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UFRJ A CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA: UMA COMBINAÇÃO DE DIFERENTES TRADIÇÕES JURÍDICAS Flavia Guerra Cavalcanti Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Orientador: Franklin Trein Rio de Janeiro Agosto de 2005

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UFRJ

A CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA:

UMA COMBINAÇÃO DE DIFERENTES TRADIÇÕES JURÍDICAS

Flavia Guerra Cavalcanti

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Ciência Política.

Orientador: Franklin Trein

Rio de Janeiro

Agosto de 2005

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A CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA:

UMA COMBINAÇÃO DE DIFERENTES TRADIÇÕES JURÍDICAS

Flavia Guerra Cavalcanti

Orientador: Franklin Trein

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título

de Mestre em Ciência Política.

Aprovada por:

___________________________________

Presidente, Prof. Franklin Trein

___________________________________

Prof. Williams da Silva Gonçalves

___________________________________

Prof. Charles Pessanha

Rio de Janeiro

Agosto de 2005

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Cavalcanti, Flavia Guerra.

A Constituição européia: uma combinação de diferentes tradições jurídicas / Flavia Guerra Cavalcanti. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2005.

ix, 234f.: 30 cm.

Orientador: Franklin Trein.

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2005.

Referências Bibliográficas: f. 219-224.

1. Relações internacionais. 2. União Européia. 3. Constitucionalismo. 4. Federalismo. 5. Confederalismo. I. Trein, Franklin. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-graduação em Ciência Política. III. A Constituição européia: uma combinação de diferentes tradições jurídicas.

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RESUMO

A CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA:

UMA COMBINAÇÃO DE DIFERENTES TRADIÇÕES JURÍDICAS

Flavia Guerra Cavalcanti

Orientador: Franklin Trein

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

Após meio século de processo de integração e depois das tentativas

frustradas de relançar a União Européia nos anos 90, os dirigentes europeus

acreditaram que havia chegado a hora de elaborar uma Constituição Européia.

Apenas uma Carta formal seria capaz, argumentava-se, de impulsionar a

integração e resolver o problema do déficit democrático da União. Contudo, o texto

aprovado pelo Conselho Europeu em 17 e 18 de junho de 2004 não pode ser

tomado como uma Constituição tout court. Por ter sido aprovada pelos Chefes de

Estado e de Governo dos 25 países membros da União Européia, ela também se

aproxima de um Tratado no sentido tradicional. As controvérsias não são menores

quando se tenta definir se a Carta Européia é federalista ou confederalista,

republicana ou liberal, neoliberal ou social. A dissertação recorre a modelos e

conceitos tradicionais para analisar o texto constitucional e descobrir para qual

direção a Constituição Européia aponta.

Palavras-chave: relações internacionais, União Européia, constitucionalismo,

federalismo, confederalismo.

Rio de Janeiro

Agosto de 2005

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ABSTRACT

EUROPEAN CONSTITUTION: A MIX OF DIFFERENT LEGAL TRADITIONS

Flavia Guerra Cavalcanti

Orientador: Franklin Trein

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

After half-century-long integration process and the frustrated tentatives of

giving impulse to the European Union in the 90´s, the european bureaucrats realized it

was time to create a European Constitution. They argued that only a formal

Constitution could speed up the integration process and solve the European Union´s

democratic deficit. However, we can´t take for granted that the text approved by the

European Council 17-18th june 2004 is a Constitution. The fact that it was signed by

presidents and prime ministers from each of the 25 member States of the European

Union could lead some to consider it as a traditional Treaty. The controversies are not

less relevant when it comes to know if the European Constitution is federalist or

confederalist, republican or liberal, neoliberal or social rights´protective. This

dissertation uses traditional models and concepts to analyze the European Constitution

and find out the direction the European Union might evolve into.

Key words: international relations, European Union, constitucionalism, federalism,

confederalism.

Rio de Janeiro

Agosto de 2005

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AGRADECIMENTOS

Uma dissertação de mestrado não é apenas o produto de um trabalho realizado

entre quatro paredes. Os fatores externos podem ser tão importantes para o

desenvolvimento do trabalho acadêmico quanto o esforço pessoal. Agradeço a

todos aqueles que, de uma forma ou de outra, ajudaram a criar esses fatores

externos.

Em primeiro lugar, agradeço ao meu orientador, Prof. Franklin Trein, por sua

paciência e generosidade durante nossas reuniões. Aos professores do Programa de

Pós-Graduação em Ciência Política da UFRJ - Charles Pessanha, Maria Lucia Maciel,

Isabel Ribeiro, Aluízio Alves Filho e Eli Diniz - por me apresentarem a um novo

campo de estudos. Agradeço ainda à Profª. Célia Lessa Kerstenetzky, da

Universidade Federal Fluminense, convidada para lecionar no Programa de Pós-

Graduação em Ciência Política da UFRJ em 2003.

Meus amigos e colegas de mestrado também foram fundamentais nesses

dois anos de mestrado. Sem eles, as discussões dentro e fora da sala de aula não

teriam sido tão interessantes: Maryann, Ana Luíza, Tatiana, Fernando, Rodrigo,

Henrique, Damasceno, Francisco, Daniele, Marli, Maria e Ledílson. Agradeço

também a minhas irmãs, Lara e Juliana.

Obrigada à amiga e professora Telênia Teresinha de Senna Hill, da Escola de

Comunicação da UFRJ, que sempre me estimulou a fazer o mestrado.

Agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro

(Faperj) pelo apoio financeiro que me possilibitou dedicar mais tempo à pesquisa..

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Ao meu pai, Frederico Cavalcanti.

À minha avó, Antonietta Knupfer Cavalcanti (post mortem).

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Il n´y a pas de vrai sens d´un texte (Não existe o sentido verdadeiro de um texto)

Paul Valéry

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SUMÁRIO

Introdução 1

Capítulo 1. Constitucionalismo 11

A idéia de uma constituição democrática: introdução ao problema

A constituição entre os antigos

O governo misto na Cidade-Estado: Platão e Aristóteles

A República Romana

A autonomia local: a tradição germânica na Idade Média e a common

law inglesa

A constituição entre os modernos

O paradigma republicano

O paradigma liberal

Capítulo 2. Federalismo e confederalismo 71

Elementos republicanos e liberais no federalismo

A expansão do princípio federalista

Confederalismo

O conceito de subsidiariedade: uma forma de federalismo

Consortio e condominium

Capítulo 3. Histórico do processo de integração 101

Capítulo 4. Análise do projeto de Constituição européia 128

A idéia de uma constituição-tratado

As tradições grega, romana e anglo-saxã na Constituição européia

O paradigma moderno

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O republicanismo moderno na Constituição da Europa

O liberalismo na Constituição da Europa

Uma Europa federalista ou confederalista?

A configuração de consortio e/ou condominium

Conclusão 205

Referências bibliográficas 219

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Introdução

Em pouco mais de uma década, a União Européia realizou três tentativas de

aprofundamento da integração e de democratização da estrutura da UE. Os

Tratados de Maastricht (1992), Amsterdã (1997) e Nice (2000) trouxeram

inovações nesse sentido. O Tratado de Maastricht conferiu mais funções ao

Parlamento Europeu, introduziu o princípio da subsidiariedade e o conceito de

cidadania européia e criou o Defensor Público, o Provedor de Justiça e o Comitê das

Regiões. O Tratado de Amsterdã incorporou o Convênio de Schengen, que liberava

o controle de passaportes nas fronteiras, e estabeleceu a cláusula de suspensão,

segundo a qual o Estado que violar qualquer dos princípios do artigo 6º do Tratado

de Maastricht (liberdade, democracia, respeito pelos direitos do homem e pelas

liberdades fundamentais) terá alguns de seus direitos suspensos. Por fim, o Tratado

de Nice aprovou uma Carta de Direitos Humanos.

No entanto, essas tentativas de aprofundamento e democratização da UE

não foram suficientes para resolver o problema do déficit democrático da União.1 O

Tratado de Maastricht não equiparou o Parlamento Europeu aos nacionais. Também

não foi capaz de fazer os europeus se identificarem com o conceito de cidadania

européia proposto. Na prática, o Tratado de Amsterdã privilegiou a subsidiariedade

dos Estados membros em detrimento da das regiões e comunidades locais. Ou seja,

não democratizou a UE tanto quanto se esperava. Por fim, a Carta de Direitos

Humanos introduzida pelo Tratado de Nice não era vinculatória e, portanto, não

resultou num efetivo avanço democrático.

Diante do fracasso dos três Tratados de aprofundamento da integração –

Maastricht, Amsterdã e Nice -, os chefes de Estado reunidos em 2001, na cidade de

Laeken (Bélgica), se perguntaram se não estaria na hora de a Europa ter uma

Constituição. A necessidade de democratizar a União Européia tornou-se ainda mais

urgente com a perspectiva de inclusão, em maio de 2004, de dez novos Estados-

1 CENTRE FOR EUROPEAN REFORM. The CER guide to the draft EU Constitution.

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membros. Talvez só um texto constitucional pudesse lidar com os problemas que os

Tratados não conseguiam resolver. Ato contínuo, convocaram a Convenção

Européia sobre o Futuro da Europa e encarregaram-na de analisar se a

simplificação dos Tratados poderia levar à adoção de uma Constituição formal.

A idéia de uma Constituição Européia não era nova. Havia sido aventada

pela primeira vez no Congresso de Haia, em 1948, antes portanto do início da

Comunidade Européia. Nos anos 80 e 90, o debate sobre uma Constituição retornou

sob a forma de dois projetos apresentados ao Parlamento Europeu, um de 1984, de

autoria de Spinelli, e outro de 1994, elaborado por Herman.

No entanto, essas discussões sobre uma Constituição Européia nunca se

consolidaram devido a dois motivos: um de natureza teórica e outro de caráter

prático. Teoricamente, a Constituição Européia era incluída na categoria dos objetos

não existentes e que, portanto, não mereciam muita atenção. A proposta de uma

Constituição válida em 25 Estados (caso todos a ratifiquem), cada um deles com

culturas e tradições diferentes, parecia despropositada. Como falar em uma

Constituição supranacional quando as Constituições são entendidas pela teoria

política clássica como documentos que expressam a vontade de uma nação? Um

documento supranacional, assinado por Estados, não mereceria a denominação de

Tratado? Como pensar um objeto tão estranho e de existência duvidosa?

Por outro lado, a Constituição era rejeitada por suas possíveis conseqüências

práticas para a União Européia. O problema aqui não era teórico. A Constituição

Européia parecia fácil de ser analisada porque se assemelhava a um objeto

bastante conhecido pela teoria política: a Constituição como lei maior de um Estado

nacional.

O temor era de que o texto constitucional transformasse a União Européia

num Estado supranacional ou numa Federação centralizada. Para este grupo,

formado principalmente pelos antifederalistas, a Constituição Européia não era um

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objeto inexistente, mas uma instituição com grandes possibilidades de influenciar a

realidade.

A Convenção Européia sobre o Futuro da Europa2 conseguiu, portanto, um

feito inédito. Ao contrário das tentativas anteriores, que provocavam debates

intermitentes sobre a Constituição, a Convenção manteve acesa a discussão sobre

uma Constituição para a Europa. Além disso, elaborou um projeto de Constituição

que foi posteriormente aprovado pela Convenção (13 de junho e 10 de julho de

2003) e pelo Conselho Europeu (17 e 18 de junho de 2004).

Presume-se, assim, que a Convenção tenha conseguido vencer as

resistências teóricas e práticas que, por tanto tempo, impediram a aprovação de

uma Carta constitucional. De fato, durante os trabalhos da Convenção, a

Constituição Européia deixou de ser vista tanto como um objeto inexistente e

impossível de ser concebido quanto como um objeto com poder para influenciar o

desenho da União Européia no sentido de um Estado unitário ou de uma Federação

centralizada. Ao contrário, os que deram aval à Constituição Européia - os membros

da Convenção e, posteriormente, os chefes de Estado e Governo do Conselho

Europeu – a entendiam como um novo objeto capaz de suprir o déficit democrático

da União.

2 A Convenção Européia chegou a ser comparada à Convenção de Filadélfia (1787), que na realidade atuou como uma Assembléia Constituinte e deu origem à Constituição Americana. O termo convenção era então entendido como sinônimo de Assembléia Constituinte, uma assembléia formada por representantes eleitos pelo povo. No entanto, a Convenção Européia nunca foi uma Assembléia Constituinte ou, ao menos, uma convenção no sentido próprio do termo, ou seja, uma reunião de caráter político. Na prática, assemelhou-se a um pequeno comitê, formado apenas por 118 pessoas: o presidente, os dois vice-presidentes, 15 representantes dos Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros (um por Estado), 13 representantes dos Chefes de Estado e de Governo dos países candidatos à adesão (um por Estado), 30 representantes dos Parlamentos nacionais dos Estados-membros (dois por Estado membro), 26 representantes dos Parlamentos nacionais dos países candidatos à adesão (dois por país), 16 representantes do Parlamento Europeu e dois representantes da Comissão Européia. Participaram da Convenção como observadores o Comitê Econômico e Social (três representantes), o Comitê das Regiões (seis representantes), os parceiros sociais (três representantes) e o Provedor de Justiça europeu.

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Durante o tempo que durou a Convenção, a Constituição passou de objeto

inexistente a instituição com capacidade de influenciar a realidade européia de

forma positiva. Uma vez aprovada, exigiu-se da Carta européia o que se costuma

exigir de instituições veteranas e já bastante testadas. Ela deveria reduzir o déficit

democrático da União Européia - o que os Tratados anteriores só haviam obtido de

forma incompleta -, e fazê-lo num contexto mais difícil do que aquele encontrado

pelos autores dos Tratados, isto é, numa Europa agora com 25 Estados-membros.

Esperava-se ainda que o texto apontasse uma direção para a União

Européia. Afinal, como uma entidade composta por 25 Estados poderia não ter

clareza sobre seu desenho institucional? Nos 50 anos do processo de integração,

como veremos no capítulo 3, a CE oscilou entre o federalismo e o confederalismo,

sem adquirir, no entanto, características inequívocas de um desses arranjos. Por

vezes, também apresentou configurações semelhantes a organizações medievais,

como o consortio e o condominium. A Constituição Européia era vista, portanto,

como uma oportunidade de estabelecer um caminho para a Europa, livrando o

continente daquela indeterminação institucional que marcara sua história recente.

Nesse sentido, podemos dizer que havia a expectativa de que a Constituição

Européia abrigasse uma teleologia constitucional, determinando de uma vez por

todas o futuro desenho da União Européia. Apesar dos avanços alcançados pela

Convenção, as discussões sobre o significado de uma Constituição Européia

prosseguem e ameaçam sua ratificação.3 Ela ainda é vista, por uns, como objeto

estranho e, por outros, como ameaça à soberania estatal. O debate sobre a

Constituição não se esgotou com a sua aprovação pelo Conselho em junho de 2004.

Por isso, consideramos necessário o aprofundamento da pesquisa sobre a

Constituição Européia. As duas principais perguntas que nos motivaram a escolher

3 A Constituição Européia deverá ser ratificada pelos 25 Estados-membros. Alguns países só ratificarão a Carta caso suas populações aprovem essa decisão por meio de referendos. A Espanha disse sim à Constituição Européia em fevereiro e a França e a Holanda disseram não em maio e junho, respectivamente.

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a Constituição como objeto de pesquisa foram: ela tem capacidade para influenciar

a realidade política européia? e essa influência se dá numa única direção?.

Tratamos da primeira questão no início do capítulo 1 desta dissertação,

respondendo-a afirmativamente e tomando-a como pressuposto de nossa reflexão.

Para justificar nosso ponto de partida, utilizamos como referencial teórico a

pesquisa de Putnam sobre as instituições italianas e a argumentação de Habermas

sobre as constituições. Se entendêssemos as constituições formais como

irrelevantes, não haveria motivos para analisar o objeto Constituição Européia.

A própria história da União Européia parece corroborar esse pressuposto. A

UE também já foi um objeto inexistente. A proposta de unir a Europa pode ter,

inicialmente, soado utópica para aqueles que presenciaram as guerras entre os

Estados do Continente. Como aproximar países que se acostumaram, durante os

últimos séculos, a resolver seus conflitos pela violência? No entanto, 54 anos após

a criação da primeira instituição comunitária, podemos dizer que a integração da

Europa é uma realidade.

Já a segunda pergunta constitui a nossa hipótese e se desdobra em vários

outros questionamentos correlatos. Será que a Constituição Européia pode imprimir

uma direção inequívoca à União Européia? Ela apresenta compatibilidade entre seus

elementos, formando um todo orgânico em que cada parte serve a um mesmo fim?

E que fim será esse, o federalismo, o confederalismo ou o consortio/condominium?

Ou alguma entidade ainda não detectada pelos instrumentos teóricos atualmente

disponíveis? Caso a Constituição da Europa seja internamente coerente, será que

este aspecto contribuirá para a diminuição do déficit democrático da UE?

Outra questão que motivou a pesquisa foi a da correlação entre a suposta

ambigüidade da Constituição Européia e a permanência do déficit democrático.

Sabemos que a Constituição Americana é exaltada como democrática, entre outras

razões, por sua clareza e simplicidade. Para um ditador como Napoleão, o ideal era

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que elas fossem curtas e obscuras,4 para dificultar o seu entendimento pelo povo.

Existe, portanto, a suposição de que o texto constitucional confuso é

necessariamente pouco democrático. O fato de comportar diversas tradições

tornaria a Constituição ambígüa? Mas será que uma Constituição ambígüa é mesmo

menos democrática?

Acreditamos que só uma análise do texto constitucional aprovado pelo

Conselho Europeu em 2004 poderá dar uma resposta, ainda que parcial, a estas

questões. O conhecimento da natureza e da estrutura da Constituição podem nos

revelar se existe a tentativa de instituir um único caminho para a UE e, em caso

afirmativo, qual seria ele. Mas como analisar a Constituição? A partir de que

instrumentos?

A primeira reação diante de um objeto novo é a tentação de querer

aproximá-lo o quanto antes dos tipos ideais já investigados pela literatura. Algo

parecido ocorreu com a Comunidade Européia e, posteriormente, com a União

Européia, freqüente e erroneamente vistas por alguns teóricos como embriões de

um Estado unitário. Raciocinou-se, então, da seguinte forma:

a) todo Estado-nação tem uma Constituição.

b) a Europa é um Estado-nação.

c) logo, a Europa tem uma Constituição.

Esse silogismo era tranqüilizador porque partia de conceitos estabelecidos.

Sua primeira premissa trazia uma afirmação categórica, qual seja, a de que todo

Estado-nação tem uma Constituição.

Por outro lado, afirmou-se que a Constituição Européia era, na verdade, um

Tratado, já que, segundo a noção tradicional, os Tratados são assinados por dois ou

mais Estados.

4 ROBERT, A. C. Coup d´Etat idéologique en Europe. Une vraie-fausse Constitution: 1.

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a) todo acordo entre Estados denomina-se Tratado.

b) A Constituição Européia é um acordo assinado entre Estados.

c) logo, a Constituição Européia é um Tratado.

Por partirem de premissas tradicionais, fechadas - Todo Estado-nação tem

uma Constituição e Todo acordo entre Estados denomina-se Tratado -, esses

silogismos só podem chegar a resultados igualmente fechados. Ou a UE é um

Estado com uma Constituição ou um conjunto de 25 Estados com um Tratado. A

combinação Constituição-Tratado está, desde o princípio, descartada. Não existe a

possibilidade de a União Européia ser um conjunto de 25 Estados e ter uma

Constituição.

Nosso objetivo não é desconsiderar os conceitos clássicos. A importância que

atribuímos a eles pode ser verificada na primeira parte da dissertação, nos

capítulos 1 e 2. Acreditamos que as tradições constitucionais sejam uma base

indispensável para entender a Constituição da Europa, já que esta não surgiu num

vácuo teórico. Os conceitos clássicos são fundamentais por dois motivos. Em

primeiro lugar, mesmo quando buscamos a novidade na Carta Européia, só

podemos identificá-la quando a contrastamos com os conceitos antigos. Sem o

conhecimento das tradições, correríamos o risco de tomar como novidade uma idéia

já antiga. Em segundo lugar, muitas vezes as novidades são o resultado da

combinação de conceitos tradicionais, como no caso do termo Constituição-Tratado.

Ou seja, só o conhecimento das definições consagradas de Constituição e de

Tratado é que permitirá compreender o que significa o híbrido Constituição-Tratado.

Em suma, identificamos dois processos de formação de novos conceitos. Por um

lado, existem aqueles que surgem a partir da oposição a conceitos antigos. Por

outro, há os que se formam pela mistura inesperada de conceitos antigos. O

problema, portanto, não é a utilização dos conceitos tradicionais para analisar um

novo objeto como a Constituição Européia, mas a tentativa de prendê-los com a

camisa-de-força dos silogismos acima explicitados.

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Retomando o ponto, não dispensamos as tradições constitucionais. Apenas,

no momento de analisar o texto constitucional aprovado em 2004 pelo Conselho

Europeu, procuramos não nos limitar a uma única tradição. Estamos diante de um

Tratado ou de uma Constituição? E, no caso de ser uma Constituição genuína, de

que modelo de Constituição estamos tratando? Mesmo que quiséssemos, não

conseguiríamos enquadrá-la num único modelo constitucional, porque o próprio

objeto Constituição Européia não se presta a interpretações unívocas.

Essa dificuldade do objeto, aliada a seu ineditismo, nos levou a indagar se

não estaríamos diante de uma nova idéia equivalente, em importância teórica, à

democracia grega e ao federalismo americano. Não estaria o Velho Continente,

visto por muitos como lugar de preservação e não de criação, dando origem a uma

forma inovadora de constitucionalismo? Nossa motivação para esta pesquisa foi a

suspeita de que a Constituição Européia poderia nos fazer compreender melhor as

novas formas de organização política que estão surgindo neste início de século e

que, eventualmente, poderiam vir a ser imitadas por outros processos de

integração.

A dissertação está estruturada em quatro capítulos que podem ser

classificados em três grupos: teórico (capítulos 1 e 2), histórico (capítulo 3) e

analítico (capítulo 4). O primeiro capítulo traz um panorama da teoria do

constitucionalismo e de seu desenvolvimento em diversas épocas, suas principais

correntes e autores. O segundo capítulo concentra-se na teoria do federalismo -

incluindo a análise do Princípio de Subsidiariedade -, do confederalismo e do

consortio/condominium. Nessas duas partes, quase não há referências à

Constituição Européia, pois o objetivo foi apenas apresentar o quadro teórico que

será utilizado posteriormente, na análise do texto constitucional (capítulo 4).

O capítulo 3 pode ser considerado um capítulo de transição entre a primeira

parte da dissertação, constituída pelas teorias clássicas do constitucionalismo e do

federalismo, e a segunda, que trata da aplicação daqueles conceitos no objeto

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Constituição Européia. Antes de passarmos da pesquisa teórica para a análise da

Constituição, consideramos necessário apresentar um capítulo com o histórico da

União Européia, para que se possa entender o lugar ocupado pela Constituição

Européia na história do processo de integração. Essa história é contada a partir dos

conceitos discutidos na primeira parte do trabalho e que serão utilizados na análise

da Constituição: o federalismo, o confederalismo e o consortio/condominium. O

objetivo será mostrar que, ao longo do processo de integração, nenhum desses

desenhos institucionais se tornou hegemônico. Houve, ao contrário, uma disputa

acirrada e constante entre os defensores de cada arranjo. Será que a Constituição

Européia daria uma solução definitiva para a disputa entre federalistas,

confederalistas e os defensores de um desenho do tipo consortio/condominium?

No quarto e último capítulo, analisamos a Constituição Européia por meio

dos conceitos discutidos na primeira parte (capítulos 1 e 2). Existe, portanto, uma

correspondência entre as seções do capítulo 1 e 2 e as do capítulo 4. Por exemplo,

os modelos constitucionais apresentados na seção 1.1 do capítulo 1 - democrático-

radical, institucionalista e evolucionista – são novamente discutidos na seção 4.1 do

capítulo 4, mas desta vez em relação com a Constituição Européia. Já a seção 1.2

do capítulo 1, sobre o constitucionalismo antigo, ganha seu correspondente na

seção 4.2, intitulada As tradições grega, romana e anglo-saxã na Constituição

Européia. Os conceitos estudados na seção 1.3 do capítulo 1 são posteriormente

utilizados na análise da Constituição na seção 4.3.

Há também relação entre o capítulo 2 e as seções finais do capítulo 4.

Assim, pode-se observar, na seção 4.4, do capítulo 4, como as definições discutidas

em 2.1, 2.2, 2.3 e 2.4 foram aplicadas à Constituição Européia. Por fim, tenta-se

detectar, na seção 4.5, se os conceitos de consortio e condominium, tratados na

seção 2.5, estão presentes na Constituição Européia. Em resumo, a dissertação

pode ser lida de forma linear, seguindo a ordem natural das páginas, ou de maneira

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descontinuada, saltando da seção 1.1 diretamente para a seção 4.1 ou da seção

1.3 para a sua correspondente no capítulo 4, a seção 4.3.

Por fim, gostaríamos de ressaltar que a análise feita nesta dissertação tem

caráter estrutural e não conjuntural. O não da França e da Holanda nos referendos

sobre a Constituição Européia nos meses de maio e junho de 2004 e a suposta crise

da integração européia não diminuem a importância das questões que tentamos

abordar. Apenas na conclusão fizemos algumas considerações sobre como a

Constituição Européia foi recepcionada por aqueles Estados-membros.

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Capítulo 1

Constitucionalismo

Grande parte dos cientistas políticos considera a Constituição democrática um

idealismo, uma moldura formal-legal que tem pouca ou nenhuma relação com o

funcionamento do sistema político, do governo e da máquina administrativa.

A idéia de uma Constituição democrática: introdução ao problema

Muitos regimes autoritários, argumentam, tiveram

constituições escritas garantindo todo o tipo de proteção formal para direitos individuais e coletivos.5

Essas garantias, no entanto, exerceram pouco impacto sobre a prática do poder.

A Constituição Chinesa (1982), por exemplo, garante igualdade perante a

lei, liberdade de expressão, de imprensa, de associação e de religião, além do

direito à privacidade de correspondência e ao voto secreto. Contudo, o fato de

esses direitos estarem inscritos no texto constitucional não impediu que, em 1989,

o governo reprimisse a manifestação de estudantes na Praça da Paz Celestial.

Mas será que poderíamos concluir a partir destas considerações que a

Constituição formal é irrelevante? Que não provoca nenhuma conseqüência para a

prática política? Para os céticos, as Constituições formais seriam meros

documentos, sem nenhum impacto real sobre a realidade. Elas não produziriam

efeitos nem nos regimes democráticos nem nos autoritários.

No primeiro caso, a Constituição formal seria desnecessária porque, numa

democracia, os direitos já são garantidos na prática. Para reforçar esta tese

costuma-se lembrar do caso do Reino Unido, um regime reconhecido como

democrático e, no entanto, sem Constituição formal. Nos regimes autoritários, uma

Constituição formal também seria irrelevante, mas por outra razão: ela funcionaria

5 BELLAMY & CASTIGLIONE (orgs.). Constitutionalism in Transformation: European and Theoretical Perspectives: 1.

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apenas como um meio para dar a aparência de legitimidade aos ocupantes do

poder. Ou seja, não teria qualquer poder para ordenar a realidade.

Para esses teóricos, os céticos,6 uma Constituição democrática formal não

seria suficiente para assegurar os valores que ela própria enuncia: representantes

eleitos, eleições livres, idôneas e freqüentes, liberdade de expressão, associações

autônomas, diversidade de fontes de informação e cidadania inclusiva.7 Dito de

outra forma, eles não acreditam que as Constituições formais tenham alguma

influência sobre a cultura política da nação.

A palavra Constituição, na visão dos céticos, refere-se não a um documento

formal, mas à própria organização da sociedade. Segundo Bolingbroke, o

significado apropriado de uma Constituição é

um conjunto de leis, instituições e costumes... de acordo com os quais a comunidade consentiu em ser governada.8

Bolingbroke, no entanto, não está aludindo a um texto constitucional, mas

às leis, instituições e costumes incorporados, ao longo dos séculos, ao dia-a-dia da

comunidade. Em outras palavras, a Constituição não é um documento formal, mas

um conjunto de práticas.

O questionamento dos céticos pode ser melhor compreendido quando

avaliamos o poder coercivo das Constituições. A coercividade do texto é

diretamente proporcional ao grau de autonomia da esfera jurídica. Os que

acreditam na possibilidade de a Constituição interferir na realidade partem do

pressuposto de que o Direito se reproduz autonomamente, sem influência direta de

6 No texto O idealismo da Constituição, Oliveira Vianna mostrou a inutilidade de se tentar impor uma Constituição feita de acordo com o modelo americano à realidade brasileira. Em A Democracia na América, Alexis de Tocqueville mostra que não é o texto constitucional que garante a democracia na América, mas os costumes e as práticas da sociedade americana. Estes são dois exemplos de pensadores que não acreditavam na possibilidade de uma Carta formal transformar a realidade social. TOCQUEVILLE, A. de. A Democracia na América: 7. 7 Esses são os seis pré-requisitos, segundo Robert Dahl, de uma democracia moderna ou poliarquia. DAHL, R. Sobre a Democracia. 8 BOLINGBROKE apud MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern.

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interesses econômicos, políticos ou culturais. A esfera jurídica, e a Constituição em

particular, é autônoma e se impõe sobre a realidade. O teórico Thomas Paine

(1737-1809), por exemplo, destacava a importância das características formais das

modernas Constituições escritas.9 Acreditava-se naquela época em atitudes

voluntaristas, ou seja, que uma vontade, desde que inscrita num texto, poderia

transformar o real.

Os céticos, ao contrário, consideram a visão de Paine excessivamente

formalista. É o jurídico, dizem, que se subordina às outras dimensões da sociedade.

Só a presença de uma cultura política democrática ou de condições

socioeconômicas que favoreçam a democracia pode contribuir para a consolidação

de uma Constituição democrática. Inversamente, a ausência de uma cultura política

democrática ou de condições socioeconômicas poderia travar o processo de

democratização, mesmo que este estivessse previsto numa Carta constitucional.

Em suma, os céticos acreditam que o processo de concretização constitucional,

para o bem ou para o mal, depende diretamente de fatores externos ao campo

jurídico.

Ao analisar o desempenho institucional na Itália, Putnam (2002) distinguiu

entre os que acreditavam que as mudanças na realidade são determinadas pelas

instituições e os que atribuem aquelas mudanças a fatores socioeconômicos ou

socioculturais. Ou seja, Putnam detecta algo como os formalistas e os céticos das

instituições. Não queremos sugerir uma identidade entre Constituições e

instituições, mas apenas aproveitar o questionamento de Putnam: as instituições

afetam a realidade? Em nossa pesquisa, queremos saber se as Constituições têm

capacidade para transformar a realidade.

Mas como justificar essa apropriação da pergunta de Putnam? Na definição

de O´Donnell, as instituições são:

9 BELLAMY & CASTIGLIONE (orgs.). Constitutionalism in Transformation: European and Theoretical Perspectives: 5.

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padrões regularizados de interação que são conhecidos, praticados e aceitos regularmente (embora não necessariamente aprovados normativamente) por agentes sociais dados, que, em virtude dessas características, esperam continuar interagindo sob as regras e normas incorporadas (formal ou informalmente) nesses padrões.10

As Constituições, formais ou informais, também tentam estabilizar regras,

levando os agentes sociais a acreditarem que poderão continuar interagindo no

futuro sob as mesmas normas vigentes no presente. O que equivale a dizer que, se

agirem de uma determinada maneira no presente, serão recompensados por seu

comportamento no futuro. Assim como a instituição na definição de O´Donnell, a

Constituição tenta convencer os agentes sociais de que as regras não serão

alteradas arbitrariamente no meio do jogo.

Se uma Constituição garante o direito à propriedade privada, por exemplo,

os agentes sociais serão estimulados a adquirir bens. Da mesma forma, se a

Constituição - escrita ou não escrita - assegura a liberdade de expressão, os

agentes terão segurança para criticar o governo sem receio de serem punidos

posteriormente.11 Em suma, uma Constituição proporciona aos homens garantias

de que as regras do jogo serão estáveis. Como afirma Hobbes, no Leviatã:

o objeto do desejo do homem não é gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas garantir para sempre os caminhos de seu desejo futuro. Portanto as ações voluntárias e as inclinações dos homens não tendem apenas para conseguir, senão também para garantir uma vida satisfeita.12

Uma Constituição, portanto, tenderia a estimular um comportamento regido

por um imperativo hipotético. Num jogo com regras estáveis, supõe-se que Se você

fizer X, então receberá Y. Exemplificando: se os homens aceitarem assinar um

contrato, então poderão ter meios para se protegerem contra perigos externos.

Este tipo de comportamento seria o oposto de uma ação moral, que, na definição

10 O´DONNELL, G. Democracia delegativa?: 3. 11 Obviamente, estas garantias não são absolutas. Nada impede que as Constituições e as normas nelas contidas sejam modificadas pelas gerações futuras, mas para isso a maioria exigida será maior do que a requerida para a alteração de uma lei ordinária. 12 HOBBES, Thomas. Leviatã: 78.

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de Kant, não pode ser motivada por qualquer desejo. Uma ação moral deve ser

cumprida unicamente pelo respeito ao dever e não visando a um fim qualquer, seja

a felicidade, a saúde, o bem-estar etc... A Constituição, ao contrário, promete uma

recompensa àquele que aceitar suas regras.

A Teoria do Contrato Social pode ser vista como exemplo de uma ação não

moral, regida por um imperativo hipotético. Em Hobbes e Locke, os indivíduos que

criam o contrato social com fins bastante específicos. No primeiro autor, os homens

escolhem sair do estado de natureza para escapar à morte violenta. No segundo,

porque desejam assegurar os direitos naturais constantemente ameaçados no

instável estado de natureza. Em Hobbes, a instituição provê segurança; em Locke,

garante os direitos naturais. Nas duas narrativas de criação do contrato social,

existe a expectativa de que os indivíduos serão de alguma forma recompensados

no futuro. Da mesma forma que o contrato social, as Constituições são criadas por

ações não morais. Há nelas um objetivo explícito de incentivar determinados

comportamentos e assegurar alguns bens públicos.

No entanto, a semelhança entre esses autores termina aí. O contrato social

e o Estado por ele criado têm finalidades diferentes em Hobbes e Locke. No Estado

absoluto concebido por Hobbes, o poder do soberano é indivisível e só conhece os

limites impostos por si mesmo. Ao contrário da sociedade medieval pluralista, em

que o direito provinha de diversas fontes de produção jurídica (lei, direito

consuetudinário, common law), no Estado Absoluto apenas a lei ditada pelo

soberano pode ser fonte de direito. Os ordenamentos jurídicos superiores (Igreja e

Império) e inferiores (feudos, comunas, corporações) são absorvidos pelo

ordenamento jurídico estatal. Para que possa proteger os súditos uns dos outros, o

Estado hobbesiano deve estar acima de qualquer lei, seja imperial, religiosa ou

consuetudinária. Por isso, o Estado Absolutista unifica as fontes do direito e os

ordenamentos jurídicos infra e supra-estatais.

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Já o Estado lockiano é um Estado limitado, cuja principal função é garantir o

que Locke considera os direitos naturais fundamentais: a vida, a liberdade e a

propriedade.

Diferentemente de Hobbes, Locke preocupa-se com a possibilidade de que

esses direitos possam ser violados pelo próprio Estado. Os súditos não são apenas

ameaçados por outros súditos, mas também pelo poder estatal. Encontramos em

Locke a primeira formulação moderna sobre a necessidade de limitar o poder do

Estado ou, em outras palavras, a primeira concepção do Estado constitucional

moderno.

A diferença entre Hobbes e Locke mostra que os contratos sociais em geral,

e as Constituições em particular, podem assegurar poderes ilimitados ou limitados

ao governante.

Retomando a questão inicial. Será que uma Constituição está em condições

de produzir efeitos sobre a realidade? Como avaliar a sua eficiência? Quem terá

razão, um teórico como Thomas Paine, para quem a Constituição formal produz

efeitos sobre o real ou céticos como Bolingbroke, para o qual a Constituição é um

espelho da realidade (leis, costumes e instituições)?

Apesar das diferenças entre os termos, as instituições e as Constituições

apresentam um ponto em comum. Elas garantem que as regras não serão

alteradas arbitrariamente no meio do jogo e, por isso, podem prometer

recompensas àqueles que aceitarem suas regras. Por isso, resolvemos fazer uma

analogia entre o funcionamento de uma e outra.

Num estudo sobre o funcionamento das instituições, Putnam propõe-se a

investigar se as instituições têm poder para influenciar a realidade. Nossa questão

refere-se à Constituição formal. Teriam as Constituições formais capacidade para

agir sobre o real?

Em Considerações sobre o governo representativo, John Stuart Mill

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versa principalmente sobre a engenharia constitucional, a investigação das formas institucionais mais adequadas a um governo representativo eficaz.13

Para ele, um bom projeto seria suficiente para garantir o sucesso de um

governo representativo viável. Thomas Paine seria o equivalente de Mill em relação

à Constituição. Para Paine, a Constituição formal seria suficiente para modificar a

realidade.

Para os céticos, que consideram a Constituição formal um instrumento

jurídico-político irrelevante, a eficácia da Constituição dependeria das condições

socioeconômicas ou socioculturais. Segundo Cardoso, Aristóteles já havia apontado

para a necessidade de se

encontrar na cidade realmente existente a matéria social/economicamente disposta ou apropriada à forma política.14

De acordo com aquele filósofo, todos os cidadãos, independentemente de

suas qualificações, dividiam-se em ricos e pobres e a comunidade política deveria

ser organizada com base nestas duas categorias. Em outras palavras, a

organização política estava intrinsecamente ligada à condição socioeconômica da

população:

... o Estado em que os cidadãos vivem na condição média é o mais bem administrado, e o mais venturoso. Efetivamente, é o único que está desprovido de desordens e revoluções. Em qualquer lugar em que a classe média é muito grande, existem muito menos revoluções do que nos demais governos (...). A classe média é a que garante às democracias uma estabilidade e duração que não tem a oligarquia.15

Contudo, há céticos que destacam a importância dos fatores socioculturais

no funcionamento das instituições. Platão acreditava que esses fatores

condicionavam a eficácia institucional. Dito de outra maneira, a natureza dos

governos era uma conseqüência dos hábitos culturais dos seus cidadãos. Uma

análise moderna da influência do cultural sobre o desempenho das instituições

13 PUTNAM, R. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna: 25. 14 CARDOSO, Sérgio. Que República? Notas sobre a Tradição do Governo Misto: 38. 15 ARISTÓTELES. Política: 193.

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políticas pode ser encontrada em Tocqueville, para quem eram os costumes dos

americanos que sustentavam o federalismo americano.

Em suma, Putnam destaca a existência de três correntes: as dos que

acreditam que as instituições (Mill) influenciam a realidade, a dos céticos que

destacam a importância dos fatores socioeconômicos e a dos céticos que enfatizam

os fatores socioculturais.

Em sua pesquisa nas regiões italianas,16 Putnam mostrou, em primeiro

lugar, que

o contexto social e a história condicionam profundamente o desempenho das instituições.17

Constatou-se que, quanto mais participativa uma comunidade, melhor o

desempenho de seu governo. Em segundo lugar, Putnam percebeu que mudando-

se as instituições formais pode-se mudar a prática política,18 como acreditava Mills.

Se adaptássemos a observação de Putnam às Constituições, ou seja, se

disséssemos mudando-se as Constituições formais pode-se mudar a prática política

estaríamos então nos aproximando da visão de Thomas Paine.

Mas há uma última observação no estudo: a história institucional costuma

evoluir lentamente.19 Putnam, portanto, situa-se num meio termo entre a posição

dos formalistas (Mills e Paine) e a dos que consideram os fatores socioeconômicos e

socioculturais condicionantes do sucesso da instituição (Aristóteles, Platão e

Tocqueville). Ou seja, embora o ethos seja importante, a instituição formal é capaz

de induzir mudanças informais a longo prazo. Poderíamos então perguntar: será

que a Constituição formal poderia induzir mudanças a longo prazo?

Ao referir-se a uma Constituição para a União Européia, o filósofo Jürgen

Habermas aproxima-se das conclusões de Putnam. Em entrevista à revista Le

16 O resultado da pesquisa deu origem ao livro Comunidade e Democracia – a experiência da Itália moderna. 17 PUTNAM, R. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna: 191. 18 Idem: 193. 19 Ibidem.

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Point,20 ele parece recusar tanto o ceticismo da maioria dos cientistas políticos

quanto a crença dos formalistas de que as Constituições seriam uma panacéia. Por

um lado, Habermas julga imprescindível ter uma sociedade civil européia, um

sistema de partidos políticos transnacionais e um espaço público europeu. Sem a

criação de uma cultura política na qual os cidadãos europeus se reconheçam, diz

Habermas, a melhor Constituição do mundo não terá nenhuma vida real. No

entanto, o filósofo não descarta a hipótese dos formalistas, isto é, de que uma

Constituição produza efeitos sobre a realidade política. Ao contrário, ele enfatiza

que

sem o efeito catalisador de uma Constituição, processos complexos e interdependentes não serão desencadeados.21

Haveria, portanto, um processo circular, dialético, entre a Constituição

Européia e a cultura política européia (espaço público europeu, sociedade civil

européia e sistema de partidos).

O efeito catalisador de uma Constituição também está presente no

pensamento de Preuss. Segundo ele, a Constituição

libera forças sociais que estavam reprimidas no antigo regime. Contudo, freqüentemente também cria as pré-condições políticas e institucionais para a emergência de atores políticos totalmente novos.22

Nesta dissertação, partimos do pressuposto de que a Constituição tem poder

para influir sobre a realidade a longo prazo. Esta posição nos parece a mais

equilibrada. Seria despropositado afirmar que a Constituição, por si só, modifica a

prática social. Vimos que uma Constituição democrática não tem poder para alterar

uma cultura política extremamente autoritária. Da mesma forma, seria temerário

assegurar que a realidade social resiste às mudanças introduzidas por um texto

constitucional.

20 HABERMAS, J. Pas d´Europe sans constitution commune. 21 Idem: 3. 22 PREUSS, U. K. La construcción del poder constitucional para la nueva polis: 34.

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Em seu estudo, Putnam chega a um meio-termo entre os formalistas e os

céticos. A instituição afeta o real, como pensavam os formalistas, mas não o faz

rapidamente. A realidade social de fato resiste à instituição, como acreditavam os

céticos, mas não por muito tempo. Vimos que instituições e Constituições, apesar

das diferenças conceituais, funcionam de acordo com a lógica do imperativo

hipótetico. Ambas prometem recompensas aos agentes sociais que se dispuserem a

seguir as regras por elas impostas. Assim, baseadas na conclusão de Putnam sobre

as instituições – de que transformam lentamente o real - podemos supor que as

Constituições também influenciam a prática social a longo prazo, lentamente.

Adotamos, portanto, as concepções de Habermas e Preuss sobre

Constituição e assim nos afastamos dos céticos e dos formalistas. Uma vez aceita

esta definição, passamos a considerar as principais características do

Constitucionalismo e das Constituições. De acordo com a Stanford Encyclopedia of

Philosophy, a Constituição pode ser definida em lato ou stricto sensu. No sentido

amplo, significa um conjunto de regras ou normas que criam e estruturam o poder

ou a autoridade governamental. Segundo esta noção, todos os Estados teriam

Constituições e poderiam ser chamados de Estados constitucionais. Esta concepção

corresponde à definição mais técnica de politeia dada pelos gregos. Segundo

Cardoso, a politeia tem o

sentido de regime de governo, de constituição política, pensada como a forma de organização das magistraturas ou poderes que conformam e governam a vida da cidade.23

Mesmo uma ditadura teria uma Constituição, uma Constituição que atribuiria

todos os poderes – executivo, legislativo e judiciário – a uma só pessoa. O Estado

hobbesiano teria uma constituição na qual o poder do soberano é indivisível. Neste

caso, a Constituição não faz referência a valores democráticos, apenas descreve

uma situação real (governos limitados ou não pela divisão de poderes). Em outras

palavras, ela não é normativa, mas descritiva.

23 CARDOSO, S. Que República? Notas sobre a Tradição do Governo Misto: 32.

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No stricto sensu, Constitucionalismo significa não apenas regras que criam

os poderes executivo, legislativo e judiciário, mas também, e sobretudo, regras que

os limitam. Esta segunda definição corresponde ao outro sentido de politeia dado

pelos gregos. No sentido mais restrito, politeia significa um regime político

específico, uma mistura, segundo Aristóteles, da democracia e da oligarquia, mas

que pende mais para a democracia.24 De acordo com esta definição, o Estado

Absoluto de Hobbes seria um Estado sem Constituição e apenas o Estado liberal

moderno teorizado por Locke poderia ser considerado constitucional. Geralmente,

estas limitações assumem a forma de direitos individuais ou coletivos contra o

Governo, como liberdade de expressão, associação, igualdade e princípio do devido

processo legal.25 Outros tipos de limites são dados pelo próprio sistema federativo

em que os vários níveis – União, estados e municípios – impõem restrições uns aos

outros.

Este sentido estrito de Constitucionalismo é o que está presente na definição

do historiador MacIlwain,26 quando ele afirma que a essência do Constitucionalismo

está na limitação do Governo pelo direito. Aqui, no entanto, surge um primeiro

problema para a teoria do Constitucionalismo. Por que o Governo, criador do

direito, teria interesse em limitar a si mesmo? As limitações constitucionais devem

ser estabelecidas de forma rígida? Serem inscritas em textos? No caso de regras

escritas, como interpretá-las, obedecendo estritamente ao texto, como defendia

Montesquieu,27 ou às supostas intenções dos autores, como na tradição americana?

Deve-se tentar adaptá-las aos novos valores? Em outras palavras, a Constituição

deve ser uma moldura rígida dentro da qual os atores políticos podem se mover ou,

24 Os vários sentidos de politeia são melhor tratados na próxima seção A Constituição entre os antigos. 25 Tal expressão denomina o princípio constitucional que garante ao indivíduo ser processado de acordo com normas jurídicas anteriores ao fato que deu origem ao processo. Pelo princípio do devido processo legal (due process of law), ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, ou seja, sem um processo que assegure ampla defesa às partes e julgamento imparcial. 26 MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern. 27 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis: 87.

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para usar um termo cunhado por Ronald Dworkin, uma Árvore Viva que cresce e se

transforma paralelamente aos valores e princípios políticos? Quem cria a

Constituição, a nação, através de representantes eleitos para a Assembléia

Constituinte? E, depois de criada, quem pode modificá-la, o poder legislativo, por

maioria qualificada de três quartos, ou o judiciário, por meio de inúmeras decisões

que, ao longo do tempo, vão constituir a jurisprudência?

As respostas a essas perguntas deram origem a diferentes tradições

jurídicas sobre a origem e a função do Constitucionalismo. No modelo

jusnaturalista, por exemplo, que prevaleceu na Europa continental, a lei ou direito

natural préexiste à sociedade humana historicamente constituída. Um autor

detentor do direito natural inaugura uma Constituição que, por sua vez, pode ser

localizada na história. De acordo com o jusnaturalismo, todos os homens são iguais

e livres por natureza e só podem se sujeitar a um ordenamento humano por um ato

voluntário.

... os homens estão naturalmente naquele estado (o estado de natureza) e nele permanecem até que, pelo próprio consentimento, se tornam membros de alguma sociedade política.28

No entanto, essa sujeição a uma sociedade política criada por ato voluntário

não é ilimitada. Em última instância, o povo é o detentor do direito natural e, assim

como criou o corpo político por ato voluntário, também pode destituí-lo. Locke

afirma que

sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo, para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram.29

No Contrato Social, Rousseau afirma que o poder soberano ou o corpo

político cria o contrato social, mas não se submete a ele.

28 LOCKE. Segundo Tratado sobre o Governo – Livro II: 221. 29 Ibidem.

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...não há nem pode haver qualquer espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo, nem sequer o contrato social.30

Em outras palavras, o soberano permanece acima do poder constituído.

Desta forma, não há uma hierarquia entre a lei suprema e a lei ordinária. Como

todas as leis são proclamadas pelo soberano, todas têm o mesmo valor.

Segundo Preuss, nesta concepção de Constituição, o poder constituinte

existe fora e antes da Constituição, como se fosse uma versão secularizada do

poder divino. Por ser anterior ao texto, o poder constituinte não se submete à Carta

quando ela entra em vigor.

De acordo com Preuss, esta idéia de Constituição estaria na origem de um

modelo democrático-radical. Considera-se que o povo, tendo recuperado seu poder

constituinte durante a revolução, a partir de então não poderá ser restringido por

nenhuma regra, instituição ou ordem superior,31 e será orientado unicamente por

sua força de vontade irrestrita.32 Há aqui uma linha de continuidade entre política

revolucionária e política normal, e em ambas prevalece uma visão da democracia

como regra da maioria. Constituições deste tipo tendem a ser mais instáveis,

podendo ser alteradas a qualquer momento por uma decisão majoritária no

Parlamento. O Parlamento costuma ser a instituição mais importante no momento

da revisão constitucional. Tenta-se ainda de garantir a primazia da autoridade

popular através de instrumentos como plebiscitos, representação proporcional no

Parlamento e valorização do mandato imperativo. Em suma, o poder constituinte,

versão secularizada do poder divino, permanece soberano, sem submeterse a

restrições constitucionais.

Já no modelo denominado por Preuss de institucionalista, o poder

constituinte não guarda nenhum privilégio depois de estabelecida a Constituição.

Esta passa a ser a lei suprema e se estabelece uma hierarquia entre as leis. Ao

30 ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social: 34. 31 PREUSS, U. K. La construcción del poder constitucional para la nueva polis: 34. 32 Ibidem.

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contrário do modelo democrático-radical, o poder constituinte submete-se a regras,

tais como a divisão de poderes (vertical e horizontal) e a independência do

judiciário. Há, portanto, uma separação clara entre política revolucionária e política

normal. Uma vez terminada a política revolucionária, e o papel do poder

constituinte de criar uma Constituição, começa uma fase de política normal, e de

maior rigidez constitucional. O próprio poder constituinte é obrigado a sujeitar-se

ao poder constituído. Conseqüentemente, a Constituição não pode mais ser

modificada por uma simples decisão majoritária do Parlamento. Diferentemente do

modelo democrático-radical, em que o Parlamento tinha precedência sobre os

demais poderes na revisão constitucional, no modelo institucionalista, os três

poderes podem interferir na mudança da Carta. Tanto uma emenda aprovada por

maioria no Parlamento como uma lei ordinária que contrarie a Constituição pode

ser contestada pelo Judiciário, que atua como um guardião da Carta. Em resumo,

no modelo institucionalista, a Constituição atua como um freio ao poder da maioria

e o poder constituinte não tem liberdade para impor sua vontade ad infinitum.

Podemos dizer, portanto, que apenas o modelo institucionalista satisfaz as

exigências do constitucionalismo de limitação do governo pelo direito. Só há

constitucionalismo quando o poder constituinte tem seu papel limitado ao período

revolucionário. Em outras palavras, o constitucionalismo representa o fim da

revolução. Mesmo neste caso, como veremos mais à frente, o poder constituinte

não é eliminado de uma vez por todas após a criação da Constituição. Em

determinados momentos históricos, ele ressurge e obriga a uma revisão

constitucional.

Neste ponto, sentimos necessidade de abrir um parêntese para examinar de

que matéria é feito o poder constituinte. Com isto, estaremos buscando dar melhor

sustentação conceitual aos argumentos que serão apresentados ao longo de todo o

texto.

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Geralmente, tendemos a associar o poder constituinte ao conceito de povo.

No primeiro modelo (modelo democrático-radical), entendemos que o povo não é

restringido por nenhuma regra, instituição ou ordem superior, obedecendo

unicamente à sua própria vontade. No segundo (modelo institucionalista), os

desejos da maioria do povo são controlados por instrumentos institucionais como a

divisão de poderes horizontal (separação entre executivo, legislativo e judiciário),

vertical (federalismo) e a independência do judiciário.

Tanto num caso quanto no outro, pressupomos que o poder constituinte,

representado pelo povo, e a Constituição estejam referidos a um Estado-nação. A

Constituição Francesa, por exemplo, é produto da vontade do povo francês e visa a

organizar e limitar o poder do Estado-nação francês. Da mesma forma, entendemos

que a Constituição americana foi criada pelo poder constituinte do povo americano

com o objetivo de ser válida dentro do território da Federação norte-americana. Em

outras palavras, há uma pressuposição de que a cada Estado corresponda o seu

povo e a sua Constituição.

Mas de que povo estamos falando? De um povo etnicamente homogêneo? O

poder constituinte precisa ter uma identidade coletiva preexistente para ser capaz

de atuar como um ente superior e exterior à Constituição? Ou será que o ato de

criação da Constituição por si só cria a identidade coletiva e, conseqüentemente, o

poder constituinte?

