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Boletim da Educação – Número 12 Edição Especial – Dezembro 2014 II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária II ENERA Textos para estudo e debate Lutar, Construir Reforma Agrária Popular! 1ª edição MST São Paulo - 2014 Boletim da Educação n 12.indd 1 18/12/2014 09:53:10

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Boletim da Educação – Número 12 Edição Especial – Dezembro 2014

II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária

II ENERA

Textos para estudo e debate

Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

1ª ediçãoMST

São Paulo - 2014

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Diagramação e capa: Zap DesignImagem da contra capa: Cartaz do I ENERA Impressão: Cromosete

1ª edição: dezembro de 2014

SECRETARIA NACIONAL DO MSTAl. Barão de Limeira, 1232Campos Elíseos01202-002 - São Paulo - SPTelefone: (11) 2131-0850www.mst.org.br

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Apresentação ...............................................................................................................................5

PARTE 1 – DOCUMENTOS PREPARATÓRIOS

II Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (II Enera) ......................7

Coordenação do Setor de Educação, novembro 2014 – MST Educação 30 anos: balanço projetivo .........................................................................................................................13

Manifesto das Educadoras e dos Educadores da Reforma Agrária ao Povo Brasileiro (1997) .............................................................................................................19

PARTE 2 – TEXTOS POR EIXOS TEMÁTICOS

Programa Agrário do MST VI Congresso Nacional do MST – Fevereiro de 2014 ..................................................................21

MST Compromissos 2014 ...........................................................................................................47

Plataforma da Via Campesina para a Agricultura ........................................................................49

Educação básica no Brasil: entre o direito social e subjetivo e o negócio .......................................53 Gaudêncio Frigotto

Os empresários e a política educacional: como o proclamado direito à educação de qualidade é negado na prática pelos reformadores empresariais ..............................61 Luiz Carlos de Freitas

Organização, estratégia política e o Plano Nacional de Educação ................................................71 Roberto Leher

Forum Nacional de Educação do Campo ....................................................................................91

MST e Educação .........................................................................................................................95

O MST e a escola: concepção de educação e matriz formativa ....................................................101

Desafios de Formação da Juventude ............................................................................................115

II Seminário Nacional da Infância Sem Terra ..............................................................................123

Seminário Nacional de Educação de Jovens e Adultos da Reforma Agrária ..................................131

A Educação no MST: desafios e diretrizes para superá-los ...........................................................133

ANEXO – Amostra de canções do percurso 30 anos / educação .................................................141

SUMÁRIO

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5Apresentação

APRESENTAÇÃO

Em fevereiro de 2014 realizamos o VI Congresso Nacional do MST celebrando os 30 anos do Mo-vimento e atualizando nosso Programa Agrário. Foi um momento de balanço político e organizativo, de luta e de olhar para frente, analisando nossos desafios no contexto mais amplo das lutas da classe trabalhadora. Reafirmamos a luta pela terra, pela reforma agrária e pelo socialismo, reorganizando nossa estratégia em torno da “reforma agrária popular”, a partir da análise do cenário de lutas e de nossas possibilidades de atuação.

Foi no bojo dos desafios postos por esse novo ciclo de lutas e de construção que o MST tomou a decisão de fazer o II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (II Enera) em setembro de 2015 e, a propósito, continuar e ampliar o trabalho de base iniciado em preparação ao VI Congresso.

Pretendemos que o II Enera seja um encontro de caráter político, formativo, organizativo, mobi-lizador e celebrativo. Um dos seus grandes objetivos é ampliar o número de educadoras e educadores que compreendam o momento atual da questão agrária e passem a contribuir na luta e na construção da reforma agrária popular, discutindo o papel da educação nesse processo. Outro grande objetivo é organizar coletivamente a denúncia e as mobilizações contra o fechamento das escolas do campo, como uma consequência direta do avanço do agronegócio e da lógica mercantil protagonizada pelo “Movimento Compromisso Todos pela Educação”, dos empresários, que está pautando a educação em nosso país. Queremos discutir mobilizações conjuntas com outras organizações de trabalhadores para enfrentar essa avalanche do capital sobre a agricultura e a educação. Queremos também valorizar e celebrar nosso percurso de 30 anos e reafirmar a Pedagogia do Movimento em nosso plano de futuro.

Esta edição especial do Boletim da Educação traz para uso do conjunto do MST uma coletânea de textos de orientação e de apoio a estudos e debates para o processo de preparação do II Enera que deverá acontecer entre fevereiro e agosto de 2015. O Boletim está organizado em duas partes. Na primeira parte socializamos documentos já produzidos de planejamento e orientação à preparação do II Enera nos Estados, em cada assentamento, acampamento e nas escolas. Junto, colocamos o Mani-festo produzido no I Enera, realizado em 1997, retomando a memória de discussões e lutas do nosso percurso, como inspiração para as reflexões deste novo momento.

Na segunda parte selecionamos alguns textos relacionados aos eixos de estudo e debate que devem compor o II Enera, e que também integrarão as atividades de preparação nos Estados. Alguns textos são documentos ou produções internas ao MST e outros foram cedidos por autores amigos do Movi-mento para nos ajudar na tarefa de analisar a realidade sobre a qual trabalhamos. A seleção feita não esgota o tratamento dos temas, mas pode ser um ponto de partida ou uma contribuição para nossas discussões.

Em anexo colocamos uma pequena amostra de canções que marcaram o percurso específico do trabalho de educação do MST nesses 30 anos. Cantá-las e ensinar a cantar aos que chegam agora, é uma forma bonita e prazerosa de manter viva a memória das lutas e enraizar as novas gerações no caminho que continua a ser trilhado.

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6 Apresentação

O desafio de nos prepararmos coletivamente para este encontro é também força para prosseguir nossa jornada. Bom estudo e bons debates a todas e todos!

Rumo ao II Enera!

Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

Coletivo Nacional do Setor de Educação do MST, dezembro de 2014.

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7Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

II ENCONTRO NACIONAL DE EDUCADORES E EDUCADORAS DA REFORMA AGRÁRIA (II ENERA) – PLANO GERALCoordenação do Setor de Educação, novembro 2014

MemóriaO I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (Enera) aconteceu em Bra-

sília/DF, nas dependências da Universidade de Brasília, de 28 a 31 de julho de 1997, com a participação de 534 delegados, de 22 estados e 46 convidados de universidades ou outras instituições educacionais parceiras, além de representação do MAB e das pastorais sociais da CNBB. Os delegados eram das várias frentes de atuação do setor de educação, com predomínio de alfabetizadores de jovens e adultos.

O encontro teve o apoio principal do Unicef e da UnB (com presença e algum apoio da Unesco), mas com autonomia do MST no planejamento e na condução do encontro. Reforma agrária, projeto popular para o Brasil, papel da educação na construção do projeto, formação de educadores, nova LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (que tinha sido aprovada em 1996) foram os temas de estudo e debate no encontro. Os grupos de trabalho que se reuniram nas tardes foram os seguintes: Escolas de 1ª a 4ª séries; Escolas de 5ª a 8ª séries; Educação de Jovens e Adultos; Educação Infantil.

A homenagem principal foi ao educador Paulo Freire, que morreu meses antes, no dia 2 de maio de 1997: um vídeo gravado com ele no final do ano anterior compôs a mesa de abertura do I Enera. Os parti-cipantes aprovaram durante o encontro o “Manifesto das Educadoras e dos Educadores da Reforma Agrá-ria ao povo brasileiro”, cuja redação primeira foi feita no processo de preparação do encontro. Também elaboraram e aprovaram algumas “resoluções finais” (tarefas). Entre abril e junho de 1997 – no calor da Marcha Nacional a Brasília –, foram realizados 20 encontros estaduais de preparação ao Enera, envolvendo 1.600 educadores. O lema, que foi divulgado em cartaz e também no painel construído durante o encon-tro, continua como chamada até hoje: “Movimento Sem Terra: com escola, terra e dignidade”.

Foi no I Enera que aconteceu a 1ª Ciranda Infantil Nacional (batizada com esse nome). Foi também durante o I Enera que aconteceu uma reunião com os convidados das universidades que acabou desenca-deando a criação do Pronera, o que ocorreu em 16 de abril de 1998. No ato de encerramento do Enera, o MST foi convocado pelas outras entidades presentes a chamar um encontro de educadores de todo o meio rural, o que acabou acontecendo em 1998, com a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo.

Ao longo desses anos em diferentes momentos se levantou a ideia da realização do II Enera, mas por vários motivos se considerou que o momento propício é agora, desdobrando o movimento político--formativo do VI Congresso.

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8 Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

Caráter do II EneraPretende-se um encontro de caráter político, formativo, organizativo, mobilizador e celebrativo. O pro-

cesso de preparação nos Estados e a realização do encontro nacional deve ajudar a massificar entre os educadores a compreensão do momento atual da questão agrária e afirmar politicamente o programa de luta e construção da reforma agrária popular, discutindo o papel da educação na sua implementa-ção e mobilizando para as denúncias e lutas necessárias desse período. Devemos também radicalizar a denúncia contra o fechamento das escolas do campo, como uma consequência direta do avanço do agronegócio e da lógica mercantil protagonizada pelo “Movimento Compromisso Todos pela Educa-ção”, dos empresários, que está pautando a educação em nosso país. E organizar desde o trabalho de base a mobilização dos educadores na luta pela educação nas áreas de reforma agrária e pela educação do campo, articulada com as lutas gerais dos trabalhadores por educação e por um projeto popular de desenvolvimento do país. Queremos também valorizar e celebrar nosso percurso de 30 anos, reafirmar a Pedagogia do Movimento e discutir nosso plano de futuro.

Objetivos a) socializar e aprofundar compreensão do Programa Agrário do MST, atualizado nos debates de

preparação e realização do VI congresso, em fevereiro de 2014;b) analisar a política educacional brasileira atual e sua incidência sobre as práticas educativas desen-

volvidas nas áreas de reforma agrária;c) avançar na formulação coletiva do nosso projeto educativo estratégico discutindo papel da educa-

ção no momento histórico atual e na construção da reforma agrária popular;d) fazer um balanço político dos 30 anos de trabalho do MST com a educação e definir lutas, tarefas

e compromissos político-pedagógicos e organizativos principais para o próximo período;e) fortalecer a organização e a participação dos estudantes dos assentamentos e acampamentos;f) celebrar nosso percurso, socializar experiências e nos mobilizar para continuidade da luta e da

construção da educação da classe trabalhadora;g) denunciar a precarização da educação pública por atuação dos setores privados e discutir mobili-

zações conjuntas com outras organizações de trabalhadores.

ParticipantesDelegados dos Estados: educadores das várias frentes, dirigentes do Movimento e militantes dos dife-

rentes setores; lideranças de acampamentos e assentamentos; estudantes dos nossos cursos de formação de educadores; estudantes (jovens) de escolas de ensino médio (a meta é reunir um grupo de cem estu-dantes de diferentes Estados).

Convidados: apoiadores de outras instituições, organizações da Via Campesina e outras organizações de trabalhadores da educação (até 10% da delegação de cada Estado mais convidados nacionais). Os convites a entidades nacionais serão de responsabilidade da secretaria nacional do MST.

Meta: mil participantes.Período e local: 21 a 25 de setembro de 2015, em Luziânia/GO, na sede da CNTI.

Temas de estudo e debate:a) Reforma Agrária Popular• Atualização da análise da questão agrária e suas relações.• Balanço e perspectivas das lutas e da construção.

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9Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

• Exigências ao trabalho de educação.b) Pedagogia do Movimento, Educação do Campo, Educação da Classe Trabalhadora.• Fundamentos e relações.• Análise da relação entre conteúdo e forma escolar.• Análise do percurso de construção da Pedagogia do Movimento.• Perspectivas de avanço estratégico e tático.c) Situação da Educação Brasileira• Análise estrutural: conexões entre política educacional, modelo de desenvolvimento, forma social.• Contradições, lutas e organização dos trabalhadores da educação, práticas contra-hegemônicas.d) Balanço político dos 30 anos de trabalho do MST com a educação e definição de lutas, tarefas e

compromissos político-pedagógicos e organizativos principais para o próximo período (construção de síntese para discussão a partir dos processos de preparação nos estados).

e) Grupos de trabalho e minisseminários temáticos:

Grupos de Trabalho Para socialização e debate de práticas de ocupação da escola pela Pedagogia do Movimento:• Serão organizados em torno de 15 Grupos de Trabalho. Em cada GT serão apresentadas e discuti-

das quatro práticas (em torno de 60 práticas no conjunto do Enera). Haverá debate sobre as práti-cas socializadas e em cada GT se deverá garantir o registro das apresentações e discussões.

• A organização das apresentações será feita previamente por uma equipe nacional a partir das práti-cas inscritas pelos Estados (depois da realização dos encontros estaduais), considerando diversida-de de Estados, frentes, tipo de práticas... Para ajudar na organização e também na construção da memória do II Enera, haverá uma ficha de inscrição com uma descrição resumida de cada prática que deverá ser preenchida e enviada à equipe nacional.

• A distribuição dos participantes pelos GT será feita por crachás.• As práticas a serem socializadas: “escola” aqui está sendo entendida em sentido alargado e estamos

orientando que sejam indicadas práticas de todas as frentes de atuação do setor: educação infantil, educação de jovens e adultos, ensino fundamental e médio, ensino superior, ensino técnico, edu-cação especial em áreas de assentamento, jornadas Sem Terrinha, jornadas da juventude, trabalho de base nos acampamentos e assentamentos, formação de educadores, atividades dos centros de formação...

• Haverá um GT específico para socialização de práticas entre os jovens/estudantes que vierem como delegados dos estados para o II Enera.

Seminários temáticos:• Serão organizados em torno de dez seminários com realização simultânea a partir de inscrições

realizadas no credenciamento e o tamanho das salas disponíveis.• Os temas serão definidos no processo de construção do programa geral do encontro. Alguns temas

que estão sendo sugeridos: – agroecologia e alimentação escolar; – agronegócio na escola pública; – reformas empresariais na educação / avaliação educacional; – indústria cultural e educação do campo; – gênero e educação; – juventude; – infância; – educação especial; – educação profissional (debates atuais); – métodos de trabalho de base.

• Cada seminário terá exposição/problematização do tema feita por assessoria convidada previamen-te seguida de debate entre os participantes.

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10 Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

Apresentações artístico-culturais• Mostra ou feira por regiões, incluindo intercâmbio de produções e práticas.• Apresentações de grupos externos ao longo da programação.• Jornada Socialista.• Uma equipe constituída por representantes dos setores de educação, cultura e juventude será res-

ponsável pelo planejamento e coordenação das atividades.

Ato PolíticoCaráter a definir a partir de análise da conjuntura do período.

Preparação nos Estados• Trabalho de base nos assentamentos e acampamentos, cursos e escolas, de acordo com a organici-

dade de cada Estado e aproveitando o jornal especial de preparação ao II Enera a ser enviado.• Encontros estaduais de educadores: tamanho, caráter, preparação local de acordo com as possibili-

dades de cada Estado, mas realização como condição de participação no encontro nacional. Focos prioritários: – Programa Agrário MST; – Balanço do trabalho de educação no Estado (organicida-de, lutas e práticas); – conjuntura educacional do Estado... É importante garantir no encontro um momento para socialização de práticas e também seminários temáticos (com temas relacionados às questões da realidade do Estado), na forma semelhante ao que será o encontro nacional.

• Período: março a julho 2015.

LemaNa preparação trabalhar com o lema do VI Congresso: Lutar, Construir Reforma Agrária Popular! Se

no processo surgirem propostas de lema específico a questão será rediscutida.

Manifesto do II EneraProdução coletiva e processual:• Há uma equipe elaborando a primeira versão do texto a partir de discussão feita no coletivo nacio-

nal de educação e interlocução nas instâncias nacionais do MST.• O texto deverá ser discutido nos encontros estaduais e será feita uma sistematização geral das con-

tribuições dos Estados.• Durante o II Enera haverá discussão coletiva em vista de aprovação do texto final.• Meta: lançamento do Manifesto até o final do II Enera.

Materiais de apoio à preparação• Jornal Especial II Enera.• Coletânea de textos já produzidos (internos e externos) sobre os temas principais de estudo.• Painel e cartaz: produção a ser feita pela Brigada de Audiovisuais do MST.

Equipes de TrabalhoPrimeira proposta a ser amadurecida nas reuniões de planejamento: Transporte; Secretaria, Recepção

e Apoio às Mesas e aos Grupos de Trabalho; Logística do local de realização do Encontro e Alojamento; Ciranda Infantil (ter educadores dos Estados); Saúde; Sistematização; Mística e Cultura, Mostra ou Feira de Artes, Comunicação, Relações Públicas; Ato Político; Finanças; Segurança/Disciplina (por Estado).

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11Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

Finanças• Equipe nacional do MST responsável pela articulação de apoios diversos visando as despesas gerais

do encontro nacional e a reprodução dos materiais de preparação.• Estados responsáveis pela busca de recursos para as atividades de preparação estadual e para o des-

locamento dos participantes até Luziânia/GO.• Contribuição financeira de cada participante no credenciamento: 50 reais.

Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST

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13Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

MST EDUCAÇÃO 30 ANOS: BALANÇO PROJETIVORoteiro para discussão coletiva

A proposta é organizar discussões (nacionais e nos Estados) considerando os grandes objetivos do nosso trabalho, relacionados aos objetivos estratégicos do Movimento de “lutar pela terra, pela reforma agrária e pelo socialismo”, na compreensão atual que temos sobre eles. Uma questão geral pode ser sobre qual a contribuição do trabalho de educação para que mais pessoas avancem na apropriação dos obje-tivos do MST e possam ser atingidas, dentro das condições objetivas de cada momento e de cada lugar onde o Movimento está organizado. E também fazer um balanço sobre a forma de atuação e o funcio-namento do setor de educação ao longo do percurso de 30 anos, completados em 2014.

Das discussões em geral queremos identificar o que conseguimos fazer até aqui: alguns aprendizados do nosso percurso histórico e elementos da situação atual a ser enfrentada no próximo período. Tam-bém precisamos discutir sobre qual a atualização necessária no conteúdo e na forma de nosso trabalho, em função das novas exigências da reforma agrária popular e as condições existentes em cada Estado e região.

Pontos para o balanço

1. Na relação com os objetivos estratégicos do Movimento podemos sintetizar os grandes objetivos do trabalho de educação em três principais que precisam ser objeto desse balanço:

a) Lutar pela universalização do acesso à escola pública de qualidade social. Fazemos essa luta desde a questão específica da dívida histórica da sociedade brasileira em relação aos trabalhadores do campo e pela exigência de dar esse passo para inserir efetivamente toda nossa base social na luta e construção da reforma agrária e das transformações socialistas do campo, da sociedade. No balanço projetivo podemos considerar:

• como está a situação educacional das áreas de reforma agrária / do campo: acesso aos vários níveis de escolarização, condições das escolas, educadores... É importante considerar dados do censo es-colar que estão sendo divulgados, bem como algumas análises feitas por pesquisadores do nosso campo;

• como está a mobilização da base pela ampliação do acesso e qualidade da educação;• elementos de nossa realidade político-pedagógica: como está a disputa pela condução das escolas,

das práticas de EJA, de educação infantil, da formação de educadores; quem está com o controle, quais são as referências mais fortes para nossos educadores, nossas comunidades; em que escolas estamos conseguindo incidir e de que forma...

b) Produzir formulações político-pedagógicas que materializem nossa concepção de educação, sirvam de referência ao conjunto diversificado de práticas educativas que temos nas áreas de reforma agrária, na edu-

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14 Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

cação do campo (práticas não apenas escolares) e contribuam na formação de lutadores e construtores, na direção de um projeto educativo socialista, protagonizado pelos próprios trabalhadores (do campo e da cidade, de todo o mundo). Considerar:

• o conteúdo e a forma da elaboração político-pedagógica nesse percurso;• como temos garantido o diálogo com outras experiências e organizações de trabalhadores;• como analisamos o enraizamento da Pedagogia do Movimento: nas instâncias organizativas, na

militância, na base..., no conjunto de nossas práticas educativas;• temos territórios conquistados com relativa autonomia de construção dos caminhos de transforma-

ção da escola?c) Contribuir pelas práticas de educação das diferentes gerações, e especialmente da infância e juventude,

na escola e fora dela, com a implementação da política de formação do MST. Considerar:• processos de desenvolvimento cultural e de consciência política das comunidades onde atuamos,

que podem ser evidenciados pelo grau de exigência de qualidade da vida humana em suas diferen-tes dimensões e capacidade política e organizativa para lutar por essa qualidade;

• processos de auto-organização e de participação social das crianças e jovens dos nossos acampa-mentos e assentamentos;

• como estamos conseguindo integrar formação geral, capacitação técnica e formação política em nossas práticas de educação escolar nos vários níveis...

2. Precisamos fazer uma discussão específica sobre a atuação e o funcionamento do setor de educação:Áreas de atuação: talvez caiba analisar nosso percurso em termos de focos do trabalho, ênfases, tarefas

assumidas...Construção da organicidade (do MST, do trabalho de educação nas áreas de acampamentos e as-

sentamentos). O que fizemos, os problemas atuais, as transformações necessárias no nosso método de construção...

Relações com o Estado (considerar o sentido estrito e o ampliado de Estado que inclui a sociedade civil organizada desde as classes sociais principais em confronto). O que foi mudando nesse percurso, o que aprendemos, qual o lugar dessa relação nas prioridades atuais de trabalho do setor, o que precisa ser mu-dado para atingirmos nossos objetivos...

Relações com a sociedade (população) em geral. O que foi mudando nesse percurso, o que aprendemos, qual o lugar dessa relação nas prioridades atuais de trabalho do setor, o que precisa ser mudado para que se consiga avançar nos apoios e romper o cerco ideológico contrário ao Movimento, aos trabalhadores pobres do campo...

Sobre alguns desafios gerais do momento atualPodemos organizar esse debate projetivo a partir de três pontos principais: – quais são os enfrenta-

mentos principais do momento atual; – quais nossas lutas e construções prioritárias, considerando os no-vos desafios formativos postos pela reforma agrária popular; – que ajustes precisamos fazer no trabalho do setor de educação para dar conta desses desafios. Alguns elementos introdutórios a cada ponto a par-tir de debates que estamos fazendo, mas que precisam ser discutidos, complementados, aprofundados:

1. Precisamos identificar quais são os enfrentamentos principais do momento atualTemos identificado dois grandes enfrentamentos, relacionados à natureza do nosso trabalho especí-

fico e que se articulam na realidade concreta. O primeiro grande enfrentamento se refere à hegemonia

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15Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

ideológica do agronegócio: no conjunto da sociedade; entre os camponeses, em nossos assentamentos. Te-mos muitos camaradas de lutas que ainda não entenderam o confronto de lógicas de agricultura como parte da luta de classes hoje e porque combatemos o agronegócio. E isso fica ainda mais grave pela ofen-siva do agronegócio nas escolas públicas, inclusive as de assentamentos, para continuar com a hegemonia ideológica mesmo diante das contradições explosivas do modelo da agricultura capitalista. Precisamos enfrentar essa ofensiva porque ela mascara a lógica destrutiva desse modelo e subordina educadores e estudantes, com discursos aparentemente inovadores.

O segundo grande enfrentamento é a política educacional dominante, comandada pelos interesses do capital (empresários), com marca de “inclusão excludente” do conjunto dos trabalhadores e ao mesmo tempo exclusão descarada de alguns segmentos, o que é indicado, por exemplo, pelo fechamento acele-rado de escolas no campo.

O que especialmente devemos ajudar a denunciar/enfrentar é a ingerência dos empresários na política educacional, através do “Movimento Todos pela Educação” e suas implicações principais: ofensiva das grandes empresas capitalistas sobre secretarias de educação ou diretamente sobre as escolas; visão depen-dente e (mais uma vez) colonizada de copiar programas de fora (especialmente dos EUA); retirada da autonomia das escolas, dos educadores que passam a ser preparados como executores de uma pedagogia padronizada por testes, cartilhas produzidas pelas empresas, e remunerados pelo desempenho; educação cada vez mais unilateral, voltada à formação de mão de obra (para aumentar o chamado “exército in-dustrial de reserva”), na dualidade que prevê uma pequena elite de trabalhadores com qualificação mais sofisticada e a imensa maioria com qualificação mínima para empregos precários, com exacerbação, nesse caso da cisão entre trabalho manual e intelectual, prática e teoria...

A política educacional atual torna muito mais difícil fazer o enfrentamento à pedagogia do capital em nossas práticas educativas porque tira a autonomia das escolas, porque legitima a atuação das empresas no sistema educacional, ao mesmo tempo em que precariza o sistema público. E há ainda uma grande apatia ou desconhecimento da maioria dos pais, educadores, estudantes, militantes e dirigentes das or-ganizações sobre o que são e o que representam para os trabalhadores as chamadas “reformas empresa-riais” da educação. Isso está no geral da sociedade e está entre nós, na nossa base.

2. Lutas e construções prioritárias na relação com os desafios da reforma agrária popularA centralidade do enfrentamento ao agronegócio e da luta pela reinserção da reforma agrária na agen-

da pública exige que mais gente (trabalhadores do campo e da cidade) entenda o que está acontecendo no campo, na agricultura hoje, e mais amplamente compreenda o ônus à humanidade de transformar tudo em mercadoria e especialmente os alimentos, a água, a natureza...

Nossas escolas precisam se envolver no embate ideológico, cada vez mais acirrado. Não é verdade que não temos alternativas! E que cada vez mais gente saiba disso é desafio educativo fundamental a ser assumido pelos educadores da reforma agrária, bem como da Educação do Campo, o que quer dizer que os próprios educadores precisam ser educados sobre isso, em função da forte ofensiva do discurso ideológico do agronegócio sobre todos.

Nosso esforço educativo inclui também intencionalidades para que a sociedade, a começar pelas fa-mílias de nossas comunidades, discuta e se posicione sobre algumas questões fundamentais ao futuro do ser humano: – Que tipo de alimentos queremos consumir? – Como devem ser produzidos esses ali-mentos? – Como garantir que todas as pessoas (em qualquer lugar do mundo, em cada região, em cada local) tenham acesso aos alimentos de que precisam para viver com saúde? – Qual a principal finalidade da agricultura (produzir alimentos ou produzir commodities)? – Qual o uso que devemos dar à terra, à

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água, ao conjunto dos recursos naturais? O que deixaremos como herança para nossos filhos e netos? – Quem deve controlar a produção agrícola de um país?

Uma ideia fundamental a ser firmada é de que a função principal da agricultura é de produzir alimen-tos, saudáveis e ambientalmente sustentáveis, para o conjunto da população e dinamizando o território onde são produzidos. Outras funções somente deveriam ser desenvolvidas depois da função principal ter sido realizada. E alimentos não devem ser tratados como mercadorias, mas como direito humano fundamental, de todas as pessoas em todo o mundo e a qualquer tempo.

Um desafio educativo grandioso que se desdobra do debate da reforma agrária popular é o de uma formação dos camponeses (novas e velhas gerações) baseada no aproveitamento crítico dos saberes e ex-periências dos antepassados e apropriação ou produção de conhecimentos científicos necessários aos desafios de construção de uma nova lógica de agricultura. Essa formação necessita da universalização do acesso à educação escolar básica, da elevação do patamar de acesso dos trabalhadores camponeses à educação de nível superior e aos bens culturais produzidos pela humanidade, além de uma capacitação técnico-profissional pensada (revolucionada) desde o conjunto dos fundamentos do projeto de reforma agrária popular.

Considerando esses desafios formativos e a realidade atual da educação brasileira (e mundial), o mo-mento é de defesa intransigente da educação pública em nosso país, ameaçada pelas investidas dos setores privados e empresariais nacionais e transnacionais sem precedentes na história do próprio capitalismo.

Desde nossa atuação específica, mas na articulação necessária com outras organizações e forças da classe trabalhadora, isso implica em continuar/radicalizar a luta pelo acesso das famílias trabalhadoras do campo à educação escolar pública. Isso se refere às lutas mais amplas pela universalização do acesso à edu-cação básica e pela democratização do acesso à educação profissional (que não se reduza à lógica Prona-tec) e à educação superior (que não se reduza à educação a distância)... E no campo há uma ilusão a ser combatida de que, porque temos um “Pronacampo”, a questão do direito e do acesso já está resolvido, enquanto as escolas continuam fechando...

Nossa radicalidade implica principalmente em realizar lutas coletivas, massivas pelo acesso dos tra-balhadores do campo à educação pública e no próprio campo. Nessa perspectiva uma luta emblemática é a que estamos fazendo contra o fechamento de escolas: precisamos continuar com a campanha do MST “fechar escola é crime!” e nos mobilizar pela agilização e desburocratização da construção de novas es-colas no campo. Isso é estrutural e na lógica atual de expulsão das famílias do campo pela agricultura capitalista parece até que é “exigir o impossível”, por isso deve ser nossa prioridade. Da mesma forma que devemos afirmar políticas ou mesmo programas que pressionem o sistema na direção do acesso dos camponeses à escola em todos os níveis, com atenção especial à dívida histórica que tem nosso país com a alfabetização de jovens e adultos.

3. Ajustes na forma e conteúdo do trabalho de educação feito pelo MST (discutir a partir do balanço e da análise dos enfrentamentos principais – trazemos aqui apenas alguns elementos preliminares)

É importante ter presente em nossa discussão o que sempre afirmamos: o avanço do nosso trabalho específico na educação depende do vínculo orgânico com a estratégia do MST e de avançarmos (massivamente) na compreensão da concepção de educação que construímos nesse vínculo. Os enfrentamentos postos no momento atual parecem exigir uma intencionalidade maior em um movimento que iniciamos especialmente no final dos anos de 1990, junto com o todo do Movimento e, em nosso caso, especialmente pela participação na construção da Educação do Campo: precisamos sair de nós mesmos! Mas o desafio é fazer isso sem perder nossa identidade e autonomia de formulação política e

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pedagógica e sem nos distanciarmos do conjunto de objetivos estratégicos do MST, especialmente na síntese atual expressa no programa agrário de 2014. E este “sair de si mesmo” hoje precisa começar pelo campo, potencializando vínculos com organizações de trabalhadores do campo e articulações existentes em torno da Educação do Campo, mas não pode ficar no campo, especialmente no embate com a política educacional e nos esforços de quebra de hegemonia do agronegócio. Há uma discussão a ser feita em cada Estado sobre quais as alianças prioritárias, do ponto de vista estratégico e do ponto de vista tático, para avançarmos enquanto classe trabalhadora nos enfrentamentos principais identificados.

E é importante reafirmar que, assim como no início de nosso trabalho, mas agora talvez com exigên-cias mais amplas e mais complexas, a educação é chamada a contribuir, desde o seu trabalho específico, com a construção de alternativas, de políticas de enfrentamento ao capital, especialmente na agricultura (como ajudar a multiplicar as experiências de agroecologia em nossos assentamentos, por exemplo), mas também na própria educação, nas transformações da forma escolar subserviente ao capital, no trabalho cultural contra-hegemônico, na afirmação da identidade da agricultura camponesa...

Não podemos deixar de avançar em nossas formulações político-pedagógicas vinculadas à estratégia do Movimento. E para isso é preciso garantir espaços com autonomia (ainda que sempre relativa) que nos permitam avançar radicalizando (indo à raiz) nossas formulações e práticas em vista das novas exi-gências formativas...

O setor precisa se organizar em cada Estado, cada região, para intencionalizar, fortalecer e acompa-nhar práticas educativas e experimentações pedagógicas que firmem uma concepção de educação capaz de formar os trabalhadores na perspectiva dos novos desafios, reafirmando a Pedagogia do Movimento e continuando sua construção histórica desde as condições objetivas e os desafios de cada realidade con-creta...

Precisamos retornar às bases de nossa construção originária, buscando materializar na forma de tra-balho uma relação cada vez mais orgânica com as questões da produção, considerando agora os conteú-dos postos pela atualização de nosso programa agrário.

Da mesma forma que nas definições de nossa divisão de tarefas será necessário garantir que o setor se ocupe mais com as questões dos rumos da educação brasileira: no momento atual está mais difícil atuar no particular de nossas áreas sem compreender e atuar no geral.

E precisamos discutir sobre como dar conta de nossas tarefas específicas avançando no trabalho intersetorial, cada vez mais necessário, especialmente em relação ao grande desafio educativo de nossa base para que assuma o combate à hegemonia do agronegócio e para que mais gente se aproprie de fer-ramentas de análise que permitam identificar com rigor as contradições principais de cada realidade e transformá-las em lutas coletivas concretas...

Esse debate está apenas no começo...

Novembro – 2014.

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19Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

MANIFESTO DAS EDUCADORAS E DOS EDUCADORES DA REFORMA AGRÁRIA AO POVO BRASILEIRO (1997)

No Brasil, chegamos a uma encruzilhada histórica. De um lado está o projeto neoliberal, que destrói a Nação e aumenta a exclusão social. De outro lado, há a possibilidade de uma rebeldia organizada e da construção de um novo projeto. Como parte da classe trabalhadora de nosso país, precisamos tomar uma posição. Por essa razão, nos manifestamos.

1. Somos educadoras e educadores de crianças, jovens e adultos de acampamentos e assentamentos de todo o Brasil, e colocamos o nosso trabalho a serviço da luta pela reforma agrária e das transformações sociais.

2. Manifestamos nossa profunda indignação diante da miséria e das injustiças que estão destruindo nosso país, e compartilhamos do sonho da construção de um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil, um projeto do povo brasileiro.

3. Compreendemos que a educação sozinha não resolve os problemas do povo, mas é um elemento fundamental nos processos de transformação social.

4. Lutamos por justiça social! Na educação isto significa garantir escola pública, gratuita e de quali-dade para todos, desde a educação infantil até a universidade.

5. Consideramos que acabar com o analfabetismo, além de um dever do Estado, é uma questão de honra. Por isso nos comprometemos com esse trabalho.

6. Exigimos, como trabalhadoras e trabalhadores da educação, respeito, valorização profissional e condições dignas de trabalho e de formação. Queremos o direito de pensar e de participar das decisões sobre a política educacional.

7. Queremos uma escola que se deixe ocupar pelas questões de nosso tempo, que ajude no fortaleci-mento das lutas sociais e na solução dos problemas concretos de cada comunidade e do país.

8. Defendemos uma pedagogia que se preocupe com todas as dimensões da pessoa humana e que crie um ambiente educativo baseado na ação e na participação democrática, na dimensão educativa do trabalho, da cultura e da história de nosso povo.

9. Acreditamos numa escola que desperte os sonhos de nossa juventude, que cultive a solidariedade, a esperança, o desejo de aprender e ensinar sempre e de transformar o mundo.

10. Entendemos que para participar da construção desta nova escola, nós, educadoras e educadores, precisamos constituir coletivos pedagógicos com clareza política, competência técnica, valores huma-nistas e socialistas.

11. Lutamos por escolas públicas em todos os acampamentos e assentamentos de reforma agrária do país e defendemos que a gestão pedagógica destas escolas tenha a participação da comunidade Sem Terra e de sua organização.

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20 Parte 1 – Documentos preparatórios ao II ENERA

12. Trabalhamos por uma identidade própria das escolas do meio rural, com um projeto político--pedagógico que fortaleça novas formas de desenvolvimento no campo, baseadas na justiça social, na cooperação agrícola, no respeito ao meio ambiente e na valorização da cultura camponesa.

13. Renovamos, diante de todos, nosso compromisso político e pedagógico com as causas do povo, em especial com a luta pela reforma agrária. Continuaremos mantendo viva a esperança e honrando nossa Pátria, nossos princípios, nosso sonho...

14. Conclamamos todas as pessoas e organizações que têm sonhos e projetos de mudança, para que juntos possamos fazer uma nova educação em nosso país, a educação da nova sociedade que já começa-mos a construir.

MSTREFORMA AGRÁRIA: UMA LUTA DE TODOS!

1º Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma AgráriaHomenagem aos educadores Paulo Freire e Che GuevaraBrasília, 28 a 31 de julho de 1997.

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21Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

PROGRAMA AGRÁRIO DO MST

VI Congresso Nacional do MST – Fevereiro de 2014

Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

Apresentação

Estimados companheiros e companheiras militantes do MSTEm agosto de 2011, a direção nacional do MST deu início a um processo de debates e discussões em

preparação ao VI Congresso Nacional. De lá para cá, fizemos diversos seminários nacionais, regionais e estaduais. Fizemos debates nos cursos de formação, nas instâncias estaduais e nos coletivos dos diferen-tes setores. Acreditamos que a ampla maioria de nossa militância se envolveu nesse debate.

Formulamos dois documentos básicos. O primeiro é o programa agrário do MST para o período de 2014-2019. O segundo contém as principais linhas políticas setoriais do MST, em especial, sobre a Fren-te de Massas, a Produção e os desafios da tática da nossa luta. Também, atualizamos as normas gerais, sobre funcionamento das nossas instâncias.

Aqui, nesta cartilha, apresentamos o que sistematizamos, dos debates e discussões, sobre o Programa Agrário. Como podem ver, temos uma análise inicial sobre o diagnóstico da realidade agrária brasileira. Depois, há um capítulo sobre a natureza da reforma agrária nos tempos atuais. Segue o capítulo dos fun-damentos de uma reforma agrária de novo tipo que defendemos para a sociedade brasileira e a proposta de um programa de Reforma Agrária Popular.

E, ao final, apresentamos o lema, do próximo congresso nacional, deliberado por mais de 300 dirigen-tes, na reunião da Coordenação Nacional do Movimento: Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

O lema serve para incentivar e orientar nossas lutas e práticas de trabalho e organização. Serve, tam-bém, para dialogar com a sociedade, manifestando os objetivos centrais da nossa luta para os próximos anos.

Aqui está a síntese de dois anos de debates e de uma construção coletiva. Centenas de companheiras e companheiros participaram ativamente dessa elaboração coletiva, aqui apresentada.

Este documento, não deve ser visto como uma receita ou um produto já acabado. Ao contrário, são ideias que construímos, com base em conhecimentos científicos e da nossa prática concreta da luta de clas-ses do dia a dia, em todo o país. Assim, deve ser visto como uma síntese histórica para esse momento. A implantação do nosso Programa de Reforma Agrária Popular depende, em parte, da nossa capacidade de reivindicar e pressionar os governos. Obter conquistas do Estado burguês é um fator importante na luta de classes e na formação de uma consciência política dos nossos militantes. Importante, mas insuficiente.

A sua implantação depende da correlação de forças nos enfrentamentos com o inimigo principal da reforma agrária hoje, o agronegócio. Não bastam apenas vontade e disposição de lutar. É preciso ter for-ça organizada, agilidade política e criatividade nas formas de lutas para derrotar o inimigo.

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Depende, sobretudo, da nossa capacidade de fortalecer internamente a nossa organização. Precisa-mos de um MST forte, com efetivos mecanismos de democracia interna, que incentivem e possibilitem a participação de todos e todas nas discussões e tomadas de decisões da nossa organização.

Depende da nossa capacidade de ir acumulando forças e irmos construindo em nossos assentamen-tos, em nossas escolas, centros de formação, enfim, em todos os nossos espaços conquistados, o nosso modelo de agricultura para o campo brasileiro.

Depende da nossa capacidade de construirmos alianças concretas em torno do programa com os de-mais setores do campesinato e com toda classe trabalhadora urbana.

Depende da capacidade de dialogar e conquistar amplos setores da sociedade brasileira, para cons-truir uma hegemonia – um consenso – que compreenda e defenda o nosso modelo de agricultura. De-pende da democratização do Estado brasileiro, da mudança de seu caráter burguês. E de termos um governo hegemonicamente popular.

Por isso, esse programa seguirá em construção permanente. Seguirá sendo atualizado de acordo com o andar das nossas lutas, conquistas e novos desafios, ao longo da história! Esperamos que cada compa-nheira, cada companheiro possa aprofundar estes estudos, compartilhar com outros companheiros/as, utilizá-los para debates nas escolas, cursos e centros deformação.

Devemos, também, utilizar esta cartilha para debater nossas ideias e propostas junto aos demais se-tores da sociedade. Assim esperamos contribuir para a construção de um futuro melhor para o nosso país, alicerçado nos ideais socialistas, e legarmos, para as gerações futuras, uma sociedade brasileira so-cialmente justa, igualitária, democrática e fraterna, como todos e todas nós sonhamos.

Coordenação Nacional do MST Brasília, agosto de 2013

I. O processo de desenvolvimento do capitalismo no campo

1. Contexto histórico1. O capitalismo mundial, a partir da década de 1980, ingressou numa nova fase de seu desenvolvi-

mento, sendo agora hegemonizado pelo capital financeiro e pelas empresas privadas transnacionais, oli-gopolizadas, que controlam o mercado mundial das principais mercadorias. Isso significa que o processo de produção de riquezas continua sendo realizada pelo trabalho na esfera da indústria, agricultura e do comércio. No entanto, as taxas de acumulação e de divisão do lucro se concentram na esfera do capital financeiro e das grandes empresas privadas capitalistas oligopolizadas que atuam em nível mundial. (Segundo dados do Pnud – Agência de Desenvolvimento das Nações Unidas, as 700 maiores empresas controlam 80% do mercado mundial!)

2. Em 1980 o PIB mundial (que teoricamente representa a produção de todas as mercadorias no ano) estava em torno de 15 trilhões de dólares e havia em circulação ao redor de 16 trilhões de dólares em equivalente moeda. Agora, em 2010, o PIB mundial passou para 55 trilhões (concentrado cada vez mais em um menor número de países – EUA, Europa, China e Japão) e o volume de moeda em circulação ascendia a 150 trilhões de dólares. Isso acrescido do capital fictício representado por títulos e documen-tos de crédito.

3. Essa forma dominante do capital em todo o mundo trouxe mudanças estruturais também na for-ma de dominar a produção das mercadorias agrícolas. Surgiu uma aliança de classe, entre a burguesia

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das empresas transnacionais, os banqueiros (o capital financeiro), a burguesia proprietária das empresas de comunicação de massa e os grandes proprietários de terra para controlarem a produção e a circulação das commodities (mercadorias agrícolas padronizadas). Como resultado esperado, controlam os preços e o volume das commodities em circulação, portanto, dominam os mercados e ficam com a maior margem da renda agrícola e do lucro produzidos.

4. Na organização da produção das mercadorias impuseram a racionalidade do capital através da produção em escalas em áreas contínuas e do monocultivo, com o objetivo de obter produtividade máxima do trabalho e maior rentabilidade econômica. Para isso, substituem a força de trabalho pela mecanização intensiva. E se utilizam de volumes cada vez maiores de fertilizantes químicos industriais e de agrotóxicos.

5. As empresas transnacionais que controlam a produção de agrotóxicos passaram a controlar a oferta de sementes, tanto as híbridas quanto as geneticamente modificadas em laboratórios. Estas sementes conhecidas como transgênicas são portadoras de genes que tornam as plantas mais suscetíveis a doenças e pragas exigindo o uso obrigatório, e mais intensivo, de agrotóxicos. Essas sementes transgênicas são patenteadas como propriedade privada permitindo legalmente que se cobre ‘direitos de uso’ pelos agri-cultores: os commodities.

6. Esse modelo de produção resultou numa matriz tecnológica de produção universalizada a partir da década de 1990, com aplicação da biotecnologia (em particular da transgenia), da informática e das técnicas de irrigação, tudo controlada pelas empresas privadas transnacionais. Poderia ser considerada como é uma nova fase da modernização conservadora iniciada na década de 1960, mas diferente e mais intensa do que a anterior, a qual foi a chamada de ‘revolução verde’ pelo uso intensivo de insumos agro-químicos de origem industrial.

7. Essa forma de produzir tornou-se cada vez mais dependente do adiantamento do capital finan-ceiro, na forma do crédito rural, para financiar o acesso aos insumos adquiridos nos mercados como sementes, mudas e sêmen; fertilizantes e herbicidas químicos; agrotóxicos e hormônios; máquinas, tra-tores, implementos e veículos de transportes.

8. Esse modelo de produção agrícola foi massivamente adotado pelas empresas capitalistas no campo e passou a denominar-se como o modelo do agronegócio. Tornar a agricultura como um negócio para acumulação de riqueza e de renda sob o controle do grande capital.

9. Com a crise internacional do capitalismo, a partir de 2008 percebeu-se uma ofensiva de entrada de capital estrangeiro tanto do capital financeiro quanto do fictício, que migrou do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul. Esses capitais foram investidos na agricultura, na apropriação privada da natu-reza (terras, água, hidrelétricas, fontes de energia, minérios, usinas de etanol) bem como no controle de commodities (soja, milho, laranja, cacau, aves, suínos, carne bovina etc.).

10. No caso do Brasil, as estatísticas revelam que no período de 2008-2012 ingressaram no país ao redor de 80 bilhões de dólares de capital financeiro estrangeiro para aplicar apenas na aquisição de bens da natureza.

11. Além da ofensiva em investimentos estrangeiros para o controle da produção e dos mercados agrí-colas, tem-se constatado uma ofensiva do capital internacional do Hemisfério Norte, para investirem e controlarem, através de grandes empresas privadas transnacionais, as riquezas minerais do Brasil como ferro, bauxita, ouro, cobre, nióbio etc. E também controlar as fontes de energia como petróleo e gás na-tural, etanol, hidrelétricas e parques eólicos.

12. O modelo macroeconômico brasileiro praticamente não se alterou com a mudança de governo, mantendo sua lógica centrada nos ganhos especulativos ligados ao capital financeiro. O governo man-

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teve o superávit primário no orçamento da união, como forma de garantir pagamento de juros da dí-vida interna, e não teve o controle do câmbio. Isso significa que a taxa de câmbio deixada à “mercê do mercado” flutuou de acordo com os interesses de especulação do capital privado internacional sobre a nossa economia. Os Estados Unidos (EUA) emitem a moeda dólar sem controle e jogam no mercado internacional para que paguemos o seu déficit.

13. Este processo ocorrido durante os oito anos de governo Lula, resultou numa transferência para o capital financeiro de mais de 700 bilhões de reais, somente para pagamento de juros da dívida interna. O que contribuiu para concentração e centralização do capital, pois, segundo estudos de Márcio Poch-mann, os credores e beneficiários desses juros são menos de cinco mil capitalistas.

14. O agronegócio passou a ter uma expressiva função econômica no modelo do capital financeiro (gerar saldos comerciais para ampliar as reservas cambiais, condição essencial para atrair os capitais es-peculativos para o Brasil). E este avanço do agronegócio bloqueia e protege as terras improdutivas para futura expansão dos seus negócios, travando a obtenção de terras para a reforma agrária.

15. O Estado brasileiro, mais além do seu arcabouço jurídico de proteger os interesses da classe do-minante, tem cumprido um papel fundamental de garantir a hegemonia do modelo do agronegócio na produção agrícola. Ele atua na garantia de transferência de recursos públicos, via investimentos e através do financiamento compulsório destinado a ele, recolhendo da poupança nacional depositada nos ban-cos.

16. Esse modelo afeta, sob as mais distintas dimensões, a articulação político-partidária e legislati-va, as formas de pressão sobre os governos e a natureza da disputa do poder político no contexto das contradições de classes sociais. A constituição de uma bancada ruralista pluripartidária é emblemática, colocando os interesses das empresas capitalistas direta e indiretamente relacionadas com o capital no campo, acima dos interesses sociais.

2. As mudanças estruturais na propriedade da terra, produção, emprego e renda17. O processo de desenvolvimento do capital resultante da implantação de cima para baixo desse

modelo econômico, estruturalmente cada vez mais dependente do exterior e que organiza a produção unicamente sob a forma de negócio capitalista na forma do agronegócio, provocou mudanças estruturais na forma de apropriação privada da terra e dos recursos naturais, na produção, nas condições de reali-zação dos mercados, na composição das classes sociais, no perfil da estrutura do emprego, na tecnologia utilizada e na produção científica e tecnológica no âmbito da pesquisa agropecuária em todo Brasil.

18. Os empresários capitalistas, brasileiros e estrangeiros, passaram a priorizar os investimentos na produção de soja, milho, de cana-de-açúcar (com suas usinas para açúcar e etanol), no cultivo extensivo de eucalipto para extração de celulose e produção de carvão vegetal (para as usinas guseiras siderúrgicas de exportação do minério de ferro) e pecuária bovina extensiva.

19. As 50 maiores empresas agroindustriais de capital estrangeiro e nacional passaram a controlar praticamente todo comércio das commodities agrícolas no Brasil e, indiretamente, a composição da ofer-ta agropecuária do país.

20. Houve uma crescente centralização do capital que atua na agricultura: uma mesma empresa controla sementes, fertilizantes, agroquímicos, o comércio, a industrialização de produtos agrícolas e na produção e o comércio de máquinas agrícolas.

21. Os fazendeiros capitalistas, subordinados a essas empresas transnacionais, e que controlam um PIB agrícola ao redor de 150 bilhões de reais por ano, necessitam de crédito rural adiantado no valor de aproximadamente 120 bilhões de reais por ano. Este adiantamento é garantido pelo governo brasileiro.

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E depois repartem suas taxas de mais-valia com as empresas fornecedoras dos insumos, com as empresas compradoras das mercadorias e com os bancos que adiantaram o capital financeiro.

22. Nos últimos dez anos, houve um processo acelerado da concentração da propriedade da terra. O índice que mede a concentração da propriedade da terra continua crescendo. O índice de Gini em 2006 estava em 0,854, que é maior inclusive do que o registrado em 1920, quando recém havíamos saí-do da escravidão. Nas estatísticas do cadastro de imóveis rurais do Incra vê-se que entre 2003 e 2010, as grandes propriedades passaram de 95 mil unidades para 127 mil unidades. E a área controlada por elas passou de 182 milhões de hectares para 265 milhões de hectares, em apenas oito anos.

23. Analisando-se as grandes propriedades classificadas pelos critérios da lei agrária de 1993, com base nas informações declaradas pelo proprietário de imóvel rural ao Incra, constatou-se que em 2003, havia 47 mil grandes propriedades improdutivas, as quais detinham 109 milhões de hectares, e que, em 2010, passaram a ser 66 mil grandes propriedades improdutivas, controlando 175 milhões de hectares. Embora as estatísticas do Incra apresentem falhas, ainda assim elas indicam uma tendência da concen-tração e crescimento do número de imóveis improdutivos.

24. Analisando os dados por estabelecimentos (critério adotado pelo IBGE), percebe-se que no últi-mo censo de 2006, havia 22 mil grandes propriedades acima de dois mil hectares de terra, que seriam os grandes latifúndios. E outros 400 mil estabelecimentos entre 100 e 2 mil hectares, que seriam os es-tabelecimentos rurais modernos que constituem a maior parte do modelo de agronegócio.

25. Os grandes e médios proprietários que representam o agronegócio controlam 85% das terras e praticamente toda produção de commodities para exportação...

26. Constatou-se, também, uma concentração da produção agrícola por produto e, em 2010, 80% das commodities e das terras por elas utilizadas se destinavam a soja, milho, cana-de-açúcar e pecuária extensiva.

27. Houve um aumento acelerado na desnacionalização da propriedade da terra, com avanço da presença de empresas estrangeiras. Mas é impossível ter aferição estatística confiável, pois o capital es-trangeiro compra as ações de empresas brasileiras, que possuem as terras sem necessidade de alterar o cadastro no Incra. No entanto, estima-se que as empresas estrangeiras devem controlar mais de 30 mi-lhões de hectares de terras no Brasil.

28. O agronegócio possui prioridades regionais de cultivos e criações para a sua expansão. A soja é prioridade em todas as regiões; a cana-de-açúcar na região Centro-Sudeste; a celulose no Sul da Bahia, Norte do Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. Já a madeira para produção de carvão ganha dimensão no Norte do país e em Minas Gerais, sobretudo onde se instalaram as indústrias siderúrgicas. No semi-árido nordestino, as frutas irrigadas. E no litoral do Nordeste, o camarão cultivado. A pecuária extensiva vai ficando nas regiões mais degradas e na fronteira agrícola, “desbravando e amansando” a terra para o avanço paulatino do capital.

29. Quanto à pecuária leiteira, essa vem sendo empurrada para região Sul do Brasil, na medida em que a cana-de-açúcar vai ocupando as pastagens do Sudeste. Outro produto importante é o algodão que cresce nas grandes fazendas do Centro-Oeste.

30. Houve um aumento significativo da produtividade agrícola por hectare e por trabalhador, em todos os ramos de produção. No entanto, essa produtividade esteve combinada com o aumento de es-cala dos monocultivos e com o uso intensivo de agrotóxicos e máquinas agrícolas. E o aumento das margens de lucro não resultou em melhorias das condições de vida dos trabalhadores, que produziram essa riqueza.

31. O capital procura se expandir na agricultura, incorporando novas áreas para o agronegócio, na região Centro-Oeste, no bioma do cerrado, no Sul da Amazônia e pré-Amazônia, no chamado “Ma-

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pito” (Sul do Maranhão, Sul do Piauí, Oeste da Bahia e Norte de Tocantins). Nesse sentido, o capital enfrenta alguns empecilhos jurídicos para sua expansão, como o Código Florestal, que impõe reserva nativa de 80% da área do imóvel, para o bioma da Amazônia, e 40% para os imóveis no cerrado. E estabelecem restrições com relação às áreas de quilombolas as quais depois de reconhecidas não podem mais ser vendidas. O mesmo ocorre com as áreas indígenas. Além dessas limitações jurídicas os povos indígenas enfrentam a sanha do capital pela invasão impune dos seus territórios principalmente na re-gião Centro-Oeste.

32. No modelo do agronegócio está contemplada uma parceria ideológica de classe entre os grandes proprietários da terra e os empresários dos meios de comunicação da burguesia, em especial televisão, revistas e jornais, que fazem a defesa e a propaganda permanente das empresas capitalistas no campo como único projeto possível, moderno e insubstituível. Além da pressão econômica a reprodução ideo-lógica dos interesses de classe das classes dominantes é agora realizada pelos meios de comunicação de massa. E há uma simbiose entre os grandes proprietários dos meios de comunicação, as empresas do agronegócio, as verbas de publicidade e o poder econômico.

