Identidade, Cultura e Religião no Império Romano

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Artigo: Religiões e as questões de cultura, identidade e poder no Império Romano; Autor: Norma Musco Mendes, professora associada da UFRJ, possui experiência na área de História Antiga, sobretudo Roma, e pesquisas sobre os temas império romano, identidade/alteridade, relações de poder e processos de romanização; Uiara Barros Otero, professora da Universidade do Grande Rio, UNIGRANRIO, no curso de Licenciatura em História e atua no curso de Teologia. Tem experiência em História Antiga e desenvolve pesquisas na área do cristianismo antigo e na sua relação com o Império Romano. O artigo tem o objetivo de discutir a religião tradicional romana e sua estreita relação com identidade étnica e política. Além disso, busca analisar a política religiosa romana como modelo de romanização e analisar como essa política religiosa influenciou o processo de construção de identidades na comunidade cristã. Deve-se considerar que o surgimento do Cristianismo foi possível a diversos fatores, mas um dentre eles se destaca: o modelo de política religiosa romano. Nesse sentido, podemos relacionar esse princípio com as questões da religião doméstica e liberdade religiosa trabalhados em sala de aula. Norma e Uiara fazem uma introdução do que era religião para os romanos com o intuito de diferenciar o conceito de religião romano dos monoteístas, destacando a associação da religião com a política, tornando-a estatal. Para os romanos, o objetivo fundamental da religião era obtenção do pax deorum, ou seja, a harmonia entre a comunidade e os deuses. Dessa forma, eles estariam garantindo a liberdade e a dignidade dos cidadãos (p. 199). Os rituais básicos garantiam o apoio dos deuses, como um acordo contratual. As práticas religiosas

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Resenha de artigo sobre identidade, cultura e religião no antigo Império Romano da Revista de História Antiga da UFRJ (PHOINIX)

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Artigo: Religiões e as questões de cultura, identidade e poder no Império Romano;

Autor: Norma Musco Mendes, professora associada da UFRJ, possui experiência na área de História Antiga, sobretudo Roma, e pesquisas sobre os temas império romano, identidade/alteridade, relações de poder e processos de romanização;

Uiara Barros Otero, professora da Universidade do Grande Rio, UNIGRANRIO, no curso de Licenciatura em História e atua no curso de Teologia. Tem experiência em História Antiga e desenvolve pesquisas na área do cristianismo antigo e na sua relação com o Império Romano.

O artigo tem o objetivo de discutir a religião tradicional romana e sua estreita relação com identidade étnica e política. Além disso, busca analisar a política religiosa romana como modelo de romanização e analisar como essa política religiosa influenciou o processo de construção de identidades na comunidade cristã.

Deve-se considerar que o surgimento do Cristianismo foi possível a diversos fatores, mas um dentre eles se destaca: o modelo de política religiosa romano. Nesse sentido, podemos relacionar esse princípio com as questões da religião doméstica e liberdade religiosa trabalhados em sala de aula.

Norma e Uiara fazem uma introdução do que era religião para os romanos com o intuito de diferenciar o conceito de religião romano dos monoteístas, destacando a associação da religião com a política, tornando-a estatal. Para os romanos, o objetivo fundamental da religião era obtenção do pax deorum, ou seja, a harmonia entre a comunidade e os deuses. Dessa forma, eles estariam garantindo a liberdade e a dignidade dos cidadãos (p. 199). Os rituais básicos garantiam o apoio dos deuses, como um acordo contratual. As práticas religiosas públicas eram ligadas à condição cívica, não a decisão pessoal. Eram impostas ao indivíduo pela sua condição social de pertencimento à sua cidade. Pensemos nas imagens de Vênus nas moedas cunhadas por ordem de Julio César a fim de afirmar seu pertencimento àquela linhagem e história local.

No entanto, as autoras ressaltam que, no pensamento politeísta, foi permitida uma conciliação entre a união de uma divindade de escolha pessoal e o ritual convencional do Estado. As autoridades nunca impuseram o pensamento oficial sobre os deuses. Na minha concepção, classifico como uma espécie de Estado laico, embora a religião fosse estatal e as figuras que detinham poder devessem praticar certos rituais, além da existência de festivais públicos ligados à religião politeísta.