Os teóricos deram respostas diversas para essas questões. O abade Sieyès,

por exemplo, afirmou, em seu panfleto O que é o Terceiro Estado?, que a vontade

da nação é a fonte pré-constitucional da Constituição, sendo a nação definida como

um corpo de pessoas que vivem sob leis comuns e é representado pela mesma assembléia legislativa.33

Ou seja, o povo é a nação, uma comunidade política criada pelo

consentimento de homens portadores de direitos por natureza. A idéia francesa de

33 SIEYÈS apud PREUSS, U. K. La construcción del poder constitucional para la nueva polis: 38.

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nação desde a I República tem, portanto, raízes teóricas na Teoria Contratualista

dos séculos XVII e XVIII.

Por outro lado, os alemães e os europeus orientais entendem o conceito de

nação de um outro ponto de vista. A identidade coletiva é concebida como anterior

à comunidade política. A nação existiria em conseqüência de um povo unido, ainda

que involuntariamente, por uma origem, etnia, língua, religião, cultura e história

comuns. Assim, o poder constituinte existiria por si mesmo, sendo anterior e

independente de qualquer ato voluntário dos indivíduos. Esta diferença entre a

concepção francesa jusnaturalista de nação e a alemã fica clara na crítica de Hegel

ao contratualismo. Para o filósofo alemão, o momento do contrato tem um caráter

artificial, já que os indivíduos estão desde sempre

inscritos em uma forma ou figura sociopolítica que se realiza historicamente, seja a família, sejam as corporações da sociedade civil, ou ainda, o Estado.34

Não existe um momento anterior ao contrato no qual os indivíduos estariam

fora de uma comunidade política. Os dois modelos anteriormente tratados, o

democrático-radical e o institucionalista, partem de uma concepção francesa de

povo.

Um terceiro modelo seria representado pela tradição jurídica inglesa, onde o

poder constituinte não é um povo e a Constituição não é escrita, ou seja, não está

codificada num único corpo formal. Segundo a concepção de Constituição de Burke,

baseada na experiência inglesa, o poder constituinte não é um sujeito exterior à

Constituição, que num determinado momento histórico cria uma Carta. Ao

contrário, as Constituições seriam o resultado de um longo processo histórico

influenciado pelas circunstâncias, temperamentos, hábitos morais, civis e sociais do

povo. Não existe um momento inaugural. A Constituição não é criada, de acordo

com Burke, por um agente histórico, mas evolui por conta da ordem natural das

34 BERNARDES, J. A crítica de Hegel à teoria do contrato: 74.

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coisas. Este constitucionalismo não codificado recebe outras denominações.

Brunkhorst, por exemplo, chama-o de evolucionista ou funcionalista.35

Nesta definição, a Constituição significa a existência de uma estrutura que

conecta os sistemas jurídico e político, os quais no entanto permanecem

independentes. De um lado, a intervenção política provoca uma irritação

permanente do sistema legal, ao interferir na formação da vontade política. De

outro, o sistema legal permite a revisão judicial de decisões políticas, restringindo

desta forma o sistema político. De acordo com este modelo, diz Brunkhorst, não há

necessidade de uma Constituição formal para dizer que um regime é constitucional.

A existência, ao mesmo tempo, de interconexão e independência entre o político e

o legal ou, dito de outra forma, o check-and-balance entre o político e o legal, já é

suficiente para caracterizar um regime como constitucional. A evolução se dá

naturalmente, como conseqüência da irritação recíproca entre os dois sistemas e

sem a necessidade de um texto codificado. A Constituição é formada pelo conjunto

da jurisprudência firmada pela esfera legal e pela esfera política.

Segundo uma das idéias mais difundidas sobre o constitucionalismo, as

regras que limitam o governo devem estar profundamente arraigadas numa lei

difícil de ser modificada ou numa convenção constitucional ou ainda em costumes

há muito praticados. Num regime constitucional desta natureza, os órgãos, cujos

poderes são limitados, não podem modificar as regras indiscriminadamente. Para

mudar uma Constituição, seriam necessários uma Assembléia Constituinte,

referendos ou emendas aprovadas por uma expressiva maioria. Em sistemas

federais, pode-se exigir, além do consentimento do governo central, a ratificação

pela maioria das unidades da federação. Essa dificuldade para mudar as regras

constitucionais, sejam elas escritas ou não, é uma das principais características do

Constitucionalismo.

35 BRUNKHORST, H. A Polity without a State? European Constitutionalism between Evolution and Revolution.

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É importante notar que o fato de algumas leis não serem escritas não as

torna necessariamente menos limitadoras do abuso de poder por um órgão

governamental. Os críticos das leis não escritas argumentam que elas são pouco

precisas e, por isso, estariam muito vulneráveis à mudança. No entanto, como

veremos mais à frente,36 há costumes que são mais arraigados do que uma lei

escrita. A eliminação ou alteração de uma regra não escrita pode requerer

mudanças muito profundas em atitudes e crenças tradicionais.

Em The Law of the Constitution (1885), Dicey mostra a importância da lei

não escrita ou dos costumes na concepção do rule of law. Este princípio da

Constituição inglesa supõe a igualdade entre cidadãos e governo perante os

tribunais ordinários. De acordo com a formulação teórica de Dicey, a Constituição

inglesa (costumes ou convenções constitucionais) deriva dos direitos subjetivos dos

indivíduos garantidos pelo judiciário. Ao contrário das Constituições escritas de

outros países, que são a fonte das normas ordinárias, a Constituição inglesa deriva

das normas ordinárias do país.37

Devemos considerar ainda a teoria da Grundnorm de Kelsen, segundo a qual

uma Norma Fundamental estabelece a moldura dentro da qual os poderes

executivo, legislativo e judiciário poderão atuar:

O que, na realidade, se verifica, não é a coexistência de funções mais ou menos isoladas, ou até de natureza diferente, mas uma sobreposição, uma hierarquia de regras jurídicas, em que as mais altas concidicionam as outras. No alto deste edifício, desta pirâmide jurídica, encontra-se a norma fundamental ou primária, que assegura a unidade do sistema jurídico no seu movimento de criação.38

Em Kelsen, as normas superiores e inferiores formam um sistema integrado

no qual as inferiores derivam das superiores que, por sua vez, dependem de uma

36 No último parágrafo do subitem A Autonomia local: a tradição germânica na Idade Média e a common law inglesa, deste capítulo, quando tratamos da imutabilidade da common law. 37 MATTEUCCI, N. Constituição inglesa: 252. 38 KELSEN, H. Teoria Geral do Estado: 116-117.

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norma suprema. Esta norma suprema é a Norma Fundamental,39 que não depende

de nenhuma outra. Ela tem um fundamento hipotético, ou seja, encontra seu

fundamento nela mesma até prova em contrário, isto é, até sua substituição por

uma outra Norma Fundamental. Numa interpretação Jusnaturalista, a Norma

Fundamental seria o próprio Direito Natural, do qual derivaria o Direito Positivo. Em

Kelsen, contudo, a Norma Fundamental não tem qualquer vínculo com valores

transcendentais ao Direito Positivo, seja ele Deus ou a Natureza.

Quanto à sua origem, as Constituições podem ser divididas entre aquelas

criadas por um sujeito histórico (o povo nos modelos democrático-radical,

institucionalista), por um processo histórico (modelo evolucionista) ou ainda por um

processo de autocriação (Grundnorm). Estruturalmente, no entanto, os modelos

democrático-radical e institucionalista incorporam a idéia da Grundnorm.

Paradoxalmente, os revolucionários do modelo democrático-radical aceitam a

concepção da Grundnorm. Justamente por partirem do pressuposto de que a

Constituição é a Norma Fundamental, eles optam por destruí-la durante o processo

revolucionário. Pois só assim podem aprovar uma nova Carta que, por sua vez, se

constituirá como Norma Fundamental. Ou seja, há uma sucessão de Grundnorms.

O modelo institucionalista também absorve o modelo da Grundnorm, mas de uma

outra maneira, combinando-o com o evolucionista. Em outros termos, o modelo

institucionalista é um modelo híbrido. Por um lado existe uma parte da Constituição

que pode ser identificada como Grundnorm, um núcleo duro, que não pode ser

modificada. Por outro lado há algum grau de evolucionismo no modelo

institucionalista, já que algumas partes do texto sofrem modificações graduais.

A tradição americana da judicial review of legislation, que, segundo Vieira,40

expandiu-se no século XX para vários países europeus, pode ser classificada no

39 A Norma Fundamental ocupa o topo da pirâmide e corresponde à Constituição hipotética, ou seja, uma Constituição no sentido ideal. Já a Constituição positiva é elaborada pelo legislador, que se inspira na Constituição hipotética para criar as normas gerais que, por sua vez, vão gerar as normas ordinárias. 40 VIEIRA, J. R. (org.). A Constituição Européia: O projeto de uma nova teoria constitucional.

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modelo institucionalista. Embora o constitucionalismo americano tenha

semelhanças com a common law e o modelo evolucionista, como o poder conferido

aos juízes para vetar uma lei do Parlamento, ele apresenta uma natureza autóctone

norte-americana que o aproxima do modelo institucionalista. Ao contrário da

common law, que justificava uma decisão com base na tradição e no costume, a

judicial review americana afirma a prevalência da razão contida na Constituição

Federal norte-americana. Esse instrumento constitucional contrapõe-se à teoria

política que prevaleceu do Renascimento à Revolução Francesa e, segundo a qual,

era inconcebível limitar o poder legislativo. Na Europa do século XVIII, o

racionalismo defendia a soberania do legislativo e posicionava-se contra a

interpretação dada pelos juízes.

Mas vejamos em maiores detalhes por que o constitucionalismo norte-

americano pode ser entendido como institucionalista. Observamos acima que este

modelo é constituído de forma híbrida, uma mistura de Grundnorm com

evolucionismo. A revisão judicial assegura o respeito à Constituição norte-

americana como se ela fosse uma Grundnorm. No entanto, a revisão judicial

também pode, em determinados momentos históricos, aprovar emendas à

Constituição norte-americana. Ou seja, pode ser um instrumento do modelo

evolucionista.

A própria judicial review é um produto do evolucionismo. Não estava

prevista na Constituição americana de 1789, segundo a qual a Suprema Corte tinha

poder sobre a legislação dos Estados, mas não sobre a da União. Foi após a Guerra

de Secessão que a Suprema Corte adquiriu o poder de revisar ou anular qualquer

lei aprovada pela União que contrariasse a Constituição.

Nos Estados Unidos, houve, portanto, uma substituição gradual da

Constituição formal por outra, jurisprudencial, material e aberta. Referindo-se à

Constituição americana, Graglia afirma que houve um processo de desaparecimento

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da Constituição.41 Pode-se ainda considerar que ocorreu não uma substituição, mas

uma justaposição de constituições. A Constituição formal americana continuou

existindo – sendo hoje a mais antiga ainda em vigor, apesar das emendas -, mas a

ela se sobrepôs uma constituição material representada pela judicial review.

Dos três modelos constitucionais acima analisados – democrático-radical,

institucionalista e evolucionista -, somente no primeiro não há dificuldade para

mudar as regras. Tanto no modelo institucionalista, baseado numa constituição

escrita, como no evolucionista, formado exclusivamente por jurisprudência, há

obstáculos para a alteração de normas constitucionais.

Uma vez criadas, as Constituições podem ser interpretadas de diversas

maneiras, mas freqüentemente há uma relação entre o modelo de Constituição e a

teoria escolhida para interpretá-la. Para que a Constituição continue a ter uma aura

de Grundnorm, por exemplo, ela precisa ser interpretada a partir das intenções de

seus autores e não revisada pela sociedade a todo instante. Quando a Constituição

é entendida desta forma, torna-se impossível sua interpretação segundo uma teoria

política ou moral controversa. Sua legitimidade não pode ser contestada porque é

ela que legitima o jogo das outras forças sociais, estabelecendo o parâmetro dentro

do qual as controvérsias entre os atores podem ocorrer.

Apesar de antagônicas, a Teoria Constitucional jusnaturalista e a da Norma

Fundamental (Grundnorm) têm um ponto em comum: ambas baseiam o sistema

jurídico, incluindo a Constituição, numa fonte com autoridade absoluta. No

Jusnaturalismo, esta autoridade encontra-se no Direito Natural; no caso da Norma

Fundamental, a autoridade absoluta é a própria Constituição, válida por si mesma.

Para os que concebem a Constituição desta forma, nada mais natural do que uma

interpretação literal do texto constitucional ou fiel às intenções de seus criadores.

41 GRAGLIA apud VIEIRA, J. R. (org.). A Constituição Européia: O projeto de uma nova teoria constitucional: 16.

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A interpretação literal apresenta dois problemas comumente apontados

pelos críticos. Em primeiro lugar, palavras como justiça, liberdade e igualdade

podem ser compreendidas de maneiras diferentes de acordo com cada época.

Defender uma interpretação literal significa pressupor uma neutralidade de difícil ou

mesmo impossível demonstração. Em segundo, a interpretação literal pode gerar

conflitos com outros preceitos constitucionais. Quando um artigo da Constituição

afirma a liberdade de expressão, isto não significa que uma pessoa possa expressar

sentimentos que ofendam a dignidade humana como, por exemplo, o racismo.

Portanto, o limite da liberdade de expressão é dado por um contexto histórico no

qual outros princípios, como o da não discriminação e o do respeito às diferenças,

são tão valorizados quanto o da liberdade.

Quando os princípios se justapõem, o juiz deve considerar o peso relativo de

cada um. Em outras palavras, o juiz não pode ser, como queria Montesquieu, um

mero porta-voz da letra da lei. Não existe essa medida exata. A afirmação de que

um princípio é mais importante do que outro será sempre controversa. No entanto,

é inerente ao conceito de princípio a dúvida sobre sua própria importância.

Segundo a Stanford Encyclopedia of Philosophy, a teoria americana do

originalismo/interpretativismo42 procurou oferecer uma resposta para as

deficiências da teoria da interpretação literal. O que conta, dizem seus teóricos, é a

intenção dos autores. É preciso descobrir, por trás das palavras, o desejo daqueles

que escreveram a Constituição. No entanto, as mesmas palavras podem encobrir

intenções as mais diversas. Ser fiel aos fundadores, sejam eles representantes do

Direito Natural ou da Grundnorm, portanto, exige um trabalho de investigação

sobre o contexto histórico em que as palavras foram usadas. Em essência, tanto a

42 Segundo Vieira, os originalistas sustentam que a Constituição tem um sentido unívoco, coincidente com a vontade dos pais fundadores. VIEIRA, J. R. (org.). A Constituição Européia: O projeto de uma nova teoria constitucional.

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interpretação literal quanto o originalismo baseiam-se na crença de que o

significado verdadeiro, autêntico, possa ser conhecido.43

A partir da constatação de que o mundo contemporâneo coloca questões

novas, não previstas pelos fundadores, uma outra teoria, a da Intenção Hipotética,

propõe uma forma especulativa de interpretação do texto constitucional. Perguntar

pela intenção do criador seria inútil, segundo essa corrente, já que no momento de

elaboração da Constituição, os problemas que hoje nos atormentam não existiam.

A pergunta não é qual a intenção do criador e sim qual teria sido a intenção do pai

fundador caso ele tivesse se deparado com tal questão contemporânea. Mas a

Teoria da Intenção Hipotética acaba tendo mais pontos de semelhança do que de

diferença com as anteriores. Todas acreditam que a resposta correta, a melhor

solução está em algum ponto do passado: ou no texto constitucional em si ou na

mente daqueles que o criaram. A resposta correta, verdadeira, já estaria dada de

antemão, só precisando ser descoberta. Dito de outra forma, a verdade estaria ou

no Direito Natural ou na Grundnorm, pressupostos como válidos em si mesmos.

Por outro lado, o teórico Ronald Dworkin entende a Constituição como uma

Árvore Viva, capaz de crescer continuamente e adaptar-se às questões

contemporâneas.44 Essa interpretação da Constituição está estreitamente ligada a

um certo tipo de evolucionismo.45 Para Dworkin, interpretar a Constituição como

Grundnorm, isto é, rigorosamente de acordo com seus pais fundadores seria o

mesmo que submeter o presente ao passado, as atuais gerações às anteriores. Em

suma, equivaleria a escravizar o presente a decisões tomadas em outras

43 Este é um problema importante na filosofia que tem na chamada escola hermenêutica uma das contribuições mais significativas. 44 DWORKIN apud WALUCHOW, W. Constitutionalism: 11. 45 A concepção evolucionista tradicional baseia-se na common law entendida como uma continuidade entre passado e presente. Portanto, uma interpretação que partisse desta definição clássica de evolucionismo acabaria utilizando as teorias do Originalismo ou da Intenção Hipotética. No entanto, também podemos ter um evolucionismo Árvore Viva, que se ampara na concepção de common law (ver a ambigüidade do conceito de costume no último parágrafo do subitem A Autonomia local: a tradição germânica na Idade Média e a common law inglesa) como uma lei que se adapta a novas circunstâncias.

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circunstâncias. Ao contrário, a Constituição entendida como uma Árvore Viva é um

documento passível de ser moldado pelas mãos dos intérpretes contemporâneos.

Em princípio, esta concepção da Árvore Viva representa uma ameaça contra uma

das principais características do Constitucionalismo já destacadas neste texto: a

dificuldade de mudar as próprias regras.

Dworkin propõe uma leitura moral da Constituição.46 Esta não estabelece

princípios morais de justiça e eqüidade absolutos e válidos para todos os tempos.

Ela apenas define os termos do debate político no qual esses princípios poderão ser

discutidos e eventualmente mudados. É, portanto, uma Constituição maleável, que

contém em si mesma os mecanismos de sua transformação. À medida que esses

princípios mudam, transformam-se, melhoram – e Dworkin acredita num

melhoramento da moral - a Constituição também é alterada. Se na concepção de

Constituição como Grundnorm a realidade deve se adaptar ao texto constitucional

rígido e imutável, na teoria de Dworkin a Constituição tem uma geometria variável,

sendo constantemente transformada pelos princípios morais em mutação numa

dada sociedade.

O conceito de Constituição Árvore Viva (na realidade uma Constituição que é

interpretada como se fosse uma árvore viva) apresenta semelhanças com o de

Obra Aberta, cunhado em 1962 por Umberto Eco. Embora a noção de Obra Aberta

esteja originalmente referida a uma obra de arte, acreditamos que seja possível

utilizá-la em outros domínios. Segundo Eco, a Obra Aberta não tem uma estrutura

univocamente definida e, por isso, se apresenta como um campo de probabilidades.

As novas obras musicais, por exemplo, não consistem numa mensagem acabada e

definida:

mas sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete, apresentando-se, portanto, não como obras concluídas, que pedem para ser revividas e compreendidas

46 Para Kelsen, Direito e Moral faziam parte de campos incomunicáveis. As normas jurídicas deveriam ser interpretadas apenas com critérios jurídicos e nunca morais.

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numa direção estrutural dada, mas como obras abertas, que serão finalizadas pelo intérprete no momento em que as fruir esteticamente.47

Uma Constituição concebida e interpretada como Árvore Viva também não

teria uma estrutura univocamente definida. Seus artigos não apontariam

inequivocamente para uma única direção, mas constituiriam um campo de

probabilidades, permitindo aos juízes interpretá-lo em mais de um sentido, embora

não arbitrariamente.

Nesta concepção, a Constituição não se reduz às leis positivas. Ao lado

destas há princípios de moralidade política que fornecem uma justificação moral

para a lei positiva. Ao contrário de Kelsen, para quem basta a lei positiva estar de

acordo com a Grundnorm para ser válida, Dworkin afirma, em Taking Rights

Seriously, a necessidade de uma lei positiva lastreada pela moral.48

No entanto, não há uma fórmula para descobrir qual teoria da moralidade

política seria mais adequada para interpretar a Constituição. Um processo de

decisão que seja moral e politicamente neutro, realizado de acordo com os

parâmetros de uma Grundnorm, é algo impossível para Dworkin. Em sua teoria, a

cada caso, os intérpretes precisam usar sua capacidade de julgamento moral e

político para interpretar um texto. Os limites ao poder governamental podem,

portanto, ser contestados ad infinitum por um juiz com capacidade moral, política e

legal para fazê-lo. O juiz de Dworkin, ao contrário do de Montesquieu, deve

interpretar a lei:

De acordo com Dworkin, todas as questões fundamentais com as quais uma comunidade política se depara – relacionadas a emprego, educação, censura, liberdade de associação etc... – são melhor resolvidas pelos juízes, desde que eles interpretem a Constituição com base no princípio da igualdade política.49

47 ECO, U. Obra Aberta: 39. 48 NEVES, M. Entre Subintegração e Sobreintegração: A cidadania inexistente: 255. 49 MOUFFE, C. Politics and Passions: the stakes of democracy: 4.

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Dworkin defende a noção de discriminações inversas ou positivas, que se

contrapõem à concepção liberal e universalista dos direitos dos cidadãos. Decidir a

favor de minorias étnicas, sexuais e deficientes físicos pode estar de acordo com o

princípio da igualdade política.50 Dito de outra forma, o juiz que segue estritamente

o texto da lei baseia-se na concepção universalista dos direitos dos cidadãos,

tratando de forma igual cidadãos em condições desiguais. Em contraste, o juiz que

utiliza sua capacidade de julgamento moral e político para interpretar a

Constituição pode eventualmente discriminar positivamente e transformar a

Constituição numa Árvore Viva.

Outro autor que também reserva um papel preponderante para o judiciário é

John Rawls, para quem a Suprema Corte é o melhor exemplo do que chama de o

exercício livre da razão pública num regime constitucional com revisão judicial.

Embora a teoria da Árvore Viva possa ser uma ameaça à estabilidade

constitucional, ela não representa, segundo Dworkin e Rawls, um risco para a

democracia. Ao contrário, em ambos os autores os juízes teriam a função de tornar

a Constituição mais democrática. Para o primeiro autor, a garantia contra a

opressão estaria justamente na maleabilidade do texto constitucional, na

possibilidade de um juiz, baseando-se no princípio da igualdade política, decidir

favoravelmente a uma minoria que provavelmente não seria beneficiada caso a

Constituição fosse interpretada literalmente. A atuação do judiciário não seria

arbitrária, mas progressista. Rawls reconhece a necessidade de o judiciário garantir

a obediência à Constituição:

Ao aplicar a razão pública, o tribunal deve evitar que a lei seja corroída pela legislação de maiorias transitórias ou, mais provavelmente, por interesses estreitos, organizados e bem posicionados, muito hábeis na obtenção do que querem. Quando o tribunal assume esse papel e o desempenha efetivamente, é incorreto dizer que é francamente antidemocrático fazê-lo. É, de fato, antimajoritário no que se refere à lei ordinária, pois um

50 DWORKIN apud NEVES, M. Entre Subintegração e Sobreintegração: A cidadania inexistente: 255.

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tribunal com poderes de revisão judicial pode declarar tal lei inconstitucional.51

No entanto, o judiciário só é um guardião da Constituição enquanto esta for

sustentada pela autoridade do povo.52 A partir do momento em que o povo deixa

de aprovar a Constituição, o judiciário deve colocar-se a seu lado e promover uma

revisão da própria lei constitucional. A emenda da Reconstrução na Constituição

Americana seria um exemplo deste tipo. A decisão sobre a eliminação da

escravidão nos Estados Unidos baseou-se, segundo Rawls, na Razão Pública da

Suprema Corte, que estaria desta forma obedecendo à vontade da maioria do

poder constituinte.

A constituição não é o que a Suprema Corte diz que ela é, e sim o que o povo, agindo constitucionalmente por meio dos outros poderes, permitirá à Corte dizer o que ela é.53

Além disso, afirma Rawls, aquela emenda aproximou a Constituição

americana de sua promessa original. Temos aqui um caso de interpretação de

acordo com a teoria da intenção dos autores.

A teoria da interpretação constitucional de Rawls nos remete novamente à

questão do poder constituinte. Segundo Preuss, o poder constituinte

é simultaneamente o criador da Constituição e uma permanente ameaça a ela, sendo que ambas as funções são cruciais para garantir sua vitalidade.54

Para Rawls, o tribunal deve impedir que a lei seja corroída pela legislação de

maiorias transitórias. No entanto, reconhece que em alguns momentos da história,

as maiorias podem ser responsáveis por mudanças necessárias e importantes. Os

momentos mais inovadores da história constitucional americana são a Fundação, a

Reconstrução e o New Deal. Na Fundação, o poder constituinte criou a Constituição.

Nos outros dois, o que parecia inicialmente uma ameaça ao texto original acabou se

51 RAWLS, John. A idéia de razão pública: 284. 52 Na tradução de Dinah de Abreu Azevedo do livro Liberalismo Político, de John Rawls, a palavra povo aparece diversas vezes com o sentido de conjunto de cidadãos de uma nação. Por isso, decidimos manter o termo no trecho relacionado a Rawls. 53 RAWLS, John. A idéia de razão pública: 288. 54 PREUSS, U. K. La construcción del poder constitucional para la nueva polis: 1.

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transformando, como diz Rawls, numa aproximação da intenção original da

Constituição.

Tanto Rawls quanto Dworkin têm uma visão evolucionista das Constituições,

mas se baseiam em concepções divergentes sobre o evolucionismo (ver nota 42

deste capítulo). Este evolucionismo tem sua raiz na common law, a qual, por sua

vez, apresenta uma dupla face: veneração ao passado e adaptação às novas

circunstâncias. Para Rawls, a Constituição americana evolui a partir de um retorno

à intenção original dos seus autores, isto é, de uma volta ao passado. Já o

evolucionismo constitucional Árvore Viva de Dworkin significa uma adaptação aos

desafios postos pela contemporaneidade.

Rawls não contesta a importância do ressurgimento do poder constituinte,

mas acredita que suas propostas devam ser encaminhadas à Suprema Corte para

que ela as aprove ou rejeite. Neste ponto, Rawls volta a decretar a supremacia da

Suprema Corte sobre o poder constituinte da maioria, já que a decisão final

permanece com o tribunal.

A Escola da Teoria Crítica contesta as teorias que colocam o judiciário numa

posição privilegiada em relação aos outros órgãos governamentais. O juiz

inteligente, sensato e culto idealizado por Dworkin, argumentam, não tem

existência no mundo real. Logo, se uma leitura moral da Constituição fosse aplicada

à realidade, teríamos uma constante mudança constitucional feita por pessoas não

tão capazes. Nada nos garante, diz esta corrente, que teríamos juízes moral e

politicamente corretos à frente de uma proposta de alteração da Constituição.

Correríamos o risco de cair num ativismo judicial que ameaçaria uma das principais

características do Constitucionalismo: a estabilidade do texto constitucional.

Em vez de limitadas pelas intenções dos autores, as mudanças seriam

determinadas por juízes, cada um deles influenciado por sua própria teoria de

moralidade política e não pela melhor teoria da moralidade política, como pretende

Dworkin. De acordo com a Teoria Crítica, os juízes seriam parciais, tomando

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decisões políticas com base em suas próprias ideologias políticas. Outro ponto fraco

da teoria de Dworkin seria a ameaça à democracia. Os limites ao poder

governamental seriam dados por um corpo de juízes que não é eleito, em vez de

pelo órgão legislativo cujos representantes são escolhidos pela população. Em

suma, os teóricos críticos não entendem o constitucionalismo como uma garantia

contra a opressão, mas como um instrumento utilizado pelos grupos dominantes

para manter seu status. De acordo com este ponto de vista, a Grundnorm é uma

imposição das classes dominantes. O discurso de que ela encontra fundamento em

si mesma seria apenas uma forma de encobrir o fato de que é válida porque serve

a interesses poderosos. Seguindo esta linha de raciocínio, o que prevalece na

interpretação literal é o significado da palavra, imposto pela classe dominante.

Da mesma forma, no Originalismo e na teoria da hipótese intencional, a

intenção dos autores ou a que eles poderiam ter tido é determinada pela classe

dominante. Para os teóricos críticos, não haveria possibilidade de uma

interpretação neutra. A melhor teoria moral proposta por Dworkin não seria nada

mais que a teoria mais conveniente ao pensamento dominante. E a Suprema Corte

de Rawls emendaria a Constituição não com base na vontade do poder constituinte,

mas na dos poderes dominantes.

Na teoria da Grundnorm, a Constituição deve ser interpretada literalmente,

pois se considera que ela seja obra de um poder constituinte que se expressou uma

única vez e com autoridade absoluta. Já na concepção de Constituição como Árvore

Viva, em contínua transformação, o poder constituinte apresenta-se no momento

fundador e permanece atuante no período subseqüente, sendo exercido pelo

judiciário através do instrumento da revisão judicial. Mesmo neste caso, o judiciário

deve basear-se na vontade de um poder constituinte que resida na vontade da

maioria da população. Implícita nas duas teses, está a idéia de que o poder

constituinte é capaz de provocar mudanças. A Constituição é entendida como uma

instituição que produz efeitos sobre a vida política, uma instituição que atuaria

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como catalisadora de mudanças sociais. Ao contrário, a Teoria Crítica tem uma

visão fatalista sobre o impacto de uma Constituição na prática social. Por mais

progressista, o poder constituinte acabaria se degradando em um poder constituído

opressivo, em instrumento de uma classe dominante. A Constituição serviria

apenas para manter um status quo, não para catalisar mudanças.

No capítulo 4, faremos uma análise da Constituição Européia com base nos

três modelos acima discutidos e no tipo de interpretação constitucional que eles

poderiam gerar. A Constituição Européia estaria mais próxima de um modelo

democrático-radical ou institucionalista? Estes dois modelos pressupõem a

existência de um poder constituinte formado pelo povo. Sabe-se, no entanto, que

não há um povo europeu tal como entendemos que existe um povo alemão, francês

ou italiano. Quem confere legitimidade a essa Constituição, senão ela própria,

impondo-se como uma Grundnorm? O modelo evolucionista, que prevaleceu nos

tratados, seria eliminado com a aprovação da Constituição Européia?

A Constituição entre os antigos

O conceito de constitucionalismo não tem uma história linear, senão que está

formada por avanços e recuos. Em alguns períodos, pareceu ser uma idéia valiosa

para determinadas sociedades, em outros quase desapareceu completamente, para

ressurgir mais à frente em uma outra versão. Devido à impossibilidade de expor

todas as nuances do conceito de constitucionalismo ao longo dos séculos, optamos

por nos concentrar em três períodos: a Grécia Antiga, a República Romana e a

Idade Média.

a) O Governo Misto na Cidade-Estado: Platão e Aristóteles

Na Grécia encontramos a mais antiga das concepções de constitucionalismo

conhecidas no Ocidente: a politeia ou constituição. O termo politeia, no entanto,

assume significados muito distintos. O conceito descritivo diz respeito ao Estado

como ele é de fato e inclui tanto a organização econômica e social da sociedade civil

quanto a constituição do próprio governo. Nesta acepção neutra, politeia é

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sinônimo de regime de governo e pode adquirir várias formas de acordo com o

número daqueles que governam: um na monarquia, poucos na aristocracia e

muitos na democracia. No entanto,

(...) também se refere a regimes políticos com algumas características axiológicas.55

Nesta segunda concepção, politeia não significa simplesmente regime de governo,

mas o melhor regime de governo. Já existe aí, portanto, uma consideração de

valor. Uma outra definição, anterior a Platão e Aristóteles, considera a politeia

como

um regime com leis, desde que estas fossem consideradas como parte integral de ordens políticas baseadas tanto na igualdade dos cidadãos (isonomia) quanto no compartilhamento do poder entre eles (polites).56

A primeira noção de constituição pode ser melhor compreendida a partir do

conceito grego de lei natural. Em Atenas a lei natural servia apenas para explicar

fatos, acontecimentos reais. Ela não era um modelo a ser seguido. A lei natural não

tinha o significado de lei fundamental, de preceito constitucional, superior às

demais. Por isto, não era coercitiva. A lei natural significava, antes de mais nada, o

que havia de comum entre todos os Estados, o invariável:

Se de alguma forma os gregos pensavam em uma lei da natureza aplicada a um Estado particular, eles na verdade entendiam por lei natural a parte das leis de um Estado que eram, de fato, idênticas em todos os Estados – o que Aristóteles em sua Retórica chamou de common law.57

Segundo Newman, para os gregos, a constituição estava presente em todos

os domínios da vida.

Cada forma constitucional exercia uma influência modeladora sobre a virtude.58

Cada tipo de constituição encarnava um estilo de vida e tendia a provocar a

adesão daqueles que viviam sob seu jugo.

55 CASTIGLIONE, D. The Political Theory of the Constitution: 12. 56 Ibidem. 57 MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern: 18. 58 Idem: 13.

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Estado e sociedade não eram vistos pelos gregos como entidades separadas.

Eles acreditavam que a politeia, ou constituição, deveria harmonizar-se com a vida

real. Embora a constituição incentivasse determinados comportamentos, ela não

previa uma sanção para os que se recusassem a obedecê-la. Aristóteles não

considerava plausível a imposição a fórceps de uma constituição ao corpo social. Ao

contrário, o elemento normativo da Constituição deveria corresponder à natureza e

ao fim da polis. Em outras palavras, Aristóteles tinha uma concepção orgânica e

teleológica da constituição. A igualdade política dos cidadãos da polis e a

constituição influenciavam-se mutuamente, formando um círculo virtuoso. Por um

lado, a constituição refletia a igualdade entre os cidadãos. Por outro, a cidadania

dependia de garantias constitucionais.

Nas críticas mais difundidas a obra de Platão é vista como uma das

principais teorias do totalitarismo. Para MacIlwain, isto ocorre devido a uma leitura

superficial da obra platônica. Segundo ele, não se pode subestimar a distinção feita

por Platão entre o ideal e o real, ou entre o governo do rei-filósofo, que ele sabia

ser impossível, e a politeia,59 que, apesar dos defeitos, poderia ser alcançada no

mundo real. Para MacIlwain, não se pode avaliar a filosofia platônica apenas com

base na República. A teoria de Platão sobre o melhor governo estaria no Político, na

possibilidade de ter um governo limitado pela lei e imune a demagogos.

Se o Político nos dá um retrato da mente do autor, então não podemos dizer que ele era um defensor do governo arbitrário no mundo político real.60

Na opinião de McILWAIN, o governo do rei-filósofo, presente na República,

seria apenas uma idealização que Platão jamais teria pensado em ver realizada. O

filósofo Ernst Cassirer interpreta a teoria de Platão sobre o Estado de forma

parecida:

59 Platão utiliza a primeira acepção de politeia, como um conceito que descreve o Estado como ele é de fato. 60 MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern: 17.

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O Estado ideal de Platão estava para além do espaço ou do tempo; não havia nem aqui nem agora. Era um paradeigma, um paradigma e modelo para as ações humanas, mas não tinha um estado ontológico definido, um lugar na realidade.61

Embora exalte o governo perfeito da arte real, Platão sabe que não é

possível encontrar com freqüência governantes tão iluminados e, por isso,

contenta-se com a segunda melhor opção: a politeia ou Governo Misto.

Platão distingue seis tipos de governo, três referentes ao Estado verdadeiro

e regido por leis que beneficiam a todos (monarquia, aristocracia e democracia) e

três que designam o Estado corrupto, no qual as leis privilegiariam uma classe em

detrimento do todo (tirania, oligarquia e mais uma vez a democracia). Ou seja,

haveria dois tipos de democracia, uma verdadeira e outra corrupta. A politeia seria

o sétimo tipo, composta por uma mistura de monarquia e democracia. Para Platão,

não poderia haver poderes desmesurados e puros.

O governo constitucional ou politeia é um governo limitado pela lei e esta

restrição é ao mesmo tempo o seu mérito e o seu defeito. A lei dificulta tanto as

ações desejáveis do governante quanto as indesejáveis. Ela é como um tirano

obstinado e ignorante, diz Platão, que não admite ser contrariado mesmo quando

há uma mudança de circunstâncias:

A lei não pode compreender exatamente o que é mais nobre ou mais justo ou ordenar de uma vez por todas o que é melhor para todos. A diferença entre os homens e entre as ações, e os movimentos irregulares e ininterruptos das coisas humanas, não admitem nenhuma regra universal e simples.62

Platão opõe a rigidez da lei-tirana à flexibilidade do rei-filósofo. Este

governaria com arte e não mecanicamente, ainda que seguindo regras

preestabelecidas. Essa tensão entre a lei e o sábio, ou entre o governo das leis e o

governo dos sábios, perpassa toda a história do constitucionalismo republicano e

ganha sua versão moderna na oposição entre os que acreditam que a lei deva ser

61 CASSIRER, E. O Mito do Estado: 103-104. 62 PLATÃO apud MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern: 15.

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rigidamente aplicada e os que defendem a sua modificação e/ou interpretação por

juízes ou legisladores.

No governo constitucional ou politeia prevalece o racional-legal, a rigidez da

lei. Já no governo do rei-filósofo a arte ganha o primeiro plano. Esta possibilidade,

no entanto, estaria desde sempre descartada. O mais provável seria encontrar um

governante que agisse não com arte, mas simplesmente com base no carisma,

tornando-se um demagogo. A escolha, portanto, teria de ser feita entre duas

possibilidades reais, ou seja, entre a racionalidade da lei na politeia e o carisma do

demagogo. Neste caso, Platão afirma a superioridade da lei sobre o desejo: a

politeia é melhor do que um governo de demagogos.

Poder-se-ia argumentar que, apesar da defesa da politeia, Platão acaba por

definir o governo do rei-filósofo como um ideal e todo ideal, supõe-se, é algo que

se busca alcançar. Assim, em última instância, Platão seria um defensor do governo

totalitário do rei-filósofo. Mas esta é uma interpretação do passado a partir de

conceitos modernos. Para os gregos, a lei natural, o ideal servia apenas como base

de comparação e não como algo que deveria ser atingido e tornado concreto no

mundo real. Além disso, nenhum governo precisaria estar de acordo com a lei

natural para ser legítimo. As leis do governo deveriam ser obedecidas pelos

cidadãos da pólis independentemente da sua conformidade à lei natural. Esta lei

natural não era o equivalente a uma lei superior, fundamental, constitucional e, por

isso, as leis não precisavam ser compatíveis com ela.

A teoria de Platão sofre algumas alterações com Aristóteles. Os sete tipos de

Platão transformam-se em seis em Aristóteles, que reconhece três formas legítimas

- monarquia, aristocracia e politeia – e três pervertidas - tirania, oligarquia e

democracia. Mas a principal diferença entre os dois filósofos está no tipo de mistura

que permite criar um Governo Misto.

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Nas Leis, Platão afirma que uma combinação de monarquia com democracia

já é suficiente para criar uma politeia. Aristóteles, ao contrário, acredita que uma

politeia só pode resultar de uma mescla das três formas legítimas:

A melhor escolha é a daqueles que pretendem misturar os vários tipos de Constituição, pois a melhor forma é a da Constituição resultante da fusão de muitos tipos diversos.63

Aristóteles parte da tipologia clássica das formas de governo, mas salienta a

insuficiência do princípio a ela subjacente: o número. A natureza ou essência de um

regime não pode ser conhecida por meio da pergunta quantos governam. A

essência de uma constituição ou regime só pode ser determinada por sua

finalidade. Logo, deve-se perguntar Para quem se governa. O critério para

classificar um regime passa a ser a predominância dos ricos ou dos pobres no

governo. No entanto, tanto num caso como no outro impera a irracionalidade da

paixão. O ideal seria uma politeia ou Governo Misto, que mistura as duas partes

integrantes e antagônicas da sociedade. Desta forma, as paixões são freadas e os

interesses privados das classes, sacrificados em nome dos interesses da pólis. Em

Aristóteles, portanto, a palavra politeia adquire uma conotação axiológica: passa a

significar o melhor regime de governo, aquele capaz de garantir um equilíbrio, um

justo meio entre as partes. Ricos e pobres devem abrir mão de seus interesses

privados em nome do bem público da cidade.

Mas é a concepção do historiador grego Políbio (século II a.c.), teoricamente

inspirada na de Aristóteles e empiricamente baseada na República Romana (509 a.c

a 27 a.c.) , que se tornará a mais conhecida na antigüidade. Segundo Wormuth,64

Políbio justifica o Governo Misto a partir de uma teoria das revoluções. A

monarquia, primeira forma de governo, torna-se corrupta e transforma-se em

tirania. Os melhores homens da comunidade então destituem o tirano e

estabelecem uma aristocracia. Seus descendentes, no entanto, acabam utilizando o

cargo para satisfazer os seus desejos e não os da comunidade. Conseqüência:

63 ARISTÓTELES apud BOBBIO, N. Governo Misto. 64 WORMUTH, F. D. The Origins of Modern Constitutionalism.

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forma-se uma oligarquia. Insatisfeita com a oligarquia, a comunidade a substitui

pela democracia. Em seguida o povo é levado à devassidão por maus líderes e a

sociedade, em ruínas, acaba aceitando novamente uma monarquia. Nessa teoria, a

revolução tem um caráter circular e um tom pessimista. Por mais que se tente

mudar o governo, sempre se acaba retornando ao ponto de partida. O tempo corrói

o governo e, por isso, precisa ser estancado por um Governo Misto.

b) A República Romana

Com os estóicos e Cícero em particular, haverá uma mudança fundamental na

concepção de lei natural e, conseqüentemente, na de constituição. Ao contrário da

politeia grega, na constitutio latina a lei natural é vinculatória, ou seja, as demais

leis devem se conformar a ela. Enquanto uma das acepções da politeia grega

apenas descrevia a constituição de um determinado Estado, a constitutio latina era

normativista, pois propunha um governo de acordo com o ideal de uma lei natural

superior e anterior ao Estado.

A presença de uma lei natural vinculatória atenua o componente autocrático

das instituições romanas ao introduzir elementos de constitucionalismo. Subjuga-se

a vontade política a uma lei natural, a uma razão superior. O príncipe é legibus

solutus (acima da lei) em relação à lei positiva, mas deve obedecer às

determinações de uma lei natural superior. Os romanos, portanto, nos teriam

legado tanto a idéia de um príncipe acima da lei quanto a de um príncipe que tem

seu poder limitado pela lei natural.

Outra diferença importante em relação ao mundo grego é a divisão que os

romanos estabeleceram entre jus publicum e jus privatum. Apesar da separação,

ambas as categorias eram sustentadas pelo mesmo espírito de independência do

indivíduo. De acordo com MacIlwain,65 o direito público resultou de um

desdobramento histórico do direito privado. Inicialmente, o contrato entre dois

indivíduos, por exemplo, deveria ser publicamente garantido através de um

65 MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern.

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registro. Em outras palavras, o povo tornava-se responsável pela manutenção dos

direitos individuais criados por um ato privado. Só posteriormente o Estado surge

como um garantidor desses direitos. Portanto, o direito público deriva do privado,

ao contrário da opinião corrente. Essa tradição romana de uma lei natural

vinculatória e de valorização dos direitos individuais será uma das fontes do

constitucionalismo liberal.

Mas o direito romano continha outros elementos de constitucionalismo além

da garantia de que os contratos seriam respeitados. A generalidade e a

prospectividade da lei, por exemplo, eram idéias correntes em Roma. Por

generalidade, entende-se que a lei não é estabelecida para indivíduos, mas com

propósitos gerais. Já a prospectividade significa que a lei só pode legislar sobre

assuntos presentes e futuros, jamais se aplicar a casos anteriores à sua entrada em

vigor. Ou seja, a lei não pode retroagir.

Uma passagem explosiva em Cícero afirma que uma medida retroativa é uma impossibilidade física.66

A lei romana também desenvolveu a idéia de que o soberano poderia ser

processado. Em várias ações nas quais o Estado estava envolvido, o Fisco romano,

como credor ou devedor, poderia processar ou ser processado pelo Estado. Em

outras palavras, havia um controle mútuo entre o Fisco e o Estado Romano.

O inegável componente autocrático das instituições romanas era atenuado

pela idéia de independência dos indivíduos. Daí a diferenciação entre jus strictum e

jus honorarium. Na primeira, a lei não poderia ser modificada por nenhum

magistrado e deveria ser seguida de acordo com um procedimento formal e

extremamente rígido. Curiosamente, durante o Império (27 a.c. a 476 d.c.),

período marcado pelo autoritarismo, os magistrados liberalizaram a lei. Os

procedimentos formais puderam ser substituídos ou flexibilizados em função de

considerações sobre eqüidade, resultando na jus honorarium.

66 WORMUTH, F. D. The Origins of Modern Constitutionalism: 26.

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Ou seja, os magistrados romanos opuseram-se à lei que, segundo Platão,

era um tirano obstinado e ignorante. Mas como saber se a interpretação da lei de

acordo com princípios de eqüidade será feita com a arte de um rei-filósofo? Até que

ponto a flexibilidade da lei não criou condições para atitudes arbitrárias por parte

dos magistrados do Império? Retornamos ao problema do constitucionalismo

colocado por Platão. A rigidez da lei é ao mesmo tempo a sua maior qualidade e o

seu defeito. Mas, se a lei tem méritos e deméritos, a sua liberalização apenas

recoloca o problema em outros termos. A liberalização da lei pelos magistrados

romanos trouxe tanto benefícios quanto malefícios. Por um lado, permitiu a

interpretação de acordo com princípios de eqüidade; por outro, pôde ser usada

arbitrariamente.

De acordo com McIlwain,67 o Império Romano mantém vivo o espírito do

constitucionalismo da República Romana, sobretudo a noção de que o povo é a

fonte última da autoridade legal. Durante a Idade Média, a Europa Ocidental teria

sido influenciada pelo constitucionalismo da República Romana. Outros autores, no

entanto, destacam o absolutismo do Império Romano, que teria sido recuperado

pela Europa após a Renascença italiana. Na realidade, podemos afirmar que o

legado de Roma é contraditório. Por um lado, havia uma tendência ao absolutismo,

herdeira do Império Romano; por outro, uma valorização do constitucionalismo,

proveniente da República Romana.

De acordo com McIlwain, é possível traçar um paralelo entre a lei nos

últimos séculos da República Romana e na Inglaterra após a invasão normanda, ou

seja, entre o Constitucionalismo de Roma e o da common law inglesa. Em ambos os

casos, as mudanças legais passaram a ser feitas por juízes em vez de legisladores,

adquirindo portanto um viés legalista. A jurisprudência romana teria contribuído

para a racionalização do sistema legal e sua autonomia da política.

67 MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern.

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c) A Autonomia local: a tradição germânica na Idade Média e a common

law inglesa

Enquanto o Estado grego e o romano tinham um Governo Misto, que os

transformava numa comunidade indivisível de cidadãos, o Estado Germânico da

Idade Média era dual. Príncipe e Povo permaneciam em campos opostos como

unidades independentes. O Estado confundia-se com a pessoa do rei. Em certas

áreas, o povo submetia-se à autoridade pessoal ilimitada do rei; em outras, era

autônomo e auto-organizado. Gierke chamava essa sociedade dualista germânica

da Idade Média de dupla majestade.

Segundo Wormuth,68 a concepção medieval germânica de uma sociedade

dualista exerceu forte influência na Inglaterra, dando origem à common law, que se

tornou portadora da tradição de um espaço independente e autônomo em relação

ao poder governamental. Montesquieu defendia o mesmo ponto de vista sobre a

origem da common law:

Se quisermos ler a obra admirável de Tácito, Sobre os costumes dos germanos, veremos que foi deles que os ingleses tiraram a idéia de seu governo político. Este belo sistema foi descoberto nos bosques.69

Para outros autores, o constitucionalismo do direito romano também teria,

no final do século XIII, sido absorvido pela common law. A idéia de que a common

law tinha uma relação com a lei natural e a razão, por exemplo, parecia ser uma

clara influência do direito romano.

No século XVI, no entanto, Edward Coke apresenta uma outra concepção

para a common law. Esta não seria tributária nem do direito germânico nem do

romano. A lei inglesa, dizia Coke, era uma manifestação tão somente local.

Com a expansão do direito romano na Europa, a autonomia local da dupla

majestade tornou-se menos forte. O adágio absolutista do Império Romano,

68 WORMUTH, F. D. The Origins of Modern Constitutionalism. 69 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis: 178.

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princeps legibus solutus est, acabou por modificar as instituições germânicas na

Europa continental, sobretudo na França. A Inglaterra tinha conseguido preservar-

se da incursão do absolutismo romano graças à rigidez que a common law já

apresentava nesta época.

A concepção de monarquia na teoria clássica do Governo Misto, em Platão e

Aristóteles, é totalmente diferente da idéia medieval sobre a realeza. Aristóteles

chamava os reis de Esparta de meros generais para a vida e classificava o Estado

espartano como uma politeia ou governo constitucional. Em outras palavras, na

monarquia de Aristóteles havia uma relação impessoal entre o rei e o cargo real.

Na Idade Média, ao contrário, a relação entre o rei e os súditos era uma

relação pessoal. Em Aristóteles há uma classificação de regimes de governo em

despótico (regimen despoticum), no qual o rei usa os súditos como instrumentos

para alcançar seu interesse particular; em real (regimen regale), no qual um

superior natural governa em prol dos súditos (equivalente ao governo do rei-

filósofo na concepção platônica); e em constitucional (regimen politicum), no qual

os cidadãos governam e são governados.

Se avaliarmos a concepção de monarquia na Grécia e na Idade Média de

acordo com a classificação de Aristóteles, podemos dizer que a monarquia grega

era um regime constitucional, enquanto a monarquia medieval correspondia ao

regime real de Aristóteles.

De fato, havia semelhanças entre a concepção medieval de realeza e o

regime real formulado por Aristóteles. Em ambos os casos, existia uma relação

pessoal entre rei e súditos. No entanto, as duas concepções também têm pontos de

divergência. Por exemplo, o princípio de uma lei pessoal em Aristóteles era

originalmente militar, deixando de atuar quando se tratava de assuntos civis. Ou

seja, na guerra, os súditos confiavam no rei, quando os assuntos eram outros, o rei

não intervinha. Sua autoridade era limitada ao campo militar.

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Durante o período feudal o rei tentou impor sua vontade para além do

campo militar, sobre toda a ordem social. Por outro lado, havia pressão para que a

realeza fosse transformada num mero cargo legal, como ocorria na época de

Aristóteles. O juramento de fidelidade era feito não à pessoa do rei, mas à coroa.

Se o rei não se guiasse pela razão, os barões podiam, em prol da coroa, obrigá-lo a

reverter uma decisão, ou seja, a agir de acordo com a razão.

Em suma, na Idade Média, o poder estava dividido entre várias instâncias: a

igreja, o rei e os barões. Um regime deste tipo não poderia ser classificado nem

como um regimen regale, em que um superior natural governa em prol dos súditos

nem como um regimen politicum, no qual os cidadãos governam e são governados.

Era necessário encontrar uma outra classificação para o regime da Idade Média. De

acordo com Wormuth,70 o jurista inglês Sir John Fortescue foi o responsável pela

recuperação do termo dominiun regale et politicum.em autores como São Tomás de

Aquino e Egidius. No Dominium regale puro, o rei faz leis e as impõe sem o

consentimento dos súditos. Já na forma composta dominium regale et politicum, o

rei só pode legislar com a aprovação do povo.

A concepção do dominium regale et politicum equivale à idéia de dupla

majestade da sociedade dualista germânica da Idade Média. Por um lado, o rei era

absoluto; por outro, deveria submeter-se à lei natural e ao povo. O politicum

constituía, portanto, um espaço separado e de oposição ao rei. Na Inglaterra, uma

concepção semelhante à do dominium regale et politicum recebeu o nome de

gubernaculum. Este termo descrevia a área em que a autoridade do rei era

ilimitada. Em contraste, havia a jurisdictio, isto é, a esfera em que o rei é limitado

pela lei. No gubernaculum, como o rei-filósofo de Platão, o rei poderia sair de sob a

égide da lei para agir em prol do bem comum. O gubernaculum, portanto,

representa a prerrogativa absoluta do rei. Não há dúvidas sobre quem detém a

70 WORMUTH, F. D. The Origins of Modern Constitutionalism.

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autoridade. Em contraste, na jurisdictio ou prerrogativa ordinária a decisão sobre

quem possui o poder está sempre em aberto e é determinada pela Corte.

A dupla majestade do direito germânico e a forma que adquiriu na

Inglaterra, o gubernaculum/jurisdictio, podem ser entendidos como instituições do

pluralismo medieval. Além do espaço real, havia uma esfera onde diferentes atores

poderiam se organizar. A dupla majestade de Gierke significa uma repartição do

poder em duas esferas e, por isso, já antecipa a idéia federalista de divisão do

poder do governo central. Essa concepção medieval também aparece no tratado

huguenote Vindiciae contra Tyrannos. Nesta obra afirma-se que:

O rei é instituído pelo povo e dele deriva sua autoridade. A conseqüência disto poderia ser a destruição da independência do poder real. Mas não ocorre assim. Rei e povo são dois parceiros iguais, ligados por um contrato. Há servidores do rei, (...); e há servidores do reino, que são bastante independentes do rei.71

É na esfera da jurisdictio que se desenvolve a common law inglesa como

uma rival tanto do poder real quanto do Parlamento. No entanto, é preciso

distinguir entre a common law em vigor no período medieval e a que se

desenvolveu durante a dinastia Stuart. No período medieval, um advogado inglês

compreenderia a lei civil, escrita, como parte da lei inglesa. Não havia na Inglaterra

uma separação nítida entre costume e lei escrita. Segundo o historiador J. A

Pocock, a idéia de uma common law como um costume imemorial foi uma

construção histórica realizada num período posterior pelo medievalista Edward Coke

(1552-1634). É só a partir de então que a common law ganha a sua formulação

clássica. A common law, segundo Coke, não era apenas antiga ou resultado do

trabalho de legisladores míticos e remotos. Era mais do que isto. Era imemorial,

inalcançável pela memória. Além disso, Coke não admitia qualquer influência do

direito germânico na common law. Esta seria autóctone, uma criação exclusiva da

sabedoria e experiência do povo inglês.

