, lá do galho da árvore, percebeu e sussurrou para Hércules: — Já viram você, Lelé. Estão de olhos arregaladíssimos olhando para cá... e desceu. Nada mais tinham a fazer ali. Agora, ao palácio! — E o Visconde? — berrou Emília. Sim, o Visconde! Entretidos com tanta coisa, Hércules e seu oficial tinham-no esquecido completamente lá sob a pata do dragão morto. A pergunta de Emília chamou-os à realidade. Pedrinho foi até lá com ela. Ergueu com esforço a pata do monstro, enquanto Emília puxava o sabuguinho. Como estava amarrotado! Despiram-no das folhas secas e examinaram-lhe o corpo. A barriga toda amassada, a cartolinha entortada... Hércules dirigiu-se ao palácio das Hespérides. Aretusa veio recebê-lo à porta e com espanto do herói o reconheceu.

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— Hércules! — exclamou. — Não me surpreende a tua presença aqui. O oráculo de Amon já o tinha previsto. Estava falando com a maior gentileza, sem hostilidade nenhuma no tom; isso muito alegrou Pedrinho, fazendo-o pressentir que tudo iria acabar bem. Aretusa fez o herói entrar e chamou as outras: "Egle, Hestia, Eritia, venham ver quem está aqui..." Pedrinho tonteou. Nunca supôs que houvesse criaturas de tanta beleza — e pela primeira vez sentia não ser gente grande, para namorá-las. Hércules fez as apresentações do costume. Aretusa achou Emília muito engraçadinha, mas notou no Visconde um cheiro muito esquisito... — Parece ópio... — É ópio, sim! — berrou Emília muito lampeira. — Ele trouxe caldo de ópio na cartola para adormecer o dragão... — Ah, foi assim? — exclamaram as Hespérides, aparentemente satisfeitas com a morte do dragão, e Aretusa contou a história da árvore dos pomos de ouro. Juno, ao ter notícia da árvore maravilhosa, mandara para ali o dragão de cem cabeças para guardá-la, pois não queria que ninguém no mundo possuísse nem um pomo sequer. Todos os produzidos eram guardados e enviados para ela no Olimpo. — Para quê? — indagou Emília, com a sua carinha de ex-boneca insaciavelmente curiosa. — Para comê-los — respondeu Aretusa. — Oh, então esses pomos são comestíveis? — Sim, e deliciosos. Mas não são de ouro? — Só na cor. Tornam-se de ouro ao toque de certas varas feiticeiras.

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Pedrinho, que havia saído da sala, reapareceu com quatro pomos na mão e um ar muito desapontado: "São laranjas!" — disse ao apresentá-las a Hércules. Hércules mordeu uma. Era de fato laranja. A decepção foi grande. Laranja, laranja... Por que então aquele empenho pela posse duma fruta que abundava em todos os países do Mediterrâneo? Hestia explicou que abundava agora: antes só havia ali aquele pé. As "laranjeiras" dos países do Mediterrâneo eram produtos das sementes que Juno jogara lá de cima. A laranjeira inicial, a primeira aparecida no mundo, era a daquele jardim. — Mas como foi então que Atlas esteve aqui e levou um pomo de ouro maciço, que eu bem vi, porque esteve na minha canastra uma porção de tempo? — Porque a pedido dele nós o tocamos com a nossa varinha mágica. Atlas é nosso pai e esteve cá justamente no único dia em que o dragão dormiu com as cem cabeças. Colheu uma. Desapontou tal qual vocês agora — então, para contentá-lo, Aretusa virou a laranja em pomo de ouro. Emília contou que também possuía uma vara de condão, dada por Medeia em troca daquele pomo de ouro de Atlas. As Hespérides muito se admiraram daquilo — e Egle achou que Emília estava habilitada a tornar-se uma pequena fada. O característico das fadas é a posse das varinhas de condão. Emília enfunou-se toda. — A vara dela já está só com dez viradas — disse Pedrinho para abater-lhe o orgulho. Tinha cem quando a recebeu de Medeia. Mas a boba, no maior assanhamento, passou a manhã inteira lá no acampamento a virar isto naquilo. Gastou em bobagens quase todas as viradas da varinha...

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As Hespérides sorriram.

A VOLTA A estada deles no palácio das Hespérides foi um contínuo deslumbramento. Banquetes, passeios pelo jardim maravilhoso, danças e músicas à noite. Hércules sentia-se em tamanho enlevo que nem pensava em voltar. Bem que passaria o resto da vida ali. Quem o chamou à ordem foi Pedrinho. — Isto não deixa de ser ótimo, mas nós temos obrigações. Euristeu lá está à sua espera e vovó anda ansiosa pelo nosso retorno. Este décimo primeiro Trabalho chegou praticamente ao fim. Temos de voltar... Nesse momento, Egle, que havia chegado à janela, abriu-se numa exclamação: — Venham ver! Venham ver!... Um centaurinho e um asno... Hércules explicou a presença ali de mais aqueles dois estranhos personagens. Depois declarou que com grande pesar de coração tinham de partir. Aretusa veio com uma cesta de laranjas — os famosíssimos pomos de ouro. Pedrinho descascou uma em cuia e provou: laranja-lima da boa! Deu uma metade a Hércules e chupou a outra. As despedidas foram comoventes. Emília ganhou uma porção de coisas lindas e Pedrinho lá se foi com a cesta de pomos. A volta correu acidentada. Aqueles desertos da Líbia sempre foram assolados por animais ferozes, que viviam atacando as aldeias dos beduínos — leões, chacais, hienas. Hércules liquidou com todos.

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Depois tomaram uma nau para a travessia do Mediterrâneo e aportaram na Ilha de Rodes para descanso. Lá aconteceu um caso esquisito. Hércules, depois de sarar do enjoo, saíra a passeio com Pedrinho, um passeio a pé pelos arredores do porto. Súbito, aparece à frente deles um carro de bois. O herói estava com fome. Desencangou a junta de bois, comeu um e sacrificou o outro a Palas, sua divina protetora. O carreiro fugiu e do alto dum morro deu de berrar contra o herói as maiores injúrias mas tudo ficou por isso. Quando Hércules tinha um boi inteiro no estômago, agia como as sucuris — não ligava a mínima importância a provocações. E dessa aventura nasceu um costume curioso: quando mais tarde os habitantes de Rodes instituíram sacrifícios em honra de Hércules, costumavam como parte das cerimônias injuriá-lo, como o fizera o carreiro... Prosseguindo na viagem, foi o navio impelido por um grande temporal para muito longe da sua rota — de modo que quando deram acordo estavam mais próximos do Cáucaso do que de Micenas. Tudo arte de Hera. Furiosa com o novo triunfo do herói no caso das Hespérides, a vingativa deusa encomendara a Netuno aquele temporal, o mais violento que ainda se viu. A nau que os transportava naufragou nuns arrecifes do Mar Negro, mas Hércules e os picapauzinhos foram salvos por um cardume de delfins — uns delfins a serviço de Palas. Foi o que sugeriu o sabuguinho. — Mas como, Visconde, pode Palas ter a seu serviço delfins de Netuno? — objetou Emília. Não é Netuno quem comanda todos os seres do mar? — É, mas não existe governo sem oposição. Sempre que um ser marinho se descontenta com a política do governo — que é Netuno — passa para a oposição — que é Palas.

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Os únicos desastres do naufrágio foram a molhadela do corpo do Visconde e a entrada de água dentro da canastrinha da Emília. Teve ela de abri-la e estender ao sol todos os objetos, depois de bem lavados em água doce. Pedrinho também lavou o Visconde, que ficara com o corpo salgadíssimo — e dessa lavagem resultou maior encharcamento ainda. Sabugo de milho bebe água como esponja. — Vai repetir-se aquilo que houve no começo da vida do Visconde — observou Emília. — Vai esverdear de bolor... Pedrinho não viu nisso mal nenhum, porque sua intenção, logo que voltasse ao sítio, era entregá-lo a tia Nastácia para uma reforma do corpo. Ela aproveitaria as perninhas, os braços e a cartola num belo sabugo novo — e eles enterrariam o sabugo velho num canteiro da horta. Era assim que a Medeia-Nascia reformava o Visconde, sem necessidade de fervura nenhuma. Depois de restabelecer-se de mais aquela viagem por mar, Hércules rumou na direção do Cáucaso, que é a famosa montanha plantada entre a Europa e a Ásia. Por quê? Por que em vez de seguir para Micenas se pôs Hércules a caminho do Cáucaso? Por causa de Prometeu. Já de muito tempo andava com ideia de uma visita a esse titã de fígado devorado pelo abutre de Zeus, e que ocasião melhor que aquela em que um temporal o lançava quase aos pés do Cáucaso? Quando Hércules lhes comunicou a grande ideia, Pedrinho e Emília abraçaram-no comovidos. Ambos sabiam a história de Prometeu, contada por Dona Benta. — Prometeu era um dos titãs que se rebelaram contra Zeus, e depois de vencido recebeu uma tortura horrenda: ficar eternamente amarrado ao Elbruz, o pico mais alto do Cáucaso.

