Idosos são vítimas de golpes e violência
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Batalha no fim da vida
Num país que vive mais tempo, multiplicam-se os casos que
envolvem a exploração de quem já passou dos 60 anos, um grupo
de cerca de 23 milhões de brasileiros. Casamentos por interesse,
empréstimos bancários nebulosos e disputas antecipadas por
heranças são histórias cada vez mais recorrentes nos processos
que tramitam pelas varas de família. O dinheiro, como regra, é o
fiel da balança em disputas que quase sempre começam em casa.
A Interdição
A disputa por bens e controle
Justiça é provocada cada vez mais a decidir sobre destino de idosos
O destino de idosos cada vez mais tem sido decidido pela Justiça brasileira. Eles
acabam envolvidos em disputa por dinheiro, que se dão por meio de processos de
interdição. Disputas e segredos de avós, pais e filhos deixam a sala de estar e passam a
ocupar a rotina das Varas de Família. O aumento das interdições de idosos na Justiça e
as consequentes disputas de filhos, netos, sobrinhos e companheiros pelo patrimônio e
pelo controle desses patriarcas se traduzem numa das faces mais obscuras do
envelhecimento.
A neta de Clarice, 89 anos, tenta interditá-la na Justiça. Clarice a acusa de cárcere privado. Foto: André Coelho/Ag. O
Globo
O fenômeno está oculto na ausência de dados oficiais, na rotina silenciosa das
Varas de Família e sob o manto do segredo de Justiça dos processos. Durante um mês,
O GLOBO investigou, reuniu histórias e comprovou que aumentaram os pedidos de
interdição e as decisões pela retirada dos plenos poderes de idosos tidos como incapazes
de discernimento. O GLOBO pediu os dados aos Tribunais de Justiça (TJs) das 27
unidades da federação. Dezesseis responderam, com dados que apontam um aumento do
número de decisões gerais pelos juízes de Família nos últimos cinco anos, o que inclui
os casos de pessoas com deficiência e dependentes de drogas. Apenas os tribunais de
quatro estados conseguiram separar estatisticamente os casos de idosos, uma
informação desconhecida até pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Sentenças sobre interdições de idosos nos estados
Interdições cujos tribunais separam os dados de idosos no Brasil
No Rio de Janeiro, os juízes proferiram pelo menos 789 sentenças sobre pedidos
de interdição de idosos em 2013, uma média de mais de duas sentenças por dia. Cinco
anos atrás, em 2009, foram 348, menos da metade. O sistema de estatística do tribunal
não revela a quantidade de decisões favoráveis, mas atesta a maior movimentação de
processos nas varas.
Os juízes de Família do Ceará determinaram a interdição de 60 idosos no ano
passado, 4,5 vezes a mais do que em 2011. Em Mato Grosso, foram 11 decisões
favoráveis em 2013; em 2009, apenas uma. No Amapá, há 17 anos, apenas uma família
pediu a interdição de um idoso na Justiça. No ano passado, foram 110 pedidos, com 69
interdições decretadas.
A grande maioria dos juízes, promotores, defensores públicos e advogados da
área de Direito da Família ouvidos pelo GLOBO aponta um aumento da procura pela
medida jurídica e relata a frequência de casos de disputa pela curatela e pelo patrimônio,
apesar da necessidade de o curador prestar contas à Justiça e das limitações legais para a
movimentação dos bens do interditado, o que só pode ser feito mediante autorização
judicial. Também é comum que filhos recorram à medida para impedir novas relações
afetivas dos pais.
A interdição é, na verdade, uma medida de proteção, já prevista no Código Civil
brasileiro de 1916. No texto de quase um século atrás, o código previa a medida para
“loucos de todo o gênero”, “surdos-mudos sem educação” e “pródigos”. O novo código,
a partir de 2002, estabeleceu que devem ser interditadas pessoas sem o “necessário
discernimento para os atos da vida civil”, em razão de uma doença ou uma deficiência
mental. Se a interdição é total, o idoso deixa de votar, de movimentar uma conta
bancária, de assinar um documento. E ganha um curador, que fica responsável pelos
cuidados e pelo patrimônio.
Servidores públicos da elite do funcionalismo são vítimas em potencial dessa
disputa. No Senado, a cada 52 dias, um aposentado é interditado pela Justiça. Quatorze
anos atrás, o comum era uma interdição por ano. A Associação Brasileira de Alzheimer,
uma entidade ainda pouco conhecida, recebeu 48 ligações em 2013 com pedidos de
informação sobre interdição. No ano anterior, foram 32.