71 Idem: 36.

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A common law não se referia à lei escrita criada pela reflexão filosófica ou

pelo debate no Parlamento. Ao contrário, ela surge do uso e da prática do povo

inglês, de um acúmulo de experiências e, portanto, só pode ser registrada na

memória popular. Um costume nunca se transforma em common law antes de ser

testado por muitos séculos. As leis escritas contêm a sabedoria de um homem ou

uma geração, enquanto o costume reúne a sabedoria de várias gerações. O uso

havia tornado o costume mais perfeito do que qualquer modo de expressão que a

inteligência individual pudesse imaginar. Houve casos em que um estatuto teve de

ser rejeitado por ter alterado uma common law de forma inconveniente.

Coke acreditava que um costume teria sido descartado no passado caso

tivesse mostrado algum defeito. Como não o foi, significa que ele possui um valor

intrínseco. Ou seja, a legitimidade da lei era dada por sua suposta antigüidade:

Há muito tempo Fortescue escreveu que as leis da Inglaterra eram as melhores do mundo porque eram certamente as mais antigas – mais antigas do que as de Roma e Veneza.72

Mas existe um paradoxo na common law. Ela é ao mesmo tempo imemorial

e mutável. Ela deve estar em mudança e adaptação constante, sendo alterada para

satisfazer a cada nova experiência da sociedade. As leis promulgadas pelo Príncipe

ou pelo Parlamento poderiam se tornar obsoletas, mas o costume estaria sempre

atualizado. É uma teoria que leva a uma concepção histórica da lei da natureza. Ou

seja, a lei da natureza não é a mesma para todos os tempos e espaços, mas se

adapta a cada circunstância.

A chave do paradoxo reside no fato de que o conceito de costume é ambíguo; Selden nunca foi tão sugestivo como quando chamou a common law de a Janus inglesa. Podemos vê-la como algo que está em constante adaptação, e ao fazer isto dará margem a idéias que são inegavelmente históricas. Mas é igualmente possível vê-la como algo que permaneceu através do tempo e deriva sua autoridade justamente do fato de ter sobrevivido imutável a todas as mudanças de circunstâncias.73

72 POCOCK, J. G. A. The Ancient Constitution and the Feudal Law: 33. 73 Idem: 36-37.

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A Constituição entre os Modernos

O constitucionalismo republicano e o liberal representam duas diferentes

concepções de constituição que, historicamente, de acordo com Castiglione,74

apareceram combinadas. O Estado constitucional moderno que emerge no fim do

século XVIII é na verdade o resultado de ambas as tradições. O princípio da

separação de poderes, por exemplo, não é exclusivamente republicano. Está

presente tanto em republicanos como Maquiavel, ainda de forma incipiente, e

Rousseau, quanto em liberais como Locke e Tocqueville. Ou ainda em autores que

apresentam elementos republicanos e liberais, como Montesquieu e Kant. Ou seja,

é uma idéia que perpassa as duas tradições constitucionais.

No entanto, Martins prefere ressaltar as diferenças entre essas tradições e a

forma como o liberalismo monopolizou indevidamente conceitos como

constitucionalismo e republicanismo.75 Na sua interpretação, portanto,

republicanismo e liberalismo não teriam aparecido historicamente combinados.

Apenas num segundo momento é que o republicanismo teria sido absorvido pelo

liberalismo.

Para Martins, confunde-se o liberalismo com o constitucionalismo, como se

não pudesse existir constitucionalismo fora e além do liberalismo.76 Ele ressalta a

importância de distinguir claramente o significado de cada termo.

Constitucionalismo

é a afirmação da necessidade de uma carta constitucional que desabsolutize o poder estatal.77

Já o Liberalismo

é a reivindicação, no interior do constitucionalismo, de um certo tipo de carta constitucional, que atende pelo nome específico de Constituição Liberal.78

74 CASTIGLIONE, D. The Political Theory of the Constitution: 21. 75 MARTINS, C. E. Liberalismo: O Direito e o Avesso. 76 Idem: 651. 77 Idem: 652. 78 Ibidem.

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Ou seja, o constitucionalismo liberal é apenas uma das formas possíveis, e

não a única, do constitucionalismo. Também precisamos considerar a existência de

um constitucionalismo republicano.

Entre as diferenças básicas entre republicanismo e liberalismo, está a

relação entre o âmbito do público e do privado. Enquanto o republicanismo tenta

criar uma continuidade entre os dois espaços, o liberalismo distingue claramente o

público e o privado. Além disso, os republicanos buscam interferir no

desenvolvimento dos indivíduos, estimulando neles o sentimento cívico. Os liberais,

ao contrário, não concebem qualquer intervenção na vida privada dos indivíduos. O

Estado deve apenas garantir que o próprio indivíduo tenha liberdade para buscar

sua própria felicidade. Os republicanos cultivam uma visão orgânica da sociedade.

Esta é entendida como um todo cujas partes devem conviver harmonicamente e

integradas entre si. Os liberais, por outro lado, consideram os indivíduos

como seres independentes e separados entre si, (...) mais importantes do que os grupos a que possam pertencer.79

Essas diferenças entre republicanismo e liberalismo vão inevitavelmente

aparecer nas suas respectivas teorias constitucionais. São visões de mundo que

não podem ser confundidas ou subsumidas uma na outra.

a) O paradigma republicano

Desde Platão e Aristóteles, o pensamento republicano vê-se diante da alternativa

entre o Governo dos homens e o Governo das leis (rule of law). Qual a melhor

opção? Confiar o governo a um homem, tão sujeito às paixões quanto os súditos

que ele pretende governar, ou às leis, que podem ser rígidas (como um tirano

obstinado e ignorante) a ponto de se tornarem contraproducentes? Para superar

esse dilema, os republicanos recorrem às instituições políticas. Estabelecer leis e

escolher governantes não são as atividades mais fundamentais de uma sociedade

79 Ibidem.

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política, pois ambas dependem de uma maquinaria institucional que a própria

constituição deve assegurar.

O paradigma republicano do constitucionalismo oferece algumas respostas

sobre como este equilíbrio entre governo dos homens e governo das leis pode ser

alcançado: atribui um lugar especial aos legisladores, reconhece o papel mediador

das instituições políticas e, finalmente, afirma o princípio da separação de poderes

como forma de limitação do poder do Estado.

Pode-se argumentar que atribuir uma função especial aos legisladores não é

suficiente para equilibrar o governo dos homens e o governo das leis e, em

conseqüência, limitar o poder. Pois nada nos garante que os legisladores também

não venham a agir de forma discricionária, fazendo a balança pender novamente

para um governo dos homens. O elemento pessoal do poder político continuaria

potencialmente presente na figura do legislador. No entanto, de acordo com a

tradição grega, da qual se origina o republicanismo moderno, a legislação não era

um produto da mente do legislador, localizado no Estado e com poderes para impor

suas leis à sociedade. Ao contrário, a legislação grega é o resultado de um

amálgama entre costumes, leis e ordem constitucional. A tradição republicana de

constitucionalismo inspira-se no ceticismo de Aristóteles em relação à possibilidade

de a Constituição, sozinha, ser capaz de modificar os cidadãos.

Em Considerações sobre o Governo da Polônia, Rousseau dirá que é

impossível fazer leis que as paixões dos homens não venham a corromper.80 Mas a

esse ceticismo não se segue um imobilismo, uma crença de que nenhuma

intervenção poderá alterar o estado do mundo.81 Pelo contrário, tanto Aristóteles

quanto Rousseau consideravam que o bom governo era uma combinação de boas

leis com a boa disposição do corpo político e que esta última poderia vir a ser

80 ROUSSEAU, J. J. Considerações sobre o Governo da Polônia: 1. 81 A concepção da imobilidade da ordem social ganhou em Albert Hirschman a denominação de tese da futilidade, segundo a qual qualquer intervenção na realidade é inútil, já que esta é refratária a mudanças.

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alterada. O republicanismo acredita na possibilidade de criar o sentimento cívico

por meio de instituições políticas.

Anteriormente, no Contrato Social, Rousseau já discorrera sobre as

condições necessárias para um constitucionalismo bem-sucedido:

A fim de que um povo nascente possa compreender as sãs máximas da política, e seguir as regras fundamentais da razão de Estado, seria necessário que o efeito pudesse tornar-se causa, que o espírito social – que deve ser a obra da instituição – presidisse à própria instituição, e que os homens fossem antes das leis o que deveriam tornar-se depois delas.82

Ou seja, uma política constitucional eficaz requer não apenas a promulgação

de uma constituição, mas também a existência prévia e a criação de uma cultura

constitucional ou, como nos gregos, de uma convergência entre costumes, leis

ordinárias e leis constitucionais. Muitas constituições modernas apresentam essa

característica republicana, pois contêm em si mesmas as condições para criar um

espírito social ou uma cultura constitucional. A Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão, de 1789, por exemplo, é presidida pelo espírito social da revolução e

ao mesmo tempo tenta criar esse espírito. A Declaração pretende moldar, educar o

corpo social para que cumpra seu dever de respeitar o espírito social que a informa.

Assim como Rousseau, Maquiavel se inspirou na concepção orgânica de

sociedade dos gregos para criar sua teoria do Estado. No entanto, há que se

considerar as diferenças entre o republicanismo de Rousseau e o de Maquiavel. Em

Models of Democracy, Held,83 propõe que o primeiro receba o nome de

desenvolvimentista, por enfatizar o valor intrínseco da participação política para a

realização individual. Já o republicanismo de Maquiavel deveria ganhar o adjetivo

protetor, pois destaca a natureza precária da virtude cívica e a possibilidade da

corrupção quando apenas um grupo participa do governo. Neste caso, segundo

Held, temos uma participação política instrumental, que visa a um objetivo maior, a

preservação da República.

82 ROUSSEAU, J. J. Contrato Social: 58-59. 83 HELD, David. Models of Democracy.

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O republicanismo de Maquiavel aparece de forma inequívoca nos Discursos

sobre a primeira década de Tito Lívio. A República para Maquiavel era constituída,

de um lado, por instituições políticas e, de outro, pelas condições sociais da

comunidade política em que operava. Em outras palavras, a evolução constitucional

da República dependia de uma mistura de acaso (fortuna) e ação humana (virtú).

Assim como Rousseau, Maquiavel acreditava ser possível intervir para criar o

sentimento republicano no povo, para instilar a virtú, isto é, o desejo de fazer o que

fosse necessário para atingir a glória cívica.

Inspirando-se na teoria do Governo Misto, Maquiavel atribui a decadência da

democracia ateniense à sua inabilidade para proteger-se da arrogância da classe

superior e da licenciosidade do povo. Da mesma forma que o Governo Misto, a

República deveria criar instituições políticas para conter as paixões de ambas as

classes. Na medida em que funcionam como meios pelos quais as leis são feitas e

os magistrados selecionados, as instituições políticas são mais duradouras do que

as leis particulares e os governos.84

Se os ricos e os pobres participarem do processo de governo, e seus

interesses encontrarem uma via legítima de expressão através de uma divisão de

funções entre eles, terão forçosamente de se acomodar uns aos outros. Tanto os

ricos quanto os pobres se empenhariam em não deixar aprovar uma lei que lhes

fosse prejudicial.85 Em conseqüência, teríamos um conjunto de leis que favoreceria

a liberdade e com o qual toda a comunidade política estaria de acordo. Todos

deveriam participar politicamente para evitar a degeneração da República.

No entanto, essa liberdade a que Maquiavel se refere é a liberdade do

Estado, que estaria sempre na iminência de ser desestabilizado, seja por um

inimigo interno, as facções, ou externo, representado por outros Estados. O fim do

Estado ou da comunidade política estava acima do indivíduo ou, em outras

84 MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio: capítulo XVIII. 85 Idem: capítulo IV.

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palavras, o público predominava sobre o privado. O republicanismo de Maquiavel

resiste a uma apropriação pelo Constitucionalismo Liberal, uma vez que não há

como conciliar a prioridade dada à Razão de Estado com aquela concedida ao

indivíduo.

Em Oceana (1654), Harrington também recorre às instituições como solução

para o problema republicano do equilíbrio entre o governo dos homens e o das leis.

Naquela obra, adverte para o perigo representado pelos juristas, que submetiam o

governo às suas leis, e pelos demagogos, que se baseavam na tese de que bons

homens produziriam boas leis. Na opinião de Harrington, ambos estavam errados

porque invertiam a relação correta entre as boas instituições, de um lado, e as boas

leis ou os bons governantes, de outro. Não são as leis ou os governantes que

devem preceder as instituições, mas o contrário. Tanto em Maquiavel quanto em

Harrington, encontramos uma das principais características do constitucionalismo: a

estabilidade das regras para a mudança constitucional. Esta não poderia ficar à

mercê de demagogos ou juristas, mas só poderia ser realizada de acordo com

regras preestabelecidas.

De acordo com Harrington, há duas formas de governo: uma fundada no

direito e outra sustentada pelo poder da espada. O governo baseado na segunda

forma, o poder da espada, representava um equívoco. O poder não poderia

depender do exército, já que este não era auto-suficiente. Harrington também

rejeitava a idéia, corrente na época, de que o poder era essencialmente o mesmo

em regimes despóticos ou populares. Para mostrar a diferença entre um e outro,

recorria a um argumento baseado nos tipos de interesse e razão.

Os céticos afirmam que a razão nada mais é do que a racionalização de um

interesse. Mesmo assim, contesta Harrington, podemos distinguir entre diferentes

interesses e razões. O interesse da humanidade, por exemplo, daria origem a uma

razão universal, superior, com a qual todos estariam de acordo. Em sua opinião, o

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interesse de um governo popular é o que mais se aproximaria do interesse da

humanidade e da razão universal e, por isso, era o melhor.

No entanto, Harrington admitia que este argumento apenas demonstra a

superioridade hipotética dos regimes populares. Esses regimes não eram

naturalmente superiores aos demais e próximos do interesse da humanidade. Havia

a necessidade de criar mecanismos que pudessem transformar os interesses

populares em interesses universais. Daí sua proposta de divisão do poder entre um

órgão que debate e aconselha e outro que toma as decisões. O mais importante

princípio republicano de autoridade era que nenhum homem poderia ser legislador

e juiz em causa própria.

Em Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant, Bobbio considera

que Harrington antecipou em dois séculos a doutrina do materialismo histórico. Ele

acreditava que a natureza do poder político dependia da natureza do poder

econômico. A instabilidade da constituição mista era devida ao fato de que ela não

mais refletia um balanço social. Com o fim do sistema feudal, houve uma gradual

transferência de propriedades para o povo e, por isso, o único sistema político

estável passa a ser aquele em que o povo participa. Ou seja, uma mudança na

base material da sociedade teria levado à necessidade de uma mudança na

estrutura política. Na doutrina tradicional, as três formas de governo eram

distinguidas pelo critério do número. Interessava saber se um, poucos ou muitos

governariam. Em Harrington, ao contrário, a diferença entre as formas de governo

é dada pelo critério do modo de distribuição da terra. Assim, a República

caracteriza-se não por ser o governo de muitos, mas por ser o governo em que o

povo detém a propriedade da terra. O materialismo histórico de Harrington permite

pensar sobre a influência da realidade social sobre uma instituição política como a

separação de poderes.

O princípio republicano da separação de poderes, que já havia tido seus

precursores em Aristóteles e Maquiavel (Governo Misto) e Harrington (separação de

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poderes), ganha com um pensador liberal como Montesquieu a sua formulação

clássica no século XVIII. O autor do O Espírito das Leis realiza uma síntese das

teorias do Governo Misto, do balanço de poder (doutrina pura da separação de

poderes) e do checks-and-balances. Talvez Montesquieu ilustre, como nenhum

outro autor, a tese de Castiglione de que o constitucionalismo republicano e o

liberal apareceram imbricados na história.86 Podemos considerar Montesquieu como

um republicano devido à sua teoria da separação de poderes, que impõe um limite

interno ao poder do Estado. No entanto, ele também defende a existência de

corpos intermediários, que representam limites externos ao poder do Estado. Numa

monarquia, argumenta Montesquieu, o poder deve ser canalizado através de corpos

intermediários. Para Wormuth,87 esses corpos intermediários representam um

espaço autônomo em relação ao poder real, isto é, equivalem à jurisdictio e se

opõem ao gubernaculum. Em outras palavras, os corpos intermediários ou a

jurisdictio representam um limite externo ao poder do Estado. Em Montesquieu, os

corpos intermediários são a nobreza, o clero e antigas ordens privilegiadas, e

constituem uma ‘contraforça’ capaz de impedir que o príncipe governe a seu

talante.88

Apesar de constituírem um contrapeso ao poder do Estado, os corpos

intermediários não podem ser associados ao Constitucionalismo liberal. Este só se

afirma pela negação destes corpos. Os críticos liberais de Montesquieu

consideravam os corpos intermédios uma sobrevivência do passado, um obstáculo

às reformas por eles desejadas:

Para os propugnadores dos direitos naturais do indivíduo, a defesa contra o despotismo não estava nos corpos intermédios: estava quer no alargamento da liberdade de cada um, quer no controle do poder estatal desde baixo, ou seja, na liberdade negativa e na liberdade positiva.89

86 CASTIGLIONE, D. The Political Theory of the Constitution. 87 WORMUTH, F. D. The Origins of Modern Constitutionalism. 88 BOBBIO, N. Governo Misto: 929. 89 Ibidem.

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Embora defenda os corpos intermediários, a obra de Montesquieu contém

elementos do liberalismo. Uma das características mais importantes do

constitucionalismo liberal, como veremos mais à frente, é a importância dada à lei

fundamental, considerada esta como uma lei superior natural, racional e universal e

não mais como uma lei divina. Para Montesquieu, o espírito das leis deveria

depender das leis fundamentais:

Antes de todas estas leis, estão as leis da natureza, assim chamadas porque derivam unicamente da constituição de nosso ser.90

A concepção de liberdade negativa de Montesquieu (o cidadão pode fazer

tudo aquilo que a lei não proíbe) seria outro componente liberal de seu

pensamento.

A única forma de governo que carece de lei fundamental é o despotismo,

porque este não tem nem uma estrutura de governo nem um depositário das leis –

todas as decisões são tomadas pelo déspota. Em contraste, tanto o governo

republicano quanto o monárquico são regimes regulados pela distribuição da

autoridade política e pela ação das leis. Os regimes monárquicos do século XVIII,

segundo ele, representavam o paradigma de um governo moderado, cujas

principais características eram a presença de leis e a separação de poderes como

um controle para a tentação natural dos governantes de abusar de sua posição. A

moderação dos regimes monárquicos dependia da atuação dos corpos

intermediários.

Na doutrina pura da separação de poderes, existia uma distinção funcional e

radical entre legislativo, executivo e judiciário. Os três órgãos são mantidos

separados uns dos outros, como em compartimentos estanques. Embora os três

ramos sejam autônomos, o legislativo tem prioridade lógica sobre os outros dois.

Mas a doutrina pura acabou por ser modificada na prática. Houve adaptações que

modificaram os detalhes de sua operação e reforçaram seu espírito. Na verdade, a

90 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis: 13.

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doutrina nunca foi aplicada em sua forma pura, mas sempre combinada com

elementos da teoria do Governo Misto e do checks-and-balances, que retificaram

suas deficiências.

Para Montesquieu, a mera separação formal do poder na doutrina pura da

separação de poderes não seria suficiente para coibir a arbitrariedade do governo.

Montesquieu não acreditava que a separação formal de poderes seria suficiente para permitir que cada poder checasse o outro.91

Ao criticar a República Veneziana, ele observou que, embora o legislativo, o

executivo e o judiciário estivessem divididos, eram formados por magistrados

oriundos da mesma classe social, o que virtualmente transformava esses poderes

em um único poder. Era preciso, portanto, algo a mais do que a simples divisão dos

poderes. Deveria haver uma base material para a divisão formal de poderes.

Em parte a doutrina do Governo Misto contribuía para resolver este

problema da teoria clássica da separação de poderes observada na República

Veneziana. Como vimos, o Governo Misto era uma mistura de monarquia,

aristocracia e democracia. Os órgãos que representavam cada um destes regimes

deviam permanecer separados. O executivo só poderia ser ocupado por um

monarca hereditário e não extraído do corpo legislativo.

(...) se não houvesse monarca e o poder executivo fosse confiado a um certo número de pessoas tiradas do corpo legislativo, não haveria mais liberdade, porque os dois poderes estariam unidos, participando as mesmas pessoas, por vezes, e podendo sempre participar de um e de outro.92

Os outros dois regimes – aristocracia e democracia – estariam representados

respectivamente no Senado e na Câmara. Além de derivar do Governo Misto, o

bicameralismo também pode ser visto como um mecanismo de checks-and-

balances.

91 BELLAMY, R. The Political Form of the Constitution: 32. 92 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis: 173.

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Sendo o corpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo.93

Segundo Bellamy,94 a doutrina da separação de poderes de Montesquieu já

não se apresenta em sua forma pura, mas recebe influências do Governo Misto.

Uma outra interpretação aparece no Artigo 48 dos Artigos Federalistas,

quando Madison identifica em Montesquieu algo da teoria do checks-and-balances,

que será introduzida na Constituição Americana. Para Madison, Montesquieu não

defendia uma separação absoluta entre os vários órgãos do governo:

(...) ele não queria dizer que esses poderes não devem ter nenhuma ingerência parcial, ou nenhum controle sobre os atos uns dos outros. O que quis dizer, como suas próprias palavras indicam e o exemplo que tinha sob os olhos revela ainda mais conclusivamente, não podia ser senão isto: que quando todo o poder de um braço é exercido pelas mesmas mãos que possuem todo o poder de outro, os princípios fundamentais de uma constituição livre estão subvertidos.95

Se considerarmos as constituições dos vários Estados, (...), não há um único caso em que os vários poderes tenham sido mantidos absolutamente independentes e distintos.96

Tanto Bellamy quanto Madison acreditam que a teoria de Montesquieu já é

uma reelaboração da doutrina pura da separação de poderes. Para Ville, no

entanto, Locke e Montesquieu devem ser considerados como teóricos da separação

pura de poderes.97 Na sua definição, a teoria pura da separação de poderes deve

ser vista como um tipo ideal. Na prática, os arranjos institucionais se afastavam

mais ou menos desse modelo. A doutrina pura, segundo Ville, poderia ser definida

como aquela em que o governo está dividido em três ramos ou departamentos: o

legislativo, o executivo e o judiciário. Cada ramo deve ficar restrito ao exercício de

sua própria função:

A doutrina pura como descrevemos implica no que chamaremos de abordagem negativa ao controle do poder pelas agências do

93 Idem: 176. 94 BELLAMY, R. The Political Form of the Constitution. 95 MADISON; HAMILTON & JAY. Os Artigos Federalistas: 333. 96 Idem: 334. 97 VILLE, Maurice. Constitutionalism and the Separation of Powers: 16.

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governo. A mera existência de vários corpos de decisão autônomos com funções específicas é considerado um obstáculo à concentração de poder. (...). Eles não exercem ativamente um controle sobre o outro, porque fazer isto seria interferir nas funções do outro ramo.98

No Espírito das Leis, Livro XIX, capítulo 27, Montesquieu preocupa-se com

uma fundação social para a constituição. A liberdade, ou seja, o hábito de pensar e

falar livremente levaria os cidadãos a dividir-se em grupos que sustentariam ou o

executivo ou o legislativo. Aqueles favorecidos pelo executivo teriam interesse em

apoiá-lo. O mesmo aconteceria com os que fossem beneficiados pelo legislativo.

Resultado: haveria um equilíbrio social que sustentaria o arcabouço da separação

de poderes. Esta fusão da separação de poderes com a teoria do checks-and-

balances produziu uma constituição balanceada política e socialmente. Percebe-se

por este trecho do capítulo 27 que Montesquieu propõe uma abordagem negativa

da teoria do checks-and-balances. Os dois poderes – executivo e legislativo – ainda

não checam um ao outro diretamente. Sua simples existência, como havia

mostrado Ville, é suficiente para impedir a concentração de poder. É a preferência

do povo por um ou outro que faz com que um equilíbrio acabe por se estabelecer

entre eles.

Embora este arranjo pudesse levar à inação – duas forças contrárias e iguais

teoricamente levariam ao imobilismo -, Montesquieu acreditava que o movimento

necessário das coisas as forçaria a avançar. Em outras palavras, ele compreendia o

mundo como dotado de um movimento próprio e necessário, seguindo um curso da

história previamente determinado.

Era difícil assimilar o poder judiciário a esse esquema, pois ele significava

um quarto departamento na teoria do governo misto. Este poder seria perigoso se

ligado ao executivo ou ao legislativo. Montesquieu acreditava que sua

independência seria melhor alcançada se os magistrados não estivessem ligados a

nenhuma classe ou profissão. Esta falta de uma base social ou de um quadro

98 Idem: 18.

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permanente transforma o judiciário no poder mais fraco. Ele se torna invisível, não

tendo nenhuma força no sentido político.

Montesquieu defende a tese republicana de que, para refletir o interesse

comum, a legislação deve ser feita pelo povo. Mas essa participação deve ser

indireta, ao contrário do que acontecia na democracia antiga. Além de ser inviável

em grandes Estados, e até nos pequenos, a democracia direta envolveria muitas

pessoas em decisões para as quais não eram capazes, acreditava Montesquieu. A

democracia representativa remediou esses defeitos ao introduzir freios no processo

democrático. Dever-se-ia selecionar apenas os cidadãos mais capazes e reduzir o

número daqueles envolvidos no debate público a proporções razoáveis. Segundo

Montesquieu, o povo servia para escolher os melhores candidatos, mas não para

propor leis:

(...) O povo, que tem capacidade suficiente para fazer com que se prestem contas da gestão dos outros, não está capacitado para gerir.99

b) O paradigma liberal

Ao contrário da tradição republicana, que impõe limites internos ao poder do

Estado, a tradição liberal baseia-se em limites externos. Além do direito positivo,

existe um direito natural que pertence ao indivíduo pela sua própria natureza de

homem, independentemente de sua participação numa comunidade política. Os

direitos naturais preexistem ao Estado, e, portanto, constituem um limite ao seu

poder. O Estado nunca pode violá-los, mas apenas reconhecê-los. A característica

mais importante do Constitucionalismo liberal é a grande ênfase na idéia de direitos

individuais pré-políticos.

O paradigma da constituição liberal desenvolveu-se autonomamente

separado da tradição republicana. Suas raízes podem ser encontradas nas

discussões, comuns na Inglaterra da Idade Média, sobre as relações entre

gubernaculum (governo) e jurisdictio (jurisdição). Como vimos, o rei tinha poderes

99 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis: 21.

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ilimitados quando se tratava de questões de governo (gubernaculum), mas

limitados quando os assuntos se referiam à jurisdição (jurisdictio).100

Foi justamente no espaço da jurisdictio que se desenvolveu a idéia do direito

natural do homem e da common law, que não poderiam ser violados por nenhum

governante. De acordo com esta interpretação, a limitação do poder não provém do

estabelecimento de formas de governo mistas ou balanceadas, mas do conjunto de

direitos e privilégios que outras áreas possuem contra o soberano. Os magistrados

podem apelar para as leis naturais ou para as consuetudinárias contra a autoridade

do soberano.

Outra importante característica do Constitucionalismo Liberal é a

importância dada à lei fundamental (a Grundnorm) na constituição do Estado. No

entanto, essa lei fundamental não é mais vista como um produto da tradição antiga

e dos costumes, ou derivada da lei divina, mas como uma expressão de uma lei

superior natural, racional e universal em caráter. O apelo a leis fundamentais

anteriores e superiores à comunidade política significa a fixação de uma soberania

de leis (ou da constituição como uma lei superior). Seu objetivo é subjugar a

vontade política a uma razão superior. O viés legalista desta concepção pode ser

encontrado, segundo McIlwain, na Roma Antiga. A jurisprudência romana teria

contribuído para a racionalização do sistema legal e de sua autonomia da política.

Essa herança romana teria sido importante para combater a idéia de um príncipe

legibus solutus (acima da lei) na Idade Média.101

No Segundo Tratado sobre o Governo, Locke afirma uma continuidade entre

o estado de natureza e o estado civil. O Estado não rompe com as leis naturais e

racionais, mas as reafirma e as garante. A idéia de um direito natural anterior

100 Ver o subitem O paradigma republicano, neste capítulo. 101 Segundo McIlwain, o legado romano está no constitucionalismo da Roma Republicana e não, como afirmaram muitos autores, na idéia de um Príncipe legibus solutus do Império Romano. Na realidade, mesmo no Império o poder do soberano não era ilimitado. O Príncipe era legibus solutus (acima da lei) em relação à lei positiva, mas continuava tendo de se submeter à lei natural.

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também está presente num liberal como Tocqueville, que usou a concepção de uma

lei superior para combater o majoritarianismo democrático. Sugeriu que de fato há

uma lei de justiça que se aplica à sociedade em geral e onde a soberania pertence à

humanidade. As leis e os direitos desta sociedade mundial devem naturalmente

conter o que uma maioria nacional desejar impor:

Existe uma lei geral que foi feita ou, pelo menos, adotada não apenas pela maioria deste ou daquele povo, mas pela maioria de todos os homens. Esta lei é a justiça.102

E ainda:

(...) quando me recuso a obedecer a uma lei injusta, não nego à maioria o direito de comandar; apenas, em lugar de apelar para a soberania do povo, apelo para a soberania do gênero humano.103

Tocqueville diferencia-se dos republicanos ainda num outro ponto essencial:

o Governo Misto. De acordo com a teoria de Políbio, só o Governo Misto, que

congregasse as três formas de governo - monarquia, aristocracia e democracia –

poderia evitar que cada uma daquelas formas se transformasse na sua versão

degenerada. Para Tocqueville,

O governo que chamamos misto sempre me pareceu uma quimera. Para dizer a verdade, não há governo misto (no sentido que se dá a essa palavra), porque, em cada sociedade, acaba-se descobrindo um princípio de ação que domina todos os demais.

Quando uma sociedade vem a ter realmente um governo misto, isto é, igualmente dividido entre princípios contrários, ela entra em revolução ou se dissolve.104

Ou seja, Tocqueville tem uma visão sobre o Governo Misto totalmente

diferente daquela dos gregos. Enquanto para Políbio o Governo Misto representa

estabilidade, para Tocqueville ele é sinônimo de revolução.

Segundo Castiglione,105 a teoria do Constitucionalismo Liberal também

recebeu contribuições de autores como Humboldt e Constant, que priorizavam a

liberdade negativa, isto é, a liberdade vista como uma busca individual imune à

102 TOCQUEVILLE, A. de. A Democracia na América: 294. 103 Ibidem. 104 Idem: 295. 105 CASTIGLIONE, D. The Political Theory of the Constitution: 21.

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intervenção estatal. Para Humboldt, o Estado monárquico é – contrariamente ao

que ocorre nas repúblicas – apenas um meio para a proteção da liberdade legal.

Ao contrário dos republicanos, que acreditavam na possibilidade de as

instituições estimularem a virtú (Maquiavel) ou o espírito social (Rousseau) nos

indivíduos, Humboldt considerava que uma intervenção na vida individual poderia

enfraquecer o individualismo. O Estado, no máximo, deveria contribuir para inculcar

nos homens o respeito pelo direito dos outros e o amor por seus interesses

particulares. Numa perspectiva diametralmente oposta à dos republicanos, o

homem não deveria ser sacrificado ao cidadão, e seu desenvolvimento livre

pressupunha que ele não estivesse atrelado a uma comunidade política e à sua

constituição republicana.

Segundo Bellamy,106 nos últimos anos, os direitos, garantidos pelo

instrumento da judicial review, passaram a ser vistos como o principal componente

do constitucionalismo, fornecendo uma moldura legal normativa dentro da qual a

política poderia funcionar. Ou seja, os mecanismos políticos ganharam um papel

secundário. Os direitos passaram a representar o aspecto substantivo de uma

constituição, definindo os fins de uma dada comunidade política, enquanto a

dimensão propriamente política ficou relegada a um conjunto de regras formais que

apenas fornecem os meios para alcançar essas metas. Assim, o constitucionalismo

tornou-se nada mais que um sistema de direitos legalmente garantidos que podem

se sobrepor ao processo político ordinário. A judicial review, lembra Bellamy, surgiu

tardiamente. Para os Pais Fundadores dos Estados Unidos, os direitos eram

protegidos por mecanismos políticos, como a separação dos poderes

governamentais, e não legais. Em suma, Bellamy propõe uma abordagem política

do constitucionalismo, enraizado mais em estruturas políticas e sociais do que em

normas legais pré-políticas.

106 BELLAMY, R. The Political Form of the Constitution.

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O constitucionalismo liberal também é criticado por sua suposta

neutralidade. Esta corrente do pensamento jurídico, reelaborada no século XX por

Kelsen, acredita que a ordem constitucional seja informada por normas básicas

universais. Seja qual for a sua fonte – a natureza no jusnaturalismo ou a razão

humana em Kelsen - a Grundnorm se pretende universal e imune aos efeitos do

tempo. No entanto, para autores como Caygill e Scott,107 a linguagem da

Grundnorm pode ser apenas um meio retórico para encobrir interesses políticos em

jogo no constitucionalismo. Ou seja, a Constituição Liberal não é neutra. Contém

sempre uma proposta política de destruição do espírito social que a presidiu e de

criação de uma cultura constitucional.

107 CAYGILL & SCOTT. The Basic Law versus the Basic Norm? The Case of the Bavarian Crucifix Order.

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Capítulo 2

Federalismo e confederalismo

Como vimos no primeiro capítulo, o constitucionalismo pode ser definido como uma

instituição que limita o poder do Governo pelo direito e que ganha forma em

instrumentos como a separação de poderes, o sistema de checks-and-balances e a

revisão judicial. A esses mecanismos de operacionalização da idéia abstrata da

restrição do poder, podemos acrescentar a federação, que segundo Levi constitui a

realização mais alta dos princípios do constitucionalismo.108

Elementos republicanos e liberais no federalismo

Para Riker e grande parte dos pensadores liberais de tradição americana, um dos

aspectos mais atraentes do federalismo é sua contribuição para um governo

limitado, que respeite os direitos individuais e seja um obstáculo para as maiorias

populistas. No entanto, a tradição federalista não é um monopólio do liberalismo ou

da modernidade. O federalismo de Althusius, por exemplo, remonta à Bíblia e tem

uma forte influência do pensamento republicano.

Em seu livro Politica Methodice Digesta, publicado em 1603, Althusius afirma

que o primeiro grande desenho federalista estava na Bíblia, mais particularmente

no Velho Testamento. Em primeiro lugar, existe o pacto entre Deus e o homem, do

qual derivam todos os demais, impulsionando uma rede federativa de relações

humanas, isto é, formada por associações. Em segundo lugar, a commonwealth

bíblica era uma federação de tribos instituída por um pacto e que funcionava sob

uma constituição comum. Por último, a visão bíblica do fim dos tempos previa a

formação de uma confederação mundial ou de uma Liga das nações. Cada nação

preservaria sua própria integridade e, ao mesmo tempo, aceitaria um pacto divino

ou uma ordem constitucional. Esta visão de uma confederação mundial no fim dos

tempos terá grande influência na obra de Kant, como veremos mais à frente.

108 LEVI, L. Federalismo: 482.

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O federalismo republicano de Althusius tinha raízes numa visão associativa

da sociedade humana. Os indivíduos eram definidos como membros de um grupo e

seus direitos e deveres decorriam desse pertencimento ao grupo. Assim como

Aristóteles, Althusius acreditava que o poder e a autoridade nascem nas

associações locais. A família, o grupo profissional e a comunidade seriam os núcleos

a partir dos quais se originariam as demais associações humanas.

Sua teoria de construção de uma comunidade política parte da idéia de uma comunidade como um composto de associações políticas estabelecidas por cidadãos através de suas associações primárias e com base no consentimento, em vez de um Estado reificado imposto por um governante ou uma elite.109

Por outro lado, Althusius não pode ser considerado um autor exclusivamente

republicano, pois sua obra também valoriza os direitos individuais. O federalismo

prémoderno ou republicano tinha um fundamento tribal ou corporativista, no qual

os indivíduos eram definidos como membros de um grupo. Já o federalismo

moderno ou liberal rompeu com este modelo ao conceber as sociedades políticas

como baseadas nos direitos individuais, deixando pouco ou nenhum espaço para a

legitimação dos grupos. Althusius sintetiza essas duas tradições federalistas.

Para Elazar,

é necessário entender Althusius (...) como uma fonte de idéias e modelos para um federalismo pós-moderno.110

Neste tipo de federalismo, os indivíduos e os grupos têm seus direitos

igualmente considerados.

A expansão do princípio federalista

Nas últimas décadas assistimos a uma revolução do federalismo semelhante àquela

ocorrida com a democracia depois da Segunda Guerra mundial:

Durante esta última metade do século XX, o mundo testemunhou uma extraordinária alteração política, sem precedentes. Todas as principais alternativas para a democracia desapareceram,

109 ELAZAR, D. J. Althusius and Federalism as Grand Design: 3. 110 Idem: 5.

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transformaram-se em sobreviventes excêntricos ou recuaram, para se abrigarem em seus últimos bastiões.111

A idéia de mais de um governo exercendo poder sobre o mesmo território era anátema para os pais europeus do Estado-nação moderno. O século XX, por outro lado, é a era do federalismo.112

Da mesma forma que ocorreu com a democracia, um número cada vez

maior de países passou a se autodenominar federalista. Segundo Elazar, cerca de

um terço da população mundial vive em sistemas políticos que podem ser

formalmente definidos como federações. Outros 40% têm sistemas políticos que de

alguma forma se aproximam de arranjos federais.113 Ou seja, não são federações

strictu senso mas apresentam características de constitucionalização da separação

do poder geralmente associadas ao federalismo. Esse paralelismo do

desenvolvimento democrático e federalista não significa que os dois fenômenos

sejam coincidentes. Nem todas as democracias são federações, assim como estas

não se convertem necessariamente em democracias.114

Apesar dessa não coincidência, a rigor, diz Stepan,

somente um sistema que seja uma democracia constitucional pode proporcionar as garantias confiáveis e os mecanismos institucionais que ajudam a assegurar que as prerrogativas legislativas das unidades da federação serão respeitadas.115

Nos sistemas não democráticos, o federalismo pode ou não estruturar com

clareza as fronteiras jurisdicionais entre a União e as unidades da federação. Ao

contrário, numa federação democrática, há uma clara definição das fronteiras. No

entanto, não se deve confundir essa delimitação com rigidez. A Constituição de

111 DAHL, R. Sobre a Democracia: 11. 112 ELAZAR, D. J. Constitutionalizing Globalization: The Postmodern revival of Confederal Arrangements: 6. 113 Elazar toma como unidade de análise a população mundial e não o número de países com sistema federativo. Não mais do que 10% dos Estados que integram as Nações Unidas são federativos. 114 Um exemplo de democracia sem federação seria a França, embora nos últimos anos o país venha adotando características federalistas, como a descentralização de sua administração. Um caso de federação sem democracia pode ser encontrado no Brasil da República Velha, em que a autonomia do poder local acabava transformando-se em controle da política pelas oligarquias. 115 STEPAN, A. Para uma nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia: Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do Demos: 197.

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uma federação democrática é mais complexa do que nas democracias unitárias e,

portanto, os limites entre as jurisdições do governo central e das unidades da

federação estão em permanente fluxo.

De qualquer forma, a disseminação da federação pelo planeta deve ser

entendida, de acordo com Elazar, dentro de um contexto de mudança de

paradigmas. Estaríamos deixando um mundo baseado em um Sistema de Estados,

criado em 1648 pelo Tratado da Westfália, e entrando em uma época em que o

Estado perde parte de sua soberania. Neste mesmo ano, é formada a Federação

Helvética (Suíça), considerada como a primeira federação formalmente constituída

na história do Ocidente. Desde meados do século XVII, o paradigma aceito na área

das relações internacionais era o de uma sociedade internacional formada por

Estados soberanos,116 com poderes exclusivos sobre seus territórios e politicamente

independentes, regidos por uma lei internacional que negava a possibilidade de

intervenção de um Estado sobre os assuntos de outro. Nos últimos quatro séculos,

os Estados foram considerados como os principais atores da política mundial, e os

mais importantes sujeitos de direitos e deveres do direito internacional. Em 1977,

Bull chamava a atenção para essa mudança de paradigmas na sociedade

internacional:

No século XIX aceitava-se habitualmente a afirmativa de que só os estados eram sujeitos do direito internacional, qualquer que fosse a função desempenhada na política internacional por outros atores (por exemplo: por indivíduos, por outros grupos que não o Estado, ou organizações internacionais e intergovernamentais). (...) Atualmente, porém, muitos juristas consideram que esses atores são também sujeitos do direito internacional, assim como os estados.117

Mas será que toda federação representa uma mudança de paradigma em

relação à Westfália?118 Segundo Levi, o termo Federalismo é usado para designar

116 O Realismo, a teoria dominante da política mundial desde o início das Relações Internacionais como disciplina acadêmica, considera o Estado como a principal unidade de análise. 117 BULL, H. A sociedade anárquica: 149. 118 O Tratado da Westfália, assinado em 1648, põe fim à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), travada por católicos e protestantes, e às pretensões

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dois objetos que não devem ser confundidos: a teoria do Estado federal e uma

visão global da sociedade.119 Os Artigos Federalistas, escritos por Hamilton,

Madison e Jay, representam uma das mais completas formulações da primeira

acepção, sem pretensões de transformá-la na segunda, ou seja, num modelo para

toda a Sociedade Internacional.

Ao contrário do Estado centralizado, em que não existe nenhum centro

autônomo de poder fora do Governo central, no Estado federal há uma pluralidade

de centros de poder soberanos. Diferentemente do Estado Absolutista, formulado

por Hobbes, e até do Estado liberal moderno centralizado, teorizado por Locke, o

Estado federal confere ao Governo central

uma quantidade mínima de poderes, indispensável para garantir a unidade política e econômica.120

No entanto, na teoria clássica do federalismo moderno, representada pelo

federalismo americano, essa quantidade mínima transformou-se em máxima. Além

de garantir a unidade política e econômica, o federalismo americano restringia o

poder das unidades da federação em relação à política externa e militar. Ao criticar

as milícias nos Estados da Confederação Americana, Hamilton acreditava que:

não é necessário muito conhecimento da ciência da guerra para compreender que a uniformidade na organização e disciplina da milícia traria efeitos benéficos quando ela fosse chamada a agir. (...) Esta almejada uniformidade só pode ser conseguida com a transferência da regulação da milícia para a autoridade nacional.121

Com a unificação do poder militar na esfera federal, as fronteiras militares

entre os Estados confederados desapareceram e a hostilidade entre eles foi

atenuada. Os conflitos, a partir daquele momento, teriam um caráter somente

expansionistas dos Habsburgo. O Tratado da Westfália destrói a ordem internacional estabelecida pelo Império Habsburgo - formado por 300 territórios nos quais não havia um sentimento nacional comum - e consagra o Estado territorial como forma geográfica de organização das sociedades modernas e contemporâneas. 119 LEVI, L. Federalismo. 120 Idem: 481. 121 MADISON; HAMILTON & JAY. Os Artigos Federalistas: Artigo 29.

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jurídico. Qualquer disputa seria decidida perante um tribunal. Quanto à unidade

econômica, ela só poderia ser mantida com a transferência do poder monetário e

de parte do poder fiscal para a esfera federal, eliminando os entraves alfandegários

e a diversidade de moedas entre os estados.

O federalismo americano do século XVIII se tornou ainda mais centralizado

depois da Guerra Civil. De acordo com Rocha,

a flexibilidade oferecida por este tipo de governo permitiu unir as colônias antiescravocratas do norte e as colônias baseadas no latifúndio no sul.122

Com a Guerra Civil, no século XIX, houve uma maior concentração de poder

no governo federal. A restrição constitucional às unidades da federação ganhou o

aspecto de uma camisa-de-força. Tornou-se impossível, ou mesmo muito difícil,

para um Estado abandonar a Federação. Para Fonseca, a Federação pode ser

definida como uma unidade política na qual

é proibida a secessão e qualquer tentativa nesse sentido enseja a intervenção federal no Estado insubordinado.123

O Estado federal é limitado não só horizontalmente, pela separação de

poderes no quadro institucional do governo central, como teorizado por

Montesquieu (ver A Constituição entre os Modernos, no capítulo 1), mas também

verticalmente, pela repartição do poder territorial com os outros entes da

Federação. Essa atribuição de poderes aos Estados-membros funciona como um

freio contra o abuso de poder por parte do governo central. De acordo com uma

perspectiva liberal do federalismo, o sistema protege os direitos do indivíduo contra

um poder central, eventualmente discricionário, ou contra a tirania da maioria. Na

definição do constitucionalista Kincaid, o federalismo é

essencialmente um sistema de regras auto-impostas e compartilhadas voluntariamente. Isto está implícito na origem da palavra federal, derivada do latim e que significa pacto. Um pacto pode ser entendido como uma associação entre iguais na qual as partes ao mesmo tempo mantêm sua identidade e integridade

122 ROCHA, A. J. R. da. Brazil´s Strange Federalismo within Mercosur: 81-82. 123 FONSECA, J. R. F. Federalismo, na Argentina e no Brasil: 74.

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individual e criam uma nova entidade, como uma família ou um corpo político, que, por sua vez, tem sua própria identidade e integridade.124

Ou seja, há um equilíbrio entre a unidade da comunidade política e a

autonomia de suas partes. Pode-se traçar uma analogia entre a ordem do cosmos

tal como descrita por Newton (1642-1727) e o modelo federalista. Assim como no

sistema solar, em que cada corpo celeste - independentemente de suas dimensões

e sem perder suas características particulares - cumpre uma órbita determinada

pelo todo, no sistema federativo, cada estado, embora autônomo, segue uma

política militar, externa e econômica controlada pelo governo central.

A teoria clássica do Estado federal, tal como formulada pelos pais

fundadores dos Estados Unidos, não é de todo incompatível com o Sistema de

Estados definido no Tratado da Westfália. De acordo com Scholte, o Estado da

Westfália pode ser definido como um Estado soberano, no sentido de que exerce

um controle abrangente, supremo, ilimitado e único sobre um território

determinado. O controle é abrangente na medida em que o Estado soberano tem

jurisdição sobre todos os assuntos do país; supremo porque não reconhece

nenhuma autoridade superior; ilimitado, já que os outros agentes, internos ou

externos, não intervêm no seu território; exclusivo porque os Estados soberanos

não compartilham competências com outras entidades em relação a suas

jurisdições domésticas respectivas.

Podemos dizer que o Estado federal se afasta do modelo da Westfália em

alguns aspectos e se aproxima em outros. No que se refere à soberania interna, o

Estado federal é diferente do da Westfália. Ao contrário deste, ele não é

abrangente, ou seja, não tem jurisdição sobre todos os assuntos do país. Algumas

questões são decididas pelas unidades da federação e não pelo governo central.

Também não é a única autoridade num território. O Estado federal compartilha

competências com suas jurisdições domésticas.

124 KINCAID, J. Handbook of Federal Countries: 2.

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No entanto, o Estado federal se aproxima do Estado soberano centralizado

quando o assunto é a soberania externa. No sistema internacional, o Estado federal

é supremo pois não reconhece nenhuma autoridade superior. Seu poder é limitado

internamente, mas ilimitado externamente. Nenhum Estado pode intervir em seus

assuntos ou impedi-lo de adotar uma determinada política externa, a não ser por

imposição militar.

A federação americana tinha exatamente estas características. Os Estados

compartilhavam a soberania com o Governo central em vários assuntos. No

entanto, questões de política externa cabiam ao Estado federal.

No Artigo 24, Hamilton propõe a criação de uma marinha americana para

proteger o país de possíveis ataques da Inglaterra e da Espanha, países que

detinham grande poder naval no século XVIII. Está implícita no ensaio a idéia de

uma paz sustentada pelo equilíbrio de poder entre as nações. A federação

americana, portanto, não ameaça o sistema da Westfália.

Desta forma, o federalismo que vem se expandindo desde o fim da Segunda

Guerra e que representa uma mudança de paradigma em relação à Westfália é

diferente daquele concebido pelos federalistas americanos. De acordo com a

Constituição Americana de 1787, só o governo central poderia tratar de assuntos

estrangeiros. No final dos anos 50, o Governo central continuava a deter o

monopólio sobre a política de defesa, mas vários estados americanos já podiam

abrir escritórios em países estrangeiros com o fim de promover seu comércio

exterior.125 Exemplo semelhante pode ser encontrado na Federação Canadense. O

Governo canadense criou seções, dentro das embaixadas canadenses, para

representar os interesses de suas províncias no exterior. Assim, hoje, a província

de Quebec estabelece relações internacionais nas esferas cultural, econômica ou

social sem precisar se reportar ao governo canadense. Em 2002, por exemplo, o

125 Em Cooperation and Conflict, Palumbo destaca a autonomia dos Estados americanos no comércio exterior.

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Escritório Quebec-Américas para a Juventude, órgão do governo do Quebec

destinado a desenvolver relações entre os jovens quebequenses e os de outros

países das Américas, assinou um convênio com o Governo do Rio Grande do Sul.

Graças a esse acordo, cinco jovens do Quebec e cinco jovens do Rio Grande do Sul

em situação de vulnerabilidade social puderam participar de um intercâmbio de três

semanas. Em suma, as unidades da federação também se tornam, pouco a pouco,

sujeitos de direito internacional.

Embora Jay, Madison e Hamilton tenham escrito tendo em vista apenas a

conjuntura nacional americana, pode-se dizer que a teoria dos Artigos Federalistas

já continha os germes de uma idéia mais ampla de federalismo (a segunda acepção

de Levi), passível de ser estendida a todo o globo e ameaçar o Sistema da

Westfália. Em princípio, o arranjo federalista pode ser utilizado para unir diversas

comunidades nacionais e possibilitar a participação política numa extensão

territorial cada vez maior, até abranger todo o gênero humano. Ou seja, na

verdade a segunda acepção de federalismo (doutrina social global) não seria oposta

à primeira (Estado federal), mas um desdobramento dela.

Em outras palavras, a teoria do Estado federal, quando restrita a um país, é

perfeitamente compatível com o sistema de Estados. Ao contrário, no momento em

que se tenta expandi-la para abarcar todo o globo, ela passa a ser uma ameaça

àquele sistema, pois se todos os países do mundo fazem parte de uma Federação,

não sobra nenhum país, bloco ou região ao qual se opor e portanto não há mais

equilíbrio de poder entre atores antagônicos. Com a eliminação do inimigo, não

haveria teoricamente motivos para conflitos e guerras e a paz estaria assegurada.

O preço a pagar, no entanto, seria a instituição de um governo mundial, não

soberano como o Estado da Westfália, já que teria de respeitar a soberania das

unidades da Federação mundial, mas ainda assim um governo único.

Confederalismo

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O federalismo na segunda acepção apontada por Levi significa uma doutrina social

global e ganhou sua base filosófica mais elaborada com Kant. Mas, ao contrário da

opinião corrente, a doutrina kantiana não nega o Estado nacional e exalta a

instituição do cosmopolitismo tout court, como uma

doutrina que nega as divisões territoriais e políticas (pátria, nação, Estado), afirmando o direito do homem a definir-se como cidadão do mundo.126

Kant condena a anarquia internacional, que impede o homem de desenvolver suas

disposições naturais: a razão e a moralidade. Mas a solução para essa anarquia não

está nem no equilíbrio de poder entre os Estados – proposta dos teóricos realistas

inspirados em Hobbes – nem na negação do Estado nacional e sua substituição por

uma comunidade de homens solidários. Em vez daquelas duas alternativas, Kant

propõe uma federação de Estados. No entanto, o termo federação em Kant refere-

se ao que hoje entendemos por Confederação, ou seja, Estados que se unem sem

terem de abrir mão de sua soberania. A obra de Kant representa, portanto, uma

secularização da interpretação bíblica de que no fim dos tempos ocorreria a

formação de uma confederação mundial.

Para Bull, os kantianos consideram que a natureza da política internacional

não reside na relação entre os Estados ou entes federativos, mas

nos vínculos sociais transnacionais entre os seres humanos, que são súditos ou cidadãos de algum Estado.127

Ou seja, o principal ator passa a ser o indivíduo e não o Estado unitário ou

os Estados de uma Federação. De acordo com Bull, esta concepção estaria exposta

em A Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita (1784).