33. Percebe-se que no desenvolvimento das forças produtivas no nível do Brasil o número de máqui-nas agrícolas vendidas (tratores e colheitadeiras) tem aumentado no tamanho de potência, mas não no número de unidades. Na década de 1970, quando os agricultores familiares tinham acesso ao crédito rural subsidiado que estava vinculado à agroindústria de maneira mais intensa, o mercado de tratores era de 75 mil unidades/ano. E agora, nos últimos anos, baixou para 36 mil unidades/ano, embora tenha aumentado a potência média.

34. Mas, no geral, os índices de mecanização da agricultura brasileira são baixíssimos, comparados com os volumes de produção. O número total de tratores existentes na agricultura brasileira é de apenas 802 mil tratores, segundo o último censo do IBGE (uma média de dois tratores para cada propriedade do agronegócio). Comparando-se com o nível de desenvolvimento das forças produtivas da agricultura dos Estados Unidos, em 1920, eles já possuíam 900 mil tratores na agricultura!

35. A hegemonia desse modelo econômico se amplia para o controle de todos os bens da natureza, como os minérios, a água, as florestas e as fontes de energia. Em todos esses setores está havendo con-centração e centralização do capital, assim como a desnacionalização das empresas que os controlam.

3. As classes sociais36. Diversos pesquisadores sociais adequaram os dados estatísticos da produção agropecuária e flo-

restal para chegar aos dados aproximados da condição de classes sociais na agricultura brasileira. Assim, pode-se dizer que há um setor capitalista-empresarial, (aqueles que possuem e controlam os meios de produção e a produção), que seria representado por aproximadamente 450 mil estabelecimentos agríco-las, que possuem 300 milhões de hectares e controlam toda produção de commodities para exportação. Essa seria a classe dominante no campo brasileiro.

37. Os assalariados rurais permanentes: aqueles que trabalham nos estabelecimentos rurais acima de mil hectares. São cerca de 400 mil assalariados. Assalariados rurais temporários e outros 1,8 milhões de assalariados nas propriedades de 500 a 2 mil hectares, totalizando, assim, 2,2 milhões de trabalhadores assalariados para o agronegócio.

38. Na década de 1980, o número de trabalhadores assalariados na agricultura entre permanentes e temporários variava entre 6 a 10 milhões de trabalhadores. Portanto, comparando-se com os dados do Censo do IBGE de 2006, houve em 2006 uma redução significativa do número total de trabalhadores na condição de assalariados rurais, o número de assalariados rurais temporários ao longo do ano de

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2006 (Censo) é de 2,2 milhões, parte dos quais é constituída por alguns membros das famílias de cam-poneses pobres que migram de suas regiões para trabalhos temporários na colheita da cana, laranja e do café. E o de assalariados rurais permanentes foi de dois milhões.

39. Os camponeses: as estatísticas do IBGE (censo, 2006) identificaram 4,8 milhões de estabelecimen-tos rurais classificados como agricultores familiares, com áreas menores de 100 hectares. Esse seria o núme-ro aproximado de famílias que vivem supostamente na condição social de camponeses. Destes, um milhão de famílias, aproximadamente, seriam camponeses com renda agrícola que garanta a reprodução social da família e alguma poupança, que vivem de seu trabalho familiar, contratam esporadicamente trabalho assa-lariado e estão integrados no mercado. São os que acessam as linhas de crédito do Pronaf. A maioria deles produz as mercadorias integradas à agroindústria, como suínos, aves, fumo, leite, frutas e hortigranjeiros.

40. Há outras 3,8 milhões famílias de camponeses pobres que estão inviabilizados por esse modelo, que produzem basicamente para subsistência e vendem pequenos volumes de excedentes, sem condições de manter poupança mínima. Entre eles está a base social que lutaria por terra e reforma agrária. Eles estão à margem do modelo econômico do agronegócio, excluídos de políticas públicas, a maioria deles sobrevive com bolsa família do governo ou são dependentes da aposentaria de um membro da família mais idoso. Para os empresários capitalistas, esses camponeses pobres constituem ou reserva de força de trabalho ou fornecedores simples de alimentos para as áreas urbanas locais.

41. Nos vários segmentos de famílias camponesas há 14 milhões de trabalhadores adultos que traba-lham no campo, sob as mais diferentes situações de relações sociais de produção.

42. Há uma superexploração do trabalho agrícola no Brasil. Entre os camponeses, pelo aumento da jornada de trabalho, pelo envolvimento de toda família, e pela baixa remuneração recebida. Entre os proletários rurais, empregados no agronegócio, há uma superexploração relativa, em função da compa-ração dos seus salários, que são maiores do que os camponeses, mas muito menores do que seus equi-valentes trabalhadores das mesmas commodities agrícolas em outros países do mundo. Em média, os tratoristas brasileiros recebem apenas 20% do salário de seu equivalente nos países do Hemisfério Norte, para trabalhar na mesma produção de soja, milho etc.

43. Há ainda casos de trabalho não pago, análogo da escravidão. Segundo os dados do Ministério do trabalho e Polícia Federal registram-se ao redor de cinco mil casos por ano. Apesar da ignomínia que eles representam e devem ser condenados de todas as formas, não é a forma principal de acumulação de capital do agronegócio.

4. As contradições do modelo de produção do capital versus os interesses da sociedade44. O modelo de produção da agricultura industrial adotado pelo agronegócio é totalmente depen-

dente de agroquímicos, estes, por sua vez, são dependentes de fontes esgotáveis de petróleo, nitrogênio, fósforo e potássio. E, mais, têm seus preços estabelecidos no nível mundial, controlados por um pequeno grupo de empresas transnacionais em práticas de oligopólio. No caso brasileiro, agrava-se essa depen-dência devido às importações, o que afeta inclusive a soberania nacional da produção agrícola. Na últi-ma safra foram importados 16 milhões de toneladas de fertilizantes. O Brasil está importando 75% de todos fertilizantes químicos utilizados.

45. O controle oligopolista das grandes empresas transnacionais sobre o comércio de alimentos leva ao estabelecimento de preços de monopólio (ver Guilherme Delgado) e num processo de padronização dos alimentos, que em médio prazo vai afetar inclusive a saúde pública.

46. A agricultura do agronegócio é totalmente dependente do uso de venenos agrícolas, que são usa-dos com intensidades e volumes cada vez maiores. O Brasil controla apenas 5% da área cultivada entre

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os 20 maiores países agrícolas no mundo. No entanto, consome 20% da produção mundial de venenos. Os venenos destroem a biodiversidade, alteram o equilíbrio do meio ambiente, contribuem para as mu-danças climáticas e, sobretudo, afetam a saúde das pessoas, com a proliferação de doenças e do câncer. O modelo do agronegócio não consegue produzir alimentos sadios.

47. O controle e a introdução da propriedade privada sobre as sementes por parte das empresas trans-nacionais coloca em risco o modelo de agricultura familiar e afeta a soberania alimentar do país, em médio prazo. Quem controlar as sementes e mudas controlará a agricultura como um todo.

48. A propriedade privada por empresas estrangeiras dos recursos da natureza como terra, água, florestas e minérios gera uma contradição entre os interesses do povo brasileiro com os interesses dos empresários capitalistas.

49. O modelo em curso de dominação mundial do capital que impôs uma redivisão do trabalho e da produção no mundo condenou os países do Hemisfério Sul a serem produtores apenas de matérias--primas, agrícolas e minerais. Isso vai aumentar as desigualdades no mundo e aumentarão os conflitos sociais em médio prazo.

50. A riqueza produzida na agricultura e os excedentes do trabalho agrícola, que antes ficavam na mesma região (mesmo que fosse para os capitalistas), hoje são apropriados em outras esferas e outros centros urbanos, gerando maiores desigualdades sociais e regionais.

51. A expansão da monocultura elimina a biodiversidade e traz maior dependência econômica, maior fragilidade social e graves consequências ambientais, que começam a ser percebidas em todas as regiões.

52. O modelo do agronegócio, ao contrário da etapa do capitalismo industrial, não distribui renda e nem gera emprego para juventude. O capital aplica um modelo de produção agrícola, sem agricultores e com pouca mão de obra. Isso traz como contradição a falta de futuro da juventude, o aumento da mi-gração e o despovoamento do interior.

53. Os grandes proprietários de terra (que antes, enquanto latifundiários, auferiam todos os lucros e exerciam o poder político decorrente desse poder econômico), agora têm que dividir seus ganhos, e perdem poder político. E, portanto, passam a ter contradições, ainda que secundárias, com os outros capitalistas. Certamente, serão perceptíveis na próxima geração dos herdeiros dos latifundiários, que tampouco conseguem se reproduzir como latifundiários.

54. O modelo do agronegócio expulsa permanentemente mão de obra do campo. Que migram para as cidades. Porém, num segundo momento, quando concentram a produção e fazem novos investimen-tos, não estão conseguindo levar mão de obra para o campo para trabalhar como seus empregados. Muito menos entre a juventude. Assim, gera-se uma contradição, pois o modelo não atrai mão de obra e em médio prazo será um grave limitante.

55. A lógica predominante na apropriação dos bens da natureza é apenas o lucro. É a busca perma-nente da renda extraordinária que a exploração dos bens naturais proporciona. Isso vai gerando uma contradição permanente, por serem bens limitados frente às crescentes necessidades da população de se alimentar e atender suas necessidades.

II. A natureza da luta pela reforma agrária: contexto histórico e desafios atuais

1. O capitalismo, em distintos períodos históricos, deu ênfase a diferentes programas de reforma agrária. Aqui faremos um breve resgate histórico do enfoque dado à reforma agrária, no cenário nacio-nal e internacional, durante os processos de desenvolvimento e consolidação das sociedades capitalistas.

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Ao final do capítulo, relatamos os desafios que o MST e as lutas pela reforma agrária enfrentam no momento atual, em nosso país.

2. Na transição do feudalismo europeu – e até mesmo do modo de produção asiático e das sociedades pré-capitalistas em geral – para o capitalismo comercial, os camponeses lutaram pela direito ao acesso a terra, contra as oligarquias rurais e senhores feudais. Essas lutas, restritas às demandas dos próprios camponeses, ainda não se caracterizavam como lutas pela reforma agrária.

3. Somente a partir do desenvolvimento do capitalismo industrial no século 18, a expressão “reforma agrária” começou a ser utilizada. Neste período, a Reforma Agrária passou a ser uma política de governo e de Estado para mudar a estrutura de propriedade e de produção agrícola de um país e, consequente-mente, atender as demandas das nascentes sociedades urbano-industriais.

4. A mudança na estrutura fundiária atendia aos interesses imediatos dos camponeses que lutavam pela posse da terra e contra a espoliação dos grandes proprietários. Mas ia além, era uma exigência para impulsionar os processos de industrialização e para criar e consolidar o mercado interno das sociedades capitalistas.

5. No processo de desenvolvimento do capitalismo industrial, o desafio de desenvolver o mercado interno para suas fábricas confrontou-se com a enorme concentração da propriedade da terra e o fato de que a maioria da população vivia no campo e sem terra e sem renda, estava excluída desse mercado. Para resolver essa contradição, as burguesias industriais, que controlavam as estruturas do Estado, impuse-ram contra os interesses das oligarquias rurais a Reforma Agrária. A democratização da propriedade da terra aos camponeses.

6. Ao democratizar a propriedade da terra, desapropriando os senhores das terras e superando os resquícios do feudalismo, o Estado burguês visava transformar os camponeses em produtores de mer-cadorias para a indústria e de alimentos para a população urbana e, com isso, obter renda para serem compradores/consumidores das mercadorias de origem industrial.

7. Esse tipo de Reforma Agrária, iniciado nos países da Europa ocidental e nos Estados Unidos, a partir de 1870, estendeu-se pelos países de todo Hemisfério Norte até a década de 1950, com a guerra da Coreia. Todas elas, nos diferentes países e tempos históricos, serviram de apoio aos processos de de-senvolvimento industrial implantado pela burguesia.

8. Essas mudanças nas estruturas fundiárias, feitas pelo Estado burguês, são as chamadas reformas agrárias clássicas burguesas ou, simplesmente, reformas agrárias burguesas. Em comum, elas têm as se-guintes características básicas: eram realizadas pelas burguesias industriais; potencializavam o mercado interno através da democratização da propriedade da terra; e, buscaram transformar os camponeses em produtores e consumidores de mercadoria.

9. Dessa matriz de reforma agrária clássica burguesa, surgiram inúmeras outras propostas em países periféricos adequadas à suas realidades, aos desafios que se propunha superar e, sobretudo, à correlação das forças políticas do período histórico em que foram implantadas. Aqui na América Latina, o governo John Kennedy chegou a promover uma reunião continental em Punta del Este (1961) para estimular que os governos fizessem reforma agrárias burguesas, como forma de desenvolver o mercado interno e impedir que os camponeses se radicalizassem como havia acontecido na revolução cubana. E os econo-mistas da Cepal (Organismo das Nações Unidas para América Latina) difundiram essa tese como forma de enfrentar o subdesenvolvimento durante toda década de 1960.

10. Houve também as reformas agrárias dos chamados governos nacionalistas, como por exemplo, a do general Cárdenas (1939-1946) no México. Do general Juan Velasco Alvarado (1968-1975), no Peru e a do guatemalteco Jacob Árbenz (1951-1954). E do coronel Nasser, no Egito que distribuiu todas as

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terras férteis ao longo do rio Nilo aos camponeses na década de 1960. No Brasil, a inclusão da Reforma Agrária nas Reformas de Base do governo João Goulart, pode ser vista como uma tentativa desse tipo de reforma agrária, dentro de um projeto de desenvolvimento nacional capitalista.

11. Há, também, as reformas agrárias anticoloniais, que representavam a distribuição de terras aos camponeses crioulos, que as tomavam dos capitalistas colonizadores. E que nem se chamavam de re-forma agrária, mas apenas o direito à terra de quem nelas trabalhasse e morasse. Assim se consolidou a distribuição de terras a camponeses, na revolução social do Haiti (1804) por Dessalines, e na década de 1810, no Uruguai (governo Artigas) e Paraguai (governo França) e de certa forma a distribuição de terras feita durante a revolução mexicana de 1910-1920.

12. Por outro lado, houve o impulso das lutas de liberação nacional, após a II Guerra Mundial (1939-1945), no continente asiático e africano. As forças que promoveram as lutas pela independência dos seus países expropriaram as terras dos colonos europeus e as entregaram aos camponeses. Foram reformas agrárias que buscaram, sobretudo, consolidar a soberania política do país. Países como Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Tanzânia, Zimbawe, Argélia, Líbia... se enquadram nesse exemplo de reforma agrária.

13. Há também as reformas agrárias de governos populares que, em distintos processos históricos, se propunham a fazer uma transição do capitalismo para uma sociedade socialista. As reformas agrárias ocorridas em Cuba, com a Revolução de 1959, Vietnam, a partir da vitória sobre os Estados Unidos em 1973, e a da Nicarágua sandinista, em 1979, são alguns desses exemplos.

14. Por último, há as reformas agrárias propostas pelas revoluções populares que ousaram superar as formas de organização capitalista. São as Reformas Agrárias socialistas. Estas nacionalizaram a proprie-dade da terra, como um bem de toda nação, socializaram a propriedade dos meios de produção e cole-tivizaram, de diferentes formas, o trabalho agrícola. Foram reformas agrárias realizadas dentro de um conjunto de políticas adotadas por governos resultantes de revoluções sociais e que se propunham cons-truir o socialismo. Portanto, estavam subordinadas às mudanças radicais no modo de produção geral da sociedade. Podemos citar como exemplos desse tipo de reforma agrária as que ocorreram resultantes das revoluções russa (1917), iugoslava (1945) chinesa (1949) e da Coreia do Norte (1956).

15. No Brasil, ao longo da nossa história, tivemos diversas propostas e tentativas de realizar uma re-forma agrária dentro dos marcos do desenvolvimento do capitalismo nacional. Alguns abolicionistas, como Joaquim Nabuco (1849-1910), defenderam com ênfase que a liberdade do povo negro deveria ser acompanhada de um processo de distribuição de terras. Foram derrotados pela oligarquia rural, escra-vocrata e controladora do poder político, os chamados coronéis das terras.

16. Ainda na transição – da plantation (grandes fazendas de monocultivo que utilizavam trabalho escravo e se dedicavam a exportação) do capitalismo comercial escravocrata para o capitalismo indus-trial, surgiram os primeiros movimentos camponeses e houve muita luta e disputa pela terra, em todo território. As comunidades camponesas lideradas por líderes religiosos – como a de Canudos/BA (1894-1896), Contestado/SC (1912-1916) e Caldeirão/CE (1926-1937) – exemplificam esse tipo de luta pela terra. Buscavam garantir a sobrevivência, o trabalho e a reprodução camponesa, em condições naturais e políticas extremamente desfavoráveis. Nem sequer foram chamadas de reforma agrária por esses luta-dores camponeses.

17. Somente após a II Guerra Mundial, surge a expressão e a luta pela reforma agrária no Brasil. Com o reascenso das mobilizações populares, cresceu a luta pela Reforma Agrária, protagonizada por movi-mentos camponeses – Ligas Camponesas, Ultabs (União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil) e o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra) – que, pela primeira vez logram se consti-

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tuir como organizações nacionais e empunharam a partir de 1961 o lema: “Reforma agrária na lei ou na marra!”. Os programas de reforma agrária defendidos pelos movimentos camponeses da época, e pelo então governo popular de João Goulart, já mencionado, estavam inseridos no objetivo de desenvolver o mercado interno para a indústria nacional, aos moldes de uma reforma agrária clássica burguesa.

18. Durante toda a década de 1950, até o golpe militar de 1964, prevaleceu o debate se o desenvol-vimento da agricultura brasileira – atrasadíssima nas relações sociais no campo e pouco produtiva por causa dos quatros séculos do modelo agroexportador – deveria ser feito através de uma reforma agrária burguesa ou através de um pacto entre burguesia industrial e oligarquia rural para assegurar inalterada a estrutura fundiária.

19. O governo ditatorial dos militares impôs a “modernização sem reformas” e reprimiu duramente o movimento camponês. Assim, aqui a burguesia industrial, ao contrário da burguesia europeia do século 18, se aliou à oligarquia rural para desenvolver o capitalismo nacional, dependente dos países centrais.

20. Há muitas teses e interpretações de porque a burguesia industrial brasileira não defendeu a neces-sidade de uma reforma agrária para industrializar o país. Entre as principais pode-se citar: a burguesia industrial brasileira nunca se constituiu como uma burguesia nacionalista, que queria desenvolver a na-ção; a indústria brasileira já nasceu dependente (do capital estrangeiro e de um mercado não de massas); a burguesia precisava ter ganhos com a superexploração da mão de obra fabril, e para isso era preciso ter um enorme exercito industrial de reserva, formado pelos camponeses que migravam todos os anos para as cidades e pressionam os salários para baixo. Até hoje, a média salarial da indústria brasileira é um dos mais baixos do mundo.

21. No período de 1964-1984, com a imposição da ditadura militar, o projeto desenvolvido pela burguesia na agricultura, foi de uma modernização conservadora e dolorosa para os camponeses. Do ponto de vista político eles massacraram fisicamente todas as formas de organização camponesa. E com a sociedade calada e reprimida, impuseram sua hegemonia em toda sociedade e na agricultura. Foi o período de consolidação da agricultura capitalista voltada para o mercado externo, baseada em grandes extensões de terra, na mecanização agrícola, adoção dos agrotóxicos, e na expulsão dos camponeses. A única saída para os camponeses era migrar para cidade ou para a fronteira agrícola, ir amansar as terras na região amazônica. O resultado foi a adoção da “revolução verde” como pacote tecnológico para au-mentar a exploração e a produtividade do trabalho, a maior migração de camponeses de toda história, e elevada concentração da propriedade da terra.

22. Na década de 1980, com a redemocratização política, a crise cíclica do capitalismo e o ressur-gimento da luta pela terra com novos movimentos camponeses levantou-se novamente a bandeira da reforma agrária. As lutas e reivindicações se inseriam, no entanto, nos objetivos de uma reforma agrária clássica burguesa: democratizar a propriedade da terra, como uma forma de reprodução dos campone-ses, de integrá-los ao mercado interno e de aumentar sua renda, para poder melhorar as condições de vida de suas famílias. Nesse cenário político-histórico, nasceu o MST.

23. O programa do MST, por sua elaboração teórica e pelas condições históricas daquele período, se inseria nos pressupostos de uma reforma agrária burguesa. É bem verdade que o protagonismo dos camponeses, a radicalidade das lutas, a reação contrária dos latifundiários e do Estado burguês e a ex-plicitação de bandeiras de lutas progressistas e revolucionárias – que mesclavam a luta pela terra com o direito pelo trabalho, a luta pela Reforma Agrária com a democratização ampliada da propriedade fundiária e a luta por uma sociedade mais justa e igualitária com os ideais do socialismo – ajudaram o MST a ocupar um espaço destacado nas lutas populares do nosso país e a politizar a luta pela re-forma agrária.

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24. Assim, nos primeiros anos, de 1979 a 1984, a atuação dos camponeses que depois resultaria no MST restringiu-se à promoção da luta pela terra. Depois, de 1984 a 1992, com a expansão do MST no território nacional, o Movimento soube impor a luta pela Reforma Agrária e aproveitar as contradições internas dentro do bloco dominante: os conflitos existentes entre os interesses específicos da burguesia industrial e os das oligarquias rurais. Interessava à burguesia industrial incorporar a massa de campone-ses sem terras às terras ociosas, mantidas sob o domínio do latifúndio.

25. Novamente, o objetivo da burguesia industrial era o de promover o desenvolvimento das forças produtivas no campo e de sua integração ao mercado capitalista. Do outro lado, as oligarquias reagiam frente à possibilidade de perder o domínio sobre as terras e, sobretudo, perder sua influência política sobre as populações rurais. Esse conflito era remetido para dentro do Estado aonde os latifundiários, mesmo sendo a fração social subalterna dentro do bloco dominante, mantêm indiscutível poder e influ-ência. Poder esse, suficiente para impedir, sistematicamente, a implantação da Reforma Agrária. Mesmo que esta fosse uma possibilidade – e uma necessidade – provocada pelo desenvolvimento do capitalismo industrial.

26. O poder do latifúndio atrasado se manifestava ainda com maior contundência no enfrentamento com os camponeses e suas lutas. A repressão sobre o MST, e sobre a luta pela terra em geral, era orga-nizada pelas oligarquias rurais nas suas formas mais arcaicas de pistolagem, controle sobre as polícias e sobre o poder judiciário local. Além de contar com a conivência dos governos estaduais, majoritariamen-te conservadores e, não raras vezes, com origens no próprio latifúndio. Essa violência, produzida pelo setor mais retrógrado e pouco produtivo da economia brasileira, recebeu destaque no cenário nacional e internacional e acabou sendo mais um elemento que provocou uma onda de simpatia e apoio à luta pela reforma agrária.

27. Na segunda metade da década de 1980, essas forças conservadoras do latifúndio se reorganizaram – em 1986 criaram a União Democrática Ruralista (UDR) – aglutinaram forças na Assembleia Consti-tuinte – formaram o “centrão” – e desencadearam uma onda de violência seletiva contra os camponeses e suas organizações. Os assassinatos do Pe. Josimo, no Maranhão, em 1986; de Chico Mendes, no Acre, em 1988, atestam essa prática criminosa dos latifundiários. A Constituição Federal de 1988, mesmo sendo considerada progressista, teve na questão da reforma agrária seu aspecto mais conservador.

28. A burguesia brasileira, enquanto classe hegemônica, se durante a década de 1980 enfrentou as mobilizações populares pela democratização do país e o reascenso das lutas sindicais, populares e estu-dantis, obteve uma importante vitória em 1989, na primeira eleição presidencial pelo voto direto, pós--ditadura militar (1964-1985). Aquela vitória eleitoral serviu para a burguesia, primeiro, com o governo de Fernando Collor de Melo (1990-1991) e depois com o de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), para aglutinar e dar unidade político-ideológica aos setores mais conservadores do país. Essas forças, político-econômicas, auxiliadas pelo aparato de informação e ideológico da mídia burguesa, implemen-taram um novo modelo de desenvolvimento econômico: o neoliberalismo.

29. Fortalecidos pelas vitórias eleitorais, o neoliberalismo impôs suas políticas de: a) abertura do mer-cado, assegurando mobilidade irrestrita ao capital e mercadorias estrangeiras; b) corte nos gastos sociais; c) privatização e desnacionalização de setores estratégicos para o desenvolvimento econômico do país; d) facilidades para o capital internacional se apoderar das riquezas naturais – minérios, energia, biodiversi-dade e agricultura; e) ofensivas sobre a legislação social e trabalhista, provocando derrotas e retrocessos à classe trabalhadora.

30. A essas políticas neoliberais somaram-se as transformações no modo do capitalismo estruturar a produção e o trabalho – inovações tecnológicas, descentralização e terceirização – e a ofensiva do capi-

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tal internacional, denominada de globalização. A classe trabalhadora, assim, sofreu duras derrotas pelo neoliberalismo e, desde então, entrou num período de refluxo do movimento de massas, de organização e de elaboração e disputas de proposta política. Em outras palavras, a década neoliberal de 1990 logrou consolidar um cenário de consenso e coerção da burguesia sobre a classe trabalhadora.

31. Essa ofensiva neoliberal sobre as riquezas nacionais demorou um tempo maior para chegar até a agricultura brasileira. Primeiro, o capitalismo internacional priorizou os setores mais dinâmicos da economia urbana. Depois, no segundo mandato do governo de FHC, o capital internacional, associado com as empresas transnacionais que atuam na agricultura e os grandes proprietários rurais, direciona-ram seus interesses para agricultura brasileira. Com isso, durante toda a década de 1990 o MST pode promover uma ofensiva na luta pela terra, impondo a agenda da reforma agrária ao governo FHC. E, assim, a luta pela reforma agrária aglutinou a simpatia da sociedade e o apoio dos segmentos sociais que se opunham às políticas neoliberais. É o período em que o MST assume um papel importante nas lutas populares do país e de protagonista na luta pela reforma agrária.

32. A ofensiva neoliberal sobre a agricultura brasileira, iniciada no governo FHC, se consolidou na década de 2000, implantando um novo modelo de agricultura, não mais para atender prioritariamente as demandas do modelo de desenvolvimento de uma indústria nacional (1930-1980) e da necessidade do mercado interno. É um novo modelo de dominação do capital no campo, para atender as demandas do mercado externo. Agora, é um modelo dos fazendeiros capitalistas em aliança com o capital interna-cional e financeiro, que passa a acumular a riqueza do campo. (Conforme descrevemos no capítulo I: O desenvolvimento do capitalismo no campo).

33. Esse novo modelo de agricultura capitalista foi definido por uma divisão mundial da produção e do trabalho, estabelecida ainda nos anos 1990. Ali, os países centrais do capitalismo reservaram aos países do Hemisfério Sul o papel de serem os fornecedores de matérias-primas agrícolas, celulose, fontes de energia e minérios para o mercado externo. O modelo do agronegócio é resultante da hegemonia do capital internacional e financeiro sobre o mundo e a produção.

34. Com esse modelo, a burguesia, o Estado e os governos assumem plenamente a posição política de que não é mais necessária uma reforma agrária burguesa para o desenvolvimento das forças pro-dutivas na agricultura brasileira. As terras improdutivas dos latifúndios, antes destinadas à reforma agrária após a pressão dos camponeses, agora também são pretendidas, e disputadas, pelo agronegó-cio. Há claramente uma disputa de modelos de agricultura, o dos camponeses versus o do agronegó-cio, incompatíveis entre si. Restabeleceu-se um conflito já existente no período hegemonizado pelas oligarquias rurais (1889-1930): as terras agrícolas devem ser destinadas à produção de alimentos pelos camponeses ou à produção destinada para agroexportação, como defende o agronegócio? Este passa, então, a combater a reforma agrária, mesmo a de versão clássica burguesa e os movimentos popula-res do campo que lutam por terra. Ou seja, do ponto de vista do capital, considera-se que a questão agrária no Brasil está resolvida.

35. Esse modelo agrícola do agronegócio subordinado ao capital internacional foi ainda mais poten-cializado a partir da crise mundial de 2008, pois um enorme volume de capital fictício, especulativo veio ao Brasil se proteger e aplicaram em terras e recursos naturais. Por outro lado, aplicaram nas bolsas de mercadorias agrícolas e especularam com estoques. Isso tudo elevou os preços médios das mercadorias agrícolas, aumentou a renda da terra e o preço da terra, e se constituiu numa barreira a mais, para o processo de democratização da propriedade da terra. Ao contrário da visão de que a questão agrária está resolvida, estamos assistindo na última década, a uma concentração ainda maior da propriedade e um processo célere de desnacionalização da propriedade da terra.

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34 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

36. Esse novo modelo de agricultura altera a correlação de forças no campo. Os grandes proprietários rurais, capitalizados e modernizados, aliados/subordinados ao capital financeiro e as empresas transna-cionais, hegemonizam o atual modelo de agricultura, concentrando terras, políticas públicas e o apoio da sociedade. O grande proprietário de terras improdutivas, violento e atrasado, é visto pelo agronegócio como uma fração de sua classe social que deverá se modernizar e capitalizar. Caso contrário, perderá suas terras, não por uma reforma agrária burguesa e sim por acabar sendo absorvido pela economia agroexportadora.

37. Há, no entanto, em diferentes regiões do território nacional, muitas áreas geográficas em que os latifundiários mantêm o controle da terra e exercem um poder político local. Dados do governo e de pesquisas acadêmicas atestam a existência de, aproximadamente, 30 mil grandes proprietários rurais, latifundiários atrasados, do ponto de vista do capital. Mas, no caso dos camponeses ocuparem um desses latifúndios, terão como principal adversário o agronegócio, por três razões básicas:

a) a terra ocupada também é pretendida pelo agronegócio;b) há uma identidade de classe entre os grandes proprietários rurais capitalizados e os latifundiários

atrasados;c) o agronegócio tem claro que há uma disputa de diferentes e incompatíveis modelos agrícolas. E,

mesmo não havendo a ocupação do latifúndio pelos camponeses, o agronegócio visa, através da compra ou do arrendamento, se apossar dessas terras e, com os mesmos objetivos, avançar sobre as terras públi-cas. Promove uma permanente ofensiva de conquistas e domínio de territórios. Essa ofensiva do agrone-gócio conta sempre com o apoio e conivência dos governos estaduais e federal.

38. Da mesma forma, o agronegócio considera um atraso a manutenção das áreas pertencentes às comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas. Assim como as regras restritivas do código florestal para expansão de suas lavouras. E por isso a classe dominante colou na pauta de suas priorida-des o enfrentamento e a precarização dos direitos dessas populações e as mudanças nas regras do código florestal.

39. Na atualidade, a luta pela terra e pela reforma agrária mudou de natureza, frente ao modelo de desenvolvimento econômico vigente no país. Não há mais espaço para uma reforma agrária clássica burguesa, apoiada pela burguesia industrial ou por forças nacionalistas. Mas do ponto de vista dos cam-poneses e de um projeto popular de desenvolvimento do país, a reforma agrária é cada vez mais urgente e necessária.

40. Agora, a luta pela reforma agrária se transformou numa luta de classes, contra o modelo do capi-tal para a agricultura para brasileira. Isso significa que a luta dos camponeses pelas terras agrícolas e por um novo modelo de agricultura, irá enfrentar uma outra correlação de forças – com poderes de coerção e de consenso mais fortes do que os dos latifundiários tradicionais – e com novos atores em cena: os grandes proprietários rurais, o capital financeiro e as empresas transnacionais.

41. Por outro lado, o aparato administrativo do Estado brasileiro que havia sido montando para atender uma agricultura camponesa como o Incra, Embrapa, sistema Emater e Funai, está marginali-zado e sucateado porque foi criado e instrumentalizado para atender as demandas dentro do modelos de uma reforma agrária burguesa. Não percebem que os assentamentos da reforma agrária de hoje são gestores de um novo modelo de agricultura. Assim, tornam-se incapazes de formular políticas públicas que atendam as demandas dos camponeses, tornando obsoletos, dispensáveis ou, pior ainda, cooptados pelo agronegócio.

42. E essa mudança da natureza, exige novas posturas dos movimentos sociais e do MST como um todo:

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35Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

a) Precisamos defender agora um novo projeto de reforma agrária, que seja popular. Não basta ser uma reforma agrária clássica, que apenas divida a propriedade da terra e integre os camponeses como fornecedores de matérias-primas e alimentos para sociedade urbano-industrial.

b) Frente ao poderio do agronegócio, é necessário construir alianças entre todos os movimentos camponeses, com a classe trabalhadora urbana e com outros setores sociais interessados em mudanças estruturais, de caráter popular.

c) A luta pela reforma agrária se insere agora na luta contra o modelo do capital. É um estágio da nossa luta, com desafios mais elevados e complexos, diferente do período do desenvolvimento industrial (1930-1980), quando os assentamentos da reforma agrária em áreas improdutivas, para a produção de alimentos, somavam-se com a agricultura patronal voltada, prioritariamente, para a agroexportação.

d) Os enfrentamentos com o capital, e seu modelo de agricultura, partem das disputas das terras e do território. Mas, se ampliam para as disputas sobre o controle das sementes, da agroindústria, da tec-nologia, dos bens da natureza, da biodiversidade, das águas e das florestas.

43. O programa de Reforma Agrária Popular não é um programa socialista – embora os objetivos estratégicos da nossa luta sejam os de construir uma sociedade com formas superiores de socialização da produção, dos bens da natureza e um estágio das relações sociais na sociedade brasileira. Uma reforma agrária socialista, que tem como alicerce a socialização das terras, exige a execução de políticas de um Estado socialista e será resultante de um longo processo de politização, organização e transformações culturais junto aos camponeses, ou seja, de uma revolução social. Condições objetivas e subjetivas que não estão na ordem do dia desse período histórico.

44. Assim, a nossa luta e o nosso programa de reforma agrária popular visa contribuir ativamente com as mudanças estruturais necessárias e, ao mesmo tempo, é dialeticamente dependente dessas trans-formações. Um novo projeto de país que precisa ser construído com todas as forças populares, voltado para atender os interesses e necessidades do povo brasileiro. E, buscamos assim, com a luta pela reforma agrária popular, acumular forças, obter conquistas para os camponeses e derrotas para as oligarquias rurais, organizar e politizar nossa base social, ampliar e consolidar o apoio da sociedade à nossa luta. É dessa forma que iremos construir nossa participação nas lutas de toda a classe trabalhadora para cons-truir um processo revolucionário, que organize a sociedade e um novo modo de produção, sob os ideais do socialismo.

45. Nosso projeto se insere na luta da classe trabalhadora pela construção de relações sociais de pro-dução que eliminem a exploração, a concentração da propriedade privada, a injustiça e as desigualdades. O nosso horizonte é, pois, o da superação do modo de produção capitalista. Os objetivos de criação do MST continuam valendo e são alicerces da reforma agrária popular. O conceito “popular” busca identificar a ruptura com a ideia de uma reforma agrária clássica feita nos limites do desenvolvimento capitalista e indica o desafio de um novo patamar de forças produtivas e de relações sociais de produção, necessárias para outro padrão de uso e de posse da terra. Trata-se de uma luta e de uma construção que estão sendo feitas desde já, como resistência ao avanço do modelo de agricultura capitalista e como for-ma de reinserir a reforma agrária na agenda de luta dos trabalhadores.

46. A reforma agrária integra relações amplas entre o ser humano e a natureza, que envolve diferen-tes processos que representam a reapropriação social da natureza, como negação da apropriação privada da natureza realizada pelos capitalistas. Implica em um novo modelo de produção e desenvolvimento tecnológico que se fundamente numa relação de coprodução homem e natureza, na diversificação pro-dutiva capaz de revigorar e promover a biodiversidade e em uma nova compreensão política do convívio e do aproveitamento social da natureza.

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36 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

47. Os camponeses, trabalhadores/as do campo e povos tradicionais (indígenas, extrativistas, quilom-bolas) têm sido protagonistas de práticas de um modo de fazer agricultura que representa um contrapon-to à agricultura capitalista e se constituem na resistência e nas lutas de enfrentamento direto ao capital. Portanto, pode protagonizar um novo modelo de produção agrícola sob controle dos trabalhadores e voltado a suprir necessidades e direitos de todo o povo.

48. A construção da reforma agrária popular só pode ser conquistada por um amplo leque de forças populares representadas pelo conjunto dos trabalhadores do campo e da cidade. E assume também uma perspectiva necessariamente internacionalista porque a luta dos trabalhadores contra a ordem do capital é internacional no atual estágio de hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais que atuam em todo mundo. O modelo de agricultura popular e camponesa tem sido também a construção a partir das experiências dos trabalhadores de muitos países, culturas, organizações e lutas.

49. Essa nova natureza da luta pela reforma agrária, coloca novos desafios, como:a) A reforma agrária popular deve resolver os problemas concretos de toda população que vive no

campo;b) A reforma agrária tem como base a democratização da terra, mas busca produzir alimentos saudá-

veis para toda população; objetivo que o modelo do capital não consegue alcançar;c) O acúmulo de forças para esse tipo de reforma agrária depende agora de uma aliança consolidada

dos camponeses com todos os trabalhadores urbanos. Sozinhos os sem terra não conseguirão a reforma agrária popular.

d) Ela representa um acúmulo de forças para os camponeses e toda classe trabalhadora na construção de uma nova sociedade.

III. Fundamentos de nosso programa de reforma agrária popular

Nosso programa agrário busca mudanças estruturais na forma de usar os bens da natureza, que per-tencem a toda sociedade, na organização da produção e nas relações sociais no campo. Queremos con-tribuir de forma permanente na construção de uma sociedade justa, igualitária e fraterna. Para tanto, propomos os seguintes objetivos:

1. TerraA terra e todos os bens da natureza, em nosso território nacional, devem estar sob controle social e

destinados ao benefício de todo povo brasileiro e das gerações futuras. Para isso devemos lutar para:a) democratizar o acesso à terra, às águas, à biodiversidade (florestas, fauna e flora), minérios e fontes

de energia;b) impedir a concentração da propriedade privada;c) estabelecer o tamanho máximo de propriedade da terra;d) eliminar o latifúndio;e) garantir a função social do uso, posse e propriedade da terra;f) assegurar a devolução para o povo de todas as terras, territórios, minérios e biodiversidade hoje

apropriados por empresas estrangeiras;g) demarcar e respeitar todas as áreas dos povos indígenas e das comunidades quilombolas, ribeiri-

nhas, extrativistas, de pescadores artesanais e tradicionais.

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37Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

2. Bens da naturezaA água e as florestas nativas são bens da natureza e eles devem ser tratados como um direito de to-

dos os trabalhadores. Eles não podem ser tratados como mercadorias e nem ser objeto de apropriação privada:

a) assegurar e preservar as águas e florestas como um bem público, acessível a todos/as;b) combater o desmatamento e o comércio clandestino e ilegal das madeireiras;c) reflorestar as áreas degradadas com ampla biodiversidade de árvores nativas e frutíferas, asseguran-

do a preservação ambiental.

3. SementesAs sementes são um patrimônio dos povos a serviço da humanidade e não pode haver sobre elas pro-

priedade privada ou qualquer tipo de controle econômico:a) preservar, multiplicar e socializar as sementes crioulas, seja tradicionais, seja melhoradas, de acordo

com a biodiversidade dos nossos biomas regionais, para que todo campesinato possa usá-las;b) defender a soberania nacional sobre produção e multiplicação de todas sementes e mudas.

4. ProduçãoToda produção será desenvolvida com o controle dos trabalhadores sobre o resultado de seu trabalho.

As relações sociais de produção devem abolir a exploração, a opressão e a alienação:a) assegurar que a prioridade seja a produção de alimentos saudáveis, em condições ambientalmente

sustentáveis, para todo povo brasileiro e para as necessidades de outros povos;b) considerar que os alimentos são um direito humano, de todos os cidadãos e não podem estar sub-

metidos a lógica do lucro;c) utilizar técnicas agroecológicas, abolindo o uso de agrotóxicos e sementes transgênicas;d) usar máquinas agrícolas apropriadas e adaptadas a cada contexto socioambiental, visando o au-

mento da produtividade das áreas agrícolas, do trabalho e da renda, em equilíbrio com a natureza;e) promover as diversas formas de cooperação agrícola, para desenvolver as forças produtivas e as re-

lações sociais;f) instalar agroindústrias no campo sob controle dos camponeses e demais trabalhadores, gerando

alternativas de trabalho e renda, em especial para a juventude e as mulheres.

5. Energiaa) devemos construir formas para que se desenvolva a soberania popular sobre a energia em cada co-

munidade e em todos os municípios brasileiros;b) desenvolver de forma cooperativada a produção de energia a nível local, com as mais deferentes

fontes de recursos renováveis para atender as necessidades de todo povo brasileiro.

6. Educação e CulturaO conhecimento deve ser um processo de conscientização, libertação e de permanente elevação cul-

tural de todos e todas que vivem no campo:a) garantir à população que vive no campo, o acesso aos bens culturais e o direito à educação pública,

gratuita e de qualidade, em todos os níveis;b) incentivar, promover e difundir a identidade cultural e social da população camponesa;

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38 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

c) assegurar o acesso, a produção e controle dos mais diferentes meios de comunicação social no campo;

d) desenvolver a formação técnico-científica e política, de forma permanente, para todos que vivem no campo;

e) combater, permanentemente, todas as formas de preconceito social, para que não ocorra a discri-minação de gênero, idade, etnia, religião, orientação sexual etc.

7. Direitos sociaisa) os trabalhadores/as rurais sob regime de assalariamento devem ter todos os direitos sociais, previ-

denciários e trabalhistas garantidos e equivalentes aos trabalhadores urbanos e as relações de trabalho devem ser construídas sobre a base da cooperação, gestão social e de combate a alienação;

b) assegurar que remuneração seja compatível com a renda e a riqueza gerada;c) garantir condições dignas e jornadas adequadas de trabalho;d) combater de forma permanente e intransigente o trabalho análogo à escravidão, expropriando de

todas as fazendas e empresas que fazem uso dessa prática;e) combater todas as formas violência contra as mulheres e crianças, penalizando exemplarmente a

seus praticantes.

8. Condições de vida para todos e todasO campo deve se constituir num local bom de viver. Onde as pessoas tenham direitos, oportunidades

e condições de vida dignas.

IV. Proposta de um programa de reforma agrária popular

Nossa proposta de programa de reforma agrária popular reúne medidas amplas, abrangentes, que representam e sintetizam as principais ideias sobre o modelo de agricultura que defendemos para o país e pelo qual lutamos.

Esse programa sintetiza uma estratégia de resistência ao modelo de agricultura capitalista do agrone-gócio e propõem um processo de acúmulo de forças, tendo como objetivo a construção de um novo mo-delo de agricultura, voltado para as necessidades de todo povo brasileiro. Para isso precisaremos lutar e fortalecer nossa organização e a qualificação das nossas lutas para promovermos, junto com toda a classe trabalhadora, as mudanças estruturais da sociedade capitalista. Este programa deve também orientar o nosso Movimento, nas pautas de reivindicações, negociações, nas lutas, na qualificação interna da nossa organização e nas ações práticas nos próximos anos.

O programa de Reforma Agrária, discutido amplamente com nossa militância e nossa base social, representa os desafios e as perspectivas dos camponeses, no atual estágio da luta de classes, em que se realiza o VI Congresso Nacional do MST. O programa é um importante instrumento na definição das alianças políticas e nas mobilizações unitárias junto às organizações populares e sindicais da classe tra-balhadora, do campo e da cidade.

Ele serve como canal de comunicação com toda sociedade e com os setores da classe trabalhadora, para explicitar nossos objetivos e bandeiras de luta, a necessidade de democratizar as terras, garantir sua função social e priorizar a produção de alimentos saudáveis.

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39Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

A partir do programa e de acordo com a correlação de forças na luta de classes concreta e dos espa-ços que se abrem na conjuntura política, o Movimento definirá suas pautas de reivindicações e de lutas, detalhadas e específicas, correspondentes às necessidades da nossa base social e da classe trabalhadora, em geral.

Portanto, as propostas detalhadas do que queremos para a agricultura, características de pautas e agendas de negociação serão definidas conjunturalmente, nos espaços da luta de classes e na aplicação das nossas táticas de luta.

Assim, através do nosso programa de reforma agrária popular, defendemos:

1. A democratização da terra1.1. democratizar o acesso à terra, aos bens da natureza e aos meios de produção na agricultura,a to-

dos os camponeses;1.2. assegurar que a democratização do uso, posse e propriedade da terra e dos bens da natureza, es-

teja vinculada aos interesses e necessidades sociais, econômicas, culturais e políticas da população cam-ponesa, especificamente, e, de modo geral, de toda a população brasileira;

1.3. garantir a todos os trabalhadores brasileiros o direito de ter acesso a terra para morar e/ou tra-balhar;

1.4. garantir o direito a posse e uso da terra a todos os povos indígenas e quilombolas, ribeirinhas, pescadores e comunidades tradicionais;

1.5. priorizar o processo de desapropriação das terras das maiores fazendas, das propriedades de em-presas estrangeiras e das empresas do setor secundário (indústrias) e terciário (serviços, bancos e comér-cio);

1.6. desapropriar, imediatamente, para fins de Reforma Agrária, todas as terras que não cumprem a sua função social, relativa ao uso produtivo, às condições sociais e trabalhistas dos trabalhadores e tra-balhadoras e a preservação do meio ambiente, como estabelece a Constituição Federal de 1988;

1.7. estabelecer um limite máximo ao tamanho da propriedade das terras agrícolas;1.8. combater e eliminar todas as formas de cobrança de renda da terra e/ou arrendamento de áreas

rurais;1.9. lutar para que os governos desburocratizem, e criem as condições favoráveis ao acesso à terra pe-

las famílias sem terra acampadas e/ou já inscritas como beneficiários do programa de reforma agrária;1.10. expropriar imediatamente todas as fazendas que se utilizam de trabalho escravo, narcotráfico e

contrabando de mercadorias. E, destiná-las ao programa de reforma agrária;1.11. exigir a devolução de todas as terras públicas que foram griladas por fazendeiros e empresas, e

destiná-las a reforma agrária;1.12. exigir que os governos consultem a todas as famílias atingidas por obras públicas, para que os

projetos tenham o menor impacto social e ambiental possível. E se houver necessidade da obra, lhes seja assegurado o direito de terra por terra, nas mesmas condições em que viviam e indenização por perdas e danos, de forma justa, pelo seu trabalho e benfeitorias construídas;

1.13. impedir que as áreas nas zonas de fronteira do país, sejam entregues para grandes empresas, sobretudo de capital estrangeiro. Utilizá-las para assentamento de famílias camponesas e para a regula-rização dos camponeses posseiros já residentes nessas áreas;

1.14. todas as famílias beneficiadas da reforma agrária receberão apenas títulos de concessão de uso, com direito a herança familiar, com dupla titularidade incluindo a mulher, estando proibida a venda das parcelas de terra de reforma agrária;

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40 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

1.15. não será permitido desenvolver projetos de extração mineral por parte de empresas nas áreas de assentamento. Os minérios devem ser utilizados de forma sustentável, em benefício da comunidade e de todo o povo.

2. Água: um bem da natureza em benefício da humanidade2.1. A água é um bem da natureza e deve ser utilizada em benefício de toda humanidade. Exigir que

a posse e o uso da água estejam subordinados aos interesses e às necessidades de toda população;2.2. lutar para que a água não seja uma mercadoria, portanto, não pode ter propriedade privada.

Deve-se garantir seu acesso a todas as pessoas da sociedade. Todos os reservatórios de água, barragens, açudes e inclusive subterrâneos devem ser de domínio público;

2.3. exigir do Estado uma política específica de proteção dos aquíferos, em especial o do Guarani, e das nascentes de todas as bacias hidrográficas, especialmente as do cerrado (das 12 importantes bacias hidrográficas do Brasil, oito têm as nascentes no cerrado);

2.4. garantir o abastecimento de água potável, promovido pelo Estado e suas empresas públicas, em todas as comunidades rurais e nas cidades;

2.5. exigir que o Estado adote políticas que garantam aos camponeses as condições para o acesso e uso adequado das águas, sobretudo dos reservatórios públicos como barragens, represas, lagos, projetos de irrigação etc. para consumo e irrigação produtiva. Que se adotem políticas de proteção e manejo das fontes e mananciais, promovendo o reflorestamento de árvores nativas nas margens de córregos, lagoas e rios;

2.6. implementar um amplo programa de manejo sustentado da água, que viabilize a sua conservação natural e a infraestrutura de captação e uso sustentável;

2.7. lutar pela promoção de um desenvolvimento sustentável adaptado as especificidades de cada um dos seis biomas do território brasileiro, a saber: Amazônia, caatinga, mata atlântica, cerrado, pantanal e pampas;

2.8. implementar e garantir, junto ao Estado, políticas de sustentabilidade e de convivência dos cam-poneses no semiárido, nos períodos de seca;

2.9. implementar programas de aproveitamento da água da chuva, para abastecimento das moradias, agricultura, comunidades e agroindústria.

3. A organização da produção agrícola3.1. priorizar a produção de alimentos saudáveis para todo o povo brasileiro, garantindo o princípio

da soberania alimentar, livres de agrotóxicos e de sementes transgênicos;3.2. organizar a produção e comercialização com base em todas as formas de cooperação agrícola,

como mutirões, formas tradicionais de organização comunitária, associações, cooperativas, empresas públicas e empresas sociais;

3.3. organizar agroindústrias próximas ao local de camponeses e dos trabalhadores das agroindús-trias;

3.4. desenvolver programas de soberania energética em todas as comunidades rurais do país, com base em fontes alternativas renováveis, como vegetais não alimentícios, energia solar, hídrica e eólica;

3.5. exigir do Estado políticas próprias que assegurem a produção, distribuição e uso de energia para a população do meio rural;

3.6. implementar programas de irrigação acessível a todos camponeses, para produção de alimentos;3.7. o Estado deve garantir através da empresa pública de abastecimento (Conab) a compra de todos

os produtos alimentícios da agricultura camponesa.

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41Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

4. Uma nova matriz tecnológica que mude o modo de produzir e distribuir a riqueza na agricultura4.1. exigir do Estado políticas de créditos, financiamentos subsidiados, pesquisas e aprendizados

tecnológicos voltados para a produção agrícola de matriz agroecológica e com o incentivo à adoção de técnicas que aumentem a produtividade do trabalho e das áreas, em equilíbrio com a natureza;

4.2. exigir do Estado políticas de incentivos e produção de máquinas, equipamentos e ferramentas agrícolas adequadas às necessidades e ao bem-estar dos camponeses e dos trabalhadores rurais, de acordo com as realidades regionais e preservação ambiental;

4.3. desenvolver, através do Estado, programas de produção, multiplicação, armazenagem e distribui-ção de sementes crioulas e agroecológicas, dos alimentos da cultura brasileira, para atender as necessida-des de produção dos camponeses, inseridos no princípio da soberania alimentar do país;

4.4. desenvolver um programa nacional de reflorestamento, com árvores nativas e frutíferas e de ma-nejo florestal nas áreas de assentamentos, da agricultura camponesa, áreas degradadas pelo agronegócio e nas áreas controladas pelos povos indígenas e comunidades tradicionais;

4.5. combater a propriedade privada intelectual e de patentes de sementes, animais, recursos naturais, biodiversidade ou sistemas de produção;

4.6. exigir do Estado a organização, o fomento e a instalação de empresas públicas e cooperativas de camponeses para produção de insumos agroecológicos, armazenar e distribuir para todos os campo-neses. Instalar unidades de transformação de resíduos orgânicos das cidades em adubação orgânica e distribuí-los gratuitamente a todos camponeses;

4.7. exigir do Estado o combate à produção e comercialização de agrotóxicos e de sementes transgê-nicas.

5. A industrialização5.1. O programa de reforma agrária popular deverá ser um instrumento para levar a industrialização

ao interior do país para:a) promover um desenvolvimento equilibrado entre as regiões;b) incentivar a qualificação técnica e oportunidades de trabalho no campo;c) gerar maior renda para a população camponesa;d) eliminar as desigualdades socioeconômicas existentes entre a vida no campo e na cidade.e) fortalecer e incentivar a organização e a cooperação agrícola entre os camponeses;5.2. desenvolver um programa de agroindústrias, cooperativadas e sob o controle dos camponeses,

nos assentamentos rurais da reforma agrária;5.3. instalação de empresas públicas de serviços, com a participação dos camponeses, para garantir

preços, armazenamento e a distribuição da produção de alimentos dos camponeses;5.4. criar linhas de crédito e financiamento, desburocratizada, dirigida exclusivamente para a indus-

trialização da produção camponesa;5.5. desenvolver centros de pesquisas, qualificação técnica e intercâmbio de conhecimentos, voltados

para as atividades das agroindústrias e a preservação ambiental.

6. Política agrícola6.1. exigir do Estado o uso de todos os instrumentos de política agrícola – garantia de preços rentá-

veis para o agricultor, compra antecipada de toda produção de alimentos dos camponeses, crédito rural adequado, seguro rural, assistência tecnológica, armazenagem – para incentivar e qualificar a agricultu-ra camponesa e agroecológica na produção de alimentos saudáveis;

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42 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

6.2. garantir, através de políticas públicas, que todos os camponeses tenham acesso aos meios de produção – máquinas, equipamentos, insumos – necessários para as atividades agrícolas e preservação ambiental;

6.3. exigir do Estado a reorganização e a reestruturação da pesquisa agropecuária, dirigida priorita-riamente para a agroecologia, na produção de alimentos, substituição dos agrotóxicos e as melhorias ge-néticas em equilíbrio com a natureza e em consonância com as necessidades da agricultura camponesa;

6.4. assegurar que a assistência técnica, a transferência de tecnologias, o fomento e extensão rural tenham como orientação política os princípios da democratização dos conhecimentos, o favorecimento de intercâmbios e o estímulo à criatividade dos camponeses;

6.5. exigir do Estado a organização de instituições para facilitar a certificação dos produtos orgânicos da agricultura camponesa;

6.6. reivindicar do Estado atuação para ampliar o maior número possível de cursos técnicos e supe-riores de agroecologia em todas as regiões do país;

6.7. exigir que os camponeses/as e trabalhadores/as assalariados/as tenham participação ativa na for-mulação de todas as políticas públicas para a agricultura.