O dinheiro é fiel da balança num processo de interdição. Se existem renda e
patrimônio em jogo, as chances de filhos disputarem a curatela se multiplicam. Se não,
o processo transcorre sem muitos sobressaltos nas Varas de Família. Em muitos casos, o
problema reside nas situações de abandono, na ausência completa de interessados em
assumir a responsabilidade por um idoso sem saúde física e mental. E isso se reflete
principalmente nas instituições filantrópicas, como o de Maria Madalena.
Como funciona a interdição
Pessoas que não têm o necessário discernimento para os atos da vida civil, por
doença ou deficiência mental, podem ser interditadas, assim como "ébrios habituais",
viciados em drogas e pródigos, conforme o Código Civil.
Pais, tutores, cônjuges, filhos ou quaisquer parentes, além do Ministério Público,
podem fazer o pedido na Justiça.
O curador é definido pelo juiz. A partir da sentença de interdição provisória ou
definitiva, os bens, os rendimentos e a pessoa do interditado ficam sob os cuidados do
curador.
A interdição pode ser parcial ou total, conforme a escolha do juiz. No primeiro
caso, o interditado pode desempenhar algumas funções, como votar, e delegar
atribuições como a administração do patrimônio.
Qualquer alteração no patrimônio e na renda do interditado deve ser comunicada
ao juiz, como recebimento de heranças, venda de imóveis e empréstimos bancários.
O curador pode receber uma remuneração para desempenhar a função, conforme
definição do juiz.
É função do curador prestar contas num prazo definido pelo juiz, normalmente
de dois em dois anos. Cabe a ele fazer a declaração do Imposto de Renda do interditado.
Condutas que causem prejuízo ao patrimônio ou dano físico e moral ao
interditado podem levar à substituição ou remoção do curador.
Fontes: Código Civil e Cartilha de Orientação aos Curadores do Ministério Público do DF
Os ‘Pródigos’
BRASÍLIA. O Código Civil prevê que pessoas pródigas – gastadoras em
excesso – podem ter a interdição decretada pela Justiça, a partir de um pedido de um
familiar. Não são raras demandas nesse sentido nas Varas de Família relacionadas a
idosos, com um componente a mais: o uso do argumento da prodigalidade para impedir
novas relações afetivas dos pais ou avós.
Em agosto do ano passado, a 1ª Vara de Família de Cuiabá negou o pedido de
um filho para interditar o pai de 81 anos amparado no argumento de que o idoso é
pródigo. A juíza responsável pelo caso, Angela Gimenez, detectou um conflito na
família, em razão de um caso extraconjugal do pai por mais de 20 anos. O idoso,
inclusive, tem uma filha fora do casamento e custeia despesas da jovem. O filho
argumentou que o pai estava se endividando e deixando de pagar o próprio plano de
saúde. Não convenceu a juíza.
“O pai demonstrou que, não apenas sobre seu dinheiro pretende deliberar, mas
também sobre sua família e seus amores”, escreveu a magistrada na sentença. “A
questão da prodigalidade deve ser vista com cuidado redobrado, já que não se pode
retirar do indivíduo o direito de gerir sua fortuna, conforme seus desejos.”
A mesma juíza negou, também em agosto, pedido de interdição formulado por
uma mulher que queria evitar o divórcio. Se fosse nomeada curadora, garantiria o
controle do patrimônio do marido, presidente de uma importante associação em Mato
Grosso. “Ela fez um mau uso do instituto assistencial protetivo do incapaz”, argumentou
a magistrada.
O idoso de 76 anos tem problemas de saúde, em especial a doença de Parkinson,
mas mantém “plena higidez mental”. “Havia apenas um momento conturbado de
rompimento conjugal. A interdição tem, indubitavelmente, natureza protetiva, não se
configurando em meio idôneo para impedir que a pessoa delibere sobre sua vida e
expresse seus desejos”, concluiu a juíza.
Personagens
Nede, 89 anos
Sem comida, sem remédios, sem higiene e com benefícios de R$ 25 mil
BRASÍLIA. Os servidores da Coordenadoria de Inativos e Pensionistas da
Câmara dos Deputados passaram a atender ligações frequentes de moradores e
funcionários de um prédio na Asa Sul, região nobre em Brasília, durante mais de dois
anos. Do outro lado da linha, porteiros, zeladores e vizinhos denunciavam o abandono
de uma pensionista de um servidor da Câmara.
