IDEOLOGIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA -...

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IDEOLOGIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA Márcio Luis Marangon 1 Claudionei Vicente Cassol 2 O que é este poder invisível que delimita o ser humano? O que é esta força que ora atua como ciência que contempla a formação das idéias e a compreende, ora se torna um processo de formação social, carregando em si uma história e ajudando a construir história humana, e ao mesmo tempo pode tornar-se uma forma de coação social e /ou alienação, levando o ser humano a estagnação de pensamento e a exclusão da dialética crítica dentre os processos vitais, ocasionando os extremos, tanto do radicalismo, quanto da aceitação total e completa do “suporte” que as correntes sóciopolíticos, ou socioeconômicas oferecem sobre o disfarce de “tendências sociais.” Por mais que se queira esconder ou negar, a disparidade, a injustiça e a desigualdade social são, de certa forma, reflexo da ascensão de uma minoria que comanda as principais vias de acesso do homem a suas questões vitais: alimentícia, vestuário, comunicações, moradia, transportes e, enfim, nos mais diversos setores. Isso só ocorre porque há uma aceitação, uma alienação coletiva que tem como origem a ideologia. Ai nos vem o problema a ser entendido: Como a ideologia se transforma em processo de formação de idéias erradas e influencia de modo negativo a sociedade? Nos diz Guareschi (1994, P.15) “a ideologia, devido a nossas limitações humanas e históricas, está presente em todos nós. Somos impregnados pelas ideologias...”. E elas estão situadas na política, quando política se torna somente sinônimo de siglas partidárias, ou politicagens vãs e ineficientes; na escola, quando esta se torna um simples instrumento de repetição e assimilação de conhecimento; na ética e moral, quando poucos são os privilegiados; na religião, quando esta passa a ser um processo de alienação fazendo da esperança um modo de estagnação da criticidade necessária, e até mesmo na família, quando a família passa a ser vista somente como forma de construção financeira e ascensão individual perante a sociedade. Contanto, a compreensão dos efeitos da ideologia, essencial na formação de um ser humano critico, somente pode ocorrer com uma análise histórica que nos faça perceber o que causa a “adaptação” ao suporte social, fazendo uma revolução no nosso modo de pensar e suscitando uma transmutação de um 1 Acadêmico do Curso de Filosofia VI semestre – URI-FW. 2 Professor Orientador da monografia – URI/FW

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IDEOLOGIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA

Márcio Luis Marangon1 Claudionei Vicente Cassol2

O que é este poder invisível que delimita o ser humano? O que é esta força que ora atua como

ciência que contempla a formação das idéias e a compreende, ora se torna um processo de formação social,

carregando em si uma história e ajudando a construir história humana, e ao mesmo tempo pode tornar-se

uma forma de coação social e /ou alienação, levando o ser humano a estagnação de pensamento e a

exclusão da dialética crítica dentre os processos vitais, ocasionando os extremos, tanto do radicalismo,

quanto da aceitação total e completa do “suporte” que as correntes sóciopolíticos, ou socioeconômicas

oferecem sobre o disfarce de “tendências sociais.”

Por mais que se queira esconder ou negar, a disparidade, a injustiça e a desigualdade social são, de

certa forma, reflexo da ascensão de uma minoria que comanda as principais vias de acesso do homem a

suas questões vitais: alimentícia, vestuário, comunicações, moradia, transportes e, enfim, nos mais diversos

setores. Isso só ocorre porque há uma aceitação, uma alienação coletiva que tem como origem a ideologia. Ai

nos vem o problema a ser entendido: Como a ideologia se transforma em processo de formação de idéias

erradas e influencia de modo negativo a sociedade?

Nos diz Guareschi (1994, P.15) “a ideologia, devido a nossas limitações humanas e históricas, está

presente em todos nós. Somos impregnados pelas ideologias...”. E elas estão situadas na política, quando

política se torna somente sinônimo de siglas partidárias, ou politicagens vãs e ineficientes; na escola, quando

esta se torna um simples instrumento de repetição e assimilação de conhecimento; na ética e moral, quando

poucos são os privilegiados; na religião, quando esta passa a ser um processo de alienação fazendo da

esperança um modo de estagnação da criticidade necessária, e até mesmo na família, quando a família

passa a ser vista somente como forma de construção financeira e ascensão individual perante a sociedade.

Contanto, a compreensão dos efeitos da ideologia, essencial na formação de um ser humano critico,

somente pode ocorrer com uma análise histórica que nos faça perceber o que causa a “adaptação” ao

suporte social, fazendo uma revolução no nosso modo de pensar e suscitando uma transmutação de um 1 Acadêmico do Curso de Filosofia VI semestre – URI-FW.

2 Professor Orientador da monografia – URI/FW

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modo positivo para um modo dialético, capaz de produzir formas de analisar as ideologias vigentes e se opor

a elas quando necessário.

1 Ideologia: conceitos e relações

O termo aparece primeiramente na França após a Revolução Francesa, mais precisamente em 1801,

em uma obra de Destutt de Tracy, denominada, Eléments d’Idéologie (Elementos de Ideologia). Tracy3,

juntamente com seus companheiros Cabanis, De Gérando e Volney, elaborou uma teoria sobre as relações

responsáveis pela formação de nossas idéias, utilizando-se de métodos de observação, influenciados pela

cultura materialista4.

A teoria ganhou importância tal que os ideólogos chegaram a ser partidários de Napoleão Bonaparte

no golpe de 18 Brumário, sendo que vários adeptos foram nomeados senadores ou tribunos. Porém,

insatisfeitos criticaram e foram criticados. Napoleão atingido pelas críticas contra-atacou dizendo que todas as

desgraças que afligiam a França deveriam ser atribuídas a ideologia, pois a teoria ideológica buscava as

causas primeiras em vez de adaptar as leis dos povos ao que dizia o coração e as lições da história. O

pensamento crítico dos ideólogos que a princípio era anti-teológico, antimetafísico e antimonárquico, passou

a ser visto, após estes acontecimentos, como “metafísica tenebrosa” e como ignorante perante o realismo

político da época sob o ponto de vista dos ideólogos Alemães, que preferia para suas críticas utilizar-se do

mesmo discurso e pensamento de Bonaparte, dizendo ser a ideologia um sistema desconhecedor da relação

idéia/realidade.