7. A Educação do CampoA educação é um direito fundamental de todas as pessoas e deve ser atendido no próprio lugar onde

elas vivem e respeitando o conjunto de suas necessidades humanas e sociais. E o acesso à educação pelos trabalhadores é uma das condições básicas da construção do projeto de reforma agrária popular.

Priorizamos a luta pelo acesso à educação escolar porque esse acesso ainda não é garantido para todo o povo em nosso país, especialmente às pessoas que trabalham no campo. Mas, para nós a educação não acontece apenas no espaço e tempo que o educando e educanda frequentam a escola. O direito à educa-ção se relaciona, também, ao acesso a diferentes tipos de conhecimento e de bens culturais; à formação para o trabalho e para a participação política; ao jeito de produzir e de se organizar; à aprender a se ali-mentar de modo saudável; e à pratica dos valores humanistas e socialistas que defendemos.

Lutamos por escolas públicas e gratuitas para que o Estado cumpra seu papel de garantir a todos os trabalhadores e trabalhadoras, do campo e da cidade, uma escola com as condições materiais necessárias à realização de sua tarefa educativa. Ao mesmo tempo lutamos contra a tutela política e pedagógica do Estado burguês, sejam quais forem os governos em exercício. Cabe ao povo ser sujeito de sua educação.

É essa autonomia que nos pode permitir:a) fortalecer o vínculo entre escolas, assentamentos e acampamentos e entre escolas e o MST;b) discutir e atender às novas demandas formativas postas pelos desafios da construção do projeto de

reforma agrária popular.No plano das políticas públicas de educação do campo são nossas prioridades de luta:7.1. implementar um programa massivo de alfabetização de todos os jovens e adultos do campo;7.2. universalizar o acesso à educação básica (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio)

pública,gratuita e de qualidade social pela garantia de:a) construção e manutenção de escolas em todas as áreas de reforma agrária;b) transporte intracampo que garanta o fluxo de estudantes entre escolas das próprias comunidades

do campo;c) estrutura física adequada nas escolas incluindo bibliotecas, laboratórios, quadras esportivas, acesso

à internet, equipamentos para experimentos agrícolas, materiais para trabalho com as diferentes lingua-gens artísticas.

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d) atendimento especializado aos portadores de necessidades educativas especiais no próprio campo;e) concursos específicos para atuação dos professores em escolas do campo, garantindo permanência

de 40h do professor em uma mesma escola e condições de transporte e moradia;f) processos de formação continuada para os educadores;7.3. ampliar o acesso de jovens e adultos à educação profissional de nível médio e superior, com prio-

ridade a cursos relacionados às demandas do projeto de reforma agrária popular e de desenvolvimento do conjunto das comunidades camponesas;

7.4. ampliar o acesso de jovens e adultos camponeses/as à educação superior em diferentes áreas, in-cluindo cursos de graduação e pós-graduação, garantindo, quando necessário, o regime de alternância, com hospedagem e alimentação viabilizada por recursos públicos. E com a expansão da rede universitá-ria e dos institutos federais dentro das áreas e regiões da reforma agrária;

7.5. implementar programas de formação e projetos de experimentação/pesquisa em agroecologia, vinculados a escolas de educação básica, a cursos de educação profissional e superior e a centros de for-mação existentes nos assentamentos;

7.6. promover programas de bolsas de estudo para jovens camponeses realizarem intercâmbio inter-nacional em outros países com experiência de produção camponesa e agroecológica;

7.7. apoiar as redes de pesquisadores que priorizem investigações e projetos de extensão universitária voltados a melhorias dos processos educativos desenvolvidos em áreas de reforma agrária.

8. O desenvolvimento da infraestrutura social nas comunidades rurais e camponesas8.1. desenvolver um amplo programa de construção e melhoria das moradias no campo, respeitando

as especificidades da cultura camponesa em cada região, conjugado com acesso à energia elétrica de fon-tes alternativas, à água potável, saneamento básico, transporte e acesso às estradas trafegáveis;

8.2. estimular formas de sociabilidades, com moradias dignas, organizadas em povoados, comunida-des, núcleos de moradias ou agrovilas, de acordo as culturas regionais;

8.3. implantar a organização de bibliotecas, serviços de informática, espaços culturais e de lazer em todas as áreas de assentamentos, voltados para o acesso, difusão, produção e intercâmbios esportivos, artísticos e culturais;

8.4. assegurar o transporte público e estradas vicinais em condições descentes e seguro, para a popu-lação das áreas rurais;

8.5. garantir o acesso aos serviços de saúde pública, de qualidade e gratuita, para toda a população do campo. E, assegurar a construção de centros de saúde nos assentamentos e a criação e cultivo de ervas e plantas medicinais;

8.6. assegurar que toda a população camponesa tenha acesso aos benefícios da previdência social;8.7. promover a democratização dos meios de comunicação de massas, dando condições para que as

comunidades rurais tenham rádios comunitárias e acesso à produção das TVs comunitárias e de todas as outras formas de comunicação digital e impressa.

9. Mudanças na natureza do Estado e em sua estrutura administrativa9.1. a realização do programa de reforma agrária popular exige mudanças democráticas na forma de

organização e funcionamento atual do Estado burguês. Levando em consideração a sua natureza anti-democrática e sua burocracia que impedem políticas públicas favoráveis à classe trabalhadora em geral, o avanço das nossas conquistas para beneficiar os camponeses/as e a imensa maioria da população do campo, somente se dará se enfrentarmos a natureza do Estado burguês;

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44 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

9.2. e, ao mesmo tempo, realizarmos lutas e pressões sociais pela democratização dos serviços, órgãos de fiscalização e do funcionamento de todas as esferas dos governos federal, estadual e municipal. Assim como as esferas dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo;

9.3. a realização deste programa de transição de modelo na organização dos bens da natureza e da agricultura brasileira, somente será possível num contexto histórico de existência e de aliança entre um governo realmente popular, que controle o Estado a serviço das maiorias, com um vigoroso movimento de massas, que coloque os trabalhadores como sujeitos políticos permanentes dessas mudanças;

9.4. somente assim, poderá haver uma centralidade das políticas públicas do Estado e governos a favor de uma reforma agrária de cunho popular, expressa nesse programa, organizadas em povoados, comunidades, núcleos de moradias ou agrovilas, de acordo as culturas regionais.

V. Nosso lema

LUTAR, Construir Reforma Agrária Popular!O processo de escolha do lema percorreu a mesma metodologia da construção do programa. E nos

últimos 12 meses consultamos a todos/as militantes. Recebemos dezenas de sugestões e opiniões de mi-litantes, professores e amigos/as.

Em agosto de 2013, na reunião da Coordenação Nacional concentramos o debate em torno das prin-cipais sugestões que refletissem o programa agrário. E por ampla maioria decidiu-se pelo lema acima enunciado.

1. Objetivo a cumprirA palavra de ordem de um congresso deve representar o momento político que a organização esta

vivendo e ao mesmo tempo apresentar os principais desafios para o próximo período. No caso do MST, por tradição, sempre transformamos o lema dos congressos na palavra de ordem que depois nos acom-panha ao longo do período, nas lutas e mobilizações.

A palavra de ordem deve representar os desafios enfrentados no período de vigência do congresso. Também deve ser um instrumento de agitação e propaganda das ideias do programa para a militância, as massas e na sociedade brasileira em geral.

A formulação da palavra de ordem, para o VI Congresso teria que representar para as massas e para a militância uma resposta contundente as dificuldades políticas e organizativas imposta pela conjuntura (Estado, governo e agronegócio) do último período. Ao mesmo tempo, sinalizar para os nossos amigos e aliados, a estratégia que optamos para superar as dificuldades atuais e apontar caminhos na perspectiva de acumularmos forças para a construção da reforma agrária popular e para o projeto popular para o Brasil.

O nosso lema precisa sinalizar para conjunto da base do movimento e todos nossos aliados na socie-dade, de que nos mantemos firmes na defesa de nossos objetivos políticos de lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por transformação social.

2. LutarA base dos nossos objetivos é lutar. Esta insígnia sempre foi a mola mestra que conduz até hoje as

nossas decisões e motivaram as nossas práticas e ações.

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45Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

Lutar é o alicerce do caráter de nosso movimento social, de organização política e da luta econômica. Apreendemos sempre que todas as nossas conquistas são frutos de nossas lutas coletivas e da resistência. Conduzidos pela tática de lutar e negociar (pau e prosa). Realizar lutas e garantir conquistas econômicas e políticas para os que realizaram as lutas. Lutar como nos ensinou Florestan Fernandes – “Lutar sem-pre: Não se deixar cooptar, não se deixar derrotar e obter conquistas concretas para melhoria de vida das massas”.

Lutar faz parte de nossa historia e é a herança recebida da história da classe trabalhadora brasileira e de todo o mundo. Tudo o que conquistamos é resultado de luta: realizamos luta pela terra, pela educa-ção, por saúde, por crédito, para poder ter direito a produzir, comercializar, morar etc. Lutamos contra as sementes transgênicas, contra os agrotóxicos, contra a corrupção, contra o império estadunidense. Lutamos contra todas as formas de opressão e de dominação. Lutamos até para conseguir praticar a soli-dariedade a outros povos coma organização de nossas brigadas internacionalistas em países como: Haiti, Moçambique, Venezuela etc. Lutamos até para poder aplicar a lei e punir os que praticam violência con-tra os trabalhadores! Portanto, nada mais representativo para o próximo período que a convocação para lutar. Para que todos sigam lutando, em cada uma das frentes de atividades na sociedade.

3. ConstruirA segunda parte da palavra de ordem que nos orientará no próximo período, é a de “construir” refor-

ma agrária popular. Construir, como um processo de organizar, lutar, formar e mobilizar nosso povo. Construir é sinalizar para o futuro. Nossa tarefa é ir construindo a reforma agrária popular como uma missão estratégica, vinculada a luta política contra o capitalismo e por um projeto popular. No entanto temos tarefas táticas que temos que realizar, para construir esta possibilidade estratégica.

Construir a reforma agrária popular no combate ao latifúndio, à monocultura agroexportadora, ao modelo do agronegócio, ao Estado burguês, burocrata e corrupto. Mas também, construir com expe-riências de produção agroecológica, e na prioridade da produção de alimentos sadios. Construir reflo-restando, plantando árvores frutíferas, recuperando o meio ambiente para toda sociedade. Construir, garantindo escolas em todos os níveis para nossas crianças, jovens e adultos. Construir formando cada vez mais quadros e militantes.

Construir é acumular forças para o nosso projeto estratégico!

4. Reforma Agrária Popular!Como parte do processo do VI Congresso, o MST construiu uma proposta de Programa de Refor-

ma Agrária, que é popular. Tal programa é construído a partir da análise da realidade agrária atual, dominada pelo projeto do capital: o agronegócio. E da impossibilidade de realização de uma Reforma Agrária do tipo clássica, sob hegemonia da burguesia, que apenas distribui a terra, para desenvolver as forças produtivas do campo e o mercado interno.

A análise sobre o esgotamento da reforma agrária clássica não excluía continuidade da luta pela terra e contra o latifúndio. No Brasil e em todo o mundo, ela só aconteceu como conquista dos trabalhado-res e trabalhadoras sob um intenso processo de lutas de massa, mesmo quando ela não consiga alterar a correlação de forças predominante no modelo de agricultura, como são os assentamentos.

O MST afirma que nunca houve uma reforma agrária no Brasil, mesmo limitada, que pelo menos alterasse a concentração da propriedade da terra e democratizasse seu acesso. Por isso, o que projetamos e estamos construindo na concepção de Reforma Agrária Popular está para além do velho projeto de reforma agrária clássica, distributivista, dos limites do poder burguês.

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46 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

Ou seja, as raízes da reforma agrária popular não estão somente no esgotamento objetivo da refor-ma agrária clássica. Mais que isso: as raízes da reforma agrária popular brotam e crescem de um único lugar – o enfrentamento dos sujeitos trabalhadores contra as forças do capital. Que agora se agrava com sua crise civilizatória e se apropria, violentamente, de todos os bens da natureza, da saúde e da cultura popular para transformar tudo em mercadoria, em lucro!

Nosso Programa não se destina apenas aos trabalhadores e trabalhadoras sem terra ou aos povos que vivem no campo. A reforma agrária é popular, porque abrange a todas as forças e sujeitos que acreditam e necessitam de mudanças na sociedade. E somente poderá se realizar se construirmos uma grande aliança de toda classe trabalhadora. É uma reforma agrária para todo povo.

Portanto, a reforma agrária popular tem vinculação direta com o legado histórico dos 30 anos do MST e do passado de lutas massivas camponesas e nos permite projetar as alianças de todo povo e as re-lações que queremos e necessitamos desenvolver com a terra, o território e a produção para construirmos uma sociedade justa, igualitária e fraterna para todos.

As práticas e a luta pela reforma agrária popular representam o enfretamento com o modelo do capi-tal: o agronegócio, e buscam criar as condições e acumular forças para as mudanças estruturais de toda sociedade.

Esse é o sentido histórico do lema do VI Congresso!

Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

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MST COMPROMISSOS 2014

Nós, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), após nossa jornada de 30 anos, assumimos os seguintes compromissos:

1) A terra, água, florestas, fauna, flora, minérios, sol, enfim, todos os bens da natureza devem estar a serviço do povo e preservados para as gerações futuras.

2) O acesso à terra precisa ser democratizado e sua função social cumprida. Todas as famílias cam-ponesas devem ter o direito de nela trabalhar e morar.

3) Defendemos a demarcação de todas as áreas pertencentes aos povos indígenas e às comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e de pescadores artesanais.

4) Devemos priorizar a produção de alimentos saudáveis, assegurando a saúde dos produtores, dos consumidores e a preservação da natureza. Os alimentos são um direito e não devem ser apenas merca-dorias, fontes de exploração e lucro.

5) Defendemos o princípio da Soberania Alimentar, para que cada comunidade e região produza os alimentos necessários para o seu povo.

6) A produção agrícola deve ser agroecológica, abolir o uso de agrotóxicos e de sementes transgênicas.7) As sementes são um patrimônio dos povos a serviço da humanidade, e não se pode ter propriedade

privada sobre elas.8) Promover as diversas formas de cooperação agrícola e instalar agroindústrias no campo, sob o

controle dos trabalhadores.9) Combater os desmatamentos e reflorestar as áreas degradadas com árvores nativas e frutíferas.10) Desenvolver, na forma de cooperativas, a soberania energética de cada comunidade, aproveitando

as fontes de energia renováveis, para atender às necessidades do povo.11) Todas as pessoas que vivem no campo têm o direito à educação pública, gratuita, de qualidade e

em todos os níveis, no local em que residem.12) Assegurar à população camponesa o direito de produzir e de usufruir dos bens culturais e o aces-

so aos diversos meios de comunicação social.13) Os trabalhadores/as rurais assalariados/as devem ter todos os direitos sociais, previdenciários e

trabalhistas garantidos e equivalentes aos trabalhadores/as urbanos/as.14) As relações sociais de produção devem abolir a exploração, a opressão e a alienação. Os trabalha-

dores/as devem ter o controle sobre o resultado de seu trabalho.15) Combater todas as formas de violência contra mulheres, crianças e idosos. Devem ser eliminadas

todas as formas de discriminação social, de gênero, etnia, religião e/ou orientação sexual.16) Combater todas as formas de trabalho escravo, expropriando as fazendas e empresas que o prati-

carem e punindo seus proprietários e responsáveis.

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48 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

17) Garantir o acesso à formação técnico-científica e política, de forma permanente para todos/as que vivem no campo. O conhecimento deve ser um instrumento de conscientização, libertação e de permanente elevação cultural.

18) O campo deve ser um local bom de viver. Onde as pessoas tenham os seus direitos respeitados e condições dignas de vida. Por isso, seguimos firmes em nosso compromisso com a luta pela transfor-mação social!

VI Congresso do MST – 10 a 14 de Fevereiro de 2014 – Brasília/DF.

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49Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

PLATAFORMA DA VIA CAMPESINA PARA A AGRICULTURA26 de maio de 2010

Ao povo brasileiro e às organizações populares do campo e da cidadeO atual modelo agrícola imposto ao Brasil pelas forças do capital e das grandes empresas é prejudicial

aos interesses do povo. Ele transforma tudo em mercadoria: alimentos, bens da natureza (como água, terra, biodiversidade e sementes) e se organiza com o único objetivo de aumentar o lucro das grandes empresas, das corporações transnacionais e dos bancos.

Nós precisamos urgentemente construir um novo modelo agrícola baseado na busca constante de uma sociedade mais justa e igualitária, que produza suas necessidades em equilíbrio com o meio am-biente.

Por isso, fazemos algumas considerações e convidamos o povo brasileiro a refletir e decidir qual é o modelo de agricultura que quer para o nosso país.

A natureza do atual modelo agrícolaO atual modelo agrícola, chamado de agronegócio, tem como principais características:1. organizar a produção agrícola sob controle dos grandes proprietários de terra e empresas transna-

cionais, que exploram os trabalhadores agrícolas e têm o domínio sobre: produção, comércio, insumos e sementes;

2. priorizar a produção na forma de monocultivos extensivos, em grande escala, que afetam o am-biente e exige grandes quantidades venenos, que prejudicam a saúde e a qualidade dos alimentos. O Brasil consome mais de um bilhão de litros de veneno por ano, se transformando no maior consumidor mundial!

3. organizar o monocultivo florestal, como o de eucalipto e pinus, que destroem o ambiente, a bio-diversidade, estragam a terra, geram desemprego, destinando a produção para exportação, dando lucro para as transnacionais e nos deixando a degradação social e ambiental;

4. incentivar a ampliação da área de monocultivo de cana-de-açúcar para produção de etanol, para exportação. Novamente, causando prejuízos ao ambiente, elevando o preço dos alimentos, a concentra-ção da propriedade da terra e desnacionalizando o setor da produção do açúcar e álcool;

5. difundir o uso das sementes transgênicas, que destroem a biodiversidade e eliminam todas as nos-sas sementes nativas. As sementes transgênicas não conseguem conviver com outras variedades e conta-minam as demais, resultando, a médio prazo, na existência de apenas sementes controladas por empresas transnacionais. Com o controle das sementes, essas empresas cobram royalties, vendem agrotóxicos de suas próprias indústrias e pressionam governos a adotarem políticas dos seus interesses;

6. incentivar o desmatamento da floresta amazônica e a destruição dos babaçuais, através da expan-são da pecuária, soja, eucalipto e cana, e para exportação de madeira e minérios. Somos contra a lei que autoriza a exploração privada das florestas públicas.

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50 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

Diante da gravidade da situação, denunciamos à sociedade brasileira1. O modelo do agronegócio protege a exploração do trabalho escravo, do trabalho infantil e a supe-

rexploração dos assalariados rurais, sem garantir os direitos trabalhistas e previdenciários e as mínimas condições de transporte e de vida nas fazendas. Por isso, a bancada ruralista nunca aceitou votar o pro-jeto que penaliza fazendas com trabalho escravo, já aprovado no Senado;

2. o projeto de lei do senador Sergio Zambiasi (PTB-RS), que pretende diminuir a proibição de pro-priedades estrangeiras na faixa de fronteira de todo pais, regulariza as terras em situação de ilegalidade e crime de empresas estrangeiras na fronteira, como a Stora Enso e a seita Moon;

3. as obras de transposição do Rio São Francisco visam apenas beneficiar o agronegócio, o hidrone-gócio e a produção para exportação, e a expansão da cana na região nordeste, e não atende às necessida-des dos milhões de camponeses que vivem no Semiárido;

4. a crescente privatização da propriedade da água por empresas, sobretudo estrangeiras, como a Nes-tlé, Coca-Cola e Suez, entre outras;

5. o atual modelo energético prioriza as grandes hidrelétricas, principalmente na Amazônia, e trans-forma a energia em mercadoria. Privatiza, destrói e polui o ambiente, aumenta cada vez mais as tarifas da energia elétrica ao povo brasileiro, privilegia os grandes consumidores eletrointensivos e entrega o controle da energia às grandes corporações multinacionais, colocando em risco a soberania nacional;

6. as tentativas de modificação no atual Código Florestal, proposto pela bancada ruralista a serviço do agronegócio, autoriza o desmatamento das áreas, buscando apenas o lucro fácil;

7. as articulações das empresas transnacionais, falsas entidades ambientalistas e alguns governos do Hemisfério Norte querem transformar o meio ambiente em simples mercadoria. E introduzir títulos de créditos de carbono negociáveis nas bolsas de valores – inclusive para isentar as empresas poluidoras do Norte – e gerar oportunidades de lucro para empresas do Sul, enquanto as agressões ao meio ambiente seguem livremente pelo capital;

8. as políticas que privatizam o direito de pesca desequilibram o meio ambiente nos rios e no mar e inviabilizam a pesca artesanal, da qual dependem milhões de brasileiros;

9. a lei recentemente aprovada que legaliza a grilagem, regularizando as áreas públicas invadidas na Amazônia até 1.500 hectares por pessoa (antes era permitido legalizar apenas até 100 hectares). Somos contra o projeto de lei do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) que reduz a reserva florestal na Amazônia em cada propriedade de 80% para 50%.

Propomos um novo programa para a agricultura brasileira. Um programa que seja baseado nas seguintes diretrizes:

1. implementar um programa agrícola e hídrico que priorize a soberania alimentar de nosso país, estimule a produção de alimentos sadios, a diversificação da agricultura, a reforma agrária, como ampla democratização da propriedade da terra, a distribuição de renda produzida na agricultura e fixação da população no meio rural brasileiro;

2. impedir a concentração da propriedade privada da terra, das florestas e da água. Fazer uma ampla distribuição das maiores fazendas, instituindo um limite de tamanho máximo da propriedade de bens da natureza;

3. assegurar que a agricultura brasileira seja controlada pelos brasileiros e que tenha como base a produção de alimentos sadios, a organização de agroindústrias na forma cooperativas em todos os mu-nicípios do país;

4. incentivar a produção diversificada, na forma de policultura, priorizando a produção camponesa;

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51Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

5. adotar técnicas de produção que buscam o aumento da produtividade do trabalho e da terra, res-peitando o ambiente e a agroecologia. Combater progressivamente o uso de agrotóxicos, que contami-nam os alimentos e a natureza;

6. adotar a produção de celulose em pequenas unidades, sem monocultivo extensivo, buscando aten-der as necessidades brasileiras, em escala de agroindústrias menores;

7. defender a “política de desmatamento zero” na Amazônia e Cerrado, preservando a riqueza e usan-do os recursos naturais de forma adequada e em favor do povo que lá vive. Defender o direito coletivo da exploração dos babaçuais;

8. preservar, difundir e multiplicar as sementes nativas e melhoradas, de acordo com nosso clima e biomas, para que todos os agricultores tenham acesso;

9. penalizar rigorosamente todas as empresas e fazendeiros que desmatam e poluem o meio ambiente;10. implementar as medidas propostas pela Agência Nacional de Águas (Atlas do Nordeste), que pre-

vê obras e investimentos em cada município do Semiárido, que com menor custo resolveria o problema de água de todos os camponeses e população residente na região;

11. assegurar que a água, como um bem da natureza, seja um direito de todo cidadão. Não pode ser uma mercadoria e deve ser gerenciada como um bem público, acessível a todos e todas. Defendemos um programa de preservação de nossos aquíferos, como as nascentes das três principais bacias no Cerrado, o Aquífero Guarani e a mais recente descoberta do Aquífero Alter do Chão, na região Amazônica;

12. implementar um novo projeto energético popular para o país, baseado na soberania energética e garantir o controle da energia e de suas fontes a serviço do povo brasileiro. Assegurar que o planejamen-to, a produção, distribuição da energia e de suas fontes estejam sob controle do povo brasileiro. Também, estimular todas as múltiplas formas de fontes de energia, com prioridade para as potencialidades locais e de uso popular. Exigir a imediata revisão das atuais tarifas de energia elétrica cobradas à população, garantindo o acesso a todos a preços compatíveis com a renda do povo brasileiro;

13. regularizar todas as terras quilombolas em todo país;14. proibir a aquisição de terras brasileiras por empresas transnacionais e seus “laranjas”, acima do

modulo familiar;15. demarcar imediatamente todas as áreas indígenas e promover a retirada de todos os fazendeiros

invasores, em especial nas áreas dos guaranis no Mato Grosso do Sul;16. promover a defesa de políticas públicas para agricultura, por meio do Estado, que garantam:a) prioridade para a produção de alimentos para o mercado interno;b) preços rentáveis aos pequenos agricultores, garantindo a compra pela Companhia Nacional de

Abastecimento (Conab);c) uma nova política de crédito rural, em especial para investimento nos pequenos e médios estabe-

lecimentos agrícolas;d) uma política de pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) definida a

partir das necessidades dos camponeses e da produção de alimentos sadios;e) adequar a legislação sanitária da produção agroindustrial às condições da agricultura camponesa e

das pequenas agroindústrias, ampliando as possibilidades de produção de alimentos;f) políticas públicas para a agricultura direcionadas e adequadas às realidades regionais.17. garantir a manutenção do caráter público, universal, solidário e redistributivista da seguridade so-

cial no Brasil, como garantia a todos trabalhadores e trabalhadoras da agricultura. Garantir o orçamento para a previdência social e a ampliação dos direitos sociais a todos trabalhadores e trabalhadoras, como os que estão na informalidade e os trabalhadores domésticos;

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52 Parte 2 – Eixo temático: Reforma Agrária Popular

18. rever o atual modelo de transporte individual, e desenvolver um programa nacional de transporte coletivo, que priorize os sistemas ferroviário, metrô, hidrovias, que usam menos energia, são menos po-luentes e mais acessíveis a toda população;

19. assegurar a educação no campo, implementando um amplo programa de escolarização no meio rural, adequados à realidade de cada região, que busque elevar o nível de consciência social dos campo-neses, universalizar o acesso dos jovens a todos os níveis de escolarização e, em especial, ao ensino médio e superior. Desenvolver uma campanha massiva de alfabetização de todos adultos;

20. mudar os acordos internacionais da Organização Mundial do Comércio (OMC), União Euro-peia-Mercosul, convenções e conferências no âmbito das Nações Unidas, que defendem apenas os in-teresses do capital internacional, do livre comércio, em detrimento dos camponeses e dos interesses dos povos do Sul;

21. aprovar a lei que determina expropriação de toda fazenda com trabalho escravo. Impor pesadas multas às fazendas que não respeitam as leis trabalhistas e previdenciárias. Revogação da lei que possi-bilita contratação temporária de assalariados rurais, sem carteira assinada.

Por trabalho, alimento sadio, preservação ambiental, um novo modelo agrícola e soberania nacional!

Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal – ABEEFConselho Indigenista Missionário – CIMIComissão Pastoral da Terra – CPTFederação dos Estudantes de Agronomia do Brasil – FEABMovimento dos Atingidos por Barragens – MABMovimento dos Pequenos Agricultores – MPAMovimento das Mulheres Camponesas – MMCMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MSTPastoral da Juventude Rural – PJRMovimento dos Pescadores e Pescadoras do Brasil

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53Parte 2 – Eixo temático: Educação Brasileira – Realidade Atual

EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL: ENTRE O DIREITO SOCIAL E SUBJETIVO E O NEGÓCIO1

Gaudêncio Frigotto2

No ideário da revolução burguesa no século XVIII a escola básica, hoje entendida no Brasil como o ensino fundamental e médio, era concebida como a instituição que deveria garantir, como direito social e subjetivo, o acesso universal, público, gratuito e laico ao conhecimento e ao patrimônio cultural da sociedade. Este legado permitiria às sucessivas gerações uma dupla cidadania: política e econômica. No primeiro caso a garantia da participação ativa na vida política e social, e, no segundo, a inserção qualifi-cada no processo produtivo que permitisse a autonomia na construção de seu futuro.

O fato da revolução burguesa não abolir a sociedade cindida em classes sociais, mas apenas produzir uma nova estrutura de classes, garantiu apenas parcialmente este ideário. O que se afirmou é uma es-trutura dual de escolarização, reservando à classe trabalhadora uma formação instrumental e de cunho adestrador. Entretanto, naquelas nações onde as relações de força entre classes e frações de classe coli-maram a forma clássica de revolução burguesa a maioria dos cidadãos, mesmo de modo diferenciado, atingiu a escolaridade básica, mediação necessária à dupla cidadania.

O que espanta e causa estranheza para quem busque entender a sociedade brasileira é que chegamos à segunda década do século XXI situados entre as sete maiores economias, mas mantendo a reiterada negação ao direito à educação básica completa para a maioria, quando não na persistência da produção do analfabetismo. Esta negação incide justamente sobre a grande maioria de jovens e adultos que pelo seu trabalho de geração a geração produziu esta riqueza.

Com efeito, em plena segunda década do século XXI a sétima economia do mundo em produção de riqueza mantém mais de 13 milhões de analfabetos absolutos. Também na educação infantil (de zero a cinco anos) permanece uma imensa dívida, especialmente com os filhos das frações mais pobres da classe trabalhadora. Avançamos nas últimas décadas na quase universalização do acesso ao ensino fun-damental, mas sem oferecer as bases materiais de uma aprendizagem adequada. Bases estas que impli-cam prédios adequados, bibliotecas, laboratórios, espaços de lazer e cultura, tempo do aluno na escola e professores com excelente formação geral e específica, e dignamente remunerados, o que lhes permitiria

1 Este pequeno texto, cujo objetivo é de forma breve e sucinta expor a situação conjuntural da educação básica no Brasil, sintetiza al-gumas análises de pesquisas recentes do ator, em grande parte divulgadas em trabalhos mais extensos ou em texto em coautoria com Maria Ciavatta e Marise Ramos. Divulgado em agosto de 2014 pelo site do Ibase.

2 Doutor em Educação: História, Política e Sociedade (PUC/SP). Professor titular em Economia Política da Educação na Universidade Federal Fluminense (aposentado). Atualmente professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, (UERJ) no Programa de Pós--Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana.

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atuar numa só escola e com carga horária dividida entre aulas, organização de materiais, atendimento aos alunos que precisam de apoio e estudo etc.

O ensino superior, desde a ditadura civil militar, ampliou significativamente as matrículas, mas com uma diferenciação de qualidade e acelerada privatização. A partir da década de 1990 a expansão, in-cluindo cursos de educação a distância, teve um aumento exponencial e de baixa qualidade. Hoje, mais de 80% das matrículas são do ensino privado. Mesmo com a criação de 16 novas Universidades Fede-rais e de 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF), com centenas de campi, o setor privado avançou proporcionalmente mais. Assim mesmo há um grande déficit, pois o nosso número de jovens que tem acesso à universidade é bem inferior de países como Argentina, México e Colômbia.

A dívida maior, entretanto, é a negação à metade dos jovens brasileiros do acesso e permanência no ensino médio. A negação do direito constitucional desta etapa conclusiva da educação básica significa não apenas a perda de um direito, mas a mutilação da cidadania política e a emancipação social e eco-nômica. Os números são inequívocos. De acordo com os dados do censo do Inep/MEC de 2011, havia 8.357.675 alunos matriculados no ensino médio. Apenas 1,2% no âmbito público federal, 85,9%, no âmbito estadual, 1,1% no municipal e 11,8% no ensino privado. Mas o alarmante é o que revela a últi-ma Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2012 sobre a negação do direito ao ensino médio aos jovens brasileiros. Aproximadamente 18 milhões de jovens entre 15 e 24 anos estão fora da escola. Isto equivale à metade da juventude brasileira considerada esta faixa etária.

Mas tomando-se o custo aluno-ano como um indicador das bases materiais acima referidas para os alunos de ensino médio que estão matriculados nos âmbitos estadual e municipal (aproximadamente 86%) tem-se uma ideia da negação de condições objetivas para um ensino com o mínimo de qualidade. O relatório – Futuro em risco – do final da década de 1990, patrocinado pela Inter-American Dialogue e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento3que trata da crise da educação na América Latina e as consequências na estagnação econômica, mostra-nos que o grau médio de gasto aluno/ano para o ensino fundamental e médio, nos países desenvolvidos, é de 4.170 dólares. No câmbio atual do dólar (2,30) isto equivale a 9.590 reais aluno/ano. O custo aluno/ano, em média nos estados da federação no Brasil não passa de 3.500reais. Isto representa uma mensalidade em algumas das escolas particulares disputadas pelo pequeno “andar de cima” da sociedade nas principais capitais dos estados brasileiros.

O baixo custo é um indicador daquilo que os poderes constituídos (parlamento, executivo e judiciá-rio) estão dispostos a gastar com a juventude que frequenta a escola púbica, a maioria absoluta filhos da classe trabalhadora. Revela, de outra parte, que se excetuando aproximadamente 3% de alunos que frequentam a rede federal e algumas escolas estaduais, cujo custo aluno/ano atinge o patamar de 4 mil dólares aluno/ano, a qualidade do ensino médio dada aos jovens mais pobres é baixíssima. O baixo custo reflete a ausência do que definimos acima como bases materiais da qualidade. Um exemplo deste descaso é o Estado do Rio de Janeiro que desde a década de 1940 praticamente não constrói escolas apropriadas para este nível de ensino.

Outro indicador que mostra a fragilidade do ensino médio é que mais de um terço, aproximadamen-te 35% dos jovens que o frequentam estão fora da idade série adequada. A estratégia pedagógica adotada para a sua correção e de “aceleração da aprendizagem”, justamente para aqueles que necessitariam de um tempo mais lento e ampliado para recuperar o que socialmente se lhes negou, a começar pela ausência de creches e um ensino fundamental cuja universalidade do acesso não significa a garantia, no processo, de

3 Ver: Frigotto, Gaudêncio. Globalização e crise do emprego. Boletim Técnico do Senac – DN, 25, n. 2, Rio de Janeiro, 1999.

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qualidade. A medida que o Ministério da Educação (MEC) oferece e sugere a partir de 2014 aos Estados da federação para esta aceleração é que adotem o telecurso da Rede Globo de televisão.

E qual tem sido a estratégia compensatória para os jovens que se lhes negou o ensino médio ou se lhes deu um ensino médio precário para inseri-los no mundo da produção, agora já sob o que se denominou de Terceira Revolução Industrial onde a ciência é a mola mestra? No início da década de 1940, com o surto de desenvolvimento pela substituição de importações, criou-se o Serviço Nacional de Aprendiza-gem Industrial (Senai) e o Serviço de Aprendizagem Comercial (Senac) que a longo do tempo consti-tuiu-se no Sistema S, hoje com uma dezena de instituições. Sistema gerido privadamente com o fundo público compulsório e sem amplo controle da sociedade.

Um breve retrospecto nos revela que em cada ciclo virtuoso de crescimento o país é surpreendido com falta de mão de obra qualificada. A estratégia é a criação de programas com um determinado tempo de duração. No início da década de 1960 criou-se o Programa Intensivo de Formação de Mão de Obra Industrial (Pipmoi) que, em seguida, foi estendido a todas as áreas da economia sendo transformado em Programa Intensivo de Formação de Mão de Obra (Pipmo). Um programa inicialmente proposto para durar 20 meses e que se estendeu por 19 anos.4 No final da década de 1990 criou-se o Plano Nacional de Formação Profissional (Planfor) e no início da primeira década do século XXI o Plano Nacional de Qualificação (PNQ).

O surpreendente é que depois de quase uma década de governo do um ex-líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva e de sua sucessora Dilma Russeff, com nome diverso, 50 anos depois cria-se, em 2011, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Um programa que, tirando a sua amplitude e volume gigantesco de recursos investidos, reedita o Pipmo. O Pronatec é um programa que busca responder à necessidade de trabalhadores no contexto em que se retoma a palavra desenvol-vimento que, mesmo em sua acepção modernizadora, havia desaparecido do vocabulário político e eco-nômico. Em seu lugar os guardiões do capital financeiro, industrial, agroindustrial e de serviços, com a sistemática repetição na grande mídia a eles vinculada, cunharam os vocábulos de economias emergen-tes e mercados emergentes.

Estes mesmos guardiões, pela voz de seus intelectuais, produziram a expressão apagão educacional reclamando do governo a falta de mão de obra qualificada. Uma realidade, pois de fato o Brasil está importando quadros de profissionais qualificados para os empregos ligados ao trabalho complexo. Mas o cínico é que os responsáveis deste apagão, no passado e no presente, são os que dele reclamam. A prova inequívoca disto é que os seus representantes no parlamento protelaram por quatro anos a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) construído no debate e negociação nas instituições científicas, sindicatos e movimentos sociais, sobretudo os relacionados com a educação.

Um protelar idêntico ao que ocorreu na década de 1990 com o Projeto da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Um processo de mutilação dos aspectos fundamentais, em particular os relaciona-dos ao financiamento e organização do sistema educacional e à concepção de educação pública como direito social e subjetivo universal e gratuito. A reiteração do cinismo é de que quem efetiva estas muti-lações são os representantes, no parlamento e no poder judiciário, dos grandes grupos e da mídia, hoje protagonistas do “compromisso” Todos pela Educação.

Do que expusemos até aqui derivam duas conclusões que nos parecem amplamente sustentáveis. A primeira é de que sem a universalização do ensino médio e cuja qualidade equivalha à dos aproxima-damente 3% que o concluem na rede federal, os programas emergenciais do passado e o atual Pronatec

4 Ver a respeito, Barradas (1986). É interessante perceber a similitude que assume o Pronatec cinco décadas depois.

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constituem-se em castelos em cima de areia. No caso do Pronatec há a transferência de um vultoso fun-do público ao mercado privado em cursos em sua maioria absoluta de 160 horas.

O que vem se evidenciando é que as grandes corporações que têm no ensino um negócio, inicial-mente centrado no ensino superior, rapidamente estão também avançando sobre o mercado da educa-ção técnica e profissional, tradicionalmente disputado pelo Sistema S. Isto fica evidenciado quando se toma, por exemplo, dados referentes ao Estado do Rio de Janeiro. Das aproximadamente 40 mil vagas ofertadas pelo Pronatec (no Brasil são 291.338 vagas) em 2014 advêm de grandes empresas da educação, tais como a Universidade Estácio de Sá (29.840), a Unicarioca (1.040 vagas) e o Centro Universitário Anhanguera (2.360 vagas). Com a fusão da Anhanguera à Kroton em 2013, numa megaoperação finan-ceira de aproximadamente R$ 14,1 bilhões, o grupo passa a controlar 800 unidades de ensino superior e 810 escolas privadas associadas à educação básica e profissional.5

Cursos de 160 ou de 300 horas e oferecidos por instituições específicas e qualificadas e para jovens e adultos que tenham o ensino médio completo e similar ao que oferecem as Escolas Técnica Federais, hoje Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia ou equivalentes, representam um processo de acompanhamento das mudanças da base científica e técnica do processo de produção em todas as áreas. Sem esta base, na melhor das hipóteses, preparam para o trabalho simples ou representam o prote-lamento de uma ilusão e, quando vinculados a outras políticas compensatórias, uma estratégia de alívio da pobreza e controle social.

A segunda conclusão é de que os problemas que persistem na conjuntura presente na educação bási-ca, por ser esta constituída na e constituinte da sociedade, só podem ser adequadamente entendidos na relação orgânica com o tecido estrutural da mesma sociedade. O campo estrutural nos fornece a ma-terialidade de processos históricos de longo prazo e o campo conjuntural nos indica, no médio e curto prazo, como os grupos, classes ou frações de classe, em síntese, as forças sociais disputam seus interesses e estabelecem relações mediadas por instituições, movimentos e lutas concretas. O elemento crucial des-tas disputas é o de apreender se a direção das mudanças se dá na conservação e reprodução das relações sociais historicamente dominantes ou na sua alteração qualitativa.

Vários intelectuais do pensamento social crítico brasileiro nos permitem entender a especificidade es-trutural de nossa sociedade e a natureza das forças sociais que a produziram e a mantém como uma das mais desiguais do planeta e que em seu projeto societário não só não cabe a universalização da educação básica, como politicamente a impedem. No espaço deste breve texto valho-me das análises de Florestan Fernandes, o grande batalhador pela educação pública até sua morte e Francisco de Oliveira.6

Florestan Fernandes (1981 e 1975) destaca que a burguesia brasileira não efetivou um projeto socie-tário na forma clássica das revoluções burguesas e, como tal, nunca lutou por um projeto nacional. A opção foi por associar-se de forma subordinada aos grandes centros hegemônicos do capital em detri-mento do desenvolvimento autônomo e soberano da nação e de seu povo. Forjou, assim, um projeto de capitalismo dependente que combina altíssima concentração de propriedade e de riqueza e produção ampla de pobreza e miséria.

5 Dados retirados em 6 de julho de 2014 de <www.revistaforum.com.br>.6 Outro conjunto de pensadores, com nuances de análise, nos ajuda a entender nossa especificidade como sociedade. Celso Furtado é

o pesquisador que mais publicou sobre a formação econômico-social brasileira. Uma de suas conclusões originais é de que o subde-senvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento, mas uma forma específica de construção de nossa sociedade. Ao longo de sua obra, situa a sociedade brasileira dentro do seguinte dilema: a construção de uma sociedade ou de uma nação onde os seres humanos possam produzir dignamente a sua existência ou a permanência num projeto de sociedade que aprofunda sua dependência subordi-nada aos grandes interesses dos centros hegemônicos do capitalismo mundial. Além de Furtado destaco as obras de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Octavio Ianni, Milton Santos, Nelson Werneck Sodré e Carlos Nelson Coutinho.

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O conceito de capitalismo dependente expressa, por um lado, que o confronto e a disputa não é en-tre nações, mas o que ocorre é a aliança e associação subordinada da burguesia brasileira com as bur-guesias dos centros hegemônicos do sistema capital na consecução de seus interesses. De outra parte, contrapõem-se às visões liberais conservadoras dominantes que atribuem as dificuldades do Brasil de constituir-se um país desenvolvido com a tese de que existe uma pequena parte do mesmo moderna e avançada e que é contida pela grande massa do povo que vive no atraso, este identificado pela baixa es-colaridade, pelo trabalho informal e baixo consumo.

Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira rechaçam a tese da estrutura dual da sociedade brasileira e mostram a relação dialética entre o arcaico, atrasado, tradicional, subdesenvolvido, e o moderno e o desenvolvido na especificidade ou particularidade de nossa formação social capitalista. Fernandes subli-nha que a estratégia da classe dominante brasileira e de reiterar o processo de modernização do arcaico.

Francisco de Oliveira (1972), em sua obra Economia brasileira: crítica da razão dualista,mostra de for-ma lapidar a imbricação do atraso, do tradicional e do arcaico com o moderno e desenvolvido que po-tencializa a nossa forma específica de sociedade capitalista dependente e de nossa inserção subalterna na divisão internacional do trabalho. Mais incisivamente, os setores denominados de atrasado, improdutivo e informal, se constituem em condição essencial do núcleo integrado ao capitalismo orgânico mundial. Assim, a persistência da economia de sobrevivência nas cidades, uma ampliação ou inchaço do setor terciário ou da “altíssima informalidade” com alta exploração de mão de obra de baixo custo são funcio-nais à elevada acumulação capitalista, ao patrimonialismo e à concentração de propriedade e de renda.

Ao atualizar, 30 anos depois, esta obra com um capítulo, que o denominou metaforicamente de o or-nitorrinco, Oliveira (2003) nos revela que o que se tornou hegemônico foi a permanência de um projeto de sociedade que aprofunda sua dependência subordinada aos grandes interesses dos centros hegemôni-cos do capitalismo mundial. Esta opção hegemônica, em termos sociais, se assemelha ao ornitorrinco, um mostrengo. Um projeto societário que produz a miséria e se alimenta dela.

Para Oliveira as forças sociais que elegeram Lula da Silva, mesmo num contexto diverso da eleição de 1989, davam ao novo governo uma base para ter como tarefa de mudar projeto societário, agora num marco de não retorno.

Na periodização de logue duré brasileira, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da Repúbli-ca, ancorada na excepcional performance do Partido dos Trabalhadores e de uma ampla frente de esquerda, tem tudo para ser uma espécie de quarta refundação da história nacional, isto é, um marco de não retorno a partir do qual impõem-se novos desdobramentos. (...) É tarefa das classes dominadas civilizar a dominação, o que as elites brasileiras foram incapazes de fazer. O que se exige do novo governo é de uma radicalidade que está muito além de simplesmente fazer um governo desenvolvimentista (Oliveira, 2003a, p.3).

Uma ampla produção crítica, a começar pela do próprio Oliveira, permite-nos sustentar que por diferentes razões e determinações não ocorreu o caminho do não retorno. A radicalidade a que o autor se refere, no contexto das forças em jogo, seria uma opção clara de efetivação de medidas políticas pro-fundas capazes de viabilizar a repartição da riqueza e suas consequências em termos de reformas de base na confrontação do latifúndio, do sistema financeiro e do aparato político e jurídico que os sustentam.

O caminho foi outro, a formação de alianças com forças políticas e econômicas historicamente con-trárias às mudanças estruturais. Forças que se ampliaram no governo Dilma Rousseff. Resultam daí duas perdas fundamentais. No âmbito político a fragmentação do campo da esquerda e perda significa-tiva da base social que poderia dar sustentação às mudanças estruturais. Configurou-se o que Oliveira de nominou de hegemonia às avessas ou a despolitização da política. Para Coutinho (2010) abandonou-se as questões políticas estruturais, em termos de Gramsci, a grande política, e cristalizou-se a hegemonia

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da pequena política. Para os movimentos sociais mais organizados e com maior clareza de projeto so-cietário, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a grande mídia e o poder judiciário avançaram na sua criminalização.

O abandono e a perda do projeto no plano político social significaram, no âmbito da educação, a perda também da disputa da concepção pedagógica no governo e, em larga medida pela despolitização, na sociedade. Abriu-se no Governo e no Estado o caminho para que a concepção mercantil de educação, sob a orientação dos organismos internacionais, intelectuais coletivos que zelam pelo lucro do capital, se tornasse dominante. Bancos, Associação do Agronegócio (Abag), redes de televisão e institutos privados disputam não mais apenas recursos para o mercado privado da educação, mas a direção pedagógica do conteúdo e do método das escolas públicas.

O mais paradoxal é que o governo de forma crescente estimula e legitima a orientação da educação básica, sua gestão, conteúdos e avaliação dentro dos critérios mercantis. À adoção do telecursos da Rede Globo, acima mencionado para nivelar os alunos defasados na idade série somam-se, em 2014 duas ou-tras medidas nesta direção. O MEC estabeleceu parceria com o Instituto Unibanco (IU) para orientar tecnicamente o ensino médio inovador. Qual a educação que um banco privado pode assessorar se não a que interessa ao seu negócio? Outro protocolo de parceria foi assinado entre o Ministério da Educação (MEC), por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Institu-to Ayrton Senna (IAS) para estimular pesquisas sobre o desenvolvimento de habilidades socioemocionais na Educação. Um retrocesso à psicologização das questões sociais e da educação oriundas da teoria da modernização da década de 1940.

O cenário das eleições presidenciais nos indica que as alternativas ao governo atual, salvo os partidos claramente de esquerda, tem projetos no campo da sociedade e da educação totalmente abertos à mer-cantililização. Coloca-se, neste cenário, para tentar renascer das cinzas no plano social e educacional, inicialmente uma dupla autocrítica e, em seguida, de uma agenda política necessária e possível. Ao PT, partido que encabeça o Governo e a proposição da reeleição da atual presidenta, apreender com a auto-crítica, quer revela grandeza política e humana do que Florestan denominou, referindo-se à sua geração, de geração perdida. Fernandes, após perguntar o que queriam, onde e porque erraram e como aprender do erro, responde com a clareza que o presente cobra: “não foi um erro confiar na democracia e lutar pela revolução nacional. O erro foi outro – o de supor que se poderiam atingir esses fins percorrendo a estrada real dos privilégios na companhia dos privilegiados. Não há reforma que concilie uma minoria prepotente a uma maioria desvalida” (Fernandes, 1980, p. 145). E prossegue indicando que a tarefa fun-damental é de estar com o povo para que ele adquira a consciência e capacidade para fazer a revolução que o Brasil necessita.

Ao campo das esquerdas, pois diversos são seus matizes, e dos partidos, sindicatos e movimentos so-ciais que as constituem, o desafio é de afirmar uma unidade possível. No plano estratégico aprender da classe dominante não transigir no que não é negociável. Trata-se de somar forças para a ruptura e supe-ração do projeto societário que historicamente produz a desigualdade e se alimenta dela.

No plano da agenda propositiva, um primeiro passo é a retomada da defesa unitária das reformas estruturais, entre elas: a reforma agrária popular defendida pelo MST e outros movimentos sociais; a reforma tributária e novas alíquotas de imposto de renda, numa escala progressiva; controle do capital especulativo, taxação das grandes fortunas, reforma política e do judiciário, um dos poderes mais opacos e inacessíveis aos movimentos sociais e populares; controle social a monopólio privado da grande mídia e, no campo da educação, a construção de uma nova LDB, tendo como base a que foi produzida pela sociedade na década de 1990 e abortada pelos representantes da classe dominante no parlamento. Sem

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uma unidade mínima nesta direção o assalto ao fundo público e a mercantilização de todas as esferas da vida se darão por completo. Se esta unidade mais que necessária se torna possível o futuro próximo o dirá.

Referências bibliográficasBARRADAS, Anésia Maria da Silva. A fábrica PIPMO: uma discussão sobre política de formação de mão de obra no período

de 18963-1982. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Iesae/Fundação Getúlio Vargas, 1986. COUTINHO, Carlos Nelson. A hegemonia da pequena política, in: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy e RIZEK,

Sibele. Hegemonia às avessas. São Paulo, Boitempo, 2010, p. 30-49.FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.________. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.________. A revolução burguesa no Brasil. Um ensaio de interpretação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.OLIVEIRA. Francisco de. Economia brasileira: crítica da razão dualista. Estudos Cebrap n. 2, São Paulo, 1972.________. Crítica à Razão Dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.________. Revista reportagem, n. 41, fev. 2003a. Entrevista concedida a Fernando Haddad e Leda Paulani.________; BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele. Hegemonia às avessas. São Paulo, Boitempo, 2010, p. 21-29.PAULANI, Leda. Brasil delivery. São Paulo: Editora Boitempo, 2008.

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OS EMPRESÁRIOS E A POLÍTICA EDUCACIONAL

Como o proclamado direito à educação de qualidade é negado na prática pelos reformadores empresariais

Luiz Carlos de Freitas1

Em vários países os empresários aparecem, no cenário da educação local, como promotores de re-formas educacionais. Diane Ravitch os chama, nos Estados Unidos, de reformadores empresariais da educação (corporate reformers).2

A despeito de que os empresários sempre estiveram tentando interferir nos processos educacionais des-de os tempos da teoria do capital humano, o que pode estar havendo de novo que esteja motivando um redobrado interesse do empresariado pela educação? É possível que modificações no processo de desenvol-vimento econômico-social dos países, ou as próprias crises do capital, estejam mobilizando os empresários?

Acreditamos que sim. O atual interesse dos empresários tem aspectos específicos que merecem ser examinados. Não é recomendável que acreditemos que “a história está se repetindo”. Tal linearidade de análise nos desarmaria para o enfrentamento local das contradições que estão postas por esta nova esca-lada do capital sobre a educação.

É fato notório que as corporações estão vagando pelo mundo procurando por mão de obra barata. Países populosos como China, Rússia, Índia e Brasil estão na mira dos processos de intensificação da exploração da força de trabalho, pois ainda possuem tais bolsões.

No caso do Brasil, as corporações fizeram uso da exploração de bolsões de mão de obra barata como a população do campo e as força de trabalho feminina, entre outros. Nesta fase, os empresários não ne-cessitaram de uma boa estrutura educacional. Hoje, no entanto, tais bolsões já não dão conta de abas-tecer as necessidades de mão de obra. Temos apenas 15%, aproximadamente, da população no campo e 56,1% da mão de obra feminina já está incorporada ao mercado de trabalho contra 71,5% dos homens3.

Quando tais bolsões diminuem, continua-se a necessitar de mais mão de obra. Entram em cena os estrangeiros desocupados em seus países. Chegam, só em São Paulo, 30 por dia4. A contínua necessidade de mão de obra pode fazer com que a renda média paga aos trabalhadores de setores inteiros da econo-

1 Professor Titular da Faculdade de Educação da Unicamp. Texto escrito em 2014.2 Ravitch, D. The death and life of the great American school system. 2ª ed. rev. amp. New York: Brasic Books, 2011.3 Cf. em: <http://www.oeconomista.com.br/cresce-numero-de-mulheres-no-mercado-de-trabalho-diz-dieese/>.4 Cf. em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/08/1324745-aumenta-o-registro-de-trabalhadores-imigrantes-em-sp.

shtml>.

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mia comece a crescer. Salários pagos são um componente fundamental na definição do lucro. Usual-mente, os processos de fabricação também tendem a se sofisticar para intensificar a força de trabalho, exigindo tais processos mais educação. No caso da área de serviços a dependência da mão de obra “edu-cada” é ainda maior. Há ainda mudanças globais na divisão internacional do trabalho fruto da própria mobilidade do capital pelo mundo.

Quando um país aumenta o salário médio de sua força de trabalho sem ampliar sua produtividade5, os empresários ficam “desestimulados” pela queda de rentabilidade em seus investimentos. Se há uma ampliação da renda média isso começa a derrubar o lucro. Daí o termo “armadilha”.

Ocorre que o aumento da produtividade é dependente de fatores importantes e que sofrem o efeito de passivos históricos: é o caso da educação. Portanto, não são de fácil e rápida solução. Mas para os em-presários, os quais só agora se interessaram pela qualidade da educação, isso não conta. É preciso resol-ver de imediato o problema educacional para puxar o aumento de produtividade de imediato. Sem isso, dizem, perde-se competitividade internacional – ou seja, os lucros não são os esperados. O argumento é oportunista, pois eles bem sabem que o aumento da produtividade não depende apenas da educação.