Nede, como é conhecida a idosa de 89 anos, passava fome, não tinha acesso a
medicamentos e não conseguia saciar as necessidades mais básicas. A falta de comida e
de cuidados teve início com a chegada de um sobrinho, supostamente interessado nas
pensões recebidas por Nede e pelo filho com deficiência mental. Os benefícios somam
R$ 25 mil brutos.
O sobrinho conseguiu afastar da idosa e do filho uma jovem que havia convivido
com a família na adolescência. Raquel Viana da Silva, hoje com 37 anos, era a
responsável pelos cuidados de Nede desde que a idosa sofreu um acidente vascular
cerebral (AVC), em 2003. Raquel tinha uma procuração assinada por Nede dentro do
hospital. Não demorou para o sobrinho aparecer. A procuração acabou transferida para
ele.
— Foi tudo muito complicado, uma pressão grande. Ninguém ligava, ninguém
aparecia. E, de repente, apareceu. Foi a primeira vez que alguém surgiu face a face —
conta Raquel.
O sobrinho ficou mais de dois anos à frente dos cuidados de Nede e do filho.
Durante esse período, a Coordenadoria de Inativos e Pensionistas da Câmara passou a
receber as denúncias de maus-tratos. Na Justiça, ele conseguiu a interdição da idosa e do
filho e foi nomeado curador dos dois. Em 2010, a curatela foi transferida em definitivo
para Raquel.
Ela vive no apartamento com os dois curatelados e com uma filha adolescente.
Recebe uma remuneração para cuidar dos dois e precisa prestar contas anualmente à
Justiça.
— Eu costumo dizer que tenho três filhos, dois independentes financeiros e uma
dependente. Ser curadora é ser mãe. Abre-se mão da liberdade, e existe muito
julgamento da sociedade — diz.
A pensionista da Câmara tem limitações físicas, anda numa cadeira de rodas e
faz fisioterapia três vezes por semana. Lúcida, está sempre dando atenção ao filho.
— Isso é que é importante: a lucidez — diz Nede.
Clarice, 89 anos
A neta está impedida de se aproximar da avó, mas insiste na interdição
Clarice tenta provar à Justiça que está sã. Com um raciocínio limpo, nostalgia e
ressentimento, ela repisa o que viveu nos últimos anos e sabe o que deseja para hoje. A
uma juíza, um promotor, uma psiquiatra e um psicólogo, Clarice relembra ter sido
vítima de cárcere privado, ter comido restos de refeições, ter habitado um quarto escuro
e com as janelas trancadas. O trauma não anula o discernimento. No aniversário de 90
anos, em março, certamente já terá em mãos o veredicto da Justiça sobre sua capacidade
– ou não – de cuidar da própria vida.
– Hoje, eu me sinto com 40 anos de idade – diz.
Na cobertura de um prédio numa área nobre de Goiânia, sob vigilância armada e
eletrônica (duas câmeras monitoram a porta principal do apartamento), Clarice passa os
dias rezando o terço e lendo livros sobre fazendas históricas, na companhia de uma filha
e de um neto. Uma outra neta acionou a Justiça para que ocorra a interdição da
matriarca. O processo, aberto para avaliar se Clarice tem saúde mental para tomar as
próprias decisões, intriga juízes, promotores e advogados. Se o processo de interdição
avançar e a guarda for concedida à neta, ela será responsável por um patrimônio de R$
15 milhões da avó viúva, valor estimado de uma herança constituída basicamente de
extensos pedaços de terra em Goiás.
A mulher que quer interditar a avó e se transformar em sua curadora está há mais
de dois anos impedida de se aproximar da idosa, por força de uma medida judicial. Foi
na casa dessa neta que Clarice diz ter sido vítima de cárcere privado e de maus-tratos,
versão mantida pela filha. Todas as relações estão cortadas, ao ponto de o apartamento
ganhar tanta vigilância. A Justiça avaliou provas, concluiu pela existência de “violência
psicológica” e já decidiu em caráter de urgência que a neta deve se manter a uma
distância mínima de 300 metros, sob pena de ser presa preventivamente.