Foi com o Comte que a palavra voltou a se aproximar de seu sentido natural, porém, agora com dois

significados. O primeiro, como estudo da formação das idéias a partir da observação dos fatos; o segundo

como conjunto de idéias de uma época. Desse modo, a observação do conjunto das idéias passa a explicar a

totalidade dos fenômenos naturais em cada fase do espírito humano e ideologia torna-se a teoria do

conhecimento da formação das idéias, importante para o ser humano positivista, cujo lema era: “saber para

prever, prever para prover” (CHAUÍ, 2004, p.29). Torna-se importante no sentido de que, recolhendo as

opiniões, podia organizar e sistematizar as mesmas corrigindo-as quando necessário, eliminando todo o

elemento religioso e metafísico existente e dando a todas as opiniões algo de conhecimento científico,

antecedendo as ações.

Chauí (2004, p.108) em sua obra “O que é Ideologia” tenta resumir todo esse percurso de construção

do termo “ideologia” dizendo:

3 As informações repassadas sobre Destutt de Tracy foram retiradas de CHAUÍ, Marilena. O que é Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2004. 4 Na época os materialistas admitiam apenas causas naturais físicas, tanto para idéias como para ações humanas, e só aceitavam conhecimentos científicos baseados na observação e na

experimentação.

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A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade, o que devem pensar e como devem pensar, oq eu devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo aplicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e fornecer aos membros das sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o estado.

1.1 Uma análise da ideologia

É preciso ter uma visão simples e clara do que chamamos Ideologia. Para melhor compreendê-la

precisamos quebrar os paradigmas cientifistas, ideológicos, de fala difícil, que dificultam a informação ou o

acesso à mesma e delimitam seu entendimento. O longo caminho que acompanha a Ideologia desde Destutt,

passando por Napoleão e a inversão de seu sentido, passando por Marx e seguindo seu caminho, traz em si

uma trajetória de várias interpretações e suscita muitas análises.

Em Marx, o termo vai encontrar um conceito crítico, uma forma de ilusão (LÖWY: 2002, p.12); em

Lênin a terminologia encontrará um formato de expressão de realidade social (LÖWY, 2002: p.12). Podemos

citar também a visão de Durkheim (1858-1917), ou melhor, a crítica que ele faz citando ideologia em sua

obra “As regras do método sociológico” (1895) como o conhecimento da sociedade que não respeita os

critérios de separação entre o sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento, como um conhecimento

formado por pré-conceitos e pré-noções subjetivas e individuais. Para Durkheim, uma atitude ideológica é

errônea, pois o pensador não toma distância em relação à sociedade ou pensamento que vai estudar, porque

por seus pré-conceitos oscilam das idéias aos fatos e não dos fatos às idéias e também porque deste modo à

ciência é substituída pela invenção pessoal5.

Em Mannheim (1893-1947) teremos uma distinção interna. Por um lado, como forma de legitimação

da ordem estabelecida e por outro como utopia, forma em que se enquadra uma dimensão critica. Löwy

(2002, p.13) chama a atenção em sua obra “Ideologias e ciência social” quando descreve a concepção de

ideologia de Mannheim como “visão social de mundo”, ou seja, representações, idéias, valores, enfim, um

conjunto que determina a sociedade em sua época por um determinado ponto de vista.

Não podemos deixar de citar Gramsci (1891-1937), concebendo a ideologia como uma historicidade

orgânica, fazendo parte de uma estrutura social e mostrando que as verdades “absolutas” não são tão

absolutas assim, nem mesmo eternas.

5 As informações apresentadas até o momento, estão baseadas em CHAUÍ, Marilena. O que é Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2004.

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O certo, como nos diz Guareschi (1994, p.40), é que “a ideologia, devido a nossas limitações

humanas e históricas, está presente em todos nós. Somos impregnados pelas ideologias...”, e ela se torna a

própria visão de mundo, ora como estudo e análise das idéias, ora como expressão de nossas opiniões e,

ainda, como meio de concepção idealista, traz a conexão de idéias, de consciências. Uma conexão social,

responsável pelas formações sociais, composições de classes, mudanças políticas e até mesmo culturais.

1.2 A ideologia na história6

A ideologia, anda junto com a história e se faz presente em toda a história, tanto que já era discutida

desde a cultura grega e romana. Se olharmos, por exemplo, a luta pelo poder entre os príncipes vamos

perceber proximidade com a atualidade. Guareschi (1992. p.170) quando cita Bacon procura demonstrar essa

relação histórica da ideologia ao estudar as quatro classes de ídolos:

[...] os da caverna: nossas idiossincracias, caráter; da tribo: superstições, paixões; da praça: as inter-relações humanas, principalmente através da linguagem; e os ídolos do teatro: a transmissão das tradições e doutrinas dogmáticas e autoritárias, através do teatro, que seriam, hoje, os Meios de Comunicação Social.

Mas se tratando de ideologia podemos começar analisando a cultura grega e caminhando em direção

a atualidade. Como Chauí (2004, p.11) vamos partir do exemplo do questionamento sobre o “movimento”

entre os gregos, que vai desencadear, em uma de suas formas, na teoria das quatro causas de Aristóteles, as

quais não possuem o mesmo valor, a “práxis” (ética e política), já se torna superior a “poésis” (o trabalho).

