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    Identidade tnica, identificao e manipulao*

    ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA**

    1 Introduo

    Um dos fenmenos mais comuns no mundomoderno talvez seja o contato intertnico,entendendo-se como tal as relaes que tmlugar entre indivduos e grupos de diferentesprocedncias nacionais, raciais ou cultu-rais. fato sabido que isso se tornou possvelgraas expanso das chamadas Civilizaese diminuio do mundo pela modernizao dostransportes. Nesse sentido, parafraseando aconhecida afirmao cartesiana, mais do que obom senso parece ser a identificao tnicaa coisa melhor distribuda no mundo! Esteensaio pretende discutir o conceito de identidadetnica, descrever algumas modalidades de suaconstituio e examinar as possibilidades de suaexplicao para, finalmente, sugerir sua relevn-cia para a investigao das relaes intertnicas.Porm a pesquisa dessa temtica deve serprecedida de esclarecimentos sobre os conceitosde etnia e de grupo tnico, de modo a justificara incluso da identidade tnica no centro denossas reflexes.

    2 O conceito de grupo tnico

    Para tratar sucinta e compreensivamentedesse tema, parece oportuno partir da crtica

    que Fredrik Barth (1969) faz ao conceito degrupo tnico como unidade portadora decultura para conceb-lo como um organiza-tional type. Barth toma por referncia umadefinio consensual, conforme pode serdeduzida da literatura antropolgica1. Segundoessa definio um grupo tnico designa umapopulao que:

    a) se perpetua principalmente por meiosbiolgicos;

    b) compartilha de valores culturais funda-mentais, postos em prtica em formasculturais num todo explcito;

    c) compe um campo de comunicao einterao;

    d) tem um grupo de membros que se iden-tifica e identificado por outros comoconstituinte de uma categoria distinguvelde outras categorias da mesma ordem(Barth, 1969: 10-11).

    Entre essas caractersticas, o partilhar umacultura comum freqentemente consideradode central importncia. Na minha opinio dizBarth mais proveitoso considerar-se estaimportante caracterstica como uma implicaoou um resultado do que como uma caractersticaprimria e de definio da organizao dosgrupos tnicos (1969:11). Para a classificaodos indivduos ou grupos locais a nfase temsido posta no aspecto cultural dos portadores,

    * Este artigo faz parte do livro Identidade, etnia e estrutu-ra social, publicado em 1976 pela Livraria Pioneira Editora(SP). Os direitos de publicao foram gentilmente cedidospela Editora Tomson e liberados pelo autor. Harley do Nas-cimento Pereira e Alda Lcia Souza, alunos de CinciasSociais da UFG e bolsistas do CNPq, digitaram o texto, que reproduzido como no original.** Professor do Centro de Pesquisa e Ps-Graduao sobreas Amricas Ceppac/UnB.

    1. Barth faz referncia a um artigo de Narroll (1964), ondediferentes conceitos de etnia so discutidos para propsitosde anlise comparativa. Quanto a uma crtica radical a esseartigo, especialmente ao mtodo comparativo, destaco ocomentrio de Leach ao fim do mesmo (Leach, 1964:299).

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    critrio que depende da visualizao de traosparticulares da cultura, i.e., como so dadosobjetivamente ao observador etnogrfico(Barth, 1969:12). base desse critrio, asdiferenas passam a ser entre culturas, no entreorganizaes tnicas, uma vez que as anlisesso conduzidas sobre formas culturais mani-festas que podem ser relacionadas como umconjunto de itens ou traos culturais. At ondeesse critrio d conta da persistncia da identi-ficao tnica de pessoas e de grupos, quandopraticamente no se observam traos cultu-rais manifestos diferenciais?

    H mais de dez anos atrs defrontamo-noscom esse problema ao estudar o processo deassimilao (R. Cardoso de Oliveira, 1960a), oque nos levou a formular um conceito capaz deapreender, ao lado da peculiaridade culturaldo grupo tnico estudado, a identificaotnica de seus membros.2 Nessa mesma pes-quisa cuidamos de ampliar a prpria noo deidentificao tnica, valendo-nos para tanto daseguinte definio proposta por Daniel Glaser:Identificao tnica refere-se ao uso que umapessoa faz de termos raciais, nacionais oureligiosos para se identificar e, desse modo,relacionar-se aos outros (D. Glaser, 1958:31;R. Cardoso de Oliveira, 1960a:125). Voltaremos noo de identificao tnica adiante. Por orainteressa reter o essencial da crtica de Barth,bem como sua proposio de grupo tnico comoum tipo de organizao. Neste sentido sersuficiente considerar que a interconexo entregrupo tnico e cultura algo sujeito a tantasconfuses (Barth, 1969:12) que melhor seriatom-los separadamente para fins analticos ede conformidade com a natureza dos problemasformulados para a investigao. Veja-se, porexemplo, que, se o mesmo grupo de pessoascom os mesmos valores e idias, se defrontassecom as diferentes oportunidades oferecidas emdiferentes meios, seguiria tambm diferentespadres de vida e institucionalizaria diferentesformas de comportamento. Da mesma forma,devemos esperar que um grupo tnico espalhadonum territrio de circunstncias ecolgicas

    variveis apresente diversidades regionais decomportamento institucionalizado explcito,diversidades estas que no refletem diferenasna orientao cultural. Como devero eles, ento,ser classificados, se formas institucionais expl-citas forem diagnosticadas? (Barth, 1969:12).Barth responde a essas questes tomando ocaso dos Pathan (Pathan Identity and itsMaintenance, in Barth, 1969: 117-34) e mostracomo a identidade tnica irredutvel s formasculturais e sociais altamente variveis ou comodiferentes formas de organizao Pathanrepresentam vrias maneiras de consumar aidentidade em condies de mudana (Barth,1969:132). Tornou-se possvel chegar-se a taisresultados que melhor explicam a realidadePathan graas formulao de grupo tnicono mais em termos culturais, stricto sensu,seno como um tipo de organizao.3 SublinhaBarth que, concentrando-nos no que social-mente efetivo, podemos ver os grupos tnicoscomo uma forma de organizao social, sendoque o aspecto crtico da definio passa a seraquele que se relaciona diretamente com aidentificao tnica, a saber a caractersticade auto-atribuio por outros (Barth, 1969:13).4Na medida em que os agentes se valem daidentidade tnica para classificar a si prprios eos outros para propsitos de interao, elesformam grupos tnicos em seu sentido deorganizao (Barth, 1969:13-4).5

    3 Identidade e identificao

    A noo de identidade contm duas dimen-ses: a pessoal (ou individual) e a social (ou cole-tiva). Antroplogos (ex.: W. H. Goodenough,1963, M. Moerman, 1965) e socilogos (ex.: E.

    2. Assimilao foi definida ento como o processus peloqual um grupo tnico se incorpora noutro, perdendo (a) suapeculiaridade cultural e (b) sua identificao tnica anteri-or (R. Cardoso de Oliveira, 1960a:111).

    3. Deste ponto de vista, o ponto crtico da investigaotorna-se a fronteira tnica que define o grupo e no a essn-cia cultural que ele encerra (Barth, 1969:15).4. Uma atribuio categrica uma atribuio tnica quan-do classifica uma pessoa em termos de sua identidade bsicamais geral, presuntivamente determinada por sua origem eformao (Barth, 1969:14).5. importante reconhecer que embora categorias tnicaslevem em conta diferenas culturais, podemos presumir queno h uma simples relao biunvoca entre unidades tni-cas e semelhanas e diferenas culturais. Os traos que solevados em conta no so a soma de diferenas objetivas,mas s aquelas que os prprios atores consideram significa-tivas (Barth, 1969:14).