A filha de Clarice é taxativa: o interesse da neta é apenas no dinheiro e no
testamento. A juíza responsável pelo caso já mandou averiguar se este é o real interesse.
E se há traços de psicopatia na personalidade da autora do processo.
Com todos os laudos concluídos, a 1ª Vara de Família de Goiânia está bem
próxima de uma decisão sobre o pedido de interdição. A principal conclusão médica:
Clarice não possui doença mental, mas uma “perturbação” da saúde mental, em razão da
idade avançada. “Assim, encontra-se parcialmente incapacitada para gerir seus bens,
porém ainda capaz de gerir a si mesma”, diz o laudo psiquiátrico encomendado pela
Justiça, concluído em 28 de novembro do ano passado.
– Na casa da minha neta, era uma escuridão. Ela não deixava eu fazer nada.
Nunca vi maldade daquele tamanho. Eu não merecia, não fiz nada errado. Vou viver o
restinho da minha vida sem precisar dela – resigna-se a mulher que, quando vivia nas
fazendas com o marido, costurava vestidos de noiva por encomenda.
No aniversário de 90 anos, Clarice planeja estar com a filha e o neto em Buenos
Aires. Uma situação bem diferente de cinco anos atrás, quando vivia com a neta e
dormia num quarto nos fundos de um sobrado. Quando o marido adoeceu, ela aceitou
viver na casa da neta – uma oportunidade de conviver com as bisnetas, pensou. No dia
da morte do companheiro de décadas, foi impedida de acompanhar o velório, como
conta.
– Foi realmente um cárcere privado. Assinava tudo que ela colocava na minha
frente. Para que eu não falasse com minha filha, ela colocava a bateria do meu celular
ao contrário. Meu marido deixou R$ 150 mil em conta, e minha neta sacou tudo.
O relato da avó é corroborado pela mãe, que demonstra completa frieza em
relação à filha. Partiu da mãe a iniciativa da segurança armada e da medida protetiva
obtida na Justiça.
A avaliação psicológica concluiu que Clarice tem “as faculdades mentais
intactas e saudáveis para decidir por si só”, apenas com danos em algumas funções
cognitivas em razão da idade. Já o laudo psiquiátrico reproduz a informação de que ela
perdeu dez quilos no período em que viveu com a neta. Clarice tem um “transtorno
cognitivo leve” e não pode ser considerada como portadora de demência, segundo o
laudo. “Ela é capaz de decidir onde e com quem deseja conviver e quem deverá ser seu
cuidador e curador”.
A neta se limita a dizer que o processo de interdição corre em segredo de Justiça,
que não há provas de maus-tratos no processo, que a mãe e o irmão “têm problemas na
cabeça” e que a investigação de cárcere privado foi arquivada.
– É doloroso o fato de eu estar afastada da minha avó. Ela está afastada de nós. Fora
isso, não existe mais nada.
A juíza do caso chegou a conceder a curatela provisória à neta em caráter
liminar. Convencida do equívoco, uma vez que os mesmos documentos apresentados
para provar limitações já haviam sido rechaçados por outro magistrado, revogou a
decisão. A neta omitiu, por exemplo, a existência da medida protetiva que a impede de
se aproximar da avó. Agora, a juíza aguarda o posicionamento do Ministério Público
para decidir, em definitivo, o destino de Clarice.
Helena, 93 anos
A história da taquígrafa do Senado que precisou ser retirada à força da casa de outra
servidora
BRASÍLIA. As cartas não previram o futuro de Helena. Quando procurava as
cartomantes, a taquígrafa do Senado queria que o tarô desenhasse suas perspectivas
amorosas. Nem a previsão mais negativa chegaria perto da realidade que Helena vive
hoje, aos 93 anos de idade. Sozinha, sem nenhum parente e sem amigos, a taquígrafa
aposentada está num abrigo em local incerto, endividada – mesmo recebendo
remuneração bruta de R$ 29,4 mil, o teto do funcionalismo público, que é o salário de
um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) – e sob a responsabilidade de uma
policial civil do Distrito Federal.
Depois de dois empréstimos suspeitos no Banco do Brasil no valor de quase R$
700 mil e de uma denúncia de maus-tratos, que estão sob investigação, Helena foi
retirada sob aparato policial da casa onde vivia, em cumprimento a uma decisão
judicial. A proprietária do imóvel, e ex-curadora provisória da idosa, é uma servidora da
ativa do Senado: Nina Lúcia de Lemos Torres, também taquígrafa e também
remunerada com um salário que bate no teto constitucional. Helena e Nina não se veem
desde então. A guarda definitiva foi assumida pela policial civil por indicação do
Ministério Público do DF. A antiga e a atual curadora estão em pé de guerra.