No que se refere à ideologia na cultura grega, a “polis” (surgida da desestruturação das

comunidades), foi dominada por uma elite local (os eupátrias), que cuidavam da administração e subjugavam

a população preservando um caráter aristocrático, onde poucos exerciam a democracia (em sua etimologia -

demos= povo, cracia = poder – o povo no poder). De Esparta podemos destacar a Oligarquia (oligo = poucos,

arquia = governo) sua separação social de vida e de repartição restrita e a subjugação do casamento (simples

forma para reprodução e manutenção dos contingentes militares), obrigatório depois dos 30 anos de idade,

também não deixa de ter um caracter ideológico. Não poderíamos deixar de citar de Atenas, a escravidão e a

falsa democracia, onde somente os homens livres e aí nascidos eram considerados cidadãos. Mulheres,

escravos e estrangeiros, não tinham direitos políticos, ou seja, de 320 mil habitantes (aproximadamente),

apenas 40 mil decidiam sobre a cidade7.

6 Neste ponto nos focaremos na questão ideológica nas relações gregas e romanas, na idade média e no mundo moderno.

7 As informações históricas colocadas neste texto foram retiradas da obra de Cláudio Vicentino “ História: Memória viva: da pré-história a idade média”, 1998. p. 68-77.

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Podemos dizer que Platão, em sua dualidade: corpo e mente, possa contribuir para uma ideologia de

distinções, privilegiando os “iluminados” do saber. Podemos citar a grande contribuição dos mitos quanto à

aceitação desse processo de manutenção e construção ideológica da idade antiga. O mito aliás ganha forte

destaque no que diz respeito a difusão, e talvez, de certa forma ao surgimento da ideologia.

O mito segundo Aranha (1993) tem como critério de adesão a crença e não a evidência racional. O

mito é, portanto, uma intuição compreensiva da realidade. Uma forma espontânea de o homem situar-se no

mundo. Em sua ação, por exemplo, o primitivo, ao descrever a realidade, o fazia de forma sobrenatural,

coerente com a maneira mágica pela qual tentava agir sobre o mundo. No mundo primitivo tudo acontecia de

forma “sagrada” (ocasionando mitos que tentavam explicar as manifestações naturais do homem), e o que

ocorria era uma imitação do exemplo dos deuses, repetindo nos ritos e afazeres as suas ações. Como todo o

real era interpretado pelo mito, e isso era de forma comunitária, ou seja, todos interpretavam desta forma

usando esses fatos e métodos, o homem acabava afastando a percepção de si e de sua potencialidade.

O pensamento grego tinha por base a razão humana, mas essa razão humana era comandada pelos

mitos e seus deuses, habitantes do monte Olimpo que comandavam o destino dos humanos8. É claro que

exatamente na Grécia muito do pensamento reflexivo a respeito do homem foi desenvolvido ou iniciado, mas

a questão a ser levantada é se esse pensamento não se deixou influenciar pelos mitos. Essa duvida se

reforça quando analisamos, amparados pela citação usada por Aranha retirado do livro “O sagrado e o

Profano” de Mircea Eliade:

[...] quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física, não é ainda reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos que se efetuam emidiatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de “vivo” propriamente dito; é somente graças a estes ritos que ele fica integrado na comunidade dos vivos. (ARANHA,1993, p.56)

Percebemos desse modo que o ser humano é influenciado diretamente em sua vida pelas tradições

que o cercam e o constroem, pelo menos até que possa desenvolver uma interpretação e uma consciência

crítica própria, até lá cultura e suas tradições constroem o ser humano arrastando consigo todas as ideologias

e os pensamentos pré-defindos.

O mito acompanha, vem junto com as tradições, se ramifica e se consolida em espaços como a

religião, que passou de um politeísmo - caracterizado primeiramente por deuses momentâneos e evoluindo

para deuses identificados com determinadas funções sociais e naturais – até chegar ao monoteísmo, a

religião com deus pessoal capaz de interagir com seus “crentes” e até mesmo sofrer com eles. Podemos

encontrar seus traços não só em forma de religião, mas também em contos populares, no folclore e nas

8 Idem a nota 1.

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comemorações de nascimento e aniversário que, mesmo de forma disfarçada, lembram os mitos de

passagem.

1.2.1 A religião como expressão da ideologia na história

A religião, por sua vez, foi a responsável pela manutenção e difusão da ideologia na Idade Média.

Vicentino (1998, p.124) pontua que o cristianismo misturou-se aos valores culturais locais, com uma forte

dosagem de espiritualidade, principalmente entre os Bizantinos que desenvolveram um cristianismo diferente

do ocidental, dando origem aos levantes populares e a calorosas discussões teleológicas. Outro povo que se

destaca é a civilização árabe em seu politeísmo que acabou transformando-se com a criação do Islão. Obra

do pensamento de Maomé, que se tornou “rotulado” na atualidade pelo seu extremismo que em nome da

“guerra santa” esconde uma tentativa de expansão do Islã e assegurar dominação utilizam-se da religiosidade

através dos escritos de Maomé, estes, que dão poder absoluto aos seus seguidores.

Podemos perceber que a principal característica da Idade Média foi a questão religiosa, ou o

teocentrismo9. A igreja católica é uma das vitrines dessa época. Se dizendo intermediaria entre Deus e os

homens, ganhou grande poder e influenciou na vida cultural de toda a Idade Média. O cristianismo, como

ficou conhecido, tornou-se a religião oficial do império romano a partir de 391 d.c, no governo de Teodósio, e

ampliou sua força e seu poder aliando-se aos povos “invasores”, principalmente aos bárbaros, como eram

conhecidos os povos que moravam além das fronteiras romanas e as ultrapassavam em busca de terras

férteis fugindo da seca asiática. A base cristã “zelava” tanto pela “vida espiritual”, quanto pela “vida material”

exercendo grande influência em alguns casos e forte domínio em outros. Domínio que, embora

enfraquecesse com o tempo, foi assegurado a peso de lutas e sangue, tanto pelas cruzadas, meios de

expansão e domínio religioso, como pela inquisição, meio de punição visando a coação pelo medo.