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— Quantos metros? — exigiu Emília. — Tem 5.657 metros, cantou o sabuguinho — e continuou de gozar a admiração de Hércules: — Pois é. Zeus condenou-o a ficar amarrado naquele pico eternamente, e a ser eternamente bicado por um abutre... — Sei — disse Pedrinho. — Bicado no fígado. O abutre come o fígado de Prometeu diariamente, e diariamente o fígado renasce... Os deuses sempre foram vingativos. Daí vem aquele dito: "A vingança é o manjar dos deuses" — e ninguém jamais verificou isso melhor do que esse titã. O suplício de Prometeu é de arrepiar os cabelos. — Mas que é que ele prometeu? — perguntou Emília. — Prometeu não prometeu coisa nenhuma; fez coisa mais importante: deu ao homem o elemento inicial do progresso, que é o fogo. — E onde foi ele achar fogo? — No céu. Naquele tempo os homens cá na terra viviam na maior barbárie, exatamente como os bichos. Moravam em cavernas, comiam carne crua — uns perfeitos peludos. E isso porque não dispunham do fogo. Sem o fogo não há metais e sem metais não há civilização. O bicho-homem estava impedido de civilizar-se por falta de fogo. — E então aparece Prometeu e promete dar fogo ao homem, xeretou Emília. — Espere. As coisas estavam nesse ponto quando veio ao mundo o titã Prometeu, irmão de Atlas. Mostrou desde logo ser um verdadeiro gênio criador. Foi ele quem deu ao homem isso a que chamamos "civilização". Foi ele quem sugeriu a construção de naus

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no tempo do Dilúvio, com as quais a raça humana se salvou do afogamento geral. Foi ele quem ensinou ao homem as primeiras artes. Em suma, tanta coisa fez em benefício da humanidade que Zeus se indignou e por fim o puniu da maneira mais cruel. — Mas então Zeus é um malvado! — berrou Emília num súbito acesso de indignação... — Emília, Emília!... — advertiu Pedrinho. — Lembre-se de que está na Grécia com todos os deuses vivinhos lá em cima, talvez nos escutando... Mas a ex-boneca estava revoltada demais e nessas ocasiões esquecia-se de tudo. E continuou: — Malvado, sim. Peste!... Sustento o que digo até nas fuças dele, e ele que me venha amarrar num Cáucaso para ver o que acontece!... O titã só estava fazendo o bem, ensinando as artes. Como poderiam os homens viver na terra sem as artes — a arte de fazer panelas de barro, a arte de cozinhar, a arte de construir casas? E como poderiam arranjar-se sem o fogo? E o tal Zeus duma figa amarra o coitado no Cáucaso para que um estupor de abutre lhe fosse eternamente devorando o fígado? Malvado, sim. Casca de ferida... Todos estavam assustadíssimos, com os olhos no céu à espera dos terríveis raios do deus supremo. Pedrinho correu para ela e tapou-lhe com a mão a boca. Mas Hércules sorria da maneira mais estranha, como que subitamente iluminado. É que ele sempre achara uma grande injustiça divina aquele suplício infligido ao titã, mas nunca tivera a coragem de o dizer, nem sequer a si mesmo. Ninguém na Grécia punha em dúvida os decretos de Zeus. Ninguém duvidava de Zeus nem da sua alta sabedoria. A adulação era geral. Todo mundo lhe fazia sacrifícios nos templos e altares caseiros. Pois era num ambiente assim, de perpétuo terror pânico e medo à vingança de tão vingativos deuses, que Emília de Rabicó, aquela figurinha lá do sítio de Dona Benta, ex-boneca de pano feita

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por tia Nastácia, arrostava o deus dos deuses, dava-lhe de "malvado", de "peste" e até de "casca de ferida" pelas ventas! E por fim lançou um grito de revolta: — Pois vamos libertar Prometeu! Vamos matar aquele estupor de abutre e desacorrentar o pai do fogo e de todas as artes!... Tão tremendas palavras soaram dentro de Hércules como a voz da sua própria consciência, acordada depois de longo período de mudez. Sim. Era aquele o seu pensamento secreto e nunca sussurrado nem para si mesmo. O sonho inconsciente de Hércules sempre fora libertar Prometeu. Esse sonho inconsciente acabava de fazer-se consciente graças à revolta e ao grito de guerra de Emília. E aconteceu então um fato assombroso: Hércules, o tremendo e invencível Hércules, o homem mais forte que o mundo jamais produziu, chorou... Chorou de pura emoção. E agarrando Emília e beijando-a na testa disse: Você é a própria voz da minha consciência, criaturinha...

PROMETEU — A raiva de Zeus contra o titã vem de várias coisas — disse o Visconde. — Houve primeiramente a história do touro. — Que touro? — Prometeu havia sacrificado a Zeus um touro, mas Zeus estranhou o cheiro da fumaça. Espia e descobre tudo: o touro não era touro de verdade, sim uma armação de vime e palha... A partir desse dia Prometeu ficou marcado. Em seguida veio a história de ensinar as artes aos homens. E se depois de grandemente se aperfeiçoarem nas artes os homens virassem deuses? Zeus não gostou da brincadeira. E por fim veio o grande crime:

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Prometeu roubou o fogo do céu para dá-lo ao homem. Ah, aí Zeus explodiu e inventou a incrível tortura do abutre a comer um fígado vivo e renascente. — E quando foi isso? — Há milhares e milhares de anos... — Quer dizer então que o pobre Prometeu está lá há milhares de anos e não há ninguém que se anime a libertá-lo? — berrou Emília, vermelha de cólera. É preciso então que eu, uma coitadinha lá da roça, me lembre disso? Porcaria... — Que é que é porcaria, Emília? — perguntou Pedrinho. — A humanidade, bobão, pois não vê? Os homens que andam a regalar-se com os benefícios das artes ensinadas pelo titã, com os assados de carneiro e boi feitos no fogo que ele lhes deu, sem que ninguém se lembre de ir tirá-lo de lá — de matar aquele estupor de abutre e jogar aquelas correntes no nariz de Zeus. Pedrinho agarrou-a de novo e tapou-lhe a boca. Ficou assim uns instantes, com os olhos no céu, à espera dos raios do Olimpo. Mas não aconteceu coisa nenhuma. Em vez de raios, quem surgiu foi Minervino. — Viva!... pensamos que já se havia esquecido de nós. Há tanto tempo não aparece... — Apareci hoje para defendê-los de vários perigos próximos. — Desceu diretamente do Olimpo? — Sim... — Não notou se Zeus está assim com cara de quem comeu e não gostou?

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— Zeus deve estar sonhando com Europa, Leda ou qualquer das suas antigas namoradas, porque ainda não acordou esta manhã. Certos sonhos fazem-no despertar muito tarde. Pedrinho respirou. Zeus não tinha ouvido o desabafo da Marquesa de Rabicó... Minervino contou mil coisas. Palas estava radiante com o desfecho da aventura das Hespérides e queria agora guiá-los naquelas montanhas. — Ela já sabe que Lelé vai libertar Prometeu? — perguntou Emília. — Já. — Como, se essa ideia nasceu agorinha mesmo na cabeça dele? — Os deuses adivinham o pensamento dos mortais. Palas leu na cabeça de Hércules esse pensamento e mandou-me acompanhá-lo. Emília contou que havia visto Palas no momento em quê ela desceu para impedir a luta entre Hércules e Marte. — Sim, Palas desceu — confirmou Minervino. — Eu acompanhei-a. — E Marte? Como vai do ferimento no pulso? — perguntou Pedrinho. — Que coisa esquisita um herói derrotar um deus, e logo que deus, o da guerra... — Não há o que um homem não faça quando tem Palas do seu lado. Minha deusa é a grande deusa. Quem goza de sua proteção nada tem a recear, nem mesmo de Zeus. Palas faz dele o que quer. Foram caminhando rumo ao Cáucaso. Os primeiros contrafortes já estavam perto. Começou a subida. Enquanto a marcha fora no plano, Lúcio não protestou muito. Limitava-se a uns suspirinhos de longe em longe. Mas na voz de "subida de morro", estrilou.

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— Não aguento mais! — disse. — Gentinha, Visconde de sabugo, canastra cheia de laranjas e não sei quantos presentes, tudo em cima do meu lombo e serra acima, ah, não!... Tenham paciência. Lembrem-se de que não sou burro de nascença, dos que suportam cargas de oito arrobas. Sou gente com forma de burro. Minha força é de gente, não de burro e tanto chorou que Emília dividiu o carregamento com Minervino, o qual se ofereceu para levar uma parte enquanto estivessem em zona montanhosa. Já estavam em pleno Cáucaso. O pico de Elbruz aparecia ao longe. Era lá que gemia preso a grossas correntes o maior benfeitor dos homens. Emília vibrava de cólera a essa ideia. Seus olhinhos telescópicos não se despregavam do pico semi-envolto em nuvens. Súbito, depois de mais umas horas de caminhada, Emília deu um berro. — Estou vendo! Estou vendo um homem nu de mãos atadas às costas. Está meio sentado numa pedra, com a cabeça reclinada para trás, como que também apoiada na pedra. Meu Deus! Que cara de dor ele tem!... A gente percebe que é dor de fígado comido. Mas não vejo abutre nenhum... Esperem... Vem vindo um enorme. Chegou. Vem "recomer" o mesmo fígado que comeu ontem e renasceu de noite... Todos olhavam para o rochedo e não viam nada. Emília era mesmo telescópica. Mas não houve fantasia nenhuma naquela sua visão antes dos outros, porque quando se aproximaram um pouco mais, todos distinguiram a cena por ela descrita. Lá estava o titã preso ao rochedo, com o abutre a lhe bicar o fígado. E até os gemidos do grande mártir todos chegaram a perceber dali. — Há milhares de anos que ele geme de dor — disse o Visconde. — Há milhares de anos que o abutre lhe rói o fígado e só agora aparece quem se proponha a libertá-lo. Não há dúvida que a ingratidão é própria do homem... O Viscondinho não era só ciência; às vezes também filosofava.

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Para libertar Prometeu, Hércules tinha primeiramente de destruir o abutre. Que abutre era aquele? Ah, um abutre de Zeus, eterno também, pois que teria de ficar eternamente a devorar o fígado eternamente renovado de Prometeu. Ora, sendo assim, como poderia o herói matar o que era eterno? Esta observação acudiu a Pedrinho. O mensageiro de Palas respondeu: — Minha deusa já ponderou sobre isso. Hércules tem que atacá-lo nos olhos. Não o matará, já que é um abutre eterno, mas o cegará para sempre. E, cego que esteja, não poderá impedir a libertação do titã. Emília não gostou da ideia de Palas. — Fica cego e que tem isso? Fica cego e não sai dali de junto de Prometeu, continuando a comer-lhe o fígado da mesma maneira e bicando quem aproximar-se. Os cegos comem tanto como os não cegos, embora não vejam a comida. — E os cegos acabam ficando com os outros sentidos de tal modo agudos que por fim dispensam os olhos — acrescentou o Visconde. — Acho que Emília tem razão. Cegar o abutre não adianta nada. Minervino atrapalhou-se e começou a dizer: "Mas Palas..." Emília interrompeu-o: — Sim, Palas, a boa Palas, a grande Palas cochilou. Não há quem não cochile. Dona Benta diz que até Homero cochilava. Não quero que Lelé se limite a cegar o abutre. Temos de fazê-lo cair num laço — e enquanto estiver preso, vamos lá e libertamos o titã. Hércules achou excelente a ideia de sua "dadeira" e encarregou Pedrinho de pegar o abutre. O menino pulou de contente. Isso de laços e armadilhas era com ele. Sabia pegar toda sorte de passarinhos, com peneira, com arapuca, com laçada de crina de

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cavalo, com visgo e até com anzol. Certa vez, quando tinha sete anos, pegou um urubu no quintal com anzol — e muito boas palmadas levou de sua mãe Tonica por causa da judiação. Ora, a diferença entre os passarinhos lá no sítio e aquele enorme abutre era só de tamanho. Logo, bastava que ele fizesse uma armadilha proporcional. Pedrinho pensou, pensou, e por fim resolveu seguir pelo caminho mais simples e rápido: o do anzol. Mas onde anzol? — Você não terá por acaso um anzol na sua canastrinha, Emília? — perguntou ele por perguntar — e a resposta assombrou o herói, que estava acompanhando tudo: — Tenho!... — respondeu ela. E tinha! Entre as muitas miudezas da sua "canastra de badulaques" havia um anzol grande que Emília "achara" no quarto de Pedrinho. O menino reconheceu-o imediatamente. — Este é o meu anzol de pegar piabanha! Você, Emília... — mas perdoou-lhe o roubinho porque havia resultado em bem. Encastoou o anzol num cordel bem forte e... — E isca? Que isca ponho aqui? Hércules opinou que um fígado de carneiro seria ótimo, mas a "dadeira" não concordou. — Se esse abutre anda há milhares de anos comendo fígado, juro que está "por aqui" de fígado e quer o que for, contanto que não seja fígado.