Por conta de uma demência, que gera uma incapacidade “definitiva e
irreversível”, conforme os últimos laudos médicos, Helena foi interditada pela Justiça.
Primeiro, em junho de 2011, houve uma interdição provisória, conforme relato de Nina,
a primeira curadora. Depois, a curatela mudou de mãos a pedido do Ministério Público e
por decisão da Justiça: foi transferida em definitivo para a policial civil em junho de
2012.
A estranha movimentação bancária ocorreu em junho de 2011. O primeiro
empréstimo, em conta corrente, foi feito no dia 22, com 60 parcelas de R$ 2,3 mil, que
totalizam R$ 141,5 mil. O segundo foi um empréstimo consignado em folha, três dias
depois, com 96 prestações de R$ 5,8 mil, num total de R$ 557,2 mil. Dessa forma,
Helena só terminaria de pagar as parcelas em 2019, quando estaria com 98 anos de
idade. A aposentada não tem capacidade para administrar bens e fazer transações
financeiras, em razão da demência, como concluiu um laudo médico. Ela toma
medicamentos para doença de Alzheimer, segundo a ex-curadora.
Nina nega qualquer responsabilidade pelos empréstimos. Diz que apenas
apresentou o gerente da agência do Banco do Brasil a Helena. Ela atribui toda a
operação – o que pode incluir uma fraude – aos servidores do banco. Tanto a antiga
curadora quanto a atual sustentam que a assinatura nos contratos dos empréstimos não
coincide com a grafia de Helena.
Por iniciativa da atual curadora, uma ação de anulação dos empréstimos e
revisão dos contratos passou a tramitar na 13ª Vara Cível de Brasília, com base no
Estatuto do Idoso. Os advogados que defendem Helena apontam no processo a
existência de um saldo negativo de R$ 140 mil no cheque especial, a contratação de
títulos de capitalização e a prática de “venda casada” com os empréstimos. Eles pedem,
então, que o Banco do Brasil informe quem foi o gerente responsável pelas operações e
qual foi o destino do dinheiro, com a especificação de contas corrente e poupança
destinatárias dos recursos.
A defesa do banco sustenta no processo que Helena compareceu pessoalmente à
agência e assinou os contratos. “Não há como o banco saber se a pessoa portadora de
tais documentos é o verdadeiro titular. O banco não é perito em grafotecnia.” Ao
GLOBO, o Banco do Brasil disse que vai se pronunciar no curso do processo e que
“mais informações sobre o caso estão protegidas sob sigilo bancário”.
A curadora de Helena também decidiu acionar a Delegacia Especial de
Atendimento à Mulher em Brasília para denunciar Nina por maus-tratos. Mas, até agora,
as provas reunidas pelos policiais não comprovam as agressões. As investigações ainda
estão em andamento.
– Helena nunca sofreu maus-tratos. Ela se machucou uma vez, mas foi numa
queda – diz Nina.
A situação envolvendo a taquígrafa aposentada levou o Senado a acionar
oficialmente o Ministério Público do DF, mais especificamente a Promotoria do Idoso.
A primeira vez em que o Senado enviou um ofício à Promotoria foi em julho de 2010.
O caso acabou nas mãos de promotores da área de Família, por haver necessidade de
interdição.
No ano passado, a Polícia Legislativa do Senado foi informada pela Polícia Civil
sobre a existência de um inquérito contra Nina, o que levou a um “registro da
ocorrência”. O Senado não detalha o que é esse registro. Nina está de licença do cargo.
Quando a curatela foi transferida para a policial civil, a servidora estava cedida
ao Ministério Público e coordenava o Setor de Proteção a Interditados do órgão.
A policial já conhecia Helena de feiras esotéricas – as duas tinham uma amiga
cartomante em comum.
Um hábito da taquígrafa, desde então, era dar dinheiro a desconhecidos, o que
corroborou o diagnóstico de demência e a consequente interdição. Ela também
transferia bens valiosos a conhecidos. Nina conta que um único homem ganhou uma
casa, um veleiro e grandes quantias de dinheiro. O Ministério Público tenta reverter na
Justiça vários bens transferidos por Helena.