Por ora vamos focar a influência que a religião exerceu durante a Idade Média tomando por

parâmetro “História - memória viva: da pré-história a idade media” (2005), obra de Cláudio Vicentino. Nos

coloca que ele o teocentrismo como principal característica da cultura medieval, deu às religiões, em especial

a católica, o poder de orientar a vida do homem medieval. Não só no modo de pensar, mas na cultura em

geral, que se impregnou de religiosidade, seja no campo científico, na arquitetura, no desenvolvimento

musical e até mesmo na educação. Não queremos fazer descaso às obras humanitárias da igreja, nem

mesmo generalizar, mas chamar a atenção para o poder de uma ideologia guiada por uma forma de

mitologia. Na Idade Média, a religião e neste ponto tem seus méritos, preservou muito do mundo antigo(

principalmente através das cópias dos livros que garantiam as bibliotecas e as transmissões dos

9 Concepção medieval de Deus como centro de todas as coisas.

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conhecimentos, mesmo que muitas vezes se manipulava o conhecimento). Mas essa preservação aconteceu

também naquilo que mencionamos como “herança aristotélica” da teoria das quatro causas.

Sob a interpretação teológica a teoria das quatro causas consolida-se no aspecto da distinção onde a

causa final é superior à eficiente, fazendo as relações: “Deus” é a causa final; os servos, a causa eficiente.

Assim como os “cidadãos” gregos, superiores aos escravos e os senhores feudais da Idade Média e seus

servos. Essa interpretação conduzirá no plano social “...o trabalho aparece como elemento secundário ou

inferior, a fabricação sendo menos importante que seu fim. A causa eficiente é um simples meio ou

instrumento para a satisfação da vontade ou desejo de um outro, o usuário do produto do trabalho” (Chauí

(2004, p.12s).

1.2.2 A ideologia no mundo moderno

O mundo moderno, contudo, trará outra perspectiva de ideologia. Livre do mundo teológico, já que a

ciência começa a tomar espaço da religião e o faz nas relações de conhecimento embora a sociedade ainda

traga as influências da religião - como mostramos pela teoria das quatro causas - mas o que vai desenhar a

ideologia é a relação do homem com seu trabalho. A alienação social e a subjugação do homem através da

coação.

Na verdade por trás de uma idéia de modernidade a caminho do “primeiro mundo”, encontramos uma

ideologia dominadora, avassaladora, que traz consigo o extermínio de vidas, de culturas e de povos, bem

como, a exploração de trabalho e de riquezas dos povos nativos -lembrando que quando falamos de nativos

incluímos os povos latinos, africanos, asiáticos e todos os outros retirados de seus habitats naturais ou

explorados em seus próprios habitats em nome da “civilização” e do “desenvolvimento”. Vicentino (2005,

p.140) utiliza as palavras da historiadora G. Himmelfarb para resumir o que se esconde por trás da história

moderna:

Até mesmo as mais impressionantes descobertas científicas podem ser usadas da maneira mais grotesca; que uma política social generosa pode criar tantos problemas quanto soluciona; que até mesmo os mais benignos governos sucumbem ao peso morto da burocracia, enquanto os menos benignos mostram-se criativos e nas invenções de novos e horrendos modos de tirania; que as paixões religiosas se exacerbam num mundo crescente secular, as paixões nacionais, num mundo fatalmente interdependente; que os paises mais avançados e poderosos podem tornar-se reféns de um bando de terroristas primitivos; que nossos mais amados princípios – liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, mesmo paz – foram pervertidos e degradados de maneira nem sonhadas por nossos antepassados. A cada passo somos confrontados por nossas promessas quebradas, esperanças fornecidas, dilemas irreconciliáveis, boas intenções que se desviaram, escolhas entre males, um mundo a beira do desastre – tudo isso já virou clichê mas é verdadeiro demais e parece desmentir a idéia de progresso.

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O “progresso” humano do mundo moderno merece análise especial no que diz respeito àquilo que

vários autores chamam de “a máquina do mundo newtoniana”. A dominação dos povos foi somente um

“pontapé”, uma leve amostra do que traria a ideologia sob o disfarce de transformação científica. A passagem

da ciência ecológica para uma ciência antiecológica, ou seja, a mudança do modo de ver o mundo – de um

modo orgânico para um modo não orgânico – representou não só uma mudança de pensamento, mas o inicio

da transformação de entendimento do cosmos todo.

Desde que a terra deixou de ser o centro do universo e o homem deixou de estar a serviço do mundo,

para o mundo ficar a serviço do homem, este que antes era filho do “divino”, criação do “Deus”, resolveu ser o

próprio Deus. Não que os avanços científicos iniciados na época de Nicolau Copérnico (1473-1543), não

tenham contribuído para a humanidade. O que ocorre é que, desde as descobertas de Galileu Galilei (1564-

1642) e a introdução da “medição” das coisas das quantidades, perdemos o valor por aquilo que é vital.

Quando elevamos e confiamos em nossas induções como nos métodos de Bacon (1561-1626),

elevamos demais a subjetividade e corremos o risco de ver a ciência como um instrumento para dominar e

controlar a natureza, além de estabelecer uma uniformização nas análises, subestimando algo indispensável:

as individualidades. A natureza somente como extensão e movimento, se torna passiva de intervenção, cujos

elementos, se podem desmontar, medir, reduzir e relacioná-los sobre a forma de leis. Ver as coisas como

mero objeto de manipulação leva a crer em um conhecimento “certo”, como em Descartes (1596-1650), e

esquecer de nossas limitações e de nosso conhecimento relativo, bem como da influência e dos interesses

individuais no que se refere às interpretações de mundo. O método de Descartes fizeram o homem subir até a

lua, talvez, porém, não tenha conseguido fazer ele voltar.