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    Goffman, 1963; McCall & Simmons, 1966) tmtrabalhado a noo de identidade e procuradomostrar como a pessoal e social esto interco-nectadas, permitindo-nos tom-las como dimen-ses de um mesmo e inclusivo fenmeno, situadoem diferentes nveis de realizao. O nvelindividual, onde a identidade pessoal objeto deinvestigao por psiclogos (ex.: Erikson, 1968,1970), e o nvel coletivo, plano em que a identi-dade social se edifica e se realiza. O reconhe-cimento desses nveis importante porque nospermite estudar a identidade como antroplogosou socilogos, sem cairmos em certos psico-logismos to comuns a uma dada ordem deinvestigao interdisciplinar, como no podedeixar de ser a pesquisa da identidade tnica,vista esta ltima como um caso particular daidentidade social. A importncia de tomar aidentidade como um fenmeno bidimensionalpermite, por outro lado, incorporar as contri-buies dos estudos psicolgicos, especialmenterelevantes para a descrio dos processos deidentificao, mantendo-nos fiis ao princpiodurkheimiano de explicar o social pelo social(sem que isso signifique ignorar o fato psquico o que freqentemente tem ocorrido na melhortradio da antropologia social).6 A distino queErikson faz, por exemplo, entre identidade eidentificao crucial, embora ele considere sera identificao um mecanismo de limitadautilidade, uma vez que a identidade no seriauma soma de identificaes mas uma realidadegestltica.7 Contudo, para o deslindamento daidentidade social, em sua expresso tnica, aapreenso dos mecanismos de identificao nos

    parece fundamental. Fundamental porque elesrefletem a identidade em processo. Como assumida por indivduos e grupos em diferentessituaes concretas. A investigao desseprocesso nos levar a diferentes formas deidentificao, empiricamente dadas, de modo apermitir o conhecimento da emergncia daidentidade tnica. Como diria Barth, por umasimples anlise de um processo, podemosentender a variedade de formas complexas queele produz (Barth, 1966:2).8

    Se entre uma ocasio e outra um indivduono pode ser reconhecido como uma mesmapessoa, nenhuma identidade social poderia serconstruda (McCall & Simmons, 1966:65). Nessalinha de raciocnio a identidade social surge comoa atualizao do processo de identificao eenvolve a noo de grupo, particularmente ade grupo social. Porm, a identidade social nose descarta da identidade pessoal, pois estatambm de algum modo um reflexo daquela.9A identidade social e a identidade pessoal soparte, em primeiro lugar, dos interesses e defi-nies de outras pessoas em relao ao indivduocuja identidade est em questo (E. Goffman,1963:105-106). O conceito de identidade pessoale social possui um contedo marcadamentereflexivo ou comunicativo, posto que superelaes sociais tanto quanto um cdigo de cate-gorias destinado a orientar o desenvolvimentodessas relaes.10 No mbito das relaes inte-

    6. Audrey Richards, em sua avaliao da situao dos estu-dos sobre a socializao na antropologia social britnica,assinala o medo tradicional dos antroplogos sociais dianteda psicologia. Este medo pode ou no enfatizar a posturaespecificamente antipsicolgica levada a efeito por antro-plogos sociais deste pas aproximadamente nos ltimosvinte anos. fcil entender as razes de Durkheim ao ten-tar isolar um fato social em sua pureza e foi muito bompara a Sociologia que ele assim procedesse. menos fcilentender as afirmaes quase defensivas que alguns antro-plogos britnicos fizeram recentemente (Richards, 1970,7-8).7. Falando da identidade no plano individual e no mbitopsicoterpico, Erikson diz ... como toda cura atesta, iden-tificaes mais desejveis tendem, ao mesmo tempo, a serpouco a pouco subordinadas a uma Gestalt nova, singular,que mais do que a soma de suas partes. O fato que aidentificao como um mecanismo de utilidade limitada(Erickson, 1968:158).

    8. Para que um conceito de processo seja analiticamentetil, deve-se referir a alguma coisa que governe e afete aatividade, alguma coisa que restrinja e canalize o possvelcurso dos eventos. (...) O estudo do processo deve ser umestudo de interdependncias provveis ou necessrias quegovernam o curso dos eventos (Barth, 1969:2).9. A distino que Goffman faz entre identidade pessoal eindividual (Ego identity, na acepo de Erikson) no rele-vante para o presente estudo. Mesmo porque a noo deidentidade experimentada (Felt identity), se a tomarmosnum sentido fenomenolgico, implica necessariamente adimenso social da pessoa ou persona, i.e., uneconscience et une categorie, no dizer de Mauss (MarcelMauss, 1950:358).10. Conforme Goodenough, ... a formao de identidadeenvolve um relacionamento do ego com pessoas e coisas noseu meio ambiente, de modos diferentes, ao qual ns ordina-riamente nos referimos sob o rtulo de identificao(Goodenough, 1963:204). Essa identificao, como se veradiante, seguindo o prprio Goodenough, envolve necessa-riamente a idia de sistemas de categorizao, aspectofundamental da identidade tnica (cf. tambm McCall &Simmons; 1966:64).

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    rtnicas este cdigo tende a se exprimir comoum sistema de oposies ou contrastes. Me-lhor poderemos dar conta do processo de iden-tificao tnica se elaborarmos a noo deidentidade contrastiva.11

    A identidade contrastiva parece se consti-tuir na essncia da identidade tnica, i.e., baseda qual esta se define. Implica a afirmao dons diante dos outros. Quando uma pessoa ouum grupo se afirmam como tais, o fazem comomeio de diferenciao em relao a algumapessoa ou grupo com que se defrontam. umaidentidade que surge por oposio. Ela no seafirma isoladamente.12 No caso da identidadetnica ela se afirma negando a outra identi-dade, etnocentricamente por ela visualizada.Nesse sentido, o etnocentrismo, como sistemade representaes, a comprovao empricada emergncia da identidade tnica em seuestado mais primitivo se assim podemos nosexpressar. Atravs dos nossos valores nojulgamos apenas os dos outros, mas os outros.Significa isso que a identidade tnica seja valor?Sabemos que ela no se funda numa percepocinestsica de ser, mas numa auto-apreensode si em situao. Tomando por referncia ummodelo existencial de pessoa, diramos que oque transforma o indivduo em pessoa asituao, num sentido fenomenolgico e,portanto, como fato de conscincia.13 Mas apeculiaridade da situao que engendra aidentidade tnica a situao de contatointertnico, sobretudo mas no exclusi-vamente quando esta tem lugar como frico

    intertnica.14 A conscientizao dessa situaopelos indivduos inseridos na conjunointertnica que seria o alvo preliminar doanalista. Um estudo do modelo consciente, naacepo de Lvi-Strauss, dos indivduos atuantesno cenrio intertnico. Uma tal conscincia,etnocntrica em larga escala, estaria pautadapor valores e se assumiria como ideologia.15

    Esta relao entre identidade e valor foibem percebida por Erikson em seus estudossobre a confuso individual e a ordem social,notadamente com referncia socializao dojovem. Diz ele que ...identidade e ideologia sodois aspectos do mesmo processo. Ambosfornecem a condio necessria para uma maiormaturao individual e, com ela, para a prximaforma de identificao mais inclusiva, ou seja, asolidariedade ligando identidades comuns emvida, ao e criao conjuntas (Erikson, 1968:189). Depois de estabelecer um conjunto dedeterminaes ideolgicas, condicionantes doprocesso de socializao e que no se justi-ficaria aqui enunciar e discutir , afirma quesem tal compromisso ideolgico, ainda queimplcito num modo de vida, a juventude sofrede uma confuso de valores que pode serespecificamente perigosa para alguns, mas queem grande escala certamente perigosa para ofuncionamento da sociedade (Erikson, 1968:

    11. Falamos de identidade contrastiva (contrastive identity)como noo, num sentido aproximado ao usado por Barth(1969:132), que no a trabalhou como conceito, nem aexplorou teoricamente.12. Moerman, estudando os Lue da moderna Tailndia eapoiando-se teoricamente em Murphy (1964:848), segun-do o qual essa condio de membro depende de uma cate-goria dos excludos, um sentido de alteridade..., os Lueno podem ser identificados (...) em isolamento (Moerman,1965:1216).13. Um ltimo componente nesta breve exposio de ummodelo existencial da pessoa a noo da situao. O queconcretiza o ego, e que transforma o indivduo (como ummembro tpico da espcie) numa pessoa a sua situao. Anoo de situao tem um status fenomenolgico que adiferencia da noo fisicalstica do meio ambiente; dito emoutros termos, a situao transcende o local fsico. Umapessoa situada e se situa no mundo (E.A Tiryakian,1968:84).