O conflito que aparece entre educadores profissionais e os empresários diz respeito ao que se entende por uma boa educação: para os empresários é saber ler, escrever, contar e algumas competências mais que estão sendo esperadas na porta da fábrica, medidas em um teste padronizado. Se as notas aumen-tam, então houve melhoria. Se há mais formandos, houve melhoria. Para os educadores, isso é apenas uma pequena parte da tarefa. Nota alta não é sinônimo de boa educação6.

O conflito se amplia porque para os empresários – à imagem e semelhança de sua empresa – tudo é uma questão de gerenciamento e competição. Portanto, se os educadores não dão conta de “seu pedaço” (leia-se atender às necessidades das empresas) é porque não sabem gerenciar os recursos que são dados. E se as empresas já desenvolveram métodos de administração bem sucedidos para elas, porque não trans-plantá-los para as escolas e redes de ensino? Se eles têm a solução, os governos, é claro, agradecem. Eles também precisam mostrar à população que as escolas estão melhorando.

Esta urgência, que é assumida também pelos governos, ocorre porque um país que pague renda mé-dia menor a seus trabalhadores pode produzir bens e serviços mais baratos e permitir maiores lucros aos empresários: melhora a competitividade. Sem educação de “qualidade” não se amplia o número de formandos e com poucos formandos o salário médio sobe ao invés de descer. Lei da oferta e procura. A armadilha da renda média consiste no aumento do salário médio dos trabalhadores sem que se consiga alterar fatores de infraestrutura como educação, responsáveis pelo aumento da produtividade e simulta-neamente, dispor de uma maior quantidade de formandos que reduza pressões salariais.7

Esta questão é tratada abaixo:Se não se colhe o bônus neste momento, não se colhe nunca mais. Se não se enriquece o país neste momento, é muito difícil enriquecê-lo depois. Para colher o bônus é preciso ter emprego e educação de qualidade. Os europeus, EUA, Japão, Cingapura, Coreia, China, Taiwan, todos esses países aproveitaram. O Brasil preci-saria crescer ao menos 4%. Se o PIB fica abaixo de 2%, não é possível. Além do que deixamos a desejar em educação. Estamos presos à armadilha da renda média.8

5 Cf. em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,produtividade-do-brasil-tem-queda-dramatica-diz-estu-do,144537,0.htm>.

6 Ravitch, D. (2010). Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nota-mais-alta-nao-e-educacao-me-lhor,589143,0.htm>.

7 Cf. em: <http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/ensino-medio-brasileiro-era-ruim-e-esta-pior>.8 Cf. em: <http://oglobo.globo.com/economia/se-nao-for-neste-momento-nao-se-colhe-mais-diz-demografo-9465694#ixzz2bfV-

gxFjS>.

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Neste quadro, os empresários estão se organizando para atacar estas questões de infraestrutura que afetam o aumento da produtividade. Vários movimentos estão se organizando há algum tempo: Lide9, Movimento Todos pela Educação10 e seus adjacentes, disfarçados de “especialistas em educação” orga-nizados em ONGs e empresas de assessoramento educacional. Há um grupo mais ideológico e há outro mais operacional, o pessoal do faturamento.11 Não acreditam na escola pública e querem sua privati-zação – seja por concessão12, seja por vouchers13. Na verdade, ganham bem para desqualificara escola pública – mesmo sem evidência de que suas receitas são melhores14.

Há, portanto, uma disputa pelo conceito de educação e pelos métodos de formação da juventude. Os empresários e seus apoiadores defendem uma versão instrumentalizada de educação a qual disfarçam muito bem com bandeiras como “primeiro o básico”, “os direitos da criança têm que vir primeiro” etc. Coisas com as quais nós até podemos concordar, mas sob outra concepção. Os educadores querem uma educação de qualidade social, voltada para os valores, para a formação humana ampla e entendem que a educação não é matéria para ser privatizada, pois é um bem público. Como tal, não pode ser entregue ao controle de um setor da sociedade, os empresários. Isso não é democrático – mesmo diante de difi-culdades pelas quais passa a escola pública.

Neste quadro, as pressões sobre a área da educação partem agora de entidades organizadas pelos em-presários com esta finalidade, como indicamos antes, e também de ações organizadas por estas junto aos governos e junto ao Congresso Nacional.

O caminho seguido é o mesmo que os empresários americanos seguiram nos últimos 30 anos: 1)en-fatizar a crise da educação e a necessidade de reformar a política educacional; 2) uma ênfase no direito à aprendizagem com dupla limitação: a) fala-se de direito à aprendizagem e não de direito à formação humana, à educação; b) e restrita ao ambiente da escola, portanto isolada de importantes ligações com a vida.

Neste particular, é importante assinalar que a própria forma escolar atual já foi concebida com o in-tuito de isolar as crianças da vida, vale dizer das contradições sociais. A proximidade com estas, levaria a juventude a pensar sobre a nossa forma de organização social e seus limites, ensejando desejos de mudan-ça ou revolta. Isolados no interior das salas de aulas, restritos à aprendizagem do básico, lhes é prometido um dia, chegar aos níveis mais avançados e complexos de educação, que de fato nunca chegarão a ver. Historicamente, a escola sempre sonegou seu conteúdo para a classe trabalhadora.

Com o discurso do direito restrito à aprendizagem do básico, perpetua-se por um lado a exclusão dos processos de formação humana e ao mesmo tempo libera-se a conta-gotas o conhecimento necessário para que a juventude dê conta de atender às demandas das novas formas de organização da produção. Acesso a um pouco mais de letramento, leitura e matemática.

O estreitamento curricular impede que outras áreas de desenvolvimento da criança sejam exercitadas (artística, criativa, afetiva, corporal). Com a escola focada em português e matemática, as demais disci-plinas são abordadas em “projetos interdisciplinares” que conduzem à banalização do conteúdo destas.

9 Cf. em:<http://www.lidebr.com.br/>.10 Cf. em:<http://www.todospelaeducacao.org.br/>.11 Cf. em:<http://avaliacaoeducacional.com/2013/08/10/quem-ganha-com-a-responsabilizacao/>.12 Sistema em que empresas privadas de gestão assumem a escola e a administram recebendo financiamento público para tal.13 Sistema em que os pais recebem um cheque que cobre as despesas escolares de seus filhos e escolhem a escola que quiserem para

educar seus filhos.14 Cf. em:<http://avaliacaoeducacional.com/2013/08/08/charters-significativamente-insignificantes>; e Credo. (2010) Charter School

Performance in New York City. Acesso em 28 jan. 2011. Disponível em: <http://credo.stanford.edu/reports/NYC%202009%20_CREDO.pdf>; e Marsh, J., Springer, M. G., McCaffrey, D. F., & et al. (2011). Fonte: A big apple for educators: New York City s Experiment with Schoolwide Performance Bonuses: <http://www.rand.org/pubs/monographs/MG1114.html>.

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O apelo ao básico é visto como politicamente correto, pois tem um sabor de distribuição do conheci-mento básico a todos, dando a impressão de uma política de garantia de direitos para todos. Porém, ao se examinar os sistemas voltados para a aprendizagem do básico proposto pelos reformadores empresariais, o que se verifica é que tal política não garante a aprendizagem de todos e de cada um. A escola tem a sua roupagem atualizada, mas as suas funções sociais são mantidas intactas: exclusão e subordinação.

Novas formas de exclusão são adicionadas como a especialização de escolas que assumem a função de receber uma população que sabidamente não aprenderá, liberando as outras para a tarefa de tentar ensinar o básico; a criação de trilhas diferenciadas de progressão (às vezes em salas exclusivamente des-tinadas à recuperação do aluno, segregadas) que são destinadas a garantir a passagem do tempo até a exclusão do aluno ao final de algum ciclo ou período de tempo; o deslocamento do aluno para formas de atendimento alternativas como a Educação de Jovens e Adultos, onde são certificados precariamente à margem do sistema.

As formas de organização do trabalho no interior da escola não são alteradas, pelo contrário, a ordem e a obediência são reforçadas com o apelo às famílias para que ajudem a controlar seus filhos, às vezes com contratos escritos que responsabilizam a famílias. O conservadorismo – inclusive moral – amplia--se. A disciplina fica cada vez mais rígida e cada vez mais voltada para instalar processos de subordina-ção15.

As estatísticas mostram que não há avanço no fechamento das brechas que distanciam a aprendiza-gem de ricos e pobres, brancos e negros, e a população que necessita de atendimento especial é subme-tida à segregação em escolas ou em ambientes dentro das escolas16. A pobreza vai sendo confinada nas escolas públicas, a classe média vai sendo retirada para escolas administradas por concessão ou por meio de vouchers e os mais ricos continuam em suas escolas próprias, privadas de alto nível17. Dessa forma, abre-se uma linha de acesso ao ensino para a classe média emergente e os mais ricos ficam protegidos do convívio com os mais pobres.

As práticas de avaliação que já dominavam a escola devido a seu isolamento em relação à vida to-mam o controle de todo o processo. Mais tempo para a avaliação e a testes frequentes roubam tempo da aprendizagem do aluno.

A política educacional dos reformadores é produzida para articular a necessidade de se qualificar para as novas formas de organização do trabalho produtivo, ao mesmo tempo que preserva e amplifica as funções sociais clássicas da escola: exclusão e subordinação.

Está em jogo o controle político e ideológico da escola, em um momento em que algum grau a mais de acesso ao conhecimento é exigido pelas novas formas de organização do trabalho produtivo, novas exigências de consumo do próprio sistema capitalista e novas pressões políticas por ascensão social via educação.

A matriz de controle mundial das políticas educacionais é hoje a OCDE18, um organismo interna-cional destinado à cooperação e desenvolvimento econômico das nações desenvolvidas, que associa-se

15 Cf. em: Freitas, L. C. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação e Sociedade, v. 33, n. 119, 2012, p. 379-404.

16 Cf. em: Guisbond, L.; Neill, M. e Schaeffer, B. A década de progresso educativo perdida sob a NCLB: que lições tirar desse fracasso político? Educação e Sociedade, v. 33, n. 119, p. 405-430.

17 Cf. em:<http://dianeravitch.net/2013/08/12/chile-the-most-pro-market-school-system-in-the-world-part-1/>.18 A OCDE é uma organização com sede na Europa nascida depois da Segunda Guerra Mundial, tendo como pano de fundo o Plano

Marshall de reconstrução da Europa. Passou por várias reformulações e tem hoje a função de monitorar as condições de operação dos países considerados ricos (cerca de 35) e indicar ações de cooperação econômica entre eles. No caso da realização de avaliações internacionais, aceita que participem alguns países mesmo não sendo considerados do clube dos ricos.

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às estruturas anteriormente existentes de bancos de financiamento (Banco Mundial, Bird). Ela é res-ponsável pela avaliação em nível mundial da qualidade da educação dos países ricos nas disciplinas de leitura, matemática e ciências pelo exame do Pisa. Somam-se ainda a estes, uma plêiade de fundações e bilionários que resolveram “doar recursos para a educação”. Uma parte deles está voltada para a criação de estruturas de controle ideológico e influência em governos e legislativos; outra, está mais interessada em abrir mercado que até agora esteve sob controle do Estado – como a educação – e faturar. Têm forte apoio da mídia. No caso brasileiro, a organização que mais cumpre esta função é o Movimento Todos pela Educação.

Neste quadro, as avaliações de larga escala nacionais e internacionais emergem como um instrumen-to político de promoção da internacionalização da política educacional. O padrão de qualidade é o pa-drão Pisa – um programa internacional de avaliação de estudantes promovido pela OCDE.19

Sua ação de controle passa por várias formulações que podem ser utilizadas em conjunto ou separa-damente: conscientes da importância do professor, o foco de controle dos reformadores empresariais é o professor. Centram sua ação na pessoa do professor propondo que deixem de ter estabilidade no empre-go, tenham salário variável cujo componente está ligado aos resultados dos testes dos alunos; procuram estabelecer processos de avaliação personalizados dos professores e, com isso, controlar as ênfases de for-mação que desejam,além de controlar igualmente as agências formadoras; querem controlar a formação do professor difundindo que ela é muito teórica e precisa ser mais prática colocando a formação numa perspectiva pragmatista; apostilam as redes de forma a controlar o conteúdo que é passado para os estu-dantes, bem como a sua forma; enfatizam a formação do gestor de forma a torná-lo um controlador dos profissionais da educação no interior da escola responsabilizando-o pelos resultados esperados nos testes; favorecem processos de privatização de forma a abrir mercado e a colocar a educação diretamente sob controle do empresariado que atua no mercado educacional (gestão por concessão e vouchers); provocam o sentimento de que a educação está em crise e que o direito à aprendizagem está em jogo como forma de sensibilizar a população, através da mídia, para suas soluções miraculosas; centram a concepção da qualidade da educação nas notas altas, estabelecendo uma identidade entre notas altas (às vezes em uma ou duas disciplinas que mais lhe interessam) e qualidade da educação; reduzem a formação da juventude à ideia de direito à aprendizagem, estreitando a concepção de educação e reduzindo-a à aprendizagem no interior da escola; fortalecem os processos de aprendizagem que isolam a criança da vida e, portanto, das contradições sociais existentes na vida, difundindo a meritocracia como base explicativa do funciona-mento social; exercitam processos meritocráticos com alunos, professores e gestores que ajudam a fixar a meritocracia como forma de progredir na vida via empreendedorismo; desmoralizam o magistério como forma de fragilizar a sua articulação política e apresentam os sindicatos como responsáveis pelo atraso da educação, defensores dos direitos dos professores e não defensores do direito de aprender do aluno; desenvolvem processos de avaliação em larga escala censitários com a finalidade de alavancar processos de responsabilização da escola ignorando os fatores sociais que dificultam a ação da escola; propõe e influenciam a elaboração de leis que responsabilizem as escolas e os gestores; financiam fortemente as suas ideias via fundações e iniciativa privada; ampliam o tempo escolar destinado a ensino a distância online nas escolas como forma de melhor estabelecer controle sobre o ensino.

Reunimos esta longa lista de ações mais recentes do capital no campo da educação porque alguns incrédulos das novas configurações de controle sobre a escola argumentam que isso não seria uma no-

19 O Plano Nacional de Educação no Brasil tem incorporado nele as metas do Pisa.

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vidade já que os empresários sempre tiveram interesse no controle político e ideológico da escola, desde os tempos da teoria do capital humano.

É verdade. Entretanto mudaram a forma e o empenho. Agora, a questão educacional tem outra posi-ção no quadro das condições que são responsáveis pela valorização do capital, como resumidamente no início. Depende também dela o aumento da produtividade.

No entanto, cumpram-se ou não as expectativas de desenvolvimento econômico formuladas pelo ca-pital, a educação será sempre responsabilizada – independentemente dos resultados. Se forem positivos, a educação será cobrada por aumentar a qualidade para elevar a produtividade, se forem negativos, será responsabilizada por não ter produzido a elevação da qualidade, travado o avanço da produtividade e ter derrubado a competitividade internacional do país.

Vale lembrar que há outras funções esperadas da escola e da educação: aumento de formandos nas profissões como forma de reduzir a pressão por salário que venha a elevar a renda média acima do que já avançou.

Trata-se do fenômeno já observado tanto nos Estados Unidos como no Brasil e que diz respeito à queda do salário médio pago à medida que a “eficiência” do setor educacional gera mais profissionais e os coloca no mercado. Tal situação faz com que havendo uma oferta maior de profissionais, se reduza o salário pago: lei da oferta e procura.

Enfim, seja para derrubar o salário médio por superpopulação de formandos, seja para aumentar a produtividade, seja ainda para promover o controle ideológico e político de uma instituição pela qual passa toda a juventude, seja para qualificar de acordo com as suas necessidades de produção, seja por todos estes motivos, os reformadores empresariais resolveram – em escala mundial – controlar mais de perto o que ocorre na educação garantindo um relativo aumento de qualificação da força de trabalho ao mesmo tempo que não perdem e ampliam o controle político e ideológico da escola e garantem as suas funções clássicas: exclusão e subordinação.

Focando no direito à aprendizagem tenta-se apagar a importância de outros direitos que são funda-mentais para o exercício do direito à educação: o direito à alimentação, o direito à habitação, ao trabalho, à moradia, à renda etc. Não há como defender um direito isolado dos outros, pois um depende do outro como mostram os estudos que correlacionam desempenho na escola e nível socioeconômico. Os testes não medem só aprendizagem, medem simultaneamente nível socioeconômico.

Com isso, causas sociais são camufladas em causas escolares via avaliações de larga escala baseadas em testes. A sociedade menos avisada, pelo menos a princípio, acredita. Há quem proponha que placas com o Ideb devem ser levantadas nas portas das escolas para denunciar a falta de qualidade e a identifi-cação dos culpados: os professores.

O proclamado direito à educação vira direito à aprendizagem e nos limites da escola, para em segui-da virar direito ao básico, limitado à aprendizagem de leitura e matemática. Transmutado em direito à aprendizagem, ficam igualmente de fora todas as outras dimensões da formação que não seja a cogniti-va, privilegiadamente leitura e matemática, e as demais disciplinas e áreas de formação assumem formas aligeiradas (projetos, áreas...) onde o conteúdo é secundarizado para que o aluno possa focar na apren-dizagem de leitura e matemática, ou seja, as disciplinas que caem nas provas.

As práticas escolares não valorizam as artes, a afetividade, o desenvolvimento do corpo, da criati-vidade entre outros aspectos que favorecem exatamente os processos de criação que são básicos para a implementação de inovações. Como advertem os estudos, são estas as características que devem ser for-talecidas se queremos ser competitivos internacionalmente, já que a capacidade de inovar, de criar é que define a posição dos países no cenário internacional.

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Como afirma Levin (2012)20:Em todo o mundo ouvimos falar bastante sobre a criação de escolas de classe mundial. Normalmente, o termo refere-se a escolas cujos alunos recebem pontuações muito elevadas em comparações internacionais de desempenho de estudantes como o Pisa ou o TIMSS. A prática de restringir o significado de escolas modelos ao critério estreito de pontuação de desempenho é normalmente premissa da visão de que os resultados dos testes estão intimamente ligados à formação de uma força de trabalho capaz e a uma economia competitiva. Na verdade, as relações entre os resultados medidos em testes e os ganhos de produtividade são modestos e explicam uma parcela relativamente pequena da maior ligação entre nível educacional e os resultados eco-nômicos. O que é omitido em tais avaliações estreitas são os efeitos que a educação tem sobre o desenvolvi-mento das capacidades e habilidades interpessoais e intrapessoais e que afetam a qualidade e a produtividade da força de trabalho (...) a busca por escolas de classe mundial deve abranger uma série de características do desenvolvimento humano que se estendem muito além de resultados dos testes.

As consequências desta pressão sobre o sistema escolar baseada em responsabilização (accountability) estão bastante documentadas na literatura internacional.21

1. Estreitamento curricular. Avaliações geram tradições. Dirigem o olhar de professores, administra-dores e estudantes. Se o que é valorizado em um exame são leitura e matemática, a isso eles dedicarão sua atenção privilegiada, deixando os outros aspectos formativos de fora.22

2. Competição entre profissionais. A colocação dos profissionais de educação em processos de compe-tição entre si e entre escolas levará à diminuição da possibilidade de colaboração entre estes. A educação, entretanto, tem que ser uma atividade colaborativa. A ação de um professor, não se esgota apenas no tempo em que ele passa com o aluno. Afeta outros professores, pois o aluno é o mesmo. Se um deles destrói a autoestima do aluno, todos serão atingidos por este fato.

3. Pressão sobre o desempenho dos alunos e preparação para os testes. Premidos pela necessidade de asse-gurar um salário variável na forma de bônus, os professores pressionarão seus alunos aumentando a ten-são entre estes. Premidos pela necessidade de apresentar sua escola como uma boa escola à comunidade, reproduzirão práticas que tenderão a afastar de suas salas e de suas escolas alunos com dificuldades para a aprendizagem. Além disso, proliferam os simulados e a utilização do tempo escolar para preparar o aluno para os testes.23

4. Fraudes. Por esta mesma linha de pressão, chega-se à fraude. As variáveis que afetam a aprendiza-gem do aluno não estão todas sob controle do professor e nem as mais relevantes podem estar sob seu controle. Esta realidade produz um sentimento de impotência que associada à necessidade de sobreviver tem levado à fraude. Multiplicam-se os casos de ajuda do próprio professor durante a realização de exa-mes, quando não a simples alteração da nota obtida pelo aluno em exames.24

20 Cf. em: <http://roundtheinkwell.files.wordpress.com/2012/09/more-than-just-test-scores-sept2012-2.pdf>.21 Este resumo também apareceu na Revista Educação e Sociedade n. 119 e é atualizado com novas pesquisas que vão sendo disponibi-

lizadas.22 Cf. em: Au, W. (2007) High-stakes testing and curricular control: a qualitative metasynthesis. Educational Research, p. 258-267 e

Au, W. (2009) Unequal by design: high-stakes testing and the standardization of inequality. New York: Routledge.23 Cf. em: Nichols, S. L., & Berliner, D. C. (2007) Collateral Damage: how high-stakes testing corrupts America’s schools. Cambridge:

Harvard Educational Press e Braun, H., Chudowsky, N., & Koenig, J. (2010) Getting Value Out of Value-Added: Report of a Work-shop. Acesso em: 7 jan. 2011. Disponível em:<http://www.nap.edu/catalog/12820.html>.

24 Tucker, C. (agosto de 2010) Beverly Hall needs to retire. Acesso em: 29 jan. 2011. Disponível em: <http://blogs.ajc.com/cynthia--tucker/2010/08/26/beverly-hall-needs-to-retire/>; Georgia, G. d. (julho de 2011) Atlanta PublicSchools: investigativereport, v. 1-3. Fonte: <http://www.calameo.com/books/0001070442388e8a1b081>; Leung, R. (22 ago. 2004). The”Texas Miracle”. Acesso em: 22 fev. 2011. Disponível em: <http://www.cbsnews.com/stories/2004/01/06/60II/main591676.shtml>; e Ravitch, D. (2010b) New York education officials are lying to the state’s schoolkids. Acesso em: 20 jul. 2010. Disponível em: <http://www.nydailynews.com/opinions/2010/03/31/2010-03-31_new_york_state_education_officials_are_lying_to_schoolkids.html#ixzz0npXGNIgU>.

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5. Aumento da segregação socioeconômica no território. Estudo do Cenpec mostra que com a pressão por desempenho, as escolas podem especializar-se em determinadas clientelas de estudantes, sendo dei-xadas no conjunto do território para a destinação de alunos de baixo desempenho25. As escolas vão tra-vando a entrada de alunos de risco e dirigindo-as a outras escolas.

6. Aumento da segregação socioeconômica dentro da escola. Não é diferente dentro das escolas. Estas se-rão levadas a fazer turmas de estudantes que se destaquem no desempenho para que “segurem” a média da escola e o acesso a benefícios. Os alunos com dificuldades vão ser segregados em turmas separadas. A experiência americana não revela que houve uma maior equidade, por exemplo, entre os desempenhos médios dos negros e brancos.26

7. Precarização da formação do professor. O apostilamento das redes contribui para que o professor fique dependente de materiais didáticos estruturados retirando dele a qualificação necessária para fazer a adequação metodológica segundo requer cada aluno27. Além disso, uma visão pragmatista cada vez mais se instala nas agências formadoras do professor, diminuindo sua formação aos aspectos práticos das metodologias. ONGs como a Teach For América, nos Estados Unidos, formam professores em cinco semanas. O braço internacional desta organização faz ensaios no Rio de Janeiro.28

8. Destruição moral do professor e do aluno. As pressões sobre o professor terminam obrigando-o a segregar os alunos que estão nas pontas dos desempenhos (mais altos e mais baixos) e concentrar-se no centro, em especial naqueles que estão próximos da média, para não caírem abaixo dela e para subirem acima dela. Esta concentração em torno da média penaliza seriamente os mais necessitados29. As pres-sões também vão segregando os professores.30

Estas consequências resultam em um ataque frontal ao protagonismo dos professores na sala de aula, nas escolas e na própria condução da escola pública. O magistério é submetido a um controle refinado.

Estas são as consequências mais recorrentes das políticas educacionais dos reformadores empresariais. Evitando o debate qualitativo e a análise mais profunda elas tentam se legitimar pela apresentação de uma grande quantidade de “números”.

Para Quintero (2012), há um desejo insaciável dos políticos por dados. Ela escreve: Em um nível básico, [os dados] parecem sinalizar uma orientação geral para a tomada de decisões com base na melhor informação que temos, o que é uma coisa muito boa. Mas há dois problemas aqui. Primeiro, ten-dem a ter uma visão extremamente estreita da informação que é relevante, isto é, [focam] dados que podem ser quantificados facilmente; e segundo lugar, parece que estamos operando sob a ilusão de que os dados, em si mesmos, podem contar histórias e revelar a verdade (p. 1).

Ela conclui que os exames e avaliações institucionalizaram:

25 Ernica, M., & Batista, A. A. (2011) Educação em territórios de alta vulnerabilidade social na metrópole: um caso na periferia de São Paulo. São Paulo: Cenpec, Informe de Pesquisa n. 3.

26 Rothstein, R. (2008). A Nation at Risk. Twenty-Five Years Later. Acesso em: 25 jan. 2011. Disponível em: <http://www.cato-unbound.org/2008/04/07/richard-rothstein/a-nation-at-risk-twenty-five-years-later/>; e Frankenberg, E., Siegel-Hawley, G. S., & Wang, J. (2011) Choice without equity: charter school segregation. Education Policy Analysis Archives, 19, p. 1-96.

27 Adrião, T. et al. (2009). Uma modalidade peculiar de privatização da educação pública: a aquisição de sistemas de ensino por muni-cípios paulistas. Educação e Sociedade, 30, n. 108, p. 799-818.

28 Ensina! (20 de abril de 2012). No mundo. Disponível em: <http://www.ensina.org.br/ensina/no-mundo/>.29 Neal, D., & Schanzenbach, D. W. (2010). Left Behind by Design: proficiency counts and test-based accountability. Review of Eco-

nomics and Statistics, 263-283.30 Setubal, M. A. (26 de abril de 2012). Os melhores professores para as piores escolas. Folha de S.Paulo, Caderno 1, p. 3; e Zastrow, C.

V. (29 de setembro de 2008), in: Teachers We Trust: An Interview with Finnish Education Expert ReijoLaukkanen. Fonte: Learning First Alliance: <http://www.learningfirst.org/teachers-we-trust-interview-finnish-education-expert-reijo-laukkanen>.

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(...) não apenas como lidamos com dados, mas também, e mais importante, o que conta como dado. A lei [NCLB31] exige que as escolas dependam de base científica, de investigação, mas, como se vê, estudos de caso, etnografias, entrevistas e outras formas de pesquisa qualitativa parecem cair fora desta definição – e, portanto, são considerados inaceitáveis, como base para a tomada de decisões. (...) Nossa fé cega em números acabou causado empobrecimento em como (e quais) informações são usadas para ajudar a resolver proble-mas do mundo real. Nós agora aparentemente acreditamos que os números não são apenas necessários, mas suficientes para as decisões baseadas em pesquisa (p. 1).32

As consequências destas políticas estão claras na literatura internacional, a pressa dos empresários em resolver seus problemas de rentabilidade poderá nos levar a uma década perdida na educação brasileira.

31 Lei de responsabilidade educacional americana.32 Quintero, E. (22 out. 2012). The data-driven education movement. Fonte: Shanker Blog: <http://shankerblog.org/?p=7015>.

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ORGANIZAÇÃO, ESTRATÉGIA POLÍTICA E O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO1

Roberto Leher2

Introdução: a atualidade da luta de classes na análise da educação do Século XXIEmbora muitos educadores sustentem que a tese de que a luta de classes na educação está superada,

os setores dominantes insistem em não concordar com isso. Em seus principais centros de pensamento estes últimos dedicam-se a pensar a educação como uma prática capaz de converter o conhecimento e a formação humana em “capital humano”, formulação altamente legitimada por prêmios Nobel (Fried-man, 1976; Schultz, 1979; Becker, 1992) e incorporada organicamente pelos intelectuais coletivos do ca-pital (Banco Mundial, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico/OCDE, Funda-ção Ford, Open Society Foundation), por entidades empresariais (Confederação Nacional da Indústria, a Confederação Nacional da Agricultura, a Associação Brasileira do Agronegócio), por suas fundações e, também, pelas coalizões empresariais de organização da classe “para si” (como o Movimento Todos pela Educação/TPE3). A ação dos setores dominantes nada tem de proclamatória, visto que lograram convertê-la em política de Estado, por meio de leis nacionais e regionais, assimiladas pelos governos como referências de seus programas e políticas.

A educação que convém ao capital: como os setores dominantes operam na educação A elaboração mais sofisticada em prol da educação capitalista foi realizada por autores neoclássicos,

reunidos, especialmente, na Universidade de Chicago. Legitimada politicamente por sucessivos prêmios Nobel (Schultz, Friedman, Becker), a chamada teoria do capital humano (TCH) atribui à educação um lugar estratégico capaz de produzir ganhos adicionais para o capital, desde que a socialização (em senti-

1 O presente texto tem como base a exposição apresentada no curso de especialização do MST, organizado no Coletivo Candeeiro e o Centro de Estudo, Pesquisa e Ação em Educação Popular (Cepaep), Faculdade de Educação da USP, 27/11/2009. A presente versão foi revista e ampliada em outubro de 2014.

2 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-lógico (CNPq) e colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).

3 “Compromisso Todos pela Educação”: movimento lançado em 6 de setembro de 2006, no Museu do Ipiranga, em São Paulo. Esse movimento, apresentado como uma iniciativa da sociedade civil e que conclama a participação de todos os setores sociais, foi cons-tituído, de fato, como um aglomerado de grupos empresariais com representantes e patrocínio de entidades como o Grupo Pão de Açúcar, a Fundação Itaú-Social (Milú Villela, presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do Instituto Itaú Cultural, do Faça Parte-Instituto Brasil Voluntário e agora também do Comitê Executivo do “Compromisso Todos Pela Educação”), a Fundação Bradesco, o Instituto Gerdau, o Grupo Gerdau, a Fundação Roberto Marinho, a Fundação Educar-DPaschoal, o Instituto Ayrton Senna, a Cia. Suzano, o Banco ABN-Real, o Banco Santander, o Instituto Ethos, entre outros (Ver Saviani, D. O Plano de De-senvolvimento da Educação: análise da proposta do MEC, Educ. e Soc., v. 28, n.100, out. 2007; Evangelista, O. e Leher, R. Todos pela Educação e o episódio Costin no MEC: a pedagogia do capital em ação na política educacional brasileira, Revista Trabalho ne-cessário, n.15/ 2012. Disponível em: <http://www.uff.br/trabalhonecessario/images/TN1519%20Artigo%20Roberto%20Leher%20e%20Olinda%20Evangelista.pdf)>.

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do durkheimniano) seja bem orientada e o adestramento profissional seja congruente com as demandas do capital. Esta formulação chegou ao Brasil por meio da Aliança para o Progresso, como um antídoto aos movimentos em prol da educação e da cultura popular nos luminosos anos 1960, abrangendo a cria-ção da Universidade de Brasília, por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, os Centros Populares de Cultura apensados à União Nacional dos Estudantes (renovando a poesia – com Ferreira Gullar, o teatro – com Vianinha, o documentário – com Eduardo Coutinho etc.) e, em especial, pela alfabetização como um ato pedagógico de conscientização (Paulo Freire em Angicos, “De pé no chão também se aprende a ler” em Natal).

Com o golpe empresarial-militar, a educação passa a ser tema dos Chicago-boys, da Aliança para o Progresso – que passou a enfrentar mais diretamente o “perigo” que representava o marxismo nas uni-versidades brasileiras – e dos “reformadores” da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (em inglês, United States Agency for International Development/Usaid) e do Conselho Federal de Educação (agora fortalecido em virtude de sua aliança com a ditadura). Nesse contexto, a contrarreforma da educação avançou, produzindo novos marcos para a universidade (Lei 5.540/68) e para a educação básica (Lei 5.692/71), esta última explicitamente referenciada na formulação do capital humano, chegando a propugnar a profissionalização massiva e compulsória do ensino médio (na épo-ca, segundo grau). A despolitização da educação foi encaminhada por meio do tecnicismo educacional importado dos EUA a partir de pedagogos e especialistas que realizaram suas pós-graduações neste país (período de ouro dos supervisores, dos orientadores, dos especialistas em medidas educacionais/avalia-ção), retirando a educação pública dos embates políticos. Até mesmo a União dos Professores Primários do Brasil se somou a esse processo. A expansão de escolas agrotécnicas e da assistência técnica rural es-tiveram organicamente vinculadas à chamada revolução verde, auspiciada pelo Banco Mundial em sua ofensiva contrainsurgente.

Nas lutas de resistência à ditadura, outra agenda foi sendo erigida nos espaços de produção do conhe-cimento crítico nas universidades e, de modo menos sistemático, nas organizações associativas que, após a Constituição de 1988, seriam transformadas em sindicatos, em especial nas Conferências Brasileiras de Educação (CBE) e nas Reuniões Anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com a contribuição de intelectuais como Demerval Saviani, a discussão da escola politécnica, da esco-la unitária “desinteressada”, referências marxistas e gramscianas ganharam força na pós-graduação em educação dos anos 1980, em especial no contexto da constituição do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) em 1987, objetivando intervir no processo da constituinte. Com vitórias rela-tivas na Constituição e derrotas relevantes na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o FNDEP, agora impulsionado por combativos sindicatos da educação, se tornou o principal articulador das lutas educacionais. Este movimento foi magnificado com os Congressos Nacionais de Educação (Coned), convocados a partir de 1996, com o objetivo de elaborar um novo Plano Nacional de Educação (PNE).

Em virtude da correlação de forças negativa para os trabalhadores nas duas últimas décadas do sé-culo XX, expressa na redução abrupta do número de greves anuais (que passam de mais de 2,5 mil por ano em 1989 para menos de 500 greves no final da década), o capital – operando também por meio do Estado – impôs transformações ainda mais profundas na educação da classe trabalhadora. A perspec-tiva universalista de que a escola pública deveria assegurar uma formação geral igualitária a todos os estudantes por meio da garantia, pelo Estado, da educação pública, gratuita e estruturada em sistemas nacionais, foi combatida em prol de políticas focalizadas, referenciadas na pedagogia das competências, atributos utilitaristas que objetivam a adaptação das crianças e jovens ao ethos capitalista e, mais preci-

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samente, ao chamado novo espírito do capitalismo4 flexível, fundamentado no trabalho superexplorado e precário.

Nos anos 1990, essas concepções já circulam também nas universidades. Imbuídas direta ou indi-retamente da noção das escolhas racionais (chamadas de teorias das escolhas racionais) difundida por neoliberais como James Buchanan, Gordon Tullock e Mancur Olson, essa formulação, em virtude do individualismo metodológico, está harmonizada com a ideologia do capital humano. Neste prisma, os agentes educacionais buscam maximizar os benefícios da educação (e em especial da educação moral), em relação aos recursos disponíveis. Este benefício tem a ver com o ethos capitalista, daí a ênfase na so-cialização por meio de valores e disposições de pensamento. Docentes nas áreas de economia, da ciência política e da sociologia e, neste rastro, em geral, como cópia, da educação, ecoam essas noções advindas de centros do pensamento conservador nos EUA e Inglaterra.

Igualmente em expansão na universidade, a perspectiva pós-moderna, preocupada com as opressões, é crítica em relação à agenda neoconservadora, mas não enfrenta a ofensiva do capital, recontextualizan-do, de distintos modos, a agenda do novo espírito do capitalismo (flexibilidade, autorregulação e auto-nomia, individualismo, identidades, antiestatismo, celebração de uma edulcorada sociedade civil, crítica à história e à própria teoria), sem tornar pensável o modo de produção capitalista em seus nexos com a educação. A combinação inusitada, pois não desejada, entre neoliberais e pós-modernos, afasta a teoria da educação das lutas de classes, combinando capital humano, competências, “oportunidades educacio-nais”, “escolhas racionais” com o culturalismo, a identidade e o relativismo epistemológico.

Observando retrospectivamente esse período de hegemonia neoliberal, seja em sua versão original (Carlos Menem, Argentina; Sanchez de Lousada, Bolívia; Andrés Perez, Venezuela; Alberto Fujimori, Peru; Salinas de Gortari, México etc.), seja em sua feição social-liberal (com os chamados governos pro-gressistas na Argentina, Brasil, Chile, Equador, Uruguai), é possível constatar que a expansão da oferta da escola pública nos países capitalistas dependentes – uma realidade na educação básica e em certas modalidades de educação profissional – está sendo acompanhada de drástico esvaziamento de seu con-teúdo científico, histórico-cultural, tecnológico e artístico.

Com efeito, o próprio conhecimento foi relexicalizado pela noção de competência, uma expressão importada da administração que nada tem de científica, conforme aponta Helena Hirata5. Entretan-to, esta noção foi visceralmente incorporada pelos agentes do capital (Todos pela Educação, Associa-ção Brasileira do Agronegócio/Abag, Confederação Nacional da Indústria/CNI etc.), pelos organismos internacionais (como o Banco Mundial e a OCDE) ao implementar seu sistema mundial de avaliação padronizada e, ainda,pelo Projeto Tuning de competências mundiais na educação superior de menor complexidade e mercantil.

Na educação básica, este processo vem ocorrendo por meio de uma miríade de iniciativas articula-das que pretende erodir os últimos fundamentos públicos da educação em prol de uma escola em que o que é dado a ensinar está limitado a livros didáticos e, cada vez mais, a apostilas elaboradas por cor-porações que, no lugar de conhecimentos científicos, veicula os referidos descritores de competências a serem aferidos pelos sistemas centralizados de avaliação que dão suporte ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

4 Boltanski, L.; Chiapello, E. Le nouvele sprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999.5 Hirata, Helena, Da polarização das qualificações ao modelo da competência, in: Ferretti, Celso João; Zibas, Dagmar M. L.; Madei-

ra, Felícia R.; Franco, Maria Laura P. B. (org.). Novas tecnologias, trabalho e educação– um debate multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994.

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Após um período de perda de credibilidade nos governos e na universidade (em especial nos anos de fortalecimento das lutas sociais nos anos 1980), a mudança na correlação de forças possibilitou que o Banco Mundial afirmasse a supremacia inconteste da TCH, em 1994. Com apoio da Usaid, da Funda-ção Ford, entre outras, foi constituído um centro de pensamento reacionário para orientar “corretamen-te” as reformas educacionais da América Latina: o Programa de Reforma Educativa da América Latina e Caribe (Prealc). O eixo geral do Programa era a qualidade da educação, um objetivo que os professores e a rede pública teriam fracassado, justificando o protagonismo de uma edulcorada sociedade civil, a rigor, o empresariado. Em 2001, setores industriais organizaram o Movimento Brasil Competitivo (MBC), liderado por Jorge Gerdau Johannpeter.

Em conformidade com o MBC, Fernando Henrique Cardoso modificou a formação profissional com o Decreto 2.208/97, dissociando a formação profissional e a educação geral propedêutica. Em aliança com o Banco Mundial criou,inicialmente por meio de planos-piloto no Nordeste brasileiro,o Fundo de Fortalecimento da Escola/Fundescola, focando não mais as redes, mas as unidades escolares, ressignificando os projetos políticos pedagógicos como ‘plano de gerenciamento escolar’. Os diretores passaram então a ser gestores, o léxico da administração invadiu a escola: metas, eficiência, qualidade total etc. Coerente com esse novo modelo, instauraram: programas de financiamento dirigidos direta-mente à escola, como o Programa Dinheiro Direto na Escola/PDDE, um sistema de avaliação básica referenciado no Programa Internacional de Avaliação de Alunos/Pisa (Sistema de Avaliação da Educa-ção Básica/Saeb) e o Fundef, objetivando focalizar a ação do Estado sem ampliar os recursos. A gestão eficaz, nesse prisma, é aquela comprometida com os resultados e, por isso, é aquela que tem foco na aprendizagem. A dimensão ensino vai sendo apagada e, com ela, o trabalho docente.

Já no governo Lula da Silva, em 2006, expressando a liderança do setor financeiro no bloco no po-der e no Estado Maior do Capital, os bancos convocaram uma nova coalizão, mais ampla e orgânica, para interferir na educação, o já apresentado TPE. Atuando na forma de partido, o movimento reuniu e agregou as iniciativas burguesas na educação até então dispersas, estabeleceu uma agenda na forma de metas e compromissos de todos pela educação (inicialmente 10 causas e 26 compromissos, depois sinte-tizados) e organizou um robusto aparato de circulação de suas ideias nos grandes meios de comunicação, situação facilitada pela adesão dos mesmos ao TPE6.

Buscando tornar a sua agenda Estado e os bancos, liderados pela holding Itaú-Unibanco, convocaram o Conselho de Secretários de Educação, a União dos Dirigentes Municipais de Educação e o próprio Ministério da Educação, então liderado por Fernando Haddad, para o TPE, no que foram prontamente atendidos. Explicitamente, os bancos sustentam um projeto de nação dita moderna e competitiva.

Uma importante vitória desse movimento foi o convencimento do governo Lula da Silva de incorpo-rar a sua agenda como política governamental, o que foi efetivado com o Plano de Desenvolvimento da Educação/PDE (Decreto 6.094/07, Lei 12.695/12, Lei 13.005/14) que, não casualmente, foi batizado por Haddad como “PDE: Compromisso Todos pela Educação”. Uma importante ferramenta de polí-tica educacional foi conquistada pelo empresariado: a criação do Ideb. Agora, não apenas o sistema de avaliação afere se as escolas estão no “caminho certo”, como podem impor metas e, com isso, interferir no próprio planejamento das escolas, agora balizado por índices palpáveis, quantitativos, aferíveis pela avaliação centralizada. As escolas e os professores tornaram-se reféns de índices que esvaziam o sentido público da escola, reduzem o que é dado a pensar (competências em português e matemática, descon-siderando as demais dimensões da formação humana) aprofundando o apartheid educacional entre as

6 Para um excelente histórico do TPE, ver Martins, Erika Moreira. Movimento Todos pela Educação: um projeto de nação para a educa-ção brasileira. Dissertação de Mestrado, Unicamp, 2013.

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classes sociais. Como assinalado, a adesão ao plano de Metas é obrigatório para que as escolas sejam cadastradas no módulo do Programa de Ações Articuladas, sem o qual a escola não pode contar com os programas federais como Escola Ativa (campo), Mais Educação, Programa Nacional de Tecnologia Educacional (Proinfo) e Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância).

A simplificação da formação, na ótica do capital, não é irracional (no sentido apontado da dita te-oria das escolhas racionais). Em virtude do fortalecimento do eixo da economia intensiva em recursos naturais (Gonçalves, 2003)7, da concentração monopólica em umas poucas corporações localizadas em etapas específicas das fracionadas cadeias produtivas (a exemplo das montadoras de automóveis), da ex-pansão desenfreada do setor de serviços de baixa complexidade8 (onde se situa a juventude que compõe o precariato), do imenso exército industrial de reserva a ser socializado9, os setores dominantes compre-endem que as escolas podem ser convertidas em um espaço de educação minimalista.

De fato, o padrão de acumulação, na ótica dos setores dominantes, prescinde da formação com maior complexidade científica e cultural da juventude trabalhadora. A ideia geral é que a grande maioria dos postos de trabalho é constituída por atividades que requerem modesta escolarização. A educação, focali-zando os arranjos produtivos locais (cuja expressão educacional mais relevante é o Pronatec, sob a direção do Sistema S) pode ser menos sofisticada (conformando arranjos educativos locais), assegurando o que a pedagogia hegemônica denomina de competências básicas, vinculadas ao aprender a aprender analisadas por Newton Duarte10, sem a universalização de conhecimentos científicos explicativos dos processos naturais e da sociedade.

Com efeito, a despeito da elevação relativa da escolaridade da População em Idade Adulta/PIA (for-malmente 7,6 anos, 2013), 90% dos novos empregos formais da última década são postos de trabalho superexplorados cuja remuneração não ultrapassa dois salários mínimos11. Justamente por manter um grau brutal de exploração do trabalho e inclementes expropriações (como no campo, processo que le-vou a reconcentração da propriedade fundiária, conforme observou Gonçalves, 2013, nota 11), o país se sobressaiu como um dos mais notáveis emergentes, cujo produto interno bruto/PIB, impulsionado pelas commodities, chegou a constituir o oitavo PIB mundial. Assim é o capitalismo dependente no qual coexistem o dito moderno com o arcaico, como salientou Florestan Fernandes12.

Esse processo de esvaziamento da formação das crianças e jovens não pode ser pensado de forma desvinculada da concentração e centralização dos grandes meios de comunicação que atuam no mesmo sentido da pedagogia da hegemonia13. Além da intensa e densa formação extraescolar, por meio de no-velas, noticiários, programas voltados para a juventude, realities shows, as corporações atuam de modo

7 Gonçalves, R. Desenvolvimento às avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

8 “Não estamos caminhando para uma sociedade homogênea, medianizada, mas para uma sociedade mais polarizada”. Entrevista especial com Márcio Pochmann, Instituto Humanitas/Unisinos, sexta, 27 de junho de 2014. Disponível em: <http://www.ihu.uni-sinos.br/entrevistas/nao-estamos-caminhando-para-uma-sociedade-homogenea-medianizada-mas-para-uma-sociedade-mais-pola-rizada-entrevista-especial-com-marcio-pochmann/532719-nao-estamos-caminhando-para-uma-sociedade-homogenea-medi#>.

9 Granato Neto, N. N.; Germer, C. M. A evolução recente do mercado de força de trabalho brasileiro sob a perspectiva do conceito de exército industrial de reserva. Revista Ciências do Trabalho, v.1, n.1, 2013.

10 Duarte, Newton. As pedagogias do aprender a aprender e algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento. Revista Brasileira de Educação, set./out./nov./dez. 2001, n. 18. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n18/n18a04>.

11 Ver nota 12, entrevista Pochmann.12 Fernandes, F. A revolução burguesa no Brasil. Um ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.13 Termo de inspiração gramsciana difundido de forma original por Lúcia Maria Wanderley Neves e A. A. S de Melo em A nova peda-

gogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, Coletivo de Estudos sobre Política Educacional, 2005.

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sistemático nas escolas, vendendo pacotes tecnológicos, como a Fundação Roberto Marinho (tele ensi-no) e livros didáticos (grupo Abril) e, com o ingresso de outras corporações do setor editorial, apostilas (Pearson, Positivo etc.) e equipamentos. Cabe assinalar que esses suportes tecnológicos estão alicerçados pelas competências e muitas vezes contribuem para a melhoria do Ideb, justificando, assim, os pacotes nas escolas, realimentando o ciclo vicioso do lucro das corporações com empobrecimento da formação das crianças e jovens da classe trabalhadora. A presença aberta do capital nas escolas é apenas a ponta do iceberg da ação do capital na educação brasileira14.

De fato, a formação cultural da grande maioria das crianças e jovens brasileiros é quase que mono-pólio dos setores dominantes. Esse processo de controle do aparato educativo pelo capital é tão natura-lizado que já não causa constrangimento ao governo Federal (no Plano de Desenvolvimento da Educa-ção, no Programa de Ações Articuladas, no Plano Nacional de Educação/ Lei 13.005/14 e na defesa da direção do Sistema S, dirigido pelo patronato, sobre o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego/Pronatec, via de regra em cursos de curtíssima duração: 90% de até 150 horas) e aos gover-nos estaduais e municipais (por meio da assessoria das fundações que operam o referido movimento empresarial, como Airton Senna, Bradesco, Itaú-Cultural, Vitor Civita, Roberto Marinho, Santander, Gerdau, entre outros) assumirem que quem tem real legitimidade para falar sobre a educação são as en-tidades empresariais, congregando as corporações do agronegócio e do setor mineral, os meios de comu-nicação e as empresas de telefonia-internet, a indústria editorial, bem como os bancos e as financeiras15.

Se os setores dominantes tomam de assalto a educação pública – não se limitando ao seu já amplo aparato educativo privado que alcança mais de 75% dos estudantes da educação superior – é porque, evidentemente, compreendem que imprimir a direção intelectual e moral é relevante para a reprodu-ção do capital, especialmente na educação básica, justo onde o Estado ainda mantém grande parte das matrículas (e, evidentemente, em toda a multifacetada malha de organizações públicas e privadas de educação profissional).

O interesse das entidades empresariais pela educação deve-se também ao fato de que, para os movi-mentos anticapitalistas, a educação é parte da estratégia revolucionária no século XXI. Embora de modo parcial, molecular, as principais lutas antissistêmicas incorporaram o tema da educação popular como uma prioridade político-estratégica. Os mais proeminentes movimentos sociais estão tomando para si mesmos as tarefas de formação política de seus militantes e de educar suas crianças e jovens. As experi-ências dos zapatistas, com as juntas do bom governo, da Assembleia dos Povos de Oaxaca (APPO) no México, da Cloc-Via Camponesa, da Coordenação Nacional dos Povos Indígenas do Equador (Conaie) e do Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil estão inscritas nesses processos. Obviamente, essas iniciativas, ainda que fragmentadas, não passam despercebidas pelo capital.

Para impedir que os trabalhadores façam da educação pública um espaço de educadores auto-organi-zados em conselhos, os setores dominantes não hesitaram em reprimir duramente todas as experiências que pudessem avançar nesse sentido, como é possível depreender da cassação de Paulo Freire em 1964, no Brasil, mas também no combate a Camilo Torres Restreppo, na Colômbia, em 1966, entre tantos outros milhares de militantes. Nos tempos atuais, em que a repressão não é aberta – o que não quer dizer inexistente, como é possível deduzir das perseguições às escolas itinerantes no Rio Grande do Sul, na

14 Pinheiro, Daniele Cabral de Freitas Educação sob controle do capital financeiro: o caso do Programa Nacional do Livro Didático. Dis-sertação de Mestrado, PPGE, UFRJ, 2014.

15 Evangelista, O. e Leher, R. Todos pela Educação e o episódio Costin no MEC: a pedagogia do capital em ação na política educacio-nal brasileira.Revista Trabalho Necessário, n.15/2012. Disponível em: <http://www.uff.br/trabalhonecessario/images/TN1519%20Artigo%20Roberto%20Leher%20e%20Olinda%20Evangelista.pdf)>.

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gestão Yedda Crucius –, os setores dominantes têm operado no sentido da redução do espaço de autono-mia real do aparato escolar através de: i) um enorme aparato de avaliação (da alfabetização à pós-gradu-ação); ii) do estabelecimento de metas de desempenho obrigatórias, como no cadastro do Programa de Ações Articuladas/PAR, o mais amplo programa de apoio federal às escolas do ensino fundamental, que exige que o secretário de educação faça a adesão de seu município às metas do Todos pela Educação, e iii) da imposição de materiais pedagógicos (diversos municípios têm comprado pacotes educacionais que se tornam obrigatórios) objetivando converter a educação em uma ferramenta de produção do “consenso sem consentimento”.

O exame apurado e sistemático das principais iniciativas educacionais em curso no Brasil de hoje, como as sistematizadas no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/14), permite afirmar que a meta dos setores dominantes é educar a massa de crianças e jovens para um conformismo (que nada tem de estático) com a situação social vigente que pode e deve mudar para que tudo fique como está, lembrando a famosa expressão do escritor italiano Tomasi di Lampedusa (1896-1954) em O Leopardo, seu célebre livro sobre a unificação italiana (1815-1870): “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.

A classe trabalhadora toma a tarefa educacional em suas mãosPara compreender o sentido dos embates de classes no terreno da educação, é preciso destacar um

aspecto já apontado anteriormente: não são apenas os setores dominantes que concebem a direção “in-telectual e moral” da educação como uma tarefa da própria classe. Desde a segunda metade do século XIX a educação compõe a pauta das lutas da classe trabalhadora. Nas principais manifestações de Marx e Engels sobre a estratégia socialista a temática educacional sempre esteve presente. Podemos encontrar reflexões dos fundadores do materialismo histórico sobre a educação no Manifesto do Partido Comunista (1848), no Discurso Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), redigido por Marx (1864), nos escritos de Marx sobre a Comuna de Paris (30 de maio de 1871), e na Crítica ao Programa de Gotha (Comentários Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão, 1875). Nos debates na AIT, Marx chama atenção para o fato de que a classe operária tinha um elemento de triunfo, o seu número, mas que o número não pesaria na balança “se não estiver unido pela associação e pelo saber”.

É justamente a preocupação com a “constituição da massa em classe” que motivará Marx e Engels a inserirem a problemática da educação da classe trabalhadora em seus escritos políticos. Os fundadores do marxismo pensam a educação da classe trabalhadora não como algo idealizado, em moldes do dever ser, utopia passível de ser realizada somente com a conquista do socialismo. Os textos não deixam mar-gem a dúvidas de que a educação é um desafio dos trabalhadores ainda no capitalismo. Ao se referir à educação do futuro Marx, n’O capital, afirma que seus germes devem nascer ainda no capitalismo, na forma da educação integral.

Também no debate da estratégia para o socialismo em Lenin e Krupskaya podemos encontrar as mesmas preocupações. Nas experiências revolucionárias, a exemplo da Comuna de Paris (1871)16 da Revolução Russa (1917), a educação sempre foi um tema importante para o avanço do socialismo pois relacionada com a formação das mulheres e dos homens de modo integral, objetivando a superação entre os que pensam e os que executam, os que mandam e os que obedecem.

16 Sobre a educação na Comuna de Paris: Jane de Almeida produziu uma bela (e completa) tese de doutorado na Unicamp, em 2014: Educação e luta de classes: a educação na Comuna de Paris, 1871.