As atitudes generalizadas e a fragmentação do “humano”, através do engrandecimento e da

“adoração” da teoria causou o abandono do real, do ser. Passamos a ser tratados como “máquinas” quase

perfeitas, propícias a tarefas manipuladas e direcionadas. Dominamos a natureza e esquecemos do sentido,

dos sentimentos, esquecemos que somos também natureza e que fazemos parte deste todo dominado.

Bobagem seria por a culpa em Newton por ter sintetizado Copérnico, Kepler, Bacon, Galileu,

Descartes e outros. Sua uniformização e “numeração” das coisas dando o mundo como “uma máquina

perfeita” e, possivelmente, com chances de ser determinada e totalmente manipulada, traduziu a tentativa de

vários outros cientistas e da humanidade em geral, em sua ganância de dominar e manipular. A partir daí

somente retirou-se o pouco de “divino” que ainda existia e deixou no mundo um vácuo espiritual. Depois disso

tudo virou “ciência” e o homem, seja pelo evolucionismo, seja pela entropia, passou a ver-se como objeto de

pesquisa.

Se na idade média e nas culturas gregas a liberdade humana era limitada pelos mitos, na “era

moderna” vai ser limitada pelo próprio homem e por suas próprias ações ideológicas. O “corpo máquina” de

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Descartes se torna dependente da causa final, evolução da teoria das quatro causas (reduzindo de quatro

para duas: eficiente e final), como lembra Chauí (2004, p.16): “O homem livre é, portanto, um ser universal

(sempre existiu e sempre existirá) que se caracteriza pela união de um corpo mecânico e de uma vontade

finalista”. A liberdade transforma-se em liberdade ideológica e o homem agrega valor a si mesmo a partir do

poder econômico que consegue adquirir ou possuir.

Quando o produto final se torna o mais importante, surge a divisão social. Aqueles que possuem o

poder determinam qual produto deve ser produzido, sua quantidade e seu valor, enquanto os trabalhadores

vendem sua liberdade e sua mão-de-obra na expectativa de conseguir chegar à obtenção do poder aquisitivo

que lhes dará poder de compra para usufruir de benefícios e produtos que eles mesmos produzem.

A era do “progresso” do “homem máquina” se tornou a era da escravidão, onde o homem, escravo de

suas próprias invenções, moderniza seus mitos, cria novos deuses, priva-se daquilo que ele próprio produz e,

acima de tudo, tem que arcar com as conseqüências de todas as medidas prejudiciais.

2 Status quo e o poder da ideologia

A discussão histórica exposta no primeiro capítulo demonstrou que ao falar de ideologia não estamos

falando de assunto pouco estudado ou mencionado. Ao contrário, é preciso consciência de que estamos

falando e discutindo temática relevante. O assunto é amplo e complexo que se torna desafiador até mesmo

imaginar se seria melhor analisar e buscar seu entendimento ou criticar algumas de suas formas de

existência.

Sob esta perspectiva, usaremos três definições básicas, para nos dar uma dimensão da ideologia na

idade contemporânea, que podem ser sintetizadas pelas visões utilizadas por Guareschi (2004, p.19) em sua

obra “Sociologia Crítica: Alternativas de mudanças”:

a) O estudo das idéias (sentido etimológico);b) Conjunto de idéias, valores, maneira de sentir e pensar de pessoas e grupos (sentido positivo);c) Idéias erradas, incompletas, distorcidas, falsas sobre fatos e a realidade (sentido crítico, ou negativo).

A ideologia entendida e percebida em sua visão histórica das idéias pode fazer-se como análise

errônea, tendo presente que a história é limitada, relativa e condicionada por tradições e influências sociais

predominantes dentro de cada época que compõe a história. Cada visão, em cada época, expressa uma

dimensão de sociedade, ficando quase impossível entendê-las de forma unificada.

Neste capitulo trabalharemos a definição de ideologia como idéias erradas, incompletas, distorcidas,

falsas sobre fatos e a realidade. Surge, então, o grande questionamento: nossos pensamentos são realmente

nossos? De que serve realmente a ideologia? Para analisar o conhecimento ou para transmitir e indicar

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pensamentos e representações sejam elas normas, leis, regras sistemáticas ou não, que influenciam os

membros da sociedade em seus modos de pensar e agir?

Querendo ou não estamos impregnados pela ideologia. Ela está em nossas regras, em nossas ações,

em nosso modo de pensar. Aqueles que aceitam este processo rejeitam qualquer afirmação contra seus

meios; os contrários se vêem delimitados em suas finalidades e ações.

Quando a ideologia se torna uma distorção das idéias, palavras como: exploração, terceiro mundo,

desemprego e outras do gênero, passam despercebidas, e sua dominação se torna completa. Assim, a

grande jogada do “fim” da luta entre capitalismo e socialismo ou qualquer outra alternativa de vida em

sociedade, esconde grande armadilha: a ideologia dominante tem todos os meios para persuadir, manipular e

esconder sua dominação usando a justificativa de ser a única alternativa viável. Por isso Mészáros (2004,

p.59) confirma:

Compreensivelmente, a ideologia dominante tem uma grande vantagem na determinação de que pode ser considerado um critério legítimo de avaliação do conflito, já que controla efetivamente as instituições culturais e políticas da sociedade. Pode usar e abusar abertamente da linguagem, pois o risco de ser publicamente desmascarada é pequeno, tanto por causa da relação de forças existentes quanto o sistema de dois pesos e duas medidas aplicado as questões debatidas pelos defensores da ordem estabelecida.

Uma ideologia, quando se transforma em status quo dispõe de várias vantagens que são

determinantes para sua manutenção. Instaurada a dominação, expressa no status quo, não necessita mais

comprovar suas “falácias”, ou seja, a fé que recebe pelo direcionamento às coisas, lhe dá o direito de

conduzir, de forma indiscutível, e atacar àqueles que tentam resistir a sua dominação10.