    14. Cf. R. Cardoso de Oliveira, 1962, 1964 e 1967. Nessestrabalhos apresentamos (1962) e desenvolvemos (1964 e,principalmente, 1967) um modelo de investigao que de-nominamos frico intertnica, como uma maneira de des-crever a situao de contato entre grupos tnicosirreversivelmente vinculados uns aos outros, a despeito dascontradies expressas atravs de conflitos (manifestos)ou tenses (latentes) entre si existentes. Uma srie depesquisas que se seguiram ao projeto inicial (1962), utili-zando-se da mesma abordagem, levou a concluses simila-res, guardando-se, naturalmente, as peculiaridades de cadarea de frico intertnica investigada (Laraia & Matta,1967; Melatti, 1967; Santos, 1970; Amorim, 1970). Como intuito de distinguir o conjunto da teoria de aculturao,permitindo-nos a falar, grosso modo, em teoria de fricointertnica.15. B. Ward apresenta a seguinte tipologia, de inspiraolvi-straussiana, de modelos conscientes: Ns podemose devemos contrastar modelos conscientes existentes comoconstrudos nas mentes das prprias pessoas em estudo commodelos do observador construdos por estranhos, inclusivecientistas sociais, mas provavelmente sempre til pensartambm em termos de, pelo menos, as trs espcies diferen-tes de modelos conscientes que aqui distinguimos comomodelos imediatos, modelos ideolgicos e modelos de ob-servadores internos (Ward, 1965:137).

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    188).16 Sendo psiclogo, seu objetivo no omesmo do antroplogo social, uma vez que esteno busca apreender a identidade como resul-tado do mecanismos redutveis escala indivi-dual, mas como um precipitado de uma plu-ralidade de identificaes (tnicas) que tempropriedades sui generis, no necessaria-mente as mesmas encontradias na investigaode indivduos particulares.17 Embora a pesquisaantropolgica deva partir deles, dos modos dese assumirem em situao (intertnica), ela ostranscende, explicando-os ao nvel do sistemaintertnico, como sistema social inclusivo. Asafirmaes de Erikson referentes s determi-naes ideolgicas, portanto carregadas de valor,como algo intimamente relacionado com a identi-dade individual, trazem assim real contribuioa uma teoria da identidade tnica, pois apontampara uma relao (identidade-R-valor) j ope-rante ao nvel individual.

    Mas antes de entrarmos no exame dealguns modos de identificao tnica cabeassinalar que estamos tentando descobrir aestrutura da identidade tnica enquanto objetolegtimo de investigao. Para tanto, tentar-se- aqui constituir teoricamente o nosso objetono sentido que lhe d Gilles Gaston Granger, quereserva palavra objeto para aquilo que acincia procura lograr conhecer (Granger,1970:79). Como se ver adiante o nosso objetono se esgota nas identidades concretas,observveis ao nvel do emprico, ainda que elassejam a matria-prima indispensvel para aconstruo de modelos que tornem manifestaa estrutura da prpria identidade tnica comonos ensina Lvi-Strauss com relao aosprocedimentos analticos que ponham a desco-

    berto a estrutura social propriamente dita (Lvi-Strauss, 1958:305-306). Fenmenos como asflutuaes da identidade tnica, tanto quantoos mecanismos de identificao ganharo, assim,em objetividade, na medida em que identidadee identificao forem sendo despojadas de seusatributos circunstanciais e descobertas (ouredescobertas) em suas propriedades consti-tutivas. Portanto, no se pretende neste ensaiodescrever e explicar a identidade e a suaemergncia em tal ou qual sistema intertnico,seno o de discutir a possibilidade de conhe-cimento da identidade tnica, apreendida nadimenso de sua generalidade (melhor diria,universalidade), quaisquer que sejam os sistemasintertnicos particulares que a engendrem e quea contenham. Todavia, nosso projeto mera-mente exploratrio, ensastico literalmentefalando, em face do conhecimento fragmentrioque se possui dos fenmenos tnicos em suaconexo com as noes de identidade e de grupoorganizado. Acreditamos, porm, que o equa-cionar consistentemente a identidade e aidentificao tnicas poder resultar numacontribuio para o desenvolvimento de pesqui-sas que, conjugadas, logrem um mais completoconhecimento e uma mais aprimorada metodo-logia.

    4 Modalidades de identificao tnica

    Frederik K. Lehman, em um interessanteestudo sobre as categorias tnicas em Burma(F.K. Lehman, 1967), que nos abre as melhoresperspectivas para uma anlise mais profcua daidentificao tnica. Permita-nos citar o essen-cial trecho de seu estudo: A minha opinio de quando as pessoas se identificam como mem-bros de alguma categoria tnica (...) elas estotomando posies em sistemas de relaes inter-grupais culturalmente definidos (...). Estes siste-mas de relaes intergrupais (...) compreendemcategorias complementares complexamenteinterdependentes. Afirmo, em particular, que, narealidade, categorias tnicas so formalmentecomo papis e so, neste sentido, s muitoindiretamente descritivas das caractersticasempricas de grupos substantivos de pessoas(pp. 106-107). Isso no quer dizer que a identi-dade seja papel (role), seno que do ponto

    16. Como psiclogo, seu objeto o que denomina identi-dade psicossocial, situada em trs ordens: a somtica, aonvel dos organismos, a de Ego, ao nvel da integrao daexperincia pessoal e comportamento, e a social, ao n-vel da participao das ordens anteriores numa colocaohistrico-geogrfica (Erikson, 1970:749-50).17. A distino de uma abordagem antropolgica, estrutu-ralista, de uma outra psicolgica, feita com grande clarezapor um psiclogo a propsito de uma avaliao de AudreyRichards sobre trabalhos de Lvi-Strauss referentes ao pen-samento selvagem. Diz Jahoda que ... o objeto de exame, portanto, uma pense collective, um precipitado de umamultido de mentes dentro de uma dada cultura. possvelque tal produto coletivo tenha propriedades sui generis nonecessariamente identificveis no pensamento de indivdu-os particulares. (G. Jahoda, 1970:41-2).

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    de vista formal semelhante a papel, comotambm assim nos parece ser o status, a saber:para cada relao de identidade culturalmentepossvel h uma correspondente relao destatus, i.e., de direitos e deveres (cf. W. H.Goodenough, 1965:8). Mas o que interessasublinhar que sendo a identidade tnica umacategoria semelhante a papel, ela no pode serdefinida em termos absolutos, porm unicamenteem relao a um sistema de identidades tni-cas,18 diferentemente valorizadas em contextosespecficos ou em situaes particulares. Nasrelaes intertnicas, de conformidade, porexemplo, com a dinmica do sistema de fricointertnica, as relaes se do em termos dedominao e sujeio o que coerente, falandocom referncia a papis, com a possibilidadeentrevista por Nadel (S.F. Nadel, 1957:109) dereduzi-los (os papis) a uma dimenso de sobre-posio e subposio (cf. tambm Lehman,1967:107). consistente, por outro lado, com oque afirmamos atrs a respeito do cartercontrastivo da identidade tnica, na medida emque implica o confronto com outra(s) identi-dade(s) e a(s) apreende num sistema de repre-sentaes de contedo ideolgico.

    (i) A identificao em contextos intertribais

    Mas se tomarmos outros contextos, nonecessariamente redutveis ao modelo de fricointertnica (cf. nota 14), a identidade contrastivapersiste atualizando a identidade tnica erepresentando-a num sistema de referncia decarter ideolgico. Pelo que se conhece deregies interculturais como o alto Xingu, porexemplo, os diferentes grupos indgenas eminterao afirmam suas respectivas identidadespor meio de um sistema de referncias ou decategorias construdo como uma ideologia derelaes intertribais. Patrick Menget, em suaspesquisas no Xingu, indica que as identidadesde Kamayur, Waur, Kalaplo etc. constituemcategorias tnicas de que lanam mo osindivduos e os grupos para se situar num deter-

    minado sistema de relaes, i.e., de conjunointertribal.19 Significa que na atual situao doalto Xingu, por fora da intensidade das relaesintertribais, traduzveis freqentemente pormatrimnios entre indivduos de diferentesgrupos, produziu-se um sistema de relaessociais em termos do qual um indivduo sempreter alternativas (delimitadas naturalmente porfatores estruturais) para sua identificao tribal,quer cumprindo a regra da patrilateralidade, querinvocando a matrilateralidade (particularmenteem situaes de reivindicao de direitos dechefia); como regras secundrias tambm umindivduo poder invocar seu conhecimento dalngua (como indicador de seu conhecimento dacultura do grupo) e/ou do lugar de nascimento(localidade, podendo ser esta patri ou matri como indicador de pertinncia histrica). Mas oimportante disto e esta a contribuio deMenget para a elaborao de um modelo maisconsistente da situao xinguana que nose pode compreend-la procurando construir(ou reconstruir como alguns antroplogos otentaram ex. Ellen R. Becker)20 unidadestnicas reais, mas, ao contrrio, deve-se procu-rar tom-las como categorias a codificarem umateia de relaes, esta sim considerada como ofoco explicativo de uma etnologia do alto Xingu.