Apenas em uma obra posterior, A Paz Perpétua (1795), Kant admitirá a

possibilidade de uma liga de estados republicanos. Para Bull, haveria aqui uma

ambivalência no pensamento do próprio Kant.

126 RICUPERATI, G. Cosmopolitismo: 293. 127 BULL, H. A sociedade anárquica: 33.

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Consideramos, ao contrário, que a proposta de Kant, tanto em A Idéia de

uma História Universal quanto em A Paz Perpétua, é a de uma confederação de

Estados. No primeiro texto, Kant afirma que o fim das hostilidades entre os Estados

será uma decorrência do plano oculto da natureza. A história da humanidade,

aparentemente confusa, quando analisamos as ações dos sujeitos individuais, é na

verdade dirigida por uma natureza que realiza continuamente o desenvolvimento

das disposições originais do homem. Mas essas disposições não se realizam no

indivíduo – a vida humana é muito curta para permitir a um homem desenvolver

aquelas faculdades ao extremo – e sim na espécie.

Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros mal se dão conta de que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio proveito e freqüentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a um fim condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido.128

No entanto, esta idéia de uma história previamente traçada, sem a

interferência de qualquer agente político, é atenuada à medida que nossa leitura

prossegue. O plano da natureza para a história do mundo não é racional em si

mesmo. O homem, enquanto ser racional, é que cria o discurso sobre uma história

com um fio condutor a priori. Na nona proposição de Idéia de uma História

Universal, o filósofo explica que a história do mundo, ou história universal, é

o projeto de redigir uma história segundo uma idéia de como deveria ser o curso do mundo, se ele fosse adequado a certos fins racionais. 129

Em outras palavras, não é uma história de como o mundo é, o que tornaria

essa história necessariamente dependente de uma razão prático-empírica. É uma

história de como deveria ser o curso do mundo e que deriva suas proposições tão-

somente da razão prática pura. Em Interesse da Razão e Liberdade, Rohden mostra

a interconexão entre a liberdade e a razão no pensamento de Kant. Se não

fôssemos livres das determinações da realidade sensível, não poderíamos ter uma

128 KANT, I. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita: 4. 129 Idem: 20.

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razão prática dada a priori. Por outro lado, é o fato de termos uma razão prática

pura que nos permite conceber que

a liberdade, de que aqui se trata, consiste antes de tudo no conceito negativo de nossa independência do mundo sensível, na medida em que somos conscientes da nossa dependência de determinações da razão.130

Justamente por ser uma história a priori, formulada pela razão pura, nada

garante que ela vá se concretizar. O homem, enquanto ser livre, pode optar por um

ou outro caminho. O movimento da história em direção à moralidade é algo

possível, mas não necessário, isto porque existe uma sociabilidade insociável no

homem, ou seja, um antagonismo entre as suas disposições para o egoísmo e para

a vida em sociedade. Por um lado, diz Kant, o homem tem uma tendência a estar

em sociedade, para desenvolver a razão e a moral; por outro, ele tem uma

inclinação para isolar-se e cuidar apenas do seu próprio interesse. Nunca se sabe

qual disposição prevalecerá. A natureza, portanto, apresenta inúmeras

possibilidades e não predeterminação.

O homem, como ser livre e autônomo, pode ou não realizar sua destinação.

No entanto, quando ele tem em mente que o fim da natureza é o desenvolvimento

da razão e da moralidade da humanidade, ele se sente estimulado a agir racional e

moralmente. Ao agir desta forma, ele acaba transformando o plano da natureza,

concebido por sua razão, numa profecia auto-realizável. A filosofia da história

kantiana transforma a maneira do homem considerar a ação política, que passa a

fazer parte de uma totalidade com sentido, a natureza.

Embora a natureza e a história desenvolvam-se em direção à Paz Perpétua,

ou seja, ao fim completo das hostilidades, o antagonismo entre os homens não é

eliminado. Caso isto acontecesse, a humanidade entraria em estagnação. Se não

houvesse a provocação do outro, os homens viveriam em perfeita concórdia uns

com os outros e os talentos do indivíduo permaneceriam latentes. É o desafio posto

pelo outro que desperta as forças do homem e o retira do estado de preguiça,

130 ROHDEN, V. Interesse da Razão e Liberdade: 40.

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tornando-o ambicioso. É exatamente esta disposição para a insocialibilidade que,

segundo Kant, impele o homem a passar da natureza à cultura.

A discussão sobre a liberdade do homem em Kant terá conseqüências para o

tema que aqui nos interessa: a possibilidade de uma confederação mundial. Esta

será sempre o resultado da ação humana e, por isso, poderá ou não se realizar. A

insociabilidade sociável dos homens é reproduzida entre os Estados. Estes podem

empregar suas forças em propósitos expansionistas ou realizar um trabalho de

aperfeiçoamento das disposições sociáveis dos seus cidadãos, entre elas a razão.

Por um lado, a necessidade de as Repúblicas estarem sempre atentas a qualquer

movimento das outras impede as disposições sociáveis do homem de se

desenvolverem. Por outro, esse conflito potencial obriga a humanidade a manter

vivas suas forças. Desta forma, a confederação de Kant em Idéia de uma História

Universal e em A Paz Perpétua não é um estado idílico, sem conflitos e tensões. Em

suma, o antagonismo não pode ser completamente eliminado sob pena de a

humanidade perder suas energias vitais.

No primeiro artigo definitivo da Paz Perpétua, Kant confirma o que já havia

dito em Idéia de uma História Universal:

Se, como é inevitavelmente o caso sob esta constituição (a republicana), o consentimento dos cidadãos é exigido para decidir se a guerra será ou não declarada, é muito natural que eles hesitarão em embarcar numa empresa tão perigosa.131

Kant utiliza o termo Constituição Republicana para se referir ao Estado

constitucional moderno, ou seja, aquele no qual o poder estatal é limitado por uma

Constituição baseada na vontade dos cidadãos. Ao contrário, diz ele, numa

Constituição não republicana, em que o indivíduo não é cidadão, mas súdito, torna-

se bem mais fácil para o soberano decidir pela guerra.

A teoria de Kant, portanto, baseia-se na premissa de que a estrutura interna

dos Estados tem impacto sobre suas políticas externas. Se todos os Estados fossem

131 KANT apud DUNNE, T. Liberalism: 99-102.

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republicanos, podemos concluir do primeiro artigo, nenhum deles sentir-se-ia

tentado a iniciar uma guerra e a paz perpétua estaria assegurada. Em outras

palavras, a paz perpétua só será possível se a estrutura interna dos Estados for

modificada. Não há aqui qualquer proposta para acabar com o Estado e sim para

transformá-lo. O Estado constitucional republicano, embora nunca possa chegar à

perfeição, é visto como uma organização cuja estrutura merece ser reproduzida no

nível internacional.

De acordo com o segundo artigo definitivo, para garantir a segurança, cada

nação deve exigir que as outras formem com ela uma

Constituição, similar às civis, na qual os direitos de cada um possam ser assegurados.132

O modelo para essa confederação é a Constituição civil, republicana, dos

Estados nacionais, capaz de assegurar os direitos de cada indivíduo. Em outras

palavras, a confederação proposta por Kant em A Paz Perpétua reproduz o modelo

do Estado Republicano em maior escala. Tal como os indivíduos decidiram

autonomamente pelo contrato social e pela constituição da comunidade política, os

Estados Republicanos que decidem participar de uma Confederação também só o

fazem espontaneamente. Ser autônomo significa obedecer apenas à lei criada por

si mesmo.

No ensaio Idéia de uma História Universal, a palavra cosmopolita não

corresponde ao fim dos Estados. Kant fala em união dos Estados.133 Refere-se

claramente a um Estado cosmopolita de segurança pública entre os Estados.134 Ou

seja, o Estado cosmopolita significa uma Confederação (em que os Estados mantêm

sua soberania) e não uma diluição das fronteiras entre os Estados.

132 Idem: 102-105. 133 KANT, I. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita: 16. 134 Idem: 15-16.

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Mesmo quando defende um direito cosmopolita, o filósofo considera que ele

só poderá ser assegurado por uma Confederação de Estados Republicanos. Como

lembra Urbinati, a lei de ouro kantiana afirma que os direitos cosmopolitas exigem

a contenção do poder político. E esse poder político só pode ser contido se houver

uma estrutura que paire acima dos indivíduos. Numa comunidade sem Estados,

formada apenas por vínculos espontâneos entre indivíduos, não haveria como

garantir direitos porque teríamos um retorno ao estado de natureza hobbesiano.

Em ambos os textos, a ordem proposta por Kant é diferente daquela da

Westfália, composta por Estados unitários e soberanos que não dividiam o poder

com outras unidades e eram peças que se equilibravam umas às outras. A

Confederação proposta por Kant é diametralmente oposta ao modelo do Estado

unitário da Westfália e distante do federalismo centralizado americano.

Desligar-se da Federação americana, como vimos, era uma decisão difícil

para os Estados americanos. Ao contrário, na Confederação Kantiana, a entrada ou

a saída deveriam ser voluntárias. Querer participar da Confederação era uma

conseqüência natural do desenvolvimento das disposições naturais da razão e da

moral. Os cidadãos educados de um Estado Republicano, ao aprenderem a utilizar a

razão, só poderiam concluir que a Confederação é a melhor solução para atingir

uma paz perpétua.

Talvez devêssemos entender o federalismo dos founding fathers e o

confederalismo de Kant apenas como tipos ideais.135 Na realidade, existem quase

tantos tipos de federalismo e confederalismo quanto Estados não unitários. Stepan,

por exemplo, distingue entre as federações que surgiram da necessidade de unir

(come together), como os Estados Unidos, e as que pretendiam apenas manter a

união (hold together).

135 Se bem que, no segundo artigo definitivo da Paz Perpétua, Kant afirma que é possível demonstrar que esta idéia de federalismo, que se estenderia gradualmente para englobar todos os Estados e levá-los à paz perpétua, é viável e tem uma realidade objetiva.

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Nos Artigos Federalistas, Hamilton, Jay e Madison tentavam convencer os

estados americanos a trocarem a confederação por uma federação, ou seja, a

transferir parcelas maiores de sua soberania para a federação, mantendo apenas

poderes residuais. Uma das conseqüências desse novo arranjo, segundo Stepan, foi

uma federação demos constraining, ou seja, uma federação bastante centralizada

que restringe o poder de todos os cidadãos da pólis.

Para Riker,

a estrutura básica do federalismo moderno constitui o que chama de federalismo centralizado e afirma que os Estados Unidos são não só a origem desse modelo, mas também sua forma modal.136

Em contraste com a idéia rikeriana de que o federalismo moderno é

centralizado e toma os Estados Unidos como modelo, Stepan propõe a utilização de

um continnuum que iria do federalismo menos demos constraining (ou menos

centralizado) para o mais demos constraining (ou mais centralizado). Os diversos

tipos de federação podem ser posicionados nesse espectro de acordo com o grau de

centralização. Nesta perspectiva, os Estados Unidos seriam não o modelo de

federalismo por excelência, mas apenas um dos tipos de federalismo, o mais demos

constraining.

Nas federações do tipo come together, como a dos Estados Unidos, há uma

concentração de poderes na esfera central. Ao contrário, quando se trata das

chamadas federações que surgem com o objetivo de manter a união, a lógica é

inversa. Há uma transferência de poderes do governo central para as unidades da

federação, ou seja, uma devolução de poderes. Supõe-se que, ao ganharem mais

autonomia, as unidades da federação tenham menos motivos para desejarem

formar um outro Estado.

Uma federação só pode ser considerada democrática, afirma Dahl, se o

eleitorado de suas subunidades territoriais for constituído pelos cidadãos dessas

136 STEPAN, A. Para uma nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia: Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do Demos: 210.

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unidades e se elas tiverem soberania na elaboração de leis e de políticas. Além

disso, é preciso haver um Poder Legislativo de âmbito nacional eleito por toda a

população do Estado e ao qual caiba a competência soberana para legislar e

formular políticas em determinadas matérias. Os cidadãos devem se sentir

igualmente representados tanto no âmbito federal quanto no estadual. Em outras

palavras, devem ter identidades políticas duplas e complementares.

Não se pode esquecer que o federalismo (divisão de poder vertical) deve ser

pensado em concomitância com a divisão de poder horizontal (executivo, legislativo

e judiciário). Por exemplo, um dos objetivos do federalismo é limitar as maiorias

populistas.

Riker defende um poder legislativo pluricameral exatamente porque acredita que isso ajuda a limitar as maiorias populistas.137

Já a divisão da autoridade entre governos locais e governo central no

federalismo americano estimularia a fragmentação dos partidos.138

Os Estados Unidos seriam o modelo de um legislativo pluricameral, com

presidente da República – que também tem o poder de legislar -, Câmara e

Senado. A Câmara Baixa representa proporcionalmente a população e, portanto,

estaria mais próxima do princípio um cidadão um voto.139 Já a Câmara Alta

(Senado) representa o princípio da igualdade territorial. Nela, cada unidade da

federação, independentemente de seu tamanho, tem direito em princípio a um

voto.

Em uma democracia, afirma Stepan, deve-se encontrar um equilíbrio entre

liberdade, igualdade e eficácia. Em vez de maiorias, as questões teriam de ser

137 Idem: 203. 138 Riker entende que a fragmentação dos partidos seria uma forma de limitar o poder do Governo central no federalismo e, além disso, de garantir a proteção do direito do indivíduo contra a tirania da maioria. Em contraste com esta posição podemos lembrar a de Ulrich Beck, que defende a criação de partidos cosmopolitas como forma de limitar o poder dos Estados nacionais e assegurar os direitos do indivíduo. Em ambas as propostas, percebe-se uma tentativa de enfraquecer o Estado unitário que era a peça-chave do Sistema da Westfália. 139 A representação na Câmara Alta pode ser mais ou menos desproporcional.

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decididas por unanimidade, garantindo desta forma a proteção à minoria ou à

liberdade individual. Por outro lado, exigir unanimidade para aprovação de projetos

poderia comprometer o outro elemento necessário para a democracia: a eficácia.

Uma das alternativas para a decisão por unamidade seria a por supermaioria. No

entanto, a desvantagem da supermaioria seria maior do que a da unaminidade.

Decidir por supermaioria é quase tão ineficaz quanto decidir por unanimidade. No

quesito eficiência, nenhuma das duas seria uma boa solução. Mas a unanimidade

pelo menos preserva o princípio da igualdade entre os membros. Em suma, a

supermaioria é tão ineficiente quanto a unanimidade e mais desigual do que ela.

(...) em uma forma de federalismo extremamente demos constraining, legisladores que representam menos de 10% do eleitorado podem constituir um grupo com poder de obstrução (blocking win-set).

Para Stepan,

todas as federações democráticas são inerentemente restritivas do poder central.140

Numa democracia, a agenda é aberta, ou seja, não existe em princípio

nenhuma área de política na qual a maioria democrática da comunidade política

não possa legislar. Estaríamos, portanto, diante de uma constituição de modelo

democrático-radical, segundo a terminologia de Preuss (ver capítulo 1: A idéia de

uma constituição democrática: introdução ao problema). Ao contrário, num sistema

federativo, o demos central tem de aceitar uma agenda fechada na qual algumas

issue-areas estão constitucionalmente fora do seu poder de legislar.141 Podemos

dizer, portanto, que o sistema federativo democrático corresponde a uma

constituição de modelo institucionalista (terminologia de Preuss, ver capítulo 1: A

idéia de uma constituição democrática: introdução ao problema) ou republicano.

140 STEPAN, A. Para uma nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia: Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do Demos: 212. 141 DAHL apud STEPAN, A. Para uma nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia: Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do Demos: 212.

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Nas federações democráticas, o demos é limitado pela própria Constituição,

geralmente difícil de ser alterada. A Constituição é considerada como um texto

sagrado que só pode ser interpretado de acordo com a intenção original dos

autores (ver capítulo 1: A idéia de uma constituição democrática: introdução ao

problema). Em suma, o demos encontra limites para mudar a Constituição. A

constituição de uma federação democrática é mais complexa do que nas

democracias unitárias. Como vimos, os limites entre as jurisdições do Governo

central e das unidades da federação estão em permanente fluxo. Muitas vezes essa

definição de limites é decidida pelos tribunais, cujos integrantes não são eleitos

pelo demos (conjunto dos cidadãos da pólis) nem pelos demoi (cidadãos de uma

unidade da federação). Ou seja, há uma restrição do poder do demos, já que

muitas questões são decididas por um ator político não eleito pela população.

O conceito de subsidiariedade: uma forma de federalismo

O conceito de subsidiariedade ganha sua primeira elaboração teórica com São

Tomás de Aquino e só posteriormente é desenvolvido e incorporado na teoria do

federalismo.142 Já se encontrava presente nos primeiros relatos bíblicos. Apesar de

ambos se originarem no pensamento religioso, o federalismo e a subsidiariedade

passam por um processo de secularização na modernidade.

De acordo com Drape, existe uma ordem natural das coisas segundo a qual

a sociedade é composta de uma variedade de corpos sociais situados entre os

indivíduos e o Estado: os corpos intermediários. Estes corpos podem ser a família,

a cidade, a escola, a empresa, o sindicato etc. No entanto, todos eles apresentam

uma característica comum: são feitos na medida do homem, favorecendo por isso o

desenvolvimento de suas capacidades e o exercício de suas responsabilidades. Os

corpos intermediários, que segundo Montesquieu constituem uma contraforça ao

142 CHEMILLIER-GENDREAU, M. Le principe de subsidiarité: enjeu majeur, débat confus: 3.

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poder central (ver capítulo 1: O paradigma republicano, 17º parágrafo), estariam

reemergindo hoje, segundo Drape.

As encíclicas Quadragesimo Ano (1931) e Mater et Magistra (1961) trazem a

seguinte definição de subsidiariedade: não se pode atribuir à comunidade aquelas

tarefas que os indivíduos são capazes de realizar por si mesmos. Também

estaríamos subvertendo a ordem social caso retirássemos funções que podem ser

perfeitamente desempenhadas por agrupamentos da ordem inferior e as

transferíssemos para outros de ordem superior. Em suma, o Princípio de

Subsidiariedade não é um conceito abstrato que se tenta impôr à realidade, mas

uma idéia que surge da própria vitalidade da sociedade. Neste sentido, ela é

anterior ao cristianismo. Na concepção orgânica de Constituição de Aristóteles, já

era possível encontrar alguns dos elementos acima descritos. A sociedade, segundo

ele, é composta de grupos conectados uns aos outros e cada um realiza tarefas

específicas. A família é capaz de satisfazer as necessidades da vida cotidiana. No

entanto, uma série de outras questões teriam de ser decididas no nível do pequeno

burgo, ou seja, uma primeira sociedade constituída de muitas famílias.143 Por fim,

havia problemas que só poderiam ser decididos pela cidade ou sociedade política,

uma reunião de vários burgos. Como vimos, o federalismo de Althusius inspira-se

em parte na teoria aristotélica e considera a sociedade política uma reunião de

associações naturais como família, corporação etc... (ver capítulo 2: Elementos

republicanos e liberais no federalismo).

Mas a subsidiariedade não considera apenas os grupos, como é típico do

pensamento republicano. Os direitos individuais também são levados em conta no

momento de definir quem é capaz de realizar uma tarefa. Como explica Drape, o

conceito de subsidiariedade permite resolver o problema das relações entre as

pessoas, os corpos intermediários e o Estado. No entanto, a subsidiariedade

valoriza os indivíduos de uma perspectiva diferente daquela do liberalismo:

143 ARISTÓTELES. Política: 13.

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A novidade desse princípio político é que ele parte para a construção de uma sociedade política a partir do ser humano e suas demandas próprias, enfim, uma possibilidade de construção de práticas políticas a partir da pessoa humana, sem significar o retorno a um individualismo egoístico que tanto tem caracterizado as sociedades mais recentes.144

Ou seja, há uma consideração dos direitos tanto dos indivíduos quanto dos

corpos intermediários. Existe uma semelhança entre a definição de Elazar sobre o

federalismo pós-moderno (ver capítulo 2: Elementos republicanos e liberais no

federalismo) e o conceito de subsidiariedade de Drape. Em ambos os casos, tem-se

um equilíbrio entre indivíduos e grupos.

O Princípio de Subsidiariedade pode ser resumido em três proposições. A

primeira afirma que o nível hierarquicamente superior deve respeitar as atribuições

de cada nível inferior. Ou seja, nem o Estado nem qualquer outra organização mais

ampla pode substituir a iniciativa dos indivíduos e dos corpos intermediários. A

segunda proposição dispõe que o nível superior, quando solicitado, poderá ajudar o

inferior.

(...) toda atividade social é de natureza subsidiária, deve servir de suporte aos membros do corpo social e nunca os destruir ou os absorver.145

Por fim, a terceira regra da subsidiariedade consiste em assumir,

excepcionalmente e por tempo limitado, uma tarefa antes desempenhada por um

nível inferior quando este não mais se mostrar competente para realizá-la. Tanto

na segunda quanto na terceira proposição está implícito o critério de eficácia. O

nível superior só pode ajudar ou assumir temporariamente uma tarefa do nível

inferior quando este reconhecer que o outro será mais eficiente para resolver

determinado problema.

O critério da eficácia também assume posição central na definição de

subsidiariedade de Chemillier-Gendreau:

144 KAKU, W. S. O princípio da subsidiariedade, cidadania e globalização: apontamentos para uma humanização da política: 2. 145 Pio XII apud DRAPE, O. Le principe de subsidiarité: 3.

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O nível mais baixo só delega ao nível superior aquilo que é estritamente necessário. A competência da coletividade superior estende-se a funções que ela pode preencher de forma mais eficaz que as comunidades de base.146

A subsidiariedade, na sua visão, significa um princípio de repartição móvel

de competências. Nada está prefixado. É o princípio de eficácia que, num dado

momento, traça a linha de repartição.

Como comentado, a federação democrática caracteriza-se por ter uma

estruturação clara sobre como se dará o fluxo entre as jurisdições do governo

central e das unidades da federação (ver capítulo 2: A expansão do princípio

federalista). Se a subsidiariedade representa um princípio de repartição móvel de

competências, então podemos dizer que ela contribui para democratizar uma

federação. O critério da eficácia, por sua vez, ajudaria a estruturar com clareza o

fluxo.

Chemillier-Gendreau, no entanto, considera o Princípio de Subsidiariedade e

o critério de eficácia a ele inerente insatisfatórios. Em vez de delegar tarefas ao

outro com base em considerações técnicas, deve-se inventar, diz ela, um outro

modo de gerir assuntos em comum. Para alguns, o conceito de subsidiariedade

pode limitar o campo de ação do nível superior, na medida em que

a subsidiariedade significa, simplesmente, que uma decisão deve sempre ser tomada e assumida a partir do nível mais próximo dos atores envolvidos, delegando ao nível superior apenas o que não se puder assumir sozinho ou com mais competência.147

No entanto, alerta Gendreau, a subsidiariedade tem desvantagens. O nível

superior também pode invocar com freqüência o critério da eficácia para intervir no

nível inferior e assim ampliar a sua área de atuação. Na subsidiariedade, nada está

fixado de antemão. Nem mesmo a hierarquia entre as leis. Na Teoria Clássica do

Direito Constitucional, a lei fundamental ou constitucional tem precedência sobre as

demais. No caso de uma federação que adota o princípio de subsidiariedade, a

146 CHEMILLIER-GENDREAU, M. Le principe de subsidiarité: enjeu majeur, débat confus: 3. 147 LACOMBE, R. Pour un cadre général favorable au développement des territoires. La subsidiarité: base de la démocratie: 1.

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hierarquia entre as leis torna-se frouxa ou inexistente. Ora prevalece o

ordenamento jurídico local ora o nacional. No caso de uma entidade supranacional

como a União Européia, deve-se considerar ainda o ordenamento jurídico

comunitário.

De acordo com Maduro, o processo de integração européia

constitui um desafio às concepções e funções tradicionais do Direito e do Constitucionalismo.148

Há o desenvolvimento de novas fontes de direito supranacionais que se

contrapõem à tradicional preponderância do ordenamento jurídico estatal. Temos,

portanto, uma pluralidade de fontes jurídicas dotadas de igual legitimidade149. O

princípio de subsidiariedade e o critério da eficácia é que vão determinar qual

ordem jurídica prevalecerá em cada caso.

O caso da ordem do crucifixo da Baviera (Kreuzesbefehl), segundo a qual

toda sala de aula deveria ter um crucifixo, é um exemplo de conflito entre ordens

jurídicas. Esse costume local possuía força legal em todas as escolas primárias da

Baviera. Uma família não católica que tinha seus filhos matriculados numa escola

da região exigiu que o crucifixo fosse retirado da sala. A escola apenas substituiu o

símbolo por outro de tamanho menor. Os pais recorreram à Corte Constitucional da

Baviera, que decidiu a favor da ordem jurídica regional, ou seja, manteve o direito

da escola de usar o crucifixo. Em 1995, a Corte Constitucional Alemã considerou

inconstitucional a ordem do crucifixo da Baviera. Neste episódio, prevaleceu a

tradicional hierarquia entre a lei nacional e a local. No entanto, o resultado da

controvérsia poderia ter sido outro se a subsidiariedade tivesse sido invocada pela

Corte da Baviera.

Consortio e condominium

148 MADURO, Miguel Poiares. A Crise Existencial da Constituição Européia: 1. 149 Idem.

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Segundo Hooghe e Marks,150 há atualmente um consenso de que a autoridade

central traz mais prejuízos do que benefícios e, portanto, deve ser substituída por

um governo disperso por múltiplos centros. Nas seções precedentes, vimos como a

federação se afasta do modelo de Estado sobre o qual se baseava o Sistema de

Estados da Westfália e propõe um governo em múltiplos níveis. No entanto,

existem arranjos institucionais em múltiplos níveis ainda mais distantes do Estado

unitário do que a Federação. Schmitter, por exemplo, recorre aos termos latinos

consortio e condominio para designar entidades políticas com características típicas

da Idade Média: funções variáveis, lealdades múltiplas e autoridades sobrepostas.

Ao contrário do que ocorre no Estado unitário, a soberania na federação e na

confederação está dividida. No primeiro caso, há uma repartição interna da

soberania entre o poder central e as unidades. No segundo, temos Estados que

aceitam compartilhar sua soberania externa para formar uma confederação capaz

de atuar como um único ator. A diferença entre Estado unitário, de um lado, e

federação/confederação, de outro, estaria portanto no tipo de soberania. Apesar

dessas diferenças, tanto o Estado unitário quanto a federação e a confederação

apresentam funções fixas, ou seja, unem-se com o objetivo de realizarem tarefas

permanentes e previamente determinadas.

Já o consortio e o condominio representam organizações com funções

variáveis. O consortio apresenta um ponto em comum com o Estado unitário e a

federação, qual seja, o território fixo. Forma-se um bloco espacial relativamente

contígüo. No entanto, os Estados de um consortio têm responsabilidades variadas

sobre políticas públicas. Nem todos, por exemplo, precisam aderir aos acordos

comerciais ou ambientais. Em outras palavras, os países membros estão livres para

determinar quais obrigações comuns desejam aceitar ou rejeitar, como se

escolhessem as combinações a partir de um cardápio de possibilidades.

150 HOOGHE & MARKS. Unravelling the Central State, but how? Types of Multi-level Governance.

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Como um tipo ideal, o consortio pressupõe um conjunto fixo e irreversível de Estados membros dentro de fronteiras territoriais definidas, mas com responsabilidades variadas sobre políticas públicas.151

Os assuntos comuns são organizados por autoridades funcionais distintas,

sendo que apenas algumas delas seriam coordenadas a partir de um centro único.

As expressões L´Europe à géométrie variable, L´Europe à la carte ou L´ Europe à

plusieurs vitesse parecem captar bem esta propriedade.

Na maioria dos sistemas federalistas, há um

Kompetenzkatalog baseado na subsidiariedade que fixa a distribuição de competências funcionais e jurisdições institucionais.152

Para este autor, o Kompetenzkatalog seria incompatível com o consortio,

pois neste as funções e, portanto, as competências não estão prefixadas. Cada

membro é livre para escolher as áreas em que atuará sozinho ou compartilhará a

soberania com outros membros.

No entanto, diz Schmitter, o consortio não significa uma liberdade ilimitada

e sem contrapartidas. Mesmo neste tipo de configuração, que permite maior

oportunidade de opt out (saída), existem metas a serem cumpridas. Para

Schmitter, no consortio deve haver distinção entre obrigações primárias e

secundárias. Quando da negociação da Área Econômica Européia, alguns países do

Leste Europeu tiveram dérogations, isto é, foram dispensados de cumprir

imediatamente determinados compromissos (capítulo 3). Daí veio a idéia de uma

Europa com velocidades diferentes. Mas a dérogation é temporária. Espera-se que

o país dispensado de uma obrigação tenha condições de assumir responsabilidades

iguais às dos demais membros num período de tempo razoável. O opt out é

151 SCHMITTER, P. C. How to Democratize the European Union – and why bother?: 17. 152 Idem: 55. Para Schmitter, a subsidiariedade está ligada à fixação de competências e ao federalismo. Ao contrário, Chemillier-Gendreau (ver capítulo 2: O conceito de subsidiariedade: uma forma de federalismo) considera a subsidiariedade como um princípio de repartição móvel de competências.

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considerado como uma solução temporária e presume-se que o país em questão

manifeste o desejo de participar da organização.

Mas será que esta dinâmica criaria, a longo prazo, maior uniformidade entre

os membros de um consortio? A tendência seria a de uma adesão cada vez maior

às políticas dos membros mais avançados do consortio? Ou, ao contrário, haveria

uma assimetria permanente entre os membros, um opt out eterno?

O condominium seria ainda mais distante do sistema de Estados europeus

da Westfália, pois conjugaria funções e territórios variáveis. Estaria localizado na

ponta de um continuum em que a outra extremidade seria representada pelo

Estado unitário, ou seja, o condominium corresponderia ao grau máximo de

fragmentação. Além de funcionalidades variáveis, apresentaria uma constituição

territorial mutável e ausência de contigüidade territorial. Neste último aspecto, o

condominium lembra a configuração espacial dos Impérios. Os territórios do

Império Habsburgo (1519-1659), por exemplo, não eram contígüos. Incluíam

Espanha, Nápoles, Sícilia, Sardenha, Áustria, Holanda, Hungria e Boêmia.

Embora os estrangeiros considerassem com freqüência o império de Carlos V, ou o de Filipe II, como monolítico e disciplinado, ele era na verdade um amontoado de territórios, cada qual com privilégios próprios e orgulhoso de sua identidade. Não havia uma administração central (e muito menos uma legislatura ou judiciário) e o único elo de ligação real era o próprio monarca.153

No condominium, a geometria variável seria levada às últimas

conseqüências. Não apenas cada membro selecionaria tarefas em um menu, como

no consortio, mas essa escolha teria implicações geográficas. Cada instituição

européia seria composta de um grupo diferente de membros. Em vez de uma única

Europa com fronteiras contígüas e reconhecidas, haveria várias: uma Europa de

comércio, uma Europa da energia, uma Europa do meio ambiente, uma Europa do

Welfare State, uma Europa da defesa. Em alguns casos, pode acontecer de um

mesmo país participar de mais de uma Europa.

153 KENNEDY, P. Ascensão e Queda das Grandes Potências: Transformação Econômica e Conflito Militar de 1500 a 2000: 58.

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O condominium representa um caso extremo de descentralização da

integração européia. Em vez de uma Eurocracia coordenando o processo a partir de

Bruxelas, haveria instituições regionais múltiplas agindo autonomamente para

resolver problemas comuns e produzir bens públicos diferentes. Ruggie compara

essa dissociação atual entre autoridade e território com

a regra medieval, com sua colcha-de-retalhos de direitos incompletos e sobrepostos.154

No entanto, o próprio Schmitter aponta os problemas deste modelo de

organização política:

Devido a problemas de coordenação – para não falar de sua natureza sem precedentes -, não se pode imaginar o estabelecimento deliberado de um arranjo deste tipo. Só poderia emergir de um modo improvisado e incremental a partir de sucessivos compromissos entre membros com interesses e legados institucionais divergentes.155

Chisholm tem opinião diferente. A partir da análise de uma experiência

americana semelhante ao condomínio – a fragmentação do sistema de trânsito na

área da Baía de São Francisco entre sete jurisdições – ele afirma que esse arranjo

complexo funciona bem. Não existem os tais problemas de coordenação apontados

por Schmitter. Chisholm mostra

os padrões complexos de interdependência, as instituições formais e as redes informais que caracterizam o sistema.156

A complexidade e a fragmentação não são empecilhos à coordenação. Ao

contrário, podem contribuir para uma coordenação eficiente.

É importante destacar que tais membros a que Schmitter se refere não são

necessariamente Estados. O condominium também pode ser composto por

unidades menores que o Estado. Regiões ou municípios são capazes de formar

condomínios para resolver problemas pontuais. No Vale do Reno, os cantões suíços

154 RUGGIE apud HOOGHE & MARKS. Unravelling the Central State, but how? Types of Multi-level Governance: 5. 155 SCHMITTER, P. C. How to Democratize the European Union – and why bother?: 18. 156 CHISHOLM apud HOOGHE & MARKS. Unravelling the Central State, but how? Types of Multi-level Governance: 2.

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de Basel-Land e Basel-Stadt, o departamento francês do Alto Reno e a região

alemã de Baden criaram uma jurisdição transnacional.

Na prática, afirma Schmitter, o consortio tem se revelado uma forma de

ação coletiva praticada mais por firmas e corporações do que por unidades políticas

como Estados, regiões ou municípios. No caso da União Européia, o consortio

estaria associado a uma integração a partir do mercado e promovida pelo Ato Único

Europeu. Existem ainda os consortios formados por organizações da sociedade civil,

como organizações não-governamentais, sociedades profissionais e grupos de

manifestantes. Ou seja, o consortio e o condomínio não são estruturas

intrinsecamente boas ou más. Constituem apenas uma arquitetura, uma forma de

organização que pode ser usada pelos mais diferentes interesses.

A configuração do consortio e do condominium assemelha-se mais à ordem

medieval do que à moderna. Na Idade Média,

nenhum estado ou governante era soberano no sentido de ter autoridade suprema sobre determinado território e um certo segmento da população cristã. Os governantes precisavam compartilhar sua autoridade com os vassalos, no nível inferior, e com o Papa, no nível mais alto.157

Em outras palavras, havia naquela época um sistema de lealdades múltiplas

e autoridades sobrepostas. O habitante de um território precisava obedecer ao

mesmo tempo ao senhor, ao Príncipe e à Igreja. Muitas vezes, um mesmo assunto

era tratado por uma pluralidade de fontes jurídicas. Os domínios sobre os quais o

Príncipe e a Igreja podiam interferir não estavam nitidamente separados. Como

explica Cassirer, nenhuma autoridade do poder político era absoluta, pois estava

sempre limitada pelas leis divinas. O axioma de São Tomás de Aquino Princeps

legibus solutus (o príncipe está acima da lei) não significava que o Príncipe fosse o

único detentor da soberania, como ocorreria posteriormente no Estado absolutista:

(...) nos tempos medievais o princípio do direito divino dos reis encontrava-se sujeito a certas limitações fundamentais. Tanto os teólogos como os juristas interpretavam a máxima Princeps

157 BULL, H. A sociedade anárquica: 286.

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legibus solutus no sentido de que o príncipe está livre da coerção legal, mas que esta liberdade não o isenta de qualquer dos seus deveres e obrigações.158

Em algumas questões, o Príncipe de fato era livre para agir de acordo com

sua consciência. Em outras, seu poder confrontava-se com o da ordem espiritual e,

não raro, ele devia se submeter aos mandamentos da Igreja. Como vimos no

capítulo 1, a formação do Estado moderno absorve as ordens jurídicas superiores e

inferiores, passando a ser a única fonte legítima de produção jurídica e a ter

exclusividade sobre um território.

De forma semelhante à Idade Média, o cidadão de um Estado ou região que

participa de um consortio ou condomínio está submetido a autoridades funcionais

distintas. Ao aderir à política comercial comum, o Reino Unido passa a acatar as

decisões de uma instituição supranacional como a Comissão Européia em assuntos

comerciais. Por outro lado, como o Reino Unido não adotou o euro, a autoridade em

assuntos monetários continua sendo a instituição nacional do Banco Central Inglês

e não o Banco Central Europeu. A lealdade, portanto, muda de acordo com a

participação ou não em um consortio ou condominio. No condominium pode ocorrer

uma sobreposição de autoridades. Um país que participe ao mesmo tempo de uma

Europa do comércio e de uma Europa do meio ambiente terá de se submeter a

legislações provenientes de fontes diversas e que, eventualmente, poderão ser

contraditórias. Este tipo de conflito também ocorre quando regimes internacionais

se sobrepõem. Como mostrou Rosendal,159 a Convenção sobre a Biodiversidade vai

de encontro a alguns direitos de propriedade intelectual estabelecidos pela

Organização Mundial do Comércio - OMC.

Essa pluralidade de poderes imbricados presente no consortio/condomínio de

Schmitter e no neomedievalismo de Bull ganham em Castells a denominação de

158 CASSIRER, E. O Mito do Estado: 132. 159 ROSENDAL, K. Impacts of Overlapping International Regimes: The Case of Biodiversity.

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Estado em rede, ou seja, um Estado em que a autoridade é compartilhada em uma rede. Nesta definição de Estado, as decisões não são tomadas a partir de um centro. No entanto, na rede existem nós que podem ser de tamanhos diferentes e estar ligados por relações assimétricas na rede, de tal forma que o Estado em rede não impede a existência de desigualdades políticas entre seus membros.160

O consortio/condomínio tem semelhanças com este Estado em rede. Nele,

como vimos, também não há uma autoridade supranacional, um centro do qual

emanam todas as decisões, mas vários nós representados pelas autoridades

funcionais. Estas estão dispersas pela rede e umas têm mais poder do que outras.

No caso de um conflito de normas provenientes de autoridades funcionais

sobrepostas, prevalecerá a que tiver mais poder, ou seja, a que representar o

maior nó. A rede apresenta ainda a característica de ser flexível, moldável. Os nós

podem mudar de tamanho, surgir em novos pontos ou desaparecer. O desenho da

rede, portanto, está em constante transformação, numa geometria eternamente

variável.

160 CASTELLS, Manuel. Fim do Milênio: a Era da Informação, Economia, Sociedade e Cultura vol.3: 407.

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Capítulo 3

Histórico do processo de integração

Ao longo dos pouco mais de 50 anos de integração, houve momentos em que a

Europa parecia ter feito uma opção por um projeto federalista. Outras vezes a

proposta de uma Confederação ganhava mais adeptos e se impunha com mais

vigor. Por quatro décadas, o processo de integração oscilou entre esses dois

modelos. Segundo Schmitter, em meados dos anos 80, começaram a surgir duas

novas formas de organização política na Europa: o consortio e o condominium.

Neste capítulo, traçaremos um panorama das etapas de construção da União

Européia do ponto de vista do seu desenho institucional. Assim será possível, no

momento oportuno, perceber como a Constituição Européia se insere nessa

trajetória. Será que ela reafirma o projeto federalista? Ou incentiva a formação de

uma Europa de caráter mais confederalista? Poderia a Constituição atuar como

catalisadora de tipos de organização como o consortio e o condominium? E ainda:

por que não considerar a possibilidade de a Constituição Européia engendrar formas

inéditas de organização política, diferentes do federalismo, do confederalismo e do

consortio/condominium presentes em etapas distintas de sua história?

Os projetos precursores da idéia de uma Europa unida eram, em sua maior

parte, fundados na teoria do equilíbrio de poder. De acordo com essa leitura das

relações internacionais, os Estados são entes soberanos e não há nenhuma

instância superior a eles que possa limitar-lhes a ação. Logo, a única maneira de

atingir e manter a paz é através da limitação de poder mútua entre os Estados ou,

em outras palavras, do equilíbrio de poder. Idealmente, o sistema tenderia ao

equilíbrio. Assim, o surgimento de um poder hegemônico necessariamente

estimularia a formação de uma aliança entre Estados menos poderosos, a qual teria

a função de contrabalançar o poder emergente e restabelecer o equilíbrio de poder.

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Segundo Pfetsch,161 o primeiro defensor de uma concepção de Europa

fundada no equilíbrio de poder foi o duque francês Maximiliano de Béthune Sully

(1560-1641), conselheiro e ministro de Henrique IV. Sully afirmava que um

equilíbrio europeu entre quinze Estados igualmente fortes seria uma garantia de

paz. No entanto, a federação proposta por Sully seria liderada pela França e não

por uma entidade supranacional. Um contemporâneo de Sully, o holandês Hugo

Grotius (1583-1645), também tratou da união dos Estados e dos povos. Na obra O

Direito da Guerra e da Paz, Grotius defende a teoria das soberanias equivalentes.

Nesses dois casos, a federação proposta está mais próxima na verdade de uma

confederação, já que tanto em Sully quanto em Grotius os Estados mantêm sua

condição soberana.

Em 1713, o Abade de Saint-Pierre (1658-1743), na obra Projet pour rendre

la paix perpétuelle en Europe refere-se a uma associação federativa de Estados

europeus soberanos. Esses Estados, no entanto, não seriam tão soberanos assim

visto que os princípes, acreditava Saint-Pierre, renunciariam a seus direitos de

soberania para formar uma federação. Temos aqui, portanto, uma proposta

claramente federalista para a Europa.

Outra proposta federalista pode ser encontrada, como vimos no capítulo 2,

em Kant. No entanto, uma análise mais detida das obras Sobre a Paz Perpétua e

Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita mostrou que

Kant não defende a cessão de soberania por parte do Estado. Apenas afirma que

estes devem ter uma constituição republicana e esta estrutura interna, por si só,

bastaria para conter os impulsos expansionistas. O resultado seria um equilíbrio

entre Estados republicanos e soberanos, ou seja, algo mais próximo de uma

confederação do que de uma federação.

161 PFETSCH, F. R. A União Européia: História, instituições, processos.

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Em contraste, Saint-Simon (1760-1825) concebia em 1814 uma comunidade

européia com um parlamento supranacional,162 o que significa dizer uma Europa

em que os Estados e conseqüentemente os parlamentos nacionais perderiam parte

de sua soberania ao terem de se reportar a um poder superior, supranacional. No

século XIX, Victor Hugo escreve um artigo em que propõe uma Europa sem

fronteiras. Segundo o escritor francês, os Estados Unidos da Europa seriam mais

poderosos do que os Estados Unidos da América. Ali também está presente a idéia

de uma federação européia.

No século XX, os movimentos que antecederam a integração também se

baseavam na idéia de uma federação para a Europa. Em 1923, o Conde

Coudenhove Kalergi, da Áustria, fundou o Movimento Pan-Europeu, com o objetivo

de criar os Estados Unidos da Europa. O federalismo ganhou novo impulso em

1930, quando o ministro francês Aristide Briand apresentou o projeto Memorando

sobre a organização de um regime de União Federal Européia. No entanto, assim

como Kant utilizou o termo federação para se referir a uma confederação de

Estados soberanos, as propostas de uma federação européia do início do século XX

eram na realidade propostas de uma confederação:

em caso algum, e em grau algum, a instituição do vínculo federal entre os povos europeus poderá afetar, seja no que for, qualquer dos direitos soberanos dos Estados.163

Em suma, com exceção de Saint-Pierre e Saint-Simon, os teóricos do

federalismo para a Europa não pretendiam que os Estados cedessem soberania

para uma entidade supranacional.

Após a Segunda Guerra, é possível perceber duas tendências: a dos

federalistas e a dos tradicionalistas (ou nacionalistas ou integralistas). Os primeiros

propugnavam uma união política e jurídica entre os Estados europeus, com a

transferência de certos direitos soberanos para órgãos governamentais

162 Idem: 17. 163 Memorandum apud TOSTES, A. P. União Européia: o poder político do direito: 87.

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centralizados. Esta vertente também pode ser caracterizada como interdependência

mediante integração e está associada à escola liberal das relações internacionais.

Para Karl Schmid, um dos fundadores da República Federal da Alemanha, a fusão

política era a melhor alternativa:

Não podemos almejar uma confederação. Temos que querer a Europa já como federação se a quisermos eficaz.164

Já os tradicionalistas, inspirados pela teoria realista das relações

internacionais, consideravam essencial a preservação da soberania mesmo numa

Europa unida. Como veremos mais à frente, o general Charles De Gaulle, Konrad

Adenauer e Winston Churchill pertenciam a esse grupo. A integração européia,

segundo eles, jamais poderia significar uma diminuição da soberania dos Estados

nacionais, que se reuniriam em um conselho europeu com fins consultivos e

deliberativos.

Em 1946, Churchill profere o famoso discurso de Zurique, em que afirma a

necessidade de criar os Estados Unidos da Europa. Embora a sua proposta fosse a

de uma Confederação, movimentos de integração os mais diversos começaram a se

organizar em torno da idéia de uma União da Europa no Congresso de Haia, em

1948, que reuniu diversos grupos ideológicos e chegou a propor, pela primeira vez,

uma Constituição para a Europa. Ao final das discussões, prevaleceu a posição

confederalista de Churchill, que resultou na criação do Conselho da Europa, uma

organização de caráter intergovernamental cujo compromisso principal está

expresso na Carta de Direitos Humanos. Contudo, o Congresso de Haia também

representou um avanço para os federalistas, cujos vários grupos se fundiram no

Movimento Europeu. Pode-se dizer que, mesmo antes de iniciado o processo de

integração que daria origem às Comunidades Européias e hoje à União Européia,

havia uma polarização entre os federalistas/supranacionalistas e os

confederalistas/intergovernamentalistas.

164 SCHMID apud STÜWE, K. A União dos Estados como opção européia: 22.

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De Gaulle sempre se posicionou contra a teoria de que a criação de um

mercado comum daria origem, naturalmente, a uma política comum européia. Para

funcionalistas como Mitrany,165 a integração deveria começar em assuntos

transnacionais, em que houvesse alguma possibilidade de aplicação de

conhecimento técnico especializado. O sucesso nessas áreas aos poucos provocaria

um spill-over (respingo) para outros campos, num processo cada vez mais amplo.

Mitrany acreditava que:

se começassem a transferir responsabilidades funcionais às agências internacionais com mandatos específicos para tratarem de assuntos sobre os quais havia um amplo consenso relativo à necesidade de cooperação, com o tempo o princípio de soberania territorial e legal se enfraqueceria.166

O presidente francês, ainda que a favor da cooperação econômica e de

políticas setoriais integradas, não acreditava – e não aceitava - que elas pudessem

evoluir para a criação de órgãos supranacionais e enfraquecer a soberania dos

Estados nacionais. A tese dos neofuncionalistas parecia igualmente despropositada

a De Gaulle. Segundo estes, os spill-overs não aconteciam naturalmente, mas

seriam o resultado da ação das lideranças políticas. Postulavam que os bons

resultados da integração numa área levariam à promoção e à ampliação da

integração a outros setores. A atitude intransigente de De Gaulle acabou por

mostrar que a teoria neofuncionalista carecia de fundamento, pois os bons

resultados da integração econômica não foram capazes de convencê-lo a aceitar

uma integração política plena. De Gaulle admitia apenas a existência de uma

identidade comum suficiente para uma estreita cooperação política, de segurança, econômica e cultural.167

Em suma, o presidente francês era, ao mesmo tempo, antifederalista, contra

a fusão política dos Estados europeus numa organização supranacional, e

antifuncionalista, contra a dissolução dos Estados numa estrutura de arranjos

funcionais.

165 MITRANY, D. The functional approach to world organization. 166 GRIFFITHS, M. 50 Grandes Estrategistas das Relações Internacionais: 278. 167 TOSTES, A. P. União Européia: o poder político do direito: 90.

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Em 1945, o general ainda pensava em termos de uma política de equilíbrio

de poder entre os Estados europeus. Contra uma possível recuperação da

Alemanha, propunha uma cooperação econômica entre Reino Unido, França,

Bélgica, Holanda, Itália e Suécia. O fortalecimento da URSS, no entanto, obrigou-o

a uma reavaliação desta política de alianças. A Alemanha deixou de ser inimiga

para se transformar em aliada dos países da Europa Ocidental, somando-se às

forças do Ocidente contra a URSS. Com a Guerra Fria, o equilíbrio de poder, que

nos últimos séculos havia sido pensado somente num cenário em que os atores

eram os países do Continente Europeu, ganhou uma nova configuração num espaço

muito mais amplo. A contraposição passou a ser entre os hemisférios Ocidental e

Oriental.

A exportação do equilíbrio de poder e a divisão da Alemanha, permitindo a

transformação da Alemanha Ocidental em aliada, viabilizou o projeto de integração

da Europa. Em 1946, Charles De Gaulle, um dos maiores opositores da criação de

um órgão político supranacional, renuncia à chefia de Governo da França. Pareciam

estar criadas as condições, na política externa e interna, para o avanço do projeto

integracionista.

De fato, durante a Quarta República Francesa (1946-1958), Jean Monnet,

chefe do Planejamento de Reconstrução e Modernização, e Robert Schuman,

ministro das Relações Exteriores, obtêm aprovação para um modelo de organização

política com características supranacionais. Ao contrário de De Gaulle, que via a

Alemanha como uma potencial ameaça e, por isso, tentava restringir sua produção

de aço na região do Ruhr, Monnet e Schuman defendiam o controle sobre a

produção de aço da Alemanha através da sua integração com a indústria francesa

do carvão. Em outras palavras, em vez de estrangular economicamente a

Alemanha, a melhor política seria permiti-la crescer, ainda que moderadamente, e

beneficiarse desse crescimento. Esta mudança de atitude da França em relação à

Alemanha foi expressa no Plano Schuman ou Declaração Schuman, assinado em 9

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de maio de 1950. Nesse documento, ficava explícito o objetivo político de uma

integração a longo prazo.

No ano seguinte, República Federal da Alemanha, Holanda, França, Itália,

Bélgica e Luxemburgo assinaram o Tratado de Paris, que criou a Comunidade

Européia do Carvão e do Aço - Ceca. O caráter supranacional da Ceca fica evidente

quando se analisa a sua estrutura administrativa, presidida por Monnet e chamada

de Alta Autoridade. Diferentemente dos órgãos executivos das organizações

internacionais, que representam interesses intergovernamentais, a Alta Autoridade

da Ceca era uma instância de poder supranacional, independente e com completa

autonomia administrativa. Sua principal tarefa era defender o interesse da

Comunidade de Estados. No exercício de suas funções, a Alta Autoridade

pressupunha de fato a existência de uma federação européia, em que os Estados já

teriam aberto mão de parte de sua soberania em nome de um interesse comum.

Como numa federação, suas decisões deveriam ser acatadas por todos os Estados-

membros.

Com a Ceca, foram criados ainda um Conselho de Ministros, para coordenar

as políticas nacionais com as da Comunidade, e uma Assembléia Parlamentar,

composta por comissões dos parlamentos dos países-membros. Este embrião de

Parlamento teria por função controlar a Alta Autoridade. Em outras palavras,

haveria checks-and-balances entre os órgãos executivo e legislativo da Ceca. Além

disso, foi estabelecido um Tribunal ad-hoc para controlar a aplicabilidade das

normas comunitárias pelos Estados membros. Em suma, criouse uma estrutura

supranacional, em parte, semelhante à do poder central de uma federação.

A Ceca marca a ascensão do paradigma de integração neofuncionalista na

Europa, segundo o qual o sucesso da integração no plano econômico levaria a um

spill-over para outras áreas, inclusive a política. Para Shivdeep, esta fase da

integração

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parecia evidenciar o crescimento de uma administração estatal centralizada no nível continental.168

O processo era visto por alguns como dotado de uma dinâmica única, em

direção à constituição, a longo prazo, de um Estado europeu ou de uma Federação

Européia centralizada. No entanto, a Ceca também agradou aos defensores de uma

Confederação Européia ou uma Europa das Nações, uma vez que naquele momento

ainda não era possível comprovar o spill-over. A integração estava – e parecia que

continuaria – limitada a interesses econômicos comuns.

Apesar da renúncia de De Gaulle em 1946, as idéias do general continuaram

a influenciar a política francesa na década seguinte. Em 1950, por exemplo, o

gaullista francês René Pleven propôs a integração de tropas alemãs em batalhões e

regimentos (Plano Pleven),169 com o objetivo de restringir a inserção da Alemanha

ao mínimo possível.170 O Plano Pleven, discriminatório em relação aos alemães, foi

aprovado pela Assembléia Nacional francesa. Só não foi implementado por causa da

oposição da Otan.

Com a criação da Ceca, em 1951, as idéias de Monnet e Schuman

conseguiram mudar a política francesa em relação à Alemanha no plano econômico,

mas não na área da defesa. Nos anos subseqüentes, prevaleceu entre os franceses

o pressuposto do Plano Pleven, qual seja, de que o rearmamento da Alemanha

poderia representar um perigo. O Tratado para a fundação de uma Comunidade

Européia de Defesa - CED, assinado em 1952, foi rejeitado pela Comissão de

Defesa da Assembléia Nacional Francesa em 1954, que o considerou

excessivamente condescendente com a Alemanha. Em 1953, portanto quando a

CED ainda estava em vigor, discutiu-se a criação de uma Comunidade Política

Européia - CPE, que uniria a Ceca e a CED. Com a CPE, as competências da

168 SHIVDEEP, G. The Postnational Imagination: Habermasian Theory and the Study of European Union: 10. 169 LOTH apud PFETSCH, F. R. A União Européia: História, instituições, processos: 33. 170 Idem: 33.