Portanto, o centro da religião romana era o ritual, não a crença. Nesse sentido, as autoras citam Rives para afirmar que a religião pública foi estruturada em torno dos rituais considerados imprescindíveis para que as cidades do império prosperassem, de maneira que poderíamos tratar como um modelo de religião “normativa”, que constituía a identidade cívica local e estava de acordo com as elites. (p.200)

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A religião romana era política e estatal, pois buscava a convivência harmoniosa entre o povo e os deuses e, no entanto, não havia uma doutrina imposta. Essa tolerância pode ser interpretada como uma estratégia de romanização, sendo um dos fatores que contribuíram para o sucesso dos romanos. Porém, essa tolerância deve analisada, também, como o temor de desafiar os deuses dos povos conquistados.

Norma e Uiara citam a prática da interpretatio, na qual os romanos identificavam os deuses nativos com equivalentes na religião romana. Para ilustrar essa prática, lembremos-nos das semelhanças entre deuses gregos e romanos sem classificá-las como mera apropriação, mas sim como a prática do interpretatio. Portanto, essas práticas e a tolerância podem ser vistas como um mecanismo de integração e afirmação de hegemonia romana nos territórios conquistados.

Após o estabelecimento do principado, no governo de Otávio, que recebeu o título de Augusto e assumiu a posição de pontifex maximus, o imperador passou a ser cultuado em vida. Seria uma forma de estratégia integrada de reconhecimento da soberania romana, não uma espécie de religião monoteísta, pois estava centrado apenas no ritual. Nesse sentido, o culto ao imperador não possuía o mesmo significado que o culto aos deuses. Para as autoras, o culto imperial foi de fundamental importância para a identificação dos provinciais com a ordem romana; cumpria, também, o papel de afirmação de hierarquia social; legitimava o governo imperial e sua realização era uma prova de lealdade imperial (p. 207). Podemos notar que as práticas de integração utilizadas pelos romanos possuíam diversas formas que iam do interpretatio ao culto imperial, passando por muitas outras.

Portanto, torna-se evidente que a política religiosa romana era um mecanismo de integração da totalidade dos povos que compunham o império. Segundo as autoras, essa hipótese tem sido confirmada por uma pesquisa que apresenta práticas de interpretatio, presenças de cultos orientais e indígenas na Lusitânia, em que as formas de manifestação de culto às divindades estariam nos padrões romanos.

Encontra-se nos resultados dessa pesquisa o conceito de “mestiçagem cultural”, de Gruzinski, citado por Uiara e Norma, pois, ao entrarem em contato, esses elementos opostos da cultura nativa e romana tendem a se interpenetrarem, não se excluírem. O que se obteve de resultado foi o hibridismo e a construção de novos padrões de culto.

As transformações das tradições religiosas atuaram como um forte mecanismo de construção de identidade e de reprodução das elites locais, sendo um fator fundamental na “negociação colonial”. No entanto, nem todos os grupos nativos se apropriaram da cultura do dominador, uma grande parte usou formas “romanizadas” para adaptar suas crenças.

Concluí-se que o processo de romanização foi um processo de ajustamento social e cultural, cuja responsabilidade estava centrada na identificação e interação dos grupos étnicos. Nesse contexto de liberdade religiosa e de vinculação da exegese sobre os deuses, homens e o mundo à esfera cultural, surgiram as primeiras comunidades cristãs, acompanhadas da Teologia. Os romanos não puderam compreender que o cristianismo tratava-se de uma ruptura

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da relação entre o pensamento politeísta e a identidade cívica e religiosa, construindo um projeto de identidade religiosa, baseado numa única verdade.

Portanto, o estudo da religião romana e a pesquisa histórica desses aspectos são fundamentais para conhecer o processo de construção identitária e cultural da pluralidade dos povos integrados no Império Romano, contribuindo para a compreensão do sucesso do expansionismo romano e do surgimento e consolidação do Cristianismo.

Uiara e Norma usaram como base de sua argumentação as fontes literárias e também arqueológicas, como as figuras das estatuetas de deuses celtas associados ao panteão greco-romano. Essa multiplicidade de fontes traz uma maior complexidade à compreensão do artigo, mas ilustra de maneira clara a hipótese da pesquisa. Essa composição plural da religião romana, a integração e sua influência sobre os grupos que compunham o império implicaram em diversas categorias de identificação, novas práticas sociais e diferentes formas de relação de poder, tendo um marco de transformação crucial após a chegada da religião cristã monoteísta.

Referência Bibliográfica:

MENDES, N. M; OTERO, U. B. Religiões e as questões de cultura, identidade e poder no Império Romano. PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 11: 196-220, 2005.