    Uma outra rea de aculturao intertribal,que juntamente com a do Xingu e a do Rio Negrorepresenta uma regio da maior relevncia parase compreender a dinmica de conjunesinterculturais em nveis de relaes intertribais, a do Chaco, particularmente em sua extenso(como rea cultural) s margens ocidentais dorio Paraguai, portanto em territrio brasileiro.Infelizmente uma rea que no oferece asmesmas condies de investigao etnogrficaque as duas outras mencionadas, uma vez que,sendo uma zona de colonizao secular e inten-

    18. Um papel definido no em termos absolutos masrelativos a todo um sistema de outros papis. Talvez osistema de papis excepcionais consista de somente doispapis ou somente de duas espcies de papis, i.e., umanica espcie de relao (Lehman, 1967:107).

    19. As consideraes que fazemos sobre o Xingu so emlarga escala o resultado de conversas com Patrick Menget,doutorando da Universidade de Havard, durante o perodoem que elaborava sua dissertao. Todavia, nossas interpre-taes do caso xinguano talvez no correspondam inte-gralmente com as de Menget, razo pela qual somos osnicos responsveis pelas mesmas. Suas idias brevementepodero ser conhecidas com a publicao de seu artigoEthnies et Socit: Remarques sur le Systme SocialXinguano, atualmente em elaborao.20. Cf. Ellen R. Becker, Xingu Society, Dissertao dePh. D. (1969).

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    sa, no permitiu que sobrevivessem nos dias dehoje sistemas de relaes intertribais de escalasde operacionalidade iguais s que se observamnos altos rios Xingu e Negro. Contudo, algunsfenmenos que pudemos observar s puderamser entendidos atravs da concepo das identi-dades tnicas (ou tribais) como estandoorganizadas num sistema de categorias. Cabefazer aluso aqui manipulao de identidadesfeita por um koixomunet (mdico-feiticeiro) daaldeia Terna denominada Cachoeirinha (ouBookot, em idioma Txan). Trata-se do ndioF.S., filho de pai Layna (um subgrupo Guan,tal como o grupo Terna) e me Terna. Emboraa filiao obedea a um padro patrilinear, F.S.invoca sua identidade Layna quando assume opapel de koixomunet, em face do grandeprestgio que goza o maior koixomunet deCachoerinha (e provavelmente das aldeiasTerna em seu conjunto), o igualmente LaynaGonalo que se serve em seus rituaisxamansticos de palavras da lngua Layna queefetivamente no domina; faz das palavrasLayna um uso quase cabalstico, como paraimpressionar seus clientes Terna. Mas freqen-temente F.S. est a invocar sua identidadeTerna, alegando t-la por direito uma vez quesua me era Terna. Sua ambio em se tornarcapito da aldeia leva-o a jogar com duasidentidades virtuais, dependendo das circuns-tncias e das pessoas com quem interage (R.Cardoso de Oliveira, 1968:111).

    Porm, esse caso no isolado no suigeneris sistema de relaes intertribais quemarcam a atualidade Terna. Darcy Ribeiro,prefaciando nosso livro O Processo de Assi-milao dos Terna (pp. 11-2) e apoiadotambm em suas prprias observaes sobre arealidade Terna, diz que, atravs dos ltimos150 anos de interao com a nossa sociedade,os diversos grupos Guan vieram a fundir-se,restando, em nossos dias, um apenas, os Terna,que passaram a reunir todos os sobreviventesda tribo. Apesar do reduzido tempo que passoujunto a esses ndios, Ribeiro soube ver que defato se tratava de um nico grupo organizado,i.e., os Terna. E que os remanescentes Laynae Kinikinu, juntamente com os Ternapropriamente ditos, no constituam seno umnico grupo tnico no mais os Guan mas

    os Terna, hoje majoritrios. Isso nos leva a doispontos que gostaramos de abordar.

    Em primeiro lugar, o status de minoriatnica ou tribal de certas identidades; emsegundo lugar, a relao entre o conceito deidentidade tnica e o de grupo tnico, comodefinimos esse ltimo nas primeiras pginasdeste ensaio e de acordo com Barth. Tomemoso caso dos remanescentes Kinikinu deCachoeirinha para nos ajudar a examinar essespontos. Encontram-se agrupados em trs gruposdomsticos (dados de 1960) e em uma nicaparentela, originria de um nico grupo localchamado Paraso. Seus componentes mantmviva o que se poderia chamar de identidadehistrica, pois comumente, e inclusive naocasio do censo, fazem questo de seidentificar como Kinikinu de modo a contras-tarem sua identidade com a dos seus vizinhosTerna. Na poca, isso nos surpreendeu, poisacabvamos de presenciar o casamento de umjovem membro da famlia com uma Terna eacreditvamos ser mais estratgica em mani-festao inversa, isto , um escamoteamento daidentidade Kinikinu. Com o relativo desprezoque goza qualquer outra identidade que no sejaa dos donos do lugar como assim se afirmamos Terna, nas aluses freqentes que fazems identidades dos outros21 sempre quedesejam marcar seus direitos sobre a terra dareserva, portanto, sempre que querem fixar seustatus superior seria de se esperar que essesKinikinu cuidassem de evitar o estigma. Maslogo aprendemos que eles assim se identificavamperante o pesquisador, uma pessoa de fora,capaz talvez de v-los como so, diferentesdos Terna, melhores do que eles; porm todaa vez que surpreendemos um ou outro Kinikinuem situaes de interao com indivduosTerna, sem a participao de indivduos deoutras etnias, seu comportamento verbal era nosentido de evitar qualquer referncia suaidentidade Kinikinu.

    21. Como informao suplementar devemos assinalar queh uma tendncia hierarquizao dessas identidades, es-tando as de Kinikinu e Layna, pelo menos na AldeiaCachoeirinha, acima da de Xamakoto ou Guat, estas lti-mas relacionadas com o status de cativos que, no passado,membros desses grupos tnicos desfrutavam nas aldeiasTerna. Hoje seus poucos descendentes ainda so alvo dediscriminao.

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    Esse caso sugere que bem se trata do queErikson denomina (tomando o termo de VannWoodward) surrendered identity,22 a saber,uma identidade latente que apenas renun-ciada como mtodo e em ateno a uma prxisditada pelas circunstncias, mas que a qualquermomento pode ser atualizada, invocada. Masessa invocao nos indica que, no grupo fechadode sua parentela, os Kinikinu buscam se apoiarnuma ideologia tnica que os municie de valorescapazes de fortalec-los no confronto cotidianocom os Terna que insistem em consider-los,h pelo menos 50 anos, hspedes! Experimen-tam nesse sentido uma dolorosa conscinciade identidade,23 moralmente indispensvel parasustent-los na situao de minoria tnica deque desfrutam. E precisamente devido a essacondio de minoria, de representantes da clas-se dos de fora como os vem os Terna ,que so estigmatizados, a confirmar as conclu-ses de Goffman de que a estigmatizao omeio de remover minorias dos caminhos dacompetio.24 Os Kinikinu, no entanto, noconstituem um grupo organizado (organiza-tional type) provavelmente j a partir de 1908,quando ainda tinham uma aldeia e certamentedesde 1925, quando dela saram seus ltimosquinze moradores de mudana para Lalima (R.Cardoso de Oliveira, 1960a:62, nota 108); masa identidade histrica que cultivam serve-lhespara marcar o seu lugar na comunidade deCachoeirinha, para contrast-los com os donosdo lugar, singulariz-los, o que significa tambmdiferenci-los dos demais membros da classede fora (remanescentes Guat, Xikito, tantoquanto paraguaios mestios), como a afirmar a

    posse de direitos que aqueles no poderiamreivindicar; o que se pode deduzir dessa frasedo velho Leme, chefe da parentela Kinikinu:No sou como muito morador daqui, nunca fuikauti (cativo) e sou Kinikinu de famlia naati(de chefes).

