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489 Lacerda et al. Taquicardia Pré-Excitada e Estenose Mitral Imagem Cardiovascular Rev Bras Cardiol. 2012;25(6):489-493 novembro/dezembro Imagem Cardiovascular Serviço do Coração - Hospital Federal de Bonsucesso - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Correspondência: Renato Côrtes de Lacerda E-mail: [email protected] Rua Farme de Amoedo, 82 ap.701 - Ipanema - 22420-020 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Recebido em: 08/07/2012 | Aceito em: 29/08/2012 Introdução A fibrilação atrial e o flutter atrial fazem parte da história natural da estenose mitral e, com eles, surgem ou acentuam-se os sintomas de congestão pulmonar. A perda da contração atrial e a dificuldade de esvaziamento do átrio esquerdo (AE) favorecem a formação de trombos na auriculeta esquerda, causa frequente de embolização sistêmica¹. Pacientes portadores de vias acessórias podem cursar com taquiarritmias, sejam elas taquicardias ortodrômicas ou arritmias atriais como a fibrilação atrial ou o flutter atrial que podem pré-excitar os ventrículos. Os raros casos de morte súbita em portadores de vias acessórias são atribuídos à ocorrência de fibrilação Taquicardia Pré-Excitada em Paciente com Estenose Mitral Pre-Excited Tachycardia in a Patient with Mitral Stenosis Renato Côrtes de Lacerda, Júlio Constant Lohmann, Ana Luisa Rocha Mallet, Claudio Munhoz da Fontoura Tavares Resumo Paciente masculino, 52 anos, com estenose mitral moderada, apresentou taquicardia sustentada com QRS alargado, 120bpm, com diagnóstico de taquicardia ventricular (TV) pelo algoritmo de Brugada. Eletrocardiograma (ECG) subsequente revelou flutter atrial atípico com condução atrioventricular (AV) variável, com diferentes graus de pré-excitação por via acessória lateral esquerda. Em ritmo sinusal foi possível evidenciar a pré-excitação ventricular, o que permitiu fazer o diagnóstico de arritmia atrial associada à presença de via acessória. Nesses casos, o algoritmo de Brugada sugere, erroneamente, tratar-se de taquicardia ventricular. Palavras-chave: Taquicardia ventricular; Estenose da valva mitral; Flutter atrial; Síndrome de Wolff-Parkinson- White Abstract A 52-year-old male patient with moderate mitral stenosis developed a sustained wide QRS tachycardia of 120 bpm, diagnosed as ventricular tachycardia through the Brugada algorithm. A subsequent ECG revealed an atypical flutter with variable atrioventricular conduction at different pre-excitation levels through the left lateral accessory pathway. In sinus rhythm, it was possible to note ventricular pre-excitation, which led to a diagnosis of atrial arrhythmia associated with the presence of an accessory pathway. In cases of pre-excited tachycardia, the Brugada algorithm can be misdiagnosed. Keywords : Tachycardia, ventricular; Mitral valve stenosis; Atrial flutter; Wolff-Parkinson-White Syndrome atrial associada a uma via acessória com período refratário baixo, podendo gerar estimulação ventricular em alta frequência com desenvolvimento de fibrilação ventricular². Relata-se o caso de paciente com uma associação incomum de estenose mitral, flutter atrial atípico e via acessória. Esta associação pode ser potencialmente maligna e de difícil diagnóstico diferencial entre taquicardia ventricular e taquicardia pré-excitada. Relato do Caso Paciente masculino, 52 anos, com estenose mitral, começou com palpitações rápidas quando se dirigia

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Rev Bras Cardiol. 2012;25(6):489-493novembro/dezembro

ImagemCardiovascular

Serviço do Coração - Hospital Federal de Bonsucesso - Rio de Janeiro, RJ - Brasil

Correspondência: Renato Côrtes de LacerdaE-mail: [email protected] Farme de Amoedo, 82 ap.701 - Ipanema - 22420-020 - Rio de Janeiro, RJ - BrasilRecebido em: 08/07/2012 | Aceito em: 29/08/2012

Introdução

A fibrilação atrial e o flutter atrial fazem parte da história natural da estenose mitral e, com eles, surgem ou acentuam-se os sintomas de congestão pulmonar. A perda da contração atrial e a dificuldade de esvaziamento do átrio esquerdo (AE) favorecem a formação de trombos na auriculeta esquerda, causa frequente de embolização sistêmica¹. Pacientes portadores de vias acessórias podem cursar com taquiarritmias, sejam elas taquicardias ortodrômicas ou arritmias atriais como a fibrilação atrial ou o flutter atrial que podem pré-excitar os ventrículos.