O bem mais cobiçado é um apartamento na Asa Sul, área nobre de Brasília.
Quando já estava interditada, Helena manifestou a intenção de transferir o imóvel para
Nina, o que foi negado pela Justiça. Como não tem nenhum parente vivo – seu único
irmão não teve filhos – nem discernimento ou direito constituído para decidir, o
apartamento ficará para o Estado.
Em papéis e cadernetas, Helena costumava registrar as doações feitas, frases
deconexas e orações, misturando as letras do alfabeto tradicional com os códigos da
taquigrafia, função que ela começou a desempenhar no Senado em 1968. A taquígrafa
tem mania de perseguição: “O filho ficou me vigiando. Corro perigo de agressão?”
Numa das anotações, guardadas por Nina, há o registro de um suposto encontro
entre Helena e sua atual curadora, em julho de 2006. Conforme as anotações que seriam
da taquígrafa aposentada, as duas jogaram cartas naquela ocasião.
“Ela é cartomante”, teria escrito Helena. Nina insinua que foi retirada da curatela
e afastada da aposentada porque a atual curadora tem interesses diretos no processo. A
atual curadora diz que, em razão do segredo de Justiça dos autos, não fará qualquer
comentário sobre o caso.
No abrigo onde foi colocada, em local não revelado por ninguém, Helena
costuma receber as pessoas com uma figa, um amuleto feito com a mão fechada:
– É para espantar “urubu” e “amigo da onça” – repete.
Balbina e Claudianor
Sem patrimônio e renda, histórias de abandono
Balbina, de 85 anos, é uma das idosas interditadas pela Justiça que vivem no bloco C do
Lar Maria Madalena, em Brasília. É neste bloco onde estão os idosos que recebem
menos visitas e que precisam de cuidados contínuos – são 12 os interditados. Balbina
tem uma demência e fala frases desconexas. Passa os dias com uma boneca no colo:
– O único parente que eu tenho é ela. Tem duas irmãs que não gostam de mim.
Mandei elas se danarem.
O relatório de serviço social do abrigo conta um pouco mais sobre ela: a mulher
era cozinheira, mudou-se de Campina Grande (PB) para Brasília, viveu na rua e foi
levada para o abrigo há oito anos. Teve seis filhos. Os seis morreram. A aposentadoria
de um salário mínimo é usada pelo curador nas despesas básicas do asilo.
Claudianor, 75, não tem ninguém na vida – é outro sob a responsabilidade legal
do presidente do Maria Madalena. Também é um homem sem amigos. Os cuidadores
contam que Claudianor não gosta de conversar com os outros idosos, é agressivo em
alguns momentos. Passa os dias sentado, calado, sem fazer nada.
– Só saí daqui duas vezes, uma para ir ao banco e outra para ir ao hospital. É do
quarto para o pátio e do pátio para o quarto – conta.
Ele diz estar há sete meses no Maria Madalena. Já são cinco anos, na verdade,
segundo o relatório de serviço social, que informa também que Claudianor morava na
rua, catava latinhas no Setor de Embaixadas e teve todos os documentos extraviados.
Depois de um acidente com uma barra de ferro, que caiu em sua cabeça, Claudianor se
aposentou e passou a receber um salário mínimo.
Golpe nas pensões
Golpe do baú de R$ 30 milhões
TCU investiga falsos casamentos com servidores idosos para assegurar recebimento
de benefícios
BRASÍLIA. O pente-fino que o Tribunal de Contas da União (TCU) é obrigado
a fazer nas pensões pagas pelos órgãos públicos federais tem detectado, cada vez mais,
casamentos e uniões estáveis entre parceiros com uma grande diferença de idade. O
fenômeno alimenta a suspeita de relações forjadas por servidores no fim da vida, para
assegurar pagamento de pensões vitalícias aos respectivos cônjuges.
Companheiros também são suspeitos de simular a relação, com ou sem anuência
do servidor, para ter as pensões. Levantamento inédito da Secretaria de Fiscalização de
Pessoal (Sefip) do TCU dá uma dimensão do prejuízo aos cofres públicos em razão de
pagamentos irregulares do benefício.