    Comparando a situao da comunidade deCachoeirinha com a que desfrutam os gruposxinguanos, pode-se dizer que a situao dosKinikinu corresponde a um caso limite, em queum conjunto de indivduos, na falta de um grupotnico de referncia, efetivamente existente(portanto como organizational type), apela sua histria (tanto quanto os Terna tambm ofazem com relao a elas) e se representa comocategoria tnica num sistema ideolgico deter-minado. A possibilidade da emergncia dessamodalidade de identidade tnica talvez sejaproporcional conscincia de sua histria, ou sua historicidade,25 que remanescentes tribaisou tnicos possam possuir. J quanto situaodos xinguanos, a correspondncia entre identi-dades tnica e grupo tnico , por assim dizer,sincrnica, no mediatizada por uma histria epor uma invocao do passado, pois no Xinguas unidades tnicas (como as que mencionamospargrafos atrs) persistem como grupos tribais,portanto como organizational type. No obs-tante, seria importante investigar como e em queescala pode ter lugar o processo de identificaotnica envolvendo remanescentes tribais tam-bm no Xingu (pois existem), descendentes degrupos j desaparecidos, por isso sem preen-cherem as condies do tipo organizado de quefala Barth, como tal o caso dos Kusteno,Nahuku, Trumi, entre outros. Com relao aesses remanescentes possvel que mecanismosde identificao tnica semelhantes aos obser-vados em Cachoeirinha tenham lugar no Xingude forma que o modelo elaborado sobre aquelarealidade bem poder ajudar a compreender umasegunda situao por ora ainda no investigadapor Menget.

    (ii) A identificao no confronto com os brancos

    As relaes intertnicas no se do somen-te em sistemas de interaes intertribais. Do-

    22. Gosto deste termo (identidade renunciada) porque eleno presume ausncia total, mas algo a ser recuperado. Istodeve ser enfatizado porque o que latente pode se tornaruma realidade viva e, assim, uma ponte do passado para ofuturo (Erikson, 1968:297).23. Falando sobre a criao artstica entre minorias judiasou negras, Erikson diz que ... ela inclui a deciso moral deque uma certa identidade-conscincia dolorosa pode ter queser tolerada a fim de fornecer conscincia do homem umacrtica de condies, com o insight e as concepes neces-srias para cur-lo do que mais profundamente o divide e oameaa, ou seja, a sua diviso no que chamamos de pseudo-espcies (Erikson, 1968:298).24. ... a estigmatizao dos indivduos pertencentes a cer-tos grupos raciais, religiosos e tnicos tem aparentementefuncionado como um meio de remover essas minorias devrios caminhos de competio (...) (Goffman, 1963:139).

    25. Cf. Claude Lefort (1952); tambm R. Cardoso de Oli-veira (1960a:67).

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    se tambm e sobretudo em situaes decontato entre ndios e brancos, como assimso mencionadas essas relaes na etnologiaamericanista. E na tradio dessa etnologia, necessrio acentuar, a expresso relaesintertnicas sempre esteve aplicada s que tmlugar entre o conquistador europeu e as popu-laes aborgines, menos freqentemente entreaquele e os grupos negros transladados (cujosremanescentes tm sido alvo de estudos derelaes raciais) e muito raramente s rela-es intertribais. Neste ensaio, que visaexaminar a identificao tnica como umprocesso de maior generalidade, tal diferen-ciao contraproducente, pois pode levar aum entendimento errneo de um nico fenmenoque apenas diferentemente se manifesta deconformidade com a diversidade das situaesde contato. Portanto, embora tambm nstenhamos acompanhado a mesma tradio emtrabalhos anteriores como um meio de maisfacilmente marcar no discurso as relaes entrendios e brancos j aqui estaremos usando aexpresso intertnica para designar as relaesque se do entre etnias em geral, como se definiuno princpio deste ensaio tanto quanto emcoerncia com a etimologia do termo; a menoa relaes intertribais, como um caso particulardas relaes intertnicas, obedece fundamen-talmente a propsitos descritivos.

    Todavia, se os mecanismos de identificaotnica podem estar sujeitos a princpios estru-turais comuns, tal no acontece com o contextono qual se do as relaes intertnicas. Essecontexto, naturalmente, cinge-se a estruturas deoutra ordem. As relaes que envolvem etniasde escalas to diferentes, como so a sociedadenacional (quer seja atravs de seus segmentosregionais muitas vezes demograficamenteinexpressivos) e os grupos indgenas, obedecemainda a certas dinmicas peculiares, comotentamos descrever em nosso modelo dopotencial de integrao (R. Cardoso deOliveira, 1967) e em consonncia com a teoriade frico intertnica a que j aludimos.Implicam a admisso tcita no apenas de umahierarquia de status (ou um sistema de estra-tificao), pois essa tambm tem lugar comouma ideologia da situao de contato, massobretudo uma estrutura de classes, no sentido

    que lhe d uma sociologia das classes sociais.Na medida em que uma contradio de classetem lugar, as etnias indgenas tendem a ocuparno sistema social inclusivo, portanto nacional,posies de classe: nas zonas rurais eestamos fazendo referncia expressa reali-dade brasileira tendem a ser identificadas comcamponeses ou com trabalhadores agrcolas;nas reas urbanas, com operrios ou traba-lhadores braais. Isso no significa absolu-tamente que como grupos tnicos (organi-zational type) tenham conscincia de classee se assumam como classe. O estudo quefizemos sobre os Terna rurais e urbanos (R.Cardoso de Oliveira, 1968) oferece uma confir-mao dessa assertiva; como tambm o estudodos Tkna pode servir para mostrar a dialticaentre etnia e classe social (R. Cardoso deOliveira, 1964, esp. Cap. VI). Mas o ponto quedesejamos fixar aqui que a natureza dasrelaes entre brancos e ndios de dominaoe sujeio, sendo consistente com um certo tipode colonialismo interno de que falamos noutrolugar (R. Cardoso de Oliveira, 1966).

    Num tal contexto, as relaes intertnicasproduzem modalidades de identificao queobedecem a imperativos que devemos examinar.Gostaramos de aludir ao que observamos em1959, quando de nossa primeira viagem aosTkna, do alto rio Solimes, nas fronteirasamaznicas entre Brasil, Peru e Colmbia. Essecaso foi descrito e analisado em publicaesanteriores (R. Cardoso de Oliveira, 1960b e1964), por isso limitamo-nos a resumir aqui oessencial. Trata-se de observaes feitas sobreuma famlia residente na aldeia Mariauu, dentroda reserva supervisionada pelo Posto IndgenaTicunas. A peculiaridade do caso est nadeterminao do grupo familiar em identificarcomo Tkna os seus membros mais jovens(duas meninas e um menino), filhos de ummestio (de pai branco e me Tkna do clAua e da metade das Plantas) e de uma Tknado cl Manguari e da metade das Aves. Dentrodos princpios estruturais de organizao tnicaTkna, essas crianas no poderiam jamais serconsideradas membros do grupo, uma vez queno possuam status clnico, posto que este serecebe pela linha paterna. O av das crianas,sogro do mestio, percebendo que a no-incor-

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    porao definitiva de seus netos na comunidadeTkna constitua uma ameaa para eles no quetange aos seus direitos sobre a terra da reserva,decidiu promover a identificao tnica dosmembros esprios de sua famlia. necessrioacentuar que isso ocorreu num perodo espe-cialmente crtico, quando seus patrcios foravama expulso da reserva das famlias de regionais,no ndios, que nela habitavam como arren-datrios de terras. Sendo membro do cl Man-guari, portanto da metade oposta que pertencia me do mestio, seu genro, fez com querecebessem nomes do cl materno submetendo-os ao ritual de nominao. Graas a essa mani-pulao das regras de filiao clnica (e assimda identidade tnica), pde regularizar a situaodos netos; de um lado, rompeu com o princpiode descendncia patrilinear, sacramentalizandopelo ritual a transmisso de nomes do cl Aua;de outro lado, pde obedecer ao princpioigualmente importante da exogamia das meta-des, dando s crianas um pai Aua, compa-tvel com sua filha, me de seus netos, membrodo cl Manguari por filiao patrilinear. No casoobservado h de se notar que duas ordens depresso eram sentidas por essa famlia: uma, departe da prpria comunidade Tkna deMariuau, ciosa de no permitir intrusos em suasterras; outra, de parte do Posto Indgena, quediscrimina sistematicamente os moradores nondios da reserva. Ser Tkna para essa famliaera firmar seu direito terra e proteo queembora insuficiente necessria numa regiode conflitos entre ndios e patres, seringueirose seringalistas. A deciso do chefe da famliaem assimilar seus netos (e seu genro) sociedade Tkna sintomtico do papel dasociedade nacional no ativamento do processode identificao tnica.