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Comunidade seriam estendidas à política externa, à defesa, à integração social e

econômica e à proteção dos direitos humanos.

O fracasso na ratificação do Tratado da CED em 1954 comprometeu a

instauração da CPE171 e mostrou que a integração não avançaria segundo o modelo

neofuncionalista. Em outras palavras, o sucesso da integração econômica entre

França e Alemanha na Ceca não resultou numa cooperação na questão da Defesa.

A rejeição da CED em 1954 representou um desvio do projeto integracionista de

caráter supranacional.

Em 1957, a integração conheceu novo avanço com a assinatura dos

Tratados de Roma, que fundaram a Comunidade Econômica Européia - CEE e a

Comunidade Européia de Energia Atômica - Euratom. Aqueles Tratados também

determinaram que as três organizações da Europa – Ceca, CEE e Euratom – teriam

um mesmo Tribunal de Justiça e uma mesma Assembléia Geral. No entanto, os

novos órgãos, CEE e Euratom, teriam cada um deles a sua própria Comissão e

Conselho de Ministros. Essa estrutura perduraria até 1967, quando o Tratado de

Fusão dos órgãos executivos uniu os Conselhos de Ministros e as Comissões das

três Comunidades. A Comunidade Econômica Européia desenvolveu-se com mais

dinamismo que as outras duas, criando uma união aduaneira que, ao mesmo tempo

em que liberava o comércio intracomunitário, construía barreiras alfandegárias

contra o resto do mundo. Ou seja, os Tratados de Roma e, posteriormente, o de

fusão dos órgãos executivos reforçaram o caráter supranacional da integração. Eles

também mostraram que o paradigma neofuncionalista ainda poderia ser útil. Afinal,

as Comunidades Européias, criadas para tratar de políticas setoriais e econômicas -

aço, carvão, energia atômica e comércio – já começavam a estender suas

atividades para outras áreas, desenvolvendo uma política estrangeira comum e a

cooperação nas áreas de justiça, defesa e relações interiores. Essa atuação

171 As bases da CPE foram relançadas em 1966, durante uma reunião dos ministros do Exterior.

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concertada das três organizações passou a ser vista internacionalmente como a

política da Comunidade Européia.

Diante do sucesso da CEE, o Reino Unido procurou interferir nas políticas

comunitárias através de duas organizações internacionais: o Conselho da Europa,

criado em 1949, e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento

Econômico - OCDE. Como essas organizações não foram suficientes, Reino Unido,

Islândia, Áustria, Dinamarca, Noruega, Portugal e Suíça assinaram em 1959 o

Tratado de Estocolmo, que criou a Associação Européia de Livre Comércio (Aelc ou

Efta), uma zona de livre comércio para além do continente europeu.

Dois anos depois, o próprio Reino Unido se convence de que as vantagens

de participar de uma união aduaneira, como era o caso da Comunidade Econômica

Européia, seriam maiores do que as que poderiam ser obtidas em uma Zona de

Livre Comércio como a Efta. No entanto, a mudança de política do Reino Unido em

relação à integração da Europa – ele pediu ingresso na CE em 1961 – coincidiu com

o novo mandato de De Gaulle, que havia sido eleito presidente da França em 1958

e era um opositor da entrada do Reino Unido no bloco. De Gaulle vetou o ingresso

do Reino Unido no bloco duas vezes, em 1963 e 1967.

O período da presidência de De Gaulle (1958-1969) correspondeu a uma

fase de retrocesso de uma Europa federalista. Durante uma conferência de cúpula

em Bonn, em 1961, o francês Christian Fouchet foi encarregado de elaborar um

plano de expansão da integração política. O documento referia-se a uma união de

Estados (Union d´États), na qual as personalidades dos povos e dos Estados

membros seriam respeitadas. Aparentemente, esta concepção era tributária da

idéia gaullista de uma Europa das Pátrias ou Europa das Nações.

No entanto, o plano foi criticado por incentivar a supranacionalidade.

Fouchet propunha um Conselho composto pelos chefes de Governo, uma

Assembléia Parlamentar européia e uma Comissão. Apesar do caráter meramente

administrativo dessas instituições, elas foram vistas como órgãos supranacionais.

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Além disso, a União seria competente para tratar de política externa, segurança e

defesa, para promover a cooperação científica e cultural e para incentivar políticas

de defesa dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da democracia.

A França adotou uma posição ambígüa diante do Plano Fouchet: aceitava a

supranacionalidade moderada do projeto e, ao mesmo tempo, fazia questão de

preservar uma política nacional independente. Na realidade, a França queria uma

instituição supranacional que limitasse a soberania dos outros Estados membros,

mas não a sua. Em outras palavras, a França defendia uma política que significasse

a sua hegemonia na Europa. Nesse período, a ambigüidade francesa, conseqüência

do seu projeto de hegemonia, contrastava com a posição firme da Bélgica e da

Holanda, que se opunham à supranacionalidade presente na proposta de uma

Secretaria da União dos Estados. Para Pfetsch, o receio dos países não

hegemônicos - Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Itália – de que a

supranacionalidade ganhasse cada vez mais espaço era compreensível, como ele

observa:

É certo que o medo de uma hegemonia franco-alemã na Europa dos Seis desempenhou (...) um certo papel. Esse receio não era de todo injustificado, como demonstrou a brusca interrupção das negociações em torno da adesão da Inglaterra (sic), provocada por De Gaulle em 14 de janeiro de 1963.172

Em suma, havia um sentimento generalizado de desconfiança quanto a uma

Europa federalista: a França temia a perda de soberania e os países pequenos, a

dominação da França e da Alemanha. O Plano Fouchet II reformulou o Fouchet I,

especificando as políticas que ficariam sob a competência da União e tentando

encontrar um denominador comum entre os seis países, mas as divergências

permaneceram. A Europa dos Seis inclinava-se então mais para uma Confederação

do que para uma expansão da integração política que resultasse numa Federação.

É interessante observar a oscilação entre supranacionalidade e

intergovernamentalidade na evolução da política agrícola comum. Em 1958, a

172 PFETSCH, F. R. A União Européia: História, instituições, processos: 41.

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112

Comissão aprovou os princípios da PAC e, em 1962, o Conselho de Ministros,

decidindo por unanimidade, regulamentou o mercado agrícola. A PAC, portanto, foi

criada por decisão unânime, aprovada por todos os Estados-membros. Dito de

outra forma, a criação daquela política se deu de forma intergovernamental. O veto

de apenas um país seria suficiente para derrubar a PAC. No entanto, ela produziu

efeitos supranacionais e dirigistas. Criou um mercado único para os produtos

agrícolas dentro da Comunidade. Devido à sua tradição agrícola, a França foi um

dos países mais beneficiados pelo financiamento da PAC.

A situação se inverteu em 1965. O Conselho de Ministros, que até então

decidia por unanimidade, adotou o princípio da maioria qualificada. Ou seja, as

decisões passaram a ser tomadas de forma supranacional. Uma maioria de países

seria capaz, por exemplo, de reduzir a intervenção no mercado agrícola

representada pela PAC, o que prejudicaria a agricultura francesa. Por isso, a França

estava interessada em manter a decisão por unanimidade (intergovernamental),

preservando seu poder de veto contra qualquer medida que pudesse diminuir o

caráter supranacional e dirigista da PAC. Em resumo, a França queria uma forma de

decisão intergovernamental para manter uma política supranacional que a

beneficiava.

Esses movimentos em direção à supranacionalidade nas decisões foram

frustrados pela atitude de De Gaulle de abandonar o assento da França no Conselho

de Ministros, gerando uma crise que ficou conhecida como política da cadeira vazia.

Em 1966, a França negociou o Compromisso de Luxemburgo, segundo o qual os

Estados membros teriam o direito de bloquear uma decisão por maioria qualificada

sempre que esta atentasse contra um interesse nacional vital. Ou seja, o

Compromisso de Luxemburgo devolvia a soberania aos Estados-nacionais,

contrapondo-se aos Tratados de fundação e impulsionando novamente uma lógica

confederalista na Comunidade Européia.

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Mesmo naquele período de europessimismo e predominância do

intergovernamentalismo, houve avanços no sentido de uma federação européia.

Como lembra Shivdeep, a Corte de Justiça Européia preparou a base constitucional

para uma Europa de tipo federal,173 impondo gradualmente resoluções em defesa

dos interesses comunitários. A Comissão Européia, em conjunto com a Corte

Européia de Justiça, conseguiu garantir que qualquer produto elaborado de forma

regular em um Estado-membro da CE pudesse ser comercializado em qualquer

outro país integrante da Comunidade. A instituição de um direito comum sobre a

concorrência foi o primeiro passo na preparação de um mercado interno.174

As negociações para a entrada do Reino Unido no bloco só foram retomadas

após a renúncia de De Gaulle em 1969. O primeiro alargamento da Comunidade

Européia ocorreu em 1973, com a inclusão do Reino Unido, da Irlanda e da

Dinamarca. A Noruega havia apresentado o requerimento de adesão à Comunidade

em 1962, junto com a Dinamarca e pouco depois do Reino Unido. O Tratado de

Adesão de 1973 foi assinado pela Noruega e aprovado pelo Parlamento norueguês,

mas não chegou a ser implementado devido à oposição da sociedade norueguesa,

que em plebiscito nacional votou contra o documento.

Um ano após sua inclusão no bloco, o Reino Unido exigiu um tratamento

diferenciado pela Comunidade, o que pode ser visto como um primeiro passo em

direção ao que posteriormente ficou conhecido como geometria variável. O governo

britânico queria uma redução na sua contribuição para o orçamento comunitário,

uma posição que seria mantida e intensificada nos anos 80. A Comunidade

Européia acabou por aceitar as reivindicações do Reino Unido, pois a sua saída

traria mais prejuízos do que a diminuição de sua contribuição.

173 SHIVDEEP, G. The Postnational Imagination: Habermasian Theory and the Study of European Union: 11. 174 Antes da instituição do direito europeu pela Corte Européia de Justiça, havia na Alemanha a obrigatoriedade da incorporação de catalisadores em carros pequenos, o que impedia a entrada de veículos da Renault e da Fiat no mercado alemão.

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Apesar da adesão de três países ao bloco, os anos 70 foram marcados na

Europa por uma descrença nas instituições comunitárias. Fatores externos, como as

crises energética e cambial e a intensificação do comércio internacional,

contribuíram para esse eurocetiscismo, que perdurou até meados da década de 80.

No entanto, o pessimismo não impediu que algumas tentativas fossem tomadas

para aprofundar a integração.

Na década de 70, foi possível perceber, ao mesmo tempo, o ceticismo

quanto à continuidade da integração e a tentativa de buscar soluções no plano

econômico. Diante da instabilidade dos mercados financeiros nos anos 60, o premiê

de Luxemburgo, Pierre Werner, elaborou em 1970 um plano de união econômica e

monetária, que deveria ser implementado por etapas num período de dez anos. O

documento defendia a convergência da política orçamentária e fiscal dos países-

membros e a fixação das taxas de câmbio.

Apesar de aprovado, em 1971, pelo Conselho de Ministros da Comunidade, o

Plano Werner nunca foi implementado. Naquele mesmo ano, o então presidente

Richard Nixon suspendeu o sistema de Bretton Woods, que desde 1946 garantia a

convertibilidade do dólar em ouro e o câmbio fixo. A dissolução do sistema de

Bretton Woods, a queda do dólar e a crise do petróleo comprometeram a

implantação do Plano Werner.

Sem o Sistema de Bretton Woods e o Plano Werner, a Europa criou a

serpente monetária, um sistema de bandas cambiais bilaterais em que o preço das

moedas poderia variar em relação ao dólar numa faixa +/- 2, 25%. Os ajustes

entre as moedas européias, no entanto, eram de +/- 4,5%. A solução trazida pela

serpente, no entanto, não foi suficiente para conter a recessão, a inflação e o

desemprego nas nações pertencentes à Comunidade.

O fracasso do Plano Werner e a insuficiência da serpente monetária para

conter a crise contribuíram para o agravamento do pessimismo europeu. Numa

tentativa de recuperar a estabilidade na Europa, o premiê alemão Helmut Schmidt

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e o presidente francês Valéry Giscard D´Estaing lançaram em 1979 o Sistema

Monetário Europeu - SME, um sistema de câmbio fixo que tinha por base uma

unidade monetária contábil, a ECU (European Currency Unit), que admitia ajustes

finos. O objetivo era promover a estabilidade das moedas e das taxas de câmbio no

Continente. A longo prazo o sistema contribuiria para a estabilidade de preços e a

convergência das políticas econômicas, preparando o terreno para uma união

econômica e monetária. Ou seja, apesar de toda a turbulência econômica dos anos

70, os líderes europeus tentaram aprovar políticas que levassem a uma maior

integração de caráter supranacional.

No plano político, o intergovernamentalismo prevaleceu sobre a

supranacionalidade. Os chefes de Estado e de Governo decidiram, em 1974,

organizar o Conselho Europeu, reuniões que aconteceriam a cada seis meses e

teriam caráter intergovernamental. O Compromisso de Luxemburgo, negociado em

1966, continuou a produzir efeitos, isto é, a imprimir um rumo intergovernamental

à política européia. As deliberações por maioria simples foram adotadas para alguns

casos, enquanto questões vitais para os Estados continuaram sendo decididas por

unanimidade.

O Relatório Tindemans (1975) defendeu um aprofundamento da integração,

com a substituição da cooperação dos países integrantes da Cooperação Política

Européia - CPE, que havia sido relançada em 1966, por uma política exterior

comum. As decisões no Conselho de Ministros passaram a ser por maioria. O

Conselho Europeu, no entanto, órgão intergovernamental criado no ano anterior,

não adotou as conclusões do Relatório Tindemans, o que significaria um avanço na

supranacionalidade. Temos que lembrar o fato de que Reino Unido e Dinamarca,

países incorporados à Comunidade em 1973, permaneciam refratários a qualquer

iniciativa que conduzisse a uma maior federalização.

Apesar desse recuo no sentido do federalismo, houve alguns avanços que

podem ser considerados supranacionalistas. Além da adoção do SME, como

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observado, a Comunidade Européia concluiu tratados de comércio com terceiros

países e passou a controlar seu próprio orçamento.175 Em 1975 a Comunidade criou

o Fundo Regional Europeu para promover o desenvolvimento das regiões mais

atrasadas do Continente. Por sua vez, o Parlamento Europeu conquistou mais

poderes e representatividade com a eleição direta para eurodeputados em 1978.

Em suma, a década de 70 foi marcada por avanços e recuos no processo de

integração. Talvez, o mais correto seria dizer que a Europa atravessou uma década

esquizofrênica, em que as propostas e os relatórios ora apontavam para o

supranacionalismo e para a federação, ora para o intergovernamentalismo e o

confederalismo. Portanto, a paralisia e a estagnação poderiam ser o resultado não

do predomínio de políticas intergovernamentais, mas da oscilação entre

supranacionalismo e intergovernamentalismo.

Na realidade as divergências na Comunidade e a euroesclerose estenderam-

se até meados da década de 80. O Reino Unido, que em 1974 já havia reivindicado

uma diminuição de sua contribuição à CE, continuou insistindo nesta posição nos

anos 80. A primeira-ministra Margaret Thatcher alegava que o Reino Unido possuía

uma renda per capita mais baixa do que a média da comunidade e, no entanto,

pagava mais do que recebia de Bruxelas.

A veemência com que Thatcher defendia sua reivindicação por diminuição de encargos, contudo, originava-se menos nos valores que estavam em discussão e muito mais no ceticismo geral do governo britânico perante o projeto de integração européia.176

Os outros Estados-membros acabaram concordando com pagamentos

compensatórios ad-hoc para o Reino Unido de 1980 a 1983. Tais reparações

tornaram-se permanentes em 1984, quando os chefes de Governo e de Estado,

reunidos em Fontainebleau, declararam que qualquer Estado da CE, que tenha uma

carga orçamentária elevada, poderá contar com mecanismos de correção.

175 Em 1969, um sistema de financiamento com recursos próprios havia sido aprovado durante a Conferência de Chefes de Estado e de Governo em Haia. 176 WAGNER, W. A constituição financeira da União Européia: 54.

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O europessimismo também ficou evidente em 1981, quando a Grécia foi

admitida na CE. Acreditava-se que o atraso econômico do país poderia influir de

forma negativa no crescimento econômico do bloco. No entanto,

a incorporação se deu de forma tranqüila sem produzir as tensões do primeiro ingresso. Nem a população nem a economia grega representaram grande mudança estrutural para o conjunto comunitário.177

Por se tratar de dois países recém-democratizados, a entrada de Portugal e

Espanha na CE foi mais problemática do que a grega. As negociações começaram

em 1979 e se arrastaram por seis anos devido à oposição francesa. Para o

presidente Valéry Giscard D´Estaing a Comunidade só poderia ser ampliada caso

resolvesse pendências internas na política agrária, no financiamento desta política e

na falta de recursos próprios. Os Tratados de adesão dos países ibéricos foram

assinados em 1985, em Lisboa, e entraram em vigor em 1986, depois de serem

ratificados pelos respectivos Parlamentos. A inclusão de Portugal e Espanha

reforçou a posição dos que ainda acreditavam numa Europa unida após 20 anos de

relativa estagnação do processo de integração.

No mesmo ano da assinatura do Tratado de adesão de Portugal e Espanha,

1985, França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica e Holanda decidiram abolir o

controle de passaportes em suas fronteiras internas, criando o chamado espaço de

Schengen.178 Outra iniciativa no sentido de relançar o projeto da União Européia

ocorreu em 1985, quando Jacques Delors publicou o Livro Branco, um programa de

implementação de um grande mercado interno, que deveria estar pronto em 1º de

janeiro de 1993. Apesar de seu sucesso econômico, a CE ainda era uma União

Aduaneira. A proposta de Delors significava um passo além, ou seja, a criação de

um Mercado Único, com livre circulação de capital e trabalho. Para isso seriam

necessárias medidas como a eliminação dos entraves comerciais de ordem técnica,

177 VIEIRA, J. R. (org.). A Constituição Européia: O projeto de uma nova teoria constitucional: 94. 178 A área de Schengen aumentou ao longo das décadas seguintes, com a inclusão da Itália (1990), Espanha e Portugal (1991), Grécia (1992), Áustria (1995) e, finalmente, Dinamarca, Finlândia e Suécia (1996).

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a proteção jurídica nos setores da indústria e de direitos autorais, a harmonização

fiscal e o reordenamento no setor de transportes, das telecomunicações e da

prestação de serviços. O Livro Branco foi um precursor do Ato Único Europeu

(1986), um tratado que propunha uma revisão dos tratados fundacionais com o

objetivo de relançar a Comunidade Européia.

Para Castells, a aprovação do Ato Único foi uma reação defensiva da

Comunidade Européia contra a globalização:

Foi a impressão de que a Europa poderia tornar-se colônia econômica e tecnológica das empresas norte-americanas e japonesas que levou à grande segunda reação defensiva representada pelo Ato Único Europeu (sigla SEA em inglês) de 1987, que estabeleceu os passos rumo à constituição de um verdadeiro mercado unificado em 1992.179

Pode-se dizer que o AUE significou um retorno à lógica neofuncionalista,

uma vez que foi decidido por atores supranacionais: grupos de empresários e

funcionários da Comunidade liderados por Jacques Delors. De acordo com tal

interpretação, o Ato Único seria um momento de fortalecimento das instituições

supranacionais e de inflexão federalista.

De fato, o Ato Único determinava o estabelecimento de um mercado interno

em 1992 e introduzia o procedimento legislativo de cooperação, mecanismo pelo

qual o Parlamento teria maior controle sobre a criação de normas comunitárias.180

As duas medidas introduziram um grau maior de supranacionalidade na

Comunidade. A primeira exigiu a transferência de soberania dos Estados para as

instituições comunitárias em assuntos relacionados ao mercado comum. A segunda

visou ao fortalecimento da instância decisória supranacional.

Uma outra interpretação do AUE, no entanto, o considera não uma reação à

globalização, mas uma adaptação a ela através da adoção da sua própria dinâmica.

179 CASTELLS, M. Fim do Milênio: a Era da Informação, Economia, Sociedade e Cultura vol.3: 388. 180 Como comentado no capítulo 1 desta dissertação, as Constituições democrático-radicais são aquelas em que o Parlamento tem poder para alterar as leis por maioria de votos. Ao contrário, nas Constituições de tipo institucionalista a judicial review tem papel mais destacado na criação das leis.

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Dito de outra forma, o AUE inauguraria na Comunidade Européia uma terceira fase,

marcada pela dinâmica funcionalista própria da globalização.

Para Shivdeep, o Ato de 1986 corresponde às prescrições do funcionalismo

de Mitrany.181 O funcionalismo prega uma cooperação prática, funcional, em áreas

bem delimitadas. Com o tempo, esta cooperação respingaria (spill-over) para

outros setores de forma espontânea, isto é, sem a interferência de agentes políticos

ou instituições supranacionais. No funcionalismo, a integração é impulsionada mais

por forças socioeconômicas e imperativos técnicos do que por forças políticas.

O AUE, na opinião de Shivdeep, não teria reforçado o federalismo, mas

inaugurado uma fase funcionalista na Comunidade de 1986. O processo de

integração teria sido influenciado por fatores globais e pelas forças econômicas do

mercado mais do que por qualquer entidade supranacional ou intergovernamental.

Segundo Shivdeep, Schmitter182 usa o termo consortio para se referir a essa

dinâmica na qual as corporações multinacionais sucedem ao Estado em várias áreas

funcionais. De acordo com esta definição, o consortio seria uma forma de ação

coletiva utilizada mais por firmas do que por unidades políticas.183

Dois anos depois do Ato Único o pessimismo, quanto ao futuro do processo

de integração, ainda dominava o debate europeu. Não havia então certeza sobre se

a idéia de um mercado único seria aceita na Europa. Com o objetivo de convencer

os governos nacionais da importância do Mercado Único, a Comissão Européia

decidiu encomendar em 1988 um estudo sobre os custos da não-integração, isto é,

quanto a Europa teria deixado de ganhar se não houvesse avançado no processo de

integração. O Relatório Cecchini, como ficou conhecido o documento, concluiu que a

181 SHIVDEEP, G. The Postnational Imagination: Habermasian Theory and the Study of European Union: 12. 182 SCHMITTER, P. C. How to Democratize the European Union – and why bother? 183 No entanto, o consortio (ver capítulo 2: Consortio e Condominium) também pode ser formado por entidades políticas. (...) o consortio pressupõe um conjunto fixo e irreversível de Estados membros dentro de fronteiras territoriais definidas, mas com responsabilidades variadas sobre políticas públicas Idem: 17.

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não-realização do mercado interno acarretaria um crescimento menor, um

desemprego maior e inflação mais alta (o custo da não-Europa). Os ganhos

perdidos foram avaliados entre 4,25% e 6,5% do PIB da Comunidade.

As reformas iniciadas pelo Ato Único foram aprofundadas no Tratado de

Maastricht ou Tratado da União Européia - TUE, que começou a ser discutido numa

sessão do Conselho Europeu em 1991, mas só foi assinado em 1992. Maastricht

alterou os Tratados de fundação, que deram origem à Comunidade, e criou a União

Européia. Sua principal proposta é a preparação das condições para a entrada em

vigor, em 1999, da união monetária e econômica plena. Para isso, deveriam ser

criados um Banco Central europeu e uma moeda comum, o euro.

O Tratado estabeleceu cinco valores ou critérios de convergência para os

Estadosmembros que pretendessem participar da zona do euro em 1999: dívida

externa de no máximo 60% do PIB; déficit público de no máximo 3% do PIB; taxa

média de inflação de no máximo 1,5% maior do que a registrada nos três Estados-

membros com melhores resultados em termos de estabilidade de preços; taxa de

juros nominal média que não excedesse em mais de 2% a verificada nos três

Estados da União com melhores resultados em termos de estabilidade de preços; e,

por fim, cada Estado deveria respeitar as margens de flutuação na taxa cambial

fixadas pelo Sistema Monetário Europeu.

No plano político, Maastricht deveria dar continuidade ao aprofundamento da

união política proposto pelo Ato Único, através da adoção de uma política exterior e

de defesa comuns e da instituição do procedimento de co-decisão legislativa, que

daria poder de veto ao Parlamento Europeu e se acrescentaria ao já existente

procedimento legislativo de cooperação, criado pelo Ato Único Europeu.

Inicialmente, o Tratado de Maastricht foi exaltado como o mais democrático

da integração, já que introduzia o conceito de cidadania européia e o Princípio de

Subsidiariedade, segundo o qual as decisões devem ser tomadas tão próximo

quanto possível dos cidadãos da União. Pode-se dizer que este princípio foi

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incorporado em Maastricht por iniciativa do Reino Unido e da Alemanha. Desde o

final dos anos 80, os dois países preocupavam-se com uma excessiva centralização

na Europa. Os Länder alemães queriam manter o grau de autonomia que já

possuíam na Federação Alemã e, por isso, defendiam uma Federação Européia

baseada no Princípio de Subsidiariedade. Já os ingleses eram refratários ao termo

federalismo, que associavam à centralização, mas bastante receptivos à idéia de

subsidiariedade, entendida como um instrumento de descentralização.

O Tratado de Maastricht também criava uma série de instituições

democráticas, como o Comitê das Regiões, o Defensor Público, o Provedor de

Justiça e ainda um modelo único para a regulação dos direitos sociais. Apesar

desses avanços, o processo de ratificação de Maastricht revelou um alto grau de

desinformação dos europeus em relação às conseqüências da união política. A

Comunidade era vista por grande parte da população, até então, como um projeto

eminentemente econômico.

A existência de um déficit democrático na EU tornou-se evidente com a

rejeição da Dinamarca ao Tratado. Num referendo popular, 50, 7% disseram não a

Maastricht. Na França, o TUE foi aprovado por pequena margem (51,5%),

demonstrando que parte considerável da população francesa se opunha à

unificação política e monetária. A população da Dinamarca só votou a favor do TUE

(56,8%) num segundo referendo, em maio de 1993.

Dinamarca e Reino Unido negociaram uma cláusula denominada opt-out

(direito de saída) pela qual cumpririam os critérios de convergência, mas não

seriam obrigadas a adotar o euro em 1999. A decisão de dar um tratamento

diferenciado a determinados países introduziu a idéia de uma Europa à la carte,

uma Europa de geometria variável ou, para usar o termo recuperado por Schmitter:

um condominium. Ou seja, haveria níveis diferentes de integração, dependendo dos

problemas enfrentados por cada país. Assim, o temor do Reino Unido, de que

Maastricht poderia significar uma federalização da Europa, revelou-se infundado. O

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opt-out era um instrumento intergovernamental, pelo qual o governo de um

determinado país poderia decidir não participar de uma política comunitária.

Pode-se considerar que Maastricht teve um caráter federalista ao criar as

condições para uma união monetária e econômica plena. A instituição do

procedimento de co-decisão legislativa, que dava mais poderes ao Parlamento

Europeu, também se insere entre as medidas de caráter federalista. No entanto,

Guerot Ulrike acredita que Maastricht significou um retorno à

intergovernamentalização:

(...) desde Maastricht, a EU encontra-se em um processo de roll-back, no qual o processo decisório está caracterizado pelo avanço da intergovernamentalização – da importância crescente dos países-membros – em detrimento da comunitarização, ou seja, das instituições comunitárias.184

Guerot Ulrike está parcialmente correto. Maastricht deveria dar continuidade

ao aprofundamento da união política proposto pelo Ato Único. No entanto, a política

exterior e de defesa comuns continuaram a ser decididas de forma

intergovernamental.

Na interpretação de Shivdeep, Maastricht introduz a lógica do condominium

e da geometria variável, na qual há uma conciliação de forças

federalistas/centrípetas e confederalistas/centrífugas. O método Comunitário,

segundo o qual os países do bloco deveriam caminhar na mesma velocidade,

tornou-se obsoleto após a desintegração da URSS. A possibilidade de entrada de 10

países do Leste Europeu na UE185

exacerbou a tendência à geometria variável com um núcleo franco-germânico.186

184 ULRIKE, G. A situação da integração européia: entre a reforma institucional e a ampliação rumo à Europa Central e Oriental: 16. 185 Durante o Conselho de Lisboa de 1992, decidiu-se que os países da Europa Central e Oriental poderiam ser aceitos na União Européia quando já tivessem feito a transição para os princípios democráticos e de economia de mercado. 186 Aqui é preciso distinguir entre uma geometria variável sem núcleo e com núcleo. Dito de outra forma, entre uma rede sem nó e com nó. A Europa à la carte de Shivdeep se encaixaria no segundo grupo, ou seja, seria uma geometria variável com um núcleo. SHIVDEEP, G. The Postnational Imagination: Habermasian Theory and the Study of European Union: 15-16.

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Assim, haveria uma tendência federalista no núcleo formado por França e

Alemanha, países que impulsionariam a integração através de políticas

comunitárias supranacionais, como a do mercado interno. Em contraste, os países

não hegemônicos atuariam segundo uma dinâmica intergovernamental. Acatariam

as políticas comunitárias que fossem de seu interesse e apresentariam um pedido

de opt-out para aquelas que os desagradassem.187

Em 1995, a União Européia aprovou a entrada da Áustria, da Finlândia e da

Suécia. Contudo, a Suécia reafirmou sua opção de permanecer fora da zona do

euro. Em 1979, esse país já havia decidido pela não participação no Sistema

Monetário Europeu - SME, mesmo sabendo que isso seria uma precondição para ser

aceita, mais tarde, na zona do euro. Em 2003, 56,1% dos suecos votaram contra o

euro num referendo. Uma das razões para a rejeição à moeda única teria sido,

segundo o primeiro-ministro sueco, Goran Persson, o mau desempenho econômico

dos países que adotaram o euro. Outra razão estaria ligada ao fato de que a perda

de soberania monetária, trazida pelo euro, poderia pôr em risco o sistema de bem-

estar social do país.

No ano seguinte, começam as discussões sobre a reforma do Tratado de

Maastricht na Conferência Intergovernamental de Turim. As negociações culminam

com a assinatura do Tratado de Amsterdã, em 1997. O Tratado de Amsterdã não

trouxe mudanças significativas para a UE, se comparado com os tratados

anteriores. Justamente por isso, ele acaba por reforçar a principal característica de

Maastricht: a coexistência de políticas supranacionais e intergovernamentais. A

cláusula de suspensão (Artigo 7º) no Tratado de Amsterdã, por exemplo, confere

mais poderes à União, ao determinar que esta pode suspender os direitos de um

187 A dinâmica intergovernamental é uma condição de possibilidade para o surgimento de uma geometria variável. Dito de outra forma, são os Estados soberanos que decidem se adotam ou não determinada política. No entanto, há uma diferença fundamental entre a dinâmica intergovernamental e a da geometria variável. A primeira trava o processo de integração, pois um país é capaz de vetar uma política comunitária. Já a segunda permite a sua continuidade. Quando discorda de uma política comunitária, o país apenas se retira e permite que outros avancem na integração.

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Estado-membro que viole o Artigo 6º do Tratado da União Européia (liberdade,

democracia, direitos humanos, liberdades fundamentais, Estado de Direito).

Além disso, Amsterdã inseriu na lei européia as resoluções tomadas, desde

1985, pelos membros do grupo de Schengen. O procedimento de co-decisão (poder

de veto do Parlamento), criado por Maastricht e considerado confuso, passou por

uma reformulação. Foi ao mesmo tempo simplificado e estendido a um maior

número de matérias. Tanto a incorporação das decisões do grupo de Schengen

quanto a ampliação dos poderes do Parlamento Europeu são medidas de caráter

supranacional.

Por outro lado, o Tratado reafirma medidas de caráter intergovernamental

presentes em Maastricht. Seu protocolo operacionaliza o Princípio de

Subsidiariedade. De acordo com Follesdal, a determinação da eficiência relativa da

União e dos Estados-membros é crucial para a concepção de subsidiariedade

contida no Tratado de Amsterdã, como se pode ver no Artigo 5º. A ação da União

só é considerada apropriada quando os objetivos da ação proposta não podem ser

suficientemente alcançados pela ação dos Estados-membros no quadro de seu

sistema constitucional nacional (Artigo 5º). Ou seja, o Tratado de Amsterdã reforça

o intergovernamentalismo ao preservar o poder dos Estados. Em outras palavras, o

documento devolve soberania aos Estados-membros e desloca o ônus do

argumento para a União. É o nível supranacional que precisa demonstrar ser mais

capaz de realizar determinada ação. Em contrapartida, há um enfraquecimento não

só do poder da União, mas também do de regiões subestatais. Para Follesdal, a

subsidiariedade, tal como está posta no Tratado de Amsterdã, beneficia o nível

estatal em detrimento das regiões e das comunidades locais.188

A tentativa do Tratado de Amsterdã de revisar o Tratado da União Européia

havia sido bastante tímida e não resolvera problemas colocados pela perspectiva de

entrada de dez novos membros. Assim, em 2000, um ano depois de sua entrada

188 FOLLESDAL, A. Subsidiarity and Democratic Deliberation.

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em vigor, foi realizado o Conselho Europeu de Nice. Em Nice, o alargamento da

União Européia colocava questões prementes para os chefes de Estado e de

governo que participavam do Conselho, tais como: a diminuição do número de

assuntos que poderiam ser decididos por unanimidade no Conselho de Ministros, a

ponderação de votos no Conselho de Ministros e no Conselho Europeu e o número

dos comissários. Em outras palavras, havia boas indicações de que Nice pretendia

imprimir um rumo federalista à UE. O resultado, porém, não foi uma guinada

inequívoca para o federalismo.

Embora Nice tenha conseguido aumentar o número de assuntos a serem

decididos por maioria qualificada - o que daria à União Européia um desenho mais

federalista -, alguns Estados mantiveram o direito de veto em setores importantes.

A Alemanha, por exemplo, poderia continuar a vetar decisões sobre políticas de

imigração. Já a França e o Reino Unido conseguiram manter o poder de veto em

políticas sobre indústria cultural e taxação da seguridade social, respectivamente. A

Espanha pode vetar políticas de ação estrutural. Resultado: Nice manteve algum

grau de intergovernamentalismo.

Mas o aumento do número de matérias que deveriam ser decididas por

maioria qualificada no Conselho de Ministros não é a única inovação trazida por

Nice. Tanto o Conselho de Ministros quando o Conselho Europeu alteraram o

sistema de ponderação de votos, o que interfere na própria composição da maioria

qualificada. Desde o início de 1994, a aprovação da entrada de mais três países –

Áustria, Finlândia e Suécia – havia modificado as proporções dos votos e dos pesos

dos votos no total da apuração da maioria qualificada. Num total de 87 votos, eram

necessários 62 votos para obter a maioria qualificada ou 71% dos votos, e 26 votos

ou 29% dos votos para a formação do win-set (minoria de bloqueio). Os países

mais ricos189 sentiram-se desconfortáveis com a nova distribuição de poder,

189 Alemanha, Itália, Espanha, Reino Unido e França são os países que detêm mais poder de veto nos Conselhos.

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porque, para formar uma minoria de bloqueio, dependeriam da adesão de mais um

país para conseguir o mínimo de 26 votos.190

Quando da realização do Conselho de Nice, o problema da ponderação de

votos nos Conselhos estava ainda mais agravado, pois havia a previsão da entrada

de dez novos países em 2004. Ou seja, a perda de poder de voto dos grandes

países, já abalada pelo ingresso de três novos países em 1994, ficaria ainda mais

ameaçada com a inclusão de mais dez países. Em Nice, o quorum da maioria

qualificada, que era de 71% dos votos, passou para 75%, facilitando ainda mais o

bloqueio pelas minorias. Em vez de 29% dos votos, a minoria poderia ser formada

com apenas 25% dos votos.

Também em Nice os países grandes desejavam aumentar seu peso

proporcional nos Conselhos conforme a sua participação demográfica. Só que, se o

critério demográfico fosse usado plenamente para definir o sistema de ponderação

de votos, seria necessário diferenciar entre a Alemanha (80 milhões de habitantes)

e a França (55 milhões de habitantes), uma solução obviamente rejeitada pela

França.

O Sistema acordado em Nice acabou adotando parcialmente o critério

demográfico. Prometeu mais poder de voto aos países pequenos e médios. Espanha

e Polônia, por exemplo, ficaram com 27 votos no Conselho de Ministros e no

Conselho Europeu. No entanto, os países grandes, apesar de sua diferença

demográfica, ganharam 29 votos cada um. Em dezembro de 2002, o Conselho de

Copenhague confirmou a ponderação de Nice, que passou a vigorar em 1º de

novembro de 2004.

Em relação ao número de comissários, o Conselho de Nice não foi

conclusivo. Com a ampliação da União Européia, a Comissão passaria a ter 27

190 Antes da entrada da Áustria, Finlância e Suécia, o total de votos era de 76. A maioria qualificada era conseguida com 54votos e a minoria de bloqueio com 23 votos.

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comissários em 2004. Nice propunha reduzir o número de comissários para 20, mas

apenas os países grandes abriram mão de seu segundo comissário.

Durante o Conselho de Nice também foi assinada a Carta de Direitos

Humanos da União Européia. O documento, no entanto, é menos avançado do que

a Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950, considerada um marco no

Direito Internacional por introduzir mecanismos coercivos. A Carta de Nice, ao

contrário, não representa dispositivos de coercividade para obrigar ao seu

cumprimento.

De uma certa forma, Nice exacerbou a preocupação com a legitimidade do

processo de integração que havia sido revelada pela primeira vez em Maastricht.

Durante a realização do encontro, houve manifestações populares organizadas

pelas mais variadas correntes políticas: esquerdistas, sindicalistas, anarquistas,

ativistas antiglobalização, defensores de direitos sociais, verdes, comunistas e

extremistas de direita, entre outros.191 Em comum, protestavam contra um

processo de integração que consideravam neoliberal e voltado para o

enfraquecimento do Estado nacional.

191 Embora ainda seja importante, a mera divisão entre direita e esquerda já não é suficiente para dar conta da política européia. Uma nova dicotomia se impôs ao longo do processo de integração, aquela entre os integracionistas e os antiintegracionistas.

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Capítulo 4

Análise do projeto de constituição européia

No dia 18 de junho de 2004, o Conselho Europeu aprovou a primeira Constituição

da União Européia. O documento, entretanto, não apresenta todas as

características comumente encontradas nas constituições tradicionais. Seria mais

correto considerá-la como um híbrido, ou seja, uma Constituição-Tratado, já que

possui elementos típicos tanto de Cartas constitucionais quanto de Tratados. O

objetivo desta seção é investigar a que distância esta Constituição-Tratado se

encontra das concepções analisadas no primeiro capítulo da dissertação. Para isto

será necessário avaliar o peso de cada um dos elementos que a compõem. Ela

penderia mais para uma Constituição ou mais para um Tratado? E, no caso de

tender mais para uma Constituição, de qual modelo de Constituição tradicional o

texto aprovado pelo Conselho Europeu estaria mais próximo? Em outras palavras,

de que tipo de Constituição estamos falando?

A idéia de uma Constituição-Tratado

Antes de comparar a Constituição da União Européia com alguns dos modelos

constitucionais tradicionais, no entanto, consideramos necessário perguntar sobre

seu caráter de instituição. Como vimos (capítulo 1), uma instituição estimula os

atores sociais a agirem de uma determinada forma na expectativa de serem

recompensados. Trata-se, portanto, de um comportamento interessado, e até

interesseiro, motivado por uma promessa de vantagens futuras. Age-se de

determinada maneira com o objetivo de obter algo.

O Tratado de fundação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (Paris,

1951) também seguia esta mesma lógica. A participação na Comunidade não era

motivada por questões morais. Ao contrário, visava a um fim específico: garantir a

paz entre países vizinhos na Europa que, por diversas vezes, haviam entrado em

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guerra uns contra os outros, pagando por isto um alto preço em vidas humanas,

bens materiais e em desenvolvimento de suas respectivas economias e sociedades.

Com o avanço da integração durante a Era de Ouro,192 os ganhos

econômicos passaram a ser uma outra motivação para que os países desejassem

participar da Comunidade Européia. Hoje, mesmo um país membro que esteja

numa posição líquida negativa, ou seja, que contribua mais do que receba de

Bruxelas, como é o caso da Alemanha, percebe as vantagens da integração.

Raciocina-se com a lógica do imperativo hipotético: o Estado que assinar um

termo de adesão à UE, ainda que isto signifique inicialmente uma posição líquida

negativa, ou seja, uma situação de credor, terá acesso a mercados que de outra

forma seriam de difícil acesso. Em suma, os percalços do processo de integração

(ver capítulo 3) não impediram que a União Européia exercesse fascínio sobre os

países do continente. Estes

querem se juntar à União Européia, mesmo que isto signifique uma diminuição decisiva de sua soberania econômica e legal.193

Para o presidente da Polônia, Aleksander Kwasnienski, ocorre exatamente o

oposto: por razões históricas muito particulares, a UE representa a possibilidade de

a Polônia ser soberana.

Estar na UE é a realização de um sonho de ser soberano, independente.194

Já a presidente da Letônia, Vaira Vike Freiberga, vê a entrada na UE como

uma oportunidade para dar um salto em termos políticos e econômicos. A Letônia

ficará

ao lado dos países que tiveram a sorte de reconquistar totalmente a liberdade, a democracia e o desenvolvimento econômico.195

192 A expressão Era de Ouro foi usada por Eric Hobsbawn para se referir às duas décadas (50 e 60) de crescimento ininterrupto da economia mundial no século XX HOBSBAWM, E. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: O breve século XX – 1914-1991: 223. 193 FERGUSON, N. Expansão não oculta problemas da UE: 30. 194 KWASNIENSKI apud BERLINCK, D. Uma chance histórica: líderes de Polônia e Letônia analisam expectativas e temores de se integrarem à UE: 47.

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A atratividade da União é tão grande que, desde 1963, a Turquia vem

realizando uma série de reformas para se adaptar aos padrões europeus.

Referindo-se à Turquia, Ramonet afirmou que

nenhum outro país concordou em sacrificar tantos aspectos fundamentais de sua cultura para afirmar sua identidade européia.196

Os motivos serão os de cada um segundo as suas condições, porém, em

comum o que se pode observar é uma quase unanimidade de interesse em

participar do projeto de integração de uma Europa unida do Atlântico aos Urais. A

Constituição Européia, portanto, atualiza um discurso que já vinha sendo utilizado

desde a fundação da Comunidade. Se os Estados-membros concordarem em

ratificá-la, prometemos que terão o direito de participar de um espaço privilegiado

de progresso e civilização. É esta a mensagem que seduz poloneses, letões e

turcos, entre outros. No preâmbulo da Constituição Européia, afirma-se que a

Europa pretende

progredir na via da civilização, do progresso e da prosperidade a bem de todos os seus habitantes, incluindo os mais frágeis e os mais desprotegidos.197

E ainda:

a Europa lhes oferece as melhores possibilidades de, (...), prosseguir a grande aventura que faz dela um espaço privilegiado de esperança humana.198

A Constituição Européia, portanto, assemelha-se aos Tratados e às

Constituições tradicionais no que diz respeito ao seu caráter institucionalizador.

Promete uma recompensa aos que aceitarem cumprir seus preceitos.

O texto satisfaz ainda um outro critério das instituições. Para O´Donnell,

instituições respondem a

195 FREIBERGA apud BERLINCK, D. Uma chance histórica: líderes de Polônia e Letônia analisam expectativas e temores de se integrarem à UE: 47. 196 RAMONET, I. Turquie: 1. 197 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 5. 198 Ibidem.

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padrões regularizados de interação que são conhecidos, praticados e aceitos regularmente (...) por agentes sociais (...) que esperam continuar interagindo sob as regras e normas incorporadas (...) nesses padrões.199

Ou seja, a instituição pretende garantir uma continuidade entre passado,

presente e futuro. Os agentes esperam que os padrões aceitos no passado e ainda

vigentes sejam reproduzidos no futuro. Neste sentido, a Constituição Européia, por

seu papel institucionalizante, pode ser considerada uma instituição. Certamente ela

se baseia em valores enraizados no passado europeu e assim projeta um espaço

privilegiado e garantidor destes mesmos valores.

Dito de outra forma:

Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, cujos valores, ainda presentes no seu patrimônio, enraizaram na vida da sociedade o papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como o respeito pelodireito.200

Convencido de que a Europa, (...) quer continuar a ser um continente aberto à cultura, ao saber e ao progresso social, e deseja aprofundar o caráter democrático e transparente da sua vida pública em prol da paz, da justiça e da solidariedade no mundo.201

Uma vez aceito que a Constituição Européia é uma instituição, convém em

seguida perguntar sobre o seu desempenho. Com algumas adaptações, podemos

retomar o debate entre os céticos e os formalistas apresentado no primeiro

capítulo. A aprovação de uma Constituição Européia seria uma mera formalidade,

sem qualquer efeito prático? Ou traria conseqüências para a realidade política do

Continente? Em suma, o que mudaria com a ratificação do texto pelos 25 países

membros da União Européia? A partir do critério da eficácia constitucional,

podemos organizar as opiniões sobre a Constituição Européia em três grupos: o dos

céticos, para os quais as constituições são desnecessárias e inúteis; o dos

evolucionistas, que acreditam que a Europa já possui uma Constituição e, por fim, o

dos constitucionalistas, que defendem a Constituição formal aprovada em 2004.

199 O´DONNELL, G. Democracia delegativa?: 3. 200 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 5. 201 Ibidem.

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Putnam destaca alguns autores que atribuem o sucesso das constituições a

fatores socioeconômicos (Aristóteles) ou culturais (Platão e Tocqueville).202 No

contexto da União Européia, também existem os céticos em relação à capacidade

de as Constituições influenciarem a realidade. Ulrich Haltern, por exemplo, não

acredita que os Tratados ou a Constituição Européia possam mudar a União

Européia.203

A União Européia, segundo Haltern, surgiu a partir de um espírito racional e

iluminista. Teriam faltado nessa criação

a crença, a revolução visionária, os sacrifícios compartilhados, as emoções, (...).204

Como conseqüência dessa preponderância da razão sobre a emoção, a UE

teria contado, desde o seu surgimento, com os fatores econômicos, mas não com

os sociais. A promoção do comércio na região teria sido satisfatória, não por causa

dos Tratados e das leis européias, mas porque já existia na Europa uma

racionalidade propícia à formação de um mercado comum.

O potencial da Europa reside precisamente em sua superficialidade, no fato de privilegiar o comercial, com o que ele tem de raso e vazio.205

Já a crença e o espírito de sacrifício necessários à construção de uma

legitimidade social na Europa nunca estiveram presentes, segundo Haltern. Por

isso, as tentativas de Tratados ou leis européias de provocar impacto sobre a

realidade social resultaram vãs:

Os textos da União são meros textos, e nada mais. Não são nossos textos. Falta-lhes um significado social profundo. Na União Européia, o significado deve ser construído e mantido de várias formas, nomeadamente por uma ação política incessante.206

202 PUTNAM, R. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna: 26-27. 203 HALTERN, U. Pathos and Patina: The Failure and Promise of Constitutionalism in the European Imagination: 34. 204 Idem: 12. 205 Idem: 7. 206 Idem: 5.

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O ceticismo de Haltern estende-se à Constituição Européia. Em 2002, ele

afirmava que, se uma Carta fosse aprovada, não seria nada além de um texto.207

Não haveria, portanto, uma diferença qualitativa entre Tratado e Constituição. O

problema não estaria no tipo de documento, mas na falta de fatores sociais ou, dito

de outro modo, na falta de mobilização da sociedade.

Assim como Platão associava a forma de governo à alma da sociedade (a

tirania, por exemplo, como resultado de uma alma tirânica), Haltern sustenta que a

Constituição Européia será aquilo que a alma européia for. Um Tratado ou uma

Constituição só poderiam produzir efeitos sobre a realidade social e conferir

legitimidade à União Européia caso a sociedade européia estivesse disposta a fazer

sacrifícios. No entanto, há uma total ausência de sacrifício no coração da

imaginação política na Europa208 e, por isso, segundo ele, uma Constituição formal

seria irrelevante.

Já os evolucionistas rejeitam a idéia de uma Constituição formal

simplesmente por considerarem que a Europa já possui uma Constituição no

sentido evolucionista, isto é, formada pelo conjunto de Tratados e pela

jurisprudência da Corte de Justiça Européia. De fato, os Tratados de fundação da

UE estão próximos tanto do conceito amplo de politeia quanto do seu significado

estrito.209 Assim como no conceito amplo de politeia,

os Tratados de fundação organizam o governo da União, ao descreverem a composição de suas instituições e prescreverem a forma de exercício de seus poderes.210

207 Ibidem. 208 Idem: 6. 209 A politeia, em sentido amplo, significa a forma de organização das magistraturas ou poderes que governam a vida da cidade. Já politeia no sentido estrito refere-se a um regime político específico, no qual os poderes são limitados pela lei. 210 PIRIS, J. C. Does the European Union have a Constitution? Does it need one?: 3.

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Mas os Tratados fundacionais também satisfazem o critério de politeia no

sentido estrito. Estão baseados, de acordo com Piris, na rule of law e protegem os

direitos humanos e as liberdades fundamentais.

Pode-se dizer que a tese de que a Europa já tem uma Constituição deve

muito ao trabalho da Corte Européia, que ao longo dos anos proferiu várias

decisões que constitucionalizaram os Tratados. De acordo com Haltern,

a Corte de Justiça Européia não faz cerimônia sobre sua compreensão dos Tratados como uma Constituição da União.211

Em 1986, por ocasião do julgamento do caso Les Verts, a Corte considerou

que os Estados-membros e as instituições da comunidade deveriam cumprir as

regras do Tratado porque este equivalia a uma Constituição, isto é, possuía um

valor legal superior. Ao contrário dos céticos, os evolucionistas acreditam na

possibilidade de as instituições influírem sobre a realidade social. Tanto isto é

verdade que os Tratados impulsionaram o processo de integração, dizem eles.

Por fim, temos o grupo dos constitucionalistas, formado pelos autores que

defendem uma Constituição formal para a Europa. Optamos por atribuir a

denominação constitucionalista a este grupo para diferenciá-los dos formalistas

(Mills) analisados por Putnam. Os formalistas pretendem que um bom arranjo

institucional formal seja suficiente para produzir modificações na realidade. Os

constitucionalistas estariam mais próximos das conclusões do próprio Putnam, ou

seja, reconhecem o poder das instituições, mas percebem a existência de um

processo circular, dialético, entre instituição e cultura política. Essa posição tem

como um de seus principais representantes o filósofo alemão Jürgen Habermas.

Em parte, Habermas concorda com Haltern ao afirmar que, sem uma cultura

política européia (sociedade civil européia, sistema de partidos políticos

transnacionais e espaço público europeu), ou melhor, sem uma alma européia, a

melhor Constituição do mundo não passará de um mero texto. A diferença entre os

211 HALTERN, U. Pathos and Patina: The Failure and Promise of Constitutionalism in the European Imagination: 1.

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dois está no fato de que, para Haltern, a transformação só pode vir da sociedade. A

Constituição seria uma mera conseqüência das mudanças havidas na realidade

social. Em Habermas, a Constituição não é um documento moldado pelo social, mas

que age e recebe influência do social, num processo circular. Desta forma, a

Constituição formal pode ter um efeito catalisador, forçando a sociedade a

participar de um debate sobre a União Européia212 e contribuindo assim para a

formação de uma esfera pública européia.

Em artigo no jornal O Globo, Ferguson expressou a preocupação de que o

debate sobre a Constituição poderia estar sendo desvirtuado.

Talvez de forma ilógica, alguns eleitores europeus estão usando o debate sobre a Constituição para expresssar seus temores sobre outras questões que surgiram com a ampliação da União Européia. E é aqui que a identidade européia se torna crucial.213

Não há nada de ilógico em usar o debate sobre a Constituição para discutir

questões que surgiram com a ampliação da União Européia, como o aumento da

imigração e do desemprego ou a pressão para reformar a Política Agrícola Comum.

Não há mais como delimitar com precisão o que diz respeito a assuntos internos de

um país e o que se refere à União Européia. Na França, o referendo sobre a

Constituição Européia em maio de 2005 provocou discussões em que a política

interna e a externa apareciam mescladas. Apesar do não francês e holandês à

Constituição, a discussão provocada pelo texto contribuiu para a formação de uma

esfera pública européia. O não francês era temido não só pelos políticos franceses

pró-Constituição, mas também por políticos alemães, holandeses e espanhóis

favoráveis à Carta Européia.

Se os europeus estão discutindo a Constituição, então a hipótese de

Habermas, de que a Constituição poderia ter um efeito catalisador, está correta. É

justamente este tipo de debate que ajuda a criar uma esfera pública européia, que,

212 HABERMAS, J. Why Europe needs a Constitution: 102. 213 FERGUSON, N. Expansão não oculta problemas da UE: 39.

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por sua vez, será imprescindível para que a Constituição não se torne um

documento sem influência sobre a realidade.