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Na América Latina, Aníbal Norberto Ponce (1898-1938)17escreveu um livro pioneiro sobre o tema: Educação e luta de classes18, livro que foi fruto de seu engajamento nas lutas em prol da reforma univer-sitária em Córdoba (1918). O intelectual cubano Júlio Mella sustentava que a educação emancipatória dependeria da luta contra o imperialismo e, mais amplamente, contra o capitalismo; por isso, sua con-sideração de que a educação seria parte da luta de classes, tendo que compor a estratégia política dos trabalhadores. Nos autores latino-americanos, em especial, em Mariátegui, em texto de 1928, a teoria não poderia ser “nem decalque, nem cópia, mas criação heroica”, tendo que ser original, crítica ao euro-centrismo, aberta ao diálogo com os camponeses e indígenas, distinta do marxismo vulgar que os con-cebia (camponeses e indígenas) como subordinados a um idealizado operariado. Mariátegui argumenta que, na América Latina, o trabalhador assalariado possuía características particulares em relação aos seus homólogos europeus.

No caso brasileiro, o exemplo mais importante de organização vinculada aos trabalhadores que tem compreendido a tarefa de que é necessário tomar a educação como parte da estratégia de luta da classe é o MST, como é possível depreender das motivações que justificaram a criação da Escola Nacional Flo-restan Fernandes (ENFF)19, bem como pelas lutas em prol da educação básica nos assentamentos e pelos cursos de graduação em universidades públicas propostos pelo MST20, lutas que foram sistematizadas na pedagogia do movimento e na proposta de educação do campo21.

Todos esses escritos e experiências corroboram um conceito de educação pública que precisa ser di-ferenciado de seu sentido liberal e burguês. Distintamente dos liberais e de grande parte da esquerda de sua época, em especial na formulação de Ferdinand Lassalle, Marx compreende que os trabalhadores não devem confiar ao Estado a educação das suas crianças e jovens. Na “Crítica ao Programa de Gotha”, criticando Lassalle, Marx afirma que conceber o Estado como educador é o mesmo que atribuir aos se-tores dominantes a educação dos trabalhadores. Marx trabalha aqui uma tensão fundamental: a escola deve ser pública, mantida às expensas do Estado, mas a educação deve ser confiada aos educadores e aos conselhos populares, como ocorrera na Comuna de Paris (certamente, a experiência que influenciou o texto de Marx), assegurando a autonomia dos educadores frente ao Estado particularista.

Outro elemento da crítica à educação liberal-burguesa que somente pode ser realizada com a emer-gência do movimento pelo socialismo é a constatação de que a educação no capitalismo é inevitavelmen-te unilateral, pois tem como pressuposto a divisão social do trabalho que opõe o trabalho intelectual ao trabalho simples. Ao discutir o trabalho simples é preciso lembrar que este conceito é histórico, tendo seu conteúdo alterado pelo grau do desenvolvimento tecnológico da produção; assim, hodiernamente, um operador de telemarketing, por exemplo, embora utilize tecnologias avançadas, desempenha trabalho simples, conforme apontam Ricardo Antunes e Ruy Braga em seu Infoproletariados – degradação real do trabalho virtual (Boitempo, 2009); o mesmo pode acontecer com um cientista: cada vez é mais comum

17 Ponce foi um dos primeiros intelectuais a relacionar educação e luta de classes. Discípulo de um dos principais intelectuais das lutas da reforma universitária de Córdoba (1918), José Ingenieros (1877-1925), seu pensamento educacional socialista ultrapassou as fron-teiras de seu país, a Argentina, sendo difundido em diversos países latino-americanos. Editou, com Ingenieros, a Revista de Filosofia que Mariátegui reconhecera como uma das publicações que melhor defendeu a Revolução Russa.

18 No Brasil, já na 22a edição pela Editora Cortez.19 Leher, R. Escola Nacional Florestan Fernandes: um grande acontecimento para a educação, in: Outro Brasil, Educação popular,

15/2/2005. Disponível em: <www.lpp-buenosaires.net>. 20 Ao longo da história do MST foram conquistadas 2.520 escolas nos acampamentos e assentamentos; mais de 4 mil professores foram

formados no movimento e existem parcerias com 50 instituições de ensino superior, 100 turmas de cursos formais (MST: Lutas e Desafios. São Paulo: Secretaria Nacional MST, 2a ed., jan. 2010).

21 Caldart, R. S. Educação do campo, in: Caldart, R. S. et al. (orgs.) Dicionário de Educação do Campo. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, São Paulo: Expressão Popular, 2012a. Caldart, R. S. Pedagogia do Movimento.

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que o seu labor esteja inserido em processos alienados de trabalho, cindidos em etapas que impossibili-tam a compreensão de sua totalidade, conforme aponta Ernest Mandel, em Os estudantes, os intelectuais e as lutas de classes (Lisboa: Edições Antídoto, 1979).

Não pode causar surpresa, portanto, que somente os socialistas podem lutar plenamente para que a educação dos trabalhadores possa abranger o conjunto da existência e das potencialidades humanas: científica, artística, tecnológica, histórico-cultural, filosófica, assegurando a todos os que têm um rosto humano a condição de intelectual e dirigente, como queriam os communards da Comuna de Paris. José Carlos Mariátegui22 sustenta, corretamente, que somente os socialistas podem defender a escola unitária. Mariátegui contribuiu de modo decisivo para a perspectiva de que a educação pública de fato universa-lista está necessariamente em confronto com o falso universalismo liberal, em especial problematizando e enfrentando: o racismo; o apagamento da cosmovisão dos povos originários; a ressignificação do tra-balhador do campo como operariado urbano-industrial, e o sexismo que incide sobre as mulheres. Nesse prisma, o universalismo não pode estar desvinculado da luta em prol de um padrão unitário de qualida-de (o cerne da educação socialista, conforme Amauta Mariátegui). São essas iniciativas que podem abrir brechas para a educação omnilateral dos sujeitos que vivem do próprio trabalho e são explorados e que, por isso, são considerados interlocutores centrais do presente artigo.

Embora aqui já discutido, é importante reiterar o caráter relacional das classes sociais: as experiências revolucionárias nos séculos XIX e XX, associando educação e socialismo, levaram a burguesia a politi-zar sua intervenção na esfera educacional. De modo deliberado e consciente, a burguesia construiu uma hegemonia sobre o conjunto da educação pública, objetivando, com isso, a conformação de um “certo tipo” de educação para a massa da classe trabalhadora mundial: a educação unilateral que forma recur-sos humanos para o capital. Paulatinamente, a educação pragmática e utilitarista da classe trabalhadora passou a ser internalizada como a única educação possível, sendo assimilada até mesmo por sindicatos e movimentos que, nos períodos de maior densidade de lutas no século XX, combateram esse modelo educacional referenciado na dita teoria do capital humano. O exame da pauta dos maiores sindicatos no Brasil (metalúrgicos, bancários etc.) confirma a crescente adesão dos mesmos ao ideário educacional burguês (Boito Jr., 1999 e Tumolo, 2002)23 conformando um vasto processo transformista24. Retomar a Gramsci, nessa perspectiva, é decisivo para que o debate estratégico possa ser adensado na realidade brasileira, em que os aparelhos privados de hegemonia do capital ganharam complexidade jamais vista no país.

Gramsci, educação e hegemoniaA formação da consciência de classe não é espontânea e tampouco é possível sem rupturas com as

ideologias dominantes. Isso não quer dizer que a consciência seja externa aos trabalhadores, algo a ser inculcado pelos intelectuais. Afirmar que a consciência não é espontânea é também uma forma de criti-car a tese economicista de que as lutas econômicas, em si mesmas, permitem alcançar o momento ético-

22 Mariátegui, José Carlos. Ensino único e ensino classista, in: Mariátegui, J. C. Mariátegui sobre Educação. São Paulo: Xamã, 2007.23 Boito Jr., Armando. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã, 1999. Tumolo, Paulo Sergio. Da contestação à con-

formação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista. Campinas: Ed. Unicamp, 2002.24 Gramsci compreende o transformismo como um processo histórico em que o bloco de poder dominante torna-se mais amplo, por

meio da absorção paulatina de forças que gravitam em grupos aliados, mas ainda não orgânicos ao bloco de poder e, não menos importante, de grupos outrora adversários, inclusive daqueles que pareciam irreconciliavelmente inimigos. Neste sentido, a direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um período frequentemente muito longo. Ver Chiaromonte, Gerardo.Transformismo. Disponível em: <http://www.acessa.com/gramsci/?id=661&page=visualizar>. Acesso em: dez. 2008.

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-político. Gramsci rejeitou veementemente essas crenças e, antes dele, Lenin igualmente as combateu. A formação política demanda um ambiente político que propicie a difusão da cultura proletária, em especial do marxismo, em sindicatos classistas e autônomos, partidos operários e movimentos sociais antissistêmicos.

A formação requer, e isso é condição imprescindível, o protagonismo em lutas que se afirmem como classistas em oposição clara aos capitalistas.

A verdadeira educação das massas jamais poderá separar-se de uma luta política independente e, sobretudo da luta revolucionária das massas mesmo. Só a ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, amplia seu horizonte, desenvolve suas capacidades, ilumina sua inteligência e tempera sua vontade25.

O desafio maior, conforme Gramsci, é tornar os trabalhadores até então envolvidos, sobretudo em lutas econômicas, intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral, civil e política.

Por ser um processo que pretende romper com o economicismo e com as concepções liberais e bur-guesas a formação política requer espaços próprios, auto-organizados pela classe que vive do próprio trabalho e é explorada, e um tipo específico de relação entre educadores e educandos. É uma relação que não pode estar limitada apenas ao ambiente e às questões “escolares”, abrangendo a sociedade em seu conjunto. É, portanto, enorme a responsabilidade dos intelectuais e dos dirigentes do movimento dos trabalhadores na elaboração e na socialização da cultura produzida pelos trabalhadores nas lutas e nas práticas sociais que objetivam organizar a classe. Se não houver vínculos entre o espaço da formação e os movimentos reais, concretos, que efetivamente fazem as lutas, a tendência é a formação dogmática como se fosse um clube literário de burgueses desocupados e diletantes. Nas palavras de Gramsci:

Somos uma organização de lutas e em nossas fileiras se estuda para aumentar e afinar as capacidades de luta de cada indivíduo e de toda a organização, para compreender melhor quais são as posições do inimigo e as nossas, para poder adequar melhor a elas nossa ação de cada dia. Estudo e cultura não são para nós outra coisa que consciência teórica de nossos fins imediatos e supremos, e do modo como poderemos levá-los à prática26.

No que se refere à relação educador-educando, Gramsci nos oferece reflexões importantes ao susten-tar que essa relação tem de ser ativa e baseada em relações recíprocas, em que todo professor segue sendo um aluno e todo aluno é um professor. O elemento popular “sente”, entretanto nem sempre compreende e sabe; o elemento intelectual “sabe”, porém nem sempre compreende e especialmente sente. O erro do intelectual consiste em crer que se pode saber sem compreender e especialmente sem sentir e ser apaixo-nado. Toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica e se verifica nas forças que compõem a nação (as lutas de classes no âmbito nacional) e as relações de forças em nível internacional.

Ao se indagar sobre o porquê da universidade popular27 em Turin (1916-17) ser um organismo frio, incapaz de formar um público e que, a rigor, não é nem universidade nem popular, Gramsci reconhece que os problemas organizativos pesam negativamente, mas seus problemas são mais profundos. Certa-mente uma melhor organização dos programas, ofertando melhores cursos preparados com mais esmero e com focos de interesses que tenham vida, é imprescindível. Mas o problema de fundo é de nature-za pedagógica, pedagógica aqui no sentido de forma da construção da hegemonia. Em Turin, afirma Gramsci , seus dirigentes são uns diletantes em termos de organização cultural. O que os move, segue o autor, é um pálido espírito de benemerência, mas não a vontade genuína, viva e fecunda de contribuir

25 Lenin, Relatório sobre 1905 (janeiro de 1917).26 “L’Ordine Nuovo”, 1 de abril de 1925.27 “Avanti!”, 29 de diciembre de 1916.

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para a elevação espiritual de massa popular através do ensino. São ofertados cursos que não deixam ras-tro, não serão seguidos de uma vida nova, de uma vida diversa.

O público das universidades populares é constituído por trabalhadoras e trabalhadores que não pu-deram seguir os estudos regulares nas instituições de ensino e, por isso, cabe aos educadores da univer-sidade popular encontrar melhores métodos para fazer com que os trabalhadores possam se familiarizar com os conhecimentos considerados estratégicos.

Em geral, os dirigentes da universidade popular copiam os métodos das instituições de ensino tradi-cionais, piorando-os. Não compreendem que os estudantes das universidades públicas vivenciaram pro-cessos educativos por muitos anos que, se de um lado, facilitaram a apreensão dos conteúdos mais abs-tratos e conceituais, de outro, já domaram muito da inquietação intelectual dos jovens, tornando muitos desses conhecimentos dogmas e verdades absolutas. Isso não acontece com o conjunto dos militantes que busca a universidade popular: por serem protagonistas das lutas muitos são vivamente inquietos, indagam o real, querem respostas sobre os problemas estratégicos, sobre as dificuldades das conjunturas, sobre as formas de organizar as lutas etc. Ao reproduzirem os métodos tradicionais fazem da universi-dade popular uma instituição teológica, jesuítica, em que verdades eternas e absolutas são difundidas. Neste grau, segue Gramsci, isso não acontece nem nas universidades públicas.

Para o público e os fins da universidade popular é muito mais fecunda uma abordagem histórica dos problemas, recuperando a série de esforços, erros e vitórias através dos quais os homens têm passado para alcançar o atual conhecimento. Ao discutir os temas historicamente, com seus erros e aproximações, contextualizando as questões que impulsionaram os problemas científicos, é possível transformar o en-sino em um ato de libertação frente às coerções do capital. Esta forma de relação pedagógica contribui para impedir a arrogância intelectual dos que se julgam portadores da única forma correta de interpretar o que parecem textos sagrados. Essa forma de pensar e fazer a universidade popular se assemelha muito mais à dos círculos literários deturpando o sentido crítico das obras do materialismo histórico.

Essa forma jesuítica de pensar a relação entre os supostos intelectuais e os militantes nos remete a outra importante contribuição gramsciana: sua compreensão sobre os intelectuais. No senso comum, intelectuais são aqueles indivíduos “cultos” que atuam nas universidades, os literatos, os jornalistas de prestígio, o alto clero da Igreja, os grandes juristas etc., como se estes fossem um grupo social indepen-dente e autônomo. A compreensão de Gramsci é distinta. Para tornar pensável a questão dos intelectu-ais, Gramsci considera imperativa a análise dos nexos entre o Estado e a sociedade civil. O Estado não é exclusivamente a sociedade política, mas a hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacio-nal, exercida através das organizações denominadas privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas etc. E é justo no terreno da sociedade civil que operam os intelectuais do capitalismo tardio.28

O ponto central da questão é a distinção entre os intelectuais como categoria orgânica de todo grupo social fundamental, de um lado e, de outro, os intelectuais como categoria tradicional. O problema de fundo para o debate sobre a formação da consciência é compreender quem são os intelectuais orgânicos que organizam mais amplamente a hegemonia. A este respeito, Gramsci propõe que cada grupo social, ao nascer sobre o terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria, organicamente, uma ou várias camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função não só no campo econômico, senão também no social e político.

No capitalismo maduro o empresário capitalista ocupa um lugar central entre os intelectuais, signifi-cando uma elaboração social superior, caracterizada por certa capacidade dirigente e técnica e, portanto,

28 C, 210, 7 de septiembre de 1931.

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intelectual. Em suas práticas organizativas, cria o técnico industrial, o cientista da economia política, uma nova cultura, um novo direito etc., capaz de mover a massa de homens de modo congruente com o capitalismo. Os altos empresários que fazem parte do coração do bloco histórico, por sua vez, devem possuir a capacidade de organização da sociedade em geral, desde os serviços até o aparato estatal, obje-tivando a expansão da própria classe e, para isso, como sublinhado, organizam várias camadas de inte-lectuais subalternas para operarem a governabilidade.

Cada grupo social “essencial” ao se afirmar historicamente a partir da precedente estrutura econô-mica, e como expressão de seu desenvolvimento, tem encontrado categorias intelectuais preexistentes e que aparecem aos olhos guiados pelo senso comum como representantes de uma continuidade histórica ininterrupta e que sobreviveram às mais complicadas e radicais transformações econômicas e políticas, como os eclesiásticos, os filósofos e os literatos, os periodistas de prestígio etc. Estes intelectuais tradicio-nais, embora se vejam como independentes, estão, a rigor, sob a direção intelectual e moral dos senhores do capital e, por isso, nada têm de autônomos. Pouquíssimos destes se associam aos intelectuais orgâni-cos da classe trabalhadora. Em virtude das contradições e das lutas nas fábricas e em outros espaços do capital, é mais comum a migração de parte dos “intelectuais de novo tipo” (os técnicos especializados) para o campo dos trabalhadores do que o deslocamento dos intelectuais tradicionais para as trincheiras dos que lutam contra o capital.

O novo intelectual que Gramsci pretendia formar com o semanário Ordine Nuovo não pode ser caracterizado pela eloquência da oratória capaz de tocar seus interlocutores com base no afeto e nas emoções, mas tem a capacidade de se imiscuir ativamente na vida prática, como construtor, organiza-dor, persuasor permanente. Para tanto, deve ser capaz de interagir no mundo do trabalho com base na técnica-ciência e na concepção humanístico-histórica sem a qual permaneceria um especialista sem pas-sar a dirigente, isto é, especialista + político.

Não é possível compreender o papel dos intelectuais na obra de Gramsci sem precisar que, para o au-tor dos “Cadernos”, “todos os homens são intelectuais, embora nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”. Essa proposição é o que justifica a relação pedagógica entre os trabalhadores e os professores como uma relação dialética. Gramsci especifica que

Todo ser humano desenvolve fora de sua profissão alguma atividade intelectual e, por isso, é um ‘filósofo’, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, tem uma linha consciente de con-duta moral, contribui para sustentar e modificar uma concepção de mundo, suscitando novos modos de pensar.29

A disputa pela função social da educação no Brasil: sindicatos e movimentos em lutaAs cronologias dos conflitos sociais do Observatório Social da América Latina (Osal) do Conselho

Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso)30, lamentavelmente encerradas pelo Clacso, vêm indi-cando mudanças profundas nas lutas em defesa da educação pública latino-americana que ainda não foram avaliadas com o rigor e o alcance necessários. De fato, desde 1998, todas as sínteses do estado das lutas sociais na região comprovam que os educadores e a juventude estão entre os setores mais destacados das lutas sociais em curso.

Desde os anos 1990, os sindicatos autônomos que representam os trabalhadores da educação ir-romperam a cena política de forma impetuosa, com métodos próprios das lutas da classe trabalhadora, muitas vezes em conjunto com os estudantes, afirmando que a defesa da educação pública não estava

29 Antonio Gramsci. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 4ª ed., 1982.30 Ver:<http://www.clacso.org.ar/sitio/clacso/areas-de-trabajo/area-academica/osal/produccion-academica/cronologias>.

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circunscrita aos espaços institucionais, estando nas ruas, nas escolas e nas universidades, em situações abertamente conflituosas, fora dos marcos impostos pelos neoliberais que reduziram a problemática da educação ao gerenciamento, à eficiência e à eficácia. Também as lutas estudantis foram marcantes. Merecem destaques a greve da Universidad Nacional Autónoma de México/Unam (México, 1998), as lutas dos estudantes colombianos e dos países centro-americanos contra os tratados de livre comércio, as ocupações de reitorias pelos estudantes brasileiros contra o modelo dos community colleges nas univer-sidades públicas, a revolta dos pinguins, o massivo e original movimento estudantil chileno contra a lei geral da educação pinochetista mantida pelos governos da “concertación” e, em 2009-2010, a resistência estudantil contra o golpe militar em Honduras.

Muitas dessas lutas pela educação contaram com a participação ativa de movimentos sociais antis-sistêmicos – em geral, camponeses, indígenas e marchas multitudinárias. Examinando mais de perto a questão é possível afirmar que a problemática da formação política e da educação em particular vem sendo assumida como parte da estratégia política dos movimentos anticapitalistas31.

Raúl Zibechi32 caracteriza as principais tendências dos movimentos sociais que emergiram do cata-clisma neoliberal que transtorna a América Latina desde os anos 1980. Em sua ótica, os movimentos assumem feição distinta tanto do “velho sindicalismo”, como dos movimentos europeus, sendo um amálgama de linhagens como “os movimentos eclesiais de base, a insurgência indígena portadora de uma cosmovisão distinta da ocidental e o guevarismo inspirador da militância revolucionária”. São tra-ços marcantes desses movimentos: a sua territorialidade; a autonomia frente aos governos e partidos; a revalorização da cultura e a afirmação da identidade de seus povos e setores sociais, inclusive fortalecen-do a participação das mulheres e, em consonância com a autonomia, a capacidade de formação de seus próprios intelectuais.

No Brasil, existem particularidades a serem consideradas. O balanço da política educacional da dita-dura empresarial-militar e a construção de proposições alternativas a essas políticas foram realizados no âmbito da Conferência Brasileira de Educação (CBE), em 1986, constituída basicamente por entidades acadêmicas da área de educação, por professores e estudantes. Neste espaço, foi constituída uma agenda heterogênea, composta de proposições liberais republicanas e por proposições em que a agenda repu-blicana estava mesclada por teses socialistas, como o debate sobre a escola unitária e o trabalho como princípio pedagógico.

Contudo, o primeiro salto qualitativo somente ocorreu cerca de dez anos depois com o Congresso Nacional de Educação (Coned). Florestan Fernandes, que infelizmente faleceu antes do I Coned, via nessa construção a possibilidade de um “novo ponto de partida” capaz de agregar os trabalhadores da educação (já assim compreendidos) e as demais frações das classes trabalhadoras. Esse viés afastou enti-dades acadêmicas como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) cuja diretoria, em 1996, chegou a cogitar renunciar se a assembleia geral da entidade aprovasse a sua partici-pação no Coned. A convocatória do congresso foi realizada principalmente pelas entidades sindicais que, na época, estavam filiadas à Central Única dos Trabalhadores (CUT), notadamente Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Confederação Nacional dos Trabalhado-res em Educação (CNTE), Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-Administrativo em Ins-tituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra) e Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe), sindicatos que realmente protagonizaram as

31 Leher, Roberto. Educação, formação e conflitos sociais: por uma autopedagogia libertária. Outro Brasil, 2004. Disponível em:<http://www.lpp-uerj.net/outrobrasil/docs/1352005174113_roberto_dezembro_2004.pdf>.

32 Zibechi, Raúl. Los movimientos sociales latinoamericanos: tendencias y desafios. Revista do Osal, n. 9, Buenos Aires, 2003.

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maiores lutas e enfrentamentos às medidas de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, o Coned não se converteu em um congresso do conjunto da classe trabalhadora engajada na luta pela educação pú-blica. Entre os principais limites: a persistência de muitos parâmetros liberais-democráticos no FNDEP; a concepção econômico-corporativa da maior parte das entidades sindicais; o débil protagonismo da CUT no processo (cuja direção majoritária estava contra a criação de um Departamento Nacional dos Trabalhadores da Educação horizontalizado e organizado para possibilitar unidade de ação das entida-des da educação e das demais categorias) e, também, o relativo afastamento dos sindicatos da educação de movimentos sociais como o MST, e mesmo de sindicatos de outras categorias.

Isso não significa, contudo, que o Plano Nacional de Educação aprovado no II Coned (1997) não tenha logrado importantes avanços. A participação da base nos encontros foi muito significativa, cerca de cinco mil participantes em cada um dos congressos e, afinal, as proposições aprovadas estavam em aberta oposição à agenda neoliberal que se intensificara com Fernando Henrique Cardoso. Por isso, grande parte da esquerda educacional apoiou e se engajou no Coned.

É preciso salientar que mesmo esses avanços foram estilhaçados a partir da posse do governo Lula da Silva, em 2003. Ao encaminhar uma agenda educacional em grande parte antagônica ao PNE – Pro-posta da Sociedade Brasileira (Coned) –, os conflitos dos educadores com o governo Lula da Silva não tardaram a tensionar os sindicatos que permaneceram na CUT. Em função de distintas perspectivas de autonomia frente ao governo as forças majoritárias da CNTE, União Nacional dos Estudantes (UNE) e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) declararam, em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial, que não tinham mais consenso em relação à pauta do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública e, por isso, na prática, esse fórum deixou de funcionar como espaço aglutinador das lutas educacionais. No fulcro da discórdia o conflito entre as agendas dos sindicatos autônomos e as políticas do governo Lula da Silva, em especial: Programa Universidade para Todos (Prouni), Lei de Inovação Tecnológica, Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), Educação a Distância e inúmeros projetos de lei contrários ao PNE: Proposta da Sociedade Brasileira.

Embora em um contexto mais desfavorável em virtude do menor protagonismo dos trabalhadores em geral, se comparado aos anos 1980, foram possíveis algumas aproximações relevantes a partir de me-ados da presente década. É perceptível a aproximação de lutas universitárias com o MST, muitas vezes por meio de espaços de formação nas universidades e na Escola Nacional Florestan Fernandes.

Nesse contexto foi possível encaminhar a Jornada Nacional de Lutas pela Educação (20 a 24 de agosto de 2007) que reuniu uma vasta gama de entidades33. É preciso registrar que essa construção, por envolver as direções majoritárias da UNE e de outras entidades que se colocam na base de apoio do governo, foi marcada por tensões, sobretudo em relação aos termos da agenda de 18 pontos e à ima-gem pública da luta: de enfrentamento ao governo federal ou de defesa “genérica” da educação pública. Em virtude desse equilíbrio precário a campanha acabou perdendo força organizativa, tornando-se um evento que não assumiu a dimensão de um movimento classista pela educação pública. Apesar de seus limites a Jornada foi a iniciativa que mais aproximou as lutas brasileiras das demais lutas latino-ameri-

33 MST/Via Campesina, Andes-SN, Conlute, CMP, CMS, Conlutas, Consulta Popular, Contraponto, CPT, Abong, Círculo Palmari-no, DCE/PUC-PR, DCE/Ufba, DCE/UFPR, DCE/Ufse, DCE/Unibrasil, DCE/Unicamp, DCE/USP, Educafro, Denem, Enecos, Enef, Enefar, Enen/ Nutrição, Exneto/Terapia Ocupacional, Feab, FEMEH, Gaviões da Fiel, Intersindical, Juli-RP, Levante Popu-lar, MAB, MAIS-PT, Marcha Mundial de Mulheres, MCL, MMC, MMM, Movimento Correnteza, Movimento Mudança, MPA, MSU, PJR, Reped, Romper o Dia, Ubes,UJC, UJR, UJS, UEE, UEE-SP, UNE.

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canas, pois reuniu, em um mesmo espaço, os movimentos da educação e os movimentos antissistêmicos como o MST e outros.

Não surpreende que, a despeito do caráter incipiente dessa jornada, as principais entidades que vêm protagonizando lutas contra a ofensiva pró-sistêmica do governo federal e das entidades empresariais em relação à educação pública, estejam sofrendo forte ataque dos aliados governamentais. Entre estas enti-dades as mais diretamente combatidas são o MST e o Andes-SN, ambas concebidas como movimentos a serem criminalizados por sua ação política.

O MST, além de forte estrangulamento financeiro, foi alvo de intensa campanha difamatória pela grande imprensa, liderada pela revista Veja, que elegeu as atividades educacionais do movimento como um dos principais alvos. As acusações sustentaram que a educação das crianças nas escolas itinerantes e, mais amplamente, de seus militantes, na Escola Nacional Florestan Fernandes, objetivava formar revolucionários extremistas, em tudo semelhante à caracterização dos terroristas por Bush. Em 2008, procuradores do Estado do Rio Grande do Sul denunciaram o MST como entidade criminosa e terro-rista defendendo que o movimento deveria ser colocado na ilegalidade. A partir desse posicionamento, o governo do Rio Grande do Sul descredenciou todas as escolas itinerantes do Estado, buscando invia-bilizá-las. Posteriormente, a bancada ruralista no Congresso Nacional viabilizou a terceira Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para investigar o MST, objetivando torná-lo uma entidade proscrita.

O Andes-SN, por sua vez, também foi sistematicamente atacado por combater a conversão da edu-cação superior em educação terciária e denunciar as parcerias do governo com o setor empresarial-mer-cantil que lidera a educação superior brasileira e, notadamente, por seu engajamento na reconstrução de um polo de lutas classista, após a decisão congressual de desfiliação da CUT. Inicialmente, as ações governamentais objetivaram colocá-lo em uma situação de ilegalidade, por meio da suspensão de seu registro sindical, medida parcialmente removida após intensa mobilização política da entidade e de en-tidades solidárias. Ademais, por meio da CUT, o governo vem incentivando abertamente a criação de uma entidade paraoficial com o fim de ocupar o lugar do Andes-SN como representação dos docentes das instituições de ensino superior brasileiras. Em todas as mesas de interlocução com o Ministério da Educação e com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão a entidade paraoficial é convocada em detrimento do Andes-SN, apesar dos dirigentes da referida entidade oficialista terem sido sistema-ticamente derrotados nas urnas. Em suma, também nos embates pela educação é possível verificar a criminalização das lutas sociais.

A experiência das ofensivas do capital, evidente nas lutas pelo PNE, em que entidades corporativas patronais, como a CNI e Confederação Nacional de Agricultura (CNA), coalizões empresariais, como o Todos pela Educação, fundações estrangeiras vinculadas ao grande capital rentista, como a Open Society Foundations, liderada por George Soros, atuaram de modo intenso, possibilitando a visceral incorpora-ção da agenda do Todos pela Educação e da CNI nas políticas educacionais vigentes no país permitem concluir que os setores dominantes atuaram organizados como “classe para si” no terreno educacional. De outro lado, embora as lutas educacionais protagonizadas pelos trabalhadores sejam muito importan-tes, é forçoso reconhecer que não estão organizadas como lutas unificadas do conjunto polissêmico da classe trabalhadora.

De fato, as greves da educação básica que eclodiram de modo intenso a partir de 2011 em todos os Estados e nos principais municípios; a grande greve das universidades e dos Institutos Federais de Tec-nologia, em 2012; as lutas estudantis e, notadamente, o clamor da juventude que foi às ruas para afirmar que “educação não é mercadoria”, nas jornadas de junho de 2013, carecem da força da unidade de ação da classe. Essa avaliação levou um conjunto de entidades a sustentar como necessário um novo ponto de partida para as lutas em defesa da educação pública que superasse as iniciativas anteriores, como o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. A avaliação compartilhada era de que seria necessário

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ampliar o escopo das lutas, incluindo outras organizações da classe trabalhadora, possibilitando unida-de de ação e a construção de uma agenda socialista para a educação pública: esses são os objetivos do Encontro Nacional de Educação.

Encontro Nacional de Educação: um novo ponto de partida para as lutas educacionaisApós a realização de mais de uma dezena de encontros regionais o Encontro Nacional de Educação

(ENE) foi realizado no Rio de Janeiro, nos dias 8, 9 e 10 de agosto de 2014, reunindo aproximadamente 2,3 mil participantes, provenientes de todo o país, agregando entidades nacionais e internacionais, como a União Nacional dos Educadores do Equador, SUD Éducation-Solidaires (França), a Rede em Defesa da Educação Pública das Américas (México) e o Sindicato dos Educadores da Cisjordânia.

Em função da importância do ENE para tornar pensável a luta de classes na educação brasileira atual, reproduzo a seguir os principais excertos de um artigo de minha autoria publicado no Correio da Cidadania com um primeiro balanço do encontro34.

Cabe observar que a convocatória partiu dos movimentos e organizações que já vinham construindo unidade de ação, embora localizada, nas grandes greves magisteriais da presente década.

Estudantes de diversos movimentos, em especial da Anel e da esquerda da UNE, professores e téc-nicos administrativos da educação básica (Sepe e diversos representantes de sindicatos e oposições de sindicatos da educação básica), da rede de educação Técnico e Tecnológica (Sinasefe) e superior (Andes--SN e representantes da Fasubra), movimentos sociais (MTST) (que realizou saudação na Marcha do dia 8/8), centrais (em especial a CSP-Conlutas e, com menor presença, a Intersindical), partidos de es-querda (PSOL, PSTU, PCR, PCB), todos atuaram na convocatória para o encontro motivados por um objetivo comum: construir as bases para consolidar a existência de um espaço comum de todos os que lutam pela educação pública, objetivando garantir unidade de ação para unificar greves, jornadas de lutas, diagnósticos sobre a situação da educação, iniciativas editoriais e de organização de uma agenda que expresse os fundamentos da educação pública na perspectiva da classe trabalhadora, objetivando assegurar um real universalismo no direito à educação.

No que se refere à educação foi o maior encontro desde os congressos nacionais de Educação, rea-lizados entre 1996 e 2005. O encontro teve representatividade relevante, em especial em decorrência do fato de ter sido realizado poucos meses antes de uma eleição de grande envergadura (em outubro de 2014) que definiria a composição do parlamento, dos governos estaduais e da presidência da república (período em que muitos militantes estão empenhados no fortalecimento de seus coletivos no processo eleitoral). Entretanto, é necessário reconhecer que muitas outras organizações e movimentos poderiam ter sido convidados a compor esse movimento, a exemplo do MST.

O ENE logrou debater pontos axiais das lutas do presente:Em grupos de trabalho, os participantes debateram os grandes temas estruturantes do futuro da educação pública, como: financiamento, privatização e mercantilização, assistência estudantil/passe livre, precariza-ção do trabalho, avaliações produtivistas, acesso e permanência, buscando sínteses e consensos nas análises.

O encontro não perdeu de vista a necessidade de enfrentar os setores dominantes entrincheirados na sociedade civil:

Por meio de coalizões entre as frações burguesas dominantes, como o ‘Todos pela Educação’, no Brasil, e ‘Mexicanos, Primeiro’, no México, os respectivos blocos no poder buscam reconfigurar a educação básica e

34 Leher, R. Encontro Nacional de Educação: um acontecimento para mudar as lutas em defesa da educação pública. Correio da Cida-dania, 15/8/2014. Disponível em: <http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9942:submanchete150814&catid=72:imagens-rolantes>.

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profissional de modo a garantir uma socialização das crianças e jovens compatível com o espírito do capi-talismo (...).

E, sobretudo, que, no caso brasileiro, é preciso enfrentar o modo como a agenda do capital “se faz Estado”, incorporando na legislação educacional do país, como se fossem públicas, as proposições do capital para a educação:

(i) os eixos gerais do Todos pela Educação (avaliações produtivistas, estabelecimento de metas, expropria-ção do trabalho docente, financiamento a partir do número de indivíduos, associado ao desempenho das escolas); (ii) as demandas particulares das entidades que o constitui, como a CNI (Senai), a CNC (Senac) e a CNA (SNAR), respectivamente pelo Pronatec e Pronacampo e, (iii) no que se refere à educação superior, incorpora integralmente as reivindicações do setor privado-mercantil, ampliando e institucionalizando as isenções tributárias para as corporações com fins lucrativos (ProUni), subsidiando a compra de vagas na graduação e na pós-graduação brasileira (Fies) e, no plano internacional, adquirindo vagas temporárias em instituições de ensino superior estrangeiras, também com verbas públicas (Ciência Sem Fronteiras).

O ENE destacou a aprovação do PNE (Lei 13.005/2014), colocando em relevo os seus principais problemas:

Não apenas a meta dos 10% do PIB para a educação foi remetida para longos 10 anos, para 2024, como, desastrosamente, o Art.5, §4 da referida lei possibilita contabilizar como se fossem públicos os gastos com as corporações internacionais, os bancos e os fundos de investimentos que vendem educação técnica e superior no Brasil e no exterior (Ciência Sem Fronteiras), assim como os gastos com bolsas para o setor privado, as isenções tributárias e toda sorte de parcerias público-privadas, o novo léxico da privatização em curso. Com o novo PNE, está aberto o caminho para a reconfiguração da educação pública por meio da conversão das escolas públicas estatais em escolas charter, financiadas com verbas públicas, mas administradas e dirigidas pedagogicamente por grupos econômicos, assim como para a generalização dos vouchers, tal como no Chi-le, no período Pinochet, nos termos dos modelos elaborados pela Escola de Chicago: as famílias recebem o cheque (voucher) e escolhem “livremente” o tipo de escola em que seus filhos irão estudar. Os mais pobres terão de se contentar com escolas que somente vivem dos referidos vouchers, os que possuem melhor condição econômica poderão “escolher” complementar o valor dos seus cheques e matricular seus filhos nas escolas privadas. Não resta dúvida de que a agenda do Todos pela Educação e, por isso, a agenda do próprio Governo Federal, com o PNE, caminha nessa direção.

Considerando a nova composição do Congresso Nacional eleito em 2014, a agenda educacional que orientou o debate dos dois candidatos que se enfrentaram no segundo turno (Pronatec, defesa da in-fluência do Sistema S na formação, meritocracia) e o aprofundamento da crise estrutural em 2015, os conflitos pela escola pública serão, certamente, mais ásperos e acirrados, em virtude dos cortes orçamen-tários, objetivando a elevação do superavit primário. O aparato de formação profissional, com o Prona-tec à frente (mas também nas universidades), incidirá muito intensamente sobre a formação do exército industrial de reserva para fazer despencar os modestos ganhos salariais obtidos por várias categorias no ciclo expansivo do capital. As corporações educacionais, sob controle dos fundos de investimentos, por sua vez, seguirão ávidas por mais recursos públicos. Como assinalado pelo referido texto de avaliação: “Diante dessas ofensivas, haverá uma compressão temporal que não pode ser desconsiderada pelo ENE, sob risco de perder o acúmulo político conquistado”.

O que o ENE sinaliza de novo nas lutas pela educação pública é que os movimentos, sindicatos e demais protagonistas não poderão se limitar a reagir diante da ofensiva dos governos e do capital, mas, antes, lutar contra essas ofensivas, afirmando uma nova agenda para a educação pública:

A urgência de um congresso é justificada também pela necessidade de delinear uma outra perspectiva edu-cacional para a educação pública. Houve uma severa descontinuidade temporal provocada pela repressão da ditadura empresarial-militar que pretendeu silenciar as contribuições da educação popular de Freire, em especial os nexos entre educação e conscientização, entre educação e práxis política, notadamente a partir

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dos seus trabalhos de 1965, assim como interditar as proposições de Florestan Fernandes sobre a educação pública e sua formulação sobre a educação para e no socialismo. (...) As propostas do Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira foram avançadas e justas para a conjuntura do período (1996, objetivando mitigar a derrota da LDB), focalizando uma agenda liberal-democrática que, em virtude da ofensiva mercantil, já não responde às necessidades atuais da luta antimercantil, como, aliás, o MST já havia sinalizado com a sua Pedagogia do Movimento. As lutas em curso não lograram forjar uma outra perspectiva para a educação pública e essa é uma tarefa que terá de ser edificada pelos próprios protagonistas das lutas pela educação pública. Sem isso, a agenda econômico-corporativa seguirá servindo como um centro de gra-vidade que não possibilita outros caminhos.

A ampliação do encontro, por meio de um congresso, é necessária para que aceleração da formação de um novo arco de forças seja rápida e objetiva.

Se um objetivo estratégico é construir uma nova perspectiva para a educação pública, o trabalho político com o MST é de crucial importância. Diria, de importância decisiva. O nexo que une o passado da educação popular com o presente foi revitalizado pelos movimentos sociais que mantiveram a chama acesa da peda-gogia política. Ademais, a luta do MST contra o fechamento de mais de 38 mil escolas na última década é necessariamente uma luta da classe trabalhadora.

Uma frente crucial: o financiamento da educação públicaA reorganização dos setores que lutam pela educação pública é imperiosa para fazer o enfrentamento

do financiamento, objetivando suprimir o referido inciso que permite o uso de recursos públicos com o setor privado. Além dos aspectos já apontados no ENE, outros aportes são necessários para enfrentar o problema do financiamento público da educação. Inicialmente, cabe salientar que sequer os 10% se-rão uma realidade no decênio, pois, admitindo a hipótese otimista de que em todos os anos haverá um acréscimo de 0,5% do PIB, e no último ano de 9% para 10% do PIB, a média de gastos no período se-ria de 7,3% do PIB, protelando, novamente, o cumprimento da meta para o próximo PNE, no período 2025-2035.

Outro problema é o Custo Aluno Qualidade Inicial. A despeito de seu objetivo de aperfeiçoar o pre-cário financiamento da educação pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), a estratégia do custo-aluno é desastrosa para as escolas do campo, tendo em vista que, obviamente, as mesmas possuem número reduzido de estudan-tes: poucos alunos corresponde a poucos per capita e, portanto, a poucos recursos. O financiamento por meio de fundos (Fundef, depois Fundeb) explica, em parte, o fechamento de mais de 38 mil escolas no último decênio. Com efeito, a lógica de financiamento pelo número de indivíduos matriculados retira da agenda o financiamento global das unidades escolares, pois focaliza os per capita. A despeito do fato de que os Estados e municípios são os entes que possuem rede de educação básica, sequer são menciona-dos na discussão do valor Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi)35.

35 (Meta 20.6) no prazo de 2 (dois) anos da vigência deste PNE, será implantado o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) referenciado no conjunto de padrões mínimos estabelecidos na legislação educacional e cujo financiamento será calculado com base nos respec-tivos insumos indispensáveis ao processo de ensino-aprendizagem e será progressivamente reajustado até a implementação plena do Custo Aluno Qualidade (CAQ); 20.7) implementar o Custo Aluno Qualidade (CAQ) como parâmetro para o financiamento da educação de todas etapas e modalidades da educação básica, a partir do cálculo e do acompanhamento regular dos indicadores de gastos educacionais com investimentos em qualificação e remuneração do pessoal docente e dos demais profissionais da educação pública, em aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino e em aquisição de material didático-escolar, alimentação e transporte escolar; (Meta 20.8) O CAQ será definido no prazo de 3 (três) anos e será continuamente ajustado, com base em metodologia formulada pelo Ministério da Educação (MEC), e acompanhado pelo Fórum Nacional de Educação - FNE, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelas Comissões de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e de Educação, Cultura e Esportes do Senado Federal.

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Outro aspecto a ser examinado por sua repercussão na organização da educação é o objetivo da Es-tratégia 20.1136 de instituir a Lei de Responsabilidade Educacional. No lugar da responsabilidade do ente federativo em assegurar as condições materiais, por meio de financiamento, carreira, gestão demo-crática, infraestrutura em geral, o PNE vincula a responsabilidade ao cumprimento de metas do Ideb, uma medida desastrosa, pois interdita qualquer possibilidade de um município ou Estado apostar na qualidade social, considerando a situação concreta dos estudantes; ao contrário, a referida lei objetiva pressionar os gestores municipais e estaduais a ajustar as suas escolas aos descritores de competências do Ideb, tornando a subordinação das redes ao TPE ainda mais estrutural sob pena de serem sancionados negativamente. O eixo não é o direito à educação, mas a distribuição das oportunidades educacionais, nos termos da agenda neoliberal.

Ainda em relação ao financiamento, os movimentos e o ENE em especial, estão desafiados a enfren-tar a falta de meios objetivos para assegurar os 10% do PIB para a educação pública. Além da revogação do referido §4 (do Art.5, Lei 13.005/14), da redefinição da metodologia de financiamento a partir de per capita, e da luta contra os objetivos da Lei de Responsabilidade Educacional, é necessário denunciar que a Lei não prevê fontes orçamentárias que viabilizem os 10% do PIB, aumento imprescindível para elevação das verbas educacionais de modo que o gasto por aluno/ano, atualmente equivalente a 1/3 da média dos países da OCDE, possa ser ampliado de modo efetivo.

Embora o uso do PIB como parâmetro de investimentos educacionais seja problemático, pois o obje-tivo estratégico das lutas sociais não é elevar o PIB, índice que incorpora a lógica capitalista destrutiva, o seu uso se justifica como medida tática, pois permite comparações internacionais e define uma ordem de grandeza para os gastos educacionais.

Em 2013, o PIB brasileiro foi de R$ 4,8 trilhões; 10% deste montante totalizam R$ 480 bilhões. Admitindo que atualmente os recursos públicos para educação equivalham a 5% do PIB, a Lei deveria indicar como obter receitas equivalentes a R$ 240 bilhões. Necessariamente, os recursos adicionais te-riam de ser alocados pela União, visto que dos 5% do PIB, a União somente é responsável por 1% do PIB, embora detenha mais de 65% das receitas tributárias. Cabe lembrar que somente 40% das receitas da União provêm de impostos (a base de cálculo para os 18% das receitas líquidas de impostos defi-nidas pelo Art. 212 da Constituição), enquanto nos Estados os impostos correspondem a 85% e, nos municípios, a 93%. A previsão de que a receita dos royalties do petróleo poderá cobrir a diferença não se sustenta, pois o modelo de concessão restringe a base de cálculo a meros 15% do petróleo extraído e, por isso, em 2013, conforme a Agência Nacional do Petróleo, o total de royalties foi de R$ 33 bilhões. Considerando que 75% destes devem estar destinados a educação, teremos receitas de R$ 25 bilhões (0,5% do PIB). Nada é dito sobre os outros 4,5% do PIB que serão necessários. A se confirmar as pro-messas de ajustes nos gastos públicos em 2015, objetivando ampliar o superavit primário, está claro que somente com luta política “a quente” e fundamentada será possível alterar o quadro de degradação do setor educacional público.

Conclusões preliminaresNo presente artigo foi argumentado que os setores dominantes possuem vivo interesse na educação

da massa dos trabalhadores. Mas por serem dependentes e associadas ao núcleo imperialista as frações no bloco de poder não podem levar adiante um projeto para a nação e, mais especificamente, um projeto

36 (Meta 20.11) aprovar, no prazo de 1 (um) ano, Lei de Responsabilidade Educacional, assegurando padrão de qualidade na educação básica, em cada sistema e rede de ensino, aferida pelo processo de metas de qualidade aferidas por institutos oficiais de avaliação educacionais.

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para a educação pública brasileira. Por conseguinte, o futuro da educação pública está nas mãos da classe que vive de seu próprio trabalho. Por serem inaceitáveis para o bloco no poder, as reformas educacionais desejadas pelos trabalhadores precisam se dar nos marcos da “revolução dentro da ordem”, como parte da estratégia da “revolução fora da ordem”, nos termos de Florestan Fernandes37.

O verdadeiro assalto das entidades empresariais ao aparato educacional do Estado, ofensiva que conta com o apoio do governo federal por meio do Plano de Desenvolvimento da Educação, objetiva criar um horizonte pró-sistêmico para a educação brasileira. Desde a forma de diagnosticar os problemas edu-cacionais, a partir de sistemas ditos científicos de avaliação centralizada, até as reformas curriculares, formação de professores e estratégias de gestão da escola, todas essas medidas estão inscritas na agenda do movimento liderado pelas corporações, conforme já assinalado. Hoje, mais do que em qualquer ou-tro período, não é possível reverter esse quadro apenas com as lutas estritamente educacionais, levadas a cabo por trabalhadores da educação e estudantes. Somente no contexto das grandes jornadas antissis-têmicas essas lutas podem ter efetividade, daí a atualidade de Florestan Fernandes quando propugnava ser necessário um novo ponto de partida para as lutas educacionais.

O estudo e o diálogo com os movimentos sociais que têm realizado as lutas mais importantes per-mitem constatar que estes têm se empenhado na produção autônoma de conhecimento original, capaz de criticar os fundamentos da vida capitalista e apontar alternativas para além da sociedade do capital. Um traço comum entre muitos desses movimentos é a definição de que, em função da gritante assime-tria de forças e de meios operativos entre os setores populares e os dominantes, a prioridade é que cada militante possa ser um organizador da atividade política, potencializando as ações diretas, a democracia direta e o debate estratégico.

Entretanto, para fortalecer a formação política do conjunto da classe trabalhadora é preciso que as instituições educacionais possam ser forjadas como espaços para diagnosticar e solucionar os grandes problemas nacionais. Por isso, também os movimentos disputam a educação. Mas não basta garantir o acesso à escola pública. Urge uma revisão profunda das formas de pesquisar e de produzir o conhe-cimento. Sem uma crítica radical ao eurocentrismo e à sua forma atual – o pensamento único – a edu-cação serve de arma a favor dos setores dominantes. A crítica ao capitalismo dependente somente será possível fora das teias das ideologias dominantes atuais. Esse é um desafio teórico que não será resolvido nos espaços intramuros da universidade requerendo, obrigatoriamente, novos diálogos da universidade com os protagonistas das lutas, diálogos que servem de base para novas práxis emancipatórias.

No caso brasileiro, muito ainda está por ser feito para que os milhões de insubordinados e insatis-feitos com a ordem social que empurra a humanidade para a barbárie possam ter essas oportunidades de autoconstrução de espaços formativos originais, densos teoricamente, ousados no enfrentamento dos problemas. Os desafios são políticos, teóricos, organizativos e pedagógicos. Mas, como lembra Marx, os humanos se colocam problemas que, potencialmente, podem ser resolvidos. Em tempos de crise, ocorre uma aceleração do tempo, muitas das fortalezas do capital apresentam fraturas e, pelo vigor demonstra-do pelos movimentos nos distintos espaços de formação política, brechas estão sendo anunciadas. Todo empenho na construção unitária da formação e de grandes jornadas em prol da educação pública são imprescindíveis!

37 Fernandes, F. O que é revolução? São Paulo: Brasiliense, 1981.

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FORUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO – MANIFESTO À SOCIEDADE BRASILEIRA

As entidades integrantes do Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), reunidas de 15 a 17 de agosto de 2012, em Brasília, com a participação de 16 (dezesseis) movimentos e organizações sociais e sindicais do campo brasileiro e 35 (trinta e cinco) instituições de ensino superior, para realizar um ba-lanço crítico da Educação do Campo no Brasil, decidiram tornar público o presente manifesto:

1. a Educação do Campo surge das experiências de luta pelo direito à educação e por um projeto po-lítico pedagógico vinculado aos interesses da classe trabalhadora do campo, na sua diversidade de povos indígenas, povos da floresta, comunidades tradicionais e camponesas, quilombolas, agricultores fami-liares, assentados, acampados à espera de assentamento, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos e trabalhadores assalariados rurais;

2. a Educação do Campo teve como ponto de partida o I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (I Enera) em 1997, e o seu batismo aconteceu na I Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo realizada em 1998, reafirmada nos eventos que vieram a sucedê-los. O eixo principal do contexto de seu surgimento foi a necessidade de lutas unitárias por uma política pública de Educação do Campo que garantisse o direito à educação às populações do campo e que as experiências político-pedagógicas acumuladas por estes sujeitos fossem reconhecidas e legitimadas pelo sistema pú-blico nas suas esferas correspondentes;

3. deste processo de articulação e lutas algumas conquistas dos trabalhadores camponeses organiza-dos merecem destaque: a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera); as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo (2002); a Licenciatura em Edu-cação do Campo (Procampo); o Saberes da Terra; as Diretrizes Complementares que instituem normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da educação básica do campo (2008); o reconhecimento dos dias letivos do tempo escola e tempo comunidade das instituições que atuam com a pedagogia da alternância (Parecer 01/2006 do CEB/CNE), a criação dos Observatórios de Educação do Campo, além da introdução da Educação do Campo nos grupos e linhas de pesquisa e extensão em muitas universidades e institutos, pelo país afora e o Decreto n. 7.352/2010, que institui a Política Nacional de Educação do Campo;

4. a Educação do Campo nasceu no contraponto à Educação Rural, instituída pelo Estado brasileiro, como linha auxiliar da implantação de um projeto de sociedade e agricultura subordinado aos interesses do capital, que submeteu e pretende continuar submetendo a educação escolar ao objetivo de preparar mão de obra minimamente qualificada e barata, sem perspectiva de um projeto de educação que contri-bua à emancipação dos camponeses;

5. o Estado brasileiro, nas diferentes esferas (federal, estadual e municipal), na contramão do acúmulo construído pelos sujeitos camponeses volta hoje a impor políticas que reeditam os princípios da educação rural, já suficientemente criticados pela história da educação do campo, associando-se agora aos interesses

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do agronegócio e suas entidades representativas (CNA, Abag e Senar). Este projeto produz graves consequ-ências para o país, como miséria no meio rural e a consequente exclusão de grandes massas de trabalhado-res, a concentração de terra e capital, o fechamento de escolas no campo, o trabalho escravo, o envenena-mento das terras, das águas e das florestas. Esse projeto não serve aos trabalhadores do campo;

6. a Educação do Campo está vinculada a um projeto de campo que se constrói desde os interesses das populações camponesas contemporâneas. Portanto está associada à reforma agrária, à soberania ali-mentar, a soberania hídrica e energética, à agrobiodiversidade, à agroecologia, ao trabalho associado, à economia solidária como base para a organização dos setores produtivos, aos direitos civis, à cultura, à saúde, à comunicação, ao lazer, a financiamentos públicos subsidiados à agricultura familiar camponesa desde o plantio até à comercialização da produção em feiras livres nos municípios e capitais numa rela-ção em aliança com o conjunto da população brasileira;

7. vivemos no campo brasileiro uma fase de aprofundamento do capitalismo dependente associado ao capital internacional unificado pelo capital financeiro (Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC), Transnacionais da Agricultura (Monsanto, Syngenta, Stora Enzo...), com o suporte direto do próprio Estado brasileiro para a produção de commodities. Tudo isso legitimado por leis (Có-digo Florestal, lei dos transgênicos...) que, facilitam o saque e a apropriação de nossos recursos naturais (terra, água, minérios, ar, petróleo, biodiversidade) e recolonizam nosso território;

8. movido pela lógica de uma política econômica falida pela vulnerabilidade externa e pelo endivi-damento interno que compromete 45% do orçamento brasileiro, o Governo impõe severas medidas de contingenciamento de recursos da reforma agrária, saúde e educação. Os resultados para a população camponesa é a desterritorialização progressiva das comunidades. Esse quadro se agrava ainda mais pela deslegitimação da participação popular na implementação e execução das políticas públicas;

9. a partir de uma reivindicação histórica das organizações de trabalhadores que integram a luta por um sistema público de Educação do Campo, projetado a partir do Decreto n. 7.352 de 2010, mas con-trariando e se contrapondo às reivindicações dos sujeitos que por ele continuam lutando, o MEC lançou, em março de 2012, o Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo). Do que já foi possível ter acesso a esse programa até o presente momento, reconhecemos algumas respostas positivas às nossas reivindicações, porém insuficientes para enfrentar o histórico desmonte da educação da população do campo.