    A sociedade nacional exerce outros tiposde presso, nem sempre com resultados posi-tivos, entendendo-se por isso sua contribuio se bem que indireta para o fortalecimentoda identidade tnica e nos termos do exemploexaminado acima. A situao de ndios dereserva que parece ensejar essa modalidadede identificao, pondo em prtica mecanismosscio-culturais consistentes com formas orga-nizadoras ainda vivas nas sociedades tribais. Aanlise comparada desse caso Tkna com um

    outro caso Terna, feita num dos artigos citados(R. Cardoso de Oliveira, 1960b), sugere que aidentificao tnica alcanada por manipulaesde regras sociais um fenmeno mais geral doque se poderia imaginar no quadro das relaesentre ndios e brancos.26 O fenmeno docaboclismo (R. Cardoso de Oliveira, 1964,cap. V, passim) pode ser considerado como oreverso da medalha: o ndio procurando evitarsua identificao tribal (como o caso do Calixto,culturalmente Tkuna) ou mistificando-a (comoo do cafuzo, filho de pai Tkna), ambosempenhados em aparecer como civilizados,uma vez que, vivendo fora da reserva, no oumuito pouco se beneficiaram de uma aoprotetora ainda menos eficaz em terras fora dareserva, ao passo que, nessas condies, umaidentificao tribal s poderia lhes trazerdificuldade na interao com os regionais.27Cabe lembrar, a propsito, que em Santa Ritado Weil, uma das povoaes brasileiras prximade igaraps habitados por ndios Tkna e depropriedade de seringalistas, a discriminao aondio chegou ao ponto da misso protestante localdestinar aos Tkna templos prprios para oscultos evanglicos e para suas crianas escolaseparada da dos filhos dos regionais (R. Cardosode Oliveira, 1964:113-14). E isso se deu porpresso da sociedade brasileira local, para nose contaminar das impurezas do convvio com

    26. A anlise do sistema de nominao tomado como baseda identificao tnica dos Kaingang e dos Xokleng, apenasesboada por Silvio Coelho dos Santos (Santos, 1970:115-16), parece indicar iguais tendncias, particularmente comreferncia s relaes dos primeiros com a sociedade nacio-nal.27. Os dois casos esto analisados na obra citada; bastariamencionar aqui o fato do Calixto ter sido o principal infor-mante de Curt Nimuendaju e de ser ele filho de pai alemo eme Tkna: vive como Tkna, apesar de suas ambigida-des, num igarap no alto rio Solimes, no municpio de SoPaulo de Olivena, mas apesar disso v os Tkna com osolhos dos brancos tanto quanto v a si mesmo, isto , atra-vs dos esteritipos negativos forjados pela sociedade regi-onal. assim um caso extremo de caboclismo, comoassim nos referimos ao modo do ndio ver-se a si mesmocomo caboclo uma categoria pejorativa elaborada pelobranco. Quanto ao cafuzo, um indivduo de tez negra ealguns traos indgenas, foi nosso cozinheiro durante toda aexpedio de 1959; denunciou-se Tkna somente quandodas festas da moa nova ocorrida no igarap Belm, oca-sio em que no resistiu de invocar sua identidade Tkna(surrended identity) para mais plenamente participar dasdanas e bebedeiras que cercavam os rituais de iniciao edas festividades que se prolongaram por trs dias.

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    o ndio, ou caboclo como so denominadosregionalmente os Tkna. Isso indicativo dosobstculos que encontram os ndios parasobreviver sem constrangimento na ordemnacional.

    Dentre as compulses desagregadoras quemais eficazmente afetam os grupos indgenasem contato sistemtico com a sociedadenacional, estariam as que atingem diretamenteos seus contingentes infantis. A permannciacontnua em situaes de discriminao despertadesde cedo nas crianas uma conscincianegativa de si ou, em termos de Erikson, umaidentidade negativa que se prolongar najuventude e maturidade, raramente transformvelnuma identidade positiva capaz de auxiliar oindivduo ou o grupo a enfrentar situaescrticas.28 claro que a expectativa de umcomportamento positivo poder variar deacordo com os valores tribais (varivel cultural)e a situao de contato (varivel sociolgica:insero ou no do grupo tribal num sistema defrico intertnica).29 Jlio C. Melatti mostra,por exemplo, como os Xerente no se intimidamno contato com os brancos e sabem enfrent-los altivamente como que afirmando suaidentidade tnica (Melatti, 1967:151), enquantoos Krah, ao contrrio, buscam vencer osbrancos transformando-se neles, como conta omito de auk e deste passando ao atravsde movimentos messinicos na esperana de setornarem civilizados.30 Nos quadros do processo

    de identificao tnica no parece haver maioralienao da identidade tribal. E homlogo como Melatti indicou (Melatti, 1967:157-58) aos diversos casos que enfeixamos na denomi-nao de caboclismos, a que j nos referimos.Porm, ainda que no se possa dizer que todaidentidade negativa seja engendrada na infncia(e mesmo com relao ao caso Krah no sabe-mos em que escala as crianas absorvem astenses da frico intertnica), seria ingnuomenosprezar a possibilidade de serem inculca-dos, j nessa fase etria, os valores mais nega-tivos a deteriorarem a conscincia tnica.

    Mary E. Goodman, em sua pesquisa sobreo surgimento de conscincia racial em crian-as,31 chega surpreendente concluso de queelas j aos quatro anos de idade podemdemonstrar claros sinais de intolerncia racial,portanto podemos dizer sinais de que comeaa se constituir em tenra idade uma identidadetnica. No importa que a pesquisa dessaantroploga tenha sido feita com crianas norte-americanas, pois em circunstncias de tensesraciais, o que poderia variar (essa uma hip-tese) seria apenas a manifestao do preconceitoou a forma da discriminao. Em nossa pesquisajunto aos ndios Terna, tivemos a oportunidadede tentar verificar a magnitude do preconceitoracial entre alunos de uma escola bastanteprxima de uma reserva indgena. Escolheu-seento uma escola primria da povoao deDuque Estrada, a oito quilmetros da aldeia deCachoeirinha. Contamos com a colaborao daprofessora que aceitou nossa sugesto desolicitar s crianas (entre sete e onze anos)pequenas composies sobre o ndio, seushbitos e costumes. A anlise desses trabalhosescolares demonstraria o que para ns foisurpreendente na poca (1957) que a maiorparte deles falava de um ndio abstrato, de arcoe flexa, adorando o sol e a lua, i.e., o ndiopresente nos livros didticos; e os poucos alunosque mencionaram os Terna o fizeram chaman-

    28. A identidade negativa a soma de todas aquelas iden-tificaes e os fragmentos de identidade que o indivduo temque reprimir em si mesmo por serem indesejveis ou irre-conciliveis, ou pela qual indivduos atpicos e minoriasmarcadas so foradas a se sentir diferentes. No caso decrises agravadas, um indivduo (ou mesmo um grupo) podeperder as esperanas de ter habilidade para conter esseselementos negativos numa identidade positiva (Erikson,1970:733).29. Os critrios de insero num sistema de fricointertnica, bem como uma classificao dos grupos indge-nas brasileiros em obedincia a esses critrios, foram porns elaborados numa comunicao apresentada em 1969num simpsio realizado no Burg Wartenstein, na ustria(R. Cardoso de Oliveira & L. de Castro Faria, 1971).30. J. C. Melatti mostra a relao entre o mito Auk e omessianismo Krah, descrevendo um movimento ocorridoem 1951 (Melatti, 1967:151-55). Esse mito, que est pre-sente tambm em outros grupos Timbira, foi analisado porDa Matta, que o classificou de antimito precisamente porseu carter dinmico, capaz de permitir uma passagempara uma ordem mais complexa, aquela da ideologia polti-ca (Da Matta, 1970:104).

    31. Diz Goodman ... que crianas pequenas algumas ve-zes prestam uma ateno muito pequena raa, que elas sesto prontas para prestar ateno raa quando comeama prestar ateno a outros atributos fsica e socialmentesignificativos (como idade e sexo) e que a intensidade e tipode ateno prestada por crianas diferentes variam comouma funo de certos fatores interrelacionados (Goodman,1968:245).

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    do-os de bugres (o equivalente do caboclodo Solimes), decadentes, misturados,alcolatras etc., sempre comparando-os comos verdadeiros ndios, certamente apreendidosnas prelees de sua professora. Mas o maissignificativo desse episdio foi o fato dos trsalunos Terna residentes em Duque Estrada reagirem como se no fosse com eles, escre-vendo praticamente a mesma coisa (se bem quecom muito menor entusiasmo) que seus colegasdo primeiro grupo. Se parte das crianas nohouvesse se referido aos Terna como ndiosdecadentes, poder-se-ia pensar que a meno categoria abstrata ndio que no terialevado os alunos Terna a nela se classificarem pois o que esse ndio genrico, seno umaabstrao?32 Contudo, o que parece mais plau-svel que eles no se permitiram assumir suaidentidade tnica num ambiente nitidamenteadverso, com medo talvez de se colocarem elesprprios como temas de debate e que por certoteriam muito a perder, pois no se bugreimpunemente no sul de Mato Grosso.