Resumindo os pontos até agora levantados. Partimos do pressuposto de que

Constituição Européia é:

a. uma instituição porque promete benefícios àqueles que decidem

ratificá-la e continuar participando do processo de integração;

b. uma instituição capaz de produzir efeitos sobre a realidade, agindo

como catalisadora de um debate sobre a identidade européia e os rumos da União

Européia.

Está claro que nossa decisão de analisar o objeto Constituição Européia só

poderia decorrer da aceitação do pressuposto de que o documento pode produzir

efeitos sobre a realidade. Se adotássemos a posição de Haltern, segundo a qual a

Constituição seria um mero texto sem efeitos práticos, não haveria motivos para

examinarmos um objeto, desde o início, irrelevante. Da mesma forma, se

concordássemos com os evolucionistas, teríamos optado pelo estudo dos Tratados e

não da Constituição. Se escolhemos a Constituição é porque acreditamos que ela é

qualitativamente diferente dos Tratados de fundação e ampliação da UE. Assim,

acompanhamos Habermas quando ele observa que:

O arranjo intergovernamental de Maastricht carece do poder de cristalização simbólica que só um ato político de fundação pode dar.214

No entanto, é inegável que não estamos diante de uma Constituição no

sentido tradicional. A Constituição Européia se apresenta como uma mescla de

Constituição e Tratado. Como observamos no capítulo 1, uma Constituição é um ato

de direito interno pelo qual uma nação215 define seus valores e organiza a produção

214 HABERMAS, J. Why Europe needs a Constitution: 2. 215 No sentido francês, a comunidade política é produto da vontade de homens livres e portadores de direitos naturais. Já os alemães e os europeus orientais acreditam que a comunidade política independe de uma decisão dos atores políticos. Ela seria formada por um povo unido, ainda que involuntariamente, por uma origem, etnia, língua, religião, cultura e história comuns.

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das regras jurídicas. Já o Tratado é um ato de direito internacional, um documento

assinado por dois ou mais Estados que já possuem suas respectivas constituições.

Em outras palavras, uma Constituição organiza a comunidade política interna ao

Estado e um Tratado organiza a comunidade política internacional. Uma

Constituição é um pacto entre cidadãos, enquanto um Tratado é um pacto entre

Estados. Já a Constituição Européia é um pacto entre cidadãos europeus para além

de suas respectivas nacionalidades.

No preâmbulo, lê-se que os membros da Convenção Européia elaboraram a

Carta em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa.216 Ora, de acordo com a

teoria constitucional e o direito internacional, cidadãos fazem um contrato para

criar uma Constituição, enquanto os Estados assinam acordos denominados

Tratados. Logo, se temos um documento escrito em nome dos cidadãos e dos

Estados da Europa, podemos supor que ele tenha características tanto de

Constituição quanto de Tratado.

A dificuldade de classificar a Constituição Européia prossegue quando se

analisam outros quesitos. Por exemplo, a Constituição corresponde à definição de

politeia tanto em lato como em stricto sensu. Em lato sensu porque estabelece o

papel das instituições da União. Em stricto, porque contém uma Carta de Direitos

Fundamentais, ou seja, uma limitação ao poder governamental. Apesar de possuir

esses elementos inequívocos de uma politeia, a Constituição é desconsiderada

como tal por alguns teóricos. Robert, por exemplo, afirma que a Constituição

Européia

não é uma Constituição, embora contenha uma Carta de Direitos Fundamentais e precise o papel das instituições da UE, como todas as Constituições.217

É interessante notar que, quando estas mesmas características – descrição

do papel das instituições e direitos fundamentais – apareceram nos Tratados, estes

216 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 5. 217 ROBERT, A. C. Coup d´Etat idéologique en Europe. Une vraie-fausse Constitution: 1.

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foram vistos pelos evolucionistas como uma Constituição não escrita, ou seja,

passaram por um processo de constitucionalização. Porém, no momento em que a

Constituição Européia as apresenta, Robert diz que ela não é uma Constituição

apesar destas características.

Por outro lado, também devemos considerar os pontos em que o documento

se aproxima de um Tratado. Na Parte I, Artigo 59º, a Constituição trata da Saída

Voluntária da União:

Em conformidade com as respectivas normas constitucionais, qualquer Estado-Membro pode decidir retirar-se da União Européia.218

O Artigo 59º permite ainda o retorno à União de um Estado que tenha se

retirado.

Se um Estado que se tenha retirado da União voltar a pedir a adesão, será aplicável a esse pedido o processo previsto no Artigo 57º.

Segundo Diez Picazo, este tipo de direito é um elemento típico de

Tratados219 e impensável numa Constituição,220 No entanto, o autor está se

referindo aqui a uma Constituição tradicional. E se pensarmos na Constituição

Européia como maleável, flexível, de geometria variável, aceitando adesões, saídas

e retornos de Estados-membros com mais facilidade do que qualquer Constituição

foi até agora capaz? É justamente o elemento típico de Tratado221 – direito de sair

e retornar - presente na Constituição o que a torna flexível.

218 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 52. 219 Na realidade, espera-se que os Tratados, como pactos entre Estados, sejam obedecidos. A inviolabilidade dos Tratados era expressa pela máxima pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos). No entanto, essa rigidez acabou sendo atenuada pela cláusula rebus sic stantibus, segundo a qual as obrigações de um tratado só teriam eficácia, (...), enquanto as condições que prevaleciam à época da conclusão do tratado continuassem. CARR, E. H. A inviolabilidade dos Tratados. In: CARR, E.H. Vinte Anos de Crise: 1919-1939: 236. 220 PICAZO apud ROBERT, A. C. Coup d´Etat idéologique en Europe. Une vraie-fausse Constitution: 1. 221 No caso, um Tratado com cláusula rebus sic stantibus, ou seja, um Tratado elástico.

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De acordo com a definição do modelo jusnaturalista democrático-radical,222

a Constituição é criada num determinado momento histórico por um poder

constituinte soberano detentor de direitos naturais. Este poder é anterior à

Constituição e, portanto, não pode a ela submeter-se. Instaura-se então uma

dinâmica revolucionária, na qual o poder constituinte tem sempre precedência

sobre o poder constituído. Assim, a Constituição não é um instrumento de coerção

para os que participaram de sua elaboração.

De fato, podemos dizer que a Constituição Européia foi criada num

determinado momento histórico por um poder constituinte soberano. Afinal, foi

aprovada após meses de elaboração por um ator específico: uma Convenção

formada por representantes (alguns não eleitos) dos Estados-membros da União

Européia e após décadas de uma experiência histórica, sem precedente, de

integração entre Estados soberanos. Não se trataria, portanto, de uma Constituição

no sentido burkeano,223 como produto involuntário de um evolucionismo, sem a

interferência de um agente histórico. De acordo com esta interpretação, o trabalho

da Convenção representaria uma ruptura em relação aos Tratados.

A segunda parte da definição de Constituição democrático-radical diz

respeito ao fato de que existe um poder constituinte soberano detentor de direitos

naturais. Neste quesito, a Constituição Européia aproxima-se do modelo

democrático-radical. De acordo com a Teoria Jusnaturalista, o poder do Estado é

limitado externamente por um direito natural anterior ao próprio Estado e que, por

isso, dele não depende. Esse direito natural pertence a todos os indivíduos e é

inviolável e inalienável. O papel do Estado é apenas garanti-los.

222 Denominação criada por Ulrich Preuss e comentada no primeiro capítulo da dissertação (ver página 14). 223 Na concepção de Edmund Burke, a Constituição não era um produto da razão, mas da lenta evolução do costume e da common law. Como observamos no último parágrafo do subitem A autonomia local: a tradição germânica na Idade Média e a common law inglesa (capítulo 1) a common law não é imutável, mas evolui naturalmente, adaptando-se às novas circunstâncias.

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A idéia de um poder constituinte detentor de direitos naturais está implícita

na Constituição da UE, que faz referência a esses direitos no preâmbulo -

enraizaram na vida da sociedade o papel central da pessoa humana e dos seus

direitos invioláveis e inalienáveis – e afirma-os exaustivamente na sua Parte II,

constituída pela Carta dos Direitos Fundamentais da União. Direito à liberdade e à

segurança (Artigo II-6º), liberdade de pensamento, de consciência e de religião

(Artigo II-10º), liberdade de expressão e de informação (Artigo II-11º), liberdade

de reunião e de associação (Artigo II-12º) e igualdade perante a lei (Artigo II-20º),

entre outros. Os direitos naturais, deduz-se do texto, são anteriores à Constituição,

portanto, já eram possuídos pelo poder constituinte antes da elaboração da Carta.

A Constituição Européia, portanto, à semelhança do modelo democrático-

radical, foi criada num determinado momento histórico por um poder constituinte

soberano detentor de direitos naturais. Aparentemente, há compatibilidade entre os

dois modelos. No entanto, se nos detivermos na análise da natureza do poder

constituinte, perceberemos um hiato entre os dois tipos de Constituição. O poder

constituinte do modelo democrático-radical está referido a um Estado-nação e a um

povo. Entendemos, por exemplo, que o poder constituinte do povo francês,

representado pela Assembléia Constituinte, criou a Constituição Francesa. No caso

da Constituição Européia, o poder constituinte foi exercido por uma Convenção

formada por representantes (alguns não-eleitos, como os da Comissão Européia) de

vários povos e Estados-nação.

Diferentemente do modelo democrático-radical, a Constituição Européia,

uma vez aprovada, não poderá ser facilmente substituída por um novo texto. Na

Constituição democrático-radical de Preuss, o poder constituinte localiza-se no

Parlamento, que pode modificar a Carta por meio da regra da maioria. Na União

Européia, o Parlamento ainda não tem tal poder.224 De acordo com o Artigo IV-7º,

224 A história do Parlamento Europeu permite acreditar que em algum momento, no futuro, ele conquistará plenas funções legislativas, entre elas a de modificar a Carta por meio da regra da maioria.

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que trata da revisão constitucional, é o Conselho Europeu que, após consulta ao

Parlamento e à Comissão, decide a favor da análise das alterações.225 As mudanças

propostas são em seguida analisadas por uma Convenção composta por

representantes dos parlamentos nacionais dos Estados-membros, dos Chefes de

Estado ou de Governo dos Estados-membros, do Parlamento Europeu e da

Comissão ou por uma Conferência dos Representantes dos Governos dos Estados-

Membros. Por fim, só podem entrar em vigor após ratificação por todos os Estados-

Membros.226 Em suma, qualquer modificação no texto teria de passar por um longo

processo de análise por vários órgãos da União Européia e ser ratificada por todos

os Estados.

Em relação à revisão constitucional, podemos dizer que a Constituição

Européia recolhe elementos da tradição institucionalista e federalista. Ela é tão

demos constraining (restringe o poder do conjunto dos cidadãos da sociedade

política) quanto as Constituições institucionalistas das federações democráticas.

Segundo Preuss, neste tipo de Constituição, o poder constituinte não impõe seus

desejos ilimitadamente (demos enabling), mas submete-se às regras por ele

mesmo criadas, como a divisão de poderes e a independência do judiciário.

Nos sistemas federais, além do consentimento do governo central, uma

modificação constitucional deve ser ratificada pela maioria das unidades da

federação. No caso da Constituição Européia, os Estados precisam dar o

consentimento antes e depois da deliberação sobre a mudança. No início do

processo, o Conselho Europeu, órgão composto pelos Chefes de Estado ou de

Governo dos Estados-membros, ou seja, pelos representantes das unidades da

federação, dá o aval para uma proposta de modificação ser analisada. Ao fim do

processo, cada Estado-membro deve ratificar a mudança. As unidades da federação

225 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 265. 226 Idem: 266.

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- se considerarmos que a União Européia é uma federação - controlam o processo

de revisão constitucional no início e no final.

Ao contrário do modelo democrático-radical, em que a revisão constitucional

ficava a cargo do Parlamento, no institucionalista, os três poderes227 podem

interferir na mudança da Constituição. Como vimos na análise do Artigo IV-7º, é

exatamente isto o que acontece na União Européia. A revisão constitucional está

sujeita à aprovação de uma série de instituições. Em outras palavras, a divisão do

poder entre vários órgãos impede que uma mudança constitucional seja realizada

por uma grande maioria no Parlamento. A Constituição Européia, portanto, se

assemelha ao modelo institucionalista ou federalista neste quesito: impede

modificações por maiorias transitórias no Parlamento.

Além da restrição ao poder do demos realizada pelas unidades da federação,

existe uma limitação à regra da maioria que é dada pelo Princípio de

Subsidiariedade. Mesmo que uma decisão de abrangência supranacional seja

aprovada por maioria qualificada no Parlamento Europeu ou no Conselho de

Ministros, ela pode ser contestada nos níveis inferiores com base no Princípio da

Subsidiariedade. Podemos dizer, portanto, que o Princípio de Subsidiariedade tem

uma atuação demos constraining, ou seja, restringe o poder do conjunto dos

cidadãos organizados nas macroestruturas da sociedade política, um agente

abstrato, em benefício do conjunto dos cidadãos presentes nas microestruturas. Em

suma, a Constituição Européia não segue o modelo democrático-radical de Preuss,

mas um modelo democrático-federalista no qual o Princípio de Subsidiariedade

garante autonomia e democracia para as comunidades locais, evitando assim que

uma decisão aprovada pela regra da maioria no nível supranacional possa se impor

de forma irrestrita e produzir efeitos locais indesejáveis.

227 Na realidade, o desenho institucional da UE não corresponde ao modelo tripartite de divisão de poderes entre executivo, legislativo e judiciário.

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Em suma, o Artigo IV-7º torna a Constituição Européia rígida em relação à

revisão constitucional, afastando-a do modelo democrático-radical e aproximando-a

das Constituições institucionalistas e federalistas. O Princípio de Subsidiariedade

também a tornaria semelhante ao modelo federalista. No entanto, outros aspectos

mostram que não há coincidência entre o modelo institucionalista/federalista e a

Constituição Européia. Esta não chega a ser uma Constituição federalista por conta

do Artigo 59º, que confere flexibilidade no que diz respeito à entrada e saída da

União. As Constituições federalistas não permitem a secessão, a saída de uma das

unidades da federação. Por isso, se tivéssemos que posicionar a Carta européia

numa escala, poderíamos dizer que ela é mais rígida do que o tipo democrático-

radical, porém menos rígida do que uma Constituição federalista. Em outras

palavras, ela absorve características tanto do tipo democrático-radical quanto do

institucionalista/federalista e, por isto, não se equipara a nenhum deles em

particular.

Outra característica do modelo institucionalista presente na Constituição

Européia é a independência do poder judiciário, que utiliza o instrumento da judicial

review para defender o poder constituído, ou seja, a Constituição. De acordo com

Vieira et al, embora a judicial review tenha uma natureza autóctone norte-

americana, ela difundiu-se com facilidade nos últimos anos. Mesmo um país como a

França, cuja tradição constitucional baseia-se no modelo democrático-radical e na

preponderância do legislativo, não conseguiu manter-se imune à judicial review. Ao

longo dos anos, a principal função do Conseil constitutionnel passou a ser a

limitação da competência legislativa do Parlamento francês:

o Conseil constitutionnel assegurou uma expansão do processo de revisão judicial.228

228 JENNINGS, J. From Imperial State to l’Etat de Droit: Benjamin Constant, Blandine Kriegel and the Reform of the French Constitution: 81.

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A União Européia não ficou indiferente à expansão da judicial review. O

Tribunal de Justiça Europeu tem, entre outras funções, a de garantir o respeito à

Constituição. Lê-se no Artigo III-270º que

(...) o Tribunal de Justiça é competente para conhecer das ações com fundamento em incompetência, violação de formalidades essenciais, violação da Constituição (...).229

O mesmo ocorre no Artigo III-272º:

Se, em violação da Constituição, o Parlamento Europeu, o Conselho de Ministros, a Comissão ou o Banco Central Europeu se abstiverem de se pronunciar, os Estados-membros e as outras instituições da União podem recorrer ao Tribunal de Justiça para que declare verificada essa violação.230

Mas a competência do Tribunal de Justiça incide apenas sobre as políticas da

União que já são decididas no nível supranacional como, por exemplo, a política

monetária. No Artigo III-278º, determina-se que o Tribunal é competente para

conhecer dos litígios respeitantes

à execução das obrigações resultantes da Constituição e dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu pelos bancos centrais nacionais [e] Se o Tribunal de Justiça declarar verificado que um banco central nacional não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força da Constituição, esse banco central deve tomar as disposições necessárias à execução do acórdão do Tribunal de Justiça.231

Ao contrário, o Tribunal de Justiça Europeu não tem competência quando se

trata de políticas ainda em parte definidas de forma intergovernamental, como é o

caso da Política Externa e de Segurança da União (Artigo III-282º). No Conselho

Europeu e no Conselho de Ministros, os Estados-membros definem uma abordagem

comum para a Política Externa e de Segurança Comum da União. Embora a

Constituição contenha um desenho institucional que estimula a criação de uma

Política Comum de Segurança e Defesa da União, na prática essa política ainda se

encontra em fase de gestação e sob controle dos Estados-membros. O próprio texto

constitucional reconhece esse gradualismo ao afirmar no Artigo 40º que

229 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 227. 230 Idem: 228. 231 Idem: 230.

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A Política Comum de Segurança e Defesa inclui a definição gradual de uma política de defesa comum da União.232

Em outras palavras, o Tribunal de Justiça Europeu pode utilizar o

instrumento da judicial review para assuntos decididos no âmbito supranacional,

mas não para os que ainda dependem fundamentalmente de políticas dos Estados-

membros. E, mesmo no primeiro caso, o Tribunal só tem jurisdição nos Estados-

membros que tenham adotado as políticas comunitárias sob sua competência. O

Tribunal, como vimos, tem competência para declarar que um banco central

nacional não cumpriu uma obrigação prevista na Constituição. Mas essa revisão

judicial só vale para os países que participam da zona do euro. Se o Reino Unido

não adota a política monetária da União, o Tribunal de Justiça Europeu não pode

obrigar o Banco Central inglês a seguir uma decisão do Banco Central Europeu.

Acreditamos que agora já é possível perceber uma das diferenças

fundamentais entre o modelo institucionalista e o da Constituição Européia. Ambos

adotam o instrumento da judicial review, mas este incide de forma diferenciada

sobre o território e as políticas. No modelo institucionalista, o Tribunal defende a

Constituição em toda a extensão do território nacional. A revisão judicial se refere a

um Estado-nação em que todas as políticas estão sujeitas aos preceitos da

Constituição. A revisão judicial se estende a todos os assuntos porque

simplesmente não há divisão entre políticas supranacionais e intergovernamentais.

Na Constituição Européia, a revisão judicial não é aplicável a todo o território

da União Européia, mas apenas aos países que tenham adotado as políticas

comunitárias sob jurisdição do Tribunal de Justiça Europeu. Apenas as políticas

supranacionais estão sujeitas à revisão judicial. O Tribunal de Justiça Europeu não

pode revisar uma política externa e de segurança comum aprovada pelos Estados-

membros no Conselho Europeu e no Conselho de Ministros. Dito de outra forma,

num híbrido Constituição-Tratado, a revisão judicial só se aplica aos assuntos do

232 Idem: 38.

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texto já constitucionalizados. Nas questões decididas pela dinâmica dos Tratados,

ou seja, por acordos entre os Estados-membros, a revisão judicial não é permitida.

Ainda, o Artigo III-281º lembra que

sem prejuízo da competência atribuída ao Tribunal de Justiça pela Constituição, os litígios em que a União seja parte não ficam, por este motivo, subtraídos à competência dos órgãos jurisdicionais nacionais.233

Isto significa dizer que os órgãos jurisdicionais nacionais não são absorvidos

pela ordem jurídica supranacional, mas passam a coexistir e concorrer com ela.

Não existe aqui a hierarquia de leis do modelo institucionalista. Essa especificidade

da Constituição Européia deve ser entendida à luz do Princípio de Subsidiariedade.

Segundo o conceito de subsidiariedade, presente no texto em análise, as

decisões devem ser tomadas tão próximo quanto possível dos cidadãos da União.234

Desta forma, os Estados-membros, representando a si próprios ou outros órgãos, e

o Comitê das Regiões podem recorrer ao Tribunal de Justiça alegando que um ato

legislativo viola o Princípio da Subsidiariedade.235 Neste caso, o tribunal deverá

levar em conta o respectivo ordenamento jurídico interno.236

Como comentado no capítulo 2 (O conceito de subsidiariedade: uma forma

de federalismo), o Princípio de Subsidiariedade torna frouxa ou anula a hierarquia

entre as leis. Em alguns momentos, prevalece o ordenamento jurídico comunitário;

em outros, o nacional ou o local. O Constitucionalismo da União Européia afasta-se,

portanto, das concepções que entendem a Constituição como uma Grundnorm

superior às demais leis e que deve ser preservada a todo custo. Retomando a

observação de Maduro (ver capítulo 2: O conceito de subsidiariedade: uma forma

de federalismo), na União Européia existe uma pluralidade de fontes jurídicas com

igual legitimidade.

233 Idem: 231. 234 Idem: 273. 235 Idem: 274, parágrafo 7º. 236 Ibidem.

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O Tribunal de Justiça não tem poder de revisão judicial sobre todos os

assuntos da União e, mesmo nos casos em que possui esse poder, confronta-se

com uma pluralidade de ordenamentos jurídicos. É correto dizer que, em última

instância, é o Tribunal de Justiça Europeu que decide qual nível de governo poderá

implementar determinadas políticas. No entanto, numa disputa entre dois níveis de

governo ou ordenamentos jurídicos, o Tribunal tem de levar em conta o nível de

governo mais próximo dos cidadãos. Ou seja, o Tribunal tem poder de revisão

judicial, mas o exerce numa estrutura formada por vários ordenamentos jurídicos

com igual legitimidade. Num momento, a revisão judicial defende a Constituição

Européia; em outro, a Constituição de um Estado-membro que tenha invocado o

Princípio de Subsidiariedade. Temos, portanto, uma revisão judicial com geometria

variável.

Em suma, no modelo institucionalista, o Tribunal constitucional tem uma

atuação uniforme sobre as políticas e o território. Ao contrário, na Constituição

Européia, devido ao Princípio de Subsidiariedade, o Tribunal constitucional tem uma

atuação de geometria variável, de acordo com o país e o tipo de política.

Também podemos observar semelhanças e diferenças entre o modelo

institucionalista e a Constituição Européia no que diz respeito à interpretação da

Constituição. Apesar de a Constituição de tipo institucionalista ter maior

estabilidade do que a do modelo democrático-radical, ela não é imutável. No

modelo institucionalista, a Constituição é entendida ao mesmo tempo como

Grundnorm e Árvore Viva. A judicial review tem a função de preservar a

Grundnorm. No entanto, este tipo de Constituição, do qual a americana é um

exemplo, também admite ser interpretada de acordo com a doutrina da Árvore

Viva. Como vimos (capítulo 1), a Constituição americana era considerada como

Grundnorm e defendida pelo judiciário. No entanto, algumas circunstâncias

históricas mostraram a necessidade de entende-la como uma Árvore Viva. A

revisão judicial garante o respeito à Carta, mas em alguns momentos históricos o

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poder constituinte pode se manifestar e obrigar o judiciário, representado pela

Suprema Corte, a acatar seu desejo de mudança. Passa-se então,

temporariamente, de uma interpretação da Constituição como Grundnorm, lei

suprema que deve ser respeitada, para a idéia do texto como Árvore Viva,237

mutável e flexível. Em outras palavras, há prevalência da Grundnorm com algumas

interrupções, em determinados momentos históricos, para dar lugar à interpretação

Árvore Viva.

Pode-se ter ainda um modelo institucionalista em que não haja uma

sucessão Grundnorm-Árvore Viva, mas concomitância dos dois tipos de

interpretação. De acordo com Preuss,

as constituições institucionalistas não congelam a vontade empírica atual nem a hipotética vontade futura da geração revolucionária.238

Por isso, há uma diferença de tratamento entre políticas substantivas e não-

substantivas. No modelo institucionalista, as políticas não substantivas fazem parte

de um núcleo duro e, portanto, são difíceis de serem modificadas. Ou seja, há um

conjunto de políticas interpretadas como Grundnorm. Já as políticas substantivas

podem ser adaptadas às novas circunstâncias. Pelo menos em relação a esta área

de políticas, a Constituição é entendida como uma Árvore Viva. Não existe um

período Grundnorm e outro que se possa chamar de Árvore Viva. Os dois tipos de

interpretação estão presentes ao mesmo tempo, só que se referem a áreas

diferentes de política.

Ambos os modelos institucionalistas tem na revisão judicial um instrumento

tanto para garantir a Grundnorm quanto para tornar a Constituição flexível e

maleável. No primeiro modelo institucionalista, a Suprema Corte acolhe a

reivindicação do poder constituinte e utiliza a revisão judicial para emendar a

237 Na concepção de Constituição como uma Árvore Viva (ver capítulo 1, página 22), o texto constitucional pode ser continuamente interpretado e adaptado às questões contemporâneas, crescendo como uma árvore viva. 238 PREUSS, U. K. La construcción del poder constitucional para la nueva polis: 35-36.

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Constituição. No segundo exemplo de modelo institucionalista, os juízes adaptam

as políticas substantivas às novas circunstâncias através da revisão judicial.

A Constituição Européia pode ser interpretada por uma combinação de

Grundnorm com Árvore Viva. Como vimos no Artigo III-270º, o Tribunal de Justiça

Europeu é um Tribunal Constitucional, pois preserva a inviolabilidade da

Constituição, entendida esta como Grundnorm. Em alguns momentos, a presença

da judicial review na União Européia reforça a primazia da lei constitucional

européia sobre as demais. Além disso, a dificuldade de revisão constitucional

(Artigo IV-7) contribui para uma visão da Constituição como uma Grundnorm.

Como nos modelos institucionalistas, a revisão judicial também pode ser

utilizada para transformar a Constituição numa Árvore Viva. No momento em que o

Tribunal de Justiça decide a favor de uma Constituição nacional ou de uma

convenção local, ele está criando uma jurisprudência que se acrescenta à Carta,

transformando-a numa Árvore Viva, flexível e aberta às demandas dos níveis

inferiores de governo.

Por fim, observamos uma outra diferença entre o modelo institucionalista e a

Constituição da UE. No primeiro, supõe-se que a fonte de produção jurídica esteja

localizada num poder constituinte formado pelos cidadãos de uma nação. A

Suprema Corte acolhe o desejo de um determinado povo, que entende ser

necessária uma adaptação da Constituição à intenção original dos autores (Rawls)

ou às novas circunstâncias (Dworkin). Na Europa, a fonte de produção jurídica não

está determinada de antemão, pois é o resultado de uma disputa entre níveis de

governo e de agregação diferentes. O Tribunal pode criar uma jurisprudência a

partir de uma reivindicação de um Estado, de uma região ou de uma comunidade.

Em suma, o poder constituinte é indeterminado.

Vimos que a Constituição Européia apresenta alguns pontos de contato com

os modelos – democrático-radical e institucionalista - em que um poder constituinte

específico cria uma Constituição. Numa primeira análise, parece inequívoco que o

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texto aprovado em junho de 2004 representa uma ruptura com o evolucionismo

que prevaleceu na interpretação dos Tratados. Estes foram concebidos no estilo

civilista, mas rapidamente começaram a ser interpretados no estilo britânico da

common law. Os Tratados

receberam uma influência direta do estilo civilista, em que as normas devem ser gerais, abstratas e conceituais – diferentemente do estilo britânico, por exemplo, que procura não deixar lacunas interpretativas.239

No entanto, o Tribunal de Justiça Europeu tem desempenhado, segundo

Tostes, a função de produzir direito comunitário novo, como se o sistema jurídico

da UE fosse o da common law. O resultado é um

sistema jurídico sui generis que reúne características dos dois grandes sistemas constitucionais conhecidos: Common Law e Civil Law.240

Para alguns, a Constituição Européia representa uma reafirmação da Civil

Law e uma ruptura com o tipo de interpretação dos Tratados, baseado no sistema

jurídico da Common Law. Outros acreditam numa continuidade do modelo

evolucionista dos Tratados na Constituição, alegando que o texto continuará a ser

visto como uma Árvore Viva. Mesmo que a Constituição Européia seja produto de

um momento determinado, criação de um agente histórico, ela poderia futuramente

adquirir características evolucionistas. Nada impede a criação de uma

jurisprudência que seria gradativamente acrescentada à Constituição formal e

escrita, transformando a Constituição numa Árvore Viva. Caso isto ocorresse,

veríamos futuramente a Constituição Européia apenas como um intervalo formal

num desenvolvimento constitucional de caráter evolucionista e jurisprudencial.

De fato, a subsidiariedade e a pluralidade de ordens jurídicas permite que a

Constituição Européia seja interpretada como Árvore Viva. Mas isto não é suficiente

para afirmar que a Constituição Européia coincide com o modelo evolucionista. A

interpretação da Constituição como uma Árvore Viva está presente tanto no modelo

239 TOSTES, A. P. União Européia: o poder político do direito: 288. 240 Idem: 292.

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evolucionista quanto no institucionalista. Desta forma, a interpretação da

Constituição da UE como Árvore Viva não significa necessariamente um retorno ao

estilo britânico da Common Law. Pode apontar, ao contrário, para uma semelhança

entre a Constituição Européia e o modelo institucionalista.

É importante notar que os modelos democrático-radical, institucionalista e

evolucionista devem ser vistos como tipos ideais. Na realidade, aparecem

misturados nas constituições e, em particular, na Constituição Européia. Daí a

dificuldade de classificá-la segundo um ou outro tipo.

A Constituição Européia, por exemplo, utiliza dois modelos – democrático-

radical e institucionalista – para lidar com um mesmo assunto: a Carta dos Direitos

Fundamentais.

O modelo democrático-radical baseia-se no pressuposto de que existe um

direito natural anterior à Carta. Em outras palavras, o poder é limitado de forma

externa por indivíduos detentores de direitos naturais. A Constituição Européia,

como já comentado, considera a existência de direitos individuais invioláveis e

inalienáveis e, portanto, se aproxima do tipo democrático-radical.

No entanto,

a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções auxiliares.241

Não basta reconhecer a existência de direitos naturais. É preciso garanti-los.

Neste ponto, a Constituição Européia aproxima-se do modelo institucionalista, no

qual algumas políticas fazem parte de um núcleo duro difícil de ser modificado. A

pedido do Reino Unido e de um pequeno grupo de países, a Constituição foi

aprovada com restrições a uma eventual interpretação mais ampla dos direitos nela

contidos pelos Tribunais nacionais e pelo Tribunal Europeu de Justiça. Ou seja, não

é permitida uma interpretação do tipo Árvore Viva em matérias de Direitos

Fundamentais.

241 HAMILTON apud WORMUTH, F. D. The Origins of Modern Constitutionalism: 30.

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No título VII, lê-se que

qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades.242

Em suma, a Constituição Européia recolhe o conteúdo dos Direitos

Fundamentais do modelo democrático-radical e a forma como eles serão

garantidos, do modelo institucionalista puro, ou seja, aquele no qual só existe a

Grundnorm.

Além da limitação imposta à interpretação desses direitos pela própria Carta

dos Direitos Fundamentais da União, eles ainda estão protegidos por uma série de

documentos internacionais:

Nenhuma disposição (...) deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, (...) pelo direito da União, o direito internacional e as Convenções internacionais em que são Partes a União ou todos os Estados-membros, nomeadamente a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, bem como pelas Constituições dos Estados-membros.243

É interessante notar que os direitos fundamentais são garantidos na União

Européia por uma diversidade de fontes jurídicas, tal como ocorria no período

medieval. Os direitos são assegurados não só pela Constituição Européia, mas

também por uma ordem jurídica situada acima, formada pelo direito internacional e

pelas Convenções internacionais, e por outra localizada abaixo, contida nas

Constituições dos Estados-membros.

Em relação ao tratamento do tema Direitos Fundamentais, portanto, a

Constituição aproveita dois tipos de Constituição tradicionais – democrático-radical

e institucionalista – e ainda acrescenta a sua própria especificidade, qual seja, o

reconhecimento de ordens jurídicas superiores e inferiores. Aqui, no entanto, não

há concorrência entre as várias ordens, mas apoio mútuo para obter um fim

comum: a defesa dos Direitos Fundamentais.

242 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: Artigo II-52º. 243 Idem: Artigo II-53º.

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As tradições grega, romana e anglo-saxã na Constituição Européia

Na seção anterior, fizemos uma comparação, no plano macroestrutural, entre

arcabouços constitucionais, e constatamos que a Constituição Européia possui

elementos em comum com os modelos constitucionais tradicionais – o democrático-

radical, o institucionalista e o evolucionista – embora não coincida integralmente

com nenhum deles em particular. Nesta parte da dissertação, e nas seguintes,

pretendemos analisar a Constituição no plano micro. Para isto, em vez de utilizar

modelos, vamos cotejar alguns valores presentes no texto em estudo com

categorias jurídicas e constitucionais tradicionais.

Isto permitirá ver o texto constitucional da UE a partir de outra perspectiva.

Um mesmo valor perpassa vários modelos, o que explica os pontos de contato

entre os tipos de Constituição. Assim, a tradição do direito natural está presente

tanto na Constituição democrático-radical quanto na institucionalista. E o

evolucionismo histórico associado à common law aparece não apenas no modelo

evolucionista, mas também no institucionalista quando este acolhe novas

demandas do poder constituinte.

A Constituição Européia absorve elementos de várias tradições

constitucionais, mas também acrescenta inovações. Portanto, nem todos os valores

encontrados na Carta Européia podem ser referidos a esta ou aquela tradição. O

texto constitucional aprovado em 2004 pelo Conselho Europeu não corresponde a

nenhum modelo de constituição em particular não só porque combina elementos de

vários deles, mas também porque introduz novos valores.

Muitos juristas eminentes estimam que a União Européia é uma construção política e jurídica nova que exige a renúncia às categorias tradicionais do direito (ROBERT, 2004, p.2).244

No entanto, é possível encontrar na Constituição Européia algumas destas

categorias e é isto o que permite identificá-la como uma Constituição. Outras

244 ROBERT, Anne-Cécile. Coup d´Etat idéologique en Europe. Une vraie-fausse Constitution.

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categorias, apesar de sua aparência de ineditismo, podem ser vistas como

desdobramentos de conceitos mais antigos. Por último, existem aquelas que são de

fato inéditas. Nesta seção, tentaremos apontar os conceitos tradicionais presentes

na Carta Européia. Só assim será possível, por contraste, detectar as instituições e

os artigos realmente novos.

Como comentamos na segunda parte do primeiro capítulo, o

constitucionalismo grego exaltava valores como a estabilidade política, alcançada

por meio da instituição do Governo Misto; a primazia da lei e do interesse comum

sobre o desejo das massas e dos indivíduos (componente republicano) e, por fim, a

necessidade de interpretação da lei. Esta, se aplicada mecanicamente, seria um

tirano obstinado e ignorante.

Em Platão, existia uma formulação ainda incipiente do Governo Misto,

composta apenas por dois regimes: a monarquia e a democracia. Aristóteles

acrescenta a aristocracia ao seu modelo:

Há filósofos que dizem que o melhor governo seria uma combinação de todos os outros, e por este motivo é que aprovam a constituição de Lacedemônia, tendo-a como uma mistura de oligarquia, monarquia e democracia.

A opinião daqueles que admitem a combinação de um número maior de formas é preferível; pois a constituição que advém da maior combinação é a melhor.245

A teoria do Governo Misto que se tornou mais conhecida, no entanto, é a de

Políbio. Segundo ele, a mistura de regimes evitaria a degeneração das formas de

governo e as revoluções que inevitavelmente se seguiriam à decadência. Em outras

palavras, o Governo Misto traria estabilidade política ao regime.

Quando analisamos o caso da Constituição Européia, nos deparamos com

um tipo semelhante de preocupação. Um dos motivos para a criação de uma Carta

constitucional para a Europa foi justamente garantir a estabilidade no continente,

sobretudo após a entrada de dez novos membros em maio de 2004. E o meio

encontrado para assegurar essa estabilidade também é uma espécie de “Governo

245 ARISTÓTELES. Política: 51.

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Misto” formado por uma mistura dos modelos constitucionais tradicionais:

democrático-radical, institucionalista e evolucionista.

Se a Constituição da UE correspondesse unicamente ao modelo democrático-

radical, o processo de integração estaria sujeito ao desejo de maiorias transitórias

no Parlamento Europeu, ou então, a um poder constituinte que, a qualquer

momento, poderia decidir por uma nova Carta. Em outras palavras, a instabilidade

predominaria na UE.

Também teríamos instabilidade se a Constituição Européia se encaixasse

perfeitamente num modelo institucionalista que fosse interpretado como

Grundnorm. Num primeiro momento, a Corte Européia de Justiça impediria

qualquer violação da Constituição, ou seja, garantiria a estabilidade na União

Européia. Por outro lado, essa defesa incondicional da Grundnorm poderia estimular

dissidências por parte de Estados-membros, o que também poderia levar a uma

situação de instabilidade.

Em 1992, por exemplo, o Tratado de Maastricht teve de ser modificado para

evitar a não-ratificação por parte do Reino Unido e da Dinamarca. A exclusão

desses dois países da União Européia poderia levar à sua instabilidade política. Dito

de outra forma, foi a flexibilidade de Maastricht, com a introdução do que depois

ficou conhecido como geometria variável, que possibilitou manter o Reino Unido e a

Dinamarca na UE e, assim, garantir a estabilidade no Continente.

Da mesma forma, uma Constituição Européia, baseada num modelo

evolucionista puro, seria uma contradição em termos, já que neste tipo não existe

uma Constituição escrita, mas uma jurisprudência formada por documentos

esparsos. O modelo evolucionista aparece na Constituição da UE, mas não na sua

forma pura e sim combinado com o institucionalista.

Como vimos, no modelo evolucionista, há uma constante interpretação da lei

para adaptá-la à intenção original dos autores ou às novas circunstâncias (ver

capítulo 1: A constituição entre os antigos). Caso tivéssemos na UE uma criação

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excessiva de novas regras pela Corte de Justiça Européia - CJE, isto contribuiria

para a instabilidade interna da UE. Mas não é isto o que constatamos. A produção

legislativa da CJE é contrabalançada por um outro processo de constituição de

normas que depende da atuação interdependente e institucionalizante da

Comissão, do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros. Em resumo, não há

o predomínio de um modelo na Constituição Européia, mas uma mistura de

constituições, tal como prescrevia Aristóteles. A presença solitária de cada um dos

tipos de Constituição, ao que tudo indica, poderia causar relações políticas internas

indesejáveis na Europa.

Outro elemento recorrente no constitucionalismo grego, e que também

aparecerá na Constituição Européia, é a idéia republicana da primazia da lei sobre o

desejo dos indivíduos ou, dito de outra forma, do interesse comum da pólis sobre o

dos cidadãos. Os gregos rechaçavam algo equivalente à constituição democrático-

radical, porque acreditavam que este modelo, em estado puro, levaria à satisfação

dos desejos e interesses privados dos cidadãos, prejudicando os interesses da

cidade.

Em Aristóteles, os interesses privados de ricos e pobres deveriam ser

sacrificados em nome dos interesses da pólis. Esta era entendida como o valor mais

importante, ao qual todos os outros deveriam estar subordinados. Podemos dizer

que essa preocupação também está presente no constitucionalismo europeu. Em

lugar do interesse da pólis, temos o da Comunidade Européia. Desde a criação da

Comunidade Européia do Carvão e do Aço - Ceca (capítulo 3), havia uma defesa do

interesse comunitário. Este objetivo continua atual e está expresso nos Artigos 25º

e 26º da Constituição: A Comissão Européia promove o interesse geral europeu.

Cada Estado-membro, rico ou pobre, deve fazer sacrifícios em prol da integração,

da construção de um espaço comum europeu que beneficiará a todos a longo

prazo. A idéia de um interesse comunitário, assim como de um interesse nacional,

remonta à pólis grega, à concepção de que o coletivo precede o individual e de que

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este deve estar subordinado àquele. Deste ponto de vista, a presença de um

interesse comunitário nos discursos em defesa da integração da Europa não

constitui, em si, uma novidade. A afirmação do interesse comunitário europeu está

em linha de continuidade com uma das tradições constitucionais mais antigas.

Por fim, o constitucionalismo grego nos legou a concepção platônica da lei

como um tirano obstinado e ignorante. A lei seria incapaz de se adaptar aos novos

desafios postos por uma realidade sempre em mutação. Ela é boa por impedir as

ações indesejáveis do tirano e ruim porque também dificulta as ações desejáveis.

Em outras palavras, funciona como um limite, tanto para o bem quanto para o mal.

Essa rigidez da lei deveria ser atenuada, segundo Platão, pela instituição de um juiz

com poderes para interpretá-la. Teríamos aqui, portanto, um primeiro vislumbre da

idéia de revisão constitucional.

Na União Européia, o Tribunal de Justiça decide sobre a interpretação do

direito comunitário ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições (Artigo

28º). No entanto, ele não possui a mesma competência sobre todos os tipos de leis

européias. Os regulamentos, por exemplo, correspondem a verdadeiras leis

européias: são obrigatórios em todos os seus elementos e diretamente aplicáveis

nos Estados-Membros. O Tribunal os interpreta de forma literal, como se fizessem

parte de uma Grundnorm. Segundo o Artigo III-268º, os próprios regulamentos

atribuem plena jurisdição ao Tribunal de Justiça para as sanções neles previstas.

Em suma, aqui o Tribunal interpreta a lei de forma estrita.

Quando se trata de diretivas, que na Constituição Européia recebem a

denominação de lei-quadro européia (Artigo 32º), o Tribunal Europeu é obrigado a

considerar as especificidades de cada Estado-membro. A diretiva vincula o Estado-

membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, mas deixa a cargo das

instâncias nacionais a tarefa de determinar a forma e os meios de aplicá-la. Os

tribunais nacionais, portanto, produzem uma legislação complementar à diretiva.

Na União Européia, o regulamento representa a lei tirano obstinado e ignorante e a

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diretiva, a possibilidade de interpretação da lei para adaptá-la às necessidades de

cada Estado-membro. É por isso que alguns autores vêem a diretiva como um

instrumento de democratização da UE.

Uma das principais contribuições do constitucionalismo romano para as

Constituições modernas e, em particular, para a da União Européia é a ênfase no

caráter vinculativo e superior da lei natural. Como vimos no capítulo 1, os estóicos

foram os primeiros formuladores de uma doutrina do direito natural, tradição

posteriormente absorvida pelos romanos. Mesmo no Império Romano, a idéia de

um príncipe legibus solutus (acima da lei) só valia para a lei positiva, estando ele

submetido aos preceitos do direito natural. Ou seja, a lei natural e,

conseqüentemente, o direito natural, funcionavam como uma limitação externa ao

poder.

A tradição do direito natural perpassa a Constituição Européia, mas está

presente de forma mais explícita na Carta dos Direitos Fundamentais.246 Esta Carta

tem como base aquela elaborada em Nice pelo Conselho Europeu em 2000. Ela não

possuía então dispositivos de coercitividade. Ao incluir a Carta no seu escopo, a

Constituição Européia a torna juridicamente vinculante, como a lei natural na

concepção estóica e romana. Pela primeira vez a União Européia tem uma lista de

Direitos Fundamentais obrigatórios para as instituições comunitárias e os Estados-

membros quando estes aplicam o direito comunitário.

Segundo o Artigo II-1º da Carta, a dignidade do ser humano é inviolável. Em

seguida lê-se que todas as pessoas têm direito à vida.247 Nos outros artigos da

Carta dos Direitos Fundamentais nos deparamos com direitos humanos de várias

gerações, todos, no entanto, tributários da concepção de que os indivíduos

possuem direitos simplesmente por sua condição de seres humanos. Os de 1ª

246 A Carta dos Direitos Fundamentais foi aprovada pelo Tratado de Nice, em 2000, e incluída na Constituição Européia, com alterações, durante os trabalhos da Convenção Européia. 247 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: Artigo II-2º.

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geração estão presentes nos Artigos II-11º e II-12º, que tratam, respectivamente,

da liberdade de expressão e informação e da liberdade de reunião e de associação.

Os direitos políticos, liberdade para eleger e ser eleito, também fazem parte da

primeira geração e aparecem nos Artigos II-39º e II-40º da Constituição Européia.

Os de 2ª geração referem-se às condições econômicas, sociais e culturais

indispensáveis à dignidade do ser humano, como acesso a serviços de interesse

econômico geral (Artigo II-36), defesa dos consumidores (Artigo II-38), segurança

social e assistência social (Artigo II-34), proteção da saúde (Artigo II-35) e direito à

educação (Artigo II-14).

Ao contrário dos de 1ª e 2ª geração, que são possuídos pelos indivíduos, os

direitos humanos de 3ª Geração têm uma dimensão coletiva. O direito ao

patrimônio mundial da humanidade, por exemplo, refere-se aos direitos dos povos

de disporem livremente da riqueza e dos recursos naturais. Em contrapartida, o

indivíduo tem o dever de colocar sua capacidade física e intelectual a serviço da

preservação da comunidade. Na Constituição Européia, a diversidade cultural,

religiosa e lingüística dos povos está assegurada pelo Artigo II-22. O direito à

proteção do ambiente também tem essa dimensão coletiva. Na Carta, aparece no

Artigo II-37º:

Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível de proteção do

ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o princípio

do desenvolvimento sustentável.248

Há ainda os direitos de terceira geração que têm o indivíduo como sujeito:

direito à proteção de dados pessoais (Artigo II-8º) e a uma bioética humanizada

(Artigo II-3º).

Podemos dizer, portanto, que a Constituição Européia recolhe a tradição

romana dos direitos naturais em sua Carta dos Direitos Fundamentais. No entanto,

248 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 69.

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os direitos de terceira geração que apresentam uma dimensão coletiva estão mais

próximos do constitucionalismo grego, no qual o bem público primava sobre o

interesse privado. Ou seja, a Carta Européia dos Direitos Fundamentais comporta

diferentes tradições jurídicas que, em determinados momentos, podem entrar em

conflito. O direito individual de ter um trabalho ou uma habitação pode, por

exemplo, contrariar o direito coletivo de preservação do meio ambiente.

A novidade da Carta, portanto, estaria nos artigos que tratam dos direitos

privados de terceira geração e da cidadania européia. A Carta permitirá que cada

cidadão de um Estado-Membro da UE acrescente à sua cidadania nacional uma

cidadania européia que o tornará portador de novos direitos. A cidadania da União

acresce à cidadania nacional, não a substituindo (Parte I, Artigo 8º, 1.).

Apesar dessas contribuições do constitucionalismo romano, alguns autores

lembram que Roma também nos legou idéias absolutistas. As monarquias absolutas

da Europa pós-Renascença teriam recebido influência das instituições autoritárias

da Roma Imperial. De fato, há um passado europeu absolutista tanto quanto existe

uma tradição européia de constitucionalismo. Mas podemos dizer que, na União

Européia, o Constitucionalismo da República Romana prevaleceu sobre o

Absolutismo da Roma Imperial.

Quando hoje lemos no preâmbulo da Constituição sobre os valores

europeus, entendemos que se trata de uma referência à democracia, ao Estado de

Direito e ao constitucionalismo. Só que esses não eram os únicos valores europeus.

Nem os únicos que poderiam levar a uma integração da Europa. Para os fascistas, o

totalitarismo249 poderia ser o motor de uma Europa unida:

A Alemanha era vista como o núcleo e única garantia de uma futura ordem européia, com os apelos de sempre a Carlos Magno e

249 Utilizamos o termo absolutista para nos referirmos à Roma Imperial e ao período da Monarquia Absoluta na Europa. Para o nazismo e o fascismo, o termo mais adequado é totalitarismo. Apesar das diferenças entre absolutismo e totalitarismo, o que pretendemos destacar no texto é o caráter autoritário de ambos os regimes e sua oposição ao constitucionalismo, no qual subjaz a idéia de contrato.

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ao anticomunismo; uma fase no desenvolvimento da idéia européia sobre a qual os historiadores da Comunidade Européia do pós-guerra não gostam muito de se deter.250

Os valores constitucionalistas foram, portanto, selecionados pelos

idealizadores da Comunidade Européia a partir de um conjunto mais amplo de

tradições que incluía valores absolutistas/totalitários e constitucionais. Em outras

palavras, não houve uma invenção da tradição de valores europeus, mas uma

seleção da tradição. A história da União Européia e a aprovação, em junho de 2004,

de uma Constituição para a Europa representam, desta forma, o triunfo dos valores

constitucionalistas sobre quaisquer possíveis resquícios absolutistas. Ou ainda: a

vitória de uma idéia de Europa baseada no constitucionalismo e não no

absolutismo.

Mas os artigos da Constituição Européia não contêm apenas as tradições

constitucionais gregas e romanas. Como vimos, o texto aprovado em 2004 pelo

Conselho Europeu apresenta uma mistura de modelos constitucionais tradicionais,

entre eles o evolucionista, comum na tradição inglesa (ver capítulo 4: A idéia de

uma constituição-tratado). A autonomia local, presente na tradição germânica da

Idade Média e na common law inglesa (ver capítulo 2: Confederalismo), também

estará presente na Constituição da UE.

Ao contrário do grego e do romano, o Estado Germânico da Idade Média era

dual, isto é, príncipe e povo situavam-se em campos opostos e independentes. Essa

organização social gerava dois tipos de relação entre o rei e os súditos. Em alguns

assuntos, o povo obedecia à autoridade real; em outros, possuía autonomia para

tomar decisões. Por isso a utilização do termo dupla majestade (Gierke) para

caracterizar uma tradição em que tanto o rei quanto o povo podiam ser entendidos,

ainda que em assuntos diferentes, como majestades. Essa concepção teria

influenciado, de acordo com Wormuth, a common law, que surge como um espaço

independente do poder governamental.

250 HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: O breve século XX – 1914-1991: 138.

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Acreditamos que as tradições germânica e inglesa estejam presentes em

alguns artigos da Constituição Européia, sobretudo nos que tratam do Princípio de

Subsidiariedade. Ao assegurar que as decisões sejam tomadas tão próximo quanto

possível dos cidadãos da União, a subsidiariedade reforça a idéia da autonomia

local, de uma esfera independente do poder central. Não surpreende, portanto, que

os dois países que mais pressionaram o Conselho Europeu para incluir a

subsidiariedade no Tratado de Maastricht em 1992 (capítulo 3) tenham sido a

Alemanha e o Reino Unido. Para esses países, a subsidiariedade representava não

só um desdobramento da tradição medieval da autonomia local, mas também uma

forma de preservar a soberania nacional em algumas matérias.

A dupla majestade significava a existência de dois campos independentes

ou, em outras palavras, instituía um espaço de soberania do rei e outro dos

súditos. Essa divisão da soberania, como veremos na próxima seção, é uma das

principais características do federalismo:

(...) o federalismo define-se pela bipartição da soberania estatal. Esta é sua característica fundamental. Em sistemas federativos, a central e cada membro possuem a própria soberania estatal, uma legitimação própria e tarefas próprias, nas quais possuem direitos de autonomia de decisão.251

Num federalismo que adote o Princípio de Subsidiariedade, o espaço de

autonomia regional e local se expande, uma vez que as decisões devem ser

tomadas, de preferência, no nível mais próximo do cidadão.252 Ou seja, o governo

central, no caso representado pela União, tem um poder residual. Como lembra

Follesdal,

o Princípio de Subsidiariedade não proíbe a centralização, mas coloca o ônus da prova com os integracionistas.253

De fato, o Protocolo Relativo à Aplicação dos Princípios da Subsidiariedade e

da Proporcionalidade determina que, antes de propor uma lei, a Comissão realize

251 STÜWE, K. A União dos Estados como opção européia: 24. 252 Mas nem sempre a subsidiariedade garante a autonomia (ver capítulo 4: Uma Europa federalista ou confederalista?). 253 FOLLESDAL, A. Subsidiarity and Democratic Deliberation: 3.

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consultas e leve em conta a dimensão regional e local das ações previstas.254 Nos

casos em que considerar mais adequada uma ação da União, a Comissão terá de

argumentar com base em indicadores qualitativos e, sempre que possível,

quantitativos.255

A autonomia local também é garantida pelo Comitê das Regiões e pelo

Comitê Econômico e Social. O primeiro é composto por representantes das

autarquias regionais e locais que tenham um mandato eleitoral no nível regional ou

local ou sejam politicamente responsáveis perante uma assembléia eleita. O

segundo é formado por representantes das organizações de empregadores, de

trabalhadores e de outros atores representativos da sociedade civil, em especial

nos domínios socioeconômico, cívico, profissional e cultural. A separação entre a

esfera de atuação da União e a dos Comitês fica bem demarcada no Artigo I-31º:

Os membros do Comitê das Regiões e do Comitê Econômico e Social não devem estar vinculados a quaisquer instruções, exercendo as suas funções com total independência.