Os raros casos de morte súbita em portadores de vias acessórias são atribuídos à ocorrência de fibrilação

Taquicardia Pré-Excitada em Paciente com Estenose Mitral

Pre-Excited Tachycardia in a Patient with Mitral Stenosis

Renato Côrtes de Lacerda, Júlio Constant Lohmann, Ana Luisa Rocha Mallet, Claudio Munhoz da Fontoura Tavares

Resumo

Paciente masculino, 52 anos, com estenose mitral moderada, apresentou taquicardia sustentada com QRS alargado, 120bpm, com diagnóstico de taquicardia ventricular (TV) pelo algoritmo de Brugada. Eletrocardiograma (ECG) subsequente revelou flutter atrial atípico com condução atrioventricular (AV) variável, com diferentes graus de pré-excitação por via acessória lateral esquerda. Em ritmo sinusal foi possível evidenciar a pré-excitação ventricular, o que permitiu fazer o diagnóstico de arritmia atrial associada à presença de via acessória. Nesses casos, o algoritmo de Brugada sugere, erroneamente, tratar-se de taquicardia ventricular.

Palavras-chave: Taquicardia ventricular; Estenose da valva mitral; Flutter atrial; Síndrome de Wolff-Parkinson-White

Abstract

A 52-year-old male patient with moderate mitral stenosis developed a sustained wide QRS tachycardia of 120 bpm, diagnosed as ventricular tachycardia through the Brugada algorithm. A subsequent ECG revealed an atypical flutter with variable atrioventricular conduction at different pre-excitation levels through the left lateral accessory pathway. In sinus rhythm, it was possible to note ventricular pre-excitation, which led to a diagnosis of atrial arrhythmia associated with the presence of an accessory pathway. In cases of pre-excited tachycardia, the Brugada algorithm can be misdiagnosed.

Keywords: Tachycardia, ventricular; Mitral valve stenosis; Atrial flutter; Wolff-Parkinson-White Syndrome

atrial associada a uma via acessória com período refratário baixo, podendo gerar estimulação ventricular em alta frequência com desenvolvimento de fibrilação ventricular².

Relata-se o caso de paciente com uma associação incomum de estenose mitral, flutter atrial atípico e via acessória. Esta associação pode ser potencialmente maligna e de difícil diagnóstico diferencial entre taquicardia ventricular e taquicardia pré-excitada.

Relato do Caso

Paciente masculino, 52 anos, com estenose mitral, começou com palpitações rápidas quando se dirigia

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à consulta ambulatorial. O ritmo cardíaco era regular, com 120bpm, a primeira bulha hiperfonética, e havia um ruflar diastólico no foco mitral. A PA era 110x80mmHg. Não havia ruídos adventícios nos pulmões nem edema de membros inferiores.

Estava em uso de amiodarona 100mg ao dia e carvedilol 6,25mg duas vezes ao dia. Evoluía bem, exceto por palpitações ocasionais e não sustentadas e dispneia a esforços maiores. Ecocardiograma recente mostrava estenose mitral com área valvar de 1,5cm2, pressão sistólica da artéria pulmonar de 27mmHg, AE com 4,5cm, ventrículo esquerdo (VE) normal.

O ECG revelou taquicardia regular com QRS largo, 120bpm (Figura 1). Enquanto aguardava internação, observou-se que o ritmo tornara-se irregular, sendo realizado novo ECG (Figura 2). Um terceiro ECG revelou ter havido reversão espontânea da arritmia (Figura 3).

O ecocardiograma transesofágico (ETE) mostrou trombo na auriculeta esquerda. O paciente fora in ternado o i to anos antes , ex t remamente taquicárdico, dispneico e hipotenso (Figura 4), sendo tratado por cardioversão elétrica.

Figura 1Taquicardia de QRS largo com FC 120bpm. As precordiais foram registradas em N/2. Há complexos RS em V5 e V6 e o intervalo entre o início do QRS e o nadir da onda S é superior a 100ms, sugerindo taquicardia ventricular da parede lateral do ventrículo esquerdo.

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Figura 2Ritmo de flutter atrial atípico (D2). A condução AV é variável, sendo observadas diferentes durações dos QRS alargados. A morfologia do QRS largo é a mesma do ECG anterior.

Figura 3ECG em ritmo sinusal mostra discreto grau de pré-excitação ventricular, mais evidente nas derivações V4 a V6 e pela onda q em aVL. Esta última indica tratar-se de uma via acessória lateral esquerda. A presença de extrassístoles atriais que despolarizam os ventrículos pela via acessória tornam mais evidente a presença de pré-excitação.

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Figura 4Taquicardia com QRS alargado compatível com taquicardia ventricular. A morfologia, no entanto, é a mesma da pré-excitação ventricular, sugerindo se tratar de flutter atrial com condução 1:1 e uma frequência atrial e ventricular em torno de 300bpm. Os ventrículos são despolarizados pela via acessória esquerda que tem um período refratário curto, o que explica a morfologia alargada e aberrante dos complexos QRS.

Comentários

Apesar de 80% das taquicardias regulares com QRS alargado terem origem ventricular, observa-se uma tendência para o diagnóstico de taquicardia supraventricular com condução aberrante nesses casos , sobretudo quando há es tabi l idade hemodinâmica, devido à crença errônea de que a TV leva invariavelmente à deterioração hemodinâmica³.