    5 Possibilidades de explicao

    As modalidades de identificao tnicaselecionadas para exame no pretenderamesgotar todas as possibilidades de emergnciada identidade tnica. Nem podemos esperar quepossamos esgot-las, pois tal como os mitos aaceitarmos os argumentos de Lvi-Strauss oconjunto dos modos de identificao seriam daordem do discurso (e particularmente de umdiscurso ideolgico); a no ser que a populao ou o sistema intertnico (viz. Intertribal),diramos ns se extinguisse, esse conjuntojamais estaria encerrado.33 Portanto, no estaria

    aqui a razo do carter hipottico que atribumos maioria de nossas afirmaes, mas no fato deno havermos chegado a elaborar modelosmais completos de sistemas de represen-taes; a saber, de no havermos analisado noslimites deste ensaio ao menos uma ideologiatnica, produzida por um grupo tnico particular,inserido numa situao de conjuno intertnica(leia-se, tambm, intertribal). O estudo intensivode uma ideologia tnica (e um estudo desse teorreservamo-nos fazer proximamente juntos aosTerna) permitir construir um conjunto articu-lado de modos de identificao tnica comodescrio de um processo cujo nexo s poderser encontrado (numa primeira aproximao) nointerior de um sistema de valores. E aqui queuma abordagem estruturalista no amplo sentidoque lhe confere Jean Piaget (Piaget, 1968 esp.Conclusion) se reconcilia com uma anlisede contedos culturais; mas preciso dizer quea cultura aqui significa valores, no sentido precisoque lhe deu Barth, incluindo a coexistncia dediferentes valores no interior de uma cultura(Barth, 1966:12); mas significa tambm pa-dro, no sentido que lhe d Goodenough(Goodenough, 1970:98-104), de perceber, crer,avaliar e agir.

    Ora, num sistema intertnico natural queemerja o que se poderia chamar de cultura docontato expresso que preferimos em lugardo consagrado sistema intercultural, uma vezque este costuma representar uma amlgama,uma mistura genrica de coisas diversas,indeterminada, muitas vezes descrito como umaresultante de ganhos e perdas (aculturao)entre sistemas culturais em conjuno. nointerior de uma determinada cultura de contatoque poderemos nos propor a buscar soluespara problemas de carter geral, como o graude sistematizao e consistncia entre diferentesvalores que coexistem numa cultura,34 tantoquanto questes mais especficas como o padrode coerncia entre o sistema de valores (qual-quer que seja o grau de integrao ou consis-tncia) e os mecanismos de identificao tnica.Sendo as categorias tnicas componentes de um

    32. A percepo do ndio, como categoria tnica, me-receria investigaes comparativas especficas, destinadasa mostrar um painel de ideologias tnicas e de como soelaboradas pelos diferentes sistemas cognitivos tribais.33. Cf. Lvi-Strauss, 1964:15. Completando seu pensamen-to, diz: De nada valeria ento reprovarmos a um lingistaque escrevesse a gramtica de uma lngua sem ter registradoa totalidade de linguagens pronunciadas desde que esta ln-gua existe, e sem conhecer as mudanas verbais que terolugar enquanto ela existir. A experincia prova que um n-mero irrisrio de frases, em comparao com todas aquelasque ele tinha podido recolher, teoricamente permite aolingista elaborar uma gramtica da lngua que ele estuda(ibidem).

    34. O problema, da forma como o vejo, compreendercomo qualquer grau de sistematizao e consistncia esta-belecido e mantido entre os valores diferentes que coexis-tem numa cultura (Barth, 1966:12).

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    sistema ideolgico, esto carregadas de valor;e os valores so fatos empricos, passveis deserem descobertos, pois no so construesdo analista mas sim pontos de vista dos prpriosagentes.35 Trata-se, assim, como j se assi-nalou, de apreender modelos conscientescomo preliminares de uma anlise estrutural. Emse tratando de valores, h de se mencionar oproblema da escolha; por acaso no a identi-ficao tnica nos contextos em que a temosexaminado de algum modo uma escolha?

    Se temos por projeto tomar a identidadetnica e o processo de sua emergncia (aidentificao) como nosso objeto de pesquisa e,como tal, susceptvel de estruturao, sernecessrio ao menos nos interrogarmos sobreos caminhos que pode seguir a investigaoantropolgica. Se a identidade tnica um valor,enquanto categoria ideologicamente valorizada,ela passvel de uma certa escolha ou opoem situaes determinadas, algumas delasexaminadas pginas atrs. Barth prope ummodelo, fundado na teoria dos jogos (gametheory), por meio do qual nos habilita a trabalharcom a dimenso transacional da identidadeno sentido em que, numa relao entre A e B,ambos os termos tentam assegurar que o valorganho seja sempre maior (ou pelo menos igual)ao valor perdido.36 Trata-se, portanto, demodelos estratgicos (escolhas estratgicas),cuja utilizao pode nos levar a descobrir asconstries estruturais que uma situaototalizadora impe escolha aberta dosindivduos e dos grupos; so restries escolhaque, na teoria dos jogos, so expressas comoregras definidoras do jogo.37 Essa metodo-

    logia, de carter formalizante, vem sendodesenvolvida por Barth com o objetivo deelaborar modelos gerativos de organizaosocial38 e que nos parece ser da maior fecun-didade para a descrio e anlise de situaesintertnicas particulares, sempre que a mani-pulao da identidade tnica for redutvel aesquemas transacionais. Mas a teoria dos jogos,subjacente ao modelo, no nos parece capaz detranscender o plano emprico e questionar aestrutura da identificao tnica alm de suamanifestao em tal ou qual sociedade ousituao de contato.39

    Goodenough (1965) desenvolveu um mode-lo bastante engenhoso para captar o que chamade gramaticalidade das identidades sociais,40mas, se nossa interpretao correta, ele omodelo melhor se aplica a sistemas culturais

    35. Sustento que esses valores so fatos empricos quepodem ser descobertos eles no so constructos do analis-ta mas opinies sustentadas pelos prprios agentes. (Barth,1966:12).36. Ela constituda por um fluxo bsico de prestaesentre dois ou mais atores; em sua forma elementar, Aoferece prestaes x e B retribui com prestaes y,assim A x y B. Alm disso, de acordo com a definio,cada parte tenta consistentemente assegurar que o valorganho seja maior do que o valor perdido. Isso define doislimites: para A, x < y e para B, x > y (Barth, 1966:13).37. A natureza dessas vantagens e as vrias restries sescolhas abertas aos indivduos dependem das caractersti-cas estruturais da situao total que, na Teoria dos Jogos,so expressas como regras que definem o jogo. Em tal estru-tura, os grupos que realmente emergem se relacionam destaforma s caractersticas estruturais ou condies de qual

    quer tipo que oferecem as bases para o desenvolvimento deuma comunidade de interesses dos membros do grupo (Barth,1966:13).38. O formalismo particular da Teoria dos Jogos no toimportante para os propsitos antropolgicos como ocarter fundamental da teoria como um modelo gerativo.Ela pode servir como um prottipo para um modelo pro-cessual de interao e, concentrando-me em transao comoo isolado analtico no campo da organizao social, estouprivilegiando o que considero o aspecto mais crucial dateoria para os nossos propsitos (Barth, 1966:5).39. Um modelo bastante elaborado, no sentido de suaformalizao, o que nos prope Jean Piaget (1965:100-42). Permite-nos trabalhar com estruturas operatrias abran-gendo trs realidades sociais fundamentais que para Piagetso as regras, os valores e os signos. Toda sociedade umsistema de obrigaes (regras), de trocas (valores) e de sm-bolos convencionais que servem de expresso s regras eaos valores (signos) (p.100). Graas aplicao consisten-te de esquemas logsticos, diferentes aspectos dos fenme-nos de troca e interao, dos valores individuais e coletivos,so equacionados em termos de sistemas de equilbrio, ondeseus rompimentos so vistos como crises. Como se v, pormais convidativa que seja a reflexo esta tentativa delogicizar os fatos sociais, particularmente aqueles que di-zem respeito s questes aqui propostas, a teoria mais geralque est por trs de Piaget (Pareto, Durkheim, Kelsen porele citados) no d conta do carter dinmico e muitasvezes conflituoso dos sistemas de interao. Quanto ao pro-blema especfico da identificao tnica, o modelo, entre-tanto, apresenta pontos sugestivos, razo pela qual oestamos mencionando nesta nota, mais como um conviteao exame pelo leitor interessado em anlises formais. Comouma tcnica de anlise formal talvez possa oferecer maiorrentabilidade, em nveis mais abstratos e de maior generali-dade, do que a Teoria dos Jogos utilizada por Barth pdeapresentar na pesquisa emprica.40. Esse cdigo ou gramtica da identidade social se fundaem princpios dentre os quais destacamos dois: 1) que todoindivduo possui mais identidades do que poderia assumir aum s tempo numa dada interao; 2) que para qualquer