A Sefip listou 25 casos de pensões em que o casamento ou a união estável
envolviam parceiros com diferença de idade de 36 a 60 anos. Em todas as situações, o
plenário do tribunal identificou irregularidades na concessão do benefício e determinou
sua interrupção. Até isso ocorrer, pensões foram pagas por décadas a fio, pois os
beneficiários eram jovens, e os pagamentos são vitalícios para cônjuges, conforme
previsto na lei dos servidores públicos federais. O total pago pela União, somente nos
casos dessas 25 pensões, chegou a R$ 30,4 milhões.
A diferença de idade não foi determinante para a constatação da irregularidade
no pagamento, uma vez que não há previsão legal para esse aspecto envolvendo
servidores e pensionistas, ressalta o próprio TCU. Também não está por trás da
decretação da ilegalidade uma eventual simulação de casamento ou união estável.
Em apenas um caso, a pensão foi considerada irregular por falta de comprovação
da união estável. A diferença de idade entre uma servidora do Ministério da Saúde em
Minas e o pensionista era de 49 anos. Em 38 anos de pagamentos ilegais, desde a morte
da servidora, o beneficiário recebeu R$ 866,6 mil dos cofres públicos. O TCU decretou
a ilegalidade em junho de 2011 e decidiu que os valores recebidos indevidamente não
devem ser devolvidos.
As irregularidades mais comuns, determinantes para a suspensão dos
pagamentos, são erros na proporcionalidade do benefício e repasses a mais aos
pensionistas. O tribunal tem dificuldades para comprovar casamentos e uniões estáveis
forjados. Mas, diante da recorrência dos casos, o órgão pretende fazer auditoria para
listar o maior número possível de situações assim e calcular o prejuízo.
—Diferença muito grande de idade, por si só, não é motivo de ilegalidade. E,
para anular um casamento, só o Judiciário. A partir daí é que o TCU pode atuar. Nos
casos de união estável, é mais fácil reunir provas. Já detectamos diversas simulações —
afirma o secretário de Fiscalização de Pessoal do TCU, Alessandro Laranja.
A Sefip analisa, por ano, 15 mil pensões e 35 mil aposentadorias. Do total, cerca
de 4 mil (8%) são consideradas irregulares. O TCU tem de analisar a legalidade do
pagamento de uma nova pensão em 120 dias. Mas, pela fila de processos, a análise
costuma demorar oito meses. Os órgãos públicos podem iniciar os pagamentos antes do
veredicto do TCU. Decisões do Supremo legitimam esses pagamentos precários.
O retrato dos beneficiários
Fonte: Estudo da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), com base em dados do Ministério do
Planejamento e Boletim Estatístico de Pessoal do ministério de novembro de 2013
Cônjuges, companheiros em união estável, pais, mães, idosos e pessoas com
deficiência dependentes do servidor falecido têm direito a uma pensão vitalícia. Já
pensões temporárias se destinam a filhos até fazerem 21 anos. O número de
beneficiários se mantém praticamente constante nos últimos dez anos. Mais de 408 mil
servidores deram origem a pensões, segundo dados de 2013 do Ministério de
Planejamento, um gasto anual de R$ 31,7 bilhões.
Numa decisão de julho de 2013, o TCU considerou legal o casamento de um
general do Exército de 97 anos com uma mulher quase 40 anos mais jovem. Ele já
estava com a saúde “bastante debilitada” e morreu dois anos depois. “Não há
documentos que evidenciem que o interessado era incapaz para os atos da vida civil, de
forma que o casamento é legítimo. Não há que se reformar o ato de concessão de
pensão”, concluiu.
Já a adoção de uma neta de 24 anos, quando o general tinha 91, foi considerada
ilegal. Os filhos do militar já eram maiores e não teriam direito ao benefício. O único
objetivo da adoção foi perpetuar a pensão à neta, disse o TCU, que determinou
suspender o benefício. A ex-companheira e a neta travam na Justiça um duelo pela
pensão integral.
Uniões Forjadas
Quando o cuidador quer a união estável
Casos são cada vez mais frequentes nas Varas de Família, afirmam promotores e
juízes
BRASÍLIA E GOIÂNIA. Juízes e promotores que atuam nas Varas e
Promotorias de Família passaram a gastar boa parte do tempo com um peculiar tipo de
demanda: cuidadores interessados em assegurar união estável com os idosos cuidados,
seja em vida ou após a morte. O desafio dos profissionais que ficam responsáveis pelos
processos é identificar quando existe má-fé por parte do cuidador e quando a relação é,
de fato, verdadeira, apesar da habitual diferença de idade.