Mesmo que o poder dominante não satisfaça as necessidades gerais da população, consegue

difundir a impressão (ilusão) que a situação é apenas transitória e passível de ajuste, e assim, tudo acaba por

se adequar ao status quo em prol da esperança de um “futuro melhor”. Não é em vão que Nietzsche (2006)

diz ser a esperança o pior dos sentimentos que o ser humano pode ter11. Ela neutraliza o sentido de potência.

Na relação ideologia e status quo, a esperança traz a neutralidade do censo crítico, do dialético, do

consciente. Instaura-se então uma idéia positivista de que a vez de todos está para chegar, basta estar

preparado para adequar-se ao que pede a idéia do “mundo de todos para todos”.

O poder da ideologia manifesta, na transmissão através de meios sócio-políticos, econômicos e

culturais, a idéia de igualdade de oportunidades, suscitando a concorrência na busca do “mérito”. Essa

concorrência provocada aumenta ainda mais a divisão de classes onde quem dita as regras do jogo é o

10 É o caso, por exemplo, da grande discussão gerada sobre a terra como centro do universo, onde vários pensadores dobraram seus joelhos perante os dogmas da igreja durante longo período. Dito de

outra forma: aquele que está no poder tem o poder de dizer o que é e o que não é verdadeiro, a menos que de alguma forma muito clara haja prova em contrário.

11 Nietzsche em sua obra “ Humano, demasiado humano”b critica a esperança idealizada pela religião, pois , segundo ele ela retira o desejo de transformação e leva as pessoas a passividade.

109

status quo, bem como mantém seus “guardas influenciadores”12 na desorientação daqueles que pensam

atravessá-lo.

A sociedade de classes se faz ideologicamente influenciada – e sua manutenção é essencial ao

status quo, visto que a luta entre si desvia o foco do objetivo principal. Constrói-se então, uma luta ideológica

onde o principal objetivo não é transcender ao status quo, formando uma nova alternativa, mas simplesmente

mudar de posição dentro da mesma estrutura. Para fugir desta ideologia é preciso demonstrar uma práxis que

sirva de modo convincente como alternativa:

... é visto que as ideologias estão – de modo direto ou indireto, mas sempre – mescladas com a política, operando dentro dos limites do estado, que institucionalmente regula e controla o metabolismo social como um todo (enquanto o estado existir), as ideologias críticas e as formas de “contraconsciência” não podem deixar de ser parciais e unilateralmente negativas em sua autodefinição, a menos que possa oferecer uma alternativa hegemônica viável as práticas predominantes nessa formação estatal, em todos os planos da vida social (MÉSZÁROS, 2004, p.234).

Se por um primeiro olhar parece fácil descobrir uma saída, é preciso analisar que mesmo sob a

indignação gritante daqueles que sofrem as injustiças, não surgem teorias ou instituições revolucionárias

capazes de unificar um pensamento ideal contra a ordem dominante. A sociedade dividida em classes

dificulta o surgimento de um pensamento homogêneo eficaz. Em conseqüência o levante social que tenta

intervir no status quo se torna imediatismo, pois não tem um ponto abrangente que retenha ou aumente sua

importância, enquanto a ideologia dominante (status quo) possuindo todos os pontos de acesso, todas as

mediações – e aí está seu poder – consegue controlar e dinamizar o movimento histórico fazendo com que

seus opositores se enfraqueçam:

Em outras palavras, a maior desvantagem de todas as formas radicais de contraconsciência socialista consiste na imensa dificuldade de assegurar pontos de contatos viáveis com as forças sociais de negação disponíveis, incorporando inteiramente as exigências objetivas das ultimas sem abandonar sua própria orientação temporal global que percebe a necessária superação de muitas dessas exigências imediatamente dadas – que são, em suas implicações gerais, freqüentemente muito problemáticas. (MÉSZÁROS, 2004, p.237).

Sem as mediações, os levantes contra o status quo se tornam simplesmente tendências (visto sobre

o ponto de vista de sua imediaticidade e particularidade que atingem), em contraposição o status quo se

mantém e manipula através dessas mediações. As mediações são instrumentos que se constituem como

base da sociedade moderna e, quando estudadas, demonstram sua verdadeira identidade como meio de

alienação. Passamos a estudar alguns desses instrumentos.

12 Meios que a ideologia usa para se manter e se propagar.

110

3 Alternativas à ideologia

Um grande desafio no que se refere a analisar as condições da sociedade é construir alternativas. Não

são raras as análises sobre os mais diversos problemas sociais, mas poucas dessas análises chegam a uma

maturidade suficiente para esboçar, ou ao menos tentar esboçar uma alternativa, até porque as vezes se

torna muito mais fácil apenas fazer a critica. Apresentar alternativas é estar a beira de receber criticas e de

ser questionado, porém, não apresentar alternativas, por mais que possam ser contestadas, é negar a

possibilidade de potência do mundo, negar o próprio mundo como potência de possibilidades capazes de

gerar alternativas para os problemas criados.

È claro que pensar em um mundo de possibilidades e relações, instiga a percepção, porque a

participação no mundo não se faz somente por habitá-lo, nem por “ter parte nele”. Participar do mundo quer

dizer tomar e assumir a parte no cuidado do mundo. O cuidado do mundo começa por nos percebermos como

seres condicionados e subjugados em nossa sociedade, privados de nosso espaço e de nossa liberdade;

começa pelo “meu quintal” e, também, pelo entendimento que o “meu quintal” é a extensão de algum outro

“quintal”. Ou seja, nossa vida é a extensão de outra vida, a complementação de outra vida. Por isso, pensar

em mundo de possibilidades e relações obriga uma percepção de nossa relevância e da significação do

“outro”, extensão de nosso ser como somos extensão de outros seres, independente de credos ou classes

sociais.

Não há como deixar de perceber a realidade social: a humilhação e o descaso com o ser humano.