Em suma, as tradições germânica e inglesa de um espaço de independência

dos súditos em relação ao poder real estão presentes na Constituição Européia

através de instituições, como os comitês, que contribuem para estabelecer um

campo de autonomia local e para concretizar o Princípio de Subsidiariedade.

De acordo com Aristóteles, existiam três tipos de regime de governo: o

despótico (regimen despoticum), o real (regimen regale) e o constitucional

(regimen politicum). Havia assim uma demarcação clara entre os regimes em que a

majestade era atribuída ao rei (despótico e real) e aquele em que a majestade era

detida pelo povo (constitucional). No entanto, vimos que essa classificação, que

servia para definir a natureza dos Estados na Grécia, não se aplicava com perfeição

ao Estado dual da Idade Média. Por isso, autores como São Tomás de Aquino e

Egidius criaram o termo híbrido dominium regale et politicum para se referir a uma

254 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 273. 255 Ibidem.

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situação de dupla majestade, em que o poder pertencia ao mesmo tempo ao rei e

aos súditos, ainda que em áreas de atuação diferentes. O politicum constituía o

espaço separado de autonomia local. Não por acaso São Tomás de Aquino também

foi um dos primeiros formuladores da idéia de subsidiariedade, que apresenta um

paralelo com a concepção da dupla majestade e do dominium regale et politicum.

No Reino Unido, desenvolveu-se a teoria do gubernaculum-jurisdictio, semelhante à

da dupla majestade. No gubernaculum, o poder do rei era exclusivo; ao contrário,

na jurisdictio, a decisão sobre quem possui o poder não está definida de antemão e

é determinada, em última instância, pela Corte. A jurisdictio é o espaço no qual

surge a common law como uma alternativa tanto aos poderes do Rei como aos do

Parlamento.

Ao analisarmos a Constituição Européia, também percebemos uma

delimitação entre domínios nos quais a União tem competência exclusiva

(gubernaculum) e outros em que possui competência compartilhada com Estados-

Membros, regiões ou municípios (jurisdictio). No caso da competência exclusiva da

União, só esta pode adotar atos juridicamente vinculativos, o que ocorre em relação

à política monetária (apenas para os países da zona euro), à política comercial

comum, à União Aduaneira e à conservação dos recursos biológicos do mar. Não há

dúvidas sobre quem detém a autoridade nestes domínios.

Quando se trata, no entanto, de competências compartilhadas, a União é

obrigada a levar em conta o Princípio da Subsidiariedade. Nestes domínios a União

intervém

apenas quando, e na medida em que, os objetivos da ação projetada não possam ser atingidos de forma suficiente pelos Estados-Membros, tanto a nível central como a nível regional e local.256

Como na jurisdictio, a concorrência entre os níveis de governo é decidida

pela Corte de Justiça, que determina quem detém competência para aplicar uma

política.

256 Idem: 15.

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Vimos que a common law surge no espaço da jurisdictio, por oposição ao

poder do Rei e do Parlamento. Ou seja, a jurisprudência típica do modelo

evolucionista é criada pela atuação dos atores situados num espaço independente.

De forma semelhante, quando numa disputa entre níveis de governo com base no

Princípio da Subsidiariedade, a Corte de Justiça Européia decide a favor do nível

inferior, está criando uma jurisprudência a partir de uma esfera de poder

independente do poder central. A aplicação do Princípio da Subsidiariedade e a

conseqüente interferência dos níveis municipais, regionais e nacionais na produção

legislativa estimulam, portanto, a interpretação do texto constitucional como uma

Árvore Viva, em constante transformação.

Apesar dessa delimitação de competências entre a União e as demais

instâncias governamentais, a Constituição permite que a União tome iniciativas em

matérias que poderiam ser decididas pelos níveis inferiores. No Protocolo Relativo à

Aplicação dos Princípios da Subsidiariedade e da Proporcionalidade, lê-se que a

Comissão procederá a amplas consultas. Tais consultas deverão, se necessário, ter

em conta a dimensão regional e local das ações previstas. No entanto, Em caso de

urgência excepcional, a Comissão não procederá a estas consultas, fundamentando

a sua decisão na proposta que apresentar. Em outras palavras, a União respeita o

Princípio da Subsidiariedade, mas suspende-o caso haja uma situação de urgência

excepcional.

A rigidez na delimitação de competências também é atenuada por uma

Cláusula de Flexibilidade (Artigo 17º).

Se se afigurar necessária uma ação da União, (...) não prevendo esta (a Constituição) os poderes de ação requeridos para o efeito, o Conselho de Ministros tomará as disposições adequadas, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após aprovação do Parlamento Europeu.

Tanto a urgência excepcional, prevista no Protocolo sobre a Subsidiariedade,

quanto a cláusula de flexibilidade (Título III) permitem à União intervir em

domínios originalmente exclusivos dos outros níveis. Essas possibilidades de

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suspensão da delimitação entre as competências nos remete à teoria de Giorgio

Agamben, segundo a qual o vínculo entre estado de exceção e ordem jurídica é

muito mais íntimo e estreito do que se acredita:

A possibilidade de suspender a lei não é um fenômeno marginal, mas constitui efetivamente o núcleo do sistema jurídico. Toda lei contém em seu centro um vazio jurídico, toda ordem jurídica encerra nela mesma um espaço sem direito. E esse espaço sem direito é precisamente o que permite a lei de ser (sic) aplicada, de capturar nela mesma a vida.257

Uma das questões que preocupam alguns teóricos da União Européia é

justamente a aplicação do Princípio da Subsidiariedade. Este pode ser interpretado

de várias formas, para evitar a intervenção do nível superior ou, ao contrário, para

requerer a intervenção da União. A questão é saber com que freqüência a urgência

excepcional será invocada pela Comissão. Em outras palavras, quantas vezes a

exceção prevalecerá sobre a regra.

O paradigma moderno

a) O republicanismo moderno na Constituição da Europa

Na seção anterior, verificamos a presença na Constituição da Europa das tradições

grega, romana e anglo-saxã. Agora pretendemos analisar como os paradigmas

republicano e liberal modernos estão expressos nesta Carta. Pode-se argumentar

que a influência do pensamento republicano no texto constitucional da UE já foi

vista quando tratamos dos gregos. Da mesma forma, a questão dos direitos

individuais, base do constitucionalismo liberal, já teria sido devidamente explorada

quando nos referimos à tradição romana. Entretanto, os paradigmas republicano e

liberal modernos não são meras reproduções de teorias da Antigüidade. Como

veremos, eles dão novas respostas a velhas questões. A doutrina da separação de

poderes, por exemplo, é uma reformulação da do Governo Misto, porém adaptada a

uma nova realidade. Da mesma forma, a concepção de que a liberdade individual

deve ter precedência sobre o bem comum não surgiu em Roma. É tipicamente

257 AGAMBEN, G. Estado de exceção: 1.

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liberal e não romana, embora se possa detectar uma valorização do indivíduo entre

os romanos.

A doutrina da separação de poderes é mais bem compreendida quando vista

como um tipo ideal que sofreu modificações no decorrer dos séculos e ganhou

diferentes arranjos. Na doutrina pura da separação de poderes, havia uma distinção

funcional entre executivo, legislativo e judiciário. No entanto, o exemplo da

República Veneziana mostrou que a mera separação formal não era suficiente para

impedir a concentração de poder. Em Veneza, executivo, legislativo e judiciário

estavam separados, mas eram ocupados por representantes de uma mesma classe

social, o que na prática anulava a separação de poderes.

Montesquieu recorre à Teoria do Governo Misto para contornar esta

limitação da doutrina pura da separação de poderes. Para os defensores do

Governo Misto, o executivo só poderia ser ocupado por um monarca hereditário, o

Senado por aristocratas e a Câmara pelo povo. Esta regra impediria que uma

mesma classe social ocupasse mais de um órgão de governo. Em outras palavras, a

teoria de Montesquieu já é uma mescla da doutrina pura da divisão de poderes com

a teoria do Governo Misto.

Mas a doutrina pura apresentava mais um problema. Uma separação

rigorosa entre os poderes mostrou-se, com o tempo, inviável. Quanto mais

complexas as atividades de um governo, maior a necessidade de interação entre os

poderes. Diante deste problema, Montesquieu incorpora, segundo Bellamy, a teoria

do checks-and-balances à sua formulação da separação de poderes. Cada órgão

pode ter uma ingerência parcial sobre o outro. Na realidade, há controvérsia entre

os autores sobre se já existe, ainda que de forma incipiente, uma teoria do checks-

and-balances em Montesquieu.

De acordo com Vile, Montesquieu ainda apresenta uma abordagem negativa

da teoria do checks-and-balances, em que os poderes não controlam um ao outro

diretamente. Na versão mais elaborada do checks-and-balances, cada órgão do

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governo envolve-se com as três atividades – executiva, legislativa e judiciária – em

maior ou menor grau. Assim, o executivo pode legislar através de medidas

provisórias e o judiciário por meio da revisão judicial.258 O legislativo, por sua vez,

poderia exercer em alguns momentos a função investigativa, típica do poder

judiciário.

Em suma, a doutrina pura da separação de poderes deve ser considerada

apenas como um tipo ideal. Na prática, ela se apresentou combinada com tradições

– Governo Misto e checks-and-balances - que a tornaram mais eficaz. A União

Européia é hoje um espaço de experimentação de um novo arranjo para a doutrina

da separação de poderes. Não existe uma correspondência exata entre os órgãos

governamentais analisados por Montesquieu – executivo, legislativo (Câmara e

Senado) e judiciário – e as cinco instituições da União Européia: Parlamento

Europeu, Conselho Europeu, Conselho de Ministros, Comissão Européia e Tribunal

Constitucional.

O Parlamento é eleito por sufrágio universal pelos cidadãos europeus e a

representação é degressivamente proporcional, sendo fixado um limiar mínimo de

quatro deputados por Estado-membro (Artigo 19º). O Conselho de Ministros é

composto por um representante nomeado por cada Estado-membro, a nível

ministerial, para cada uma das suas formações. Esses dois órgãos dividem entre si

as funções legislativa e orçamental, além de funções de controle político e

consultivas.

Já o Conselho Europeu é composto pelos Chefes de Estado ou de Governo

dos Estados-membros, pelo seu Presidente e pelo Presidente da Comissão. O

Ministro das Relações Exteriores da União também participa das reuniões. Embora

não exerça função legislativa, o Conselho Europeu possui poder de agenda,

258 Concordamos com Vile sobre o pouco desenvolvimento da teoria do checks-and-balances em Montesquieu. Para o autor do Espírito das Leis, o judiciário não devia legislar, mas apenas aplicar a lei, sem interpretá-la. No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei. MONTESQUIEU. O Espírito das Leis: 87.

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determinando o que deve ser tratado prioritariamente pela União. Qualquer decisão

sobre os rumos da UE começam e terminam nos Conselhos Europeus. Muitas

propostas lançadas nessas reuniões se transformam em temas de debate na União

e, eventualmente, são incluídas nos Tratados de aprofundamento ou ampliação.

Estes, por sua vez, são assinados em reuniões do Conselho Europeu.

Num primeiro momento, poderíamos tentar associar o Parlamento a uma

Câmara Baixa, formada por representação proporcional, e o Conselho de Ministros

e o Conselho Europeu a Câmaras Territoriais ou Senados, em que cada Estado,

pequeno ou grande, teria direito a um assento.

Uma análise mais fina, no entanto, revelaria que o Parlamento ainda não

exerce uma função tipicamente legislativa. Os poderes legislativos nacionais

geralmente possuem três atribuições: 1) poder de deliberação sobre o orçamento

público, 2) controle sobre o executivo e 3) poder legislativo. Em relação ao primeiro

item, o Parlamento Europeu divide com o Conselho o poder sobre o orçamento:

O Parlamento Europeu exerce, juntamente com o Conselho de Ministros, a função legislativa e a função orçamental, bem como funções de controle político e funções consultivas, de acordo com as condições estabelecidas na Constituição.259

No entanto, ele só tem a última palavra em relação às despesas não

obrigatórias. As despesas obrigatórias, que são a maioria, dependem da aprovação

do Conselho. Ainda, alegase que a execução orçamentária depende da assinatura

do Presidente do Parlamento, o que na verdade daria a este último a palavra final.

Caso não concorde com o orçamento, o Parlamento poderia rejeitá-lo globalmente e

reiniciar o processo de deliberação orçamentária. Mas, na prática, tal atitude levaria

ao atraso da aprovação orçamentária e acarretaria um alto custo político para o

Parlamento. De acordo com Tostes, esse sistema de tomada de decisão faz com

que, na prática, o poder orçamentário do Parlamento seja menor do que o do

Conselho.260

259 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ Ref.: Artigo 19º. 260 TOSTES, A. P. União Européia: o poder político do direito: 206.

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A segunda atribuição do Parlamento relaciona-se diretamente com o sistema

de checks-and-balances. Compete-lhe (...) eleger o Presidente da Comissão

Européia,261 o órgão executivo da União Européia, e aprovar uma moção de

censura à Comissão, o que obriga todos os Comissários Europeus a pedirem

demissão coletivamente. É verdade que a demissão da Comissão só produz efeito

após a formação da nova Comissão pelo Conselho Europeu. No entanto, o Conselho

não pode reconduzir a Comissão objeto da moção de censura no seu todo ou em

parte e nem pode adiar indefinidamente a indicação de uma nova Comissão. Ou

seja, esta prerrogativa do Parlamento traduz-se num efetivo checks-and-balances.

O controle do Parlamento sobre a Comissão é ainda mais eficiente quando se

trata da divulgação de relatórios, os quais acabam por influenciar a opinião pública.

Em suma, em vez de um sistema de accountability horizontal entre Parlamento e

Comissão, tem-se um controle triangular entre Parlamento, opinião pública e

Comissão, que também poderia ser definido como uma forma de accountability

vertical desencadeada pelo Parlamento.

O papel do Parlamento evoluiu progressivamente de uma participação

exclusivamente consultiva para um papel de co-decisão, junto com o Conselho de

Ministros. Mas o poder de co-decisão, instituído por Maastricht, não foi suficiente

para equiparar o Parlamento Europeu - PE aos parlamentos nacionais. Em primeiro

lugar, o PE não tem poder de iniciativa legislativa, uma prerrogativa da Comissão.

Também não pode impor emendas. Sua única interferência no processo legislativo

limita-se ao direito de rejeitar globalmente um ato do Conselho e, assim, paralisar

o processo decisório.

Segundo Pizarro, a Constituição estende os poderes legislativos do

Parlamento à maioria dos domínios em que o Parlamento ainda não se encontrava

em pé de igualdade com o Conselho, ou seja, a co-decisão passa a valer também

para as políticas agrícola, de investigação e de desenvolvimento regional e social da

261 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ Ref.: 21.

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União (Fundos Estruturais). No entanto, esta modificação introduzida pela

Constituição não altera significativamente a relação de poder entre o Parlamento e

o Conselho de Ministros. Ao aumentar o número de matérias que podem ser

decididas por co-decisão, a Carta apenas estende o poder de veto do Parlamento a

um maior número de matérias. Mas não há uma modificação na essência do

processo de co-decisão. O PE continua a decidir negativamente sobre a legislação,

através do poder de veto a um ato do Conselho. A iniciativa de proposta legislativa

permanece uma prerrogativa da Comissão. Em suma, o Parlamento Europeu não

tem o poder constituinte típico do modelo constitucional democrático-radical (ver

capítulo 1: A idéia de uma constituição democrática: introdução ao problema e

capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado). Não tem poder para revisar a

Carta nem para iniciar proposta legislativa.

Em outros termos, o Parlamento ainda não possui a terceira atribuição

enumerada acima. Não exerce um poder legislativo equivalente ao de um corpo

legislativo nacional e, portanto, neste aspecto não corresponde à Câmara Baixa do

sistema de Montesquieu. No entanto, pode-se dizer que o Parlamento possui a

segunda atribuição dos corpos legislativos anteriormente apontada, qual seja, o

controle sobre o executivo. Ele participa de um mecanismo de checks-and-balances

na estrutura da União Européia.

A adoção desse sistema nos Estados Unidos baseava-se na constatação de

que quanto mais complexas as atividades do governo, mais inter-relacionados se

tornam os ramos. Em uma entidade com uma estrutura sui generis e complexa

como é o caso da UE, o checks-andbalances torna-se ainda mais necessário. Além

do controle sobre a Comissão - direito de aprovar uma moção de censura e

produzir relatórios sobre o trabalho do órgão executivo da UE - o Parlamento

Europeu pode exercer funções tipicamente judiciárias. A pedido de um quarto dos

membros que o compõem, o Parlamento pode

constituir uma comissão de inquérito temporária para analisar, sem prejuízo das atribuições conferidas pela Constituição a outras

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instituições ou órgãos, as alegações de infração ou de má administração na aplicação do direito da União. (Artigo III-235º)

Da mesma forma, o Conselho de Ministros e o Conselho Europeu poderiam

num primeiro momento ser equiparados a um Senado, já que nesta instituição cada

Estado-membro tem direito a um assento. Quando se analisa, no entanto, o

processo de tomada de decisão naquelas instituições da UE, percebe-se que os

Conselhos não correspondem a uma Câmara Territorial. Numa federação clássica,

como a americana, há igualdade entre os Estados representados no Senado. Tanto

no Conselho de Ministros quanto no Conselho Europeu, ao contrário, o princípio da

igualdade dos Estados é eliminado, aproximando a União Européia de uma

federação como a alemã, em que cada Estado-membro tem um peso diferente

dentro do Conselho. Esta diferença na ponderação dos votos baseia-se, em parte,

na composição da importância econômica e demográfica de cada país.

O uso do critério econômico e demográfico de cada país para a ponderação

de votos nos dois Conselhos parece parcialmente inspirado no republicanismo de

Harrington (ver capítulo 1: A constituição entre os modernos), para quem uma

mudança na base material da sociedade deveria levar a uma alteração da estrutura

política. Em outras palavras, a realidade social influencia uma instituição política

como a separação de poderes. É certo que Harrington se referia à distribuição de

poder político entre as classes sociais. Já no Conselho de Ministros e no Conselho

Europeu, trata-se de determinar a distribuição de poder entre Estados. Em que

pese essa diferença, a ponderação de votos na União Européia parece basear-se

nos mesmos critérios materialistas usados por Harrington. Os países pequenos,

menos desenvolvidos e com pouca população possuem menos votos, enquanto os

países grandes, mais desenvolvidos e populosos, têm direito a mais votos.

Com a entrada de três países em 1995 (Suécia, Finlândia e Áustria) e dez

novos membros em 2004, haveria uma inevitável redistribuição de poder nos

Conselhos. Caso o critério da importância econômico-demográfica fosse aplicado de

forma rigorosa, a Alemanha seria beneficiada. Mas, como dependeu dos países

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mais ricos, a ponderação de votos não foi calculada com base no critério

econômico-demográfico, pois este funcionaria como uma faca de dois gumes. Por

um lado, iria conferir mais poderes à França, ao Reino Unido e à Itália em relação

aos países pequenos. Por outro, tornaria a Alemanha mais poderosa do que aqueles

três países. Dito de outra forma, a realidade econômica não determinou a

redistribuição de poder nas instituições políticas da União Européia. Se assim fosse,

a Alemanha – com maior população e poder econômico após a reunificação – teria

automaticamente maior peso na UE, o que não é o caso. Concluímos que há um

sistema duplo. A determinação econômicodemográfica vale em alguns casos –

como para os países pequenos e médios - e não em outros – como acontece com a

Alemanha.

O Conselho de Ministros e o Conselho Europeu contêm ao mesmo tempo o

princípio da representação dos países e o da representação da população, quando o

comum, pelo menos em federações, é a separação desses dois princípios em órgãos

diferentes. Um sistema bicameral desenvolvido apresenta uma separação clara

entre a representação dos países, na Câmara Alta, e a representação da população,

na Câmara Baixa. Até aqui, chegamos a duas conclusões. Em primeiro lugar, o

Conselho de Ministros e o Conselho Europeu não podem ser comparados a Senados

porque cada um deles é uma mistura de Câmara Alta e Baixa. Em segundo lugar, a

configuração do Conselho de Ministros e do Conselho Europeu tal como colocada na

Constituição Européia – uma mistura de Câmara e Senado – afasta a União

Européia de um modelo clássico de Federação262 e a aproxima do modelo de

Federação alemã.

Para se aproximar de uma Federação como a americana, as instituições

comunitárias teriam de ser reformadas. A Comissão deveria se converter numa

espécie de governo, o Parlamento numa Câmara legislativa plena, representando a

população da UE, e o Conselho Europeu num Senado, representando os países. O

262 Este tema será mais explorado na próxima seção (O paradigma moderno), que analisa os elementos federativos da União Européia.

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Conselho seguiria o princípio igualitário um país, um voto, adotado, por exemplo,

nos Estados Unidos e no Brasil em relação às unidades da federação. No entanto,

se mantiver o modelo do Senado alemão (Bundesrat) nos Conselhos, em que há

uma diferenciação na ponderação dos votos dos Estados-membros, a União

Européia permanecerá mais próxima da Federação alemã.

Em maio de 2000, o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Joschka

Fischer, defendeu um sistema bicameral para a União Européia que a aproximava

de uma Federação de Estados-nações.263 Mesmo assim, a proposta de Fischer não

transformaria a União Européia numa federação do tipo americano. Numa

Federação de Estados-nações, os Estados seriam mais soberanos do que as

unidades de uma federação clássica. O elemento intergovernamental da negociação

entre os antigos Estados-nações permaneceria forte. De acordo com o modelo de

Fischer, uma espécie de Câmara de Nações (equivalente a um Senado) teria mais

poderes do que o Senado americano, e a Comissão Européia, menos poderes do

que a Casa Branca. Em suma, haveria um equilíbrio maior entre supranacionalidade

(Comissão) e intergovernamentalidade (Senado), ao contrário do modelo

americano de federalismo centralizado, em que o executivo exerce mais poderes do

que a Câmara Territorial.

Na União Européia, temos um Parlamento cujas competências não

correspondem exatamente à dos seus congêneres nacionais e duas instituições –

Conselho de Ministros e Conselho Europeu – formadas por representantes dos

Estados nacionais, mas que não podem ser comparadas a um Senado como o

americano.264 Em conseqüência, o checks-and-balances entre as instituições terá

características inéditas.

263 Os alemães vêem com bons olhos a idéia de uma Europa federalista porque entendem por Federação o seu próprio modelo, em que os Länders têm considerável autonomia em relação ao Governo central. 264 Como vimos, os Conselhos têm estrutura semelhante ao Senado alemão.

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A própria composição do Conselho Europeu, por exemplo, mostra um

desenho institucional inovador. Além dos Chefes de Estado e de Governo dos

Estados-membros, também participam o Presidente do próprio Conselho de

Ministros, o Presidente da Comissão e o Ministro das Relações Exteriores da União,

assistidos pelos ministros das Relações Exteriores dos países-membros. Como

pregava a doutrina da separação de poderes de Montesquieu, absorvendo um

ensinamento fundamental da teoria do Governo Misto, uma mesma pessoa não

poderia ocupar cargos em dois órgãos distintos. Na União Européia, ao contrário, o

presidente da Comissão européia participa de duas instituições: Comissão (Artigo

25º) e Conselho Europeu (Artigo 20º). Podemos afirmar, portanto, que a

Constituição Européia apresenta uma configuração sui generis, que se distancia do

modelo da divisão de poderes elaborado por Montesquieu.

Da mesma forma, o Ministro das Relações Exteriores participa de três

instituições da União Européia: Conselho Europeu (Artigo 20º), Conselho das

Relações Exteriores, que é uma das formações do Conselho de Ministros (Artigo

23º) e Comissão (Artigo 25º). A presença do Presidente da Comissão e do Ministro

das Relações Exteriores em vários órgãos da União Européia visa a criar vínculos

entre as instituições para facilitar seu funcionamento e torná-lo mais eficaz. A UE,

portanto, está distante da doutrina pura da divisão de poderes, que pregava a

separação absoluta entre os órgãos do governo e até mesmo de um mecanismo de

freios e contrapesos de abordagem negativista, como em Montesquieu. A versão da

União Européia para o sistema de checks-and-balances é positiva, ou seja, há uma

interferência direta de um poder sobre o outro. Não apenas os órgãos exercem

funções de outros – como quando o Parlamento instala uma comissão de inquérito

– como têm seus representantes – Presidente da Comissão e Ministro das Relações

Exteriores – aceitos nas reuniões de outros órgãos.

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O Tribunal Constitucional, por sua vez, garante o respeito pela lei na

interpretação e aplicação da Constituição.265 Possui, portanto, o poder de

determinar se uma lei nacional condiz ou não com a lei comunitária, que tem

primazia sobre aquela em algumas políticas e em alguns países. Além de garantir a

Constituição, o Tribunal legisla. Ao longo do processo de integração, muitas leis

comunitárias foram criadas pela jurisprudência proferida pelo Tribunal de Justiça

Europeu, o que significa que, na prática, o Parlamento e o Conselho de Ministro não

são os únicos órgãos legislativos da União. O Tribunal, portanto, se afasta da

doutrina da divisão de poderes de Montesquieu e se aproxima da teoria do checks-

and-balances. Na concepção de Montesquieu, o judiciário não poderia ser nada

mais do que a boca da lei, um mero veículo para a expressão da letra da lei. Na

União Européia, a Corte de Justiça assume funções legislativas.

b) O liberalismo na Constituição da Europa

Observamos que o paradigma liberal estabelecido no século XVIII (1º, 2º e 3º

parágrafos do capítulo 1: O paradigma liberal) recebeu a influência do direito

romano e da common law inglesa. Na tradição romana, o direito natural era

anterior e exterior ao governo. Da mesma forma, a common law antecedia o

governo, mas devido a seu caráter imemorial. Além da precedência temporal, a

common law ocupava um espaço exterior ao governo, a jurisdictio. Em ambos os

casos, a exterioridade significava oposição ao poder governamental. Um indivíduo

romano podia contestar uma decisão do governo com base em seu direito natural.

De forma semelhante, um inglês alegava a superioridade dos costumes em relação

às decisões governamentais. Inspirado por essas tradições, o liberalismo também

apresentará, pelo menos teoricamente,266 ,57

uma desconfiança em relação ao

Estado.

265 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 28. 266 Em Após o liberalismo, Immanuel Wallerstein destaca que sempre houve uma hostilidade teórica do liberalismo com relação ao Estado. Na prática, porém, o liberalismo contribuiu para o aumento efetivo do poder e da eficiência do Estado nas decisões. WALLERSTEIN, I. Após o liberalismo: 107.

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Embora influenciado pelo direito romano e pela common law, o paradigma

constitucional liberal possui sua própria especificidade. Ele é formado por uma

amálgama entre aquelas tradições e os ideais iluministas do século XVIII.

Diferentemente da common law, por exemplo, que se baseava na superioridade do

costume, o liberalismo sempre acreditou que a reflexão filosófica e a racionalidade

poderiam fornecer as melhores respostas para os problemas políticos e sociais.

Para um liberal, as decisões deveriam ser pautadas pela razão e não pela tradição.

Em outras palavras, é possível perceber uma continuidade entre a common law e o

liberalismo quando se considera o quesito oposição ao governo. Contudo, estas

tradições diferem entre si quanto à forma da contestação: a common law o faz

através do costume, enquanto o liberalismo recorre à razão.

Mostramos na seção anterior (ver 4.2) como a tradição do direito natural,

formulada primeiramente pelos estóicos e adotada pelos romanos, está presente

em alguns artigos da Constituição Européia, sobretudo naqueles inseridos na Carta

dos Direitos Humanos (Parte II da Carta Européia). Podemos dizer, com igual

pertinência, que o paradigma liberal, por absorver a tradição do direito natural,

também está presente naqueles artigos.

De acordo com Wallerstein, o projeto liberal de defesa dos direitos humanos

e incorporação das classes trabalhadoras acabou sendo implementado, no final do

século XIX e início do XX, por conservadores e socialistas. Foram esses grupos os

responsáveis pela implementação do sufrágio universal e dos direitos sociais. Na

definição de Wallerstein, o liberalismo favoreceu a construção do chamado modelo

social europeu ou Estado de bem-estar social. Dito de outro modo, na prática, o

liberalismo fortaleceu o papel do Estado como garantidor de direitos.

Teóricos e partidos de esquerda de toda a Europa vêm chamando a atenção

para o fato de que os artigos de conteúdo liberal da Constituição Européia poderiam

se tornar uma ameaça para as conquistas sociais dos últimos 200 anos. No

entanto, se adotarmos o conceito de liberalismo de Wallerstein, seremos levados à

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conclusão oposta: são precisamente aqueles artigos que garantem a manutenção

do modelo social europeu.

A ameaça ao Estado de bem-estar social na Europa provém, na verdade, de

artigos que poderiam ser considerados como neoliberais, por priorizarem a

liberalização do mercado em detrimento da defesa dos direitos individuais e sociais

da Carta dos Direitos Fundamentais. A subseção três da Parte III da Constituição

Européia, que trata da liberalização do mercado de serviços na Europa, é um dos

pontos neoliberais do texto constitucional. Para os críticos da Constituição, aquele

artigo contribuiria para legitimar uma diretriz como a Bolkestein, destinada a

desregulamentar o serviço público europeu.267

Em suma, o modelo da Constituição Européia não é uno e isento de

contradições. Por um lado, ela contém artigos liberais (liberal entendido aqui na

definição dada por Wallerstein), que garantem a continuidade do modelo social

europeu. Por outro, traz artigos neoliberais (como o da subseção três da Parte III),

que teriam o potencial para desmontar o Estado de bem-estar social na Europa.

Existem ainda características específicas do liberalismo político e econômico

que vão além da defesa do direito natural. Os liberais acreditavam que:

o progresso, embora inevitável, não seria alcançado sem algum empenho humano, sem um programa político. A ideologia liberal era, portanto, a convicção de que para a história seguir seu curso natural era preciso engajar-se num reformismo consciente, contínuo e inteligente.268

Desde o seu início na década de 50, o projeto de construção de uma União

Européia sempre se pautou pela crença liberal de que as instituições poderiam

promover mudanças na sociedade. De acordo com Haltern, o projeto da União

267 A Diretiva foi aprovada pela Comissão em janeiro de 2004 e derrubada em março de 2005. A França exigiu a revogação da Diretiva Bolkestein para tentar, em vão, afastar o risco de uma rejeição dos franceses à Constituição Européia no referendo de 29 de maio de 2005. 268 WALLERSTEIN, I. Após o liberalismo: 85.

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Européia nasceu do espírito da racionalidade e do Iluminismo.269 A integração foi

concebida como um projeto guiado pela racionalidade iluminista.

É verdade que esta orientação inicial foi rapidamente contestada pela teoria

funcionalista de Mitrany, segundo a qual o processo de integração prescindiria de

um plano elaborado por um agente racional. A interdependência num setor

intensivo em conhecimento técnico se estenderia, com o tempo, aos setores não

exclusivamente técnicos, numa dinâmica denominada spill-over (respingo). No

entanto, a teoria de Mitrany também foi rapidamente desacreditada, porque o

respingo não ocorreu em todas as áreas.

A não confirmação empírica da teoria funcionalista possibilitou o surgimento

do neofuncionalismo de Haas.270 Para este teórico, o processo de integração não se

daria de forma autônoma, sem interferência de agentes racionais. Ao contrário, a

integração dependeria da racionalidade e do egoísmo das elites. A teoria de Haas,

portanto, representou um retorno à concepção iluminista e liberal de que a

racionalidade deveria conduzir o processo.

Num primeiro momento, somos levados a considerar que, quanto mais as

decisões forem tomadas no nível supranacional, maior será a interferência da

racionalidade da elite burocrática de Bruxelas no processo de integração européia.

Inversamente, quanto mais o Princípio da Subsidiariedade for reivindicado pelos

níveis inferiores, menor será a intervenção da elite européia, e conseqüentemente

da racionalidade a ela inerente, sobre a União.

Entretanto, não podemos nos esquecer de que a racionalidade preside o

funcionamento do Princípio da Subsidiariedade. A decisão será tomada pelo nível

que puder agir de forma mais eficaz. Mas o que determina o grau de eficácia senão

a racionalidade? Se a racionalidade é parte intrínseca do Princípio da

269 HALTERN, U. Pathos and Patina: The Failure and Promise of Constitutionalism in the European Imagination: 13. 270 HAAS, E. The obsolescence of regional integration theory.

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Subsidiariedade, então ela não é uma exclusividade da elite européia. Mesmo

quando um nível inferior reivindica o Princípio da Subsidiariedade, ele o faz a partir

de argumentos racionais. Em conclusão, a racionalidade iluminista e liberal que

Haltern via como a característica básica do projeto de integração não está restrita à

ação do agente elite européia, como acreditava o neofucionalista Haas. Ela se

estende às próprias regras de funcionamento do Princípio da Subsidiariedade. Dito

de outra forma, a estrutura da instituição da subsidiariedade induz os atores

sociais, quaisquer que eles sejam, a agirem de forma racional para alcançarem

seus objetivos.

A racionalidade liberal iluminista também é responsável pela concepção de

Constituição como lei fundamental (Grundnorm), que vimos estar presente na

Constituição Européia (ver capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado). Assim

como o indivíduo concebido pelo liberalismo possuía uma natureza una e imutável,

a Constituição Liberal era universal e imune à passagem do tempo. Em outros

termos, trata-se de uma Constituição que se pretende universal e que garante

direitos individuais universais.

A União Européia enfrenta atualmente o desafio de colocar em prática o

lema unidade na diversidade. A Constituição Européia visa a garantir direitos

universais aos 25 Estados-membros e, ao mesmo tempo, respeitar as diferenças

culturais desses países. Ao assegurar direitos inalienáveis a todos os cidadãos

europeus, a Constituição Liberal (ou Grundnorm) satisfaz o primeiro termo da

proposta, a unidade.

Por outro lado, a Grundnorm não lida bem com a diversidade. É o tipo

evolucionista de Constituição que permitirá a cada Estado, região ou localidade

interpretar a Constituição de acordo com seus valores. Em suma, a máxima

unidade na diversidade só pode ser satisfeita com a coexistência de dois modelos

constitucionais na Carta Européia: o da Grundnorm e o evolucionista Árvore Viva.

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Como salientado anteriormente (ver capítulo 4: As tradições grega, romana

e anglo-saxã na Constituição européia), o Princípio de Subsidiariedade teria um

papel crucial na afirmação da diversidade dos Estados, regiões e comunidades

locais. A interferência desses níveis na política da União Européia garantiria a

interpretação do texto constitucional como uma Árvore Viva. No entanto, também

constatamos que o Princípio de Subsidiariedade funciona de acordo com uma lógica

racional liberal. Um determinado nível teria de provar, com argumentos racionais,

ser o mais apto para desempenhar uma tarefa com eficácia. Temos aqui, portanto,

uma contradição. Embora o Princípio de Subsidiariedade possa ser um instrumento

para a afirmação da diversidade, ele funciona segundo o princípio racional da

eficácia. Concluímos, portanto, que só a diversidade escorada por argumentos

racionais terá alguma chance de ser aceita na disputa entre os vários níveis de

governo na União Européia.

Uma Europa federalista ou confederalista?

A entidade política que está surgindo hoje na Europa ainda não tem uma

forma definida e nem definitiva. Não se sabe se ela é uma federação, uma

confederação ou uma nova forma, talvez uma forma de neomedievalismo (com

várias ordens jurídicas não hierárquicas). Seja qual for o formato exato que a União

Européia venha a adquirir, no entanto, a maioria dos autores concorda que a UE

representa, neste momento, uma experiência em tudo distinta do Sistema da

Westfália.271 Gradativamente, através dos diversos Tratados, os Estados-membros

vêm abrindo mão, voluntariamente, de partes de sua soberania nacional em prol da

integração do Continente (capítulo 3). De certa forma, a União Européia também

pode ser vista como a realização de um passo no sentido da concretização do

projeto de Paz Perpétua de Kant. Após a destruição sofrida em conseqüência das

duas guerras mundiais, na primeira metade do século XX, os europeus teriam

271 O Sistema de Estados, criado em 1648 pelo Tratado da Westfália, também recebe o nome de Sistema da Westfália (ver capítulo 2: Elementos republicanos e liberais no federalismo).

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entendido, finalmente, que só alguma forma de integração entre os seus Estados e

os seus povos poderá eliminar de uma vez por todas a hipótese da guerra como

forma de solução de suas diferenças.

Nesta seção, vamos nos limitar a apontar e discutir alguns artigos de

conteúdo federalista presentes na Constituição Européia. Contudo, seria precipitado

afirmar, com base nos pontos analisados, que a Carta Européia imprime uma

inflexão federalista ao processo de integração. Ao mesmo tempo, não poderíamos

deixar de reconhecer que a idéia de uma federação européia, objeto de discussões

na Europa muito antes da criação da Comunidade Européia, subsiste no texto

constitucional aprovado em junho de 2004.

Como vimos em Confederalismo (capítulo 2), Stepan distingue duas

motivações para o surgimento de federações: a necessidade de unir (come

together), como ocorreu com os Estados Unidos, e a necessidade de manter uma

união (hold together). O segundo tipo de federação facilita, segundo Stepan, a

solução de conflitos em sociedades multinacionais, como mostram os exemplos da

Espanha,272 Bélgica e Índia, porque dá às unidades da federação mais autonomia

do que teriam numa federação centralizada como a americana.

Aqui encontramos dificuldade para identificar a configuração da União

Européia com qualquer destes modelos. A Comunidade Européia e, posteriormente,

a União Européia surge da necessidade de unir e nisto se identifica com a

Federação come together dos Estados Unidos. No entanto, a União resultante é

muito diferente da federação centralizada americana.

272 Como veremos logo adiante, essa afirmação de Stepan deve ser relativizada. Nem sempre a federação do tipo manter a união (hold together) facilita a solução de conflitos. São justamente as regiões espanholas com maior grau de autonomia – País Basco e Catalunha – que se sentem mais tolhidas pelo Governo Espanhol. Talvez tenhamos aqui uma confirmação da tese de Alexis de Tocqueville de que a revolução ocorre quando há uma leve melhoria das condições de vida, que não corresponde, no entanto, às expectativas populares. (...) O mal que se tolerava pacientemente como inevitável afigura-se insuportável a partir do momento em que surja a idéia de se lhe subtrair. TOCQUEVILLE apud PASQUINO, G. Revolução: 1124.

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Com o segundo modelo, o da Federação hold together, ocorre o oposto. A

União Européia não surge para manter uma união preexistente e neste ponto se

afasta do modelo hold together. Por outro lado, o desenho institucional da União

Européia se assemelha ao de uma Federação hold together, um tipo de federalismo

mais adequado a uma sociedade multicultural como a da Europa, formada por

Estados-nacionais e não por unidades da federação. Ao contrário dos Estados

confederados americanos, que se transformaram em Estados unidades da

federação quando decidiram pela Federação americana, os Estados-nações

europeus não se tornaram unidades da federação, mas continuaram a existir como

Estados – ainda que não tão soberanos.

O preâmbulo da Constituição, no entanto, parece ambíguo. Afirma-se que os

povos da Europa,

continuando embora orgulhosos da sua identidade e da sua história nacional, estão decididos a ultrapassar as antigas discórdias e, unidos por laços cada vez mais estreitos, a forjar o seu destino comum.273

Ao longo do processo de integração, a expressão laços cada vez mais

estreitos sempre foi rechaçada pelos antifederalistas, que a associavam à perda de

soberania nacional.274 De fato, laços cada vez mais estreitos poderia significar uma

federação centralizada ou uma Federação no estilo come together.

Entretanto, o texto também faz referência à identidade e à história nacional

e, no parágrafo seguinte, afirma tratar-se de uma união na diversidade.

Acreditamos que o respeito à diversidade nacional atenua qualquer eventual

tendência centralizadora. Em outras palavras, o 4º parágrafo do preâmbulo contém

algo de federalismo, mas de um federalismo descentralizado. O reconhecimento da

diversidade das culturas e dos povos poderia resultar em um outro desenho

273 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 5, 4º parágrafo. 274 Diferentemente dos antifederalistas, Jacques Delors não aceitava a tese da perda de soberania. Na sua opinião, a integração significava um compartilhamento de soberania. Esta não era transferida ou reduzida, mas se ampliava, com cada país passando a ter responsabilidades sobre as decisões de todos os demais.

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institucional, mais próximo da federação hold together. A ambigüidade do

preâmbulo só pode ser resolvida pela análise das outras partes da Constituição.

O federalismo, como vimos, pretende estabelecer um equilíbrio entre a

unidade da comunidade política e a independência de suas partes (ver capítulo 2: A

expansão do princípio federalista). Assim como o preâmbulo, o Artigo I-5º contém

esta tensão entre a unidade do todo e a autonomia das partes. Por um lado,

Os Estados-membros facilitam à União o cumprimento de sua missão e abstêm-se de qualquer medida suscetível de pôr em risco a realização dos objetivos enunciados na Constituição (Artigo I-5º).

Ou seja, conferem poder à União. Por outro,

A União respeita a identidade nacional dos Estados-membros, (...), incluindo no que se refere à autonomia local e regional (Artigo I-5º).

Na realidade, este artigo antecipa o tratamento que será dado ao Princípio

da Subsidiariedade mais à frente, no Artigo III-9º-3. e no Protocolo Relativo à

Aplicação dos Princípios da Subsidiariedade e da Proporcionalidade. Em suma, o

Artigo I-5º tem um conteúdo federalista, pois tenta conciliar reivindicações de

autonomia - nacionais, regionais ou locais - com o interesse comunitário.

Já o Artigo I-6º também parece conferir à União Européia um viés

federalista centralizador ao lhe atribuir personalidade jurídica. Até então, a União

Européia não tinha uma personalidade jurídica explícita. Ao se tornar sujeito de

direito internacional, a União Européia está tecnicamente apta a representar a

Europa, assinar tratados, participar de organizações internacionais e demandar e

ser demandada juridicamente. A atribuição de personalidade jurídica à União

Européia por si só já representa uma mudança de paradigmas em relação à ordem

instituída na Europa pelos Tratados da Westfália, já que neste sistema apenas os

Estados europeus eram sujeitos de direito internacional.

Discutiu-se o risco de este artigo transformar a União Européia num super-

Estado, com poderes para negociar acordos sem ter de se reportar aos Estados-

membros. Analisado isoladamente, o Artigo 6º de fato aproxima a UE de uma

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federação centralizada, assim como a expressão laços cada vez mais estreitos.

Contudo, esses elementos não devem ser vistos isoladamente, mas lado a lado com

os artigos que garantem autonomia aos Estados e regiões.

Além disso, a personalidade jurídica da União Européia, mesmo considerada

isoladamente, não seria suficiente para classificar a UE como uma federação

centralizada porque não vale para todas as áreas. O texto aprovado em junho de

2004 eliminou o Artigo III-214º, que permitia uma cooperação mais estreita em

matéria de defesa mútua. Ou seja, a política de segurança e defesa continua a ser

decidida pelos Estados-membros. Mesmo possuindo personalidade jurídica, a UE

não determina unilateralmente, à revelia dos Estados-membros, a política de

segurança e defesa.

A repartição de competências é outra característica do federalismo e está

presente no Título III da Parte I da Constituição Européia. O Artigo 12º enumera as

áreas em que a União detém competência exclusiva:

regras necessárias ao funcionamento do mercado interno, política monetária, comercial comum, União Aduaneira e conservação dos recursos biológicos do mar.

A União também tem competência para promover e assegurar a

coordenação das políticas econômicas e de emprego dos Estados-membros (Artigo

11º-3.) e definir e implementar uma política externa e de segurança comum (Artigo

11º-40).275 Nos assuntos relacionados ao mercado interno, espaço de liberdade,

segurança e justiça, agricultura e pescas, transportes e redes transeuropeias,

energia, política social, coesão econômica, social e territorial, ambiente, defesa dos

consumidores e problemas comuns de segurança em matéria de saúde pública, a

União compartilha competências com os Estados-membros (Artigo 13º).

275 O fato de estes assuntos não terem sido incluídos no Artigo 12º, que trata das competências exclusivas da União, é sintomático. Em nossa opinião, isto ocorre porque a Política Externa e de Segurança da União ainda é definida de forma intergovernamental (ver capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado) e, portanto, não é uma competência exclusiva da União.

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Aparentemente as jurisdições estão bem demarcadas. Contudo, o Artigo I-

11º-2. permite que, mesmo nas matérias de domínio exclusivo da União, esta

habilite os Estados-membros a adotarem atos juridicamente vinculativos. Ou seja,

há alguma flexibilidade na distribuição de competências. Os Estados-membros

adotam atos juridicamente vinculativos em áreas a princípio sob a jurisdição da

União.

O contrário também ocorre, isto é, a União tem o direito de agir em

domínios originalmente sob a competência dos Estados e regiões, quando estes

autorizarem. De acordo com o Artigo 16º, a União pode desenvolver ações de

apoio, de coordenação ou de complemento nas áreas da indústria, proteção da

saúde humana, educação, formação profissional, juventude, esporte, cultura e

proteção civil.

Essa flexibilidade na distribuição de competência aparece de forma explícita

no Artigo 17º, que introduz uma Cláusula de Flexibilidade:

Se se afigurar necessária uma ação da União, (...) não prevendo esta (a Constituição) os poderes de ação requeridos para o efeito, o Conselho de Ministros tomará as disposições adequadas, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após aprovação do Parlamento Europeu.

Ou seja, a União intervém em domínios originalmente exclusivos dos outros

níveis. Quando os interesses da União estiverem em jogo, estes prevalecem em

detrimento dos interesses dos Estados-membros.

Em uma federação, segundo Stepan, há uma delimitação clara de

competências. Já nas federações democráticas, os limites entre as jurisdições do

governo central e as das unidades da federação estão em permanente fluxo. Aqui é

importante não confundir delimitação clara com rigidez. O fluxo permanente pode

ocorrer dentro de uma moldura em que as competências estão delimitadas com

clareza. A Constituição Européia, por apresentar flexibilidade na distribuição de

competências - como vimos com o Artigo I-11º-2 e a cláusula de flexibilidade -,

pode ser classificada como uma federação democrática.

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Contudo, há um elemento não democrático mesmo nas federações

democráticas. Em caso de conflito entre duas jurisdições, a decisão fica a cargo dos

tribunais, cujos integrantes não são eleitos pela população. Ou seja, há restrição do

poder do demos. Na União Européia, quem decide em última instância sobre

conflitos entre jurisdições é o Tribunal Constitucional.

A flexibilização na distribuição de competências ocorre devido à incorporação

do Princípio da Subsidiariedade no texto da Constituição. Ou, dito de outra forma, é

o Princípio da Subsidiariedade que torna uma federação mais democrática. Na

Constituição Européia, a subsidiariedade aparece incrustada no Título III, que trata

das competências da União. Observamos que o princípio pode ser definido por três

proposições (ver capítulo 2: O conceito de subsidiariedade: uma forma de

federalismo): 1) o nível hierarquicamente superior deve respeitar as atribuições de

cada nível inferior; 2) o nível superior, quando solicitado, poderá ajudar o inferior;

3) e, por fim, a subsidiariedade consiste em assumir, excepcionalmente e por

tempo limitado, uma tarefa antes desempenhada por um nível inferior quando este

não mais se mostrar competente para realizá-la.

A essência da primeira definição (item 1) está contida na introdução do

Protocolo relativo à subsidiariedade. Deseja-se

assegurar que as decisões sejam tomadas tão próximo quanto possível dos cidadãos da União.276

Esta seria a definição de subsidiariedade mais compatível com a idéia de

autonomia e democracia. A precedência de ação é sempre do nível inferior.

A idéia de que uma decisão pode ser tomada o mais próximo possível do

cidadão pode ser interpretada de duas formas. Num primeiro momento,

entendemos que uma decisão tomada no nível mais próximo dos cidadãos seja uma

decisão do nível municipal. De fato, nas definições clássicas da ordem social de

Aristóteles e Althusius, as quais apresentam semelhanças com a subsidiariedade, a

276 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 273.

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sociedade se organiza a partir das comunidades naturais de menores dimensões

como a família, os grupos profissionais etc. A precedência de ação é sempre do

nível inferior. Apenas se este não puder realizar uma tarefa, a incumbência é

transferida para o nível imediatamente acima e assim sucessivamente. De acordo

com essa definição, o nível municipal seria o mais próximo do cidadão.

Mas existe uma outra possibilidade de interpretação e aplicação da definição

tão próximo dos cidadãos quanto possível. Isto porque a utilização do conceito de

subsidiariedade não está restrita a um grupo cujas dimensões sejam adequadas ao

desenvolvimento das capacidades humanas. A subsidiariedade também significa,

segundo Drape, a valorização dos indivíduos de uma perspectiva diferente daquela

do liberalismo, isto é, sem qualquer vestígio egoístico. Desta forma, a determinação

de que as decisões sejam tomadas tão próximo quanto possível dos cidadãos da

União também pode significar que as decisões ficarão sob a responsabilidade do

próprio indivíduo e não de qualquer instância superior a ele, ainda que próxima.

Vista desta perspectiva, a subsidiariedade representa um instrumento de

democracia direta e participativa, sem a intermediação de nenhum grupo, por

menor que seja. Por sugestão de organizações não-governamentais, foi incluído no

Artigo 46º da Constituição o seguinte parágrafo:

Por iniciativa de pelo menos um milhão de cidadãos da União oriundos de um número significativo de Estados-membros, a Comissão pode ser convidada a apresentar propostas adequadas em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um ato jurídico da União para aplicar a Constituição.277

Embora a interpretação da subsidiariedade como precedência da ação

individual já esteja em Drape, representante da Doutrina Social da Igreja, a sua

transposição para um artigo constitucional é algo inovador. O parágrafo 4º do

Artigo 46º da Constituição Européia reconhece a possibilidade de uma ação coletiva

transnacional a partir da iniciativa de cidadãos situados em Estados-membros

diferentes. Acreditamos que este tipo de ação possa impulsionar o debate sobre

277 Idem: Artigo 46º, parágrafo 4º.

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uma cidadania européia e mesmo contribuir para a sua formação. Seria uma

confirmação da tese de Habermas de que a Constituição pode servir como

catalisadora de uma esfera pública européia e de uma cidadania européia.

Os cidadãos podem ainda recorrer diretamente ao Tribunal de Justiça, sem

depender da mediação de qualquer grupo ou nível de governo, municipal, regional

ou estatal. Assim está posto nos Artigos III-270º-4 e III-272:

Qualquer pessoa singular ou coletiva pode propor, (...), uma ação contra os atos de que seja destinatária ou que lhe digam direta e individualmente respeito, bem como contra os atos regulamentares que lhe digam diretamente respeito e que não incluam medidas de execução.278

Qualquer pessoa singular ou coletiva pode recorrer ao Tribunal de Justiça, (...), para acusar uma das instituições, um dos órgãos ou uma das agências da União de não lhe ter dirigido um ato que não seja recomendação ou parecer.279

Em contraste, as outras duas definições de subsidiariedade admitem a

interferência da União nos níveis inferiores, em forma de ajuda, quando esta for

solicitada pelo nível inferior (item 2) ou em forma de intervenção, quando se

considerar que o nível inferior não é capaz de desempenhar uma tarefa (item 3). A

segunda definição de subsidiariedade está implícita no Artigo 16º, que trata dos

domínios de ação de apoio, de coordenação ou de complemento. Já a terceira

definição está presente na cláusula de flexibilidade (Artigo 17º). A Constituição

Européia, portanto, adota o Princípio de Subsidiariedade em todas as suas

dimensões, mesmo quando estas são contraditórias. A subsidiariedade determina

que as ações sejam tomadas no nível mais próximo dos cidadãos, mas, ao mesmo

tempo, permite a intervenção da União quando necessário. A ambigüidade do

conceito de subsidiariedade, apontada por Chemilier-Gendreau (ver capítulo 2: O

conceito de subsidiariedade: uma forma de federalismo), permanece intacta na

Constituição. Como vimos, o nível superior pode invocar com freqüência o critério

da eficácia para intervir no nível inferior.

278 Idem: 227, Artigo III-270º. 279 Idem: 228, Artigo III-272º.

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Neste ponto, recorremos novamente a Agamben, para quem

toda lei contém em seu centro um vazio jurídico, toda ordem jurídica encerra nela mesma um espaço sem direito.280

Para ele, há uma linha muito tênue entre a ordem jurídica democrática e o

estado de exceção. Nas federações democráticas, e na União Européia em

particular, há um constante fluxo entre jurisdições baseado no princípio de

subsidiariedade. Mas não é justamente no centro desse movimento constante que

algo parecido com um estado de exceção se estabelece? Não é o próprio princípio

de subsidiariedade, supostamente democrático, que permite a existência de uma

cláusula de flexibilidade?281 E esta, ao permitir à União agir em domínios a ela

previamente vedados, não contém em seu âmago um dispositivo arbitrário?

Agamben mostra como o estado de exceção tende a se tornar cada vez mais

o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Uma medida a

princípio provisória e excepcional transforma-se em uma técnica de governo, o que

em sua opinião modifica

radicalmente (...) a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição.282

O estado de exceção seria, desta forma, uma zona de indeterminação entre

democracia e absolutismo. Agamben lembra que o estado de exceção moderno é

uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da absolutista.