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O ABUTRE Hércules arregalou os olhos. Como era claro aquilo! Como era inteligente tudo quanto a "dadeira" dizia! Pedrinho iscou o anzol com um rim de carneiro. E agora? Quem ia largar o anzol isca do lá perto do abutre? Quem mais, se não o Visconde? Pedrinho chamou-o e deu-lhe instruções: — Você vai galgando o pico e lá em cima arrasta-se por trás do abutre e larga a isca num lugar bem visível. Nós ficamos aqui segurando a ponta do cordel. O Visconde suspirou que nem Lúcio, mas foi. Galgou o pico e lá em cima arrastou-se por trás do abutre. Mas em vez de largar a isca, teve a bela ideia de jogá-la bem diante do bico da ave. A isca nem chegou a cair no chão. O abutre, enjoadíssimo de fígado e sequioso por variedade, sentiu o cheiro do rim e pegou-o no ar. — Fisgado! — berrou o Visconde. — Puxem!... Pedrinho puxou o cordel; mas com o arranco que ao sentir-se preso o abutre deu, o arrastado foi Pedrinho e não ele. E se num movimento rapidíssimo Hércules não levasse a mão ao cordel, lá iria Pedrinho pelos ares, levado pelo abutre em voo. Imagine-se (o que é imprudência de criança) que ele havia atado a pontado cordel em torno da cintura!... Depois que o herói segurou o cordel a situação mudou completamente. O abutre, que já ia entrando em "voo planado", capotou com o arranco, focinhou, lá veio como um paraquedista cujo paraquedas se engasga. Hércules ia encurtando o cordel, como quem recolhe um peixe do espaço.

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Ao tê-lo ao alcance da mão, agarrou-o pelos pés e subjugou-o. Bem que a monstruosa ave se debateu! Mas se nem monstros como o leão da Nemeia podiam com o herói, que esperava aquele abutre? Emília insultou-o: — Bem se vê que é ave de zero cérebro! Que adianta debater-se assim? Sossegue, estupor, antes que Lelé perca a paciência e esmoa essa cabeça, como fez com as cem do dragão lá do jardim. Parece que a ameaça valeu, porque o abutre sossegou. Hércules amarrou-o pelos pés a um tronco de árvore e disse: "Pronto! Podemos ir desencadear Prometeu." Emília pôs as mãozinhas na cintura. — Que cabeça, meu Deus! Pois você tem coragem, Lelé, de deixar este abutre, de bico mais cortante que alicate, preso só pelos pés? Assim que virarmos as costas, ele aplica a bicanca no amarrilho, come a corda e vai voando para o rochedo e chega muito antes de nós... Hércules abriu a boca. "É mesmo!..." — exclamou com cara de bobo e ficou olhando para Emília à espera de solução. Emília nem segurou o queixo para pensar. Tão simples aquilo... — Pois é só cortar-lhe a ponta duma das asas, como faz tia Nastácia com as galinhas muito voadeiras... E foi o que fizeram. Hércules cortou a ponta duma das asas do abutre com a faca da Emília, isto é, com o moleque de Mícenas virado em faca — e pronto. Estava o abutre inutilizado. Para o verificar, soltou-o. O pobre abutre de Zeus — o "estupor" — como dizia Emília, tentou voar, desequilibrou-se, pererecou e por fim rodou pelas perambeiras abaixo, a debater-se.

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Bom. Estavam livres do abutre. Restava agora subir ao pico e desacorrentar o herói, o que Hércules fez num instante. Fortíssimas aquelas correntes, mas de que valia força de corrente para Hércules? Ele agarrou-as e despedaçou-as como se fossem de vidro. Ah, ninguém descreve o suspiro de alívio do titã ao ver-se libertado! Seu primeiro movimento foi cair nos braços de Hércules em lágrimas — em lágrimas os dois. E Pedrinho, Emília e o Visconde também choraram de emoção. — Livre, livre afinal! — exclamou Prometeu. — Livre, depois de séculos e séculos de martírio pelo crime de haver dado o fogo aos homens...

HÉRCULES E CÉRBERO HÉRCULES E CÉRBERO Hércules já realizara onze grandes Trabalhos, saindo plenamente vitorioso. Estava agora incumbido do último e o mais difícil. Tinha de descer ao sombrio reino de Hades, e trazer de lá o famoso Cérbero. — Que é esse reino? — quis saber Pedrinho; e o mensageiro de Palas explicou: — É o reino subterrâneo para onde vão as sombras dos mortos. À entrada está Cérbero, o horrível mastim de três cabeças e cauda de dragão — três cabeças diferentes. A missão de Cérbero é impedir que os heróis penetrem nos domínios de Hades. Só isso. Porque os heróis se atrevem às maiores loucuras até a se baterem com os deuses, como no caso de Héracles e Ares. Os deuses, pois, têm que tomar precauções.

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Emília quis saber pormenores do deus Hades. Minervino contou. — É irmão de Zeus e Posseidon, de Hera e Deméter. Filho do velhíssimo deus Cronos, que é o Tempo. Na repartição do mundo coube-lhe o reino dos infernos subterrâneos, de onde só saiu uma vez para raptar Perséfone, filha de Deméter, com a qual se casou. — Está aí uma coisa que não compreendo — disse Pedrinho. — Como é que a filha duma deusa do Olimpo se conforma em deixar a beleza do céu para ir morar na feiura do inferno? Maior mau gosto nunca vi... — É que ela não foi morar lá por gosto. Hades raptou-a — e foi o rapto mais célebre do mundo. — Conte, conte... — Aquilo não passou de uma conspiração. Condoído da sorte de seu irmão Hades, Zeus consentiu nesse rapto. Que linda era Perséfone! Estava um dia brincando na praia com as filhas do Oceano e a colher flores num prado vizinho: rosas, belas violetas, gladíolos. Súbito, deu com um jacinto maravilhoso de brilho e aroma. Não parecia um jacinto comum... — E aposto que não era — adivinhou Emília. — Sim, não era. Aquilo fazia parte da conspiração. A maravilhosa flor brotara justamente para atrair Perséfone ao ponto onde ia abrir-se o solo e da fenda irromper Hades em seu carro de corcéis infernais. Agarrada pela cintura, a pobre Perséfone foi levada aos gritos para dentro da terra... — E Deméter, sua mãe, não fez coisa nenhuma lá no Olimpo? — Sim. Fez um barulho medonho, até que afinal conseguiu um

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entendimento: Perséfone passaria metade do ano com ela no Olimpo e outra metade no inferno com Hades. Pedrinho tentou imaginar como seria o palácio de Hades. Não conseguindo formar ideia, consultou Minervino. — Ah, um palácio severíssimo, de colunas de prata, rodeado de altas rochas. À sua frente espraia-se a Lagoa Estígia, de águas paradas. Como lá não existem ventos, nunca as agitam a menor ondulação. Nela despejam vários rios que descem como torrentes da superfície da terra. Para chegar ao palácio é preciso atravessar a lagoa. Só existe uma barca, a do velho Caronte. Mediante o pagamento de um óbulo, o sinistro barqueiro transporta a sombra dos mortos. — Eu sei! — berrou Emília. — Daí vem o costume grego de enterrar os mortos com uma moedinha no peito. É para pagamento a Caronte. Já vimos isso em nossa primeira viagem a esta Grécia. — Sim. Todos têm que pagar o seu transporte. No reino de Hades há várias zonas. Para as mais sombrias, lá nos abismos do Tártaro, vão as sombras dos inimigos dos deuses. As sombras dos amigos dos deuses ficam nas zonas mais agradáveis, onde em vez de trevas há penumbras. São os Campos Elísios. — E como é a corte desse deus Hades? — Na entrada fica o temível Cérbero de três cabeças, filho do titã Tifon e da ninfa Equidana — "ninfa imortal e perpetuamente livre do envelhecimento". Cérbero deixa entrar as sombras, mas não permite que nenhuma saia. Depois há os três juízes que julgam os mortos e os mandam para esta ou aquela zona: Radamanto, Minos e Éaco... Um arrepio perpassou pelo corpinho de Emília — brr... Viu-se lá, diante dos três severíssimos juízes, interpelada a respeito dos