Magistrados relatam uma dificuldade em reunir provas sobre a relação amorosa
e uma preocupação em não manifestar preconceito na hora de analisar os indícios
reunidos. Mas são cada vez mais comuns a apresentação de provas forjadas e a
simulação de uma relação duradoura para garantir, após a morte do idoso, o
recebimento de pensões e a participação na partilha de bens.
O movimento de cuidadores na Justiça é mais uma fonte de conflitos para filhos,
netos e outros parentes. O mais frequente, segundo juízes e promotores ouvidos pelo
GLOBO, é a busca por uma pensão definitiva, o que pode indicar má-fé nos pedidos de
união estável, principalmente quando feita após a morte.
A Justiça vem tratando a união estável de forma similar ao casamento, do ponto
de vista da divisão de bens e partilha da herança. O Código Civil prevê que o regime a
ser aplicado nesse caso é o da comunhão parcial de bens. O mesmo código estabelece
que, em casamentos envolvendo uma pessoa com mais de 70 anos, deve haver
separação total de bens. Os tribunais superiores vêm considerando que o mesmo
princípio se aplica às uniões estáveis, respeitada a divisão do patrimônio constituído
durante a relação.
– São muitos os casos de pedidos de união estável por cuidadores, com muitos
conflitos familiares, pois as demências já costumam estar avançadas – afirma a
promotora de Justiça Maercia Correia de Mello, da 11ª Promotoria de Família de
Brasília.
Para a juíza Sirlei Martins da Costa, da 1ª Vara de Família de Goiânia, os
pedidos objetivam a obtenção de pensões e de bens:
– Na maioria das vezes, confirma-se que o vínculo era apenas empregatício.
Abandono familiar estimula ações
A promotora Sandra de Albuquerque Beze, da 2ª Promotoria de Família de
Brasília, tem uma explicação para o aumento dos pedidos de cuidadores por união
estável com os idosos cuidados:
– Muitas ações são causadas pelo abandono da própria família.
Em Goiânia, uma governanta de um fazendeiro, morto em março de 2009,
quando tinha mais de 70 anos, tenta provar na Justiça que manteve união estável com o
idoso. Para isso, ela reuniu provas como fotos ao lado do ex-patrão e depoimentos de
testemunhas que conheciam os dois.
Um motorista, no entanto, disse à Justiça que a relação entre os dois era apenas
empregatícia. Além disso, os advogados dos filhos do fazendeiro demonstraram ser
comum a governanta receber e servir em casa outras companheiras do pai, o que
tornaria incompatível com uma situação de união estável. A cuidadora continua
morando, com o filho, na cobertura de um prédio em área nobre da capital goiana,
apartamento onde antes vivia o fazendeiro. Os filhos tentam obter o imóvel de volta.
Na primeira instância, a família saiu vencedora – a Justiça não reconheceu a
união estável. Em razão de diversos recursos, o caso está em análise no Superior
Tribunal de Justiça (STJ).
A governanta quer a metade do patrimônio construído desde a suposta união
estável. Não é pouco dinheiro. Ela trabalhou com o fazendeiro por 26 anos. Numa
primeira interpretação da Justiça, já se considerou que “convivência sob o mesmo teto
não é prova de união marital”.
Os casos em tramitação nas Varas de Família – todos sob segredo de Justiça –
são os mais diversos. Em Brasília, uma cuidadora passou a simular uma relação afetiva
para obter dinheiro e construir uma casa. Depois da morte do idoso, a Justiça passou a
ser palco de uma disputa dela com os filhos.
As Promotorias de Família em Brasília investigam uma suposta má-fé na relação
afetiva entre uma cuidadora e um ministro aposentado de um tribunal. Para tentar evitar
a relação, os filhos pediram a interdição do pai na Justiça, o que foi negado por não
haver comprovação da necessidade do ato. O ministro tem discernimento de seus atos.
O caminho inverso ao de cuidadores de idosos também é notado por juízes e
promotores. Em Porto Alegre, os filhos pediram a interdição da mãe na Justiça
unicamente porque ela comentou com as netas que namoraria um vizinho.
Reportagens: Vinicius Sassine | Fotos e Vídeos: André Coelho | Edição: Roberto Maltchik |
Desenvolvimento: Ayrton Teshima e Julia Maia
Fonte: Jornal O Globo Online
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