Uma das características essenciais do estado de exceção é a abolição

provisória da distinção entre poder executivo, legislativo e judiciário. O pressuposto

é que o estado de exceção significa um retorno a um estado original em que ainda

não ocorreu a diferenciação entre os diversos poderes.

Da mesma forma, o Princípio de Subsidiariedade, embora seja originário de

uma tradição democrática que remonta a São Tomás de Aquino, contém em si

280 AGAMBEN, G. Estado de exceção: 1. 281 É a liberalização ou flexibilização da lei durante o Império Romano que permite aos magistrados romanos tomar decisões arbitrárias (6° parágrafo de capítulo 1: A República Romana). 282 AGAMBEN, G. Estado de exceção: 13.

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mesmo a possibilidade de um estado de exceção. Segundo o item 3 da definição de

subsidiariedade que estamos utilizando, a União pode assumir, excepcionalmente e

por tempo limitado, uma tarefa antes desempenhada por um nível inferior quando

este não mais se mostrar competente para realizá-la (Cláusula de Flexibilidade). Ou

seja, o próprio conceito de subsidiariedade prevê a possibilidade de uma exceção

por tempo limitado.

Mas Agamben chama a atenção para o fato de que uma medida a princípio

provisória e excepcional transforma-se cada vez com mais freqüência em uma

técnica de governo. Embora um uso provisório dos plenos poderes seja

teoricamente compatível com as constituições democráticas, um exercício

sistemático da instituição do estado de exceção leva necessariamente à liqüidação

da democracia. Em outras palavras, a manutenção ou não da democracia depende

da freqüência com que se recorre ao estado de exceção.

No Princípio de Subsidiariedade, temos situação semelhante. Ele é tanto

mais democrático quanto menos se utilizar a cláusula de flexibilidade, que equivale

a um estado de exceção dentro da ordem instituída pelo Princípio de

Subsidiariedade. Portanto, a democratização da União Européia depende não tanto

do princípio de subsidiariedade, mas sim da forma como ele é aplicado.

Outro ponto da teoria de Agamben nos faz acreditar em uma semelhança

entre o estado de exceção e a cláusula de flexibilidade da Constituição Européia.

Uma opinião recorrente coloca como fundamento do estado de exceção o conceito de necessidade. Segundo o adágio latino muito repetido (...), necessitas legem non habet, ou seja, a necessidade não tem lei, o que deve ser entendido em dois sentidos opostos: a necessidade não reconhece nenhuma lei e a necessidade cria sua própria lei (necessité fait loi).283

Ora, a justificativa para a utilização da cláusula de flexibilidade (Artigo 17º)

é justamente a necessidade.

283 Idem: 40.

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Se se afigurar necessária uma ação da União, no quadro das políticas definidas na Parte III, para atingir um dos objetivos estabelecidos pela Constituição...

Mas como saber quando há necessidade? Agamben destaca que a

necessidade, longe de ser um dado objetivo, envolve um juízo subjetivo:

(...) necessárias e excepcionais são, é evidente, apenas aquelas circunstâncias que são declaradas como tais.284

Na União Européia, a questão da necessidade está relacionada ao critério de

eficácia. Uma ação da União é considerada necessária quando se mostra mais

eficaz do que a ação do nível estatal, regional e local. No entanto, a dúvida

principal permanece. E se a ação da União for considerada mais eficaz do que a dos

demais níveis em um grande número de casos? Ou, dito de outra forma, e se a

União julgar necessária a sua intervenção com muita freqüência?

Existe, no entanto, uma diferença entre o estado de exceção e a cláusula de

flexibilidade que não pode deixar de ser apontada. O primeiro abole

provisoriamente a divisão de poder horizontal entre executivo, legislativo e

judiciário. Já a cláusula de flexibilidade elimina a divisão de poder vertical entre os

níveis supranacional, estatal, regional e local. Tanto o estado de exceção quanto a

cláusula de flexibilidade provocam uma suspensão da divisão de poder.

Paradoxalmente, o estado de exceção, entendido como um ato extrajurídico,

é usado muitas vezes com o objetivo de garantir a ordem constitucional. A

Constituição Européia, por exemplo, prevê a suspensão dos direitos dos membros

da União (Artigo 58º) que violem os valores europeus (Artigo 2º). Ou seja, há uma

intervenção da União nos direitos dos Estados-membros – o que pode ser

considerado como um estado de exceção – para obrigá-los a respeitar os direitos

fundamentais contidos na Constituição.

Ainda, o Artigo IV-7º, sobre revisão constitucional, também nos permitiria

dizer que a Constituição Européia confere uma inflexão federalista à Europa. Já

vimos que este artigo aproximava a Carta Européia de um modelo constitucional

284 Idem: 46.

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institucionalista-federalista (ver capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado). As

Constituições de sistemas federativos costumam ser self-binding, ou seja, contêm

regras que as tornam difíceis de serem revisadas. Nas federações, qualquer

modificação constitucional deve ser ratificada pelas unidades da federação. No caso

da Constituição Européia, qualquer projeto de revisão do Tratado que institui a

Constituição só entra em vigor após ratificação por todos os Estados-Membros, de

acordo com as respectivas normas constitucionais (Artigo IV-7º- 3.). A Constituição

Européia, portanto, atende a uma das principais características do

constitucionalismo institucionalista, qual seja, a de ter Constituições self-binding

ou, o que dá no mesmo, que possam ser interpretadas como Grundnorm. Em

suma, se considerarmos apenas o Artigo IV-7º, chegaremos à conclusão de que a

Constituição Européia é uma Constituição federalista.

Em um modelo de Constituição democrático-radical (ver capítulo 1: A idéia

de uma constituição democrática: introdução ao problema e capítulo 4: A idéia de

uma constituição-tratado), geralmente a agenda é aberta. Não existe nenhuma

área sobre a qual a maioria democrática não possa legislar. Já em um modelo

institucionalista-federalista de Constituição, existem áreas em que a revisão

constitucional nem sequer é permitida. O demos central tem de aceitar uma agenda

fechada na qual algumas issue-areas estão constitucionalmente fora do seu poder

legiferante. Na Constituição Européia, por exemplo, os direitos fundamentais só

podem ser parcimoniosamente modificados, mas a essência tem de ser preservada.

Mas, se por um lado as unidades da federação restringem o poder

constituinte do demos, dificultando a revisão constitucional e fechando a agenda,

por outro, são as responsáveis, junto com as regiões e as comunidades locais, por

uma produção legislativa baseada no Princípio da Subsidiariedade. Os níveis

nacionais e subnacionais têm autonomia para interpretar a Constituição como uma

Árvore Viva, criando leis complementares que permitem a adaptação de uma regra

geral a uma realidade particular. Em resumo, na União Européia, há restrição ao

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poder constituinte do demos (o conjunto dos cidadãos da pólis) e estímulo ao poder

constituinte dos demoi (cidadãos de cada unidade da federação) e dos cidadãos das

regiões e comunidades locais.

Num primeiro momento, portanto, seríamos levados a afirmar que um

federalismo que adota o Princípio de Subsidiariedade é um federalismo

descentralizado. Stepan propõe a utilização de um continnuum que iria do

federalismo menos demos constraining (menos centralizado) para o mais demos

constraining (mais centralizado). Se o Princípio de Subsidiariedade tem um caráter

descentralizador, então ele pode ser usado como critério para posicionar uma

federação no continuum de Stepan. Quanto maior a subsidiariedade, maior a

descentralização. Inversamente, quanto menor a subsidiariedade, menor a

descentralização.

A utilização do Princípio de Subsidiariedade como critério para posicionar

uma entidade no continuum de Stepan seria aceitável se não fosse a própria

contradição do Princípio de Subsidiariedade. Ora ele confere autonomia aos níveis

inferiores; ora permite a intervenção da União em domínios reservados às unidades

da federação ou aos níveis subnacionais. Em outras palavras, ele flexibiliza a

distribuição de competências, mas nem sempre favorece os níveis mais próximos

dos cidadãos. Não podemos simplesmente concluir que, quanto maior a

subsidiariedade, mais descentralizada será a federação.

Agora podemos reformular nossa hipótese. Seria mais correto dizer que

quanto mais a subsidiariedade for aplicada de uma certa maneira, mais

descentralizada será a Federação. Quanto mais a União utilizar a cláusula de

flexibilidade, mais a UE se aproximará de uma Federação centralizada e de um

sistema decisório supranacional. Ao contrário, se a União Européia não usar a

cláusula acima citada, ela poderá se assemelhar a uma Federação descentralizada.

No caso de uma utilização exacerbada da subsidiariedade por parte dos Estados-

membros, a UE seria deslocada para fora do continuum federalista de Stepan,

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aproximando-se de uma confederação e de um sistema de tomada de decisão

intergovernamental. Existiriam ainda mais duas possibilidades de aplicação da

subsidiariedade. Se o princípio for reivindicado pelas regiões e pelos níveis locais,

teremos uma configuração na UE que não corresponde nem ao

supranacionalismo/federalismo nem ao intergovernamentalismo/confederalismo.

Antes, seria mais parecida com um sistema de satélites ou um

consortio/condominium. E ainda: caso a subsidiariedade seja invocada pelos

cidadãos, como vimos no Artigo 46º, parágrafo 4, teríamos uma União Européia de

viés cosmopolita, na qual os indivíduos poderiam afirmar sua cidadania

transnacionalmente, sem se sentirem restringidos por divisões territoriais e

políticas.

A Constituição Européia, portanto, não impõe um único desenho institucional

à União Européia. Esta penderá mais para uma federação, ou para uma

confederação, conforme o Princípio de Subsidiariedade seja utilizado de uma ou

outra maneira. Ou seja, o Princípio de Subsidiariedade permite à UE se movimentar

num eixo que vai do confederalismo ao federalismo mais centralizado. A

especificidade da Constituição Européia está justamente nessa indeterminação de

sua configuração.

Assim, por mais que identifiquemos artigos de caráter confederalista, não há

elementos suficientes para afirmar que o texto aprovado em junho de 2004 será

capaz de transformar a União Européia numa Confederação. Kant, que acreditava

no advento de uma Confederação de Estados Republicanos, lembra que não há

necessidade na história humana. A natureza, segundo ele, apresenta inúmeras

possibilidades e não predeterminação.

Apesar dessa incerteza quanto à configuração definitiva da União Européia,

podemos perceber que há um forte componente confederalista na Constituição e é

este elemento que permite classificá-la como uma espécie de Constituição-Tratado.

Como comentado (ver capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado), uma

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Constituição é um ato de direito interno pelo qual uma nação organiza a si mesma,

enquanto o Tratado é um ato de direito internacional, assinado por dois ou mais

Estados que já possuem suas respectivas constituições. Se as Constituições e as

ordens jurídicas dos Estados continuam válidas mesmo após a aprovação da

Constituição Européia, então podemos dizer que esta tem características de um

Tratado. Ela organiza uma comunidade de Estados, cada um deles com sua própria

Constituição.

Entre as entidades não supranacionais que podem recorrer ao Princípio da

Subsidiariedade, os Estados são as que possuem mais recursos para fazê-lo. Se os

Estadosmembros da União Européia fizerem uso do Princípio da Subsidiariedade

com freqüência, o caráter confederalista da UE poderá ser reforçado. No Título III

da Parte I da Constituição, as competências são divididas entre União e Estados.

Não há nenhuma referência explícita sobre as ações que poderiam ser

empreendidas pelos níveis subestatais. Ou seja, tal como o Tratado de Amsterdã,

de 1997, a Constituição Européia estimula o fortalecimento da subsidiariedade dos

Estados-nacionais em detrimento da das regiões e dos municípios. O Artigo 5º, por

sua vez, deixa claro que a União:

respeita a identidade nacional dos Estados-membros, refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, incluindo no que se refere à autonomia local e regional. Respeita também as funções essenciais do Estado, nomeadamente as que se destinam a garantir a integridade territorial, manter a ordem pública e salvaguardar a segurança interna (Artigo 5º).

O Plano Ibarretxe, apresentado pelo País Basco no início de fevereiro de

2005 no Parlamento espanhol, propunha um grande aumento de autonomia para a

região, que se transformaria numa comunidade livre associada.285 A União Européia

não se pronunciou sobre o assunto, considerado, como vimos acima no artigo 5º,

um assunto interno dos Estados nacionais. Acreditamos que esta posição da UE

explica por que as comunidades autônomas do País Basco e da Catalunha

apresentaram o mais alto índice de rejeição à Carta no referendo de 20 de fevereiro

285 GUILAYN, P. Plano de autonomia dos bascos é rejeitado: 31.

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na Espanha. Naquelas duas regiões, o ‘não’ teve a maior votação, cerca de 30% do

total.286 O fato de a Constituição respeitar as funções essenciais do Estado, ou seja,

garantir o exercício do Princípio da Subsidiariedade pelos Estados, levou as regiões

espanholas que almejam maior autonomia a rejeitar a Carta. O resultado poderia

ter sido diferente caso a Constituição conferisse mais poderes às regiões.

O Artigo 5º aproxima o texto constitucional em estudo de uma Constituição-

Tratado, pois preserva as funções essenciais do Estado e, conseqüentemente, a

ordem jurídica nacional. Se estivéssemos diante de uma Constituição de modelo

tradicional, a ordem jurídica dos Estados ficaria subordinada à ordem jurídica

supranacional, reproduzindo a hierarquia entre a lei suprema e as leis ordinárias

que constitui a base do Direito Constitucional clássico. Em suma, uma Constituição-

Tratado respeita as Constituições dos Estados-membros. No caso espanhol, por

exemplo, a Constituição nacional que instituiu em 1978 a autonomia das regiões

continua em vigor. Podemos supor que grande número de bascos rejeitou a

Constituição Européia justamente por seu caráter de Tratado, ou seja, por seu

respeito à Constituição Espanhola, considerada como um entrave ao aumento da

autonomia regional.287

O caráter confederalista da Constituição Européia também aparece no

preâmbulo. Dissemos que a afirmação da identidade e da história nacional poderia

nos levar a classificar a União Européia como uma federação descentralizada. No

entanto, os mesmos elementos poderiam nos fazer ver a UE como uma

confederação, em que cada Estado preserva sua identidade. O fato de a

Constituição ter sido elaborada em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa288

286 GUILAYN, P. Espanha: Sim à Constituição da UE: 17. 287 Segundo Stepan, as federações do tipo hold together, da qual a Espanha é um exemplo, conseguem manter a união porque permitem alto grau de autonomia às regiões. Espera-se que as regiões se contentem com um maior grau de autonomia e desistam de reivindicar a saída da União. O exemplo espanhol derruba esta tese. Justamente as duas regiões espanholas mais autônomas – País Basco e Catalunha – são as que reivindicam ainda maior autonomia. 288 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 5.

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também reforça seu tom confederalista e tratadístico. Afinal, Estados assinam

Tratados entre si e não Constituições.

Além disso, muitos assuntos continuam sendo resolvidos de forma

intergovernamental na nova Carta. O Artigo 59º da Constituição, por exemplo,

permite que qualquer Estado se retire da União. Este artigo afasta a Europa de uma

Federação, já que nesta, de acordo com a definição de Federação de Franco da

Fonseca (capítulo 2), a Federação é uma unidade política na qual a secessão não

pode ser cogitada.

Ao contrário, o Artigo 59º aproxima a Europa de uma Confederação. Os

Estadosmembros são soberanos para decidirem se entram ou saem da União. Uma

das principais características da Confederação Kantiana, que tomamos aqui como

um tipo ideal de confederação, era o fato de a entrada ou a saída da Confederação

serem voluntárias. O desenvolvimento da razão e da moral entre a população de

um Estado, acreditava Kant, levaria este Estado a querer participar da

Confederação. Hoje, essa razão e essa moral parecem estar expressas nos valores

europeus, cujo respeito é a única condição para ser aceito na União Européia.289 O

artigo em questão torna a Constituição Européia mais flexível, ao facilitar a saída de

um Estado-membro da União.

Pode-se dizer ainda que a Constituição Européia apresenta um componente

confederalista na medida em que preserva o poder de órgãos intergovernamentais

como o Conselho de Ministros e o Conselho Europeu. Não há uma transformação

dessas instituições num Senado, o que daria uma configuração mais federalista à

Europa. Os dois Conselhos permanecem intergovernamentais e dividem o poder

com instituições supranacionalistas, como a Comissão e o Parlamento. Além disso,

uma série de políticas ainda é decidida pelos Estados nacionais. A Política Externa e

de Segurança da União (Artigo III-282º), por exemplo, é decidida pelos

289 O pedido da Turquia para participar da UE desafia esse pressuposto. Se a Turquia ainda não alcançou um desenvolvimento satisfatório da razão e da moral, como acreditam alguns, como pode querer participar da Confederação?

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representantes dos Estados no âmbito do Conselho de Ministros e do Conselho

Europeu.

A configuração de consortio e/ou condominium

A história da União Européia mostra uma alternância entre

federalismo/supranacionalismo e confederalismo/intergovernamentalismo (capítulo

3). Contudo, há quem veja o surgimento de um terceiro e um quarto tipo de

arranjo institucional na década de 90: o consortio e o condominium. Ambos seriam

entidades políticas com funções variáveis, lealdades múltiplas e autoridades

sobrepostas, características comuns nas instituições medievais.

O consortio (ver capítulo 2: Consortio e condominium) tem território fixo e

as entidades que dele fazem parte possuem responsabilidades variadas sobre

políticas públicas. De acordo com um tipo ideal de consortio, os países membros

teriam liberdade para escolher as obrigações que desejam aceitar ou rejeitar,

fazendo as combinações que mais lhes conviessem a partir de um cardápio de

competências. Em outras palavras, o consortio apresentaria uma geometria

variável.

A idéia de uma Europa com geometria variável surge em 1992, com as

dificuldades para ratificar o Tratado de Maastricht. Reino Unido e Dinamarca

recusam-se a ratificar o Tratado e só o fazem depois que a União Européia aceita as

suas reivindicações. Desde então, alguns países poderiam optar por ficar fora (opt

out) de determinadas políticas, sem que isso significasse um abandono do projeto

de integração. Em Maastricht, por exemplo, ficou acertado que Reino Unido e

Dinamarca não participariam da futura zona do euro. Esse respeito à soberania de

alguns países em áreas específicas poderia ser tomado como um reforço do

confederalismo.

Aqui, portanto, é necessário distinguir entre o

confederalismo/intergovernamentalismo e o consortio. No primeiro caso, os países

que discordam de uma determinada política podem vetá-la e, assim, impedir que

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outros também a adotem. Quando a tomada de decisão exige a unanimidade, o

veto de um país é suficiente para retirar um projeto da agenda de negociação.

Neste sentido, uma Constituição que reforce o confederalismo pode ser considerada

rígida. Sob uma Constituição deste tipo, o processo de integração só avança com a

aprovação de todos os Estados-membros.

Já no consortio, o país que se manifesta contra uma política pode manter-se

imune a seus efeitos, mas não pode impedir que ela seja adotada pelos outros

países. O consortio não provoca atrasos no processo de integração, pois permite a

formação de uma Europa com velocidades diferentes. É interessante notar que o

avanço da integração a partir de 1992 não se deu através de políticas impostas

pelo nível supranacional. Ao contrário, ocorreu a partir da flexibilização das

exigências por parte da UE. A aceitação das reivindicações do Reino Unido e da

Dinamarca em 1992 não conduziu a Europa rumo ao intergovernamentalismo, mas

ao consortio e à geometria variável.

Com a entrada de dez novos países em 2004, a possibilidade de uma Europa

com geometria variável tornou-se ainda mais plausível. Provavelmente, afirmam

alguns autores, haverá um núcleo formado por Alemanha, França e outros países,

entre os maiores, que ficarão encarregados de conduzir a integração, e uma

periferia que se adequará de forma diferenciada às diversas políticas comunitárias.

Para utilizar a denominação de Manuel Castells, teríamos um Estado em rede, no

qual os nós seriam representados pelos grandes países.

A Constituição Européia reflete em alguns de seus artigos essa configuração

que já vinha se apresentando na UE desde o início dos anos 90. No capítulo III da

Parte I, o texto prevê a formação de cooperações reforçadas, que seriam

exatamente o oposto do opt out, mas seguiriam a mesma lógica. No opt out um

país decide manter-se fora de uma determinada política comunitária que será

adotada pelos demais membros. Ou seja, há um recuo em relação à política

integracionista.

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Na cooperação reforçada, ocorre o contrário. Alguns países decidem

antecipar-se à política comunitária.

A autorização para proceder a uma cooperação reforçada é concedida como último recurso pelo Conselho de Ministros, quando este tenha determinado que os objetivos da cooperação em causa não podem ser atingidos num prazo razoável pelo conjunto da União (Artigo I-43º-2.).

Os Estados-membros que se sintam preparados para realizar uma

cooperação numa determinada área podem inclusive utilizar as instituições

comunitárias para tal. No entanto, seus atos não serão vinculatórios para os

candidatos à adesão à União. Em suma, o opt out representa um passo atrás em

relação à política comunitária, enquanto a cooperação reforçada significa um passo

além da política supranacional.

Apesar desta diferença, a configuração final resultante tanto do opt out

quanto da cooperação reforçada é o consortio. No primeiro, os Estados-membros

escolhem as áreas em que ficarão de fora. No segundo, as áreas em que

empreenderão uma cooperação reforçada. Em ambos os casos, forma-se um núcleo

e uma periferia, cada um deles com velocidades diferentes.

Para Schmitter, as federações apresentam um Kompetenzkatalog baseado

na subsidiariedade, que fixa a distribuição de competências funcionais e jurisdições

institucionais (ver capítulo 2: Consortio e condominium). Ao fixar competências, o

Kompetenzkatalog seria incompatível com o consortio, no qual as funções e as

competências estão em permanente fluxo. Concordamos com esta

incompatibilidade entre o catálogo de competências e o consortio. No entanto,

discordamos de Schmitter quando este diz que a fixação do catálogo de

competências se dá com base na subsidiariedade. Queremos lembrar que, na

definição de Chemillier-Gendreau, a subsidiariedade significa um princípio de

repartição móvel de competências (ver capítulo 2: O conceito de subsidiariedade:

uma forma de federalismo). Portanto, seria mais correto afirmar que é a utilização

da subsidiariedade que permite o fluxo de competências e funções no consortio.

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Nada está previamente definido. Não se sabe, por exemplo, em que área

específica um país poderá reivindicar um opt out. Em relação à cooperação

reforçada, só sabemos que ela deve estar restrita às competências não exclusivas

da União.290 Mas não temos como descobrir em que área de competência

compartilhada com a União um determinado Estado decidirá realizar uma

cooperação reforçada. As funções e as competências a serem exercidas por cada

consortio não são conhecidas de antemão. A escolha da competência a ser

realizada só se dá no momento da formação do consortio. Cada Estado escolhe as

áreas em que atuará sozinho ou em conjunto com outros membros. Em outras

palavras, a subsidiariedade é uma condição para a própria existência do consortio.

Os Estados invocam o Princípio de Subsidiariedade para criar um consortio e,

assim, poder solucionar problemas específicos que, de outra forma, seriam

resolvidos com mais eficiência pela União Européia.

Outro ponto que merece consideração é o de que a formação de consortio

não é um monopólio dos Estados-membros. Regiões e comunidades locais também

podem se unir em consortios e recorrer ao princípio de subsidiariedade para lidar

com uma determinada questão. Tampouco o consortio é uma exclusividade de

entidades políticas e governamentais. Firmas, corporações e organizações não

governamentais podem se associar com base no modelo do consortio.

Um desenho institucional europeu baseado no condomínio seria ainda mais

inovador, já que este tipo de arranjo pressupõe funções e territórios variáveis,

atingindo um grau máximo de fragmentação. Ora, a cooperação reforçada,

garantida no capítulo III da Parte I da Constituição Européia, também pode adquirir

a forma de um condomínio. Uma cooperação reforçada entre Portugal, Áustria e

Finlândia na área de meio ambiente, por exemplo, daria origem a uma associação

entre Estados não contígüos e, portanto, a um condomínio. Por outro lado, pode

acontecer de algum desses países participar de uma outra cooperação reforçada

290 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 42.

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numa área que eventualmente entre em conflito com a ambiental. Haveria assim

uma sobreposição de autoridades no Estado participante das duas cooperações.

Em resumo, a Constituição Européia contém artigos que permitem

configurações as mais variadas. Alguns itens inclinam a União Européia para uma

Federação descentralizada, outros para uma Confederação. Já o artigo relativo à

cooperação reforçada torna possível a formação de consortios ou condominiuns no

espaço europeu. A especificidade da Constituição Européia está justamente nesta

tentativa de conciliar diferentes formatos institucionais. Ela não pode ser

classificada de acordo com um único modelo, como uma Constituição federalista ou,

alternativamente, como um Tratado que estabelece uma Confederação. Ela é ao

mesmo tempo as duas coisas e, por isso, alguns autores acreditaram estar diante

de um híbrido Constituição-Tratado. Os artigos de caráter federalista aproximariam

o texto em análise de uma Constituição federalista. Por outro lado, os artigos de

conteúdo confederalista acentuariam a semelhança do texto com um Tratado.

Mostramos, contudo, que o texto aprovado em junho de 2004 não se

resume a artigos federalistas e confederalistas. O Artigo 43º, que trata da

cooperação reforçada, cria a possibilidade de um arranjo institucional diferente

tanto da Federação quanto da Confederação: o consortio ou o condominium. O

termo Constituição-Tratado seria, portanto, ainda incompleto para definir a

Constituição da União Européia. Criar uma nova definição para a Constituição da UE

não é nosso objetivo no momento. Queremos apenas constatar que a Carta

Européia contém em seu seio indefinições e potenciais contradições.

Por conta do Princípio da Subsidiariedade, não temos como saber de

antemão se prevalecerão os artigos federalistas, confederalistas ou aqueles que

estimulam uma geometria variável. Se a cláusula de flexibilidade for invocada com

freqüência pela União, a Europa poderá se tornar mais federalista. Ao contrário, se

a capacidade de os Estados-membros fazerem uso do Princípio da Subsidiariedade

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for maior do que a capacidade da União de recorrer à cláusula da flexibilidade,

teremos uma Europa mais confederalista.

Por fim, o fato de os Estados recorrerem à subsidiariedade não significa um

avanço do intergovernamentalismo. Eles podem utilizar o Princípio de

Subsidiariedade para participarem de uma cooperação reforçada. Também aqui não

podemos saber ao certo como um Estado fará uso da cooperação reforçada. Esta

poderá resultar numa configuração de consortio ou de condominium. Da mesma

forma, não há como prever a freqüência com que as regiões ou os municípios

assumirão competências com base no Princípio da Subsidiariedade. Em suma, a

Constituição Européia contém em si diversas possibilidades institucionais, mas a

configuração da União Européia dependerá, em última instância, da forma como os

múltiplos níveis governamentais – União, Estados, Regiões e municípios – farão uso

do Princípio da Subsidiariedade.

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Conclusão

A Constituição Européia comporta artigos que nos remetem às mais diferentes

tradições: grega, romana, da common law, germânica, republicana, liberal,

neoliberal, federalista, confederalista e do consortio/condominium. À primeira

vista, um texto com estas características poderia ser considerado confuso e

incoerente, um amontoado de tradições sem relação umas com as outras. Como

ser grego e germânico ao mesmo tempo? Como conciliar a common law com a

tradição romana? É possível ser social-democrata e neoliberal? Ou ainda, como ser

federalista sem rejeitar o confederalismo? O impasse surge quando partimos da

lógica excludente ou/ou: Ou a Constituição é neoliberal ou é liberal (liberal no

sentido dado por Wallerstein).

No entanto, a impressão de incoerência é relativizada quando a Constituição

Européia é analisada a partir da idéia grega do Governo Misto. De acordo com essa

teoria, só a mistura de diversas constituições é capaz de criar estabilidade:

(...) a melhor forma é a da Constituição resultante da fusão de muitos tipos diversos.205

Para Platão, monarquia e democracia deveriam ser misturadas. Aristóteles

era mais exigente neste ponto, pois para ele o ideal seria mesclar não dois, mas

três tipos de regime: monarquia, aristocracia e politeia. Os gregos não viam o

Governo Misto como confuso ou incoerente por comportar diversos regimes de

governo. Ao contrário, a mistura de diferentes regimes de governo é que garantiria

a estabilidade política. Em Platão a Constituição deveria ser a junção de monarquia

e democracia. Em Aristóteles a Constituição seria a combinação entre monarquia,

aristocracia e politeia.

Assim como no Governo Misto havia uma mistura de regimes, na

Constituição Européia temos uma mistura de modelos de Constituição. Observamos

no capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado que a Carta Européia apresenta

205 BOBBIO, N. Governo Misto: 555.

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pontos de contato com os tipos de Constituição democrático-radical,

institucionalista-federalista e evolucionista. Ela tem em comum com o modelo

democráticoradical uma Carta de Direitos Humanos e o fato de ter sido

historicamente criada. Por outro lado, o Artigo IV-7º afasta a Constituição Européia

do modelo democrático-radical e aproxima-a do modelo institucionalista-federalista.

Mas semelhança não é identidade. Uma análise mais minuciosa revela que

não há identidade entre o modelo institucionalista-federalista e a Constituição

Européia. Nesta o Princípio da Subsidiariedade rompe com a hierarquia entre lei

fundamental e leis ordinárias, típica daquele modelo. Além disso, embora ambas –

Constituição de modelo institucionalista e Constituição Européia – façam uso da

revisão judicial, esta ganha configurações diferentes em cada caso. Enquanto na

Constituição institucionalista-federalista a revisão judicial aplicase a todo o território

nacional, na Constituição Européia aquele instrumento só é aceitável nos países que

tenham adotado as políticas comunitárias sob jurisdição do Tribunal de Justiça

Europeu. (capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado). E, mesmo nas áreas sob

sua jurisdição, o Tribunal de Justiça Europeu deve levar em consideração a

existência de vários ordenamentos jurídicos igualmente válidos nos diferentes

Estados-membros da União Européia. Nas áreas em que os países adotam políticas

comunitárias, a revisão judicial ora garante a Constituição Européia ora a

Constituição de um Estado-membro. Em resumo, a Constituição Européia não

apenas absorve tradições constitucionais, mas ainda promove algo inédito: uma

revisão judicial de geometria variável.

Outra especificidade da Constituição Européia surge quando se analisa o

poder constituinte. No modelo institucionalista, aquele poder localizava-se na

comunidade nacional tanto durante a elaboração da Carta quanto no período de sua

revisão. Na Constituição Européia, o poder constituinte apresenta composição

diferente nos dois momentos.

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No modelo tradicional uma Assembléia Constituinte, formada por

representantes da comunidade nacional, cria uma Constituição (momento

fundador). Ao contrário a Carta Européia foi elaborada por uma Convenção (ver

nota 1 da Introdução), que não era formada por representantes de uma

comunidade nacional. Em outras palavras, o poder constituinte fundador da

Constituição Européia não representava uma comunidade nacional.

No modelo institucionalista o judiciário pode emendar a Constituição

(momento de revisão) com base na manifestação da vontade do poder constituinte,

também representado pela comunidade nacional. Na Constituição Européia também

existe a possibilidade de uma revisão (Artigo IV-7º) ou de uma interpretação

Árvore Viva do texto. Só que, diferentemente do modelo institucionalista, em que o

poder constituinte estava localizado na comunidade nacional, na Constituição

Européia o poder constituinte não provém de um lugar determinado. Não há como

saber, de antemão, se as reivindicações por mudança serão feitas por cidadãos

europeus (todo o território europeu), por cidadãos franceses (território da França)

ou por cidadãos alsacianos (território de uma região).206

Também observamos que, ao ser interpretada como Árvore Viva, a

Constituição Européia poderia se aproximar do modelo evolucionista. Este é

composto apenas por textos esparsos, por uma jurisprudência que não se refere a

nenhuma lei fundamental. A Constituição Européia, por sua vez, apresenta-se sob a

forma de um texto condensado. Obviamente, nada impede que, após a entrada em

vigor da Carta, uma jurisprudência venha a ser acrescentada ao texto pelo Tribunal

Europeu. Contudo, será uma jurisprudência que terá como referência a Constituição

Européia. Em síntese, as semelhanças entre o modelo evolucionista e a Carta

Européia limitam-se à questão da intepretação da Constituição como uma Árvore

Viva.

206 Ao votarem contra o texto atual da Constituição Européia e defenderem uma Carta mais social, a extrema esquerda francesa e parte dos socialistas franceses podem ser vistos como um poder constituinte em potencial.

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208

A Constituição Européia retira de cada modelo ou tipo ideal de Constituição

os elementos que lhe convêm. O conteúdo da Carta de Direitos Fundamentais

provém do modelo democrático-radical. Já a forma como deve ser garantida é

extraída do modelo institucionalista, segundo o qual existe um núcleo duro

constitucional que não pode ser modificado sob qualquer hipótese. Por fim, a Carta

dos Direitos Fundamentais também é assegurada por uma pluralidade de ordens

jurídicas, tal como ocorria na Idade Média. Tanto a ordem jurídica internacional,

representada pelos Tratados internacionais, quanto a ordem jurídica nacional,

presente nas Constituições dos Estados-membros, reforçam o compromisso com os

Direitos Fundamentais presentes na Constituição Européia.

A mistura apresentada pela Constituição Européia também pode ser notada

quando se analisa o conteúdo dos artigos.

Vimos que a defesa de um interesse geral europeu ou de um interesse

comunitário (artigos 25º e 26º), presentes na Carta Européia, apresenta

semelhanças com a idéia grega de primazia do interesse da pólis sobre os

interesses privados dos cidadãos.

Em contraste, também encontramos na Constituição Européia, sobretudo na

Carta dos Direitos Fundamentais (Parte II), a tradição estóica e romana do direito

natural. O indivíduo tem uma importância maior para a tradição do direito natural

do que para os gregos. Ali, o privado precede o coletivo. Referindo-se à cultura

jurídica romana, McIlwain afirma que o direito público romano é o resultado do

desdobramento histórico do direito privado na República Romana.207

Visto que a Constituição Européia contempla as duas tradições - a que dá

primazia ao coletivo (grega) e a que coloca a ênfase no direito individual (romana)

-, como saber qual das duas prevalecerá em caso de conflito entre o interesse

comunitário e o interesse do cidadão europeu? Acreditamos que a Constituição

Européia, na sua forma atual, representa um campo de possibilidades, o qual

207 MACILWAIN, C. H. Constitutionalism: Ancient and Modern.

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209

permite mais de uma interpretação. O fato de congregar tradições diversas cria a

possibilidade de que ela seja apropriada de diferentes maneiras por todos aqueles

sob sua jurisdição. O resultado, portanto, não é definido previamente, mas depende

da correlação de forças entre as partes em disputa.

Já aqui vimos que a Constituição Européia se apresenta como uma Obra

Aberta, a qual não possui uma estrutura univocamente definida. Seria, portanto,

incorreto dizer que a Constituição da UE está em linha de continuidade com a

tradição grega ou com a tradição romana. Ela não é nem univocamente grega nem

romana. Por ser contraditório o texto não aponta para uma direção estrutural já

dada.

Além das anteriores vimos que a Constituição Européia abriga ainda as

tradições germânica e inglesa com respeito ao problema da autonomia local, ou

seja, da existência de um espaço independente do governo central. Ao contrário da

constituição orgânica grega, em que governo e sociedade formam um todo, a

constituição anglo-saxã estabelece uma separação entre governo e sociedade. O

Princípio da Subsidiariedade contido na Carta Européia seria, como vimos, tributário

dessa última corrente. O Comitê das Regiões e o Comitê Econômico e Social (I-31º)

também ocupam uma esfera separada da União.

Observamos que pode haver um conflito entre a valorização do coletivo

(tradição grega) e a do privado (tradição romana). Da mesma forma, seria possível

haver uma disputa entre a União, defendendo o interesse geral (tradição grega), e

as regiões, invocando a autonomia local (tradição anglo-saxã). No caso, o que

prevaleceria? O interesse comunitário da UE ou o interesse específico e a

diversidade cultural de uma determinada região? Como concluímos, a partir da

análise que fizemos, não há como prever o resultado, já que a Constituição

Européia autoriza as duas interpretações. A Constituição Européia é flexível208 por

208 No Direito Constitucional clássico, as Constituições são classificadas como rígidas ou flexíveis em relação à revisão constitucional. Rígidas são aquelas que não podem ser alteradas pelas leis ordinárias, enquanto as flexíveis são

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210

ter duas entradas, pelos artigos 25º e 26º (tradição grega do interesse geral

comunitário) ou pelo artigo I-31º (tradição da autonomia local - independência dos

Comitês). Entretanto, mesmo que o texto possuísse apenas artigos sobre o

Princípio da Subsidiariedade (autonomia local), ele continuaria sendo aberto, uma

vez que aquele princípio, por si só, confere flexibilidade à divisão de competências.

Em outras palavras, não é apenas a antinomia entre conteúdos, como a que ocorre

entre os artigos 25º e I-31º, que torna a Constituição Européia maleável. Uma

única tradição, como a da autonomia local, expressa pelo Princípio da

Subsidiariedade, pode ter o potencial de transformar o texto numa Obra Aberta. Por

meio de reivindicações, os diversos níveis subestatais estimulam uma interpretação

da Constituição como Árvore Viva ou Obra Aberta.

Uma das teorias mais difundidas sobre a exegese constitucional - a da

interpretação sistemática ou teleológica - reza que os preceitos normativos não

podem ser entendidos isoladamente, mas dentro de um todo uno, harmônico e

coerente. A interpretação sistemática pressupõe a unidade do sistema jurídico. Este

é visto como um organismo vivo, em que todas as partes estão interconectadas, e

não como um conjunto aleatório de artigos. Mesmo quando a coerência

constitucional não é evidente, tenta-se atenuar as antinomias. No caso da

Constituição Européia, seria possível interpretá-la dessa forma, atenuando suas

contradições. Poder-se-ia buscar um equilíbrio entre o bem da comunidade

européia e o interesse privado do cidadão europeu.

Entendemos, contudo, que a Constituição Européia apresenta antinomias

irredutíveis e, mais do que isso, necessárias à sua legitimidade. Só uma

Constituição que abrigue tradições constitucionais diversas e, por vezes, opostas,

poderá ter chances de atender à demanda de 25 Estados-membros. Se, por um

lado, os artigos federalistas podem satisfazer a Alemanha, que sempre defendeu

modificáveis por ato legislativo ordinário. Neste texto, no entanto, usamos a palavra flexível com um sentido mais amplo, querendo apenas significar que a Constituição permite vários sentidos.

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uma federação descentralizada para a Europa, por outro, os artigos confederalistas

podem afastar o temor francês de perda de soberania.

É verdade que essa característica da Constituição Européia - artigos que

servem aos mais variados interesses – também pode produzir o efeito inverso,

fazendo alguns países rejeitarem o texto. Foi o que aconteceu recentemente nos

referendos francês (maio) e holandês (junho) sobre a Constituição Européia.

Naqueles dois países a estratégia dos defensores do não durante a campanha sobre

o referendo foi justamente a de salientar os artigos que contrariavam seus

respectivos interesses. O presidente do Movimento pela França, Philippe de Villiers,

chamou a atenção para o artigo 6º da Constituição. Segundo Villiers, esse artigo

determina que o direito europeu terá primazia sobre o direito dos Estados-

membros.209 No entanto, não é isto exatamente o que diz o texto do artigo 6º. Ele

afirma que A União goza de personalidade jurídica.210 Embora tenha um caráter

federalista, como vimos no capítulo 4: As tradições grega, romana e anglo-saxã na

Constituição européia, o artigo 6º não diz que o direito europeu terá primazia sobre

o direito dos Estados-membros. Para mostrar que o direito europeu não se

sobrepõe ao direito dos países, os partidários do sim poderiam ter recorrido ao

Protocolo relativo à subsidiariedade. Ali se lê que o Tribunal de Justiça Europeu

deverá levar em conta o respectivo ordenamento jurídico interno.211

Ao defender a Constituição Européia no dia 3 de maio de 2005 o presidente

Jacques Chirac afirmou que a Carta era a melhor possível para a França porque une

a existência de um grande mercado e a exigência de harmonização social. Dito de

outra forma, a Constituição Européia conciliaria o grande mercado e a

harmonização social do modelo social europeu. Chirac e outros defensores do sim,

no entanto, não fizeram referência explícita ao Princípio da Subsidiariedade ou, em

209 VILLIERS apud BERLINCK, D. Miscelânea anti-UE: 26. 210 CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA. S/ ref.: 11. 211 Idem: 274, parágrafo 7º.

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outras palavras, não enfatizaram suficientemente o caráter confederalista de alguns

artigos.

Em suma, a Constituição contém ambas as possibilidades. Se, por um lado,

o artigo 6º é federalista, por outro o parágrafo 7º do Protocolo relativo à

Subsidiariedade tem um viés confederalista. Durante a campanha sobre o referendo

francês os partidários do não conseguiram chamar a atenção para o Artigo 6º. O

mesmo não ocorreu com os defensores do sim, que pouco comentaram o Princípio

da Subsidiariedade como instrumento de preservação da soberania francesa.

Na realidade ambos os grupos estão corretos. Como observado, a

Constituição Européia, pelo menos em sua versão atual, apresenta-se como um

campo de possibilidades que admite mais de uma interpretação. De certa forma os

partidários do não provenientes da extrema direita têm razão quando afirmam que

o artigo 6º significa um incremento do poder do nível supranacional. Os integrantes

da extrema esquerda e os socialistas que votaram contra a Constituição igualmente

tinham motivos para concluir que a Constituição possui um aspecto neoliberal.

Afinal, ao instituir a liberalização do mercado de serviços na Europa, a subseção

três da Parte III da Constituição Européia dá margem a essa interpretação.

O mesmo pode ser dito em relação aos defensores do sim à Constituição. A

proposta de uma União que respeite a diversidade entre os diferentes Estados não

só é afirmada no preâmbulo da Carta, sob a forma de uma declaração de intenções,

mas encontra possibilidades de realização através do recurso ao Princípio da

Subsidiariedade por parte de Estados, regiões e comunidades locais.

Os opositores da Carta não inventaram o artigo 6º ou a subseção três da

Parte III, assim como os defensores do texto não criaram a idéia de unidade na

diversidade. Todas essas possibilidades estão, de fato, contidas na Constituição

Européia. A coexistência de tradições diversas acaba por legitimar diferentes

apropriações.

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No entanto, não se deve procurar atenuar as contradições do texto, pois isso

poderia privilegiar uma das tradições em detrimento de outra, o que tornaria a

interpretação da Constituição mais rígida e provocaria dissidências dos Estados

cujos interesses não tivessem sido contemplados. A eliminação do artigo 6º em prol

da subsidiariedade, por exemplo, poderia descontentar Estados pequenos - como

Lituânia, Letônia, Estônia, Chipre e Malta, entre outros - que possuem mais poderes

de negociação internacional como participantes de um bloco regional do que se

estivessem sozinhos. Para a Lituânia, a supranacionalidade representa liberdade. O

presidente da Polônia, Aleksander Kwasnienski, afirmou em 2004 que participar da

UE (...) é a realização de um sonho de ser soberano, independente.212

As contradições da Constituição Européia não podem ser conciliadas sob

pena de provocarem reações negativas por parte dos Estados-membros. É a

manutenção da contradição que permite a cada Estado-membro identificar-se com

um ou outro conteúdo. A afirmação de um conteúdo neoliberal, ou seja, a exaltação

de um mercado desregulamentado (subseção três da Parte III), pode parecer

atraente para um país como o Reino Unido, que sempre defendeu a idéia de Europa

como um grande mercado. Por outro lado, o conteúdo liberal,213 representado pela

defesa dos direitos sociais (Carta dos Direitos Fundamentais) pode garantir a

adesão da França à Constituição.

Concluímos portanto que a atenuação das contradições não poderá garantir

a aprovação da Constituição Européia. Se o Princípio da Subsidiariedade fosse

eliminado do texto, a conseqüência seria a rejeição da Carta pelos países que ainda

querem preservar parte de sua soberania.214 Da mesma forma, se a personalidade

212 Ver capítulo 4: A idéia de uma constituição-tratado. 213 Liberal entendido aqui no sentido dado por Wallerstein (ver capítulo 4: O liberalismo na Constituição da Europa). 214 O Princípio da Subsidiariedade foi pouco discutido na campanha pelo sim no referendo francês sobre a Constituição Européia e este pode ter sido um dos motivos para a rejeição francesa à Carta. Talvez o texto atual da Carta Européia ainda possa ser aprovado pela França, desde que o Princípio da Subsidiariedade – e seu potencial democrático – seja mais discutido pela sociedade francesa.

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jurídica da União fosse retirada do documento, os países que anseiam por fazer

parte de um bloco regional poderiam rechaçar a Constituição.

Dito de outra forma, se a Constituição, aprovada em junho de 2004 pelo

Conselho Europeu, for interpretada pelo método teleológico - segundo o qual o

texto é um organismo cujas partes estão harmoniosamente interligadas -, ela

correrá o risco de ser rejeitada.215 Isto porque, se todas as partes estão conectadas

e servem a um mesmo fim, será fácil concluir que a União Européia caminha

irreversivelmente para o federalismo centralizado (Artigo 6º) ou para o

confederalismo (Princípio da Subsidiariedade). O método teleológico poderia ainda

nos conduzir à afirmação de que a União Européia caminha inequivocamente para

um espaço neoliberal (com todos os artigos convergindo para o neoliberalismo) ou

inexoravelmente para um espaço de proteção ao modelo social europeu (com todos

os artigos garantindo o Estado de bem-estar social).

No debate francês em torno da Constituição Européia, tanto os partidários

do sim quanto os defensores do não partiram do mesmo pressuposto, qual seja: o

de que todas as partes da Constituição servem a um mesmo fim. Alguns partidários

do não à Carta Européia, os comunistas e parte dos socialistas, argumentaram que

ela é coerentemente neoliberal. Para os partidários do sim ela garante o modelo

social europeu. Os dois grupos, no entanto, parecem ver a Constituição como um

documento que estabeleceria de uma vez por todas o destino da Europa.

Na verdade, esta interpretação é uma conseqüência natural do tipo de

expectativa que se tem em relação à Constituição Européia. Espera-se que ela

possa imprimir um rumo definitivo à União Européia, determinando o seu futuro

desenho político-social (Estado neoliberal ou de bem-estar social) ou institucional

(federalista, confederalista ou em forma de consortio e/ou condominium). A

Constituição Européia só poderá ser viável se frustrar aquela expectativa inicial de

215 Foi o que aconteceu na França e na Holanda, onde os partidários do não mostraram que a Carta Européia levaria a União Européia inexoravelmente para um modelo neoliberal (extrema esquerda) e federalista (extrema direita).

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estabelecer um arranjo final para a União Européia. Ou seja, é justamente o fato de

apresentar-se como Obra Aberta, como um campo de possibilidades para vários

desenhos que pode torná-la aceitável pelos 25 Estados-membros. Cada Estado

sempre poderá ter esperanças de que, em algum momento, o seu interesse será

considerado.

Não é a conciliação de conteúdos e a conseqüente definição de um rumo

único para a UE que viabilizará o texto constitucional. Ao contrário, se a

Constituição for entendida como uma Obra Aberta, os Estados poderão selecionar,

baseados no Princípio da Subsidiariedade, aqueles artigos que sejam mais

condizentes com suas tradições nacionais. Veremos futuramente uma UE mais

parecida com um grande mercado ou com um espaço de bem estar social? Como

observamos em relação às outras possibilidades, não há como prever neste

momento qual será a futura configuração político-social da UE.

A separação de poderes nas instituições da União Européia ainda não

ganhou forma definitiva com a Constituição. O Parlamento Europeu vem

gradativamente conquistando poderes e nada nos diz que o processo tenha

chegado ao fim. Poderá haver ajustes no sistema com deslocamento de funções

entre os órgãos. Por enquanto, podemos dizer que as cinco instituições da UE

(Comissão, Conselho Europeu, Conselho de Ministros, Tribunal Constitucional e

Parlamento Europeu) servem, como de resto também acontece em outros modelos

mais tradicionais, a propostas diferentes. Algumas destas instituições, como a

Comissão, o Parlamento e o Tribunal Constitucional são supranacionais e o seu

fortalecimento interessa àqueles que defendem uma federação na Europa. Em

contraste, o Conselho de Ministros e o Conselho Europeu são instâncias

intergovernamentais e o aumento de seus poderes é visto com bons olhos por

aqueles que preferem uma Europa de caráter mais confederalista. Em outras

palavras, ao abarcar instituições supranacionais e intergovernamentais, o modelo

de separação de poderes da UE também acaba por satisfazer interesses diversos.

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Da mesma forma, a redistribuição de poder nos Conselhos teve como

objetivo acomodar as reivindicações dos Estados-membros. Em princípio,

estabeleceu-se que a ponderação de votos seria dada pela importância econômica e

demográfica de cada país. Ou seja, países menos desenvolvidos e com população

pequena possuiriam menos votos do que os países ricos e populosos. No entanto,

os países pequenos e médios têm, proporcionalmente, mais peso do que os países

maiores. Embora seja o país mais populoso e rico da União Européia a Alemanha

tem direito ao mesmo peso na ponderação de votos que a França, a Inglaterra e a

Itália, ou seja, 29. Em outras palavras, a Alemanha possui, proporcionalmente,

menos peso do que aqueles três países. Por um lado, a Constituição atende aos

pedidos dos pequenos e médios por mais poder; por outro, limita o poder da

Alemanha. O debate em torno da ponderação de votos nos Conselhos permanece e

poderá resultar na modificação da ponderação nos próximos anos.

Por fim, constatamos que o texto aprovado em julho de 2004 contém artigos

federalistas (Artigos I-6º, 12º e IV-7º), confederalistas (Artigos 59º e 5º) e aqueles

que permitem uma configuração de consortio e/ou condominium (Artigo I-43º-2).

O maior número de artigos federalistas, no entanto, não seria suficiente para

afirmarmos que a UE caminha inequivocamente para uma federação. Não se pode

adivinhar a configuração da União Européia com base simplesmente num método

quantitativo.

O desenho institucional da UE dependerá da forma como o Princípio da

Subsidiariedade será utilizado. Se a União intervier com freqüência nos Estados,

teremos uma Europa mais federalista. Ao contrário, se os Estados souberem

reinvindicar o Princípio da Subsidiariedade e fortalecer suas posições, poderemos

ver uma Europa de cunho confederalista. Se as regiões e comunidades locais forem

bem-sucedidas na reivindicação da subsidiariedade, surgirá uma Europa das regiões

ou composta por comunidades interligadas. Outra possibilidade seria que os

cidadãos recorressem freqüentemente à subsidiariedade para fazer prevalecer seus

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interesses, transformando a Europa numa comunidade transnacional de indivíduos.

O Princípio da Subsidiariedade, portanto, tem um papel fundamental na definição

da Constituição como uma Árvore Viva, um campo de possibilidades ou uma Obra

Aberta.

Em 1992, os dirigentes da União Européia entenderam que seria necessário

abrir exceções para o Reino Unido e a Dinamarca sob pena de comprometer todo o

processo de integração. Esses países foram dispensados de aderir ao euro naquele

momento. Criou-se então um precedente que daria origem, mais tarde, à

geometria variável, isto é, à possibilidade de se ter uma Europa com duas

velocidades.

Vimos que a geometria variável acabou sendo incorporada pela Constituição

Européia sob a forma do opt out e da cooperação reforçada. No opt out, um

determinado país pode escolher manter-se fora de uma determinada política, como

ocorre, por exemplo, com o Reino Unido, que não participa da zona do euro.

Inversamente, na cooperação reforçada um grupo de países pode se antecipar às

políticas comunitárias quando o Conselho de Ministros determinar que os objetivos

da cooperação em análise não podem ser atingidos a curto ou médio prazo pela

União Européia.

Em suma, a Carta Européia permite a formação de uma Europa com duas

velocidades ou de geometria variável. Uma vez aprovada por todos os 25 Estados-

membros, a Constituição Européia poderia permitir à França e à Holanda pedir um

opt out em relação a determinadas políticas que lhes fossem prejudiciais. As

populações desses países, no entanto, não perceberam a Constituição Européia

desta forma. Acreditaram, ao contrário, que a Carta Européia imprimiria um rumo

irreversível à União Européia e, por isso, a rejeitaram.

Paradoxalmente, a Constituição que entendemos como um texto flexível,

uma Obra Aberta a várias interpretações e apropriações, tem de ser aprovada pelo

método rígido da unanimidade. A integração pôde continuar depois do não britânico

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e dinamarquês em 1992 porque a União Européia fez concessões a esses países,

permitindo-lhes permanecer fora da zona do euro. Ao contrário do Tratado de

Maastricht, que foi flexibilizado depois do não britânico e dinamarquês, a Carta

Européia, em nosso entender, já se apresenta como flexível desde o início. Ela é

um campo de possibilidades ao qual diferentes agentes – Estados, regiões,

comunidades e cidadãos – podem recorrer para fazer valer seus interesses.

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