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insultos que andou lançando contra Zeus e Hera... Minervino continuou: — Depois de Hades e sua esposa Perséfone, vêm as divindades infernais menores. Em primeiro lugar as Queres ou as Moiras, que são gênios da morte e da vingança; perseguem todos os culpados, sejam homens ou deuses, e não descansam antes de castigá-los. As Queres são negras de dentes alvíssimos e olhos ferozes, sanguinárias e implacáveis. Atiram-se sobre os que caem nas lutas, arrancam-lhes a alma, e lá se vão com elas para o reino de Hades. — Então andam pela terra? — Sim, mas invisíveis para os vivos. São as matadoras dos homens. Andam pela terra matando gente para lhes arrancar a alma. — Bom, então isso é o que lá no mundo moderno nós chamamos Morte — observou Pedrinho. Aqui são verdadeiras cachorras de caça — caçadoras de almas... — E que mais há lá? — quis saber Emília. — Há as Harpias — continuou Minervino. São aves com cabeça de mulher, asas e garras. Também andam pelo mundo caçando gente para abastecer de sombras o reino de Hades. E há as Erínias, ou Eumênides, que do mesmo modo que as Harpias, são demônios de asas com cabelos de serpentes. Também caçam almas. Voam às vezes com um archote em punho, outras vezes com um látego. A voz delas é como a dos touros enrouquecidos. Por onde passam, as plantas morrem, vítimas do seu hálito pestilento. As Erínias caçam as almas dos culpados e sobretudo as dos maus filhos. E Minervino ainda contou muita coisa do reino de Hades, deixando-os arrepiados e com muito pouco desejo de acompanhar Hércules em sua aventura. O grande herói estava imerso em profunda meditação. Aquele

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Trabalho nada tinha de semelhante aos anteriores. Obrigava-o a preparar-se. Cumpria-lhe, antes de mais nada, iniciar-se nos "mistérios de Elêusis", a fim de conquistar a boa vontade de Deméter, mãe da rainha dos infernos. — Temos que ir a Elêusis — disse ele — e para lá partiu o bandinho, do mesmo modo que havia partido para tantos outros lugares. Hércules à frente, abrindo a marcha. Depois, Pedrinho montado em Meioameio. Depois, o pobre Lúcio com o picuá e Emília montada de banda, como as amazonas de saia comprida. Os presentes ganhos das Hespérides e mais coisas tinham ficado no acampamento, debaixo da grande pedra. Chegados a Elêusis surgiu uma complicação. Nos famosos mistérios de Deméter não podiam iniciar-se os de fora — e Hércules era ali um estrangeiro. O meio foi fazer-se adotar por Fílio, um seu amigo residente lá. Depois outra complicação: Hércules estava manchado pelo crime da matança dos centauros. Teve de submeter-se a uma purificação. Só depois disso pôde iniciar-se nos mistérios de Elêusis e conquistar as boas graças de Deméter. E agora? Por que porta penetrar no reino de Hades? Havia diversas. Uma, o Rio Aqueronte, que em vez de despejar-se no mar despejava-se num pantanoso lago de exalações pestilentas, perto da cidade de Efira. Era esse lago uma das bocas do inferno. Outra boca era uma fenda no Cabo Tenaro, na Lacônia. Hércules escolheu esta última. Bom. O herói ia penetrar no Hades, mas seus companheiros? Seria absurdo levá-los também. Hércules deu as suas razões e ordenou que ficassem por ali à espera. Pedrinho respirou. Se havia uma coisa no mundo que não desejasse fazer era aquilo: penetrar no inferno. Mas com grande surpresa de todos Emília disse: — Pois eu vou. Não posso abandonar Lelé justamente na sua

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aventura mais perigosa. Quem sabe se não vai precisar de mim por lá? O herói comoveu-se com tamanha dedicação; seus olhos umedeceram-se, e mais ainda quando o sabuguinho declarou: "E eu também. Dona Benta me recomendou que não largasse da Emília." Hércules ainda tentou demover os dois pequenitotes de um passo tão perigoso. Não conseguiu. Quando Emília encasquetava uma ideia, não era à toa: não havia no mundo o que a demovesse. E Hércules, Emília e o Visconde desceram pela fenda que dava nos campos fronteiros à Lagoa Estígia.

NO INFERNO A primeira coisa que Emília e o Visconde viram ao pisarem naquele plaino foi uma grande quantidade de sombras de mortos. Sombra não tem medo de sombra, mas foge de quem não o é e todas fugiram ao darem com o herói e mais as duas criaturinhas vivas. Fugiram, desapareceram ao longe. Só duas ficaram: a sombra de Meleagro e da Medusa degolada por Perseu. Meleagro era amigo, pois fora um dos companheiros de Hércules na expedição dos argonautas, mas a Medusa era a Medusa e Hércules armou o dardo para combatê-la. Uma voz o advertiu: — Não vês que é uma sombra, Héracles? Voz de Minervino! Sem que eles vissem o mensageiro de Palas também descera ao Hades. Hércules baixou a arma, desapontado. Depois seguiu rumo à barca de Caronte. Tinham de atravessar a Lagoa Estígia. Surgiu uma complicação. O velho Caronte só transportava sombras, não vivos. Recusou-se a recebê-los em sua barca.

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— Mas nós trazemos os óbulos — xereteou Emília. Caronte baixou os olhos para aquele pelotinho de gente e até se assustou: e mais ainda quando deu com o sabuguinho de cartola. De cartola e falante, pois o Visconde também meteu o bedelho. — Sou o escudeiro deste grande herói e aconselho ao velho Caronte a não nos atrapalhar. Meu amo já se desempenhou das mais temerosas incumbências do rei Euristeu, e não será um velho barqueiro quem lhe irá barrar o passo. O espanto de Caronte não tinha limites. Hércules, que estava disposto a agir com prudência, olhou para Emília. "Que fazer, dadeira?" Emília aplicou o faz-de-conta. — Faz de conta que somos sombras mal — disse isso e já o rosto de Caronte demudou. Enfitou-os de novo com maior atenção e por fim disse: — Perdoem-me. Pareceu-me a princípio que eram seres vivos, agora vejo que são sombras — e estendeu a mão para receber os óbolos. Hércules não se lembrara desse detalhe. Não havia trazido óbolo nenhum. Nem Emília, nem o Visconde. Quem salvou a situação foi Minervino. Tirou do bolso quatro óbolos e apresentou-os ao velho. Emília interveio: — Esperem! São três óbolos só. O Visconde não paga, porque não é gente. Caronte não compreendeu — mas Emília explicou tão bem a "sabuguice" do Visconde que o velho se deu por convencido. "Vá lá, três óbolos" e recebeu-os da mão do mensageiro de Palas. Emília enfiou no bolso o quarto — para o seu museuzinho!...

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A barca de Caronte atravessou a lagoa. Todos saltaram do outro lado. Começava ali a mansão de Hades. Atrás do palácio é que ficava a porta do inferno, com o cão de três cabeças de guarda. Era um pátio imenso, cheio de sombras com vários vivos que de um modo ou de outro tinham atravessado a lagoa e lá estavam prisioneiros. — Olhe quem está cá!... — berrou Emília apontando. Hércules olhou. Era Teseu... Mas encadeado, como o titã no Cáucaso. Hércules dirigiu-se ao grande herói e perguntou como viera parar ali. Teseu contou a sua estranha aventura. Ele e Pírito, seu companheiro tinham imaginado a mais tremenda de todas as aventuras: desceram ao Hades para raptar Helena e também Perséfone, a esposa de Hades. Emília estremeceu ao ouvir tal confissão. Que loucura! Vá que Pirilo pensasse em raptar Helena; mas o atrevimento de Teseu com sua ideia de raptar a própria esposa do deus dos infernos era dessas coisas para as quais a ex-boneca só tinha em seu vocabulário uma palavra: "batatal!" — Pois cá viemos — disse Teseu. Enganamos Caronte, atravessamos a Estígia. Chegamos a entrar no palácio de Hades, o qual nos recebeu muito bem mas só na aparência. Mandou-me sentar em certo assento. Sem desconfiar de coisa nenhuma, sentei-me — e imediatamente senti minhas carnes aderidas àquele assento, de baixo do qual saíram serpentes que se enlearam em meu corpo. Mesmo assim consegui escapar. Fui, porém, agarrado e encadeado aqui a esta pedra... Hércules não respeitava cadeias de bronze. Fez com as que prendiam o herói da Ática o mesmo que com as do titã lá no Cáucaso: despedaçou-as com um empuxão violento. Estava livre o grande Teseu. — Obrigado, Héracles. Vamos agora libertar o meu companheiro.

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Mas na voz de libertar Pirilo, tudo mudou. A terra foi sacudida de um violento terremoto. Era sinal de que os altíssimos deuses se opunham à libertação do audacioso maluco que planejara o rapto de Perséfone. — Não convém insistir — cochichou Minervino ao ouvido do herói. — O crime de Pirilo é grande: é dos que os deuses supremos jamais perdoam; e Hércules desistiu da ideia. Lá deixou Pirilo entregue à sua infeliz sorte. Hércules, coitado, tinha um grande coração. Os horrores que por ali viu confrangeram-no. Entre outras coisas, sombras de defuntos que estavam esperando a vez de transpor as portas e se estorciam nos horrores da sede. Tanta água ali perto e sombras morrendo de sede... — Por que não bebem a água da lagoa? — indagou Emília — e Minervino respondeu que eram ainda mais salgadas que as do mar. Hércules, compadecido, teve uma lembrança feliz. Degolou um dos bois do rebanho de Hades que pastava por ali e deu o sangue às sombras sequiosas. Aquele rebanho, porém; era guardado pelo pastor Menetes, o qual acudiu em defesa do boi capturado, com palavras de desafio ao herói. Hércules agarrou-o pela cintura e amassou-o, quebrando-lhe várias costelas. Nesse momento, um grito. Era Perséfone. Tinha presenciado a cena e correra a salvar o pastor. Pediu a Hércules que o largasse. Hércules atendeu. — Deusa, disse ele, não vim para brigar, senão para conferenciar com o vosso divino esposo. — Acompanhe-me — respondeu Perséfone, e introduziu-o à presença do rei. Minervino, Emília e o Visconde seguiram atrás, como três sarnas.

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Hades estava no trono. Um deus sombrio, soturno, cujo nome os gregos não gostavam de pronunciar. Todas as coisas a ele associadas eram terríveis e tétricas. Nada em seu reino que lembrasse as amenidades do Olimpo. Emília esfriou ao vê-lo. Teve medo. Foi uma das raras vezes em que realmente teve medo. Hércules adiantou-se e disse: — Divindade, aqui estou por ordem de Euristeu para levar vivo a Micenas o cão Cérbero. Hades sorriu — e que sorriso impressionante! Era o sorriso dum deus que conhece a sua quase onipotência. Perséfone, ao seu lado, majestosamente bela, tinha os olhos na figura titânica do famoso herói. Conhecia toda a sua história e em seus músculos sentia a força de Zeus, cujo sangue corria nas veias de Hércules. Depois daquele apavorante sorriso de Hades e duma pausa de alguns segundos — a mais sinistra pausa que se possa imaginar — o deus dos infernos disse: — Cumpri a ordem do vosso rei. Levai Cérbero, mas não consinto que o ataqueis com arma nenhuma. Hades tinha a mais absoluta certeza de que corpo a corpo, sem uso de arma nenhuma, Hércules, ou qualquer outro herói, jamais conseguiria apoderar-se do guardador da porta do inferno. E se lhe deu licença para levar Cérbero, foi na convicção de que o herói acabaria nos dentes do monstro. O seu sorriso era o antegozo do fim trágico duma criatura considerada invencível. — Ide. Foi assim que deu por encerrada a audiência. Hércules fez uma saudação para retirar-se. Perséfone o deteve. — Quem são essas figurinhas que o acompanham? — perguntou com os olhos em Emília e no Visconde.