Assim, denunciamos como aspectos especialmente graves, os seguintes: i. a implementação do Pronacampo atenta contra os próprios princípios da LDB, ao não instituir a

gestão democrática e colocando apenas o sistema público estatal (estadual e municipal) como partícipe do programa, ignorando experiências de políticas públicas inovadoras e de sucesso, que reconheceram e legitimaram o protagonismo dos sujeitos do campo na elaboração de políticas públicas como sujeitos, não apenas beneficiários;

ii. o Programa aponta para um desvirtuamento das propostas apresentadas, especialmente em relação à educação profissional e à formação de educadores, se realizada através da modalidade de Educação a Distância;

iii. é gritante e ofensiva ao povo brasileiro a ausência de uma política de Educação de Jovens e Adul-tos, especialmente de alfabetização de jovens e adultos e de Educação Infantil para o campo;

iv. não reconhecemos a proposta do Pronatec Campo elaborada pelo Senar/CNA, pelo projeto de campo que representa e porque como política o Pronatec ignora as experiências de educação profissional realizadas por instituições como Serta, MOC, Iterra, Escolas Famílias Agrícola (EFAs), Casas Familia-res Rurais (CFRs) e pelo próprio Pronera em parceria com os Institutos Federais, entre outras;

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v. não reconhecemos igualmente, a proposta de formação de educadores, a ser feita pela UAB, porque a formação de educadores a distância, especialmente a formação inicial é considerada um fracasso pelas próprias instituições dos educadores, como a Anfop, além do que desconsidera também o acúmulo das organizações sociais, sindicais e universidades na formação presencial de educadores do campo;

vi. denunciamos, com veemência, o esvaziamento dos espaços de diálogo e construção de políticas públicas com a presença dos movimentos e organizações sociais e sindicais do campo no âmbito do Mi-nistério da Educação, secundarizando e negando a construção coletiva como princípio da Educação do Campo.

Em vista destas denúncias, apresentamos nossas proposições: 1) redirecionamento imediato pelo Ministério da Educação, do processo de elaboração e implemen-

tação do Pronacampo e suas ações, reconhecendo e legitimando os sujeitos da Educação do Campo, na sua diversidade, em âmbito federal, estadual e municipal;

2) definição de políticas que visem à criação de um sistema público de Educação do Campo que assegure o acesso universal a uma educação de qualidade, em todos os níveis, voltada para o desenvolvi-mento dos territórios camponeses, na diversidade de sujeitos que os constituem;

3) resgate do protagonismo dos movimentos/organizações sociais e sindicais do campo na proposição e implementação das políticas públicas e dos programas federais, estaduais e municipais de educação;

4) elaboração de políticas públicas que tenham como base um projeto popular para a agricultura brasileira, as experiências dos movimentos e organizações sociais e sindicais e os princípios da Educação do Campo;

5) revogação do dispositivo do Acórdão do TCU ao Pronera, que proíbe que os projetos dos cursos formais mencionem as organizações legítimas do campo como Contag, MST e outras, na condição de instituições demandantes e participantes dos projetos;

6) ampliação das metas de construção de escolas no campo, uma vez que as apresentadas são tímidas diante das 37 mil escolas fechadas nos últimos anos;

7) elaboração de um plano de construção, reforma e ampliação de escolas, bem como a adaptação das estruturas físicas a fim de atender as crianças e jovens do campo, as pessoas com deficiências, além de bibliotecas, quadras esportivas, laboratórios, internet, entre outras. Garantia de transporte escolar intracampo e de qualidade, para o deslocamento dos estudantes com segurança;

8) solução imediata e massiva para o analfabetismo no campo, articulado a um processo de escola-rização básica;

9) elaboração de uma política de Educação Infantil do Campo;10) fortalecimento e criação de Núcleos de Estudos e Observatórios de Educação do Campo nas

universidades e institutos, a fim de realizar programas de extensão, pesquisas, cursos formais, formação continuada de educadores/as, apoiando e construindo, com os sujeitos do campo, a educação da classe trabalhadora camponesa.

Este manifesto foi reafirmado e apoiado pelos participantes do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, realizado em Brasília nos dias 20 a 22 de agosto de 2012.

Educação do Campo: por Terra, Território e Dignidade!

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95Parte 2 – Eixo temático: Educação no MST

MST E EDUCAÇÃO1

Edgar Jorge Kolling Maria Cristina VargasRoseli Salete Caldart

A educação entrou na agenda do MST pela infância. Antes mesmo da sua fundação, em 1984, as famílias sem terra, acampadas na Encruzilhada Natalino, Rio Grande do Sul (1981), perceberam a edu-cação da infância como uma questão, um desafio.

A necessidade do cuidado pedagógico das crianças dos acampamentos de luta pela terra e certa in-tuição já das primeiras famílias em luta sobre ser a escola e o acesso ao conhecimento um direito de todos foram, portanto, o motor do surgimento do trabalho com educação no MST. Isso se compreende considerando uma das características da forma de luta pela terra deste movimento camponês, que é a de ser feita por famílias inteiras, o que acaba gerando mais rapidamente outras demandas que não apenas a conquista da terra propriamente dita. No início as ações foram levadas à frente especialmente pela ini-ciativa e sensibilidade de algumas professoras e mães presentes nos acampamentos.

A história da educação no MST tem relação direta com o percurso do Movimento como um todo. Não é possível entender o surgimento do MST sem compreender as características da formação social brasileira, que não pode prescindir de fazer a reforma agrária, mesmo em moldes capitalistas. Do mesmo modo, também não é possível entender porque o MST entra no trabalho com educação, e notadamente com educação escolar, sem ter presente, além das características de sua luta, a realidade educacional de um país que ainda não conseguiu garantir a universalização do acesso à educação básica.

O MST, movido pelas circunstâncias históricas que o produziram, foi tomando decisões políticas que aos poucos compuseram sua forma de luta e de organização coletiva. Uma dessas decisões foi a de organizar e articular o trabalho de educação das novas gerações por dentro de sua organicidade e desde essa intencionalidade elaborar uma proposta pedagógica específica para as escolas dos assentamentos e acampamentos, bem como formar seus educadores. O Encontro Nacional de Professoras dos Assenta-mentos, realizado em julho de 1987, em São Mateus, no Espírito Santo, que formaliza a criação de um Setor de Educação do MST coincide com o período de estruturação e consolidação do MST como uma organização nacional.

Este texto pretende fazer uma caracterização geral do trabalho de educação no MST, que completa 27 anos em 2011, destacando elementos principais de sua atuação e da concepção de educação que vem construindo/afirmando em seu percurso.

Uma característica de origem e de desenho deste trabalho, também como traço do projeto de reforma agrária do MST, é de fazer a luta por escolas públicas dentro das áreas de assentamentos e acampamentos. Quase ao mesmo tempo em que começou a lutar pela terra, o MST, através das famílias acampadas e depois assentadas, começou a lutar pelo acesso dos Sem Terra à escola. Organizar essa luta foi o objetivo principal da criação de um setor de educação no Movimento.

1 Publicado em: Caldart, R. S.; Pereira, I. B.; Alentejano, P. e Frigotto, G. (orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: EPSJV/Expressão Popular, 2012, p. 500-507.

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No início, década de 1980, a visão da necessidade e do direito ia até a educação fundamental para crianças e adolescentes. Aos poucos, década de 1990, foi aparecendo com mais força a questão da al-fabetização e logo da educação de jovens e adultos, que em experiências pontuais também já acontecia desde os primeiros acampamentos. Depois veio a preocupação e o trabalho com a educação infantil e mais recentemente com a educação universitária. Com a educação de nível médio o trabalho começou com cursos alternativos para formação dos professores das escolas conquistadas e logo se estendeu à formação de técnicos para as experiências de cooperação dos assentamentos. No final dos anos 1990 e início dos anos 2000 começaram as lutas específicas pelo ensino médio nas áreas de reforma agrária, ou mais amplamente pela conquista de escolas de educação básica, incluindo todas as suas etapas, hoje ainda desafio em muitos lugares.

Em dados estimados pelo MST sua conquista até aqui foi de aproximadamente 1.800 escolas pú-blicas (estaduais e municipais) nos seus assentamentos e acampamentos, das quais 200 são de ensino fundamental completo e em torno de 50 vão até o ensino médio, nelas estudando em torno de 200 mil crianças, adolescentes, jovens e adultos Sem Terra. Nesse período o MST ajudou a formar boa parte dos mais de 8 mil educadores que atuam nessas escolas. Também desencadeou um trabalho de alfabetização de jovens e adultos, envolvendo em 2011 mais de 8 mil educandos e 600 educadores. Desenvolve práti-cas de educação infantil em seus cursos, encontros, acampamentos e assentamentos. Vem desenvolvendo em torno de 50 turmas de cursos técnicos de nível médio e superiores em parceria com universidades e institutos federais, em um total próximo a 2 mil estudantes.

O balanço dessa luta feito pelo MST tem destacado especialmente: – foi praticamente universalizado o acesso das crianças assentadas aos anos iniciais do ensino fundamental, acompanhando os dados da educação nacional, o que certamente não teria acontecido se as famílias tivessem aceitado a lógica do transporte escolar, pressão que continua até hoje na implantação de cada assentamento; – toda vez que se conquista uma escola de educação básica em um assentamento ou acampamento ela representa menos adolescentes e jovens do campo fora da escola, e mais gente enraizada em seu próprio lugar (mas escolas que abranjam toda a educação básica ainda são um desafio na maioria das áreas de reforma agrária); – através desta luta se forma a consciência do direito à educação e a noção de público entre as famílias o que, em uma sociedade de classes como a nossa, é fundamental para garantir políticas públicas de inte-resse dos trabalhadores; – em muitos lugares se conseguiu com esta luta específica recolocar a questão da educação da população do campo na agenda de secretarias de educação, de conselhos estaduais, do próprio MEC; – aprendeu-se e ensinou-se neste processo que a escola tem que estar onde o povo está, e que os camponeses têm o direito e o dever de participar da construção do seu projeto de escola (MST, 2004, p. 13).

Aos poucos o MST passou a entender que o avanço de suas conquistas dependia da pressão por polí-ticas públicas para o conjunto da população trabalhadora do campo. Especialmente para conseguir es-colas de ensino fundamental completo e de ensino médio era preciso uma articulação maior com outras comunidades do campo, porque isso demanda uma pressão mais forte sobre secretarias de educação e a sociedade política em geral. As experiências de pensar escolas como polos regionais entre assentamentos e com estudantes de outras comunidades de camponeses aos poucos vão educando o olhar dos trabalha-dores Sem Terra para uma realidade mais ampla. Foi assim que o MST chegou à Educação do Campo.

Uma segunda característica que identifica o trabalho de educação do MST é a constituição de coletivos desde o nível local até o nacional. A tarefa de mobilização e de reflexão sobre a escola nos acampamentos e assentamentos iniciou com a organização das chamadas equipes de educação, geralmente compostas pe-las educadoras e outras pessoas da comunidade que demonstravam “jeito” para essa questão. Não demo-

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rou muito para que essas equipes locais fossem transformadas em uma articulação das áreas de reforma agrária entre si, ampliando-se para regiões, chegando à constituição dos coletivos estaduais de educação e depois a um coletivo nacional de educação do MST.

Os coletivos de educação, com tarefas, força orgânica e discussões específicas que podem variar a cada período, fortalecem o princípio organizativo de que a questão da educação, bem como outras ques-tões da vida social assumidas pelo MST, deve ser pensada e implementada de forma coletiva. Uma lógi-ca que implica em tarefas a serem realizadas pelas pessoas, mas a partir de um planejamento e de uma leitura de conjuntura feita por um coletivo.

Uma terceira característica do trabalho de educação do MST tem sido a prioridade dada à formação de educadores da reforma agrária, começando pela preparação de pessoas das próprias comunidades para atuar nas escolas públicas que iam sendo conquistadas. Ainda que chamadas de “professoras leigas” na linguagem educacional oficial, a ausência de titulação não as impediu de participar do processo coletivo de produção do projeto político-pedagógico que passou a ser defendido pelo MST. Aos poucos foram sendo incorporadas também pessoas de fora das comunidades e do Movimento, sempre que dispostas a assumir o projeto educativo em construção.

O MST avalia que foi um acerto histórico ter no início apostado na formação de educadores inter-nos porque isso ajudou a garantir as escolas nos assentamentos, e principalmente nos acampamentos, que por falta de professores da rede pública dispostos a trabalhar nessa realidade, poderiam não passar de uma conquista ilusória. E talvez tenha sido justamente a fragilidade do trabalho inicial o que exigiu uma discussão mais coletiva sobre a concepção de escola e o próprio envolvimento do MST como orga-nização na formação de educadores, muitas vezes disputando esta formação com órgãos do Estado. En-volvimento que se desdobrou depois na luta por iniciativas de escolarização e formação específica para professores que atuam no conjunto das escolas do campo, como o que se realiza hoje em cursos como o de Licenciatura em Educação do Campo (MST, 2004, p. 16).

O MST desenvolve cursos formais de formação de educadores desde 1990, primeiro de nível médio (Magistério, hoje Normal Médio) e a partir de 1998, também de nível superior, como o curso Peda-gogia da Terra. O trabalho do MST na formação de educadores foi reconhecido pelo Unicef em 1995, com o Prêmio Educação e Participação. Com o impulso desse reconhecimento foi realizado o I Enera (Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária) em julho de 1997, uma espécie de apresentação pública do trabalho que vinha sendo desenvolvido nas escolas dos assentamentos, na educação de jovens e adultos, na educação infantil e na formação de professores. Serviu ainda como uma afirmação do trabalho de educação para dentro do próprio Movimento. Planejado para reunir 400 educadores, acabou reunindo mais de 700, fruto do ambiente criado pela Marcha Nacional a Brasília por Reforma Agrária, realizada de fevereiro a abril de 1997. O Enera incluiu uma boa representação de professores universitários, apoiadores do trabalho do MST nos Estados. Foi desse encontro que emergiu a proposta de se criar um Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.

E foi neste mesmo movimento que o MST assumiu o protagonismo no processo de construção das Conferências Nacionais de Educação do Campo de 1998 e 2004 e do seminário nacional de 2002.

O trabalho com cursos formais teve um impulso a partir da criação do Pronera em abril de 1998. Até então eram poucas turmas e em poucos lugares. Com o novo programa, envolvendo universidades e ins-titutos federais, foi possível dar uma escala maior, potencializando a experiência acumulada de formação por alternância e vinculada aos movimentos. O MST chega em 2011 com 1.500 educadores formados nestas turmas específicas e tendo em andamento 50 turmas, nas diferentes áreas, com aproximadamente 2 mil educandos de ensino médio, técnico e superior.

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A dimensão específica da ocupação da universidade, que iniciou com os cursos de educação e aos poucos foi se estendendo para outras áreas, tem um significado histórico importante na formação de um intelectual coletivo de classe, nesse caso orgânico ao trabalho nas áreas de reforma agrária: campone-ses trabalhando com camponeses. E a combinação entre escolarização, formação político-ideológica e formação técnica que foi inaugurada pelos cursos formais das áreas da educação e da produção foi, aos poucos, se afirmando como uma marca no trabalho de educação do MST.

Uma quarta característica deste trabalho se refere a uma atuação direta com as crianças e os jovens dos acampamentos e assentamentos para que se integrem na organicidade e identidade do Movimento. Uma das iniciativas é a realização dos chamados encontros dos Sem Terrinha, nome criado pelos parti-cipantes de um destes primeiros encontros, para identificar-se ao mesmo tempo como crianças e como Sem Terra (com letras maiúsculas e sem hífen que indica o nome próprio construído no percurso de luta e organização do MST). Há encontros e outras atividades com os Sem Terrinha que envolvem também adolescentes e jovens ou então são específicos para essa outra faixa etária, articulados pelo coletivo de trabalho com a juventude.

O MST também tem organizado concursos nacionais de redações e desenhos visando potencializar a dimensão da expressão artística na formação das novas gerações, atividade que geralmente se desenvolve através das escolas. E a partir de 2008 foi iniciada a produção de um encarte especial no Jornal Sem Ter-ra (ferramenta de comunicação do MST que completa 30 anos em 2011), chamado “Jornal das Crianças Sem Terrinha”. Na mesma perspectiva acontecem iniciativas de produção de literatura específica para formação da infância e juventude.

Uma quinta característica fundamental do trabalho de educação do MST é a construção coletiva de seu projeto político-pedagógico, sistematizada em materiais de produção igualmente coletiva e para uso no conjunto de atividades do Movimento, notadamente na formação de educadores.

Em seu percurso o MST foi construindo uma concepção de educação, um método de fazer a forma-ção das pessoas, uma concepção de escola, em diálogo com teorias sociais e pedagógicas produzidas por outras práticas de educação dos trabalhadores em diferentes lugares e tempos históricos. Desde o início da luta por escolas houve a preocupação de fazer e então ir pensando o que seria uma “escola diferente”. Nos primeiros encontros nacionais que seguiram o de 1987, duas questões foram transformadas em ei-xos de reflexão coletiva, a partir das práticas e perguntas formuladas nos Estados ou em cada coletivo local: o que queremos com as escolas dos assentamentos (e acampamentos) e como fazer essa escola. Dessas práticas e reflexões sobre finalidades educativas e métodos pedagógicos surgiu a formulação dos princípios da educação no MST, para um conceito já ampliado de escola (que inclui a própria educação universitária) e elaborada uma Pedagogia do Movimento (ver verbete).

Nessa dinâmica de produzir teoria acumulando experiências práticas, merece destaque a criação do Instituto de Educação Josué de Castro, no Rio Grande do Sul, em 1995, que se constituiu como espaço de experimentação pedagógica a partir de cursos vinculados a diferentes setores do MST (produção, saú-de, educação, formação, comunicação e cultura). Trata-se de uma escola que vem conseguindo construir novas referências para uma lógica de organização escolar e do trabalho pedagógico, voltada a outros objetivos formativos que não aqueles usualmente assumidos por essa instituição na forma de sociedade que temos.

A produção de materiais do setor de educação expressa esse movimento de pensar a prática e formular concepções a partir dos embates em que o MST está envolvido. E seu processo de elaboração também traz a marca da produção coletiva. A grande maioria dos escritos do setor é produto de muitas cabeças e muitas mãos e se caracteriza por ser sistematização de experiências coletivas: valorização da prática e de seus sujeitos, e diálogo com teorias produzidas desde a mesma perspectiva de classe e de ser humano.

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Ao longo destes anos o MST produziu ou participou da produção de aproximadamente 50 cadernos e livros, em sua maioria, organizados em coleções específicas: Cadernos de Educação, Boletim da Edu-cação, Fazendo Escola, Fazendo História, Concurso Nacional de Redações e Desenhos, Cadernos do Iterra, Coleção Por uma Educação do Campo, Pra Soletrar a Liberdade e Terra de Livros.

Percebe-se entre os Sem Terra que o trabalho de educação do MST tem fortalecido o valor do estudo, enquanto apropriação e produção do conhecimento, e sua relação necessária, ainda que não exclusiva, com o direito ao avanço, cada vez mais ampliado, da escolarização. O que isso pode significar nos rumos das lutas e da cultura camponesa e da própria formação social brasileira é algo que somente uma maior retrovisão histórica permitirá analisar com mais cuidado.

Um elemento fundamental para a construção/afirmação coletiva de uma concepção de educação foi identificar o processo de formação humana, vivido pela coletividade Sem Terra em luta, como matriz para pensar uma educação centrada no desenvolvimento mais pleno do ser humano e ocupada com a formação de lutadores e construtores de novas relações sociais. Isso levou a refletir sobre o conjunto de práticas que faz o dia a dia dos Sem Terra e extrair delas lições de pedagogia, que permitem qualificar a intencionalidade educativa do Movimento, pondo em ação diferentes matrizes constituidoras do ser humano: trabalho, luta social, organização coletiva, cultura, história.

E permitiu pensar também que a “escola diferente” que desde o começo se buscava construir era uma escola que assumisse o vínculo com esta luta, com a vida concreta de seus sujeitos e partilhasse dos seus objetivos formativos mais amplos. Estes objetivos não seriam apenas da escola, já que ela não é capaz de realizar, sozinha, um projeto educativo. Por essa razão a escola não deve ser pensada fechada em si mesma, mas nos vínculos que pode ter com outras práticas educativas do seu entorno.

Desde a compreensão de sua materialidade específica, o MST passou a expressar (se fundamentar) e reafirmar uma concepção de educação que vincula a produção da existência social com a formação do ser humano, considerando as contradições como motor, não apenas das transformações da realidade social, mas da própria intencionalidade educativa, na direção de um determinado projeto de sociedade e de humanidade.

Por isso se costuma dizer que a reflexão pedagógica do MST começou dentro da escola, mas precisou sair dela, ocupando-se da totalidade formativa em que se constituiu o Movimento, para a ela retornar, a partir então de uma visão bem mais alargada de educação e de escola.

Foi assim que aos poucos o MST foi consolidando sua convicção de que a escola deve ser tratada como lugar de formação humana e uma proposta de escola vinculada ao Movimento não pode ficar res-trita às questões do ensino, devendo se ocupar de todas as dimensões que constituem seu ambiente edu-cativo. A escola inteira deve ser pensada para educar: em seus tempos, espaços e em suas relações sociais. Nesse sentido a importância de discutir e experimentar novas formas de gestão e de trabalho coletivo, de exercitar a auto-organização dos estudantes, o cultivo da mística e de padrões de cultura e convivência que respeitem os valores de igualdade, justiça, solidariedade, e o modo de aprender específico de cada tempo de desenvolvimento humano, de cada idade.

Integra o mesmo percurso a compreensão de que é preciso ampliar as dimensões do trabalho educa-tivo da escola sem deixar de considerar a especificidade da sua tarefa em relação ao conhecimento: os camponeses do MST começaram essa história sabendo que não poderiam abrir mão da instrução pro-porcionada pela escola, como ferramenta necessária à compreensão da realidade que lutam para coleti-vamente transformar. Mas logo entenderam que o conhecimento de que necessitam somente se produz na relação entre teoria e prática, pelo vínculo do estudo com o trabalho, com as questões da vida real. Aprendem, aos poucos, a defender uma concepção de conhecimento que dê conta de compreender a realidade como totalidade, nas suas contradições, seu movimento histórico.

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Vincular a escola com essa concepção de educação e de conhecimento implica em fazer transforma-ções na forma escolar atual, construída historicamente com outras finalidades sociais e desde outra ma-triz formativa.E uma transformação mais radical da escola somente acontecerá como parte de transfor-mações mais amplas na própria sociedade que a instituiu com uma lógica apartada da vida, exatamente para que suas contradições não possam ser compreendidas pela classe que pode pretender enfrentá-las.

Mas há movimentos de transformação que podem e vêm sendo desencadeados à medida que se consegue ter uma capacidade coletiva de análise das condições presentes em cada escola concreta e se coloca os objetivos de formação dos seus sujeitos como centro das discussões de mudança. O trabalho de educação do MST tem buscado construir referências teóricas e práticas da direção a seguir quando o movimento de construção de uma escola aberta à vida, em todas as suas dimensões, e vinculada aos objetivos sociais dos trabalhadores, torna-se possível.

Para saber maisCALDART, Roseli Salete e KOLLING, Edgar Jorge. O MST e a educação, in: STEDILE, João Pedro (org.). A Reforma

Agrária e a luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1997.CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3ª ed.,São Paulo: Expressão Popular, 2004.________. (org.). Caminhos para transformação da Escola. São Paulo: Expressão Popular, 2010.MST. Construindo o caminho. São Paulo: MST, julho 2001.________. Educação no MST. Balanço 20 anos. Boletim da Educação n. 9. São Paulo, 2004.________. Dossiê MST Escola. Documentos e Estudos 1990-2001. Caderno de Educação n. 13. São Paulo: Expressão

Popular, 2005.

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101Parte 2 – Eixo temático: Educação no MST

O MST E A ESCOLA: CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO E MATRIZ FORMATIVA1

É difícil defender só com palavras a vida

(ainda mais quando ela é esta que vê, severina).

João Cabral de Melo Neto

Este texto foi feito com o objetivo de organizar uma síntese das discussões atuais sobre a concepção de educação e a matriz formativa que orienta o projeto de escola do Movimento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra. Esta síntese teve como base inicial a elaboração que integra o documento de sistema-tização das discussões do seminário “O MST e a Escola” do Coletivo Nacional de Educação do MST realizado nos dias 17 e 18 de junho de 2008, incorporando elementos de outros debates acerca do rede-senho político-pedagógico das escolas de educação básica, realizados em reuniões do setor de educação do MST e nos seminários com as escolas de inserção dos estudantes da Licenciatura em Educação do Campo, Turma UnB/Iterra, majoritariamente escolas de acampamentos e assentamentos de reforma agrária vinculados ao MST. Estes debates ao mesmo tempo reafirmam o percurso de reflexões destes mais de 25 anos de trabalho do MST com educação e escola e avançam para novas questões que a aná-lise coletiva mais recente de práticas em andamento tem formulado.

Trata-se de uma síntese de concepção que apresentamos como uma ferramenta de trabalho para continuidade dos debates no MST e fora dele. São registros das reflexões de um movimento social cam-ponês, fundamentadas no diálogo com formulações teóricas e práticas de uma educação emancipatória que se orientam por um projeto histórico,2 e que em nosso caso têm servido de parâmetro também para as ações relacionadas à Educação do Campo e, particularmente, à implementação do projeto político--pedagógico da licenciatura em Educação do Campo.

O texto está organizado através de ideias-chave e em forma de pontos para facilitar sua discussão. A opção foi pela abrangência das ideias e não pelo desenvolvimento mais detalhado do conteúdo de cada uma delas. Por isso também não há explicitação de todas as fontes bibliográficas da elaboração, embora se tenha tentado deixar claro qual a orientação teórica e política mais ampla que a fundamenta. O foco está na sistematização de um raciocínio, de modo que se possa tomar posição sobre a direção proposta para o trabalho nas escolas onde de alguma forma atuamos.

1 Publicado em: Caldart, Roseli S. O MST e a escola: concepção de educação e a matriz formativa, in: Caldart, Roseli Salete (org.) Caminhos para transformação da escola. Reflexões desde práticas da Licenciatura em Educação do campo. São Paulo: Expressão Po-pular, 2010, p. 63-83 (Cadernos do Iterra n. 15).

2 Projeto histórico no sentido de um projeto de classe que “aponta para a especificação de um determinado tipo de sociedade que se quer construir, evidencia formas para chegar a esse tipo de sociedade e, ao mesmo tempo, faz uma análise crítica do momento histó-rico presente” (Freitas, L. C. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. 6ª ed., Campinas: Papirus, 2003, p. 142).

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102 Parte 2 – Eixo temático: Educação no MST

1. Hoje no campo, como no conjunto da sociedade, predomina uma educação que conforma os trabalhadores a uma lógica que é de sua própria destruição: como classe, como grupo social e cultural, como humanidade. Para romper com a lógica instalada, de subserviência às necessidades da reprodu-ção do capital e degradação das condições de vida humana, em todas as dimensões, é preciso agir para instaurar um projeto de formação/educação que coloque as famílias da classe trabalhadora em um mo-vimento de construção de alternativas abrangentes de trabalho, de vida, em um novo formato de rela-ções campo e cidade, de relações sociais, de relações entre os seres humanos, entre os seres humanos e a natureza...

2. Um dos grandes desafios do MST no campo da educação hoje é transformar sua Pedagogia do Movimento, ou seja, a intencionalidade formativa que produziu na sua dinâmica de luta social e orga-nização coletiva, em um projeto de educação das famílias e das comunidades dos acampamentos e as-sentamentos que constituem sua base social, buscando transformar a visão de mundo e o modo de vida subordinado à lógica de reprodução do sistema capital, que ainda predominam nas próprias áreas de reforma agrária. Isto implica em muitas dimensões, situações, tempos e espaços; deve envolver os Sem Terra de todas as idades e de todos os níveis de inserção orgânica ao Movimento. E esta é uma tarefa do conjunto da organização, de todas as suas instâncias, de todos os seus setores de trabalho.

3. A Pedagogia do Movimento, enquanto reflexão específica sobre as matrizes pedagógicas postas em movimento na formação dos Sem Terra, e ao tratar essa formação como um processo educativo, expressa (se fundamenta) e reafirma uma concepção de educação, de formação humana, que não é hegemônica na história do pensamento ou das teorias sobre educação (e que não está também na base de constitui-ção da instituição escola): trata-se de uma concepção de base histórico-materialista-dialética para a qual é preciso considerar centralmente as condições de existência social em que cada ser humano se forma: a produção da existência e a produção ou formação do ser humano são inseparáveis (Marx). Ou seja, as pessoas se formam pela inserção em um determinado meio, sua materialidade, atualidade, cultura, natureza e sociedade, fundamentalmente através do trabalho que lhe permite a reprodução da vida e é a característica distintiva do gênero humano, é a própria vida humana na sua relação com a natureza, na construção do mundo. Trabalho que produz cultura e produz também a classe trabalhadora capaz de se organizar e lutar pelo seu direito ao trabalho e pela superação das condições de alienação que histori-camente o caracterizam. Trabalho emancipado é condição de emancipação humana, mas não é apenas depois de emancipado que o trabalho passa a ser educativo, transformador do ser humano: a educação acontece na dialética entre a transformação das circunstâncias e a autotransformação que este processo provoca e exige (acontece na práxis).

4. Esta concepção coloca a educação no plano da formação humana e não apenas da instrução ou mesmo do acesso ao conjunto da produção cultural. Trabalho, cultura (que inclui o próprio esforço do ser humano de conhecer o mundo e entender o que faz e o que o faz/forma), luta social são práticas so-ciais formativas dos sujeitos, indivíduos e coletivos, independentemente de estarem relacionadas a ações intencionais de educação e menos ainda relacionadas à escola. Mas podemos realizar projetos educativos em torno de cada uma destas práticas sociais e podemos em alguma medida vincular a educação escolar a elas, exatamente para que ela se torne mais densa de aprendizados.

5. Educação é, nesta perspectiva, um processo intencional (planejado e organizado objetivamente, de preferência por coletivos, em uma direção determinada) de busca do desenvolvimento omnilateral do ser humano, que reúne capacidades para atividades tanto manuais como intelectuais, que trabalha diferentes dimensões que permitem o cultivo de uma personalidade harmônica e completa. A palavra omnilateral indica a busca de um processo de formação humana ou de humanização integral, entendi-

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do como totalidade, que não é apenas a soma da atuação em diferentes dimensões, mas a articulação que visa coerência na atuação do ser humano no mundo. E ainda que no formato da sociedade de hoje a unilateralidade pareça cada vez mais o destino inevitável das gerações por ela educadas, nosso projeto de futuro nos impõe persistir em um trabalho educativo noutra direção.

6. Em um plano mais especificamente pedagógico, de método educativo, essa concepção afirma que educação não é em última instância inculcação, nem conversão pela palavra, embora possa incluí-la como ferramenta. Não há formação da consciência fora da vivência de determinadas relações sociais de produção. Por isso o trabalho (enquanto atividade humana criadora) é a base da educação e a práxis a perspectiva pretendida. Nenhuma agência que objetive efetivamente ser educativa pode separar produ-ção da existência de formação, e separar instrução de formação.

7. Esta concepção permitiu ao MST formular o conceito de ambiente educativo (que se tenta levar também à escola), que se refere a condições objetivas que podem ser criadas para que se desenvolvam de forma mais educativa determinadas atividades humanas, considerando os vários detalhes que compõem a totalidade de um processo de educação. Quer dizer, em vez de pensar na pessoa do educador como senhor da pedagogia, pensar no ambiente, (com as tensões e contradições próprias da vida acontecendo) que educa a todos, e que pode ser intencionalizado (pelos educadores e educandos) como relações so-ciais, como processos e como postura de quem participa das ações, em uma direção ou outra.3

8. A escola é uma agência de educação muito importante na sociedade atual. Por isso lutamos para que as escolas que vamos conquistando nas áreas de acampamento e assentamento (bem como no con-junto das comunidades camponesas) realizem sua tarefa educativa também na perspectiva desta inten-cionalidade formativa maior que temos como Movimento Social, como classe trabalhadora.

9. Como instituição, a escola é uma construção social e histórica. Na forma que a conhecemos hoje (de escola pública, em tese para todos) foi inventada nos séculos XVI-XVII. Ela não é apenas um efeito ou reflexo das relações sociais capitalistas; ela participou da construção da nova ordem urbana, burgue-sa, capitalista. Há uma estreita relação entre forma escolar, forma social e forma política. Seu percurso encarna/reproduz as contradições sociais que nascem fora dela e ela vai sempre tender ao polo social-mente hegemônico se não houver uma forte intencionalidade na outra direção. E não haverá uma trans-formação mais radical da escola fora de um processo de transformação da sociedade. Mas mudanças significativas que conseguirmos fazer na escola podem ajudar no próprio processo de transformação so-cial mais ampla, desde que feitas na perspectiva da formação dos construtores ou sujeitos deste processo.

10. É por isso que se afirma que para trabalhar em sintonia com nosso projeto histórico a escola precisa ser transformada, exatamente porque ela não nasceu para educar a classe trabalhadora (apenas concedeu sua entrada nela para atender as demandas de formação para a reprodução das relações de tra-balho capitalistas) e muito menos para formar os trabalhadores a fazer uma revolução social e a tornar--se um ser humano emancipado. A escola precisa ser transformada em suas finalidades educativas e nos interesses sociais que a movem, na sua matriz formativa, no formato de relações sociais que a constitui

3 “O MST produziu-se historicamente como um ambiente educativo de formação dos sem terra; mas cada uma de suas ações ou de seus tempos e espaços cotidianos podem ser produzidos, intencionalizados, como um ambiente educativo, que de certa forma co-memora, traz de volta para esse coletivo em particular, a totalidade pedagógica que é o Movimento, sendo então capaz de fazer cada pessoa sujeito de um processo pedagógico especificamente voltado para sua formação. Ações, relações sociais, gestos, símbolos, co-memorações compõem esse ambiente que concentra ao mesmo tempo, em um mesmo processo, diversos ingredientes pedagógicos, originários dessas diferentes matrizes pedagógicas produzidas pela humanidade ao longo da história de sua formação. Como fazer essa combinação de pedagogias e que temperos ir colocando no processo é uma tarefa que requer reflexão permanente e específica sobre cada ação, mas também sobre o movimento pedagógico que continua no MST como um todo” (Caldart, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3ª ed., Expressão Popular, 2004. p. 400).

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(especialmente as relações de trabalho e de gestão) e desde as quais educa quem dela participa, na visão de mundo que costuma ser hegemônica dentro dela e na forma que trabalha com o conhecimento.

11. No dia a dia e nas práticas concretas, o projeto da escola está em permanente disputa. A começar pelas suas finalidades, sua função social, aquilo que entra ou não entra no seu projeto político-pedagó-gico. Mas é importante prestarmos atenção à forma como estas questões mais amplas se desdobram em detalhes do cotidiano, àquilo sobre o que nem sempre se trata ou se escreve, mas se faz. Por isso mesmo esta é uma disputa que não se vence de uma vez (porque se conseguiu incluir determinados aspectos no seu projeto político-pedagógico, por exemplo). Parado o movimento de pressão, a prática retorna à sua tendência “original”. E isto não tem a ver apenas e principalmente com o que é ou não estudado na escola; tem a ver com a própria “guerra” entre exclusão e permanência dos trabalhadores nela, tem a ver com o tipo de relações de poder que se vivencia neste espaço, com o padrão cultural de relações sociais que se reforça, com a visão de ser humano e de mundo que orienta a pedagogia e se vai consolidando na formação das personalidades. Por isso esta disputa é social e humanamente legítima e, para nosso proje-to, também politicamente necessária.

12. Para nós, MST, Via Campesina, organizações de trabalhadores com projeto histórico, “ocupar a escola” é colocá-la em movimento, em “estado de transformação”. Ou seja, a primeira grande tarefa social da escola, para que possa realizar as tarefas pedagógicas específicas que têm, mas na nossa pers-pectiva de classe, de projeto, de ser humano, é dar-se conta de que é preciso fazer mudanças e seus sujei-tos assumirem o comando da sua transformação. Há referências teóricas e práticas de caminhos para a construção de uma nova escola, mas eles não estão dados.

13. É importante ter presente, entretanto, que a escola não se transformará mais radicalmente senão como parte de transformações que tentemos operar no conjunto das práticas educacionais e formativas que nos afetam. Em nosso caso, sem uma intencionalidade específica na transformação das diferentes práticas de formação dos Sem Terra (que acontecem nos processos de luta, de trabalho, de participação na construção da organicidade, de reprodução e produção da cultura...), não há como pensar em mu-danças mais profundas nas escolas dos assentamentos e acampamentos. A escola não tem como ser uma “ilha” de educação emancipatória e se tentar sê-lo, estará descumprindo seu papel de inserção orgânica na comunidade e no Movimento.

14. É importante reafirmar que quando tratamos da construção de uma “escola do MST” ou da “ocupação da escola pelo Movimento” não estamos na defesa de uma escola fechada aos interesses cor-porativos dos trabalhadores Sem Terra ou mesmo aos desafios internos de sua organização. O que esta-mos afirmando é a necessidade da escola (instituição social) ser ocupada (ou deixar-se transformar) pelos seus próprios sujeitos (educandos, educadores, comunidade), na sua identidade coletiva de Sem Terra, de camponês, de trabalhador do campo, de classe trabalhadora, de ser humano, entendidas no espiral dialético entre específico e geral, entre singularidade e universalidade e não como identidades separadas ou que se negam uma a outra.

15. A ocupação da escola pelo MST precisa ser compreendida e intencionalizada no sentido ampliado de apropriação da escola pela classe trabalhadora, o que quer dizer, ancorar seu trabalho de educação em um projeto formativo que vise à construção do projeto histórico dessa classe. Em nossas práticas esse processo/desafio tem sido identificado como implementação da “pedagogia do MST”, ou mais ampla-mente, da “Pedagogia do Movimento”, que não deve ser entendida como uma concepção particular de educação e de escola ou uma tentativa de criar uma nova corrente teórica da pedagogia, mas, sim, como um jeito de trabalhar com diferentes práticas e teorias de educação construídas historicamente desde os interesses sociais e políticos dos trabalhadores, que tem a dinâmica do Movimento (suas questões, con-

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tradições, demandas formativas da luta e do trabalho) como referência para construir sínteses próprias de concepção (igualmente históricas, em movimento).

16. O desafio de ocupação da escola pelos trabalhadores está presente também no movimento ori-ginário da Educação do Campo, que inclui um esforço entre diferentes organizações e movimentos so-ciais camponeses para ampliar a luta pelo acesso e para pensar os objetivos e conteúdos principais de um projeto educacional da classe trabalhadora do campo em nosso tempo histórico, tendo no horizonte um novo projeto de sociedade, de ser humano.

17. Mas tenhamos presente que qualquer desenvolvimento mais avançado que aconteça em uma esco-la concreta, terá como ponto de partida a escola que já existe. Daí a importância da análise rigorosa da realidade em que atuamos. É importante ter uma referência teórica, uma direção clara de onde quere-mos chegar (no caso concepção de escola coerente com nosso projeto histórico), mas isso é só o começo da tarefa. E se já sabemos que a escola não se movimenta apenas desde dentro, mas também e princi-palmente através de forças externas (em nosso caso pode ser a força dos movimentos sociais), também é preciso considerar que o movimento de reconstrução é próprio de cada local: não há padrão, regras fixas a seguir no processo de transformação de cada escola. O que deve haver são parâmetros de análise sistemática da direção do movimento desencadeado.

18. Os estudantes (crianças, jovens ou adultos) precisam estar no centro das discussões sobre a trans-formação da escola: é para eles e elas que a escola deve ser pensada. É o compromisso com sua formação que deve orientar nosso debate. E os educandos precisam aprender agora e não ficar esperando pela so-lução dos problemas da escola, dos educadores ou pelas discussões pedagógicas feitas muito longe deles: seu tempo não volta: eles e elas têm direito de aprender agora, têm direito a uma boa educação já e esta deve ser nossa preocupação sempre que discutimos a implementação de novas práticas.

19. A “escola do MST”, pela qual temos trabalhado nos acampamentos e assentamentos há mais de 25 anos, é uma escola que se abre para a vida, que se assume como parte da vida e não como um lugar que aparta as pessoas da vida. Isso é ao mesmo tempo tão simples e tão complexo! Inclui sua articulação com outras fontes sociais formativas/educativas tão ou mais importantes do que a educação escolar, de-pendendo de que objetivos formativos se trate. E para nós que temos vínculo com o movimento social, esta referência de articulação e de pensar a escola em perspectiva nos é dada pelo processo de formação do sujeito Sem Terra na materialidade das diferentes formas e situações da luta pela reforma agrária e da organização do MST, inserido nos processos sociais mais amplos e que visam à transformação da socie-dade capitalista pela via do socialismo.

20. É esta visão em perspectiva que nos permite compreender mais facilmente que uma das transfor-mações primeiras da escola diz respeito à sua matriz formativa: que dimensões devem ser trabalhadas, intencionalizadas, em que direção e através de que estratégias pedagógicas. As perguntas primeiras são: o que mesmo pretendemos com o trabalho educativo de nossas crianças e jovens (herdeiras e ou prota-gonistas de uma luta social)? Quais devem ser os nossos objetivos formativos em relação à juventude, à nova geração? Que ser humano queremos ajudar a formar e para que papel na sociedade? Que traços de ser humano precisam ser mais cultivados entre os sujeitos com quem trabalhamos e diante dos desafios de nosso tempo histórico? Que apropriação e que produção de conhecimentos essa direção educativa implica?

21. É preciso sempre voltar a tratar dos objetivos do nosso trabalho, torná-los explícitos para poder de-finir estratégias de ação visando atingi-los. Estes objetivos são ao mesmo tempo perenes e históricos, gerais e específicos da realidade onde atuamos, por isso é necessário sempre retomar a discussão sobre eles, até porque o modo como podem se concretizar tem a ver com a dinâmica social onde atualmente nos inseri-

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mos. Podemos dizer que um grande objetivo que nos move é formar seres humanos mais plenos e felizes, é ajudar na humanização das pessoas, que implica em trabalhar diferentes dimensões do ser humano. Mas devemos continuar esta reflexão, para torná-la ainda mais concreta, mais orientadora de nosso trabalho prático: hoje, em nossa realidade, o que significa humanizar? E podemos nos dar conta de que é preciso ter como objetivo formar lutadores e construtores de um tipo de sociedade que permita o real desenvolvimento humano de todas as pessoas; precisamos formar quem entenda quais os interesses sociais que estão levan-do a uma maior degradação humana, a mais violência, à barbárie social desenfreada... E ainda pensar que podemos estar trabalhando com sujeitos que vivenciam no seu cotidiano processos violentos de desuma-nização e ou processos coletivos de luta contra esta desumanização. Nossos objetivos educativos precisam considerar esta realidade dos sujeitos concretos a quem a ação educativa se destina, bem como o acúmulo de compreensão que já existe na sociedade em relação a como trabalhar estes objetivos considerando os diferentes ciclos do desenvolvimento do ser humano e as questões de como acontece a aprendizagem.

22. O grande objetivo do MST é de formação de sujeitos históricos capazes de trabalhar e de lutar pela transformação da sociedade e pela sua autotransformação (pessoal e coletiva) emancipatória, rea-lizada no processo mesmo de construção de um novo padrão de relações sociais (socialista). Para isso, um objetivo formativo fundamental é mexer (inventariar, tornar consciente, fazer a crítica, transformar, consolidar...) com a visão de mundo dos educandos (e dos educadores pelo processo coletivo), o que na escola pode dar mais sentido ao próprio trabalho com a dimensão do conhecimento. Por isso também é que temos o coletivo como referência primeira para intencionalização de um projeto educativo, pela ne-cessidade de formar para as relações sociais que virão, mas não na oposição ao indivíduo e sim em uma síntese onde indivíduo e coletivo integram a mesma totalidade formadora.

23. Relembremos mais uma vez que os objetivos que nos guiam são da educação, na concepção antes afirmada, e não da escola. É por isso que o MST para pensar a escola saiu dela e refletiu antes sobre a Pedagogia do Movimento, exatamente para ter mais claro onde ancorar o projeto formativo das escolas a ele vinculadas, ou seja, em que rede de práticas formativas do sujeito Sem Terra a escola deveria se in-tegrar: não para repetir o que acontece em outras práticas, às vezes até para se contrapor a elas, mas sem nunca deixar de levar em conta que há outras práticas formativas em que os educandos e os educadores da escola estão ou deveriam estar inseridos e que o projeto formativo maior não deve ser da escola (em si mesma), mas de um coletivo maior, em nosso caso, da organização de trabalhadores a que pretendemos vincular a atuação educativa da escola.

24. Descentrar a educação da escola é para nós, pois, pressuposto para pensar a própria escola,especialmente se visamos sua transformação. E essa descentração não significa diminuir a impor-tância da escola na educação das novas gerações, mas significa ter presente: 1) que a fusão entre educação e escola é histórica, sendo uma característica do tipo de sociedade em que vivemos; não foi sempre assim e talvez não seja assim para sempre; e 2) que esta lógica nos exige pensar, como educadores das crianças, dos jovens, dos adultos, dos idosos e não apenas como professores de escola, na tarefa educativa especí-fica da escola na relação com outros processos educativos e formativos da nova geração: quem mesmo está educando/formando nossas crianças e nossos jovens hoje? Que visão de mundo é hegemônica no meio em que vivem? Precisamos prestar a atenção nisso, buscar refletir sobre a atuação dos meios de comunicação, de ações culturais, do trabalho (seu próprio ou com o qual se relaciona através da família ou outros grupos que lhes são referência formativa), do conjunto enfim de relações sociais em que estão inseridos, buscar vínculo (de reforço ou de contraponto) com esses processos.

25. E é necessária pelo menos uma atitude de suspeita em relação à defesa que muitos fazem da supre-macia do modo escolar de educação, porque essa é uma visão que pode nos enganar em relação a como

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efetivamente o sistema do capital opera na formação dos trabalhadores para garantir sua reprodução, ao mesmo tempo em que nos amarra à lógica da forma escolar atual quando buscamos pensar o contra-ponto desta formação.

26. Considerar a escola como parte do meio social que educa as novas gerações não significa aceitar uma divisão de tarefas de educação, tão ao gosto do discurso da pedagogia burguesa: à escola cabe traba-lhar com a instrução (de preferência, asséptica, despolitizada, desistoricizada), à família cabe a formação dos valores, ao Movimento caberia a formação organizativa e política e assim por diante. Isso hoje seria sucumbir a uma lógica que é própria do discurso liberal, mas que não acontece na própria prática da educação capitalista: já sabemos que as funções sociais da escola vão muito além do trabalho específico com o conhecimento instrucional, sendo uma de suas tarefas educativas garantir o aprendizado de um determinado padrão de relações sociais. Esta falsa separação tem levado a fragmentar a reflexão e o tra-balho pedagógico, especialmente dos educadores das escolas (em outra visão não seria admissível pensar que a tarefa do professor possa se reduzir à transmissão de conteúdos de ensino). Todos os espaços com finalidades educativas realizam a totalidade do processo de educação, ainda que nem sempre de forma explícita e consciente. A escola não pode renunciar à tarefa de educar, de fazer formação humana desde um projeto pensado e intencionalizado pelos sujeitos coletivos que a integram.

27. Isso quer dizer que é tarefa da escola assumir o desafio de trabalhar de forma planejada e discutida diferentes dimensões do desenvolvimento humano integral, que vêm pela participação mais inteira das pessoas no processo educativo, de modo que se exponham concepções, que se discutam diferentes posi-ções sobre perfil de formação, sobre projeto de ser humano. Trata-se de subverter a lógica que deixa isso como objeto das relações que não se explicitam seja na escola, seja na sociedade, para que se reproduzam as marcas culturais principais do sistema vigente: individualismo, egoísmo, consumismo, concorrência, relativismo, presenteísmo... E se a escola não é o único lugar deste desafio educativo, ela não deve deixar de assumi-lo, pela possibilidade que tem de fazer isso de modo pensado, planejado, e considerando/co-nhecendo o que é próprio a cada ciclo da vida humana, a cada etapa da educação.

28. O que não pode ser ignorado (pelo menos em nosso tempo) é uma especificidade da educação escolar que implica justamente em uma mediação do trabalho com determinadas formas de conheci-mento e do aprendizado sistemático de juntar prática e teoria; não como algo à parte, mas no desafio do que a pedagogia socialista denomina de “educação omnilateral”. Uma função própria da escola, que não pode se perder de vista nesse alargamento de projeto educativo, está relacionada ao aprendizado de determinados conhecimentos, notadamente os conhecimentos formalizados ou sistematizados, ou seja, aqueles que implicam em estabelecer conceitos e em organizá-los desde determinadas lógicas e lingua-gens. Quer dizer que a educação escolar precisa garantir a apropriação pelos educandos de conceitos fun-damentais ao modo de produção do conhecimento próprio das ciências e próprio das artes (que também são diferentes entre si e têm especificidades importantes no desenvolvimento humano), e ao domínio de instrumentos culturais específicos que possibilitam esta aprendizagem (a leitura e escrita, por exemplo) e isso deve ser feito respeitando-se os níveis de desenvolvimento do pensamento característicos de cada idade (o que hoje justamente várias ciências nos ajudam a compreender).

29. Mas é importante afirmar também que a função da escola não se restringe ao trabalho com os co-nhecimentos formalizados. Ela precisa trabalhar com as diferentes formas de conhecimento, sempre que isso for importante para o exame das questões da vida concreta e para os objetivos formativos que temos. Se há diferentes práticas sociais formativas, e que incluem a produção e socialização de conhecimentos, não há uma cisão necessária (senão artificial) entre conhecimentos científicos e outras formas de conhe-cimento. Na realidade os vários tipos de conhecimento costumam estar bem imbricados, ainda que a

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forma social atual estabeleça entre eles uma hierarquia rígida, que também precisa ser problematizada pela escola. Não são apenas os conhecimentos classificados hoje como científicos que nos interessam. Muitos conhecimentos populares sobre determinada realidade são produzidos antes dos científicos e a escola não pode ignorá-los se o que pretende é contribuir na formação de sujeitos da transformação da realidade (que pode implicar em preservar ou recuperar vários conhecimentos que a ciência atual ignora ou rejeita). Mas é fato que se a escola não chegar a trabalhar com conceitos, com teoria, com ciência, com produções culturais mais elaboradas, estará impedindo uma forma necessária de conhecimento da realidade e para o desenvolvimento intelectual dos estudantes. Também é tarefa educativa da escola acessar aos trabalhadores os conhecimentos que a sociedade atual considera científicos, garantindo uma apropriação crítica e uma iniciação à produção de ciência que possa ajudá-los a se formar como sujeitos construtores do futuro. E essa dimensão necessita de uma intencionalidade específica, de métodos e di-dáticas específicas, ainda que não independentes de outras dimensões do trabalho educativo.

30. Nessa direção é que consideramos fundamental o vínculo da escola com processos vivos (de tra-balho, de cultura, de luta social) porque a materialidade e as contradições presentes nas questões da vida real podem ajudar a superar falsos dilemas do ponto de vista de nosso projeto formativo maior. E por isso é que não consideramos suficiente que a relação entre prática e teoria se reduza na escola a conversas sobre práticas realizadas ou projetadas para fora dela, em outro tempo, outros espaços.

31. Essas são discussões que fundamentam o esforço de repensar a forma de organização do currículo escolar e do trabalho pedagógico e nos colocam um desafio específico de análise do rol de conteúdos de ensino nessa perspectiva, assim como reforçam a importância pedagógica de manter o vínculo entre ciên cia e questões da vida, porque além de tornar mais fácil (porque com sentido) a apropriação da teo-ria, este vínculo estabelece critérios de seleção dos conteúdos e das atividades de estudo.

32. É importante não perder de vista também que é da natureza da educação a passagem/transmissão viva (não cristalizada ou dogmatizada) do legado de uma geração para outra (não é qualquer legado, não é sua incorporação acrítica, mas o legado da humanidade não pode ser sonegado às novas gerações...). Um legado que não se resume a aspectos de instrução, mas se insere no grande mundo da cultura, que tem um sentido bem mais amplo do que conhecimento, incluindo-o. E um currículo que vise o desen-volvimento humano não pode se limitar aos conhecimentos vivenciados pelos educandos ou necessários à solução de problemas que lhes são mais próximos. É preciso sempre garantir o acesso a novos conhe-cimentos e a novas experiências de vida que permitam alargar horizontes e potencializar a condição hu-mana. Do ponto de vista da formação da pessoa mais plena, o princípio é aquele antigo: “nada do que é humano me pode ser estranho”.

33. Sem alterar a matriz formativa da escola não há como fazer transformações na direção dos vín-culos aqui defendidos e para melhor realização da sua tarefa específica em relação ao conhecimento. A redefinição da matriz formativa deve compor e orientar o projeto político-pedagógico da escola, como construção coletiva que espelhe o seu percurso e explicite os compromissos dos educadores com seus educandos. Mas as discussões sobre a direção deste processo de mudança e especificamente a definição da base de conhecimentos que deve ser trabalhada pela educação escolar não devem ser feitas apenas no âmbito de cada escola (da mesma forma que não devem deixar de envolvê-la), mas devem ser objeto de trabalho coletivo de uma rede de escolas e ou de agentes educativos com identificação de projeto, em nosso caso uma rede constituída pela mediação do movimento social.

34. A matriz formativa da escola atual é teoricamente cognitivista (faz de conta que as outras di-mensões não existem) e na prática atual assume uma matriz comportamentalista: como reação aos comportamentos dos estudantes, reflexos da lógica insana de sociabilidade que os forma e que precisam

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ser inibidos para que esta lógica não ecloda em barbárie pura ou, pior ainda para o sistema, em alguma forma de rebeldia organizada; e ou como busca de “competências comportamentais” (que na educação massiva têm predominado como metas sobre as cognitivas) necessárias às exigências do mercado de tra-balho assalariado a que se subordina.