Estamos deixando de perceber o ser humano, de nos ver como seres humanos, como gente. Estamos nos

percebendo como “super-homens”, os quais não necessitam de mais nada, nem de mais ninguém. Tudo está

parecendo mero objeto para uso em benefício próprio. Esquecemos de nossas relações Freire (1996) diz que

“...onde há vida, há inacabamento...”. Onde há vida, precisa ter relação, haver complementação. Porém, ao

contrário do que podemos pensar, essa idéia de necessidade, de relação, não tira o mérito do homem, pelo

contrário, aumenta a importância e nos faz ir além. Freire, na mesma obra, ainda nos diz: “Gosto de ser gente

porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do meu inacabamento sei que posso ir

mais além dele”. Gostar de ser gente, de ser humano, inacabado, não é algo terrível, mas maravilhoso.

Perceber que o mundo é um círculo de relações não diminui nossa importância; demonstra que nossa

presença de mundo é insubstituível. Precisamos atualizar a idéia materialista de que ninguém é insubstituível.

Precisamos resgatar o sentimento e o sentido da vida, desmistificado a supervalorização do material.

A deteriorização dos valores se torna evidente quando medimos a importância da vida humana através

da comparação de sua “produtividade”, principalmente quando comparamos esta “produtividade” com a força

de trabalho de um emaranhado de parafusos e pedaços de metal, vazios de qualquer sentimento e de

111

qualquer relação. A partir do momento que nossa importância é medida somente pela nossa “produção”, e

não questionamos para que e/ou para quem se produz e quais as conseqüências disso, corremos o serio

risco do esquecimento, de nos perdermos no vazio do mundo. “Maquinas de produção” podem ser facilmente

substituídas, mas o ser humano com seu afeto, único e diferente em cada ser, com seu cuidado para com o

mundo e para com o outro, para o qual produz - mesmo sem saber se poderá consumir - é insubstituível.

É mister a necessidade de transformar nossa consciência vivida em consciência compreendida.

Precisamos transcender nossa compreensão vital e instintiva de mundo e, como diz Freire (1996), nos libertar

do “suporte”. O suporte é a nostalgia à qual nos acostumamos, espécie de vida “maquinal”, para ser mais

compreensível. Precisamos, portanto, dar um passo para além do mundo e entender o mundo como uma

gigantesca bola, onde tudo é conjunto. Como astronautas, vendo o mundo de cima, temos que nos perceber

como seres-no-mundo e questionar nossas atitudes para com este mundo. Resgatar o ser humano

questionador que procura entender o mundo e, principalmente, a si próprio.

Para Paiva (2002), compreender e significar não seria uma dificuldade. O homem, segundo ele, “é

peregrino em busca do ser” e “assaltado permanentemente pela transcendência, decide-se desde muito cedo,

por romper as pobres referências do cotidiano, para prosseguir o caminho da verdade”. Portanto, este homem

precisa ser resgatado. Pois, dessa forma, pode perceber-se como ser de possibilidades e responsabilidades e

conseguirá chegar até a verdade.

Resgatar o sentido próprio do ser humano, da dignidade humana, é resgatar o cuidado da vida, nos diz

Boff (1999, p. 84). “Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O “ethos” está no próprio ser

humano (...) ele precisa voltar-se sobre si mesmo e redescobrir sua essência...”. Em outras palavras, resgatar

o ser humano é “parir” de dentro dele mesmo suas verdades e seus sentidos. Tão importante quanto

compreender o mundo exterior, é compreender o mundo interior, pois em um mundo de relações, de

possibilidades, necessário se faz a percepção da importância de nossa participação: “o cuidado faz surgir o

ser humano complexo, sensível, solidário, cordial e conectado com tudo e com todos no universo”, nos diz.

Cuidar daquilo que o completa, é o digno despertar do homem. Surge, portanto, a importância do

“despertar”, a importância do “conhece-te a ti mesmo”, a importância da compreensão de que as

possibilidades só se concretizam através das relações e essas relações só existirão se tivermos a

responsabilidade de cuidar da vida, mas da vida de tudo e de todos.

Do mesmo modo que trazemos a capacidade de construir, trazemos a capacidade de destruir.

Precisamos urgentemente despertar para o ciclo de relações errôneas e pensar em transformar nosso modo

de ser e de viver. Está na hora de nos compreendermos como o outro de alguém, como um ser de

responsabilidades.

112

Nas palavras do filósofo Sêneca (2006)13, acumulamos nossa vida dissipando-a, pois estamos tanto na

expectativa de um amanhã melhor que esquecemos de viver hoje, e de nada nos vale construir algo que

teremos que colocar mais esforço ainda para manter. Não temos uma vida tão curta, diz ele, mas a

desperdiçamos tanto, que ela parece, ao seu final, curta demais.

Participar do mundo não é tão fácil como parece, como já mencionado, pois participar não quer dizer

simplesmente fazer parte, ou ter parte, mas tomar parte e fazer acontecer a partir de minha própria

experiência. Fica fácil estar no mundo quando todos (desde o mais conceituado doutor ao mais simples

cidadão), têm sua voz e sua vez dentro da sociedade e possam contribuir para a melhoria do mundo.

Precisamos romper os “pré-conceitos”, analisar os pensamentos e as opiniões que nos conduzem,

desmascarar as ideologias reinantes e criar novos conceitos, evoluir, não em prol dos interesses próprios,

mas em prol do todo, do conjunto.

A percepção é o primeiro passo. Como no mito da caverna14, onde dolorosa é a percepção da

realidade, é importante o retorno para dentro da caverna. Precisamos entender a dolorosa situação do ser

humano, e dentro de nós mesmos, dentro do próprio “eu”, de nossa própria “caverna” interior, concertar os

equívocos, remediar. Não basta perceber e aceitar a realidade. A omissão do questionamento nos leva a

aceitação. Temos o dever de refletir, entendendo e compreendendo nossa realidade para transformá-la e

superar nossas ideologias.