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Hércules fez a apresentação de seu escudeiro e da sua "dadeira". — Dadeira? — repetiu Perséfone, que pela primeira vez ouvia semelhante palavra. — Sim — respondeu Hércules respeitosamente. — Emília me fornece ideias nos momentos graves. Sua inteligência me assombra; e a pedido da deusa contou duas ou três passagens da criaturinha. Perséfone fez um ar apiedado. "Héracles já esteve demente. Correu que sarara. Vejo agora que sua loucura é das incuráveis..." foi o pensamento da deusa. O herói retirou-se acompanhado das "sarnas". Dirigiu-se para a porta do inferno. — Lá está ele!... — berrou Emília. Ele sim. Cérbero... Lá estava à porta da mansão das sombras o horrendo mastim de três cabeças. Bem certo o que diziam: três cabeças diferentes, corpo de mastim e cauda de dragão. Cumprindo as exigências do deus, Héracles abandonou as armas que trazia, inclusive a pele do leão. Como a usasse feito escudo, lealmente considerava aquilo arma. Mas a dadeira interpôs-se. — Isso não, Lelé! Hades falou em armas, não falou em pele. — Mas esta pele tem sido o meu escudo, já que é invulnerável. — Isso sabemos nós e mais ninguém. E como ninguém sabe que essa pele é o melhor dos escudos, meu conselho é que não a ponha de lado. Hércules, indeciso, olhou para o Visconde e para o mensageiro de Palas. Ambos foram da mesma opinião. Três votos contra um.

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Hércules, que já havia largado a pele revestiu-a novamente — e foi o que lhe valeu!... Emília ficou de coração parado e fôlego suspenso quando o herói se dirigiu para Cérbero com o mesmo passo firme com que se dirigira para o touro de Creta. Impavidez era ali! Coragem era ali! Ao vê-lo avançar, Cérbero piscou três vezes com os seus seis olhos, porque nunca em vida sua acontecera semelhante coisa: um homem desarmado avançar contra ele. Mas a vacilação foi rápida. Seus olhos espirraram fogo, seus dentes se arreganharam — e Cérbero atirou-se contra o herói com o ímpeto dos mastins que se sabem invencíveis. O herói desviou-se do bote e agarrou-o por dois pescoços, um braço em redor de cada um. Mas o terceiro pescoço de Cérbero não teve braço que o agarrasse... e com aquela cabeça livre o canzarrão atacou. Ferrou uma dentada no ombro do herói, que o teria liquidado se não fosse a pele invulnerável. Nela se quebraram metade dos dentes da boca atacante. Que luta tremenda foi! O jeito de Hércules era um só: matar uma das cabeças agarradas para libertar um braço, e com esse braço agarrar o pescoço da cabeça atacante. O herói tinha ordem para levar a Micenas o cão vivo, mas Euristeu não falara em levá-lo com as três cabeças vivas. Num esforço gigantesco Hércules torceu um dos pescoços agarrados; depois que viu a respectiva cabeça morta, com os olhos esbugalhados e a língua pendente, desembaraçou o braço e colheu o pescoço da cabeça livre. Estava terminada a luta. Cérbero moleou o corpo. Sua cauda de dragão aplastou-se no solo. Minervino, que para ali viera por ordem de Palas e tudo previra, aproximou-se com uma corda ajeitada em forma de focinheira. Hércules enfiou-a num dos focinhos do mastim; depois ajeitou outra

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focinheira no outro focinho. O terceiro dispensava esse cuidado — era o focinho da cabeça morta. Pronto. Só restava conduzir até Micenas aquele molambo mais morto que vivo — e lá saiu Hércules com ele às costas. Quando Hades viu o herói passar pela frente do palácio com Cérbero às costas, quase morreu de paixão. Pulou do trono para lançar contra ele todas as fúrias infernais. Perséfone o deteve. — Palavra de deus não volta atrás — disse a majestosa deusa. — Fui testemunha de que o autorizaste a capturar Cérbero, se o atacasse sem armas — e Héracles não usou arma nenhuma. Hades caiu em si e voltou para o trono a remorder-se de ódio impotente. Estava preso pela sua própria palavra. Quando Caronte viu reaparecer o herói com o cão às costas, seguido das três sarnas, teve um colapso. Caiu sem sentidos no fundo da barca. Minervino tomou-lhe o remo e fez a travessia. Minutos depois estavam todos na superfície da terra, onde se juntaram aos companheiros. Pedrinho arregalou os olhos no maior assombro. Depois fez bico. Ele, um heroizinho tão promissor, havia estragado a sua carreira — havia ficado na rabada! Um momento de medo o fizera permanecer na segurança da terra superficial enquanto Emília e o Visconde ousavam a imensa proeza de penetrar na mansão de Hades... — Então. Emília? — perguntou ele muito desconchavado; e ela, toda importante: — Pois é. Fomos lá e salvamos Teseu e conversamos com Hades e Perséfone e liquidamos com a prosa de Cérbero. Nossa aventura vai

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ser a mais célebre de todas nos anais das grandes façanhas do mundo. — Eu, eu... — tentou Pedrinho desculpar-se. — Você pexoteou, Pedrinho, e vai ficar de cara à banda por toda a vida. Teve ocasião de fazer uma coisa que nenhum menino moderno jamais fez nem fará e perdeu-a. Agora é chorar na cama. Pedrinho não se conteve: chorou ali mesmo. — E agora, Lelé? — perguntou Emília. — Vai levar esse monstro às costas até Micenas? Bobagem. Cachorro é ali na focinheira e puxando por uma corda. Hércules viu que era mesmo. Largou Cérbero no chão. Estava vivo, mas de corpo mole como os lutadores nocautes. Minervino obteve mais corda e, improvisando duas coleiras, passou-as pelos dois pescoços. O terceiro ficou sem coleira porque pertencia à cabeça morta. — Eu puxo-o, — Pedrinho — e foi o seu triste consolo naquele Trabalho de Hércules: puxar pela corda o monstruoso mastim derrotado...

DESAPONTAMENTO DO REI Quando iam se aproximando de Micenas, Pedrinho voltou-se para Hércules e gritou: — Ando com uma ideia, amigo: entrarmos na cidade todos juntos, assim em procissão... — Por quê? — perguntou o herói lá atrás.

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— Para despedida. Meu palpite é que Euristeu não vai "nos" dar nenhum outro Trabalho. Hércules sorriu. — Você não o conhece, oficial. Ele já me impôs doze Trabalhos e imporá outros e outros, sempre com a esperança de que um dia eu fracasse. E não tem culpa, coitado. Não passa dum instrumento de Hera. — Não tem culpa mas bem que podia ser mais delicado, Lelé — interveio Emília. — O modo como trata você, todo importante, como quem tem o Olimpo na barriga, me deixa tinindo de raiva. Uma ideia lhe passou pela cabecinha: vingar-se de Euristeu — e imediatamente lhe acudiu o meio. — Uma coisa, Lelé: por que não havemos de entrar todos juntos no palácio de Euristeu? Estou com vontade de conhecer aquilo lá por dentro. Era mentira. Não estava querendo conhecer coisa nenhuma e sim "dizer uma boa" nas fuças do "antipatia". Hércules objetou, achou inconveniente a entrada em massa no salão de audiências do rei, mas Emília insistiu e destruiu completamente a objeção do herói com vários argumentos "batatais". Hércules cedeu. — Pois não seja essa a dúvida. Entraremos todos juntos no palácio de Euristeu. Chegados a Micenas, não se dirigiram ao camping como de costume — foram penetrando na cidade com a maior sem cerimônia. O fato de passarem com Cérbero pelas ruas — Cérbero, C é r b e r o, CÉRBERO!... o tremendíssimo e terribilíssimo mastim infernal, parecia-lhes a coisa mais natural do mundo. E para maior assombro dos povos, vinha Cérbero, C é r b e r o, o tremebundo CÉRBERO,

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puxado pelo cabresto. E puxado por quem? Por um menino... Aquilo era até profanação — um verdadeiro fim da Grécia Heroica. A multidão começou a juntar-se. Todo mundo acudia às janelas e portas para ver a passagem do cortejo. As ruas encheram-se. Formou-se logo o clássico "acompanhamento de procissão." Centenas de criaturas sem serviço e toda a molecada formaram um magote atrás deles. Súbito, uma voz na multidão gritou: — É ela!... É ela!... A feiticeirinha que virou nossos filhos em coisas. Temos de agarrá-la e entregá-la à justiça. Emília tremeu lá em cima de Lúcio, mas reagiu de pronto e voltando-se para Hércules, lá atrás, gritou com voz ressentida: — Lelé, olhe aqui um cara-de-coruja me ameaçando... Hércules fechou o sobrecenho e olhou para a janela de onde havia saído a voz. A voz engoliu em seco. Emudeceu. O olhar de Hércules parecia o olhar da Medusa. Petrificava as pessoas. Chegaram defronte ao palácio de Euristeu e foram entrando. Os guardas, assustadíssimos com a visão de Cérbero, jogaram as armas e sumiram-se. O grupo foi varando, atravessando corredores e salas até chegar ao salão das audiências. Lá estava Euristeu no trono, com Eumolpo, o xereta, ao lado. Ao ver surgir aquele monstro de três cabeças, seguro pela corda dum menino montado em centauro, e depois um asno com uma feiticeirinha em cima, e mais um milho de cartola no picuá e lá no fim o invencível Hércules, Euristeu desmaiou. A cena fora muito imprevista e muito forte para os seus reais nervos. Eumolpo, a tremer de medo, abanava o amo, borrifava-lhe água no rosto. O desmaio de Euristeu foi curto. Seus olhos abriram-se.