No caso em questão, um indivíduo com estenose mitral é atendido com taquicardia regular de QRS largo, 120bpm (Figura 1). Em D2, aVR e aVL pode-se suspeitar de ondas P “cavalgando” ondas T, sem dissociação AV. A morfologia do QRS é de bloqueio do ramo direito. A duração do QRS é de 160ms, com o ÂQRS a 90º. O algoritmo de Brugada, um dos

métodos mais difundidos para o diagnóstico diferencial das taquicardias com QRS alargado, quando aplicado a esse ECG, conduz ao diagnóstico de TV: “quando existe RS nas precordiais, se o intervalo entre o início do QRS e o nadir da onda S é superior a 100ms trata-se de TV” (Figura 1). Nestes casos, o diagnóstico diferencial deve ser feito com taquicardias supraventriculares com condução aos ventrículos por via acessória4.

O ECG subsequente (Figura 2) revela, contudo, um flutter atrial atípico com condução AV variável, com frequência atrial próxima de 360bpm. Nesse traçado observam-se complexos QRS aberrantes, com a mesma morfologia do ECG inicial, ao lado de complexos QRS estreitos. Os complexos aberrantes poderiam ser representação do fenômeno de Ashman,

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no qual complexos QRS de origem supraventricular conduzem aos ventrículos por apenas um dos ramos, direito ou esquerdo. Quando se trata do fenômeno de Ashman, a morfologia dos batimentos aberrantes não deve ser compatível com origem ventricular e sim com batimento supraventricular com aberrância. É ainda característica do fenômeno de Ashman a ocorrência de aberrância após uma sequência de ciclo longo–ciclo curto, o que não ocorre nesse traçado. No caso em questão, a morfologia aberrante dos complexos QRS sugere uma arritmia ventricular (segundo o algoritmo de Brugada)5.

O terceiro ECG (Figura 3), registrado após a reversão espontânea do flutter atrial, mostra alterações compatíveis com pré-excitação. O PR está ligeiramente encurtado. As ondas R amplas de V1, V2 e V3, que em paciente com estenose mitral poderiam sugerir sobrecarga do VD, são na verdade ondas delta. Essa delta positiva em V1 e a onda Q de aVL, também uma delta, revela o sentido da despolarização inicial do VE pela via anômala, que se faz da esquerda para a direita, indicando se tratar de uma via acessória lateral esquerda. A onda P profundamente negativa em V1 indica sobrecarga atrial esquerda, compatível com a lesão valvar. Os complexos QRS aberrantes de D2 longo, V1, V2, e V3 são extrassístoles atriais que conduzem aos ventrículos mais pela via acessória do que os batimentos sinusais, este fato secundário às c o n d u ç õ e s d e c re m e n t a i s i n e re n t e s a o n ó atrioventricular.

As taquicardias pré-excitadas podem simular TV, uma vez que a ativação ventricular se faz, predominantemente, pela via acessória e não pelo sistema de condução AV, o que explica porque a aplicação do algoritmo de Brugada a este caso indicaria, erroneamente, tratar-se de TV.

O achado de ECG antigo (Figura 4) que mostrava flutter com condução AV 1:1 (Figura 4) veio comprovar a correta interpretação dos eletrocardiogramas anteriores. Essa condução AV 1:1 não voltou a ocorrer,

provavelmente porque a amiodarona e o carvedilol prolongaram o período refratário anterógrado da via anômala.

O risco de novas taquicardias pré-excitadas continuava presente, sendo indicado estudo eletrofisiológico, seguido da ablação da via acessória e do flutter. Como o ETE mostrou trombo na auriculeta esquerda, que aumentaria o risco de embolização durante o procedimento, optou-se por manter o varfarina sódica por três semanas, repetir o ETE e reavaliar a indicação do procedimento.

Potencial Conflito de InteressesDeclaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Fontes de FinanciamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação AcadêmicaO presente estudo não está vinculado a qualquer programa de pós-graduação.

Referências

1. Selzer A, Cohn KE. Natural history of mitral stenosis: a review Circulation. 1972;45(4):878-90.

2. Della Bella P, Brugada P, Talajic M, Lemery R, Torner P, Lezaun R, et al. Atrial fibrillation in patients with an accessory pathway: importance of the conduction properties of the accessory pathway. J Am Coll Cardiol. 1991;17(6):1352-6.

3. Morady F, Baerman JM, DiCarlo LA Jr, DeBuitleir M, Krol RB, Wahr DW. A prevalent misconception regarding wide-complex tachycardias. JAMA. 1985:254(19):2790-2.

4. Brugada P, Brugada J, Mont L, Smeets J, Andries EW. A new approach to the differential diagnosis of a regular tachycardia with a wide QRS complex. Circulation. 1991;83(5):1649-59.

5. Gouaux JL, Ashman R. Auricular fibrillation with aberration simulating ventricular paroxysmal tachycardia. Am Heart J. 1947;34(3):366-73.