Considerações Finais

O que é ideologia? Ao final deste trabalho podemos perceber quão complexa é esta questão. Mais

que uma simples palavra, “ideologia”, pode atingir vários sentidos, suscitar várias interpretações e dificultar

um entendimento correto e definitivo de definição. Pode ser o estudo das idéias, conjunto de idéias, valores,

maneira de sentir e pensar de pessoas e grupos ou um conjunto de idéias erradas, sobre fatos e a realidade,

pode ser como fatos sociais, como em Durkheim, ou causa da alienação, como em Marx. Não em vão alguns

autores, como Guareschi (1992) dizem que o conceito “ideologia” é um dos conceitos mais “complexos,

equívocos e escorregadios” que se pode ter.

Porém, independente de definição sabemos que ela existiu no decorrer da história, influenciando

pensamentos e pensadores, governos, religiões, constituindo-se como auxiliar da manutenção do poder como

meio alienante, ou como forma de expressão para se chegar ao poder, como o fez Constantino.

O certo é que a ideologia cresce em importância no mundo contemporâneo devido a grande

aceleração que se destaca. Guareschi (1992, p.171) vai dizer:

13 Filósofo, dramaturgo, político e escritor , Lúcio Anneo Sêneca (4 a.C?-65 d.C). Foi um dos expoentes intelectuais de Roma no inicio da Era Cristã.

14 Referência ao mito da caverna de descrita pelo filósofo Platão em sua obra A Republica.

113

...há inúmeros enfoques teóricos que dão diferentes significações e funções ao conceito de ideologia, sem falar das fortes conotações, políticas e valorativas, que o conceito carrega em si. Questões sociológicas, psicossociais, epistemológicas, até mesmo filosóficas, bastante complexas, estão ligadas a realidade da ideologia. Por isso é relativamente difícil querer tratar esse assunto de uma maneira clara e inteligível.

O que marca a ideologia na atualidade é seu predomínio e instauração no seio da sociedade.

Estamos quase incapacitados (digo quase, pois do mesmo modo que ela vem pode ser destituída) de nos

perceber, ideologicamente influenciados. Naturalização, universalização, palavras comuns e expressões

bonitas de se pronunciar escondem uma concepção de dominação universal que ainda consegue passar uma

idéia de bem estar através da “tribo universal”.

Estamos alienados, e assim, coagidos a aceitar uma sociedade pré-moldada sob a idéia de

civilização, de progresso e de evolução. A idéia de liberdade, igualdade e fraternidade, ainda não chegou

para muitos povos que sofrem diariamente os horrores das guerras civis e militares, enquanto, paises (como

EUA) e suas indústrias bélicas lucram milhões na produção e utilização de armas, tanto de guerra terrestre

como de destruição em massa, em nome de uma guerra “anti-terror”, que tráz em si uma luta política de

dominação e interesses econômicos.

O mundo está longe de ser “igual”. Quando um só país possui grande parte da riqueza mundial e uma

só grande empresa é capaz de deter riquezas capazes de sustentar um pais em condições de miséria, o

mundo está longe de ser livre. Ocorrência perceptível na contemporaneidade, onde todos estão em busca de

algo que, talvez, ninguém saiba o que é; onde até mesmo a família tem uma visão capitalista de lucro, de

construção pessoal.

A banalização de tudo o que é humano e a super-valorização do artificial, seja alimento, roupa, meios

de produção, estética ou reprodução, e a falta de reação demonstram que nosso pensamento não anda muito

de acordo com nosso próprios instintos de sobrevivência. A má utilização e aproveitamento de tudo o que é

natural e também daquilo que é artificial, demonstra que nossa idéia não está realmente de acordo com

aquilo que realmente precisamos.

A ideologia está “estampada”, em sentido real da palavra “estampa”, nas etiquetas, nas vitrines, em

nossas roupas e calçados, em nossos automóveis e até mesmo em nossos animais. Coisas banais e sem

necessidade ganham a maior importância, enquanto o homem, aquele que tudo produz, e que a tudo deveria

ter acesso, virou seu próprio “escravo”, privado de sua própria produção, de sua própria capacidade de

decidir, de partilhar, de participar.

Vivenciados e defendidos, bem como difundidos, tanto pelos meios de comunicação, tanto por meios

que deveriam servir de parâmetros de alerta como a educação – hoje processo de formação de instrumentos

de mão-de-obra barata e qualificada, condicionada e dominada – os meios ideológicos dominantes servem ao

114

status quo, como meio escudo para sua manutenção. Talvez o que falta é um sentido etimológico de

ideologia, ou seja, falta uma análise de todas as idéias e ideais.

Porém, embora vejamos todo esse processo se desenvolver ao nosso redor não podemos perceber a

esperança, nem a coragem de sonhar. Precisamos sim, reconhecer nossas alienações, despertar nossas

utopias, e desenvolver uma consciência crítica capaz de discutir o valor dos valores”. Discutir o valor dos

valores significa estar sempre à procura da essência dos problemas, do inicio. Significa o combate ao mal em

seu principio, em suas causas, pois como diz Staccone (1993. p. 115),

[...] a construção de uma nova liberdade, sem privilégios e sem desigualdades, pode nos mover para destruir a velha liberdade. Práxis esta sem subterfúgios e sem aventuras, pois a construção da nova liberdade processa-se dentro das velhas estruturas, que serão derrubadas na medida em que a experiência prática do novo for conquistando as mentes e as vontades, tornando-se uma nova cultura, que fundamenta uma hegemonia e uma nova organização da sociedade.

Discutamos então, não só os valores, mas as nossas capacidades e as nossas atitudes, a fim de

acordar em nós o senso crítico necessário. Discutamos o nosso próprio valor a fim de deixarmos de ser

simplesmente “fantoches” sociais, a fim de deixarmos de preferir o nada simplesmente por não preferirmos

nada. Temos que preferir. Preferir a vida. Preferir a construção da história. Temos que preferir ser e fazer a

historia.

“De nada valem as idéias sem homens para pô-las em prática”. (Marx)

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