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Emília, então, que estava com o discurso preparado, "lascou": — Senhor rei, aqui estamos de novo e para nunca mais. Chega de Trabalhos. Não somos "servos da gleba" e Lelé é mais que um herói — é um semideus maior e melhor que muitos deuses lá do Olimpo. Tem um coração que só eu sei. Por isso não quero que ele continue executando trabalhos perigosíssimos, inventados por esse cara-de-coruja que está aí todo treme-treme. Não quero e não quero, ouviu? Doze Trabalhos já. Boa conta. Uma dúzia. Além disso, Dona Benta está ansiando pela nossa volta, coitada. O grande Héracles vem comunicar ao pequeno Euristeu que vai soltar neste salão o bicho encomendado e partir para longes terras. Tenho dito. O discurso de Emília achatou Euristeu como se fosse uma sola de sapato. Viram-no olhar para Eumolpo como quem pede socorro, mas Eumolpo perdera até a voz, de medo! Pedrinho então soltou Cérbero ali na sala e fincou a espora em Meioameio sinal de retirada. O Asno de Ouro rodou nos pés — e Emília ainda espichou um palminho de língua para o estarrecido soberano. Hércules também girou nos calcanhares e lá se foram todos. Na sala do trono só ficaram os três: Cérbero, a olhar para aqueles dois homens com expressão de quem já não entende coisa nenhuma deste mundo, e Euristeu e Eumolpo agarrados um ao outro de medo do monstro. Mas quando Hércules e seus companheiros alcançaram a rua, deram com um grupo de autoridades locais. A mais graduada de todas deteve o asno e disse apontando para Emília: — Em nome da lei, está presa! — Homessa! Por quê?

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— Por crime de feitiçaria. Seu processo está concluso. Em dia deste ano, lá na margem do ribeirão, a acusada virou em objeto de uso caseiro dezenove meninos desta cidade. Hércules, que tinha se aproximado para ver o que era, quis "espalhar" a justiça. Mas o Visconde ergueu-se lá no picuá e falou: — Nada de violências, Hércules! Se até os deuses do Olimpo encerram suas brigas com entendimentos, como no rapto de Perséfone, por que nós, mortais, não fazermos o mesmo? Na qualidade de advogado e defensor perpétuo de Emília, proponho o arquivamento do processo em troca da "desvirada" dos meninos de Micenas. Ninguém entendeu. Os juízes e xerifes entreolharam-se com caras de asno. O Visconde explicou: — Sim. Do mesmo modo como a acusada virou os meninos em objetos, poderá agora virar os objetos em meninos, desse modo devolvendo-os à forma primitiva. Os juízes e xerifes entreolharam-se de novo; e como na multidão estivessem os pais e mães dos dezenove meninos, uma grita se levantou: — Sim, sim! Ela que desvire nossos filhos e suma-se destas plagas. Estava lavrada pelo povo a decisão do processo. Com a restituição dos meninos, ficava o dito por não dito. Emília enrugou a testa. Depois sorriu. Com incrível rapidez havia formulado e resolvido um problema. Qual o problema? Este: "De que modo uma varinha de condão, já só com dez viradas, pode desvirar dezenove meninos virados em objetos?" Sim, porque se ela gastara dezenove viradas para virá-los, tinha agora de gastar outras tantas para desvirá-los.

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Este o problema. Agora, a solução: "Enfileirar no chão os dezenove objetos, um junto do outro como teclas dum teclado de piano, e depois, com a pontada vara, dar uma "escala corrida", como fazem com a unha certos tocadores de piano — rrrrrrrrrr... Desse modo, com um mesmo toque da vara ela desviraria os dezenove moleques. Gastaria, pois, só uma virada. A solução teórica do problema foi essa. Restava saber se a experiência a confirmaria. Tudo pensou e resolveu Emília em meio segundo. Seu pensamento era um relâmpago. Tomando então a palavra, disse: — Senhores, prontifico-me a fazer aqui na praça deste palácio o que o Visconde de Sabugosa propôs e os pais dos meninos querem. A varinha de condão de Medeia está naquela canastra. Pedrinho veio descer o picuá e despejá-lo do Visconde e da canastra. Emília abriu-a, tirou a vara e em seguida, entre suspiros, foi atirando os dezenove objetos obtidos com as dezenove viradas —o canivete, a tesourinha, a faca de ponta, o rolinho de esparadrapo... Ao tirar o rolinho, Emília pensou: "Já me utilizei de um pedaço. Será que o menino vai aparecer com falta de orelha ou nariz?" Depois de tirá-los todos, colocou-os no chão da rua em forma de teclado de piano, um coladinho ao outro. Restava só correr por cima deles a ponta da vara e pronto. Mas Emília, sem certeza de que o seu processo de "escala corrida" fosse dar certo, "pensou para adiante", como fazem os jogadores de xadrez, e tomou certas disposições que no momento ninguém entendeu. — Pedrinho — disse ela — monte e fique firme em Meioameio.

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Lúcio, mantenha-se aqui bem perto de mim. Você, Visconde, monte já. E, finalmente, voltando-se para Hércules: — Erga-me em seus braços, Lelé. Tenho um particular a dizer no ouvido. O herói ergueu-a. O particular de Emília era o seguinte: "Vou dar uma varada em "escala corrida" sobre aquele teclado de objetos, mas não posso garantir que essa ideia dê bom resultado. Se der, muito bem: os meninos reaparecerão e está tudo acabado. Se não der, eu tenho que os desvirar um por um, cada qual com uma virada. Ora, só tenho na vara dez viradas. Ficam, pois, nove meninos sem desvirada — e como é? A justiça aqui me agarra, me prende e me condena. Para evitar isso é que estou tomando estas disposições estratégicas. Corro a vara. Deu certo? Muito bem. Não deu certo? Ah, você desce a marreta neste povo, espalha os juízes e xerifes enquanto nós nos botamos no maior galope rumo ao acampamento. Lá arrumamos tudo num ápice, cheiramos o "pim" e adeus, Hélade! Se isto acontecer, é possível que não nos vejamos mais, Lelé e quero despedir-me aqui mesmo, e deu lhe um beijo na face. Largue-me no chão agora. O herói, profundamente comovido, largou-a no chão. Emília voltou para onde estavam os objetos dispostos como teclado. Tomou a vara e disse para o povo: — Atenção! Vou correr a vara por sobre estes dezenove objetos para o reaparecimento dos dezenove meninos. O reaparecimento se realizará meio minuto depois do toque. A espertíssima criatura sabia muito bem que tanto as viradas como as desviradas eram instantâneas, mas inventou a história do meio minuto para ganhar tempo. Se a coisa falhasse, enquanto os micenianos estivessem esperando passar meio minuto eles fincavam o pé no mundo e pronto!

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Emília correu os olhos nos seus companheiros para verificar se todos estavam a postos — e só então riscou a escala rrrrrrrr... cada "r" correspondendo a um objeto. Tudo correu exatinho conforme a teoria: os dezenove objetos viraram instantaneamente em dezenove meninos! Que festa foi! Dezenove pais e dezenove mães lançaram-se aos dezenove meninos reaparecidos e abraçaram-nos com os olhos rasos de lágrimas. Todos já haviam perdido a esperança de rever os coitadinhos. Emília, de mãos na cintura, gozava a cena. Que triunfo o seu!

DESASNAMENTO DE LÚCIO Tudo estava correndo muito bem. O povo de Micenas, que minutos antes só pensava no linchamento de Emília e seus companheiros, passou ao extremo oposto. Eram aplausos e mais aplausos, e festinhas e convites para uma coisa e outra. Mas Hércules e os pica-paus nada aceitaram. Só queriam uma coisa: a volta para o acampamento. Lá estava o banho do ribeirão, o Templo de Avia. Lá estava a liberdade de movimentos e a ausência de "corpos estranhos", como dizia o Visconde. "Que é o povo? Um conglomerado ou ajuntamento de corpos estranhos entre si." E Emília costumava dizer: "Povo? Passo." De volta ao acampamento e depois do jantar, que era o último que iam ter juntos ali na Grécia Heroica, veio à berlinda o caso de Lúcio. Que fazer? Soltá-lo seria um desastre: logo adiante o pegariam e lá ficaria ele novamente escravo, talvez dalgum mau amo, desses que não têm dó de meter o chicote nos pobres animais. Lúcio pensou nisso e implorou que o não soltassem. Queria que o levassem a uma festa de Ísis. Unicamente devorando as rosas que os sacerdotes

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costumam depor no altar da deusa é que Lúcio poderia desasnar-se, voltando à sua forma humana. — Quem é essa Ísis? — perguntou Emília. O mensageiro de Palas, que misteriosamente aparecia e desaparecia, respondeu: — É a mesma Deméter em sua primitiva forma egípcia. No começo não havia Deméter — havia Ísis, uma deusa importada do Egito. Em certos lugares há ainda hoje adoradores de Ísis que a festejam justamente nesta época do ano. Bom. Tinham de sair pelo mundo em procura de velhos adoradores de Ísis. Emília danou: — Maçada! Nós com tanta urgência de voltar ao Picapau Amarelo e este estupor... Pedrinho interveio: — Pare com os insultos, Emília! Que culpa tem Lúcio do que aconteceu? Largá-lo aqui será a maior das crueldades. Ele tem sido um ótimo companheiro, com grandes serviços prestados, sobretudo a você. — Reconheço — disse Emília, — mas que é um estupor, isso é. Foi-nos útil, mas agora está atrapalhando. Lúcio quase chorou de sentimento. Suas orelhas murcharam com a maior humildade. Emília condoeu-se. — Pois vamos em busca da tal Ísis. Eu às vezes digo certas coisas só por ímpeto — não é de coração. As orelhas de Lúcio levantaram-se de novo.