35. Na matriz formativa que nos orienta educação escolar não é igual à transmissão de conteúdos e também não é igual à construção de competências (sejam cognitivas ou comportamentais). Ela envolve diferentes dimensões: a instrução que vincula apropriação de conteúdos com desenvolvimento cogniti-vo, o desenvolvimento corporal, artístico, cultural, a capacitação organizativa, a formação de valores, o desenvolvimento da afetividade, da consciência ecológica... dimensões articuladas por objetivos forma-tivos direcionados por um projeto histórico, de sociedade, de humanidade.

36. Não é possível trabalhar na escola de acordo com esta matriz formativa sem romper com a forma escolar atual porque ela foi constituída desde outra concepção e com outras finalidades educativas. Por isso não tem como discutir a dimensão do currículo fora da discussão das transformações necessárias na organização escolar, no funcionamento geral da escola, no seu isolamento em relação à dinâmica da vida. Se tentarmos atuar desde outra matriz formativa somente no tempo e espaço específicos da sala de aula (e em sua lógica atual), enlouqueceremos todos (educadores e educandos) e ou implodiremos o processo formativo. A nova matriz implica no repensar de tempos e espaços educativos na escola.

37. Um aspecto fundamental no repensar a forma da escola é, pois, o de descentrá-la da sala de aula e especificamente do ensino: a escola toda, sua organização, seu ambiente, suas relações sociais, é que deve educar, ser pensada com intencionalidade educativa. Em nossas práticas a organização de diferen-tes tempos educativos tem ajudado a materializar a concepção da escola como totalidade educadora. Mas continua como desafio pedagógico a construção de uma lógica de trabalho educativo que articule na mesma totalidade (do currículo) diferentes esferas de práticas, sem tolher a potencialidade educati-va específica de cada uma nem desconsiderar que implicam em métodos pedagógicos específicos, com aprendizados, tempos e processos avaliativos diferenciados.

38. O ensino, entendido no sentido estrito de atividades de estudo que têm o foco na transmissão/apropriação de conteúdos, não esgota o trabalho com o conhecimento, que não precisa acontecer ape-nas em sala de aula ou nos tempos educativos destinados especificamente ao estudo. Mas o ensino continua sendo muito importante na tarefa educativa da escola, requerendo planejamento didático ou de métodos de trabalho específicos, pensados desde a natureza dos conteúdos a serem apropriados e do conhecimento científico já acumulado sobre como se desenvolve a aprendizagem nas diferentes idades e etapas da formação do ser humano. E o papel do ensino nos remete a reafirmar que não se trata então de relativizar ou diminuir o papel do educador, do docente, como às vezes se pensa. Para que aconteça a aprendizagem é fundamental a interação entre educador e educando, com tarefas diferentes, mas ar-ticuladas, seja no desenvolvimento de aulas expositivas ou em atividades cujas ações principais estejam com os estudantes (pesquisas, oficinas, leituras), mas que então serão acompanhados pelos professores. Em qualquer caso é preciso ter presente que sem uma relação ativa dos educandos com os conteúdos de ensino, não haverá aprendizagem e não se chegará ao conhecimento.

39. Uma escola de apenas 4 horas diárias ou até menos (como costuma acontecer em escolas do campo) não tem como dar conta de sua tarefa educativa nessa direção apontada. É preciso lutar pela ampliação do tempo escolar, mas tendo também o cuidado para não cair na armadilha de tentar puxar para dentro da escola (e sua lógica socialmente condicionada) o conjunto dos processos educativos da nova geração. Ou seja, nosso ideal educativo não é a “escolarização da formação humana”, na defesa de que as crianças e os jovens passem todo o dia de todos os dias de sua vida dentro da escola, o que seria negar-se a enfrentar as

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contradições da sociedade atual (materializada na comunidade, no assentamento, no acampamento) que deve educar as crianças em seus diferentes espaços e relações sociais. Precisamos de mais tempo de escola, exatamente para que ela consiga sair de si mesma e se deixe ocupar por processos ou práticas que serão mais formativas se acontecerem fora dela, mas desde uma mesma intencionalidade educativa. Estamos nos referindo à potencialidade do vínculo da escola com o trabalho, com atividades culturais, com lutas sociais, mantendo o desafio pedagógico específico de processar este vínculo como apropriação e produção de conhecimento. Isso efetivamente requer mais tempo e requer uma organização adequada do tempo disponível.

40. Entendemos que o vínculo da escola com o trabalho, que inclui a participação dos estudantes nos processos laborais que garantem o funcionamento da escola, é uma alteração fundamental na forma esco-lar desde os objetivos que temos. A escola que conhecemos foi desenhada como um lugar onde se separa o aprender do fazer, por isso sua centralidade absoluta na sala de aula. Para que não se “perca tempo” de transmissão de conteúdos e habilidades necessários à inserção na sociedade, no mercado de trabalho. A prática, o fazer no interior da escola, subverte a sua forma convencional e pode acostumar “mal”: habi-tua as pessoas ao encontro com o produto de seu trabalho, a aprender intervindo na vida real. E ela nos relembra a condição fundamental dos sujeitos que somos: trabalhadores. Isso não é igual aos estudantes simplesmente trabalharem ou cumprirem alienadamente tarefas na escola. Porque essa prática a forma es-colar capitalista pode assimilar bem à medida que ela barateie custos da educação dos trabalhadores para o sistema. Estamos tratando de algo mais radical, complexo, que é de tornar o trabalho a base integradora do projeto formativo da escola, vinculando os conhecimentos escolares ao mundo do trabalho, da produção, da cultura que o trabalho produz. Isto implica em rever as formas de organização do trabalho do conjunto da escola, dos educadores e dos educandos. Também implica em examinar as possibilidades de vínculo da escola com processos produtivos que acontecem em seu entorno, pensando especialmente no envolvimen-to da juventude e no desafio específico de formação para o trabalho, o que inclui uma crítica à sua forma alienada na sociedade capitalista, que será muito mais contundente se fundamentada na vivência prática de outras formas de relações de trabalho.

41. Processos de transformação da escola na direção que pretendemos implicam também em explicitar as formas de organização e de gestão da vida escolar tornando-as objeto de nossa intencionalidade educa-tiva. Construir formas mais participativas, coletivas, alterando relações de poder secularmente instituídas, não é apenas um detalhe que colocamos em nossas experiências de escola (ou de cursos formais) para “co-piar o jeito de funcionar do Movimento”. Na lógica da escola capitalista as formas organizativas devem agir sobre os educandos da classe trabalhadora para que aprendam a obedecer, se não a um patrão autori-tário, a regras impessoais de uma ordem social que não pode ser mexida; também para que aprendam que há uma separação necessária entre trabalho manual e trabalho intelectual. Mas a atuação pedagógica das formas organizativas da escola será mais eficaz se acontecer sem que educandos e educadores percebam, sem que as contradições envolvidas apareçam (porque elas podem fazer aparecer as contradições sociais que reproduzem). Tem sido nosso desafio construir coletivamente uma outra lógica de organização e de gestão, avançar na auto-organização dos estudantes, na constituição de coletivos de educadores, na relação da escola com a comunidade.

42. Na forma de organização do plano de estudos, uma transformação fundamental da escola é que passe a trabalhar diretamente com fenômenos da realidade atual (em todas as etapas da educação básica e em todos os ciclos etários, com variações que respeitem suas características específicas), tornando-os eixos organizadores do currículo ou da articulação do trabalho com os conteúdos, seja através das disciplinas (que nessa forma não têm mais um trabalho independente ou isolado do conjunto do processo educati-

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vo) ou já de novos arranjos de conteúdos relacionados às ciências e às artes, que devem continuar como referência para os estudos escolares. Exigir que a escola trate de questões da atualidade subverte a lógica de trabalhar o conhecimento escolar de forma fragmentada e como se ele tivesse sido produzido fora da vida social, da política, da cultura, da história, desafiando a um repensar da forma do trabalho pedagógico com o conhecimento, que valorize diferentes modos de conhecer, que rearticule teoria e prática, conteú-dos escolares e vida real, conteúdos entre si, indo bem além da chamada “contextualização de conteúdos” e facilitando a apropriação de determinados conceitos e métodos de produção do conhecimento que são necessários à formação dos estudantes.

43. Defendemos que é preciso garantir no trabalho pedagógico escolar o vínculo entre conhecimento e realidade pela visão de mundo que assumimos: queremos transformar a realidade. Mas não se trata de tra-balhar apenas com os conhecimentos produzidos desde uma base direta na realidade. Há conhecimentos que são abstrações puras, mas que podem nos ajudar a compreender determinados aspectos da realidade ou desenvolver certas habilidades de pensamento que tornam sua apropriação muito importante. Por isso os educadores precisam estar teoricamente preparados para fazer a seleção dos conteúdos e por isso também essa não deve ser uma decisão isolada de cada educador e nem mesmo de cada escola.

44. Mas nesse aspecto ainda é necessário situar melhor nossa perspectiva de reflexão, porque é em nome desta mesma palavra “realidade” que a visão neoliberal de escola tem defendido um pragmatismo curricu-lar que centra a pedagogia em artificiosas situações-problema que visam preparar os estudantes da classe trabalhadora para exigências (mais comportamentais do que técnicas) do mercado capitalista de empre-gos, em uma lógica onde os conteúdos e os próprios conhecimentos passam a ter um caráter instrumental e imediatista, não formativo. Também na mesma lógica se promove a invasão da escola pelos meios de comunicação de massa ou pela indústria cultural da alienação, promovendo-se o que tem sido analisado como uma outra forma de ignorância: aquela em que o excesso de informações (desde determinada visão de “realidade”) paralisa o conhecimento porque impede o processo de chegar a ele. Em mesmo nome de relação entre conhecimento e realidade temos visto se realizar práticas curriculares onde se conversa sobre temas da atualidade, mas não se chega a avançar para um patamar de conhecimento que vá além do que os estudantes já tinham antes. Não é essa a direção de nossa reflexão. Para nós o vínculo entre conhecimento e realidade visa a ampliação do acesso e a produção pelos trabalhadores de conhecimentos que ajudam na sua humanização (nesse tempo de desumanização acirrada), conhecimentos que são necessários à formação de sujeitos coletivos, às lutas sociais emancipatórias, à compreensão das contradições sociais em que vivem, à solução de problemas enfrentados no cotidiano, ao cultivo do desejo de transformar o mundo...

45. Não queremos uma escola verbalista e propedêutica e não queremos a instrução em si mesma, mas queremos teoria, queremos instrução. Nossos objetivos sociais e formativos exigem que tentemos garantir na escola um trabalho de apropriação e de produção teórica sério, que permita chegar a uma compreen-são rigorosa da realidade, do mundo, mas não uma compreensão afastada da realidade estudada, ou seja, aquela que deixa o sujeito que estuda como um observador frio, distante, insensível, ainda que conhecedor. Para nós a instrução integra um projeto de formação que tem objetivos de transformação coletiva da rea-lidade, com intervenções organizadas na direção de um projeto histórico. E a instrução é trabalho com o conhecimento, que nem sempre é a perspectiva do rol de conteúdos escolares e que não é igual a domínio de informações, embora as inclua. O conhecimento implica em uma organização de informações com um determinado sentido capaz de interferir na compreensão da realidade e na atuação sobre ela. E isso supõe uma capacidade de pensamento específica, e que precisa ser aprendida.

46. Uma das dimensões fundamentais da realidade atual de que a escola participa/deve participar diz respeito à sua inserção (de seus sujeitos) nas lutas sociais e suas organizações coletivas. A relação da insti-

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tuição escola com o sistema escolar, com o Estado, pode ser pelo menos matizada pela relação dos sujei-tos que a fazem, notadamente estudantes e educadores, com as comunidades onde cada escola concreta se insere, suas formas organizativas, suas lutas e demandas específicas, bem como com as organizações e movimentos sociais de que estas comunidades fazem parte. Esse vínculo dá um outro sentido ao debate da autonomia escolar (necessária em relação ao Estado burguês, mas não em si mesma), à construção do projeto político-pedagógico da escola, ao próprio estudo das questões da realidade (dimensão alargada e histórica das questões a serem tratadas). Este vínculo entre escola e movimento social tensiona porque põe em contato lógicas contraditórias, demandas às vezes conflitantes, mas esta tensão enriquece o pro-cesso educativo porque não o aparta da lógica da vida real. É desafio permanente pensar sobre como a escola pode trabalhar pedagogicamente essa inserção, como fazer dela também objeto de conhecimento e extrair lições para o processo formativo de educandos e educadores.4

47. O trabalho pedagógico da escola com o conhecimento deve ser organizado, pois, de modo a permitir que a vida real impulsione os estudos, o trabalho científico, o que supõe a articulação teoria e prática (perspectiva da práxis) e o aprendizado de como isso se faz concretamente, diante de processos vivos e exigentes de soluções reais: por isso é fundamental que se estabeleça o vínculo do estudo com o trabalho, com processos de organização coletiva, com lutas sociais.

48. Consideramos que é necessária a vivência da relação entre teoria e prática no interior do próprio ambiente escolar, ainda que não tenha como se esgotar dentro da escola e também que essa relação não possa ocorrer em todos os momentos e em todas as situações de aprendizagem (pelo tempo e pelas condições objetivas que isso exigiria). Esta convicção se apóia em uma concepção de conhecimento que supõe o movimento da práxis e no objetivo formativo (estratégico para a classe trabalhadora) de atuar na perspectiva de superação da contradição entre trabalho manual e intelectual.

49. Em nossa concepção de escola a organização do trabalho pedagógico não está, então, centrada na transmissão dos conteúdos, mas não os nega nem relativiza sua importância e sim ao contrário quer dar mais sentido a eles pela busca permanente de seu vínculo com a realidade, com as questões da vida das pessoas. Nossos objetivos formativos não podem ser atingidos apenas pelo ensino transmissivo de conteúdos mais críticos. É possível formar ideias avançadas em sujeitos submissos e passivos. Em mui-tos lugares se faz isso. Nós queremos (precisamos enquanto classe e na direção de seres humanos mais plenos) formar sujeitos não submissos, organizadamente ativos e orientados por uma determinada visão de mundo. E isso não tem como garantir apenas através de conteúdos teóricos, por mais avançados e críticos que eles sejam nem mesmo apenas pelas atividades de estudo e muito menos pelo estudo passivo de conteúdos fragmentados e descolados das questões da realidade. Não podemos nos dar ao luxo de deixar o tempo da escola de fora dos desafios formativos mais amplos que temos. Mas nossas urgências históricas, nesse caso e porque pertencemos a uma classe portadora de futuro, podem potencializar um processo educativo muito mais denso de aprendizados e na direção de uma humanidade mais plena.

50. Queremos estudar os fenômenos ou as questões da vida em toda sua complexidade, tal como existem na realidade (ainda que não apreendidas assim na vivência cotidiana ou nas aprendizagens es-pontâneas). Precisamos, portanto, de uma abordagem do conhecimento que dê conta de compreender a realidade como totalidade, nas suas contradições, no seu movimento histórico. Por isso o materialismo

4 O horizonte de concepção, para além do mundo da pedagogia, a que se refere esta dimensão do trabalho educativo e desde nossa perspectiva de classe podemos encontrar em Marx: “Tanto para a criação em massa da consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade” (A ideologia alemã).

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histórico-dialético é nossa referência principal e a obra de Marx um bom exemplo aos educadores de como e em que perspectiva trabalhar com o conhecimento científico.

51. Mas em nossas práticas continua o desafio pedagógico do como fazer o estudo dos fenômenos da realidade garantindo uma apropriação rigorosa do conhecimento teórico, científico, já acumulado pelos esforços da humanidade em compreender e interferir nas questões da vida em cada época, e tendo a me-diação de práticas sociais concretas. Nossa experiência mostra que não basta afirmar aos educadores que é preciso juntar realidade e conteúdos, integrar estudo com trabalho: é necessário um esforço coletivo de construir um jeito, um método, de fazer isso na prática escolar cotidiana, aprendendo com as diferentes tentativas historicamente feitas nessa direção, de modo a não tentar deixar de ser refém dos conteúdos para ficar refém das práticas (que assumem uma dinâmica própria, inclusive de tempos) e nem resvalar para um novo tipo de fragmentação, que estabelece momentos diferentes para práticas, para conversas ou discussões sobre questões da realidade e para estudo de conteúdos, fugindo novamente da tarefa de síntese, ou deixando-a para os educandos e individualmente.

52. Algo que já entendemos, a partir das diferentes experiências pedagógicas em que estamos envolvi-dos, é de que quanto mais complexa a questão da realidade mais conceitos envolve, mais rico o processo de conhecimento e de construção do pensamento ou das habilidades intelectuais dos estudantes. Isso nos remete à importância dos critérios de seleção das questões da realidade que devem integrar o plano de estudos, considerando sua relevância para a própria realidade (dimensão social, problemática local ou de época...) mas também sua potencialidade no trato formativo do conhecimento: quais os conceitos e categorias que podemos trabalhar através de uma ou de outra questão da realidade, ou que são neces-sários para o seu entendimento mais profundo. Ou seja, parece necessário um movimento sistemático entre a problematização dos fenômenos da realidade selecionados para estudo, feita na relação com as práticas concretas às quais se conseguir vinculá-los na ou desde a escola, de modo a identificar conceitos, categorias, procedimentos necessários para compreendê-los e identificar também a que ciências ou ou-tras formas de conhecimento elaborado se referem, e a análise dos conteúdos consolidados pela tradição escolar, considerando as características de cada idade e os objetivos das diferentes etapas da educação básica. Deste movimento talvez efetivamente se produza um currículo e uma forma de trabalho peda-gógico mais coerente com a concepção de educação e de escola que tratamos nessa síntese.

53. Cada um dos pontos indicados neste texto requer aprofundamento teórico e detalhamento es-pecífico em nossos estudos e na experimentação prática das escolas, que estão em nossa rede de projeto político e pedagógico. Temos presente que as transformações não acontecem de um momento para o outro e a escola não muda toda de uma vez. E que trabalhamos dentro de condicionamentos sociais que talvez não nos permitam realizar todo nosso projeto de escola neste momento histórico. Mas nossos ob-jetivos formativos de futuro nos exigem tentar colocar a escola em movimento de transformação agora, que pode ser iniciado a partir de um aspecto ou outro, mas que precisa ser pensado ou projetado como totalidade e como processo, e um processo que para nós deve ser necessariamente coletivo. Podemos dar um passo de cada vez, mas se temos clareza sobre a direção da nossa marcha, temos mais força para continuá-la e também mais discernimento sobre quando e onde é possível dar passos mais largos e quais devem ser as lutas prioritárias e as tarefas que merecem nossa persistência, quem sabe de vida inteira.

54. Também não podemos esquecer que se nossa luta continua sendo para que “a escola seja mais do que escola”, no sentido de assumir-se como parte de uma totalidade formadora mais ampla, a vida, a luta por ela, não cabe dentro de uma escola (mesmo que derrubadas suas paredes, suas cercas) e as lutas pedagógicas não substituem as lutas sociais e políticas mais amplas, ainda que também na pedagogia a vida não seja defendida somente com palavras...

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DESAFIOS DE FORMAÇÃO DA JUVENTUDE

“... O tempo é escasso: mãos à obra! Primeiro é preciso transformar a vida, para cantá-la, em seguida”.

Maiakovski, poeta russo.

De 19 a 23 de março de 2013 realizamos na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema/SP, o “Seminário Nacional Juventude e Ensino Médio nos Assentamentos de Reforma Agrária”. A ati-vidade foi coordenada pelos coletivos nacionais de educação e de juventude do MST e teve como par-ticipantes educadores de escolas de educação básica de assentamentos, membros do setor de produção, cooperação e meio ambiente e dos coletivos de educação, cultura e juventude dos Estados, do coletivo político-pedagógico do Instituto de Educação Josué de Castro e da ENFF, além de contar com uma representação de jovens estudantes do ensino médio de escolas de assentamento e alguns convidados de instituições parceiras. Foram 90 participantes de 14 estados e do DF.

Um dos objetivos principais do seminário foi socializar e discutir resultados de uma pesquisa realiza-da com um grupo (amostra) de jovens de 14 a 21 anos das áreas de reforma agrária dos estados do RS, MS, PA, MA, CE e PE1. Outro objetivo central foi de identificar, pela agenda de interesses e problemas levantados pelos jovens, questões prioritárias para qualificação do projeto educativo da juventude, in-cluindo o projeto político-pedagógico das escolas de educação básica e particularmente de ensino médio.

O foco dos debates esteve em torno dos desafios que temos como organização social em relação à formação de nossa juventude, não apenas na escola, mas no conjunto das vivências formativas que po-dem ser intencionalizadas pela nossa atuação. As discussões foram organizadas em torno dos eixos que orientaram a pesquisa realizada com os jovens dos assentamentos: trabalho, organização coletiva e luta social, cultura e escola.

Neste texto buscamos sistematizar algumas questões centrais dos debates, sem pretender esgotar to-dos os elementos trabalhados no seminário2. O objetivo desta síntese é de orientar a continuidade da discussão de uma agenda político-formativa do MST com a juventude, de modo que os desafios identi-ficados possam ser convertidos em linhas de ação dos diferentes setores de trabalho da organização, cada um desde a especificidade de sua atuação. No final desse documento apresentamos algumas proposições já nessa perspectiva.

Discutimos no seminário e definimos trabalhar internamente com um conceito de juventude que a compreende na faixa etária alargada de 12 aos 29 anos, considerando-se então que há características di-ferenciadas de cada ciclo de idade que precisam ser respeitadas no trabalho formativo. Nossos coletivos de juventude costumam envolver jovens a partir de 15 ou 16 anos, sendo um desafio específico pensar

1 Foram objetivos principais da pesquisa feita com apoio do Unicef, que também apoiou a realização deste seminário: – ter uma amos-tra de dados sobre quem são e o que pensam os jovens da faixa etária de 14 a 21 anos das áreas de assentamento de reforma agrária vinculadas ao MST; – fazer um diálogo com a juventude dos assentamentos identificando sua agenda de interesses e questões, visan-do especialmente à qualificação do projeto educativo do ensino médio em escolas do campo.

2 Há um relatório descritivo dos diferentes momentos do seminário, incluindo o resumo dos dados levantados na pesquisa, que está sendo disponibilizado aos participantes do seminário e aos seus coletivos.

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uma atuação na faixa de 12 aos 15 anos (que costuma ser classificada como fase da adolescência), talvez hoje a faixa etária menos atendida pela intencionalidade formativa mais ampla do Movimento.

Considerando o percurso dos quase 30 anos do MST, a análise da conjuntura atual e o projeto de classe assumido pela nossa organização no modo de conduzir e de resistir na luta pela Reforma Agrária no Brasil, há alguns grandes desafios em que estamos envolvidos. Eles não dizem respeito somente aos jovens, mas precisam ser assumidos como objetivos da formação da juventude se pretendemos que essa luta efetivamente continue.

Como foi dito durante o seminário, o momento atual de bloqueio da reforma agrária nos exige um grande esforço de superação, mas não de negação do que fizemos como MST ao longo destes 30 anos. Se a juventude negar essa história estará negando a si mesma, como fruto das lutas e projeção de futuro. A reforma agrária popular será o que os jovens se dispuserem a fazer daqui para frente e todos, de todas as gerações, estamos convocados a manter essa bandeira erguida, no rumo do horizonte da sociedade socialista.

Desafios do momento atual

1. Formar lutadores e sujeitos políticos em um período de descenso das lutas de massa e de despolitização da vida social. Este é o momento atual, em que as contradições se acirram, mas não se explicitam à grande maioria e o ambiente social ideologicamente construído é desfavorável à participação política, referencia o isolamento e a ideia de que luta e organização coletiva são coisas ultrapassadas. O reas-censo das lutas, e mesmo da luta específica pela reforma agrária, não acontecerá apenas pela atuação do MST. Mas não podemos desconsiderar que nossos assentamentos carregam uma identidade de luta que pode ser um diferencial importante nesse reascenso, desde que cultivemos essa identidade e exercitemos a participação política de todas as gerações, cada qual com suas tarefas específicas, na resistência às iniciativas de desagregação e destruição das nossas áreas, na condução do nosso destino. Se a ofensiva está com os inimigos, quer dizer que não faltam razões para lutar e para participar, mas o momento nos exige sabedoria, porque as derrotas do último período têm pesado ideologicamente contra a classe trabalhadora. Sabedoria significa um conhecimento cada vez mais rigoroso da realidade atual, que nos permita agir nas contradições, formulando questões adequadas e proposições justas, combinado com cultivo de valores e convicções que firmem horizontes pelos quais lutar. A questão central dos debates de preparação do VI Congresso está formulada nessa perspectiva: qual o nosso projeto de reforma agrária e que argumentos temos para que essa luta continue sendo considerada necessária pela sociedade, porque projeta futuro?

Trabalhar com a juventude para inseri-la na luta no período de criação do MST parecia mais fácil. Acampar aos 16 ou 17 anos era uma opção efetiva para os filhos de trabalhadores Sem Terra e, mais adiante, para os próprios filhos de famílias assentadas. E é importante lembrar que o Movimento foi constituído por famílias inteiras e suas primeiras lideranças foram jovens. Hoje uma inserção mais vigo-rosa depende do avanço do debate sobre a reforma agrária popular e do envolvimento ativo dos jovens na construção do projeto estratégico da agricultura camponesa, começando pelos jovens dos assenta-mentos e acampamentos, e intencionalizando o trabalho que podem fazer com outros jovens, do campo e da cidade. A rebeldia, característica própria da juventude, precisa ser potencializada para lutas sociais e projetos coletivos. Isso requer hoje uma formação política que enraíze na história da luta de classes uma geração que ainda não conseguiu participar de lutas efetivamente de massa, não tendo a experiência pes-soal de vitórias ou derrotas de classe.

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E do ponto de vista formativo também não podemos esquecer que para o MST a luta social é uma matriz formativa fundamental, insubstituível. O embate, as situações de conflito aceleram a formação da consciência porque escancaram as contradições que movem a realidade e nos situam na história de que fazemos parte. E compreender a historicidade do real e saber enfrentar contradições e conflitos são aprendizados humanos fundamentais para nosso projeto, de sociedade, de humanidade.

2. Formar trabalhadores camponeses em um período de ascenso do agronegócio. O debate de construção do projeto de reforma agrária popular coloca em questão a contradição entre modelos de agricultura, identificada na oposição entre a agricultura capitalista (agronegócio) e a agricultura camponesa, com matrizes produtivas e tecnológicas diferentes, com lógicas opostas de pensar a relação do ser humano com a natureza (agrobiodiversidade), a apropriação da terra, as relações de trabalho. Nas formulações que estão em curso, não apenas pelo MST, mas por uma grande articulação de organizações camponesas, há questões que ainda precisam de amadurecimento. Mas já há um acúmulo suficiente, de compreens ão das contradições do modelo capitalista de agricultura e de práticas de agricultura camponesa, para não titubearmos no planejamento de uma atuação mais incisiva na formação da nova geração de camponeses. O problema é que esse acúmulo está pouco apropriado pelas instâncias e pela base do Movimento e temos uma incidência forte do agronegócio em nossas áreas (enquanto lógica de produção e enquanto ideologia), além de influências externas que reforçam preconceitos em relação à opção camponesa. Ao mesmo tempo temos experiências importantes de desenvolvimento da agricultura camponesa que con-firmam a justeza das proposições políticas que estamos fazendo, algumas delas envolvendo ativamente a participação da juventude assentada. O desafio é multiplicar estas práticas, e isso também inclui luta coletiva por fundos públicos que ajudem na produção e difusão de tecnologias apropriadas ao nosso pro-jeto (volta o desafio anterior da luta e que deve envolver os jovens e também suas escolas). É preciso obter conquistas para os trabalhadores camponeses, mesmo nesse momento de hegemonia do agronegócio, até para passar a mensagem aos jovens de que vale à pena lutar pelo nosso projeto. E, principalmente é preciso uma intencionalidade mais forte na denúncia da perversidade social, ambiental, humana, do modelo do agronegócio e das falácias dos discursos de seus defensores. Ou seja, no momento atual não tem como formar trabalhadores camponeses sem formar lutadores.

Do ponto de vista da formação da juventude há desafios específicos importantes. Não podemos na-turalizar a ideia de que a única alternativa de geração de renda para a juventude, sempre colocada como fator determinante de sua permanência no assentamento, é sua saída para o assalariamento precário. Os jovens precisam ser provocados a discutir a situação dos assentamentos a partir dessa nova chave de leitura, que é o debate da reforma agrária popular. Nosso esforço deve ser para que entendam que sua participação nesse novo momento da luta é a alternativa para não serem obrigados a deixar os assenta-mentos, o campo, em busca de trabalho. E nos assentamentos onde a situação ainda é de pobreza ou de subordinação à lógica do agronegócio, que reduz drasticamente as possibilidades de trabalho, não se tra-ta de esperar que alternativas sejam construídas pelos outros. Em muitos casos pode ser o protagonismo juvenil, vinculado organicamente à estratégia do Movimento, que produza alternativas ou que reverta a lógica de pensar a produção em nossas áreas. Isso já acontece em alguns assentamentos, onde grupos de jovens passaram a produzir alimentos agroecológicos para o programa nacional de alimentação escolar, por exemplo.

Outro desafio que temos é de envolver os jovens desde cedo, 12 ou 13 anos, em práticas mais de-senvolvidas de produção agrícola camponesa, onde elas já existem e onde há possibilidades para que se criem. Isso exige, do ponto de vista de concepção educativa, a reafirmação do trabalho como base da

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formação do ser humano, algo que tem sido relativizado inclusive em nossas áreas. Na lógica da agri-cultura camponesa a ideia do trabalho familiar é retomada, mas precisa ser feita em patamares de tra-tamento que elevam a qualidade da vida humana e as potencialidades de desenvolvimento da infância e da juventude e não o contrário.

3. Unificar as lutas dos trabalhadores nesse momento de descenso e de mobilizações restritas e corporativas. A construção do projeto de reforma agrária popular não pode ser (não está sendo) obra do MST apenas. O avanço no confronto real, prático, entre modelos de agricultura depende da unidade de lutas e de pro-jeto entre as organizações camponesas e, mais amplamente, do conjunto dos trabalhadores do campo, incluindo os assalariados do agronegócio, nem sempre sindicalizados e muitos ainda vítimas do trabalho escravo. Precisa também da aliança com os trabalhadores da cidade, mas tendo presente que essa aliança depende de avançarmos na proposta de reforma agrária e de agricultura que dispute a visão predominan-te na sociedade, inclusive entre os trabalhadores, que não identifica a oposição entre modelos e considera o agronegócio como a garantia de mais alimentos, por confundi-lo com o todo da produção agrícola do país. A reforma agrária não é nesse momento uma pauta comum ao conjunto dos trabalhadores.

Há muitos jovens, especialmente da faixa etária acima dos 17 anos, envolvidos no desafio de unifica-ção dos debates e das lutas. O encontro unitário de 2012 representou um avanço significativo e contou com a participação da juventude. Mas isso precisa ser desdobrado em ações específicas de articulação de jovens de diferentes organizações camponesas, inclusive para ampliar o desenvolvimento de grupos de produção. É desafio articular lutas e atividades entre jovens do campo e da cidade, para pautas comuns da juventude, mas também para que se pautem questões do campo que afetam a todos. Essa é uma dis-cussão importante: não é negando a especificidade camponesa que a juventude de nossas organizações avançará para uma articulação de classe, mas sim tratando de questões que formula desde a materialida-de de sua inserção social no bojo de uma totalidade mais ampla, discutindo os vínculos com outras ques-tões formuladas pelos jovens desde outras vivências, outros debates e que também dizem respeito a to-dos: lutas pela democratização dos meios de comunicação ou contra os leilões do petróleo, por exemplo.

4. Preservar e radicalizar o protagonismo dos camponeses na condução de suas lutas e do seu destino his-tórico. Este protagonismo é um patrimônio construído na luta pela reforma agrária em nosso país e é ele que historicamente motivou tanto combate às organizações camponesas, mesmo quando defende-ram um tipo de reforma agrária feita nos marcos das relações capitalistas. O protagonismo coletivo dos trabalhadores assusta a burguesia. E o dos trabalhadores camponeses, em particular, assombra hoje o agronegócio, como historicamente tem assombrado os donos dos latifúndios. Protagonismo significa ser sujeito direto da análise da conjuntura, da tomada de decisões e de sua implementação. É luta feita pelos próprios trabalhadores envolvidos e não por representação. É constituição de organizações autônomas, o que não quer dizer que atuem de forma isolada, mas cujas alianças não interferem no seu rumo político.

Na formação da juventude trata-se de uma dimensão fundamental: aprender a ser protagonista pela efetiva participação em práticas sociais que exijam esse protagonismo. Não se aprende a tomar decisões sem ter que tomá-las, muitas vezes, e sem assumir a prática e os resultados das decisões tomadas. Não se aprende a ser protagonista se todos os espaços de participação são tutelados. O exercício da auto--organização coletiva e autônoma dos jovens é fundamental no perfil de lutadores e construtores que precisamos formar. E o aprendizado da organização implica em aprender a subordinar-se ativamente a um coletivo. Por isso mesmo, para os objetivos que temos, a formação do protagonismo juvenil é questão complexa, que em alguns lugares se torna um impasse: precisamos formar a juventude como protagonis-

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ta e militante de uma organização coletiva construída por diferentes gerações e comandada, de modo geral, por adultos (ou jovens adultos). Militantes são aquelas pessoas que se colocam a serviço da orga-nização e de sua causa. O desafio é garantir nas tensões das práticas concretas o justo equilíbrio entre protagonismo e subordinação ativa a uma organização coletiva, entre os coletivos de jovens e o conjunto da organização, entre as pessoas e seus coletivos. Já aprendemos em nosso percurso sobre a importância da auto-organização dos jovens em grupos específicos, para atividades específicas, vinculadas organi-camente ao Movimento. Mas no seminário discutimos que ainda é desafio pensar as formas que essa auto-organização pode assumir, considerando as várias dimensões da vida, e sem deixar de enfrentar o desafio de participação dos jovens na construção de novas relações sociais nos assentamentos, mexendo com a dimensão fundamental do trabalho produtivo. Da mesma forma que na escola ou para atuação sobre a escola essa auto-organização é necessária e formativamente muito fecunda.

5. Educar para uma visão de mundo socialista em um tempo de hegemonia do neoliberalismo. Há um embate vital de valores que fará a diferença no desenlace das lutas do momento atual. Quanto mais as contradições fundamentais do modo de produção capitalista se acirram, correndo o risco de serem percebidas por mais gente, fica ainda mais forte a investida de legitimação do sistema no plano cultu-ral, ideológico. O neoliberalismo produziu e usa como armas alguns pilares fundamentais de defesa do capitalismo: individualismo, consumismo e cultura de ganância, presenteísmo, hedonismo insensato (culto absoluto ao prazer, individual e imediato)3. Quem orienta sua vida por esses valores (para nós, antiva-lores) não se formará como lutador social e construtor de uma sociedade fundamentada em parâmetros socialistas de relações sociais e humanas. Todas as gerações estão sendo vítimas dessa investida ideológi-ca, mas o estrago tem sido maior na juventude, exatamente por ser essa uma fase da vida de definições, de construção da identidade, de firmar uma visão de mundo.

Quem trabalha com jovens hoje sente o peso do que significa educar uma geração que é filha da he-gemonia ideológica do neoliberalismo. Em nosso caso, os desafios anteriores, se assumidos como chaves organizadoras da formação da juventude, já se colocam em uma ofensiva contra-hegemônica. Mas há desafios específicos do plano cultural que foram destacados nas discussões do nosso seminário. Um de-les se refere aos padrões de consumo, que se relaciona à questão de como se dimensiona a necessidade de renda monetária. É preciso uma intencionalidade educativa forte (e a escola também pode ajudar nisso) para tornar consciente e objeto de análise coletiva a distinção entre necessidades reais objetivas, plano do valor de uso, e falsas necessidades criadas pela ideologia de que “ser é consumir” e consumir quer dizer comprar mercadorias.

Um outro desafio formativo específico, que se desdobra desse primeiro, tem a ver com a noção de lazer. É recorrente a ideia, que apareceu também na pesquisa feita com nossos jovens, que a falta de lazer é um dos motivos da saída dos assentamentos. O lazer é reconhecidamente uma dimensão necessária à vida humana mais plena. Mas a ideologia neoliberal nos faz acreditar que existe uma relação necessária entre lazer e consumo, que o lazer é mercadoria a ser comprada e está sempre longe de onde estamos e do que já fazemos. Contraditoriamente (ou não, na lógica capitalista), se o lazer é algo que se compra, é preciso trabalhar mais para isso, e cada vez mais se o desejo for pelo acesso a formas mais sofisticadas (caras) de lazer, o que então não deixa tempo nem fôlego para desfrutá-lo. O lazer, como forma de ativi-dade humana criativa, demanda trabalho, mas não para comprá-lo e, sim, para sua criação, organização.

3 A expressão “hedonismo insensato” é de Terry Eagleton em Marx estava certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 3, que iden-tifica nesse culto ao prazer um dos ingredientes que somam no momento atual de distorção constante do significado e do sentido da existência humana.

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Jovens que vão para a cidade em busca de lazer, geralmente não têm a compreensão do que poderiam realizar, no assentamento ou fora dele, no campo ou na cidade, desde essa outra lógica. Mas há muitas práticas culturais juvenis em nossas áreas em outra perspectiva: grupos de teatro, de capoeira, bandas de música, cinema da terra, saraus literários, gincanas, festas comunitárias... Essas práticas fazem o con-fronto aberto, ainda que com forças bem desiguais, à lógica da indústria cultural, que é o nome do modo como o capitalismo organiza essa investida ideológica no plano da cultura.

No mesmo plano está o desafio de enfrentar questões fortes na agenda da juventude como sexua-lidade, afetividade, relações de gênero, religiosidade, acesso a diferentes tecnologias, uso de drogas e álcool, desde os mesmos parâmetros contra-hegemônicos com que no Movimento costumamos tratar as questões do trabalho, da luta, da organização coletiva. Quando a luta vai mais devagar, quando há mais derrotas do que vitórias no plano político, também militantes podem deslizar para antivalores, na argumentação falaciosa de que é preciso cultuar o prazer enquanto se luta, desprezando vínculos, senti-mentos, projeto de futuro. Ou então se alienar em mistificações religiosas, tecnologias mitificadas e ma-nipuladoras (mau uso de redes sociais, por exemplo) ou em vícios que se afirmam enganosamente como provisórios (“posso largar no momento que eu quiser”). O período atual tem nos mostrado que estamos menos imunes a isso do que pensávamos estar. E há ameaças diárias de “suicídio”, político, humano, que é a opção de “cada um ir cuidar (ou descuidar) de sua vida”. Por isso mesmo a intencionalidade em outra direção precisa ser reforçada.

E uma das intencionalidades que aprendemos em nosso percurso se refere ao cultivo da mística revo-lucionária, que combina a atuação das matrizes formativas da cultura e da história. No MST a mística tem sido uma atividade forte para relacionar memória e história, valores, conhecimento e arte, marcan-do simbolicamente o vínculo entre passado, presente e futuro. Jovens costumam ter especial relação com o presente, com a novidade. Mas não é próprio da juventude e, sim, perversa deformação encontrar jovens sem projeto de futuro e que desprezam o passado, as experiências das gerações anteriores, inclu-sive de pais, educadores, dirigentes, como se tudo estivesse começando com eles e valesse viver “como se não houvesse amanhã”. Não há luta social de futuro que se faça com base nesse sentimento. Essa inten-cionalidade tem relação também com o cultivo ou a educação das emoções necessárias para consolidar convicções e valores. Não se pode ser um lutador convicto sem ter paixão pela luta, sem ter amor pelos camaradas e sem odiar o que se está combatendo. Assim como não se pode construir o novo sem entu-siasmo, sem sentimentos fortes de alegria pela criação e pelo dar-se conta de que temos a capacidade de fazer, mesmo quando as condições objetivas são desfavoráveis. E muitos estudiosos do desenvolvimento humano já insistiram sobre o papel da arte na educação das emoções, algo que nós testemunhamos com frequência, exatamente nos momentos de mística, onde mais explicitamente política e arte se juntam. É, pois, um desafio sério, e prazeroso, ampliar os tipos de atividades da juventude que tenham a media-ção formativa da arte, tratando-a desde os parâmetros do desafio de formação para uma sociabilidade socialista.

6. Inserir a escola nos desafios de formação da juventude. Poderia parecer óbvia essa inserção, mas não é, pelo menos não nos termos que a defendemos. Formar seres humanos plenamente desenvolvidos, pre-parar lutadores e construtores de relações sociais mais justas e humanizadoras, é tarefa grandiosa demais para que se deixe a escola fora dela – da mesma forma para que se deixe somente por conta dela. Para que a escola participe dessa tarefa ela precisa reconstituir sua ligação com a vida, com as contradições sociais, um elo perdido exatamente pelas funções que o capitalismo determina à educação escolar: preci-sa que a escola se afaste da realidade para poder preparar trabalhadores subordinados às relações sociais

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que a constituem. O contato com as contradições sociais enquanto se estuda pode ser perigoso à ordem: primeiro as crianças e os jovens precisam ser preparados ideologicamente para tratá-las dentro dessa or-dem. E essa preparação tem menos a ver com conteúdos do que com as relações sociais que estudantes e professores aprendem se inserindo em uma forma escolar cuidadosamente pensada para esse objetivo. Por isso é tão difícil alterar a lógica de funcionamento da escola.

O MST, ao longo de seus 30 anos, tem assumido o desafio de pensar a escola desde os interesses sociais, históricos, de futuro, da classe trabalhadora. E tem se lançado, através de seus educadores e edu-candos militantes, a práticas que buscam transformar a forma da escola, agindo nas contradições que emergem em cada local. Nesse processo temos aprendido que há alguns pilares fundamentais na cons-trução da estratégia de mudança, para que nossas escolas se coloquem a serviço dos desafios de formação da juventude nos parâmetros aqui discutidos. Um desses pilares é justamente colocar os estudantes nou-tra posição na escola: de alunos subordinados e passivos a sujeitos ativos na condução da escola e de seu processo educativo. O outro pilar igualmente fundamental é de pensar o processo pedagógico de modo a colocar a juventude em contato com os problemas da vida, defrontando-se com as contradições sociais, o que requer que a escola se abra ao trabalho no sentido alargado de atividade humana criativa, ou seja, envolvendo as diferentes dimensões da vida concreta, e faça dessa inserção seu objeto central de estudo.

Note-se que não se trata de relativizar ou de secundarizar a tarefa específica da escola em relação à apropriação do conhecimento, às atividades de ensino. Na concepção de conhecimento que nos orienta, que é a do materialismo histórico-dialético, a relação entre teoria e prática é inerente ao ato de conhecer. E não tem como se apropriar verdadeiramente dos conteúdos das ciências e das artes sem essa relação. O ensino de conteúdos, em si mesmos, não é conhecimento, por isso nem ficam na memória dos estu-dantes depois que os testes passam! No processo educativo não podemos perder nem a prática nem o conhecimento teórico. E a escola estará ajudando bastante na formação política da nossa juventude se construir um método adequado de estudar história e de exercitar a análise da realidade, em situações da vida cotidiana, mas visando à compreensão do desenvolvimento histórico mais amplo: entender o que são contradições e como elas movem as transformações das sociedades, do ser humano, das relações entre ser humano e natureza.

O problema, para a ordem estabelecida, é que juntar em um só processo (mesmo lugar, mesmas pes-soas, mesma classe) práticas sociais, juventude protagonista e estudo científico sério, pode ser explosivo da ordem: ao compreender as contradições sociais a juventude pode querer enfrentá-las, pode se organi-zar para transformar a realidade e não apenas se subordinar ao que já parece determinado a ela.

Por isso mesmo, não é simples romper as barreiras da separação instituída entre escola e vida, assim como não é simples assumir essa concepção de conhecimento que defendemos. Não é ela que está na organização formal do plano de estudos da escola e não é ela que está já cultivada em nós mesmos que estamos buscando operar as transformações. Essa análise nos tem ajudado a compreender porque as mudanças em cada escola não podem ser feitas de forma impulsiva, improvisada, movidas apenas pela boa vontade de cada educador ou estudante. É preciso um planejamento coletivo rigoroso, justamente para que não se caia em mudanças aventureiras, em praticismos, para que não se negligencie conteúdos, não se fique falando da realidade em vez de aproveitar o tempo de escola para estudar ciência e arte que permitem compreendê-la e incidir nela. Já temos muitas práticas de escola na direção de nosso projeto educativo e o desafio é avançar na análise do que já fizemos e no estudo das condições de cada local, ajustando nossas lutas e ações a essas análises.

Uma chave de leitura que temos firmado nos últimos anos se refere a pensar a forma de materializar o vínculo entre escola e vida a partir das matrizes formativas que constituem a Pedagogia do Movimen-

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to: trabalho,luta social, organização coletiva, cultura e história, todas elas compondo a noção de trabalho como atividade humana criativa, princípio educativo4.

Tenhamos presente a reflexão anterior sobre protagonismo: as transformações da escola na direção do projeto histórico da classe trabalhadora serão obra dos próprios trabalhadores e não concessão da bur-guesia ou do Estado que representa seus interesses. Serão fruto do trabalho de educadores, estudantes e comunidades. Da mesma forma que o conjunto de desafios da formação da juventude aqui discutidos não serão enfrentados sem o protagonismo dos próprios jovens, junto com a atuação organizada e apai-xonada de todos nós.

Linhas de ação

1. Fortalecer a jornada da juventude em agosto nos Estados, pautando nesse ano a preparação ao VI congresso do MST, especialmente os estudos e debates sobre o projeto de reforma agrária popular e or-ganizando ações de denúncia sobre a perversidade do modelo do agronegócio.

2. Envolver a juventude em iniciativas do programa nacional de alimentação escolar visando massi-ficar sua implementação nas áreas de reforma agrária e como forma de discutir geração de renda com base na produção agrícola agroecológica.

3. Fomentar a organização de coletivos de juventude nos assentamentos, acampamentos, nas bri-gadas, regiões, planejando atividades para as diferentes faixas etárias, incluindo iniciativas de auto--organização dos estudantes nas escolas e visando qualificar a participação dos jovens na organicidade do Movimento.

4. Potencializar a participação de jovens em atividades de formação de base e em cursos de formação política organizados pelo Movimento ou outras organizações de trabalhadores.

5. Aprofundar compreensão sobre o papel da arte (e literatura) na formação humana, orientando práticas nas escolas e em outros espaços de organização da juventude. Estimular a criação de grupos artísticos nos assentamentos e acampamentos.

6. Orientar a participação dos jovens em atividades de trabalho voluntário, de modo que a solidarie-dade se torne uma cultura da nossa juventude.

7. Massificar a participação dos jovens, das diferentes faixas etárias, nas jornadas de luta pela cons-trução e melhoria das condições das escolas, na campanha “Fechar escola é crime!” e nas brigadas de alfabetização de jovens e adultos.

8. Fortalecer práticas e processos pedagógicos de escolas dos assentamentos e acampamentos que estejam na perspectiva dos desafios assumidos, garantindo o vínculo entre as escolas e entre elas e suas comunidades.

4 Há elementos dessa discussão específica sobre a aproximação da escola com as questões da vida concreta dos assentamentos através das matrizes pedagógicas no documento “Proposições às escolas de educação básica das áreas de reforma agrária”, produzida pelo seminário sobre formas de organização do plano de estudos, educação politécnica e agricultura camponesa, realizado pela região Sul no IEJC em novembro de 2012. E para a discussão específica sobre o ensino médio é importante retomarmos a leitura do documento “Caminhos da educação básica de nível médio para a juventude das áreas de reforma agrária” a partir do seminário nacional sobre educação básica de nível médio de setembro de 2006.

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II SEMINÁRIO NACIONAL DA INFÂNCIA SEM TERRA

Documento-Síntese

Sou Sem Terrinha do MST, acordo todo dia pra lutar você vai ver!Funk das Crianças RJ - CD Plantando Ciranda 3

ApresentaçãoO presente documento é uma sistematização do debate realizado durante o II Seminário Nacional da

Infância Sem Terra nos dias 30 e 31 de agosto de 2014, na Escola Nacional Florestan Fernandes, Gua-rarema/SP. Estiveram presentes1 no seminário, representantes dos Estados de PE, SP, PR, SE, PA, RN, CE, MA, SC, BA, PB, GO, MS, AL, RJ, RO e da Direção Nacional e das frentes estaduais da infância, representantes dos Setores e Coletivos Nacionais de Cultura, Comunicação, Juventude, Gênero, Frente de Massa, Produção e de Relações Internacionais.

O I seminário, realizado em 2007, tomou como foco da discussão o lugar da infância no MST. Percebia-se então o trabalho da infância como um trabalho do Setor de Educação e também, naquele momento, foram identificados problemas que tinham que ser discutidos pelo conjunto do Movimento em busca da definição deste lugar. A Marcha Nacional em 2005 proporcionou essa elaboração mais co-letiva sobre a infância, desde os desafios explicitados durante o processo de marcha e problemas a serem superados no lidar com ela. Construímos desde então a ideia de que o lugar da infância é no MST, no acampamento, no assentamento, na luta.

Hoje, novos desafios nos são apresentados. E nos perguntamos como está sendo o trabalho com as crianças e o que ainda temos a enfrentar. Nos desafiamos a pensar as estratégias que consideram a infân-cia no MST, inserindo-as no conjunto da classe trabalhadora, bem como os desafios que o capital nos impõe, desde a violência em todas as suas formas até os processos formativos e de resistência em curso no contexto da organização popular e da reforma agrária popular.

O II Seminário da Infância Sem Terra teve como objetivos: realizar o debate sobre a infância Sem Terra e o seu protagonismo no MST, projetando ações coletivas (intersetoriais) no trabalho de formação

1 Participantes: Flávia PE (Educação), Kelli SP (Formação DN), Cassia SP (CRI DN), Cristina SP (Educação DN), Salete PR (Edu-cação DN), Gislene SE (Educação DN), Rosa RN (Formação DN), Deusa PA (Educação), Reinaldo PR (Educação), Edgar RS (Educação DN), Nedinha CE (Educação DN), Inês MA (Direitos Humanos ), Careca MS (Educação), Adir SC (Educação), Isabel PR (Educação), Jacira BA (Educação), Edemilson PR (Educação) , Vera CE (Educação), Cleusa PR (Educação), Maria da Guia PB (Educação), Miriã SE (Educação), Eliane BA (Educação), Ana Lucia GO (Gênero DN), Sandra GO (Educação), Carla PR (Cultura), Luana MS (Cultura), Luana AL (educação), Tito PA (FM DN), Elis RJ (Educação DN), Fábio SP (Educação), Débora Marcolino AL (Produção DN), Raul SP (Coletivo de Juventude), Guê SP (Cultura), Zonália RO (DN FM), Marcinha SP (Educação), Lisandra SP ( Educação), Atiliana (DN Gênero), Marina MS (DN), Claudio RO (Produção), Mari MS (Educação), Rosana MS (Educação), Révero SC (Cultura).

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com as crianças; definir as linhas políticas para o trabalho para e comas crianças Sem Terra; fortalecer o compromisso de uma produção e sistematização coletiva da experiência no trabalho com a infância do MST.

As reflexões estão aqui divididas em quatro tópicos e o quinto são as linhas de ação no trabalho com a infância. O primeiro traz uma contextualização da criança no desenvolvimento do sistema capitalista e do Brasil; a segunda reflexão retoma a trajetória da infância no MST a partir do histórico do lugar que ela ocupou e ocupa hoje; o terceiro ponto traz alguns elementos que podem contribuir para a elaboração das matrizes formativas para a infância Sem Terra e por fim, a quarta reflexão com a sistematização dos nossos desafios e tarefas neste período e o quinto são as linhas de ação que orientam esse trabalho nos estados.

Assim, seguem reflexões sobre este tema, desde o acúmulo de 30 anos de MST.

Contexto histórico – A criança no desenvolvimento do sistema capitalista e BrasilMárcia Ramos

Para situar o lugar da infância no MST é necessário compreendê-la no contexto das relações econô-micas, políticas, culturais e sociais existentes na formação da sociedade brasileira e, portanto, também no desenvolvimento do capital.

A ideia de infância está relacionada ao processo do patriarcado e é anterior ao capitalismo. Em algu-mas comunidades, a criança é/era cuidada por todos e não está vinculada a um núcleo familiar. Com o surgimento da sociedade de classes, da propriedade privada e do modelo nuclear de família tradicional, também a criança teve seu lugar redefinido na sociedade. Sua inserção nessa forma familiar típica do patriarcado ocorreu no contexto do desenvolvimento do capitalismo.

Assim, desde a colonização do Brasil a infância pobre ocupou o lugar da mão de obra explorada e com o desenvolvimento do capitalismo ela vai também sendo apropriada como mão de obra, sobretudo na Revolução Industrial quando passa a ser compreendida como força de trabalho constituinte do siste-ma. Lugar também ocupado pelas mulheres desde esse período.

O lugar da infância se constitui nesse contexto e com as marcas dessa evolução específica e determinada historicamente no seio da sociedade capitalista, com características que são caras ainda hoje para ela.

Ao longo das últimas décadas, o Estado criou instrumentos legais importantes para a infância brasi-leira, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído na década de 1990,entre outras leis, que demarcam certa preocupação comesse período da vida humana.

No entanto, é igualmente verdade que são insuficientes estes instrumentos, tanto porque as crianças da classe trabalhadora ainda vivem em situação de descaso, tendo constantemente desrespeitados os direitos que conquistaram, quanto porque a infância ocupa um lugar a ela destinado no contexto do desenvolvimento do capital, que é o de potencial consumidora, objeto de lucro. As crianças foram asso-ciadas ao desenvolvimento capitalista e são violentadas diariamente de diferentes formas. Da educação infantil ao ensino médio lhes é incentivado um consumismo sem precedentes, sendo a mídia hoje, o instrumento de alto potencial para a construção do ideário burguês.