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    OLIVEIRA, ROBERTO CARDOSO DE. Identidade tnica, identificao e manipulao

    com alto grau de congruncia41 e para os quaisum cdigo social seria equivalente ao idiomafalado pelos indivduos-membros. Da porque umsistema monoltico de relaes de status (dedireitos e deveres) pode ser equiparado a umsistema equivalente de identidades sociais, masno tnicas. O caso dos Truk, tomado comoilustrao por Goodenough, indica boas possi-bilidades de se dar conta do fenmeno deidentificao social em termos de relaes destatus, descrevendo suas dimenses com orecurso tcnico de uma escala de Guttman.O que se tratou de entender ento, porm, foramas relaes de identidade-status no mbito deuma cultura determinada (e guardada suainteireza, ao menos para fins analticos), e node se penetrar no interior de um outro sistemade relaes, sincrtico por natureza, tal como osistema intertnico este sim a base de inteli-gibilidade da identificao tnica. A cultura docontato, entendida principalmente como umsistema de valores altamente dinmico, portanto,susceptvel de fornecer o rationale das flutua-es da identidade tnica (ou, em outros termos,a lgica da manipulao dessa identidade),poder permitir a elaborao de uma tipologiacapaz de conter diferentes culturas do contatoe de conformidade com a maior ou menordistncia e oposio das culturas em conjun-o, da maior ou menor tenso e conflito entre

    os grupos tnicos em contato. Nesse sentido,essa cultura do contato pode ser mais do queum sistema de valores, sendo o conjunto derepresentaes (em que se incluem tambm osvalores) que um grupo tnico faz da situao decontato em que est inserido e nos termos daqual classifica (identifica) a si prprio e aosoutros.

    6 Concluso

    Na escala em que esto os nossos conheci-mentos sobre a identidade e a identificaotnicas, parece-nos apropriado distinguir pelomenos trs tipos de situaes de contato (comsuas correlatas culturas do contato):

    1) a que envolve unidades tnicas simetri-camente relacionadas (como esto ilustradas emmuitas das relaes intertribais no Xingu);

    2) a que envolve unidades assimtricas ehierarquicamente justapostas (como exempli-ficam as relaes intertribais que tiveram lugarno Chaco no perodo conquista e das quais secapta hoje formas remanescentes no sul de MatoGrosso);

    3) a que envolve unidades tnicas assime-tricamente relacionadas, mas presas a umsistema de dominao e sujeio (nas reas defrico intertnica ou como bem representamas relaes entre ndios e brancos na forma emque se do em contextos coloniais, incluindo ao do colonialismo interno). O primeiro tipotalvez permanea mais como uma figura terica,uma vez que rareiam progressivamente sistemasde relaes intertribais de carter simtrico. Osegundo tipo corresponde emergncia desistemas de estratificao portanto de status, tendo por marco diferencial a categoria tnicados indivduos ou grupos em contato; tais siste-mas podem ser encontrados em contextos intertri-bais, como os que nos referimos na discussodos remanescentes Guan, como tambm emcontextos altamente complexos como so associedades de castas.42 Finalmente, o terceiro

    identidade assumida por algum h apenas um nmero limi-tado de identidades combinadas (matching identities), i.e.,susceptveis de serem assumidas pelo outro indivduo,contraparte da interao (Cf. Goodenough, 1965:5-6). Damesma maneira que um professor no pode s-lo a todoinstante e em todo lugar, ele no poderia assumir todas suasidentidades (ex.: pai, marido, consultor tcnico, chefe dedepartamento etc.) a um s tempo numa mesma interao.De resto, se assumisse a de professor junto a seu filho ou asua mulher, a relao seria to pouco congruente como seassumisse a de pai diante de seus alunos ou de seus colegas deConselho Tcnico. A essa incongruncia de identidade queGoodenough chama de no-gramaticalidade, sendo que agramaticalidade da relao de identidade estaria na consti-tuio de pares de identidade combinadas (professor-aluno,pai-filho, marido-mulher etc.).41. No se quer dizer com isso que tais sistemas culturaisconstituam uma totalidade absolutamente integrada, no sen-tido, alis, muito bem criticado por Barth (1966:12); nemqueremos dizer, tambm, que os sistemas intertnicos noengendrem seus prprios cdigos, suficientemente articula-dos para permitir serem tratados como idiomas comuns,i.e., falados pelos grupos tnicos em contato contnuo esistemtico. Porm, o mtodo de Goodenough, por estarem carter probatrio, ainda no nos parece oferecer segu-ras perspectivas para a anlise da identificao tnica.

    42. Cf. Louis Dumont, 1966. Nessa obra o Autor teorizabrilhantemente sobre o sistema de castas, revelando todauma ideologia hierrquica subjacente. Uma investigao doprocesso de identificao tnica em tal contexto, minadopela oposio religiosa do puro e do impuro, muitos nospoderia ensinar.

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    SOCIEDADE E CULTURA, V. 6, N. 2, JUL./DEZ. 2003, P. 117-131

    tipo corresponde s relaes que tm lugarno mbito de uma estrutura de classes, nosentido em que as relaes de dominao-sujeio obedecem a uma dinmica de ordemdiversa daquela que tem lugar num sistema deestratificao, expressa no tipo anterior.43Evidentemente no so tipos weberianos, poisse mesclam sempre de algum modo e suadistino somente vlida para fins analticos.Se representssemos estes tipos comocrculos, verificaramos que eles teriam em suasreas de interseco um conjunto de elementoscomuns e que poderamos imaginar como sendopropriedades estruturais do processo deidentificao tnica:

    a) o carter contrastivo da identidadetnica e seu forte teor de oposiocom vistas afirmao individual ougrupal;

    b) sua manipulao em situaes de ambi-gidade, quando abrem-se diante doindivduo ou do grupo alternativas paraa escolha (de identidade tnicas) base de critrios de ganhos e perdas(critrios de valor e no como meca-nismos de aculturao) na situao decontato.44

    Qual a importncia desse modelo tentativode identificao tnica para o estudo das

    relaes intertnicas em geral? A resposta aessa pergunta certamente poder ser melhorencontrada aguardando-se o desenvolvimentode estudos que venham a absorver o modelo.Acreditamos, porm, que o conceito de identi-dade tnica, como categoria ideolgica (naforma que a definimos), tanto quanto a anlisedo processo de identificao, revelam umterreno bastante firme para se pisar na buscade um conhecimento mais sistemtico dasrelaes intertnicas. A problemtica daidentidade e da identificao tnicas, desde quesempre seja contextualizada, i.e., relacionadacom a natureza (ou tipo) da situao decontato, promete ter uma bastante razovelpossibilidade se nos lcito supor deimplementar a investigao emprica, pois tocauma esfera crucial de qualquer sistema derelaes sociais: a da relao entre o indivduoe o grupo; constitui a ponte entre o indivduo e asociedade, em termos semelhantes (se bem queno idnticos) ao que representa o papel (role)numa teoria como a de Nadel (1957:20). E, nostermos de uma teoria das relaes intertnicas,fenmenos como as flutuaes da identidadetnica graas s possibilidades abertas suamanipulao e o exerccio da identificao(tnica), devem ser interpretados como o esforomuitas vezes dramtico do indivduo e do grupopara lograrem sua sobrevivncia social.

    43. Cf. Rodolfo Stavenhagen, 1962. A distino entre sis-tema de estratificao social e estrutura de classes estmuito bem demonstrada nesse artigo.44. base de nossa anlise somos levados a concluir pelooposto da considerao feita por Goodenough de que mais provvel que os cenrios sociais afetem a maneiracomo uma pessoa se conduz na mesma relao de identidadedo que governem a seleo de identidade, mas pondera emtempo Goodenough isto um assunto que requer investi-gao emprica (1965:6). Sua concluso parece consisten-te com relao a sistemas de papis e/ou de status, em ter-mos dos quais pretende traduzir um sistema de identidadessociais.