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Depois do banho no ribeirão e do sono daquela noite, o mais sossegado que dormiram na Grécia, lá se foram no dia seguinte atrás dos adoradores de Isis. De caminho ia Hércules revelando tudo o que lhe tumultuava no coração. Confessou-se gratíssimo pelo que os pica-paus haviam feito. Chegou até a declarar que pelo menos um terço de seus triunfos cabia mais a eles do que a ele. — Sim, porque se não fosse Emília, é bem possível que o javali do Erimanto me houvesse pegado. E no caso do boi de Creta, o verdadeiro herói foi Pedrinho. — E o Visconde também — acrescentou Emília. — Não se esqueça da argola. Hércules concordou. — Sim, todos três me ajudaram muito. Todos três revelaram grande inteligência, fazendo-me compreender que se a força é uma grande coisa, a inteligência é a força das forças. Vem daí a minha ideia sobre a educação... Quando Hércules se punha a desenvolver a sua ideia sobre a educação, os três picapauzinhos bocejavam. Tudo quanto ele dizia, certo de que eram ideias originais e pela primeira vez saídas de um cérebro, não passava de ideias emboloradas e até já aposentadas no mundo moderno. Emília fechou a discussão daquele ponto com um exemplo: — Claro que é assim, Lelé. Pois não vê o Visconde? Nasceu sabugo, como todos os sabugos do mundo, mas com a educação recebida de Dona Benta virou o que é: um sábio de cartola. E assim, conversando sobre cem coisas, chegaram a uma aldeia muito velha. Nas aldeias velhas há sempre homens e mulheres

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muito velhos, gente conservadora e apegada ao passado. Quem sabe se não existiam ali devotos de Isis? Pedrinho foi perguntar a um ancião de longas barbas brancas que viu sentado a uma porta. — Bom velho, dizei-me: não haverá nesta aldeia devotos duma antiquíssima deusa egípcia de nome Isis? O ancião ergueu para ele os olhos embaciados e sorriu. — Como não, menino? Há muitos devotos, e eu sou um velho sacerdote de Ísis. Pedrinho gritou para o bando lá atrás: — Pronto!... Demos no centro do alvo! Há adoradores de Ísis aqui e até sacerdotes. Este bom velho é um. Todos se aproximaram do sacerdote e o atropelaram com perguntas e mais perguntas. — E quando se realizam as festas de Ísis? — Justamente hoje, à tarde. As rosas estão no ponto. Ísis era festejada com rosas, de modo que sua festa anual tinha de coincidir com o apogeu das rosas. E como havia rosas naquela aldeia! Lúcio espichava os olhos para os jardinzinhos e engolia em seco. Emília observou: — Esta nossa última aventura até parece fita de xerife do meio para o fim: tudo dá certinho, como se houvesse combinação...

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Passaram o dia ali na aldeia, rodeados daqueles pobres campônios de bocas abertas e olhos arregalados. Héracles entre eles! Um centaurinho! Um menino dos séculos futuros! Uma feiticeirinha de língua solta! Um Asno de Ouro! Um aranho de cartola!... O assombro da pobre gente não tinha fim. Tão alegre estava Lúcio com a ideia de seu próximo desasnamento que volta e meia zurrava. — Por que zurra, Lúcio, já que fala tão bem? — Por despedida — respondeu ele. Zurro para despedir-me desta pele que daqui a pouco vou abandonar. Á tardinha começaram os preparativos para a festa de Ísis. Toda gente colhia rosas e mais rosas. O velho sacerdote armou o altar. Hércules e o bandinho colocaram-se na primeira fila. Ia ter começo a cerimônia. O velho sacerdote saiu lá duma sacristia e aproximou-se do altar com uma cesta de rosas nos braços, em atitude ofertória, como quem traz bandeja de café. — É hora, Lúcio! — sussurrou Emília. Lúcio precipitou-se sobre as rosas com tamanho ímpeto que lá derrubou o velho e gulosamente devorou as rosas, com cesta e tudo. Sobreveio o tumulto. — Blasfêmia! Blasfémia!... e muitos fiéis se lançaram de porretes em punho contra o irreverente. Iam desancá-lo. Iam massacrá-lo. Iam linchá-lo... Mas... que é do asno? Misteriosamente desaparecera. Procura que procura, nada! Nada de asno! Muita gente esfregou os olhos, como quem diz: "Estarei sonhando?" O velho sacerdote levantou-se, tonto,

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e: "Que é das minhas rosas?" Nem asno, nem rosas. Em vez disso, um moço estranho a conversar com a pequena feiticeira. — Que bonito rapaz você é, Lúcio! — dizia ela. — Vire de costas, quero ver. Vá até ali e volte... Sim, sim, um rapagão. É de Atenas? — Não. Sou de Corinto... Emília pôs as mãos na cintura e balançou a cabeça. — Que mundo este nosso! Quem há de dizer que um moço de Corinto, bonito e desempenado como este, já foi o meu burro de carga... Bom. Lúcio já não tinha mais nada a fazer ali. Sua ânsia de voltar para casa era enorme. Rever a família, os amigos, a noiva... — Adeus, adeus, amigos! — disse ele.— Nunca me esquecerei das nossas aventuras, nem da bondade com que me trataram. Adeus, Héracles, o grande! Adeus Pedrinho, pequeno herói moderno! Adeus centaurinho gentil! Adeus, Visconde, o mais sábio dos sabugos! Adeus, Emília — pequenina fada que se aqui ficasse revolucionaria esta Grécia inteira... Só não se despediu da canastrinha. Emília reclamou: — Ela também é personagem, Lúcio. — Adeus, canastrinha mais rica de preciosidades que todos os museus do mundo... Lúcio, muito lépido e radiante com a reconquista de sua forma antiga, ia pulando de contente. Dava três passos e um pulinho... Hércules sorria feliz. Pela primeira vez se sentia plenamente satisfeito. Mas um pensamento melancólico lhe enrugou a testa. Emília percebeu.

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— Que repentina tristeza é essa, Lelé? — Nossa associação está no fim — disse ele. — Daqui a pouco vocês partem e fico mais sozinho do que nunca, aqui nesta terra de monstros e deuses vingativos. Acostumei-me tanto com vocês que... e engasgou. Era a comoção. Emília não disse nada — mas levou aos olhos o seu lencinho...

BELEROFONTE Depois da partida de Lúcio, deram começo aos arranjos para a viagem. Que fazer das coisas ali do acampamento? Deixar de pé o Templo de Avia para que os moleques de Micenas viessem profaná-lo? Nunca! Deixar fincados os espeques com as esculturas dos trabalhos de Hércules? Não. Emília veio com uma lembrança. — Podemos demolir o templo, arrancar as estacas e fazer uma grande fogueira em honra a Palas. — Feliz ideia! — exclamou uma voz conhecida. Emília olhou. Era Minervino, "o aparece-e-desaparece". Estava ali de novo. — Vem vindo do Olimpo? — Sim. Acabo de estar com Palas. Minha deusa mostra-se encantadíssima com você, Emília. Anda a contar histórias da "feiticeirinha" a todas as deusas do Olimpo. — E Hera?

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— Ah, Hera está cada vez mais rabujenta e furiosa. Tem feito mil queixas ao seu divino esposo, mas Zeus dá lá sua risadinha e só. Ele conhece a esposa que tem. Os Doze Trabalhos que por meio de Euristeu ela impôs a Hércules resultaram em doze derrotas. Hera já não sabe o que inventar. E vai enfurecer-se ainda mais com essa fogueira que vocês vão acender em honra a Palas. — Pois que se enfureça — berrou Emília. — Já "passei" essa deusa. É o mesmo que não existir. E mudando de assunto: Como o seu verdadeiro nome, Minervino? Isto de "Minervino" foi invenção minha. — Donde veio a ideia? — De Minerva, que vai ser o futuro nome de Palas em Roma, como explicou o Visconde. Todos estes deuses vão mudar de terra. Seu nome verdadeiro qual é? — Belerofonte... Emília arregalou os olhos, no maior dos assombros. — Belerofonte, aquele herói que nos apareceu lá no sítio montado no Pégaso? — Isso mesmo... O espanto de Emília continuava. — Mas a cara, o ar, os modos de Belerofonte não lembram você, Minervino... — É que, como mensageiro de Palas, mudo de aspecto conforme as circunstâncias. Emília duvidou. Seria Belerofonte mesmo? E para "caçá-lo" perguntou:

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— Então diga: qual o outro herói que estava lá naquele tempo? O vestido de lata? — D. Quixote de la Mancha, foi como vocês mo apresentaram. Tinha um escudeiro gorducho, muito comilão. Sancho Pança, creio... Emília encantou-se. Não havia a menor dúvida: aquele Minervino era o mesmo Belerofonte de outrora, o famoso herói grego que lá surgira montado no cavalo de asas. — E onde anda Pégaso? Sabe que Pedrinho o viu nascer do corpo degolado da Medusa? Degolado por Perseu? — Sim. Ele me contou tudo. Estavam ainda a rememorar passagens de D. Quixote no sítio, quando um tropel lhes distraiu a atenção. Um cavaleiro vinha no galope. "Quem será?" Era um dos guardas do palácio de Euristeu. Chegou, pulou do cavalo e dirigiu-se para Hércules com cara muito aflita. — Senhor herói — disse ele precipitadamente, vim pedir socorro. Está um horror no palácio. Sua Majestade Euristeu e o primeiro ministro continuam estarrecidos diante da figura horrenda do Cérbero lá na sala do trono. Não podem sair de medo do monstro, e os guardas não se animam a entrar para socorrer o soberano. Vim a galope implorar que volte e tire do palácio aquela abantesma. Hércules riu-se, com ar de dó. — Medo de Cérbero! — exclamou. — Mas Cérbero não é mais Cérbero, o antigo e terrível guardião do reino de Hades. Não passa de sombra do que foi. Está vencido, destruído por dentro.

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— Mas não se arreda de lá, senhor herói, e com os quatro olhos que lhe restam olha para o rei de um modo que arrasa o nosso soberano. E como ninguém ousa tirá-lo da sala, vim voando pedir socorro. Hércules, sempre a sorrir, deu ordem a Pedrinho que fosse buscar Cérbero. Pedrinho saltou sobre o lombo de Meioameio, fincou o Visconde na garupa e lá partiu a galope para a cidade. Sem o Visconde ele não se arranjava. Chegado ao palácio, Pedrinho foi entrando. Na sala do trono viu tudo como no começo: Euristeu encolhido no trono e Eumolpo a seu lado, pálido e trêmulo. O mastim de Hades olhava-os com uns olhos sem expressão e por isso mesmo terríveis para aqueles dois poltrões. Pedrinho, que havia levado um rolo de corda, fez gesto ao Visconde para que atasse a corda a uma das coleiras de Cérbero. O sabuguinho suspirou mas cumpriu a ordem: atou a corda à coleira de Cérbero, sem que o monstro opusesse a menor resistência. Em seguida Pedrinho puxou-o para fora. Lá na rua cavalgou Meioameio e tocou para o acampamento. A multidão aglomerada nas ruas assistiu maravilhada àquela estranhíssima cena: um menino, montado num centaurinho e com uma aranha de cartola na garupa, a puxar pelo cabresto o monstro mais impressionante para a imaginação dos helenos — Cérbero, Cérbero, CÉRBERO, o terrível guardião do reino dos mortos! — E agora? — exclamou Emília quando os viu chegarem ao acampamento. — Que vamos fazer deste estupor? — Tudo para Emília era estupor. Hércules achou melhor matá-lo e enterrá-lo por ali. Emília opôs-se. — Não. Estou com uma ideia: levá-lo para o sítio de Dona Benta — e pôs-se a rir. Estava imaginando o susto de tia Nastácia...