Através da educação, o capital separou as idades e criou espaços para que elas se encaixassem na or-dem: primeiramente na creche (até quatro anos de idade) e na pré-escola; depois, na escola com ensino fundamental, no qual recentemente foi adiantada a idade de escolarização para seis anos; os jovens, no Ensino Médio. Cada uma dessas “fases” foi separando a infância e “criando necessidades” para cada

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idade de modo que a totalidade dos sujeitos foi propositadamente sendo negada em sua formação, sepa-rando-os do adulto que trabalha e do idoso que teria o resto do tempo para “sobreviver” em casa, sem possibilidade alguma de questionar a ordem.

Esse é o projeto do capital para a infância: grupo social de alto potencial consumidor e objeto neces-sário hoje e amanhã, separando-o de sua essência de classe, do trabalho e de sua totalidade enquanto sujeito histórico.

Como qualquer outro grupo social, as crianças têm um papel fundamental na construção da socie-dade, por isso seu lugar está em disputa e tem centralidade nos embates pela manutenção ou transfor-mação da sociedade.

O lugar da infância Sem Terra: breve históricoIzabel Grein

A atenção à criança no MST não existe porque isso é bonito para nossa história, ela existe porque há concentração de terras em nosso país e existem famílias que lutam por seu direito à terra e à vida. A criança nasce embaixo da lona preta e, portanto, se torna parte dessa luta, se torna Criança Sem Terra. Assim, o lugar da infância no MST é em todo lugar; ela é parte da nossa organização e parte fundamen-tal da nossa vida e história.

Para início de conversa, precisamos compreender o MST como um movimento que está inserido nes-sa ordem e, portanto, sofre também com o desenvolvimento do capital. Mas é inegável que as crianças ao mesmo tempo constroem novas relações em seu interior, por isso é necessário refletir sobre como o MST trabalhou com a criança nesses 30 anos de história: quando começou, qual trabalho foi feito com elas, sob qual forma, de onde surgiu a necessidade de pensar uma metodologia para trabalhar com esses sujeitos. Perguntas como estas são fundamentais para pensarmos o trabalho com as crianças hoje.

A história do lugar da infância no MST está diretamente vinculada à luta e à organização das mu-lheres e surge inclusive antes do MST, com as companheiras que se tornam lideranças da luta da classe trabalhadora, trazendo a criança para o seio das relações de classe.

Ainda hoje, em geral, é hegemônica a ideia de que é tarefa da mulher o cuidado dos filhos e, no campo, essa realidade não é diferente. As crianças aparecem como sujeitos em meio à inserção das mu-lheres na luta: elas estavam junto com suas mães quando estas marchavam, quando e onde se reuniam, tornando-se sujeitos sobre os quais a organização precisava pensar para que se continuasse com a luta, dada a centralidade do trabalho feminino no seio das organizações da classe trabalhadora.

No interior do MST, foi no Ceará, na década de 1990, que se iniciou o trabalho de forma mais qua-lificada com as crianças, principalmente porque o número de mulheres na direção do Movimento era grande. Em 1996 a organização começou a refletir de forma mais sistemática sobre a infância, e a partir dos cursos de Magistério, esse debate passou a ser levado para o setor de educação, criando-se, então, a frente da infância Sem Terra.

A partir desta demanda de formulação sobre como trabalhar com a infância, educadores foram a Cuba para refletir acerca de como um país socialista trabalha com esse sujeito; lá entraram em contato com os círculos infantis e desta referência surgem as cirandas infantis, pensadas a partir da realidade bra-sileira. As cirandas se configuram como a forma do Movimento Sem Terra trabalhar com as crianças.

Neste período já existia a frente da infância Sem Terra no Setor de Educação e inicia-se a organização das cirandas infantis nos espaços de atividades nacionais do MST. A primeira ciranda nacional aconte-

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ceu em 1997 no I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (Enera), com 80 crianças. Durante o IV congresso nacional do MST em 2000, aconteceu novamente, com 300 crianças, e naquele momento percebeu-se a necessidade de ações de formação para os educadores que trabalham com as nossas crianças, bem como a construção de material pedagógico para realizar este trabalho.

Durante a Marcha de 2005 é que algumas problemáticas se tornaram visíveis na maneira as famílias ainda lidam no trato com as crianças, desde o cuidado básico, a relação com a autoridade e a violência, até a formação mais direcionada que as ajudará a se constituírem enquanto sujeitos, parte de sua reali-dade e identidade de classe, de uma totalidade.

O MST passa, assim, a potencializar essa discussão em seu interior, considerando que as nossas crianças Sem Terra também são vítimas da miséria e da violência provocada pelo desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido se realizou em 2007 o primeiro Seminário Nacional da Infância Sem Terra com a participação de todos os setores da organização para pensar o papel dessa criança no MST. No momento atual, já há uma compreensão de que a infância perpassa todas as estruturas da organização. Em 2014, mais uma experiência marcou a história do trabalho: a Ciranda Infantil Paulo Freire, no VI Congresso Nacional do MST, contou com a participação demais 600 crianças.

A ciranda infantil, assim chamada desde 1997, se tornou uma referência no MST, inclusive e princi-palmente para as nossas crianças, mas também se tornou referência externamente, para diversas organi-zações da classe trabalhadora no Brasil e em outros países. Esta é uma conquista da nossa organização e um espaço de luta e formação para os filhos e filhas da classe trabalhadora do campo.

É a partir dessa história que avançamos no pensar sobre as crianças, tanto na concepção como na forma de trabalhar; superamos desafios mas outros nos são apresentados permanentemente. O mais fundamental é que o MST avançou e se propôs a experimentar, a propor uma formação para a infância da classe trabalhadora.

Passamos, então, a compreender a importância da ciranda como uma conquista das mulheres e como uma forma de criar as condições para a participação das mulheres mães, mas, sobretudo como o espaço de formação das crianças.

Hoje, ao olharmos para os 30 anos de história do MST, percebemos ser maior a nossa responsabilida-de no pensar sobre esse sujeito da luta pela terra, pela reforma agrária e pela transformação da sociedade: a criança e o lugar da infância nesta trincheira cotidiana.

A infância Sem Terra – matrizes formativasPensar a infância em todos os espaços do MST é pensar a criança no assentamento, no acampamen-

to, nas marchas, nas mobilizações, nas reuniões, na produção, nas celebrações, nos conflitos, nas feiras, na família, na escola, no espaço físico etc. de modo que a luta popular e a organização coletiva devem ser pensadas como formativas e educativas para as crianças.

Pensar o fazer na infância no MST é buscar romper com a lógica do capital que permeia todos estes es-paços através da cultura de massa, das escolas, das famílias, do consumo, do trabalho, e no modo como se organiza a vida na sociedade do capital em geral.

Assim, pensar o fazer na infância no MST é refletir sobre como as práticas no interior da organização contribuem com a prática dentro dos espaços institucionalizados em que a lógica do capital e do Estado predomina, mas que é possível desde a forma até o conteúdo irmos construindo e contribuindo para uma prática contra-hegemônica.

Pensar a infância no MST é também olhar para dentro de nossa trajetória, de nossa organicidade e de nossos espaços internos permanentemente; é refletir sobre em que medida estamos rompendo, ou não, com

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a lógica colocada nas diversas esferas, inclusive no olhar e na prática em nosso cotidiano, desde as ins-tâncias de base até os espaços nacionais.

Pensar o fazer na infância é considerá-la no presente. Não a médio e longo prazo. É pensar quem é a criança no MST, quais são as suas tarefas.

Alguns elementos que devem compor as matrizes formativas para o Pensar e o Fazer na infância no MST (para discussão):

• a luta social deve ser a base sob a qual as experiências concretas de classe das crianças sejam viven-ciadas sistematicamente e intencionalmente dentro da organização. Além da vivência individual, a experiência coletiva de reconhecimento de classe também ocorre como base para a formação de valores e de possibilidades de reconhecimento e constituição de sujeitos. É no âmbito da luta, que se forma e se cria a pertença à organização e a consciência enquanto classe trabalhadora. Compre-ender e viver o caráter coletivo da classe é essencial na formação das crianças;

• a cultura no MST tem longa trajetória de debates e produções e a infância também tem produzido as suas expressões culturais. Este elemento deve compor a matriz formativa nesse trabalho, consi-derando desde o enfrentamento da cultura de massa à qual as crianças são expostas permanente-mente nos diversos espaços da vida. De maneira que sejamos vigilantes de nossas próprias ações e das expressões a que expomos as crianças, até o caráter de resistência, de constituição de identidade e de expressão da vida infantil no MST, como parte da classe trabalhadora;

• a matriz da História nos remonta à memória como a vacina contra a morte; só se projeta o futuro se a raiz do presente for profunda, for histórica. A memória histórica nos é cara para a luta e para a formação de consciência, assim, trazer ao presente a história nos mostra a identidade coletiva de classe expressa na história de cada indivíduo, nas raízes, no entender de cada um sobre o mundo;

• a intencionalidade e a estratégia nas ações: qual é o lugar estratégico da infância? Qual a tarefa dos Sem Terrinha hoje para sociedade? Esta questão precisa estar presente no horizonte para fazer que nossas crianças sejam sujeitos reais e protagonistas da história;

• a agroecologia, a soberania alimentar e a saúde na formação de base: o contato com a terra é ainda uma prerrogativa de nossas crianças, que desde cedo vivenciam esta relação. O contato com a produção, a alimentação saudável e a soberania alimentar também são importantes no horizonte na vida delas;

• o internacionalismo, a solidariedade, os princípios e valores na formação de base: as crianças são as que mais têm se apropriado das tarefas que lhes são dadas, especialmente nos exemplos do internacionalismo e da solidariedade, como por exemplo, na relação com a Palestina, ou com Cuba, e na mobilização pela liberdade dos 5 cubanos, ações em que as crianças foram as que mais se envolveram. É preciso manter o cultivo de valores como solidariedade, indignação, companheirismo, disciplina, luta;

• o princípio educativo do trabalho: este é, para nós, um princípio educativo geral; a criança aprende o valor do trabalho com o trabalho, não aquele explorador, mas na divisão social do trabalho de acordo com as possibilidades de cada um, garantindo o seu caráter educativo e necessário no dia a dia, com a coletivização das atividades, potencializando o trabalho como matriz, em seu âmbito criativo.

Desafios e que fazerA história nos demonstra que temos o “vício” de só discutirmos a infância quando ela aparece como

problema, por isso... vamos aos desafios, que são os que nos fazem crescer, formular e construir, sistema-tizando e apontando para nossas tarefas e questões a serem refletidas em todos os nossos espaços:

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• Formação de Base: a criança está presente em todos os lugares, mas qual tem sido o seu lugar na organicidade do MST? Enquanto movimento social que luta por outra sociedade, como deve ser pensada a infância em nosso meio e por nossa organização? Ainda há uma resistência por parte da organização em pensar de forma conjunta a nossa infância Sem Terra. Algo que ninguém consegue negar a importância, mas poucos de fato internalizam o debate e o colocam em prática. Como de-vemos pensar o lugar das crianças desde o acampamento, o assentamento e os centros de formação? Como elas participam da organização nos espaços em que estão inseridas? A nossa organicidade permite que elas sejam sujeitos em seu meio?

• Infância, intersetorialidade e organicidade geral: o trabalho com a infância é de fato a materialidade da atuação intersetorial que almejamos dentro da organização? Como trabalhar de forma conjunta entre os setores a infância Sem Terra? Como criar essa frente? Seria composta por quais setores? Esse debate é possível ser feito nos setores e como ele apareceria? Porque é importante? Os dirigen-tes têm clareza dessa discussão? Nos setores é necessário, desde a materialidade, pensar sobre essas questões, como elas aparecem em cada frente.

• Formação dos educadores: a formação é fundamental para o trabalho com as crianças; não pode-mos permitir que este seja um trabalho daqueles e daquelas com menos condições de fazê-lo, ou daqueles que merecem ser punidos por algo, ou que não farão falta em outra tarefa. Esse trabalho é fundamental para a organização. Por isso, é preciso potencializar e valorizar o educador infantil como militante da nossa organização. A formação deve ser uma ferramenta que nos instrumenta-lize e dê condição fundamental para a qualidade do nosso trabalho.

• Inserção da juventude nas tarefas da infância: o trabalho com os jovens, desde o ensino médio pode contribuir com a frente da infância Sem Terra, uma vez que é uma questão estratégica para o trabalho com a juventude, a exemplo das percepções de que esta passou pela experiên-cia nas jornadas e na formação dos Sem Terrinha e tem hoje lugar em nossos espaços. Com o debate coletivo é preciso pensar na juventude inserida nas linhas de ação e quais tarefas com a infância contribuem com a juventude Sem Terra. A juventude precisa discutir a infância, inclusive, porque elas serão os pais e mães, se já não o são, são as famílias de amanhã ou já o são hoje. A juventude vai fazer a luta para quê? Vai lutar por outra sociedade para quê? É necessária a humanização dos jovens: o que os deixa mais felizes e mais humanos? Pensar na infância é ref letir sobre a questão da faixa etária, tanto para infância como para juventude: até onde se homogeneíza essa questão dentro do trabalho com esses sujeitos, enquanto método e processos pedagógicos.

• Relação de gênero: ainda hoje, a tarefa das cirandas e da infância nos Estados, nos acampamentos e assentamentos continua sendo, no geral, do Setor de Educação, e é ainda muito forte a concepção de que é tarefa da mulher, não sendo muitas vezes a criança o sujeito central do trabalho. Assim como no princípio dos debates sobre a infância, ainda é preciso fortalecer a relação entre a infância e a questão de gênero. Outro desafio ainda é a violência contra as mulheres, que deve ser enfren-tada junto com a violência contra a criança. Romper a ideia de que a infância é responsabilidade da família ou, ainda pior, só da mãe. Deve ser entendido hoje como um desafio de primeira ordem. Precisamos avançar na discussão de gênero e de etnia, colada na discussão da infância.

• Violência: combater a violência contra as crianças é nossa tarefa diária. A criança ainda é enten-dida como propriedade, como responsabilidade da família, de modo que ninguém discute essa questão, precisamos internamente avançar nessa compreensão sobre a violência. Como trabalhar-mos a questão da violência que existe em nossas áreas, entre os assentados e acampados, contra as

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mulheres e, sobretudo,contra as crianças em seu sentido amplo. Assim é necessário politizar essa discussão e falar mais sobre esse assunto.

• Compartilhar a educação e o núcleo familiar: a formação da criança ocorre majoritariamente na primeira infância e em âmbito familiar. Assim, é necessário refletir sobre como realizar o debate que temos na organização para que cheguem às famílias, pais, mães e comunidade. Como retomar e trabalhar o caderno da infância no trabalho de base com as famílias?Qual a participação do jovem e da criança no núcleo familiar?

• Política pública: infância e educação infantil: a infância deve ser entendida como algo maior que a edu-cação infantil, e a educação infantil como algo que precisamos avançar na concepção. Como lidar com as contradições presentes na educação escolar das crianças no campo? Como elas são constituí-das em nossas áreas? A que tipo de educação ela está sujeita em nossos espaços? Como enfrentamos o desafio da educação integral que está nos sendo imposta hoje? Qual é e como é organizada a escola de educação infantil que nos interessa? Temos provocado a luta pela educação infantil desde nossas áreas? Que escola de educação infantil queremos? A institucionalização de nossos espaços, com a inserção de nossas crianças, de seus tempos de ócio, dentro de uma escola ou creche está na mesma lógica do capital, e este é um desafio deste momento. Como discutir políticas públicas para a infância dentro de nossa organização a partir da centralidade que damos à infância Sem Terra?

• Princípio educativo do trabalho: pensarmos o trabalho em sua concepção educativa, como ques-tão pedagógica na formação da consciência humana. Como lidamos com isso? Como refletirmos sobre essa questão? Como fazer do trabalho uma questão de formação para a infância, ele em seu âmbito educativo? É para nós um desafio enorme debater o que é trabalho como princípio educa-tivo e a importância de sustentarmos o princípio num contexto social marcado pela exploração do trabalho infantil.

• Agroecologia e alimentação saudável: como trabalhar com as crianças as questões da produção agro-ecológica, sem veneno, de alimentos saudáveis, que nos é central nesse debate. Discutir as relações do ser humano com o meio ambiente e o que nós damos e incentivamos às crianças na alimenta-ção. Garantir as hortas nas escolas.

• Infância no campo: quem é a nossa infância, qual vida ela tem em nossas áreas? Nossas crianças estão estimuladas a negar que são do campo e muitas famílias as incentivam nessa ideia. Nosso trabalho tem de ser no sentido de terem orgulho e identidade com o ser camponês.

• Espaço físico da infância: qual o lugar concreto da criança em nossas áreas. Lugar físico? É o parque? Como inserir essa questão na organicidade de nossas áreas e como fazer também dos espaços físi-cos espaços permanentes de formação? O MST como um todo está numa fase de reformulação de sua organicidade, então, a sistematização desse debate e reflexão sobre essa questão nesse momento é fundamental.

• Qual cultura? Há muitas questões que queremos resgatar da cultura camponesa, mas há questões que queremos transformar, pois esta cultura é forjada também no seio do desenvolvimento do ca-pitalismo. Do ponto de vista histórico, é muito significativo o MST realizar esse debate em todos os sentidos.

• Centros de formação: nossos centros de formação devem ser referências. Como levar esse debate pra dentro deles? Como estão pensando e realizando esse trabalho? É coerente com a forma com que o MST discute?

• Cirandas infantis: como fazer das cirandas em nossos espaços estaduais também um espaço de exemplo da nossa prática com as crianças. Nos espaços nacionais a ciranda parte de um esforço

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coletivo com os melhores quadros da organização. Mas como isso tem se dado em nossas cirandas estaduais? E lá em nossas áreas? As mães valorizam os espaços de ciranda infantil, entendem que eles têm uma função pedagógica extraordinária para as crianças, mas é essa uma compreensão de todos e todas da organização? Em nossas áreas a ciranda é entendida somente como espaço de cui-dado, descolado do âmbito da formação? Não há um compromisso do conjunto da organização quando pensamos o trabalho com a infância desde nossas áreas. Qual deve ser a nossa intenciona-lidade?

• Projeto Político-Pedagógico: sistematizar e intencionalizar nossos debates para a construção dos ele-mentos que queremos na construção de um projeto pedagógico para a educação infantil.

• Cirandas Infantis Permanentes: precisamos começar a refletir sobre a nossa relação com os muni-cípios para a disputa por escolas de educação infantil coordenadas por nós, a partir de um projeto político-pedagógico que responda às nossas necessidades.

• Infância, comunicação e relação com a sociedade: o papel das crianças na agitação e propaganda tem sido importante na relação com a sociedade. Além de nosso trabalho com a infância ter sido exem-plo, referência para outras organizações da classe trabalhadora.

Linhas de ação• Reprodução e retomada do caderno de trabalho de base sobre a infância.• Formação dos educadores de cirandas infantis em nível nacional e estadual.• Retomar a criação de hortas em nossas escolas com a participação e parceria com os técnicos.• Inserir a juventude nas ações concretas com a infância Sem Terra.• Ter como diretriz em todo trabalho com a infância o elemento da luta. • Garantir nas pautas das direções estaduais o debate sobre a infância Sem Terra.• Construir a frente da infância com os setores de Educação, Cultura, Juventude, Saúde e Gênero.• Discutir as disciplinas curriculares, disputar o nosso projeto, a nossa perspectiva na educação in-

fantil.• Denunciar que a legislação torna obrigatório o estudo de crianças de 4 a 5 anos sem assegurar as

condições para tal.• Construir um PPP da infância Sem Terra que possa ser adaptado às realidades específicas dos Es-

tados, mas que dê linha política.• Fazer campanhas e seminário em nível de grande região para discutir a questão da violência contra

a mulher e a infância.• Trabalhar nas escolas os valores socialistas dada a tamanha desumanização de nossas crianças. • Se preocupar e se preparar para o trabalho com crianças especiais. • Combater a indústria cultural que chega às nossas crianças. Combater e fazer a discussão do con-

sumismo infantil, e do agronegócio que está pegando para si a ideia. • Debater a questão do aborto.• Realizar curso nacional, especialização sobre a infância, contemplando os Estados. • Estudar a cartilha da infância e reproduzi-la. Retomar a centralidade desse trabalho educativo nas

bases (filme: “Criança a alma do negócio”).• Fazer formação e capacitação de educadores, pensando a infância dentro do II Enera.• Ter pessoas para pessoas para assumirem a Frente da Infância nos Estados.• Tirar orientações para os encontros de Sem Terrinha.

Sistematização: Luana Pommé e Luana Oliveira.

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131Parte 2 – Eixo temático: Educação no MST

SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DA REFORMA AGRÁRIADocumento-síntese

Durante os dias 16 a 19 de outubro de 2014 realizamos em Maceió, Alagoas, o “Seminário Nacional de Educação de Jovens e Adultos da Reforma Agrária”. Estiveram reunidos cerca de 130 educadoras e educadores do MST de 16 estados (PA, MA, CE, PI, RN, BA, PE, SE, PB, AL, SP, MG, RJ, PR, SC, RS).

O seminário homenageou o jovem professor Santa Bárbara que pertencia ao MR-8. Depois de preso e torturado em Feira de Santana/BA, mudou-se para o povoado de Buriti Cristalino, interior do muni-cípio de Brotas de Macaubas/BA, onde desempenhou a missão de alfabetizador de camponeses adultos.

As aulas eram dadas à noite, à luz de lampião, dentro da igreja do povoado, único local que dispunha de bancos. No dia 28 de agosto de 1971, o professor, com apenas 24 anos de idade, foi assassinado pela repressão que estava em busca de Carlos Lamarca pela região. É um mártir da luta contra a ditadura e representa o espírito de sacrifício de um jovem alfabetizador dos camponeses.

Realizamos também um ato/debate em defesa da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Popu-lar em conjunto com Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Alagoas (Sinteal) com a presença de universidades, fóruns e parceiros, com o relançamento do livro “O menino que lia o mundo” de Carlos Rodrigues Brandão e debate com o autor.

Inspirados nessa mística, e já em clima de preparação do nosso II Enera, iniciamos as atividades de-batendo as principais questões da reforma agrária popular e os desafios da educação. O amadurecimento deste debate nos faz reforçar a necessidade da massificação dos acampamentos e assentamentos, garan-tindo nossas bandeiras históricas da educação, cultura, saúde, moradia digna, preservando a biodiversi-dade e a produção de alimentos saudáveis.

Ainda no debate sobre a reforma agrária popular nos debruçamos sobre as tarefas da educação, na superação do analfabetismo e na elevação da escolaridade e na formação da consciência. Neste bojo, aprofundamos o debate sobre a história da EJA no Brasil e no nosso Movimento, compreendendo o ca-ráter de dominação e exclusão da negação do direito à educação para a classe trabalhadora.

A socialização e avaliação das experiências de EJA no Pronera, “Sim, Eu Posso” e de processos da escolarização juntamente com a apresentação da experiência “EJA-Manguinhos” da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, do Rio de Janeiro, somadas ao debate sobre trabalho e educação nos aju-daram a aprofundar a discussão debate sobre os desafios e a construção das linhas de ação para a EJA em nossa organização.

Os desafios tirados ao término do nosso seminário foram:1. lutar pelo direito à educação pública de qualidade para todos trabalhadores, compreendendo que

ela é condição para fornecer os instrumentos técnicos e políticos para o desenvolvimento sociocultural numa perspectiva emancipatória da classe trabalhadora;

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132 Parte 2 – Eixo temático: Educação no MST

2. continuar combatendo o analfabetismo além dos nossos territórios porque compreendemos que esta é uma necessidade do povo brasileiro, ao mesmo tempo que devemos ter a clareza da necessidade de buscar apoio nos demais setores da classe trabalhadora para massificar a alfabetização;

3. manter o processo de luta pela escolarização, assumindo a denominação ampla de Educação de Jovens e Adultos e a concepção de educação como processo de formação humana;

4. a educação tem que ser compreendida e defendida pelo conjunto do Movimento, compreendendo todos os setores e instâncias;

5. fortalecer a Frente de Educação de Jovens e Adultos nos diversos espaços de organicidade do Mo-vimento;

6. defender o direito à EJA como política pública em contraposição à lógica dos programas que geram a descontinuidade das atividades pedagógicas, do financiamento e a rotatividade de educadores;

7. manter um processo de formação permanente das educadoras e educadores, coordenações pedagó-gicas garantindo a nossa concepção de EJA;

8. criar mutirões e outras formas de fortalecer a mística da alfabetização para envolver toda a nossa base em função desta tarefa;

9. potencializar as escolas como espaços de referência cultural e de ações coletivas nos acampamentos e assentamentos, fortalecendo o vinculo orgânico entre a escola e a comunidade;

10. organizar bibliotecas comunitárias nos nossos territórios;11. garantir a sistematização das experiências de EJA como forma de reflexão e elaboração sobre a

prática, subsidiando a continuidade dos processos educativos;12. contribuir, a partir das nossas experiências, para o amadurecimento de uma proposta curricular

para a EJA pautada pelos interesses dos trabalhadores;13. articular os processos de alfabetização e de elevação da escolaridade à capacitação técnica e ao

setor de produção, pautando a agroecologia como tema na formação dos trabalhadores.

Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!

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A EDUCAÇÃO NO MST: DESAFIOS E DIRETRIZES PARA SUPERÁ-LOS Síntese da discussão na Coordenação Nacional

Diagnóstico: a realidade das escolas dos assentamentos

A situação educacional nas áreas de reforma agrária preocupaA Pesquisa Nacional da Educação na Reforma Agrária (Pnera), feita pelo Ministério da Educação,

em conjunto com o Incra, fez um levantamento sobre a situação educacional em 6.338 assentamentos existentes no Brasil, no final de 2004. Vivem nesses assentamentos 523 mil famílias, num total de 2,5 milhões de pessoas. O total de escolas: 8.679. Nossa estimativa é de que 25% deste total dizem respei-to a áreas vinculadas ao MST. A pesquisa geral demonstrou que: de 0 a 3 anos há 155 mil crianças e apenas 4% são atendidas pela educação infantil; de 4 a 6 anos são 165 mil crianças e 47% frequentam a escola; de 7 a 10 anos há 285 mil crianças e 95,7% frequentam a escola; de 11 a 14 anos há 302 mil pessoas e 94% frequentam a escola; de 15 a 17 anos são 203 mil pessoas e apenas 77% estão na escola; já acima de 18 anos são 1.431 mil pessoas, sendo 23% analfabetas e 42% que só estudaram até a 4a série. Em relação à infraestrutura das escolas, a situação é precária. Apenas 60% das escolas têm luz elétrica; telefone público só 16%; correio 6%; biblioteca 56%; computador 10%. Não é por acaso que 45% dos entrevistados pela pesquisa, colocaram como prioridade: construir/ampliar e melhorar as instalações das escolas nos assentamentos.

A coordenação nacional reafirmou o compromisso de retomar a luta por escolas e pela ampliação dos níveis e modalidades de ensino, bem como pela melhoria das condições de infraestrutura e dos recursos didáticos (livros, bibliotecas, laboratórios). Discutiu-se a criação de uma frente de massa em cada assen-tamento para mobilizar as famílias para as lutas por educação, assim como a inclusão sistemática destas questões nas pautas de lutas e negociações nacionais e estaduais do Movimento.

A baixa qualidade da educação desenvolvida nas escolas também preocupaEmbora a pesquisa mostre dados muito gerais sobre pedagogia, e sabemos que há várias escolas nos

assentamentos e acampamentos do MST que desenvolvem práticas pedagógicas avançadas, a realidade da maioria das escolas ainda indica um baixo nível de qualidade pedagógica. Dentre os motivos estão: a baixa escolaridade e a formação insuficiente das educadoras e educadores; a rotatividade dos professores, já que para muitos professores da cidade dar aula nos assentamentos é visto como um castigo; os salários baixos; os conteúdos descolados da realidade; o fato das comunidades não ocuparem a escola com sua pedagogia, e os próprios problemas de infraestrutura.

Para enfrentar esta situação precisamos qualificar as educadoras e os educadores, mas é necessário também elevar o imaginário Sem Terra, o nível cultural de nossa base para que seja mais exigente na defesa do seu direito a uma escola pública de qualidade.

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134 Parte 2 – Eixo temático: Educação no MST

Diretrizes e linhas políticas para reflexão e debate

Na filosofia

1) É preciso continuar a reflexão e o debate sobre nossa filosofia de educaçãoNeste encontro uma das questões discutidas foi sobre a participação do MST na mobilização pela

Educação do Campo. A chamada “Educação do Campo: direito nosso, dever do Estado!” ainda gera algumas dúvidas. A primeira delas é em relação à própria expressão Educação do Campo. O ideário que vem sendo construído desde 1998 tem na expressão do campo a afirmação do protagonismo da classe trabalhadora do campo na luta e na construção de seu próprio projeto de educação, algo muito novo na história de nosso país. Mas foi lembrado que como a expressão também sugere um lugar, para muitos pode não ficar suficientemente clara esta perspectiva de classe. A segunda dúvida diz respeito à expres-são “dever do Estado”, que para alguns pode significar um acomodamento do povo àquilo que o Estado oferece. A discussão reafirmou que devemos exigir do Estado que garanta escola para todo o povo, mas que em nosso caso, consideramos que é dever das comunidades ocupar a escola no sentido de garantir seu projeto político-pedagógico na perspectiva da Pedagogia do Movimento.

O que reafirmamos na discussão: a) somente a luta conjunta pode forçar a democratização do Estado e a universalização dos direitos; a luta do MST, da Via Campesina e de outros movimentos sociais pela Educação do Campo pode representar na história de nosso país, a entrada na escola pública de milhares e até milhões de camponeses que, de outra forma, não teriam esse direito. O que não é pouco num país onde mais de 20 milhões de jovens e adultos continuam analfabetos. E pode representar a possibilida-de de construção pedagógica de uma escola que respeite a realidade e a identidade de quem trabalha e vive no campo. Por isso deve ser uma das prioridades de atuação política do MST na área da educação. Só a escola pública é capaz de universalizar o direito do povo do campo à educação! b) A Educação do Campo, especialmente na atual correlação de forças, não esgota nem substitui a reflexão específica do MST sobre a educação. Precisamos fortalecer nossas práticas educativas na perspectiva da Pedagogia do Movimento e na relação com um projeto socialista de educação e de sociedade.

2) O debate da educação é parte do debate geral que estamos fazendo sobre a organicidade do MSTA Educação não avança sozinha! E não vai avançar enquanto os assentamentos e os acampamentos,

ou as famílias Sem Terra não assumirem esta questão como sua. O diagnóstico que apareceu na CN, de forma quase geral, é que a comunidade não assume a escola; os professores estão por fora do MST; a escola está fora da organização e o MST deixou para o setor de educação resolver tudo. A continuar assim não há possibilidade de reverter esse quadro. Nenhum setor avança sozinho. É necessário que o conjunto do MST se empenhe na solução dos problemas de organicidade que ainda temos. É preciso que o conjunto da organização ajude a implementar a Pedagogia do Movimento nas escolas e nas diferentes ações que realiza. Assim como é fundamental que todos os setores trabalhem pelo avanço do conjunto da luta e da organização do MST.

3) Elevação do nível de consciência e de cultura de nossa basePrecisamos ter claro, em todas as instâncias, e fazer um debate profundo sobre como utilizar a edu-

cação e seus métodos pedagógicos, no sentido de criar no assentamento um espaço de convivência e sociabilidade que gerem o ser humano novo que sonhamos. Enfim, o verdadeiro objetivo da educação é elevar o nível de consciência social, de conhecimentos e de cultura que liberte verdadeiramente as pes-

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soas. Liberte-as de sua ignorância, da opressão, da exploração do capital, do mercado; liberte-as de seus preconceitos e de relações pessoais atrasadas e opressoras.

Na pedagogia

4) É preciso continuar priorizando e ampliar o trabalho de formação de educadoresHá muitos desafios pela frente. Pelos dados da Pnera é possível estimar que temos em torno de

10 mil professores que atuam nas áreas de reforma agrária ligadas ao MST. A metade deles não tem a escolaridade exigida para o trabalho que realizam e não poucos tiveram uma formação descolada da nossa realidade. Com todo o empenho feito pelo MST até hoje, atualmente um pouco mais de mil educadoras e educadores estão participando de cursos de Magistério e Pedagogia organizados pelo Movimento e em parceria com universidades públicas e secretarias de educação, com apoio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Precisamos ampliar a formação de educadoras e educadores das próprias comunidades dos assentamentos e acampamentos; abrir novas turmas; garantir uma formação sólida em conhecimentos gerais, uma capacitação pedagógica voltada para a realidade do campo e uma formação política coerente com o projeto de sociedade que quere-mos; ademais do esforço coletivo para inserir esses educadores na organicidade do MST. Só teremos educadores afinados com o projeto do MST no dia em que forem vinculados aos assentamentos e assumirem o destino das comunidades.

Nos desafios políticos e sociais

5) A militância do MST precisa prestar mais atenção à escola e também a outros espaços de formação das novas gerações

A escola é um dos espaços onde acontece/se faz educação. Mas é preciso ter presente que ela é uma instituição que tem uma lógica própria e tem sido historicamente um instrumento ideológico a serviço da burguesia. É preciso muita organização e persistência para transformá-la, mas vale a pena o empenho exatamente porque se trata de uma ferramenta de formação muito importante. Mas a educação não acontece só na escola; acontece na ciranda infantil, nos encontros dos Sem Terrinha, na família, nas atividades da comunidade acampada e assentada. Essas vivências culturais possuem uma força extraor-dinária na formação das pessoas, especialmente nas novas gerações, e podem inclusive ajudar a influen-ciar as mudanças na escola. Todas as lideranças e o MST em seu conjunto devem trabalhar com uma intencionalidade educativa em todos esses espaços e tempos. Que ser humano estamos formando através de nossas diferentes práticas? Como garantir que assumam a continuidade das nossas lutas?

6) É preciso quebrar a resistência e a acomodação de nossas direções e base frente ao estudoSão muitas as desculpas para não estudar. Poderíamos dizer que um dos motivos é uma postura de

se conformar/acomodar no estágio que a pessoa chegou e achar que assim está bom. Em outros casos a atitude é de quem acha que já sabe, que não precisa mais estudar; há ainda muita autossuficiência entre nossas lideranças. Outra explicação é a falta de clareza sobre o significado/o papel do estudo na vida das pessoas e, no nosso caso, a importância do estudo para a análise da realidade atual e o avanço da luta e da organização. A orientação é que o MST deve pensar estímulos, formular métodos e criar alternativas

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que motivem nosso povo a estudar, a ir para a EJA, a continuar seu processo de escolarização e a parti-cipar dos cursos de formação. “Todo Sem Terra estudando!” ficou como sugestão de frase convocatória.

7) Nossos centros de formação devem ser potencializados e também podem ser nossa referência de escolaTemos aproximadamente 50 centros de formação espalhados pelo Brasil. Nestes espaços acontecem

reuniões, encontros, cursos formais e não formais. Se fizermos uma estimativa por baixo podemos di-zer que em cada centro passam por ano 500 militantes; temos então um total de 25 mil pessoas neste processo, o que não é pouco. E levando em conta que essa militância mora e atua nos assentamentos e acampamentos, é possível concluir que esses centros possuem uma capacidade de irradiação de ideias, de projeto, impressionante.

A reflexão da CN veio no sentido de que precisamos olhar nossos centros com uma atenção especial e transformá-los em referências do que queremos inclusive para as escolas. Um exemplo de produção, de embelezamento onde haja biblioteca, materiais informativos, videoteca, laboratório, para elevar o nível cultural e político do nosso povo. À medida que nossos centros forem essa referência, poderemos construir por extensão uma análise mais exigente das escolas nos assentamentos. Nada melhor do que experimentar/vivenciar a nova escola para estar em condições de construí-la em cada uma de nossas comunidades! Quantos de nossos centros, territórios conquistados pelo suor e luta dos Sem Terra, estão hoje em condições de ser esta referência? Qual o papel desses centros para o MST? Seria possível criar uma rede entre nossos centros, para intercâmbio e solidariedade? Como construí-los na perspectiva do projeto de educação e de sociedade que queremos?

Nos métodos organizativos

8) Romper com o “setorismo” e a dependênciaOs desafios políticos e filosóficos que temos pela frente na questão da educação são enormes e exi-

girão os esforços de todos. Para isso precisaremos mudar nossos métodos de trabalho organizativo no campo da educação. Precisamos romper com o “setorismo” e achar que educação é apenas tarefa do setor de educação. Assim como romper a dependência que temos do setor de educação. E o setor de educação precisa romper os desvios que podem ocorrer aqui e acolá, de comportar-se como um agente de fora que vai com seus professores resolver o problema da educação para a comunidade. Como se fosse uma enti-dade à parte da comunidade. O setor de educação é importante, e continuará sempre muito ativo, para desenvolver aquelas tarefas mais especializadas – mais profissionalizadas –, que exigem um maior grau de dedicação e especialização. Mas a tarefa da educação em nossos assentamentos deve ser assumida por todos os militantes, por todos os setores complementarmente, e por toda a comunidade. Todos somos educadores e educadoras independente do grau de escolaridade, em nossos assentamentos. Todos temos algo a ensinar e a aprender com nossos filhos, com nossos jovens e conosco mesmos.

Precisamos em cada assentamento partir de uma avaliação da realidade em que se encontram nossas escolas, nossos processos educativos, quantas crianças, jovens e adultos não estão estudando. E fazer um plano de superação a partir das diretrizes políticas que temos. Para determinadas tarefas urgentes, precisaríamos adotar o método de frente de massa, e realizar uma espécie de mutirão no assentamento e acampamento, para que todos se envolvam e ajudem a resolver os problemas.

Precisamos incorporar como método de trabalho, incluir as tarefas da educação como parte das ta-refas das brigadas e como parte de nossa organicidade permanente dentro dos assentamentos e acam-pamentos. O conjunto do MST deve compreender e se envolver com as tarefas da educação como uma missão permanente de todo militante.

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137Parte 2 – Eixo temático: Educação no MST

9) Nossa organização como um todo precisa ter mais cuidado com a infânciaA infância Sem Terra recebeu atenção especial nas discussões deste encontro. Destacou-se que a fase

de 0 a 6 anos de idade é determinante na formação da personalidade. Há um sentimento de que preci-samos ter um novo olhar para a infância e construir esse imaginário sobre a infância no conjunto da fa-mília Sem Terra. O que implica dizer que é urgente o MST compreender a infância e passar a trabalhar com ela num novo patamar de respeito e atenção.

Discutimos sobre a necessidade de ampliar o debate sobre a educação das crianças e qualificar as ci-randas infantis. E uma proposta feita, foi a de que os setores de gênero, educação e saúde passem a coor-denar, em conjunto, a implementação das cirandas infantis nos diferentes espaços do MST.

10) É preciso priorizar o trabalho com a juventudeFormamos nossa juventude e muitos não querem ficar nos assentamentos. Por quê? O que fazer? Pe-

los dados da Pnera estima-se que são 50 mil jovens entre 15 e 17 anos nas áreas de reforma agrária do MST. Algumas dezenas de estudantes de nossos cursos formais fizeram suas monografias sobre a juven-tude no MST. Segundo alguns desses estudos, em resumo, os jovens permanecem nos assentamentos quando encontram ali as possibilidades de: – trabalho/emprego/renda; – continuidade de escolarização; – lazer/cultura/esporte; – participação nas lutas e na organização; – acesso a novas tecnologias/compu-tador/informática.

Nossa organização precisa se debruçar sobre as novas questões que estão postas para a juventude no mundo em que vivemos. Faz-se necessário compreender essas questões e a partir disso construir, junto com os jovens, as alternativas para seguir em frente. E é preciso reverter com urgência esta realidade de que, para continuar estudando, os jovens precisam sair do assentamento. A própria juventude deve ser mobilizada para lutar por escolas de ensino fundamental completo, de ensino médio e técnico nos pró-prios assentamentos e também por vagas nas escolas técnicas que existem na região.

Resumo das propostas

Ações concretas1. Lutar pelo direito à escola de ensino fundamental completo e ensino médio nos assentamentos.

Organizar frentes de luta por essas escolas. Os coletivos dos assentamentos precisam assumir a escola. Despertar nas famílias a consciência do direito à educação. Fazer lutas concretas para conquistar as es-colas necessárias nos assentamentos.

2. Realizar um mutirão em todo país, em todos os assentamentos para enfrentar os problemas con-cretos das escolas e da educação. Envolver toda comunidade assentada e acampada na solução dos pro-blemas que existem em relação à escola. Não esperar apenas pelo setor de educação.

3. Criar mecanismos para envolver a juventude via produção/renda, lazer, comunicação, educação e cultura.

4. Desenvolver atividades, encontros, cursos, seminários locais, regionais, estaduais e nacionais que envolvam o maior número de professores das áreas de reforma agrária, buscando trazer mais educadores para a luta.

5. Trabalhar para que cada escola construa junto com a comunidade seu projeto político-pedagógico e assim garantir a liga entre escola e comunidade. Vincular a educação com o projeto de assentamento.

6. Incorporar nas práticas pedagógicas das escolas os princípios organizativos do MST.

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7. Massificar a formação de educadores (Magistério/Normal, Pedagogia). Ocupar as universidades, ampliar os cursos em parcerias com as mesmas, avançar para outras áreas do conhecimento. Nossa pers-pectiva histórica deve ser a de garantir educadores dos próprios assentamentos nas escolas. O que signifi-ca dizer que precisamos investir muito na formação de educadores e educadoras de nossas comunidades. Dessa forma será bem mais fácil ter nossa escola ligada à comunidade e ao MST.

8. Desenvolver em todas as escolas alguma experiência de trabalho produtivo. Envolver os técnicos no apoio a essas iniciativas.

9. Fazer no conjunto do MST um amplo debate sobre a infância Sem Terra. A organização e imple-mentação da ciranda infantil, em todos os espaços do MST, passa a ser responsabilidade dos setores de gênero, educação e saúde.

10. Dar mais atenção ao trabalho de Educação de Jovens e Adultos garantindo ao povo esse direito sagrado de poder ler e escrever. Dobrar os esforços na perspectiva de que nossos jovens e adultos conti-nuem participando de processos de escolarização no ensino fundamental e médio. potencializar turmas nossas nas escolas técnicas federais e estaduais.

11. Estudar os resultados da Pnera. Pedir no Incra os dados por Estado, estudar em profundidade e a partir dos mesmos elaborar planos de ação para enfrentar os principais problemas dos assentamentos.

12. Exigir do Incra que garanta recursos no Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA), para construir e equipar as Escolas. Colocar isso na pauta de negociações.

13. Organizar bibliotecas, círculos de leitura e trabalhar sistematicamente para elevar o nível cultural de nossa base e internalizar no povo o gosto pela leitura, pelo estudo.

14. Fortalecer nas escolas todas as atividades que projetem a dimensão da cultura, da comunicação, da mística e do trabalho.

15. Orientar o Iterra para dar mais atenção à qualificação técnica e política. E o conjunto dos cursos formais deve ir além da escolarização. Nossos cursos devem primar pela qualidade de conhecimentos gerais, pela capacitação técnica, pela formação política e ideológica e vínculo estreito com a inserção orgânica.

16. Socializar as experiências pedagógicas e de elevação cultural, através de audiovisuais. Potenciali-zar o uso de filmes para a conscientização política.

17. Potencializar as pesquisas feitas nos cursos. Hoje temos mais de 2 mil pessoas elaborando suas monografias, o que significa a dedicação de um tempo e esforço grande desses estudantes e de nossa organização. O MST precisa organizar espaços em suas instâncias, nos setores e assentamentos/acampa-mentos para que os estudantes apresentem o resultado de suas pesquisas e as conclusões e proposições a que chegaram. É fundamental avançar na produção e socialização dos conhecimentos. Também é im-portante observar o que está sendo escrito, cuidar com as informações.

18. Transformar o assentamento numa verdadeira escola do MST para todas as crianças, todos os jovens e adultos.

19. Incluir no currículo de nossas escolas o ensino da língua espanhola, e também de cooperação agrícola.

20. Promover, estimular e garantir que todos os militantes e membros das instâncias do MST, desde os núcleos de base, até a coordenação nacional devem estudar, participar de algum curso. Precisamos elevar o nível cultural e de escolarização dos nossos militantes e dirigentes.

21. Fazer trabalho de base junto às comunidades assentadas e acampadas para elevar o imaginário de nosso povo sobre o direito à educação e a pedagogia do movimento.

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22. Envolver a todos os técnicos e agrônomos que temos no setor de produção ou em outras ativida-des, para que também se engajem como educadores.

Encaminhamentos organizativos

1. O funcionamento das brigadas assumir a escola como parte integrante de sua atuação. E todos os educadores devem participar e se envolver na organização e no funcionamento das brigadas do seu assentamento, e na organicidade em geral do MST.

2. Integrar a ação dos diversos setores dentro dos assentamentos e acampamentos. Superar a prática/desvio do “setorismo”.

3. Fazer esse debate da Educação em todas as instâncias e cursos. Aprofundar a reflexão sobre a rela-ção entre a Educação do MST e a Educação do Campo.

4. As direções estaduais devem planejar e acompanhar a inserção dos militantes que estão participan-do de cursos para que se integrem nas atividades do MST. O Tempo Comunidade é chave na formação de nossos estudantes.

5. Incorporar as práticas pedagógicas da autogestão, da cultura, do trabalho e dos princípios organi-zativos em todas as atividades do Movimento.

6. Fazer uma grande Jornada Nacional de Luta por Escola em outubro, aproveitando as atividades dos Sem Terrinha, mas garantindo o envolvimento de todo o MST. Incluir a luta por escolas itinerantes.

Goiânia, 7 de julho de 2005.

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141Anexo – Amostra de canções do percurso/educação

AMOSTRA DE CANÇÕES DO PERCURSO 30 ANOS / EDUCAÇÃO

SEMPRE É TEMPO DE APRENDERZé Pinto

Quem é que tem interesse em participar,quem é que se prontifica para ensinar tá lançado o desafio e o refrão vamos cantar/: “Sempre é tempo de Aprender,/ Sempre é tempo de ensinar”:/Quando criança nos negaram esse saber; depois de grande vamos pôr os pés no chão, /:a quem não sabe o dever de repartir, todos na luta pela alfabetização:/

Jovens e adultos papel e lápis na mão, unificando educação e produção, /: num gesto lindo de aprender e ensinar se educando com palavra e com ação:/

Na nossa conta um mais um tem que crescer, a liberdade vai além do ABC, /:um conteúdo dentro da realidade vai despertando o interesse de saber:/

NOVA FORMA DE APRENDIZADOZé Pinto

Ninguém educa ninguém/ Ninguém se educa sozinho/:As pessoas se educam entre si /Descobrindo este novo caminho:/

Como pensa o MST/ E o setor pensa a educação/:Muito além do a,e,i,o,u/ Ou um canudo de papel na mão:/

Professor tem que ser militante/ Ensinar dentro da realidade/:A importância da Reforma Agrária/E a aliança do campo e cidade:/

Discutindo as tarefas da escola/ Ensinando como plano quer/:Ir gerando sujeitos da história/ Novo homem e nova mulher:/

Combatendo o individualismo/ Se educando contra os opressores/:Aprendendo viver coletivo/Construindo assim novos valores :/

Discutindo cooperativismo/O avanço da organização/:É na vida do assentamento/ Que a criança aprende a lição:/

Conhecer a caneta e a enxada/Afinando estudo e trabalho/:Aprendendo teoria e prática/ Nova forma de aprendizado:/

Avançar nossa pedagogia/Construir é bem mais que querer/:Educando pra sociedade/ Que implantaremos ao amanhecer:/

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142 Anexo – Amostra de canções do percurso/educação

TODA CRIANÇA NA ESCOLAZé Pinto

Tem que estar fora de modacriança fora da escolapois há tempo não vigorao direito de aprender.criança e adolescentenuma educação decentepra um novo jeito de ser/:pra soletrar a liberdadena cartilha do abc :/

Que tenha escola em cada canto do BrasilCom um novo jeito de educar pra ser feliz/:Tem tanta gente sem direito de estudarÉ o que nos mostra a realidade do país:/

Juntar as forças, segurar de mão em mãoNuma corrente em prol da educação/:Se o aprendizado for além do B A BÁToda criança vai poder ser cidadã:/

Alternativas pra acabar com a exclusãoMovimento já mostrou para a naçãoDesafiando dentro dos assentamentos /:Reforma Agrária também na Educação:/

CIRANDA INFANTILZé Pinto

É um, é dois, é três,Já aprendemos contar.É quatro, é cinco, é seis,Agora nós vamos parar.Um tempo pra gente brincarAntes de chegar a mil./:Em nome da Reforma Agrária ai, ai, aiUm viva à Ciranda Infantil:/

/:De ciranda em ciranda, Aprender a cirandarComo o Estatuto diz: - Estudar, brincar felizE aprender a cantar:/E vamos lá.Vamos plantar poesia, E vamos lá.Vamos colher alegria, E vamos lá.É hora de estudar.

SONHO E COMPROMISSOZé Pinto

Foi por amar a nossa pátria brasileiraPor uma bandeira foi que a gente se dispôs/:A educar no campo da Reforma AgráriaForma sujeitos pra o amanhã que vem depois:/

Pelos caminhos da nova sociedadeA educação tem um papel fundamental/:Por isso vamos aprendendo e ensinandoPlantar um sonho de justiça social:/

Se acha que é besteiraSó pensa asneira não sabe amarPois nossa proposta é do aprender, socializarSe acha que é perdido não tem sentido este seu pensar/:Pois o grande sonho é todo o país alfabetizar:/

Às educadoras e educadores o compromissoDo sacrifício assumindo sempre sem vacilar/:A realidade na produção do conhecimentoE o latifúndio da educação vamos ocupar:/

Segue o Movimento com escola, terra e dignidadeNovas dimensões da pessoa humana pra conquistar/:Quem não ama a vida não pode nunca ensinar a viverE na educação quem não ama nunca pode educar:/

CONSTRUTORES DO FUTURO Gilvan Santos

Eu quero uma escola do campoQue tenha a ver com a vida, com agenteQuerida e organizadaE conduzida coletivamenteEu quero uma escola do campoQue não enxergue apenas equaçõesQue tenha como “chave mestra”O trabalho e os mutirões

Eu quero uma escola do campoQue não tenha cercas que não tenha murosOnde iremos aprenderA sermos construtores do futuro

Eu quero uma escola do campoOnde o saber não seja limitadoQue a gente possa ver o todoE possa compreender os ladosEu quero uma escola do campoOnde esteja o ciclo da nossa semeiaQue seja como a nossa casaQue não seja como a casa alheia.

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143Anexo – Amostra de canções do percurso/educação

FECHAR ESCOLA É CRIMEZé Pinto Quando se fecha uma escola O conhecimento chora Ignorância fica em primeiro lugar Vai se alastrando como praga em plantação Vai separando a arte da educação Fechar escola é crime Vamos gritar É do Estado essa responsabilidade É uma conquista é um direito adquirido A sociedade tá alerta E vai cobrar Lá vai Joãozinho Lá vai Maria Felicidade é ter escola todo dia Tem brincadeira tem alegria Aprendizado vira flor de poesia

A EDUCAÇÃO DO CAMPOGilvan Santos

A educação do campoDo povo agricultorPrecisa de uma enxadaDe um lápis e um tratorPrecisa educadorPrá trocar conhecimentoO maior ensinamentoÉ a vida e seu valor

Dessa históriaNós somos os sujeitosLutamos pela vidaPelo que é de direitoAs nossas marcasSe espalham pelo chãoA nossa escolaEla vem do coração

Se a humanidadeProduziu tanto saber O rádio e a ciênciaE a cartilha do ABCMas falta empreenderA solidariedadeSoletrar essa verdadeEstá faltando acontecer

NÃO VOU SAIR DO CAMPOGilvan Santos

Não vou sair do campo Pra poder ir pra escolaEducação do campo É direito e não esmola.

O povo camponês O homem e a mulherO negro o quilombola Com seu canto de afoxéTicuna, CaetéCastanheiros, seringueirosPescadores e posseirosCom certeza estão de pé.

Cultura e produção Sujeitos da culturaA nossa agricultura Pro bem da populaçãoConstruir uma naçãoConstruir soberaniaPra viver o novo dia Com mais humanização.

Quem vive da floresta Dos rios e dos maresDe todos os lugaresOnde o sol abre uma frestaQuem sua força empresta Nos quilombos, nas aldeiasQuem na terra semeia Venha aqui fazer a festa.

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144 Anexo – Amostra de canções do percurso/educação

TERRA DE EDUCARProtásio Prates/RS

No fundo do mundo/Acontece um lugarPerdido pra muitos/Difícil de acharPois para chegar/É preciso sentirQue o futuro existe/Naquele que insiste/ Em repartir

Terra de educar/ Portal do amanhãQuem chega pra ser/ Trabalha cantando Descobre sorrindo/ Que o dia é mais lindoQuando existe manhã

Amanhã partirei/ Terra de educarVou levando comigo/ O que sei e aprendiMeu saber repartir/ E depois voltarei

Eu venho de gente/ Que luta e sofreTrabalha, se mata/ Pra encher outros cofresMas tem esperança/ Num mundo melhorCom igualdade e respeito/ E sem preconceitoDe riqueza e de cor.

PASSOS DO SABERMarcinha/PR

Muitos saberes vêm do viverQuanta alegria nos traz o saber.Educar é saber amarUma sociedade poder transformar.

Cada passo que andarEsta história vai nos darNovo tempo pra colherAprender e ensinar.

Muitos saberes vêm do coraçãoMas é preciso também dizer nãoQuando o mal vem nos imporNovos valores vamos nos propor.

Na terra amada do coraçãoEscolas, sonhos e plantaçãoGermina a semente que nos uniuPovo Sem Terra é do Brasil.

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