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Ficou assentado isso. Levariam Meioameio e Cérbero. Muito bem. Agora, a fogueira e o sacrifício a Palas. Pedrinho demoliu o Templo de Avia e amontoou tudo. Pronta que foi a fogueira, o Visconde atafulhou capins bem secos e acendeu-a com o último fósforo da caixa de fósforos da canastrinha da Emília. Minutos depois um lindo fogaréu lançava rumo ao Olimpo rolos negros de fumaça. Emília adiantou-se e, erguendo os olhos para o céu, disse com voz de sacerdotisa: — Palas, divina Palas, nós te agradecemos os benefícios e a ajuda constante com que nos honraste em nossas aventuras. Tu és a deusa mais bela e boazinha de todas. Não andas a perseguir os grandes heróis, como uma tal que eu conheço. Peço-te que apareças um dia lá em casa para regalo e glória de Dona Benta e Narizinho. O teu mensageiro Belerofonte sabe onde é; já nos deu a honra de sua presença nos dias em que também lá esteve D. Quixote. Está ali um bem precisado de tua gloriosa ajuda, grande Palas! É um herói o contrário de Héracles: em vez de dar, apanha sempre. Mas com tua ajuda, grande deusa, dará cabo até do mágico Freston que tanto o persegue. Tenho dito. Todos aplaudiram o seu discursinho e Belerofonte deu-lhe um beijo na testa — por conta de Palas.

DESPEDIDAS Tudo estava pronto para a volta. Emília abriu mais uma vez a canastrinha para dar balanço na colheita. Não faltava nada. Fechou-a de novo com a chavinha que trazia pendente dum cordel ao pescoço.

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— Por mim podemos partir. A bagagem de Pedrinho era pequena; só as esculturas comemorativas. O Visconde nunca andou com bagagens. Apenas trazia uma coisa consigo, a velha cartola — e lá estava com ela na cabeça, mais amarrotada do que nunca. O peso da pata do dragão das Hespérides tinha-a deixado que nem lata de monturo. Pedrinho mediu as pitadas do pó de pirlimpimpim e deu uma para cada um. Depois calculou a de Meioameio e a forte dose a esfregar nos focinhos de Cérbero. Mas antes de aspirarem o pó tinham de despedir-se do herói. Ah, como foram comoventes as despedidas! — Hércules — disse Pedrinho — vamos partir, mas levamos no coração a imagem do nosso grande amigo e bondoso companheiro de tantas aventuras. Aprendemos a conhecer o maior coração que ainda existiu nesta Hélade, o herói que é a verdadeira justiça sob forma humana... — e Pedrinho engasgou. Estava emocionado demais. Emília tomou a palavra. — Lelé, se eu fosse dizer tudo quanto sinto, ficava aqui a falar durante dez séculos. Você foi a primeira criatura que realmente me encheu as medidas. Conheci lá no sítio inúmeros heróis da Fábula: D. Quixote, Belerofonte, Peter Pan, o Príncipe Codadad, Aladino, os anões de Branca de Neve. Nenhum se compara a você, Lelé, porque além da maior força você tem o maior dos corações. Pedrinho

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engasgou no discurso e eu já estou começando a me engasgar. Você, Lelé... — e não podendo conter as lágrimas, Emília rompeu em choro e atirou-se aos braços do herói. Hércules recebeu-a, também com os olhos rasos d'água. Ele, o grande herói nacional grego que jamais chorava, estava chorando... O Visconde passou a mão disfarçadamente pelos olhos e tomou a palavra. — Hércules! — disse ele. — Permita que eu também levante minha débil e fraca voz para uma saudação de despedida. Neste grande momento eu queria ter a eloquência de Demóstenes ou Cícero para bem dizer tudo quanto me passa pela mente. Mas a emoção embarga-me a voz. Não posso continuar, como Pedrinho e Emília não puderam... E o Visconde também engasgou. Belerofonte abriu a boca para falar, mas não saiu nada. Engasgadíssimo também. Houve uma longa pausa de silêncio — a pausa do engasgo geral. Quando serenaram, Hércules tomou a palavra e disse: — Meus amigos: não sei falar. Não recebi a educação... Emília olhou para Pedrinho. ... que é o que transforma as criaturas. Minha educação foi só física, como muito bem diz o meu escudeiro. Criaram-me ao ar livre, ensinaram-me a desenvolver unicamente os músculos e a agilidade. Quanto ao resto, fiquei como nasci: um terreno baldio, como diz a Emília, onde o mato cresceu sem disciplina. Ela acha que uma criatura sem educação é como um terreno onde só há mato. A educação é que transforma esse terreno em canteiro de cultura das artes e ciências úteis e belas. Muito aprendi com vocês. Minhas conversas com Emília, com o Visconde e Pedrinho foram

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verdadeiras lições de que jamais me esquecerei. Sempre convivi entre brutos — reis cruéis, deuses vingativos, heróis do meu molde, gente "ineducada", como diz o Visconde. Fui encontrar "produtos da educação" em vocês. No meu oficial Pedrinho vi um modelo de herói dum novo tipo. Apreciei muito as suas qualidades, e sobretudo a sua prudência. Por que não desceu conosco aos infernos? Por prudência — e hoje eu percebo que a prudência deve ser uma das mais belas qualidades do que vocês chamam "herói moderno". Pedrinho baixou os olhos. Hércules prosseguiu: — Emília me enlevou pela sua presença de espírito, pela vivacidade e prontidão da inteligência, pelo engenho de sair-se bem de todos os apuros. E que ideias felizes! A de cortar a ponta de uma das asas do abutre de Prometeu foi "batatal", como ela diz. Tão simples o expediente — e nem que eu pensasse cem anos me ocorreria. Certas coisas da "dadeira" estão acima do meu entendimento. O "faz-de-conta", por exemplo. Penso e penso nisso e não entendo. Vi, senti, presenciei os maravilhosos efeitos desse "recurso supremo", mas confesso que não entendi. Emília explicou-mo com a sua admirável clareza — mas não entendi. Emília riu-se para Pedrinho. Hércules continuou: — E que direi do meu escudeirinho? Há nele uma alma generosíssima de herói sob as singelas exterioridades dum grande sábio. É o tipo do "herói resignado". Como é modesto e humilde! Não o vi gabar-se nem uma só vez. Executa as incumbências mais perigosas sem um só protesto... — Isso não! — berrou Emília. — Bem que ele suspira. — Sim, suspira apenas. Haverá nada mais eloquente que a humildade do suspiro? Em situações em que o comum das criaturas se debate, protesta, grita, ele suspira com toda a discrição. Tenho em meus ouvidos todos os seus suspirinhos: quando recebeu ordem de

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levar o anzol iscado ao abutre de Prometeu, quando teve de pegar a argola do laço na aventura do touro de Creta, quando foi deitar ópio na água do dragão de cem cabeças... Foi o único do nosso grupo que sofreu desastre, pois quebrou a perna e quem o viu lamuriar-se, queixar-se? — Ele não sente dor — disse Emília. — É sabugo... — Nós é que não sentimos a dor dos outros — respondeu Hércules. — Se o Visconde é um ser vivo, claro que tem de sentir dor. Quando, na chegada, Pedrinho me propôs o Visconde para escudeiro, ri-me, como era natural. Julguei que fosse brincadeira. Hoje, duvido que qualquer outro escudeiro me ajudasse tanto. Posso até afirmar que um ou dois dos meus trabalhos chegaram a feliz termo graças à sua discreta e oportuna atuação. O Visconde, de cabeça baixa, ouvia modestamente os louvores do herói. Hércules ainda disse muita coisa elogiosa sobre seus companheiros; depois ia voltando ao assunto educação. Mas Emília interrompeu-o: — Pare aí, Lelé. Já conhecemos as suas ideias sobre o assunto. A educação é que faz as criaturas, não é isso? Já sabemos. Hércules parou. Pedrinho veio apertar-lhe a mão. O herói abraçou-o. Depois veio o Visconde com a mãozinha espichada. Hércules abraçou-o duas vezes. Depois veio Emília com os dois braços abertos. Atirou-se-lhe ao pescoço, abraçou-o e beijou-o furiosamente. Parecia um sabiá bicando laranja. Havia chegado a hora da partida. Pedrinho deu as últimas instruções. Depois mandou que o Visconde esfregasse o pirlimpimpim nos focinhos de Cérbero, que lá estava de cabeças pendidas, amarrado a um tronco. O Visconde suspirou discretamente e foi cumprir a ordem. Hércules riu-se, ponderando lá consigo: "A prudência dos heroizinhos modernos..."

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O Visconde esfregou o pó nos dois focinhos de Cérbero sem que o pobre cão desse por isso. Soou um fiun grosso, como de bordão de Viola — e Cérbero desapareceu... — Agora nós! — gritou Pedrinho. — Adeus, Hércules, grande amigo! — Adeus, Lelé! — berrou Emília. — Adeus, zênite da mitologia grega! — saudou cientificamente o Visconde. Hércules respondeu numa só palavra, dirigida a todos: — Adeus!... Pedrinho contou: Um... dois... e três! Quatro fiuns soaram ao mesmo tempo e os quatro companheiros de Hércules sumiram-se como por encanto. O herói ainda ficou ali por longo tempo, sentado a uma pedra, junto à fogueira do sacrifício a Palas. E como até Belerofonte houvesse desaparecido, não teve com quem desabafar. Depois levantou-se e lá seguiu de cabeça baixa para a cidade de Corinto. Ia em procura de Lúcio para conversar sobre os picapauzinhos. Era um meio de matar as saudades...

Iba Mendes Editor Digital www.poeteiro.com